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UNIDADE 2

CORPO, SABER MÉDICO E BIOPOLÍTICA

Objetivos
• Compreender o corpo como construção social.
• Identificar a importância assumida pelo discurso e pelas práticas médicas
nas sociedades modernas.
• Analisar em que medida as práticas médicas reafirmaram hierarquias no
contexto brasileiro.

Conteúdos
• O corpo como objeto de análise social.
• Biopoder e poder disciplinar em Foucault.
• O poder médico.

Orientações para o estudo da unidade


Antes de iniciar o estudo desta unidade, leia as orientações a seguir:

1) Não se limite a este conteúdo; busque outras informações em sites con-


fiáveis e/ou nas referências bibliográficas, apresentadas ao final de cada
unidade. Lembre-se de que, na modalidade EaD, o engajamento pessoal é
um fator determinante para o seu crescimento intelectual.

2) Procure identificar os principais conceitos apresentados; siga a linha gra-


dativa dos assuntos até poder observar a evolução do estudo do corpo, do
saber médico e da biopolítica.

3) Não deixe de recorrer aos materiais complementares descritos no Conte-


údo Digital Integrador.

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1. INTRODUÇÃO
Vamos iniciar nossa segunda unidade de estudo. Você está
preparado?
Na unidade anterior, vimos como a Sociologia nos propor-
ciona um olhar diferenciado sobre a saúde, levando em conta
as desigualdades socioeconômicas e as diferenças de gênero e
“raça”.
Nesta unidade, vamos abordar as práticas e os discursos
médicos a partir de um referencial que se centra no corpo como
categoria de análise sociológica. Em seguida, estudaremos como
os saberes médicos se institucionalizaram nas sociedades mo-
dernas como um discurso pretensamente neutro, dada a sua
legitimidade científica, e acabaram por embasar formas históri-
cas de controle do corpo e subjetividades. Trata-se, portanto, de
uma unidade autocrítica sobre o campo da saúde e suas relações
com a organização social.
Para nosso objetivo, vamos nos apropriar sociologicamen-
te da obra do filósofo Michel Foucault (1926-1984), um estudio-
so da Medicina social e de mecanismos de poder criados por ela
nas sociedades modernas. Na visão do autor, o corpo e a vida
surgem como objeto privilegiado do saber médico, transforman-
do de forma radical a maneira com a qual a sociedade lidou com
ele.
Vamos começar?

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2. CONTEÚDO BÁSICO DE REFERÊNCIA


O Conteúdo Básico de Referência apresenta, de forma su-
cinta, os temas abordados nesta unidade. Para sua compreensão
integral, é necessário o aprofundamento pelo estudo do Conteú-
do Digital Integrador.

2.1. CORPO, MODERNIDADE E PODER

Você pode se perguntar como o corpo pode ser compreen-


dido como uma categoria sociológica, já acostumado a interpre-
tá-lo com base em suas características fisiológicas. A análise do
corpo como construção social teve seu início no texto As técni-
cas corporais (1934), do antropólogo e sociólogo francês Marcel
Mauss, sobrinho de Èmile Durkheim.
A ideia de construção social é uma metáfora cara às Ci-
ências Sociais, que denota como a sociedade, por meio de suas
convenções culturais, conforma certas práticas, levando os in-
divíduos a reproduzi-las. Essas práticas, por mais que pareçam
naturais e espontâneas, são construídas a partir da vivência em
sociedade. Mas o que isso tem a ver com o corpo?
Mauss (2003), em seu texto clássico, compara o uso dos
corpos em diversas culturas ditas “primitivas”. Ele analisa como
cada sociedade desenvolve formas singulares de andar, sentar,
dormir, mostrando que não há uma forma natural de se portar
com o corpo; as formas variam culturalmente e são, portanto,
adquiridas. Um exemplo interessante é pensar em como dor-
mir. Haveria alguma predisposição biológica que define a forma
como repousamos? Mauss demonstra uma variedade de formas,

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como, por exemplo, deitar sobre algo ou no chão, repousar de


cócoras ou sentado etc.
Sabemos que muitos povos indígenas que habitam em
nosso território nacional têm o hábito de dormir em redes. Sob
um olhar etnocêntrico e preconceituoso, facilmente podemos
considerar tal hábito uma forma atrasada de descansar, em com-
paração às nossas confortáveis camas. No entanto, trata-se de
uma preferência que também foi adquirida socialmente, e um
indígena poderia não concordar com ela, preferindo sua rede
e achando-a mais confortável. Enfim, todo uso que fazemos do
nosso corpo, por mais que pareça natural, é produto de uma cul-
tura, de uma época, da sociedade em que nos inserimos.
Na unidade anterior, vimos que a Sociologia surgiu como
uma ciência voltada a explicar a singularidade das sociedades
modernas, industriais e capitalistas. Max Weber (1983) analisou
a formação de um ethos (conduta) capitalista voltado ao traba-
lho e à rentabilidade em uma sociedade cada vez mais dominada
pela racionalidade técnica e burocratização.
Karl Marx (2005) abordou a divisão social do trabalho com
o capitalismo industrial, no qual trabalhadores, desprovidos dos
meios de produção, vendiam seu trabalho como mercadoria
dentro de uma engrenagem de produção marcada por acirrada
competição voltada à acumulação.
O século 20 testemunhou como a acumulação de capital,
a especialização e a alienação do trabalho estavam entre os as-
pectos centrais da contemporaneidade. O controle do trabalho
foi aspecto fundamental na concorrência entre grandes capitais
monopolistas.

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O fordismo, cujo nome remete à estrutura organizacional


da fábrica de automóveis de Henry Ford, transformou-se em
um modelo de acumulação de capital muito difundido. Ele se
caracterizava, dentre outros fatores, pela produção em massa e
disposição dos trabalhadores em uma linha de montagem, de-
sempenhando funções repetitivas. Mas como essas questões se
relacionam com o corpo enquanto construção social?
Michel Foucault (1979) foi o primeiro a articular o contro-
le do corpo com essas complexas formas de organização social.
Muito tempo depois de Marx e Weber, Foucault pesquisou sob
ângulos diferentes aspectos centrais das sociedades contempo-
râneas. O controle disciplinar dos corpos é o foco de suas re-
flexões. Como os trabalhadores passam a obedecer a horários
e produzir segundo critérios de produção estabelecidos por ou-
trem? Como os sujeitos abandonam certos hábitos tradicionais
e se voltam a estruturar suas vidas a partir de critérios sociais
baseados na racionalização, especialização e rentabilidade?
Uma resposta possível, com base na obra de Foucault
(1979) , é o disciplinamento dos corpos a partir da generaliza-
ção de certas instituições modernas, como a escola, o hospital, a
prisão, a fábrica etc. Nessas instituições, criam-se tecnologias de
poder sobre os corpos, especialmente por meio de um elemen-
to: a visibilidade exaustiva, os corpos estão continuamente sob a
mira de um olhar.
Foucault (1979) analisa um dispositivo arquitetural defini-
do pelo jurista Jeremy Bentham (século 18) como panóptico. O
modelo já existia, mas foi esse jurista inglês que o formulou e ba-
tizou. Escolas, hospitais, presídios e hospícios eram construídos,
então, baseando-se no modelo de vigilância a seguir descrito:

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[...] na periferia, uma construção em anel, no centro, uma torre;


esta possui grandes janelas que se abrem para a parte interior
do anel. A construção periférica é dividida em celas, cada uma
ocupando toda a largura da construção. Estas celas têm duas
janelas: uma abrindo-se para o interior, correspondendo às ja-
nelas da torre; outra, dando para o exterior, permite que a luz
atravesse a cela de um lado a outro. Basta então colocar um vi-
gia na torre central e em cada cela trancafiar um louco, um do-
ente, um condenado, um operário ou um estudante. Devido ao
efeito de contraluz, pode-se perceber da torre, recortando-se
na luminosidade, as pequenas silhuetas prisioneiras nas celas
da periferia. Em suma, inverte-se o princípio da masmorra: a luz
e o olhar captam melhor que o escuro que, no fundo, protegia
[...] (FOUCAULT, 1979, p. 210).

O importante não é memorizar com detalhes os elemen-


tos arquiteturais do panóptico, descrito de uma prisão, mas
compreender como o seu princípio está presente até hoje e de
forma aprimorada nas instituições. Pense como as escolas, por
exemplo, privilegiam uma arquitetura em que os alunos podem
ser vistos e disciplinados exaustivamente. Normalmente, há um
pátio no meio e vários andares de corredores em sua volta. Um
inspetor no corredor do andar de cima pode ver o que um aluno
está fazendo no pátio. Hoje em dia, a utilização da tecnologia,
como câmeras espalhadas pela escola, permite um controle ain-
da maior. Um supervisor pode não estar olhando para as telas da
câmera enquanto um aluno passa no corredor. Este aluno não
saberá se está sendo vigiado ou não, mas, na dúvida, procurará
ter um comportamento exemplar.
O que se garante com esse modelo de vigilância é a sensa-
ção dos internos de que estão sob supervisão contínua. Quando
se incute nos alunos a ideia de que podem estar o tempo todo
sendo vigiados, a vigilância se internaliza e os próprios sujeitos
se corrigem, evitando que sejam penalizados. Nesse caso, existe

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um poder mais sofisticado do que aquele que apenas reprime ou


pune exemplarmente.
Trata-se, antes, de um poder positivo que cria condutas.
Em outros termos, criam-se corpos dóceis por meio dessas insti-
tuições disciplinares. Deve-se compreender que esses mecanis-
mos são uma invenção histórica que generalizou tecnologias de
poder caracterizadas por vigiar, treinar e eventualmente punir.
Algo parecido com um adestramento, que se realiza dentro das
instituições e que é vital para conformar corpos e subjetividades
prontas ao trabalho disciplinado e à vida racionalizada moderna.
Em síntese:
[...] Para Foucault, o poder deixa de ser percebido, segundo
uma representação jurídica, como negatividade, como aquilo
que reprime, como força que se exerce de cima para baixo, do
Estado sobre a sociedade, para ser percebido como rede de re-
lações que capturam os corpos, produzem os gestos, permeiam
as instituições e constituem as subjetividades. Trata-se de uma
outra concepção do poder – visto como positivo e produtivo
[...] (RAGO; FUNARI, 2008, p. 18).

Ao lado desse poder no âmbito microssocial, há outro tipo


de poder macro, que é articulado com a formação dos Estados
Nacionais, preocupados com um novo problema social: a popu-
lação. Com o advento das sociedades modernas, “a população
humana era vista como um recurso a ser monitorado e regulado
como parte do processo de maximização do poder e das riquezas
nacionais” (GIDDENS, 2005, p. 138).
A vida, ou a saúde do corpo populacional, passou a ser
essencial aos estados que buscavam se fortalecer por meio do
aumento da produtividade da nação, visando a taxas de cresci-
mento e estimulando suas capacidades defensivas em relação a
outros estados.

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Formou-se um novo ordenamento do espaço que visa gerir


o corpo populacional. Antes, a sociedade ocidental era marca-
da pelo predomínio de um poder soberano, baseado no direito
do governante de matar, especialmente quando o domínio de
seu poder era ameaçado. Já nas sociedades contemporâneas,
efetiva-se uma estatização do controle da espécie humana. O
que importa agora é cuidar da vida, regulamentar o desenvol-
vimento saudável do corpo populacional que crescia em níveis
consideráveis.
Houve, então, a formação do que Foucault denominou de
biopoder: uma nova tecnologia que “se dirige à multiplicidade
dos homens [...] na medida em que ela forma [...] uma massa
global, afetada por processos [...] como o nascimento, a morte, a
produção, a doença, etc. [...]” (FOUCAULT, 1999, p. 289).
O surgimento das sociedades urbanizadas e dos Estados
Nacionais demandou o estudo da demografia, ou seja, o estudo
da população em termos de tamanho, composição e dinâmica
das populações. Produziram-se previsões e estimativas e tentou-
-se intervir, com base nelas, controlando endemias, subtraindo
forças e reduzindo custos econômicos.
Elaboraram-se as primeiras estatísticas de natalidade,
mortalidade, idade média de casamento, nascimento, taxa de
suicídio, expectativa de vida, doenças, causas de morte etc. Há,
portanto, o estabelecimento de um poder no nível do detalhe,
do corpo individual, e outro no nível da massa, do “corpo social”
que se encontram entrelaçados na contemporaneidade. Veja a
explicação seguinte:
[...] Trata-se, no capitalismo industrial emergente, da apropria-
ção dos corpos para a elevação da produtividade econômica e
para a total submissão política. Questão de dominação, em que
duas grandes tecnologias políticas se entrecruzam e se refor-

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çam: as disciplinas, de um lado, e a regulação das populações


– o biopoder –, de outro [...] (RAGO; FUNARI, 2008, p. 18).

O nascimento e o cruzamento de tais tecnologias de poder


acompanharam a transformação radical pela qual passava a so-
ciedade. Tratou-se de um momento seguido da Revolução Indus-
trial que proporcionou a formação de conglomerados urbanos,
o crescimento demográfico inédito e muitos problemas sociais
relacionados a essas mudanças, como a pobreza e más condi-
ções de vida, contemplando condições de saúde, saneamento e
habitação.
Observou-se, então, um poder de qualidade positiva diri-
gido pelo Estado, no sentido de cuidar da vida do corpo popula-
cional, gerenciá-lo, a fim de controlar endemias e evitar o que se
considerava como uma possibilidade factível: a “degeneração”
da coletividade/nação.
Foucault (1999) postula que a sexualidade ocupou uma po-
sição de proeminência de preocupação social, articulada tanto
ao surgimento das disciplinas quanto do biopoder. No saber da
época, práticas sexuais desviantes passaram a ser consideradas
como um risco à sociedade. Buscava-se, então, regulamentar e
disciplinar sexualidades, a fim de reproduzir um padrão calcado
no casamento heterossexual entre parceiros brancos e na con-
sequente patologização da homossexualidade, além de associar
reproduções entre casais inter-“raciais” à degeneração “racial”,
associada à queda da civilização (BORGES, 2005).
O controle dos corpos e da população coincidiu com o
momento no qual a Medicina alcançou grande reconhecimen-
to na sociedade e, por sua vez, fundamentou, partindo de seu
estatuto científico, práticas disciplinares e de regulamentação
populacional:

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[...] Cada vez mais, o Estado passa a ocupar-se com dimensões


como saúde da população e seu poder, reforçado pela aliança
com a Medicina, atingirá a todos e todas nos ínfimos recônditos
da vida pública e privada. O poder médico apresenta-se como
a autoridade competente para a gestão da vida e da morte, no
mundo urbano-industrial: da orientação às mães nos cuidados
maternos à definição das práticas sexuais lícitas e ilícitas, da de-
finição das identidades sexuais às teorias da degenerescência
[...] (RAGO; FUNARI, 2008, p. 18).

Foucault (1979) nega a hipótese, até então aceita em seu


tempo, de que a Medicina moderna seria essencialmente indivi-
dualista, centrada nas relações de mercado e na valorização da
relação médico-paciente. Ao contrário, sua tese é a de que:
[...] Com o capitalismo não se deu a passagem de uma medicina
coletiva para uma medicina privada, mas justamente o contrá-
rio; que o capitalismo, desenvolvendo-se em fins do século XVIII
e início do século XIX, socializou um primeiro objeto que foi o
corpo enquanto força de produção, força de trabalho. O contro-
le da sociedade sobre os indivíduos não se opera simplesmen-
te pela consciência ou pela ideologia, mas começa no corpo,
com o corpo. Foi no biológico, no somático, no corporal que,
antes de tudo, investiu a sociedade capitalista. O corpo é uma
realidade biopolítica. A medicina é uma estratégia biopolítica
(FOUCAULT, 1979, p. 80).

Para Foucault (1979), os saberes científicos não são neu-


tros, nem desinteressados, estão antes intimamente relacio-
nados ao poder. O poder só se exerce a partir da produção de
discursos que são aceitos cientificamente como verdadeiros. Em
outras palavras, são formulados na forma de discurso científico
em instituições específicas, sofrem incitações econômicas e po-
líticas, são imensamente difundidos e consumidos, produzem o
controle de alguns aparelhos políticos e econômicos e são objeto
de debate político e confrontos sociais (FOUCAULT, 1979, p. 13).

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O saber-poder é um tema privilegiado para o filósofo


francês, relacionando-se intimamente com as tecnologias de
poder das quais tratamos. Esse filósofo se interessava pelo de-
senvolvimento histórico de uma intervenção social calcada em
um saber institucionalizado: a Medicina, notadamente voltada
à coletividade.
Para esse mesmo autor, a Medicina moderna surgiu na Ale-
manha no começo do século 18, articulada à primeira formação
de uma ciência de Estado, preocupado com seu funcionamento
e legitimidade perante a população. A Alemanha era, na épo-
ca, uma justaposição de vários pseudoestados em perpétuos
conflitos e relações de força desequilibradas, favorecendo, com
as disputas, a produção de conhecimento sobre o Estado e sua
população. Ainda contava com uma burguesia que não pôde se
desenvolver economicamente e então se aliava aos soberanos,
ao mesmo tempo em que se dedicava à organização estatal e seu
conhecimento. Tais condições permitiram o surgimento de uma
Medicina atrelada ao Estado (FOUCAULT, 1979, p. 81-82).
Enquanto na França e na Inglaterra formulavam-se esta-
tísticas de natalidade e mortalidade, índices de saúde da popu-
lação e havia preocupação em aumentar o corpo populacional,
na Alemanha, a intervenção era mais direta, pois dispunha de
uma prática médica que visava melhorar a saúde da população.
Constituiu-se um sistema complexo de observação da morbida-
de, normalização e profissionalização da prática médica, estru-
turação administrativa para controlar as atividades dos médicos
e subordiná-los, além da hierarquização de funcionários nessa
estrutura, abrangendo as variadas regiões (FOUCAULT, 1979, p.
83-85).

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Em seguida, houve o desenvolvimento da Medicina na


França. Não tendo suporte a estrutura do Estado, foi antes esti-
mulada pelas problemáticas da urbanização. As cidades na Fran-
ça até o fim do século 18 não caracterizavam-se por uma unida-
de territorial, mas por territórios heterogêneos e constituídos de
poderes rivais. Justificou-se a necessidade de unificação do cor-
po urbano por razões econômicas e políticas, ao mesmo tempo
em que se observou a consolidação nesse espaço não ordenado
de pânicos sobre epidemias (FOUCAULT, 1979, p. 85-87).
Houve, então, o desenvolvimento da higiene pública, in-
fluenciada por um modelo médico e político da quarentena sus-
citado pela peste desde o fim da Idade Média. Foucault (1979,
p. 88-89) descreve que, com a iminência da peste, desenvolve-
ram-se mecanismos de esquadrinhamento urbano no qual: as
pessoas deveriam ficar em suas casas quando em quarentena;
a cidade deveria ser dividida em bairros; uma autoridade ficaria
a cargo de cada uma dessas divisões e nomearia inspetores que
permitiriam um mecanismo de vigilância generalizada, a revista
exaustiva dos vivos e dos mortos, a elaboração de relatórios e a
desinfecção casa a casa.
Tratou-se da consolidação do poder disciplinar nas dispo-
sições urbanas, notadamente inclusivo, com o isolamento, indi-
vidualização e vigilância proporcionada pela Medicina social. A
higiene pública desenvolveu-se como uma variação sofisticada
desse modelo da quarentena.
Procurava-se analisar locais que poderiam oferecer riscos
de epidemias; havia a preocupação com a circulação de água e
de ar, favorecendo a abertura de avenidas e a demolição de cons-
truções, e orientavam-se as organizações sobre as distribuições e
as sequências dos elementos do espaço urbano. Centrava-se, so-

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bretudo, na ideia de salubridade, ou seja, seu foco não era exa-


tamente o organismo, mas o meio e suas influências ao organis-
mo. Tratou-se de um controle político-científico do meio, ou, em
outras palavras, do gerenciamento do corpo urbano (FOUCAULT,
1979, p. 89-93).
O terceiro exemplo analisado pelo autor foi o caso inglês.
Tratou-se de uma Medicina dos pobres ou da força de trabalho,
elementos que até então não estavam sob questão. Antes de sua
constituição, os pobres eram considerados como funcionais, na
medida em que, em um espaço urbano desordenado, prestavam
serviços essenciais de carregamento e de entregas postais. Du-
rante o século 19, os pobres tornaram-se para a burguesia um
perigo, com os protestos e as revoltas constantes, em razão das
desigualdades gritantes que sucederam à Revolução Industrial
(FOUCAULT, 1979, p. 94).
Com a criação de um sistema postal e de carregadores, os
pobres também não eram mais instrumentais. A partir de então
estabeleceram-se medos políticos e sanitários dos pobres, vistos
como ameaça não só na dominação de classe, como também
possíveis fontes de doenças e epidemias. Não à toa, tal visão se
difundiu na Inglaterra, país de maior desenvolvimento industrial.
Surgia como problema político o controle da saúde das popula-
ções pobres para torná-las mais aptas ao trabalho e menos peri-
gosas à classe dominante.
Assim, ao mesmo tempo em que se proporcionava assis-
tência aos pobres, estes eram controlados para a proteção das
classes abastadas. Viabilizava-se uma estrutura administrativa
que dava conta do controle da vacinação, dos registros de epi-
demias e da destruição dos focos de insalubridade. As políticas
médicas centralizavam-se em medidas preventivas, visando ao

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gerenciamento do espaço social. Estabeleceu-se um cordão sa-


nitário autoritário pelas cidades, afastando ricos e pobres em zo-
nas de habitação distintas (FOUCAULT, 1979, p. 96).
As políticas médicas voltadas à população pobre eram
compreendidas como autoritárias, derivando reações violentas
da população, notadamente, resistências populares. Com seu
desenvolvimento, três sistemas superpostos baseavam o mode-
lo inglês:
[...] uma medicina assistencial destinada aos mais pobres, uma
medicina administrativa encarregada de problemas gerais
como a vacinação, as epidemias, etc., e uma medicina privada
que beneficiava quem tinha meios para pagá-la [...] (FOUCAULT,
1979, p. 97).

Em uma visão ingênua, o imperativo de cuidar da vida,


criado com a emergência do biopoder, poderia significar sim-
plesmente a democratização do direito à saúde. O processo des-
crito por Foucault (1979) é mais complicado. Ele mostra que o
gerenciamento da vida pelo Estado significou, na verdade, um
complexo de práticas de disciplinamento populacional para
atender a seu fim último: a otimização do corpo populacional de
um Estado-Nação, produtivo economicamente e potencialmente
defensivo militarmente.
O biopoder surgiu da Medicina social em um período no
qual as sociedades modernas estavam assombradas pelos pro-
blemas derivados da industrialização e urbanização. O medo da
degeneração populacional, da contaminação de doenças e de
contato com classes menos privilegiadas, muitas vezes, fomen-
tou políticas de reforço das desigualdades sociais.
Michel Foucault (1979) analisou toda essa complexa malha
do poder que circula na sociedade, perpassa instituições, sabe-

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res, a Medicina e o Estado, partindo de suas reflexões no contex-


to europeu.
Nosso intuito, a partir de agora, é nos voltarmos para o
estabelecimento das tecnologias de poder aqui exploradas em
sua vinculação com o saber médico no contexto brasileiro. Para
tanto, nos referimos a um momento de transformação social
nos grandes centros urbanos, na virada do século 19 para o 20,
quando:
se aceleram os processos de formação do mercado de trabalho
livre, de modernização, urbanização e expansão industrial, e
onde se podem registrar profundas transformações nas formas
da vida cultural, política e social [...] (RAGO; FUNARI, 2008, p.
22).

Com as leituras propostas no Tópico 3. 1., você vai acom-


panhar questões sobre o corpo, a biopolítica e a Medicina. An-
tes de prosseguir para o próximo assunto, realize as leituras
indicadas, procurando assimilar o conteúdo estudado.

2. 2. O SABER MÉDICO E O PODER: O CONTEXTO BRASILEIRO NA


ENTRADA DO SÉCULO 20
Durante o século 19, a Medicina institucionalizou-se e ga-
nhou reconhecimento social, com a formação, na capital federal,
da Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro e da Academia Im-
perial de Medicina. O fim do século 19 foi um período marcado
pelo crescimento populacional em alguns centros urbanos, por
epidemias de cólera e febre amarela e pela volta dos combaten-
tes desfalecidos da Guerra do Paraguai. Com a Abolição da Es-
cravatura e a Proclamação da República, promulgava-se a ideia
de que os velhos hábitos coloniais, ainda vigorantes, deveriam
ser urgentemente substituídos por outros mais modernos. Uma

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Medicina social, sob o nome de higiene pública, passava, então,


a ocupar um papel protagonista nessa nova sociedade.
Concebia-se, com apoio do saber médico, a ideia de que a
modernidade era alcançável no país com a aproximação com o
modelo de civilização europeia, modelo societário da elite brasi-
leira. Ao mesmo tempo, em relação às classes populares, “procu-
raram abolir as velhas tradições e concepções que informavam
os antigos padrões de comportamento da população, classifican-
do-os como ignorantes, primitivos e irracionais” (RAGO; FUNARI,
2008, p. 24).
A higiene pública surgia como saneadora da Nação, inter-
vindo em escolas, locais públicos, casas etc. Seu enfoque era a
prevenção: “os hábitos deveriam ser moralizados, orientando-se
os costumes alimentares e higiênicos, controlando-se o desvio e
evitando-se a ‘degeneração’” (SCHWARCZ, 1993, p. 226).
Diante do quadro dramático das epidemias e dos precon-
ceitos que embasavam sua relação com os saberes e as práticas
populares, os médicos atuavam com base na ideia amplamente
difundida cientificamente de degeneração: um conceito bioló-
gico, hoje em dia superado, mas que foi muito utilizado na in-
terpretação da sociedade, pressupondo um risco iminente de
decadência.
Nesse contexto, a Medicina pretendia-se “tutora da socie-
dade, senhora absoluta dos destinos e do porvir” (SCHWARCZ,
1993, p. 202). Podemos afirmar que a Medicina esteve vinculada
à constituição do biopoder à brasileira, quando a população foi
vista como alvo de ser regulada e controlada nos termos em que
se concebia o saudável.

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Jurandir Freire Costa (1999) analisou como a Medicina mo-


derna brasileira, aliada ao Estado, influenciou os costumes da an-
tiga família patriarcal brasileira, modificando-a. Instaurou-se, no
país, uma ordem médica que instituiu uma nova norma familiar.
As famílias das classes dominantes, substituindo costumes que
privilegiavam o contato de suas crianças com os escravos, pas-
saram a ser orientadas a abandonar a prática da amamentação
das crianças pelas amas de leite, enquanto se valorizava a impor-
tância da maternidade. À mãe caberia então um novo papel: a
educação higiênica.
Gondra (2004) aponta como o saber médico passou a se
voltar para um controle da vida privada e pública das mulheres
que deveriam se abster de outras atividades em prol da materni-
dade. O suposto pouco caso das mães era responsável, na visão
médica da época, pela:
produção de filhos fracos e caquéticos, cujas causas, em sua óti-
ca, poderiam ser encontradas, dentre outras, no seio da escra-
va, nos bailes, nas danças, na suspensão forçada da menstrua-
ção, na alimentação debilitante, no desenvolvimento precoce
da puberdade e na leitura imprudente de certos romances [...]
(GONDRA, 2004, p. 95).

O internato, por sua vez, passou a ser o “modelo escolar


ideal para a efetivação do projeto de moralização gestado e le-
gitimado pela ordem médica” (GONDRA, 2004, p. 453). Influen-
ciadas pelo saber médico, as escolas de elite transformaram-se
no local onde os filhos das classes abastadas eram educados em
condições ideais, afastados do que poderia ser considerado dege-
nerador: do ambiente urbano desordenado às classes populares.
Antes da instauração da ordem médica, havia uma pul-
verização das funções de curar na sociedade brasileira, com a
presença de babeiros, parteiras, curandeiros etc. Diante dessa

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UNIDADE 2 – CORPO, SABER MÉDICO E BIOPOLÍTICA

diversidade, houve uma campanha que transformou todos os


saberes populares em charlatanismo. Com o movimento higie-
nista, impõs-se a figura do médico como privilegiada não apenas
nos cuidados de saúde individuais, como também na condução e
na orientação dos âmbitos públicos e privados.
Conforme Rago e Funari (2008, p. 24):
[...] Instituindo-se como as autoridades mais competentes para
sanear o espaço urbano e cuidar de seus habitantes, construí-
ram paulatinamente um extenso projeto de higienização social
e, para sua implementação, contaram com o apoio do Estado,
em sua luta para restringir os enormes poderes dos grandes
proprietários de terra, fortemente enraizados no mundo priva-
do. No contexto de desodorização da cidade, de combate a do-
enças e controle epidêmico, de eliminação dos pântanos, de or-
ganização da distribuição da água e dos sistemas de canalização
e do controle da mortalidade infantil, sexualidades legítimas e
ilegítimas, como prostituição, homossexualidade, masturbação
e outras ‘perversões sexuais’ foram consideradas temas de do-
mínio exclusivamente médico [...].

Acompanhando esse processo, a Medicina elegeu-se e foi


reconhecida socialmente como o campo de saber com o poder
de definição de duas categorias que passaram a ser centrais na
forma de se compreender o mundo social: o normal e o patoló-
gico. Tendo isso em vista, elas são abordadas como categorias
históricas e, portanto, não estanques (MISKOLCI, 2003).
A família branca, heterossexual e burguesa passou a ser o
limite da normalidade, enquanto a homossexualidade, a pros-
tituição e mesmo as relações inter-raciais passaram a ser vistas
como desviantes. A ideia de normalidade, portanto, estava longe
de ser algo neutro e atemporal, mas relacionava-se diretamente
com os pressupostos morais e as relações de poder vigentes.

© SOCIOLOGIA APLICADA À SAÚDE 63


UNIDADE 2 – CORPO, SABER MÉDICO E BIOPOLÍTICA

Vimos como a Medicina passou a moldar as relações so-


ciais, regulando relações de classe, raça e gênero, valorizando o
papel de mãe da mulher branca e evitando o contato da criança
com a amamentação da mulher negra, não por conta de sua ex-
ploração, mas pela suposta contaminação que poderia oferecer
ao futuro cidadão nacional. As mulheres brancas se valorizariam
enquanto seguissem os pressupostos médicos que as disciplina-
vam. Concomitantemente, muitas teses médicas do fim do sécu-
lo discutiam sobre o suposto perigo da prostituição à moral.
Não obstante, não se questionava a moral do homem que
frequentava os ambientes de prostituição. Considerava-se um
mal necessário, de acordo com uma suposta disposição físico-
-biológica masculina. Chegou-se a defender uma prostituição hi-
giênica, marcada por inspeções nos prostíbulos, visando conter
a propagação da sífilis. Além disso, as classificações das prostitu-
tas entre higiênicas e perigosas eram marcadas pelo critério de
“raça” e classe (BELUCHE, 2006).
Os saberes e as práticas médicas, portanto, acabavam re-
forçando desigualdades de gênero, classe e “raça”. Em nosso con-
texto, unia-se o medo do contágio das classes populares, com as
doutrinas raciais em voga, visto que se tratava, diferentemente
dos países europeus, de um país que era uma ex-colônia e que
contou com a presença massiva de africanos aqui escravizados.
Nesse sentido, nosso cordão sanitário baseou-se em as-
pectos de classe e “raça”. O higienismo teve em vários momen-
tos uma caracterização baseada no preconceito racial e emba-
sou correntes que influenciaram a emergência da eugenia em
nosso contexto no século 20. Contudo, a eugenia à brasileira se
baseava em pressupostos e práticas distintas do genocídio e da

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UNIDADE 2 – CORPO, SABER MÉDICO E BIOPOLÍTICA

esterilização, apostando na mudança do ambiente para o melho-


ramento populacional:
[...] para os brasileiros que a adotavam, a eugenia não era ape-
nas um meio de aperfeiçoar indivíduos ou grupos específicos.
Era uma forma de superar o que eles percebiam ser as deficiên-
cias da nação, aplicando uma série de diagnósticos e soluções
científicas. Tratava-se de um nacionalismo eugênico, que con-
gregou médicos, sociólogos, psicólogos, higienistas e antropó-
logos. Essas autoridades científicas procuravam vias em meio às
políticas e instituições públicas para aplicar suas mãos curativas
sobre uma população a quem costumavam encarar com brando
desprezo [...] (DÁVILA, 2006, p. 32).

O povo era considerado atrasado, obstáculo à moderniza-


ção do país e resistente às transformações saneadoras. A virada
para o século 20 caracterizou uma mudança em prol da chamada
modernização nacional. Inspiradas no modelo urbano francês,
reformas urbanas que iniciaram com o comando do prefeito Pe-
reira Passos, em 1903, demoliram antigas construções coloniais
e cortiços do Rio de Janeiro, empurrando a população pobre
para os morros. As práticas médicas do período, muitas vezes,
não levaram em conta o diálogo com as classes populares, consi-
deradas ignorantes e atrasadas, excluídas da cidadania.
Como resultado, observaram-se conflitos sociais, dentre
os quais se notabilizou a “Revolta da Vacina” (1904). Naquele
período:
[...] além de controlar o espaço social, em nome da ‘política
sanitária’ os ‘exércitos de fiscalizadores’, os ‘esquadrões mata-
-mosquitos’ e os ‘batalhões de vacinadores’ eram autorizados a
invadir tanto a privacidade das casas quanto a intimidade dos
corpos. As pessoas abordadas eram submetidas a questionários
sobre suas origens, suas condições físicas, seus familiares, seus
hábitos, sua vida sexual, suas atividades e suas andanças. Um
decreto de 1905 determinava que todo indivíduo recolhido à

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UNIDADE 2 – CORPO, SABER MÉDICO E BIOPOLÍTICA

Casa de Detenção fosse imediatamente “vacinado e revacina-


do” (SEVCENKO; NOVAIS, 1998, p. 572).

As políticas de saneamento devem ser vistas como uma das


práticas mais importantes da saúde pública, aliadas à vacinação,
no que diz respeito ao aumento da expectativa da população.
Não obstante, pretendemos aqui fazer uma análise sócio-histó-
rica de sua vinculação com a biopolítica emergente em nosso
contexto do século 19.
Considerando com Foucault (2007) a importância central
do controle dos corpos e do gerenciamento populacional como
centrais às formas de dominação da contemporaneidade, busca-
mos explorar como reforçaram as desigualdades de classe, gêne-
ro e “raça”.
A modernização da sociedade brasileira teve como uma de
suas frentes as políticas de saúde pública, com o protagonismo
da Medicina. Antes de ser um processo neutro, a valorização da
vida, que se iniciou naquele contexto, além da preocupação com
o corpo social, baseou-se em valores morais e ansiedades sociais
que justificaram práticas que, embora contassem com amplo re-
conhecimento de parte da sociedade da época, hoje podem ser
vistas como antidemocráticas.

As leituras indicadas no Tópico 3. 2. tratam das questões


relacionadas ao gênero e ao saber médico. Neste momen-
to, você deve realizar essas leituras para aprofundar o tema
abordado.

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Vídeo complementar ––––––––––––––––––––––––––––––––


Neste momento, é fundamental que você assista ao vídeo complementar.
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(Graduação), a categoria (Disciplinar) e o tipo de vídeo (Complementar).
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Sociologia Aplicada à Saúde – Vídeos Complementares – Complementar 2.
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3. CONTEÚDO DIGITAL INTEGRADOR


O Conteúdo Digital Integrador representa uma condição
necessária e indispensável para você compreender integralmen-
te os conteúdos apresentados nesta unidade.

3.1. CORPO, BIOPOLÍTICA E MEDICINA

Acompanhamos, revisitando a obra de Michel Foucault,


como a Medicina teve um papel destacado na configuração das
sociedades modernas. Longe de um saber neutro e distanciado,
tratou-se de um saber inicialmente voltado ao social e que exer-
ceu privilegiada influência na organização da sociedade.
Além disso, a Medicina estava alinhada a valores morais e
dispositivos de poder, muitas vezes, reiterando hierarquias so-
ciais. Nos próximos textos, veremos como essas questões se atu-
alizam na contemporaneidade, voltando a reflexões sobre uma
sociedade pós-disciplinar, mas voltada ao controle, discutindo a
questão da biomédica como contraponto ao biopoder e refletin-
do sobre a inserção do saber médico na mídia.

© SOCIOLOGIA APLICADA À SAÚDE 67


UNIDADE 2 – CORPO, SABER MÉDICO E BIOPOLÍTICA

• JUNGES, J. R. Direito à saúde, biopoder e bioética. In-


terface – Comunicação, Saúde, Educação, v. 13, n. 29, p.
285-295, abr./jun. 2009. Disponível em: <http://www.
scielo.br/pdf/icse/v13n29/v13n29a04.pdf>. Acesso
em: 9 set. 2014.
• MENDES, C. L. O corpo em Foucault: superfície de dis-
ciplinamento e governo. Revista de Ciências Humanas,
Florianópolis, EDUFSC, n. 39, p. 167-181, abr. 2006.
Disponível em: <https://journal.ufsc.br/index.php/re-
vistacfh/article/view/17993/16941>. Acesso em: 9 set.
2014.
• NATAHNSON, L. G. O corpo feminino como objeto mé-
dico e “mediático”. Estudos Feministas, Florianópo-
lis, v. 13, n. 2, p. 287-304, maio/ago. 2005. Disponível
em: <http://www.scielo.br/pdf/ref/v13n2/26883.pdf>.
Acesso em: 9 set. 2014.

3.2. GÊNERO E SABER MÉDICO

Considerando o corpo como uma construção social e abor-


dando sua relação com o saber médico na modernidade, busca-
mos explorar nos textos a seguir sua relação com a temática de
gênero. Em que medida o saber médico, vinculado a certos pres-
supostos morais, contribuiu para disciplinar feminilidades e mas-
culinidades e como as vinculava às questões relativas à “raça”?
Essas são algumas questões que os próximos textos perpassarão.
• LOPES, F. H. Medicina, educação e gênero: as dife-
renciações sexuais do suicídio nos discursos médi-
cos do século XIX. Educar em Revista, Curitiba, n. 29,
2007. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.

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UNIDADE 2 – CORPO, SABER MÉDICO E BIOPOLÍTICA

php?pid=S0104-40602007000100016&script=sci_art-
text>. Acesso em: 9 set. 2014.
• MARTINS, A. P. V. A ciência dos partos: visões do corpo
feminino na constituição da obstetrícia científica no sé-
culo XIX. Estudos Feministas, Florianópolis, v. 13, n. 3, p.
645-665, set./dez. 2005. Disponível em: <http://www.
scielo.br/pdf/ref/v13n3/a11v13n3.pdf>. Acesso em: 9
set. 2014.
• VENANCIO, A. T. A. Doença mental, raça e sexualidade
nas teorias psiquiátricas de Juliano Moreira. Physis: Re-
vista de Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 14, n. 2, p.
283-305, 2004. Disponível em: <http://www.scielo.br/
pdf/physis/v14n2/v14n2a06.pdf>. Acesso em: 9 set.
2014.

4. QUESTÕES AUTOAVALIATIVAS
A autoavaliação pode ser uma ferramenta importante para
você testar o seu desempenho. Se encontrar dificuldades em
responder às questões a seguir, você deverá revisar os conteú-
dos estudados para sanar as suas dúvidas.
1) Analisar o corpo como objeto sociológico implica:
I - Considerá-lo como uma totalidade orgânica definida por suas qualida-
des inatas e sem fortes ligações com o contexto social.
II - Compreender como ele foi alvo de tecnologias de poder na moderni-
dade que o disciplinaram segundo normas sociais.
III - Conceber inúmeras possibilidades de seus usos, de acordo com as dis-
tintas sociedades que o produzem.
IV - Acreditar que não há limites biológicos para o corpo, posto que ele é
única e exclusivamente produto da sociedade.

© SOCIOLOGIA APLICADA À SAÚDE 69


UNIDADE 2 – CORPO, SABER MÉDICO E BIOPOLÍTICA

a) As alternativas I e II estão corretas.


b) As alternativas II e III estão corretas.
c) Somente a alternativa II está correta.
d) Somente a alternativa III está correta.
e) Todas as alternativas estão corretas.

2) O biopoder não se relaciona com:


a) A regulação do corpo populacional por meio do Estado.
b) A Medicina social e suas intervenções na esfera urbana.
c) O poder soberano de matar os inimigos e não se preocupar com a po-
pulação e seu desenvolvimento.
d) O imperativo de cuidar da vida.

3) A Medicina social inglesa inovou em relação às anteriores alemã e france-


sa, conforme Foucault (1979), pois:
a) Trouxe para o discurso da saúde pública o problema das classes
populares.
b) Implicou um reordenamento da cidade, marcado por um esquadrinha-
mento urbano com efeitos disciplinares.
c) Baseou-se em um saber ligado ao Estado.
d) Não estava vinculada ao biopoder.

4) Sobre a Medicina higienista no Brasil:


a) Baseada em pressupostos científicos neutros, suas intervenções na so-
ciedade não implicavam valores morais, eram apenas relativas à saúde.
b) Baseava-se no pressuposto de que as classes dominantes e, especial-
mente os brancos, eram perigosos e poderiam ser fator corruptor dos
negros.
c) Teve um profundo impacto na organização moral da sociedade, bem
como nas configurações de gênero e “raça”.
d) Lutava contra as opressões das escravas, em especial das amas de leite.

5) Na interpretação de Michel Foucault:


a) As sociedades modernas são marcadas pela liberação dos indivíduos
das relações de poder.

70 © SOCIOLOGIA APLICADA À SAÚDE


UNIDADE 2 – CORPO, SABER MÉDICO E BIOPOLÍTICA

b) A Medicina social foi responsável pelo bom e saudável ordenamento


da sociedade, baseado em pressupostos neutros e objetivos da ciência.
c) Na modernidade, a vida não era uma preocupação estatal.
d) As sociedades modernas disciplinam os indivíduos em instituições,
tornando-os produtivos socialmente.

Gabarito
Confira, a seguir, as respostas corretas para as questões autoavaliativas
propostas:

1) b.

2) c.

3) a.

4) d.

5) d.

5. CONSIDERAÇÕES
Chegamos ao final da segunda unidade, na qual entramos
em contato com a discussão sobre os vínculos entre organização
social, corpo e políticas de saúde. Por meio das obras de Michel
Foucault, abordamos como as sociedades modernas constituem
tecnologias de poder de disciplinamento dos corpos e de gestão
da vida (biopoder). Vimos também como o surgimento de ambos
estava atrelado ao saber médico, notadamente, vinculado com
uma emergente Medicina social.
Nesta unidade, pudemos entender como as políticas pú-
blicas de saúde baseiam-se não apenas em pressupostos neu-
tros científicos. Historicamente, a Medicina social foi fundamen-

© SOCIOLOGIA APLICADA À SAÚDE 71


UNIDADE 2 – CORPO, SABER MÉDICO E BIOPOLÍTICA

tal na configuração das sociedades modernas. Sua difusão nem


sempre esteve ligada à democratização do direito à saúde, mas
esteve baseada em formas de disciplinamento e, muitas vezes,
reiterou hierarquias.
A atualidade do biopoder e as questões que envolvem cor-
po e saber médico estão presentes no estudo do Conteúdo Digi-
tal Integrador. Não deixe de lê-lo!

6. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BELUCHE, R. O corte da sexualidade: o ponto de viragem da Psiquiatria Brasileira no
século XIX. 2006. 102 p. Dissertação (Mestrado do Programa de Pós-Graduação em
Ciências Sociais) – Centro de Educação e Ciências Humanas da UFSCar, São Carlos,
2006.
BORGES, D. “Inchado, feio, preguiçoso e inerte”: a degeneração no pensamento social
brasileiro, 1880-1940. Tradução de Richard Miskolci. Revista Teoria & Pesquisa. Dossiê
Normalidade, Desvio, Diferenças. São Carlos: Programa de Pós-Graduação em Ciências
Sociais/Departamento de Ciências Sociais, p. 43-70, 2005.
COSTA, J. F. Ordem médica e norma familiar. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1999.
DÁVILA, J. Diploma de brancura: política social e racial no Brasil, 1917-1945. São Paulo:
Ed. Unesp, 2006.
FOUCAULT, M. Em defesa da sociedade. São Paulo: Martins Fontes, 1999.
______. História da sexualidade I: a vontade de saber. Rio de Janeiro: Edições Graal,
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______. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1979.
GIDDENS, A. Sociologia do corpo: saúde, doença e envelhecimento. In: ______.
Sociologia. Porto Alegre: Artmed, 2005.
GONDRA, J. G. Artes de civilizar: medicina, higiene e educação escolar na Corte
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MARX, K. Manifesto comunista. São Paulo : Boitempo, 2005
MAUSS, M. Sociologia e Antropologia. São Paulo: Cosac Naify, 2003.

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UNIDADE 2 – CORPO, SABER MÉDICO E BIOPOLÍTICA

MISKOLCI, R. Reflexões sobre normalidade e desvio social. Estudos de Sociologia,


Araraquara, v. 7, n. 13-14, p. 109-126, 2003.
RAGO, L. M.; FUNARI, P. P. A. Antigos e modernos: cidadania e poder médico em
questão. In: RAGO, L. M.; FUNARI, P. P. A. (Orgs.). Subjetividades antigas e modernas.
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SCHWARCZ, L. M. O espetáculo das raças: cientistas, instituições e questão racial no
Brasil, 1870-1930. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.
SEVCENKO, N.; NOVAIS, F. A. (Orgs.). República: da Belle Époque à era do rádio. São
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WEBER, M. A ética protestante e o espírito do capitalismo. São Paulo: Editora Pioneira,
1983.

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