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RESUMO: Neste artigo, discute-se a produção ABSTRACT: This article discusses the
da Avenida Presidente Vargas, desde sua production of Avenida Presidente Vargas, from
proposta urbanística até sua concretização the urbanistic project through to its realisation
no tecido urbano do Rio de Janeiro, ao longo in the urban fabric of Rio de Janeiro, over the
de mais de 70 anos, por meio da análise do course of more than 70 years, by examining the
processo de reconhecimento do patrimônio process of recognition of built cultural heritage
cultural edificado na área central da cidade. in the city centre. In the context of protection for
No contexto da proteção do monumento exceptional monuments of national artistic and
excepcional, de valor artístico e histórico historical value, at the time it was laid, Avenida
nacional, a Avenida Presidente Vargas esteve Presidente Vargas was at the heart of the conflict
no centro do embate entre a preservação e between preservation and urban development:
o desenvolvimento urbano à época de sua it was a change-making project that destroyed,
abertura: um projeto transformador que aggregated and produced heritage. From the
destruiu, agregou e produziu patrimônio. A 1980s onwards, when the scope of heritage was
partir da década de 1980, com a ampliação extended to value minor architectures and the
do arcabouço patrimonial que passou a ambience of the urban ensemble they form, Ave.
valorizar as arquiteturas menores e a ambiência Presidente Vargas was side-lined by that more
do conjunto urbano que estas compõem, contemporary discussion, which considered the
a Presidente Vargas ficou à margem dessa surrounding townhouses worthy of preservation.
discussão atualizada, que considerou como The four decades that have passed since the
digno de preservação seu casario circundante. foundations of that preservation policy were laid
Quatro décadas se passaram desde que foram have revealed a need to review concepts and to
lançadas as bases desta política de preservação, return the avenue to the centre of the debate.
revelando a necessidade de uma revisão de Keywords: Built Cultural Heritage; Heritage
conceitos, e a volta da avenida ao centro do Preservation Areas; Avenida Presidente Vargas.
debate.
Palavras-chave: Patrimônio cultural edificado;
áreas de preservação patrimonial; Avenida
Presidente Vargas.
Breve contextualização
Com a publicação da “Carta de Veneza”, em 1964, amplia-se em um cenário internacional1
a compreensão patrimonial do monumento histórico da criação arquitetônica isolada para
uma noção que abrange também “as obras modestas, que tenham adquirido, com o tempo,
uma significação cultural2” (CARTA DE VENEZA, 1964 apud CURY, 2000). Nesse contexto,
a experiência de intervenção no Centro Histórico de Bolonha (1969), na Itália, reconheceu
o núcleo antigo da cidade como um monumento único, “com particular valor histórico-
artístico e urbanístico-arquitetônico”, e que constitui um “organismo urbano unitário”,
decorrente da “homogeneidade de seus valores físicos e socioculturais”. (CERVELATTI
e SCANNAVINI, 1976, p. 17). A massa edificada da cidade que compunha o entorno das
edificações monumentais possuiria, portanto, valores a serem preservados de um ponto de
vista cultural, como expressões da vida cotidiana da população. A Declaração de Amsterdã
(1975) corrobora essa relação entre a preservação do conjunto urbano e a manutenção de
seus componentes sociais por meio do conceito da conservação integrada – que articulou a
proteção patrimonial ao desenvolvimento urbano numa escala local3.
Num quadro nacional, essa junção entre as políticas de desenvolvimento e as práticas de
proteção ao patrimônio cultural passa a ser verificada na cidade do Rio de Janeiro, ao longo
da década de 1980, como recomendações do Plano Urbanístico Básico do Rio, de 1977. Até
então, a área central da cidade, que se configura como um palimpsesto de transformações
urbanísticas, apresentava, nas suas diversas camadas do tempo, conjuntos edificados que
possuiriam valores tanto documentais quanto sociais ainda não reconhecidos oficialmente,
e em constante ameaça frente à especulação imobiliária e ao desejo de um suposto progresso
urbanístico.
de 2011 (Lei Complementar nº 111, de 2011). Dentro dos limites da APAC, consideram-
se todos os seus bens imóveis como tutelados, podendo ser preservados (protegendo-se a
volumetria e a fachada do imóvel, que compõem a ambiência cultural a ser salvaguardada) ou
passíveis de renovação (no qual se estabelecem diretrizes para novas construções, tais como
usos permitidos e gabarito pré-definido, que visam a adequar o futuro imóvel ao conjunto
edificado protegido). A APAC Cruz Vermelha (1992) e a APAC Mosteiro de São Bento
(2004, incorporando a APAC Teófilo Otoni, de 1997) completam as ambiências protegidas
no entorno da Avenida Presidente Vargas, que se configura como um hiato de preservação
em meio ao mar das APACs da área central da cidade do Rio de Janeiro (Ver Figura 01).
Figura 01 – Mapa de Áreas de Preservação (Corredor Cultural, APAs, APACs) no entorno da Avenida
Presidente Vargas.
mas como um projeto urbano cujas propostas se irradiam para o tecido urbano adjacente,
sejam elas de forma direta, por meio da sua execução, ou indireta, por meio de perspectivas
que nunca se realizam, mas deixam suas marcas para a posteridade.
Apesar do seu ímpeto renovador e de sua lenta ocupação, a Avenida Presidente Vargas
sedimentou-se no tecido urbano da cidade do Rio de Janeiro nesses seus mais de 70 anos
de existência. E se reconhecemos a sua potência destruidora, devemos também afirmar sua
capacidade construtora. Se ela, em determinado momento, produz cidade, ou, pelo menos,
parte dela, não poderíamos pensar que no futuro essa produção que de alguma forma resistiu
às transformações urbanas conseguintes também se tornaria um patrimônio? Para Lowenthal
(2000, p. 21, tradução nossa), a atividade de preservação tem na destruição um componente
integral, uma vez que “(...) patrimônio cultural envolve substituição e retenção”, e o ato da
destruição está “profundamente encrustado na natureza humana e na sociedade”, sendo
“parte essencial da vida econômica e criativa”. A escolha pelo que destruir é também uma
escolha pelo que preservar, mas ela é uma decisão condicionada a um momento presente,
pois a consciência patrimonial é um fenômeno sempre contemporâneo (HARVEY, 2008).
A constante transformação da cidade é um reflexo das mudanças nos ideários da sociedade,
o que permite que um elemento outrora “destruidor” se configure num futuro bem a ser
preservado. Neste ponto, serão as significações culturais agregadas ao longo do tempo por esta
sociedade aos vestígios do passado que irão determinar se esta transição se concretizará. A
Avenida Presidente Vargas aparece como um caso exemplar dessa dialética entre a preservação
patrimonial e o desenvolvimento urbano no Rio de Janeiro: um “conjunto projetual” (BORDE,
2006) que transforma a cidade e simultaneamente destrói, agrega e produz patrimônio.
Para Beatriz Kuhl, (1998, p. 200), a Carta de Atenas do CIAM “renegava a herança do
passado”, onde “grande parte do tecido urbano e de edifícios passados estavam condenados à
demolição”. O documento também afirmou que “nem tudo que é passado tem, por definição,
direito à perenidade; convém escolher com sabedoria o que deve ser respeitado” (CARTA
DE ATENAS DO CIAM, op. cit.) Foi nesta concepção que, ao agregar a Igreja da Candelária
a seu projeto urbanístico, juntamente com o atual edifício da Casa França-Brasil (antiga
Figura 02
– Detalhe
do PAA
nº 8052
de 1963.
Fonte:
SMU/PCRJ.
O projeto toma forma na cidade com a criação da Zona Especial do Corredor Cultural
pela Lei Municipal nº 506, de 1984, que dispõe sobre a preservação e a renovação de bens
imóveis na área delimitada pelo PAA nº 10290, de 1983. Os parâmetros foram revistos
em 1987, com a produção do PAA nº 10.600 (ver Figura 4), ainda vigente na estruturação
urbana dessa parte da cidade. Como um instrumento de conservação integrada, influenciada
pelas recomendações da Declaração de Amsterdã, a Zona Especial do Corredor Cultural
estabeleceu, a partir das revisões de 1987, duas subzonas de atuação para seus imóveis:
a preservação ambiental e a renovação urbana. Na primeira, que compõe grande parte
da área da SAARA, preservam-se as fachadas e a volumetria das edificações, permitindo
modificações em seus interiores. Na subzona de renovação urbana, na qual se encontram os
vazios urbanos da Avenida Presidente Vargas, desde a Uruguaiana até o Campo de Santana,
definiu-se um novo padrão volumétrico para as edificações, fixando gabarito e alinhamento
compatível com o conjunto preservado. Dentre os bens preservados pelo Corredor Cultural
no entorno da Avenida Presidente Vargas destaca-se a Igreja de São Gonçalo Garcia e São
Jorge, na Rua da Alfândega, esquina com o Campo de Santana. O imóvel, curiosamente
mesmo sem tombamento, já havia sido integrado ao projeto da Avenida Diagonal em 1941,
com seu campanário compondo o skyline da Avenida Presidente Vargas.
Marcos Konder Neto da década de 1970. No século XXI, novas adições, como a Nova Cedae,
o Centro de Convenções SulAmérica, o Centro de Operações Rio e a Universidade Petrobras,
modificam a dinâmica da área, e suas demandas transformam o patrimônio adjacente.
Contudo, os mais recentes reconhecimentos patrimoniais ao longo da Avenida
Presidente Vargas vêm ocorrendo no seu trecho de maior consolidação, no entorno da Igreja
da Candelária. O Corredor Cultural, em sua delimitação na década de 1980, desconsiderou
os quarteirões financeiros nas proximidades da Avenida Rio Branco, com seus edifícios
verticalizados das décadas de 1920 e 1930. Em meio a esses blocos, encontravam-se
exemplares remanescentes da cidade tradicional, com fachadas ornamentadas e pequenas
dimensões. Neste contexto, surge em 1997 a APAC Teófilo Otoni, incorporada em 2004
à APAC Mosteiro de São Bento, preservando um casario que abriga predominantemente
serviços de gastronomia e a concentração de edifícios de atividade financeira. Além das
APACs, também são estabelecidas áreas de entorno de bem tombado (AEBT), como a do
imóvel da Rua da Candelária, nº 2, um modesto sobrado tombado pelo município em 1989.
Sua área de entorno, criada pelo Decreto nº 28.911 de 2007, preserva outros quatro imóveis
no seu quarteirão, inclusive alguns da década de 1920, como o eclético edifício da Rua da
Alfândega, nº 5.
Notas
1
CHOAY (2001 [1992]) aponta os escritos do 4
O Decreto Lei nº 25 de 1937 regulamentou o
arquiteto italiano Gustavo Giovannoni (1913) SPHAN, criado em 1936, definiu como sendo
como a origem do termo patrimônio urbano, patrimônio artístico e histórico do Brasil “(...) o
embora autores do século XIX como John Ruskin conjunto dos bens móveis e imóveis existentes no
e Camillo Sitte já anunciassem uma preocupação país e cuja conservação seja de interesse público,
com a destruição dos conjuntos arquitetônicos quer por sua vinculação a fatos memoráveis da
não-monumentais face às transformações urbanas história do Brasil, quer por seu excepcional valor
da era industrial. Em termos de políticas estatais arqueológico ou etnográfico, bibliográfico ou
de preservação e reconhecimento patrimonial, artístico”. O tombamento foi o instrumento legal
no Brasil, a cidade de Ouro Preto, com seu tecido estabelecido para proteger esse patrimônio, sendo
urbano e casario característico, foi elevada a inscritos os bens tombados em um dos quatro
categorial de monumento nacional em 1933. livros do tombo:
Na França, pouco antes da publicação da Carta 5
A Recomendação de Nairóbi, redigida na
de Veneza, a Lei Malraux de 1962 estabeleceu 19ª Conferência Geral da UNESCO realizada no
condições para preservação do tecido urbano de Quênia em 1976, definiu conjuntos históricos
centros históricos através da criação dos secteurs como “todo agrupamento de construções e de
sauveguardés (setores de salvaguarda). espaços” cujos valores são “reconhecidos do
2
A significação cultural designa o valor estético, ponto-de-vista arqueológico, arquitetônico,
histórico, científico, social ou espiritual para pré-histórico, histórico, estético ou sociocultural”.
gerações passadas, presentes e futuras. (CARTA DE A ambiência destes conjuntos constitui-se como
BURRA, 2013) sendo o “quadro natural ou construído” que
influi na percepção de tais conjuntos históricos,
3
Desde o século XIX até o contexto em questão,
vinculando-se “de maneira imediata no espaço,
a discussão patrimonial na Europa articulava-se
ou por laços sociais, econômicos ou culturais”
ao reconhecimento de uma identidade nacional.
(RECOMENDAÇÃO DE NAIRÓBI, 1976 apud CURY,
No caso do Brasil, a atuação por parte do Estado
2000).
no reconhecimento patrimonial estava associada
à descoberta de uma identidade brasileira na 6
O Decreto-Lei nº 3866 de 1941 possibilitou
conjuntura republicana, e era realizada em cancelar o tombamento de bens previamente
esfera nacional. A experiência bolonhesa inova protegidos pelo SPHAN.
em sua atitude com o patrimônio não só em 7
INEPAC – Instituto Estadual do Patrimônio
sua abrangência de significação cultural, como Cultural do Estado do Rio de Janeiro, órgão de
também no redirecionamento das práticas de tutela patrimonial de esfera federal. Tem suas
proteção de um contexto nacional para o debate origens no DPHA, Divisão do Patrimônio Histórico
local, integrado ao seu plano diretor municipal. e Artístico do Estado da Guanabara, criado em
1963.
8
IRPH – Instituto Rio Patrimônio da Humanidade, como vinha ocorrendo em seu período (século
órgão de tutela patrimonial da Prefeitura da Cidade XIX), e ainda vem se perpetuando no século XXI.
do Rio de Janeiro, criado em 2012. Tem suas No passado, as igrejas apareciam integradas a
origens no antigo DGPC – Departamento Geral do outras edificações. Dentre os motivos para esta
Patrimônio Cultural, criado em 1986. localização, Sitte indica uma melhor perspectiva
da praça como um todo, pois o posicionamento
9
Os projetos de alinhamento (PAA) e projetos de
central requer uma maior profundidade de campo
loteamento (PAL) mencionados nesse texto podem
de visão. Ele reconhece também a vantagem
ser consultados na página web da Secretaria
econômica, uma vez que uma igreja posicionada
Municipal de Urbanismo da Prefeitura da Cidade
no centro de uma praça requer um maior
do Rio de Janeiro (SMU/PCRJ), através do link:
comprometimento na execução das fachadas.
<http://www2.rio.rj.gov.br/smu/acervoimagens/
Uma igreja incrustada em outras edificações seria
ConsultaProjetosPorNumero.asp>.
mais econômica, uma vez que o seu número de
10
Para Sitte (1989), um certo mistério se fachadas seria reduzido.
apresentava na escolha do local destinado aos 11
O edifício do IFCS seria tombado, por completo,
monumentos, tais como igrejas, nas praças das
pelo INEPAC, em 1983.
antigas cidades. Contudo uma coisa era certa: eles
não se localizariam no centro geométrico da praça,
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Recebido em 29/03/2016
Aprovado em 30/04/2016