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As reflexões de Gramsci sobre o fascismo e o estudo da direita contemporânea:

notas de pesquisa

Demian Bezerra de Melo

Resumo: O presente texto se divide em duas partes. Na primeira, busca reconstruir a


teoria gramsciana sobre o fascismo, consolidando algumas sínteses realizadas pelos
estudiosos da obra do marxista sardo. Na segunda parte, tendo como ponto de referências
os conceitos de crise orgânica e revolução passiva, visa realizar uma reflexão sobre a
reconstituição da direita contemporânea e sua capacidade de responder à atual crise
orgânica. Não se trata de afirmar o caráter fascista da direita contemporânea, o que em si
entraria em contradição com a elaboração gramsciana sobre a especificidade histórica do
fascismo como resposta à crise orgânica do início do século XX; mas de traçar um
paralelo para entender como, no plano ideológico e político, se configura a chamada nova
direita diante da presente crise orgânica.

Palavras-chave: fascismo, neoliberalismo, hegemonia

Gramsci's reflections on fascism and the study of the contemporary right: research
notes

Abstract: This text is divided into two parts. In the first, it seeks to reconstruct Gramsci's
theory on fascism, consolidating some syntheses carried out by scholars of the work of
the Sardinian Marxist. In the second part, with reference to the concepts of organic crisis
and passive revolution, it aims to reflect on the reconstitution of the contemporary right
and its capacity to respond to the current organic crisis. It is not a matter of asserting the
fascist character of the contemporary right, which in itself would contradict the
Gramscian elaboration on the historical specificity of fascism as a response to the organic
crisis of the early twentieth century; but to draw a parallel to understand how, on the
ideological and political level, the so-called new right is configured in the face of the
present organic crisis.

Keywords: fascism, neoliberalism, hegemony


Parte 1. Gramsci e o fascismo1
Certamente, é verdade que Gramsci disse muitas coisas mordazes
sobre a democracia parlamentar e sobre o “Ocidente”; também é
verdade que seu interesse pela linguística histórica, pelo teatro,
pelo folclore e pela literatura popular, e por figuras culturalmente
hegemônicas, como Maquiavel, Dante e Croce, foi de fato
extenso. Mas o ponto crítico da obra reside, creio, em outra parte
– e reside exatamente naquela coisa que é sempre reconhecida
como a condição de sua prisão mas é sempre deslocada como a
cavilha de roda de suas reflexões –, a saber, no fascismo.
(AHMAD, 2002: 261)

O crítico cultural indiano Aijaz Ahmad tem razão ao assinalar o caráter central do
fascismo nas reflexões do marxista italiano Antonio Gramsci. Particularmente em sua
obra carcerária é difícil encontrar conceitos que não estejam de certo modo relacionados
à sua fragmentária teoria do fascismo. De acordo com o verbete de Carlo Spagnolo ao
Dicionário Gramsciano (SPAGNOLO, 2017: 283-287), o tema aparece diretamente em
21 notas dos Cadernos do Cárcere, o que seria pouco no universo da obra. Contudo, esse
mesmo autor assinala que o programa de pesquisa delineado por Gramsci em seu
primeiro Caderno "pode ser visto como uma investigação sobre as matrizes do fascismo"
(Idem: 283).
Prisioneiro do regime fascista desde 1926 até o fim da vida, em 1937, Gramsci foi
certamente um arguto observador da dinâmica política de sua terra natal e desde a origem
identificou no movimento liderado por Benito Mussolini um fenômeno mais abrangente
de reação à vaga revolucionária aberta com a Revolução Russa de 1917. O Biennio
Rosso, movimento de ocupação de fábricas ocorrido no norte da península italiana,
(particularmente na região do triangulo industrializado Turim, Milão e Gênova entre
1919-1920), trouxe o temor às classes dominantes do contágio vermelho. A isso se somou
um vigoroso movimento de luta pela terra, cuja reação não demorou a se fazer sentir,
figurando como primeira ação contrarrevolucionária do fascismo: o esquadrismo, tropas
de assalto contratadas pelos grandes proprietários rurais com vistas à desarticulação deste
movimento. O uso da violência ilegal seria um recurso típico do movimento que em 30
de outubro de 1922 emplacaria, pelas vias legais, Mussolini como premier (GENTILE,
1988; SASSOON, 2009).

1
Essa seção retoma parte de um estudo anterior (Cf. MELO, 2016b).

2
Como dirigente comunista e intelectual arguto, Gramsci já havia dedicado boa
parte de seus escritos pré-carcerários ao exame do fascismo (cf. GRAMSCI, 1978a),
tendo-lhe destacado o caráter inédito e de massas do fenômeno contrarrevolucionário
italiano que emergiu da crise do Estado liberal italiano após a Guerra Mundial e a em
resposta ao desafio ao capitalismo representado pela Revolução de 1917. Entre 1922 e
1924 o marxista sardo viveu fora da Itália (primeiro na Rússia revolucionária, e algum
tempo depois em Viena), e quando voltou à seu país em maio de 1924, o governo de
Mussolini vivenciava uma crise decisiva. Parecia que iria cair.
O assassinato do deputado socialista Giacomo Matteotti por um bando fascista em
abril daquele ano, logo após o parlamentar ter feito um discurso na tribuna denunciado a
violência com a qual as tropas de assalto fascista haviam intimidado o processo eleitoral
ocorrido no início do mês, evidenciava a natureza do novo regime que os fascistas
estavam implantando. Enquanto em forma de protesto a oposição burguesa decidiu se
retirar do parlamento, Gramsci, à frente dos comunistas, propôs aos outros partidos
antifascistas uma ofensiva unitária para a derrubada do gabinete Mussolini. Abandonar o
parlamento era, na opinião sensata dos comunistas, abrir o flanco para que o Partido
Nacional Fascista se assenhoreasse do poder, o que acabou ocorrendo.
No fim, Mussolini se mostrou capaz de contornar a crise, pavimentando o
caminho para a implantação da ditadura fascista: em 3 de janeiro de 1925 assumiu a
responsabilidade pelo agravamento da violência política (SASSOON, 2009, 151). Ao
contrário das expectativas do ano anterior, as classes dominantes italianas se submeteram
à organização nacional fascista, na instauração de um regime cuja base de massas era
dada pelos extratos médios, conforme escreveria Gramsci nas teses ao III Congresso do
Partido Comunista Italiano, realizado na francesa Lyon, em janeiro de 1926. Até o fim
daquele ano o Partido Nacional Fascista instaurou uma ditadura aberta, contexto em que
o então deputado Gramsci seria preso.

1.1 Em busca da teoria gramsciana do fascismo


No contexto do segundo pós-guerra, o paradigma predominante na interpretação
do fascismo italiano era a noção liberal de Benedetto Croce de “intervalo”: a ditadura de
Mussolini seria supostamente produto de uma decadência moral momentânea no interior

3
de uma suposta trajetória irresistível da Itália em direção à liberdade. Tal leitura se
adequava muito bem ao consenso pós-fascista sob a qual havia sido erigido o sistema
pluripartidário da Primeira República italiana, cuja identidade essencial de boa parte do
espectro político era dada pelo compromisso antifascista (Cf. PORTELLI, 1998;
MUSIEDLAK, 2010; TARCHI, 2013).
Não obstante a natureza reconhecidamente problemática da primeira edição dos
Cadernos do Cárcere (Cf. BIANCHI, 2008:35-46), a divulgação da obra de Gramsci
naquele contexto, deveria contribuir para o enriquecimento da compreensão do fascismo.
Todavia, a recorrência com a qual a direção do Partido Comunista Italiano lançava mão
da autoridade moral de Gramsci para justificar a linha política dos comunistas fez
consagrar nele a imagem de um teórico da democracia, ou da via democrática ao
socialismo, ou, no dizer de Palmiro Togliatti, da “via italiana ao socialismo”. Sua
contribuição ao entendimento do fascismo, embora lateralizada, emergiu com o
desenvolvimentos dos estudos sobre sua obra.2
Ainda nos anos 1960, Robert Paris publicou Histoire du fascisme en Italie (1962),
um trabalho que buscava sistematizar uma interpretação do fascismo a partir das
elaborações gramscianas (cf. HOARE, 1963). Todavia, o principal destaque à retomada
da teoria gramsciana do fascismo deve ser dado a Franco De Felice, que numa nota de
leitura ao Quaderno 22 (“Americanismo e fordismo”), publicada no jornal comunista
Rinascita em 1972, assinalou a importância neste manuscrito do conceito de revolução
passiva. Em sua intervenção ao Encontro Internacional do Instituto Gramsci, em
Florença, dezembro de 1977,3 Franco De Felice reafirmaria mais profundamente esse
ponto (DE FELICE, 1978). Este autor relacionava o conceito de revolução passiva ao
debate sobre o corporativismo fascista, que Gramsci discute no Quaderno 22 como uma
forma de introdução do fordismo na Itália. Para o marxista sardo o fascismo deveria ser
entendido como uma forma de resolver a crise de hegemonia aberta na península desde o
fim da Grande Guerra Mundial, e isso não só pela capacidade do fascismo de desarticular

2
Significativamente, a própria contribuição de Togliatti ao entendimento do fascismo, resultado de
um curso de verão lecionado pelo dirigente comunista italiano em Moscou, em 1935, só seria publicado em
1970, seis anos após a morte do dirigente comunista italiano (Cf. TOGLIATTI, 1970).
3
Cabe lembrar que entre uma intervenção e outra foi disponibilizada a edição crítica dos Quaderni,
editada por Valentino Gerratana em 1975, o que permitiu aos pesquisadores do léxico gramsciano o estudo
da lavra do marxista sardo sem os problemas da edição temática feita por Togliatti.

4
e de certo modo anular a esquerda, como também de atualizar o aparelho econômico.
Num artigo de 1980, o historiador estadunidense Walter Adamson registrou a
evolução da reflexão de Gramsci sobre o fascismo, desde os tempos dos conselhos de
fábrica em Turim até seus fragmentários Cadernos do cárcere, destacando nesta obra a
importância de conceitos como os de crise de hegemonia/crise orgânica, cesarismo,
guerra de movimento/guerra de posição e revolução passiva (ADAMSON, 1980). Mais
recentemente, Donatella Di Benedetto (2001), Fabio Frosini (2011) e Carlo Spagnolo no
verbete do Dicionário Gramsciano (2017) retomaram as considerações de Franco De
Felice mencionadas há pouco, enquanto Guido Liguori publicou no Brasil um artigo
sintético sobre a teoria gramsciana do fascismo (LIGUORI, 2017). Apoiando-nos nesses
materiais, seguem nossas considerações.

1.2 Fascismo como revolução passiva


Sobre a interpretação gramsciana do fascismo, um ponto importante é o
entendimento da sua raiz estrutural localizada na forma da revolução burguesa na Itália,
particularmente no período do chamado Risorgimento, quando, através de uma série de
manobras diplomáticas e com o apoio do regime bonapartista de Luís Bonaparte, Cavour
liderou o processo de unificação italiana sob a casa monárquica do Piemonte.
Tal forma de transformação “pelo alto” Gramsci procurou entender recorrendo a
expressão revolução passiva, que apareceu originalmente no livro Saggio storico sulla
rivoluzione di Napoli, de Vincenzo Cuoco (1801). No entendimento do desenho das
reformas empreendidas na estrutura política pela chamada revolução napolitana de 1799,
Cuoco diz ter ocorrido uma revolução passiva através do resultado combinado de dois
fatores: o impacto da Revolução Francesa a partir da expansão napoleônica e a ausência
de uma iniciativa popular de tipo jacobina. Incorporava-se em Nápoles o legado
iluminista cujo centro de irradiação era a França sem que fosse necessário passar pelo
“calvário” da revolução propriamente dita.
A este conceito de revolução passiva Gramsci incorporou o sentido dado pelo
historiador francês Edgar Quinet para o período da Restauração bourbônica (1815-1830),
como de uma “revolução-restauração”. Para Gramsci, no período da Restauração a forma

5
de sociabilidade burguesa continuou a se expandir na França. Disto resulta um conceito
de revolução passiva que pode descrever tanto momentos históricos específicos, como a
revolução napolitana de 1799, quanto épocas históricas inteiras, como o Risorgimento
italiano, período entre a Revolução de 1848 até a formação do moderno Estado italiano
em 1861.4 Partindo dessa reflexão histórica, Gramsci estende o conceito de revolução
passiva na compreensão de dois fenômenos do século XX, o fascismo e o
americanismo/fordismo, entendendo-os cada um como uma forma específica da
burguesia em dar uma saída capitalista para a crise do capitalismo.5
Diretamente ligado ao conceito de revolução passiva, a noção de transformismo é
de fundamental importância para o entendimento do fascismo. De acordo com o
historiador Donald Sassoon (2009:73), o termo transformismo foi usado pela primeira
vez em 1882 para designar a aliança selada entre a direita e a esquerda italiana – la destra
storica (Partido Moderado) e la sinistra storica (Partido da Ação) – como forma de
estabilização do regime liberal. Dessa noção presente, deste modo, no vocabulário
político italiano, Gramsci elabora um conceito com alto valor heurístico no que diz
respeito ao entendimento mais denso daquilo que numa linguagem vulgar costuma-se
referir como "cooptação". No Caderno 8, na nota 36, Gramsci apresenta o transformismo
como uma forma histórica da revolução passiva no processo de formação do Estado
italiano, fazendo uma distinção entre duas modalidade de transformismo referidas a dois
momentos históricos:
"1) de 1860 até 1900, transformismo ‘molecular’, isto é, as personalidades
políticas elaboradas pelos partidos democráticos de oposição se incorporam
individualmente à ‘classe política’ conservadora e moderada (caracterizada pela
hostilidade a toda intervenção das massas populares na vida estatal, a toda
reforma orgânica que substituísse o rígido ‘domínio’ ditatorial por uma
‘hegemonia’); 2) a partir de 1900, o transformismo de grupos radicais inteiros,

4
“(...) a brilhante solução destes problemas tornou possível o Risorgimento nas formas e nos
limites em que ele se realizou, sem ‘Terror, como ‘revolução sem revolução’, ou seja, como ‘revolução
passiva’, para empregar uma expressão de Cuoco num sentido um pouco diverso de Cuoco”. (GRAMSCI,
CC, 5: 63).
5
Embora o ponto de referência da crise do capitalismo seja a depressão econômica iniciada com o
crash de 1929, Gramsci considera que todo o período histórico inaugurado com a Grande Guerra Mundial
pode ser enquadrado como parte de uma mesma crise: “os eventos do outono de 1929 na América são
exatamente uma das manifestações clamorosas do desenvolvimento da crise, e nada mais. Todo o após-
guerra é crise, com tentativas de remediá-la que às vezes têm sucesso neste ou naquele país, e nada mais.
Para alguns (e talvez não sem razão), a própria guerra é uma manifestação da crise, ou melhor, a primeira
manifestação; a guerra foi precisamente a resposta política e organizativa dos responsáveis.” (GRAMSCI,
CC, 4: 217).

6
que passam ao campo moderado (o primeiro episódio é a formação do Partido
Nacionalista, com os grupos ex-sindicalistas e anarquistas, que culmina na guerra
líbia, num primeiro momento, e no intervencionismo, num segundo)."
(GRAMSCI, CC5: 286)

O próprio Mussolini é um exemplo de transformismo molecular, já que inicia sua


trajetória política como um publicista socialista no jornal Avante!, e justamente
expressando sua adesão ao campo do adversário de classe, assume posição similar a dos
ex-sindicalistas que aderem ao intervencionismo. Rompido com o Partido Socialista, de
quem agora se tornara inimigo mortal, funda o jornal Il Popolo d’Italia, "financiado por
Esterle (da firma Édison), por Bruzzone (da firma Unione Zuccheri), por Agnelli (da Fiat)
e por Pio Perrone (da Ansaldo), entre outros" (KONDER, 1977: 30).
Sobre a raiz imediata da crise que corresponde à emergência do fascismo em sua
terra natal, Gramsci a localiza na Grande Guerra Mundial, que produziu uma série de
fenômenos que desembocaram na crise orgânica do pós-guerra, com a ruptura entre as
classes e suas representações tradicionais.
Em um certo ponto de sua vida histórica, os grupos sociais se separam de seus partidos
tradicionais, isto é, os partidos tradicionais naquela dada forma organizativa, com aqueles
determinados homens que os constituem, representam e dirigem, não são mais
reconhecidos como sua expressão por sua classe ou fração de classe. Quando se verificam
essas crises, a situação imediata torna-se delicada e perigosa, pois abre-se o campo às
soluções de força, à atividade de potências ocultas representada pelos homens
providenciais e carismáticos. (GRAMSCI, CC, 3: 60)

Quem senão Mussolini como “homem providencial” e carismático poderia estar


sendo aludido nesta passagem? A nota, contudo, toca em pontos mais profundos do
entendimento da natureza do fascismo. Em primeiro lugar, as forças mobilizadas que
tiveram a experiência catastrófica da guerra, que oferecem a base social das tropas de
choque formadas por ex-combatentes, que atacam as organizações operárias, socialistas,
de trabalhadores rurais: o chamado esquadrismo. Em resposta à insurgência operária
manifestada no Biennio Rosso (1919-1920), que acabaria contornada pelo acordo espúrio
celebrado entre o governo Giolitti, a direção reformista do Partido Socialista e os patrões,
no mundo agrário, para combater a agitação camponesa, parte das classes proprietárias
opta pelo esquadrismo, que foi uma das correntes que constituíram o Partido Nacional

7
Fascista (PNF).6
Em segundo, no plano ideológico, uma série de tendências contraditórias que
confluíram no fascismo, cabendo mencionar, aliás, o revisionismo do marxismo feito por
Sorel, que foi bastante influente no sindicalismo revolucionário7 e também expresso na
ruptura do jovem líder socialista Benito Mussolini com o PS por conta de sua defesa da
entrada da Itália na Guerra Mundial. As outras referências são as tendências expressas no
nacionalismo representada por Alfredo Rocco e no corporativismo de Ugo Spirito, cujo
amálgama irá confluir na ideologia fascista da concertação social de todas as classes pelo
bem da nação. Por fim, a importante vanguarda artística liderada por Filippo Tommaso
Marinetti, cujo culto simultâneo da tecnologia e da violência conformou características
importantes do fenômeno.
A crise do regime liberal parlamentar acaba tendo uma solução provisória com a
nomeação de Mussolini pelo rei em 1922, mesmo o PNF não possuindo maioria no
Parlamento. Somente nas eleições de abril de 1924 o PNF se tornaria o maior partido
italiano, em um pleito marcado por um clima de intimidação e ações violentas
perpetradas pelos bandos fascistas contra os socialistas, operada com a conivência da
burguesia, das Forças Armadas e da Monarquia, como vimos acima.
A ascensão do fascismo é assim resultante de uma crise de hegemonia do regime
liberal parlamentar que culminou numa ditadura cesarista. Para este último termo,
Gramsci lança mão das obras de Marx sobre a história da França, particularmente 18
Brumário de Luís Bonaparte, onde o autor trata de uma situação histórica onde uma
revolução derrotada (1848) conduz a uma crise que acaba por se resolver pela imposição
do poder de uma personalidade. Contudo, enquanto episódios semelhantes no passado
conduziram ao poder autocratas que consolidaram conquistas das revoluções burguesas,
como Oliver Cromwell durante a Revolução Inglesa do século XVII e Napoleão
Bonaparte consolidando e expandindo militarmente os efeitos da Revolução Francesa do

6
As contradições do mundo agrário italiano se aceleraram com a intervenção no conflito mundial.
(SASSOON, 2009:98-101
7
Bastante influenciado pelas teses revisionistas do francês George Sorel (1847-1922), o
sindicalismo revolucionário surgiu como uma dissidência do Partido Socialista Italiano na primeira década
do século XX. Alguns membros deste grupo, como Angelo Oliviero Olivetti (1874-1931) e Edmondo
Rossoni (1884-1965) aproximaram-se das posições do nacionalismo intervencionista, de corte imperialista,
que emergiu no contexto da guerra contra Turquia, em 1911, e posteriormente iriam se integrar no Partido
Nacional Fascista. (Cf. STERNHELL; SZNAJDER; ASHÉRI, 1995).

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final do XVIII, Luis Bonaparte representou justamente a derrota da revolução de 1848. A
emergência de um novo sujeito social e político, o proletariado revolucionário de Paris,
conduziu à alteração da atitude das classes dominantes. A burguesia francesa, dividida
anteriormente entre as casas dinásticas e a sua fração republicana, prefere abrir mão do
poder político para preservar sua dominação econômica, tornando-se naquela situação o
Estado francês extremamente autônomo em relação às classes sociais (incluindo a
dominante), constituindo o fenômeno do bonapartismo.
Atento a esta leitura, Gramsci busca entender a particularidade do cesarismo do
século XX que, no entanto, por ser moderno, deve ser capaz de estabelecer elementos de
direção intelectual e moral sobre a sociedade.
(...) o cesarismo no mundo moderno ainda encontra uma certa margem, maior ou
menor, conforme os países e seu peso relativo na estrutura mundial, já que uma
forma social tem “sempre” possibilidades marginais de desenvolvimento e de
sistematização organizativa subseqüente e, em especial, pode contar com a
fraqueza relativa da força progressista antagonista, em função da natureza e do
modo de vida peculiar dessa força, fraqueza que é preciso manter: foi por isso
que se afirmou que o cesarismo moderno, mais do que militar, é policial.
(GRAMSCI, CC, 3: 79)

Isto relaciona-se diretamente com as modificações instituídas pelas experiências fascistas,


cujo raio de ação é muito mais abrangente que nas pretéritas formas de regime
autocrático. Ainda segundo ele,
O Estado moderno substitui o bloco mecânico dos grupos sociais por uma
subordinação destes à hegemonia ativa do grupo dirigente e dominante; portanto,
abole algumas autonomias, que, no entanto, renascem sob outra forma, como
partidos, sindicatos, associações de cultura. As ditaduras contemporâneas abolem
legalmente até mesmo estas novas formas de autonomia e se esforçam por
incorporá-las à atividade estatal: a centralização legal de toda a vida nacional nas
mãos do grupo dominante se torna “totalitária”. (GRAMSCI, CC, 5: 139)

Todavia é na mencionada caracterização do fascismo como capaz de realizar uma


revolução passiva onde Gramsci explicita sua relação com a questão da hegemonia. Em
comentário crítico à historiografia de Benedetto Croce, particularmente sobre o livro
Storia d’Italia dal 1871 al 1915, Gramsci observa os contornos sutis do projeto político
croceano, que no que se refere à história italiana, realiza uma leitura positiva do papel da
Destra storica [direita histórica] no processo político da península no século XIX, da
unificação nacional ao governo de Giovanni Giolitti, que esteve à frente de sucessivos

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gabinetes na década anterior a entrada da Itália na Grande Guerra. Indaga Gramsci se não
seria o fascismo o agente capaz de tornar possível uma prática política semelhante à da
Destra storica no século XX, realizando uma revolução passiva.
[...] ter-se-ia uma revolução passiva no fato de que, por intermédio da intervenção
legislativa do Estado e através da organização corporativa, teriam sido
introduzidas na estrutura econômica do país modificações mais ou menos
profundas para acentuar o elemento “plano de produção”, isto é, teria sido
acentuada a socialização e cooperação da produção, sem com isso tocar (ou
limitando-se apenas a regular e controlar) a apropriação individual e grupal do
lucro. No quadro concreto das relações sociais italianas, esta pode ter sido a única
solução para desenvolver as forças produtivas da indústria sob a direção das
classes dirigentes tradicionais, em concorrência com as mais avançadas
formações industriais de países que monopolizam as matérias-primas e
acumularam gigantescos capitais. (GRAMSCI, CC, 1: 299)

Assim, Gramsci relaciona a revolução passiva promovida pelo regime de Mussolini ao


seu elemento de transformação do livre-cambismo para uma “economia de comando”,
garantida pelo intervencionismo estatal e pela estrutura corporativista erigida pelo
fascismo. Na sequência, o marxista sardo discute como tal política concorre para que o
regime fascista estabeleça uma situação hegemônica, soldando os laços entre a base
social do fascismo, a pequena burguesia urbana e rural, e o grande capital. Continuando a
citação anterior, lê-se:
Que tal esquema possa traduzir-se em prática, e em que medida e em que formas,
isto tem um valor relativo: o que importa, política e ideologicamente, é que ele
pode ter, e tem realmente, a virtude de servir para criar um período de expectativa
e de esperanças, notadamente em certos grupos sociais italianos, como a grande
massa dos pequenos burgueses urbanos e rurais, e, consequentemente, para
manter o sistema hegemônico e as forças de coerção militar e civil à disposição
das classes dirigentes tradicionais. (GRAMSCI, CC, 1: 299-300, grifo nosso)

Em suma, deixando de lado sua eficiência em restaurar as condições da acumulação


capitalista (que depois Gramsci acabaria admitindo: Cf. VACA, 2012: 226-231), o
fascismo teria inscrito essa capacidade de resolver o problema da hegemonia.
Ao mesmo tempo, continuando a citação da mesma nota carcerária, o fascismo
simbolizaria uma forma de enfretamento da “ameaça bolchevique”, como uma guerra de
posição.
Esta ideologia serviria como elemento de uma “guerra de posição” no campo
econômico (a livre concorrência e a livre troca corresponderiam à guerra de
movimento) internacional, assim como a “revolução passiva” é este elemento no

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campo político. Na Europa de 1789 a 1870, houve uma guerra de movimento
(política) na Revolução Francesa e uma longa guerra de posição de 1815 a 1870;
na época atual, a guerra de movimento ocorreu politicamente de março de 1917 a
março de 1921, sendo seguida por uma guerra de posição cujo representante,
além de prático (para a Itália), ideológico (para a Europa), é o fascismo.
(GRAMSCI, CC, 1: 300)

De acordo com Alvaro Bianchi (2017: 30-32), existiriam pelo menos três
modalidades de revolução passiva na reflexão de Gramsci. Na primeira, o exemplo é o
mencionado processo francês pós-Napoleão, onde a Restauração (1815-1830) é precedida
por uma autêntica Revolução (1789-1799), e deste modo a própria restauração acaba por
ser limitada, pois não reconstitui a velha ordem, mas uma forma de organização política
onde o velho e o novo se conciliam. Uma segunda forma seria a da constituição do
Estado nacional italiano, no mencionado processo do Risorgimento, onde não há uma
revolução autêntica prévia, e sim uma revolução derrotada – o movimento mazziniano de
1848 –, onde o protagonismo da unificação é tomado pelo reino do Piemonte, que
imprime uma marca pelo alto à revolução passiva italiana. Por fim, a via americana seria
a terceira modalidade de revolução passiva, onde o eixo do processo se encontra na
atualização do capitalismo no que se refere ao seu aparato econômico, incluindo aí as
medidas abrangentes de planejamento e intervencionismo econômico do Estado.
Nessa leitura, o fascismo seria uma variante desse último modelo, já que o cerne
do raciocínio gramsciano está no fato de que, como vimos, é através da “intervenção
legislativa do Estado e da organização corporativa” que se teria uma revolução passiva,
destacando-se ai o elemento de atualização do capitalismo viabilizado pela concertação
social e o desenvolvimento das forças produtivas. Entretanto, observa-se no fascismo
também a via de transformações pelo alto resultante de uma reação a uma revolução
vitoriosa na Rússia, mas fracassada no plano doméstico, àquela esboçada na situação
revolucionária durante o Biennio Rosso.
Entre o Risorgimento até o regime fascista teríamos um longo processo de
construção do Estado nacional italiano, pois se no primeiro ocorre o processo de
unificação política da península, seria necessário ponderar que somente sob o regime
fascista se consolida o processo de nacionalização do Estado italiano, entre outras razões
pela assinatura da Concordata com a Igreja católica em 1929. O fascismo seria também

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consolidador da natureza imperialista do capitalismo italiano, e isso não só em razão das
lembradas agressões imperialistas à Líbia, a Etiópia e Albânia na década de 1930, mas na
promoção do capital monopolista na Itália no processo de transição à uma sociedade de
massas (POULANTZAS, 1972). Dada essa especificidade é possível afirmar que o
fascismo é uma quarta modalidade de revolução passiva.8

Parte 2. A direita contemporânea


Há agora uma dúvida sobre a validade da leitura gramsciana do fascismo como
capaz de ser mobilizada para o entendimento da direita contemporânea, ou, no jargão
mais usual, da nova direita. Afinal, diferentemente da situação política no início do
século XX, não há hoje (infelizmente) uma revolução socialista inscrita no horizonte de
expectativas, e portanto pode-se indagar sobre a necessidade de uma revolução passiva
para detê-la. Contudo, pode-se observar um significativo movimento de atualização do
capitalismo nas últimas quatro décadas, marcadas por um processo que envolve o
predomínio da lógica do capital fictício (ou financeirização da economia), um processo
de reestruturação produtiva e a formatação de uma novo modo de regulação do conflito
social calcado na ideologia neoliberal (CARCANHOLO; BARUCO, 2011). Daí que autores
como Carlos Nelson Coutinho (2012) tenha se referido a uma época neoliberal, onde, ao
contrário de uma revolução passiva, a quadra histórica que estamos atravessando seria
marcada pela contrarreforma.
Há, de acordo com Coutinho, diferença substancial entre as noções de revolução
passiva e contrarreforma na lavra gramsciana, e é possível supor que:
"a diferença essencial entre uma revolução passiva e uma contra-reforma resida
no fato de que, enquanto na primeira certamente existem ‘restaurações’, mas que
‘acolhem uma certa parte das exigências que vinham de baixo’, como diz
Gramsci, na segunda é preponderante não o momento do novo, mas precisamente
o do velho." (COUTINHO, 2012: 121)

A época neoliberal seria melhor apreendida pelo conceito de contrarreforma pois o signo
que a preside é o da retirada de direitos, retirada essa que é feita através da própria
ressignificação do termo reforma, historicamente ligado à expansão dos direitos, e não

8
Em outra leitura possível, Daniela Mussi (2017) entendeu o fascismo como um elo subalterno do
americanismo.

12
em sua supressão. Voltaremos nesse ponto a seguir.

2.1 Nova direita?


Em primeiro lugar, cabe apresentar uma definição útil da nova direita. No verbete
de Robert Grant no Dicionário do pensamento social no século XX (GRANT, 1996:526-
528), o autor afirma que o termo nova direita foi generalizado pela crítica de esquerda na
década de 1980, contudo ela possui características mais amplas do que aquela presente na
retórica esquerdista. Haveria maior diversidade no interior da nova direita que, grosso
modo, seria uma espécie de síntese entre o pensamento dos rivais históricos do
socialismo, o conservadorismo e o liberalismo, no qual existiriam quatro escolas
principais: o neoliberalismo (ou liberal-conservadorismo), o neoconservadorismo, o
libertarianismo (ou anarcocapitalismo) e o anticomunismo francês e europeu oriental.
A mais influente seria o neoliberalismo, cujas referências intelectuais mais
importantes seriam Friedrich Hayek, Karl Popper e Milton Friedman. Uma importante
literatura crítica tem sido produzida nas últimas décadas à respeito do neoliberalismo, que
nos conduz à conclusão de que esta seria resultado da confluência de variadas tendências
do pensamento econômico – a Escola Austríaca, a Escola de Chicago, o Ordoliberalismo
alemão e a Teoria da Escolha Pública como as principais – que desde o Colóquio Walter
Lippmann, realizado em Paris em 1938, e a posterior fundação da Sociedade de Mont
Pelerin em 1947 e, como desdobramento e principalmente, de uma miriade de think tanks
constituem sua pré-história. Voltaremos a esta primeira vertente da nova direita logo à
frente.
No que se refere ao neoconservadorismo, os autores mais influentes seriam Roger
Scruton no Reino Unido, e, antes dele, William Buckley Jr e Russel Kirk nos Estados
Unidos. Como o termo liberal no ambiente cultura norte-americano é associado à
posições reformistas com sabor social-democrata, é bastante usual que autores tidos pelos
latino-americanos como neoliberais sejam também associados ao neoconservadorismo
nos Estados Unidos.
É, provavelmente, esse deslocamento semântico que explica a existência de um
grupo que especificamente deva ser referido como libertariano (ou “libertário”),
associado às proposições de Ayn Rand, Murray Rothbard, David Friedman, Robert Nozik

13
e Walter Block, autores que devem ser, na verdade, lidos como uma variante da família
neoliberal. Além disso, boa parte deles têm como referência uma das tradições do
pensamento econômico que confluem no neoliberalismo, a escola austríaca, fundada por
Carl Menger no último quartel do século XIX, e da qual fizeram parte Ludwig von Mises
e Friedrich von Hayek (FEIJÓ, 2000). Seria importante também lembrar dos chamados
fusionistas, uma corrente que seria animada por Rothbard e Buckley Jr. como resultado
de uma fusão entre libertarianos e conservadores, tendência cujo último contorno é o
chamado paleolibertarianismo, uma variante mais excêntrica ligada aos nomes de
Rothbard, Walter Block e Hans-Hermann Hope.
Por fim, o anticomunismo francês apontado no verbete de Robert Grant incluem
os chamados nouveaux philosophes (“novos filósofos”) Bernard-Henri Lévy e André
Glucksmann, ex-maoistas que aderiram ao liberalismo na década de 1970, ganhando por
isso um amplo espaço na mídia. Esse grupo se liga também ao anticomunismo da Europa
oriental expresso na obra do russo Alexander Soljenitsyn, cujo romance O arquipélago
Gulag se tornaria uma espécie de libelo do discurso antisoviético. Além de outros
dissidentes do Leste Europeu, como o cineasta polaco Andrzej Wadja, seria interessante
inserir nessa tendência a produção historiográfica de um autor como François Furet, cuja
obra esteve em boa parte dedicada à desconstrução das grandes revoluções da
modernidade, em especial da Revolução Francesa, mas também das revoluções
socialistas do século XX. O seu último livro O passado de uma ilusão, publicado em
1995, pode ser lido como uma grande síntese dos argumentos dessa corrente
anticomunista, enquanto o Livro negro do comunismo, obra coletiva dedicada à memória
de Furet, marcou a redução das experiências socialistas no século XX à um crime pior
que o Holocausto dos judeus; “o maior crime do século XX”.
A especificidade dessa corrente francesa está marcada por um ambiente cultural
onde a presença até a década de 1980 de um importante Partido Comunista (herdeiro da
Resistência à ocupação nazista e com grande prestígio junto à intelectualidade) já havia
movido uma importante guerra de posição ideológica no segundo pós-guerra com a
publicação de O ópio dos intelectuais (1955), do grande sociólogo Raymond Aron. O
revisionismo da Revolução Francesa iniciado na década de 1960 por Alfred Cobban na
Inglaterra, mas principalmente por Furet na França na mesma década (Cf. HOBSBAWM,

14
1996; WOLFREYS, 2007; LOSURDO, 2017), são parte da constituição dessa importante
corrente anticomunista da nova direita. E, não obstante a vitória eleitoral de uma coalizão
política da qual faziam parte socialistas e comunistas, Paris da década de 1980 seria com
razão caracterizada por Perry Anderson como "capital da reação intelectual européia"
(ANDERSON, 2004:167), tal a concentração da produção intelectual de direita, em
especial aquela oriunda de autores com um passado de esquerda.
É possível verificar que no verbete de Grant esse prioriza o contexto originário em
que emergiu a noção de nova direita, nos Estados Unidos e na Europa. Mas talvez seja
necessário ampliar tal noção, incorporando outras dinâmicas político-ideológicas das
últimas décadas que, em certo sentido, se ligam à própria exportação, do centro para a
periferia, do ideário da nova direita. Entendida como uma espécie de reação à emergência
de um ciclo de governos progressistas na América Latina no início do novo século,
alguns cientistas sociais vêm falando da emergência de uma nova direita na região
(KALTWASSER, 2014; GIORDANO, 2014; ROCHA, 2015, HOEVELER, 2016).

2.2 O que é o neoliberalismo?


É perceptível que dentre todas as tradições que compõe a chamada nova direita o
neoliberalismo é a vertente mais importante e a qual todas as outras acabam por se
influenciarem. Sobre ela interessa localizá-la na história do pensamento político
ocidental, diferenciando-a, inicialmente, do liberalismo clássico. A verdade é que a
própria tradição liberal clássica é muito complexa, mas grosso modo, já no XIX, pôde-se
observar uma bifurcação entre duas grandes vertentes no que se refere a questão
democrática (JONES, 2012; MERQUIOR, 2014; DARDOT, & LAVAL, 2016).
A primeira, calcada no utilitarismo de Jeremy Bentham (1748-1832) e que
culmina em John Stuart Mill (1806-1873), há um compromisso entre compatibilizar as
noções de livre mercado com a reforma social e a democracia, daí Stuart Mill ser
considerado um dos primeiros democratas liberais. A segunda vertente, de onde origina-
se em certo sentido o neoliberalismo, temos aquela cuja maior expressão foi Herbert
Spencer (1820-1903), e que se opõe à reforma política e social, seja a extensão do
sufrágio universal, sejam as leis fabris que limitaram os termos da exploração da força de
trabalho.

15
Por exemplo, em 1884, no mesmo ano em que ocorre a reforma eleitoral inglesa
que incorporou o conjunto dos cidadãos do sexo masculino no universo dos direitos
políticos, Spencer publica The Man versus the State [O indivíduo contra o Estado]. Se por
um lado é possível encontrar uma noção generosa presente no liberalismo de Adam Smith
(1723-1790) – segundo a qual a busca egoísta de cada indivíduo pela satisfação de suas
necessidades privadas produziria o aumento do bem-estar geral –,9 em Spencer essa é
substituída pela noção de “sobrevivência dos mais aptos”, onde, portanto, se pressupõe a
derrota social e mesmo a eliminação dos indivíduos “não adaptados”.
“Em minha opinião, pode-se considerar que um ditado cuja verdade é aceita
igualmente pela crença comum e pela crença da ciência goza de autoridade
incontestável. Pois bem! O mandamento: ‘Se uma pessoa não deseja trabalhar,
não deve comer’ é simplesmente o enunciado cristão dessa lei da natureza sob
império da qual a vida atingiu seu grau atual, a lei segundo a qual uma criatura
que não é suficientemente enérgica para se bastar deve perecer.” (SPENCER
apud DARDOT & LAVAL, 2016: 48)

De acordo com Karl Polanyi, a lista de “restrições à liberdade” arroladas por


Spencer neste livro DE 1884 é simplesmente patética, pois inclui medidas destinadas a
impedir o emprego de crianças em atividades não só insalubres como fatais, a criação do
corpo de bombeiros e até o controle público sobre alimentos, medicamentos e vacinas
obrigatórias (POLANYI, 2000: 178). Para Spencer, tais regulações seriam um “atentado à
liberdade”, num raciocínio de sabor malthusiano que seria retomado por autores
neoliberais como von Mises e Hayek no século XX. Senão, vejamos.
No famoso panfleto escrito por Hayek em 1944, O caminho da servidão, o
economista austríaco busca persuadir o público britânico de que a raiz do sistema nazista
– que os ingleses aquela altura se empenham em derrotar no conflito mundial – seria a
mesma que informava a proposta do Partido Trabalhista britânico de implantação de um
sistema de Welfare State. Como se a raiz de todos os problemas enfrentados desde a
Primeira Guerra Mundial se originassem daquilo que os neoliberais chamam de
"coletivismo", um enorme guarda-chuva onde cabem todas as tendências socialistas – dos
comunistas e socialdemocratas, aos socialistas fabianos ingleses – mas também todas as
tendências que se esboçaram mesmo no interior daquela primeira vertente da tradição
liberal que aludimos acima e que no século XX foi expressa por John Maynard Keynes.

9
É o que está sugerido na famosa metáfora da “mão invisível”.

16
E afinal, qual seria o “caminho abandonado” assinalado pelo panfleto hayekiano
de 1944 senão a reiteração da mesma lamentação de Spencer contra a democracia e
reforma social (FOUCAULT, 2008:158; DARDOT & LAVAL, 2016:45-55)? Há, no
entanto, uma evolução à direita na obra de Hayek, desse panfleto até sua obra tardia da
década de 1970. Pois se em 1944 Hayek ainda visa combater o socialismo identificando-o
a toda forma de planejamento econômico e desta como matriz de experiências totalitárias
(num argumento que parece reivindicar a democracia como garantia da liberdade), em
fins dos anos 1970 (quando suas ideias começaram a serem levadas à sério e inspiraram
as experiências pioneiras do neoliberalismo) deixou clara sua “desilusão” com a
democracia. Isso irá aparecer de forma cristalina no último volume de sua trilogia
Direito, Legislação e Liberdade, onde se lê:
“(...) o termo democracia deixou de designar uma concepção definida, que
alguém possa abraçar sem maiores explicações. Em alguns dos sentidos em que é
hoje frequentemente empregado, tornou-se mesmo uma grave ameaça aos ideais
que outrora pretendeu expressar. Embora eu acredite firmemente que o governo
deve agir segundo princípios aprovados pela maioria do povo, sendo isso
indispensável à preservação da paz e da liberdade, devo admitir com franqueza
que, se a democracia é entendida como governo conduzido pela vontade irrestrita
da maioria, então não sou um democrata e considero inclusive tal governo
pernicioso e, a longo prazo, inexequível.” (HAYEK, 1985 [1979]: 43)

E no contexto da ditadura do general Pinochet, Hayek deu uma entrevista ao jornal El


Mercurio em 1981 onde afirmou: "Entenda, é possível para um ditador governar de forma
liberal. E também é possível para uma democracia governar sem liberalismo nenhum.
Pessoalmente, prefiro um ditador liberal a um governo democrático sem liberalismo."
(apud DARDOT & LAVAL, 2016: 184). Em suma, para o velho Hayek a democracia
militava contra a liberdade de mercado, um raciocínio que é uma espécie de coroamento
de sua obra (Cf. MERQUIOR, 2014: 227).
Daí que, como é sempre lembrado pela literatura crítica (p.ex. DUMÉNIL &
LÉVY, 2004; HARVEY, 2008), as experiências pioneiras de implantação do
neoliberalismo foram as sanguinárias ditaduras militares chilena e argentina da década de
1970, onde os próprios operadores diretos das “reformas” foram formados no
Departamento de Economia da Universidade de Chicago. Assim, embora toda a retórica
dos neoliberais tenha sido baseada na idéia de que a “liberdade econômica é também um
instrumento indispensável para a obtenção da liberdade política” (FRIEDMAN, 1988:

17
17), a crítica pode lhe apontar a contradição. Entretanto é preciso lembrar como, na
verdade, a questão é mais profunda, pois o pensamento neoliberal possui uma relação
instrumental com a democracia.

2.3 O neoliberalismo em três tempos


Em sua tese de PhD em História na Universidade da Pensilvânia, Masters of the
Universe (JONES, 2012), Daniel Stedman Jones refaz a trajetória do neoliberalismo a
partir de uma periodização bastante interessante sobre o desenvolvimento de sua teoria.
Localiza o momento de gestação do neoliberalismo entre a década de 1920 e 1950, sendo
o debate sobre o “cálculo socialista” protagonizado por Mises na década de 1920 e
posteriormente retomado por Hayek como um momento originário que culmina na
realização do Colóquio Walter Lippmann, em 1938 na capital francesa. Nesse encontro,
representantes da escola austríaca, do Ordoliberalismo alemão e de variados defensores
da necessidade de renovação do pensamento liberal levantaram a necessidade de um
neoliberalismo.
A deflagração da Segunda Guerra Mundial interrompeu temporariamente o
intercambio intelectual, mas após o fim do conflito, a partir da constituição da Sociedade
de Mont Pelerin em 1947 inicia-se uma segunda fase, que ganharia força entre a década
de 1950 até os anos 1980. Enquanto na primeira fase a moderação no discurso era o tom,
nessa segunda fase há uma defesa mais estridente do livre mercado e da desigualdade
social como motor do progresso social e econômico. Nessa segunda fase há o
deslocamento do eixo do pensamento neoliberal para os Estados Unidos, e a formação de
importantes think tanks destinados a realização de uma tenaz campanha de
"evangelização", estratégia de uma longa marcha pelas instituições da sociedade civil
inspirada naquela perpetrada pela Fabian Society na Inglaterra. Conformou-se ali uma
rede transatlântica neoliberal, que teria importância decisiva na fase seguinte.
A terceira fase compreende a chegada ao poder de Thatcher e Reagan, com a
implementação das respectivas agendas de liberalização dos mercados e disciplina fiscal.
Esse momento compreende também a estratégica reconversão das instituições criadas em
Bretton Woods, particularmente o Fundo Monetário Internacional (FMI) e o Banco
Mundial ao ideário neoliberal com a radical modificação de seu corpo técnico. Como

18
conseqüência foram também criadas novas instituições que constituiriam a arquitetura do
neoliberalismo, como a Organização Mundial do Comércio, o Tratado de Livre Comércio
da América do Norte (NAFTA) e a União Européia. As recomendações do chamado
Consenso de Washington de 1989, aliada ao colapso do mundo socialista com a queda do
Muro de Berlim naquele mesmo ano, e a dissolução da URSS em 1991, consolidaram a
ofensiva global do capitalismo neoliberal.
A tese de Jones concentra-se na segunda fase, da constituição de uma rede
transnacional de entidades neoliberais no momento anterior à conquista da hegemonia,
onde o ativismo de intelectuais como Hayek e "empreendedores ideológicos" (JONES,
2012: 22) como Anthony Fisher foi muito importante. Há uma importante dinâmica que
envolve câmaras de comércio, entidades empresarias, universidades e think tanks, na
formação daquilo que Jones denominou de rede transatlântica neoliberal. A trajetória de
alguns personagens ajuda a entender esse processo.
Por exemplo, Ludwig Von Mises, atuante na Câmara de Comércio da Áustria e
como conselheiro de governos, como o do clerical-fascista de Dolffuss até 1934,10 após o
assassinato deste transferiu-se da Universidade de Viena para o Institut Universitaire des
Hautes Études Internationales em Genebra, até que em 1940 emigrou para os Estados
Unidos, onde viveu até o fim da vida (1973). Ali tornou-se consultor da emblemática
associação patronal National Association of Manufactures (NAM), docente na
Universidade de Nova York e conferencista de honra do think tank Foundation for
Economic Education (FEE), criada já em 1946 por Leonard Read, empresário amigo de
Mises. Esteve presente tanto no Colóquio Walter Lippmann em Paris em 1938, e quando
da fundação da Sociedade de Mont Pelerin em 1947.
Seu principal discípulo, Friedrich Von Hayek teve primeiro uma importante

10
Em seu livro de 1927 Liberalismo segundo a tradição clássica, Ludwig von Mises reconheceu o
mérito do fascismo em salvar a "civilização européia", e nesse sentido "O mérito que, por isso, o fascismo
obteve para si estará inscrito na história." (MISES, 2010 [1927]: 77). De acordo com Perry Anderson,
"Mises aprovou quando Dollfuss esmagou o trabalhismo austríaco na década [de 1930], lançando a culpa
pela repressão de 1934, que instalou seu regime clerical, na loucura dos socialdemocratas que contestaram
a aliança com a Itália [fascista]." (ANDERSON, 2012: 32). Contudo, como apontou André Guimarães
Augusto, no epílogo que escreve em 1947 para seu livro Socialismo, Mises passa a considerar o fascismo
"uma ‘variante’ de um vago e mal definido “socialismo”. Na guerra fria, era preciso igualar o fascismo, o
nazismo e o stalinismo por meio da teoria do totalitarismo. Àquela altura, o fascismo já não era mais
defensável e nem necessário para a manutenção da propriedade privada dos meios de produção."
(AUGUSTO, 2014: 421).

19
passagem no Departamento de Economia da London School of Economics entre 1931 e
1950. Sob sua inspiração e seguindo o modelo da FEE, seria criado na Inglaterra o think
tank Institute of Economic Affairs (IEA) em 1955, que teve um papel importante na
formação de uma geração de políticos neoliberais como a futura primeira-ministra
Margaret Thatcher. O IEA ajudou o americano Milton Friedman a preparar a série para
TV Free to Choose ("Liberdade para escolher"), que teve um papel fundamental na
divulgação das idéias neoliberais no mundo de língua inglesa.
Até os anos 1970 os think tanks neoliberais apresentavam-se como entidades
educacionais sem vínculos partidários, com vistas ao abatimento no imposto de renda das
contribuições que as mantinham. A partir dessa época emerge uma nova geração de think
tanks diretamente vinculados à partidos conservadores, cujo objetivo era a formulação de
políticas públicas e mesmo o programa de governos. São exemplos o Adam Smith
Institute (ASI) em 1976 e o Center for Policy Studies (CPS), que atuaram diretamente na
disputa interna do Partido Conservador britânico, e o Heritage Fundation e o Cato
Institute, criados respectivamente em 1973 e 1978, atuantes no interior do Partido
Republicano americano e também no Partido Libertário, no assessoramento de
parlamentares. Essa nova geração de think tanks cumpriram um papel central durantes os
governos Thatcher e Reagan,11 numa articulação em rede donde projetos de cunho similar
foram elaborados dos dois lados do Atlântico, como o Mandate for Leadership, elaborado
pelo Heritage para o governo Reagan e o Projeto Ômega, elaborado pelo Adam Smith
Institute para Thatcher (GROS, 2003:107).
No início da década de 1980 foi criado nos Estados Unidos o Atlas Economic
Research Foundation, por iniciativa de Antony Fisher – anteriormente ligado ao britânico
IEA – funcionando como uma espécie de meta-think tank, onde, além da formação
doutrinária, é possível aprender os meandros da montagem de um think tank,
especialmente no que se refere à observação das legislações nacionais e as possibilidades
de isenção tributária. Deste modo, o Atlas desenvolveu uma enorme rede internacional
dessas entidades, que articulam uma ampla iniciativa de formação de quadros, de
agitação e propaganda das idéias neoliberais até hoje, inclusive no Brasil (ROCHA, 2015;

11
No dizer de George Nash, a Heritage seria o eixo central da "revolução de Reagan" (NASH, 2006:
563).

20
HOEVELER, 2016:87-88; CASIMIRO, 2017).
Antony Fisher é, aliás, um personagem bastante interessante que vale resgatar sua
atuação como verdadeiro "empreendedor ideológico". Foi dele a iniciativa de criação da
IEA em 1955, e, depois do sucesso da Heritage, em 1975 foi convidado para a co-direção
de um think tank criado no ano anterior nos moldes do Heritage no Canadá, o Fraser
Institute. Em 1977 ajudou a criar o Manhattan Institute for Policy Research, e em 1979
fundou o Pacific Institute for Public Policy em São Francisco, California, e o Center for
Independent Studies na Austrália (ROCHA, 2015: 267-268). A criação da rede Atlas no
início da década de 1980 seria o coroamento de uma estratégia de expansão global da
iniciativa neoliberal. De acordo com Camila Rocha:
“Atualmente, é possível dizer que praticamente todos os think tanks de direita
mais importantes ao redor do globo fazem parte da rede constituída pela Atlas. A
articuladora norte-americana conta hoje com mais de 400 afiliados distribuídos
em mais de 80 países, 15 no Canadá, 156 nos Estados Unidos, 144 na Europa e
na Ásia Central, 11 no Oriente Médio e norte da África, 19 na África, 16 no sul
da Ásia, 27 no Extremo Oriente e Pacífico, 8 na Austrália e Nova Zelândia e 72
na América Latina.” (ROCHA, 2015: 269)

2.4 O neoliberalismo realmente existente


De acordo com uma série de autores (DUMÉNIL & LÉVY, 2004; HARVEY,
2008; CARCANHOLO & BARUCO, 2011), o neoliberalismo na prática – que
corresponde à terceira fase na periodização de Jones – desenvolveu-se como uma
resposta à última crise estrutural do capitalismo, cuja manifestação estendeu-se dos
primeiros sinais no fim da década de 1960 e aprofundou-se na de 1970. Mas essa resposta
não estava dada pela "lógica das coisas", como aparece em narrativas tanto laudatórias
quanto críticas.
Por exemplo, no prefácio à segunda edição de 1982 de Capitalismo e Liberdade,
Milton Friedman observou como a opinião pública havia sido alterada desde a primeira
edição, de 1962. Àquela altura, as idéias defendidas por Friedman sensibilizavam "uma
pequena mas aguerrida minoria" (FRIEDMAN, 1988: 5), mas vinte anos depois
chegaram ao poder, com Reagan. Assim, de acordo com ele, foi possível que o mesmo
programa defendido pela campanha do republicano Barry Goldwater à Casa Branca em

21
1964, derrotado naquela ocasião, chegassem ao poder com Reagan (Idem: 7).12 Como
explica isso? Vejamos:
"Somente uma crise – atual ou previsível – provoca uma real mudança. Quando
ocorre tal crise, as decisões tomadas dependem das idéias existentes no momento.
Este, creio eu, é nossa função fundamental: desenvolver alternativas para os
programas existentes, conservá-las vivas e disponíveis, até que o politicamente
impossível se torne politicamente inevitável." (Idem: 7)

Ora, seria necessário que os críticos do neoliberalismo observassem com maior


ceticismo essa narrativa vencedora.13 É verdade que toda a rede internacional de think
tanks, organizada por iniciativa de empresários intelectuais (MORAES, 2015) cumpriu
um papel importante em apresentar uma alternativa mais ou menos coerente de saída para
a crise que se estabeleceu. E que, contra a onda de protestos sociais que varria os Estados
Unidos desde a década de 1960, emergiu um forte clamor em favor da adoção de políticas
públicas que favorecessem a "liberdade econômica", como no famoso e emblemático
Memorando Powell, de 1971 (Cf. HOEVELER, 2017). Mas isso não foi feito sem
conflito, sem disputa e dúvida.
Tradições políticas e culturais nacionais tiveram influência importante. Nos
Estados Unidos, além do sempre lembrado conservadorismo de fundo religioso que na
década de 1970 confluiu na Direita Cristã, uma importante tradição conservadora ligada a
nomes como Russel Kirk, William Buckley Jr. e seu periódico National Review tiveram
papel importante na reorganização da direita estadunidense (SOUZA, 2013; BIANCHI,
2015). Todavia, a adesão do próprio Buckley Jr aos princípios econômicos neoliberais,
que o levaram a se tornar um dos mais importantes difusores do mencionado fusionismo
denota como, embora seja correto assinalar a especificidade do neoconservadorismo na
composição da nova direita americana, isso não deve obscurecer a hegemonia que as
idéias econômicas neoliberais exerceram em seu interior. Do mesmo modo que apontar a
especificidade da Direita Cristã não pode nos fazer negligenciar a enorme afinidade
eletiva entre sua teologia da prosperidade e a doutrina neoliberal.
De qualquer modo, o papel da direita religiosa na ascensão do movimento

12
Friedman foi assessor econômico da campanha de Goldwater de 1964, campanha que, embora
tenha sido derrotada, tem sido tomada como emblemática da reorganização do conservadorismo político
estadunidense (Cf. SOUZA, 2013; BIANCHI, 2015).
13
Em certo sentido, Naomi Klein acaba por naturalizar essa interpretação de Friedman em seu
afamado livro Doutrina de Choque (2008).

22
conservador americano teve uma significação estratégica. De acordo com James
Davidson Hunter sua resultante teria sido a tendência crescente a que temas culturais e
morais ocupassem o centro do debate político, constituindo aquilo que este autor
denominou de guerras culturais (HUNTER, 1991). Não obstante a polêmica quanto à
existência ou não de tais guerras culturais (Cf. LUIZ, 2016), o que é certo é que, até
mesmo como reação aos ganhos conquistados pelos movimentos dos direitos civis da
população afroamericana e pela liberação sexual (do feminismo ao movimento gay),
todos processos identificados com o establishment liberal, o movimento conservador que
levou ao poder a plataforma neoliberal com o governo Reagan soube bem articular os
temas morais na mobilização de uma importante base social.

2.5 Neoliberalismo na berlinda?


Na conjuntura aberta pela crise capitalista em 2008, que parecia anunciar uma
série de dificuldades para os apologetas do sistema, a recente virada do espectro político
mundial para a direita surpreendeu alguns analistas. Mesmo antes da quebra do Lehman
Brothers, Joseph Stiglitz foi um dos que, já percebendo o estouro da bolha do mercado
imobiliário americano no primeiro semestre de 2008, anunciou o esgotamento do
“fundamentalismo de mercado” (STIGLITZ, 2008). A bilionária operação de resgate de
grandes empresas e instituições financeiras que se seguiu naquele ano parecia confirmar o
vaticínio do Nobel da Economia.
Em 2011 o Government Accountability Office (um instituto do
congresso dos EUA) descobriu que desde 2008 o Tesouro norte-
americano havia transferido US$ 16 trilhões de dólares em
empréstimos às grandes empresas e instituições financeiras em
dificuldade. Em suma, a ideia era mais uma vez ativar a ação anti-
cíclica do Estado para a retomada do crescimento econômico, o que
afinal contrariava o mantra neoliberal. Em 2011 os economistas marxistas franceses
Gérard Duménil e Dominique Lévy publicariam uma obra de fôlego na qual a crise era
entendida como marco de uma espécie de transição para outro modo de regulação social
além do neoliberalismo (DUMÉNIL; LEVY, 2014[2011], 12). Qual seria ele? É inútil
procurar tal resposta no livro.

23
Contudo, já na ocasião do Crash de 2008 críticos de peso pronunciaram-se em
sentido contrário a essa percepção, atentando para o fato daquela crise (ou melhor, desta
crise, em curso) estava reiterando as características da época neoliberal, posição seguida
por outros autores (HARVEY, 2009; DARDOT; LAVAL, 2013; SAAD FILHO, 2015).
Observando a radicalização da política da austeridade na Zona do Euro, com a
continuidade da desmontagem das políticas de bem-estar social, privatizações, cortes nos
gastos sociais, e vendo agora uma virada mundial à direita que só reforça essa mesma
agenda, o prognóstico do fim do “fundamentalismo de mercado” nos parece
insustentável. A questão que nos parece central no processo é que o aparente desvio de
rota simbolizado pelo salvacionismo estatal da economia tão somente preparou a fase
seguinte da mesma crise, pois seu resultado foi o aumento exponencial das já gigantescas
dívidas públicas, o que ampliou a crise fiscal dos Estados, e daí a imposição da agenda da
austeridade na Zona do Euro ser o motor de uma nova fase de neoliberalização.
Na América Latina, aquilo que foi festejado como tendência progressista na
composição política dos governos no Cone Sul no início dos anos 2000 também levou
respeitáveis intelectuais a vaticinarem o fim do ciclo neoliberal iniciado na região há
quarenta anos. Também em 2008, Álvaro Garcia Linera, vice-presidente boliviano
chegou a afirmar que o longo ciclo neoliberal iniciado em seu país em 1985 havia
perdido a hegemonia no início dos anos 2000 no Estado, nas ruas e na batalha de ideias
(LINERA, 2008). Em sentido inverso, e capturando a mudança de sentido na segunda
década do novo milênio, no Brasil já desde 2012 uma série de autores tem assinalado a
existência de uma “onda conservadora” (DEMIER & HOEVELER, 2016, MELO,
2016a), principalmente após o resultado das eleições gerais de 2014, e da volta às ruas
das direitas em 2015. Os golpes de Estado que depuseram os governos de Manuel Zelaya
em Honduras em 2009 e de Fernando Lugo no Paraguai em 2012 (SERRANO, 2016), a
eleição de Maurício Macri na Argentina em novembro de 2015, a derrubada do governo
Dilma em 2016 e o agravamento da crise política venezuelana parecem ser um sinais
evidentes de um fim do ciclo progressista no continente (MODONESI, 2016).
A partir da compreensão do processo de acumulação capitalista e suas leis
tendenciais, cabe compreender a funcionalidade das crises no atual regime de acumulação
neoliberal. Como assinala Alfredo Saad Filho, ao contrário de ser o sinal de seu

24
esgotamento,
“as crises desempenham um papel construtivo – e até mesmo constitutivo – no
neoliberalismo. Elas justificam a transição neoliberal, reforçam a disciplina de
política econômica sobre os governos, e obrigam os capitalistas, os trabalhadores
e o próprio setor financeiro a se comportarem de maneira condizente com a
reprodução intensificada do neoliberalismo” (SAAD FILHO, 2015: 68)
Isso por que
“as políticas neoliberais não se autocorrigem. Em vez de levar a uma mudança de
rumo, a impossibilidade de implementação ou a incapacidade de alcançar os
objetivos declarados normalmente leva ao aprofundamento e alargamento das
'reformas', com a desculpa de garantir a implementação e a promessa de sucesso
iminente desta vez.” (Idem: 69)

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