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UNIVERSIDADE METODISTA DE SÃO PAULO

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Editora executiva
Léia Alves de Souza
Itinerário
para uma Pastoral Urbana

ação do povo de Deus na cidade

• Alline Leal Ruas. Antônio de Lisboa Lustosa Lopes


• Blanches de Paula. Douglas Nassif Cardoso • Ed René Kivitz
• Geoval Jacinto da Silva - Org.
• Inez Augusto Borges. Jonas Rodrigo Becker
• Jorge Schütz Dias. Josué Barbosa Cordeiro
• Oswaldo de Oliveira Santos Junior. Vanderlei Gianastacio

CO-EDIÇÃO: EDITEO
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
(Biblioteca Central da Universidade Metodista de São Paulo)

Itinerário para uma pastoral urbana: ação do povo de Deus


na cidade / Antonio de Lisboa Lustosa Lopes et a!.;
It4
organização de Geoval Jacinto da Silva. São Bernardo
do Campo: Universidade Metodista de São Paulo, 2008.
136 p.

Bibliografia

ISBN 978-85-7814-021-2 (Editora Metodista)


ISBN 978-85-88410-83-1 (Editeo - Editora da Faculdade de Teologia)
1. Pastoral urbana 2. Prática (Teologia) 3. Evangelização
r. Lopes, Antonio de Lisboa Lustosa
CDD 253.01732

EDITORA DA FACULDADE DE TEOLOGIA (EDITEO)


Rua do Sacramento, 230 - Rudge Ramos - São Bernardo do Campo, SP
Telefone: (11) 4366-5983 - e-rnail: editeo@metodista.br
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Conselho Editorial: Blanches de Paula, Helmut Renders, José Carlos de Souza,


Luiz Carlos Ramos, Magali do Nascimento Cunha, Nelson Luiz Campos Leite,
Otoniel Luciano Ribeiro, Rui de Souza Josgrilberg (presidente), Ronaldo Sathler-
Rosa, Stanley da Si!va Moraes, Tércio Machado Siqueira, Fabio N. Marchiori,
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Coordenador Editorial: Ronaldo Sathler-Rosa
Secretaria de apoio: Glória Pratas

EDITORA METODISTA
Capa: Cristiano Freitas
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Preparação de originais e revisão: Waldemar Luiz Kunsch
Telefone: (11) 4366-5537 - Fax: (11) 4366-5946 - e-mai!: editora@metodista.br
Impressão e acabamento: Assahi Gráfica e Editora

As informações e opiniões emitidas nos artigos assinados são de inteira


responsabilidade de seus autores, não representando, necessariamente,
posição oficial da Universidade ou de sua mantenedora.
SUMÁRIO

Apresentação 7
Geoval Jacinto da Silva

Prefácio 11
Clóvis Pinto de Castro

Pastoral urbana: a construção de sinais de


1. esperança em situações de desesperança
Geoval Jacinto da Silva
15

Entre a cidade e as comunidades: uma


2. leitura sócio-pastoral
Antônio de Lisboa Lustosa Lopes
23

3. A teologia prática: modernidade e urbanidade


Ed René Kivitz
35

Exclusão social e missão e


4. no contexto urbano
Douglas Nassif Cardoso; Josué Barbosa Cordeiro
47

o fenômeno do trânsito religioso:


5. desafios e perspectivas para a igreja urbana
Jonas Rodrigo Becker
61
6. Educação religiosa: um desafio
para a igreja urbana
Inez Augusto Borges
81

7. A filosofia da práxis em diálogo


com a pastoral urbana
Oswaldo de Oliveira Santos Junior
89

Luto e existência na perspectiva


8. pastoral da cidade
Blanches de Paula
103

9. As fronteiras da missão urbana


Jorge Schütz Dias
113

Palavra de Deus ou palavra do homem? O uso da


10. retórica no discurso religioso no contexto urbano .........125
Vanderlei Gianastacio; Alline Leal Ruas
APRESENTAÇÃO

O livro que colocamos à disposição do leitor e da leitora, neste


momento de tanta criatividade e produtividade no mundo
acadêmico, é resultado da reflexão acurada de um grupo de pesqui-
sadores empenhados no estudo da presença do povo de Deus na cidade, por
meio de ações pastorais multiformes. Neste sentido, a partir de suas
experiências no mundo urbano, os autores procuram identificar-se com si-
tuações reais e indicar possíveis ações que a comunidade possa desenvol-
ver a fim de marcar a presença de Deus em situações concretas, como
sinal de esperança.
A presente obra reúne a produção de doze autores que têm caracterís-
ticas que os distinguem dos pesquisadores "de gabinete". Isso porque são au-
tores que refletem e escrevem a partir de sua vivência e experiência de tra-
balho pastoral efetivo no mundo urbano.
Também se procurou reunir pessoas de um círculo amplo, de modo a dar
representatividade ao rico mosaico protestante e católico que constitui a rede
de serviços pastorais que têm como referência a metrópole de São Paulo.
Além disso, se priorizou a sensibilidade ~ o olhar femininos, uma vez que
as mulheres constituem a maioria da membresia das comunidades. A presença
feminina se faz mais enfática em três dos relevantes temas aqui reunidos.
O livro tem sua gênese formal no trabalho acadêmico do Grupo de Pes-
quisa em Teologia Prática no Contexto Brasileiro (Getep), do Programa de Pós-
Graduação em Ciências da Religião, da Universidade Metodista de São Paulo.
"Pastoral urbana: a construção de sinais de esperança em situações de
desesperança" é o texto que abre a série. O autor, que é também o
organizador da obra, procura inicialmente definir pastoral urbana como
instrumento da ação do povo de Deus na cidade. Destaca que a pastoral
urbana tem como principal objetivo sinalizar a presença da esperança em
situações de desesperança. Procura também identificar, por meio de uma
análise comparativa, de que forma duas igrejas realizam suas ações pastorais
8 ITINERÁRIO PARA UMA PASTORAL URBANA: AÇÃO DO POVO DE DEUS NA CIDADE

em dois bairros históricos da cidade de São Paulo. Apresenta, ainda, um


estudo, a partir de como a experiência vivida por Barnabé na cidade de
Jerusalém possibilitou o ingresso de Paulo na comunidade dos apóstolos.
Na última parte, são consideradas algumas possibilidades para as ações
do povo de Deus na cidade.
"Entre a cidade e as comunidades: uma leitura sócio-pastoral" é o
estudo de Antônio de Lisboa Lustosa Lopes, que faz um resgate de catego-
rias que permitem melhor compreender a comunidade em processo de lique-
fação, afirmando que entre a cidade e as comunidades existe uma aproxi-
mação com o pensamento de Zygmunt Bauman. A intenção do autor é
recorrer às categorias de análises fundamentais de Bauman na leitura do
contexto hodierno das relações humanas, procurando abordar em perspec-
tiva pastoral o fenômeno da liquefação da vida comunitária em meio ao
pluricentrismo simultâneo configurado pelo universo urbano.
Ed René Kivitz, em "A teologia prática: modernidade e urbanidade",
procura mostrar a relevância da teologia prática como uma das disciplinas
teológicas imprescindíveis na modernidade, ao lado das teologias bíblica, sis-
temática e histórica; bem como estabelecer a distinção entre a teologia prá-
tica e a teologia pastoral; e procura, ainda, esclarecer as competências de
cada uma das disciplinas teológicas na modernidade, seus objetos de estudo
específicos e sua relevância no contexto eclesial da América latina,
notadamente no Brasil.
Em "Missão e exclusão social no contexto urbano", Douglas Nassíf
Cardoso e Josué Barbosa Cordeiro desenvolvem um estudo de caso a partir
dos conceitos de "missão" e "exclusão social" no contexto urbano. Preten-
dem os autores apresentar alternativas para igrejas inseridas em situação de
exclusão social, de modo a conciliar sua proclamação evangélica com ações
afirmativas. O último censo justifica este estudo, ao indicar 42% das cidades
como bolsões de exclusão social, afetando 47,3% da população brasileira.
Por razões metodológicas, o objeto da pesquisa implica a abordagem de uma
área na qual exclusão social e projeto de missão coexistam. Delimitou-se,
assim, o campo a ser investigado, na cidade de São Paulo, à sua maior fa-
vela, chamada Heliópolis. Fator decisivo para esta escolha foi a presença no
campo de uma igreja cristã de tradição reformada e de uma organização
não-governamental, que atuam no local há mais de quatro décadas.
Jonas Rodrigo Becker preocupa-se em ver na questão do "trânsito re-
ligioso" o que ele representa em termos de "desafios e perspectivas para a
igreja urbana". O autor faz uma leitura crítica do fenômeno do trânsito
religioso a partir da teologia prática em relação à modernidade e suas
influências, mudanças e contradições, pois é no contexto moderno que
aflora de maneira surpreendente a transitoriedade humana. Ressalta o
APRESENTAÇÃO 9

fenômeno religioso como algo estritamente humano e concebe o trânsito


religioso brasileiro como expressão plural e sincretista, ressaltando as
suas motivações e conseqüências. Finaliza oferecendo pistas pastorais
libertadoras frente ao fenômeno em questão.
"Educação religiosa: um desafio para a igreja urbana" é o tema desen-
volvido por Inez Augusto Borges, que pontua o fato de vivermos em um
mundo complexo no qual o processo educativo que deixar de levar em con-
sideração tal complexidade não atenderá às necessidades múltiplas dos
educandos e das comunidades nas quais estes estão inseridos. Mais do que
transmitir informações é necessário formar pessoas com capacidade para
organizar o conhecimento, de modo que este faça sentido para a vida, tanto
no âmbito individual quanto no espaço comunitário urbano. A reforma edu-
cacional, na forma em que é proposta por Edgar Morin, é considerada neste
texto como uma possibilidade de análise da prática educativa no âmbito
cristão, conquanto esta prática represente a formação de espíritos críticos
e questionadores. Por isso mesmo, a educação religiosa representa atualmen-
te um dos grandes desafios da pastoral urbana.
"A filosofia da práxis em diálogo com a pastoral urbana" é objeto de
estudo de Oswaldo de Oliveira Santos Junior, que salienta que o objetivo
maior de sua pesquisa é iniciar um diálogo entre a filosofia da práxis e a
pastoral urbana, observando a relevância da práxis para as ações desenvol-
vidas pelas pastorais no contexto urbano. Para tanto, o texto discorre sobre
algumas das principais referendas sobre o tema, entre as quais Gramsci,
Marx, Engels e Casiano Floristán, pastoralista que dedicou relevante aten-
ção à questão da práxis em sua articulação com a pastoral. Destaca que a
pastoral no contexto urbano, ao dialogar com a filosofia da práxis, aponta
para a necessidade de transformações significativas segundo os valores do
reino de Deus: paz, justiça, igualdade e libertação humana.
Blanches de Paula, em "Luto e existência na perspectiva pastoral da
cidade", procura abordar a relação entre o método fenomenológico e a
busca de trajetórias de pesquisa na área da práxis religiosa, especialmente
sobre o luto. O texto oportuniza uma inserção introdutória dos pressupostos
metodológicos da fenomenologia nas inquietações presentes nos estudos
sobre o luto. Também viabiliza contato com conceitos da fenomenologia,
do campo da práxis religiosa e do próprio luto. Com isso, o capitulo oferece
um caminho para o fazer teológico-pastoral no cenário das cidades que aglo-
meram tantas perdas por mortes. Para a autora, o fenômeno (luto por
morte) deve ser aprofundado no contexto urbano pelas eminentes ameaças
que a população urbana experimenta.
"As fronteiras da missão urbana" constituem preocupação central no
estudo de Jorge Schütz Dias, que destaca que o povoado rural era o lugar
10 ITINERÁRIO PARA UMA PASTORAL URBANA: AÇÃO DO POVO DE DEUS NA CIDADE

onde o ser humano norteava a sua vida a partir de três referenciais - a


igreja, o trabalho e a família -, tendo seus passos vigiados pelo pároco,
pelo patrão, pelo cônjuge ou pelos pais. Esse modelo foi desaparecendo
a partir de seu projeto de emigração da vida rural e de sua chegada ao
grande centro urbano. Sua nova leitura da vida passa a ser a partir da
consciência de que na cidade lhe é oferecido o espaço das ações livres
e é onde o indivíduo perde sua identidade.
"Palavra de Deus ou palavra do homem? O uso da retórica no dis-
curso religioso no contexto urbano" é o último texto do livro. Nele,
Vanderlei Gianastacio e Alline Ruas preocupam-se em destacar que no
século XIX e XX, com o advento das indústrias, a retórica é utilizada
com o objetivo de vender produtos manufaturados. A argumentação
tornou-se algo fundamental no contexto capitalista. O desenvolvimento
da produção desafia os vendedores a utilizarem a retórica de maneira a
gerar no consumidor a necessidade do produto. Contudo, o único obje-
tivo daquele que fala é conquistar a confiança do ouvinte. A estratégia
do pregador torna-se semelhante à dos vendedores de produtos manu-
faturados. A diferença, porém, é que o discurso do vendedor tem o
objetivo de gerar necessidades no consumidor, enquanto no discurso
religioso as necessidades básica já existem - desemprego, dificuldades
no relacionamento conjugal, problemas familiares, doenças etc. O dis-
curso em nome de Deus gera, nas pessoas que o estão ouvindo, confian-
ça e a certeza de que tudo que está sendo anunciado pelo pregador se
realizará e, se isto não acontecer, a culpa será da própria pessoa porque
não teve fé suficiente. Dessa forma, ensina-se apenas uma espécie de fé
na fé. Por isso, o discurso religioso, estudado pelos autores, é um fenô-
meno significativo no contexto da pastoral urbana.
Por certo este livro contribuirá para a pesquisa no campo da pastoral
urbana, principalmente pelos temas inéditos aqui abordados. Junte-se a isso
a contribuição de autores nacionais com larga experiência na vivência urbana.
Refletir sobre o tema ajuda a ampliar os horizontes para melhor entender
quais são as ações que o povo de Deus pode desenvolver na cidade a despeito
das limitações que esta oferece. Como já citado, a cidade é um lugar de medo,
mas é também um espaço de esperança. Trabalhar com o povo de Deus na
cidade nos permite ampliar a cosmovisão e construir referenciais teológicos
e pastorais compatíveis com as realidades que nos desafiam.
Quero, por isso, agradecer a todas as pessoas que de alguma forma
colaboraram e que ainda continuarão a colaborar para que esta obra
atinja seu objetivo que é a construção de sinais de esperança em situa-
ções de desesperança.
Geaval ] acinte da Silva
PREFÁCIO

I tinerário para uma pastoral urbana é um título bastante significativo


para pensar a ação das igrejas nas cidades. Itinerário é, entre ou-
tras coisas, a descrição detalhada de uma viagem, um roteiro a ser se-
guido para se chegar a algum lugar. Hoje, mais ainda que no passado, as
igrejas precisam ter um "itinerário" missionário definido para alcançar algum
êxito em sua jornada no mundo urbano. Há um ditado popular que afirma
"quando não se sabe aonde se quer chegar, qualquer caminho serve". Per-
cebe-se que muitas comunidades cristãs estão perdidas e sem direção, pois
não conhecem seu próprio itinerário. Ficar sem direção nas cidades não é
algo incomum. Há muitas pessoas e instituições que também não têm qual-
quer itinerário estão ao sabor do vento.
Nesse sentido, as igrejas têm um compromisso fundamental no contexto
urbano - descobrir caminhos e indicar às pessoas, famílias, comunidades e
instituições itinerários mais seguros, que possam levá-las com maior segurança
aos seus destinos. Este livro se coloca nesta perspectiva - indicar itinerários
para que as igrejas encontrem maior relevância em seus próprios caminhos.
Para muitas comunidades de fé e para suas respectivas lideranças será
um trabalho de conversão; em outras palavras é deixar para trás um itine-
rário seguro, conhecido e até confortante para trilhar os novos caminhos
que o mundo urbano exige. Para ilustrar metaforicamente a necessidade
dessa conversão, compartilho neste breve prefácio a experiência daquele
que se tornou o 'maior' missionário urbano no contexto da igreja primitiva
- o apóstolo Paulo - cujo registro relatado no livro de Atos dos Apóstolos,
capítulo 9, pode ser uma referência importante àqueles e aquelas que dese-
jam enxergar as cidades como lugar prioritário de missão.
Sempre devemos trazer à memória que os primeiros cristãos antes mes-
mo de serem assim identificados, foram considerados como os do "Caminho".
Ao estarem no caminho, cruzaram, algumas vezes, com um perseguidor im-
placável - Saulo - que possuía uma ótima 'formação acadêmica e religiosa' e
trabalhava intensamente para cumprir aquilo que tinha como verdade. A
experiência de Saulo nos mostra que, nos caminhos da vida, Deus sempre
12 ITINERÁRIO PARA UMA PASTORAL URBANA: AÇÃO DO POVO DE DEUS NA CIDADE

se manifesta. Saulo, por meio de uma experiência emocional significativa


e simbólica, também foi surpreendido por Deus por um diálogo ao longo
do caminho. A narrativa mostra que, no encontro-diálogo com Deus, Saulo
ficou cego. Essa cegueira pode ser vista como símbolo de uma situação de
dependência. Saulo, um homem forte e determinado, encontrava-se em
uma situação de dependência total de Deus e dos outros. Essa cegueira
pode também ser entendida como um momento de solidão, necessário para
o processo de conversão. Ninguém se converte no lugar do outro, nem
mesmo uma igreja. É necessário um mergulho dentro de si, na subjetivi-
dade humana. Podemos identificar esse momento com a imagem do casu-
lo, tempo necessário para que a borboleta possa sair e abrir-se ao mundo.
Em outras palavras, para enxergar o mundo é primordial enxergar aquilo
que somos. Saulo, nesse processo de reencontro, reviu sua trajetória de
vida e trouxe à memória sua própria existência. Foram alguns dias de 'ce-
gueira externa', mas também de 'visão interna'. A 'iluminação interior' que
alguns filósofos buscam, a partir de um exercício racional, ou que os
místicos buscam, a partir de exercícios espirituais, Saulo alcançou com o
toque da graça de Deus em sua vida.
De acordo com Emil Brunner, o diálogo só foi possível pela presença da
imago Dei (que ele identifica como ponto de contato). Para Richard Niebuhr,
esse diálogo concretizou-se pela capacidade de autotranscendência que o ser
humano possui. Deus se manifesta no caminho de Saulo, em sua história de
vida, aos 28 anos de idade, para estabelecer com ele um diálogo e oferecer a
possibilidade de conversão - uma nova vida, uma nova direção e um itinerário
pleno de sentido para sua existência. De fato, o que ocorreu foi um processo
dialético de ruptura e de continuidade. Por um lado, ruptura, pois Saulo daria
início a uma nova etapa de sua vida novos propósitos, novo itinerário. Por outro
lado, continuidade ele não precisou se desfazer de sua origem, de sua formação
intelectual e de sua cultura. Colocou tudo isso a serviço de sua vocação.
Há muitas pessoas e comunidades locais que, ao experimentarem a
experiência de conversão, ficam 'cegas'. Não querem enxergar e nem que-
rem se levantar preferem eternizar e perpetuar a experiência mística do
primeiro encontro com Deus. Não aceitam o convite de Deus: "levanta-te
e vai". Ficam com medo do novo.
Porém, o novo com Deus representa novas perspectivas e novos horizon-
tes. Saulo - que a partir do encontro com Deus recebe o nome de Paulo -
percebeu que o projeto que Deus tinha para sua vida era muito maior que o
projeto que ele tinha para Deus. Com Deus, Paulo descobre um novo mundo.
A partir de um novo direcionamento para sua vida, Paulo empreende viagens,
cria novas comunidades e as acompanha, não teme por sua vida pessoal, que
é dedicada ao ministério de pastorear homens e mulheres especialmente nas
cidades mais importantes daquele tempo - Corinto, Roma, Éfesos etc.
PREFÁCIO 13

Dessa ilustração-metáfora, destaco a necessidade de ruptura e con-


tinuidade no processo de conversão. As igrejas que almejam se inserir
missionariamente no contexto urbano precisam enfrentar processos de
ruptura, especialmente relacionados aos preconceitos, às estruturas cris-
talizadas pelo tempo e às teologias maniqueístas, que dividem o mundo
entre o bem e o mal. Por outro lado, precisam reforçar características de
sua identidade, pois, sem uma sólida base identitária, é impossível ser
coerente com a causa do Reino de Deus e, com isso, deixam de ser sal,
fermento e luz.
Este livro, fruto do Grupo de Pesquisa em Teologia Prática no Con-
texto Brasileiro (Getep), coloca-se como mais um instrumento para esti-
mular processos de conversão. Do ponto de vista acadêmico, as cidades,
enquanto objetos de pesquisa ou de observação, são estimulantes e desa-
fiadoras, pois cada uma delas se apresenta como um grande texto que
precisa ser lido, relido, interpretado, decodificado e (re)significado. As
cidades constituem-se objeto de estudo que requer um esforço multi-
disciplinar, interdisciplinar e transdisciplinar. Nenhuma área do saber
humano consegue desvelar sozinha todos os mistérios da cidade.
Contudo, além de sua pertinência acadêmica, este livro é uma convo-
cação missionária no sentido de olhar o mundo urbano como prioridade da
missão. Essa convocação também vem do Fundo das Nações Unidas para a
População (UNFPA), organismo vinculado à Organização das Nações
Unidas (ONU), que, recentemente, em seu Relatório Anual Situação da
População Mundial 2007. 1 anunciou que "até 2030 cinco bilhões de pessoas
viverão nas cidades". Um ponto desse relatório que chama a atenção dos
que desejam pastorear as cidades é "um chamado à ação aos países em de-
senvolvimento para que tirem proveito deste cenário. As cidades concen-
tram pobreza, mas também representam a melhor esperança de se escapar
dela". Segundo Thoraya Obaid, diretora do UNFPA, "se quisermos capita-
lizar o potencial de migração urbana, então devemos mudar nossa menta-
lida de [conversão] (...) As políticas têm de ser mudadas e os investimentos
e programas adequados precisam ser feitos. Favelas, pobreza e violência
existem porque o crescimento urbano não foi bem gerenciado". Em outras
palavras, não houve conversão de mentalidades.
A conversão deve se dar no espaço de cada cidade, mesmo no caso
das pequenas, pois, segundo Obaid, "é preciso prestar atenção às cidades
menores, proporcionando-lhes recursos como informação e assistência téc-
nica para encarar desafios futuros". Ela ainda acrescenta: "a urbanização é
inevitável, e que o processo deveria ser uma força para o bem".

1 ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS, Relatório Anual Situação da População


Mundial 2007, Disponível em : http://noticias.terra.com.br, Acesso em: 28 jun. 2007.
14 ITINERÁRIO PARA UMA PASTORAL URBANA: AÇÃO DO POVO DE DEUS NA CIDADE

Devemos sempre levar em consideração que as cidades são singu-


lares, não importa seu tamanho. Possuem aspectos que são comuns e
similares a quase todas elas, mas ao mesmo tempo cada uma preserva
sua própria alma e identidade. Recentemente, Fernando Barros e Silva,
articulista da Folha de São Paulo, trouxe à memória uma crítica de
Simone de Beauvoir, quando, em 1960, ao lado de Jean Paul Sartre,
visitou Brasília: "Vou deixar Brasília com o maior prazer - esta cidade
jamais terá alma, coração, carne ou sangue". Ela havia percebido o
artificialismo histórico da cidade, colocando "a nu a modernização pos-
tiça do país"."
Diante disso, fica um desafio a todos nós que somos urbanos: como
participar da construção de cidades mais justas, menos excludentes, mais so-
lidárias, mais habitáveis? Como torná-las em espaço de inclusão social e em
espaço de vida?
Para os sociólogos e geógrafos, há uma diferença entre lugar e espaço.
Segundo Michel de Certeau, não há a possibilidade para duas coisas ocu-
parem o mesmo lugar. Um lugar é, portanto, uma conformação instantânea
de posições. Um lugar implica estabilidade. Espaço é o lugar praticado. Por
exemplo, a rua é um lugar planejado pelos urbanistas, mas que é transfor-
mada em espaço pelos pedestres. Em outras palavras, precisamos dar vida
ao lugar que habitamos para transformá-lo em espaço.
Para concluir, cito uma resposta de Paulo Freire à revista italiana Terra
Nueva, em 1989, quando perguntaram como ele via a situação do Brasil,
especialmente de suas cidades:

Não creio que ninguém, com um mínimo de sensibilidade, neste país, não impor-
ta qual seja a sua posição política, possaconviver em paz com uma realidade tão
cruenta e injusta quanto esta. Uma coisa, porém, é sentir-se mal, mas em seguida
encontrar argumentos manhosos - 'a preguiça do povo', 'a incultura do povo'.
'Roma não se fez num dia' - para explicar a tragicidade da situação e defender
hipóteses puramente assistencialistas de ação; a outra é tomar-se de uma 'justa
ira' e engajar-se em projetos políticos de transformação substantiva da realidade.'

Que, no contexto das cidades, sejamos tomados dessa 'justa ira' e tam-
bém da graça dAquele que renova todas as coisas!

Clovis Pinto de Castro


Vice-reitor da Universidade Metodista de São Paulo

2 BARROS e SILVA, Fernando. Brasília, de Beauvoir a Roriz. Folha de São


Paulo, 9.7.2007, Caderno A (Opinião), p. 2.
3 FREIRE, Paulo. Desafio da educação municipal. In: A educação na cidade. São
Paulo, Cortez Editora, 2005 p. 57.
PASTORAL URBANA: A CONSTRUÇÃO
DE SINAIS DE ESPERANÇA EM
SITUAÇÕES DE DESESPERANÇA

Geoval Jacinto da Silva*

A
tradição cristã protestante, em vez do termo "pastoral", dá prefe-
rência ao termo "ministério". Já a tradição católica, especialmente
depois da 11 Conferência Geral do Episcopado Latino-Americano
- Celam (Medellín, 1968), passou a usar o temo "pastoral". É o termo que
também utilizamos aqui, entendendo-o, como o reformista Martin Lutero,
em ligação com o "sacerdócio universal", pelo qual todos os crentes são cha-
mados ao testemunho através de ações concretas. Concebemos, assim, a
pastoral como ação e testemunho de todos os participantes da comunidade
de fé. Para Castro (2000, p. 105),
Pastoral é a ação do povo de Deus na realidade cotidiana, onde, na
relação tempo/espaço, o ser humano se encontra. A preocupação básica da
pastoral é a eficácia e a relevância da fé cristã. Pastoral é também ação
intencional, sistemática organizada e coletivamente.
Dentro dessa conceituação, como escrevemos em outro trabalho, a
pastoral urbana, como ação do povo de Deus na cidade, tem como objetivo
bíblico, teológico e pastoral a criação de sinais de esperança em situações
de desesperança. A pastoral urbana não pode separar-se do símbolo de
esperança. Não é algo estático. Por isso é marcada pela dinâmica que se
desprende da prática da Igreja, que é motivada pelo Espírito de Deus a criar
sinais do Reino de Deus e a mostrar e viver a justiça divina através de
palavras e atos, tais como: curar os enfermos, expulsar os demônios, limpar
os leprosos, restaurar vidas e promover o ser humano. Na pastoral urbana
se estabelece o contraste e o conflito entre a construção da Babilônia, que
representa o esforço do ser humano, e a edificação da nova Jerusalém, onde
Deus mesmo habitará com os seres humanos.

* Professor do Programa da Pós-Graduação em Ciências da Religião e da Faculdade de


Teologia, da Universidade Metodista de São Paulo. E-mai!: geoval.si!va@metodista.br.
16 ITINERÁRIO PARA UMA PASTORAL URBANA: AÇÃO DO POVO DE DEUS NA CIDADE

o presente capítulo tem como objetivo estudar as possibilidades que


as comunidades têm de participar da ação pastoral na dimensão do urba-
no. Neste sentido entendemos que a ação pastoral toma diversas formas,
muito semelhantes ao nosso cotidiano. O tema da a pastoral urbana é,
pois, o eixo central de nosso estudo, possibilitando que o leitor possa
entender a especificidade da pastoral urbana e seus desafios num momen-
to em que o povo evangélico tem experimentado a transição do mundo
rural para o mundo urbano.
Desta forma, no desenvolver de nosso texto, tecemos breves conside-
rações sobre o desenvolvimento da cidade de São Paulo, apresentamos
rapidamente dois bairros com suas características e fazemos um pequeno
estudo comparativo de duas comunidades similares que vivem profunda-
mente os problemas do urbano e que estão procurando encontrar caminhos
para que suas ações pastorais possam indicar o envolvimento de ações que
demonstrem a presença do divino.
Nesta direção, as sustentações bíblica, teológica e pastoral nasce a
partir da experiência vivida por um dos líderes da Igreja Primitiva, conhe-
cido como Barnabé, que experimenta a transição de uma vivencia rural,
com a cultura ligada à terra e à propriedade, para envolver-se com o
mundo urbano da cidade de Jerusalém, mas mesmo assim em sua urbanida-
de descobre grandes possibilidades de envolver-se com um recém-conver-
tido, Paulo de Tarso, e integra-o a comunidade dos apóstolos. Por fim, a
título de provocação, oferecemos algumas pistas pastorais para propiciar,
tanto ao leitor, como às comunidades a busca de ações que fortalecem a
presença da Igreja na cidade.

UMA VISÃO GERAL DA CIDADE DE SÃO PAULO


E SEUS DESAFIOS
No final do século XIX, a cidade de São Paulo passou por profundas
transformações econômicas e sociais decorrentes da expansão da lavoura
cafeeira em várias regiões paulistas, da construção da estrada de ferro San-
tos-jundiaí (1867) e do afluxo de imigrantes europeus. Para se ter uma idéia
do crescimento acelerado da cidade na virada do século, basta observar que
em sua população, que em 1895 era de 130 mil habitantes (dos quais 71 mil
eram estrangeiros), chegou a 239.820 em 1900. Nesse período, a área urba-
na já se expandia para além do perímetro do triângulo formado pelo núcleo
histórico original do centro.
O século XX, com suas manifestações econômicas, culturais e artísti-
cas, passa a ser sinônimo de progresso para a cidade. A riqueza proporcio-
nada pela economia cafeeira do interior do Estado espelhá-se na São Paulo
"moderna", até então uma capital acanhada e tristonha. Trens, eletricidade,
PASTORAL URBANA 17

bondes, telefone, automóvel, velocidade... A cidade cresce, agiganta-se e


recebe muitos melhoramentos urbanos, como calçamento, praças, viadutos,
parques e os primeiros arranha-céus.
Em 1954 São Paulo comemorou solenemente o centenário de sua fun-
dação, com diversos eventos, inclusive a inauguração do Parque Ibirapuera,
hoje a principal área verde da cidade. Nessa década inicia-se o fenômeno
de "desconcentraçâo" do parque industrial de São Paulo, que começou a
se transferir para outros municípios da Região Metropolitana, principalmen-
te os do chamado ABC Paulista (Santo André, São Bernardo do Campo e
São Caetano do Sul), além de Diadema, Os asco e Guarulhos, bem como
para o interior do Estado (Campinas, São José dos Campos, Sorocaba).
Esse declínio gradual da indústria paulistana insere-se num processo de
"terceirização" do município, acentuado a partir da década de 1970. Com
isso, as principais atividades econômicas da cidade se ligaram eminentemente
à prestação de serviços e ao comércio (shopping centers, hipermercados etc).
As transformações no sistema viário procuraram atender às novas necessida-
des criadas com a expansão da cidade e da área metropolitana. Assim, em
1969, foram iniciadas as obras do metrô paulistano.
A população da Grande São Paulo cresceu na última década, de cerca
de 10 para 16 milhões de habitantes. Essa expansão populacional veio acom-
panhada do agravamento das questões sociais e urbanas (desemprego, trans-
porte coletivo, habitação, problemas ambientais) que nos desafiam como uma
"boca de mil dentes" na transição do século XX para o século XXI.

OS BAIRROS DO IPIRANGA E DE PINHEIROS

IpIRANGA
Os campos de Piratininga, onde em 1554 se implantou a cidade de São
Paulo, de início, foram povoados lentamente. Por volta de 1850, a comu-
nidade local ainda era de apenas 1.500 habitantes, distribuídos em cerca de
cem residências, espalhadas pela colina ribeirinha do rio Tamanduateí. A
localização privilegiada desse núcleo urbano no caminho que levava ao mar
favorecia a concentração dos habitantes e, concomitantemente, a expansão
dos sítios e das fazendas nos arredores.
Um pouco fora do centro histórico da cidade, surgiria o Ipiranga, que
se tornaria notório quando, em 7 de setembro de 1822, às margens do
riacho que deu nome ao bairro, D. Pedro I proclamaria a Independên-
cia do Brasil. Nos anos subseqüentes começariam a ser construídos ali
o Monumento do Ipiranga e o atual Museu Paulista, mais conhecido
como Museu do Ipiranga. Integrando o Parque da Independência, esses
dois memoriais, inaugurados, respectivamente, em 1895 e 1922, represen-
18 ITINERÁRIO PARA UMA PASTORAL URBANA: AÇÃO DO POVO DE DEUS NA CIDADE

tam o principal marco de referência desse tradicional bairro paulistano,


que também foi conhecido por suas industrias têxteis.
Com uma área de 30 quilômetros quadrados, o Ipiranga é hoje um
conglomerado urbano com mais de 550 mil habitantes, cerca de 4,9% da
população do município de São Paulo. Sua estrutura ainda conta com oi-
tenta vilas, ao mesmo tempo em que ele tem também uma das maiores
favelas da cidade, a conhecida favela de Heliópolis, que abriga a população
mais carente, dos excluídos, com acesso restrito aos principais bens de
consumo e serviços públicos.

PINHEIROS
Logo depois da fundação de São Paulo, criou-se, mais afastada do
núcleo histórico pioneiro, a Vila dos Farrapos, habitada por indígenas que
se deslocaram das áreas mais próximas do centro após a instalação, ali, dos
jesuítas. A área começou a ser ocupada a partir de 1562, quando recebeu
o nome de Nossa Senhora dos Pinheiros. Apesar de muitos duvidarem de
que tenha havido pinheiros no local, em 1584 foi baixado um decreto pela
Câmara Municipal que previa multa de 500 réis para quem cortasse qual-
quer árvore desse tipo no bosque da rua São José, atual rua Paes Leme. A
região passou a ser colonizada efetivamente no início do século XX, com
o nome de Sítio do Rio Verde. Note-se que o bairro também já foi conhe-
cido por Risca-Faca, por causa de alguns pontos ocupados por botecos e
indivíduos mal-encarados em determinada época de sua história.
Em 1924, ainda só se chegava ao local a cavalo ou a pé. No centro do
bairro havia um local que, transformado em importante ponto de trocas
comerciais, é conhecido até hoje como Largo da Batata. Naquela época, a
atual Vila Madalena, no limite norte do bairro, contava com cerca de dez
casas de alvenaria e o restante eram barracos. A eletricidade apareceu por
lá apenas em 1928. Somente na década de 1950, as ruas de terra passariam
a ceder lugar ao asfalto. A vila foi ganhando, em seu arruamento, os con-
tornos de um bairro planejado. Antes disso, a existência do Cemitério de
São Paulo movimentou a região, integrando-a à rotina da cidade.
A partir da década de 1960, se instalaria na região de Pinheiros, na
margem esquerda do rio do mesmo nome, a Cidade Universitária, ocupada
pela Universidade de São Paulo, que passou a abrigar uma população sig-
nificativa de estudantes, funcionários e professores. De se destacar também
que o bairro contém em sua parte mais alta, o Hospital das Clínicas, hoje
integrado à Universidade de São Paulo. A propósito, data de 1915 a assi-
natura de um acordo entre o governo do Estado de São Paulo e a Fundação
Rockfeller para a construção da Faculdade de Medicina e Cirurgia de São
Paulo. Esse instrumento também previa a criação de um hospital a ser uti-
PASTORAL URBANA 19

lizado no aprimoramento dos estudantes e, ao mesmo tempo, no atendi-


mento da população mais carente da capital paulista e também do inte-
rior do Estado. O hospital foi construído em 1938, dois anos depois da
criação da Universidade de São Paulo, recebendo o nome de Hospital
das Clínicas e sendo oficialmente inaugurado em 19 de abril de 1944.
Ele ainda é um dos principais da cidade, sendo considerado o maior
complexo hospitalar da América Latina.

IGREJA METODISTA NO IPIRANGA E EM PINHEIROS


A Igreja Metodista chegou ao bairro do Ipiranga em 1929, por iniciativa
da Igreja Metodista Central de São Paulo. Tem hoje 203 membros, cujas
atividades, segundo o seu site, se voltam para dois cultos aos domingos, a
escola dominical, reuniões de oração nas manhãs de terças-feiras e tardes das
quartas-feiras, curso de trabalhos manuais às quintas-feiras e o Ministério de
Ação Social. De se destacar o Ponto Missionário da Favela de Heliópolis, com
atividades aos sábados e domingos, numa casa alugada de três cômodos. De
início a igreja trazia crianças, jovens e adultos para as atividades valendo-se
de um ônibus fretado. Quando deixou de fazê-lo, percebeu que não contava
maia com crianças e nem com jovens. Há dois anos o local foi declarado
espaço de missão para esses públicos e hoje o cenário começa a mudar.
Quanto ao bairro de Pinheiros, uma edição de 2007 do boletim da igreja
metodista local escreve, de forma resumida sobre ela: "Fundada em 1940,
nasceu com um grupo de evangélicos que residiam no bairro e não tinham um
pastor nem templo para congregar [a população]. O pastor metodista
Hermógenes de Almeida Prado congregou e pastoreou aquele rebanho, esta-
belecendo vinculo eclesiástico com a Igreja Metodista Central de São Paulo.
Realiza dois cultos aos domingos e dois durante a semana, mantém uma es-
cola dominical e reuniões de orações". O mesmo boletim dá conta da presen-
ça missionária da igreja, do Projeto Samuel Rangel (para pessoas da terceira-
idade, ligado à Amas - Associação Metodista de Ação Social), do trabalho
com crianças, adolescentes, população em situações de rua, gestantes e bebês.
As duas igrejas, do Ipiranga e de Pinheiros, fundadas pela Igreja
Metodista Central de São Paulo, tem mais de cinqüenta anos. Desenvolvem
atividades similares e enfrentam os mesmos tipos de problemas (falta de
estacionamento, segurança limitada, espaço reduzido, prédio na vertical
com escadas, alto custo de manutenção, falta de pessoal para participar dos
ministérios, dificuldade de locomoção de um bairro para outro etc.).

A PASTORAL URBANA
Abordamos aqui, de início, os fundamentos bíblico-teológicos da
temática, fazendo um pequeno estudo de caso de Barnabé, segundo os re-
20 ITINERÁRIO PARA UMA PASTORAL URBANA: AÇÃO DO POVO DE DEUS NA CIDADE

latos do livro dos Atos dos Apóstolos, procurando oferecer paradigmas


para a inserção do povo de Deus na cidade.

FUNDAMENTOS BÍBLICO-TEOLÓGICOS
No livro dos Atos dos Apóstolos, Lucas registra o ingresso, na comu-
nidade apostólica, de "José, a quem os apóstolos deram o sobrenome de
Barnabé, que quer dizer filho de exortação". E continua: "Levita, natural de
Chipre, como tivesse um campo, vendendo-o, trouxe o preço e o depositou
aos pés dos apóstolos (At 4,36 e 37).
No presente estudo, o que nos interessa é entender o ingresso de
Barnabé na comunidade dos discípulos na cidade de Jerusalém e como ele
desenvolve uma prática pastoral urbana tão significativa que foi o respon-
sável por introduzir Paulo de Tarso na comunidade dos discípulos.
O ingresso de Barnabé na comunidade inicia-se com uma entrega
incondicional dos recursos obtidos pela venda de uma propriedade. Paulo
Richard (2001, p. 63~64, apud Gianastacio, 2002) afirma que devemos in-
terpretar a venda do campo por Barnabé não somente como um ato de
desprendimento, mas como uma ruptura com o passado. Lembramos a ação
contraria de Judas, que com o preço de sua iniqüidade comprou um campo
(Lc 1,18). O campo, nos casos de Judas e de Barnabé, simbolizavam a
integração à institucionalidade judaica. Judas trai Jesus, rompe com o grupo
dos doze e volta atrás. Barnabé rompe com o passado e integra-se à comu-
nidade apostólica.
A atitude de Barnabé, de vender sua propriedade, traduz uma decisão
clara por viver na cidade. "Na cidade estão sempre em conflitos as ambições
pessoais e a solidariedade social. Alguns escolhem a solidariedade, outros
escolhem a ambição pessoal" (Comblin, 1996, p. 12). Segundo o testemu-
nho do texto bíblico, Barnabé fez uma escolha pela solidariedade e assumiu
os riscos desta opção.
Barnabé percebe a grandeza e as possibilidades desta nova comunidade
que está surgindo e coloca toda a sua confiança na nova instituição. Em
contrapartida, também recebe dos apóstolos toda a confiança para fazer a
transição do judaísmo para o helenismo. Barnabé, sabendo da desconfiança
dos apóstolos com relação a Paulo, é sensível aos problemas da cidade que
"matava os profetas", chamando a si a responsabilidade de introduzir Paulo
na comunidade dos apóstolos.
Diante da situação de desconfiança dos discípulos, até compreensível
em razão dos antecedentes de Paulo, Barnabé assume a responsabilidade de
abrir os novos caminhos. Lucas afirma que, depois da chegada de Paulo a
Jerusalém e diante da rejeição velada dos apóstolos, Barnabé, com seu
conhecimento da cidade, torna-se o guia para Paulo. "Mas Barnabé, toman-
PASTORAL URBANA 21

do-o consigo, levou-o aos apóstolos; e contou-lhe como ele vira o Senhor
no caminho, e que este lhe falara, e como em Damasco pregara em nome
de Jesus. Estava com eles em Jerusalém, entrando e saindo, pregando
ousadamente em nome do Senhor (At 9,27-28).
Barnabé é a pessoa-chave para acompanhar Paulo, no contexto urba-
no, que tem seus códigos próprios de comunicação e, por sua natureza, pode
contribuir para desmotivar qualquer pessoa que esteja em processo de for-
mação. E, no caso da cidade de Jerusalém, já desde os tempos do Antigo
Testamento, os profetas reclamavam que os seus moradores tinham posto
sua confiança na cidade em vez de colocá-la em Deus.
No caso de Barnabé, Lucas afirma que Barnabé caminha com Paulo,
acreditando no seu testemunho. O caminhar com ele é um movimento cons-
tante que exige tempo e energia. Possivelmente Paulo conhecia muito bem
a vida urbana da cidade de Jerusalém. Ele cresceu e viveu o tempo todo
naquela região. Entretanto, Barnabé, no contexto da cidade, possibilitou a
Paulo experimentar o sentido da "renovação através da renovação da mente".
Schneider (1995, p. 16-20) afirma que o "evangelho leva a uma renovação do
modo de pensar, a partir do discernimento daquilo que Deus quer".
A pastoral da cidade requer disposição e tempo para o exercício do
acompanhamento. Ela tem uma dimensão individual, mas é também comu-
nitária. Barnabé tira Paulo do anonimato, abre portas e pede que a comu-
nidade dos discípulos possa recebê-lo como um novo convertido que, erran-
te, depois de sua experiência do caminho de Damasco, precisa ser acolhido
na comunidade. Pois é nos grandes centros urbanos que as pessoas se tor-
nam desconhecidas e precisam da pastoral de acolhimento. Tanto Paulo
como Barnabé são frutos de quem rompe com o passado e busca acolhimen-
to na nova comunidade de fé e nela deseja plenamente participar a partir
da experiência com o Senhor ressuscitado.

ALGUMAS PISTAS PAS'l'üRAIS


1. Quais são as práticas pastorais que nascem desta experiência de
Barnabé com Paulo em Jerusalém?
• Uma pastoral de solidariedade.
• Uma pastoral de integração da pessoa na comunidade.
• Uma pastoral de analise da realidade social, religiosa da cidade.
2. Outra questão que se coloca é: para onde dirigir o nosso olhar
diante de tantos desafios?
Nosso desejo último é que Deus possa habitar plenamente na cidade.
A cidade é convivência, vida participada, e essência dessa convivência é
que Deus habite com os seres humanos. É aí que se cumpre a promessa: "Eu
serei seu Deus, e ele me será filho" (Ap 21,7).
22 ITINERÁRIO PARA UMA PASTORAL URBANA: AÇÃO DO POVO DE DEUS NA CIDADE

3. Por fim, quais são as pistas pastorais que se desprendem desta


consciência da presença de Deus na cidade?
• Uma pastoral de comunhão, porque Deus está presente, manifes-
tando seu amor se manifesta em plenitude, e esta plenitude de amor produz
seu efeito próprio, que consiste em unir os seres humanos entre si para a
construção do novo céu e da nova terra.
• Uma pastoral de integração da igreja na cidade, de tal maneira que
o reconhecimento de outras iniciativas propicie a construção de parcerias
com vistas ao trabalho de libertação e transformação da cidade.
• Uma pastoral de visibilidade de Deus no trabalho, nos bens ma-
teriais, nos valores econômicos e nas riquezas, colocando esses recursos
a serviço da comunidade numa dimensão ecumênica de serviço ao pró-
ximo e a Deus.
• Uma pastoral litúrgica que possibilite a reconciliação do ser humano
consigo mesmo e com o próximo e com toda a obra da criação.
Finalmente, não é nosso propósito determinar qual é o modelo de ação
de pastoral urbana que melhor se ajuste na realidade de uma metrópole.
Nosso objetivo é oferecer pistas pastorais para que cada comunidade a partir
de suas particularidade e sua cosmovisão possa encontrar caminhos para que
a mensagem de esperança seja colocada e vivenciada pelo ser humano em
contesto de anuncio do reino de esperança.

REFERÊNCIAS

CASTRO, Clovis Pinto Por uma fé cidadã: a dimensão pública da Igreja. São Paulo: Loyola, 2000.
COMBLIN, [oseph. Teologia da cidade. Trad. de Célia M. Leal. São Paulo: Paulinas, 1991.
GREENW AY, Roger S. Apóstoles a la ciudad. Michigan: I. R. Cristiana, 1981.
GIANASTACIO, Vanderlei. A prática pastoral das igrejas de Jerusalém, Antioquia e Éfeso. Disser-
tação (Mestrado em Ciências da Religião) - Universidade Metodista de São Paulo, São Bernardo
do Campo, 2002.
ROLOFF, Jürgen. Hechos de los Apóstoles. Madrid: Cristiandad, 1984.
RICHARD, Pablo. O movimento de Jesus depois da ressurreição: uma interpretação libertadora dos Atos
dos Apóstolos. São Paulo: Paulinas, 2001.
SOUZA, César. O momento da sua virada. São Paulo: Editora Geme, 2004.
SCHNEIDER, H. Exerçam a cidadania de modo digno do evangelho de Cristo: o evangelho na cidade.
In: BOBSIN, Oneide (org.). Desafios urbanos à Igreja. São Leopoldo: Sinodal, 1995.
SITES SOBRE A CIDADE DE SÃO PAULO:
http://www.jbcultura.com.br/nelly/tmunicipal.htm. Acesso em: jun. 2007.
http://www.independenciaoumorte.com.br/?q=node. Acesso em: jun. 2007.
http://pt. wikipedia.org/wiki/Pinheiros_ (bairro_de_S%C3%A3o_Paulo). Acesso em: jun. 2007.
ENTRE A CIDADE E AS COMUNIDADES:
UMA LEITURA SÓCIO-PASTORAL

Antonio de Lisboa Lustosa Lopes *

O que se poderia dizer sobre questão já tão abordada no âmbito da


teoria e da prática, mesmo que ainda não tenha sido suficiente-
mente considerada num efetivo inter-relacionamento dessas duas
realidades (cidade-comunidade) mutuamente implicadas? Quando se pensa
ou se fala sobre o urbano, parece haver uma ligação direta e restritiva à
cidade e uma comparação nostálgica com relação ao rural. De onde partir
é uma questão que se impõe. O que considerar com maior relevância entre
estes elementos é um dilema difícil de ser resolvido. Ou seja, já se leu e ou-
viu muito sobre o urbano e o desafio de escrever sobre este tema emerge,
à primeira vista, com dimensões que parecem ser intransponíveis.
Não obstante, o caráter de desafio da temática desperta o interesse no
sentido de tentar descobrir formas diferenciadas de abordagem, como pos-
síveis elementos subsidiários para a vida cotidiana dos indivíduos habitantes
das cidades, que são marcados pela urbanidade, além de constituírem um
sem-número de agregações comunitárias eminentemente religiosas.
T ematizar a cidade implica adentrar uma realidade assinalada por muitas
configurações, devido ao dinamismo interno de auto-organização, bastante
comum aos sistemas amplos e complexos.
Olhando para este universo complexo, emergem dúvidas e impasses
sobre o tipo de ação que o mundo urbano reclama para as comunidades
eclesiais. Para onde caminham as ações de grupos, movimentos e comuni-
dades religiosas do momento atual no campo urbano onde se entrecruzam
vidas desperdiçadas e vidas ainda por viver, porque são vítimas da expro-
priação da própria existência? Não dá para conceber a cidade sem a diver-
sidade, assim como não é possível considerar a comunidade sem a unidade.
Neste sentido, é possível compatibilizar cidade e comunidade?

* Mestre em Teologia Prática pela Pontifícia Faculdade de Teologia Nossa Senhora da


Assunção (São Paulo) e doutorando em Ciências da Religião na Universidade Metodista
de São Paulo. E-mai!: pe.lisboalustosa@yahoo.com.br.
24 ITINERÁRIO PARA UMA PASTORAL URBANA: AÇÃO DO POVO DE DEUS NA CIDADE

Talvez não seja a compatibilidade destas duas instâncias o real problema


da pastoral urbana, mas a apreensão das contradições que se mostram hoje
bastante comuns ao mundo urbano e aos movimentos e às comunidades
eclesiais. Neste breve ensaio, se tentará problematizar o tema do urbano e da
comunidade eclesial, com uma aproximação do pensamento de um dos nossos
pensadores epocais. Ele é de origem polonesa, mas adotou a Inglaterra como
morada, desde quando foi acolhido em exílio, depois que teve sua cátedra
cassada e foi banido de sua terra. Estamos falando de Zygmunt Bauman, um
teórico cujo pensamento e cuja palavra passeiam com desenvoltura pelo
universo das relações humanas, as quais ele considera por demais frágeis,
devido ao contexto atual de liquidez de nossos tempos (Bauman, 2004).
Sua abordagem tematiza o que, à primeira vista, parece não ser impor-
tante de se levar em conta; por isso, faz emergir com relevância substancial
questões que estão presentes no dia-a-dia da vida dos seres humanos dos
tempos hodiernos. Ele recorre aos clássicos do pensamento filosófico, socio-
lógico e literário, ao mesmo tempo em que publica pensamentos de autores
contemporâneos não tão sentidos como relevantes no interior das abordagens
teóricas do humano e do mundo. Sua forma de discurso é transversal, apon-
tando para um estilo onde nenhuma fronteira científica parece constituir
obstáculo intransponível para o espírito de inquirição cirúrgica e abertura
ecumênica no que tangencia os seres humanos, o tempo e o espaço nos quais
se encontram. Não obstante, argumenta com uma maturidade típica de quem
desenvolveu uma aguda consciência dialética da atividade intelectual. Daí,
a sua afirmação de "que os pensamentos, embora possam parecer grandiosos,
jamais serão grandes o suficiente para abarcar a generosa prodigalidade da
experiência humana, muito menos para explicá-la" (Bauman, 2004, p. 16).

o DESAFIO DA IDENTIDADE
Nos tempos atuais existe uma forte tendência à privatização da esfera
pública, o que torna o pertencimento e a identidade negociáveis e revo-
gáveis. Devido aos deslocamentos freqüentes dos indivíduos, as identidades
tornaram-se flutuantes.
"A imagem da 'fraternidade' é o símbolo de se tentar alcançar o impos-
sível" (Bauman, 2005, p. 16). Transgredir fronteiras pode permitir apreender
a inventividade e a engenhosidade humanas ocultas. Identidade é algo a ser
inventado, portanto, alvo de esforço. O pertencimento em crise demanda
esforço para forjar a identidade. Segundo Bauman (2005, p. 30),

quando a identidade perde as âncoras sociais que a faziam parecer natural,


predeterminada e inegociável, a 'identificação' se toma cada vez mais impor-
tante para os indivíduos que buscam desesperadamente um 'nós' a que pos-
sam pedir acesso.
ENTRE A CIDADE E AS COMUNIDADES: UMA LEITURA SÓCIO-PASTORAL 25

Hoje existem grupos mediados pela tecnologia, o que caracteriza uma


perspectiva virtual de totalidade onde se pode aderir e abandonar facilmen-
te, por isso o aspecto de fragilidade, com um significativo recuo na capaci-
dade de interagir com pessoas reais. A sociedade dos cartões de créditos
elimina as distâncias e atenua os empecilhos entre o que se espera ou deseja
(Bauman, 2005, p. 54). Existe uma liquefação veloz das instituições sociais
e isso afeta a questão da identidade. O termo cidadania está imerso em uma
confusão de sentido, senão num vazio do mesmo, devido ao desmantelo das
instituições sociais e, sobretudo, do Estado que hoje, mais do que antes, não
está de confiança. "O Estado-nação não é mais o depositário natural da
confiança pública" (Bauman, 2005, p. 51), a qual se encontra exilada do
universo comum das relações humanas, como que à deriva.
Constata-se, atualmente, uma ênfase sobre a "vitalidade do viver espon-
tâneo" (Bauman, 2005, p. 59). Por sua própria natureza, as emoções e sen-
sações são "tão frágeis e efêmeras, tão voláteis quanto as situações que as
desencadearam". Na era líquido-moderna, "uma identidade coesa, firmemente
fixada e solidamente construída seria um fardo, uma repressão uma limitação
da liberdade de escolha". O que se verifica é um "encolhimento do tempo
disponível para prever e planejar". "Substituímos os poucos relacionamentos
profundos por uma profusão de contatos pouco consistentes e superficiais".
A extrema relevância do "já" suplanta a tematização do eterno. Ocorre
uma verdadeira "erosão da essência". E isto afeta visceralmente a questão
da identidade, sobretudo no que concerne ao situar-se neste mundo de
relações rarefeitas. A flutuação dos relacionamentos humanos gera uma
inquietude, ao mesmo tempo em que reclama a necessidade de responsabi-
lidade com elementos que possam ser considerados identitários.
Neste sentido, considerando a possibilidade da religião pós-moderna,
Bauman (1998, p. 205) diz que"... o inefável é uma parte tão integral da
maneira humana de estar no mundo quanto a rede lingüística com que
tentamos (... ) captá-lo".
Para ele,

a moderna fórmula da vida humana na terra foi articulada em função de uma


estratégia agudamente alternativa: intencionalmente ou por omissão, os seres
humanos estão sozinhos para tratar as coisas humanas e, por isso, as únicas
coisas que importam aos seres humanos são as coisas de que os seres humanos
podem tratar. Tal premissa pode ser considerada triste, e uma razão de deses-
pero, ou, ao contrário, uma causa de animação e otimismo: os dois pontos de
vista, porém, são decisivos apenas para as vidas devotadas à reflexão filosó-
fica, ao mesmo tempo em que só aparecem em raros 'momentos filosóficos'
das vidas comuns (Bauman, 1998, p. 212).
26 ITINERÁRIO PARA UMA PASTORAL URBANA: AÇÃO DO POVO DE DEUS NA CIDADE

Há quem esteja fora do alcance do reparo, da possível "reconstrução


cultural". Diante disso, qual é a atitude plausível? A "destruição criativa"?
O que fazer com os desordeiros neste "tempo em que vivemos agora, na
nossa parte do mundo"? A modernidade desenhou um quadro de identidade
a ser criada, a ser realizada, uma vez que a destituiu do caráter de atribui-
ção. Identidade é, portanto, projeto, responsabilidade individual. Projeto
que atinja a ordem social e a vida individual (Bauman, 1998, p. 30/1).
Nos nossos tempos o que se encontra é um tipo de eu flutuante, de-
vido a tempos de incertezas e inseguranças. O terceiro mundo parece não
compor mais o espaço político mundial. A dependência da grande maioria
dos países frente a um pequeno grupo de duas dezenas de países ricos cresce
de modo assustador. O mundo está compondo um processo ingente de
desordem com o movimento universal de desregulamentação. O mercado
possui, enfaticamente, uma barbarizante "cegueira moral". A efemeridade
dos laços humanos e sociais está num estado generalizado e degradante no
nível da sociedade e também em âmbito de redes menores de vizinhanças.

o DESAFIO DA COMUNIDADE
É muito importante ter em vista que as palavras carregam consigo sig-
nificados e sensações (Bauman, 2003, p. 7). Por isso, o que se sente frente
ao termo comunidade é a evocação de um reduto cálido, cômodo e acon-
chegante. Ele traz à mente um emaranhado de significados e sensações dos
quais se sente falta e dos quais se depende para uma vida segura e confian-
te. A liberdade e a segurança são necessárias para que se viva, mas não
podemos vivê-las de modo concomitante na mesma medida de nossa von-
tade. Apesar disso, "sendo humanos, não podemos realizar a esperança, nem
deixar de tê-la" (Bauman, 2003, p. 11). E isto não invalida a necessidade
de se ter em mente que não vale a pena crer que existem soluções que
dispensem ponderações e correções.
Comunidade é um espaço de entendimento, que se sustenta em um
sentimento recíproco que cria vínculos. No interior da roda do aconchego
que é a comunidade, as pessoas não são obrigadas a provar nada e, por isso,
não obstante o que façam ou não façam, podem esperar simpatia e ajuda.
Para Bauman, há um quê de mesmidade nisso. Ele aduz que, frente aos
demais agrupamentos humanos, a comunidade é "distinta" (tem visibilidade
o seu começo eo seu fim), "pequena" (quem a integra pode vê-la) e "auto-
suficiente" (é um arranjo integral).

A partir do momento em que a informação passa a viajar independente de


seus portadores, e numa velocidade muito além da capacidade dos meios
ENTRE A CIDADE E AS COMUNIDADES: UMA LEITURA SÓCIO-PASTORAL 27

avançados de transporte (como no tipo de sociedade que todos habitamos nos


dias de hoje), a fronteira entre o 'dentro' e o 'fora' não pode mais ser
estabelecida e muito menos mantida (Bauman, 2003, p. 18).
Os nossos tempos apontam para a constatação de que parece não
haver uma convergência duradoura entre a lógica e os sonhos humanos. "A
perda da inocência é um ponto sem volta. Só se pode ser verdadeiramente
feliz enquanto não se sabe quão feliz se é" (Bauman, 2003, p. 15). O colap-
so da comunidade suscita a invenção da identidade. Com uma dura afirma-
ção, o autor adverte acerca da relação forte entre a situação crítica da
comunidade e o problema da identidade. Esta, segundo ele, "brota entre os
túmulos das comunidades, mas floresce graças à promessa da ressurreição
dos mortos" (Bauman, 2003, p. 20).
A modernidade cria seres desenraizados, com a idéia de uma liberdade
reduzida à "capacidade de fazer com que as coisas sejam realizadas do modo
como queremos, sem que ninguém seja capaz de resistir ao resultado, e muito
menos desfazê-lo" (Bauman, 2003, p. 27). Esta perspectiva denota que, à
medida que a emancipação de uma parte vai se tomando realidade, a supres-
são de outra parte toma-se também real. É criada uma reconfiguração do
"sentido de comunidade", coadunado com uma "nova estrutura de poder"
(Bauman, 2003, p. 36), com "uma rotina artificial e construída".
À categoria de desenraizamento Bauman acrescenta a do "desenga-
jamento", uma forte característica que os tempos atuais carregam, ligada ao
"princípio estratégico louvado e praticamente exibido pelos detentores do
poder" (Bauman, 2003, p. 42). Os poderosos não estão mais interessados em
regular os outros e, principalmente, não estão mais a fim de serem regula-
dos. Ninguém está mais disposto a supervisionar a ordem.
Recorrendo a Pierre Bourdieu, Bauman diz que se chegou a um estado
de precariedade permanente, "insegurança quanto à posição social, incerteza
sobre o futuro da sobrevivência e a opressiva sensação de 'não segurar o pre-
sente', o que produz uma inaptidão para elaborar projetos e procurar realizá-
los. Existe uma tendência generalizada ao desaparecimento, sobretudo no que
diz respeito aos relacionamentos humanos. No campo do trabalho,
empregos tidos como permanentes e indispensáveis, do tipo "impossível passar
sem eles", se evaporam antes que o trabalho esteja terminado, habilidades
outrora febrilmente procuradas, sob forte demanda, envelhecem e deixam de
ser vendáveis muito antes da data prevista de expiração; e rotinas de trabalho
são viradas de cabeça para baixo antes de serem aprendidas. A "porção de
comida" no suposto fim do caminho se desloca ou apodrece mais rápido e
antes que mesmo o mais inteligente dos ratos tenha aprendido como chegar
até ela (Bauman, 2003, p. 46).
28 ITINERÁRIO PARA UMA PASTORAL URBANA: AÇÃO DO POVO DE DEUS NA CIDADE

Com a liquefação dos laços humanos experimenta-se hoje uma confi-


guração eclipsada de comunidade.

A sina de indivíduos que lutam em solidão pode ser dolorosa e pouco atra-
ente, mas firmes compromissos a atuar em conjunto parecem prometer mais
perdas do que ganhos. Pode-se descobrir que as jangadas são feitas de mata-
borrão só depois que a chance de salvação já tiver sido perdida (Bauman,
2003, p. 59).

Seguindo a leitura baumaniana, nota-se que, além de tudo o que é


verificado nos tempos modernos, se assiste a uma progressiva separação
daqueles que cresceram em termos econômicos e sociais, que dispensam as
iniciativas das agregações comunitárias, pois vêem que o que ganham em
grupo é perfeitamente possível ganhar individualmente, com o esforço pes-
soal e isolado, sem contar que energia e recursos seriam demandados num
engajamento comunitário (Bauman, 2003, p. 50). Isto é o que Bauman
chama de "secessão dos bem-sucedidos". É uma nova elite que se configura,
principalmente, com uma extraterritorialidade, que dispensa vínculos
(Bauman, 2003, p. 53) e se impõe pela densidade das escolhas, que são
comprometimentos perfeitamente revogáveis. Neste caso, "o vínculo cons-
tituído pelas escolhas jamais deve prejudicar, e muito menos impedir, esco-
lhas adicionais e diferentes. O vínculo procurado não deve ser vinculante
para seus fundadores". A vida pode ser agradável e sensível mesmo que
sobre instabilidades.
Na verdade, conforme a linha de reflexão conduzida por Bauman (2003,
p. 54-55), o que está sendo desenhado é um modelo de comunidade marcado
muito mais pela estética do que pela ética. Comunidades extraterroriais são
instantâneas, imediatamente experimentáveis e descartáveis. A localização
torna-se relativa, porque o relevante não é mais o lugar, mas o estar.
Não obstante todo este movimento de liquefação, grassa nos tempos
atuais a força de quem detém o saber e de quem compõe um número sig-
nificativo que compartilha os mesmos princípios e ações. Dá certa segurança
ter noção de que as aspirações que se têm são as mesmas de outrem, o que
constitui a força impositiva da massa.

Na política-vida que envolve a luta pela identidade, a autocriação e a auto-


afirmação são os cacifes, e a liberdade de escolha é ao mesmo tempo a prin-
cipal arma e o prêmio mais desejado. A vitória final de uma só tacada re-
moveria os cacífes, inutilizaria a arma e cancelaria a recompensa (Bauman,
2003, p. 61).
ENTRE A CIDADE E AS COMUNIDADES: UMA LEITURA SÓCIO-PASTORAL 31

A memória e a capacidade de compreender permitem aos seres hu-


manos uma inclinação para a organização. A corporificação da sujeira
atinge um grau máximo na determinação de seres humanos que são vistos
como impedimentos para uma boa organização ambiental. Neste caso,
alguns certos tipos de seres humanos estariam vinculados a este modelo
de enquadramento, de certo modo "pré-selecionado e pré-interpretado".
O senso comum forma um "fundo de conhecimento à mão", que
faz parte da intersubjetividade cultural, com ênfase ao suposto de "pers-
pectivas recíprocas". Cremos sem refletir que nossas experiências são
tipificadas de modo a permitir uma "permutabilidade de pontos de vista".
Este é um postulado que acede à visão de "semelhança essencial dos
seres humanos". A compreensão das situações vividas por outrem decorre
da suposição de minha inserção da mesma modalidade de situações. A
aceitação da semelhança é um pressuposto.
A partir deste rumo de reflexão, que impactos decorrem do apareci-
mento do estranho num contexto de ordem?

Cada ordem tem suas próprias desordens; cada modelo de pureza tem sua
própria sujeira que precisa ser varrida. Mas, numa ordem durável e resistente,
que se reserve o futuro e envolva ainda, entre outros pré-requisitos, a proi-
bição da mudança, até a ocupação de limpeza e varredura são partes da or-
dem (Bauman, 1998, p. 20).

A reconfiguração da ordem pode produzir novos estranhos, até mes-


mo tornando estranho o que até então não era. A cotidianidade humana
hoje é muito marcada pelo temor dos estranhos. A idéia de um "mundo
perfeito" é um grande risco, porque afirma que é possível a persistência de
uma identidade pura através dos tempos. No plano neoliberal, as iniciativas
de preservação da pureza são assumidas como "estratégias de desregu-
lamentação e privatização". Será, então, necessário sacrificar o estranho
para garantir a preservação da ordem pura?
No processo de enquadramento atual, para se conservar puro é necessário

mostrar-secapazde ser seduzido pela infinitapossibilidade e constante renovação


promovida pelo mercado consumidor, de se regozijarcom a sorte de vestir e
despir identidades, de passar a vida na caça interminável de cada vezmais inten-
sas sensações e cada vez mais inebriante experiência (Bauman, 1998, p. 23).

Portanto, quem são os estranhos? Neste modo em que está se configuran-


do o mundo, são todos aqueles que não são adequados aos parâmetros
32 ITINERÁRIO PARA UMA PASTORAL URBANA: AÇÃO DO POVO DE DEUS NA CIDADE

cognitivos, morais e estéticos de um tipo de sociedade. Eles passam por cima


de limites tacitamente considerados fundamentais. É por isso que se torna
urgente perguntar: quem pode agüentar bem por longo tempo um estado
de reclusão?
Quem desborda os limites converte-se, por conseguinte, num estranho.
A ordem já traz na sua definição a real possibilidade de estranhos serem
formados, ao mesmo tempo em que se potencializam os que são "cogni-
tivamente ambivalentes".
Os estranhos não só afetam, como impregnam os demais (são viscosos),
atingem a liberdade do indivíduo. No entanto, esta aderência é um elemen-
to das habilidades e recursos, dos quais o ser humano dispõe. Por isso a
estreita relação entre liberdade e poder. Para o impotente, o mundo é cheio
de "armadilhas".

A viscosidade dos estranhos, é o reflexo de sua própria falta de poder. É essa


sua carência de poder que se cristaliza nos seus olhos como a terrível força
dos estranhos. Cada um é viscoso para o outro; mas cada um combate a vis-
cosidade do outro em nome da sua própria pureza (Bauman, 1998, p. 42).

Os tempos atuais marcam uma era "heterofílica". A procura de afirma-


ção da identidade contrasta com um mundo plural e díferençado. Como
relacionar com o diferente todos os dias e sempre? A relação frente aos
estranhos está se reconfigurando, embora também venha se desenhando
uma "indústria suburbana de horrores" (Bauman, 1998, p. 48).
Bauman tipífica as estratégias que são engendradas nesta ácida "rela-
ção" com os estranhos. A primeira é a antropofágica, que implica destruí-
los, devorá-los, ou anular as diferenças, tomando-as semelhanças (isto é por
assimilação); enquanto que a segunda é a antropoêmica, que implica a
expurgação, o banimento (vomitá-los). Estas estratégias tomam evidente o
fato de que a exclusão impede os pobres de viverem questões existenciais
candentes como a comensalidade, o conúbio, o comércio (relacionamento
e intercâmbio de emoções).
Tudo isso desperta um sentimento de que a casa toma-se a origem
da moralidade, ao mesmo tempo em que é o penoso caminho da justiça.
A inter-humanidade implica, hoje, principalmente, a não-indiferença.

A tolerância da diferença bem pode ser aliada à categórica recusa da solida-


riedade; o discurso monológico, em vez de dar lugar a um discurso dialógico,
cindir-se-á em uma série de solilóquios, com os falantes não mais insistindo
em ser ouvidos, mas se recusando também a escutar (Bauman, 1998, p. 103).
ENTRE A CIDADE E AS COMUNIDADES: UMA LEITURA SÓCIO-PASTORAL 33

A REALIDADE DOS TURISTAS E DOS VAGABUNDOS


Vivemos atualmente "a destemporalização do espaço social"
(Bauman, 1998, p. 110). O universo dos objetos disponibilizados já na pro-
jeção imediata da descartabilidade suplanta o mundo da durabilidade.
Este contexto permite identificar duas categorias de viventes: os turistas
e os vagabundos. Turista é a "epítorne" da evitabilidade identitária; mis-
tura os sólidos e desprega o fixo; vive uma mobilidade gerida por neces-
sidades e sonhos, em nome de "liberdade, autonomia e independência".
Cada presente experienciado deve ter a sua própria "chave de sentido".
As relações epidérmicas não criam compromisso com o futuro. É uma vida
episódica, e "o episódio é um evento fechado em torno de si mesmo".
Vagabundos são os que moram fixos enquanto postos aos dedicados
serviços dos turistas, são os restos; movem-se, ao contrário dos turistas, porque
sentem o mundo como inóspito. "Turista e vagabundo são as metáforas da
vida contemporânea". O primeiro é marcado pela mobilidade e pela façanha
da não-pertença ao lugar onde está, coloca-se dentro e fora ao mesmo tempo,
evitando a proximidade, tem a peculiaridade de não chegar; ao passo que
segundo é o alterego do turista, serve como depósito de entulhos.

INDIVÍDUO E COMUNIDADE
Percebe-se, finalmente, que Bauman navega bem nas questões humanas,
sociais e políticas. E, como a ação pastoral se encontra bem situada dentro do
eixo igreja-mundo, é imprescindível destacar que os temas que ele traz para o
campo de discussão teórica são substanciais no que conceme à práxis religiosa.
Ele manifesta uma grande sensibilidade para com temas relativos ao processo
de humanização, focalizando a questão da globalização e problematizando a
mesma quando esta se constitui num progresso que não inclui o ser humano.
Hodiernamente se vivem processos permanentes de descobertas, o que
implica criação e recepção. Experimentar implica a admissão de riscos.
Retomando Foucault, Bauman afirma que a crítica é um risco e tem como
tarefa mediatizar a facilitação da dificuldade. Segundo ele, "a noção de
verdade pertence à retórica do poder" Bauman, 1998, p. 143). Daí o fato
de os seres humanos emergirem como modalidades de simulacros. "O mun-
do dá a impressão de uma contínua interação entre os artistas do jogo da
vida, diversamente habilidosos e diversamente inteligentes".
Segundo nosso autor, para estudar a realidade da liberdade humana,
é importante considerar que se está caminhando em terrenos onde circulam
culturas, o que demanda questões concernentes a: "pluralidade de culturas"
e "fidelidades culturais", que implicam "liberdade de escolhas", "estru-
turas culturais", que implicam disponibilidade de opções.
34 ITINERÁRIO PARA UMA PASTORAL URBANA: AÇÃO DO POVO DE DEUS NA CIDADE

A diferença entre os liberais e os comunitaristas com relação ao enten-


dimento de diferença é que para os primeiros a diferença é exterior ao in-
divíduo e está no plano da expansão das possibilidades de escolhas, ao
passo que para os segundo se trata de um dado internalizado, ou seja, o
grupo se constitui no limite, o indivíduo escolhe entre aquilo que já encontra
dado pelo grupo.
Para as duas perspectivas de abordagem, a escolha é uma possibilidade da
qual não se pode desviar e isto faz emergir questões concernentes à identidade,
significativa, histórica ou individual, e à fidelidade dos membros. Os grupos
continuam se existe nos seus membros uma "lealdade ativa". Como articular
vontade e inevitabilidade? Será papel do Estado legislar a coerção? Como se
conjugam "direitos como indivíduos" e o "objetivo da sobrevivência"?
Parece que há o esforço comunitário de garantir um poder de imposi-
ção, de manipulação dos possíveis. Enquanto referência fontal das "escolhas
significativas" para a vida, o Estado faliu! Por isso, reforçam-se as "minorias
em luta". Na verdade há um "colapso das estruturas em que as identidades
eram habitualmente inscritas" (Bauman, 1998, p. 238). O Estado promove
o desenraizamento das fidelidades locais.
A acelerada sucessão de futuros se dilui numa sucessão de presentes.
Então, o que pode o presente com relação ao futuro? Por si mesma, a vida
não parece mais evidente. O comunitarismo é um "nacionalismo de segun-
da"? Parece haver uma "angústia da incerteza que devora as reservas psíqui-
cas do indivíduo pós-moderno". A comunidade resulta das ou precede as
escolhas individuais? Como respaldar os conceitos relativos à liberdade
individual: autoconstituição, auto-afirmação e autodefinição? Como é pos-
sível restabelecer a confiança? Onde se pode vislumbrar a "linha que separa
os tormentos da individualidade da agonia da loucura"?
Hoje a liberdade de escolha é "um atributo graduado", uma "variável
estratíficadora importante". De que vale uma liberdade sem meios disponíveis?
O indivíduo é um "livre selecionador". Comunitarismo e liberalismo são na
verdade, "projeções de sonhos nascidos da contradição real inerente à difícil
situação dos indivíduos". Por fim, a leitura de Bauman sugere que os concei-
tos têm uma raiz genética, mas vão adquirindo novas formas à medida que se
desenvolvem. Tudo parte de uma experiência pessoal, temporal, singular.

REFERÊNCIAS
BAUMAN, Zygmunt. Identidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2005.
_ _o Amor líquido: sobre a fragilidade dos laços humanos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2004.
_ _o Comunidade: a busca por segurança no mundo atual. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2003.
_____. O mal-estar da pós-modernidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998.
SUNG, Jung Mo. Sujeito e sociedades complexas: para repensar os horizontes utópicos. Petrópolis: Vo-
zes, Z002.
A TEOLOGIA PRÁTICA:
MODERNIDADE E URBANIDADE

Ed Renê Kivitz*

E
ste ensaio tem como objetivo mostrar a relevância da teologia prá-
tica como uma das disciplinas teológicas da modernidade, ao lado
das teologias bíblica, sistemática e histórica. Além de estabelecer a
distinção entre a Teologia Prática e a Teologia Pastoral, desejo esclarecer
as competências de cada uma das disciplinas teológicas da modernidade,
seus objetos de estudo específicos e sua relevância no contexto eclesial da
América latina, notadamente no Brasil.
Filoramo (1999, p. 5) afirma que

hoje assistimos, nas mais diferentes disciplinas, a um processo crescente de


especialização, resultado de uma fragmentação de pesquisa impensável há
poucos anos. Para contrabalançar esse movimento centrífugo, fez-se presente
a exigência de estudos que reproponham o problema do sentido e da
globalidade dos processos de pesquisa, que formam, com suas especializações
e seus métodos, os diferentes campos disciplinares.

o estudo do fenômeno religioso e das práticas pastorais das igrejas cristãs


em suas diferentes tradições não escapa desta fragmentação, quer seja em seus
pressupostos teóricos, quer em sua ação pública. O esforço em delimitar
adequadamente o espaço acadêmico da teologia prática em relação ao estudo
da práxis religiosa na sociedade é, portanto, plenamente justificável.

SOBRE O CONCEITO DE TEOLOGIA


O termo teologia é anterior ao protestantismo e mesmo ao cristianis-
mo. Segundo Gross (2001, p. 325-6), Platão, em sua República, falava de

* Pastor da Igreja Batista de Água Branca, em São Paulo (SP), mestre pelo Programa de
Pós-Graduação em Ciências da Religião, da Universidade Metodista de São Paulo.
E-mail: edrenekivitz@uol.com.br.
36 ITINERÁRIO PARA UMA PASTORAL URBANA: AÇÃO DO POVO DE DEUS NA CIDADE

teologia como "narrativas míticas sobre os deuses contadas pelos poetas, es-
pecialmente Homero e Hesíodo". Para Platão, a teologia era "um discurso
poético, uma ordenação de mitos, uma narrativa simbólica entre divinda-
des". Já Aristóteles identificava teologia com metafísica, o que fazia da
teologia não apenas uma ciência, mas a ciência primeira e verdadeira, pois
tratava "não de símbolos, mitos e narrativas, mas da realidade do divino
como ele realmente é". Em sua Metafísica, Aristóteles disse que "a ciência
mais divina é a ciência das coisas divinas".
A teologia entrou no cenário do cristianismo através dos apologetas ou
pais da Igreja, pois, conforme Floristán (2002, p. 123), "a teologia [cristã,
acrescentaria eu] nasce quando a fé cristã se confronta com a cultura grega
e a política romana". Gross (2001, p. 327) comenta que

estes articula dores teóricos foram os primeiros teólogos cristãos propriamente


ditos. Teologia então era ciência, e os apologetas eram os defensores do cristia-
nismo diante da ciência que lhes era contemporânea. Com a posterior elevação
do cristianismo a religião oficial, a teologia cristã passou a ser ciência imperial.
Outros mitos e símbolos foram vistos como não-teologia, como não-ciência, e,
mais ainda, como erros a serem não só combatidos discursivamente, mas até
esmagados pela força. Assim, teologia, que era e continuou a ser teologia cristã,
particular, se tomou metafísica. [ ) Uma mudança nesta situação ocorreu apenas
com o advento da modernidade. [ ) Os efeitos repressores da identificaçãoentre
verdade metafísica e teologiacristã foram combatidos a partir da crítica à religião.
Alguns desenvolvimentos posteriores da modernidade levariam ainda além, até
à crítica da própria metafísica como ciência. [...) Todo discurso sobre divindades
seria ficcional - e ficcional em geral identificado com falso. Com isso a teologia
perdeu seu estatuto de verdade, pelo menos no âmbito acadêmico.

Essa visão histórica revela os mal-entendidos atuais a respeito do con-


ceito de teologia, geralmente associado à teologia cristã, tanto no protestan-
tismo quanto no catolicismo romano. Mesmo Houaiss (2005) define o termo
como "ciência ou estudo que se ocupa de Deus", numa alusão ao Deus da
tradição judaico-cristã, pois no contexto da cultura ocidental, a utilização de
maiúscula para a palavra "deus" implica a designação específica do Deus
judaico-cristão, ou meramente cristão. Jack Milles (1997, p. 15) comenta que,

no Ocidente, Deus é mais do que um nome familiar; ele é, queira-se ou não,


um membro virtual da família ocidental. Pais que não querem saber dele não
conseguem impedir que seus filhos venham a conhecê-lo, pois não só todo
mundo já ouviu falar dele, como todo mundo, mesmo hoje em dia, tem algo
a dizer a respeito dele.
A TEOLOGIA PRÁTICA: MODERNIDADE E URBANIDADE 37

Devemos ter consciência, portanto, de que, etimologicamente, "teolo-


gia" trata do estudo a respeito não apenas de Deus conforme compreendido
e crido na tradição judaico-cristã, como também, e principalmente, de
deuses ou do que se relaciona com o divino em termos genéricos. Isso jus-
tifica a necessária distinção entre "teologia" e "teologia cristã", sendo esta
última nosso objeto de reflexão nesta monografia.

Floristán (2002, p. 119) comenta que

não é tarefa fácil determinar o que é teologia. Etimologicamente significa


discurso ou palavra sobre Deus. Entende-se de diversas maneiras: ciência das
conclusões da fé, entendimento da fé, fé em estado de ciência, fé que indaga
compreender etc. Em todo caso, quando a teologia se compreende como
inteligência da fé vitalmente acolhida ou como reflexão da palavra de Deus
experimentada em comunidade e comunicada evangelicamente no mundo, a
tarefa teológica tem relação com a vida cristã e seu exercício pastoral.

Dentro dos mesmos parâmetros, Comte-Sponville (2003, p. 591) en-


tende teologia como "um discurso divino racional (um lógos), feito por
homens, mas referente ao divino. No mais das vezes, apóia-se, pelo menos
nas religiões reveladas, no que Deus teria dito de si mesmo".
Clodovis Boff (1999, p. 44) discute a distinção entre o objeto formal e
o objeto material da teologia. Afirma que o objeto formal da teologia é "Deus
enquanto revelado", isto é, "o Deus bíblico, o Deus do Evangelho", pois
Deus pode ser tratado a partir de outras perspectivas e, nesse caso, seria
Deus como objeto material, isto é,

como construção cultural, fenômeno social, dado psicológico, objeto artístico


e por aí a fora. Ora, uma coisa é Deus na ótica dos psicólogos ou dos antro-
pólogos, outra é o Deus dos teólogos e dos fiéis. Um é o Deus da fé, outro é
o Deus do marxismo, o Deus das filosofias, e assim por diante.

Partindo da lógica de que, "se Deus é o objeto principal da teologia e


se tudo tem alguma relação com Deus, então tudo é teologizável" (Boff, C.,
1999, p.46), o autor afirma que
todos os outros objetos da teologia - objetos segundos - são tratados sob a
mesma ótica, ou seja, à luz da fé, ou seja, a partir do Deus revelado (...) Ser
teólogo é assumir uma ótica particular. É ver tudo à luz de Deus. Em outra
palavras, é ver em tudo o Divino: Deus e sua ação. Pode-se assim dizer que
o teólogo usa os óculos da fé. Numa outra figura, fazer teologia é Cristo nos
pegar pela mão e nos levar pelo mundo, fazendo-nos ver as coisas como ele
as vê (Boff, c., 1999, p. 45).
38 ITINERÁRIO PARA UMA PASTORAL URBANA: AÇÃO DO POVO DE DEUS NA CIDADE

Em resumo, "de que trata a teologia", em palavras de C. Boff (1999,


p. 43)?

De Deus e tudo o que se refere a ele, isto é, o mundo universo: a criação, a


salvação e tudo o mais. E isso está já na palavra mesma "teologia": estudo de
Deus. Mas como Deus é o "Determinante de tudo", então, qualquer coisa
pode ser objeto de consideração do teólogo. Deus, com efeito, pode ser de-
finido como a Realidade que determina todas as outras realidades.

A TEOLOGIA PRÁTICA E A TEOLOGIA PASTORAL


A correta definição dos termos é imprescindível ao processo acadêmi-
co. O uso popular das expressões nem sempre corresponde à realidade de
seus significados, e esse é um caso típico de confusão. Tomar como sinôni-
mos os termos "teologia prática" e "teologia pastoral" é comum e até certo
ponto compreensível, pois remetem ao universo da "prática pastoral"
comumente entendida como ofício sacerdotal ou atividade do pastor de
uma comunidade cristã local. O que é uma pastoral? Seria o mesmo que
ação da pastoral? O que é uma teologia pastoral? Seria o mesmo que teo-
logia a respeito das atividades e responsabilidades do pastor? Nesse caso,
estes conceitos estariam ligados com a prática pastoral, e naturalmente com
a teologia prática, isto é, a teologia a respeito da atividade pastoral, ou seja,
a teologia pastoral? Bastam umas poucas perguntas encadeadas, mudando-
se e somando-se os termos, utilizando-se (inadvertidamente) um para expli-
car o outro, que a coisa se embaraça de vez.
Afinal de contas, o que se entende por "teologia prática" e "teologia
pastoral"? Em que se distinguem? Como se relacionam? Como afetam a vida
eclesiástica? Como subsidiam a ação dos pastores (líderes eclesiásticos) locais?
O que se entende por pastoral? Quais os diferentes usos do termo "pastoral"?
Como se relaciona com a "teologia prática" e a "teologia pastoral"?
Longuini (2002, p. 50) afirma que "o estatuto acadêmico primeiro, de
acordo com a tendência protestante européia, coloca a teologia prática
como a 'ciência-mãe' e a teologia pastoral como um departamento dela".
Friedrich Schleiermacher (1768-1834) é considerado o pai da "teologia
prática", isto é, o "fundador da disciplina" (Floristán, 2002, p. 104) e,
segundo Schurr, "o primeiro a conceber à teologia prática o caráter de
disciplina científica e em considerá-la como raiz e coroa na organização das
especialidades teológicas'".

1 Em Teologia pastoral en el siglo XX (apud Floristán, 2002, p. 105).


A TEOLOGIA PRÁTICA: MODERNIDADE E URBANIDADE 39

Para Schleiermacher a teologia era, assim como a medicina, o direito ou a


arquitetura, uma ciência positiva, que servia a um objetivo prático: conduzir
a Igreja. Foi uma idéia nova e revolucionária de subsumir toda a teologia sob
o objetivo da direção da Igreja e reconstruir sistematicamente as diferentes
disciplinas e suas tarefas a partir deste objetivo. (...] Lembramos aqui sua
definição de teologia: A teologia cristã é, assim, a mais alta representação
(essência) daqueles conhecimentos científicos e regras necessários para uma
direção harmônica da Igreja (Schneíder-Harpprecht, 1998, p. 38).

Schleiermacher faz distinção entre: teologia filosófica, com caráter


apologético; teologia histórica, que trata da sociologia da Igreja; e teologia prática,
que tem como objetivo "pôr os movimentos do ânimo causados por aconteci-
mentos da Igreja na ordem de uma atividade refletida (prudente)" (Schneider-
Harpprecht, 1998, p. 39). O conceito é ampliado por Geoval J. da Silva (2001,
p. 199), quando afirma que a teologia prática "tem por finalidade possibilitar
o uso de instrumentos de análise crítica das ações da Igreja, os quais são desen-
volvidos através do método científico das ciências humanas".
Para o bom entendimento do tema, é imprescindível considerar
Casiano Floristán (2002, p. 149-194), que, embora transite de maneira não
tão clara entre os termos "teologia pastoral" e "teologia prática", apresenta
a teologia prática principalmente como (1) teologia da ação eclesial e (2)
teologia da práxis de libertação. Para desenvolver a teologia prática como
teologia da ação eclesial, ou "reflexão científica sobre a ação da Igreja"
(Floristán, 2002, p. 155), o autor cita Arnold - que define a teologia pas-
toral como "visão teológica da essência da Igreja enquanto agente da pas-
toral e de suas ações eclesiais" - e Karl Rahner - que a define como "teo-
logia da prática da Igreja".
Floristán usa em seu texto e citações os termos "teologia pastoral" e
"teologia prática" quase como sinônimos. Mas o conceito de pastoral é
importante e ajuda a esclarecer a questão entre as duas teologias. Ele con-
sidera a pastoral em duas dimensões: ad intra [para dentro] e ad extra [para
fora]. Por um lado, é a ação dos cristãos na construção da comunidade
cristã como ekklesia e, por outro, é a ação dos cristãos em relação "à práxis
de libertação da sociedade, cujo sujeito coletivo é o grupo humano simples-
mente" (Floristán, 1990, p. 20). Para Libânio (1982, p. 11), "pastoral é a
Igreja em marcha. É a sua face prática. [...] Pastoral é o agir da Igreja no
mundo". Clovis de Castro (2000, p. 104) explica que "pastoral, no âmbito
católico, significa a ação do povo de Deus na comunidade eclesial e, prin-
cipalmente, na realidade social; tem como referência fundamental ser uma
atualização da práxis de Jesus e, como horizonte, o reino messiânico do
40 ITINERÁRIO PARA UMA PASTORAL URBANA: AÇÃO DO POVO DE DEUS NA CIDADE

shalom". Já na tradição protestante, segundo Geoval da Silva (2001, p.


212), "embora tenha havido diversos esforços liderados pelo Centro Evan-
gélico Latinoamericano de Estudios Pastorales (Celep), o termo não encon-
trou o lugar no continente, preferindo, assim, as igrejas o uso do termo
'ministério', como serviço de alguma forma sustentado pelo modelo
pastorcêntrico". Orlando Costas (1975, p. 111) diz que "pastoral é toda
aquela ação que busca correlacionar o evangelho, ou a fé cristã, com as
situações concretas do viver diário".
Note-se que todas as definições abordam direta ou indiretamente a
pastoral como ação do povo de Deus. A respeito disso, Floristán (2002, p.
136) é enfático em advertir que não se trata de qualquer ação, mas de uma
ação qualificada, e por isso prefere a palavra grega práxis, cujo significado
influenciado pelo marxismo "equivale a uma ação revolucionária que exige
compromisso e consciência crítica, visando a uma mudança radical, a partir
da mutação da raiz do homem e da sociedade".
Nesta ciranda de termos a respeito da teologia prática e da teologia
pastoral: ação, práxis, ekklesia, sociedade, mundo, transformação, revolução,
ad intra, ad extra, carecemos de mais esclarecimentos para juntar as peças
deste quebra-cabeças e encontrarmos definições satisfatórias para os termos.
Longuini Neto (2002, p. 51) esclarece que

a formulação de uma teologia pastoral surge de uma necessidade prática,


portanto, de uma teologia prática. São Gregório Magno (540-604) elaborou
um regulamento que visava preparar os sacerdotes para o ministério pastoral.
A necessidade básica, portanto, era a preparação dos clérigos. O conceito e
a teologia já nascem direcionados para uma atividade que estava restrita ao
clérigo, ao sacerdote. No quarto sínodo de Latrão (1215), foi decretado que,
junto com o magister especializado no ensino das Escrituras, deveria haver
outro especialista para educar o clero no trabalho pastoral e na práxis da
confissão. Para diferenciar esta tarefa da teologia especulativa, denominou-
se aquela de teologia prática.

Silva (2003, p. 203, 20S) diz que a teologia pastoral está mais
relacionada com a vida eclesial, que sua ênfase está no ensino do "santo
ofício" e que, portanto,

se o objetivo primeiro da teologia pastoral é o estudo das questões relacionadas


com a vida e as ações da Igreja, parece legítimo entender que o conteúdo da
teologia pastoral está alicerçado, diretamente, nas questões relacionadas com
o processo de formação de liderança das Igrejas; isto é, a teologia pastoral tem
A TEOLOGIA PRÁTICA: MODERNIDADE E URBANIDADE 41

sua atenção voltada para atender, num primeiro momento, aos interesses da hie-
rarquia eclesial. [...] A teologia pastoral está vinculada aos centros de formação e
visa à construção crítica no interior da vida da Igreja enfrentando sua autentici-
dade de fazer teologia, a partir das ações das comunidades.

Schleiermacher é, portanto, muito feliz ao distinguir a "teologia" da


"teologia prática": "ele afirmava que teologia é uma ciência para a práxis
(scientía ad praxín) enquanto a teologia prática é a ciência da práxis (scientía
praxeos)" (Hoch, 1998, p. 66).
Em síntese, compreendo que a teologia prática é uma disciplina da te-
ologia que estuda e subsidia, a partir de método científico próprio.? a práxis
da Igreja em relação à missão no contexto do reino de Deus. A teologia
pastoral está inserida na teologia prática - é um departamento da teologia
prática -, que se ocupa da formação dos líderes eclesiais, sempre à luz da
missão no reino de Deus. Pastoral é a práxis propriamente dita da Igreja,
incluindo todos os cristãos, no cumprimento da missão no Reino de Deus.

A TEOLOGIA PRÁTICA E AS DISCIPLINAS


TEOLÓGICAS NA MODERNIDADE

Júlio Zabatiero (2003) compreende que

o termo teologia prática designa um ramo das disciplinas teológicas na


modernidade, ao lado da teologia bíblica, sistemática e histórica. Durante a
maior parte da sua história moderna, a teologia prática se distinguia das
demais disciplinas teológicas na medida em que seu objeto era a estruturação
das igrejas cristãs e o ministério ordenado das mesmas. A partir dos anos
1960, porém, as distinções disciplinares da teologia moderna foram perdendo
a sua validade, e as fronteiras entre os diferentes tipos disciplinares de teo-
logia se tomaram cada vez menos demarcadas. Na América latina, por exem-
plo, a teologia da libertação é um exemplo típico dessa transformação no
campo teológico. O objeto primário da teologia da libertação é a práxis cristã
no mundo, o que a configuraria mais propriamente como um tipo de teologia
prática. Entretanto, a temática geral das principais obras da teologia da liber-
tação inclui uma série de aspectos que pertenceriam mais propriamente à
teologia sistemática. Nos Estados Unidos, uma importante tendência teológica
denominada teologia pública expressa a mesma situação que a teologia da

2 Para aprofundamento no tema do "método científico" recomenda-se consultar: Chalmers


(1993); Beveridge (1980); Lakatos & Marconi (1991); Popper ( 1975). E no tema do
"método da teologia": Floristán (2002, p. 351-392; Silva (2001, p. 197-214).
42 ITINERÁRIO PARA UMA PASTORAL URBANA: AÇÃO DO POVO DE DEUS NA CIDADE

libertação na América Latina. Na Europa, a obra de [ürgen Moltmann é exem-


plo desta fluídifícação de fronteiras. A partir dos títulos e sumários de seus livros
principais, o que Moltmann faz seria propriamente chamado de teologia sistemá-
tica nos moldes modernos. Entretanto, a forte ênfase que ele dá à ação cristã e
à crítica da modernidade pode igualmente classificar a sua obra como de teo-
logia prática.

Dentre as disciplinas teológicas modernas, a teologia prática é a mais


recente e ainda luta por encontrar seu lugar em diálogo e cooperação com
as demais disciplinas, mais antigas e consagradas: bíblica, histórica e sis-
temática. Hoch (1998, p. 26) afirma que "a teologia é uma totalidade
indivisível" e complementa seu pensamento citando Bohren, que defende
que, "em cada disciplina, esta totalidade indivisível precisa tornar-se
transparente. Cada disciplina só pode realizar de forma legítima o seu tra-
balho específico no horizonte dessa unidade da teologia" (Bohren, apud
Hoch, 1998, p. 27).
Nesta "totalidade/unidade indivisível", como a teologia prática se dis-
tingue das demais disciplinas teológicas e qual sua contribuição para todas
e cada uma cumpra seu papel a partir de sua própria especificidade? Segun-
do Hoch, 1998, p. 27), teologia bíblica se ocupa em refletir "sobre o tes-
temunho da fé da antiga e da nova aliança, mais precisamente sobre os
textos que aquelas comunidades de fé nos legaram e sobre o contexto no
qual se deu seu testemunho". A teologia histórica se ocupa com "a trajetória
da Igreja através dos tempos e sobre a forma como ela enfrentou os embates
com os novos contextos culturais, religiosos e ideológicos". Já a teologia
sistemática "desempenha a tarefa de explicar e atualizar os conteúdos da fé
cristã, buscando oferecer orientação para a conduta cristã".
E a teologia prática, qual seria sua tarefa específica? Bohren (apud
Hoch, 1998, p. 31) acredita que "a tarefa específica da teologia prática seja
lembrar as demais disciplinas da vocação prática de toda teologia", pois,
como defende Hoch (1998, p. 31 e 33), "enquanto a pastoral é a o agir da
Igreja no mundo, a Teologia Prática é a teoria da pastoral" e, nesse caso, a
teologia prática é a "consciência crítica da Igreja e da própria teologia no
sentido de lembrá-las da sua finalidade última: a prática eficaz da fé. O
compromisso da teologia prática é comprometer a teologia e a Igreja com a
prática". É fundamental compreender que a pastoral tem uma teoria, nesse
caso, a teologia prática, pois, no dizer de Leonardo Boff (1961, p. 31), "uma
Igreja só pode se considerar adulta quando dispõe de uma reflexão séria que
acompanha suas práticas".
Hoch (1998, p. 64) sugere também que
A TEOLOGIA PRÁTICA: MODERNIDADE E URBANIDADE 43

a teologia em sentido amplo tem como horizonte o tripé: Deus - mundo -


Igreja. O específico da teologia prática consiste em assumir uma função de
mediação prática entre Deus, o mundo e a Igreja. Pela via da práxis, ela fa-
cilita o trânsito entre estes universos. Neste sentido, a teologia prática deve
ser compreendida como hermenêutica da práxis cristã. [...] Ela ajuda a Igreja
a interpretar e atualizar a palavra de Deus, enquanto dá à palavra uma vida
que ultrapassa o instante e o lugar nos quais ela foi pronunciada ou transcrita.
[...] Ela tem a função de ajudar a Igreja a explicitar a mensagem do evange-
lho de modo que o mundo e a própria Igreja acertem o passo com Deus. [...]
A função da teologia prática é promover a comunicação entre a tradição
cristã, a Igreja e o mundo contemporâneo".

De fato, esta articulação entre Deus, o mundo e a Igreja é imprescin-


dível para um labor teológico saudável e relevante. Leonardo Boff (1981,
p. 16) adverte que

a Igreja não pode ser entendida nela e por ela mesma, pois está a serviço de
realidades que a transcendem, o reino e o mundo. Mundo e reino são as
pilastras que sustentam todo o edifício da Igreja. Primeiro apresenta-se a
realidade do reino, que engloba mundo e Igreja. Reino - categoria utilizada
por Jesus para expressar sua ipsissima imentio - constitui a utopia realizada no
mundo (escatologia); é o fim bom da totalidade da criação em Deus finalmen-
te liberta e totalmente de toda imperfeição e penetrada pelo divino que a
realiza absolutamente. Reino perfaz a salvação em seu estado terminal. O
mundo é o lugar da realização histórica do reino. Na presente situação ele se
encontra decadente e marcado pelo pecado; por isso o reino de Deus se cons-
trói contra as forças do anti-reino; impõe-se sempre um oneroso processo de
libertação para que o mundo possa acolher em si o reino e desembocar no
termo feliz. A Igreja é aquela parte do mundo que, na força do Espírito, aco-
lheu o reino de forma explícita na pessoa de Jesus Cristo, o Filho de Deus
encarnado em nossa opressão, guarda permanente memória e a consciência
do reino, celebra sua presença no mundo e em si mesma e detém a gramática
de seu anúncio, a serviço do mundo. A Igreja não é o reino mas seu sinal
(concreção explícita) e instrumento (mediação) de implementação no mundo.

Diante destas considerações podemos entender o papel e a função im-


prescindível da teologia prática. Dentre as disciplinas teológicas, a saber, as
teologias histórica, bíblica e sistemática, nenhuma delas tem como horizonte de
responsabilidade articular Deus - reino - mundo - Igreja, pois tal horizonte
extrapola em muito seus objetivos específicos e seu conteúdo de reflexão.
44 ITINERÁRIO PARA UMA PASTORAL URBANA: AÇÃO DO POVO DE DEUS NA CIDADE

Conforme exposto, a teologia histórica trata da trajetória da Igreja, do que


"a Igreja já foi". A teologia bíblica trata dos documentos legados pelas co-
munidades da Aliança: as Escrituras consideradas canônicas, o que equi-
vale dizer que se ocupa da fonte de autoridade que determina "o que a
igreja deve ser". A teologia sistemática, por sua vez, trata de explicar os
conteúdo da fé cristã, isto é, se ocupa de "o que a Igreja crê". A
especificidade da teologia prática é que ela deve promover o diálogo entre
as demais disciplinas, de modo a dar relevância ao que a Igreja é em cada
momento histórico (teologia histórica), explicitando para o mundo o que a
Igreja crê (teologia sistemática), à luz de seu documento autoritativo (teo-
logia bíblica).
Além de promover o diálogo entre as disciplinas teológicas,

a teologia prática adquire seu perfil próprio como disciplina teológica a me-
dida que se entende como intercessão entre a teologia e as ciências empíricas
que lhe são afins [sociais e humanas]. A sua tarefa consiste em refletir, em
parceria com essas ciências, sobre a forma mais eficaz de viabilizar a utopia
do reino de Deus neste mundo (Hoch, 1998, p. 65).

A necessidade de diálogo com as demais disciplinas teológicas se justifica


pelo fato de que a teologia prática é essencialmente uma teologia, uma forma
específica de realizar a tarefa teológica. Já a necessidade de diálogo com as
ciências empíricas se justifica pelo fato de que "não existem métodos "teoló-
gicos" de investigação da realidade. Os métodos existentes são regidos por um
estatuto próprio de natureza estritamente secular" (Hoch, 1998, p. 7).
Meu objetivo neste ensaio foi mostrar a relevância da teologia prática
como uma das disciplinas teológicas da modernidade, ao lado das teologias
bíblica, sistemática e histórica. Para cumprir o objetivo proposto, apresentei
definições organizadas hierarquicamente: teologia, disciplinas teológicas da
modernidade, teologia prática e teologia pastoral, no contexto dos estudos
e das pesquisas no campo das ciências da religião.
Ao longo do texto procurei mostrar que a teologia prática está ocupada
em estudar e subsidiar a práxis da Igreja, tendo a tarefa de oferecer a teoria
desta práxis, de modo a contribuir na identificação e construção de estra-
tégias que tornem eficaz a ação da Igreja.
O tema está aberto e, portanto, carece de novas e melhores definições
e considerações. Espero, entretanto, ter contribuído para um bom entendi-
mento de conceitos tão fundamentais para o estudo das práxis religiosas.
A TEOLOGIA PRÁTICA: MODERNIDADE E URBANIDADE 45

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EXCLUSÃO SOCIAL E MISSÃO
NO CONTEXTO URBANO
Douglas Nassij Cardoso *
Josué Barbosa Cordeiro**

O título deste ensaio é desafiador por incluir dois conceitos muito


amplos: "exclusão social" e "missão". Não é objetivo de seus auto-
res explorar estes conceitos à luz da missiologia e da sociologia,
campos do conhecimento também adequados a esta discussão. A perspec-
tiva deste trabalho é pastoralista, ou seja, desenvolvida a partir da teologia
prática. As necessárias incursões interdisciplinares que fatalmente ocorrerão
no desenvolvimento desta pesquisa serão acidentais, objetivando tão somen-
te auxiliar a compreensão de seus leitores.
Na teologia prática o conceito de diaconia está intimamente ligado à
missão da Igreja. Encontramos em texto de Casiano Floristán (1993, p.
655), pesquisador da área, a seguinte definição de diaconia: "A missão da
Igreja no horizonte do reino de Deus, como discipulado de Cristo a partir
do evangelho, que é a chegada de Deus e da libertação do homem, isto é,
as boas novas para os pobres".
A partir desta definição, que aponta para a libertação do homem, em
especial os pobres, procuramos delimitar nosso objeto de pesquisa. Consi-
deramos ser necessário escolher para nossa análise uma área onde a exclu-
são social e o projeto de missão coexistam. Elegemos, de forma arbitrária,
tratar da missão no contexto urbano e do fenômeno de exclusão social que
ocorre numa favela. Mais especificamente focamos a cidade de São Paulo
e sua maior favela, denominada Heliópolis, com população superior a 100
mil habitantes, localizada na zona sul da capital paulista.
Estabelecido este recorte, procuramos, para a obtenção de um estudo de
caso, identificar a presença e a ação de uma comunidade cristã e de uma

* É pastor da Igreja Presbiteriana, doutor em Ciências da Religiãopela Universidade Metodista


de São Paulo e professor de História e Teologia. E-mai!: douglasnassif@uol.com.br
** É bacharel em Direito, mestre em Ciências da Religião pela Universidade Metodista de
São Paulo, é pastor congregacional. E-mai!: jobacor@ig.com.br
48 ITINERÁRIO PARA UMA PASTORAL URBANA: AÇÃO DO POVO DE DEUS NA CIDADE

organização não-governamental (ONO) no ambiente supramencionado.


Nossa escolha recaiu sobre uma igreja de tradição reformada que atendia o
perfil delimitado, a Igreja Presbiteriana Independente, fundada em 6 de maio
de 1962, no bairro do Sacomã, nas proximidades da favela de Heliópolis.
Uma das razões ao definirmos nossa escolha foi a estratégia diaconal
dessa igreja. Ela atua em conjunto com uma ONO denominada Centro
Social Evangélico do Sacomã (Ceses), cujo presidente, Rev. Tiago Escobar
de Azevedo, nos deu pleno apoio na realização desta pesquisa. Chamou
nossa atenção esta entidade ter sido fundada em 1964, dois anos apenas
após da instalação da igreja. Nesta época estava no início a formação do
complexo habitacional que é hoje a Favela de Heliópolis. Trata-se, portan-
to, de um projeto devidamente experimentado, com mais de quatro décadas
de experiência no atendimento do mesmo público-alvo.
Pretendemos descobrir como uma igreja pode conciliar sua proclama-
ção evangelística (boas novas) e ações afirmativas junto a uma população
com sinais visíveis de exclusão social (carências na alimentação, saúde,
educação, moradia etc.).
Nossa principal intuição é que a parceria entre igreja e a ONO possa
constituir uma interessante alternativa para auxiliar a execução de projetos
de missão urbana. Entendemos que tal tipo de aliança em áreas de exclusão
social permitirá uma atuação mais objetiva da ação diaconal da Igreja, bem
como compor, através de associações com órgãos governamentais e de
empresas da iniciativa privada, de fluxo de recursos que viabilizem projetos
de interesse social.
Objetivamos analisar possibilidades que permitam opções na implan-
tação e no desenvolvimento de projetos relacionados à missão urbana.
Preocupa-nos, em especial, apresentar modelos que se adaptem a igrejas
com pequeno número de membros e de baixa arrecadação, situação majo-
ritária no cotidiano das comunidades inseridas em locais de exclusão social.
Também desejamos compreender como se realizam os projetos, quais
suas propostas iniciais, onde são realizados e de que forma são geridos.
Mesmo sabendo da limitação deste ensaio, dadas suas características locais,
tanto da igreja como da população atingida, consideramos ser importante
obter respostas a estas questões que, por certo, permitirão descortinar uma
filosofia de trabalho no exercício de ministérios em áreas de exclusão social.
Consideramos a relevância desta pesquisa ao observarmos a enorme
presença da exclusão social em nosso país. Um estudo realizado a partir do
último censo demográfico indicou que 42% das 5.507 cidades brasileiras
estavam associadas à exclusão social. Por outro lado, somente duzentos
municípios (3,6% do total) apresentaram padrão de vida adequado. A por-
centagem de excluídos no Brasil, em 2000, atingia 47,3% da população,
EXCLUSÃO SOCIAL E MISSÃO NO CONTEXTO URBANO 49

mais precisamente 80,4 milhões de habitantes, segundo análise realizada por


equipe de professores da Universidade de São Paulo, da Universidade Es-
tadual de Campinas, da Pontifícia Universidade Católica de Campinas e da
Universidade Paulista (Campos et al., 2003).
A análise da exclusão social dá-se a partir de oito indicadores que com-
põem o Índice de Exclusão Social (IES), extraídos do censo demográfico do
Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) - pobreza, violência,
escolaridade, alfabetização, desigualdade social, emprego formal e concentra-
ção de jovens - e do Sistema Único de Saúde (SUS) - homicídios.
O mesmo estudo supracitado, numa comparação entre 175 países,
revelou que o Brasil, apesar de ser a 15ª economia mundial, ocupa a 109ª
posição na classificação de exclusão social. Os quesitos que mais se desta-
caram foram: desigualdade social (169ª posição), homicídios (161ª posição)
e emprego formal (99ª posição). A mesma situação repete-se no âmbito
continental, pois somos a 4ª economia da América e ocupamos a 28ª posi-
ção no tópico de exclusão social.
No desenvolvimento deste projeto, levamos a efeito pesquisa s bibli-
ográfica e de campo. Quanto ao estudo de caso, por opção metodológica,
focalizamos o histórico organizacional do Centro Social Evangélico do
Sacomã (Ceses).

DEFININDO CONCEITOS

EXCLUSÃO SOCIAL
A exclusão social designa a ruptura da pertença de determinado grupo
de pessoas da sociedade, motivada pela incapacidade em acessar os recursos
básicos para suprir suas necessidades vivenciais ou então por outras formas
de discriminação. Situações de desigualdade social e de preconceitos, onde
ocorrem injustiça e marginalização, são formas de exclusão social. Trata-se
do resultado de um processo sócio-histórico que lança determinado grupo
para as margens da vida social.
Muitos são os tipos de exclusão social, produzindo como conseqüência
em quem a sofre marcas que passam da violência psicológica até a física,
além da incapacidade de desenvolver sua personalidade. Cristóvão Buarque
(1993) assim define a exclusão social:

Um processo (apartação social) pelo qual se denomina o outro como um ser


"à parte", ou seja, o fenômeno de separar o outro, não apenas como um
desigual, mas como um "não-semelhante", um ser expulso não somente dos
meios de consumo, dos bens, serviços etc., mas do gênero humano. É uma
forma contundente de intolerância social.
50 ITINERÁRIO PARA UMA PASTORAL URBANA: AÇÃO DO POVO DE DEUS NA CIDADE

Entre os grupos excluídos podemos destacar os representantes de mi-


norias (étnicas, religiosas e culturais); os descriminados em razão das rela-
ções de gênero (mulheres e crianças); os segregados por sua opção sexual
(homossexuais e bissexuais); os desconsiderados devido à idade (crianças e
idosos; no mercado de trabalho também existe faixas etárias"de corte"); os
que sofrem preconceitos por seus tipos físicos (obesos, deficiências, calví-
cie ...); e, de forma geral, os colocados à margem dos sistemas sociais (mer-
cado de trabalho, educação, saúde, previdência, segurança etc.). Estas ca-
tegorias não são excludentes entre si, podendo a mesma pessoa ser objeto
de um ou mais tipos de discriminação.
Atendendo delimitação proposta em nossa introdução, restringimos
nossa pesquisa à exclusão social provocada pela pobreza. Trata-se do mais
grave motivo de desafiliação social. Os que possuem melhor situação eco-
nômica sofrem menos os efeitos da segregação. Um aspecto perverso do
empobrecimento é o alijamento progressivo da vida social, política e eco-
nômica. Todo sistema social de um país tende a gerar a exclusão, quer por
problemas econômicos, políticos ou religiosos, quer por motivos relacionais.
Os prejuízos da exclusão não são apenas materiais. A pobreza atinge
seu ambiente, gerando todo tipo de problemas - físicos (doenças, en-
volvimento com drogas, violência), psicológicos (auto-estima negativa,
desespero, vergonha, apatia, depressão) e sociais (perda de status, desagre-
gação familiar, envolvimento com a criminalidade). A ausência de possi-
bilidades de romper o círculo vicioso da exclusão, que se viabilizaria atra-
vés do trabalho com salários justos e do acesso aos recursos básicos sociais
(saúde, moradia, transporte, segurança, educação e lazer) para todos, afeta
a auto-estima individual e coletiva, brutalizando as relações sociais.

FAVELA
O desenvolvimento das cidades, a partir do surgimento da revolução
industrial, foi intenso, levando ao aumento da segregação social em razão
não só do tipo, mas também do local da moradia. O mapa desta segregação
espacial pode ser traçado pela distinção do zoneamento urbano - bairros
ricos, bairros pobres e favelas: "A sociedade é formada por relações de pro-
ximidade e separação que são, antes de mais nada, relações hierárquicas"
(Bourdieu, 1999, p. 160).
O tipo e o local em que é edificada uma moradia expressa a posição de
uma pessoa ou de um determinado grupo dentro de seu contexto social.
Pode-se determinar a classe social, o estilo de vida, o nível de exclusão ou
inclusão de uma pessoa através da análise do tipo e dos conteúdos de sua
casa. Algumas pesquisas sociais atribuem valoração às dependências da casa
(número de quartos, número de banheiros) e ao acesso a bens de consumo
EXCLUSÃO SOCIAL E MISSÃO NO CONTEXTO URBANO 51

(televisão, vídeo, computador, carro, forno de micro-ondas), qualificando


os indivíduos a partir destes dados.
Podemos, assim, afirmar que a habitação é indicadora da posição do in-
divíduo, ou de um grupo de pessoas, na pirâmide social de uma cidade.
Além disto, para caracterizar a mobilidade social importa mudar de casa, de
bairro - é símbolo de ganho ou perda de status. A segregação espacial, por-
tanto, implica a manutenção das "distâncias sociais", sendo importante para
designar a que "hierarquia" alguém ou um grupo pertence.
É óbvio que tal concepção sociológica, que estigmatiza as classes sociais
através de suas áreas de habitação, faça com que o fluxo de recursos e a
vontade política do poder público priorizem os mais abastados, negligenci-
ando os que residem em bolsões de miséria. Neste processo, cada vez mais,
as camadas pobres da população são "acumuladas" nos lugares de pior qua-
lidade de vida, em áreas "invadidas" e sem a presença de qualquer infra-
estrutura básica, formando as favelas, um conjunto de habitações populares
toscas que utilizam materiais improvisados.
O crescimento deste tipo de moradia é muito rápido, desafiando a
capacidade de gestão do poder público. Nas décadas de 1950 a 1970 con-
siderava-se que o incremento do número de favelas era fruto do aumento
da industrialização nos grandes centros, fator gerador de intensos fluxos
migratórios oriundos das regiões rurais. Posteriormente, a partir da década
de 1980, a situação apresentou mudanças, diminuindo-se as migrações e
aumentando-se a expansão e formação de novas favelas pelo empobreci-
mento da população e por um novo tipo de deslocamento, intrame-
tropolitano, por conta da diminuição do índice de empregos.
É importante lembrar que a pobreza, a um só tempo causa e conseqü-
ência de grande parte da exclusão social, é multifacetada, ou seja, não
possui uma característica uniforme. Entretanto, nas favelas da periferia das
cidades encontram-se os quadros mais graves de exclusão social. Mesmo
considerando que nos bairros pobres são verificados importantes índices de
exclusão social (violência, desemprego, falta de acesso à saúde, ao transpor-
te, à educação), estas condições normalmente são menos aviltantes que as
encontradas nas favelas.
Outro fator agravante da existência de conflitos e da segregação social
é o desenvolvimento de favelas paralelamente a áreas urbanizadas. Esta
presença de duas realidades sociais, ao mesmo tempo tão próximas (geogra-
ficamente) e tão distantes (socialmente), estimula o preconceito e a violên-
cia, impossibilitando qualquer tipo de integração entre seus moradores. "A
proximidade espacial com bairros de classe média alta, urbanisticamente
organizados e providos de equipamentos e serviços urbanos, produziu forte
contraste social, servindo de evidência autodemonstrada da existência de
duas cidades (Ribeiro e Lago, 2007).
52 ITINER,ÁRIO PARA UMA PASTORAL URBANA: AÇÃO DO POVO DE DEUS NA CIDADE

MISSÃO URBANA
A importância do conceito de missão no cristianismo está intimamente
ligada aos conceitos de encarnação e serviço de Jesus. O desafio da Igreja
é proclamar e viver o evangelho a partir do estilo de missão de seu mestre:

E percorria Jesus todas as cidades e povoados, ensinando nas sinagogas, pre-


gando o evangelho do reino e curando toda a sorte de doenças e enfermida-
des. Vendo ele as multidões, compadeceu-se delas, porque estavam aflitas e
exaustas como ovelhas que não têm pastor (Mt 9,35-36).

Encontramos neste texto preocupação não somente com a pregação


das boas novas (querigma) , mas também com o ensino (didaqué) e a saúde
das pessoas (diaconia). Todas as dimensões são valorizadas; desta forma, as
boas novas devem ser aplicadas nas realidades de seu público-alvo (física,
espiritual, emocional e material). A missão da Igreja seguindo o exemplo de
Jesus deve contemplar, simultaneamente, todas estas necessidades:
É necessário deixar claro que estas ações, querigma-didaquê-diaconia não são
ações separadas ou isoladas. [Ao] mesmo tempo [em] que a igrejaproclama, ela
ensina. Ao mesmo tempo em que ensina, serve. Ao mesmo tempo em que serve,
proclama. Não podemos ter igrejas cuja ênfase está "apenas" na evangelização,
ou "apenas" no ensino, ou "apenas" no serviço (Barro, 2000, p. 25).
O texto de Mt 9, 35-36 nos revela também a pertinência da missão ao
espaço geográfico urbano: Jesus percorria cidades e povoados. A Igreja é
desafiada a percorrer de igual modo sua cidade com seus bairros, vilas e fa-
velas. O mesmo texto descreve ainda pessoas aflitas e exaustas, perfil cotidi-
ano dos habitantes das cidades, daqueles que sofrem com sua agitação, vio-
lência, pressão de diferentes formas, além das deficiências encontradas nos
diversos equipamentos sociais (escola, transporte, saúde, lazer, emprego).
Proclamar o evangelho, portanto, implica restaurar vidas em sua totalida-
de, promovendo a paz e a justiça social. Trata-se da restauração da raça huma-
na, da instalação do reino de Deus a partir do novo nascimento. Desta forma
os injustiçados, os excluídos da sociedade são objeto da missão da igreja:

o Espírito do Senhor está sobre mim, pelo que me ungiu para evangelizar aos
pobres; enviou-me para proclamar libertação aos cativos e restauração da
vista aos cegos, para pôr em liberdade os oprimidos e apregoar o ano aceitável
do Senhor. Lc 4, 18-19).

A missão urbana desafia a Igreja a levar o evangelho integral,


querigma-didaqué-diaconia, a todos os seus habitantes, seguindo o exem-
EXCLUSÃO SOCIAL E MISSÃO NO CONTEXTO URBANO 53

plo de seu mestre. Não importa o tipo de sistema opressor, seja ele político,
econômico ou social, ser Igreja exige o esforço na transformação da sacie,
dade, na implantação do reino de Deus.
As ações afirmativas da Igreja em sociedade são mais que projetos
assistencialistas visando captar novos adeptos. Trata-se de sua razão de ser
("boas obras" - Ef 2, 10), da obediência à comissão recebida de seu Senhor
("ide" - Mt 28, 18,20) e caracteriza-se por uma atividade pastoral realizada
por todos os seus membros ("sacerdócio universal dos crentes em Cristo" -
I Pe 2, 9 / Ap 1, 6) nos diversos espaços do cotidiano e não apenas por
"especialistas da fé":

"Pastoral" é um conceito essencialmente desenvolvido e utilizado na América


Latina. Pastoral é a ação da igreja no mundo, modelada em Cristo para cum-
prir a missão de Deus. É a práxis de todos os crentes - de toda a igreja. Pas-
toral não é uma tarefa exclusivamente de pastores ou [do] clero, mas a práxis
de todo o povo de Deus em missão. Cada crente é um agente pastoral para
cada ministério da igreja e das necessidades da sociedade e da cidade (Hoch,
apud Barro, 2000, p. 44).

A missão urbana conduz a Igreja à tarefa de humanizar a cidade, lu,


tando contra as barreiras do individualismo, indiferentismo e subjetivismo,
criando pontes de fraternidade, compaixão e esperança através da marca
cristã - o amor (Mt 13,35).

o CENTRO SOCIAL EVANGÉLICO DO SACOMÃ

HISTÓRICO
O Centro Social Evangélico do Sacomã, segundo os arquivos da enti-
dade, foi fundado em 14 de junho de 1964, por iniciativa de membros da
Igreja Presbiteriana Independente (IPI) do Sacomã. Um de seus fundadores,
presbítero Hilder Stutz, informou que o Ceses foi criado visando atuar de
forma efetiva junto às áreas de exclusão social do bairro, buscando traba-
lhar, a partir de sua origem, em parceria e cooperação com segmentos tanto
da iniciativa privada como de órgãos públicos.
O artigo 1Q dos estatutos sociais originais do Ceses assim o definia:
"Entidade filantrópica, que objetiva, sem fins lucrativos, assistir, no espírito
do Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo, necessitados de qualquer credo,
raça, cor ou condição social". Desde então, a entidade, em parceria com a
IPI, tem se posicionado ao lado das pessoas que correm risco ou estão em
situação de exclusão social, seu público,alvo preferencial, desenvolvendo
projetos para melhorar suas condições de vida e valorizar sua cidadania.
54 ITINERÁRIO PARA UMA PASTORAL URBANA: AÇÃO DO POVO DE DEUS NA CIDADE

o primeiro convênio foi firmado com o Serviço Social da Indústria


(Sesi), estabelecendo-se um curso de alfabetização de adultos, com classe
de quarenta alunos. Ainda em 1964, o Ceses associou-se ao Departamento
de Ação Social da Confederação Evangélica do Brasil (CEB), participando
do programa Alimentos para a Paz, que consistia de ajuda a populações
carentes e alimentação de crianças em idade escolar. Eram distribuídos seis
tipos de alimentos: leite em pó, óleo vegetal (soja), fubá, trigo, farinha de
trigo e aveia. O Ceses recebia cerca de 1.300 quilos por trimestre. Os ali-
mentos chegavam em fardos e, para as famílias assistidas, era necessário
reembalar os produtos, confeccionando cestas básicas, através de voluntários
da IPI. Ocasionalmente chegavam e eram distribuídas doações de roupas.
O programa Alimentos para a Paz era promovido pelo Comitê Intera-
mericano da Aliança para o Progresso, órgão da Organização dos Estados
Americanos (OEA) que funcionou de 1958 a 1970.
Esta parceria, com patrocínio do Church World Service e do Lutheran
World Relief, permitiu a assistência alimentar regular a 54 famílias carente,
selecionadas mediante triagem feita por assistente social contratada pelo
Ceses, e ao fornecimento de mantimentos a escolas próximas, pertencen-
tes ao município de São Paulo. Somente em uma unidade, a Escolas Agru-
padas de São João Clímaco, se atendiam cerca de oitocentos alunos. Para
implementar este convênio com a CEB, o Ceses comprometia-se a contri-
buir, sistematicamente, com cota de participação no programa.
No começo o trabalho social concentrava-se na sede, à Rua Marques
de Maricá, n. 705, no bairro do Sacomã, junto à Favela de Heliópolis. Além
dos projetos descritos, o Ceses estabeleceu convênios com advogados e
médicos voluntários, que dedicavam parte de seu tempo ao atendimento
gratuito da comunidade, e também com laboratórios, doando medicamentos
indicados por médicos. Paralelamente distribuía cestas básicas em parceria
com a Mesa Diaconal da IPI. Outro projeto auto-sustentado, denominado
Shalom, consistia de reforço escolar com monitoramento através de profes-
sores, que prestavam orientação pedagógica, religiosa, recreativa, social,
além de alimentação complementar (almoço e lanche). Por fim, havia o
Projeto Dorcas, de ensino profissionalizante, com aulas de corte e costura,
culinária, bordado, tricô, crochê, pintura, artesanato e outras atividades.
Dentro deste projeto previa-se também a realização de bazares para as fa-
mílias de baixa renda.
Uma segunda extensão destes projetos sociais foi estabelecida pelo
Ceses e pela IPI há aproximadamente trinta anos, no Jardim Botucatu, na
rua Padre Bernardo Bergem, n. 212, próximo às favelas denominadas
"Fazendinha" (jardim Botucatu) e "Evolução" (Vila Moraes). Nesta unidade
foi implantado o Projeto Boca Bonita, sem parceria externa, desenvolvido
EXCLUSÃO SOCIAL E MISSÃO NO CONTEXTO URBANO 55

pela Dra. RacheI César de Almeida, membro da IPI, que atuava como
voluntária. Os pacientes eram submetidos à triagem realizada por assistente
social. O projeto possuía uma clínica odontológica e atuava em quatro áreas
de especialização: dentística (restauração), endodontia (tratamento de
canal), periodontia (tratamento de gengiva) e cirurgia (extrações).
A última extensão do Ceses foi estabelecida há sete anos no bairro da
Vila Carioca, na Rua Alda, n. 309. Esta unidade situa-se entre as favelas de
Heliópolis e a denominada "Paraguai".
Seguindo logística estabelecida pela IPI, suas congregações são pró-
ximas da sede, localizando-se em raio de aproximadamente três quilôme-
tros, o que facilita a interação entre seus diversos projetos e o desloca-
mento de seu pessoal. Em cada unidade da IPI é desenvolvida uma exten-
são do Ceses, ocupando desta forma as instalações e os equipamentos da
igreja durante toda a semana.
Durante as quatro décadas de funcionamento sem solução de continui-
dade, o serviço prestado por esta entidade foi diversificado, atendendo as
necessidades exigidas em cada momento histórico, ajustando e coordenando
a cada projeto seu quadro de pessoal contratado, o voluntariado, os
mantenedores e as parcerias com órgãos públicos e instituições privadas.
O desenvolvimento do Ceses também pode ser notado pelo aumento da
abrangência de suas propostas. Em assembléia geral de membros, no dia 17 de
outubro de outubro de 2004, se alterou seu estatuto social, dando-se nova
redação aos artigos 2°e 3°. Suas finalidades ficaram assim definidas:

I - a proteção à família, à maternidade, à infância, à adolescência e à velhice;


II - o amparo às crianças e aos adolescentes carentes; III - a promoção da
integração ao mercado de trabalho; IV - a habilitação e reabilitação das
pessoas portadoras de deficiências e a promoção de sua integração à vida
comunitária. No desenvolvimento de suas atividades, o Ceses promove o
bem-estar de todos, sem preconceitos de origem, raça, cor, sexo, idade ou
qualquer outra forma de discriminação, prestando serviços gratuitos.

O enunciado dos artigos citados abre um enorme leque de possibilida-


des no estabelecimento e desenvolvimento de novos projetos sociais, seja
em ações voltadas à proteção da família, da maternidade e à velhice, seja
na promoção da integração ao mercado de trabalho ou no trato junto a
pessoas portadoras de deficiências.

PLANO DE AÇÃO VIGENTE


Atualmente, seguindo plano de ação traçado na última década pela IPI
e pelo Ceses, são desenvolvidas diversas frentes de assistência social, através
56 ITINERÁRIO PARA UMA PASTORAL URBANA: AÇÃO DO POVO DE DEUS NA CIDADE

de voluntários e membros da Mesa Diaconal, distribuindo cestas de alimen-


tos, remédios e material escolar. Além disto são realizadas triagens e enca-
minhamento de seus atendidos a profissionais de várias especialidades,
mantendo para isto convênio com outras instituições assistenciais (dentistas,
médicos, advogados, psicólogos e casas de recuperação de dependentes
químicos). Complementando estas ações, são oferecidas diversas oficinas, de
costura, de artesanato, de culinária, entre outras.
A proposta educacional do Ceses tem como objetivo transformar esta
realidade, investindo de maneira a resgatar a capacidade e o direito das
crianças e dos adolescentes atendidos de viverem sua cidadania de forma
digna. O serviço oferecido desta forma é múltiplo, de natureza sócio-
educativa, moral e espiritual com caráter preventivo e promocional. Busca-
se contribuir para a proteção integral, o desenvolvimento e a socialização
das crianças e dos adolescentes, em condições de vulnerabilidade, risco e
exclusão social, através das atividades facilitadoras do exercício da cidada-
nia, de ampliação do universo cultural e de vivência em grupo, respeitando
estes usuários como pessoas em desenvolvimento.

OBJETIVO
Entre os objetivos específicos do Ceses, segundo relatório de atividades
produzido por Loide Muniz Barreros, podemos citar: oferecer programação
que contemple os interesses e as necessidades das diferentes faixas etárias;
promover um ambiente facilitador do processo de socialização das crianças
e dos adolescentes; estimular e fortalecer o acesso ao ensino regular; favo-
recer o desenvolvimento físico e intelectual; assegurar um espaço de trocas
culturais e de lazer; garantir as necessidades nutricionais das crianças e dos
adolescentes de acordo com a faixa etária atendida, proporcional ao período
de permanência no equipamento; implementar um trabalho integrado entre
escola, família e comunidade; propiciar meios para o desenvolvimento de
hábitos saudáveis; promover reflexões críticas sobre valores éticos, morais,
sociais, a fim de que todos se percebam como cidadãos com direitos e
deveres, capazes de serem co-autores de suas próprias histórias.
O Ceses exerce também ação efetiva de prevenção contra a violência,
ao acolher crianças e adolescentes, retirando-as da exposição de situações
de risco encontradas nas ruas.

USUÁRIOS E FUNCIONAMENTO
Quanto aos usuários, as unidades do Sacomã (Projeto Brincar de Vi-
ver) e do Jardim Botucatu (Projeto Segunda Milha) atendem, cada uma,
sessenta crianças e adolescentes na faixa etária compreendida entre seis e
catorze anos, de ambos os sexos, sendo, portanto, centros de juventude. A
EXCLUSÃO SOCIAL E MISSÃO NO CONTEXTO URBANO 57

unidade instalada na Vila Carioca, denominada Creche Colheita de Espe-


rança, atende a sessenta crianças na faixa etária de dois a quatro anos, de
ambos os sexos. O critério de ingresso no programa exige a existência de
situação de vulnerabilidade, risco e exclusão social, caracterizada por famí-
lias que apresentem renda mensal entre zero e quatro salários mínimos.
Quanto ao funcionamento, as três unidades do Ceses seguem o mesmo
padrão, de segunda-feira a sexta-feira, no período de 7h30 às 16h30 horas,
interrompendo suas atividades no mês de janeiro para férias coletivas.

QUADRO DE PESSOAL CONTRATADO


O plano de ação da última década, estabelecendo os centros de juven-
tude e a creche, obrigou a um processo de profissionalização interna do
Ceses. Tornou-se necessária, dada a especificidade dos serviços prestados,
a contratação de funcionários com perfis definidos pelo plano de trabalho
por função. A parceria com órgãos públicos criou a exigência de determí-
nados níveis de escolaridade e da participação de programas de treinamento
e reciclagem de pessoal.
Cada centro de juventude do Ceses possui seis funcionários: uma
coordenadora (nível superior), dois educadores (nível médio), uma cozi-
nheira (nível fundamental), uma auxiliar de cozinha e uma auxiliar de lim-
peza, ambas com nível fundamental. A creche tem onze funcionários: uma
diretora (nível superior), uma coordenadora pedagógica (nível superior),
uma auxiliar de enfermagem (nível técnico), cinco auxiliares de desenvol-
vimento (nível médio), uma cozinheira (nível fundamental), uma auxiliar
de cozinha e uma auxiliar de limpeza, ambas com nível fundamental. No
total, são 23 funcionários atuando diretamente no Ceses, sendo seis em
cada centro de juventude e onze na creche. Os educadores possuem o curso
de Magistério (técnico). A partir de 2007 somente serão aceitos educadores
com nível superior (Pedagogia), segundo informação obtida de Talita Muniz
Barreros, diretora da Creche Colheita de Esperança.

INVESTIMENTO
Visando conhecer os investimentos necessários para a manutenção dos
projetos mantidos pelo Ceses, apresentamos a seguir a relação da média mensal
das despesas do último ano, 2004, reunidas em cinco contas principais:
Despesas mensais médias Valor o'

Pessoal, serviços e encargos 21.529,67 "


80,82
Alimentação e saúde 1.223,12 4,59
Expediente e servicos públicos 3.283,84 12,33
Manutenção 160,90 0,60
Diversas 440,90 1,66
Total de despesas mensai, 26.638,45 100.00

Fonte: Relatório Financeiro do Ceses, fornecido pela tesoureira Marlene Malta Correia.
58 ITINERÁRIO PARA UMA PASTORAL URBANA: AÇÃO DO POVO DE DEUS NA CIDADE

Este demonstrativo do investimento mensal do Ceses é suficiente


para demonstrar o acerto da IPI em estabelecer parceria com esta ONO
para a realização de seus projetos sociais. Sem esta associação diminuiria
significativamente sua capacidade na manutenção destes projetos. Em
análise efetuada no relatório financeiro da IPI no ano 2004, fornecido pela
tesoureira Marta Janete Cantú Silva, verificamos uma média mensal de
entradas de R$ 8.295,98, ou seja, sua arrecadação bruta é inferior à terça
parte dos gastos realizados pelo Ceses.
Ao considerarmos as entradas do período analisado do Ceses, verifica-
mos que 96,19 % são provenientes de verbas públicas, obtidas através de
convênios estabelecidos com setores de promoção social dos governos mu-
nicipal e estadual. A IPI, como parceira do Ceses, cede suas instalações para
a implantação e o desenvolvimento dos diversos projetos. Além disto a
Mesa Diaconal da IPI atua, junto com demais voluntários da igreja, no de-
senvolvimento de projetos específicos que fogem à estrutura dos centros de
juventude e da creche.

OUTROS PROJETOS
Não foram consideradas neste tópico as oficinas ocasionais realizadas
durante as atividades regulares. Da mesma forma não incluímos as palestras
educativas e os encontros de orientação com os pais.
• Projeto Dorcas: Distribuição, em convênio com a Secretaria Esta-
dual de Agricultura e Abastecimento, de cestas básicas a 150 famílias, uma
vez por mês. Distribuição de cestas básicas emergenciais, roupas, calçados,
remédios e óculos em conjunto com a Mesa Diaconal da IPI. Além disto,
é realizado o acompanhamento das famílias em suas dificuldades de saúde,
educação e trabalho, providenciando os devidos encaminhamentos.
• Projeto Vida: Encaminhamento de jovens e adultos a casas de re-
cuperação. Atendimento ocasional.
• Projeto Viva Leite: Em convênio com a Secretaria Estadual de
Agricultura e Abastecimento, entrega-se duas vezes por semana leite tipo
C. São atendidas cem famílias, devidamente cadastradas, recebendo dois
litros cada uma delas.
• Projeto Musical: Formação de um coral infantil, dotado de instru-
mentos musicais, voltado para músicas folclóricas e sacras. São atendidas
cem crianças por semana, distribuídas em grupos menores nas três unida-
des do Ceses. Ocasionalmente o coral é reunido para apresentações espe~
ciais. No ano passado foi gravado um cd deste conjunto. Este projeto visa
desenvolver a sensibilidade musical das crianças e o desenvolvimento de
talentos musicais.
EXCLUSÃO SOCIAL E MISSÃO NO CONTEXTO URBANO 59

TOTAL DE ATENDIMENTOS REGULARES


Sem contar os atendimentos ocasionais realizados nos Projetos Dorcas e
Vida, em parceria com Mesa Diaconal da IPI, registramos os seguintes totais:
"
Atendimentos Total
Crianças de 2 a 4 anos (creche) 60
Crianças e adolescentes, de 6 a 14 anos 120
Famílias assistidas com cesta básica 150
Famílias assistidas com leite 100
Resumo
Criancas e adolescentes assistidos 180
Famílias nos projetos de cesta básica/leite 250
Total geral de famílias assistidas 400

UMA PARCERIA FRUTUOSA


As causas da pobreza e da exclusão social são diversas e complexas. A
nova ordem econômica mundial, estabelecida através do fenômeno chama-
do "globalização", tem aumentado o abismo entre ricos e pobres. Mesmo
considerando os esforços governamentais para superar as diferenças na
distribuição de renda, é cada vez maior o contingente dos excluídos sociais.
Diante da incapacidade do Estado (primeiro setor) de atender as neces-
sidades dos diversos segmentos da sociedade, parte dessa responsabilidade é
assumida por empresas do mercado (segundo setor), principalmente através
da mediação das organizações não-governamentais (ONGs) e outras entidades
da sociedade civil (terceiro setor), que acodem aos que são vitimados pelas
perversas regras constantes na lógica de mercado (Santos, 2000, p. 2).
À Igreja contemporânea cabe desempenhar seu papel profético neste
quadro social, marcado por um mundo que possui uma população dividida
entre uma parcela menor dos que levam um estilo de vida consumista,
disputando os acessos a produtos sofisticados e altamente desenvolvidos, por
um lado, e uma massa crescente dos excluídos, residentes em favelas e nos
grandes bolsões de miséria, alijados socialmente pelas chamadas forças (in-
visíveis) do mercado internacional, por outro lado.
Entendemos que uma Igreja comprometida com a restauração de vidas
não pode deixar de agir em prol do estabelecimento de uma sociedade com
justiça social. A visão de uma agenda missionária a partir do estilo de vida
de Jesus passa, necessariamente, pelo estabelecimento de alvos que contem-
plem aqueles que são pobres e destituídos de poder.
Consideramos que, biblicamente, a tarefa da missão pertence à Igreja. E
cabe a ela cumprir sua missão de forma integral (querigma-didaqué-diaconia).
Isto implica que a missão não pode ser "terceirizada", isto é, delegada a uma
outra instituição. A presença de uma ONG atuando em áreas ministeriais da
60 ITINERÁRIO PARA UMA PASTORAL URBANA: AÇÃO DO POVO DE DEUS NA CIDADE

Igreja, nossa hipótese inicial, de forma alguma significa uma substituição ou


delegação de função. Compreendemos que só pode haver missão se a Igreja
estiver participando efetivamente no desempenho de sua tarefa. As parcerias
e cooperações são bem-vindas, mas somente como tais.
O estudo de caso realizado a partir da experiência da IPI e do Ceses per-
mitiu visibilizar a possibilidade de concretizar ações afirmativas junto a pessoas
com os mais diversos tipos de restrições, sinais palpáveis de sua exclusão social,
mesmo a partir de uma igreja pequena e de pouco aporte financeiro.
A igreja em estudo, segundo a secretária do conselho, presbítera Helena
Maria dos Santos Parolari, tinha, no final de 2004, 159 membros professos
e uma arrecadação mensal de R$ 8.295,98. As limitações são patentes. Mes-
mo com uma previsão orçamentária que privilegiasse a ação diaconal, dificil-
mente, somente com recursos próprios, atingiria cifra maior que a décima
parte do resultado com a parceria do Ceses. E, para tanto, seria necessário um
investimento de terça parte do orçamento com a despesa da diaconia.
A extensão de atendimento regular também confirma esta análise, pois
159 membros professos apontam para um grupo de quarenta a cinqüenta
famílias, assistindo diariamente quase duzentas crianças e adolescentes. Ao
atingir quatrocentas famílias, o resultado das ações afirmativas supera o
potencial inicial esperado do grupo gerador de recursos.
Desta forma podemos afirmar, com base nos dados levantados, que o
trabalho conjunto de uma igreja de porte pequeno com uma ONG pode
permitir a obtenção de excelentes resultados na execução de projetos de
missão urbana. É certo que o estudo de caso tem implicações limitadas ao
seu campo de ação. Entretanto, realizadas as adequações necessárias a cada
público-alvo, nos parece que tal tipo de parceria (igreja/ONG) permitiria,
através de convênios com órgãos públicos e instituições da iniciativa priva-
da, atingir mais pessoas e com melhor sustentabilidade financeira.

REFERÊNCIAS
BARRO, Jorge Henrique. Ações pastorais da igreja com a cidade. Londrina: Descoberta, 2000.
BOURDIEU, Pierre. La distinction: critique sociale du jugement. In: RIBEIRO, Luiz C. de Queiroz;
LAGO, Luciana Corrêa do. A divisão favela-bairro no espaço social do Rio de Janeiro. Cadernos Metró-
pole/Grupo de Pesquisa Pronex. São Paulo: Educ, 1999. Disponível em: <http://salu.cesar.org.br>.
BUARQUE, Cristóvão. A revolução das prioridades. São Paulo: Instituto de Estudos Econômicos (Inec),
1993. Disponível em: <http://www.conteudoescola.com.br>.
CAMPOS, André et aI. (orgs.). Atlas de exclusão social. Vol. 2. São Paulo: Cortez Editora, 2003.
FAHUR, Débora Lília Santos. Las Ong's cristianas y la misión integral. In: Consulta sobre "Misión
Integral y Pobreza". Quito, Clade IV, ser. de 2000. [Mimeo).
FLORISTÁN, Casiano. Teología práctica: teoría y práxis de la acción pastoral. Salamanca: Ediciones
Sígueme, 1993.
RIBEIRO, Luiz C. de Queiroz; LAGO, Luciana Corrêa do. A divisão favela-bairro no espaço social do
Rio de Janeiro. Disponível em: <http://salu.cesar.org.br>. Acesso em: maio 2007.
o FENÔMENO DO TRÂNSITO RELIGIOSO:
DESAFIOS E PERSPECTIVAS
PARA A IGREJA URBANA

JONAS RODRIGO BECKER*

uem freqüenta os centros urbanos (grandes ou pequenos), convive,

Q dentre outros, com o problema do trânsito: ruas e avenidas conges-


tionadas de veículos de todas as espécies; viadutos, desvios e obras
impactando a estética; pedestres apressados, disputando lugar com os auto-
móveis; ônibus lotados; motos e bicicletas fazendo ziguezague por entre
veículos e pedestres; enfim, lentidão, congestionamento, buzinas, estresse...
Trânsito, por definição, prevê deslocamento: é algo dinâmico; não pode
parar; está sempre em movimento.
Neste capítulo, abordaremos o trânsito religioso, um fenômeno social li-
gado à prática religiosa, fruto da instauração dos tempos modernos, da urbani-
zação e da particularização da religião. Primeiramente, pretendemos contex-
tualizar temporalmente o fenômeno; depois, descrever seus aspectos conceituais,
dinâmicos e motivacionais; e, finalmente, propor algumas pistas pastorais.

CONTEXTUALIZAÇÃO DO TRÂNSITO RELIGIOSO


A (pôs-Irnodernidade! tem gerado inúmeras mudanças para o ser hu-
mano moderno, assim resumidas por Marshall Berman (1996, p. 16):

Grandes descobertas nas ciências físicas, com a mudança da nossa imagem do


universo e do lugar que ocupamos nele; a industrialização da produção, que
transforma conhecimento científico em tecnologia, cria novos ambientes

* Bacharel em Teologia pelo Instituto Concórdia de São Paulo (SP), pastor da Igreja
Luterana, especialista em Teologia pela Escola Superior de Teologia (RS) e mestre em
Ciências da Religião pela Universidade Metodista de São Paulo.
E-mai!: jonasrodrigobecker@yahoo.com.br.
1 Para uma breve discussão acerca de modernidade e pós-modernidade, pode-se ver Becker
(2002). E para aprofundar o assunto: Giddens (1991); García Canclini (1998); Castiüera
(1997); Connor (2000); Harvey (s.d.), jameson (1996); Rivera (2001).
62 ITINERÁRIO PARA UMA PASTORAL URBANA: AÇÃO DO POVO DE DEUS NA CIDADE

humanos e destrói os antigos, acelera o próprio ritmo de vida, gera novas


formas de poder corporativo e de luta de classes; descomunal explosão
demográfica, que penaliza milhões de pessoas do mundo em direção a novas
vidas; rápido e muitas vezes catastrófico crescimento urbano; sistemas de
comunicação de massa, dinâmicos em seu desenvolvimento, que embrulham
e amarram, no mesmo pacote, os mais variados indivíduos e sociedades; Es-
tados nacionais cada vez mais poderosos, burocraticamente estruturados e
geridos, que lutam com obstinação para expandir seu poder; movimentos
sociais de massa e de nações, desafiando seus governos políticos ou econômi-
cos, lutando por obter algum controle sobre suas vidas; enfim, dirigindo e
manipulando todas as pessoas e instituições, um mercado capitalista mundial,
drasticamente flutuante, em permanente expansão.

Com ela, o ser humano passou a conviver em constante mudança e


contradição, em relação a temas como família, habitação, trabalho, comu-
nicação, economia. Assim, vive-se, nestes tempos modernos, sob a insígnia do
transitório. O poeta português Fernando Pessoa bem sintetizou esta realida-
de, segundo este fragmento do poema Lisbon revisited, de Álvaro de Cam-
pos, heterônimo de Pessoa (1991, p. 182):

Nada me prende a nada.


Quero cinqüenta coisas ao mesmo tempo.
Anseio com uma angústia de fome de carne
O que não sei que seja -
Definidamente pelo indefinido...
Durmo irrequieto, e vivo num sonhar irrequieto
De quem dorme irrequieto, metade a sonhar.
[ ... ]
Compreendo a intervalos desconexos;
Escrevo por lapsos de cansaço;
E um tédio que é até do tédio arroja-me à praia.
Não sei que destino ou futuro compete à minha angústia sem leme;
Não sei que ilhas do Sul impossível aguardam-me náufrago;
Ou que palmares de literatura me darão ao menos um verso
Não, não sei isto, nem outra coisa, nem coisa nenhuma [... ].

No campo religioso, as pessoas vivem esta mesma condição - a do tran-


sitório. Pode-se transitar, andar, visitar, conhecer, experimentar diferentes
expressões religiosas. Pode-se ligar-se (ou não) a alguma religião; assumir (ou
não) um compromisso ético-religioso. Sentindo-se livre para ir e vir, buscar
e conhecer, recortar e adaptar, o trânsito religioso é uma realidade.
o FENÔMENO DO TRÂNSITO RELIGIOSO 63

Após um longo período histórico voltado ao racional e à secularização,


entendida como "o processo pelo qual setores da sociedade e da cultura são
subtraídos à dominação das instituições e [dos] símbolos religiosos" (Berger,
1985, P- 119), o ser humano volta-se a Deus, numa religiosidade plural. Isto
mesmo que Friedrich Nietzsche, ao perceber o vazio e a ausência de valores
na qual a humanidade havia mergulhado, tenha proclamado a morte de
Deus. Segundo Rubem Alves (1985), "o secularismo contemporâneo con-
seguiu expulsar Deus pela porta da sala, mas quando muito menos esperava
começou a entrar, pela porta da cozinha, uma chuva de deuses". [uan Arias
(1999, p. 23) afirma:
as sociedades democráticas que conseguiram afastar Deus, reduzindo-o à pura
esfera pessoal, depois de ter proclamado a secularização, tiveram que [... ]
defrontar-se com o ressurgimento de novos deuses mais antigos, mais pagãs,
mais alienantes, tanto em forma de seitas quanto de obsessões idólatras.

Primando pela livre escolha, o pluralismo oferece um variado cardápio


na escolha religiosa, temperado com uma boa dose de sincretismo. Surgem
novos elementos místicos, cultos reencantados, magia, mistério, emo-
cionalismo - e o apelo à experiência pessoal. As pessoas se afastam de
doutrinas e dogmas religiosos para viver uma espiritualidade baseada no
individualismo e na insegurança existencial.
A amplitude e a diversidade do campo religioso brasileiro auxilia neste
processo. O caldeirão religioso é composto por religiões indígenas e africanas,
catolicismo, judaísmo, protestantismo, espíritas, esotéricos, pentecostais,
umbanda, religiões orientais e um sem-número de outros movimentos reli-
giosos, além dos "sem-religião" - todos cozidos pelo mercado religioso.
Surgem os mais diversos fenômenos e movimentos religiosos: diversida-
de extremada e, ao mesmo tempo, semelhança nas práticas e nos ritos;
reavivamento religioso, com o retorno às religiões primitivas (magia), em
detrimento da política; religião não mais herdada, mas escolhida, em busca
unicamente da satisfação pessoal. Valoriza-se, portanto, a experiência e a
subjetividade pessoal.
Com um ser humano em constante mudança e crise, as instituições
religiosas também são obrigadas ao caminho das mudanças, pois aquela que
não se adequar aos tempos modernos parece estar condenada à derrota...
É neste cenário que se constata o fenômeno do trânsito religioso.

oTRÂNSITO RELIGIOSO: ASPECTOS


CONCEITUAIS, DINÂMICOS E MOTIVACIONAIS
O trânsito religioso pode ser definido como "um contínuo deslocamen-
to de indivíduos entre as diversas religiões, de modo a haver uma busca, por
64 ITINERÁRIO PARA UMA PASTORAL URBANA: AÇÃO DO POVO DE DEUS NA CIDADE

parte das pessoas, do religioso e de práticas religiosas que lhes satisfaçam"


(Becker, 2002, p. 92). Assim, segundo Sandra Duarte de Souza (2002, p.
160-162), é possível apontar o fenômeno em pelo menos três situações:
1. Trânsito de pertença: acontece quando o indivíduo muda sua perten-
ça religiosa (ou seja, sua confissão religiosa), adotando as práticas e doutri-
nas de uma nova religião. Tornando-se uma prática repetitiva, as institui-
ções não mais reconhecem os seus fiéis - "não tão seus, nem tão fiéis".
2. Trânsito pertencente: diz respeito àquele que possui uma pertença
religiosa específica, no entanto, admite visitar outras expressões religiosas.
Neste caso, o transeunte é um turista dentro de diferentes religiões, ainda
que pertença a alguma.
Esta prática acontece com maior intensidade do que a anterior. Na p.
166, a autora o chama de trânsito religioso de duas mãos, uma vez que não
há necessidade do abandono ou troca de uma tradição religiosa por outra.
3. Trânsito sem pertença: o transeunte não pertence a nenhuma reli-
gião, porém, busca-as incessantemente, a fim de aproximar-se de Deus. "Se
nos dois tipos anteriores de trânsito poderia se falar em uma 'fidelidade
institucional relativa' do sujeito religioso, no 'trânsito sem pertença', ao que
parece, a fidelidade desse sujeito é, antes de tudo, consigo mesmo".
Sobre esta distinção, a própria autora alerta:
Estabeleci uma tipologia que não pretendo transformar numa 'camisa-de-
força'. Sua utilidade reside na facilitação da aproximação do objeto. [...] Na
verdade essa tipologia que proponho é simplesmente para nos ajudar a
'visualizar' o fenômeno do trânsito religioso. Se quiséssemos poderíamos sin-
tetizar tudo isso sob o título de 'trânsito de pertença provisória', uma vez que
todos eles são indicadores da provisoriedade ou, se preferirem, da transitori-
edade das relações entre o sujeito religioso e um sistema simbólico específico.
Nossa analise considerará o fenômeno com base nesta tripla distinção,
ainda que o primeiro caso (trânsito de pertença) apresente uma dificuldade:
pode-se confundi-la com conversão, pois o fato de haver mudança de con-
fissão religiosa, adotando-se práticas e doutrinas da nova religião, pode
caracterizar a conversão do indivíduo.
Por isso, devemos distinguir conversão e trânsito religioso: a conversão
é caracterizada pela mudança, e conseqüente negação da religião anterior,
e um rígido comprometimento com a nova; o trânsito se refere a um pas-
seio, à mudança entre diferentes religiões, sem conversão (metanóia), poden-
do até haver preferência por alguma, mas, geralmente, sem comprometi-
mento pessoal ou ético. Neste sentido, o ser humano pode mudar a sua
superfície (transitar), não a sua profundidade (converter-se), conforme
Becker (2001b, p. 15-16; cf. também p. 92-93).
o FENÔMENO DO TRÂNSITO RELIGIOSO 65

Sandra de Souza (2001) afirma:

Enquanto a noção de 'conversão' implica a negação da religião e da vida


anterior do convertido e o estabelecimento de um compromisso rígido com a
religião escolhida, a idéia de 'trânsito religioso' admite o 'passeio' por várias
religiões (mesmo que, em alguns casos, exista uma preferência por uma ou
outra), não exige uma mudança profunda na forma de vida do 'transeunte' e
exime ou enfraquece o compromisso.

ALGUNS NÚMEROS ACERCA DO TRÂNSITO RELIGIOSO


Não há muitas pesquisas acerca dos números do trânsito religioso, pois
ele é um tema relativamente novo em termos de pesquisa acadêmica (não
na sua prática) e pela dificuldade em observá-lo cientificamente.
Estudando a religiosidade da população da cidade de São Paulo,
Reginaldo Prandi (1996, p. 257) verificou que cerca de 25% desta já tran-
sitou por uma ou mais religiões, diferentes daquela de sua origem. Isto se
deve, segundo o autor, à idéia da "livre escolha" da religião e das necessi-
dades e possibilidades que esta pode atender. O autor considera, na pesqui-
sa, o que denominamos de trânsito de pertença.
Em verificação de casos de uma igreja local na cidade de São Paulo
(Becker, 2001, p. 15-16), constatamos haver um trânsito de pertença da ordem
de 19,12% dos seus adeptos. Outra pesquisa que apurou os números do trân-
sito de pertença foi desenvolvida pelo Centro de Estatística Religiosa e Inves-
tigações Sociais - Ceris. A pesquisa foi realizada em 1999 e divulgada em
2000. Ela abrangeu as regiões metropolitanas de Rio de Janeiro, São Paulo,
Belo Horizonte, Porto Alegre, Salvador e Recife. Foram entrevistadas 5.218
pessoas, com o propósito de "contribuir para a identificação das características
religiosas da população brasileira e suscitar reflexões sobre a religião no con-
texto da modernidade contemporânea" (Ceris, 2000, p. 8), bem como "iden-
tificar o quadro atual do catolicismo no país" (p. 15). Os resultados apresen-
tados foram os seguintes (Ceris,2000, p. 27, 83, 134, 186, 239, 290):

Cidade Trânsito(%)
Rio de Janeiro 30
São Paulo 15
Belo Horizonte 25
Porto Alegre 18
Salvador 13
Recife 18
Média 19,83
66 ITINERÁRIO PARA UMA PASTORAL URBANA: AÇÃO DO POVO DE DEUS NA CIDADE

Estes números revelam semelhança com a verificação feita junto à


igreja local paulistana, mas diferem um pouco da pesquisa de Prandi. Ain-
da assim, é possível afirmar que entre 20% e 25% das pessoas, em algum
momento de sua vida, optou por mudar para uma religião diferente daque-
la em que nasceu.
Casos de trânsito religioso pertencente foram detectados por Cecília
Mariz e Maria das Dores C. Machado (1994, p. 28-34), ao compararem
práticas religiosas de católicos carismáticos e pentecostais. Segundo as
autoras, que se basearam na Pesquisa Nacional de Amostragem Domiciliar
(PNAD), de 1998, desenvolvida pelo Instituto Brasileiro de Geografia e
Estatística (IBGE), verificou-se que 5,9% da população declararam partici-
par de atividades em outra religião que não a sua. Em algumas religiões
estes números se mostraram mais elevados, como o candomblé e o xangô
(21 %) e o espiritismo kardecista (14,87%). Para as pesquisadoras, porém,
estes números "parecem muito aquém da realidade", apontando a limitação
da pesquisa e a multiplicidade de tal prática religiosa. Ainda assim, é pos-
sível afirmar que, neste caso, a prática parece ser mais intensa do que no
anterior (Souza, 2001, p. 161).
Quanto ao trânsito sem pertença, ao que se conhece, não há pesquisas,
em números, disponíveis. Talvez isso ocorra em virtude da dificuldade de
sua apuração, que só pode ser verificada através de entrevistas e/ou depo-
imentos. O problema, neste caso, estaria na confiabilidade dos dados, uma
vez que dependem exclusivamente do transeunte, que nem sempre quer
revelar sua real prática religiosa.

DINÂMICA DO TRÂNSITO RELIGIOSO


O trânsito religioso pode ser verificado na perspectiva do sujeito (aquele
que transita) ou das instituições (pelas quais transita). Esta é uma distinção
apenas didática, pois o trânsito envolve, simultaneamente, sujeito e instituições.

• O trânsito religioso na perspectiva do sujeito

Um exemplo clássico deste caso, na literatura brasileira, tem-se em


Riobaldo Tatarana, em Grande sertão: veredas, de João Guimarães Rosa (1984,
p. 15). O personagem dá tanta importância à religião que uma só não basta!
Por isso, recorre a práticas do catolicismo, espiritismo e protestantismo. É esta
a passagem de Guimarães Rosa, na qual os grifos em itálico são nossos:

"Hem? Hem? O que mais penso, testo e explico: todo-a-mundo é louco. O se-
nhor, eu, as pessoas todas. Por isso é que se carece principalmente de religião:
para se desendoidecer, desdoidar. Reza é que sara da loucura. No geral. Isso é
o FENÔMENO DO TRÂNSITO RELIGIOSO 67

que é a salvação-da-alma... Muita religião, seu moço! Eu cá, não perco ocasião
de religião. Aproveito de todas. Bebo água de todo rio... Uma só, para mim é pouca,
talvez não me chegue. Rezo cristão, católico, embrenho a certo; e aceito as preces de
compadre meu Quelemém, doutrina dele, de Cardéque. Mas, quando posso, vou no
Mindubim, onde um Matias é crente, metodista: a gente se acusa de pecador, lê alto
a Bíblia, e ora, cantando hinos belos deles. Tudo me quieta, me suspende. Qualquer
sombrinha me refresca. Mas é só muito provisório. Eu queria rezar - o tempo todo.
Muita gente não me aprova, acham que lei de Deus é privilégios, invariável. E
eu! Bofe! Detesto! O que sou? - o que faço, que quero, muito curial. E em
cara de todos faço, executado. Eu? - não tresmalho! [...] Olhe: tem uma preta,
Maria Leôncia, longe daqui não mora, as rezas dela afamam muita virtude de
poder. Pois a ela pago, todo mês - encomenda de rezar por mim um terço, todo
santo dia, e, nos domingos, um rosário. Vale, se vale. Minha mulher não vê mal
nisso. E estou, já mandei recado para uma outra, do Vau-Vau, uma Izina
Calanga, para vir aqui, ouvi de que reza também com grandes meremerências,
vou efetuar com ela trato igual. Quero punhado dessas, me defendo em Deus, reu-
nidas de mim em volta... Chagas de Cristo!"

A religião serve para dar sentido à vida das pessoas, curar o corpo e a
alma, purificar ou salvar. Panikar (1993, p. 6) entende salvação "em seu
significado etimológico mais amplo: tudo aquilo que nos faz inteiros, sãos,
livres e completos". Na pesquisa do Ceris (2000, p. 29-30, 85-86, 136, 189-
190,241,292-293), tem-se clara percepção disso.
Busca-se uma religião como apoio, auxílio; para dar sentido à vida.
Como a vida é um mistério e um milagre, a religião deve trazer ao indivíduo
respostas no sentido de perpetuar a vida. Isso acontece nos cultos, rituais,
milagres, poderes sobrenaturais, onde se possa receber e perceber as bênçãos
de Deus (ou de deuses), nesta vida e na futura.
O trânsito religioso, nesta acepção, pode ser compreendido, como um
meio de busca do mistério, do milagre, do sobrenatural. Se, em determinada
religião, o indivíduo não encontra o pretendido, recorre à outra agência de
bens divinos, onde, acredita, ser-lhe-á possível tal encontro.
Aqui entram em cena os elementos do complexo mundo contemporâ-
neo, os quais passamos a considerar. Primeiramente, a questão das respostas
imediatas aos problemas, pois vivemos na era da velocidade! Busca-se deter-
minada religião acreditando obter nela resposta imediata a algum problema.
Se isso não acontecer, procura-se uma nova religião (transita-se), acreditan-
do que esta irá proporcionar o que se espera. Vale o "se não sou atendido
agora, se meu problema não for resolvido agora, procuro outra religião".
Pensemos no mercado religioso: não se encontrando o produto (bem
religioso) desejado, recorre-se ao concorrente que o oferece da forma como
68 ITINERÁRIO PARA UMA PASTORAL URBANA: AÇÃO DO POVO DE DEUS NA CIDADE

se pretende tê-lo. O mesmo pode acontecer se causam desagrado "a em-


balagem", "o preço" ou "as condições" de determinado bem religioso.
Exemplo disso tem-se na concorrência entre o pentecostalismo e a Reno-
vação Carismática Católica, onde não há mais necessidade de deixar o
catolicismo para se falar em línguas, ter momentos de louvor, orar e
cantar acompanhado de gestos físicos, receber o Espírito Santo, sentir a
presença de Deus, ter a carteira abençoada a fim de encontrar emprego.
Consideremos a liberdade que atualmente temos, permitindo-nos li-
vre escolha de todas as coisas - inclusive da religião! No pulverizado
campo religioso brasileiro, há inúmeras alternativas e possibilidades de
se mover com extrema facilidade de uma religião para outra, sem as
dificuldades que havia no passado, como, por exemplo, a derivação re-
ligiosa familiar e o seu conseqüente controle, a impossibilidade do con-
trole do adepto pelas comunidades religiosas, o descontrole da vida social
urbana, a inexistência de uma religião oficial do Estado. A religião,
portanto, deixou de ser um assunto público para se tornar algo particular,
um direito individual de escolha, construção, envolvimento e trânsito -
prova disso é a máxima popular: "religião não se discute"! Hoje, qual-
quer pessoa se sente com o direito de abraçar a religião que melhor lhe
convier ou não abraçá-Ia (cf. Pierucci e Prandi, 1997, p. 25~26;
Brandão,1994, p. 34).
Lembremo-nos da extrema religiosidade do povo brasileiro. O sujeito de fé,
ao observar o fecundo campo religioso, faz pouca (ou nenhuma) diferença
entre as religiões, considerando todas dotadas de poder (cf. Brandão, 1994,
p. 28). Para ele, em todas há verdade, valor, virtude, valia. Logo, "todas as
religiões são boas"; "todas falam de Deus e Deus é o mesmo" - e, se é assim,
por que ficar com apenas uma? Não seria melhor ter um pouco de cada? Não
seria melhor ter o melhor de cada? Então, se faz como Riobaldo: um livre
recorte de crenças e práticas religiosas, criando-se uma lógica própria de fé,
de modo que "quem faz a minha religião sou eu mesmo".
Olhando para o dogmatismo religioso, podemos perceber, de acordo com
Oneide Bobsin (1994, p. 13-14), que o sentimento de pertença a uma igreja ou
religião não é mais condicionado por idéias dogmáticas, ou seja, o indivíduo não
está mais tão preocupado com a fundamentação doutrinária da religião a que
pertence, mas deseja uma religião que lhe agrade, que lhe traga prazer. Esta é
outra conseqüência da modernidade, que a tudo coloca em dúvida - inclusive
os dogmas religiosos - mas se abre à busca contínua do prazer.
Há, também, o desejo pela renovação das experiências religiosas, pois o
ser humano moderno busca o novo. Deseja-se ardentemente renovar as
práticas e experiências religiosas - a pentecostalização do protestantismo é
exemplo disso. Leonildo Silveira Campos (1996, p. 107) afirma-o como
o FENÔMENO DO TRÂNSITO RELIGIOSO 69

possibilidade para as próximas décadas. Mas, o fato é que práticas eminen-


temente pentecostais estão sendo usadas sem discriminação em igrejas his-
tóricas. Para renovar, é necessário conhecer outros modelos, outras práticas,
outras religiões, transitando entre elas. Tal situação, no contexto alterna-
tivo, foi descrita por Luís Eduardo Soares (apud Brandão, 1994, p. 30):

o religioso alternativo brasileiro é também um andarilho. Faz parte de sua


agenda um deslocamento permanente entre formas de 'trabalhar' a espiritualidade,
em nome de uma busca sempre renovada de experiências místicas. Nada mais
coerente, portanto, que a inconstância e a volubilidade. A devoção a crenças
e rituais se dá, geralmente, sob o signo da experimentação. [... ]Em certo sentido,
[o errante] deseja o repouso de uma adesão definitiva, de vínculos estáveis.
Mas tende a reconhecer, na própria busca, a essência de sua utopia e a na-
tureza de sua devoção.

A constante busca de novas experiências religiosas, no entanto, vai


dando sentido à vida do transeunte, de forma que, ao transitar, ele se
modifica, se purifica-se, se santifica e encontra a plenitude do caminho da
sua salvação e o sentido de sua vida.
Por outro lado, o trânsito é uma experiência subjetiva, que depende
fundamentalmente daquele que transita. Transitando, o indivíduo vai cons-
truindo o seu universo religioso pessoal. Para que isto se realize, pressupõe-
se a experiência do trânsito entre os diferentes sistemas religiosos, oficiais
e alternativos, eclesiásticos ou para-eclesiais, comunitários ou solitários,
confessionais ou livres.
Outro aspecto inerente ao trânsito religioso diz respeito à sua provi-
soriedade (Ramalho, 1994, p. 50). Trânsito lembra algo dinâmico, em mo-
vimento, não-estático. O trânsito religioso não é definitivo, de apenas uma
mudança, mas constante, freqüente, aberto a intermináveis trocas, pois,
ainda que, em determinado momento, se esteja em determinada religião,
tem-se a possibilidade e a liberdade de, no momento seguinte, estar em
outra! Esta é uma das dificuldades em analisar este fenômeno, pois ele, por
si só, é dinâmico! Dificuldade maior tem-se a partir do protestantismo, pois
este, de forma geral, pensa na conversão de novos adeptos, de forma a
negarem uma série de valores culturais e religiosos, anteriormente aceitos.
Neste sentido, pode-se levantar a seguinte questão: será que a conversão
condiciona, realmente, o abandono de práticas culturais inculcadas nas
pessoas há décadas, como geralmente se preceitua? Será que pessoas con-
vertidas não continuam levando em conta antigos valores e crenças? Difi-
cilmente há uma conversão total, de forma a se abandonarem completa-
mente as tradições passadas. Pode-se até negá-las, mas resquícios destes
70 ITINERÁRIO PARA UMA PASTORAL URBANA: AÇÃO DO POVO DE DEUS NA CIDADE

valores prevalecerão - isto podemos perceber facilmente no dito popular


que diz: "não creio nas bruxas; mas, que elas existem, existem".
Por fim, destacamos o aspecto ético da questão. Segundo Riobaldo
T atarana, muitos desaprovavam a sua atitude, pois pensavam que "lei de Deus
é privilégios, invariável", isto é, não é possível recorrer a mais do que um
sistema religioso ao mesmo tempo. Sua mulher não via problema nisso. Ele
também não, tanto que o fazia livremente e sem constrangimento, buscando,
apenas, "se defender em Deus". Esta também é a opinião - e prática - cor-
rente em nossa sociedade, tanto que se fala, popularmente, em "acender uma
vela para cada santo". Em pesquisa de campo, Sandra de Souza (2001, p. 160)
constatou que os seus entrevistados admitiram uma complementação religiosa,
via trânsito, sem considerá-la errada. Para eles, a religião tradicional e as
visitadas complementam-se mutuamente. Diz a autora:

Além do mais, mesmo para aqueles e aquelas que afirmam uma pertença e
participação em outras expressões religiosas, verificamos que para a maioria
dos entrevistados essa participação é complementar, combinando tranqüila-
mente, sem qualquer sentimento de culpa, elementos de suas tradições reli-
giosas com aqueles evocados pelos grupos que 'visitam' (Souza, 2001, p. 165).

Por outro lado, com as mudanças trazidas pela modernidade, o ser


humano moderno pensa-se auto-suficiente, sendo ele próprio o juiz de todas
as suas ações. É neste sentido que ele não considera o trânsito" errado",
apenas uma busca de algo que faça sentido ou que falte em sua religião
original (cf. Brandão, 1994, p. 57).

• O trânsito religioso na perspectiva das instituições


O trânsito religioso acontece em relação ao sujeito da fé, mas reflete
nas instituições a que o sujeito está ligado. Domingos (nome fictício),
membro de uma igreja protestante histórica, tocava bandolim no conjunto
de sua igreja. Com freqüência, no entanto, era convidado a tocar em igrejas
pentecostais. Com o passar do tempo, trouxe vários cânticos pentecostais
à sua igreja de origem - assim como levou hinos tradicionais às igrejas
pentecostais. Assim, Domingos, que transitava entre diferentes igrejas, foi
uma espécie de mediador entre elas. No fim, via sujeito, aconteceu a troca
de cânticos entre igrejas de tradições diferentes.
Como o trânsito entre as diferentes religiões é intenso, Pierucci e
Prandi (1997, p. 26) pensam que isto pode obrigá-las a uma aproximação,
ainda que para combate: "O trânsito de uma religião para outra é intenso,
o que pode obrigar religiões antagônicas a reconhecerem umas às outras
como religião, ainda que esse reconhecimento implique a idéia de que a
o FENÔMENO DO TRÂNSITO RELIGIOSO 71

outra representa o mal a ser desfeito e combatido". Esta idéia é reforçada


pela disputa do mercado religioso por grupos que facilmente poderiam
intercambiar os seus participantes, como, por exemplo, os pentecostais e os
afro-brasileiros, que têm no transe um ponto comum. E, ao pensar na for-
mação de uma religião da cultura brasileira, Antônio Gouvêa Mendonça
(1997, p. 160) confirma esta idéia:
Pesquisas mais recentes feitas na cidade de São Paulo [...] indicam que já
está havendo certo intercâmbio entre catolicismo popular, comunidades
de base, terreiros e pentecostalismo. [...] Todavia, parece que a novidade
é que estaria havendo uma certa sistematização desses cultos, até agora
fortemente antagônicos.
Outro exemplo de trânsito religioso na perspectiva institucional é
mencionado por José Guilherme Magnani, que afirma não ser difícil encon-
trar uma filha-de-santo recém-feita assistindo a uma missa, pois, em algumas
nações do culto afro, logo após a passagem, existe a prescrição de se assistir
a uma missa e comungar (cf. Magnani, 1994, p. 42-43). Mariz e Machado
(1994, p. 27) afirmam que "na tradição nagô, por exemplo, o iniciado pre-
cisa ter sido batizado na Igreja Católica".
Neste acontecimento, há uma troca simbólica entre diferentes sis-
temas religiosos institucionais. Isto mostra que cada sistema já não mais
pretende ser o absolutamente verdadeiro. Cada um se apresenta à sua
maneira e permite a troca. Isto pode dar a impressão de caos, onde tudo
é permitido e já não há valores que permitam saber qual a religião certa
e a errada. Voltamos, então, à constatação (popular) inicial de que
"todas as religiões são boas". Além disso, há, também, a democratização
na escolha das práticas religiosas, indo de encontro às práticas de um
mundo democrático e aberto à diversidade.
Segundo Cecília Mariz e Maria das Dores C. Machado (1994, p. 27-
28), é possível identificar quatro tipos diferentes de atitudes institucionais
em relação ao trânsito religioso:
a) Igreja Católica: oficialmente exclusivista, é marcada pela identidade
coletiva e ritual dos fiéis. Não consegue evitar o trânsito de seus adeptos.
b) Religiões afro-brasileiras: aceitam o trânsito, tanto em nível
institucional, quando individual, ao combinarem a ausência de uma ética
universalista com uma identidade ritual.
c) Protestantismo: exclusivista, rejeita o trânsito em nível pessoal e
institucionaL Como o fiel é definido pela crença nos dogmas e nas doutrinas
da instituição, não haveria razão para o trânsito. Uma vez "crente", deve-
se assumir as doutrinas da religião; transitando, se estará abandonando-as.
Escrevem as autoras:
72 ITINERÁRIO PARA UMA PASTORAL URBANA: AÇÃO DO POVO DE DEUS NA CIDADE

"A prática simultâneade religiões distintas é vista de modo geralcomo algo a ser
evitado pois indica 'uma fraqueza de fé', 'uma dúvida da verdade', uma inse-
gurança". Ainda assim, no entanto, é possível notar "entre os pentecostais a ida
simultânea a denominações distintas". Por isso, "a adoção da identidade evan-
gélica parece ser mais importante para os pentecostais do que sua identidade
denominacional" (Mariz e Machado, 1994, p. 29).

d) Religiões particularistas: adotam um princípio religioso mais


eclético, fortemente individualista.
Há, no entanto, instituições religiosas que apostam justamente no
trânsito religioso para conquistar adeptos. Exemplo disso tem-se na Igreja
Messiânica Mundial do Brasil, que, por não exigir fidelidade institucional,
não vê problema em seus adeptos também pertencerem a alguma outra
religião (são considerados seus adeptos todos os ministrantes de johrei).
Constatou-se, por exemplo, a prática de dupla pertença religiosa em 40%
dos freqüentadores do [ohreí Center de Interlagos, em São Paulo/SP
(Becker, 2001, p. 19), que é o local próprio para ministrar e receber o
johrei, uma prática dos membros da Igreja Messiânica Mundial, que con-
siste na canalização da energia cósmica através das mãos.

ALGUMAS RAZÕES PARA o TRÂNSITO RELIGIOSO


Considerando que não há resposta única e definitiva para a prática
do trânsito religioso, apontamos apenas algumas possíveis causas.
Inicialmente, lembremo-nos da mentalidade contemporânea (também
chamada de pós-moderna), que sugere ao ser humano um caráter de
transitoriedade e de busca de '''uma nova espiritualidade', de 'um maior
aprofundamento espiritual', de 'uma maior profundidade com o sagrado',
e de uma resposta ainda não atendida" (Souza, 2002, p. 162). Escreve
José Queiroz (1996, p. 1617):

o caráter permanentemente migratório da pás-modernidade penetra no âmbito do


sagrado e provoca um fenômeno que se caracteriza como nomadismo místico.
Mesmo permanecendo nominalmente vinculado a alguma forma tradicional de
culto, que em geral herdou do berço materno, a tendência religiosa do homem pós-
moderno é um trânsito constante pela constelação religiosa, compondo, nessas inúme-
ras viagens, um sentido para a existência [grifo nosso].

otrânsito religioso também pode ser o meio da reencantar a visão


de mundo e o processo de racionalização da vida religiosa dos indivíduos
(Mariz e Machado, 1994, p. 34). No primeiro caso, ainda que se viva em
o FENÔMENO DO TRÂNSITO RELIGIOSO 73

meio a um mundo científico, buscam-se fortes emoções e práticas mági-


cas em alguma religião diferente da original; no segundo, vivendo-se em
um mundo encantado pelos espíritos, busca-se algum tipo de racionali-
zação de vida e práticas religiosas.
A solução dos problemas pessoais é outro fator propulsor do trânsito
religioso, tanto quanto para a adoção e a permanência em alguma reli-
gião. Isto foi constatado, especialmente entre evangélicos, por Mariz e
Machado (1994, p. 32):
Percebemos, entretanto, que o critério da eficiência para a resolução de problemas
práticospermanece dentro do universo evangélico orientando o trânsito e a fre-
qüênciasimultânea a denominações distintas. AB mudanças interdenominacionaís
seguem esta lógica pragmática. Busca-se uma nova denominação quando os
problemas persistem ou não são resolvidos satisfatoriamente.
Há de se considerar, também, o sincretismo, isto é "a tendência a
misturar as coisas e a possibilidade de se assumir uma identidade múltipla"
(Mariz e Machado, 1994, p. 27). Historicamente, a identidade do povo
brasileiro é construída sobre a idéia de sincretismo, não havendo, portanto,
problema em misturar diferentes religiões, nem em assumir identidades re-
ligiosas diferentes, ainda que contrastantes.
As necessidades pessoas do indivíduo e a busca pelo novo, pelo que
demonstra poder, pela religião que responda às angústias pessoais (não
importa quais sejam), fazem o ser humano transitar. Também, a inter-
comunicação (Rolim, 1994, p. 15-16) entre diferentes credos, quando pes-
soas de religiões diferentes se encontram, trocam informações e experiên-
cias, de modo a cada uma levar informações e experiências do outro para
dentro de si e, com base nestas (mas não só), construir-se interiormente.
Por outro lado, existe a concepção de que "todas as religiões são iguais" ou
apenas expressões diferentes de um mesmo ser transcendente (Antoniazzi,
1999, p. 15). Se "todas as religiões falam de Deus" e "Deus é o mesmo", por
que ter apenas uma? Mendonça (1997, p. 161) afirma:

As pessoas, por questão de identidade, e não por qualquer tipo de racio-


nalidade, identificam-se como católicas, umbandistas ou pentecostais (cren-
tes), mas as necessidades prementes do cotidiano levam-nas aos centros de poder
religioso mais em evidência, seja pela propaganda ou pelo testemunho de pes-
soas conhecidas [grifo nossol.

Em pesquisa de campo, o Ceris (2000, p. 27-28, 83-84, 134-135, 186-


188, 239, 290-291) também apurou razões que levam pessoas a transitarem.
A pesquisa apontou para os seguintes fatores, em ordem de preferência:
74 ITINERÁRIO PARA UMA PASTORAL URBANA: AÇÃO DO POVO DE DEUS NA CIDADE

a) Ausência de resposta às necessidades espirituais e emocionais na


religião anterior.
b) Desejo de encontrar uma religião diferente.
c) Falta de entusiasmo e motivação existentes na religião; o fato de
outra religião parecer melhor e mais convincente; e, a discordância dos
princípios pregados pela religião.
d) Falta de coerência entre o que a religião pregava e as ações das
pessoas; e a influência de familiares e amigos.
Constou-se, pois, que: (1) a mudança de religião tem certa influência da
esfera familiar e dos amigos; (2) a ausência de elementos místicos e caris-
máticos na religião anterior pesa na decisão de mudança; (3) há uma deman-
da religiosa não suprida pela religião quanto ao atendimento das questões
afetivas e dos problemas do indivíduo; (4) há o desejo de se encontrar uma
religião que ofereça ânimo e entusiasmo e seja coerente em suas ações.
Enfim, podemos dizer que o trânsito religioso é ocasionado (ou influ-
enciado) pelos seguintes fatores: a mente moderna; o caráter transitório do
ser humano; a diversidade religiosa do país; o acentuado sincretismo reli-
gioso; a propensão religiosa do povo brasileiro; a falta de sentido de perten-
ça religiosa das pessoas a uma determinada religião; a ausência de resposta
às necessidades espirituais e emocionais; a falta de entusiasmo e motivação
com a antiga religião; o fato de outra religião parecer melhor e mais con-
vincente; a discordância quanto aos princípios pregados pela religião; a falta
de coerência entre o que a religião prega e as ações das pessoas; a influência
de familiares e amigos; a facilidade com que se pode transitar; a possibili-
dade da livre escolha; a busca pelo novo/diferente.

CONSEQÜÊNCIAS DO TRÂNSITO RELIGIOSO


Dentre as muitas conseqüências do trânsito religioso, citamos, com
base em Brandão (1994, p. 36-40) e Souza (2002, p. 163-165):
a) Em virtude do trânsito, as religiões se expandem em todas as dire-
ções, sem delimitação, buscando atender as necessidades do transeunte, por
mais diversas que sejam.
b) O transeunte escolhe livremente os sistemas religiosos de sua prefe-
rência, podendo ser próximos, alheios ou, até, antagônicos. Assim, uma re-
ligião pode crescer em determinado momento, enquanto outra se retrai (é o
caso da relação pentecostalísmo-catolicismo), mas todas se mantêm presentes.
c) Fazem-se escolhas totalmente diferentes e inimagináveis. Pode-se,
por exemplo, transitar continuamente entre o catolicismo (de vanguarda,
moderado ou conservador), protestantismo, pentecostais, espíritas karde-
cistas, umbandistas, candomblé, seicho-no-ie , teosofia, astrologia,
o FENÔMENO DO TRÂNSITO RELIGIOSO 75

espiritualismo ecológico e outras combinações e alternativas, desde que


tragam sentido à vida.
d) É possível transitar dentre uma mesma religião, porém, entre setores
e expressões religiosas diferentes", Benedetti (1994, p. 20 e 38) fala em
migração intra-religiosa, ou seja,

as grandes religiões (Igrejas) se dividem em 'eclesíolas', em grupos, em ten-


dências, pela quais há total liberdade em transitar. No catolicismo, por exem-
plo, pode-se optar entre a TFP (Tradição, Família e Propriedade), a renova-
ção carismática católica, as comunidades eclesiais de base, o catolicismo sem
vínculos, o espiritualista, o do candomblé, o socialista/político, o ortodoxo e
quantas mais direções e vocações haja.

e) Há a opção de escolha e adesão entre as alternativas confessionais


e suas variações. Por exemplo: batistas, metodistas, presbiterianos e suas
renovações: batistas e presbiterianos renovados, metodistas wesleyanos.
f) Também, há a opção de convivência religiosa entre diferentes cren-
ças e ritos, sem a obrigação de filiação e partilha comunitária de uma única
crença comum.
g) Diferentes opções podem ser vividas simultânea ou seqüencial-
mente, sob as alternativas de adesão, partilha ou compromisso. É possível
crer e viver várias experiências religiosas ao mesmo tempo ou uma após a
outra, sucessiva e indefinidamente.
h) Por causa do trânsito, as religiões tendem, em algum momento, a
abrir-se à partilha de seus símbolos e significados religiosos, ainda que a
hierarquia venha a negá-los. Isto colabora com o sincretismo, mesmo que
"por baixo" do ensino oficial e da hierarquia. O praticante simplesmente
absorve este sincretismo, sem se dar conta da realidade. Isto pode ser visto
no resultado da pesquisa sobre a crença na vida após a morte, onde 80,5%
dos católicos disseram acreditar no céu. Destes, 64% crêem em uma vida
depois da morte; 55,6% aceitam a existência do inferno; e 45,9% aceitam
a hipótese espírita da reencamaçâo". Quem o diz é Brandão (1994, p. 40),
citando a pesquisa "Religiosidade, estrutura social e comportamento polí-
tico", apresentada por Leandro Piquet Carneiro e Luís Eduardo Soares.
i) O enfraquecimento das instituições religiosas, que podem perder
o domínio da experiência do sagrado. É possível alcançar o sagrado in-
dividualmente, sem a mediação institucional.

2 Benedetti (1994, p. 20 e 38)


3 Brandão (1994, p. 40), citando a pesquisa "Religiosidade, estrutura social e comportamen-
to político", apresentada por Leandro Piquet Carneiro e Luís Eduardo Soares.
76 ITINERÁRIO PARA UMA PASTORAL URBANA: AÇÃO DO POVO DE DEUS NA CIDADE

j) Os "modelos oficiais de religião" podem ser substituídos por (ou


coexistem com, ou são parte de) referenciais religiosos cambiantes, con-
correntes, respondendo à demanda dos sujeitos da fé.
k) Diluição das fronteiras religiosas, não mais se diferenciando as tra-
dições religiosas, havendo uma relativização do campo espiritual.
1) O fiel já não é mais tão fiel a sua religião, pois ele transita por diver-
sas expressões religiosas, relativizando o compromisso e a fé.
m) E, por fim, tende-se ao desaparecimento da conversão (Benedetti,
1994, p. 21), uma vez que as pessoas podem transitar facilmente entre as
religiões, construindo a sua própria, não mais necessitando receber verdades
religiosas prontas. Basta transitar e colecionar as verdades desejadas, sem
conversão e tudo o que isto implica.

RESSALVAS AO TRÂNSITO RELIGIOSO


Por fim, há que se levarem em consideração, também, ressalvas ao
trânsito religioso, uma vez que nem todos sujeitos religiosos transitam. Este
é um cuidado que devemos ter!
Existe, sim, um espaço de trânsito entre as religiões, mas não totalmen-
te livre. Algumas expressões religiosas, em decorrência de suas particulari-
dades e peculiaridades, são altamente exclusivistas (Carvalho, 1994a, p. 22;
1994b, p. 81). pois apenas elas oferecem determinado bem simbólico. Quem
o desejar deverá procurar apenas em determinada religião ou igreja especí-
fica, não estando sujeito, neste caso, ao trânsito.
Protestantes e católicos romanos oficiais rogam a si uma carga religiosa
exclusivista. As igrejas e religiões até podem proibir os seus adeptos, mas,
vivendo numa sociedade livre e democrática, nada garante que o fiel não
transitará, ainda mais se a prática o estiver beneficiando.
Ainda assim, percebemos que o trânsito (de uma forma geral) é uma
realidade do mundo moderno, independentemente da área (economia,
política, cultura) - não diferente na religião: transita-se livremente entre
diferentes universos religiosos, buscando-se a satisfação pessoal e provocan-
do reflexos pessoais e institucionais.

PISTAS PASTORAIS FRENTE AO TRÂNSITO RELIGIOSO


No contexto da modernidade e da transitoriedade, a teologia prática
apresenta pistas e perspectivas para uma pastoral libertadora frente ao trân-
sito religioso. Estas dizem respeito ao despertar da esperança e da consciên-
cia crítica e ao resgate do ambiente.
a) Despertar da esperança: o ser humano moderno encontra-se em crise
consigo mesmo, com o próximo, com a natureza e com o transcendente. Vive
egoisticamente, pensa e age somente em seu favor, desrespeita o outro, ex-
o FENÔMENO DO TRÂNSITO RELIGIOSO 77

plora a natureza, desconsidera o transcendente. Vive só, buscando seu


prazer pessoal. Ainda assim, espera algo melhor - o dito popular "A espe-
rança é a última que morre" o comprova. A primeira pista, portanto, vai
no sentido de despertar no ser humano a esperança quanto ao futuro, a
fim de que ele viva melhor o presente, pois a esperança futura se traduz
em ações presentes.
b) Despertar da consciência crítica: o ser humano parece ter se confor-
mado com a situação de crise. Até se espera algo melhor, mas sua consci-
ência tem dificuldade em julgar e distinguir criticamente suas ações. Uma
consciência crítica leva o indivíduo a refletir sobre as suas ações, sobre as
práticas do outro e das instituições. Reflete-se (no presente) sobre as ações
passadas, projetando-se as futuras, esperando um mundo melhor, com mais
justiça, dignidade, igualdade e fraternidade.
c) O resgate do ambiente: em sua falta de esperança e criticidade, o ser
humano vem explorando a natureza, tirando dela tudo o que pode (e tam-
bém o que não pode!). Os desertos, a poluição, o desaparecimento de inú-
meras espécies animais e vegetais são testemunhos da pilhagem promovida
contra a natureza. Porém, o ser humano se esquece de que tudo co-existe,
isto é, um ser depende do outro, de forma que todos dependem de todos.
A teia de relações naturais está se rompendo pelo desaparecimento de
partes essenciais da natureza. Mas, um ser esperançoso e crítico tende a
desenvolver um sentimento de resgate da natureza, no que compete tanto
ao meio ambiente em si quanto ao próprio ser humano.
Estas três pistas (a esperança, a consciência crítica e o resgate da
natureza) formam uma unidade, uma vez que, no presente, julga-se o
passado, visando ao futuro. Em outras palavras, o ser humano pode,
hoje, olhar à sua volta e perceber o mal que suas ações vem causando
a si mesmo, ao próximo, à sociedade e à natureza como um todo.
Consciente de suas limitações, ele pode procurar reverter tal situação
- mas esta já é uma obra de fé: dependerá de onde ele colocar a sua
esperança (cf. 1Co 15, 19)!
Em conclusão, podemos dizer que o trânsito é um problema sério para
a maioria das cidades, por causa de sua dinamicidade e de sua falta de
controle. Ele também é um problema para muitas igrejas e religiões, pelos
mesmos motivos. Enão está restrito a uma religião - ele é comum a todas
igrejas e religiões. Por isso, como estudioso da religião, convém buscar
compreender melhor o fenômeno e, como igreja cristã, compreender melhor
o indivíduo envolvido - e, com certeza, amá-lo mais e aceitá-lo melhor.
78 ITINERÁRIO PARA UMA PASTORAL URBANA: AÇÃO DO POVO DE DEUS NA CIDADE

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EDUCAÇÃO RELIGIOSA:
UM DESAFIO PARA
A IGREJA URBANA

INEZ AUGUSTO BORGES*

Este artigo tem a finalidade de apresentar uma possibilidade de relação


entre a teoria da complexidade proposta por Edgar Morin e a educação re-
ligiosa, de modo particular a educação religiosa cristã. Inicialmente será feita
uma breve apresentação do pensador francês e de sua visão sobre as finalida-
des da educação. Em seguida serão tecidos alguns comentários sobre a teoria
da complexidade e, finalmente, as implicações desta para o ensino da religião.

QUEM É EDGAR MORIN?


Edgar Morin nasceu em 1921, na cidade de Paris. Graduou-se em
História, Geografia e Direito. Entre outras atividades, é antropólogo, filó-
sofo, livre pensador e autor de mais de cinqüenta livros. Muitas de suas
obras já foram traduzidas para os mais diversos idiomas, entre eles grego,
coreano, japonês, chinês, inglês e português.
É diretor-emérito do Centro Nacional de Pesquisa Científica (CNRS),
em Paris, e presidente da Associação para o Pensamento Complexo e da
Agência Cultural Européia da Unesco. É também um dos membros funda-
dores da Academia da Latinidade, instituição internacional criada em Paris
em 1999, com sede latino-americana instalada na Universidade Cândido
Mendes, no Rio de Janeiro.
Edgar Morin recebeu o título de doutor honoris causa de diversas uni-
versidades em diferentes países (Portugal, Itália, Suíça, Dinamarca). No
Brasil, recebeu esse título da Universidade Federal do Rio Grande do Norte
(UFRN), da Universidade Federal da Paraíba (UNPB) e da Pontifícia
Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS).

* Psicóloga, mestra em Educação Cristã pelo Centro Presbiteriano de Pós-Graduação


Andrew [umper e doutora em Ciências da Religião pela Universidade Metodista de São
Paulo. Autora do livro Educação e personalidade: a dimensão sócio-histórica da educação
cristã (Editora Mackenzie). E-mai!: inez@mackenzie.com.br.
82 ITINERÁRIO PARA UMA PASTORAL URBANA: AÇÃO DO POVO DE DEUS NA CIDADE

De 1942 a 1944, foi combatente voluntário na Resistência Francesa e


membro das Forças Armadas da França. Em 1945, integrou o alto escalão
da Divisão Francesa na Alemanha. Em 1946, liderou o escritório de propa-
ganda na Diretoria de Informação da Administração Militar Francesa na
Alemanha. De 1973 a 1989, foi co-diretor no Centro de Estudos Trans-
disciplinares (Sociologia, Antropologia e Política), da Escola de Estudos
Superiores em Ciências Sociais.
Edgar Morin tem se destacado no cenário educacional internacional
como um dos propositores da teoria da complexidade, que defende uma
reforma do ensino a partir da reforma do pensamento e não apenas de re-
forma das instituições escolares, dos currículos ou dos educadores. A refor-
ma do pensamento, sem a qual nenhuma outra reforma educacional será
eficiente, significa uma mudança radical de paradigmas ou dos princípios
fundamentais que devem governar todos os discursos e todas as teorias.

FINALIDADES DA EDUCAÇÃO SEGUNDO MORIN


Morin acredita que a educação possui quatro finalidades principais: 1)
formar espíritos capazes de organizar conhecimentos em lugar de apenas
armazená-los por uma acumulação de saberes; 2) ensinar a condição huma-
na; 3) ensinar a viver; 4)refazer uma escola de cidadania.

1) A RELIGAÇÃO DOS SABEHES


A primeira das finalidades da educação se refere à necessidade e arte de
ensinar o educando a organizar o próprio pensamento, a estabelecer conexões
(religação) entre os conhecimentos adquiridos e as diferentes experiências
vivenciadas ao longo da existência. Ao mesmo tempo, refere-se também à
necessidade de desenvolver a capacidade de diferenciar e classificar. Isto
implica capacidade para questionar, para reavaliar pressupostos e certezas O
espírito humano possui uma aptidão natural para contextualizar e globalizar
isto é, "para relacionar cada informação e cada conhecimento ao seu contexto
e conjunto" (Morin, 2002). A educação deve, por isso, estimular o desenvol-
vimento dessa capacidade de interrogar e ligar o saber à dúvida, de desenvol-
ver a natural aptidão para integrar o saber particular em sua própria vida e
não apenas a um contexto global e para confrontar a si mesmo com os pro-
blemas fundamentais de sua própria condição e de seu tempo.

2) ENSINAH A CONDIÇÃO HUMANA


A segunda finalidade educacional é ensinar a condição humana Segun-
do Morin (2002, p. 19), a fragmentação do conhecimento representada pela
arbitrária divisão de conteúdos e disciplinas resulta na fragmentação e
desintegração do próprio ser humano. Entretanto,
EDUCAÇÃO RELlGIOSA:UM DESAFIO PARA A IGREJA URBANA 83

os recentes desenvolvimentos das ciências naturais e da tradição mais rele-


vante da cultura humanista permitiram um ensino que fizesse convergir todas
as disciplinas no sentido de fazer com que cada jovem espírito se conscientize
do significado de ser humano.

Como exemplo dessa nova possibilidade pelas ciências naturais, Morin


cita a cosmologia contemporânea, que ressuscitou e renovou o conhecimen-
to do mundo revelando a posição dos seres humanos dentro do universo; as
ciências da terra, que também permitem a melhor compreensão da maneira
como o ser humano está inserido no planeta e na biosfera; e a nova pré-
história, que revela o longo processo de hominização, mostrando que a
humanidade pertence ao mesmo tempo à natureza e à cultura.
A cultura humanista, por sua vez, através da literatura, do teatro e do
cinema, permite que os indivíduos sejam percebidos em sua singularidade
e subjetividade, bem como em sua inserção social e histórica com todas as
ambigüidades próprias da condição humana: amor, ódio, paixão, ambição
e ciúmes. Essas expressões artísticas que incitam a consciência das realida-
des humanas explicitam também o caráter complexo de tal condição, des-
vendando as nuances das relações afetivas, a inserção numa família, num
grupo, numa classe, sociedade, nação e história. A poesia e as artes falam
das dimensões estéticas da existência e da busca da qualidade poética da
vida. A filosofia desvenda os horizontes da reflexão a respeito dos diversos
e cruciais problemas que o ser humano se impõe.
Morin adverte que é apenas através destas múltiplas formas de saber e
de conhecer que se torna possível decifrar um pouco sobre a multiplicidade
do humano, este ser que é submetido à morte como todo animal, sendo,
entretanto, o único ser vivo apto a crer numa vida além da morte, conduzido
à era planetária através de sua aventura histórica. Pela multiplicidade de
saberes o educando torna-se capaz de reconhecer, situar e assumir a própria
humanidade, ou seja, discernir seu destino individual, social, histórico e eco-
nômico, assim como seu destino imaginário, mítico ou religioso.

3) ENSINAR A VIVER
A terceira finalidade educacional exige do educador a consciência de
que faz parte de sua tarefa preparar o educando para "afrontar" os proble-
mas e as incertezas próprias da existência humana. As ciências constituem
excelente ponto de partida para o ensino das incertezas quando percebidas
em sua capacidade de revelar o caráter aleatório, acidental e mesmo
cataclísmico, da história do cosmos, da terra e da vida. Também a literatu-
ra, a poesia e as artes em geral são profícuas na revelação de problemas e
experiências cruciais da existência humana e auxiliam o educando a prepa-
84 ITINERÁRIO PARA UMA PASTORAL URBANA: AÇÃO DO POVO DE DEUS NA CIDADE

rar-se para a realidade complexa na qual vive. A filosofia permite especificar


os problemas éticos da existência humana, capacitando-o para decidir cons-
ciente e responsavelmente, educando sua própria vontade.

4) REFAZER UMA ESCOLA DE CIDADANIA


A quarta finalidade educativa, segundo Morin, é o aprendizado da ci-
dadania, para o que se necessitará de um ensinamento hoje totalmente
inexistente a respeito do que realmente seja uma nação. A história do país
no qual vive o estudante deve situá-lo em relação à sua condição de ci-
dadão inserido em uma nação, uma cultura e uma comunidade de destino.
A aprendizagem da cidadania deve incluir também a descoberta sobre a
história do seu continente e a história da era planetária (os tempos mo-
dernos). O ensino deve pretender enraizar o estudante na cultura de seu
país e ao mesmo tempo demonstrar que esta cultura está ligada ao conti-
nente e ao mundo.

o QUE É COMPLEXIDADE?
A palavra "complexo" traz consigo conotações não muito positivas ou
até pejorativas, aludindo muito mais ao que é difícil e complicado, em vez de
simples e claro. "Complexo" pode ser um termo compreendido até mesmo
como emaranhado, embrulhado, impuro; algo que está à espera de simplifi-
cação. Apesar de tal interpretação ainda persistir, outras formas de utilização
da palavra se tornaram cada vez mais comuns, por exemplo, nos campos da
matemática, da química, da cibernética, da psicanálise e atualmente constitui
uma das noções cardinais da antropologia (Ardoino, 2002, p. 548).
O substantivo "complexidade" apareceu durante o século XX em cam-
pos como a ecologia, a etologia, a cibernética e as redes de sistema. No
campo filosófico, o conceito representa uma tomada de posição epis-
temológica. Segundo Ardoino (2002, p. 550),

para Edgar Morin o postulado do pensamento complexo corresponde essencial-


mente a uma reforma, se não mesmo a uma revolução, do procedimento de
conhecimento que quer, de agora em diante manter juntas perspectivas tradi-
cionalmente consideradas como antagônicas (universalidade e singularidade).

Morin considera a complexidade como um problema e um grande


desafio, e não como uma resposta. Os três pilares de certeza sobre os quais
repousava o mundo científico no final do segundo milênio foram abalados
e confrontados pela percepção de que em lugar da ordem que parecia reinar
soberana "existia na realidade um jogo dialógico entre ordem e desordem
simultaneamente complementar e antagônico" (Morin, 2002c, p. 59). Tal
EDUCAÇÃO RELlGIOSA:UM DESAFIO PARA A IGREJA URBANA 85

percepção fez com que um certo número de ciências se tornassem sistê-


micas, o que permitiu que estas ciências articulassem entre si conhecimen-
tos e disciplinas diferenciadas e que outras se empenhassem na busca da
religação. De forma ampla, o pensamento complexo implica a constatação
de que tudo o que está separado em nosso universo é, ao mesmo tempo,
inseparável e que
o desafio da complexidade reside no duplo desafio da religação e da incerteza.
É preciso religar o que era considerado como separado. Ao mesmo tempo, é
preciso aprender a fazer com que as certezas interajam com a incerteza. O
conhecimento é, com efeito uma navegação que se efetiva num oceano de
incerteza salpicado de arquipélagos de certeza (Morin, 2002c, p. 61).
O desafio da complexidade é intensificado no início do terceiro milê-
nio em virtude do fenômeno denominado por Morin de "era planetária", o
que significa que todos os problemas que se colocam no contexto de cada
país estão ligados, cada um a seu modo, a processos mundiais. Os processos
locais sofrem a influência dos processos mundiais, que por sua vez, são
influenciados pelos processos locais e assim sucessivamente.
Pensar a incerteza se torna imperativo, pois ninguém pode prever o
futuro da humanidade ou do Planeta e foi perdida a promessa de um pro-
gresso previsível pelas leis da história ou pelo desenvolvimento das ciên-
cias ou da razão.
O que parece certo é o fato paradoxal de que o mundo se organiza ao
mesmo tempo em que se desintegra, havendo uma espécie de luta entre um
princípio de ordem e um princípio de desordem, ao mesmo tempo em que
existe uma espécie de cooperação entre ambos, ou seja, a organização. Ao
jogo ordem/desordem/organização Morin chama dialógica.
O princípio de organização faz com que o todo seja percebido como
algo mais do que a soma das partes, o que significa que o todo tem um certo
número de qualidades e propriedades que não aparecem em nenhuma das
partes quando consideradas separadamente. A noção de emergência,
inserida nessa idéia, significa que propriedades e qualidades emergem da
organização do todo e lhe são peculiares.
Outra idéia, decorrente dessa, é que a organização, devido às res-
trições que impõe, inibe certo número de propriedades que existem no
nível das partes e que não podem exprimir-se em virtude da organização.
Assim, o todo é também menos que a soma das partes. O conhecimento
das partes constituintes não basta para o conhecimento do todo, da
mesma forma que o conhecimento do todo não pode ser isolado do
conhecimento das partes.
86 ITINERÁRIO PARA UMA PASTORAL URBANA: AÇÃO DO POVO DE DEUS NA CIDADE

IMPLICAÇÕES PARA A EDUCAÇÃO RELIGIOSA


A educação religiosa, de modo geral, parece ser percebida como algo
que possui um objetivo que se esgota em si mesmo. Ensinar e aprender os
postulados das doutrinas e das práticas inerentes à religião à qual se perten-
ce constituem objetivos legítimos para que se perpetuem os valores e ritos,
se compreendam os símbolos e se tome possível um nível mínimo de comu-
nicação entre os membros da comunidade e entre estes e qualquer outro
que se interesse em desvendar as particularidades da mesma.
Sem a prática educativa, nenhuma religião subsiste. A necessidade de,
no mínimo, transmitir conteúdos de uma a outra geração requer um pro-
cesso de ensino-aprendizado. É possível que a educação religiosa aconteça
apenas através da participação das crianças, sem maiores explicações, em
determinadas ocasiões, e da restrição da participação em outras, o que já
resulta em aprendizado sobre os tabus, o permitido e o proibido, a necessi-
dade de se atingir determinada idade ou determinado status para ser admi-
tido a certos contextos e assim por diante.
Nestes casos, o processo de ensino-aprendizado da religiosidade pode
restringir-se à preservação da própria religião, de forma totalmente desconecta-
da com as demais áreas da vida. Esta prática não seria diferente de muitas
outras formas de ensino cujos objetivos não ultrapassam os limites do imediato,
sem horizontes mais amplos ou sem qualquer pretensão de se ligar a outras
formas de interpretação a existência humana e suas múltiplas realidades.
No ambiente especificamente cristão, embora não tenha sido esta a
visão educacional de Jesus ou dos apóstolos, inúmeras vezes o ensino se dá
exatamente desta forma: é um fim em si mesmo. Decorar textos bíblicos,
conhecer detalhes das biografias de profetas, reis ou grandes vultos da de-
nominação ou ainda outras "façanhas intelectuais" pode ser interpretado
como grande índice de aprendizado da religião cristã, mesmo que isto nada
tenha a ver com a vida prática ou com a maneira como o indivíduo enfren-
ta seus problemas na "vida real". Edgar Morin (2002a, p. 52) chama a
atenção para o fato de vivermos

no mundo das mentalidades e das práticas fragmentárias, voltadas para elas


mesmas, para a religião, a etnia ou a nação. Focalizamo-nos sobre um único frag-
mento da humanidade, do qual, entretanto, fazemos parte. De um lado temos a
inteligência tecnocrática, cega, incapazde reconhecer o sofrimento e a felicidade
humana [...] e de outro a miopia alucinada do voltar-se para si mesmo.

A fragmentação do ensino, tão conhecida nos meios religiosos cris-


tãos, pode e precisa ser solucionada ou minimizada através da preocu-
pação com a adequação às finalidades educacionais mencionadas no
EDUCAÇÃO RELlGIOSA:UM DESAFIO PARA A IGREJA URBANA 87

início deste trabalho. Entretanto, muito seria exigido dos líderes para que
estas finalidades fossem atingidas. Muitas das práticas considerada "sa-
crossantas" em virtude da tradição podem constituir-se em grandes
impedimentos para que tais finalidades sejam atingidas.
A primeira das finalidades propostas, ou seja, formar espíritos capazes
de organizar o próprio conhecimento em lugar de acumular informações,
pode implicar estímulo à dúvida e às problematizações, o que pode fomentar
a capacidade para questionar, para reavaliar pressupostos e certezas. Patro-
cinar a incerteza não parece uma atitude adequada ao educador religioso de
quem é esperado que possua todas as respostas. Entretanto, tal atitude é
necessária para que o próprio aprendiz descubra o caminho para o pensa-
mento autônomo e responsável diante de suas descobertas, o que, aliás,
pode também não ser algo tão desejado por muitos líderes inseguros que
consideram mais proveitoso manter a dependência.
Ao considerarmos a prática educativa de Jesus, conforme apresentada
nos evangelhos, é possível perceber que inúmeras vezes sua atitude ocorre
exatamente no sentido de desenvolver nos ouvintes esta organização (ou re-
organização) do conhecimento. Ao afirmar "ouvistes o que foi dito [...] eu,
porém vos digo", Jesus parece propor um confronto de ideais que impõe ao
ouvinte uma avaliação das duas proposições e a tomada de decisão em favor
de uma delas, o que implica organização do pensamento e conseqüente
responsabilidade pessoal em relação ao modo de pensar dali em diante.
Ensinar a condição humana pode também ser algo um tanto complicado
para educadores responsáveis pelo ensino de práticas religiosas excludentes,
que reconhecem apenas a si mesmos como detentores da graça divina en-
quanto todas as demais pessoas estão definitivamente perdidas, a não ser que
se arrependam e se convertam à denominação "certa". Entretanto, pode ser
extremamente estimulante e desafiador para os educadores interessados em
aproveitar os recursos que estão disponíveis nas diversas manifestações do
saber construído pela humanidade ao longo de sua história. Através da poesia,
da literatura e mesmo das descobertas científicas, muito se pode fazer para
que a condição humana seja devidamente reconhecida e valorizada, o que
pode resultar em progressos também na esfera religiosa.
Neste particular, é interessante João Calvino, para quem o princípio da
verdadeira sabedoria consiste em duas vertentes: o conhecimento de Deus
e o conhecimento de si mesmo. Para ele, estes dois lados do conhecimento
estão de tal forma ligados que é impossível começar por um deles sem que
se chegue inevitavelmente ao outro. Assim sendo, o conhecimento da con-
dição humana pode auxiliar na busca pelo conhecimento de Deus.
a aprendizado da cidadania também se revela de suma importân-
cia para que o "cidadão do reino" se reconheça também cidadão do
88 ITINERÁRIO PARA UMA PASTORAL URBANA: AÇÃO DO POVO DE DEUS NA CIDADE

seu bairro, da sua cidade, do seu país e, como diz Morin, cidadão pla-
netário. Certamente esta cidadania celestial não pode prescindir de
responsabilidades em relação ao mundo para o qual todo cristão é
enviado para ser sal e luz.
Finalmente, aprender a viver, talvez mais do que em qualquer outro
tipo de escola, deveria ser um alvo perseguido arduamente nas escolas de
ensino religioso. Já não é mais o tempo de se ensinar uma religião que tenha
conseqüências apenas na eternidade. O aprendizado da religião requer
comprometimento com certo estilo de vida. Qualquer que seja o estilo de
vida proposto pelas diferentes religiões, será vivenciado num contexto de
incertezas e de complexidades que caracteriza o mundo atual e em relação
às quais se faz necessário um posicionamento tanto dos educadores quanto
dos educandos, quer sejam religiosos ou não.
Certamente muitas outras considerações podem ser feitas em relação aos
desafios da complexidade e à educação religiosa. Os limites deste trabalho
inviabilizam uma aprofundamento do tema, permitindo, entretanto, que o
mesmo seja um ponto de partida para reflexões posteriores sobre o mesmo.
Necessário se faz, entretanto, que o incômodo inevitavelmente provo-
cado pela proposta de reforma radical no pensamento não impeça o educa-
dor cristão da aventura da tentativa de descobrir em que consiste a com-
plexidade e de que maneira é possível assumir os desafios que ela propõe,
e isto em benefício de uma prática educativa transformadora, que é a vo-
cação inicial da educação cristã conforme proposta por seu fundador.

REFERÊNCIAS
ARDOINO, [acques. A complexidade. In: MORIN, Edgar. A religação dos saberes: o desafio do século
XXI. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2002.
MORIN, Edgar. A religação dos saberes: o desafio do século XXI. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2002a.
_ _ _o A cabeça bem feita: repensar a reforma, repensar o pensamento. Rio de Janeiro: Bertrand
Brasil, 2002b.
_ _ _o Educação e Complexidade: os sete saberes e outros ensaios. São Paulo: Cortez, 2002c.
WILES, Joseph Pitts. As institutas da religião cristã: um resumo. São Paulo: Publicações Evangélicas
Selecionadas (PES), 1984.
A FILOSOFIA DA PRÁXIS EM
DIÁLOGO COM A PASTORAL URBANA

Oswaldo de Oliveira Santos Junior"

O
conceito de práxis experimentou transformações, e ganhou con-
tomos ao longo da história. Desde a antiguidade grega, em que a
filosofia ignorou e por vezes reprimiu o mundo prático, sendo a
atividade prática tida como indigna de um ser humano livre, visto que todo
trabalho braçal era destinado aos escravos. O ser humano, na antigüidade,
se faz a si mesmo se isentando de toda atividade prática material, separando
a teoria, a contemplação, da prática (Vázquez, 1968, p. 17).
A partir de Aristóteles práxis pode ser compreendida como atividade
imanente, como trabalho humano distinto da técnica e da arte, que entra-
nha uma opção ética, conforme analisa Casiano Floristán (2002, p. 174).
Entre os autores gregos antigos, Aristóteles, foi quem mais fez uso do termo,
e nem sempre a palavra possuiu em seus textos um sentido claro e unívoco.
De forma ampla, a palavra práxis para ele designava uma atividade ética e
política, diferente da atividade produtiva, entendida como poiésis (Konder,
1992, p. 97).
Platão foi quem separou os termos prática e teoria, equivalendo a
teoria a contemplação, compreendida aí a contemplação das idéias. A
teoria é privilégio de uma minoria de homens livres, enquanto para a
maioria basta a práxis ou a participação na vida como cidadão, esta
destinada aos homens livres. Ao escravo esta reservada a poiésis (poe-
sia), ou seja, a produção (Floristán, 2002, p. 174).
O aprimoramento humano se dá pela negação de qualquer atividade
prática material, separando a teoria, a contemplação e a prática.

* É Bacharel em Teologia, pastor da Igreja Metodista e Professor, é mestre em


Ciências da Religião pela Universidade Metodista de São Paulo.
E-mail: oswaldoju@hotmail.com.
90 ITINERÁRIO PARA UMA PASTORAL URBANA: AÇÃO DO POVO DE DEUS NA CIDADE

Com Platão a vida teórica, como contemplação das essências, isto é, a vida
contemplativa (bios theoretikós) adquire uma primazia e um estatuto metafísico
que até então não tivera. Viver, propriamente é contemplar. [...] Os homens
livres só podem viver - como filósofos ou políticos - no ócio; entregues à
contemplação ou à ação política, isto é, em contato com as idéias ou regu-
lando conscientemente [grifo nosso] os atos dos homens, como cidadãos da
pólis (Vázquez, 1968, p. 17-18).

Esta regulamentação consciente implica a reflexão sobre a tomada


de ações. Assim, Platão reconhece uma práxis política a partir dos prin-
cípios da teoria. A idéia de práxis na sociedade grega escravista
corresponde aos interesses de uma oligarquia dominante, que não deseja
propriamente a transformação desta sociedade, mas sim a sua manuten-
ção. Assim a práxis neste período é vista como uma atividade relaciona-
da à vida da pólis, exercida por homens livres, existindo aqui a reflexão,
elemento constante na práxis.
Existiam, portanto, no mundo antigo, três atividades humanas básicas:
a práxis, a poiésis e a theoria. Desde então o tema da atividade humana em
suas diferentes formas e em sua relação com a reflexão teórica tem ocupado
os filósofos e inúmeros debates têm sido travados em torno das diferenças
entre teoria e prática / ação e contemplação. A divergência se dá principal-
mente quanto à ênfase que deve ser dada a uma ou outra atividade
(Konder, 1992, p. 98).
Em momentos de crise (econômica, política ou cultural) este debate
fica ainda mais acirrado e as mudanças práticas se aceleram, desafiando os
seres humanos a intervir. A Itália renascentista é um exemplo de como isso
ocorreu. Com a reanimação da atividade política e econômica urbana, os
habitantes da cidade foram obrigados a refletir sobre o convívio que se
intensificou no espaço urbano, exigindo que os cidadãos refletissem sobre
seus problemas urbanos e buscassem caminhos e soluções. Leandro Konder
(1992, p. 98-99) analisa esta situação da Itália renascentista afirmando que

o aumento do número de pessoas com as quais cada cidadão estava em con-


tato intimava-o, com maior freqüência a tomar decisões, a optar por agir ou
não agir. E os problemas se agravavam quando outros não só apareciam em
grande número como se apresentavam unidos em torno de uma mobilização
comum. As multidões, ao se porem em movimento, conferiam ação a uma
fisionomia capaz de assustar alguns espíritos. Marsílio Ficino [...] sustentava,
no plano filosófico, a superioridade da contemplação sobre a ação, convencido
de que era na contemplação que a inteligência humana podia se aproximar
da verdade, isto é de Deus.
A FILOSOFIA DA PRÁXIS EM DIÁLOGO COM A PASTORAL URBANA 91

Como se observa, a contemplação era vista como forma de contenção


das ações transformadoras exigidas pelas massas. Essa posição coexistia e
conflitava com outras, como a de Erasmo de Rotterdam, que via com des-
confiança a segurança teórica que a contemplação pode proporcionar, lem-
brando que o ser humano precisa saber e ousar agir. Por outro lado, existia
também a posição de Giordano Bruno, que valorizava a ação a partir da
teoria, e a de Leonardo da Vinci, que combinava teoria e ação, lançando
mão de uma metáfora militar para explicar seu pensamento: "a ciência é o
capitão, a prática são os soldados". Outra perspectiva era a de Montaigne
que afirmava que o ser humano nasceu para agir, mas as condições huma-
nas limitam tanta a ação como a contemplação (Kpnder, 1992, p. 100).
O cristianismo continua vivendo a tensão entre a contemplação e a
prática e durante muitos séculos considerou como válida tão-somente a ação
contemplativa. O trabalho era considerado como castigo (Floristán, 2002, p.
174). Entretanto, é possível verificar a força da práxis cristã presente desde
sua gênese e que sofreu repressões ao longo de toda a sua história.

GRAMSCI E A FILOSOFIA DA PRÁXIS


A práxis é, sim, uma ação transformadora, é a relação entre teoria e
prática, mas que não deve ser confundida com uma prática repetitiva e sem
reflexão. Trata-se de uma ação objetiva que supera a critica social teórica,
apontando caminhos na história da humanidade para as questões que en-
volvem a sociedade. Pela práxis o ser humano constrói seu mundo de forma
autônoma. "Toda práxis é atividade, mas nem toda atividade é práxis"
(Konder, 1992, p. 185). Mais adiante aprofundaremos esta idéia sobre a
atividade que se expressa como práxis.
Antonio Gramsci dedica particular atenção à filosofia da práxis. Em
seu pensamento fica bastante evidente que os oprimidos precisam tomar
consciência, em seguida libertar-se das forças que os oprimem. Mas, para
que para isso ocorra, é necessário se organizarem para se tomarem senhores
das próprias histórias. E este processo não vem senão pela reflexão e ação
permanente. Assim, "Gramsci apresenta a filosofia da práxis como expressão
consciente das contradições existentes na história e na sociedade" (Serne-
raro, 2006, p. 9-10).
Para Gramsci a filosofia da práxis se resume em três tarefas principais:
a) Ter uma aproximação permanente com as classes populares, buscan-
do compreender suas reais necessidades e possibilitando a formação de
quadros no interior destas classes, por meio da educação;
b) Revelar as ideologias que se apresentam travestidas de modernidade;
c) E por último, buscar sempre o fortalecimento e a renovação diante
dos novos questionamentos da história (Semeraro, 2006, p. 12).
92 ITINERÁRIO PARA UMA PASTORAL URBANA: AÇÃO DO POVO DE DEUS NA CIDADE

Nos Cadernos do Cárcere, Gramsci enfatiza a necessidade de man-


ter-se em contato com o povo, afirmando que a falta de contato direto
com a classe popular acarreta em sérias dificuldades para o conhecimen-
to real dos seres humanos (Gramsci, 1999: 221-222).
Para Gramsci, de fato, assimcomo para Marx, o pensamento é parte integran-
te da realidade e existe uma ligação inseparável entre o agir e o conhecer. A
leitura dos fatos e a compreensão das coisas não são abstrações aleatórias e
assépticas, mas derivam da trama sociopolítica na qual os indivíduos estão
situados (Semeraro, 2006: 17).
Em Gramsci agir e conhecer são ações inseparáveis, e toda análise dos
fatos deve necessariamente ser feita a partir dos dados concretos. Para tanto
é necessário elaborar uma teoria do conhecimento como instrumento de
libertação das estruturas que oprimem os homens.
Gramsci (1999, p. 16-17) chama a atenção para a figura dos intelec-
tuais orgânicos, destacando como categoria mais típica destes intelectuais
a dos eclesiásticos. O principal papel destes intelectuais consiste na orga-
nização da classe a que representam, ou seja, seu modo de ser não consiste
no discurso, que é motor exterior e passageiro das paixões, mas num
engajamento concreto com a sociedade, como construtor e motivador
permanente das transformações sociais.
O autor escreve sobre a função dos intelectuais na sociedade em diferentes
classes sociais. Entretanto, o faz diferentemente da filosofia alemã. Ele afirma
que todas as classes sociais possuem seus intelectuais, que apontam suas visões
de mundo para as classes que representam. Desta forma os intelectuais possuem
uma função orgânica no processo da reprodução social, na medida em que
ocupam espaços sociais de decisão prática e teórica, tornando-os objeto de
longa análise nos Cadernos do cárcere. Mas a principal função destes se encontra
na formação de uma nova moral e uma nova cultura, que podem ser entendidas
também como uma contra-hegemonia, já que o objetivo final das lutas
organizativas seria, no seu momento histórico, o socialismo (Mari, 2007).
O nascimento da filosofia da práxis está intimamente ligado à atividade
dos intelectuais orgânicos, particularmente quando Karl Marx e Engels, em
oposição ao idealismo alemão, passam a participar ativamente nas lutas
operárias. Este novo intelectual (orgânico) é ao mesmo tempo cientista,
crítico e revolucionário, segundo Semeraro (2006, p. 130). Para o autor, é
com a filosofia da práxis que os
novos intelectuais [se tornam] politicamente compromissados com o próprio
grupo social para fazer e escrever a história e, por isso, capazes de refletir
sobre o entrelaçamento da produção material com controvertidas práticas da
reprodução simbólica.
A FILOSOFIA DA PRÁXIS EM DIÁLOGO COM A PASTORAL URBANA 93

A exigência que se faz da participação dos intelectuais vai além dos


discursos e das teorias. A partir da filosofia da práxis passou-se a ter a
necessidade de conhecer o funcionamento da sociedade, revelando os
mecanismos de dominação que eram até então encobertos pelas ideolo-
gias dominantes. Deste modo se dá a participação dos intelectuais orgâ-
nicos, pois estes fazem parte de "um organismo vivo e em expansão. Por
isso, estão ao mesmo tempo conectados ao mundo do trabalho, com
organizações políticas e culturais" (Semeraro, 2006, p. 134-135), e pró-
ximos ao seu grupo social. Para Gramsci (1999, p. 15),

todo grupo social, ao nascer do terreno originário de uma função essencial no


mundo da produção econômica, cria também, organicamente, uma ou mais
camadas de intelectuais que conferem homogeneidade e consistência da própria
função não apenas do campo econômico, como também no social e político.

É importante salientar que para Gramsci 1999, p. 16-17) todos os ho-


mens são intelectuais, mas nem todos desempenham esta função na socieda-
de. Entretanto, não se pode falar na existência de não-intelectuais, não exis-
tindo para ele atividade humana "da qual se possa excluir toda intervenção
intelectual; não se pode separar o homo sapiens do homo faber". Desta maneira,
todo ser humano exerce uma atividade intelectual em algum momento.
Gramsci atribui uma significativa importância à educação neste proces-
so de formação intelectual em seus diversos níveis, respeitando, contudo o
saber popular mesmo quando da sua falta de organização e fragmentação,
sem, no entanto abandonar a crítica e uma formação que supere o senso
comum, as crenças e preconceitos presentes no grupo (Semeraro, 2006, p.
18). Certamente essa é uma contribuição na elaboração de uma pastoral
litúrgica, que tenha na filosofia da práxis sua fundamentação teórica.

FEUERBACH: A PRÁXIS ABSTRATA


Ao buscar os fundamentos da práxis, observa-se a necessidade de
compreender a concepção de práxis em Ludwig Feuerbach, ou sej a, o seu
materialismo. Ele elaborou uma crítica da religião que, quando se viu apli-
cada ao idealismo alemão de Hegel, representou um enorme impacto para
a filosofia da época. Ao observar a crítica à religião desenvolvida por
Feuerbach em A essência do cristianismo, é possível destacar que "Deus não
existe em si e por si, isto é, como sujeito, mas sim como objeto que, sem
dúvida, é um predicado humano" (Vázquez, 1968, p. 92). Deus é produto
do homem, tornando-se essência idealizada do ser humano. A religião nada
mais é do que uma projeção do homem, e a consciência que o ser humano
tem de Deus na realidade é a que ele tem de si próprio.
94 ITINERÁRIO PARA UMA PASTORAL URBANA: AÇÃO DO POVO DE DEUS NA CIDADE

"Em Feuerbach o materialismo tem seu fundamento no homem, é


um materialismo que gira em torno do humanismo" (Manieiri, 2003).
Deus é o ideal que o ser humano produziu, uma imagem perfeita do
homem, em todos os aspectos. Ao produzir Deus como um objeto religio-
so seu, o homem o faz de forma alienada (estranhada), sem consciência
de que ele é resultado de algo produzido e idealizado pelo próprio ho-
mem. Assim se concebe o que Feuerbach denomina alienação religiosa.
Desta forma, quando Feuerbach coloca Deus como uma construção
humana e o homem como sujeito real, ele expõe a raiz antropológica da
religião e do idealismo hegeliano, ou seja, que a religião transfere a
essência humana para Deus e a filosofia idealista transfere a essência do
homem e a natureza para a "idéia absoluta". Desta forma a práxis somen-
te encontra lugar no abstrato, pois Deus é o único ser criador e ativo,
transformador efetivamente, enquanto o homem só o é por derivação, não
se vê como sujeito ativo da práxis. Aqui se evidencia o fato de que a
práxis humana é vista pelo homem como atividade "divina", quando é
de fato humana. Entretanto, como observa Feuerbach "o homem é Deus
porque o homem é Deus para o homem" (Vázquez, 1968, p. 96, 136).
Para Feuerbach, a característica misteriosa da religião é a unidade da
essência divina com a humana. Sendo Deus a própria essência humana, mas
a consciência o representa como outro ser, diferente do homem, isto é: o
homem não se vê no objeto que é seu produto e no qual objetiva sua pró-
pria essência: isto se mostra para ele como alienação (Vázquez, 1968, p.
100). Existe uma oposição entre religião e práxis, pois a religião não expres-
sa um ponto de vista teórico, mas sim prático e utilitário. Desta forma, ele
não vê uma práxis humana propriamente, nem como atividade produtiva,
que transforma a natureza; nem como atividade revolucionária no processo
das transformações sociais; e nem como prática social, pois para ele a prá-
tica possui um sentido reduzido, não sendo possível por ela fundamentar um
conhecimento (Vázquez, 1968, p. 110-114).
Ao sintetizar a concepção de práxis em Feuerbach, Vázquez (1968, p.
115) afirma que "o materialismo contemplativo de Feuerbach é incompa-
tível com a verdadeira filosofia da práxis" e que "sua práxis abstrata é a
negação da verdadeira práxis".

A CONCEPÇÃO MARXISTA DE PRÁXIS


Em suas idéias sobre práxis, os marxistas se inspiram quase sempre nas
famosas Teses sobre Feuerbach , de Karl Marx. As onze teses foram escritas
por Marx na primavera de 1845 e publicadas pela primeira vez por Engels,
em 1888, como apêndice à edição em livro da sua obra Ludwig Feuerbach e
o fim da filosofia alemã clássica (Estugarda, 1888). Feuerbach havia demons-
A FILOSOFIA DA PRÁXIS EM DIÁLOGO COM A PASTORAL URBANA 95

trado, em A essência do cristianismo, a tese, escandalosa para a sociedade da


época, de que a essência da religião é a essência do ânimo humano e que
a teologia pode ser explicada pela antropologia. Explica o autor que as
representações e segredos atribuídos a um ser sobre-humano não eram mais
do que representações humanas naturais e que aquilo que no imaginário
pairava no céu, pode ser encontrado sem maiores dificuldades no solo da
terra. Feuerbach inicia A essência do cristianismo dizendo que o homem
difere do animal por ter uma consciência no sentido estrito, ou seja, sua
consciência "tem por objeto o seu gênero, a sua essencialidade". A teoria
feuerbachiana causou profunda influência na filosofia do século XIX. Os
primeiros a se entusiasmarem com ela foram os jovens hegelianos, dentre
eles Marx. Nas teses sobre Feuerbach, Marx afirma que o sentimento reli-
gioso é um produto social relacionado a uma forma determinada de socie-
dade. Para ele, a fonte da deficiência religiosa deveria ser buscada na de-
ficiência do próprio Estado. Esta deficiência deveria ser suprimida com a
tomada de consciência do homem como um ser espécie, num coletivismo
que mudava o homem individual, abstrato (Duclós, 2007).
A análise destas onze teses é bastante significativa, pois nelas estão
expressos alguns dos princípios que norteiam o pensamento marxista. A
décima-primeira tese é uma síntese deste pensamento: "Os filósofos limita-
ram-se até agora a interpretar o mundo de diferentes modos; do que se trata
é de transformá-lo" (Marx e Engels, 2004, p. 120). A segunda e a oitava tese
expressam com clareza o pensamento de Marx sobre a práxis:

11. A questão de atribuir ao pensamento humano uma verdade objetiva não


é questão teórica, mas prática. É na práxis que o homem deve demonstrar a
verdade, isto é, a realidade e a força, o caráter terreno de seu pensamento. A
disputa a cerca da realidade ou irrealidade do pensamento.

VIII. Qualquer vida social é essencialmente prática. Todos os mistérios que


levam ao misticismo encontram sua solução racional na práxis humana e na
compreensão dessa práxis (Marx e Engels, 2004, p. 120).

O aporte filosófico moderno sobre a práxis, corresponde a K. Marx. As


idéias surgem da práxis material, ou seja, pela revolução econômica e social,
pela transformação na raiz. O marxismo afirma que o critério da verdade é
a práxis da pessoa humana. A práxis é o fundamento e fim de toda a teoria.
A partir de Marx, práxis passa a ser compreendia como "prática social",
atividade humana transformadora do mundo. Desta forma é "atividade
social conscientemente dirigida a um fim" (Marx e Engels, 2004, 173-191),
ou seja, a transformação social, a criação do novo.
96 ITINERÁRIO PARA UMA PASTORAL URBANA: AÇÃO DO POVO DE DEUS NA CIDADE

A práxis não é vista como mera atividade da consciência humana,


mas como atividade material do ser humano agindo na história. Para se
chegar a uma concepção de práxis, é necessário superar o idealismo e a
espontaneidade ingênua dos movimentos, buscando uma teoria da práxis.
Neste sentido Lênin, por exemplo, afirmou que "sem teoria revolucioná-
ria não há movimento revolucionário possível" (Vázquez, 1968, p. 8),
sem práxis não existem transformações efetivas.
Na atividade cotidiana, o homem comum, buscando responder às in-
dagações que o cercam e encontrando-se diante de desafios sociais, políticos
e econômicos, o faz de modo prático (Vázquez, 1968, p. 9), sem o distan-
ciamento necessário para se fazer a reflexão da práxis em si.
O homem comum não enfrenta as situações cotidianas de forma "pura"
ou isenta (teórica). Ele não é capaz de abstrair, pois se encontra
condicionado historicamente e socialmente a uma dada realidade, o que
faz com que suas ações sejam tidas como práticas. Por conseguinte, sua
atitude diante da práxis já implica uma consciência do fato prático, ou
seja, certa integração numa perspectiva na qual vigoram determinados
princípios ideológicos (Vázquez, 1968, p. 9).
É possível identificar a aproximação com a práxis que o homem co-
mum e as inúmeras instituições presentes na sociedade realizam, sem, no
entanto, ser uma atitude que possa ser considerada práxis, isso porque, sem
se desprender do cotidiano e ascender a um plano reflexivo, não é possível
ter uma atitude de práxis.
Vázquez (1968, p. 11) sedimenta esta idéia afirmando que, "enquanto
a consciência comum não percorre a distância que a separa da consciência
reflexiva, que tem na filosofia da práxis sua mais alta expressão, não pode
desenvolver uma verdadeira práxis revolucionária" [grifes nossos].
É possível constatar que as ações decorrentes da consciência comum
não podem ser consideradas uma atitude advinda da práxis. O ser humano
prático é um ser produtivo, que constrói de forma alienada um mundo para
os outros. O ser humano prático é meramente um ser produtivo e não re-
flexivo e suas ações, por sua vez, não são transformadoras da realidade nem
criadoras do novo.
Assim, é possível identificar duas atitudes do ser humano comum: a
primeira é o que Vázquez denomina politicismo "prático", ou seja, uma con-
cepção pragmática, esvaziando toda a reflexão política das ações que são
tomadas em nome da prática, abrindo-se com isso espaço para a manuten-
ção das forças que oprimem o ser humano e possibilitam a perpetuação das
relações que impedem as ações transforrnadoras: a segunda atitude do ser
humano prático é o apoliticismo, isto é, o abandono total da reflexão política
e o apego às iniciativas individuais que de igual modo permitem que as
A FilOSOFIA DA PRÁXIS EM DIÁLOGO COM A PASTORAL URBANA 97

estruturas sociais que oprimem e escravizam o homem permaneçam na


sociedade. Tanto o politicismo como o apoliticismo são destituídos da re-
flexão, elemento necessário na práxis que transforma de maneira criativa e
radical a sociedade.
Tanto a prática sem reflexão como a falta de uma atitude na sociedade
estão a serviço da legitimação e manutenção de forças que detêm o controle
das sociedades capitalistas e de todos os seus aparatos sociais, políticos e
econômicos.
liA práxis é, portanto, a revolução, ou crítica radical, que, corres-
pondendo a necessidades radicais, humanas, passa do plano teórico ao prá-
tico" (Vázquez, 1968, p. 128).
Não existe a possibilidade de emancipação e supressão das desigualda-
des entre as classes sociais sem atitude práxis, porque nem a teoria e nem
a prática ou a existência social podem libertar o ser humano.

A PRÁXIS EM CASIANü FLüRISTÁN


Em T eología práctica, de Casiano Floristán, é possível identificar o quanto
sua formulação teórica sobre a filosofia da práxis vem ao encontro do que foi
constatado até aqui a partir de Marx e Gramsci, ao mesmo tempo em que se
propõem elementos próprios a partir da reflexão teológica e pastoral.
Floristán (2002, p. 180) compreende que nem toda atividade ou ação
humana é práxis. Os traços característicos da práxis são, para ele:
1) Ação criadora - e para isso é necessário certo grau de consciência
critica. A práxis criadora é inovadora frente às novas realidades.
2) Ação reflexiva - a superação da espontaneidade exige um alto grau
de reflexão. Toda ação exige a reflexão permanente e crítica para traçar
objetivos claros.
3) Ação libertadora - existe práxis na medida em que existe um pro-
jeto de libertação. A transformação das estruturas sociais é o fim de toda
práxis, bem como a ação para promover a liberdade humana.
4) Ação radical e não-reformista - a práxis tem como objetivo transfor-
mar a organização em direção à sociedade, mudando as relações econômicas,
políticas e sociais. Numa sociedade que se divide em classes este processo de
transformação radical resulta na luta de classes. Disto advém a atividade
política que busca a transformação social na sua raiz (radicalidade). Na cons-
trução de uma sociedade nova, sinalizada pela liberdade e pela igualdade, é
necessária uma mudança pela raiz e não uma simples reforma.
A práxis, para Floristán, é atitude que: cria, reflete, liberta e transforma
(na raíz). Não possui um caráter meramente reformista ou de sustentação
e legitimação da ordem vigente. No sentido teológico é possível afirmar que
a práxis possui um caráter profético muito evidente. Esta síntese feita a
98 ITINERÁRIO PARA UMA PASTORAL URBANA: AÇÃO DO POVO DE DEUS NA CIDADE

partir de Floristán permite a avaliação da práxis presente na sociedade,


sej a ela proveniente do campo religioso ou não.
Floristán (2002, p. 182) afirma que "nem todas as práxis são legítimas".
Para verificar a legitimidade de uma práxis, é necessário avaliá-la e criticá-la
a partir de uma perspectiva ideológica, política e econômica. Uma observação
importante a fazer é se a práxis em questão valoriza o povo e possibilita a
elevação da consciência critica e transformadora. Neste sentido, é preciso
verificar se a práxis possui uma dimensão reflexiva, se faz o caminho que
separa a consciência do homem comum em direção à consciência reflexiva.
Para Floristán (2002, p. 194), não existe uma práxis específica do cris-
tianismo, ou como algo propriamente evangélico. Para ele, "todos os atos
são cristãos na medida em que são realmente humanos". Para sustentar esta
idéia ele aponta três razões (Floristán, 2002, p. 194-195):
a) As ações e práxis possuem valor por seu conteúdo concreto;
b) As ações e práxis nunca são neutras, sempre desejam;
c) O sentido e o significado das ações só podem residir em quem as
executa.
Existe, portanto, a possibilidade de haver cristãos na ação e fundamen-
tados na filosofia da práxis, mas não há uma práxis cristã propriamente. Na
eucaristia, somente pela fé se pode dizer que é uma práxis cristã (por sina-
lizar a necessidade da partilha e da igualdade). Nesta direção, Floristán
(2002, p. 194) afirma que,

sem dúvida, em termos históricos, pode haver umas características próprias


da práxis dos cristãos. Alguns destacam a fraternidade, o amor aos inimigos,
o perdão etc. Na realidade, não há uma práxis essencialmente cristã pelo
qual o evangelho tenha qualquer outro traço distinto frente a qualquer
outra práxis humana.

Por outro lado, o cristão não aceita uma práxis fora da sua fé, assim
como o não cristão não necessita de fé. O autor afirma que em termos
históricos pode haver algumas características próprias na práxis dos cristãos:
a fraternidade; o amor aos inimigos e o perdão. Não há, portanto, uma
práxis cristã distinta de qualquer outra práxis humana.
Para M. Lefevbre existem três níveis da prática: a repetitiva; a mimética,
que cria pela imitação; e a inovadora, sobretudo na ação revolucionária. O
teólogo Clodovis Boff define práxis como "o conjunto de práticas que tendem
a transformação da sociedade ou a produção da história" compreende-se que
a práxis possui, portanto, uma dimensão política. Para Floristán (2002, p. 176-
177), o binômio teoria /práxis se estabelece, mediante a reflexão e a ação.
Entre teoria e prática há uma relação dialética e permanente dinâmica, por
A FILOSOFIA DA PRÁXIS EM DIÁLOGO COM A PASTORAL URBANA 99

vezes conflitante, que deve buscar a superação pela síntese. Certamente


haverá a supremacia da práxis sobre a teoria.
O homem comum em geral se move com esquemas mentais teóricos,
coletivos e ambientais, que correspondem à cultura em vigor que em geral é a
dominante. Assim, este homem vive ideologizado e manipulado. A consciência
geral, em certos estágios e culturas, é fatalista e mágica. O homem prático
resiste a qualquer teoria, sem se dar conta de que se move com algumas teorias
alheias a si mesmo e em geral ultrapassadas, não admitindo que "o melhor
remédio para uma prática ruim é uma boa teoria" (Floristán, 2002, p. 179-180).
Desta forma, Floristán compreende a práxis a partir das concepções
marxistas, ou seja, a mudança social e o compromisso aqui chamado de mi-
litante e em Gramsci como orgânico, com as transformações estruturais e uma
atitude critica. É renovação do sistema social e emancipação pessoal e social.
Ele analisa as relações entre fé e práxis, compreendendo que o cristianismo
é uma comunidade de narração, detentora de uma práxis profética, sendo a
memória cristã repleta de "recordações perigosas", que são simbolizadas nos
sacramentos, particularmente na eucaristia, e que se expressam historicamen-
te. Essa memória da justiça e do direito em Jesus é em certo sentido "subver-
siva" e criadora de novos sinais na sociedade e do homem novo.
A práxis não é mera atividade da consciência humana, mas atividade
material do ser humano agindo na história. Para se chegar a uma concepção
de práxis, é necessário superar o idealismo e a espontaneidade ingênua. Na
atividade cotidiana, o homem comum, buscando responder às indagações
que o cercam e encontrando-se diante de desafios sociais, políticos e eco-
nômicos, o faz de modo prático (Girardi, 2003, P- 9), sem o distanciamento
necessário para se fazer a reflexão da práxis em si, que possibilite transfor-
mações efetivas e superação consciente.
Como observado anteriormente, o homem comum não enfrenta as
situações cotidianas de forma "pura" ou isenta. Ele não é capaz de abstrair,
pois se encontra condicionado historicamente e socialmente a uma dada
realidade, o que faz com que suas ações sejam tidas como práticas.
Na construção de uma sociedade nova, sinalizada pela emancipação de
todas as pessoas e pela igualdade, é necessária uma mudança pela raiz e não
uma simples reforma que acomoda e encobre os sinais de morte e injustiça.
O anúncio do evangelho sinaliza esta nova sociedade e alimenta a esperan-
ça de transformação social. Nesta direção a práxis pastoral litúrgica colabora
para dar uma interpretação às novas dinâmicas sociais e econômicas, pos-
sibilitando a descrição e análise da complexidade imposta pela globalização
neoliberal. Para que haja maior êxito nesta tarefa, a pastoral litúrgica deve
buscar fundamentação na práxis, como método de observação, reflexão e
ação sobre a realidade.
100 ITINERÁRIO PARA UMA PASTORAL URBANA: AÇÃO DO POVO DE DEUS NA CIDADE

Ao ter a práxis como referencia no fazer litúrgico, a interpretação


dos sinais oriundos da globalização neoliberal torna-se mais precisa e
propositiva, possibilitando a resistência e a denúncia dos aspectos per-
versos desta globalização. Por isso é necessário conhecer em profundida-
de o espaço em que a pastoral litúrgica irá se desenvolver, pois, sem uma
leitura cuidadosa da realidade, toda construção tende à abstração.

PASTORAL URBANA NO MUNDO GLOBALIZADO


A práxis como atividade material do ser humano é ação trans-
formadora, que objetiva a supressão das injustiças e desigualdades presentes
na sociedade. Sem reflexão e leitura cuidadosa da realidade não existe ati-
vidade-práxis. Mas não basta a reflexão e análise para a práxis. Antes ela se
desdobra em uma ação concreta frente aos desafios históricos que são apre-
sentados aos seres humanos.
A globalização neoliberal em todos os seus contornos, seja o econômico,
o político, o cultural ou o religioso, é um desafio para o ser humano moderno.
Ela modelou, nas últimas décadas, uma sociedade nova, centrada em valores
que confrontam a Igreja e a humanidade. Ela avança sem limitações, forçando
os países da periferia do capitalismo a abrirem seus mercados aos países cen-
trais, privatizando suas economias, flexibilizando os direitos trabalhistas e
impondo ajustes econômicos por meio de organismos internacionais como o
FMI (Fundo Monetário Internacional) e o Banco Mundial, o que não somen-
te impede o desenvolvimento destas economias como também contribui para
perpetuar a exclusão social, impedindo o investimento em áreas sociais vitais
para a sobrevivência dos pobres e excluídos.
A Igreja, não pode ignorar a globalização neoliberal imposta à socie-
dade, como um elemento que norteia as ações dos indivíduos, e as mudan-
ças culturais dos diferentes grupos de países. Diante das pressões para impor
o "pensamento único", fica o desafio constante de buscar, na diversidade de
pensamentos, alternativas criativas para a superação dos problemas que
tocam a humanidade que vive sob os efeitos deste modelo econômico per-
verso e excludente.
As reflexões alheias aos processos de decisão global talvez considerem
como única possibilidade a intervenção tão somente em nível local e pon-
tual. É importante notar que não se pode ignorar a importância das ações
locais bem intencionadas, que visam às transformações políticas e econômi-
cas ea emancipação humana. Entretanto, uma reflexão isenta de crítica,
que desconsidere os efeitos da globalização neoliberal nas localidades e se
conforme com a inevitabilidade da imposição da exploração imposta pelo
mercado global, não dará conta de responder a todas indagações e proble-
mas presentes na localidade.
A FILOSOFIA DA PRÁXIS EM DIÁLOGO COM A PASTORAL URBANA 101

Não resta duvida de que as ações devem exercidas também no local,


num determinado contexto cultural, político e econômico, e que necessitam
de um exame dentro deste contexto. Entretanto, tais análises precisam dar
o salto de uma consciência comum para uma consciência reflexiva, ou seja,
para a práxis, que supera a miopia da "análise local" considerando a rele-
vância do global, que é, em última instância, o lugar onde as forças eco-
nômicas agem e as decisões são efetivamente tomadas, afetando a vida de
todos os indivíduos.
Uma pastoral urbana que busca seus fundamentos na filosofia da práxis
certamente possui ações que são locais, dentro de um contexto social espe-
cífico e facilmente reconhecido. Entretanto, tais ações não podem se
desvincular de uma reflexão conjuntural que considere criteriosamente a
dinâmica imposta pela globalização neoliberal, que segue vitimando homens
e mulheres em todo o mundo.
A pastoral no contexto urbano, ao buscar seu instrumental analítico
na filosofia da práxis, certamente irá apontar para a necessidade de trans-
formações que sinalizem os valores do reino de Deus: paz, justiça igual-
dade e libertação humana.

REFERÊNCIAS
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SEMERARO, Giovanni. Gramsci e os novos embates da filosofia da práxis. São Paulo: Idéias & Letras, 2006.
VÁZQUEZ, Adolfo Sánchez. Filosofia da práxis. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1968.
LUTO E EXISTÊNCIA
NA PERSPECTIVA PASTORAL
DA CIDADE

Blanches de Paula*

C
orno a idéia de "luto e existência" se aproxima da discussão sobre
a pastoral urbana? Esta indagação envolve uma série de outras in-
quietações nesse contexto. Nosso olhar, no presente artigo, é uma
tentativa de encontrar caminhos e perspectivas metodológicas que iluminem
a construção de pastorais na cidade. A realidade das perdas no seio das
cidades não é novidade. Mas o desafio é como adentrar o diálogo sobre o
tema na ótica da pastoral. O caminho por nós escolhido é buscar recursos
na filosofia, na psicologia e, evidentemente, na teologia.
Assim, o presente trabalho é um ensaio em tomo de uma aproximação
do método fenomenológico e do fazer teológico-pastoral. Portanto, uma
primeira aproximação que objetivou, pedagogicamente, apropriar-se de um
novo saber que coloca como questão a própria formação na produção de
conhecimento. Nesse sentido abordamos esse exercício interdisciplinar em
três momentos. O primeiro momento tratou de conceitos básicos de
fenomenologia e das principais concepções que envolvem o método
fenomenológico. No segundo momento adentramos os pressupostos básicos
da práxis religiosa e o método fenomenológico. No terceiro momento des-
tacamos aspectos relevantes sobre o luto como um fenômeno a ser estudado
pela práxis religiosa através do método fenomenológico.

LUTO E FENOMENOLOGIA:
APROXIMAÇÕES INTRODUTÓRIAS
Para começarmos a tecer alguns fios dos ricos caminhos oferecidos pela
fenomenologia é necessário adentrarmos no universo de conceitos que
perpassam essa forma de olhar o mundo. Falar de fenomenologia está

* Psicóloga e pastora da Igreja Metodista, é doutoranda do Programa de Pós-Graduação em


Ciências da Religião da Universidade Metodista de São Paulo.
E-mai!: blanches.paula@metodista.br.
104 ITINERÁRIO PARA UMA PASTORAL URBANA: AÇÃO DO POVO DE DEUS NA CIDADE

embrenhado de uma interdisciplinaridade que foi conjugada no seu próprio


nascedouro. Edmund Husserl (1839-1938), considerado pai do método
fenomenológico, começou a se interessar pelas ciências com sacerdote ca-
tólico alemão Franz Brentano (1838-1917). Husserl avançou na sua percep-
ção do mundo com a preocupação de ver as essências das coisas através dos
fenômenos da vida cotidiana. A fenomenologia é um mundo amplo de
perspectivas, porém, com um ponto de convergência: é o ser humano que
atribui significado à sua existência. Escreve Dagmar de Castro (2000, p. 66):

Vale lembrar o seguinte: fenomenologia é um método e não uma filosofia da


existência. Como método, pode ser utilizado pelas mais diferentes áreas do
conhecimento, pelas mais diferentes ciências e meios de expressão que o
homem possa desenvolver.

Assim, de acordo com Dagmar, a fenomenologia está aberta a interagir


com as diversas facetas das ciências. Ela envolve a consciência e os signi-
ficados dos objetos que estão aí no mundo para serem observados, percebi-
dos. Imaginação/percepção/significação é um tripé indispensável no enten-
dimento da fenomenologia. Ademais, percebe-se que um contingente sig-
nificativo de seguidores da fenomenologia procurou expressá-la de diferentes
formas no estudo científico da vida humana.
Como um dos expoentes mais destacados, como uma espécie de pai da
fenomenologia no século passado, Husserl procurou integrar a objetividade
e a subjetividade, a razão e a emoção, como se procurasse as estruturas da
realidade não só em uma análise racional ou romantizada da realidade.
Para o entendimento e um aprofundamento do conceito da feno-
menologia - sobre o qual se pode ler, por exemplo, o artigo "A articulação
do método fenomenológico", de Dagmar Castro (2000) -, são indispensáveis
alguns pressupostos básicos:
• Estrutura intencional da consciência;
• Objetivação da subjetividade humana;
• Análise da subjetividade humana nas facetas transcendental, exis-
tencial, histórica e social;
• Como método, a fenomenologia apresenta-se como analítica,
dialética, estrutural e descritiva.
Um conceito muito significativo para a compreensão da fenomenologia
é o de Lebenswelt - termo alemão que significa "mundo da vida". Nesse
mundo da vida é que encontramos as estruturas analíticas da vida humana.
A aproximação da fenomenologia com as ciências humanas é possível de-
vido a um mundo de interesses estreito. A proposta da fenomenologia é
fazer ciência a partir do mundo da vida.
LUTO E EXISTÊNCIA NA PERSPECTIVA PASTORAL DA CIDADE 105

Assim, a experiência presente tanto nos métodos científicos como no


mundo da vida ganha seu status de articuladora do repensar metodologicamente
a vida, sem tirar dela a ciência e a existência. A fenomenologia também traba-
lha a noção de consciência que temos em relação à pesquisa e à vida. A relação
sujeito/objeto agora é visualizada como sujeito/objeto/mundo.
A fenomenologia envolve também o universo de crenças e valores de
cada pessoa. Portanto, é vital reafirmar que a fenomenologia é o estudo das
essências, da percepção da vida, da consciência em relação a essa mesma
vida. Evidentemente que há um mundo hermenêutica que envolve a
fenomenologia, pois no seu método o sujeito exporá sua percepção e o sen-
tido de mundo, de sua própria experiência. Nesse sentido tanto pesquisador,
como seu foco de investigação, passam pelo processo de reaprender a ver o
mundo. É importante ressaltar que os estudos da fenomenologia também se
inter-relacionam com facetas da vida humana no que tange às esferas so-
ciais, políticas, econômicas, corporais. Quanto a estas últimas, ressalta-
mos os estudos de Maurice Merleau-Pontv. Escreve ele:

o corpo é apenas um elemento no sistema do sujeito e de seu mundo, e a


tarefa obtém dele os movimentos necessários por um tipo de atração à distân-
cia, assim como as forças fenomenais que operam em meu campo visual
obtêm de mim, sem cálculo, as reações motoras que estabelecerão o melhor
equilíbrio entre elas, ou assim como os usos de nosso círculo, a constelação
de nossos ouvintes imediatamente obtêm de nós as falas, as atitudes, o tom
que lhes convêm, não porque procuremos agradar ou disfarçar nossos pensa-
mentos, mas porque literalmente somos aquilo que os outros pensam de nós
e aquilo que nosso mundo é (Merleau-Pontv, 1999, p.154).

As afirmações de Merleau-Ponty levantam algumas nuances vitais para


o processo do luto e a práxis religiosa. A dor humana desencadeada no
processo do luto é sentida na sua exterioridade no corpo. A dor da perda
publica sua presença no corpo de diversas formas. É no corpo que o luto
demonstra seu toque, sua presença, mas também a possibilidade de rever a
maneira com que se vive. O contexto religioso é um espaço promissor para
se pensar o luto também na ótica do corpo. Com interpretações que con-
sideram o corpo como espaço do pecado, a religião é uma devedora de
estudos que discutam a existência e o sentido da mesma em meio aos de-
safios de temas como sofrimento e sexualidade, por exemplo.
É importante ressaltar que o corpo é uma faceta dos estudos da
fenomenologia, porém de intensa importância para o seu método. O corpo
é considerado como um fenômeno da experiência humana. O corpo também
explicita as incoerências do saber e da convivência humana na proliferação
106 ITINERÁRIO PARA UMA PASTORAL URBANA: AÇÃO DO POVO DE DEUS NA CIDADE

de guerras, doenças, hedonismo, objetos. De certa forma, ao falarmos do


método fenomenológico que inclui a dimensão do corpo, nos aproximamos
também do sentido dado à vida a partir das situações-limite e das poten-
cialidades da vida. Nesse particular encontramos o tema do luto.
Encontramos o sentido dado não só pelas pessoas que estão viven-
ciando situações-limite, mas também pelos/as cuidadores/as dessas pessoas.
As relações humanas estabelecidas nesse cuidado também são palco dos
estudos da fenomenologia existencial. Por exemplo, o conforto oferecido às
pessoas, por ocasião de uma perda, expressa uma percepção do mundo do
outro, uma necessidade humana vital em momentos como esse. Essa percep-
ção vai além de olhar o somente corpo, atingindo toda a existência. Portan-
to, envolve também os gestos, a fala, o toque que exprime respeito, digni-
dade e confiança no humano.

PRÁXIS RELIGIOSA E FENOMENOLOGIA


O "diálogo" entre religião e ciência foi marcado por aproximações e
distanciamentos provindos de posições acirradas que sustentavam as dificulda-
des de relação entre as mesmas. Falando-se do diálogo das ciências da religião
com a psicologia, percebem-se avanços significativos que nos permitem
aprofundar a investigação científica. Giovanni Filoramo e Carlo Prandi (1999,
p. 197) expõem uma recapitulação do momento histórico desse diálogo:

Em outros termos, o que se tende a superar de modo definitivo, no debate


metodológico mais recente, é o fundo ideológico de tipo cientificista (com as
inevitáveis reações de tipo confessional e apologético), com que se defrontou
a primeira psicologia da religião, reforçado o advento da psicanálise, o que
contribuiu para criar, até não muitos anos atrás, um muro - que a muitos
parecia intransponível - entre psicologia e religião.

As pesquisas que tecem a interface de uma ou mais ciências têm con-


tribuído sensivelmente para uma releitura da dimensão religiosa do ser
humano como parte do estudo da psicologia. Retratam um desenho
belíssimo da vida humana face às quatro humilhações que, segundo
Gottfried Brakemeier (2002), teólogo luterano, o ser humano sofreu em
busca de um sentido de existir, pois a religião não conseguia mais responder
sozinha à pergunta pelo ser superior: a cosmológica, a biológica, a psicana-
lítica e a genética. A práxis religiosa e a psicologia social da religião também
podem se encontrar, garantidas as diferenças de atuação e de alcance na
orientação às pessoas.
As possíveis intersecções entre práxis religiosa e fenomenologia estão
relacionadas a duas expressões básicas no universo de cada uma delas: fe-
LUTO E EXISTÊNCIA NA PERSPECTIVA PASTORAL DA CIDADE 107

nômeno e religião. A práxis religiosa está vinculada intimamente ao fenô-


meno religioso. O olhar da práxis religiosa adjetiva o fenômeno e acrescenta
o viés da criticidade. Outro elemento fundamental que compõe os alicerces
da práxis religiosa é sua relação direta com a sociedade. Evidentemente, não
visa unicamente construir um saber para a sociedade, mas com e a partir da
sociedade. Portanto, como área do conhecimento a práxis religiosa nos
orienta metodologicamente em como construir o saber com os sujeitos que
participam do cotidiano que envolve a todos nós.
Assim como nos estudos da fenomenologia, a práxis religiosa interage
com outras ciências e o contexto cultural de onde parte para construir um
conhecimento. Essa obviedade não a generaliza, mas a torna específica no
âmbito das ciências da religião, como uma área que olha o cotidiano não
simplesmente como objeto de pesquisa, mas procura interagir com esse
cotidiano através de alguns aspectos:
• Constrói o conhecimento com os sujeitos de suas pesquisas;
• Procura resguardar que o saber não está de um só lado do processo
de pesquisa;
• O conhecimento construído é intencionalmente transformador;
• A produção de conhecimento questiona métodos que não focalizam
a vida como seu principal alvo de desaguamento do saber.
A práxis religiosa também questiona como a religião na história, pes-
quisa e inserção na sociedade pode contribuir com a dignidade da vida em
comunidade, resguardando a identidade individual. É claro para a práxis
religiosa que o fenômeno religioso pode ser analisado por várias ciências,
mas oferece um caminho metodológico de dentro do cenário religioso e suas
propostas para a vida humana. Assim, o cuidado metodológico, é vital para
o distanciamento crítico necessário nas suas pesquisas.

APROXIMAÇÕES METODOLÓGICAS COM


O PENSAMENTO DE CASIANO FLORISTÁN
Casiano Floristán, sacerdote católico, catedrático de Teologia Pastoral
na Universidade Pontifícia de Salamanca (Espanha), considera que o método
está muito além de uma reunião de procedimentos e técnicas de pesquisa. É
um caminho de aprendizagem mútua que deve nortear maneiras de compre-
ensão e sentido do universo da pesquisa. Ao falar do método na teologia,
exemplificá um caminho reconhecidamente científico "em correlação ou em
confrontação com a experiência histórica humana" (Floristán, 2002, p. 355).
O autor aborda nuances importantes da construção do método em te-
ologia, destacando alguns aspectos indispensáveis para refletirmos na pesquisa:
fé, concepção de Deus, tradições religiosas, contemporaneidade, experiência
humana. Nesse sentido, encontramos pontos de intersecção extremamente
108 ITINERÁRIO PARA UMA PASTORAL URBANA: AÇÃO DO POVO DE DEUS NA CIDADE

próximos do método fenomenológico que parte do que se apresenta diante


de nós, ou seja, da experiência da vida e de suas correlações de sentido.
Na discussão sobre método é indispensável visualizar suas considerações
sobre teologia prática e as reflexões levantadas pelo mesmo. A formulação
teológica não é engessada, mas clarificada com a visão crítica da práxis his-
tórica de comunidades de fé, bem como as hermenêuticas utilizadas para o
entendimento, a compreensão, a interpretação da situação humana.
Floristán destaca dois métodos dentro da teologia prática: o indutivo
e o empírico-crítico. O primeiro, muito conhecido na teologia latino-ame-
ricana, utiliza três verbos que norteiam a pesquisa nessa área: ver, julgar e
agir. No segundo método, há fases que podem estabelecer conexões impor-
tantes com o método fenomenológico. As fases são kairológica, projetiva e
estratégica. A proposta do método em teologia prática ilumina a práxis
religiosa na sua forma de interferência na realidade. Essa interferência não
é uma exaltação à onipotência religiosa, mas uma busca de caminhos que
soma saber científico e cotidiano ao processo de mudanças que a relação
com a realidade considera necessário.
Como mencionado anteriormente, os desdobramentos do método em
teologia prática nos oferecem possibilidades de encontrar maneiras de lidar
com a vida de forma criativa, pedagógica e aprendente. Um desses braços
metodológicos está circunscrito ao que Floristán denominou revisão de vida.
Como um método pedagógico da fé, nos possibilita um contato com o sen-
tido da vida tão presente no método fenomenológico.
Como um braço metodológico, a ação pastoral é definida como a prá-
tica da fé cristã por uma comunidade-igreja que atinge os relacionamentos
interpessoais promovendo a nutrição da fé de seus membros. Portanto, a
ação pastoral é comunitária, acontece através de interligações de várias
áreas da igreja: educação, diaconia, aconselhamento, pregação, espiri-
tualidade. Conforme Floristán (2002, p. 140), "por ação pastoral entende-
mos a totalidade da ação da Igreja e dos cristãos, a partir da práxis de Jesus,
para a implantação do reino de Deus na sociedade".
Portanto, a ação pastoral não é somente do/a pastor/a, mas da comuni-
dade-pastora que busca uma prática do cuidado em todas as situações enfren-
tadas por seus membros. O que caracteriza a ação pastoral é uma prática
conjunta das comunidades que procuram, através de atitudes, cumprir os
valores disseminados pelo grupo. É importante afirmar que o termo práxis se
aplica nessa definição, já que abarca a reflexão e a prática. Portanto, não há
como falar de ação pastoral sem incluir os dois pólos da mesma expressão.
A ação pastoral de uma comunidade religiosa oferece caminhos
metodológicos de leitura da realidade e especificamente na ótica do luto.
Essa leitura da realidade gera uma hermenêutica e uma nova ação pastoral.
LUTO E EXISTÊNCIA NA PERSPECTIVA PASTORAL DA CIDADE 109

Mauro Koury (2003, p. 35) nos ajuda a fazer esse exercício metodológico
sobre o contexto do luto em terras brasileiras:

Socialmente, parece, a tendência da nova sensibilidade emergente no Brasil


de negar a morte e o sofrimento pela morte na esfera social vem sendo feita
através de uma ênfase na morte como código norteador e ameaçador atrás de
regras sociais. Configura-se no adotar o ponto de vista da resignação social
como constructo possível do ser moral na modernidade. Resignação do eu
constrangido na intimidade, para dar lugar ao indivíduo indiferente e frag-
mentado no social.

Percebe-se que o universo metodológico que norteia a relação entre


práxis religiosa, fenomenologia e o tema do luto é rico de desafios e possi-
bilidades de pesquisa em ciências da religião. Nesse sentido a práxis religiosa
com sua identidade interdisciplinar facilita o processo de desenvolvimento
de pesquisa no ambiente religioso pela sua inserção na sociedade e o estudo
dos fenômenos advindos desse cenário.

LUTO E EXISTÊNCIA: CONTRIBUIÇÃO DO MÉTODO


FENOMENOLÓGICO PARA OS ESTUDOS SOBRE O LUTO
O luto é um processo desencadeado por uma perda. Nesse processo há
reações diferenciadas entre as pessoas. Algumas expressões que explicitam
esse momentos são: "meu mundo caiu", "não sei se irei suportar", "nunca
pensei que isso pudesse acontecer comigo". Esses são alguns exemplos do
impacto causado pelo processo do luto na vida de qualquer pessoa. O luto
nos tira do patamar da vida que estamos vivendo e nos transpõe para uma
dimensão muitas vezes desconhecida, sofrida e nova. As pessoas começam
a encarar a vida de forma diferente, algumas de forma amarga, outras com
uma ressignificação da vida, outras com a esperança renovada. Portanto, o
luto está vinculado ao que Husserl denominou Lebenswelt e à práxis reli-
giosa. Quanto à práxis religiosa, o vínculo é intenso principalmente por-
que as pessoas procuram "razões" para explicar a perda sofrida. Uma
dessas "razões" pode ser o "desamparo divino".
Os estudos que permeiam o tema do luto tocam também o que deno-
minamos hoje de busca do sentido da vida. Esse tema está ligado diretamen-
te ao amparo recebido desde a infância e que deve deixar uma matriz que
ofereça suporte às pessoas no decorrer de suas vidas. O processo do luto
precisa, portanto de um "treino" infantil e que amadurece com a vida e o
saber lidar com frustrações e perdas ao longo do ciclo vital.
Para tanto podemos citar a clássica pesquisa da médica suíça Elisabeth
Klüber-Ross, A partir da descrição dos relatos de pacientes no processo
110 ITINERÁRIO PARA UMA PASTORAL URBANA: AÇÃO DO POVO DE DEUS NA CIDADE

de morrer, a autora sistematizou esse momento através dos estágios do pe-


sar, do luto, para quem está na fase terminal da vida (Klüber-Ross, 2000).
1) Primeiro estágio: negação e isolamento - Como os próprios termos in-
dicam, o primeiro estágio é a experiência da não-crença no que está acon-
tecendo consigo mesmo. A negação pode ser seguida de um choque inicial.
Evidentemente que a negação é um mecanismo de defesa da pessoa diante do
limite da vida. "Em suma, a primeira reação do paciente pode ser um estado
temporário de choque do qual se recupera gradualmente. Quando termina a
sensação inicial de torpor e ele se recompõe, é comum no homem esta rea-
ção: 'Não, não pode ser comigo'" (Klüber-Ross, 2000, p. 47).
2) Segundo estágio: raiva - O estágio da raiva expressa a impotência e
a falta de controle para lidar com a situação-limite. Geralmente nesse es-
tágio predomina a clássica pergunta: Por que eu? Nesse estágio é essencial
entender a raiva do paciente, possibilitando a expressão da mesma, que está
ligada com a "indignação" diante da morte.
3 ) Terceiro estágio: barganha - O terceiro estágio é uma espécie de
acordo com pessoas que significam segurança, proteção para a pessoa. Deus
geralmente é o alvo das barganhas feitas nesse estágio. A barganha está
ligada a um sentimento de culpa. É uma dívida afetiva com alguém ou com
um tipo de comportamento não-aceitável realizado pela pessoa no passado,
que para ela pode ter desencadeado a enfermidade. Segundo Kiüber-Ross,
a barganha, na realidade, é uma tentativa de adiamento; inclui um prêmio,
oferecido, "por bom comportamento", estabelece também uma "meta" auto-
imposta e uma promessa implícita de que o paciente não pedirá outro adi-
amento, caso o primeiro seja concedido.
4) Quarto estágio: depressão - Essa fase é marcada por uma grande sen-
sação de perda. Segunda Maria Júlia Kovacs (2002, p. 200), "é um estado de
preparação para a perda de todos os objetos amados". Klüber-Ross apresenta
dois tipos de depressão: a reativa e a preparatória. Ambas estão relacionadas
com um preâmbulo para aceitação ou não da perda. Nesse sentido, a família
da pessoa que está morrendo precisa de um acompanhamento no sentido de
orientá-la a deixar o paciente expressar os sentimentos de perda.
5) Quinto estágio: aceitação - O estágio da aceitação advém quando
cessam as possibilidades de tratamento e a morte se torna mais próxima.
Nesse estágio a pessoa de certa forma cessa de lutar e chega até a ter uma
melhora repentina, como se fosse uma preparação para a hora derradeira.
É também o período em que a família geralmente carece de ajuda, compre-
ensão e apoio, mais do que o próprio moribundo.
Quando falamos de luto, não podemos nos esquecer da dimensão
cultural que envolve esse tema. O luto tem sido estudado por áreas di-
ferenciadas das ciências através do tema da morte. Os referencias étni-
LUTO E EXISTÊNCIA NA PERSPECTIVA PASTORAL DA CIDADE 111

cos modificam consideravelmente a concepção de morte e também do


processo de luto. Além das diferenças culturais, não podemos deixar de
destacar o contexto existencial que atinge as noções de luto em nossa
sociedade. Nesse sentido a sociedade envolvida pelo tecnicismo apresen-
ta uma tendência a não lidar com temas que envolvem perdas, sofrimen-
tos. A pregação sobre o prolongamento da vida, pelos profissionais que
utilizam aparelhos e máquinas hospitalares para salvar vidas, traz um
paradoxo estonteante para nossa ética. Um deles é o acesso da popula-
ção economicamente excluída dos padrões da saúde que tem acesso a
um atendimento digno na área de saúde. Essas pessoas estão fadadas a
morrerem "mais cedo"?
Outro dado importante está na perspectiva das pessoas em relação ao
futuro. O vazio que envolve o cenário hodierno produz doenças como a
depressão, síndrome do pânico e aquelas decorrentes da não-elaboração do
luto. Não só a discussão sobre o luto em si na área da saúde, mas as implica-
ções do luto, a partir do referencial religioso, é vital para estabelecer conexões
com os rituais necessários no dia-a-dia de todos nós. Os rituais de transição,
de perdas são indispensáveis para uma elaboração do luto de forma saudável.
A pesquisa em ciências da religião e, mais especificamente, a práxis
religiosa envolve uma gama de conhecimentos que trazem desafios metodo-
lógicos diante do cotidiano de todos nós.
Discorrer sobre o luto é um desafio constante para as ciências da re-
ligião, por seu caráter interdisciplinar e por suas pesquisas que procurar
somar-se às demais áreas que buscam contribuir para o bem-estar da socie-
dade. O tema não é simples, mas está presente no cotidiano das pessoas, de
nossos sentidos, de nossas consciências, de nossas certezas e incertezas, de
nossa fé e de nossas dúvidas, de nossas esperanças.
As bifurcações metodológicas aventadas no presente trabalho procu-
raram detectar eixos comuns entre fenomenologia e práxis religiosa no
território do luto. As possibilidades hermenêuticas encontradas contribuíram
para nutrir a continuidade da pesquisa sobre o luto nas ciências da religião.
É vital reafirmarmos também que na sociedade brasileira o tema do
luto continua sendo um tabu não só no seu cotidiano, mas também em
algumas áreas das ciências. Pode-se arriscar que trazer o tema do luto para
as ciências da religião e mais especificamente para a práxis religiosa é indis-
pensável como contribuição para a saúde pública de nossa sociedade.
Os caminhos metodológicos foram iniciados. É mister considerar que
a dimensão metodológica nas pesquisas da práxis religiosa pode ser
enriquecida com o exercício da aprender constantemente a construir o
conhecimento a partir da realidade que perpassa a existência humana. Que
esse desafio continue inspirando a continuidade dessa e de novas pesquisas.
112 ITINERÁRIO PARA UMA PASTORAL URBANA: AÇÃO DO POVO DE DEUS NA CIDADE

REFERÊNCIAS

BRAKEMEIER, Gottfried. ° ser humano em busca da identidade. São Leopoldo: Sinodal, 2001.
FLORISTÁN, Casiano. Teología práctica. Salamanca: Sígueme, 2002.
KLÜBER-ROSS. Elisabeth. Sobre a morte e o morrer. São Paulo: Martins Fontes, 2000.
KOVACS, Maria Júlia. Morte e desenvolvimento humano. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2002.
KOURY, Mauro Guilherme Pinheiro. Sociologia da emoção: o Brasil urbano sob a ótica do luto.
Petrópolis: Vozes, 2003.
MERLEAU-PONTY, Maurice. Fenomenologia da percepção. São Paulo: Martins Fontes, 1999.
FILORAMO, Giovanni; PRANDI, Carlo. As ciências das religiões. São Paulo: Paulus, 1999.
CASTRO, Dagmar Silva Pinto de. A articulação do método fenomenológico. In: CASTRO, Dagmar
Silva Pinto de et aI. Fenomenologia e análise do existir. São Paulo: Universidade Metodista de São Paulo:
Sobraphe, 2000.
CASTRO, Dagmar Silva Pinto de et aI. Fenomenologia e análise do existir. São Paulo: Universidade
Metodista de São Paulo: Sobraphe, 2000.
AS FRONTEIRAS DA
MISSÃO URBANA

JORGE SCHÜTZ DIAs*

N
o povoado rural, o homem norteava a sua vida a partir de três
referenciais bem definidos - a igreja, o trabalho e a família -,
tendo seus passos vigiados pelo pároco, pelo patrão, pelo côn-
juge ou pelos pais. Esse modelo tende a implodir quando o homem migra
do pequeno povoado e chega ao grande centro urbano. Sua nova leitura
da vida passa a ser a partir da consciência de que na cidade se é livre.

A MAGIA DA CIDADE E A UTOPIA DA LIBERDADE


Libânio (2001, p. 54) aponta este momento dizendo: "Nas cidades
maiores a consciência societária ou da comunidade desloca-se para a
valorização do indivíduo ou de grupos espontâneos. [... ] o indivíduo
assume o centro das decisões".
A cidade oferece ao cidadão um espaço amplo entre sua base
residencial e seu trabalho. Entre seu trabalho e seu lugar sagrado ou de
culto. Entre seu lugar de culto e sua residência. Ele circula incógnito,
agora por um novo espaço denominado "espaço público", que ele com-
partilha com outros transeuntes, visitantes de lojas e shoppíngs, bordéis,
restaurantes e uma imensidade de portas abertas convidando-o para o
encontro com o novo.
O urbano passa a ser um mundo, um mundo próprio que, segundo
Libânio (l001, p. 36), reforça a lógica do indivíduo, da sensação e expe-
riência de liberdade.
Neste contexto, a expressão da fé comunitária perpassará pelo crivo
da individualidade, e a igreja urbana se ressentirá, em sua vivência, do
ônus dessa nova mentalidade do mundo urbano.

* Bacharel em Teologia e Pastor da Igreja Batista, mestre e doutorando pelo Programa de Pós-
Graduação em Ciências da Religião da Universidade Metodista de São Paulo.
E-mail: j.schutz@terra.com.br.
114 ITINERÁRIO PARA UMA PASTORAL URBANA: AÇÃO DO POVO DE DEUS NA CIDADE

Jerônimo Gasques (2001, p. 29-30) apresenta suas considerações


acerca da teologia da acolhida e coloca como eixo de sua apreciação o
esvaziamento dos templos nas celebrações semanais, declarando:

Devemos rever nossas atitudes em relação à acolhida das pessoas na Igreja. [...]
Por que uma parte tão grande da humanidade está longe de Cristo e, ainda
mais, das comunidades cristãs? [...] É muito provável que nem dez por cento dos
católicos estão indo à missa nos finais de semana.

A forma de pensar do homem (genérico) que vive a mentalidade


do urbano, de certa forma tomou a Igreja de surpresa. A dinâmica re-
ligiosa praticada até então no povoado, com a convocação dos fiéis para
a missa pelo alto-falante da torre da igreja, agora não existe mais. O
ronco dos motores, o vozerio humano, os aviões a jato cruzando o céu
silenciaram a voz de convocação e de controle das consciências pelo
pároco local.
O tempo, até então dedicado ao sagrado nos finais de semana, e o
prazer em participar nas festas (quermesses) no pátio da igreja, agora são
substituídos por espaços seculares, lojas, restaurantes finos, e o prazer ali-
mentado pelo religioso agora tem outras fontes "menos dignas".
Neste contexto de reflexão acerca do papel e da presença da Igreja
no espaço urbano, olhando o sistemático esvaziamento dos templos frente
às perguntas do homem urbano, Gasques (2001, p. 10) cita um elenco
de fatores expostos no texto Evangelii Nuntiandi, do Concílio Vaticano 11,
dos quais destacamos os seguintes:

Divisões entre os cristãos, escândalos entre as formas de fazer a pastoral, igreja


que vive pedindo esmolas para se manter, a indiferença religiosa, a perda do
sentido da transcendência, uma missa mal preparada com precária participação
dos fiéis e uma liturgia distante do povo, uma celebração sem acolhida, uma
igreja fria, onde cada um fica na sua, os extravios do campo ético, as graves
injustiças e formas de marginalização social.

Na percepção de Gasques, comentando o tópico da celebração sem


acolhida, ele delimita a acolhida em cinco etapas: receber bem, acom-
panhar a vida das pessoas, ouvir as pessoas, aconselhar o fiel e ser agen-
te de perdão.
A relação de fronteira entre a Igreja e a cidade é marcada por uma
complexidade tal que se pode admitir que esta ainda é uma zona de
pesquisa a ser desvendada.
AS FRONTEIRAS DA MISSÃO URBANA 115

Viv Grigg (1994, p. 31), fazendo referência a Thomas Wang, vale-


se da abordagem deste para se aproximar desta zona de complexidade no
âmbito da missão, afirmando:

Falar em urbanização é falar em cidades seculares, grandes e poderosas: elas se


estendem como gigantes, bigas de ferro, inimigas das igrejas. Hoje em dia, uma
cidade sozinha pode ter entre 20 a 25 milhões de habitantes. Assim, como um gigan-
te, ela berra às portasda igreja: "aqui estou eu, o que você está fazendo por mim?

Nas possíveis tentativas de responder o que a Igreja poderia oferecer


ao questionamento da cidade, estão alocadas aquelas que se voltam para
o atendimento aos pobres. Viv Grigg (1994, p. 33) enxerga a questão
da pobreza a partir dos movimentos migratórios do campo, rumo aos cen-
tros urbanos. Sua percepção, portanto, se desenha a partir das estatísti-
cas que apontam uma horda migratória na ordem de um bilhão de pes-
soas, em trinta anos, deslocando-se das regiões rurais para os centros
urbanos ao redor do mundo.
Segundo o autor, estes serão (ou são) os pobres que irão disputar
espaço para construir sua casa, fixar a família, buscar zonas de produção
para trabalhar, conseguir sustento, e que terão contato com uma série
de oportunidades as quais não usufruirão, em razão de sua incapacidade
econômica e financeira. Para sobreviver ocuparão as terras do Estado, ou
invadirão prédios do patrimônio cultural, fábricas desativadas, lugares de
trânsito, espaços públicos, transformando-os em espaços privados, onde
alocarão suas esposas, sua prole e seus animais de estimação.
Esta população urbana de pobres, que ocupa os espaços visíveis (fa-
velas, por exemplo) e habita nas periferias ou se instala sob pontilhões
e viadutos, é de moradores da cidade, mas que são privados da cidada-
nia. Por outro lado, a Igreja urbana, ao abrir os seus ouvidos à cidade,
ouvirá somente os cidadãos, porque deles é constituída oficialmente.
A missão na fronteira urbana, segundo Grigg, há de se focar nos pobres,
de acordo com a sua perspectiva de percepção e identificação do "pobre-
urbano". O autor apresenta um quadro de indicadores para o ingresso da
Igreja nesta fronteira, os quais apresentamos em forma simplificada:

(1) Estabelecer atividades nas igrejas entre os pobres, que sejam verdadeiras
igrejas dos pobres, voltadas para o atendimento de suas necessidades, que
expressam a liderança e a forma de cultuar desse povo.
(2) Estabelecer movimentos de discipulado entre a elite culta e os não pobres,
que possuam uma determinada teologia bíblica de justiça, economia e sociedade.
116 ITINERÁRIO PARA UMA PASTORAL URBANA: AÇÃO DO POVO DE DEUS NA CIDADE

(3) Esforçar-se na mobilização da igrejados ricos para que abram suas portas aos
pobres [...]
(4) Desenvolver uma teologia holística, voltada ao reino, com uma ênfase bas-
tante forte na cristologia [...], na encarnação de Cristo (Grigg, 1994, p. 49).

A IGREJA EM MISSÃO DIANTE DO FENÔMENO


URBANO
A Igreja, no contexto do fenômeno urbano, se vê em cheque frente
aos questionamentos que dizem respeito à sua relevância em atender ao
ser humano que ocupa espaço entre pontes, vias, prédios de alto padrão
e favelas. As tradições protestantes que têm na Bíblia seu referencial
criacionista encontram na narrativa da criação o ser humano feito do pó
da terra e colocado no jardim criado pelo próprio Deus, com oportuni-
dade para viver todas as benesses. No fenômeno urbano, o homem pro-
cria vertiginosamente, infla a densidade populacional de pequenos es-
paços, cria seu habitat e se esforça para gerar o seu conforto. As benesses
não vêm do alto, elas são construídas pelo próprio ser humano.
Na obra O espírito e a missão da Igreja, publicada pelas Pontifícias
Obras Missionárias, analisando a relação missão e antropologia, declaram
os autores que a cultura é inerente ao homem e mulher criados por Deus:

Um ser que produz faz cultura. Cultura não é só o que se lê, mas tudo que
nasce da criatividade do homem/mulher, numa determinada sociedade em
tempo específico. É necessário distinguir entre natureza e cultura. Um rio é
natureza. Uma ponte é cultura, produto do lazer. A cultura é produto de todo
um grupo. Por isso caracteriza o ser social. O homem é um ser que trabalha:
descobriu o fogo, a fonte de energia; a máquina que mudou a estrutura e a
eficácia da produção e das relações próprias que o trabalho estabelece. [...] O
homem trabalha em três dimensões: cósmica - mundo; antropológica - ho-
mem; e religiosa - Deus (POM, 2002, p. 35).

Nesta perspectiva, o homem culto que trabalha dimensões diferen-


tes, simultaneamente, cria a cultura, cria a cidade (Comblin, 1996, p. 43)
e nela insere a Igreja. O urbano é ao mesmo tempo estático, porque
finca alicerces num espaço, e é móvel, na medida em que o homem
dentro do espaço se recria. Comblin assim analisa as diferentes dimensões
da cidade. Entre elas destaque-se aquela que a vê como centro de re-
lações humanas, dentro de uma concepção em que ela não se reduz a
monumentos e conjuntos de coisas. É a cidade no sentido da pólis grega
e da comunidade cristã, construída sobre a tríade liberdade, igualdade
e fraternidade.
AS FRONTEIRAS DA MISSÃO URBANA 117

Destarte a Igreja urbana precisa, para se ver no aqui-e-agora, e


para reencontrar sua relevância e seu sentido, compreender o significado
do termo grego paroikia e sua aplicação dinâmica no exercício da missão,
particularmente no que se refere à missão em centros urbanos. Segundo
Duisek (1996), paroikia, em termos, significa peregrinação, ir em deman-
da à casa. Párakoios significa peregrino e parraoikeo é a expressão verbal
do conceito com sentido de peregrinar, caminhar direção à casa. O
termo paroikia aplicado à Igreja indica uma Igreja em movimento. Ele é
usado para descrever a própria natureza da Igreja enquanto peregrina na
terra. Denota um estado de peregrinação como povo de Deus em missão
no mundo. E, neste sentido, assim como o centro urbano em si é um
fenômeno, será, simultaneamente, a Igreja um fenômeno inserido em
outro fenômeno.
A cidade, do ponto de vista arquitetônico e geográfico, é um ema-
ranhado de vias que cortam seu interior em conexões com outros cen-
tros. É representada pelo tecido entrelaçado por vários fios ou pela teia
de uma aranha, que do centro abre caminho para todas as direções da
periferia. A cidade é, segundo Libânío (2001, p. 27), símbolo máximo da
criatividade do homem. Nascidas há mais de quatro mil anos, as cidades
vêm procurando burlar a natureza, as forças dos ventos, a resistência do
solo, as modulações do relevo e oferecendo ao homem um espaço em
que ele manifeste seu caráter essencialmente associativo, seja para o
bem, seja para o mal. Na cidade, o homem rural deixa o Deus rural para
trás e enxerga a nova face de Deus, o Deus urbano. Na primeira pers-
pectiva, a beleza de Deus encontrava-se na natureza. Na segunda, a
beleza encontra-se no próprio ser humano.
Orlando Costas, reconhecendo a ausência da Igreja junto às massas
populares e apercebido de que o discurso em torno da Boa Nova não ser-
via mais de eixo à Igreja em missão, aponta para o fato de que a Igreja
deveria buscar novos rumos metodológicos para o cumprimento de sua
missão no contexto urbano. Os apontamentos de Costas, datados da
década de 1970 - à sombra do Concílio Vaticano 11 e antecipando por
três décadas as considerações de Brighenti (2000) -, assumem caracte-
rística de profetismo a partir de um latino-americano que enxerga simul-
taneamente a Igreja e a missão, indicando caminhos para uma ação
apropriada ao contexto de seu continente. Assim, afirma Costas (1971,
p. 106):

La misión cristiana en el sigla XX exige de Iglesia fidelídad a la proclamación


del evangelio, uma reoganizaciónde sus relaciones com Dias, consigo misma y
118 ITINERÁRIO PARA UMA PASTORAL URBANA: AÇÃO DO POVO DE DEUS NA CIDADE

con el mundo y un cambio de estrategia. La estrategia que la cultura


postcristiana requiere de la Iglesiainvolucra la penetración del evangelio en cada
estructura (geográfica y social) del mundo secular, la movilización de cada uno
de sus miembros y la renovación de su metodología evangelística. La renovación
de la metodología misionera de la Iglesia es necesaria no solamente porque ésta
ha perdido su ponto de contacto (la cultura cristiana) con las masas (especial-
mente las del occidente), sino también porque ha descartado la metodología de
la Iglesia primitiva. [...] Esta tiene tres aspectos, caracterizados por ttres palabras
griegas neotestamentarias: koinonia, diaconia e kerigma.

Clovis de Castro dá movimento ao ideal exposto por Costas. Se este


destaca a necessidade de urgente revisão da Igreja, Clovis aponta onde
a questão precisa ser focada, indicando que a Igreja assumiu uma
conceituação de pastoral sensivelmente clerical, confundindo a termi-
nologia com a mera ação do pastor ou da pastora, e não como missão da
própria Igreja. A confusão semântica entre ministério e pastoral denota
um empobrecimento de conteúdo missionário e uma fuga da Igreja do
cotidiano. Escreve o autor:

Pastoral [...] entendida com ação do povo de Deus na realidade cotidiana,


partindo das necessidades concretas onde o ser humano se encontra. A preocu-
pação básica da pastoral é a eficácia e a relevância da fé cristã.

Pastoral é também responsável pela inserção do povo de Deus no espaço público.


Pastoral é ação intencional, sistemática, organizada coletivamente. É fruto do
esforço missionário da Igreja que busca mudanças, vislumbrando novos tempos
na perspectiva do reino messiânico de Deus (Castro, 2000, p. 105).

Nesta mesma perspectiva, Geoval da Silva (2003, p. 45), esclarecen-


do que o espetáculo urbano não é sempre lúdico, pois neste teatro figu-
ram os pobres, os excluídos, os contaminados com o vírus HIV e toda
outra sorte de expressão do mal. Entretanto, é mesmo por esta razão que
a elaboração de pastorais no eixo da missão fará sentido e transformará
o urbano, tornando-o mais humano, como afirma o autor:

A pastoral urbana não pode separar-se do símbolo da esperança. Não é estática,


por isso é marcada pela dinâmica que se desprende da prática da Igreja que é
motivada pelo Espírito Santo a criar sinais do Reino de Deus e a mostrar e viver
a justiça divina através de palavras e atos (...). Nesta direção o que torna as
cidades sagradas é a própria atividade humana, pois o templo de Deus são seres
humanos renovados pelo Espírito santo.
AS FRONTEIRAS DA MISSÃO URBANA 119

Encaminham-se as considerações finais iniciando-se por Miguéz


Bonino 92003, p. 120) sobre a relação conflituosa entre evangelização e
Igreja no decurso do século XIX. O pie tis mo forjou o ardor missionário
e, a partir dele, conforme o olhar de Bonino sobre a missão, a Igreja ca-
minhou, ora perto, ora distante dela. A Conferência de Edimburgo
(1910) pretendeu estreitar a relação entre Igreja e missão, até então dis-
tanciadas naquele momento. Num segundo momento, o movimento
evangelical se expressou em Lausanne e indicou uma formulação de
missiologia em que a missão se dá através da Igreja que anuncia o reino
(Bonino, 2003, p. 121). Num terceiro momento, especificamente no
contexto da América latina, onde o monopólio triunfalista das Igrejas
que apresentavam Jesus Cristo como seu monopólio passou a ser ques-
tionado com a proposta de uma nova hermenêutica do Cristo neste pon-
to de vista, ele reina como Senhor, mas é identificado como Cristo Ser-
vo, que serve aos pobres.
A partir desta hermenêutica, Bonino expõe que a missão, em sua
totalidade, não significa tão-somente a restrição a uma tarefa evan-
gelizadora pela apresentação de um plano de salvação ao homem, enca-
minhando-o ao estado de conversão. Mas a missão tem sua fundamen-
tação teológica na Trindade e a realização dela é notadamente ampla,
como se expressa o autor:

Há distinções precisas e necessárias na forma em que a unidade inseparável da


obra do Deus trino e de nossa participação nela na tarefa cultural, social, polí-
tica, eclesial e evangelizadora é, ao mesmo tempo, reconhecida e respeitada e
a particularidade de cada uma dessas tarefas é igualmente levada em conta. [...]
Uma teologia e uma ética teológica cuidadosa, assim como uma pastoral que
respeite a liberdade cristã, devem trabalhar dando atenção a estes temas
(Bonino, 2003, p. 121).

BASES PARA UMA PRÁTICA PASTORAL EM SÃO


PAULO
A contribuição de Bonino (2003, p. 126) aponta que a pastoral da
Igreja latino-americana fica mais adequada na medida em que ela se
elabora a partir da percepção do Deus Triúno, do Cristo Servo e de um
diálogo com o meio social, político e econômico, ou seja, com o contexto
de inserção da Igreja.
Nesta perspectiva da pastoral urbana, tendo como foco a cidade de
São Paulo, entende-se que Bonino (2003), Floristán (2002) e Bosch
(2002) se reúnem a Castro (2000), Geoval (2003) e Comblin (1996) para
indicar que é urgente que a Igreja, assessorada pelos documentos da
120 ITINERÁRIO PARA UMA PASTORAL URBANA: AÇÃO DO POVO DE DEUS NA CIDADE

história e pelos elementos reunidos por Aldaíza Sposati (2000),


redescubra no bom exemplo de Wesley, como diz Bonino, a preocupação
com a pobreza. Isso implica a compreensão de suas causas econômicas,
a oposição à escravidão e a crítica a expressões de colonialismo brutal.
A cidade de São Paulo oferece campo para esta retomada de uma
visão pastoral de uma Igreja transformadora, com ações elaboradas a par-
tir dos pobres, uma vez que há indicadores, sempre renovados na mídia
a cada dia, que sustentam a declaração de que São Paulo, como cidade
de homens, piorou em muitos aspectos. É o que indica o texto compa-
rativo entre o Rio de Janeiro e São Paulo, publicado pela Folha de S.
Paulo (Qualidade, 2003):

Os dados do PNDU (Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento)


confirmam que os cariocas já dizem há muito tempo: a qualidade de vida no
município do Rio de Janeiro é melhor que em São Paulo. De acordo com o
ranking do PNDU, o Rio é hoje a 62ª cidade brasileira em qualidade de vida,
e São Paulo 66ª. Em 1991, o Rio era a 24ª e São Paulo, a 15ª. Isso quer dizer
que no ranking de todos os municípios brasileiros, Rio e São Paulo perderam
posições. Um ranking incluindo as 13 cidades com mais de um milhão de habi-
tantes mostra progressos do Rio [Estado], que subiu do quinto para o quarto
lugar. São Paulo caiu da segunda para a quinta. O economista Márcio
Pochrnann, secretário do Trabalho do município, em entrevista à Folha, sugere
três causas para o aumento da miséria e da pobreza, nascidas do processo de
globalização que afetou as cidades industrializadas, a saber: (1) em 1991, de
cada R$ 10,00 arrecadados na cidade, R$ 2,00 ficavam nela. Dez anos depois,
para o mesmo valor coletado, só R$ 0,95 permaneceram em São Paulo. O res-
tante foi para o governo federal. (2) O orçamento paulistano, de R$ 17 bilhões
em 1992, caiu para R$ 11 bilhões em 2003. (3) a carga tributária na cidade, que
correspondia a 26,8 % de toda a riqueza produzida em 1991, subiu para 52,2 %
em 2001. Os culpados: tributos e taxas federais, corno CPMF e Cofíns.

A aproximação a estes dados aponta subsídios importantes para que


a Igreja inserida numa cidade como São Paulo reformule sua proposta
de pastoral, visto que os dados do poder público indicam para um pro-
cesso de pauperização da população urbana, com crescente índice de
violência e comprometimento no processo de formação cultural e edu-
cacional, principalmente das crianças. A partir deste ponto, delineamos
a proposta em quatro tópicos.
1. A prática pastoral urbana da igreja há de ser elaborada a partir de
um reconhecimento da comunidade residente em torno do local físico
em que instala seu patrimônio. Este reconhecimento ampliar-esc-á a partir
AS FRONTEIRAS DA MISSÃO URBANA 121

de uma pesquisa histórica sobre a formação daquela população e os fatores


que lhe deram origem, bem como os fatos que alteram a história da popu-
lação. Vencidas estas etapas, procede-se ao levantamento étnico e so-
ciológico, incluindo elementos religiosos nesta pesquisa, visando à formu-
lação de uma linguagem adequada para aproximação da massa popu-
lacional. E, finalmente, dialoga-se com os mecanismos públicos e privados
disponíveis, visando a um entrelaçamento de ações que venha a elevar a
qualidade de vida da população, promovendo a transformação do homem
em ser humano, de excluído em cidadão, de religioso em piedoso, de in-
digente em gente, de perdido em salvo.
2. A elaboração de uma prática pastoral urbana há de considerar a
história da comunidade denominada igreja, conforme suas vivências e
conformação social e religiosa, a fim de construir modelos de ação ade-
quados ao seu contexto. O ponto de partida deste procedimento implica
lançar o olhar sobre o modelo de liturgia adotado pela comunidade
religiosa e quais são os elementos que ela utiliza como sinais e símbolos
religiosos, como orações e cânticos, gestos e eventos. Desta forma, pro-
cure-se discernir se estes são meramente reprodução de sua doutrina e
história, ou se servem de ponte entre a igreja e a massa populacional
que se situa no seu contexto. Neste aspecto Viv Grigg, autor de Servo
entre os pobres (s. d., p. 172) dá seu depoimento:

[...) isto leva ao terceiro nível de justiça nas favelas. Estabelecer movimentos de
crentes que: demonstrem entre si justiça em seus estilos de vida; comecem a fazer
justiça na vida e na liderança da comunidade em sua volta. Novamente, isto
começou com pequenas coisas, tais como aquela noite quando Deus me encheu
de um desejo de orar a respeito do lixo. [...) O lixo é um problema pequeno, mas
é o envolvimento com Deus em pequenos problemas que afeta a comunidade.

A vulnerabilidade a que está exposta a massa humana residente no


contexto da igreja, particularmente a situada na periferia dos centros ur-
banos, uma vez identificadas suas causas por esta, precisa ser tratada
como caminho de acesso às pessoas e ser traduzida em um projeto espe-
cífico de atendimento, dentro da proposta ampla do Evangelho que é de
trazer a salvação de Deus ao homem, exatamente onde ele se encontra.
3. A composição de uma proposta de prática pastoral urbana há de
levar em conta que a desigualdade e vulnerabilidade que ocorre nas
zonas de fronteiras da cidade é resultante da intervenção dos modelos
políticos implantados pelos órgãos públicos. O movimento de desenvol-
vimento urbano ocorre no sentido do centro para a periferia. Esta di-
nâmica é comum mesmo nas cidades consideradas megacentros urba-
, 22 ITINERÁRIO PARA UMA PASTORAL URBANA: AÇÃO DO POVO DE DEUS NA CIDADE

nos, onde se multiplicam menores núcleos de centro nos distritos e se


irradiam as forças de expansão populacional rumo às zonas periféricas.
Este movimento migratório conta com a força da intervenção do poder
público, quer organizando bairros dormitórios e deslocando massas para
complexos habitacionais, quer pelas melhorias executadas a partir do
centro. Ou seja, na medida em que políticas de segurança urbana,
infra-estrutura, como água, energia, linhas telefônicas e outras, vão
sendo implantadas no centro, ali se aglutinam serviços e oportunida-
des, fazendo com que o custo de vida seja correspondente à qualidade
que os órgãos públicos oferecem. O censo do IBGE de 1991 identifica,
por exemplo, que o bairro de Perdizes, na capital de São Paulo, contava
com 33.053 domicílios, e a Penha, na zona leste, com 36.896. Em Per-
dizes, em torno de 25% dos chefes de família ganham mais de vinte
salários-mínimos, e isto representa, em se tratando da cidade como um
todo, o equivalente a 7% da população paulistana. Soma-se a este dado
o fato de que 98% dos domicílios em Perdizes são alcançados pela
coleta regular de lixo. Havendo maior riqueza, há melhores serviços
públicos. O inverso é verdadeiro. Havendo pobreza, o serviço público
se apresenta esporádico.
Há outro movimento migratório independente que se dá a partir de
iniciativas de uma camada da população que, a partir de seus recursos,
busca refúgio em áreas da periferia urbana, onde possa construir para si
melhor qualidade de vida. Tais movimentos são forças vivas na cidade
que não dependem de intervenções de órgãos públicos ou de políticas
habitacionais, mas são voluntários.
Estes dados apontam à Igreja que a sua pastoral há de contemplar
este processo de desigualdade, pois, uma vez que ela se instale nas zonas
de fronteira da cidade, ela será ao mesmo tempo vítima vulnerável e
vocacionada, nesta vulnerabilidade, a desenvolver o reino de Deus entre
os pobres, por meio de ações pastorais bem adequadas às realidades es-
pecificas, porque vivencia o mesmo processo que a massa populacional.
O padre Jerônimo Gasques (2001, p. 65) indica que esta pastoral poderá
receber o nome de pastoral da acolhida.

Essa proposta [pastoral da acolhida] deverá suscitar novo e maior ardor na


evangelização, que supõe uma avaliação da prática pastoral a verificação se a
palavrado Evangelho está chegando a todos os ambientes e grupos humanos, nos
seguintes termos: (1) através do testemunho do serviço e do empenho na
humanização da sociedade; (2) através do diálogo com todos, em particular com
as diversas culturas e religiões diferentes da nossa; (3) através do anúncio mis-
sionário do Evangelho aos que estão à procura das razões da nossa fé; (4) através
AS FRONTEIRAS DA MISSÃO URBANA 123

da comunhão fraterna de nossas comunidades, que se alimentam da Palavra e


da liturgia, e daí para o diálogo, serviço e anúncio.

4. A prática pastoral a ser desenvolvida em São Paulo, especialmen-


te, precisará ser constituída de tal forma pelas igrejas ali localizadas
que, a partir deste ponto, tais práticas pastorais possam ser objeto de
diálogo com outras igrejas e práticas pastorais desenvolvidas em outras
zonas, visando-se estabelecer um roteiro que seja comum e uma ação
conjunta e frutífera em pontos que sejam convergentes, resguardando as
especificidades de cada contexto. Pretende-se, por conseguinte, reconhe-
cer que há práticas pastorais urbanas que podem ser consolidadas e
úteis a diferentes igrejas, que se situam em zonas de fronteiras dos cen-
tros urbanos, uma vez que a dinâmica de vida das cidades se igualam,
razão por que se torna compatível o intercâmbio de vivências e métodos
pastorais fronteiriços. Sendo semelhantes, as ações pastorais urbanas
poderão ser elaboradas, tanto no macro-espaço, bem como no micro,
orientadas por princípios e valores capazes de serem multiplicados em
diferentes fraldas urbanas, havendo em diversos setores urbanos fenôme-
nos comuns. As abordagens destes fenômenos poderão ser orientadas por
meios comuns. Maria Clara Lucchetti Bingemer (2003, p. 106) aponta,
dentro deste viés, em seu artigo "Sacramentalidade, desafios e perspec-
tivas da missão evangelizadora", algumas pistas comuns para a igreja
urbana, a saber: (1) praticar liturgias menos convencionais e menos
institucionais; (2) proporcionar uma espiritualidade que preencha o vazio
do homem urbano, carente de pertença; (3) realizar celebrações que per-
mitam a participação do povo; (4) abrir espaços no meio eclesiástico ur-
bano para vivência de experiências de fé, esperança e caridade na co-
munidade, em aspectos práticos; (5) inaugurar projetos de missão que
sejam coerentes com a construção do reino de Deus, a partir do cristo
encarnado.
As práticas pastorais urbanas, desenvolvidas pelas igrejas batistas da
zona leste de São Paulo, encontrarão adequação contextual e melhor ex-
pressão de sua fenomenologia doutrinal, histórica, teológica e mis-
sionária a partir da consideração de quatro eixos, a saber:
1) Imersão histórica e social no contexto em que se inserem, a par-
tir de pesquisas sociais, econômicas, éticas e religiosas.
2) Eleição dos pobres como princípio de hermenêutica de sua prá-
tica pastoral, a partir do Cristo Encarnado e missionário aos pobres.
3) Entender-se vulnerável, assim como todo o segmento social em
seu contexto, e, nesta vulnerabilidade, ser agente de transformação do
homem e do meio.
124 ITINERÁRIO PARA UMA PASTORAL URBANA: AÇÃO DO POVO DE DEUS NA CIDADE

4) Dialogar com outras comunidades em situações homólogas localiza-


das em outras zonas de fronteira e promover a transformação a partir de seus
modelos e mecanismos institucionais, adaptando sua linguagem e liturgia.
Nesta perspectiva, Geoval Jacinto da Silva (2003, p. 42, 45) indica
que a ação pastoral da Igreja há de se desenvolver no cotidiano, no
espaço onde os desafios de um mundo globalizado exigem do ser humano
contemporâneo respostas e ações que expressem segurança e esperança. E
também afirma que a pastoral urbana não pode separar-se do símbolo da
esperança, da igreja em sua ação, que, motivada pelo Espírito, há de
mostrar e viver a justiça, criando os sinais do reino de Deus na cidade.

REFERÊNCIAS
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evangelizadora. In SILVA, Josafá Menezes; MACHADO, GenivaI Fernandes (orgs.). Cidade, Igreja
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SPOSATI, Aldaíza, (coord). Mapa da exclusa/inclusão social da cidade de São Paulo: dinâmica social
dos anos 90. São Paulo: Editora da PUC, 2000.
PALAVRA DE DEUS OU
PALAVRA DO HOMEM?
O USO DA RETÓRICA NO DISCURSO
RELIGIOSO NO CONTEXTO URBANO

Vanderlei Gianastacio *
Alline Leal Ruas **

M
uitos teóricos escreveram sobre discurso no decorrer da história.
Mas é entre os gregos, com sua visão de democracia, que é
possível perceber o conceito de discurso. Para Platão, há dois
tipos de discurso: o retórico e o analítico. O primeiro tem como objetivo
a argumentação; já o segundo enfatiza a demonstração, entendendo que
ambos devem estar comprometidos com a verdade. Aristóteles, discípulo de
Platão, demonstra o seu conceito de discurso ao abordar discorrer sobre re-
tórica. Ele entende que o discurso "deve ser claro e evidente a seu objeto,
porque, se o discurso não comunicar algo com clareza, não perfará a sua
função própria" (Dayoub, 2004, p 23). Além da compreensão que os gregos
tinham de discurso é importante, para este estudo, a compreensão da estru-
tura do mesmo. Para Aristóteles, o discurso é composto de um preâmbulo,
a exposição do tema (que é a proposição), a demonstração (que é a confir-
mação) e um epílogo.

o QUE É RETÓRICA?
Tereza Lúcia Halliday (1990, p. 71), na obra O que é retórica, des-
perta o leitor para a realidade da sociedade atual. Ela lembra que o "de-
senvolvimento dos meios de comunicação de massa e a complexidade da
vida moderna, as situações, os tipos de discurso requeridos em cada caso
e os públicos passíveis de persuasão se multiplicaram". Com esta mudan-
ça da vida cotidiana das pessoas, a autora entende que o conceito de
discurso deixa de ser apenas um pronunciamento público e, sim, passou
a ser "um conjunto de características lingüísticas, semânticas e retóricas
peculiares a um indivíduo ou grupo, com a função de acusar ou deferi-
der, aconselhar ou desaconselhar, elogiar ou censurar alguma coisa".

* Bacharel em Teologia, pastor da Igreja Batista e mestre em Ciências da Religião. E-mail:


liliruas@hotmail.com.
** Bacharel em Letras. Este texto baseia-se em Trabalho de Conclusão de Curso (TCC)
desenvolvido pelos autores sob a orientação da Profa. Ms, Wilma Deléo Pessoa.
126 ITINERÁRIO PARA UMA PASTORAL URBANA: AÇÃO DO POVO DE DEUS NA CIDADE

Além deste, há outro conceito de discurso. Para Ingedore G. Koch


(2002, p. 17), o discurso é a "ação verbal dotada de intencionalidade".
Quanto à estrutura do discurso, ela consiste em palavras, que, co-
locadas como expressões como se fossem verdade, querem fazer-se passar
por toda a verdade, afirma Adilson Citelli (1989, p. 32), que direciona
sua obra para o discurso persuasivo. No aspecto intencional, Koch (2002,
p. 17) observa que há por trás do discurso uma ideologia. "A neutralidade
é apenas um mito; o discurso que se pretende 'neutro', ingênuo, contém
também uma ideologia - a da sua própria objetividade". Para José Luiz
Fiorin (1999, p. 30),

o discurso não é uma grande frase nem um aglomerado de frases, mas um todo
de significação. Nesse sentido, a frase deve ser entendida como um segmento
do discurso - o que não exclui, evidentemente, que o discurso possa ter, em
certos casos, a dimensão de uma frase.

Nestas diferentes percepções sobre o discurso, é possível entender


uma relação entre humanidade e consumo, na sociedade atual. A todo
momento, a população dos países desenvolvidos e em desenvolvimento
recebem informações para consumirem vários tipos de produtos. A esse
respeito, Jorge Pinheiro (2002, p. 20) lembra que "o homem não foi
criado para a produção, mas a produção [foi criada] para suprir as ne-
cessidades humanas ... ". E, neste caso, o que prevalece é a ideologia
daqueles que querem dominar o mercado com a venda dos seus produtos.
Sendo assim, percebe-se que há no discurso uma certa intencio-
nalidade, seja ele político, religioso ou, até mesmo, uma simples história
narrada por uma pessoa que reside em zona rural. Nesta último caso, a
pessoa dará ênfase àquilo que ela pensa que é importante, mas não que
realmente seja importante. Por isto, ao ouvir o discurso de alguém, con-
vém conferir os fatos ou, pelos menos, ouvir outras versões daquele
mesmo assunto a que se referiu o discurso.
A retórica é o elemento que colabora para levar as pessoas a acre-
ditarem naquilo que se está falando. Quando prevaleceu a democracia
em cada cidade-estado na Grécia Antiga, utilizavam-se assembléias
compostas por várias pessoas, geralmente de classe alta, para decidir
questões a respeito da cidade. Estas assembléias colaboraram para o
surgimento do discurso e a necessidade da retórica, pois cada grego que
queria demonstrar que a sua idéia era a melhor para a cidade precisava
ser convincente para que recebesse aceitação. Logo, "o apego dos gregos
antigos à palavra e à eloqüência se solidificava na mesma proporção em
que se estabelecia a 'pólis' grega" (Dayoub, 2004, p. 1). O contexto
cultural e político propiciava o aperfeiçoamento da habilidade de falar
PALAVRA DE DEUS OU PALAVRA DO HOMEM? 127

em público e, "se a essência da retórica consiste na persuasão pela ar-


gumentação, não há como aplicá-la num ambiente sem democracia e sem
liberdade de debate existentes nas organizações políticas gregas"
(Dayoub, 2004, p. 2).
É fato conhecido que nem todos os gregos tinham a habilidade de
expor suas idéias em público. Para suprir esta deficiência na oratória,
"surgiu uma classe especialista na arte de bem-falar e escrever, os sofis-
tas" (Dayopub, 2004, p. 2). Estes eram homens inteligentes, professores
ambulantes que transmitiam o conhecimento e a sabedoria. Ao prepa-
rarem outras pessoas para falar em público, "empenhavam-se em exercitar
os discursos retóricos e tinham por objetivo impressionar o público, exi-
bindo sua habilidade em fortalecer os que eram fracos na arte de se
comunicar" (Durant, 2000, p. 3). Com o objetivo de argumentar e con-
vencer, os gregos criaram três disciplinas para ensinar as artes de domí-
nio da palavra: a gramática, a eloqüência e a retórica. Destas três, "a
disciplina que cuidava especialmente de buscar tal harmonia era a re-
tórica" (Citelli, 1989, p. 8).
Na Grécia, ser capaz de expor um assunto de forma convincente era
importante, principalmente quando a pessoa estivesse perante um juiz.
Aristóteles (1969, p. 31) lembra que este tipo de recurso requer habili-
dade, pois "o juiz sentencia sobre assuntos que lhe são estranhos", mas,
no discurso político, dirigido ao povo, "pronuncia-se sobre negócios que
lhe dizem respeito, e basta que o orador mostre a exatidão 'das afirmações
que faz", visto que não haverá sentença. Para ele, o método eficaz no
discurso é aquele que apresenta suas bases no que é provável. A esta
estrutura Aristóteles estava atento, pois temia o uso da retórica de
maneira injusta, da qual decorressem prejuízos.
Para que todas estas mudanças ocorressem neste período, o discurso
precisava ser convincente. Dayoub (2004, p. 27) lembra que, no Império
Romano, "a retórica continuou desfrutando de prestígio". Hilário Franco
(1999, p. 12), entendendo ideologia como "sendo uma elaboração cons-
ciente e segmentada socialmente (ao contrário do mito), que expressa
certas necessidades e expectativas daqueles que a criam", diz que a
Idade Média se caracterizou pela religiosidade mesclada com a filosofia,
a teologia e o poder, estruturando assim a ideologia para época. Diz o
Dicionário Houaiss (2007) que, enquanto a retórica é a arte da eloqüên-
cia, a arte de bem argumentar, a arte da palavra, a argumentação é
apresentar fatos, idéias, razões lógicas, provas etc. que comprovem uma
afirmação, uma tese.
O ato da argumentação, assim como o conceito de discurso, é com-
preendido com focos diferentes pelos teóricos. Na história antiga,
Aristóteles relacionava a ética com a argumentação. Dizia o filósofo
128 ITINERÁRIO PARA UMA PASTORAL URBANA: AÇÃO DO POVO DE DEUS NA CIDADE

(apud Dayoub, 2004, p. 20) que "os argumentos originam-se não só do


raciocínio demonstrativo e convincente, mas também do procedimento
ético, pois acreditamos no orador que nos fala pelo caráter que demons-
tra ao se apresentar". Já Halliday (1990, p. 47), com uma metáfora da
construção, expressa o seu conceito de argumentação, informando que
"o cimento que liga os tijolos numa estrutura sólida é a argumentação
- a maneira de apresentar uma idéia, ou visão das coisas, e de justificá-
la como aceitável". Semelhantemente a Koch, ela não faz menção da
verdade na argumentação.
Percebe-se, assim, que na Idade Média houve um certo desenvol-
vimento da retórica, seguido, posteriormente, de um declínio. "As
novas idéias vão dar-lhe o golpe mortal, rompendo o elo entre o
argumentativo e o oratório, que lhe davam força e valor" (Reboul,
1998, p. 78).
Vários autores corroboram a afirmação de que a retórica deixou de
ter seu significado. Dentre eles, se poderiam destacar o humanista
Pedro Ramus, Descartes, Pascal e outros. Segundo Peterlini (1999, p.
56), observa-se que,

levando a mira em convencer apenas, a retórica foi usada, ao longo da história


em qualquer direção moral, como mero instrumento de persuasão, quer na fase
de simples eloqüência natural, quer sistematizada pelas normas requintadas da
teórica clássica.

Já no século XX, alguns novos elementos serão incluídos e explo-


rados pela retórica. São estes novos elementos que caracterizarão a nova
retórica, com um novo foco e oferecendo novas estruturas para o discur-
so atual.

A RETÓRICA NO DISCURSO RELIGIOSO


A religião tem sido motivo de discussão em muitos momentos da
história da humanidade. Atualmente, ela é alvo de reportagens e de
comentários na mídia escrita e televisiva. Um dos motivos de tanta
discussão, na realidade brasileira, é o aumento do número de evangé-
licos num país onde predomina a religião católica. Mesmo dentro do
catolicismo, diversas ramificações também têm explorado a televisão
como meio de comunicação e expansão de suas crenças. A religiosida-
de da população brasileira tem sido despertada com programas
televisivos. Por meio de pesquisas realizadas, verificou-se que muitas
pessoas mudaram seu comportamento ao terem uma experiência reli-
giosa ouvindo ou assistindo a um destes programas. Problemas como
agressões do marido contra a esposa ou do pai contra o filho, a difi-
PALAVRA DE DEUS OU PALAVRA DO HOMEM? 129

culdade de relacionamento no emprego etc. têm sido solucionados com


o auxílio de uma experiência religiosa.
Desta forma, é impossível afirmar que todo este movimento religioso
que está ocorrendo no Brasil não apresenta nada de benéfico. Alguns cen-
tros de estudos de teologia e ciências da religião, na Europa, têm obser-
vado e tentado entender o que está acontecendo no Brasil. Isto, porém,
não significa que o despertar religioso no Brasil tenha ocasionado mudan-
ças de comportamento na população, a ponto de transformar a sociedade.
Prova disso é que, mesmo aumentando o número de pessoas que dizem ter
passado por uma experiência religiosa, também tem aumentado o índice
de corrupção, de criminalidade, de prostituição etc. Isso demonstra que
as igrejas de diversas denominações não conseguem analisar à luz da
Bíblia o comportamento, por exemplo, da liderança política brasileira. É
importante lembrar que os profetas tiveram esta função no passado, quan-
do a liderança da nação de Israel, desobedecendo a Deus, adotava prá-
ticas opressoras da população de classe social baixa.
Feita a abordagem do conceito de discurso e retórica, a atenção ago-
ra será voltada para o discurso religioso. Convém esclarecer que o discurso
religioso cristão, com regra de interpretação histórico-gramatical, recor-
rendo-se à exegese para entender o texto bíblico, demonstra seriedade.
Mesmo que estes recursos para interpretar a Bíblia não sejam possíveis
para todos os líderes religiosos, pois a atual situação econômica do Brasil
não permite isso, mas havendo sinceridade, sem o objetivo de manipular
ou de fins lucrativos, considera-se tal discurso sensato. Porém, o discurso
religioso no meio urbano é resultado de um pluralismo cultural.
Sendo o auditório o centro da retórica no século XX e entendendo
que o objetivo desta pesquisa é analisar o discurso religioso, importa
neste momento compreender a crença popular e a releitura da mesma
pelo orador. Para tanto, será necessário observar como cultura,
cosmovisão, religião e crença popular servem de instrumento para a
retórica no discurso religioso atual.
Iniciando pela cultura, Redfield (apud Frost e Hoebel, 1976, p.
339) afirma que ela é "o sistema integrado de padrões de comporta-
mento aprendido, os quais são característicos dos membros de uma
sociedade e não o resultado de herança biológica". Para ele, os padrões
de comportamento, em uma determinada cultura, têm seus alicerces
na cosmovisão, isto é, na "visão cognitiva da vida e do ambiente total
que um indivíduo tem, ou que é característica dos membros de uma
sociedade". Tal cosmovisão, ainda segundo Redfie1d, implica a "estru-
tura das coisas e como o homem tem consciência dela", o que, segundo
Díez-Alegría (1990, p. 133), não deixa de envolver também as "pre-
tensões filosófico-metafísicas ou, então, no plano antropológico, com
130 ITINERÁRIO PARA UMA PASTORAL URBANA: AÇÃO DO POVO DE DEUS NA CIDADE

uma acentuação predominantemente ética; pode ter caráter de ideo-


logia religiosa, pode ser resposta a uma fé e apoiar-se nela". É na
cosmovisão que se percebe a religião que, de acordo com Aurélio
Buarque de Hollanda Ferreira (1979), é "um sistema solidário de
crenças e práticas relativas a coisas sagradas". Em geral, encontram-
se religiões caracterizadas por dois aspectos: as que apresentam um
Deus pessoal e um Deus impessoal.
Com uma ligeira noção de cultura, cosmovisão e religião, é possível
classificar a crença popular como expressão da cultura popular. Entende-
se que esta, ainda longe de ter "um conceito bem definido pelas ciências
humanas e, especialmente, pela antropologia social, disciplina que tem
dedicado particular atenção ao estudo da cultura" (Arantes, 1982, p. 07),
é "feita pessoa a pessoa (contatos interpessoais) ou grupo a grupo (con-
tatos intergrupais); ouvir e repetir, ver e aprender", segundo Pellegrini
Filho e Santos, 1980, p. 32). Esta é a cultura do povo, caracterizada,
conforme estes autores, por "usos e costumes [...] crenças e superstições,
cultos e religiões populares [... ), dispensando aprendizado organizado e
técnica erudita [... ] baseadas na experiência, sem teoria" (p. 34).
No discurso religioso atual, há uma releitura destas religiões popu-
lares, pois elas, segundo Cristián Parker (1996, p. 54),

são manifestações coletivas que exprimem a seu modo, em forma particular e


espontânea, as necessidades, as angústias, as esperanças e os anseios que não
encontram respostas adequadas na religião oficial, ou nas expressões religiosas das
elites e das classes dominantes.

o autor menciona o fato de as necessidades do religioso não serem


respondidas na religião oficial. Isto torna-se ainda mais complexo, per-
cebendo-se que, quando chegaram ao Brasil a religião católica e, depois,
as protestantes, já havia religiosidade tanto entre os índios como entre
os africanos. Pesquisas realizadas, sobre este encontro de religiões, de-
monstram que tanto os índios como os africanos não abandonaram suas
religiões, quando as outras foram impostas, mas, simplesmente, partiram
para um sincretismo religioso. Importa lembrar que "toda a religião
popular articula uma dialética com a religião e com a cultura oficial"
(Parker , 1996, p. 55). Foi assim que as religiões ou crenças populares
conquistaram seu espaço na sociedade brasileira.

o LADO POSITIVO E NEGATIVO DA RETÓRICA NO


DISCURSO RELIGIOSO
Dependendo do segmento religioso cristão, entende-se que o uso da
retórica na pregação pode ter valor positivo ou negativo. A revista Veja,
PALAVRA DE DEUS OU PALAVRA DO HOMEM? 131

em sua edição de 12 de julho de 2006, apresenta na capa a seguinte man-


chete: "O pastor é show! Com uso da psicologia e auto-ajuda uma nova
geração de pregadores dá espetáculos e reinventa a fé que mais cresce no
Brasil". Nas páginas 79 e 80, encontra-se a seguinte afirmação no artigo:

A nova geração de líderes evangélicos achou um caminho muito mais certeiro e


útil de chegar ao coração dos fiéis: o da auto-ajuda. A promessa é a mesma que
ofereciam pentecostais e neopentecostais da geração passada: o da felicidade e
prosperidade aqui e agora. Só que, para alcançá-las, os novos pastores sugerem
outras ferramentas: além da fé, o bom senso; somado à intervenção divina, o es-
forço individual. "O discurso atual dá mais ênfase ao pragmatismo e à pró-ativi-
dade do fiel do que ao sobrenatural", avalia o pesquisador da PUC-SP Adilson José
Francisco. "Em vez de pregar, como fazem algumas igrejas, a libertação de todos
os males por meio do exorcismo, por exemplo, esses pastores adotam alguns con-
ceitos da psicologia: para se livrar dos problemas, é preciso uma mudança de ati-
tude, na maneira de ver o mundo", explica o antropólogo Flávio Camada, pesqui-
sador do Instituto de Estudos da Religião. Um indicativo claro dessa transformação
está na comparação da produção literária dos velhos e dos novos pastores.

Percebe-se, neste texto, que ferramentas como psicologia, auto-aju-


da e as promessas de prosperidade são elementos que dão uma nova di-
retriz para estes pregadores. É importante lembrar que a fé cristã e a
teologia não são contra a psicologia. A ênfase no pragmatismo, como diz
o texto da revista Veja, pode haver, desde que haja fundamento bíblico
neste pragmatismo.
As pessoas querem resolver seus problemas. A Bíblia, porém, afirma,
na Carta aos Romanos (5, 3-5), que o problema pode ser útil para levar
o cristão a adquirir experiência e paciência. Paulo diz: [... ]

também nos gloriamos nas tribulações; sabendo que a tribulação produz a paci-
ência; e a paciência, a experiência; e a experiência, a esperança. E a esperança
não traz confusão, porquanto o amor de Deus está derramado em nossos cora-
ções pelo Espírito Santo que nos foi dado.

Não é necessária uma exegese profunda para entender, neste texto


aos romanos, que os problemas têm seu lado positivo. Em uma simples
leitura da Primeira Carta de Pedro (1, 6-7) também é possível encontrar
algo relacionado a problemas que podem surgir na vida cristã. Pedro diz:
"[ ... ] em que vós grandemente vos alegrais, ainda que agora importa,
sendo necessário, que estejais por um pouco contristados com várias
provações, para que a prova da vossa fé, muito mais preciosa do que o
ouro que perece e é provado pelo fogo, se ache em louvor, e honra, e
glória, na revelação de Jesus Cristo".
132 ITINERÁRIO PARA UMA PASTORAL URBANA: AÇÃO DO POVO DE DEUS NA CIDADE

Sendo assim, a ênfase no pragmatismo, resolver problemas, auto-aju-


da etc. pode animar as pessoas a esperarem de Deus que todas as difi-
culdades da vida sejam resolvidas, até mesmo a situação financeira.
Também se faz necessário lembrar, a respeito da soberania de Deus, que
riqueza não é uma exigência bíblica e que a maior bênção os cristãos já
receberam, desde que aceitaram Jesus como salvador e senhor de suas
vidas: "Bendito seja o Deus e Pai de nosso Senhor Jesus Cristo, o qual
nos abençoou com todas as bênçãos espirituais nas regiões celestes em
Cristo" (Ef 1, 3). Conforme este texto, entende-se que a bênção recebi-
da é desfrutar de um relacionamento com Deus, por meio de Jesus Cris-
to. A questão material é uma conseqüência do relacionamento com
Deus. O cristão deve desenvolver suas atividades pedindo orientação a
Deus, buscando em primeiro lugar o reino de Deus e sua justiça, enten-
dendo que Deus dá o pão de cada dia.
Há um lado positivo do uso da retórica na pregação, no ensino da
Bíblia. É possível estruturar um sermão com argumentações coerentes para
mostrar a importância dos valores cristãos na vida das pessoas. Para isto,
porém, faz-se necessário trabalhar bem o texto bíblico que será ensinado.
É importante ver no texto onde começa e encerra o assunto que se pre-
tende ensinar, ou seja, considerar o contexto. Perguntas como "quem
escreveu o texto"?, "qual era a cultura e a formação do autor?", "para
quem ou para que povo o autor estava escrevendo?", "o que ele queria
ensinar"?, "o texto está dentro de uma carta, de um livro poético ou his-
tórico?" e tantas outras são fundamentais para quem vai ensinar a Bíblia.
Se possível, pelo menos os verbos do texto que será ensinado deveriam ser
analisados pelo pregador na língua original, vendo-se como os mesmos
verbos aparecem em outros lugares da Bíblia e com qual conceito.
Desta forma, não se trata somente de uma questão de habilidade na
argumentação, mas, sim, de conhecimento daquilo que se quer ensinar.
Quando não há este cuidado, corre-se o perigo de querer ensinar um
versículo apenas, desconsiderando todos estes aspectos que foram mencio-
nados e fazer uma aplicação para as vidas das pessoas de uma forma literal.
Geralmente, para este tipo de pregação utilizam-se mais os textos bíblicos
que relatam milagres e aplica-se a alegoria. Se houver isto, as pessoas podem
ficar esperando uma ação sobrenatural na vida delas, procuram agir conforme
alguns princípios de auto-ajuda, mas isto não quer dizer que elas realmente
estão aprendendo a Bíblia.
Para muitas pessoas, hoje, o que um líder eclesiástico fala é bíblico.
São poucas as pessoas que colocam em prática o que fizeram os bereanos
como relatado no livro dos Atos dos Apóstolos (17, 10-12): "E logo os
irmãos enviaram de noite Paulo e Silas a Beréia; e eles, chegando lá,
foram à sinagoga dos judeus. Ora, estes foram mais nobres do que os
PALAVRA DE DEUS OU PALAVRA DO HOMEM? 133

que estavam em Tessalônica, porque de bom grado receberam a palavra,


examinando cada dia nas Escrituras se estas coisas eram assim. De sorte
que creram muitos deles, e também mulheres gregas da classe nobre, e
não poucos homens".
O Brasil é um país com problemas sérios na área de educação. Isto
acaba refletindo dentro da Igreja e colabora para que as pessoas não
analisem à luz da Bíblia se o texto utilizado pelo pregador é coerente
com o contexto do qual foi retirado o texto para a pregação. Com falta
deste conhecimento e passando por várias dificuldades na vida, as pes-
soas ficam sem referencial para analisar o que estão ouvindo. O perigo
da retórica, neste caso, é o pregador convencer as pessoas sobre o que
ele pensa, mas não sobre o que o texto bíblico diz. Desta forma preva-
lece a palavra do homem e não a de Deus.
Se um orador não se preocupar com a sua ética cristã, a retórica
pode ser utilizada conforme a afirmação de Aristóteles no início deste ca-
pítulo. Mesmo o orador demonstrando não ser uma pessoa honesta, não
por meio do seu discurso, mas, sim, pela sua conduta, os seus argumentos
podem ser válidos para milhares de pessoas. A sua habilidade de argumen-
tação pode ser tão forte a ponto de levar pessoas a não questionarem se
sua ética é ou não coerente com a Bíblia. Se as pessoas não aprenderem
a Bíblia, também não questionarão o comportamento dos seres humanos
à luz da mesma.
Para Ingedore Koch (2002, p. 17), o conceito de argumentar, "ori-
entar o discurso no sentido de determinadas conclusões", demonstra-se
diferente do conceito de Aristóteles. Afinal, orientar o discurso para
determinadas conclusões não significa que estas precisam estar vincu-
ladas à verdade.
Hilário Franco (1999, p. 12-13) entende que a ideologia "se impõe
pela repressão das demais, precondição para a mudança no curso da his-
tória que ela considera necessária em condições de realizar". Desta forma,
segundo o autor, tanto o mito, como a ideologia e a utopia, foram instru-
mentos, de uma maneira ou de outra, para o rumo da história da huma-
nidade. O "mito trata de fatos e situações ocorridos in illo tempore, a ide-
ologia de um presente a ser modificado, a utopia de um tempo por vir".
Observando o discurso na história, entende-se que ele teve sua fun-
ção específica na sociedade medieval. Franco cita vários momentos em
que é possível notar a presença de um determinado discurso à luz da
ideologia dominante. São eles: a utopia da paz (indivíduos se isolavam
em mosteiros para as práticas religiosas), utopia da fraternidade (em uma
nova concepção monástica), a utopia do homem perfeito (com base em
uma legislação minuciosa que determinava tempo, lugar e condições de
trabalho, estudo, sono e alimentação do monges).
134 ITINERÁRIO PARA UMA PASTORAL URBANA: AÇÃO DO POVO DE DEUS NA CIDADE

Este domínio ideológico teve suas bases no sistema religioso. Isso


significa que o poder do clero estava aliado à busca pelo transcendente
do ser humano. Além de prevalecer o inconsciente coletivo religioso,
Reboul (1998, p. 77-78) afirma que o cristianismo utilizou a retórica, pois
"quando todas as estruturas administrativas do Império desmoronaram,
foi a Igreja que se tornou depositária dessa cultura antiga, inclusive a
retórica". Este fato se deu por dois motivos: o primeiro é que "a Igreja,
em seu papel missionário e em suas polêmicas, não podia prescindir da
retórica". O segundo é que a própria "Bíblia é profundamente retórica.
Não sobejam nelas metáforas, alegorias, jogos de palavras, antíteses,
argumentações, tanto quanto nos textos gregos, se não mais?". Não
bastava apenas ler a Bíblia, mas era preciso interpretá-la. Portanto, "a
hermenêutica da Idade Média é toda alegórica: propõe que todo texto
bíblico tem outro sentido além do literal. Outro, ou melhor, vários".
Observando a história da humanidade, entende-se que o discurso
religioso sempre esteve presente nos povos, independentemente da re-
ligião e da cultura. Historiadores, cientistas da religião, antropólogos,
entre outros, entendem que a religião tem exercido funções diferentes
nas diversas sociedades em que ela está inserida. Muitas vezes, o
conteúdo religioso serviu para transmitir tradições espirituais e cultu-
rais. Em outros lugares, a religião funcionou como parâmetro para es-
tabelecer moral e leis. Para Max Weber, o protestantismo colaborou
com o surgimento do capitalismo. Tudo isto, sem mencionar a realida-
de de milhares de pessoas que vivem no mundo, com uma renda que
as classifica abaixo da linha da pobreza e que, por falta de saúde e
educação, recorrem à religião para poderem continuar vivas.
É do conhecimento no ocidente o que foram as cruzadas. Muitas
atrocidades ocorreram na história em nome da religião, em nome da
Igreja, em nome das tradições religiosas etc. Para que tudo isso aconte-
cesse na história, sempre foi necessário haver um discurso religioso que
despertasse algo no povo, como revolta, pureza, noções de libertação e
alienação, cura física, propostas messiânicas etc.
Já nos séculos XIX e XX, com o advento das indústrias, a retórica é
utilizada com o objetivo de vender produtos que eram produzidos. A ar-
gumentação tornou-se algo fundamental no contexto capitalista. O au-
mento dos produtos manufaturados desafia os vendedores a utilizarem a
retórica de maneira que gere, no consumidor, a necessidade de o produto
ser vendido. Assim, o centro da retórica já não é mais a verdade, como
foi para os filósofos na Grécia, e, sim, o auditório. É importante para aquele
que fala conhecer muito bem as necessidades do seus ouvintes. Com este
alvo, o discurso do orador apresenta afirmações, como se ele entendesse
e se comovesse com as necessidades do ouvinte. Contudo, o único objetivo
daquele que fala é conquistar a confiança do ouvinte.
PALAVRA DE DEUS OU PALAVRA DO HOMEM? 135

Se os líderes religiosos não ficarem atentos ao uso correto da retórica,


podem cometer o mesmo erro. A estratégia do pregador torna-se semelhan-
te à dos vendedores de produtos manufaturados. A diferença, porém, será
que o discurso do vendedor tem objetivo de gerar necessidades no con-
sumidor, enquanto no discurso religioso as necessidades já existem, são bá-
sicas, como: desemprego, problemas no relacionamento conjugal, problemas
familiares, doenças etc. Falar em nome de Deus gera confiança nas pessoas
que estão ouvindo, a certeza de que tudo o que está sendo pronunciado
pelo pregador ocorrerá. Caso não ocorra, a culpa é da pessoa, porque não
teve fé. Se isto ocorrer, ensina-se apenas uma espécie de fé na fé.

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grarica e editora Hda.

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