Você está na página 1de 7

184

COMUNICAÇÕES DE PESQUISAS

Óidipous, o inconsciente em cena

Antônio Quinet
Psicanalista, psiquiatra, doutor em filosofia e dramaturgo, Membro da Escola de Psicanálise dos Fóruns do
Campo Lacaniano, pesquisador convidado do Instituto de Psiquiatria, professor do Mestrado Profissional
em Psicanálise, Saúde e Sociedade da UVA, diretor da Cia. Inconsciente em Cena.

http://www.uva.br/trivium/edicao1/pesquisa/2-oidipous-o-inconsciente-em-cena.pdf
185

Resumo
Desenvolvemos durante mais de dois anos (2007 a 2009) a pesquisa Tragédia grega e
psicanálise dentro do tema geral Psicanálise e teatro, que culminou na criação e na
apresentação da peça de teatro Óidipous, filho de Laios- a história de Édipo rei pelo
avesso.
A pesquisa se desenvolveu em duas etapas:
1 - trabalho teórico sobre tragédia na psicanálise e filosofia; estudo de bibliografia,
das traduções em diversas línguas de Oidipous tyrannus e elaboração do texto
Óidipous, filho de Laios;
2 Mise en scène– preparação da encenação a partir da proposta de que Tebas é aqui,
situando a peça na fronteira mítica grego-xingu.

Palavras-chave: teatro; psicanálise, tragédia, Édipo, encenação.

Abstract
The research The Greek Tragedy and Psychoanalysis, which belongs to the general
object Psychoanalysis and Theater, was developed during more than two years and
culminated in the creation and presentation of the play Oidipous, son of Laios – the
story of king Oedipus inside out.
The research has being developed in two phases:
1 – theoretical work about the tragedy in psychoanalysis and philosophy;
bibliographical study, the study of translations into several languages of Oidipous
tyrannus and the elaboration of the text of Oidipous, son of Laios;
2 - Mise en scène – the preparation of the staging from the proposal of Tebas is here,
situating the play at a mythical frontier grego-xingu.

Keywords: theater, psychoanalysis, tragedy, Oedipus, staging.

Desenvolvemos durante mais de dois anos (2007 a 2009) a pesquisa Tragédia grega e
psicanálise dentro do tema geral Psicanálise e teatro, do Mestrado Profissional em Psicanálise,
Saúde e Sociedade da UVA, que culminou na criação e na apresentação da peça de teatro
Óidipous, filho de Laios - a história de Édipo rei pelo avesso. O espetáculo já foi encenado no
Rio de Janeiro e em Belo Horizonte, tendo já sido visto por cerca de 4.500 pessoas desde as
apresentações das leituras dramatizadas.
O objetivo desta pesquisa foi o estudo teórico e teatral das articulações entre as
descobertas da psicanálise e as teorias e práticas teatrais para chegarmos a uma proposta de
encenação de uma adaptação da tragédia grega Édipo rei, de Sófocles, com a Cia. Inconsciente
em Cena, dirigida por mim. O projeto de pesquisa desenvolveu-se em duas etapas: a pesquisa
teórica, acompanhada da elaboração do texto, e a pesquisa cênica e teatral, acompanhada das
pesquisas de música, voz e coreografia.
O Inconsciente é constituído por cenas em que os acontecimentos da subjetividade são
trazidos ao palco do divã. O teatro e a psicanálise começam com a tragédia, cujo paradigma é
essa peça de onde Freud apreendeu o desejo inconsciente articulado ao incesto e o ao parricídio.

http://www.uva.br/trivium/edicao1/pesquisa/2-oidipous-o-inconsciente-em-cena.pdf
186

O Inconsciente é teatral e trágico. À luz da psicanálise, efetuei uma "transcriação" dessa tragédia
antiga e, em seguida, por meio de ensaios, a levamos à cena para transmitir ao vivo e no real
aquilo que a psicanálise e a arte ensinam.

I - O texto da peça
A primeira etapa foi o estudo da bibliografia sobre a tragédia em geral, a peça de Sófocles
Édipo rei, as diversas traduções da peça em português, inglês, francês, cotejando com o original
em grego. Essa etapa culminou na elaboração do texto Óidipous, filho de Laios. Ela contou com a
colaboração de Fernando Salis, professor adjunto da Escola de Comunicação da UFRJ, no estudo
e no estabelecimento do texto, e de Izabela Bocayuva, professora adjunta de Filosofia da UERJ,
na assessoria do grego. Tive o privilégio de ser assessorado pelo grande helenista Jean Bollack,
alemão residente na França, com quem mantive, antes e depois, correspondência sobre minhas
interpretações da tragédia de Sófocles e que me concedeu uma supervisão em Paris sobre o tema.
Paralelamente, efetuei a pesquisa nos textos de Freud e de Lacan sobre a tragédia, e, em especial,
sobre Édipo rei. Nesse ínterim, apresentei os resultados da pesquisa em diversos âmbitos e
cidades brasileiras, e, também, em Paris, na Ecole de Psychanalyse des Fóruns du Champ
Lacanien.

A transcriação
O texto de Óidpous, filho de Laios, é uma transcriação da peça de Sófocles Édipo Rei com
interpolações. Transcriação é o termo de Augusto de Campos para se referir a uma tradução cuja

http://www.uva.br/trivium/edicao1/pesquisa/2-oidipous-o-inconsciente-em-cena.pdf
187

criação, a partir das opções do tradutor, produz um texto próprio. Com liberdade, o autor recria e
transforma o texto original em uma obra sua. Segui a estrutura da peça de Sófocles (os diálogos
em linguagem coloquial, intercalados com os estásimos do coro em linguagem poética),
acrescentando: a antecena do reino dos mortos com o monólogo do espectro de Laios, morto pelo
filho; a cena do encontro de Óidipous com a Esfinge; o libelo de Iokaste a favor do incesto e seu
monólogo antes do suicídio. O texto foi reduzido, para trazê-lo para uma linguagem dramatúrgica
mais ágil e contemporânea.
Toda transcriação é necessariamente uma interpretação. A minha foi efetuada a partir da
psicanálise e da filosofia e do ponto de vista a partir do qual pretendi contar a história: a maldição
herdada e a posição de Óidipous de ignorá-la. A maldição do Labdácidas, transmitida por Laios a
seu filho e netos não está presente em Sófocles e, sim, em Ésquilo. Substituímos os deuses pelas
qualidades que eles encarnam, e consideramos que o oráculo de Delfos representa o Inconsciente
como determinação enigmática para o sujeito. Procurei aproximar o texto de 2.500 anos para o
contexto atual interpretando o papel dos deuses (Atenas = sabedoria, Ártemis = coragem, Apolo
= poesia), considerando que o “destino” é ditado não pelos deuses e, sim, pelo que está escrito
para cada um em seu Inconsciente.
Mantivemos os nomes dos personagens e algumas palavras em grego, não só para o
espectador provar o sabor da língua matriz, mas para mostrar como o nome de Édipo (Óidipous)
pode ser escutado no enigma da Esfinge – “o que é que tem quatro pés (tetrapous), dois pés
(dipous) e três pés (tripous)”. É o enigma da origem (do ser e da história) e do (não) lugar que lhe
havia sido predestinado. A Esfinge faz uma charada a partir da equivocidade significante. Mas
Édipo só escuta o significado e julga ter acertado o enigma da Esfinge ao responder “o homem”.
Não ouviu o principal: a Esfinge falava dele, pois é ele o ser de “pé inchado”. Seu nome conjuga
Oiden (inchação) e pous (pé). Ademais, oida, em grego, significa “eu sei”.
O avesso da história
Sófocles, em Édipo Rei, acentua a descoberta feita por Édipo de que ele matou o pai e
casou com a mãe. Freud toma a peça de Sófocles, centrada nesses dois crimes, para estabelecer o
complexo de Édipo, articulando o desejo pela mãe com o desejo de matar o pai, obstáculo à
realização do desejo incestuoso.
Em Óidipous, filho de Laios, a ênfase foi colocada na herança simbólica inconsciente (a
transmissão da história paterna), que determina os atos do sujeito Édipo. Trata-se da dívida
simbólica que os filhos pagam pelos crimes dos pais em nível inconsciente. Por outro lado, dou
toda a relevância à questão do desejo dos pais de Édipo em relação ao filho, principalmente o
desejo de Laios de matá-lo. Ao fazer uma leitura lacaniana, situei Édipo como dejeto do desejo
do Outro: ele foi vítima do filicídio. E mais tarde, quando é expulso de Tebas, depois de ter sido
rei, ele volta a ser um dejeto, o lixo da tribo. Ele experimentou, como rei e esposo da mãe, o lugar
de objeto valioso e orgulho dos tebanos: ele foi a causa da prosperidade e da riqueza. Óidipous
foi primeiro desejado, amado e admirado e, em seguida, execrado por todos e exilado. Óidipous,
como herói da tragédia grega, é causa de desejo e de horror; ele é o "objeto a" (Lacan). Édipo-
objeto do Outro é o avesso de Édipo-sujeito do desejo. A mãe como o Outro que desejou (ou
permitiu) matá-lo é o avesso da mãe como objeto de desejo e incesto. O pai como filicida é o
avesso do pai como objeto do parricídio. Portanto, o desejo do Outro (de morte do sujeito) faz
aparecer o avesso do desejo do sujeito (de sexo e de assassinato). O incesto permite a articulação
entre o desejo do Outro e o desejo do sujeito. Assim, a pulsão de morte aparece como o avesso de
Eros.

http://www.uva.br/trivium/edicao1/pesquisa/2-oidipous-o-inconsciente-em-cena.pdf
188

Em Óidipous, filho de Laios, Édipo não decifra o enigma da Esfinge, pois a Esfinge não
morre. Ela volta transformada, muitos anos depois, quando Óidipous já matou o pai e já tem
quatro filhos com a mãe. Ela “se esfinge” de peste. E cabe a Óidipous interpretar o enigma da
peste, que novamente é ele mesmo. O homem do enigma é o próprio Édipo, que sou eu, você e
todos nós.
A história pelo avesso
A maldição dos Labdácidas começa com Laios (filho de Lábdacos), cuja desmedida o faz
transgredir as leis da hospitalidade e raptar seu amante Crísipo, filho de Pélops, o qual o
amaldiçoa: se tiver um filho este filho o matará – eis porque Laios manda matar Óidipous assim
que ele nasce. Ao escapar do filicídio e tornar-se mais tarde rei, Óidipous, não quer saber da
maldição herdada que, no entanto, está marcada em seu nome e em seu pé, na medida em que seu
pai mandou furar seus pés antes de mandar matá-lo. Óidipous foi entregue ao pastor de Corinto,
que o deu para os reis. Mais tarde, foge de Corinto ao saber de seu “destino” pelo oráculo de
Delfos, e comete sem saber o parricídio, casa com a mãe e transmite a seus filhos (entre eles,
Antígona) o tributo do gozo paterno (o crime e a maldição proferida contra o pai). A partir daí,
elaboramos a importância do Pai real do gozo, cujo crime é transmitido inconscientemente ao
sujeito, determinando sintomas e inibições. Em nossa transcriação, o herói Óidipous é levado
pela paixão da ignorância e se engana ao interpretar a Esfinge, ignorando que o enigma se referia
a sua origem, seu passado e seu futuro. A tragédia é o que herdamos dos Outros que nos
antecederam e sobre a qual não queremos saber. Como Óidipous (Édipo em grego), temos que
decifrar o enigma da Esfinge – O que é o homem? Quem sou eu?– e o enigma da peste – Por que
tanta destruição? Qual minha participação em tudo isso? Não há mais deuses. É o homem que
tem que responder. Quem não o faz vive como cego, é devorado pela Esfinge e sucumbe à peste
da vida. Por não querer saber, Óidipous vai da cegueira dos fatos à cegueira de fato. É preciso
retomar a dimensão trágica da vida e querer saber de seus paradoxos: o enigma da origem, o
conflito entre a determinação inconsciente (e histórica) e as escolhas do sujeito, as vicissitudes do
sexo e a tensão entre indivíduo e a coletividade.

II - A encenação da peça
Paralelamente à elaboração do texto, desenvolvemos a pesquisa visando à encenação da
peça. E para tal fim, criei a Cia. Inconsciente em Cena. No âmbito cênico e teatral, começamos
com os ensaios e exposição periódica dos resultados em leituras dramatizadas e, em seguida, com
apresentações da obra em processo até a estreia, em março de 2009. Contamos com a colaboração
de Regina Miranda, diretora de teatro e coreógrafa, diretora do Centro Coreográfico do Rio de
Janeiro e do Centro Laban de Nova Iorque, que também orientou a movimentação corporal e a
coreografia dos coros, junto com sua assistente, Renata Diniz. No âmbito musical, trabalhamos a
articulação na filosofia de Nietzsche sobre música e tragédia, as pulsões apolínea e dionisíaca,
para orientar a composição musical, junto com José Eduardo Costa Silva, professor de Escola de
Música da UEMG e doutorando de Música da UNIRIO, que resultou em trilha sonora original.
Contamos, também, com o Domingos Sávio de Oliveira, professor do Mestrado Profissional em
Fonoaudiologia da UVA, na pesquisa da voz trágica e na preparação de voz dos atores-
pesquisadores. E, para o design gráfico e os figurinos, colaborou a designer Valéria Naslausky.
A Cia. Inconsciente em Cena
Impulsionado pelo desejo de transmitir, criei a Cia. Inconsciente em Cena em 2007.
Minha atividade de psicanalista tem se acompanhado nestes últimos 25 anos de atividades –

http://www.uva.br/trivium/edicao1/pesquisa/2-oidipous-o-inconsciente-em-cena.pdf
189

clínica, escrita e oral – de transmissão da psicanálise. Em 2003, somou-se uma outra modalidade:
a transmissão pela via artística do teatro, levando ao palco o que se elabora no divã.
Teatro e psicanálise lidam com o mesmo material: os conflitos e a divisão do sujeito com
suas questões sobre a existência, o sexo, a morte, a dor, a criação e a relação com o outro. O ego
as rejeita, não quer saber, mas elas não o largam, insistem no Inconsciente, produzindo sintomas,
sofrimentos e enigmas. O teatro leva no real da cena as verdades censuradas do Inconsciente.
A criação teatral, assim como a análise, é terminável e interminável. A Cia. Inconsciente
em Cena assume a perspectiva da obra inacabada, do saber incompleto e do continuum do
Inconsciente, sempre em transformação. Nessa obra em processo (work in progress), se dá a
formação permanente da Cia. em seu trabalho de criação. Cada apresentação é um corte em que
ela se dá a ver.
Os atores-pesquisadores da Cia. Inconsciente em Cena que participaram da pesquisa são:
Marcelo Mello – ator e diretor de teatro, aluno do Curso de Pós-Graduação em História da Arte
da UVA; Lilian Chalub, Simone Couto, atrizes, e Edson Barbosa, músico, sendo os três
psicólogos formados na UVA; Alexandre Braga – ator, consultor de educação corporativa, aluno
do MBA em Educação Corporativa da UVA; Aline Deluna – atriz, aluna da Graduação em
Psicologia (UVA); André Infante Roman, Carla Stank e Tárik Vasques – atores, alunos do Curso
de Graduação em Teatro (UNIRIO); Priscila Paraíso e Vinícius Couto – cantora e músico, alunos
do Curso de Graduação do Conservatório de Música.
Mise en scène
Com o propósito de atualizar a tragédia e aproximá-la do contexto brasileiro sem perder
sua universalidade, com o texto de acesso fácil, em linguagem coloquial, nossa pesquisa levou-
nos aos índios brasileiros, e a situar Tebas, cidade de Édipo, na fronteira greco-xingu (imaginária
e mítica). Isso orientou nossa proposta de encenação e nossa pesquisa de adereços, de máscaras e
figurino, cenografia, música e coreografia, optando pela caracterização dos índios do Xingu.
Valorizando a música como elemento dionisíaco da tragédia, agregamos instrumentos musicais
de diversas culturas e épocas, apontando para a universalidade do tema, e colocamos em cena
dois atores músicos (uma cantora lírica) e um compositor e professor que sobe ao palco para
reger o coro e tocar diversos instrumentos barrocos (alaúde, guitarra) aos indígenas. Focalizamos,
assim, a dimensão mítica de nossa origem greco-indígena para abordarmos o real da existência.
Ao “antropofagizar” a tragédia grega a partir do índio brasileiro, criamos uma terceira linguagem.
Nossa proposta pode, então, se resumir: Tebas é aqui – uma tribo outrora sofisticada e próspera,
hoje em extinção. A pulsão de morte está solta, devastando multidões: doenças, rixas e guerras. O
céu está vazio, e os homens, à deriva, em busca de um salvador. O oráculo aponta o culpado:
Óidipous, que sou eu, é você e todos nós. Às cegas, o homem – grego, indígena ou urbano – erra
pelo mundo, sem conhecer o que determina suas ações. Só o saber sobre sua história e seus
desejos pode levá-lo a ser capaz de fazer suas escolhas e produzir transformações.
Apresentações
Ao longo do trabalho de pesquisa foram efetuadas duas leituras dramatizadas, em 2007,
(no Pólo de Pensamento Contemporâneo e no Fórum de Ciência e Cultura da UFRJ, com apoio
da FAPERJ) e quatro apresentações públicas de nossa "obra em progresso" (work in progress),
em 2008: em São Paulo, durante o Encontro Internacional da Escola de Psicanálise dos Fóruns do
Campo Lacaniano; em São João del Rey, no Festival de Inverno; e duas na UVA (Campus
Tijuca), na Semana de Psicologia e no Seminário Internacional de nosso Mestrado. E, finalmente,
em março de 2009, estreamos a peça Óidipous, filho de Laio, no Espaço SESC, em Copacabana,
no Rio de Janeiro. Em maio último, fizemos três apresentações em Belo Horizonte.

http://www.uva.br/trivium/edicao1/pesquisa/2-oidipous-o-inconsciente-em-cena.pdf
190

Apresentações em outras cidades já estão agendadas para 2009. A Cia. Inconsciente em Cena
mantém Óidipous, filho de Laios em seu repertório e se prepara para iniciar nova pesquisa. Veja
textos, fotos e vídeo de trecho da peça no blog: http://oidipousfilhodelaios.blogspot.com

Recebido em: 15 de junho de 2009


Aprovado em: 01 de julho de 2009

http://www.uva.br/trivium/edicao1/pesquisa/2-oidipous-o-inconsciente-em-cena.pdf

Você também pode gostar