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A imprensa LGBT brasileira sob a ótica da folkcomunicação: uma análise dos jornais
Lampião da Esquina e Chana com Chana
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Resumo
Introdução
Para falar a respeito da imprensa LGBT brasileira em termos teóricos, nada mais
adequado do que relacioná-la à aquele que é considerado o primeiro estudo teórico
comunicacional brasileiro, a folkcomunicação, ou comunicação folclórica, a teoria que
abrange a comunicação dos “marginalizados”.
Temer (2009) afirma que comunicação é uma questão inerente ao ser humano, que
desde tempos pré-históricos, percebeu ainda que talvez de forma inconsciente, a comunicação
como sendo uma forma de poder. Comunicação é portanto “a capacidade humana cuja
aquisição remonta às origens do desenvolvimento humano e da própria sociedade. No
Temer (2009) ainda define a comunicação de massa como sendo “uma forma
específica de comunicação que ocorre pela intermediação/ mediação de um meio técnico ou
multiplicador que permite à mensagem atingir um público anônimo, heterogêneo e
fisicamente disperso que pode atingir simultâneamente até bilhões de pessoas nos mais
diferentes pontos da Terra” (TEMER, 2009, p.11)
Folkcomunicação
Mesmo com imensas dificuldades na produção científica, boa parte delas influenciada
pelos problemas políticos, sociais e econômicos do país, ainda assim é possível encontrar
relevantes contribuições brasileiras ao campo das Teorias da Comunicação. Nesse sentido,
destacamos o primeiro dentre os estudos teóricos empreendidos em solo tupiniquim, a
folkcomunicação.
Os estudos de folkcomunicação estão diretamente ligados aos estudos do primeiro
Doutor em Comunicação formado no Brasil, professor Luiz Beltrão. Motivado por sua própria
experiência de vida e por uma aguçada curiosidade de entender o que de fato movia a
sociedade. Sua maior inquietação, todavia, centrava-se nas camadas populares, no homem
excluído, no folclore como manifestação cultural. A vontade de compreender a relação entre
mídia, cultura popular e folclore, o levou a publicar, no ano de 1967, sua tese de doutorado na
Universidade de Brasília (UNB), cujo título era “Folkcomunicação: um estudo dos agentes e
meios populares de informação de fatos e expressões de ideias”.
Em livre tradução para o português, o termo folk remete a “popular” e a “folclore”.O
próprio Luiz Beltrão assim define como é possível entender em que consiste a
folkcomunicação “é o processo de intercâmbio de informações e manifestação de opiniões,
ideias e atitudes por parte da massa, por intermédio de agentes e meios direta ou
indiretamente ligados ao folclore” (BELTRÃO, 2004, p.47).
Para Temer (2009), a folkcomunicação representa a primeira teoria genuinamente
brasileira da comunicação. Em linhas gerais, essa teoria diz respeito à cultura popular, que
pertence e é fomentada pelo povo, sem a obrigatoriedade da utilização de meios formais de
comunicação, tais como jornais, revistas, televisão e quaisquer outros meios relacionados à
grande mídia.
Beltrão (1980) afirma que apesar de não existir uma obrigatoriedade, os meios de
comunicação de massa podem sim ser utilizados em certos casos como formas de divulgação
da cultura folclórica. Entretanto, embora exista essa possibilidade, na folkcomunicação, as
manifestações são sobretudo resultado da “atividade artesanal do agente-comunicador,
enquanto seu processo de difusão se desenvolve horizontalmente, tendo-se em conta que os
usuários característicos recebem as mensagens através de um intermediário próprio em um
dos múltiplos estágios de sua difusão”. (BELTRÃO, 1980, p. 265)
Marques de Melo (1972) afirma que o campo da folkcomunicação comtempla o estudo
da linguagem popular, das imagens e representações dos membros da massa. Dessa maneira,
Marques de Melo aponta que o objeto de estudo dessa teoria, localiza-se na divisa entre o
folclore, compreendido como forma de manifestação cultural das classes subalternas ou
marginalizadas, e a comunicação de massa.
[…] 1. Amar Todos os homens; 2. Nunca ficar com um só; 3. Beijar todos
os bofes; 4. Evitar falar no futuro; 5. Quanto mais intimidade na cama melhor; 6.
Fingir sempre que ama um só; 7. Nunca esquecer os bofes casados; 8. Evitar falar
em dinheiro; 9. Não querer as mariconas; 10. Casar só por uma hora […] (PERET,
2011, p. 24)
Mesmo tendo circulado por pouco tempo, O Snob é um jornal marcante, por ter sido o
primeiro abertamente gay e pela influência causada pela linguagem empregada nos textos.
Não obstante, o jornal motivou reflexões e controvérsias não só pelo fato de o tema
homossexualidade ser polêmico, como também por questões políticas, já que o Brasil
vivenciava o período da Ditadura Militar. Questões financeiras e divergências entre os
membros da redação levaram ao fim da publicação. Ao todo, foram produzidas 99 edições,
que circularam de julho de 1963 a junho de 1969.
Conforme Peret (2011), o mesmo mês de junho de 1969, aconteceu um fato
determinante para os futuros passos da comunidade LGBT em todo o mundo, o Levante de
Stonewall. No dia 28 daquele mês, cerca de 400 pessoas se reuniram para beber, como de
costume, no bar Stonewall Inn, frequentado em sua maioria por gays, lésbicas e travestis. O
estabelecimento, acusado de vender bebidas alcoólicas sem autorização, entre outras
atividades, era quase sempre alvo de policiais, que repreendiam violentamente o público no
bar.
Entretanto, na noite do dia 28 de junho, um grupo de travestis reagiu à repressão
policial com socos e pontapés, rapidamente a notícia se espalhou e dezenas de pessoas se
mobilizaram. O confronto com a polícia durou cerca de quatro dias e algumas pessoas foram
presas. Só que o saldo foi muito mais positivo do que negativo. O levante é um marco na luta
pelos direitos LGBTs em todo o mundo. Por causa de Stonewall, comemora-se até hoje em 28
de junho o Dia do Orgulho LGBT.
O fato histórico refletiu também na imprensa LGBT brasileira. Mesmo em um
momento conturbado, no qual o AI-5 sacudiu o país, e diversos jornalistas foram perseguidos
e mortos, o público LGBT encontrou um respiro: o jornal Lampião da Esquina, fundado em
abril de 1978.
Segundo Peret (2011), o nome do jornal, “além de fazer uma referência direta ao
famoso cangaceiro, aludia a ideia de iluminar a cabeça das pessoas para novas concepções e
comportamentos. O jornal diferenciava-se da imprensa gay que o precedeu pelo enfoque
político que dava ao tema da homossexualidade”. (PERET, 2011, p.49)
Ainda de acordo com Peret (2011), desde o início, ao longo de suas 36 edições, o
Lampião tinha como proposta abordar não apenas temas gays, mas também assuntos
polêmicos ligados a grupos minoritários, como o feminismo e o racismo. O jornal era
impresso e editado no Rio de Janeiro, mas a equipe também era composta por pessoas que
moravam em São Paulo. Entre os principais nomes que escreveram para o Lampião, destaca-
se o jornalista e autor de telenovelas, Aguinaldo Silva. Assim como no caso de O Snob, é
possível traçar uma relação entre a folkcomunicação e a linguagem do Lampião:
Ainda que O Snob tenha sido o primeiro jornal abertamente feito por gays e para gays,
o Lampião foi o primeiro jornal gay de circulação nacional. Vale ressaltar que,
majoritariamente, as publicações datadas da década de 1960 eram distribuídas
clandestinamente em bares, cinemas e demais pontos de encontro de homossexuais. O
Lampião foi o primeiro a ser vendido nas bancas de jornal, mesmo tendo enfrentado
resistência por parte de alguns jornaleiros.
Segundo Peret (2011), o jornal quase sempre enfrentava dificuldades financeiras. Além
de ficar escondido nas bancas, para um homossexual da década de 1970, comprar um jornal
voltado para o público LGBT era um ato político, quase como uma “saída do armário”. Além
disso, o jornal também foi alvo de diversas sanções por parte dos militares. Embora não tenha
sido processado, o Lampião foi alvo de inquéritos, o que causou certos constrangimentos para
seus redatores, entre eles: João Silvério Tevisan, Aguinaldo Silva, João Antônio Mascarenhas,
Adão Acosta, Francisco Bittencourt, Gasparino Damata, Clóvis Marques e Iaponi Araújo.
Além das dificuldades financeiras, divergências entre os redatores causaram o fim do
Lampião da Esquina, em 1981. Embora o jornal tivesse onze conselheiros, duas figuras
exerciam maior influência e poder, Aguinaldo Silva – então editor-chefe que trabalhava na
redação fluminense – e João Silvério Trevisan, um dos membros mais ativos do conselho em
São Paulo. Ambos tinham pontos de vista discordantes sobre o futuro da publicação:
Mesmo tendo findado em 1981, com apenas três anos de circulação, O Lampião
prestou serviços muito positivos à comunidade LGBT brasileira, refletindo, quase sempre, as
pautas de interesse de homossexuais e transexuais brasileiros. Além disso, enquanto existiu, o
Lampião, ainda que de forma “rudimentar”, deu voz às primeiras ativistas da imprensa lésbica
brasileira, fato que contribuiu posteriormente para a criação do jornal Chana com Chana,
considerado o principal periódico voltado para o público lésbico na história da imprensa
nacional.
De acordo com Peret (2011), entre o final da década de 1970 e início da década de
1980, em meio à emergência do feminismo e diante das lutas em prol da liberdade sexual
feminina, o Lampião convidou algumas integrantes do grupo Somos – um dos pioneiros no
ativismo LGBT brasileiro – a produzir uma matéria sobre lesbianismo. A partir disso, foi
criado o Grupo Lésbico Feminista, responsável pela produção do primeiro jornal lésbico do
Brasil, o Chana com Chana, lançado em 1981.
Inicialmente, a produção do jornal era feita ainda de forma artesanal, de modo que o
Chana com Chana chegava às mãos de poucas pessoas, mais precisamente um pequeno grupo
de lésbicas residentes em São Paulo. Em janeiro de 1981, o Grupo Lésbico Feminista acabou.
A produção do jornal foi retomada em 1982, quando Miriam Martinho, Rosely Roth e Eliana
Galti - militantes importantes para o movimento LGBT brasileiro – fundaram o Grupo de
Ação Lésbico – feminista (Galf).
De acordo com Peret (2011), um acontecimento envolvendo a distribuição do
periódico tornou-se marcante para o ativismo LGBT no Brasil. O Chana com Chana era
distribuído pelas próprias membros do jornal, em diversos pontos de encontro de lésbicas na
cidade de São Paulo. Um desses points era o Ferro’s Bar, localizado nas proximidades da
praça Roosevelt. No dia 23 de julho de 1983, seguranças do estabelecimento tentaram colocar
as integrantes do jornal para fora e impedir a distribuição da publicação.
Conforme Peret (2011), em agosto de 1983, uma manifestação em protesto às
represálias foi convocada e dezenas de pessoas invadiram o bar. O episódio ficou conhecido
como Stonewall brasileiro. A mídia deu grande atenção ao fato e, ironicamente, o número de
clientes do bar aumentou. Com isso, o Chana com Chana continuou sendo distribuído no
local. O Chana com Chana circulou até 1987, quando o Galf virou uma Organização não-
governamental denominada Um outro Olhar.
É possível, portanto, traçar uma relação entre o conteúdo do Chana com Chana e a
folkcomunicação, porque o periódico além de contar com agentes de folkcomunicação,
figuras populares como Rosely Roth, Eliana Galti e Miriam Martinho, entre outras redatoras,
propunham uma comunicação popular, em um jornal escrito por lésbicas e para lésbicas.
Analisando a edição de número quatro do Chana com Chana, publicada em 1983, é
possível ter uma ideia do que representou o Stonewall brasileiro para as lésbicas que
vivenciaram o caso. A edição começa com a seguinte manchete “Ferro’s Bar, dia 19 de
agosto: uma vitória contra o preconceito”.
[…] Por acreditar nessa democracia, sem lideranças, sem vanguardas e sem
elites é que continuamos a lutar para que todas as lésbicas se expressem e lutem
pelos seus direitos. À maneira de cada uma. Acreditando em nossa autonomia
individual, mesmo que participemos dos mais diversos grupos. A repercussão do
“happening” político do Ferro’s abriu espaços sociais para o Galf em dois sentidos.
Entre as lésbicas, muitas vieram participar do grupo […] (CHANA COM CHANA,
1983, nº4, p.4)
Por fim, o texto faz uma ampla defesa da democracia, destacando que a militância pela
democracia não se restringe aos trabalhadores, aos sindicatos e partidos políticos, ou seja, vai
além e diz respeito também à outras classes e seus cotidianos. Além disso, Vanda conclui
dizendo que a luta das lésbicas vai além do Stonewall brasileiro, principalmente, ela afirma
ser necessário lutar pelo direito de demonstrar amor em público. Pelo visto, ela estava certa.
Considerações finais
Referências
TEMER, Ana Carolina Rocha Pessoa e NERY, Vanda Cunha Albieri. Para entender as
Teorias da Comunicação. 2. ed. revista e atualizada. Goiânia: EDFU, 2009.
BELTRÃO, Luiz. Folkcomunicação – Um estudo dos agentes e dos meios populares de
informação de fatos e expressão de idéias (tese de doutorado). Brasília, Universidade de
Brasília, 1967. (Esta obra foi recentemente publicada pela coleção Comunicação da
EDIPUCRS, Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2001).
BELTRÃO, Luiz. Folkcomunicação, a comunicação dos marginalizados. São Paulo:
Cortez, 1980, p. 259-279.
MARQUES DE MELO, José. O folclore midiático. In: A esfinge midiática. São Paulo:
Paulus, 2004, p. 269-272. MARQUES DE MELO, José. Comunicação, região,
desenvolvimento. In: MARQUES DE MELO, BRUM, LINHARES, BRITO & GOBBI
(orgs). Comunicação, região & desenvolvimento. Campo Grande: UNIDERP, 2004b, p. 19-
26.
MARQUES DE MELO, José. Comunicação e classes subalternas. São Paulo: Cortez, 1980,
p.111-14. MARQUES DE MELO, José. Sistemas de comunicação no Brasil. In: MARQUES
DE MELO, FADUL & LINS DA SILVA. Ideologias e poder no ensino de comunicação. São
Paulo: Cortez & Moraes, 1979, p. 211-239.
PERET, Flávia. Imprensa Gay no Brasil entre a militância e o consumo. São Paulo, 2011.