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ALÉM

DOS
MUROS DA
UNIVERSIDADE
planejamento urbano e regional
e extensão universitária

organização_
Camila D’Ottaviano
João Rovati
ALÉM
DOS
MUROS DA
UNIVERSIDADE
planejamento urbano e regional
e extensão universitária

organização_
Camila D’Ottaviano
João Rovati

ANPUR . 2019
desenho de Bruno Mello
© 2019 ANPUR
revisão
Camila D’Ottaviano
João Rovati

projeto gráfico
Paula Custódio de Oliveira

foto capa
Camila Alberti

impressão e encadernamento
LPG - FAUUSP
Coord. André Luis Ferreira

1ª edição | dezembro.2019

Além dos Muros da Universidade: Planejamento Urbano e Regional e Exten-


são Universitária/ Organização: Camila D’Ottaviano, João Rovati. - 1º ed. - São
Paulo: Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo e
Associação Nacional de Pós-graduação e Pesquisa em Planejamento Urbano e
Regional, 2019.

202 p. : il; 26,5x20cm

ISBN (impresso): 978-65-80485-02-4


ISBN (digital): 978-65-80485-03-1

1. Extensão Universitária. 2. Planejamento Urbano. 3. Planejamento Regio-


nal. 4. Ensino. I. D’Ottavino, Camila. II. Rovati, João.

DOI: https://doi.org/10.22296/2317-1529/9786580485031

Aos que lutam pelo ensino superior público, gratuito e de excelência.


Aos que resistem através do diálogo, amorosamente.
Aos que praticam o esperançar.
sumário_
A Extensão Universitária na ANPUR: consolidando o debate
Camila D’Ottaviano . João Rovati
9

1 EXTENSÃO EM MOVIMENTO 15
Camila D’Ottaviano

2 EXTENSÃO UNIVERSITÁRIA COMO AÇÃO EDUCADORA PARA UMA OUTRA CIDADE 33


Luciana Corrêa do Lago

3 EXTENSÃO UNIVERSITÁRIA E PARCERIA 47


Jorge Bassani . Camila D’Ottaviano

4 O MUNDO MULTIPLEXO DO ORNITORRINCO DE PAPEL: 63


,universidade cidade e extensão universitária

Wrana Panizzi

5 PRÁTICAS DE PESQUISA-AÇÃO E EXTENSÃO EM FORTALEZA: 81


entre conflitos e resistências

Renato Pequeno

6 CO-CRIANDO A CIDADE COM CRIANÇAS E ADOLESCENTE: 111


articulações e reflexões a partir de experiências em espaços educativos

Curiar

7 ENTRE TENSÕES E EXTENSÕES: 129


- emau/ufrj
uma análise de estratégias de atuação do abricó

Bruna Garritano Ferreira . Erick Santos de Mouros .


Maria Eduarda Lessa . Mariana Aló Rodrigues Araujo da Silva

8 TRAJETÓRIA, VIVÊNCIAS, PERMANÊNCIA E CONTINUIDADE. 151


reflexões sobre a extensão no xviii enanpur

Jane Roberta de Assis Barbosa . Sara Raquel Fernandes Queiroz de Medeiros

9 A EXTENSÃO UNIVERSITÁRIA NO XVIII ENANPUR 175


Inês Martina Lersch . Rita de Cássia Lucena Velloso

POSFÁCIO . Dimensões para pensarmos a Extensão Universitária 191


Márcio José Veríssimo Catelan

sobre os autores 200


Vila Nazaré, Porto Alegre, 2018.
foto_ Camila Alberti
A Extensão
Universitária

aPRE
na ANPUR:
consolidando o
debate um bom poema leva anos
cinco jogando bola,
mais cinco estudando sânscrito,
seis carregando pedra,

SEN
nove namorando a vizinha,
sete levando porrada,
quatro andando sozinho,
três mudando de cidade,
dez trocando de assunto,
uma eternidade, eu e você,
caminhando junto

Paulo Leminski

Em seus 36 anos de existência, a Associação Nacional de Pós-Graduação

TAÇÃO
e Pesquisa em Planejamento Urbano e Regional – ANPUR1 tem sido
um importante aglutinador dos centros de ensino e pesquisa do campo
dos estudos urbanos e regionais. Desde 1986 a ANPUR é responsável
pela organização do maior encontro científico da área (e, acreditamos,
de seu mais importante fórum nacional): os ENANPUR, seus Encontros
Nacionais, bienais.

Entre associados e filiados, a ANPUR reúne hoje 73 programas de


pós-graduação – 5 da região Norte, 14 do Nordeste, 4 do Centro-
Vila Nazaré, Porto Alegre, 2018.
Oeste, 32 do Sudeste e 18 da região Sul. São programas voltados a
foto_ Camila Alberti diversas disciplinas e áreas de pesquisa, como planejamento urbano e
regional, arquitetura e urbanismo, demografia, desenvolvimento urbano
e regional, estudos urbanos e regionais, planejamento ambiental,
geografia, estudos amazônicos, planejamento e dinâmicas territoriais no
semiárido, ciências sociais e políticas públicas.
10 Além dos Muros da Universidade: Planejamento Urbano e Regional e Extensão Universitária A Extensão Universitária na ANPUR: consolidando o debate 11

Em 1986, o primeiro ENANPUR teve 110 Este segundo livro, como o primeiro, é um No primeiro capítulo, Extensão em Movimento, No capítulo Práticas de Pesquisa-Ação e
participantes. Hoje, e isso há mais de uma registro da caminhada iniciada em 2016,4 e, Camila D’Ottaviano, da Universidade de São Extensão em Fortaleza: entre conflitos e
década, nossos encontros reúnem centenas sobretudo, da consolidação do debate sobre Paulo (USP), reflete sobre o amplo campo resistências, o professor Renato Pequeno,
de pesquisadores, professores e estudantes, Extensão Universitária dentro da ANPUR. de atuação da Extensão Universitária em da Universidade Federal do Ceará (UFC), faz
propiciando um profundo debate sobre nossa Planejamento Urbano e Regional, enfatizando um retrospecto da importância das atividades
produção científica e políticas de ensino, O livro tem nove capítulos, mais posfácio, e o atual momento de desvalorização das de Extensão do Laboratório de Estudos da
pesquisa e pós-graduação. procura incorporar os relatos, reflexões, análises, universidades públicas brasileiras, ressaltando Habitação (Lehab) no seu dia a dia como
debates, temáticas, inquietações e experiências a importância da Extensão na formação docente e pesquisador, mas também para a
Em 2017, durante o XVII ENANPUR, tivemos presentes: (i) na Mesa Redonda Extensão de planejadores comprometidos com o produção científica da área. Esse texto resume
pela primeira vez uma Sessão Temática do Universitária: desafios e potencialidades na enfrentamento das profundas desigualdades sua apresentação na Mesa Redonda Extensão
Encontro dedicada integralmente ao debate da formação de planejadores urbanos e regionais, socioterritoriais brasileiras. Universitária: desafios e potencialidades na
Extensão Universitária, a Sessão Temática 11 que contou com a participação dos professores formação de planejadores urbanos e regionais.
– A Extensão Universitária como perspectiva Karina Leitão (coordenação), Caio Santo No capítulo seguinte, Extensão Universitária
de atuação social e pedagógica para além da Amore, Luciana Corrêa do Lago e Renato como ação educadora para uma outra cidade, Os próximos dois capítulos são de autoria de
sala de aula,2 coordenada pelos professores Pequeno; (ii) na Sessão Temática 09 – Extensão Luciana Corrêa do Lago, da Universidade alunos de graduação ligados aos escritórios
Caio Santo Amore, João Rovati e Regina Universitária e Assistência Técnica no campo e Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), trata da modelo de duas universidades federais, o
Lins. O registro desse primeiro momento foi na cidade, coordenada pelas professoras Inês importância da Extensão Universitária na Curiar, da Universidade Federal da Bahia
consolidado com a publicação do livro Para Martina Lersch, Rita de Cássia Lucena Velloso formação de jovens profissionais em busca de (UFBA), e o Abricó, da Universidade Federal
além da sala de aula. Extensão Universitária e Sara Raquel Fernandes Queiroz de Medeiros; uma cidade mais democrática. do Rio de Janeiro (UFRJ).
e Planejamento Urbano e Regional,3 no qual (iii) nas Oficinas de Práticas Urbanas; e (iv) nos
está reunida grande parte das atividades (em debates dos grupos de trabalho, reuniões No capítulo Extensão Universitária e No capítulo Co-criando a cidade com crianças
especial as Oficinas de Práticas Urbanas) e informais e conversas nos corredores durante o parceria, os professores Camila D’Ottaviano e e adolescentes: articulações e reflexões
debates realizados naquele momento. XVIII ENANPUR.5 Jorge Bassani (USP) destacam a importância a partir de experiências em espaços
particular do território para a Extensão, e da educativos, integrantes do Curiar (Ana Clara
permanência continuada nele, como forma Oliveira de Araújo, Davi Lima Bastos, Maria
1. A ANPUR foi criada em 1983, por iniciativa de cinco programas de Pós-Graduação: Programa de Pós-Graduação em Planejamento de propiciar experiências efetivas de troca e Luiza Freitas Rocha & Mariana Ribeiro Pardo)
Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Programa de Pós-Graduação em Estruturas Ambientais parceria entre universidade e sociedade. fazem um relato crítico de duas de suas
Urbanas da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (atualmente programa de Pós-Graduação em experiências de Extensão.
Arquitetura e Urbanismo/FAUUSP), Programa de Pós-Graduação em Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal No capítulo O mundo multiplexo do
do Rio Grande do Sul (PROPUR/UFRGS), Mestrado em Desenvolvimento Urbano da Universidade Federal de Pernambuco
ornitorrinco de papel: universidade, cidade Já Bruna Garritano Ferreira, Erick Santos de
(atualmente Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Urbano – MDU/UFPE) e Mestrado em Planejamento Urbano da
Universidade de Brasília (atualmente Programa de Pesquisa e Pós-Graduação da FAU/UnB).
e Extensão Universitária, Wrana Panizzi, Mouros, Maria Eduarda Lessa & Mariana Aló
2. Uma discussão mais aprofundada sobre a Extensão Universitária no âmbito da ANPUR aconteceu em 2016, durante o VIII
professora da Universidade Federal do Rio Rodrigues Araujo da Silva, membros do Abricó,
SEPEPUR/Seminário de Avaliação do Ensino e Pesquisa em Planejamento Urbano e Regional, realizado em Porto Alegre/ Grande do Sul (UFRGS) e ex-presidente da no capítulo Entre tensões e extensões: uma
UFRGS. Foi por deliberação da Assembleia realizada no encerramento do SEPEPUR que esta Sessão Temática foi incorporada à ANPUR, com base em artigo apresentado no análise de estratégias de atuação do Abricó
programação do XVII ENANPUR. XVIII ENANPUR, reflete sobre o papel singular - EMAU/UFRJ, mostram as dificuldades
3. D’OTTAVIANO, C. & ROVATI, J. (2017). Para Além da Sala de Aula. Extensão Universitária e Planejamento Urbano e Regional. São da Extensão para a instituição universitária. enfrentadas por parte dos estudantes para
Paulo: ANPUR/FAUUSP. a realização de experiências autônomas de
4. Para detalhes ver D’OTTAVIANO,C. & ROVATI,J. (2017). A Extensão Universitária na ANPUR: um primeiro ciclo. In D’OTTAVIANO Extensão Universitária.
& ROVATI, op. cit., pp. 6-11.
5. Todos os textos apresentam exclusivamente a opinião de seus autores e não uma posição da ANPUR ou mesmo de sua Diretoria.
12 Além dos Muros da Universidade: Planejamento Urbano e Regional e Extensão Universitária A Extensão Universitária na ANPUR: consolidando o debate 13

As professoras Jane Roberta de Assis Se este segundo ciclo de debates sobre prática extensionista, a Extensão Universitária, da Silva, Fernanda Ester Sánchez García,
Barbosa e Sara Raquel Fernandes Queiroz Extensão Universitária mostrou que esta é uma como a definimos aqui, e como já foi exposto Fernando Cézar de Macedo Mota, Ivo Marcos
de Medeiros (Universidade Federal do Rio temática importante e pertinente no âmbito no livro Para além da sala de aula, parece ser Theis e Sara Raquel Fernandes Queiroz de
Grande do Norte/UFRN) apresentam no da ANPUR, também apontou a existência uma formulação “latino-americana”.7 Pensamos Medeiros, que prontamente apoiaram a
capítulo Trajetória, vivências, permanência de alguns desafios importantes a serem que esse diálogo muito contribuiria para o realização deste segundo livro.
e continuidade. Reflexões sobre a Extensão enfrentados por nós nos próximos Encontros. aprofundamento de uma prática extensionista
no XVIII ENANPUR, um relato sobre as engajada e comprometida política e socialmente. “Um bom poema leva anos”, escreveu um dia
Oficinas de Práticas Urbanas realizadas no Em primeiro lugar, persiste o desafio de Paulo Leminski. Sabemos que a consolidação
XVIII ENANPUR. incorporar ao debate as várias áreas de Este segundo ciclo reforçou ainda mais a da temática da Extensão no campo do
conhecimento presentes na ANPUR. Na importância de tornar pública, de forma crítica Planejamento Urbano e Regional e, em especial,
No capítulo A Extensão Universitária no Sessão Temática, os trabalhos e as discussões e sistemática, a experiência extensionista de no âmbito da ANPUR, precisa de tempo. Como
XVIII ENANPUR, Inês Martina Lersch (UFRGS) ficaram concentradas nas experiências nossos programas de Pós-graduação. As o primeiro livro Para além da sala de aula, este
e Rita de Cássia Lucena Velloso (UFMG), de programas e cursos de Arquitetura e Sessões Temáticas realizadas nos últimos é mais uma etapa desse processo.
coordenadoras da Sessão Temática 09 – Urbanismo. Isso talvez tenha ocorrido devido dois encontros têm se mostrado um espaço
Extensão Universitária e Assistência Técnica à temática proposta para a Sessão, que se importante para essa sistematização e Em tempos de ameaça ao livre-pensar e ao
no campo e na cidade, fazem um balanço referia especificamente à Assistência Técnica, reflexão, como revela, por exemplo, o relato livre-ensinar, que as experiências, ideias e
sobre os trabalhos apresentados durante campo ainda de alguma forma dominado pela do Abricó publicado neste livro. Nosso último sonhos aqui relatados possam ser exemplos
nosso último Encontro Nacional. Arquitetura e Urbanismo. desafio é, portanto, garantir e ampliar esse de formação engajada, luta e resistência, para
espaço de publicização e debate crítico dentro os pesquisadores e profissionais do nosso
Por fim, no posfácio Dimensões para Tanto os debates quanto a audiência maciça da ANPUR, através das sessões temáticas e campo. Como nos ensinou Paulo Freire, que
pensarmos a Extensão Universitária, o colega da Mesa Redonda, por outro lado, mostraram mesas redondas durante os ENANPURs, mas mostrem a importância de sermos, na nossa
Márcio José Veríssimo Catelan (Universidade que a Extensão Universitária de fato mobiliza também abrindo espaço para a temática na prática cotidiana, professores, pesquisadores
Estadual de São Paulo UNESP-Presidente as várias áreas de conhecimento que compõe RBEUR/Revista Brasileira de Estudos Urbanos e extensionistas amorosos. E assim seguiremos
Prudente) faz uma reflexão sobre a Extensão a Associação. e Regionais. juntos na luta cotidiana por um Brasil mais justo
Universitária em nossas universidades hoje, e democrático.
isso a partir das discussões proporcionadas Um segundo desafio, na nossa visão, é a Ao final, gostaríamos de agradecer aos
pela Mesa Redonda Extensão Universitária: ampliação do debate para além das nossas colegas que gentilmente cederam as imagens
desafios e potencialidades na formação de fronteiras nacionais, incorporando diálogos usadas no livro. E fazer um agradecimento ~
Camila D'Ottaviano & Joao Rovati
planejadores urbanos e regionais. 6 e discussões sobre a realidade latino- especial aos diretores da ANPUR, Márcio
americana. Conforme apontam Espinoza & Moraes Valença, Carolina Pescatori Cândido São Paulo | Porto Alegre
Marx em sua recuperação histórica sobre a dezembro de 2019

6. Na manhã seguinte à realização da Mesa Redonda, o professor Márcio Catelan contou que tinha ficado tão sensibilizado pelo 7. ESPINOZA, H & MARX, J. (2019). La vinculación/extensión en Latinoamérica: una mirada al siglo XX. In Anais do Primer Congreso
debate que chegou ao hotel e começou a escrever um texto sobre o que tinha visto e ouvido. O texto do Posfácio, em parte, Internacional de Vinculación con la Sociedad. Cuenca: Universidad Católica de Cuenca.
incorpora suas ref lexões da noite do dia 29 de maio de 2019.
EXTENSÃO
EM MOVIMENTO
Camila D'Ottaviano 1

capítulo 1
Para ter rua é preciso ter corpo.

Eliane Brum

Em 2017, Fabiana Britto já alertava que Extensão é puro


desafio.2 Chegamos ao final de 2019 com desafios ainda
maiores e mais profundos.

Vila Nazaré, Porto Alegre, 2018. Este texto procura problematizar os desafios institucionais
foto_ Ananda Rossi da Extensão Universitária, sem perder de vista suas
potencialidades. Ao mesmo tempo, defende uma
prática extensionista que tenha como princípio básico o
estabelecimento de uma relação transformadora entre
Universidade e Sociedade, na qual, segundo Paulo Freire,
vivenciamos a experiência
16 Além dos Muros da Universidade: Planejamento Urbano e Regional e Extensão Universitária capítulo 1 Extensão em movimento 17

“(...) de algo que é levado por um sujeito Vivemos um momento de desmonte da coisa A EXTENSÃO UNIVERSITÁRIA HOJE O FORPROEX, historicamente, é formado
que se encontra ‘atrás do muro’ àqueles pública. Com a Extensão Universitária não pela reunião dos Pró-reitores de Extensão das
que se encontram ‘além do muro’, ‘fora do é diferente, uma vez que ela é justamente Embora bastante conhecida, e como forma universidades federais brasileiras. Desde o
muro’ (...). [E onde,] ao contrário, educar e
uma das ferramentas de afirmação da de iniciar o debate, é importante retomarmos período de redemocratização, o FORPROEX
educar-se, na prática da liberdade, é tarefa
dimensão pública da Universidade.4 Por a definição da Extensão formulada em 2012 tem tido um papel fundamental na definição
daqueles que sabem que pouco sabem –
por isto sabem que sabem algo e podem isso é importante definir o que entendemos pelo Fórum de Pró-Reitores de Extensão das e defesa da Extensão Universitária como
assim chegar a saber mais – em diálogo com por Extensão em Planejamento Urbano e Instituições Públicas de Educação Superior atividade formadora e constituinte de nossas
aqueles que, quase sempre, pensam que Regional para, a partir disso, consolidar Brasileiras, o FORPROEX: universidades públicas. Tomarei a liberdade,
nada sabem, para que estes, transformando os territórios ou campos desta prática em porém, de falar um pouco das realidades
seu pensar que nada sabem em saber que A Extensão Universitária é o processo
nossas universidades.5 específicas da Universidade de São Paulo
pouco sabem, possam igualmente saber educativo, cultural e científico que articula o
Ensino e a Pesquisa de forma indissociável (USP), onde sou docente, e da Universidade
mais.”3 Parto do entendimento da Extensão Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), com
e viabiliza a relação transformadora entre
como prática dialógica de formação, onde Universidade e Sociedade. A Extensão é uma a qual tenho projetos em comum. Por ser a
Ao debater ascpectos institucionais e vivenciamos não apenas a troca de saberes, via de mão-dupla, com trânsito assegurado à maior universidade pública do país, analisar
mas também a confluência de saberes, comunidade acadêmica, que encontrará, na como a USP vê a Extensão Universitária pode
normativas, o objetivo aqui é discutir duas
sempre tendo por base a experiência real sociedade, a oportunidade de elaboração da nos ajudar a compreender os vários desafios
questões que considero centrais: afinal, qual
do e no território, em parceria6 com atores praxis de um conhecimento acadêmico. No a serem enfrentados na consolidação
é a Extensão Universitária que acredito e retorno à Universidade, docentes e discentes
defendo? E quais são os desafios atuais para externos à universidade.7 de uma Extensão Universitária de fato
trarão um aprendizado que, submetido
a realização desta Extensão? à reflexão teórica, será acrescido àquele transformadora, tanto dentro quando fora
conhecimento. Esse fluxo, que estabelece a dos “muros” de nossas universidades. De
troca de saberes sistematizados, acadêmico outra parte, entender a prática da Extensão
e popular, terá como consequências a em uma Universidade Federal com presença
produção do conhecimento resultante ativa no FORPROEX, como a UFRGS, parece-
do confronto com a realidade brasileira e me um contraponto necessário.
regional, a democratização do conhecimento
acadêmico e a participação efetiva da
As primeiras experiências brasileiras
comunidade na atuação da Universidade.
Além de instrumentalizadora deste processo
relacionadas à Extensão aconteceram
dialético de teoria/prática, a Extensão é um justamente nas faculdades que deram
1. Em grande medida, este texto é um desdobramento das conversas, ref lexões e atividades de Extensão Universitária realizadas origem à USP, com cursos e conferências
trabalho interdisciplinar que favorece a visão
com os colegas da FAUUSP – Caio Santo Amore, Catharina Pinheiro, Jorge Bassani e Karina Leitão, e da UFRGS – Bruno Mello
integrada do social.8 realizados em 1911.9 A estrutura da
e João Rovati.
Extensão Universitária como conhecemos
2. BRITO, F. D. A. (2017). Extensão Universitária em tempos de crise. In C. D’OTTAVIANO & J. ROVATI. (Org.). Para Além da Sala de
Aula. Extensão Universitária e Planejamento Urbano e Regional. São Paulo: FAUUSP/ ANPUR, pp. 26-35.
3. FREIRE, P. (1983[1969]). Extensão ou Comunicação? Rio de Janeiro: Paz e Terra, pp.12 e 15.
4. ROVATI, J. & D’OTTAVIANO, C. (2017). Os territórios da Extensão Universitária. In: D’Ottaviano & Rovati, op. cit., pp. 14-24.
5. ROVATI & D’OTTAVIANO, op. cit.
8. FÓRUM DE PRÓ-REITORES DE EXTENSÃO DAS INSTITUIÇÕES PÚBLICAS DE EDUCAÇÃO SUPERIOR BRASILEIRAS/FORPROEX
6. Ver Capítulo 3 “Extensão Universitária e parceria”.
(2012). Política Nacional de Extensão Universitária. Porto Alegre: UFRGS, pp. 21-22 (grifo da autora).
7. Para Bassani, o território deve ser entendido como resultado de uma ação conduzida por atores. Qualquer que seja a ciência ou
9. D’OTTAVIANO, C. & ROVATI, J. (2016). O Ensino de Urbanismo no Brasil: experiências de Extensão Universitária em São Paulo e
disciplina (urbanismo, geografia, biologia), parte-se da ideia de que o território é um espaço de ação e conf lito. BASSANI, J.
Porto Alegre. In Actas XX Congreso ARQUISUR 2016 Hábitat Sustentable. Concepción: Universidad del Bío-Bío, p. 770-783.
(2019). Das intervenções artísticas à ação política urbana. Tese de Livre-docência. São Paulo: FAUUSP.
18 Além dos Muros da Universidade: Planejamento Urbano e Regional e Extensão Universitária capítulo 1 Extensão em movimento 19

hoje, no entanto, só foi definida depois Ao primeiro olhar, os princípios definidos pela nossas universidades. Em forma de anedota, IV – orientação;
da redemocratização pós-Ditadura (1965- Universidade de São Paulo, como “interação perguntou então se quando convidamos
1985), quando o Fórum dos Pró-Reitores transformadora entre a universidade e alguém a nossa casa para jantar fazemos V – as seguintes atividades também
uma “extensão” da nossa mesa, ou se
de Extensão foi criado. O I Encontro a sociedade”, parecem muito próximos são consideradas de cultura e extensão
o chamamos para sentar conosco, para universitária:
Nacional de Pró-Reitores de Extensão das das definições do FORPROEX. Porém, o
compartilhar a mesa que temos. Assim como
Universidades Públicas Brasileiras aconteceu Regimento fala também em “socialização Grabois, entendemos que essa é uma das
em 1987. A USP, no entanto, não participa do do saber acadêmico” e em “participação questões centrais sobre a qual temos que nos a – participação em bancas examinadoras ou
FORPROEX – isto é, desenvolve suas políticas da comunidade na vida universitária”. Esses debruçar: como fazer com que as atividades julgadoras, realizadas fora da Universidade de
de Extensão com certa independência em princípios, assim me parece, distanciam a que incluem a “sociedade”, o lado de lá São Paulo (...); b – participação em colegiado
do “muro” das nossas universidades, sejam ou comissão externa à Universidade de
relação às Universidades Federais. Extensão da ideia de “troca de saberes” e
incorporadas de forma efetiva ao dia a dia de São Paulo; c – atividade de educação e
mesmo de “práxis”, ao valorizar a ideia de
nossas instituições?11 divulgação artística, cultural, científica,
Toda a normativa relativa à Extensão que o conhecimento científico produzido técnica, tecnológica ou desportiva (...); d
Universitária da USP está definida pela universidade é algo a ser “levado” à – participação na direção de sociedades
no Regimento de Cultura e Extensão sociedade. A grande questão, portanto, está na definição científicas, técnicas, tecnológicas, artísticas,
Universitária aprovado em 2011. De acordo das atividades a serem consideradas “de honoríficas, culturais ou profissionais e
com esse documento, o regulamento se Em seu Título I – Da Cultura e Extensão conselhos editoriais; e – supervisão de
Extensão”:
baseia nos seguintes princípios: Universitária, a Resolução define que “A estágios não obrigatórios, de treinamentos,
extensão universitária visa estender à Artigo 4º – A cultura e extensão universitária de reciclagens, de visitas monitoradas ou
– que a extensão universitária é um processo compreendem as seguintes atividades, de técnicas e projetos do corpo discente;
sociedade suas atividades, indissociáveis
que articula o ensino e a pesquisa de forma a acordo com os critérios definidos neste f – promoção e organização de eventos
viabilizar a interação transformadora entre do ensino e da pesquisa.” (Artigo 3º, grifo científicos, técnicos, tecnológicos, culturais,
Regimento:
a universidade e a sociedade. nosso). artísticos e desportivos; g – contribuição em
eventos científicos, técnicos, tecnológicos,
I – formação profissional e educação
– que a relação entre ensino, pesquisa e “Estender” à sociedade as atividades da culturais, artísticos, desportivos, palestras,
continuada: a – Curso de Especialização;
extensão universitária enriquece o processo universidade pública configura justamente conferências, seminários, simpósios,
b – Curso de Aperfeiçoamento; c – Curso
pedagógico, favorecendo a socialização algo a ser combatido, conforme já afirmado jornadas, encontros, oficinas, reuniões e
de Atualização; d – Residência; e – Prática
do saber acadêmico e estabelecendo uma anteriormente: congressos; h – participação na elaboração
Profissionalizante;
dinâmica que contribui para a participação de projetos de lei e normas legais e técnicas;
da comunidade na vida universitária.10 Durante o XVII ENANPUR, na mesa redonda i – elaboração de pareceres, laudos técnicos
Crise e perspectivas das lutas sociais, o II – assessoria, consultoria e prestação de e perícias judiciais; j – participação em
ativista argentino Juan Grabois, ao falar serviço especializado; projetos comunitários; k – outras atividades
sobre Extensão Universitária, disse que não contempladas nos incisos e alíneas
precisávamos achar um nome melhor para III – assistência; anteriores, a juízo do Conselho de Cultura e
definir essa atividade, tão importante para Extensão Universitária.12

10. UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO. Resolução Nº 5940, de 26 de julho de 2011 (grifos da autora). 11. ROVATI & D’OTTAVIANO, op. cit., p. 16.
12. UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO. Resolução Nº 5940, de 26 de julho de 2011.
20 Além dos Muros da Universidade: Planejamento Urbano e Regional e Extensão Universitária capítulo 1 Extensão em movimento 21

Por outro lado, em 2012, a Universidade registradas e aprovadas nas instâncias Entendo (e creio que aqui posso falar em dois outros grandes desafios pela frente: o
Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), acadêmicas; 10. Buscar o financiamento nome dos colegas que têm participado das ensino à distância (EaD) e o novo modelo
possivelmente à luz das diretrizes da da extensão com recursos provenientes de atividades ligadas à Extensão no âmbito de financiamento privado das universidades
setores públicos e/ou privados.13
Política Nacional defina pelo FORPROEX, da ANPUR) a Extensão Universitária como públicas proposto pelo governo federal
estabeleceu que sua Politica de Extensão uma prática de formação que supõe, através do programa Future-se.
seria estruturada a partir de dez itens Rm 2015, ao definir as Normas Gerais para necessariamente, a existência de uma
fundamentais: Atividades de Extensão Universitária,14 a relação dialógica ou processo de troca com Uma primeira questão: é possível fazer
UFRGS apresenta como “Tipos das Atividades a sociedade, isto é, de uma relação que Extensão Universitária, nos moldes por nós
1. Interagir com a sociedade incluindo o
Extensão” uma lista tão abrangente quanto vai além das nossas salas aula, dos nossos defendidos, através de cursos e programas
atendimento às demandas sociais e às ações
de produção e difusão cultural e tecnológica; a da USP, incluindo atividades como muros, alambrados e cercas. de ensino à distância?
2. Manter seu compromisso com os direitos bancas, palestras, organização de eventos,
humanos, respeitando as diferenças de publicações, etc. Em julho de 2018, durante Seminário
raças, etnias, crenças e gêneros; 3. Assegurar de Ensino de Arquitetura e Urbanismo
a relação bidirecional entre a Universidade UNIVERSIDADES “À VENDA” promovido pelo Conselho de Arquitetura e
A última normativa aprovada pelo Ministério
e a Sociedade para o desenvolvimento, Urbanismo do Rio Grande do Sul (CAU-RS),18
produção e preservação cultural, artística
da Educação (MEC) – Resolução nº 7 de
18 de dezembro de 2018, que Estabelece No processo de desmanche do Estado durante a mesa “O papel da Extensão na
e tecnológica relevantes para a afirmação
as Diretrizes para a Extensão na Educação capitaneado pelo atual governo federal,16 formação acadêmica”, fui perguntada sobre
do caráter regional e nacional; 4. Promover
atividades de extensão interinstitucionais, Superior Brasileira, mantem, em linhas uma das questões que nos toca diretamente como promover a Extensão Universitária no
voltadas para o intercâmbio nacional e gerais, a mesma definição proposta pelo é justamente o desmonte e a sistemática ensino à distância. Minha posição foi clara:
internacional; 5. Assegurar a extensão FORPROEX em 2012. No entanto, define desvalorização da Universidade Pública17 não se faz Extensão Universitária à distância.
universitária como um processo acadêmico cinco modalidades distintas de Extensão e do ensino público de forma geral. Nesse
importante na formação do aluno em quadro, a Extensão Universitária, como
Universitária: (1) Programas; (2) Projetos; (3)
nível de graduação e pós-graduação, na prática dialógica de formação, tem ainda
Cursos e Oficinas; (4) Eventos; (5) e Prestação
qualificação do professor e no intercâmbio
com a sociedade; 6. Promover relações de Serviços.15
multi, inter e/ou transdisciplinares de
setores da Universidade e da Sociedade; A amplitude dada às atividades que podem
7. Ampliar a oferta de oportunidades e ser reconhecidas como “de Extensão”
melhorar a qualidade da educação em todos 16. O atual governo defende o princípio do Estado Mínimo, preconizando a diminuição do papel do poder público na regulação
dentro de nossas universidades faz com que
econômica. Ao Estado Mínimo caberia garantir a ordem e a legalidade, concentrando sua ação nos serviços mínimos necessários
os níveis; 8. Ampliar o acesso ao saber e a mesma possa ser entendida como “tudo para tanto (como policiamento, forças armadas, poderes executivo, legislativo e judiciário). De acordo com esse entendimento o
ao desenvolvimento tecnológico e social aquilo que não é Ensino ou Pesquisa”. Estado é “mínimo” apenas para alguns. Para referências sobre esse debate ver definição de Lalo W. Minto disponível em http://
do país; 9. Garantir Programa de Fomento
Ora, essa é justamente a “definição” que www.histedbr.fe.unicamp.br/navegando/glossario/verb_c_estado_minimo.htm.
às atividades de extensão devidamente
procuramos combater. 17. De acordo com o atual ministro da Educação, Abraham Weintraub, a Universidade Pública é o local da balbúrdia. Em abril de
2019, entre outras declarações, o ministro disse: “Universidade que, em vez de procurar melhorar o desempenho acadêmico,
estiverem fazendo balbúrdia, terão verbas reduzidas”; “a universidade deve estar com sobra de dinheiro para fazer bagunça
e evento ridículo”; “sem-terra dentro do campus, gente pelada dentro do campus”. Disponível em https://educacao.estadao.
13. UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL/CONSELHO UNIVERSITÁRIO (2012). Política Extensão Universitária com.br/noticias/geral,mec-cortara-verba-de-universidade-por-balburdia-e-ja-mira-unb-uff-e-uf ba,70002809579, acesso em 16/
UFRGS, Decisão nº 266/2012, Porto Alegre, 20 de julho de 2012 (grifos da autora). novembro/2019.
14. UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL/CONSELHO DE ENSINO, PESQUISA E EXTENSÃO (2015). Normas Gerais 18. Em sua Deliberação Plenária 1031 de 22 de março de 2019, o CAU-RS decidiu não reconhecer o diploma de Arquitetura e
para Atividades de Extensão Universitária, Resolução no 17/2015, Porto Alegre, 29 de abril de 2015. Urbanismo de egressos de cursos EaD. No mês de julho, o Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF4) reconheceu a
15. BRASIL/MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO (2018). Resolução no 7 de 18 de dezembro de 2018. Voltarei a essa Resolução mais a frente. legitimidade do Conselho em não registrar egresso de curso EaD.
22 Além dos Muros da Universidade: Planejamento Urbano e Regional e Extensão Universitária capítulo 1 Extensão em movimento 23

Acredito na Extensão como práxis. Em nosso Sem entrar no debate da proposta (com algo positivo, de outra, no atual quadro de Considerando as normas vigentes atualmente
campo de atuação, sua realização plena só a qual não concordo, em absoluto), é enfraquecimento do ensino público, pode nas duas universidades analisadas, penso
é possível a partir da experiência com e no importante pensar que papel teria a levar à desqualificação e fragilização da que a prática da Extensão aqui defendida
território. Parafraseando a afirmação de Extensão Universitária nesse novo modelo de prática extensionista que defendemos. encontra-se em xeque.
Eliane Brum: para ter Extensão Universitária gestão. Um risco real é que nesse processo
é preciso ter corpo. E é preciso que este de “captação de recursos privados” pela Novamente tomando a liberdade de pensar As definições e diretrizes originais do
corpo ocupe seu espaço no território. universidade pública, a Extensão venha a partir da instituição onde sou docente, FORPROEX apontam para uma Extensão
a ser utilizada como uma das formas de farei aqui um exercício, refletindo sobre o Universitária humanizada, voltada para
A segunda questão relaciona-se ao novo “vender” o conhecimento ali produzido, via que poderá significar essa obrigatoriedade a formação de jovens profissionais-
modelo proposto pelo governo para as assessorias, cursos, consultorias e afins. no nosso curso de Arquitetura e Urbanismo cidadãos comprometidos com a realidade
universidades e institutos federais, de (FAUUSP). social brasileira, a partir de uma prática
“captação de recursos no mercado”.19 De Uma última questão merece atenção: a transformadora.24
acordo com Ministério da Educação: obrigatoriedade definida pela Resolução A partir de 2021, nossos 150 alunos
nº 7/2018 de que 10% da carga horária dos de graduação deverão cumprir Porém, as definições das atividades de
O Future-se tem o objetivo dar maior
cursos de graduação deve ser dedicada obrigatoriamente 588 horas de atividades de Extensão Universitária (como as feitas pela
autonomia financeira a universidades e
institutos federais por meio do fomento necessariamente à Extensão: Extensão Universitária. Como garantir que Resolução 7/2018, pela Universidade de
à captação de recursos próprios e ao turmas de 150 alunos realizem um volume São Paulo e pela Universidade Federal do
Artigo 4 - As atividades de extensão devem
empreendedorismo. compor, no mínimo, 10% (dez por cento) do
tão grande de atividades de Extensão, Rio Grande do Sul), somadas à lógica de
total da carga horaria curricular estudantil praticando atividades onde a ação dialógica “venda” da universidade, à obrigatoriedade
A proposta do MEC com o Future-se é dos cursos de graduação, as quais deverão e a troca de saberes de fato sejam o eixo de horas mínimas dedicadas por todos os
aumentar a autonomia administrativa, fazer parte da matriz curricular dos cursos.21 condutor? estudantes à Extensão e à possibilidade de
financeira e de gestão das universidades e ensino à distância, podem transformá-la num
institutos federais em todo o país. A adesão Lembro ainda que a Resolução define grande balcão de prestação de serviços,
ao programa é voluntária. 20 O debate e aprovação da obrigatoriedade também que suas diretrizes “podem de forma mercadológica e sem qualquer
de um número mínimo de horas ser direcionadas aos cursos superiores vinculação com a formação humanizada e
necessariamente dedicado à Extensão de pós-graduação, conforme o Projeto transformadora pretendida em sua origem.
De fato, o que o governo federal propõe Universitária foi feito num outro momento
sob os nomes de “empreendedorismo” e Político Pedagógico (PPP) da instituição de
histórico, onde o entendimento sobre as educação superior”.23 Ou seja, as práticas
“autonomia” é o fim do orçamento regular atividades de Extensão era balizado pela
para a manutenção das universidades de Extensão Universitária na Pós-graduação
atuação do FORPROEXT.22 Se, de uma poderão ser definidas individualmente pelas
públicas federais – as universidades parte, a obrigatoriedade de horas mínimas
agora deveriam buscar fontes privadas de várias instituições com Programas de Pós-
dedicadas à Extensão pode representar graduação ativos.
financiamento para suas várias atividades.

19. As universidades estaduais tem estruturas de gestão e financiamento definidas localmente. No caso do estado de São Paulo,
desde 1988, as universidades estaduais (USP, Unicamp e UNESP) recebem uma porcentagem fixa do Imposto sobre Circulação
de Mercadorias e Serviços (ICMS), defina por lei. 23. BRASIL/MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO. Resolução no 7, de 18 de dezembro de 2018, Parágrafo Único.
20. Disponível em http://portal.mec.gov.br/component/tags/tag/52641, acesso em 16/nov/2019. 24. Ver D’OTTAVIANO & ROVATI, 2017, op. cit.
21. BRASIL/MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO. Resolução no 7, de 18 de dezembro de 2018.
22. Ver BRITTO, op. cit.
24 Além dos Muros da Universidade: Planejamento Urbano e Regional e Extensão Universitária capítulo 1 Extensão em movimento 25

EXTENSÃO, ASSESSORIA OU ASSISTÊNCIA praticamos nosso conhecimento científico Conforme apontado por Santo Amore29 e efetivo diálogo ou trocas de saberes com o
nas assessorias diversas, na formação técnica Miranda,30 apesar de processos participativos autoconstrutor. O vínculo entre arquiteto e
A partir desse quadro, é urgente pensarmos, na e política, na pesquisa empírica, precisamos para a elaboração dos projetos, na prática autoconstrutor se dá por relações mercantis;
estar preparados e abertos para o confronto a prática torna-se assistência técnica,
área do planejamento urbano e regional, quais da assessoria, os saberes técnicos no geral
com outros conhecimentos. A educação reproduzindo-se enquanto prestação de
são de fato os limites entre essas atividades se sobrepõem aos populares. Além disso,
transformadora é aquela que provoca o serviços.32
que denominamos “Extensão Universitária”, confronto de ideias e ideais, ao promover o tempo e determinantes externos para a
“Assessoria” e “Assistência Técnica”. Essas espaços para as argumentações e as práticas de elaboração dos projetos impõem restrições
delimitações por vezes são difíceis de precisar. convencimento. A educação transformadora é à participação efetiva dos moradores (ou Miranda também procura avançar na
Mas, faremos aqui um esforço na tentativa de necessariamente democrática.27 parceiros) em todo o processo. definição dos campos de atuação da
valorizar a importância da Extensão como assessoria técnica e da assistência técnica:
atividade de formação. Denise Morado Nascimento31 também defende
A prática da assessoria técnica como Não é incomum se deparar com o termo
que as fronteiras entre Extensão, assessoria
praticada atualmente surge nos anos 1980, “assistência técnica”, apesar de ele não
O primeiro ponto a ser ressaltado, portanto, é e assistência técnica devem ser definidas ser bem aceito entre os trabalhadores das
especificamente como uma atividade de
que a Extensão deve se caracterizar sobretudo como forma de valorizar o papel da Extensão assessorias. Isso porque além de remeter
assessoria aos movimentos de moradia:
como atividade de formação, onde o aprender Universitária na formação de planejadores. às iniciativas sociais introduzidas pelo
constante, a partir do diálogo e da práxis, As assessorias técnicas de arquitetura no Ao analisar especificamente a realidade da regime ditatorial, em sentido denotativo
é prática formadora. Como Luciana Lago,25 Brasil emergiram, pois, como campo de arquitetura e urbanismo, afirma que: diz respeito à ajuda gratuita direcionada à
entendo que a Extensão deve ser vista, sempre, atuação profissional principalmente durante população com baixa renda. “Assessoria”,
os mutirões [habitacionais] paulistas das Experiências de assessorias técnicas pelo apesar de ter um sentido próximo, refere-
como uma troca ou confluência de saberes. Brasil mostram que as que mais recebem
décadas de 80 e 90. Atraíram profissionais se mais objetivamente ao apoio técnico
Já a assessoria ou assistência técnica,26 de investimento privado mais se distanciam
interessados em promover uma “arquitetura especializado, sendo um termo mais neutro.
modo geral, se constitui sobretudo como uma do compartilhamento de processos (e do Santo Amore (2004, p.76) contudo diz que
pública”, em ocupar espaços negligenciados
prática de transmissão de conhecimento: pelo mercado e também onde o Estado diálogo freireano). “a trajetória dessas entidades demonstra
não fora capaz de suprir as necessidades que suas atividades, quando observadas
Não se trata, portanto, de transmissão do
de infraestrutura, serviços essenciais e (...) Quando as assessorias técnicas são pela ótica do atendimento à comunidade
conhecimento apenas, como as práticas de
moradia digna (apesar de dependerem dos financiadas pelo mercado privado, elas não e a suas demandas objetivas, vão se
assistência técnica, por exemplo, mas de
programas e fundos públicos). Apresentam- são realizadas por meio de metodologias transformando paulatinamente de assessoria
colocá-lo em xeque frente a outras formas de
se em formas diversas: além das organizações e instrumentos capazes de estabelecer o em assistência”, por efetivamente prestarem
compreensão da realidade e de atuar nela. (...)
não governamentais, se conformavam uma assistência social de caráter físico,
Nesse sentido, a prática extensionista deve
também em estruturas semelhantes à de através de projeto e obra.33
estar presente no desenvolvimento da pesquisa
e do ensino acadêmico como instrumento escritórios de arquitetura; por militantes,
didático que fomenta a aprendizagem. Quando sem o respaldo de uma figura jurídica; e no
interior das universidades.28 29. SANTO AMORE, C. (2004). Lupa e Telescópio – o mutirão em foco. São Paulo, anos 90 e atualidade. Dissertação de Mestrado.
São Paulo: FAUUSP.
30. MIRANDA, op. cit.
25. Ver Capítulo 2 - Extensão Universitária como ação educadora para uma outra cidade. 31. Ver NASCIMENTO, D. M. (2019). O que é extensão? Incertezas e provocações. In FERREIRA, L.; OLIVEIRA, O.; & IACOVINI, V.
26. Bruno Mello acredita que devemos também relativizar e rever o termo “técnico”. Esse, no entanto, é um debate que não cabe (Org.). Dimensões do intervir em favelas: desafios e perspectivas. São Paulo: Peabiru TCA/LabLaje, pp. 241-246. A professora
neste texto. Denise também defendeu que as fronteiras entre Extensão, Assessoria e Assistência Técnica devem ser definidas tanto teórica
27. LAGO, L. C. DO (2019). Extensão Universitária como ação educadora para uma outra cidade. In D’OTTAVIANO, C. & ROVATI, J. quando conceitualmente em sua fala durante o II Seminário EXTENSÃO UNIVERSITÁRIA: diálogos e perspectivas, realizado na
(2019). Além dos muros da Universidade: Planejamento Urbano e Regional e Extensão Universitária. São Paulo: ANPUR, pp. 33. FAUUSP em novembro de 2019.
28. MIRANDA, A. C. M. DE. (2019). Autogestão Habitacional no Rio de Janeiro. O acúmulo de experiências e a inf luência do Programa 32. NASCIMENTO, op. cit., p. 243.
Minha Casa Minha Vida Entidades. Dissertação de Mestrado. Rio de Janeiro: IPPUR/UFRJ, p. 48. 33. MIRANDA, op. cit., pp. 47.
26 Além dos Muros da Universidade: Planejamento Urbano e Regional e Extensão Universitária capítulo 1 Extensão em movimento 27

No caso da arquitetura e urbanismo,34 que Em todos os exemplos citados a ATHIS Mesmo sabendo que o debate entre Participei há pouco de uma atividade numa
usamos aqui como referência, a Assistência foi associada à temática da Extensão Extensão, Assessoria e Assistência Técnica é ocupação de moradia onde desenvolvo um
Técnica foi regulamentada pela Lei no Universitária. No entanto, toda a muito focado na realidade da arquitetura e projeto de Extensão já há algum tempo.41 O
11.888/2008, que “assegura às famílias de regulamentação da ATHIS pressupõe a do urbanismo, a delimitação desses campos encontro era a comemoração dos sete anos da
baixa renda assistência técnica pública e assistência via prestação de um serviço se mostra importante também ao pensarmos ocupação. Ao iniciar a roda de conversa, uma
gratuita para o projeto e a construção de técnico, com profissional habilitado que a Extensão Universitária em Planejamento das lideranças destacou que a presença da
habitação de interesse social”.35 responda às normas e definições do Urbano e Regional, uma área multi-inter- FAUUSP nas atividades da ocupação tem sido
CAU (existência de registro profissional, trans disciplinar por natureza. Porque uma fundamental nas respostas ao poder público,
A Assistência Técnica para Habitação de pagamento de taxas, etc.). das potências da Extensão Universitária é tanto em relação a “questões técnicas” (como
Interesse Social, ou ATHIS, tem mobilizado justamente a possibilidade de praticar essa pequenas reformas, projetos e adequação
intensamente profissionais e gestores, com Em síntese, nesse contexto, a assistência multi-inter-trans disciplinaridade. às demandas da Defesa Civil e do Corpo de
realização de eventos como os Fóruns técnica é pautada pela ideia de “levar o Bombeiros) quanto em relação aos processos
regionais promovidos pelos Conselhos conhecimento a quem não tem” – e não de reintegração de posse. Logo depois, o
Regionais de Arquitetura e Urbanismo, pelo propósito da construção compartilhada advogado Manoel Del Rio, uma das lideranças
como o Fórum de Assistência Técnica e do conhecimento. EXTENSÃO EM MOVIMENTO40 da Frente de Luta por Moradia, começou sua
Extensão Universitária em Habitação de fala lembrando de sua passagem pela USP no
Interesse Social: Atuação Integrada no A assistência ou assessoria técnica realizada A Extensão Universitária, portanto, é um início dos anos 1970 e da importância que a
Espaço Urbano,36 realizado em São Paulo por grupos como a Peabiru,38 ou experiências campo em disputa tanto dentro quanto fora Universidade tem, desde então, em atividades
em 2018, o Seminário Nacional de ATHIS, de formação como a do CPPATHIS39 das nossas universidades. Por isso é tão junto à população da cidade de São Paulo. E
realizado em novembro de 2019 pelo CAU- da FAUUSP, parecem se aproximar do importante compreender qual é a prática terminou destacando sua alegria em ver ali,
RJ, ou projetos específicos, como o “Adote entendimento da Extensão como formação, extensionista que defendemos e pela qual na sala da ocupação, vários alunos da USP.
uma Casa”, parceira do CAU-Espirito Santo aqui defendida. Porém, experiências de vale a pena lutar.
e da Universidade de Vila Velha. 37 assessoria e assistência técnica com essas
características não são a prática corrente e
não devem ser tomadas como parâmetro
para a definição e conceituação desses
diferentes campos de atuação, que,
necessariamente, devem ser compreendidas
como práticas distintas.
40. A ideia de “Extensão em Movimento” vem de uma fala do professor Bruno Mello no II Seminário EXTENSÃO UNIVERSITÁRIA:
diálogos e perspectivas, realizado na FAUUSP, em novembro de 2019. Porém tem também como referência a experiência de
formação realizada pelo Movimentos do Trabalhadores Sem Terra/MST consolidada no livro “Escola em Movimento”. Ver
34. A Assistência Judiciária, no âmbito do Direito, também tem regulamentação própria. Porém no caso do Direito, desde 1950 (Lei CALDARTI, R. (2014). Escola em Movimento. Instituto de Educação Josué de Castro. São Paulo: Expressão Popular.
Nº 1.060, de 5 de fevereiro de 1950), a assistência judiciária é gratuita para a população de baixa renda. 41. É uma das ocupações em que a liderança teve a prisão preventiva decretada. Entre as práticas reacionárias do novo governo
35. BRASIL (2008). Lei Federal no 11.888, de 24 de dezembro de 2008. federal está a ameaça de incluir as atividades dos movimentos populares, em especial os movimentos de moradia, entre aquelas
36. Ver https://www.athis.org.br/forum-athis/. a serem tratadas como “terroristas”. Em São Paulo, como resultado das investigações relativas ao incêndio e desabamento,
37. Ver https://www.caubr.gov.br/cba/athis-es/. em maio de 2018, do edifício Wilton Paes de Almeida, prédio pertencente ao Patrimônio da União, ocupado precariamente por
38. Peabiru Trabalhos Técnicos Comunitários e Ambientais, ONG e assessoria técnica fundada em 1993 e sediada em São Paulo. famílias sem moradia e localizado no centro da cidade, quatro lideranças de diferentes movimentos de moradia foram presas
Para mais informações ver: http://www.peabirutca.org.br/ (Ednalva Franco, Sidnei Ferreira, Janice Ferreira (Preta) e Angélica dos Santos Lima) e várias outras tiveram sua prisão preventiva
decretada, acusadas de extorsão em processos baseados em denúncias anônimas. Vale destacar que nenhum dos acusados
39. Prática Profissionalizante em Assessoria e Assistência Técnica em Habitação de Interesse Social FAUUSP. Para maiores
fazia parte do movimento que ocupava o edifício que desabou, o Movimento de Luta Social por Moradia (MLSM).
informações ver: http://www.fau.usp.br/cultura-e-extensao/cursos/
28 Além dos Muros da Universidade: Planejamento Urbano e Regional e Extensão Universitária capítulo 1 Extensão em movimento 29

As atividades na ocupação envolvem alunos conflitos, a experiência do “conhecer de de fé, de confiança. Por isso, somente o Paulo Freire diz “não é possível transferir
de graduação, bolsistas de Extensão, alunos outra maneira”, distinta da experiência diálogo comunica. E quando os dois polos conhecimento se não criar as condições para
que estão desenvolvendo seus trabalhos vivida dentro dos muros da universidade. do diálogo se ligam assim, com amor, com sua produção ou sua construção”.
esperança, com fé no próximo, se fazem
de conclusão de curso, mestrandos e Uma práxis realizada através do convívio
críticos na procura de algo e se produz uma (...) Muitas vezes a gente sabe, conhece como
doutorandos. Cada um deles com atividades, com demandas concretas da população, que
relação de “empatia” entre ambos. Só ali começam os processos. Mas [n]os processos
projetos e pesquisas ligados em maior ou implica no envolvimento dos estudantes com há comunicação. “O diálogo é, portanto, o educativos que são criativos de verdade a
menor medida ao projeto de Extensão realidades que muitas vezes desconhecem. caminho indispensável”, diz Jaspers, “não gente não sabe. (...)
e à parceria com a ocupação e com os somente nas questões vitais para nossa
movimentos de moradia atuantes no centro Essa experiência, somada ao trabalho ordem política, mas em todos os sentidos da
nossa existência.”43 Então o processo dialógico, o processo
de São Paulo. Conto isso para destacar que coletivo, contribui decisivamente para a
que vincula o estudo com a realidade, a
este tipo de ação (como outras relatadas formação de um profissional qualificado
teoria com a prática, o sentido comum com
neste livro) demonstra que a Extensão não apenas como “técnico”, mas também o bom sentir. Todos aqueles processos nos
A prática extensionista comprometida
pode ser o catalizador para a efetivação do e sobretudo como sujeito humanizado e quais vamos nos construindo como pessoas
socialmente deve ser feita através do
tripé Ensino-Pesquisa-Extensão em nossas socialmente comprometido, apto a enfrentar solidárias, pessoas capazes de criar um novo
diálogo, da liberdade e da tolerância.
universidades. as enormes desigualdades sócio-territoriais mundo possível. 44
do nosso país.
Ao expor a importância do pensamento de
Entendo que a ação transformadora só se
Paulo Freire, Oscar Jara nos ajuda a entender Ainda tendo o pensamento freireando como
dá quando Extensão, Ensino e Pesquisa Como nos ensinou Paulo Freire, pensador
como a prática extensionista pode ser um referência, a Extensão Universitária é uma
de fato acontecem de forma conjunta, central da educação brasileira (e que, não
dos caminhos para a produção de novos oportunidade de aprendizagem também
articulada e compartilhada, onde as por acaso, tem sido fortemente atacado
conhecimentos, sempre a partir do diálogo: para nós professores e educadores, uma vez
atividades de Extensão não sejam encaradas pelo atual governo federal), a participação
que a troca de saberes deve ter sempre a
como “tudo aquilo que não é Ensino ou pressupõe “descruzar” os braços, o que (..) ele criou uma maneira de pensar e de fazer
educação que é uma educação libertadora. disposição para a aprendizagem mútua:
Pesquisa”. Temos como desafio consolidar só é possível a partir de um conhecimento
a produção do conhecimento a partir da aberto à complexidade e comprometido, Uma educação que vai dirigida a construir Porque o que Paulo Freire defende é a ideia
interação sistemática desse três “pés” da social, ética e politicamente.42 Ao descrever as capacidades de ser sujeito protagônico de criar o seu próprio pensamento, a sua
da história. E que mudou a relação própria capacidade crítica e também criar
universidade, com a prática extensionista o “como fazer”, o como implementar
tradicional entre ensino e aprendizagem. para nós educadoras e educadores a nossa
como caminho importante para a produção uma participação efetiva, Freire destaca a Tradicionalmente o peso principal para o
teórica, a partir da práxis, e também fonte importância do diálogo, no âmbito de um disposição de aprendizagem. Se a gente
papel dos educadores e da educadoras era não tem essa disposição para apreender não
regular de conhecimento aplicado dentro método ativo e crítico: o papel do ensino. O que vão ensinar, quais vamos criar capacidades criativas realmente
das nossas salas de aula, onde a práxis deve os conteúdos que vão se transmitir. Mas transformadoras.
E que é o diálogo? É uma relação horizontal
ser vista como forma de atuação na e para
de A com B. Nasce de uma matriz crítica
a sociedade. Uma prática que pressupõe a e gera criticidade (Jaspers). Nutre-se de
vivência no território e a vivência de seus amor, de humanidade, de esperança,

43. FREIRE, P. (1979). Educação e Mudança. Rio de Janeiro: Paz e Terra, p. 39.
42. ROVATI & D’OTTAVIANO, op.cit. 44. JARA, O. (2019). Abertura do Seminário “Freireando Porto Alegre”. Faculdade de Educação da UFRGS, 19 de outubro de 2019
(grifo da autora). Vídeo disponível em https://www.youtube.com/watch?v=BFJsxq7rH7s&feature=youtu.be.
30 Além dos Muros da Universidade: Planejamento Urbano e Regional e Extensão Universitária

Então estamos em um momento na América Latina em que


temos também que reinventar, reinventar esse jeito freireano.
O que significa que neste momento de intolerância, neste
momento de agressividade, de ódio, de violência, é o
momento em que a gente coloca no centro o diálogo, o
respeito, o respeito às ideias, o respeito às outras pessoas.
E coloca a amorosidade como um fator fundamental para
construir uma sociedade solidária.45

A Extensão Universitária aqui defendida pressupõe,


portanto, corpo, troca, confluência, participação,
parceria, afeto, diálogo e, neste momento de ameaça à
Universidade Pública, coragem. Ou, em outras palavras:
“Não desanimemos. O muro tem fissuras. E nas fissuras do
muro, esperanças. A educação é revolucionária. O amor. O
pensamento. O povo sem medo. Sigamos... O caminho é
de grandes tarefas.”46

45. JARA, op. cit.


46. Anotações de Gabriel Zarth, aluno-extensionista do Projeto Novas Práticas Urbanas (UFRGS), após visita à Vila Nazaré, em
Porto Alegre. ZARTH, G. (2019). Vila Nazaré. In MELLO, B.C.E; NODARI, G.R.; LERSCH, I.M.; & ROVATI, J.F. (org.) (2019). Práticas
Urbanas Emergentes. Porto Alegre: UFRGS, p. 157. Universitária UFRGS, Decisão nº 266/2012, Porto Alegre, 20 de julho de 2012
(grifos da autora).
Extensão
Universitária
como ação
educadora para
uma outra cidade
ê do Lago
Luciana Correa

capítulo 2
A intenção deste texto é apresentar alguns desafios postos
pela Extensão Universitária para as nossas teorias e leituras
críticas da realidade social e, mais especificamente, da
realidade urbana brasileira. Uso “nossas” por englobar
os intelectuais dedicados ao Ensino, à Pesquisa e à
Extensão nas universidades do país. São ideias ainda em
construção, alimentadas por experiências acadêmicas
“fora” e “dentro” dos muros da Universidade Federal do
Rio de Janeiro, das quais tive, e ainda tenho, o privilégio
de participar direta ou indiretamente: assessoria técnica e
cursos de formação para movimentos sociais de moradia
como projetos de extensão, disciplinas de graduação
praticadas em ocupações de movimentos sociais, pesquisa
participante de monografias e dissertações nas mesmas
ocupações e disciplinas de pós-graduação centradas nos
Ocupação 9 de Julho, São Paulo, 2019 foto_ Camila D’Ottaviano resultados desse conjunto de práticas.
34 Além dos Muros da Universidade: Planejamento Urbano e Regional e Extensão Universitária capítulo 2 Extensão Universitária como ação educadora para uma outra cidade 35

Os desafios propostos mais adiante partem SOBRE A AMPLITUDE DA CONCEPÇÃO DE do papel da Universidade na construção de aula, nos livros, revistas acadêmicas e na
da concepção de “Extensão Universitária” EXTENSÃO UNIVERSITÁRIA PÓS 80 da sociedade. A Extensão entrou na pauta mídia. Nesse sentido, a prática extensionista
elaborada em 1987 pelo Fórum de Pró- do debate universitário e expandiu, ainda deve estar presente no desenvolvimento
reitores de Extensão das Universidades Ensino-Pesquisa-Extensão são os timidamente, suas atividades. da pesquisa e do ensino acadêmico como
Públicas. Uma concepção abrangente e componentes do tripé de sustentação da instrumento didático que fomenta a
comprometida com a renovação do ensino educação universitária no Brasil, segundo a As funções estabelecidas para a Extensão aprendizagem. Quando praticamos nosso
universitário para a transformação social, Constituição de 1988 e a Política Nacional Universitária permanecem como grandes conhecimento científico nas assessorias
da qual partilho. Por isso, vou começar de Extensão (PNE) de 2012, que estabelece desafios a serem alcançados a longo prazo. diversas, na formação técnica e política,
expondo sucintamente tal concepção com que “a Extensão Universitária, sob o Uma primeira função é garantir a unidade na pesquisa empírica, precisamos estar
seus possíveis desdobramentos, para em princípio constitucional da indissociabilidade Ensino-Pesquisa-Extensão por meio das preparados e abertos para o confronto
seguida, pontuar algumas potencialidades entre ensino, pesquisa e extensão, é um atividades prático-críticas nos processos com outros conhecimentos. A educação
das práticas extensionistas na construção processo interdisciplinar educativo, cultural, de formação e produção do conhecimento. transformadora é aquela que provoca o
de uma outra sociedade e de uma outra científico e político que promove a interação A segunda é acionar a troca dos saberes confronto de ideias e ideais, ao promover
cidade. Por fim, centrarei no principal transformadora entre universidade e outros acadêmico e popular num processo espaços para as argumentações e as
desafio, a meu ver, da Extensão Universitária setores da sociedade”. 2 dialógico e dialético produtor de um novo práticas de convencimento. A educação
que é a produção de novos conhecimentos conhecimento. Não se trata, portanto, transformadora é necessariamente
e projetos resultantes das tensões entre Estamos em 2019 e esse tripé ainda não de transmissão do conhecimento apenas, democrática. Muitos de nós que viveram
os saberes popular e acadêmico. Trarei se configurou da forma imaginada, embora como as práticas de assistência técnica, experiências extensionistas junto a grupos
quatro situações de tensão vividas ao longo os três componentes estejam presentes por exemplo, mas de colocá-lo em xeque ou organizações sociais com outras
da realização do projeto de extensão da na estrutura acadêmica das universidades frente a outras formas de compreensão da visões de mundo e outras trajetórias de
Universidade Federal do Rio de Janeiro públicas e os incentivos às atividades realidade e de atuar nela. A terceira função da vida, tiveram que lidar com conflitos e
(UFRJ)1 na Ocupação Solano Trindade, extensionistas, até 2016, sejam inequívocos. Extensão é integrar os campos disciplinares, impasses que não estavam previstos nas
coordenada pelo Movimento Nacional de Destaco o Plano Nacional de Educação sobrepondo metodologias e conceitos metodologias e planos de atividades. As
Luta pela Moradia (MNLM) em Duque de de 2014, que seguindo a concepção de para dar conta da complexidade da vida saídas para tais situações podem ir da
Caxias, periferia metropolitana do Rio de Extensão de 1987, estabeleceu o mínimo de cotidiana, essencialmente transdisciplinar. suspensão das ações, até a concordância em
Janeiro. Foram tensões que estimularam o 10% da carga horária dos cursos superiores As três funções mencionadas são produtoras alterar estratégias iniciais de um projeto. O
repensar de alguns preceitos estabelecidos de graduação em programas e projetos de transformações de grande alcance, tanto grande desafio é nos mantermos receptivos
sobre a democratização da cidade, abrindo de Extensão Universitária. As reações na formação do estudante quanto nas formas às críticas e às propostas que surgem nos
o caminho para novas formulações teórico- contrárias por parte de segmentos da de compreensão da realidade social. confrontos, sem perdermos o sentido
práticas. Minha intenção aqui não é comunidade acadêmica foram e continuam político-pedagógico dos projetos de
desenvolver uma reflexão conclusiva, mas sendo significativas, instalando um bem- Temos uma educação universitária marcada extensão. Nesse sentido, vejamos algumas
sim, expor algumas situações de tensão que vindo confronto aberto entre concepções pela incompletude, pela ausência ou fraca premissas do projeto de construção de uma
ainda estão em aberto. presença do componente que possibilita a outra cidade, democrática e igualitária, que
checagem permanente do conhecimento vem agregando um conjunto de ações de
acadêmico produzido e difundido nas salas Ensino-Pesquisa-Extensão no Brasil, junto a
1. O projeto de extensão que reúne professores, alunos e técnicos do Laboratório de Estudos de Águas Urbanas (LEAU/Prourb/FAU), organizações e movimentos sociais.
do Núcleo de Solidariedade Técnica (SOLTEC/NIDES), do Observatório das Metrópoles/IPPUR, do Mutirão de Agroecologia
(MUDA/(NIDES), do Núcleo de Atividades de Pesquisas e Extensão sobre o Morar (naMORAR/Prourb/FAU) e do Laboratório de
Informática para Educação (LIpE/NIDES).
2. FÓRUM DE PRÓ-REITORES DE EXTENSÃO DAS INSTITUIÇÕES PÚBLICAS DE EDUCAÇÃO SUPERIOR BRASILEIRAS/FORPROEX
(2012). Política Nacional de Extensão Universitária. Porto Alegre: UFRGS, p.42.
36 Além dos Muros da Universidade: Planejamento Urbano e Regional e Extensão Universitária capítulo 2 Extensão Universitária como ação educadora para uma outra cidade 37

ENSINO-PESQUISA-EXTENSÃO PARA A renovação ou a deterioração de pedaços da trama complexa de relações mercantis e não bens e serviços definidos socialmente como
CONSTRUÇÃO DE UMA OUTRA CIDADE cidade produzem necessidades-mercadorias mercantis mais ou menos solidárias que dão básicos para a reprodução de uma vida digna
novas, alterando o padrão de desigualdades. forma ao hábitat popular. É nesse quadro está delimitada territorialmente nas cidades,
Uma das funções das atividades de Extensão As disputas em torno do acesso à cidade marcado por contradições que muitas dando forma às chamadas “periferias”.
é checar a serventia do conhecimento se dão no âmago desse processo de práticas extensionistas se desenvolvem, no
acadêmico para a reprodução de forma mercantilização, que engloba o imóvel e caminho para uma educação universitária É nesse contexto que se insere a Ocupação
plena da vida social. Um conhecimento todos os serviços urbanos que o tornam uma integral e transformadora. Esse é o caso do Solano Trindade, efetivada pelo MNLM
que responda às necessidades humanas habitação digna. A privatização dos serviços projeto de extensão sobre o qual falaremos em 2014, num terreno público com cerca
definidas e redefinidas socialmente e que urbanos vem alterando a pauta das lutas. a seguir. de 50.000 m², localizado na periferia
amplie as alternativas de respostas a essas Como exemplo, temos a expansão das redes metropolitana do Rio de Janeiro. Desde
necessidades, multiplicando os caminhos de transporte, de água e de eletricidade, então, vem sendo desenvolvido um projeto de
para a transformação social. E a educação acompanhada pelo aumento exponencial ensino-pesquisa-extensão reunindo núcleos
universitária cumpre um papel essencial das tarifas para garantir a rentabilidade das AS TENSÕES ENTRE OS SABERES E AS da UFRJ na ocupação, com várias frentes de
na construção desses caminhos. Caminhos empresas concessionárias. SÍNTESES POSSÍVEIS trabalho: regularização fundiária, projetos
para o desenvolvimento social, entendido urbanístico e de arquitetura, organização
como processo democrático e permanente Apontando para outra direção, podemos Em sociedades de classe profundamente do trabalho coletivo na produção de
de elevação do nível de bem-estar comum pensar o desenvolvimento social como desiguais como a brasileira, a vida cotidiana alimentos e na requalificação dos prédios e
segundo os interesses da sociedade, e não movimento emancipatório, movimento de é marcada pelo confronto permanente entre experimentação de tecnologias alternativas
do capital. definição autônoma dos bens e serviços os saberes popular (prático) e científico. na construção civil, infraestrutura urbana
necessários para o bem-estar comum. E esse As benesses geradas pela ciência moderna e agroecologia.3 Temos hoje estudantes,
A produção capitalista de bens e serviços movimento só se dá no conflito, no confronto para elevar a qualidade de vida humana professores e técnicos universitários (além
cria dialeticamente novas necessidades e de projetos e experiências. As experiências não chegaram, até o momento, a boa parte de profissionais sem vínculo direto com a
mercadorias para satisfaze-las e o ritmo desse autogestionárias dos movimentos de moradia da população com baixa capacidade de universidade) desenvolvendo suas atividades
processo criativo é o princípio definidor da no Brasil são exemplos relevantes dessa luta, ao consumo. Serviço de saúde, saneamento em projetos de pesquisa-extensão e em
visão hegemônica de “desenvolvimento centrarem suas pautas na desmercantilização básico, transporte público, internet entre disciplinas curriculares dos cursos de
econômico e social”. No caso específico da e na democratização da cidade. outras benesses, não têm acesso garantido a graduação e pós-graduação.4
produção do ambiente construído urbano, toda população, ou porque o serviço funciona
o capital imobiliário determina a dinâmica No contexto atual de profunda crise de forma precária, ou porque precisa ser
do mercado por meio de uma constante econômica e política, a riqueza, por pago. Essa inacessibilidade dos pobres aos
busca por sobrevalorização dos imóveis todas as regiões do país, de experiências
produzidos. A base dessa sobrevalorização associativas populares dedicadas à produção
está na diferenciação social do espaço habitacional nos desafia a pensar a potência
urbano, o que exige a permanente organizativa dessa aprendizagem coletiva
reprodução dessa diferenciação, seja no quadro de uma economia popular
“renovando” ou “deteriorando” áreas urbana. Formas diversas de organização e 3. Para uma descrição densa do projeto Ocupação Solano Trindade, especialmente dos processos de aprendizagem mútua, ver a
consolidadas, seja incorporando novas produção dos espaços populares urbanos dissertação PETRUS, F. (2019). Ocupação Solano Trindade, espaço comum e o trabalho coletivo: das práticas concretas a uma
agenda atualizada para a Reforma Urbana. Dissertação de Mestrado. Rio de Janeiro: PROURB/FAU-UFRJ.
áreas ao mercado imobiliário. A criação, a foram se sobrepondo e se inscrevendo na
4. Até o momento, foram realizadas sete disciplinas de graduação e de mestrado que tiveram como objeto de estudo teórico-prático
a Ocupação Solano Trindade. (PETRUS, op. cit.)
38 Além dos Muros da Universidade: Planejamento Urbano e Regional e Extensão Universitária capítulo 2 Extensão Universitária como ação educadora para uma outra cidade 39

A origem dessa relação UFRJ-MNLM A experiência do movimento no Rio de


foi marcada por uma convergência de Janeiro com financiamento do MCMV-
visões estratégicas sobre a luta pela Entidades expos inúmeros entraves para
desmercantilização da cidade. Uma que tais processos ocorressem, o que
primeira visão que nos aproximou foi a levou à decisão de não mais apresentarem
indissociabilidade entre o direito à moradia projetos no âmbito do Programa. No
digna e ao trabalho emancipado. Em entanto, o golpe político em 2016 alterou
outras palavras, os projetos habitacionais os rumos da Ocupação Solano Trindade,
autogestionários financiados pelo quando a coordenação local do movimento
Estado deveriam incorporar projetos de decidiu, frente às notícias de suspensão dos
sustentabilidade econômica das famílias financiamentos habitacionais, responder à
por meio de empreendimentos coletivos Chamada do Programa Entidades de 2016,
de trabalho e renda. Uma segunda visão demandando assessoria técnica da UFRJ para
estratégica comum foi a necessidade a elaboração de um projeto habitacional de
FIGURAS 1 a 4 de pensar alternativas de financiamento 105 casas unifamiliares em parte do terreno
Solano Trindade_reunião por fora do Programa Minha Casa Minha da ocupação. A partir desse momento, as
Vida Entidades (MCMV-Entidades) que frentes de trabalho tiveram que absorver
FIGURAS 5 a 7
possibilitassem processos de produção do esse novo projeto com todas as contradições
Solano Trindade_saneamento
habitat popular de fato autogestionários. geradas no desenvolvimento dos demais
FIGURA 8 (pág. seguinte) projetos. As situações de tensão que vou
Solano Trindade_telhado expor adiante estão, de alguma maneira,
relacionadas a esse contexto de re-adesão
Fonte: Fernanda Petrus, 2018. ao MCMV-Entidades.
40 Além dos Muros da Universidade: Planejamento Urbano e Regional e Extensão Universitária capítulo 2 Extensão Universitária como ação educadora para uma outra cidade 41

Meu olhar sobre as situações de tensão está A primeira diz respeito à ideologia da No Uruguai, essa cultura cooperativa concessão individual e direito de concessão
instruído por um dos desafios da Extensão casa própria. Sabemos que a propriedade começou a ser construída ainda nos anos coletivo foi problematizada pela assessoria
Universitária, vistos anteriormente: incitar privada da terra é a condição primeira para a 1960, por uma classe operária com forte com os argumentos acima mencionados,
a troca dialógica e dialética entre o mercantilização da cidade. Sabemos também identidade sindical. No Brasil, a base social inclusive para se pensar alternativas caso
saber acadêmico e o saber popular. Essa que a casa própria é, ao mesmo tempo, dos movimentos de moradia é formada por o financiamento público não se realizasse,
troca exige confiança entre sujeitos de uma mercadoria excepcionalmente lucrativa trabalhadores em situação laboral instável como foi o caso. Ao longo desse debate,
camadas sociais distintas, com trajetórias, graças à livre especulação imobiliária e e com poucas experiências comunitárias ficou evidente que a individualização do
projetos e visões de mundo distintas, mas uma forte ideologia permanentemente de luta e conquistas que demonstrem o direito de uso não respondia apenas à
compartilhando princípios ético-políticos. retroalimentada pelas políticas habitacionais, potencial das ações coletivas e das formas exigência da Caixa, mas aos ideais das
Todos os envolvidos precisam se expor, ouvir, inclusive por programas como o MCMV- coletivas de propriedade para a elevação da lideranças e moradores.
argumentar, contra-argumentar, convencer Entidades, direcionado para a produção qualidade de vida urbana.
e ser convencido em pé de igualdade e é autogestionária. A propriedade privada Com a suspensão do Programa, a estratégia
nesse embate de ideias que a confiança da moradia está nos corações e mentes Nos debates em Solano Trindade, essa foi buscar recursos para a requalificação de
pode ser construída. da população brasileira como única forma temática ganhou em complexidade, expondo um dos prédios para a produção de doze
segura de garantia de um teto, hoje e no a força da ideologia da casa própria. O moradias. Nesse caso, as moradias, por
Como já dito, o projeto da UFRJ em futuro, embora essa segurança nem sempre projeto global para todo o terreno (ainda estarem em um dos prédios projetados
Solano Trindade partiu da convergência de se confirme no cotidiano dos trabalhadores. em processo de regularização) prevê: (i) a para uso coletivo, foram consideradas
princípios e propostas de ação entre o corpo construção de novas habitações unifamiliares; “temporárias” pelo movimento, sem,
universitário, tais como a desmercantilização A instância coletiva como instância de poder (ii) a requalificação de dois edifícios para no entanto, qualquer previsão para a
dos bens e serviços urbanos, a terra como para garantir direitos tem uma presença moradia temporária, alojamento, auditório, construção das “definitivas”. Como
bem público, o trabalho associativo tímida na nossa cultura política. Qualquer restaurante e biblioteca; (iii) produção resultado, foram projetadas e construídas
autogestionário e o Estado como instância forma de direito coletivo de posse é vista, agroecológica; e (iv) construção do centro em conjunto com a assessoria, casas padrão
redistributiva da riqueza. No entanto, na a princípio, como de alto risco. A crença de formação politécnica e experimentação para abrigar famílias de tamanhos diversos.
experiência cotidiana de realização conjunta na estratégia individual ou familiar para de tecnologias alternativas. Para atender às Vemos a velha adequação da família à casa,
dos projetos, as contradições e tensões alcançar uma vida melhor se difundiu no exigências do MCMV-Entidades, a área das perpetuada pelas políticas habitacionais.
vieram à tona em função, primeiramente, país nas três últimas décadas, impulsionada novas habitações deveria ser desmembrada As contradições que afloraram nesse caso
da incorporação, por parte dos moradores pela teologia da prosperidade e pelo em forma de condomínio ou loteamento, não foram somente entre assessoria e
e algumas lideranças, dos parâmetros de empreendedorismo. A aposta em estratégias para tornar possível a individualização dos movimento, mas no interior do próprio
bem-estar urbano definidos pela lógica coletivas está condicionada à formação de contratos de concessão de uso com a Caixa. O movimento, entre as famílias, que buscavam
mercantil e instituídos pelo Estado. Alguns identidades coletivas em torno de interesses restante da área da ocupação permaneceria uma casa adequada às suas necessidades, e
desses parâmetros, ao serem expostos como e projetos comuns, forjados, seja no lugar sob o domínio legal do movimento. Essa as lideranças, movidas por suas estratégias
necessidades e como direito, entraram em de trabalho, seja no lugar de reprodução da divisão dentro da ocupação entre direito de políticas. Ratificou-se, nesse evento, a
choque com os princípios norteadores do vida. A experiência uruguaia de produção
projeto, provocando um intenso debate, habitacional por cooperativas,5 sob o regime
com revisão de propostas por ambas as da propriedade coletiva, é exemplar, nesse
partes envolvidas. Vejamos, como exemplos, sentido, servindo de referência para muitos
quatro situações de tensão. movimentos de moradia latino-americanos. 5. Dentre as inúmeras publicações sobre a experiência uruguaia, indico o livro organizado por Benjamín Nahoum: NAHOUM,
B. (1999). Las cooperativas de vivienda por ayuda mutuas uruguayas. Sevilla/Montevideo: Junta de Andalucía/Intendencia
Municipal de Montevideo.
42 Além dos Muros da Universidade: Planejamento Urbano e Regional e Extensão Universitária capítulo 2 Extensão Universitária como ação educadora para uma outra cidade 43

ideia de que somente a posse individual da do condomínio quanto nas demais áreas revisão de nossas formulações teórico- semanais envolvendo em torno de trinta
moradia garante ao possuidor o poder de do movimento. A proposta, portanto, práticas sobre a democratização da cidade. famílias, lideranças, professores, alunos
adequá-la às suas necessidades. No entanto, se diferenciava do padrão “condomínio No entanto, para as lideranças, a inovação e arquitetos autônomos, para trocarmos
trata-se de um longo processo conflituoso fechado”, reproduzido em larga escala pelas no projeto condominial tinha chances de ideias sobre as diferentes concepções do
de produção coletiva do espaço urbano duas modalidades (Empresarial e Entidades) não ser materializada, frente ao baixo grau bairro ideal e da moradia digna presentes
com caminhos ainda em aberto. Em breve, do PMCMV, nas periferias urbanas. de politização das famílias envolvidas, até no imaginário de cada um dos participantes.
teremos a mudança das famílias para suas aquele momento. A possibilidade, no futuro, Primeiramente, foram apresentados,
moradias “temporárias” e a apropriação O movimento foi absolutamente contrário das famílias não terem condições de manter pela assessoria, projetos habitacionais
desses espaços de modo a responder às à solução condominial, argumentando em coletivamente os espaços comuns sustentou autogestionários nacionais e internacionais,
suas necessidades. favor dos espaços públicos (ruas e praças) que a escolha do movimento pelo loteamento, com a intenção de ampliar o campo do
seriam criados seguindo os marcos regulatórios uma forma de urbanização já conhecida por possível para as famílias. Em geral, as reações
A segunda situação de tensão está de loteamentos urbanos. Nesse caso, foi moradores e lideranças, forma essa geradora eram de surpresa e um certo encantamento
diretamente relacionada à primeira e se acionado um princípio político que orienta as das periferias e das lutas sociais para com padrões de moradia nunca vistos, como
refere às duas alternativas urbanísticas de ações do MNLM no Rio de Janeiro no sentido transformá-las em cidade. O loteamento no caso uruguaio.
implantação das novas habitações, que da desmercantilização da cidade: ocupar popular é um problema conhecido, assim
constam nas normas do Programa Minha imóveis públicos que devem permanecer como as estratégias políticas para tentar Em seguida, foram feitas caminhadas de
Casa Minha Vida (PMCMV): as formas públicos, lançando mão da concessão de uso resolvê-lo, embora a conjuntura atual de reconhecimento das áreas do entorno e o
loteamento e condomínio, sendo a primeira para famílias morarem ou da doação de vias privatização dos serviços urbanos dificulte o mapeamento dos problemas reconhecidos
composta por espaços privados e públicos e a e praças para o município. A esse princípio se sucesso da luta. O condomínio organizado por cada família. A violência apareceu como
segunda, por espaços privados e coletivos. O somou o argumento dos custos de manutenção coletivamente em torno do trabalho problema e os muros, como solução.6 As
projeto global para o terreno, intensamente das áreas comuns de um condomínio, nas é uma “solução” desconhecida, não argumentações contrárias aos muros por
discutido com o movimento, prevê, além mãos de moradores de baixíssima renda. As experimentada, que, por isso, requer um parte da assessoria iam desde o padrão
das novas moradias, espaços para atividades lideranças utilizaram exemplos de condomínios tempo mais longo de maturação das ideias excludente que os muros impõem à cidade,
coletivas diversas, descritas anteriormente. financiados pelo PMCMV, em que as áreas e experimentações. até o efeito inverso ao desejado, por impedir
A partir desse projeto, os arquitetos do comuns já estavam degradadas. que as ruas sejam uma extensão das casas,
grupo de assessoria buscaram uma forma O muro como dispositivo de segurança foi lugar da sociabilidade e, por isso, do controle
espacial para o conjunto das novas moradias O contra-argumento da assessoria se outro tema que provocou uma rica troca social. No entanto, a solução privada da
(cuja área deveria ser desmembrada), que sustentou na realidade das periferias de argumentações entre os acadêmicos e autoproteção, que é uma das expressões
possibilitasse a integração com os outros urbanas, marcada pelo descaso do poder o movimento. Ao longo da primeira fase da do aprofundamento do individualismo na
espaços da ocupação e evitasse a rigidez dos público com as vias e praças recebidas como ocupação, antes da reorientação do projeto nossa sociedade, foi esvaziada pelo relato
lotes contínuos com área mínima definida doação ao longo do processo de urbanização. habitacional para adequação ao MCMV- de uma das mães presente na discussão:
por lei. Ou seja, por trás da concepção dos Condomínios integrados a espaços coletivos Entidades, havia uma rotina de reuniões sua filha adolescente havia escapado de
arquitetos havia um pressuposto de que a de trabalho, geridos por famílias organizadas
maior flexibilidade no arranjo espacial das politicamente, se afastariam do padrão dos
casas e áreas livres poderia estimular o condomínios populares disseminados no
desenvolvimento das atividades coletivas Brasil e serviriam como experiência exemplar
de trabalho e lazer, tanto nas áreas comuns para os moradores da região e para a 6. Uma das famílias produziu uma maquete de sua moradia ideal: uma casa de um pavimento, de sala e dois quartos, cercada por
um muro, próximo da construção, com a altura do pé direito.
44 Além dos Muros da Universidade: Planejamento Urbano e Regional e Extensão Universitária capítulo 2 Extensão Universitária como ação educadora para uma outra cidade 45

uma tentativa de agressão, numa rua não é apresentar as técnicas que vêm A experiência extensionista em Solano CONCLUINDO
próxima margeada por um longo muro, ao sendo desenvolvidas e seus resultados e, Trindade nos ativa a imaginar formas mais
conseguir alcançar um portão de grade, sim, chamar atenção para contradições complexas, ou mais híbridas, de produção Para finalizar este texto, retorno ao campus
ser vista e socorrida. O impacto do relato subjacentes às práticas em curso. e gestão de serviços urbanos nas áreas de universitário, às salas de aula e de pesquisa,
foi surpreendente, pois demonstrou a expansão das cidades. A captação de água aos auditórios, enfim, a todos os espaços
relação entre os muros e a insegurança A luta por serviços urbanos públicos é da chuva, a Bacia de Evapotranspiração (BET) em que a troca de conhecimento se
das ruas. Fica claro que os argumentos e uma luta histórica dos movimentos sociais ou a energia fotovoltaica, por exemplo, se realiza. As práticas extensionistas, como as
contra-argumentos num embate de ideias, e dos intelectuais comprometidos com mostraram tecnologias de fácil apropriação, apresentadas anteriormente, têm um grande
ganham amplitude e clareza se fizerem uso a democratização da cidade. Com a com grande impacto na melhoria das condições poder transformador da vida universitária,
de experiências concretas que tenham um privatização dos serviços a partir dos anos de reprodução das famílias e podendo ser nos incitando a rever nossos paradigmas e a
sentido prático para as pessoas envolvidas. 1990, o Estado somou a uma situação replicadas nos bairros como empreendimentos ampliar nossa visão de mundo. A Extensão
histórica de exclusão – áreas periféricas econômicos populares. Esse conhecimento Universitária é a transdisciplinaridade
Por fim, algumas ideias exploratórias sem o fornecimento dos serviços – uma praticado é fonte de poder popular e, por praticada, que pode abrir caminhos para
sobre as contradições em torno do nova situação: famílias sem condições isso, deve ser integrado aos projetos de um pensamento transdisciplinar. Nesse
desenvolvimento de tecnologias alternativas de arcar com o custo das tarifas, onde os universalização dos serviços urbanos apoiados sentido, ela faz parte de uma concepção
no setor de serviços urbanos: esgoto, água, serviços chegaram. Portanto, são duas as apenas nos grandes sistemas de fornecimento. particular de universidade, produtora de uma
drenagem, eletricidade e gás. A ocupação frentes de luta hoje: expansão dos serviços Assim, podemos pensar as tecnologias interpretação crítica da realidade social e de
está localizada numa região inundável em (estando implícito a qualidade destes) e alternativas não mais como paliativas, mas como sua transformação.
época de chuva, sem rede de esgoto e com sua desmercantilização. Vale dizer que as componentes da política de universalização
fornecimento de água potável intermitente empresas estatais prestadoras de serviço dos serviços urbanos. Experimentamos, nas duas últimas décadas,
ou inexistente. Por isso, desde o início da atuam na lógica mercantil, buscando maior a crescente diversidade social do corpo
ocupação, houve a busca por soluções rentabilidade para seus investimentos. discente das universidades públicas e com
alternativas que garantissem condições Mesmo no quadro de enorme retrocesso das ela, a emergência de novas contradições e
básicas de habitabilidade para as famílias. políticas redistributivas, a estratégia da luta novos desafios pedagógicos. As tensões entre
Vêm sendo experimentadas diferentes se conserva na direção da redistribuição e, os saberes acadêmico e popular estão agora
tecnologias por meio de oficinas práticas particularmente, dos subsídios para a classe nas salas de aula e nos grupos de pesquisa.
abertas, não apenas para os participantes trabalhadora precarizada. Nesse quadro, As trocas dialógicas entre esses saberes,
do projeto de extensão, mas para demais a autoprodução e autogestão coletiva de exercitadas nas experiências extensionistas
alunos e trabalhadores. Os resultados serviços urbanos por meio de tecnologias podem instruir novas práticas de ensino
das oficinas têm sido bastante positivos, alternativas aos grandes sistemas e redes e pesquisa que sustentem e estimulem a
na avaliação de todos, especialmente de fornecimento são pensadas como continuidade do projeto de democratização
na área de saneamento. Minha intenção processos paliativos no tempo de espera do ensino universitário, hoje, violentamente
pela política pública. ameaçado.
Extensão
Universitária
e Parceria
Jorge Bassani

capítulo 3
Camila D'Ottaviano

Este texto expõe ponderações e inquietações resultantes


de nossas práticas cotidianas de Extensão Universitária
dentro da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da
Universidade de São Paulo (FAUUSP). Mas, é resultado
também do nosso esforço em pensar a Extensão para além
do nosso dia-a-dia, na interação com colegas de outras
escolas e campos de atuação, sempre tendo o urbano –
sob a ótica da noção ampla de direito à cidade – como
objeto central.

Porque pensamos que a prática da Extensão pode ter um


papel transformador na formação de jovens arquitetos,
urbanistas e planejadores urbanos,1 procuramos elucidar aqui
de que forma e com que estratégias esse papel pode se dar.

Ocupação 9 de Julho, São Paulo, 2019


foto_ Camila D’Ottaviano
48 Além dos Muros da Universidade: Planejamento Urbano e Regional e Extensão Universitária capítulo 3 Extensão Universitária e Parceria 49

A EXTENSÃO UNIVERSITÁRIA HOJE Não se pretende aqui diminuir a importância em todas as suas dimensões,5 vemos como Mas a Extensão deve representar também
da produção do conhecimento para a de fundamental importância a realização uma experiência de formação, na qual cada
A universidade brasileira tem, sociedade como um todo – sim, acreditamos de atividades nas quais nosso trabalho ação realizada têm o potencial de condensar
tradicionalmente, uma dupla relação com que a produção do conhecimento strito seja melhor compreendido, especialmente dois extremos, professores e alunos, que
a sociedade. De uma parte, tem produzido sensu pela universidade é muito importante. pelos que mais demandam e necessitam abandonam essa relação dual na medida em
reflexões profundas e consistentes sobre O que se quer é apenas indicar que o transformações profundas no seu cotidiano. que uma triangulação se estabelece, com a
a própria sociedade, seus mecanismos caminho percorrido por esse conhecimento A Extensão Universitária, para nós, é uma participação de um terceiro ator, o público
dinâmicos e complexos. De outra, mantém até a sociedade é muitas vezes tortuoso das formas mais eficientes e diretas para a alvo da atividade.
um distanciamento indesejado, mas real, e indireto. Poucas vezes conseguimos construção e fortalecimento desse vínculo.
A Extensão Universitária é o processo
dessa mesma sociedade. estabelecer um vínculo estreito entre nossas
educativo, cultural e científico que articula o
pesquisas e a sociedade. E essa é uma A Extensão, no âmbito das nossas atividades Ensino e a Pesquisa de forma indissociável
Atualmente, cerca de 20% dos jovens questão particularmente relevante para como docentes de Universidade Pública e viabiliza a relação transformadora entre
em idade para tanto estão regularmente uma área do conhecimento pertencente às (nos referimos aqui às instituições públicas Universidade e Sociedade. A Extensão é uma
matriculados em cursos superiores no Brasil2 “ciências sociais aplicadas”, como é o caso de maneira geral), pode exercer o papel via de mão-dupla, com trânsito assegurado à
– se consideramos as universidades públicas, do Planejamento Urbano e Regional. de condensador (vale aqui lembrar esse comunidade acadêmica, que encontrará, na
esse percentual é ainda menor. Políticas de termo, muito apreciado pelos construtivistas sociedade, a oportunidade de elaboração da
praxis de um conhecimento acadêmico. No
inclusão3 (como as cotas e o ProUni4) têm Ora, um acompanhamento próximo por soviéticos) do trabalho científico-
retorno à Universidade, docentes e discentes
sido uma das estratégias de enfrentamento parte da sociedade do que produzimos e acadêmico, em múltiplos sentidos. Por um
trarão um aprendizado que, submetido
dessa face de relativo distanciamento. Mas fazemos dentro das nossas universidades lado, as atividades de Extensão podem à reflexão teórica, será acrescido àquele
persistem ainda a distância decorrente da é absolutamente necessário – sabemos, ser responsáveis pelo agenciamento de conhecimento. Esse fluxo, que estabelece a
própria produção de conhecimento (dito a partir de nossa vivência cotidiana, que situações, colocando em movimento troca de saberes sistematizados, acadêmico
erudito) e a endogenia que por vezes essa relação estreita entre universidade e objetivos, desenvolvimentos, expectativas e e popular, terá como consequências a
caracteriza essa produção. sociedade pode beneficiar a todos. Num resultados das nossas duas outras áreas de produção do conhecimento resultante
momento como o que vivemos no Brasil, em atuação, Ensino e Pesquisa. do confronto com a realidade brasileira e
que a Universidade Pública é questionada regional, a democratização do conhecimento
As condições de trabalho em Extensão acadêmico e a participação efetiva da
permitem este agenciamento por envolver, a comunidade na atuação da Universidade.
partir de projeto (programa nos vínculos didático Além de instrumentalizadora deste processo
e roteirização), práticas multidirecionais, pois dialético de teoria/prática, a Extensão é um
1. Para o debate sobre urbanismo e planejamento urbano ver ROVATI, J. F. (2013). Urbanismo versus Planejamento Urbano? RBEUR, está sujeita à participação (e às reações) da trabalho interdisciplinar que favorece a visão
v.15, n.1, maio, p.33-58,. comunidade parceria do projeto e do território integrada do social.7
2. Fonte: Censo da Educação Superior/INEP 2015 e Censo Demográfico 2010. de seu exercício.6
3. A Lei nº 12.711 de 2012, ou Lei de Cotas, instituiu a reserva de metade das vagas nas universidades públicas federais para
candidatos negros, pardos, índios e que tenham cursado todo o ensino médio em escola pública. A Universidade de São
Paulo aderiu ao programa de cotas em 2017, porém definindo um máximo de 30% do número total de vagas. O informativo
Desigualdades Sociais por Cor ou Raça no Brasil, publicado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) em 13
5. Ao longo de 2019, o governo federal contingenciou verbas das universidades federais, inviabilizando muitas atividades, cortou
de novembro de 2019, apontou que, pela ela primeira vez, negros (pretos e pardos) são maioria no ensino superior público,
bolsas de estudos tanto de graduandos quanto de pós-graduandos, cortou verba de projetos de pesquisa e afirmou, entre
alcançando 50,3% dos estudantes matriculados. No entanto, o atual quadro de contingenciamento das verbas públicas para
outras coisas, que a universidade era lugar de balbúrdia e que cursos como os de filosofia não deveriam receber verba federal
educação tem colocado em risco essa política, uma vez que inviabiliza programas de permanência nas universidades para
pois não eram prioritários.
alunos de baixa renda.
6. BASSANI, J. (2019). Um percurso pessoal e intransferível. Memorial de Livre-docência. São Paulo: FAUUSP, p. 52.
4. FELICETTI, V.L.; CABRERA, A. F.; & COSTA-MOROSINI, M. (2014). Aluno ProUni: impacto na instituição de educação superior e
na sociedade. Revista Iberoamericana de Educación Superior, vol. 5, #13, pp.21-39. 7. FÓRUM DE PRÓ-REITORES DE EXTENSÃO DAS INSTITUIÇÕES PÚBLICAS DE EDUCAÇÃO SUPERIOR BRASILEIRAS/FORPROEX
(2012). Política Nacional de Extensão Universitária. Porto Alegre: UFRGS, p. 21-22 (grifo dos autores).
50 Além dos Muros da Universidade: Planejamento Urbano e Regional e Extensão Universitária capítulo 3 Extensão Universitária e Parceria 51

Porém, a dualidade desconstruída de forma muito difere do desenvolvimento de um Esse caráter de continuidade das ações no desigual, injusta e seletiva. A maioria da
mais contundente pela prática extensionista projeto de ação continuada realizada junto território é o que propicia que a Extensão população brasileira não tem acesso a uma
é justamente entre teoria e prática. No nosso a comunidades urbanas – onde “junto” seja uma atividade transformadora do ensino oferta adequada de infraestrutura urbana
labor cotidiano a prática da Extensão coloca- significa “com” e não “para”.8 e da sociedade. (saneamento, transporte, etc.), habitação,
se diante de dois desafios principais: a saúde, educação e lazer. Durante a maré
A ação transformadora só se dá quando
garantia da experiência do real e, ao mesmo Uma atividade de Extensão agrupa globalizante que decretou o fim o Estado-
a extensão, no dia a dia, se abre para a
tempo, de sua continuidade e capilaridade, estudantes em torno de si e realiza-se em experimentação e para a diversidade; do-bem-estar-social, o Brasil experimentou
internas e externas à academia. No âmbito etapas sucessivas e programadas. O que quando borra as fronteiras da teoria “ou” por um breve período – em especial durante
do planejamento urbano e regional, a a diferencia das atividades de pesquisa da prática; quando, com base na reunião de o segundo governo Lula (2007-2010) e o
definição da Extensão como prática do real stricto sensu é justamente a importância do individualidades autônomas e singulares e primeiro governo Dilma Roussef (2011-
nos ajuda a delimitar de forma mais clara de processo: a transformar, agrega, constrói um projeto 2014) – a presença de um poder público
qual Extensão tratamos. coletivo, impulsiona um processo de protagonista, promotor de investimentos
A distinção que cabe aqui é relativa ao formação.10 públicos em infraestrutura e habitação e
processual como indutor da profundidade.
Não entendemos por Extensão “tudo aquilo Explicando: projetos, importantes e empenhado em mediar o resgate de dívidas
que não é Ensino e Pesquisa” – atividades necessários, de extensão são realizados Com base nesse quadro mais amplo, sociais históricas. Contudo, essa visão logo
como palestras, curadorias, entrevistas intramuros da Universidade ou em relação entendemos que a Extensão deve ter um perdeu fôlego, emergindo com força um
para jornais e muitas outras, até mesmo a com um recorte social, com o objetivo de papel transformador, especificamente, novo alinhamento ideológico ultraliberal,
participação em bancas externas, ações, coletar dados ou proceder a aferições de que tem como uma de suas principais
também com relação à prática do
em muitas universidades, enquadradas trabalhos de pesquisa. Contudo, me interessa bandeiras a ideia do “Estado mínimo”.11
sobremaneira trabalhos de extensão em
planejamento urbano e regional.
como atividades de Extensão. Na verdade,
continuidade, ou, podemos dizer, que os
as atividades acadêmicas, por natureza, No âmbito do urbano, esse novo alinhamento
objetivos encontram-se na manutenção
de modo geral são variadas e multiformes. da própria atividade como forma de criar implica na valorização de planos e políticas
Contudo, ao definirmos a Extensão como vínculos afetivos e produtivos com as EXTENSÃO E A QUESTÃO URBANA voltadas para a “captação de investimentos
uma possibilidade de prática transformadora, comunidades parceiras e com os estudantes. privados”, inclusive internacionais, via
apontamos para um agir necessariamente A continuidade também é o que propicia A “questão urbana” é um dos temas mais parcerias-público-privadas – investimentos
territorializado e participativo. permeabilidade e capilaridade ao trabalho que, quando acontecem, são direcionados
presentes nas pesquisas em planejamento
de extensão pelo simples fato que para (territorializados) para a chamada “cidade
manter em atividade os envolvidos neste
urbano e regional. Historicamente, o intenso
Uma das formas de distinção entre outras crescimento (demográfico e territorial) de formal”, sobretudo para áreas de interesse
tipo de trabalho, estudantes e comunidade,
práticas acadêmicas e a Extensão se dá, nossas cidades se deu de forma notavelmente do capital imobiliário.12
exige uma permanente expansão da massa
portanto, em função do processo e seus produtiva com novos parceiros, questões e
resultados. Não há dúvida, por exemplo, práticas. Expansão que impõe permanentes
que preparar uma conferência e apresentá- ações de pesquisas, avaliações e reflexões
la com competência é aspecto importante internas à Universidade nas mesmas
do trabalho docente. Contudo, tal atividade proporções que o enraizamento territorial 10. ROVATI, J. & D’OTTAVIANO,
C. (2017). Os territórios da Extensão Universitária. In: D’OTTAVIANO & ROVATI. (Org.). Para Além
por meio do envolvimento participativo da da Sala de Aula. Extensão Universitária e Planejamento Urbano e Regional. São Paulo: FAUUSP/ANPUR, p. 23.
comunidade.9 11. Estado mínimo em relação aos diretos e redes de proteção aos mais pobres, conforme análises feitas pela economista Laura
Carvalho. Ver, entre outros, BRENCK, C. & CARVALHO, L. (2019). Limites para o crescimento com mudança estrutural no Brasil
no século XXI. Santiago: CEPAL.
8. BASSANI, op. cit. 12. MARICATO, E. (2002). Brasil, cidades. Alternativas para a crise urbana. Petrópolis: Vozes, 2002; e NOBRE, E.A.C. (2018). Do
9. BASSANI, op. cit., p. 53. Plano Diretor às Operações Urbanas Consorciadas: a ascensão do discurso neoliberal e dos grandes projetos urbanos no
planejamento paulistano. Tese de Livre-Docência. São Paulo: FAUUSP.
52 Além dos Muros da Universidade: Planejamento Urbano e Regional e Extensão Universitária capítulo 3 Extensão Universitária e Parceria 53

Nesse contexto, setores da sociedade, da realidade extremamente desigual de somos capazes de vivenciar experiências urbanismo, urbanização e a vida nas cidades
pressionados pela precariedade dos nossas cidades é que as atividades de extensionistas em parceria com. A partir da nos tempos recentes. Este interesse se
territórios que habitam, se lançam na Extensão se colocam como algo desejável presença no território temos a oportunidade revela mais profundo quando adentramos o
hercúlea tarefa de produção do espaço e capaz de levar a Universidade para além da vivência do processo como indutor de mundo universitário, em duas de suas bases,
urbano “com as próprias mãos”. A tarefa é dos seus muros – segundo Paulo Freire,13 profundidade. Apenas a partir da vivência Ensino (formação) e Extensão.
difícil, como bem sabemos. Porém, quase tão quando pensamos em Extensão Universitária no território temos a oportunidade de
difícil é torna-la matéria de estudo dentro no Brasil, a atividade de Extensão deve ter efetivamente levarmos a produção e o Milton Santos expõe sua noção de território
da universidade, proceder análises, avaliar como premissa14 ser “algo que é levado por usufruto do conhecimento para além dos como sendo
resultados e, principalmente, quantificar um sujeito que se encontra ‘atrás do muro’ muros da Universidade.
(...) uma forma impura, um híbrido, uma
e qualificar o tipo de envolvimento (para àqueles que se encontram ‘além do muro’,
noção que, por isso mesmo, carece de
além do teórico, técnico e científico) que ‘fora do muro’.”15 constante revisão histórica. O que ele tem
podemos ter nesses territórios e processos. de permanente é ser nosso quadro de vida.
A cidade, ou a questão urbana em TERRITÓRIO, APRENDIZADO E Seu entendimento é, pois, fundamental para
São muitas as áreas de conhecimento, suas múltiplas escalas, abordagens e FORMAÇÃO POLÍTICA A PARTIR DA afastar o risco de alienação, o risco de perda
os respectivos cursos, departamentos e complexidade, se apresenta, então, como REALIDADE do sentido individual e coletivo, o risco de
pesquisas atentos a essas questões, que tema incontornável ao pensarmos a Extensão renúncia ao futuro. 18
têm interessado especialmente às áreas de Universitária em Planejamento Urbano e Em se falando de planejamento urbano,
ciências humanas e sociais aplicadas. Muitos Regional – e, por isso mesmo, exige uma em todas as variações teóricas e práticas, E, nela, está explícita sua condição básica
professores e estudantes estão incorporando abordagem multi-inter-trans disciplinar16 na do ensino de graduação às ações das para nossa existência (individual e coletiva)
esse debate no cotidiano da Universidade, qual a presença no território emerge como administrações públicas, o termo território e a extraordinária importância de seu
em disciplinas optativas, pesquisas e desafio fundamental. Porque somente a ganhou enorme presença nas duas últimas estudo para a compreensão da vida social.
seminários. Nesse quadro de enfrentamento partir da presença continuada no território décadas. Já em 1983, André Corboz As caracterizações de impura e híbrida e
anunciava em seu hoje clássico Le territoire a demanda por constante revisão histórica
comme palimpseste: ”o território está na denotam a fluidez, a instabilidade, as
moda”.17 Mais interessante do que associar dinâmicas física e cultural, cada vez mais
estar na moda com a banalização de um evidentes e proclamadas em relação ao
13. Nunca é demais lembrar: as primeiras experiências de Extensão Universitária como a entendemos só foram possíveis após a conceito (se é que existe um), é pensar território (na linha do palimpsesto de
criação do Serviço de Extensão Universitária da Universidade do Recife (mais tarde Universidade Federal de Pernambuco – porque o termo território tornou-se tão
UFPE), no início dos anos 1960. Durante sua curta duração até o fechamento com o golpe militar, em 1964, o Serviço de Extensão Corboz) como realidade ou conceito nunca
presente nas teorias e nos debates sobre finalizado, sempre em transformação,
Universitária foi dirigido pelo professor Paulo Freire.
14. O livro “Extensão ou Comunicação?” foi escrito durante do exílio de Paulo Freire, no Chile, a partir da sua experiência de sempre em devir.
“extensão agrícola” junto à sociedade agrária chilena (o livro foi publicado em 1969, sob o título de Extención o Comunicación?,
pelo Instituto de Capacitación e Investigación en Reforma Agrária, em Santiago de Chile). Mesmo se tratando da sociedade
agrícola chilena do final dos anos 1960, o livro continua sendo atual e uma referência importante para os estudiosos da Extensão
Universitária “pontuados os dilemas da assimetria cultural implicados na atividade de extensão, pelo que o autor denomina
“equívoco gnosiológico do conceito”, afirmando o papel do educador extensionista no combate à presunção de transferência
mecânica de “conteúdos estendidos” e à “invasão cultural”, e na defesa de relações extensionistas da Universidade que 17. CORBOZ, A. (2004). El território como palimpsesto (1983). In A. M. RAMOS (ed). Lo urbano en 20 autores contemporâneos.
contribuam para a emancipação dos sujeitos e a solução técnica dos seus problemas cotidianos por meio da “superação da doxa Barcelona: ETSAB, pp. 25-34.
pelo logos” (BRITO, F. D. A. (2017). Extensão Universitária em tempos de crise. In D’OTTAVIANO & ROVATI, op. cit. , pp. 26-35.) 18. SANTOS, M. (1998). Território. In M. SANTOS, M.A. SOUZA & M.L. SILVEIRA (org). Globalização e fragmentação. São Paulo:
15. FREIRE, P. (1983[1969]). Extensão ou Comunicação?. Rio de Janeiro: Paz e Terra, p. 12. Hucitec/ANPUR, p. 15.
16. ROVATI & D’OTTAVIANO,
op.cit.
54 Além dos Muros da Universidade: Planejamento Urbano e Regional e Extensão Universitária capítulo 3 Extensão Universitária e Parceria 55

Entretanto, a característica que talvez mais A década de 1980 é marcada pela emergência Raffestin investe em um conceito para o Esta breve síntese acerca do conceito de
tenha sido evidenciada pelas teorias sobre de conceitos e teorias dedicadas à ampliação termo, porque “o estatuto de conceito território teve o propósito de ressaltar sua
o território (especialmente os urbanos) é a da noção de território para além do recorte permite uma formalização e/ou uma presença forte nos discursos técnicos e
permanente tensão socioambiental advinda “terra inerte sobre o qual se assenta uma quantificação mais precisa do que o estatuto políticos e nas práticas do urbanismo do
de disputas internas e externas a ele. É população”. Na verdade, passou-se desde de noção.” E assim procede a partir da século 21. O termo território se materializa
nessa direção que tem caminhado grande então a denominar território aos processos diferenciação do conceito de espaço: “é como a plataforma cronotópica onde os
parte da Geografia Nova, em construção decorrentes das relações entre a população essencial compreender bem que o espaço é conflitos sociais urbanos se espacializam,
desde a década de 1960 por nomes como e a terra e aos arranjos socioculturais delas anterior ao território. O território se forma se materializam, são codificados. Como
David Harvey ou Edward Soja. Giuseppe oriundos. a partir do espaço, é o resultado de uma afirmamos anteriormente, mais que a busca
Dematteis indica a linha teórica pretendida ação conduzida por um ator sintagmático por uma haste entre a teoria sobre o território
para uma renovação da geografia para além Duas obras de 1980 fornecem as bases para (ator que realiza um programa) em qualquer e os acontecimentos socioespacializados, o
da descrição física e, ao citar autores, aponta o campo ampliado dos estudos territoriais. nível”.22 que nos interessa é identificar que a adoção
para a pluridisciplinaridade: A primeira é a tese de doutoramento do termo por diversas disciplinas que se
do geógrafo Claude Raffestin, Por uma Raffestin define o território como o espaço debruçam sobre a cidade e a vida urbana
Neste ambiente praticamente revolucionário,
geografia do poder,20 um ponto de inflexão das disputas, politizado desde a origem. evidencia uma situação urbana que impõe
a teoria de referência era o marxismo,
efetivado com várias faces: historicista, na construção (em processo desde os anos Já Deleuze e Guattari propõem em Mil uma denominação, uma nova condição
estruturalista etc. Autores como H. Lefebvre, 1960) da Nova Geografia ou Geografia Platôs uma nova e extensa interpretação conceitual.
D. Harvey e M. Castells sugeriam novas Crítica. Naquela tese estão postos os dois do termo, tomado como verbo, como
interpretações do espaço geográfico como pilares dessa construção: de uma parte, ação. Seus conceitos de territorialização e A complexidade, as dinâmicas socioculturais
‘território’, isto é, como objeto de disputa e a expansão da disciplina para outras desterritorialização são bastante complexos. e migratórias, os fluxos intensos, os
dominação.19 áreas, especialmente a filosofia, onde Contudo, trazem em si questões muito conflitos nas ruas, a segregação agressiva
os interlocutores são Lefebvre, Deleuze, objetivas quanto ao valor culturalista (não das populações, a mercantilização ao nível
Mas Dematteis, para compreender os Foucault e mesmo Wittgenstein; de outra, somente cultural, no sentido artístico) dos da ultra-abstração do lugar na cidade, as
processos em andamento nos espaços da a dupla Gilles Deleuze e Félix Guattari, um fazeres e costumes dos homens sobre seu tribos urbanas, e muitos outros sintomas
sociedade contemporânea, não se restringe filósofo e outro psicanalista, autores de Mil espaço de viver. Isso, em absoluto, diminui da nova condição urbana na chamada pós-
a geógrafos e sociólogos, recorre também a platôs21 – um desses platôs é justamente seu status político. Ao contrário, o exacerba, modernidade, devem receber todo o crédito
filósofos (e não somente a Lefebvre). Assim, uma profunda e complexa conceituação de ao propor que fazer política equivale a fazer por colocar de forma onipresente o termo
aos poucos, os estudos sobre o território território. território, a se territorializar – para Deleuze território para se referir, tanto à coisa urbana,
incorporam a densidade conceitual e e Guattari, territorialização é qualidade quanto às expressões físicas e intangíveis
a complexidade dos fenômenos que o (não quantidade) eminentemente política e, resultantes das fricções da população com
caracterizam. pontualmente, nos sistemas de linguagem, seu pedaço de terra.
produção de informação e enunciados.

19. DEMATTEIS, G. (2005). Geografia Democrática, território e desenvolvimento local. Formação, n.12, v.2, p. 21.
20. RAFFESTIN, C. (1993). Por uma geografia do poder. São Paulo: Ática.
22. RAFFESTIN, op. cit., p. 143.
21. DELEUZE, G. & GUATTARI, F. (1995-1997). Mil Platôs - Capitalismo e Esquizofrenia 2. São Paulo: Editora 34.
56 Além dos Muros da Universidade: Planejamento Urbano e Regional e Extensão Universitária capítulo 3 Extensão Universitária e Parceria 57

Nesse quadro, bastante conhecido e até São dois os aspectos dessa questão que Se o tema central é relativamente simples debate em grupo e em condições espaciais
consensual como ponto de partida para queremos explorar aqui rapidamente. O e já corrente, no entanto, ainda carece de para tanto, a saber a sala de aula e as leituras
estratégias muito diversificadas, é que primeiro é relativo à própria necessidade insistência pragmática. “Aprender com o (verbais e visuais). Até o momento, esta
queremos contextualizar (e, assim, qualificar) de deslocamento das estratégias didáticas; território” é o mantra. Mas, as estratégias situação de formulação das bases teóricas e
a Extensão Universitária. Podemos dizer, o segundo é o tipo de experiência didática para tanto ainda estão sendo testadas – exercícios propositivos não foi substituída,
grosseiramente, que há uma “tradição” no que a Extensão possibilita e porque a e, aparentemente, assim continuarão por apesar das grandes transformações pelas
pensamento sobre a Extensão, no sentido consideramos a mais efetiva. um longo tempo, uma vez que assentadas quais tem passado.
universidade > comunidade. Como se o sobre o palimpsesto, o devir, dos territórios
conhecimento articulado no ambiente da Sobre o primeiro, não há a necessidade urbanos. Nessa condição, mais do que o Como “transferência de conhecimento”,
academia fosse aplicado, e até parcialmente de elencar as profundas transformações aprender com o território (de alguma maneira debates e situações laboratoriais de estudos
disseminado, em comunidades situadas verificadas na atividade do urbanista/ já experimentado pelas representações urbanos, a aula fora do ambiente escolar
“fora” de seus limites geográficos e sociais. planejador urbano (e, portanto, na e modelos analíticos dos “modernos”), posicionaria o território como “estudo
Não queremos apontar um comportamento formação) no último quarto do século 20. devemos, juntos (professores, estudantes e de caso” (o que também acontece com
assistencialista ou paternalista, mas sim uma Já foram profundamente discutidas a crise população), aprender a nos territorializar, parte das pesquisas direcionadas aos seus
indicação de geração de conhecimento dos modelos analíticos, das representações adentrar os códigos do território para estudos). A Extensão por nós defendida
e interação com a realidade social num e dos procedimentos que embasaram a alcançar níveis flexíveis de respostas de mira outros patamares: deve ser vista como
espectro amplo e variável. disciplina a partir notadamente da década acordo com suas dinâmicas. Territorializar- complementar e subsidiária das atividades
de 1970. Não cabe aqui aprofundá-las como se implica prioritariamente entender que em sala de aula e, em grande parte, de
O que se quer ressaltar é que, para a formação justificativa para repensarmos a formação territórios são entes ativos e, especialmente, pesquisas também. Esta outra forma de
do planejador urbano nos dias de hoje, a desse profissional/pesquisador. O que reativos. Para profissionais incumbidos de atuação instaura-se na condição de projeto,
Extensão deve ser colocada em outro patamar queremos enfatizar é que grande parte dos planejar, pensar e desenhar o espaço dos de trabalho contínuo, planificado, coletivo,
na sua relação com o ensino. Ela talvez seja questionamentos em relação ao desempenho acontecimentos urbanos, esta compreensão dinâmico e adaptável ao território. Extrapola
o único canal para a inversão da lógica de dos urbanistas e planejadores (e, na mesma tornou-se imprescindível. a condição cotidiana, programática e
fluxo de conhecimento da universidade para proporção, de como as Universidades os teleológica, das aulas e das pesquisas. Os
a comunidade territorializada. O projeto de formam), insere-se na mesma lógica da Isso nos leva ao segundo aspecto apontado: conteúdos não são definidos de antemão
Extensão continuado e articulado com os necessidade de novos conceitos para tratar a o papel desempenhado pelos projetos no programa de curso, eles decorrem das
atores locais permite ao estudante aprender complexidade da matéria e cultura urbanas. continuados de Extensão nesse contexto. A experiências com e no território.
com os processos de territorialização Ou seja, nosso interesse concentra-se em relevância dada à frequentação dos espaços
cotidianos na cidade. Não por redundância, entender por que, por uma exigência das em disputas territorializadas como principal Contudo, é no comprometimento que a
mas em ênfase, com a Extensão é possível novas condições urbanas, o território entrou via para o estudante ter consciência da Extensão exige de todos, professores,
territorializar a experiência de aprendizado na moda. Em síntese, queremos ressaltar transitoriedade urbana, que não permite estudantes e voluntários, que reside seu
do estudante. que a complexidade, a heterogeneidade, respostas a priori, pode dar a falsa impressão maior potencial: o da territorialização dos
as disputas e os conflitos que caracterizam que consideramos suficiente transferirmos participantes. Em um projeto de Extensão,
a vida urbana contemporânea exigem nossas aulas para lugares públicos e não é possível o exercício permanente
novos procedimentos para a abordagem do comunidades específicas. Ao contrário, do distanciamento (também necessário
ambiente urbano, especialmente no que diz consideramos que o lugar da reflexão e e praticado nas aulas e leituras) que as
respeito às novas gerações de profissionais crítica sobre a disciplina urbanística é o do abstrações nos permitem. O processo
que formamos.
58 Além dos Muros da Universidade: Planejamento Urbano e Regional e Extensão Universitária capítulo 3 Extensão Universitária e Parceria 59

todo é de interação com a realidade de Por um lado, os enunciados do capital se das ações urbanizadoras conduzidas experiências realizadas no âmbito da FAUUSP24
coisas e pessoas territorializadas. Isso é repaginado na nova lógica produtiva (e por organizações comunitárias. Em comum nos mostram que quanto mais organizada e
o que distingue o trabalho de Extensão mais concentrado do que nunca) incidem a todas, a necessidade de construção de participativa é a comunidade, mais profunda
Universitária. Ele não existe sem outras violentamente sobre os territórios urbanos, conhecimentos do e sobre o planejamento é a experiência de trocas de conhecimento
pessoas que não sejam aquelas que vêm com destaque para a construção civil, não em outros níveis de territorialização. e mais estreito é o diálogo, no sentido da
da Universidade e é sempre realizado numa mais impulsionada pelo excedente financeiro construção de conhecimentos comuns.
relação dialógica com a comunidade. Aqui, da produção industrial e sim, ela própria, Nesse contexto as assessorais técnicas
utilizamos a palavra dialógica em referência facilitada por meio das “flexibilizações” cumprem um importante papel. Porém, têm A discussão aqui proposta baseia-se na
a Paulo Freire23 e a tudo o que suas ideias legais promovidas pelas administrações uma relação limitada pelas incongruências compreensão do território como ação de
trazem para a qualificação essencial do municipais, gerando os ativos financeiros. Os dos saberes em movimento na ação de territorialização. Também explicitamos o
trabalho de Extensão: a construção do impactos sobre o(s) valor(es) são sensíveis e urbanizar. Ou seja: o resultado da ação recorte conceitual que estabelece território
conhecimento no comum – comum porque se tornou-se claramente o maior desafio para o dos escritórios técnicos das assessorais, como resultado momentâneo das relações
dá no cotidiano, porque é ordinário, é feito planejamento nos nossos tempos. na maioria das vezes, é fornecer respostas da população com seu espaço. Portanto,
por muitos, em comunhão e cumplicidade. objetivas e a priori. O trabalho da Extensão não há como praticar níveis profundos de
No outro lado do embate, não se pode Universitária de longo prazo, em um âmbito territorialização sem partir das relações
mais considerar unicamente que os “sem onde existe equivalência de saberes e, interpessoais, entre universitários e
recursos” são “coitados” esmagados pelo mais incisivamente, anseio pela construção população local.
EXTENSÃO É PARCERIA capital. Esmagados podem até ser, sem do aprendizado, possibilita francamente
acesso aos benefícios básicos da nova a parceria na formulação dos problemas a O estudante universitário não vai para o
Associadas à complexidade (não dos condição urbana. Mas, imersos em nossa partir da vivência com o território. território com respostas eminentemente
conceitos e teorias sobre o território, mas de lógica patrimonialista, são principalmente técnicas. Ele rapidamente entende que as
suas realidades físicas e sociais) sobrepõem- “sem propriedade”, portanto sempre em Na primeira parte deste texto enfatizamos condições de existência nesses lugares não
se outras questões, de natureza política e vias de ser sem morada, sem lugar (físico os efeitos potencializados pela Extensão na correspondem às idealizadas nos laboratórios
econômica: a condição neoliberal e o novo e simbólico) na cidade. No entanto, não formação do urbanista/planejador urbano. acadêmicos, exigindo, portanto, a criação de
comportamento do Estado. Acerca dessas, são coitados. Um dos sintomas do avanço Devemos agora observar o outro lado do um código, um território para compartilhar. É
alguns panoramas parecem inexoráveis. neoliberal é o fortalecimento de novos diálogo: a população parceira no trabalho desse lugar comum que surgem as respostas
E assim o são porque estão francamente laços sociais, novas organizações civis e dos de Extensão. É fundamental entender que às perguntas e problemas formulados no
expostos pelos dois lados do embate capital movimentos sociais, sem os quais não há se trata de uma parceria, caso contrário diálogo. Quanto mais se aprofunda o diálogo,
e trabalho: a sociedade civil tomando em chances de sobrevivência. Entre as missões todo o trabalho fica limitado ao estudo de mais elaboradas se tornam as perguntas
suas próprias mãos prerrogativas antes dessas novas organizações está ter morada na caso ou à aplicação de receitas prontas. As e mais profundamente se vive o território,
associadas ao Estado, entre elas a construção cidade e ter direito a ela. Os nomes são vários tanto para o universitário quanto para o ator
da cidade e da urbanidade necessária para para as novas práticas – micro, insurgente, parceiro local.
habitá-la. contra-hegemônico, participativo. Porém,
independentemente dos adjetivos, tratam-

24. Para experiências da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) ver MELLO, B. C. E.; NODARI, G. R. ; LERSCH, I. M.;
& ROVATI, J. F. (2019). Práticas Urbanas Emergentes: extensão universitária. Porto Alegre: UFRGS; e MELLO, B. C. E.; NODARI,
23. FREIRE, op. cit. G. R. ; LERSCH, I. M. ; & ROVATI, J. F. (2019). Defensor, mediador, consultor: posicionando a universidade. In L. FERREIRA, P.
OLIVEIRA & V. IACOVINI (Org). Dimensões do intervir em favelas: desafios e perspectivas. São Paulo: Peabiru TCA/LabLaje,
pp. 233-240.
60 Além dos Muros da Universidade: Planejamento Urbano e Regional e Extensão Universitária capítulo 3 Extensão Universitária e Parceria 61

Com efeito, só o trabalho continuado, não Vila Brasilândia, ambos com mais de cinco E assim temos permanentemente nos mobilizado para
eventual, pode alcançar a profundidade anos contínuos e com extensa produção de garantir o desenvolvimento e a continuidade dos nossos
desejada. Existe uma enorme diferença projetos e reflexões. compromissos de trabalho e aprendizagem conjuntos. Isto
entre enfrentar um problema pontual pré- se faz com base em acordos com nossos vários parceiros,
definido em conjunto com a comunidade, Em nossas práticas docentes, também de forma a construir uma relação de confiança e troca de
e um diálogo com a comunidade visando constatamos que nossos projetos alcançam saberes de longo prazo.
escavar o território nos níveis mais profundos resultados mais profundos na medida em
de subjetividade para identificar problemas que encontramos condições de atuação Extensão é parceria.
e responder a eles. Nesta condição de mais duradoura nos territórios. Isto está
trabalho continuada, geradora de parceria acontecendo na Ilha do Bororé, projeto
e confiança, identificamos o maior potencial continuado há três anos, realizado em
da Extensão Universitária. parceria com os coletivos e a escola pública
locais. Esse trabalho, que começou com
Na FAUUSP, alguns projetos de Extensão de um simples mapeamento, hoje envolve
longa duração com comunidades específicas diversos projetos formulados pela própria
têm possibilitado um trabalho contínuo, comunidade, relativos, por exemplo, à
no qual as questões e abordagens vão se produção de agricultura orgânica e à
transformando com o tempo, assim como documentação da memória histórica e
as próprias ferramentas de entendimento e geográfica do bairro, localizado em área de
proposição sobre o território. Embora sejam proteção ambiental na Represa Billings.
trabalhos operados a partir de um curso de
arquitetura e urbanismo, o “projeto” tem Processo semelhante tem acontecido com
ali a mesma presença que o mapeamento, os movimentos por moradia nas ocupações
a conversa, o olhar, a brincadeira, o comer no centro da cidade. No âmbito das
junto. No conjunto, essas diversas atividades cooperações entre trabalhos extensionistas
aproximam as pessoas e as grudam na realizamos um workshop com estudantes
terra para, a partir daí, desenvolverem um europeus e latino-americanos em ocupações
trabalho experimental de transformação na área central de São Paulo. Muito mais
territorial. que “projetos arquitetônicos”, o workshop
proporcionou relações e cumplicidades
São projetos que, por estarem em processo de trabalho que levaram à criação de uma
há um longo tempo, passaram por fases “plataforma de diálogo” entre universitários
muito distintas na construção de situações e moradores. Esta plataforma foi então
de trabalho em conjunto. Como exemplos proposta e aprovada como projeto de
temos os trabalhos coordenados pelo Extensão – uma forma de consolidar ali o
professor Euler Sandeville, em Perus, e desejo de permanência e diálogo contínuo
pela professora Catharina Pinheiro, na entre professores, estudantes e movimentos.
O mundo
multiplexo do
ornitorrinco
de papel
universidade, cidade e

capítulo 4
extensão universitária

Wrana Panizzi

INTRODUÇÃO

Um dia desses,1 em um desses encontros casuais com o


passado que só a mudança de um apartamento para outro
proporciona, me deparei com uma grande quantidade de
papeis e anotações que só uma mulher que quase cumpre
bodas de rubi com Balzac e a Universidade, consegue ter.
São anotações muitas, rabiscos perdidos que nem mais
lembro o porquê de estarem ali, e outros que, ao vê-los
me sinto tomada por sua zeitgeist. Espírito do tempo este,
ardiloso, que nos envolve em sua teia, imobilizando-nos,
como a areia que de grão em grão enche a casa e depois
a soterra. Papéis e anotações escritas a esmo em tempos
outros e que, pouco a pouco, tomam conta de todos os
espaços em uma grandiosa festa aberta às traças. Mas
que, quando extraídos de seu repouso pró-tempore junto
às primeiras páginas de um livro ou sob uma outra centena
delas nos desafiam a decifrá-la, como a velha esfinge que,
metaforicamente, ameaça devorar aquele que diante dela
se coloque e não a decifre.
Ilha do Bororé, São Paulo, 2019.
foto_ Débora Laub
64 Além dos Muros da Universidade: Planejamento Urbano e Regional e Extensão Universitária capítulo 4 O mundo multiplexo do ornitorrinco de papel: universidade, cidade e extensão universitária 65

São papeis avulsos como aqueles que tempo outro, de uma universidade outra, de Mas também que meu olhar foi, sempre, tanto nas aulas de graduação, com os
Machado de Assis,2 em outro tempo, reuniu e um momento histórico diverso do atual e que, desde a universidade, ora enquanto neófitos que adentravam ao campo, quanto
que, para evitar a ser devorado por eles, os pôs dado o contexto em que vivemos, nos remete pesquisadora, ora enquanto gestora. Olhar nas teses e dissertações, ou seja, daqueles
em um livro, e, a nós, hodiernamente, pediu quase ao mesmo mal-estar dos poetas do fim esse que, em algum momento discuto sob que tinham o corpo marcado pelo sol e
ajuda para avaliar seu teor. Papeis esses que, do século passado que, enlevam de bucolismo a perspectiva de um olhar dialético11 que pelos caminhos e descaminhos da pesquisa
dada a verossimilhança desta que escreve o tempo que passou. busca pensar a autonomia da universidade universitária e que, com olhos de ressaca,
essas linhas, poderiam se colocar também ao desde um perspectiva filosófica que se tributários a Capitu,15 dissimulavam e não se
lado dos diários de Clarice Lispector3 ou das Mas, a reviver minhas memórias e a propõe, parafraseando Galeano,12 a deixar colocavam a pensar os limites que esse olhar
memórias de viagem de Cecília Meireles,4 retomar essas anotações esparsas, agora os atuais referenciais utilizados para viciado dos escritos canônicos acabavam por
mas que, em verdade, estão mais próximos, espalhadas sobre a mesa, logo percebo que pensar a universidade “de pernas para o impor a suas pesquisas. Sentia-me, então,
dado o tom lúgubre das reflexões e das durante quase toda a minha trajetória de ar”. E foi sempre desse modo que olhei a incomodada, uma pária social que como o
anotações fora de lugar, muito mais próximos pesquisa sempre estive preocupada com a Universidade e a Cidade, desde a janela ornitorrinco, dadas as suas particularidades
aos objetos contidos no baú de espantos de universidade e o seu papel,7 a qualidade do do meu escritório de pesquisa, a partir de biológicas, se faz diferente e única entre
Quintana5 que, parafraseando Schwartz,6 ensino e sua a gratuidade,8 a incidência social estudos e determinados voos – ou melhor todos os mamíferos.
estão, muitos deles, senão a sua maioria, fora da universidade,9 entre outras tantas coisas. dizendo, breves flanares sobre a cidade –
do lugar de onde emergiram. Movimento esse que me levou recentemente que timidamente me impus de uns tempos Eu precisava de ar, me sentia sufocada,
a explorar as pradarias da grande Porto para cá, por sentir que a academia estava a precisava olhar a cidade e a universidade de
Entre os muitos papeis que vão aos poucos Alegre, de onde, recentemente, participei da esgotar-se nas velhas teorias sem com isso outra maneira, precisava sentir seu cheiro, ver
acomodando-se nas caixas – alguns se destacam avaliação do trabalho de mestrado de Silva,10 muito avançar. sua cor, precisava na cidade me perder para
– e vejo muitos dos meus projetos de pesquisa que se ocupava dos impactos que o REUNI poder encontra-la e incursionar pelo modo
de outrora e começo a reorganizar mentalmente teve sobre aqueles a quem se destinava e Comecei então, ao som da clarineta de como Mário Quintana percebe a cidade de
o itinerário de pesquisa que, ao longo destes de que modo isso produziu atravessamentos Veríssimo,13 a deixar-me tomar pelo cheiro Porto Alegre e suas mudanças como o fiz no
mais de quarenta anos de universidade, fui diversos nas trajetórias sociais destes alunos dos lírios que este cultivava em seu jardim texto “Porto Alegre e seus Quintanares: essa
aos poucos construindo. Memórias de um junto à universidade. junto a um centauro14 que, de tempos em pequena grande cidade vista pelos olhos de
tempos, cobria aqueles pequenos espaços Mário Quintana”,16 que me permitiu realizar
de terra que o concreto não conseguiu uma reviravolta epistêmica em meu objeto
1. Uma versão preliminar deste texto foi publicada nos Anais do XVIII Encontro Nacional da Associação Nacional de Pós-Graduação cobrir. E que como os lírios, eu também, ao de estudo que, desde muito, têm sido a
e Pesquisa em Planejamento Urbano e Regional - ENANPUR, realizado em Natal/RN, em 2019. Também nesse texto homenageio lembrar-me do tempo que passou, encho os cidade e a universidade.
o professor Chico de Oliveira o qual, através do ornitorrinco de papel que utilizo como metáfora e alter ego, me inspirou a
olhos de lágrimas. Mas era sempre o mesmo
escrever este singelo texto.
olhar, um mesmo determinado modo de ver
2. ASSIS, M. de (2011). Papeis Avulsos. São Paulo: Penguin Classics/Companhia das Letras.
a cidade e a universidade que se reproduzia
3. LISPECTOR, C. (2002). Correspondências. Rio de Janeiro: Rocco.
4. MEIRELES, C. (2016). Diário de Bordo. São Paulo: Global Editora.
5. QUINTANA, M. (2019). Baú dos espantos. São Paulo: Alfaguara.
6. SCHWARZ, R. (1992). Ao vencedor as batatas. São Paulo: Duas Cidades. 11.PANIZZI, W. (2017). Autonomia na Universidade. Porto Alegre: CirKula.
7. PANIZZI, W. (2006). Universidade para que? Porto Alegre: Libretos. 12. GALEANO, E. (2009). De pernas para o ar. Porto Alegre: LPM.
8. PANIZZI, W. (2004). Universidade Pública, Gratuita e de Qualidade. Porto Alegre: Editora da Universidade. 13. VERISSIMO, E. (1973). Solo de Clarineta. Porto Alegre: Globo.
9. PANIZZI, W. & MEIRELLES, M. (2018). Porto Alegre e seus Quintanares: essa pequena grande cidade vista pelos olhos de 14. SCLIAR, M. (2004). O centauro no jardim. São Paulo: Companhia das Letras.
Mário Quintana. Mimeo. 15. ASSIS, M. de (2014). Dom Casmurro. São Paulo: Penguin Classics/Companhia das Letras.
10. SILVA, A. F. de (2018). O REUNI na Universidade entre 2010-2016 e seu impacto na trajetória acadêmico-profissional dos alunos 16. PANIZZI e MEIRELLES, op. cit.
bolsistas do Sistema de Bibliotecas da UFRGS. Dissertação de Mestrado. Novo Hamburgo: FEEVALE.
66 Além dos Muros da Universidade: Planejamento Urbano e Regional e Extensão Universitária capítulo 4 O mundo multiplexo do ornitorrinco de papel: universidade, cidade e extensão universitária 67

UM BREVE FLANAR SOBRE A (C)IDADE que talvez, com o tempo, tenham assumido Conversando com esse colega, fui, aos garantir a sociabilidade e contato como a
novos contornos e, novamente, como já fiz poucos, ao longo de vários cafés e conversas, natureza – mas que nunca, ou quase nunca,
Já faz alguns anos que, quase toda semana – anteriormente em um texto dedicado a uma percebendo que a cidade tangível com a são utilizadas.
ou pelo menos uma vez por mês – costumo turma de formandos,19 estejam querendo, qual se ocupa a arquitetura e o urbanismo é
me sentar num café à frente do meu antigo mais uma vez, realizar um balanço e amarrar bastante diversa daquela cidade que as pessoas Eu mesma, nesses últimos meses que
apartamento e conversar com um amigo as pontas do passado como aquelas do percebem, daquela cidade que elas guardam antecedem a escrita deste texto, dadas
professor e pesquisador. Digamos que de presente como o faz Machado de Assis,20 em na memória e que eu mesma já retomei há algumas coisas que me incomodavam em
onde estou, um jovem pesquisador, cheio sua senilidade, ao retornar a casa da Rua de algumas páginas atrás quando escrevi um relação às minhas questões de pesquisa,
de ideias e sonhos que olha para cidade Mata-Cavalos. pequeno livreto intitulado “O canto da cidade: à universidade e a essa certa sensação de
de um outro modo e faz dela uma leitura ou de uma ode sobre os seus fascínios e finitude que as trinta e poucas primaveras
diversa. Uma leitura que busca pensar a Mas voltemos à velha esquina e às conversas encantos”, o qual entreguei aos formandos e depois de Balzac me garantem, às quais
cidade desde um outro ponto de vista, qual com esse colega a que me referi antes. onde me ocupava da minha vinda para cidade atrelam-se a minha estada na universidade
seja, das coisas que são intangíveis e que, Com ele aprendi a olhar para as pessoas de Porto Alegre e o modo como a percebia foi e a atual conjuntura que se impõe para
muitas vezes, não percebemos por estarmos que passam na calçada, a perceber o modo mudando ao longo do tempo.21 os próximos anos, optei por enclausurar-
acostumados a pensar e ver a cidade sempre como as pessoas caminham, a olhar o modo me no novo apartamento, isolando-me do
do mesmo modo como o sapo que vai como a rua é utilizada como um espaço de Uma cidade tangível que para os arquitetos mundo e, com ele, buscando ter um certo
acostumando-se com calor da água que aos sociabilidade em função de nossa arquitetura e urbanistas está ligada ao seu plano diretor, estranhamento. E, como na alegoria de
poucos é aquecida até morrer cozido, como que, hodiernamente, nos enclausura e ao modo como ela é ocupada, à finalidade Platão, optei durante esse tempo por não
já escrevi em outro lugar.17 nos torna cativos de nossos apartamentos de determinada área, à função social de olhar a luz do sol e as cores, e somente ter
de modo que, pouco ou nada sei do meu aparatos técnicos e arquitetônicos etc., contato com o mundo a partir da sombra
O café continua no mesmo lugar, o hábito de vizinho de andar ou, mesmo do professor à relação entre o número de pessoas e o daqueles que passavam diante da caverna.
tomar café continua o mesmo. Contudo, com que comigo divide a sala na Universidade, modo como elas utilizam os equipamentos
o tempo os donos mudaram e os habitues pois nossos encontros são apenas pontuais, urbanos. Profissionais que evitam com os Desse primeiro movimento, emergiu a
que lá se encontravam, alguns continuam, fortuitos, nos corredores e elevadores do escritos de Jane Jacobs22 dialogar, uma figura do ornitorrinco, uma quase quimera
outros, por não os ver mais, talvez tenham meu prédio e da universidade – tema esse vez que essa desafia o nosso pensar e o biológico-filosófica que tornou-se, com o
ido a estudar a geologia dos campos- com o qual também já me ocupei numa mainstream acadêmico das fórmulas e dos tempo, meu companheiro de reflexão e que,
santos.18 Mas a velha esquina continua lá, são palestra que proferi para os alunos do modernos softwares utilizados para se como o bode que é colocado no meio da
outras pessoas, mas a mobília e a arquitetura Curso de Medicina da Faculdade Federal de pensar e construir a cidade idealizada pela sala, por um tempo me ajudou a resolver
continuam as mesmas. Meus pensamentos é Ciências Médicas e da Saúde, há uns dois maioria dos arquitetos e urbanistas que são alguns problemas relacionados ao meu
anos atrás. hoje formados em nossas universidades. próprio método de trabalho e aos projetos
Uma cidade tangível que coloca e exige que estava a desenvolver. Contudo, é hora
em seu plano diretor praças e áreas verdes desse ornitorrinco de papel, um origami que
nos bairros e mesmo no interior de edifícios sobre a mesa da sala me fita, ganhar vida, ir
e condomínios – que têm a finalidade de além, ganhar materialidade.
17. PANIZZI, 2017, op. cit.
18. ASSIS, 2014, op. cit.
19. PANIZZI, W. (2015). O canto da cidade: ou de uma ode sobre os seus fascínios e encantos. Porto Alegre: CirKula. 21. PANIZZI, 2015, op. cit.
20. ASSIS, 2014, op. cit. 22. JACOBS, J. (2009). Morte e Vida de Grandes Cidades. São Paulo: Martins Fontes.
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É o momento de com esses escritos dialogar, de outros que, em tempos de uma O QUE ESTAVA A PROCURAR? Foram muitas idas e vindas, muitos
de dar voz ao meu alter ego de papel e dar- modernidade líquida, como diria Bauman,23 questionamentos e uma busca infindável
lhe voz, de transmitir em simultâneo (duas tentam a ela, incessantemente, se adaptar. Toda vez que algo nos falta, toda vez que nos de repostas que geravam cada vez mais
ou mais mensagens), através de uma mesma E vejo que, como estes últimos, me sinto falta o ar, buscamos em algum lugar um porto perguntas quando, em verdade, percebi que
construção discursiva, de uma mesma via, enclausurada, presa a uma camisa de força seguro. E, em geral, são nossas vivências, ao retornar aos meus escritos estava a buscar
de deixar de lado minhas incertezas e de e, também, me dou conta, no momento da ou seja, aquilo que temos na memória que a minha essência, a minha alma, os meus
deixar o pensamento revolucionar. escrita deste texto, que o meu tempo junto primeiro acedemos nesses momentos. É sonhos e as coisas em que acredito. Pois
à universidade é quase findo pois, como quando em nossa vida adulta, ao precisarmos precisava disso para libertar e dar vida ao
Nessa referida alegoria, o diálogo proposto costumo brincar, muitas vezes, e cada vez de conforto, evocamos a figura de nossos meu amigo de papel que, silenciosamente,
por Platão dá ênfase ao processo de têm sido mais frequente, já sou quase uma pais e o aconchego do colo materno. E que, fitava-me e tentava desnudar-me. Mas
conhecimento e busca mostrar a visão de vaga. E isso, de certa forma, me incomoda, com a batida cadenciada de seu coração e encontrar-se a si própria e olhar-se no
mundo do ignorante, que vive de senso pois ainda tenho muito a pensar sobre a a sensação de conforto evocado pelo calor espelho não é um tarefa fácil – o tempo
comum, e a do filósofo, na sua eterna busca cidade – e logo agora que aprendi a sentir de seu ventre, nos deixamos levar, serenar deixa marcas e muitas vezes, furtivamente,
da verdade. Mas qual verdade estava a o seu cheiro... Mas chegou a hora de parar e somos tomados por uma tranquilidade nos rouba os sonhos e, ao seguir a dinâmica
procurar? O que me incomodava? O que de olhar as sombras que há muito estão quase infinita, sabendo que ela sempre nos da vida, nos leva pessoas que amamos.
esse tempo de reclusão me mostrou? A a se refletir na parede ao fundo. Chega ajudará a alcançarmos aquilo que queremos.
resposta para essas questões, contudo, de velhas teorias e modelos que buscam E, nesse sentido, encontrar-me comigo
estava em outra cidade, não na cidade pensar a cidade e a universidade dentro de Foi assim que, por infindáveis tardes, me mesma representou um duplo movimento,
estéril dos arquitetos e urbanistas, mas sim certos parâmetros que beiram o absurdo coloquei na sala de minha casa a dialogar de morte e renascimento, por um lado, e de
nessa cidade invisível, intangível, que só o de se criarem praças e espaços que não como meu ilustre amigo e, juntamente desapego e finitude, por outro. Movimento
olhar do humanista consegue descortinar. são usados, de se criaram e se proporem com ele, me pus a explorar meus escritos esse que, funestamente, encontra na morte de
políticas que nunca se efetivam e/ou que e minhas anotações de tempos outros, minha mãe o próprio renascimento de minha
Uma cidade pequenina que foi aos poucos efetivamente tenham alguma incidência buscando encontrar aquilo que, sem saber, persona social e me força a retomar outros
crescendo e teve os céus recortados por social. É hora de realizarmos uma reviravolta tinha perdido. Enquanto olhava os quadros vínculos sociais que, com o tempo, tinha
gigantescas árvores de pedra, que teve suas epistêmica. É o momento de pararmos que aos poucos ia recolocando nas paredes abandonado e/ou deixado, furtivamente,
ruas esgaçadas por fumegantes dragões de pensar a universidade a partir de sua do novo apartamento, ia, também, aos para trás, escondidos embaixo do tapete.
movidos a óleo, que tornou-se a prisão de dimensão utilitária como muito bem nos poucos, reconstruído sua história e, em sua Mas que, também, me levou a aprender a
muitos a que tornou cativos e o manicômio provocou Chauí,24 em conferência realizada dimensão sensível, também a minha própria lidar com o desapego com as coisas dadas,
na Universidade de São Paulo anos atrás. história e o porquê daquele quadro estar ali. com aquilo que é tido como certo e que,
na solidão de uma casa vazia, me ensinou a
conviver com minhas inseguranças, medos e
pensamentos – e, mais precisamente, com
minha incompletude e a finitude da vida que
o tempo nos impõe. Era preciso fechar mais
esse ciclo, era preciso encontrar-me comigo
23. BAUMAN, Z. (2001). Modernidade Líquida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.
mesma para um chá.
24. CHAUÍ, M. (2014). Contra a universidade operacional – a greve de 2014. Disponível em: https://www.adusp.org.br/files/
database/2014/tex_chaui.pdf.
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O QUE ME INCOMODAVA? conseguir estranhar os caminhos e de só que nela estão não vivem a cidade. De tal E que, também, é preciso que a Universidade
seguir, como diz um velho ditado popular, desconhecimento da vida na cidade – e do pare um pouco de preocupar-se somente
Nasci em outra cidade, Passo Fundo, uma o caminho do burro do padeiro. Não me modo como as pessoas se relacionam com com a sua sobrevivência enquanto instituição
cidade pequena se comparada com Porto aventurava mais a entrar por outras ruas e ela – resultam projetos arquitetônicos e secular e, assim como eu, olhe para trás,
Alegre, da qual saí com minha mãe em explorar a próxima quadra, pois era cômodo urbanísticos ineficazes que criam espaços abra suas caixas antigas, olhe seus rabiscos
vista das promessas da capital e do futuro caminhar por aquelas ruas que já conhecia que não são utilizados. São praças que são e apontamentos e realize um balanço que
que se descortinava à minha frente. Mas e cuja paisagem e geografia não mais me entregues à drogadição, são vias pelas quais lhe permita retomar a sua finalidade última,
os anos se passaram e, por algum tempo, desafiavam. Que dirá ir a “outros lugares”, poucos ou nenhum carro trafega. qual seja, de formar pensadores livres. Mas,
com outras cidades criei vínculos. Paris, uma tomar “outros cafés” e/ou a “aventurar-me principalmente, que olhe para o Manifesto
metrópole europeia que fazia apequenar-se com novos temas”. Estava acomodada na Estar reclusa aos meus pensamentos durante de Córdoba e para tudo aquilo que,
Porto Alegre. Mas apesar das idas e vindas, panela e a água estava a aquecer, e sabia esses meses que antecederam a escrita novamente, neste último ano que passou,
nem com a primeira, muito menos com a que, se continuasse inerte ali, iria com o deste texto e o crescente interagir com o foi retomado na Conferência Regional
segunda, deixei de ter vínculos e com elas tempo sucumbir ao lento cozimento imposto passado me permitiu enlevar alguns avanços de Educação Superior,26 organizada pela
me relacionar e manter uma relação íntima, ao sapo. epistêmicos no meu ponto de pensar e ver UNESCO, realizada em Córdoba, na
pois era nesse chão que estava enterrado o a cidade, bem como de ressignificar o modo Argentina, mas que, ao que parece, continua
meu cordão umbilical. Era o momento de pular para fora da panela como eu me relaciono com essa cidade como o manifesto, perdido, por entre as
e me impor novos desafios que escapavam que é, também, o meu objeto de estudo e pilhas e pilhas de papeis, de relatórios e
Contudo, se com a primeira cidade não tinha aos escritos canônicos do meu campo pesquisa há mais de trinta anos. normatizações legais que cada vez mais
problemas, minha relação com a segunda não disciplinar e de estudo. desviam a universidade de seu propósito
era das mais calmas e sempre representou Estar reclusa e remexer nas minhas anotações mais seminal e fecundo.
para mim um desafio. Pois coloquei-me de outrora me fez colocar a casa – e os
a estudar a minha cidade, a cidade onde pensamentos – em ordem. Me fez encontrar-
morava e com a qual tinha um vínculo forte. E O QUE ESSE TEMPO DE RECLUSÃO me comigo mesma e retomar, agora, os ideais
estranhar o familiar, já dizia Gilberto Velho,25 ME MOSTROU? e as lutas de outrora. Me fez retomar meus DA UNIVERSIDADE E SEU PAPEL
não é uma tarefa fácil para os antropólogos, escritos e olhar para eles desde uma outra
o que dizer então para uma filósofa e jurista Estar reclusa entre as paredes de um perspectiva que não mais aquela dos meus Em 1988, com a chamada Constituição
que resolveu ter essa mesma cidade como apartamento, no anonimato da cidade anos de juventude, mas sim a partir de um Cidadã, ficou estabelecida em lei a
objeto de estudo e pesquisa. grande, onde pouco sabemos sobre nossos corpo e olhar marcado pelo tempo, pelos “indissociabilidade entre ensino, pesquisa
vizinhos e aqueles com quem dividimos o caminhos e descaminhos da vida, e que, dado e extensão” de modo que, a partir de
Me incomodava essa dimensão experiencial andar é, no mínimo desolador. Desolador o atual contexto, urge, enormemente, retomar. então, “as atividades universitárias de
e o fato de não conseguir me afastar o mas propedêutico, na medida em que São estes os ideais defendidos há mais de pesquisa e extensão poderiam receber
suficiente para conseguir sentir o cheiro também nos ensina sobre a cidade e sobre cem anos pelos estudantes da Universidade apoio financeiro do poder público”.27 Algo
da cidade, pois já estava acostumada as pessoas que nela vivem, e que de nada de Córdoba. Talvez por isso a minha afeição que efetivamente virá a ocorrer a partir da
com ele. Me incomodava o fato de não adianta pensar a cidade se as pessoas e simpatia com os ideais daqueles que, a cada década de 1990, com a institucionalização
ano, chegam à Universidade. da Extensão nas universidades e a criação

25. VELHO, G. (1978). Observando o Familiar. In: NUNES, E. de O. A Aventura Sociológica. Rio de Janeiro: Zahar. 26. CRES. (2018). Declaração. In: III Conferência Regional de Educação Superior para a América Latina e o Caribe. Córdoba,
Argentina, 14 de junho de 2018.
27. BRASIL (1988). Constituição da República Federativa do Brasil.
72 Além dos Muros da Universidade: Planejamento Urbano e Regional e Extensão Universitária capítulo 4 O mundo multiplexo do ornitorrinco de papel: universidade, cidade e extensão universitária 73

do PROEXT (Programa de Fomento à São biólogos, químicos e um sem número mesmas, ou ainda sem conversar com o colega Mas também, estamos falando de uma
Extensão Universitária), em 1993; da Lei de de nano-cientistas dentro de laboratórios da sala ao lado que está desenvolvendo outra universidade, uma universidade que
Diretrizes e Bases da Educação Nacional de pesquisa de universidades brasileiras que alguma atividade de Extensão com este não possui tal glamour ou status e que
(LDB), em 1996; do Plano Nacional de desenvolvem pesquisas ligadas à produção mesmo público. No tempo da sociedade em conta sempre com parcos recursos para o
Extensão, em 1998; do Plano Nacional de de sementes e matrizes mais resistentes a rede, como diria Castells,29 a universidade dos desenvolvimento de suas atividades. Uma
Educação (PNE), em 2001; e do novo Plano pragas e pesticidas, e adubos mais eficientes pesquisadores se isola em sua torre de marfim universidade que, aos olhos dos primeiros,
Nacional de Educação (PNE), em 2014, que mas que raramente incidem diretamente e se desconecta da realidade, algo bastante reúne uma série de pesquisadores e
estabelece e reforça metas e estratégias na mesa do consumidor. São especialistas semelhante ao observado por Yanus30 em seu professores considerados de menor valor ou
que envolvem a educação no contexto em inteligência artificial e software que livro “O banqueiro dos pobres” em relação à apreço, os quais não precisam se preocupar
brasileiro para o período de 2014-2024 e desenvolvem ferramentas de diagnóstico Universidade de Bangladesh. com os índices de produção, com relatórios
que busca “assegurar, no mínimo 10% do e gestão cada vez mais eficientes mas que de pesquisa, com a busca frenética por
total de créditos curriculares exigidos para tem seu patenteamento feito pelas grandes Nessa corrida pela produção somos tratados revistas e periódicos internacionais para
a graduação em programas e projetos de gigantes da internet como Microsoft, Apple, como cobaias que, em um gigantesco publicação dos resultados de seu trabalho,
extensão universitária, orientando sua ação, Google e IBM, de modo que o acesso a laboratório, cumprem tarefas em troca de entre outras. Estamos aqui, portanto, nos
prioritariamente, para áreas de grande essas tecnologias fica restrito ao interesse algum tipo de recompensa e esquecem referindo a uma universidade quase invisível,
pertinência social”.28 e disponibilização desses produtos no daquilo que mais importa à pesquisa, à senão o for aos olhos da primeira, o é aos
mercado por essas empresas. universidade e à tradição humanista, qual olhos do Estado e das Agências de Fomento.
Desde essa perspectiva tem-se que, como no seja, de que a ciência tem como fim o uso É a Universidade Extensionista.
caso da cidade, estamos aqui também a falar de Não se pode negar, contudo, que grandes do pensamento metódico e sistemático
duas universidades. Uma voltada à excelência, avanços científicos são fruto de pesquisas com vistas ao pleno desenvolvimento das Todavia, se aos olhos de seus congêneres
à inserção internacional e que pouco se ocupa realizadas em universidades brasileiras potencialidades humanas. essas praticamente não existem, aos olhos da
da realidade e dos problemas do Brasil. Uma como é o caso da pesquisa financiada pela sociedade essa prerrogativa não é verdadeira.
universidade que se preocupa apenas em Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado E, nessa gigantesca máquina-mundo, os Pois é essa Universidade Extensionista que
manter os critérios de produtividade e os de São Paulo (FAPESP) que, pela primeira corredores da universidade se tornam labirintos está lá na ponta, que adentra os bairros,
escores que lhes garantam o fomento e o vez, utilizou o método CART-Cell com sucesso por onde correm os ratos de Dollard & Miller31 as pequenas propriedades e os lugares
financiamento de suas pesquisa, bem como na América Latina. Todavia, no desenvolver em busca da satisfação de seu ego (o queijo) que mais recônditos deste Brasil. É através da
a manutenção das bolsas de produtividade dessas pesquisas são poucos os cientistas que após o breve choque que lhe é oferecido pelo Extensão que jovens são alfabetizados, que
de seus pesquisadores. Pesquisadores ditos buscam atrelar seus estudos aos problemas cientista (Agências de Fomento, Estado) de modo são preparados para o mercado de trabalho,
de excelência, com obras publicadas tanto mais imediatos de nosso país de modo que, que, em nossas salas e laboratórios, acabamos que hortas comunitárias e ações sociais
no Brasil quanto no exterior, mas que, na muitas vezes, se está a pesquisar sobre a por, literalmente, nos deixarmos levar por uma diversas são desenvolvidas. É através da
maioria dos casos são muito pouco lidos e/ou cultura de alfaces hidropônicas e/ou a criação canhestra roda da fortuna – que são os escores Extensão que se formam especialistas lato
conhecidos na medida em que pouco ou nada de hortas comunitárias ecossustentáveis sem de produção exigidos – que após cumprirmos sensu, que trabalhadores são capacitados,
se ocupam dos problemas e das temáticas antes averiguar o modo como os agricultores determinadas tarefas nos premia com um que a universidade adentra a sociedade, as
mais caras à grande parte da população. da região realizam o cultivo e o manejo das delicioso petisco (recompensa financeira). escolas, as empresas e as cidades.

29. CASTELLS, M. (1999). A sociedade em rede. São Paulo: Paz e Terra.


28. BRASIL (2014). Plano Nacional de Educação, Lei N° 13.005/2014.
30. YUNUS, M. (2006). O banqueiro dos pobres. São Paulo: Ática.
31. DOLLARD, J. & MILLER, N. E. (1950). Personality and Psychotherapy - An Analysis in Terms of Learning, Thinking, and Culture.
New York: McGraw-Hill.
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Contudo, há nesse setor uma certa ausência Sua dieta baseia-se em crustáceos de água se caracteriza por ter um comportamento tais como a Igreja, os Partidos Políticos e
de regulamentação e fomento de modo doce, insetos e vermes. Do ponto de vista recôndito, crepuscular e que, de certa forma, o Estado, o que implica na reprodução de
que tal atividade está muito mais a mercê fenotípico possui diversas adaptações busca responder a certos estímulos que lhe determinados modos de ação que seguem
do interesse e do ímpeto daquele que a para a vida em rios e lagoas, entre elas as são demandados por seu mantenedor, por lógicas diversas do que aquelas ligadas
desenvolve do que ligada aos interesses membranas interdigitais, mais proeminentes políticas específicas e, também, com vistas a sua atividade fim, qual seja, de formar
da instituição. Estamos aqui, sobretudo, nas patas dianteiras. É um animal ovíparo, a responder demandas sociais específicas pensadores livres.
a nos referir a universidade que tem cuja fêmea põe cerca de dois ovos, que de um determinado setor e/ou segmento
sua tangibilidade e existência ligadas à incuba por aproximadamente dez dias, num da sociedade. Se mantém, principalmente, A Extensão Universitária ou extensão
dimensão humana e à sua incidência social. ninho especialmente construído. A fêmea a partir de recursos públicos e da venda acadêmica é uma forma de atuação da
Uma universidade que, a partir de espaços não possui mamas e o leite é diretamente de serviços específicos ligados à Pesquisa Universidade que se pauta na sua ação
diversos, consegue diferentemente das lambido dos poros e sulcos abdominais. Os e Extensão, no caso das universidades junto à comunidade e o seu entorno, ações
atividades de pesquisa realizadas em seus machos têm esporões venenosos nas patas, públicas, e do pagamento de mensalidades, essas através das quais a universidade
laboratórios, conectar Ensino, Pesquisa e que são utilizados principalmente para defesa no caso das universidades privadas. disponibiliza ao público externo a esta
Extensão. É o momento pois, de libertarmo- territorial e contra predadores. Do ponto de o conhecimento produzido por meio da
nos dos papeis e libertar o nosso ilustre vista genotípico, o ornitorrinco possui vários Do ponto de vista fenotípico e institucional Pesquisa e do Ensino nela desenvolvidos.
companheiro para que, esse, siga sua genes compartilhados tanto com os répteis apresenta boa capacidade de adaptação Conhecimento este que possui incidência
natureza e ganhe o mundo. como com as aves, mas cerca de 82% dos a contextos diversos e adversos o que social e retroalimenta o trabalho de pesquisa
seus genes são compartilhados com outras lhe permite atuar, interagir e responder a e ensino, extraindo da realidade, na qual
espécies de mamíferos já sequenciadas, demandas de populações e comunidades se insere, questões que serão mais tarde
como o cão, a ratazana e o homem. que estão fora dos grandes centros urbanos. exploradas e discutidas tanto no interior dos
O MUNDO MULTIPLEXO DO É tida como uma instituição secular cuja gabinetes de pesquisa e de projetos ligados
ORNITORRINCO DE PAPEL: Já a Universidade é uma instituição de ensino perpetuação se dá pelo sistema de cátedra a essas atividades quanto na sala de aula,
ALGUMAS CONSIDERAÇÕES superior pluridisciplinar e de formação de que, através da pós-graduação, perpetua onde a atuação dos futuros profissionais
quadros profissionais de nível superior, de práticas e modelos de ação institucional que é discutida e debatida. Do ponto de vista
O ornitorrinco é um mamífero semiaquático investigação, de Extensão e de domínio e garantem a sua manutenção, sobrevivência legal, a ideia de Extensão é tida como um
natural da Austrália e Tasmânia sendo cultivo do saber humano. Sendo única em e perpetuação a longo prazo. Seus gestores conceito que é adotado pelas universidades
o único representante vivo da família seu gênero, fornece o que chamamos tanto possuem forte apreço pela Pesquisa e a sua no Brasil e que têm como objetivo fomentar
Ornithorhynchidae e a única espécie do de educação terciária (graduação) quanto defesa, deixando de lado, muitas vezes, o contato imediato da comunidade interna
gênero Ornithorhynchus que, juntamente quaternária (pós-graduação). Juntamente o Ensino e a Extensão. Do ponto de vista de uma dada instituição de ensino superior
com as equidnas, formam o grupo dos com outras autarquias e instituições públicas, genotípico a Universidade possui em seu com a sua comunidade externa, ou seja,
monotremados, os únicos mamíferos ovíparos goza de certa autonomia para executar DNA elementos, práticas de ação e modelos com o seu entorno e/ou a comunidade na
existentes, sendo, portanto, uma espécie suas atividades-fim, juntamente com de funcionamento que são compartilhados qual ela está inserida e/ou subordinada. Do
monotípica, a qual, não tem subespécies ou outras instituições de ensino comunitárias, com outras instituições sociais já conhecidas ponto de vista prático, a ideia de Extensão
variedades reconhecidas. No que se refere filantrópicas e privadas, como o atual
aos seus hábitos de vida e interação com o Sistema de Ensino Superior no Brasil. No que
meio ambiente, possui hábito crepuscular e/ se refere aos seus hábitos de sobrevivência
ou noturno, é preferencialmente carnívoro. e interação com a sociedade circundante,
76 Além dos Muros da Universidade: Planejamento Urbano e Regional e Extensão Universitária capítulo 4 O mundo multiplexo do ornitorrinco de papel: universidade, cidade e extensão universitária 77

Universitária está intimamente associada ao entre Ensino, Pesquisa e Extensão; 3) Espaço GRÁFICO 1
pressuposto de que o conhecimento gerado público de acolhimento e aprendizagem; 4) Recursos disponibilizados
pelas instituições de pesquisa, no caso Tensão universitária e direito à cidade; 5) anualmente pelo ProEXT/MEC
(em Milhões)
as universidades, deve necessariamente Assistência técnica para movimentos sociais:
possuir a intenção de transformar a realidade reflexões sobre resistência; 6) Assistência
Fonte: Citado por Incrocci &
social, intervindo e incidindo socialmente, técnica: moradias autoconstruídas e Andrade (op. cit.) a partir de
e não limitando-se somente à formação de processos pedagógicos; e, 7) Extensão Almeida Junior (2016).
profissionais para o mercado de trabalho. Universitária: discussões sobre o tempo, o
Motivo pelo qual a Extensão é um dos pilares espaço, o discurso e a prática. Essas sessões
do Ensino Superior que, conjuntamente com congregaram exatos trinta e seis trabalhos
o Ensino e a Pesquisa, constitui o chamado e projetos de Extensão Universitária levados
tripé educacional sobre o qual dispõe o a cabo em diversos lugares do Brasil. Esse
Artigo 207 da Constituição Federal.32 debate que também foi o foco de uma das
principais mesas, a qual tinha por finalidade
Motivo pelo qual, cada vez mais, a Extensão discutir os desafios e as potencialidades
tem sido valorizada e ocupado espaço no da Extensão Universitária na formação de
interior de grupos de trabalho diversos planejadores urbanos e regionais.
ligados às mais diferentes áreas como
é o caso, por exemplo, do ocorrido no Algo que já havia sido colocado em
XVIII Encontro Nacional da Associação evidência por Incrocci & Andrade,33 através GRÁFICO 2
Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em dos gráficos reproduzidos a seguir, os quais, Projetos aprovados por
ano pelo ProEXT/MEC
Planejamento Urbano e Regional - XVIII mostram um significativo crescimento em
com recorte por tipo de
ENANPUR, realizado em Natal, em 2019 – e termos de recursos disponibilizados (ver instituição proponente
aqui, me refiro à Sessão Temática 9 intitulada gráfico 1) e de projetos aprovados sendo,
Extensão Universitária e a Assistência o governo federal e os estados aqueles Fonte: Incrocci & Andrade, op. cit.
Técnica no Campo e na Cidade, da qual que mais fomentam esse tipo de ação (ver
destaco, especificamente, as seguintes gráfico 2).
sessões, a saber: 1) Práticas urbanas, para
além da sala de aula; 2) Indissociabilidade

32. BRASIL, 1988, op. cit.


33. INCROCCI, L. M. de M. C. & ANDRADE, T. H. N. De (2018). O fortalecimento da extensão no campo científico: uma análise dos
editais ProExt/MEC. Revista Sociedade e Estado, v. 33, n. 1.
78 Além dos Muros da Universidade: Planejamento Urbano e Regional e Extensão Universitária

Dito isto, e a guisa de uma breve conclusão, há de se


considerar até quando a universidade continuará a
embrenhar-se entre as pilhas de papel e se esconder sob a
burocracia, priorizando a pesquisa e a internacionalização
em detrimento da Extensão e da manutenção de sua relação
com a sociedade. Ou ainda, até quando continuaremos
como o ornitorrinco a ser uma espécie de quimera que do
ponto de vista da letra da lei diz ter como ideal primeiro a
indissociabilidade entre Ensino, Pesquisa e Extensão, mas
que, na prática, essa continua a não sair do papel.

Movimento esse que levou a uma maior institucionalização


da Extensão como um dos pilares básicos da universidade –
dado que, até pouco tempo atrás, essa era tida como a filha
bastarda – passando, agora, a ser vista com entusiasmo tanto
pelos estudantes quanto pelos professores de modo que, a
Extensão passa a ter seu reconhecimento enquanto atividade-
fim da Universidade e a ocupar o mesmo status que, antes,
ocupava, de forma privilegiada, a Pesquisa e o Ensino.
Práticas de
Pesquisa-Ação
e Extensão
em Fortaleza
entre conflitos

capítulo 5
e resistências

Renato Pequeno

INTRODUÇÃO

Este artigo parte das ideias apresentadas na mesa redonda


Extensão Universitária: Desafios e Potencialidades na
Formação de Planejadores Urbanos e Regionais realizada
no XVIII Encontro Nacional da Associação Nacional de
Pós-Graduação e Pesquisa em Planejamento Urbano e
Regional - XVIII ENANPUR na cidade de Natal-RN. Uma
oportunidade única para apresentar algumas reflexões e
debater junto aos colegas Luciana Corrêa do Lago (IPPUR-
UFRJ) e Caio Santo-Amore (FAUUSP) a respeito de nossas
práticas “extensionistas”, quase sempre associadas à
pesquisa e com intensos desdobramentos no ensino.

Desde a leitura da ementa encaminhada pelos


organizadores, adotei como ponto de partida o resgate da
trajetória referente às práticas realizadas pelo Laboratório
de Estudos da Habitação (Lehab) desde 2013, ano da sua
criação na Universidade Federal do Ceará (UFC). Cada
Vila Nazaré, Porto Alegre, 2019.
uma das práticas aqui abordadas é resultado de demandas
foto_ Bruno Mello
feitas por movimentos e comunidades.
82 Além dos Muros da Universidade: Planejamento Urbano e Regional e Extensão Universitária capítulo 5 Práticas de Pesquisa-Ação e Extensão em Fortaleza: entre conflitos e resistências 83

Por meio de nossas ações junto aos assessorias ao longo das ações extensionistas seção faz-se uma distinção entre o que para situações de risco. A “cidade da
movimentos sociais de moradia, vinculadas tem sido uma excelente fonte de questões seriam nossas práticas: as ações de formação informalidade” contudo não se encerra
a práticas de pesquisa, constata-se uma para o ensino do planejamento urbano, em planejamento urbano com destaque no que é oficialmente reconhecido como
série de transformações considerando a aproximando a sala de aula de problemas para a questão da moradia e do acesso à precário, englobando ainda muitos bairros
realidade vigente na cidade. Da mesma reais, nem sempre apreensíveis no cotidiano. terra urbanizada; as práticas de assessoria populares posicionados a oeste da cidade.
forma, percebeu-se, por parte do Estado, em técnica em planejamento urbano, reforçando
especial no âmbito dos órgãos municipais, Essas ações encontram-se registradas como resistências e contribuindo com frentes Estima-se que 10% da população local viva
um conjunto de práticas excludentes e projetos de Extensão na Universidade em busca de garantir seu direito à cidade em conjuntos habitacionais de interesse
impositivas, demonstrando proximidade Federal do Ceará, desde 2017, no sentido e comunidades em situação de ameaça. social, produzidos, salvo raras exceções,
de interesses entre o Estado e os setores de garantir maior respaldo institucional. Por fim, são discutidos alguns desafios desde os anos 1970. Todavia, os mesmos
imobiliário e da construção civil. Inicialmente o projeto “Observatório de pontuados ao longo dessa trajetória. se encontram em situação de segregação
Remoções de Fortaleza”, o qual desenvolve involuntária, definindo o que denominamos
Dessa aproximação nossos princípios de o mapeamento dos despejos forçados como “cidade das políticas públicas”. Via
atuação crítica tornaram-se ainda mais e ameaças, assim como um permanente de regra, convivem com problemas de
explícitos, o que por um lado nos levou debate com as instituições envolvidas. FORTALEZA COMO RECORTE PARA AS acessibilidade reduzida às oportunidades
a contribuir com as lutas pelo direito à O segundo projeto “Direito à Cidade e PRÁTICAS DE EXTENSÃO da cidade tendo em vista suas condições
moradia e à cidade, ampliando a atuação à Moradia: monitoramento e formação” de inserção urbana sem equipamentos,
da universidade por meio da pesquisa-ação, abrange o acompanhamento das políticas A capital cearense não se trata de um lugar infraestruturas e serviços urbanos.
fazendo de suas práticas verdadeiras ações urbana e habitacional a partir das suas qualquer! Ao contrário, corresponde ao
de Extensão, transferindo conhecimento instâncias de controle social, assim como município polo de uma metrópole desigual Contudo a desigualdade se exacerba
e apreendendo a situação vivida fora dos a realização de atividades de formação em e incompleta que tem nas condições de quando se observa a “cidade do
muros da UFC. Por outro lado, ao incidir planejamento urbano para representantes moradia o verdadeiro e mais cruel retrato de mercado imobiliário” destinada aos mais
criticamente na formulação e implementação dos movimentos sociais e das assessorias suas disparidades socioespaciais. Com mais favorecidos, perceptível na paisagem
de políticas públicas, através de ações técnicas. de 2,6 milhões de habitantes, organiza uma mediante a qualidade do ambiente urbano
diretas nos diferentes órgãos de controle região metropolitana composta por outros e das edificações. Condomínios verticais,
social, passamos a colaborar com a abertura Neste sentido, este artigo tem como 18 municípios. Mais de 41% da população do loteamentos fechados horizontais, shopping
de arenas de debates, revelando os agentes objetivos: analisar algumas das práticas município vive em assentamentos precários, centers, edifícios empresariais, complexos de
envolvidos em seus papeis, interesses, conduzidas no Lehab e discutir os em sua maior parte favelas bastante densas múltiplo uso, dentre outras formas mostram-
conflitos e parcerias. desafios da Extensão considerando a sua e dispersas, alastrando-se sobre áreas de se cada vez mais aglomerados, compondo
indissociabilidade com relação ao Ensino e à preservação permanente e convergindo um sistema multipolicêntrico1 estruturado
Os resultados até aqui obtidos, assim como Pesquisa. Na sua primeira parte, pretende-se de maneira diferenciada por eixos terciários.
os processos ainda sob investigação em apresentar Fortaleza como alvo para ações
nossas pesquisas, têm sido recorrentemente de Extensão no âmbito do planejamento
trabalhados de modo a contribuir com as urbano e habitacional. Em seguida, na
atividades de formação e de assessoria segunda parte busca-se discorrer sobre
técnica. Da mesma forma, o diálogo algumas das práticas realizadas nos últimos
com movimentos, comunidades e outras seis anos, desde a criação do Lehab. Nessa 1. SPOSITO, M. E. B. (2013). Segregação socioespacial e centralidade urbana. In: P de A.VASCONCELOS, R.L. CORRÊA & S.M.
PINTAUDI. A cidade contemporânea: segregação espacial. São Paulo: Contexto, pp 61-94.
84 Além dos Muros da Universidade: Planejamento Urbano e Regional e Extensão Universitária capítulo 5 Práticas de Pesquisa-Ação e Extensão em Fortaleza: entre conflitos e resistências 85

Além disso, especialmente a capital Em Fortaleza, no âmbito das questões Todavia, só no final dos anos 1990 e durante Abre-se assim um debate ampliado sobre
Fortaleza corresponde a um município do planejamento urbano, com especial os anos 2000, com o início dos debates as questões da cidade, evidenciando a
avesso ao planejamento urbano, negando- ênfase para a problemática habitacional, a associados à aprovação do Estatuto da posição de técnicos avessa à participação da
se historicamente ao uso de instrumentos atuação da universidade se concentrou na Cidade,2 veio à tona a necessidade de sociedade civil, assim como a quase ausência
que viessem a combater suas iniquidades. formação de profissionais para o mercado construção de articulações voltadas para de intersetorialidade e interdisciplinaridade,
A leitura do seu zoneamento e de suas e para atuação no setor público. Caberia o debate sobre as questões urbana e da constituindo-se o planejamento urbano numa
mudanças recentes sugere muito mais o talvez uma pesquisa exploratória destinada moradia. Disto, passaram a ganhar espaço verdadeira reserva de mercado de arquitetos
reconhecimento dos anseios do setor da à identificação de práticas extensionistas grupos de Extensão voltados para a e urbanistas. Nesse mesmo período, anos
construção civil e da incorporaçào imobiliária, em planejamento urbano e habitacional. compreensão e para o enfrentamento destas 2000, representantes de movimentos sociais
do que uma tentativa estruturada de conter Entretanto, se considerarmos que só em problemáticas. Destaque para os projetos vinculados ao PT (Partido dos Trabalhadores)
os problemas urbanos que se avolumam e se 1988 as ações de Extensão passaram a ser vinculados à regularização fundiária e ao e ao PCdoB (Partido Comunista do Brasil)
sobrepõem. legalmente reconhecidas como atribuição combate à violação de direitos humanos e ONGs com amplo poder de articulação,
da universidade, não causará surpresa a presentes nas Faculdades de Direito, como passaram a atuar no governo municipal,
Seu crescimento desordenado permanente, constatação de que poucas foram efetuadas. o Centro de Assessoria Jurídica Universitária contraditoriamente no sentido de conter as
sua conurbação via deslocamento e (CAJU), o Núcleo de Assessoria Jurídica pressões advindas de comunidades alvo de
segregação involuntária dos mais pobres, Naquele período merece destaque a criação Universitária às Comunidades (NAJUC) e remoções, assim como de ampla demanda
assim como a disseminação de assentamentos de organizações não governamentais, como o Serviço de Assessoria Jurídica Popular não atendida.
precários sugerem a necessidade e a urgência o Cearah Periferia, as quais assumiram (SAJU). Os dois primeiros vinculados
de uma ampla reflexão, cabendo sem sombra o papel de articulação junto ao Estado, à Universidade Federal, e o último, à Naquela década, a revisão do Plano Diretor
de dúvida uma atuação da academia. mediando demandas dos movimentos Universidade de Fortaleza. de Fortaleza ocorre em duas fases: a
sociais,. Dentre suas ações, realce para primeira alvo de ação do Ministério Público
Seja por meio da investigação científica a realização de projetos habitacionais É justamente com o olhar para a Federal, dada a ausência de participação
que identifica e analisa um amplo universo demonstrativos destinados à população de irregularidade fundiária, a especulação da sociedade civil; a segunda marcada pela
de questões de pesquisa, seja através de baixa renda, a formação de lideranças na imobiliária e a tecnocracia como problemas composição de um campo popular, que
ações de Extensão, reconhecidas como escola de planejamento urbano e pesquisa a serem combatidos, assim como a adoção viabilizou a inclusão das Zonas Especiais
oportunidades de atuação da academia por popular, na qual alguns docentes das da função social da propriedade, do de Interesse Social (ZEIS), e abriu espaço
meio das práticas sociais, constata-se na universidades públicas vieram a contribuir, direito à cidade e à moradia digna e da para uma discussão ampliada em torno da
paisagem de Fortaleza todo um acúmulo de assim como a organização de seminários gestão democrática e participativa como questão urbana, vindo a ser aprovado em
elementos reveladores de sua condição como para debater a problemática urbana e a princípios que vem à tona a configuração 2009.
cidade socialmente injusta. Seu crescimento necessidade de uma política habitacional. de articulações em Fortaleza, reunindo
urbano desordenado atinge em especial a movimentos sociais, entidades profissionais,
imensa maioria mais pobre, numa situação É justamente nesse período que se acirra o ONGs (organizações não-governamentais) e
bastante diversa daqueles autossegregados desmantelamento das instituições públicas grupos de Extensão Universitária.
de ala renda que absorvem a maior parte dos governos estadual e municipal, abrindo
dos investimentos públicos. espaço para as consultorias privadas.
Terceirizam-se as atribuições de planejamento
urbano habitacional, reduzindo sobremaneira
as possibilidades de atuação do profissional 2. BRASIL. Lei Federal lei 10.257 de 10 de julho de 2001. Estatuto da Cidade.
do planejamento urbano.
86 Além dos Muros da Universidade: Planejamento Urbano e Regional e Extensão Universitária capítulo 5 Práticas de Pesquisa-Ação e Extensão em Fortaleza: entre conflitos e resistências 87

Entretanto, a disseminação de grandes conselhos leva a que novas arenas de debates PRÁTICAS DE EXTENSÃO NO LEHAB voltados à implementação do direito à moradia
projetos urbanos em detrimento do processo e disputas sejam constituídas, com destaque e à cidade, em seus avanços e bloqueios”.
de planejamento urbano no âmbito dos para as audiências públicas (AP). No caso de Desde 2002, ao ingressar no Departamento Os estudos foram feitos simultaneamente
megaeventos esportivos e da atividade Fortaleza, atualmente as APs são as únicas de Arquitetura e Urbanismo da UFC, em São Paulo e no Rio de Janeiro, sem
turística, assim como a efetivação de programas alternativas em que a sociedade civil local a atuação como pesquisador em qualquer intenção de comparação, tendo
habitacionais dissociados da política urbana, atua com liberdade de expressão e esperança. planejamento urbano e o uso das condições em vista as especificidades dos processos
passam a prevalecer, fazendo emergir algumas de moradia como variável âncora para de planejamento urbano de cada cidade.3
questões para a atuação de setores engajados Isto posto, pretende-se, nas partes seguintes melhor compreender a situação histórica de
e militantes da universidade pública, sejam deste artigo, abordar as práticas de Extensão desenvolvimento desigual em Fortaleza nos Tratando-se de pesquisa advocacy,4
eles de pesquisa ou de Extensão. conduzidas pelo Lehab. Realce para o fato impele naturalmente à realização de práticas buscava-se monitorar e influenciar a
dessas ações serem vinculadas a outras de Extensão. Da mesma forma, o ensino da implementação de políticas, programas
É sobre esse palco que as práticas de Extensão entidades, coletivos e movimentos, alguns planificação e do urbanismo, ao ser vinculado e projetos estabelecidos pelos governos
Universitária passam a ocorrer, assumindo dos quais componentes da Frente de Luta por à realidade local, finda por se confrontar com municipais, investigando-se até que ponto
papeis outrora destinados às ONGs. Outros Moradia (FLM). Neste sentido, ao invés de as disparidades socioespaciais derivando os mesmos buscavam fazer cumprir os
atores também entram em cena como considerá-los como grupo alvo, esses atores em proposições. instrumentos do Estatuto da Cidade,
o Ministério Público e alguns coletivos são reconhecidos como verdadeiros parceiros abordando o cumprimento da função social
temáticos, somando-se aos escritórios em de aprendizado com os quais temos trocado Via de regra, os resultados obtidos são da propriedade, a inclusão socioterritorial
defesa de direitos humanos. O desmanche das experiências e conhecimentos, e com isso compartilhados por meio de episódios da população de baixa renda, a ampliação
instâncias de controle social e a deformação de fortalecido nossas práticas. da webserie “Cartas Urbanas”, artigos do acesso e permanência à moradia, ao
publicados em periódicos, anais de eventos solo e aos serviços urbanos. Destaque
científicos, capítulos de livro, dentre outros. especial para um de seus objetivos, no caso:
FIGURA 1
Além disso, as apresentações públicas “fortalecer a sociedade civil organizada
Síntese com as 3 cidades)
favelas, autossegregação e
dos resultados obtidos em seminários na e suas redes para o debate público e
segregação involuntária universidade e a participação em audiências participação na formulação, implementação
públicas, também correspondem às formas e monitoramento de políticas, programas
Produção: Sara Vieira Rosa. de devolução para a sociedade. e projetos municipais, para alcançar os
governos e os tomadores de decisão através
Contudo, desde meados 2014, fomos da mídia e estratégias de defesa”.
convidados a tomar parte de uma pesquisa
tratando das “estratégias e dos instrumentos
de planejamento e regulação urbanística

3. Pesquisa apoiada pela Fundação Ford realizada em parceria com o Observatório das Metrópoles e o LabCidade/FAUUSP sob a
coordenação dos professores Orlando Alves dos Santos Junior (IPPUR/UFRJ), Raquel Rolnik (FAUUSP) e Paula Santoro (FAUUSP)
entre 2014 e 2016.
4. Conforme DAVIDOFF, P. (1965). Advocacy and Pluralism in Planning. Journal of the American Institute of Planners 31:4, 331-338.
88 Além dos Muros da Universidade: Planejamento Urbano e Regional e Extensão Universitária capítulo 5 Práticas de Pesquisa-Ação e Extensão em Fortaleza: entre conflitos e resistências 89

Fazia parte da metodologia dessa pesquisa- Com o intuito de realizar um mapeamento Pouco a pouco, constatamos estar diante i. A Extensão voltada para a formação
ação a escolha de intervenções urbanas dos movimentos sociais vinculados à de um amplo quadro de problemas, em planejamento urbano
que permitissem aprofundar as análises questão da moradia, nos aproximamos derivados de intervenções conduzidas
socioespaciais conforme os objetivos da Frente de Luta por Moradia Digna, pelo Estado-capital e atingindo diversas Nesta seção apresentaremos duas de
supracitados. Estávamos em meados de articulação de entidades, comunidades, comunidades. Além disso, tornou-se nossas práticas, diferenciadas pela duração
2014, quando grandes projetos urbanos movimentos, assessorias e grupos de evidente que as medidas que vinham sendo do tempo necessário à sua realização.
(GPU) vinculados à Copa do Mundo ainda Extensão remanescentes do Comitê Popular tomadas por determinadas instituições A primeira, de curto período, buscou
estavam sendo executados e quando os da Copa, extinto em julho de 2014. do município tenderiam a trazer impactos promover a sensibilização por meio de uma
investimentos federais se escasseavam. ainda mais predatórios e perversos junto ação concentrada, revelando processos
Optamos por dois projetos associados à Diante da morosidade com que os projetos às comunidades atingidas. Percebia-se a vigentes, desvelando seus agentes e
remoção e ao reassentamento de famílias: o vinham sendo executados e considerando a intenção em garantir ganhos cada vez maiores seus respectivos interesses. A outra, de
veículo leve sobre trilhos (VLT) atravessando aceleração na regulamentação de institutos para o setor da incorporação imobiliária média duração, levou à realização de uma
setor com amplos interesses do mercado urbanísticos indutores da valorização por meio de mudanças de zoneamento formação continuada, habilitando atores às
imobiliário e que remetia mais de 2.300 imobiliária favorecendo o setor da construção urbano, alterações nos índices urbanísticos, intervenções qualificadas nos processos de
famílias para um grande conjunto periférico; civil e os incorporadores, incluímos no operações urbanas consorciadas, outorgas planejamento. Todavia, a expectativa é a de
o Aldeia da Praia, projeto de urbanização escopo da pesquisa o acompanhamento dos onerosas do direito de construir e uso do que seus resultados tenham longo e durável
de favelas do Programa de Aceleração do processos de planejamento urbano em curso solo, assim como a aprovação de grandes alcance, considerando as ações a serem
Crescimento (PAC), nas comunidades do naquele período. Para tanto, assumimos a programas de desenvolvimento urbano desempenhadas pelos envolvidos.
Serviluz e do Titanzinho, cujas famílias seriam representação da Universidade no Conselho concentrados nos fronts de desenvolvimento
em boa parte removidas e reassentadas em Permanente de Acompanhamento do Plano imobiliário. Essas práticas se justificam à medida que,
grande conjunto situado no topo das dunas, Diretor (CPPD), onde transcorria a aprovação ao dar prosseguimento às atividades de
a quase 2 quilômetros de distância. de uma série de projetos de lei, ditos Frente a esta situação, buscou-se organizar pesquisa voltadas para compreender as
especiais por conta da ilegalidade de seus algumas atividades de (in)formação e dificuldades para que o direito à cidade e
Por meio da pesquisa, buscava-se conteúdos, mas que atendiam aos setores sensibilização, retomando as práticas da à moradia fossem obtidos, nos deparamos
reconhecer as dinâmicas socioespaciais que hegemônicos que comandam a cidade. Escola de Planejamento Urbano e Pesquisa com um contexto que revelava um campo
evidenciavam a dissociação das políticas Popular (EPUPP) realizadas no passado pelo dos mais férteis para a sua realização. Por um
urbana e habitacional, o predomínio Passamos também a integrar a Cearah Periferia, as quais apresentaremos lado, era cada vez mais visível o acirramento
do grande projeto sobre o processo de comissão responsável pelo processo de brevemente em seguida, em seus conteúdos, das desigualdades sociais devido ao
planejamento, as transformações pelas quais regulamentação das Zonas Especiais de objetivos e resultados. Da mesma forma na desmantelamento das políticas sociais, em
passavam os movimentos sociais, assim como Interesse Social para as favelas reconhecidas parte derradeira dessa seção, descreveremos especial a habitacional. Atestava-se, ainda, o
o impacto sobre as comunidades removidas como prioritárias, assim como contribuímos algumas práticas de assessoria técnica em amplo ataque à legislação urbana mediante
e deslocadas para grandes conjuntos de com a reativação do Conselho Municipal de planejamento urbano relacionadas às ZEIS, a regulamentação de instrumentos de
maneira involuntária, periféricos ou não. Habitação Popular (Comhap), sendo eleitos considerando os mesmos elementos de interesse do setor imobiliário e a aprovação
como conselheiros em ambos. análise. de projetos especiais, constatando-se a
influência cada vez maior do setor imobiliário.
90 Além dos Muros da Universidade: Planejamento Urbano e Regional e Extensão Universitária capítulo 5 Práticas de Pesquisa-Ação e Extensão em Fortaleza: entre conflitos e resistências 91

FIGURA 2: Cartaz para o 1º. Encontro de comunidades


FIGURA 3: Abertura do 1º. Encontro de Comunidades pelo Direito à Moradia na UFC
FIGURA 4: Oficinas para elaboração de cartografia social
FIGURA 5: Cartografia social: mapa síntese da questão da moradia

Fotos: Sara Vieira Rosa (2, 4 e 5) / Nigéria (3)

Todo esse processo avassalador ocorria sem dados e cartografia temática; discutir
que houvesse espaço de diálogo entre a o predomínio do setor imobiliário, em
sociedade civil e os órgãos governamentais, parceria com o Estado, no comando da
que por sua vez, mostravam-se cada vez mais cidade, inserindo nos debates a questão da
interessados na disseminação de parcerias financeirização do desenvolvimento urbano;
público-privadas. Diante dessa situação, elaborar cartografia social da questão da
buscou-se organizar um Encontro de moradia em Fortaleza, confrontando o saber
Comunidades conclamando movimentos, científico e o conhecimento popular. Tudo
coletivos, associações, entidades, isto convergindo para habilitar os envolvidos
assessorias técnicas e grupos de Extensão, para uma atuação mais efetiva nos debates,
retomando uma prática do passado recente nas disputas e nas lutas sociais vinculadas a
realizada pelo Cearah Periferia. (Figura 2) conflitos territoriais.

Vale aqui enfatizar a riqueza das experiências Em sua primeira edição, mais de 180
de formação voltadas para os movimentos participantes debateram sobre as questões oportunidade para aproximar movimentos,
sociais que foram conduzidas no passado da cidade, distribuídos em grupos entidades, coletivos e setores da academia,
através do Cearah Periferia via EPUPP. segundo os cinco territórios definidos levando-os a reconhecer similaridades,
Fazendo uso de diferentes atividades, a pelos organizadores do evento (Figura 3). diferenças e complementariedades.
Escola abrangia dentre outras práticas: os A metodologia adotada buscou trazer aos
encontros de comunidades voltados para moradores, mediante a espacialização das Como resultados dessa atividade é possível
questões emergentes; a capacitação em práticas dos agentes sociais da produção mencionar: a elaboração de cartografia
massa, atividade ampliada de sensibilização do espaço, uma maior compreensão dos social da questão da moradia, a construção
e seleção de participantes; a formação seus respectivos papeis e interesses, de diagnóstico da problemática urbana
continuada em planejamento urbano investigando-se: como o problema da e habitacional, retomando antigos temas
compreendendo ao longo de um ano moradia se manifesta? O que o Estado presentes na cidade e percebendo
fundamentos teóricos, práticas de pesquisa, tem feito frente ao mesmo? Quem são os o surgimento de novas questões; o
metodologia de diagnóstico e planejamento grandes proprietários de terra? Quais as reconhecimento de semelhanças entre os
participativo e elaboração de projetos. possíveis estratégias, diretrizes e ações? problemas vividos nas comunidades, seja
Previa-se ainda a realização de cursos de nos agentes envolvidos, nas suas práticas ou
aperfeiçoamento para ex-alunos sempre Ao reunir e contrapor o saber científico e nos seus impactos. Foram muitos os casos
que alguma grande mudança ocorresse. o conhecimento popular, o Encontro de em que as precariedades urbanísticas e as
Comunidades contribuiu para uma melhor dificuldades decorrentes das más condições
Neste sentido, com o intuito de promover compreensão da atual realidade. Evidenciou- de inserção urbana e da acessibilidade
uma maior interação entre a academia se dentre outros fenômenos: o acirramento reduzida às oportunidades foram
e a sociedade civil, esse encontro teve das desigualdades, a concentração de reconhecidas como problemas comuns
como objetivos: organizar uma arena de investimentos nos bairros mais ricos, o (Figuras 4 e 5).
debates sobre o problema habitacional reconhecimento dos grandes proprietários
possibilitando a disseminação da de terra e a presença de remoções violentas
informação, compartilhando bancos de pela cidade. Além disso, constituiu-se numa
92 Além dos Muros da Universidade: Planejamento Urbano e Regional e Extensão Universitária capítulo 5 Práticas de Pesquisa-Ação e Extensão em Fortaleza: entre conflitos e resistências 93

Em meio à riqueza dos debates e Uma segunda ação de Extensão voltada Destacam-se como objetivos principais Seguindo os eixos de pesquisa e análise
depoimentos dos participantes, a para a formação que merece ser discutida dessa atividade de Extensão: fortalecer os adotados no Laboratório, adequamos a
constatação do problema das remoções diz respeito ao curso “A produção representantes dos movimentos e coletivos estrutura do curso ao que denominamos
violentas acendeu a luz vermelha da capitalista da cidade: poderes, conflitos e para atuação das arenas de debate e em como as três cidades (Figura 6):
urgência em direcionar o olhar para o resistências”. Para a realização deste curso defesa de seus direitos apresentando
problema de maneira mais ampla. Foram de planejamento urbano, definimos como fundamentos básicos, procedimentos (i) a cidade do mercado imobiliário - reunindo
vários os casos em que a atuação do Estado público alvo representantes de movimentos metodológicos, cartografia temática, os processos de valorização fundiária, onde
incluía o despejo forçado e a demolição de sociais, de coletivos, entidades e assessorias processos de planejamento, normativas e se intensifica a indução do desenvolvimento
casas naquele setor da cidade. em defesa dos direitos humanos. programas de desenvolvimento; atualizar urbano, para onde convergem os
o debate confrontando o conhecimento investimentos e por onde se disseminam as
Como desdobramentos da atividade merece Diante da conjuntura local em que os científico e o saber popular com ênfase parcerias público-privadas;
ser destacado o fortalecimento da Frente conselhos municipais se mostram ineficazes nos conflitos territoriais, de modo a melhor
de Luta por Moradia Digna, ampliando a como instâncias de controle social e as explicitar os agentes envolvidos, seus papeis (ii) a cidade das políticas públicas -
sua composição e agregando novos atores audiências públicas passaram a se constituir e interesses; aproximar a universidade da congregando de maneira acumulativa os
entre movimentos, coletivos e assessorias. nos espaços de debate sobre as políticas realidade vivida nos territórios populares, empreendimentos habitacionais de interesse
Chama também atenção a criação das urbana e habitacional de interesse social, abrindo suas portas para aqueles que a social e as intervenções urbanísticas em
assembleias populares pelo direito à cidade, a participação efetiva de integrantes da veem como horizonte distante e impossível, assentamentos precários;
assumidas pelos diferentes movimentos. Frente de Luta por Moradia Digna nesses e fazendo valer a validade de suas análises.
Realizadas periodicamente e deslocando-se eventos ganhou maior importância. (iii) a cidade da informalidade - reunindo
de um bairro a outro, de uma comunidade a o conjunto de áreas de ocupação e
outra, estes eventos trouxeram consigo uma Além disso, justificam a realização de comunidades que resistem nas diferentes
maneira mais fluida de ocorrer, agregando uma prática intensiva de formação em partes da cidade. Tudo isto sem esquecer
novos participantes a cada edição e planejamento urbano: a trajetória recente que essa tríade de cidades corresponde a
disseminando o debate em torno do direito de regulamentação de instrumentos uma só, constituindo-se numa totalidade
à cidade e à moradia. que favorecem o setor imobiliário, os intrinsicamente interligada.
programas de desenvolvimento urbano
Atualmente, os envolvidos passaram contratados pelo município, os processos de
a compor a plenária do Plano Diretor, planejamento em curso e a implementação
reunindo-se periodicamente na UFC, das Zonas Especiais de Interesse Social e a
visando fortalecer o campo popular com futura revisão do Plano Diretor. Tudo isto
vistas aos futuros embates com o Estado e o diante de interferência cada vez maior do
setor privado. setor da construção civil na condução da
política urbana e habitacional, indicando FIGURA 6
Plano de aulas do curso “ A produção capitalista da
que os mecanismos que favorecem a
cidade: poderes, conflitos e resistências”
valorização imobiliária e que promovem a
segregação espacial tendem a predominar Produção: Breno Holanda.
em detrimento da inclusão dos mais pobres.
94 Além dos Muros da Universidade: Planejamento Urbano e Regional e Extensão Universitária

FIGURA 9: Apresentação de resultados pelos alunos do


Titanzinho/Serviuz. Foto: Valeria Pinheiro.

FIGURA 10: Processo de planejamento popular na


comunidade do Titanzinho. Foto: Valeria Pinheiro.

Para cada uma delas, buscou-se identificar A realização dessa prática trouxe um O processo de desenvolvimento das práticas
um quadro de dinâmicas socioespaciais que enorme desafio associado à conjuntura em de formação, a partir das questões de pesquisa
retratasse as disparidades e os conflitos que se encontram as práticas de Extensão e dos conteúdos trabalhados no Lehab, trouxe
territoriais entre os agentes que comandam vinculadas aos movimentos sociais. Na para os pesquisadores um resultado maior em
as três cidades. No caso, a contraposição ausência de recursos financeiros partiu- termos de satisfação. Ao longo dos debates,
desses processos reveladores da cidade real se para a organização de campanha de foram abertas possibilidades para análises
frente ao que a cidade legal, presente no financiamento coletivo, revelando a difícil críticas, assim como oportunidades para
zoneamento urbano e ambiental dos planos situação em que se encontra a universidade esclarecer as condições de desenvolvimento
diretores, contribui sobremaneira com a pública para conduzir atividades desse tipo. desigual em suas causas e efeitos, derivando
melhor compreensão do descompasso Por outro lado, a estratégia de captação em surpreendentes constatações.
entre a cidade existente e a desejada, e das adotada demonstrou a presença de um
oposições entre a cidade precária e a oficial. amplo leque de colaboradores oriundos de Além disso, vários têm sido os depoimentos de
muitas cidades no Brasil. integrantes de instituições governamentais e do
Ao longo de dois meses, foram realizadas Ministério Público indicando que a participação
aulas noturnas às terças e quintas feiras As falas de seus participantes a cada encontro, dos representantes dos movimentos e de
no Departamento de Arquitetura e demonstrando a melhor compreensão do comunidades em processos de planejamento
Urbanismo da UFC, onde foi adotado como contexto em que se inserem no referente tornou-se mais qualificada na análise crítica
procedimento metodológico basilar a aos problemas debatidos, já poderiam da situação, na capacidade de argumentação,
discussão dos processos para apreender as ser apontadas como indicadores de suas na exposição de seus pontos de vista e na
diferentes visões, bem como apresentar as pertinência e relevância. Progressivamente proposição de alternativas com vistas às suas
bases de dados que contribuem para melhor constatou-se a apreensão de recursos reivindicações.
reconhecer as respectivas intensidades, metodológicos como os mapeamentos, a
gravidades, temporalidades, espacialidades abordagem cronológica, o quadro de atores A recente realização de processo de
e territorialidades. Some-se a isso a envolvidos, a formulação de estratégias de planejamento popular como estratégia de
realização de aulas de campo, onde se pode ação para o enfrentamento aos desmandos e resistência às tentativas de remoção da
discutir uma situação concreta em que os o combate às desigualdades. Comunidade do Titanzinho, culminando
diferentes agentes da produção do espaço com a revisão do projeto pela prefeitura
urbano presentes na paisagem revelam seus municipal, pode ser apontado como um
papeis e interesses, seus conflitos e suas resultado concreto e positivo dessa prática.
parcerias (Figuras 7 e 8). Tudo isto como desdobramento por meio
da atividade prática desenvolvida por três
moradores da área que fizeram o curso
e que enxergaram ameaças e riscos na
(pág. anterior)
compreensão das práticas espaciais dos
FIGURA 7: Aula de abertura com a prof. Ermínia Maricato.
agentes envolvidos, assim como dos seus
Foto: Sara Vieira Rosa. interesses que vieram a ser desvelados
(Figuras 9 e 10).
FIGURA 8: Aulas do curso realizado no Departamento de
Arquitetura da UFC. Foto: Sara Vieira Rosa.
96 Além dos Muros da Universidade: Planejamento Urbano e Regional e Extensão Universitária capítulo 5 Práticas de Pesquisa-Ação e Extensão em Fortaleza: entre conflitos e resistências 97

ii. A Extensão voltada para Assessoria Da mesma forma, verificava-se a intensa regra, essas atividades culminaram com voltado para debater o alcance social das
Técnica em Planejamento Urbano perda de prestígio por parte da Secretaria de debates e audiências públicas convocadas ZEIS como instrumento capaz de confrontar
Desenvolvimento Habitacional (Habitafor), pela Câmara de Vereadores de Fortaleza a especulação e promover a regularização
Um segundo ramo de ações de Extensão dada a redução de investimentos em ou pelo Ministério Público, quando as fundiária, e aberto à participação dos atores
realizadas no Lehab diz respeito à assessoria moradia pelo governo federal e a progressiva propostas formuladas pela Prefeitura foram diretamente envolvidos.
técnica em planejamento urbano para ampliação do poder decisório do setor contestadas.
movimentos e comunidades - verdadeira privado na condução dos programas Ao longo dos primeiros anos de sua
prática complementar e indissociável à habitacionais. Essa situação ocorria tanto Nesse sentido, será discutida nesta seção a existência, as ZEIS permaneceram
assessoria técnica em habitação de interesse na urbanização de favelas, por meio de assessoria técnica realizada junto às dez ZEIS engavetadas e esquecidas. Algumas
social. Ao longo dos últimos cinco anos foram grandes obras de infraestrutura urbana, prioritárias pela Prefeitura do Município de tentativas ainda foram realizadas, mas
realizadas algumas ações dessa natureza em como na provisão habitacional através de Fortaleza (PMF), a qual se deu em dois tempos: pouco se avançou. Tal retrocesso pode
situações em que o conflito estava posto entre gigantescos empreendimentos residenciais. primeiro, acompanhando a questão junto ao ser diretamente associado ao período em
comunidades e o Estado em suas diferentes grupo instituído em 2014 pela PMF para a que os projetos urbanos relacionados aos
esferas de governo e em seus vários setores. Por meio da atuação nas diferentes formulação de relatório sobre o tema, sob a megaeventos preponderaram sobre o
Evidentemente, nestes mesmos processos se instâncias municipais em que as questões coordenação do Instituto de Planejamento processo de planejamento, evidenciando
reconhece a presença do setor imobiliário e da urbana e habitacional eram debatidas, foi de Fortaleza, composto apenas por técnicos uma série de remoções e ameaças,
construção civil, cujas pretensões interferem possível melhor perceber a conjuntura local, de diversos órgãos municipais; segundo, principalmente por conta de obras de
diretamente na condução dos mesmos e na depreendendo, por vezes, que a aparente como representação da UFC na Comissão mobilidade urbana e grandes equipamentos
tomada de decisão. dissonância entre os setores do urbanismo e das ZEIS, a qual foi nomeada pelo prefeito, turísticos.
do planejamento urbano municipal, findavam em 2016, tendo como meta a elaboração
Ao incidir na formulação e na implementação por convergir para o lado mais favorável de termos de referência para a criação dos Frente às pressões das comunidades
de políticas públicas urbana e habitacional, à parceria entre a prefeitura municipal e a conselhos gestores e para a contratação organizadas dessas zonas especiais, a
foi possível constatar uma série de incorporação imobiliária. dos Planos Integrados de Regularização prefeitura veio a constituir um grupo
contradições entre os órgãos municipais Fundiária (PIRFs) das ZEIS. interdepartamental, responsável por definir
diretamente envolvidos. Inicialmente, eram Frente a essa situação, a assessoria prestada uma agenda de trabalho e debates para
visíveis as contraposições entre a Secretaria teve como focos principais o atendimento Tratava-se da retomada de experiência formulação de relatório. Naquele momento,
de Urbanismo e Meio Ambiente (Seuma) e às comunidades ameaçadas de remoção exitosa quando da elaboração do Plano quando o Iplanfor havia sido recriado,
o Instituto Municipal de Planejamento de e as negociações junto às instituições Diretor Participativo (PDP) de Fortaleza, percebia-se que o Departamento de
Fortaleza (Iplanfor) na disputa pelos rumos do governamentais, sempre com o intuito de aprovado em 2009, quando se conseguiu Articulação Institucional (DIART) apostava
planejamento urbano. Por um lado, a Seuma evitar o deslocamento involuntário para incluir no mesmo um conjunto de 45 ZEIS neste instrumento no sentido de monstrar
concentrava esforços na regulamentação de periferias distantes. Todavia, algumas do tipo Favela; 65 ZEIS do tipo conjunto a sua capacidade de promover a integração
instrumentos favoráveis ao setor imobiliário, ações associadas à revisão de leis habitacional precário; e 37 ZEIS vazios entre as diferentes secretarias. Da mesma
indutores do desenvolvimento urbano, complementares do Plano Diretor, como destinadas ao reassentamento de famílias forma, ao promover a realização das atividades
inclusive revendo a Lei de Uso e Ocupação do a Lei de Uso e Ocupação do Solo (Luos), removidas ou para atender ao crescente com o acompanhamento das comunidades e
Solo. Por outro, o Iplanfor tratava de conduzir a regulamentação de Instrumentos de déficit habitacional. No caso, vale lembrar de seus assessores, o Iplanfor revelava uma
um lento e descontinuado debate em torno Indução do Desenvolvimento e Valorização das atividades de formação e assessoria condição dissonante das demais secretarias
da regulamentação e implementação das Imobiliária e as Zonas Especiais de Interesse conduzidos pelo Cearah Periferia, por meio municipais, via de regra avessas ao debate e
Zonas Especiais de Interesse Social. Social obtiveram maior impacto. Via de de um Encontro de Comunidades, em 2006, à participação da sociedade civil. Percebia-
98 Além dos Muros da Universidade: Planejamento Urbano e Regional e Extensão Universitária capítulo 5 Práticas de Pesquisa-Ação e Extensão em Fortaleza: entre conflitos e resistências 99

se o seu propósito de que o instrumento Ao acompanhar a realização desses interesses do setor privado em resgatá-las A finalização dos relatórios pode ser
viesse a ser implementado, reconhecendo a relatórios, debatendo seus conteúdos, progressivamente. Fazia parte do Plano reconhecida como experiência das mais
sua potencialidade de inclusão social. Vale obteve-se como resultado o fortalecimento Diretor de Fortaleza de 2009 um artigo que positivas tendo em vista que, apesar dos
lembrar que, por meio dessa atividade, o dos representantes das comunidades, garantia que nos cinco anos posteriores posicionamentos contrários dos agentes
Iplanfor tomou conhecimento da existência que aos poucos e progressivamente se à sua aprovação, o resgate a cada ano de envolvidos, era possível reconhecer a
do Plano Local Habitacional de Interesse apropriaram de seus conteúdos e se 5% das ZEIS Vazios, desde que o município construção de acordos na sua redação
Social de Fortaleza, finalizado em 2012, reconheceram como grupo. Mesmo para os não as utilizasse para os propósitos a que final, esclarecendo-se a presença de
porém esquecido pela gestão municipal, técnicos do município, percebia-se que esses as mesmas se destinavam. Além disso, foi opiniões adversas e garantindo-se a sua
tendo em vista o seu foco na definição de trabalhos significavam uma oportunidade abordada a perda de vazios inseridos nas continuidade para uma segunda etapa.
estratégias para a urbanização de favelas. para se apropriar de informações referentes ZEIS Favela estabelecida em lei municipal Todavia, aguardou-se por mais de um ano a
aos assentamentos urbanos precários aprovada em 2012, o que retirou destas ZEIS convocação da comissão responsável, a qual
Contudo, era possível perceber uma postura presentes no Plano Local Habitacional de a possibilidade de terem nos seus territórios discutiria a criação dos conselhos gestores,
dúbia e contraditória dos gestores do Interesse Social de Fortaleza (PLHISFor). a sua própria alternativa de solução a elaboração dos planos integrados
Iplanfor, visto que nas reuniões dos conselhos Contudo, as mesmas não tinham o grau de em caso de necessidade de áreas para de regularização fundiária e os fundos
municipais os mesmos mantinham-se aprofundamento necessário para estudos reassentamento e/ou para equipamentos necessários, culminando com a elaboração
como parte de um bloco, sempre votando particulares e específicos. sociais. dos termos de referência voltados para a
com gestores visivelmente atrelados aos implementação das ZEIS.
interesses do setor imobiliário. Por outro lado, sob a influência de artigos da Neste sentido, constatou-se a tentativa
Lei do Plano Diretor de Fortaleza, o Iplanfor por parte da Seuma de liberar todas as A segunda fase transcorreu de maneira
Frente a essa situação, destacam-se buscava condicionar a implementação das ZEIS Vazios, dado que em 2014 já havia menos harmônica que a primeira.
como objetivos da assessoria: defender a ZEIS à realização de Operações Urbanas passado cinco anos e nenhum metro Desde a composição da comissão, era
implementação das ZEIS como mecanismo Consorciadas, tidas como mecanismos quadrado de ZEIS vazio havia sido utilizado possível reconhecer as dificuldades para
de combate às desigualdades e às remoções, de captação de recursos financeiros pelo para a produção habitacional. Para tanto, a sua condução, dada a presença de
capaz de promover regularização fundiária; município para a realização de melhorias a secretaria arguiu a Procuradoria Geral representantes de outras instituições
conter a especulação, garantir a gestão na cidade. Afinal, a maior parte das zonas do Município sobre a possibilidade de municipais envolvidos com os instrumentos
democrática e participativa; promover a especiais encontram-se em áreas valorizadas revogar o instrumento, habilitando todas as vinculados à financeirização do
discussão sobre a regulamentação das e de interesse do setor imobiliário. Contudo, áreas para empreendimentos imobiliários. desenvolvimento urbano e ideologicamente
ZEIS, contrapondo-as a outros mecanismos apesar de ressalvas dos órgãos municipais, Não fosse a manifestação pública de avessos ao direito à cidade.
voltados à valorização imobiliária e à atração ao final do processo ficou reconhecida assessorias e movimentos contrários a este
de investimentos privados, como as OUCs, a diferença dos objetivos de ambos os procedimento, o mesmo teria sido efetivado, O processo conflituoso foi marcado por
em detrimento das comunidades pobres; instrumentos visto que os objetivos das desmontando toda uma perspectiva de áreas confrontos desde a discussão dos conteúdos
definir os procedimentos voltados para a operações tenderiam a prevalecer sobre os destinadas para o reassentamento. Buscou- dos termos de referência às apresentações
criação dos conselhos, a garantia de recursos das Zonas Especiais de Interesse Social. se, inclusive, incluir novas áreas da cidade sobre os instrumentos da política urbana
para a sua implementação e as condições como ZEIS Vazios, de modo a recuperar o local. Por vezes, percebia-se que a finalização
para a elaboração dos Planos Integrados de O debate em torno das ZEIS Vazios, que estoque perdido nos cinco anos posteriores dos trabalhos estava ameaçada diante do
Regularização Fundiária. vinham sendo progressivamente suprimidas, à aprovação do PDP, assim como dos vazios conflito entre representantes do campo
também emergiu, evidenciando-se os presentes nas ZEIS Favela. institucional e do campo popular.
100 Além dos Muros da Universidade: Planejamento Urbano e Regional e Extensão Universitária capítulo 5 Práticas de Pesquisa-Ação e Extensão em Fortaleza: entre conflitos e resistências 101

Vale destacar a inclusão de uma décima desde a sua criação. Além disso, diante de um Contudo, quando publicado o Diário Oficial, ZEIS do Serviluz, onde temos presenciado
ZEIS, devido à tentativa de remoção da universo de mais de 856 assentamentos urbanos percebeu-se o verdadeiro “golpe” do toda uma série de desmandos por parte da
comunidade Vila Vicentina. Diante de ameaça precários, tratava-se de pequeno grupo. município ao retirar a representação das gestão municipal.
de despejo de 42 famílias de um conjunto universidades dos conselhos, substituída
de casas reconhecidas como ZEIS, houve a Ao final, foram elaborados os termos de referência por vereadores. Estes passariam a ter Atualmente os Planos Integrados de
possibilidade de debate e inclusão desse para a criação dos Conselhos Gestores, inclusive no processo de elaboração dos PIRFs a Regularização Fundiária das dez ZEIS
assentamento no conjunto de prioridades. determinando critérios para a sua composição. oportunidade de incidir diretamente na sua prioritárias encontram-se em andamento.
Depois da discussão do tema no Conselho Estabeleceram-se os conteúdos dos PIRFs realização, podendo inclusive capitalizar Alguns inclusive já finalizados, aguardando
Municipal de Habitação Popular, de audiências conforme pontuavam as diretrizes do Plano politicamente em cima dos resultados, assim os pareceres da equipe técnica do Iplanfor
públicas e da elaboração de três projetos de Diretor. Foi ainda definida a inclusão de recursos como comprometer a sua condução. que acompanhou os serviços. Problemas
tombamento, a Vila foi finalmente incluída no orçamento municipal para a elaboração dos dez referentes ao tempo insuficiente para
como ZEIS a ser implementada. PIRFs, acompanhados pela equipe de gestores Fato é que depois de todo o desgaste, a realização têm sido recorrentemente
municipais. Considerando o acompanhamento a prefeitura repassou a elaboração mencionados. O grande porte de algumas
Durante as discussões, também foi debatida de representantes das comunidades ao longo dos PIRFs para equipes de professores das ZEIS prioritárias, abrangendo mais
a possibilidade de eleger uma das ZEIS como de toda a discussão dos TRs na comissão, quase das universidades, contratados como de um bairro, assim como o grau de
projeto piloto, a partir do qual seriam definidos os todas as ZEIS passaram a contar com lideranças consultores, ainda que os mesmos não organização social também são pontos a
procedimentos para as demais. Todavia, advogou- com amplos conhecimentos sobre o alcance, possuíssem qualquer experiência na serem considerados como fragilidades e
se pela realização de todas elas simultaneamente, a finalidade e os conteúdos deste instrumento condução de processos similares. Além ameaças ao bom andamento dos serviços.
tendo em vista que já se passaram dez anos (Figura 11). disso, o prazo para a realização dos A falta de acesso às informações da própria
serviços, inicialmente previsto para vinte prefeitura para as consultorias também foi
e quatro meses, foi reduzido para apenas relatada. Estima-se que no futuro próximo,
FIGURA 11: Mapa das ZEIS
quatro meses, com possível aditamento todo esse material possa vir a ser avaliado,
com destaque para as ZEIS
prioritárias
de mais dois meses em caso de não aguardando-se que o andamento dos
cumprimento da totalidade dos trabalhos. processos e a sua não implementação
Produção: Sara Vieira Rosa. Realce ainda para a supressão das salas de não venham a comprometer o alcance do
situação que estariam presentes nas ZEIS instrumento, de modo a desacreditá-lo.
como mecanismos que viabilizariam um
acompanhamento e discussão permanente Vale aqui ressaltar os resultados positivos
das proposições pelos moradores, o que recém obtidos dessas práticas, como o
facilitaria a maior adesão dos mesmos ao que passou a ocorrer na Comunidade do
processo de planejamento em curso. Titanzinho. Situada entre a ZEIS do Serviluz
e o Terminal Turístico de Passageiros, a
Com o contragolpe, as assessorias técnicas, comunidade passou a ser ameaçada de
que tomavam parte da Frente de Luta por remoção por conta de um programa de
Moradia buscaram se inserir nos Conselhos desenvolvimento urbano aprovado em 2012
como representantes legais. No caso do pela PMF. Em seu lugar seria construída
Lehab, assumimos a vaga no Conselho da uma enorme praça de acolhimento aos
turistas, alegando-se que o assentamento se
enquadraria como área de risco
102 Além dos Muros da Universidade: Planejamento Urbano e Regional e Extensão Universitária capítulo 5 Práticas de Pesquisa-Ação e Extensão em Fortaleza: entre conflitos e resistências 103

Frente aos prenúncios de desterritorialização, Diante desse problema, representantes QUAIS DESAFIOS NORTEIAM NOSSAS Afinal, diante da implementação de grandes
alguns de seus moradores partiram para a e apoiadores buscaram suporte para a PRÁTICAS? QUE QUESTÕES PODEM SER projetos urbanos e da forma como os
realização de um processo de planejamento realização de seu Plano Popular. Graças à ENUNCIADAS? processos de planejamento urbano vêm
popular, apresentando-se como um alento, colaboração de pesquisadores e professores sendo conduzidas, acompanhar as ações
verdadeira luz no final do túnel. Ainda militantes, foram realizadas oficinas e A partir das atividades de Extensão, em governamentais significa trazer à tona as
por ocasião das discussões sobre as ZEIS, discussões de maneira coordenada, sempre especial aquelas que foram relatadas na aberrações presenciadas nessas arenas de
chamava atenção a não inclusão dessa com o objetivo de fortalecer a comunidade seção anterior, pretende-se nesta última debate. Além disso, é fundamental avaliar
comunidade como uma das prioritárias. Mais em sua luta para permanecer naquele parte apontar um quadro de desafios frente seus impactos, desvelar seus propósitos e
ainda, realce para as atividades culturais que setor. Fato é que a comunidade logrou aos quais nos colocamos como professor- identificar os agentes envolvidos, sejam eles
têm promovido nos últimos anos uma maior êxito, conseguindo evitar a sua remoção e pesquisador-extensionista atuando junto beneficiários ou negativamente atingidos.
aproximação e interação dos grupos de garantindo a sua permanência naquele setor, a um laboratório que visa conduzir este
juventude com a universidade, derivando na fazendo valer o que Wehmann denomina caminho plural e diverso. Assim, a atuação passou a se voltar em
intensa produção artística, na ocupação dos como o direito de habitar a paisagem.5 defesa do direito à cidade e no combate
espaços, no reconhecimento de seus direitos Acredito que seja relevante compartilhar à exclusão territorial. Contudo, tendo
e na consolidação de territórios populares Atualmente, o processo se dissemina essas constatações de modo a contribuir em vista os desequilíbrios presentes na
historicamente construídos. enquanto prática, atraindo outros com outros grupos de universidades públicas composição dessas instâncias de controle
movimentos atuantes ao redor. Dentre seus ou privadas, assim como com coletivos que social, a participação nos mesmos nos leva
Diante das ameaças de despejo, foi feita desdobramentos é possível mencionar: atuem como assessoria técnica voltadas ao à contraposição às práticas de supressão
denúncia das pressões sofridas pela o questionamento das condições de combate às desigualdades socioespaciais. territorial de comunidades, inclusive à sua
Secretaria de Desenvolvimento Habitacional reassentamento ofertadas pelos órgãos denúncia.
de Fortaleza junto à Promotoria de Conflitos governamentais, a busca pela construção A incidência na formulação de políticas
Fundiários do Ministério Público do Ceará. de cartografia social reveladora de suas públicas associadas ao planejamento urbano Contudo, ainda que tenhamos obtido alguns
Em audiência pública, o Lehab atuou como afetividades com o lugar – espaço vivido e habitacional se coloca como um primeiro avanços, faz-se necessário melhor refletir
assessoria, apresentando os problemas -, a identificação e valorização de práticas desafio. Incidir significaria contribuir para a sua sobre a permanência nesses espaços de
detectados no projeto, considerando os de economia solidária. Tudo isto colocando melhoria, inclusive formulando proposições? debate, tendo em vista as suas composições
impactos negativos a que seriam submetidos a coletividade e diversidade inerentes à Incidir para que as mesmas não sejam extintas? e orientações, cada vez mais avessas à
os moradores em caso de remoção e comunidade como pilares para a resistência garantia de direitos humanos e vinculadas
reassentamento no conjunto proposto pela e a esperança. Inicialmente, por meio da condição de aos desmandos do Estado e do setor
Habitafor. Além disso, conforme apontou representante da UFC no Conselho Municipal imobiliário.
o geólogo Jeovah Meireles, questionou- de Habitação Popular (Comhap), na Comissão
se a alegação da condição de risco da Permanente de Acompanhamento do Plano Um segundo desafio diz respeito à
comunidade feita pela secretaria, abrindo-se Diretor (CPPD), ou mesmo na Comissão das composição de frentes com movimentos
a possibilidade de modificação do projeto, ZEIS, nossas práticas caminham no sentido sociais, comunidades e coletivos,
desde que o financiador do projeto viesse a de realizar um monitoramento diante das contribuindo com o fortalecimento e
permitir. intervenções propostas pelo município, garantindo a autonomia de cada um de
assim como de disseminar a informação até seus componentes. Afinal, a junção entre o
então restrita à quatro paredes. conhecimento científico e o saber popular
5. WEHMANN, H. E. (2019). A paisagem habitada: o reconhecimento da experiência estética como direito à cidade. Tese de
Doutorado. São Paulo: FAUUSP.
104 Além dos Muros da Universidade: Planejamento Urbano e Regional e Extensão Universitária

não é das mais fáceis. Tudo isso, numa


conjuntura de extrema desigualdade e
desequilíbrio na composição de forças
entre as comunidades frente às instituições
governamentais e seus apoiadores, dentre
os quais a grande imprensa e algumas Um quarto desafio a ser vencido diz respeito
entidades profissionais. à obtenção de informações relacionadas aos
processos estudados comprovando as nossas
Com isso, a passagem da condição de hipóteses. Afinal, desde que passamos a
pesquisador à de componente da Frente publicamente apresentar um posicionamento
de Luta por Moradia Digna tem nos levado contrário às ações do município, deixando
a convidar outros coletivos, entidades e claro nosso olhar crítico, algumas portas se
assessorias técnicas, dada a dimensão e fecharam e várias possibilidades de diálogo
a recorrência dos problemas detectados. foram abruptamente interrompidas!
Nesse sentido, a realização de atividades,
como os encontros de comunidades e as Da mesma forma, as entrevistas com
assembleias populares da cidade voltados determinados agentes públicos já não são
para compartilhar problemas a serem obtidas, restringindo-se a questionamentos
enfrentados, tornou-se imprescindível. em audiências públicas. Praticamente nos
Sempre partindo da reflexão sobre as últimos cinco anos, antes do envio à Câmara
questões a serem enfrentadas de modo Municipal de Vereadores, a participação nos
a refletir sobre a possível concepção de processos de planejamento e nas discussões
soluções, o delineamento de estratégias de referentes aos grandes projetos urbanos só
ação e a busca por novos parceiros. ocorrem através de audiências convocadas
pelo Ministério Público ou por parlamentares
Disto se desdobra um terceiro desafio: a comprometidos com as questões do direito
necessidade de imprimir maior rapidez e à cidade. Da mesma forma, a obtenção de
visibilidade na disseminação das informações qualquer informação passou a requerer a
relacionadas aos resultados das práticas de abertura de processos apoiados na Lei de
pesquisa-ação, agilizando a sua veiculação e Acesso à Informação!
abrindo possibilidades de debates.
Atender às demandas pautadas pela
FIGURA 12: Webserie Cartas urbanas apresentando
No caso, para além de publicações conjuntura local, na maneira como novos
resultados das pesquisas. Fonte: Nigéria.
acadêmicas, verifica-se a necessidade de processos de planejamento, programas
difundir os resultados obtidos por meio FIGURA 13: Rodas de conversa no Grande Serviluz sobre e grandes intervenções são reconhecidas
de mídias sociais, assim como através de grandes projetos urbanos. Fonte: Sara Vieira Rosa. como novas ameaças de violação de direitos
eventos e debates. A webserie Cartas também tem sido um amplo desafio que
Urbanas, as postagens no perfil do facebook norteia nossas práticas de Extensão.
direitoacidadefortaleza e no site do Lehab
- www.lehab.ufc.br/wordpress/ -, assim Afinal, ao tomarmos parte de articulações
como as rodas de conversa, os diálogos de FIGURA 14: Diálogos sobre as remoções, contrapondo estudos locais, somos compelidos a assumir
pesquisa e as audiências públicas podem ser do Lehab e de outros pesquisadores. Fonte: Breno Holanda. demandas que em algumas situações
mencionados como tentativas para vencer
esse desafio (figuras 12, 13, 14 e 15). FIGURA 15: Audiência pública para denunciar o problema das
remoções forçadas em Fortaleza. Fonte: Breno Holanda.
106 Além dos Muros da Universidade: Planejamento Urbano e Regional e Extensão Universitária capítulo 5 Práticas de Pesquisa-Ação e Extensão em Fortaleza: entre conflitos e resistências 107

extrapolam nossas capacidades. Por vezes, Mais recentemente, diante da onda de Também se coloca como desafio a adoção Todavia tal crescimento nos impele a mais
as ações não terminam, como no caso da violência que permeia Fortaleza por todos dos resultados de práticas de pesquisa-ação um desafio, qual seja a captação de recursos!
assessoria técnica para as comunidades ZEIS as suas frentes, temos sido chamados como temáticas para o desenvolvimento Como ir atrás de financiamento para realizar
prioritárias. Esta teve apoio da Fundação a debater com grupos de pesquisa que de projeto no atelier, aproximando os as nossas práticas de Extensão? Diante da
Ford por dezoito meses, finalizando-se em estudam a violência na cidade, apresentando alunos da realidade local e das questões redução do orçamento pelas instituições
meados de 2015, mas ainda hoje permanece uma leitura da estruturação da cidade e dos contemporâneas. governamentais de fomento, levando a
como atividade interna ao Lehab. Somente processos que explicam suas disparidades universidade a suprimir abruptamente a
para a elaboração de relatórios e de socioespaciais. Afinal, transportar as demandas da Extensão continuidade de bolsas de Extensão, nossas
termos de referência para a contratação para a sala de aula é sem dúvida uma tarefa práticas se tornam cada vez mais vulneráveis.
da elaboração de Planos Integrados de No momento, bate à nossa porta a questão das mais delicadas. Mesmo a construção de Sem dúvida, isto nos leva a repensar os
Regularização Fundiária para dez ZEIS das facções como agentes de remoção, questões a serem alvo de projeto, devem ser procedimentos de nossas práticas visando
foram quatro anos. Depois disso, quando atuando diretamente nos grandes conjuntos tratadas com responsabilidade no sentido não ter que suspendê-las.
pensávamos que esta ação tivesse finalizado, habitacionais, o que nos coloca novos de não estabelecer compromissos que não
passamos a ingressar o Conselho da ZEIS do desafios, inclusive teórico-metodológicos, serão cumpridos. Contudo, é cada vez mais No caso das atividades de Pesquisa e
Serviluz, como integrante da Frente de Luta sobre como estudar e compreender essas necessário que fujamos de questões banais, Extensão em planejamento urbano voltadas
por Moradia. novas questões que definitivamente se de demandas excludentes, de temáticas que para o enfrentamento das desigualdades,
aproximam da questão da moradia. fujam da realidade, que não conduzam ao torna-se cada vez mais inviável a realização
O mesmo pode ser dito em relação à enfrentamento das desigualdades. Devemos de ações apoiadas por instituições
nossa integração à rede de Observatório Também desponta como desafio a ser sim politizar o ensino, sem qualquer receio. governamentais, tendo em vista o papel
de Remoções, provocada pela fala de enfrentado a articulação das práticas de que o Estado tem assumido. Desta forma,
moradores no Encontro de Comunidades, Extensão à realização de pesquisas de Também se destaca como desafio o aumento somos levados a buscar apoio financeiro
que nos sensibilizou a estudar o tema junto pós-graduação, trabalhos de graduação das demandas sociais num momento em que junto às instituições internacionais, às
aos parceiros locais dos escritórios de e de iniciação científica vinculadas às se acirram as desigualdades e se ampliam agências ecumênicas, aos fundos voltados
direitos humanos, da Defensoria Pública e problemáticas locais, buscando garantir a as tensões. Afinal, até onde vai a nossa para a proteção de direitos humanos.
da Promotoria de Conflitos Fundiários, no devolução dos resultados obtidos em campo capacidade de intervir? Como disseminar Mesmo as plataformas de financiamento
sentido de elaborar uma cartografia analítica para aqueles que compõem o campo. e ampliar o papel da Universidade no coletivo passam a ser soluções para garantir
e tentar dimensionar o problema. Afinal são enfrentamento a estas questões? Como as condições mínimas e necessárias para a
dezenas de casos, onde os despejos forçados Contudo reconhecemos que para a realização ampliar o espaço da Extensão nas atividades realização das práticas extensionistas.
e violentos de comunidades foram realizados de práticas de planejamento urbano na curriculares dos nossos cursos de graduação
sem qualquer ação administrativa ou atual conjuntura - especialmente aquelas e como inserir a Extensão na pós-graduação?
judicial. Nesse sentido, passamos a provocar adjetivadas como crítica, radical, conflitual,
os agentes institucionais diretamente insurgente, militante, engajada e popular
envolvidos a apresentarem justificativas e - é fundamental considerar as limitações
procedimentos para as práticas adotadas. do tempo, a necessidade de envolvimento
pleno, formação e consciência politica
daqueles que integram os processos.
108 Além dos Muros da Universidade: Planejamento Urbano e Regional e Extensão Universitária

Por fim, nos resta como derradeiro desafio a capacidade


de lidar com o tempo, que se mostra cada vez mais
limitado, breve e escasso, entendendo que para além das
ações, faz-se necessário compreender o seu alcance e
dimensionar os seus impactos!

Talvez este seja o maior desafio, considerando as


dificuldades do presente. Afinal, diante de práticas que
nos colocam muito além da sala de aula, é fundamental
a garantia do tempo para a reflexão. Uma análise crítica
a respeito do nosso papel como professor, pesquisador e
ator social que visa não apenas transferir conhecimentos,
como também captar os anseios e as necessidades
presentes para além dos muros da universidade.
Co-criando
a cidade com
crianças e
adolescentes
práticas extensionistas
entre o Curiar-EMAU/UFBA

capítulo 6
e dois espaços educativos
de Salvador / BA

Curiar/ UFBA 1

A EXTENSÃO UNIVERSITÁRIA E O CAMPO DO


PLANEJAMENTO URBANO

A Extensão Universitária, no âmbito de Arquitetura


e Urbanismo, vêm assumindo um papel importante
nos processos de produção da cidade, tensionando e
questionando ações do planejamento e das políticas
públicas, e evidenciando a necessidade de estabelecer um
diálogo permanente com outros campos disciplinares. Essa
perspectiva multidisciplinar das atividades extensionistas
está ressaltada nas diretrizes estabelecidas pela Câmara de
Educação Superior do Conselho Nacional de Educação, do
Ministério da Educação, através da Resolução nº 7, de 18
de dezembro de 2018. De acordo com essa deliberação,
destaca-se a importância de uma interação contínua entre
essas práticas e as atividades de Ensino e Pesquisa, sendo
Ocupação 9 de julho, São Paulo, 2019
indicado no Art. 5º:
foto_ Camila D’Ottaviano
112 Além dos Muros da Universidade: Planejamento Urbano e Regional e Extensão Universitária capítulo 6 Co-criando a cidade com crianças e adolescentes 113

I - a interação dialógica da comunidade Em consonância com essa visão e com a a partir da interação com seus moradores, [...] educar e educar-se, na prática da
acadêmica com a sociedade por meio da compreensão da importância da autonomia reforçando a imprescindibilidade da liberdade, é tarefa daqueles que sabem
troca de conhecimentos, da participação estudantil na construção do conhecimento, participação cidadã nas decisões relativas à que pouco sabem – por isto sabem que
e do contato com as questões complexas sabem algo e podem assim chegar a saber
vêm sendo desenvolvidas, desde a cidade e à vida coletiva. Assim, os projetos
contemporâneas presentes no contexto mais – em diálogo com aqueles que, quase
década de 1990, no Brasil, as atividades são elaborados como forma de repensar
social; sempre, pensam que nada sabem, para que
dos Escritórios Modelo de Arquitetura os espaços e as instâncias nos quais o estes, transformando seu pensar que nada
e Urbanismo (EMAUs), que são espaços planejamento urbano é construído, debatido sabem em saber que pouco sabem, possam
II - a formação cidadã dos estudantes,
autogestionados pelos estudantes de forma e efetivado, bem como os interlocutores igualmente saber mais.3
marcada e constituída pela vivência dos
seus conhecimentos, que, de modo horizontal, multidisciplinar e democrática. privilegiados nesse processo.
interprofissional e interdisciplinar, seja A atuação dos Escritórios Modelo ocorre,
valorizada e integrada à matriz curricular; em sua maioria, em lugares nos quais o As atividades desenvolvidas pelos EMAUs são A obra de Paulo Freire constitui-se como
Estado e o planejamento urbano mostram- realizadas a partir de comunidades organizadas referência para o trabalho dos EMAUs, tendo
se ineficazes na melhoria das condições de - seja através de associações de moradores, sido incorporada no Projeto de Orientação
III - a produção de mudanças na própria
instituição superior e nos demais setores da vida da população, buscando contribuir movimentos sociais ou coletivos -, valorizando a Escritórios Modelo de Arquitetura
sociedade, a partir da construção e aplicação para as reivindicações e a consolidação das a atuação em Arquitetura e Urbanismo e Urbanismo (POEMA), orientando os
de conhecimentos, bem como por outras mobilizações coletivas desses locais. enquanto processo, e contribuindo para princípios e as perspectivas de atuação
atividades acadêmicas e sociais; que esse trabalho possibilite a construção na cidade, assim como de uma formação
Esse modelo de atuação é defendido partilhada de conhecimentos e de acadêmica que implique na mobilização e
IV - a articulação entre ensino/extensão/ também pelo Curiar, que é o Escritório autonomia para todos os envolvidos. Nesse na autonomia dos estudantes. Esse caráter
pesquisa, ancorada em processo pedagógico Modelo da Faculdade de Arquitetura da sentido, a Extensão Universitária pode ser do processo de educação discente foi
único, interdisciplinar, político educacional, Universidade Federal da Bahia (UFBA), vista como um espaço potencial para o reforçado na Sessão 9 do XVIII ENANPUR, a
cultural, científico e tecnológico.2 partir do trabalho “A Extensão Universitária
constituído enquanto Programa de Extensão desenvolvimento de experiências dialógicas
Permanente, da Pró-Reitoria de Extensão que têm a perspectiva de pensar e produzir na formação em Arquitetura e Urbanismo
Universitária. O Curiar teve início em 2011, outros modelos de cidade. Esse argumento através dos EMAUs: estudo de caso sobre os
Entre os pontos indicados pela Resolução,
a partir da mobilização de um grupo de associa-se com a prática educativa defendida cinco anos de atuação do Abricó como EMAU
para a concepção e a ação extensionista,
estudantes que desenvolvia, por meio de por Paulo Freire, expressa em seu trabalho da UFRJ”,4 apresentado por membros do
nota-se o valor atribuído a uma formação
uma disciplina de projeto, atividades em acerca da Extensão, no qual evidencia a EMAU Abricó, da Universidade Federal do
integral dos estudantes (e cidadãos),
espaços de moradia popular de Salvador, necessidade da interação entre os saberes Rio de Janeiro.5 Ressaltou-se a importância
que se relaciona com o fortalecimento
surgindo o interesse em atuar de forma acadêmicos e os saberes populares, tendo o dos Escritórios Modelo na articulação entre
de um processo de sensibilização quanto
contínua em áreas similares da capital baiana, entendimento de que Ensino, Pesquisa e Extensão, compreendendo
ao contexto social em que se inserem.
identificando-se, então, com a proposta dos que a mobilização estudantil é somada nesse
Escritórios Modelo. Como outros EMAUs, o processo, tornando a tríade, uma tétrade.
Curiar busca repensar os espaços urbanos

3. FREIRE, P. (1983[1969]). Extensão ou Comunicação? Rio de Janeiro: Paz e Terra, p. 15.


1. Ana Clara Oliveira de Araújo, Davi Lima Bastos, Maria Luiza Freitas Rocha & Mariana Ribeiro Pardo. 4. LESSA, M.E.S; MOUROS, E.S. dos; & FERREIRA, B. G. (2019). A Extensão Universitária na Formação em Arquitetura e Urbanismo
2. BRASIL/MINISTÉRIO DA EDUÇAÇÃO (2018). Resolução no 7, de 18 de dezembro de 2018. Estabelece as Diretrizes para a Extensão através dos EMAUs: estudo de caso sobre os cinco anos de atuação do Abricó como EMAU da UFRJ. In Anais do XVIII
na Educação Superior Brasileira e regimenta o disposto na Meta 12.7 da Lei nº 13.005/2014, que aprova o Plano Nacional de ENANPUR. Natal: ANPUR.
Educação - PNE 2014-2024 e dá outras providências. 5. O capítulo 7, dos mesmos autores, é um desdobramento do artigo apresentado no XVIII ENANPUR. (N.do E.)
114 Além dos Muros da Universidade: Planejamento Urbano e Regional e Extensão Universitária capítulo 6 Co-criando a cidade com crianças e adolescentes 115

No âmbito das atividades desenvolvidas pelo estimulando uma perspectiva coletiva em de uma pedagogia do urbano, contribuindo PENSAR A CIDADE PARA/COM
Curiar, as interações possibilitadas por essa relação à cidade e ao exercício da cidadania. com práticas que possibilitem a garantia de CRIANÇAS E ADOLESCENTES
tétrade foram constituídas, no último ano, A interlocução com esses locais possibilitou a direitos em relação à cidade.
por meio da articulação com dois espaços reflexão acerca da participação das crianças Pensar e produzir cidades mais democráticas
educativos: a Escola Comunitária Nossa e dos adolescentes no planejamento e na A integração do projeto ao PIBIEX e plurais é também, e essencialmente, propor
Senhora de Escada, na região do Subúrbio produção do espaço urbano, que já vinham possibilita refletir ainda sobre o papel da cidades inclusivas para crianças e adolescentes.
Ferroviário de Salvador; e o Centro Municipal sendo debatidas dentro do Escritório Modelo Universidade no contexto em que está No contexto de inserção desses agentes
de Educação Infantil (CMEI) União Boca do em projetos anteriores. inserida, destacando que, através da sociais nos processos de planejamento e
Rio, no bairro da Boca do Rio (Figura 1). Essas Extensão Universitária, é possível também produção dos espaços urbanos é fundamental
instituições, além de incentivarem a autonomia Desse modo, as ações iniciais nesses construir e aplicar conhecimentos que mobilizar uma discussão em torno dos
e a participação de seus estudantes nos espaços foram apresentadas conjuntamente promovam diferentes e potentes mudanças direitos da população infanto-juvenil à cidade,
processos relacionados ao fortalecimento de como um projeto de Extensão através na sociedade, como ressaltado no Art.5º da envolvendo não apenas a garantia dos direitos
suas ações, possuem um viés de mobilização do Programa Institucional de Bolsas de Resolução mencionada anteriormente. Tal básicos - estabelecidos pelo Estatuto da
da comunidade onde estão inseridas, Extensão Universitária (PIBIEX) 2018-2019, função acadêmica foi ponderada durante a Criança e do Adolescente -, como também a
da UFBA, buscando ampliar a discussão Sessão Temática voltada para as atividades participação e a influência nas decisões que
em torno da incorporação da população extensionistas no último ENANPUR, afetam seu cotidiano. Dessa forma, para além
FIGURA 1: Mapa de Salvador, com a localização dos dois
espaços educativos em interlocução com o Curiar
infanto-juvenil nas decisões relacionadas destacando-se o trabalho “O Ornitorrinco de garantir o acesso digno a equipamentos e
aos contextos em que se inserem. Nessa de Papel: universidade, cidade e extensão serviços urbanos, enquanto usuários desses
Elaboração: PARDO, 2019. Base: Google Earth, 2019. perspectiva, a proposição dessa atividade universitária”,7 apresentado por Panizzi, que espaços, é necessário reconhecê-los e
e sua posterior aprovação pelo PIBIEX reforçou em sua fala durante o Encontro “o incorporá-los enquanto agentes de criação e
foram importantes para que a relação entre direito da universidade de ser uma instituição proposição da cidade.
Educação e Cidade - e com as crianças e a frente do seu tempo”.8 Assim sendo, o
os adolescentes -, pudesse ser pautada e projeto desenvolvido pelo Curiar, nos dois Nessa perspectiva, abordando o tema da
reconhecida como necessária para o campo espaços educativos referidos, teve também participação infantil pelo viés da cidadania,
de Arquitetura e Urbanismo na Universidade. a atribuição de atender a essa demanda, Dias e Ferreira pautam que
A inclusão, nas atividades extensionistas, visando contribuir para que a Universidade
[...] é prioritário impulsionar o lugar
de temas vinculados à educação também coloque em prática, cada vez mais, a
das crianças e seu “empoderamento”
foi exposta durante o XVIII ENANPUR com amplitude proposta em seu significado. na sociedade contemporânea. Para a
o trabalho “Vivências, troca de saberes e construção e o exercício da sua cidadania
formação cidadã para o Direito à Cidade: coletiva, entre outros, são critérios básicos:
experiências do projeto Motyrum - UFRN, sua integração em processos participativos e
de Educação Popular em direitos humanos, decisórios da vida urbana, a disponibilidade,
na comunidade do Jacó, em Natal/RN”,6 o uso coletivo e a apropriação dos espaços
considerando a perspectiva de construção públicos urbanos, assim como a identificação
das crianças com tais espaços.9

6. BENTES SOBRINHA, M.D.P.; DUARTE, M.C.de S.; LÉLIS, R.L.S.; & WANDERLEY, M.U. (2019). Vivências, troca de saberes e
formação cidadã para o Direito à Cidade: experiências do projeto Motyrum - UFRN, de Educação Popular em direitos humanos, 7. PANIZZI, W. (2019). O ornitorrinco de papel: universidade, cidade e extensão universitária. In Anais do XVIII ENANPUR. Natal: ANPUR.
na comunidade do Jacó, em Natal/RN. In Anais do XVIII ENANPUR. Natal: ANPUR. 8. O capítulo 04, da mesma autora, é um desdobramento do artigo apresentado no XVIII ENANPUR. (N.do E.)
9. DIAS, M. S. & FERREIRA, B. R. (2015). Espaços públicos e infâncias urbanas: a construção de uma cidadania contemporânea.
Revista Brasileira de Estudos Urbanos e Regionais, Recife, v.17, n.3, p.118-133, p. 128.
116 Além dos Muros da Universidade: Planejamento Urbano e Regional e Extensão Universitária capítulo 6 Co-criando a cidade com crianças e adolescentes 117

Partindo da defesa da infância enquanto agentes enquantos corpos políticos implica Sobre o tema, Araújo ainda acrescenta a Alguns espaços e grupos, dentro e fora do
potência política, criativa e transformadora, em reconhecê-los em dois espaços-tempos necessidade de um esforço e mobilização Brasil, têm refletido e experimentado projetos
é possível articular essa discussão com diferentes - crianças e adolescentes não são coletiva, e aponta que “cada grupo social e ações acerca do tema, possibilitando
as dimensões abordadas pela Sociologia apenas os agentes de transformação do precisa se debruçar sobre o papel que as mapear e construir, ainda que brevemente,
da Infância, que surge como um campo amanhã, como são também os cidadãos do crianças podem desempenhar no meio uma articulação potente entre experiências
de debate acerca do reconhecimento das presente. Valorizar processos de escuta e de social para além do que vem sendo feito. que incorporam e complexificam o debate
crianças enquanto agentes sociais ativos. participação infantil nos debates relativos à A participação das crianças no espaço aqui proposto. Na Espanha, por exemplo, os
Nesse âmbito, Sarmento10 reflete sobre a cidade, reflete em desdobramentos futuros – urbano precisa ser um projeto coletivo para Encontros de Educação em Arquitetura para
invisibilidade dos corpos infantis enquanto que incluem a formação de uma consciência se tornar efetivo”.15 De fato, debater e a Infância e a Juventude reúnem e articulam
atores políticos e aponta que tal invisibilidade política, o (re)conhecimento dos direitos e construir a dimensão da participação infantil interessados nessa discussão, como é o caso
acaba por revelar uma maior afetação e a mobilização de agentes de transformação nas diferentes instâncias da vida cotidiana de grupos como o Chiquitectos, em Madrid, e
vulnerabilidade destes corpos nos contextos do espaço onde vivem –, mas também pode exige uma abordagem multidisciplinar, o Maushaus, em San Sebastián, que propõem
de desigualdades socioespaciais e ausência/ representar mudanças imediatas, já que “o sendo importante a mobilização de variados - através de brincadeiras e aprendizagens -,
não efetivação de políticas públicas. planejamento e a modificação do espaço campos e saberes, não só para pensar um estabelecer diálogos entre a infância e a
urbano, no sentido de tornar a cidade mais projeto coletivo de cidade, como também compreensão dos espaços urbanos. Ambos
[...] considerar a participação das crianças
acolhedora e possível para a criança, também para construir uma agenda urbana em torno projetos ressaltam a importância do exercício
no espaço público exige que tenhamos
em conta a influência das estruturas e se reverte em benefício para o adulto”.13 dos direitos da criança e do adolescente. pleno da cidadania desde a infância.
instituições que as envolvem – sejam elas Talvez possamos nos perguntar o quanto
educativas, econômicas, jurídicas ou sociais de avanço da pauta do direito da criança à
Nesse sentido, defende-se, enquanto No Brasil, um exemplo de aproximação
–, que frequentemente se apresentam, cidade, da sua autonomia e participação, potência, a inserção das capacidades dessa discussão trata-se do projeto
como estruturas desconhecidas e fechadas, depende do campo do urbanismo, como imaginativa e criativa da infância nos Zonzo: investigadores urbanos, que
que funcionam como obstáculos para a forma de propor alterações no contexto espaços de produção, debate e resolução de propõe construir narrativas urbanas não
construção de espaços de participação urbano. Alterações do desenho urbano conflitos urbanos. A inclusão e a participação hegemônicas, junto com crianças residentes
infantil.11 no sentido de possibilitar a retomada dos ativa das crianças e dos adolescentes nas no Morro da Babilônia, no Rio de Janeiro.
espaços públicos pela criança. Se o preço agendas de discussão das políticas públicas O Zonzo se configura como um “dispositivo
para isso for a desaceleração das ruas, a
Outros obstáculos são somados às apontam para possibilidades múltiplas de que pretende estimular a reflexão sobre a
transformação das cidades, ou bairros, em
dificuldades de efetivação da participação enfrentamento das problemáticas urbanas, dialética dos espaços concebidos, vividos
espaços mais acolhedores, menos duros,
infantil, já que, em muitos contextos, as menos contrários à vida (sem esquecer de através de dimensões relativas à liberdade, e percebidos” mobilizando as crianças
crianças são vistas apenas como os “cidadãos árvores e animais), o ganho ultrapassará o imaginação, experimentação e à capacidade para formar um “grupo de investigadores
do futuro”.12 A compreensão desses campo geracional e valerá para todos os de construção coletiva sempre presente na urbanos cientes de seu protagonismo no
indivíduos da sociedade, adultos e crianças.14 infância. território e com domínio de informações
e técnicas para expressar sua experiência
urbana”.16 O projeto ainda dispõe sobre a
10. SARMENTO, M. J. (2015). Uma agenda crítica para os estudos da criança. Currículo Sem Fronteiras, Rio de Janeiro, v.15, n.1, p.31-49, jan./abr. elaboração de metodologias participativas
11. SARMENTO, M. J., FERNANDES, N. & TOMÁS, C. (2007). Políticas Públicas e participação infantil. Educação, Sociedade &
Culturas [online], n.25, p.183-206, p. 190.
12. SARMENTO, FERNANDES & TOMÁS, op.cit, p.188.
13. ARAÚJO, A. L. C. (2017). Algumas ref lexões sobre o direito da criança à cidade e participação em espaços públicos. In Anais do 15. ARAÚJO, op. cit., p. 9.
Seminário Urbanismo na Bahia (urbBA), 7., Salvador: Lugar Comum/UFBA. 16. AZEVEDO, C. & SANT’ANNA, J. (2017). “Zonzo: investigadores urbanos”: um dispositivo de apreensão urbana construído
14. ARAÚJO, op. cit., p. 9. em parceria com crianças residentes no Morro da Babilônia, Rio de Janeiro. In Anais Seminário Urbanismo na Bahia (urbBA), 7.
Salvador: Lugar Comum/UFBA, p. 2.
118 Além dos Muros da Universidade: Planejamento Urbano e Regional e Extensão Universitária capítulo 6 Co-criando a cidade com crianças e adolescentes 119

e pedagogias urbanas, junto a crianças que podem, a partir de aprendizagens e de A proposta de inclusão da discussão e impulsionar uma mobilização coletiva e
experienciam cotidianamente a vida em experiências, complementar conteúdos urbanística para escolas básicas nas atividades integrada na cidade.18 Isso significa pensar a
bairros populares, onde o acesso ao direito à escolares. Essa relação entre escola e do CAU-Br demonstra um interesse de que cidade, o bairro e a rua enquanto territórios
cidade é constatemente violado, implicando cidade - compreendendo as suas diversas esse tema não se restrinja ao público de educativos e espaços potenciais de ação e
na necessidade de pensar caminhos que escalas - tem a potencialidade de gerar Arquitetura e Urbanismo, compreendendo apropriação dessa rede, que é estabelecida
apontem para o (re)conhecimento de mobilizações no âmbito comunitário, pois que a cidade deve ser pensada e produzida principalmente através do diálogo. Sobre essa
direitos e para a potência da manifestação e as redes de afeto, compromisso e troca que por todos os seus usuários. Assim, as relação, Malaguzzi comenta que
mobilização coletiva. são criadas nesses contextos são capazes de pesquisas desenvolvidas por esse projeto
[...] essa espécie de abordagem revela
transformar, em diversos níveis, o cotidiano buscaram integrar conceitos e formatos
[...] durante o ano, as crianças foram dando muito sobre a nossa filosofia e nossos
e o lugar. previamente utilizados para promover esse valores básicos, que incluem os aspectos
pistas dos problemas da Babilônia; falavam
sobre o que precisava melhorar, o que debate com crianças e adolescentes, através interativos e construtivistas, a intensidade dos
não gostavam, o que achavam injusto. A perspectiva de construir materiais que de atividades desenvolvidas pelas escolas, relacionamentos, o espírito de cooperação e
Nos abrimos à escuta, estimulamos essas aproximem crianças e adolescentes do ou por experiências de profissionais desse o esforço individual e coletivo na realização de
conversas e não poderíamos deixar de campo de Arquitetura e Urbanismo tem campo voltadas para a relação entre educação pesquisa. Apreciamos diferentes contextos,
costurar o que era dito a respeito de um importante papel de pensar como essa e cidade. A produção desse material damos uma grande atenção à atividade
questões de direitos humanos, promovendo ainda está em curso, mas aponta também cognitiva individual dentro das interações
relação pode contribuir para a inclusão desses
um debate explícito sobre os direitos e para a importância de uma contribuição sociais e estabelecemos vínculos afetivos.19
agentes nas discussões sobre as cidades,
deveres de todo cidadão, sobretudo os
entendendo que eles são também produtores multidisciplinar para as cidades, incorporando
que moram nos espaços construídos pelos
dos espaços urbanos. Desse modo, a diferentes agentes nesse processo, e ainda A reunião dessas diferentes referências
trabalhadores.17
Pistache Editorial vêm desenvolvendo, potencializando outros instrumentos que contribuiu para pensar e delinear relações
desde 2016, publicações de Arquitetura podem ser criados a partir da criatividade e entre Arquitetura, Urbanismo e Infância,
No processo de reflexão sobre o direito e Urbanismo, com a série Casacadabra, inventividade de crianças e adolescentes. tendo a Extensão Universitária como espaço
das crianças e dos adolescentes à cidade, para o público infantil, entendendo que a de experimentação e atuação, através do
somam-se outras dimensões que conduzem aprendizagem de conceitos relacionados Nesse sentido, é interessante conhecer a Curiar, e entendendo também a necessidade
o debate para um espaço fundamental: a a esses campos possibilitam a concepção experiência de Reggio Emilia, na Itália, que de compreensão e comprometimento
escola, que tem um papel importante na de uma consciência crítica. Em 2019, em tem como principal referência a Pedagogia com a realidade socioespacial de crianças
construção da cidadania e na mobilização parceria com o Conselho de Arquitetura da Escuta, desenvolvida pelo educador Loris e adolescentes que vivem em contextos
desses agentes sociais. Educação e Cidade e Urbanismo (CAU-Br), a editora realizou Malaguzzi. Essa proposta metodológica populares na cidade de Salvador. Essa
são temas que podem - e devem - caminhar uma pesquisa que envolveu professores e busca dialogar com as diferentes e múltiplas conjuntura está refletida em experiências
paralela e transversalmente. Ao mesmo coordenadores pedagógicos de educação linguagens da infância, relacionando-se com desenvolvidas nos dois espaços educativos
tempo em que a escola é um lugar potente básica, além de arquitetos-urbanistas, para os contextos sociais, políticos e territoriais mencionados, buscando construir
para abraçar discussões e reflexões sobre compreender como a discussão da cidade onde ela se insere, propondo articular crianças, possibilidades de articulação entre o
a cidade, os espaços urbanos também tem sido construída nas escolas e elaborar, educadores, pais e comunidade, para pensar planejamento e a produção da cidade, com
posteriormente, materiais paradidáticos os agentes que permeiam esses locais.
para o ensino fundamental.

18. MALAGUZZI, L. (1999). Histórias, Ideias e Filosofia Básica. In: C. EDWARDS, L. GANDINI & G. FORMAN. As Cem Linguagens da
17. AZEVEDO & SANT’ANNA, op. cit., p. 11. Criança: A Abordagem de Reggio Emilia na Educação da Primeira Infância. Porto Alegre: ARTMED, p.59-104.
19. MALAGUZZI, op.cit., p. 76.
120 Além dos Muros da Universidade: Planejamento Urbano e Regional e Extensão Universitária capítulo 6 Co-criando a cidade com crianças e adolescentes 121

ESQUEMA 1
Eixos temáticos
do projeto AUÊ

Fonte: ARAÚJO et. al., 2018


PRÁTICAS EXTENSIONISTAS COM educativos, dada no âmbito da Extensão
CRIANÇAS E ADOLESCENTES Universitária, incorpora uma ampliação do
campo do planejamento urbano para outras
FIGURA 2: Roda de
A aproximação do Curiar com a Escola práticas mais sensíveis e plurais, capazes
conversa sobre o tema
Comunitária Nossa Senhora de Escada e o de englobar pautas de diferentes sujeitos,
de cultura, com a
CMEI União Boca do Rio propôs a construção fortalecendo a potência dos vínculos sociais. participação do Espaço
de planejamentos colaborativos junto Cultural Acervo na Laje.
às crianças, adolescentes, coordenações O projeto de Extensão AUÊ (Articulações
pedagógicas, funcionários e outras pessoas Urbanas em Escada) apresenta-se como um Fonte: Acervo Projeto AUÊ

que transitam por essas instituições, desdobramento de um plano colaborativo,


refletindo sobre os espaços que ocupam e de mesmo nome, desenvolvido entre Como forma de instrumentalizar e envolver
a relação com o entorno urbano. Os locais estudantes de graduação da disciplina de os jovens nas temáticas relacionadas aos
de inserção na cidade são, respectivamente: Atelier V - Planejamento Urbano e Regional, espaços urbanos, e assim entender seus
a localidade de Escada, no Subúrbio no segundo semestre letivo de 2017, em direitos e a possibildiade de reivindicá-
Ferroviário de Salvador, e o bairro da Boca articulação com a Escola Comunitária Nossa los enquanto cidadãos, os eixos temáticos
do Rio, na região da Orla Atlântica. Apesar Senhora de Escada. Após a finalização da foram divididos, inicialmente, em dois tipos
da distância geográfica entre eles, são disciplina, a proposição foi incorporada de ações - teóricas e práticas (Figura 2) -,
configurados como áreas socioeconômicas ao Curiar, buscando dar continuidade às contando com a participação de convidados
populares de Salvador, com mais de 80% da ações propostas e ampliar o diálogo entre externos, que auxiliassem nas discussões e
população autoidentificada como negra e a universidade e os movimentos e agentes nas questões levantadas pelos participantes.
mais de um terço representada por crianças sociais que atuam nesse espaço da cidade. O Outro ponto que se tornou importante
e adolescentes, com idade até 19 anos.20 viés formativo do projeto foi pensado a partir na elaboração do plano colaborativo
de cinco eixos temáticos - meio ambiente, foi a questão da cartografia, que havia
Esses aspectos, somados aos dispositivos de cultura, saúde, mobilidade urbana e criança sido desenvolvida anteriormente com a
violência presentes em contextos similares, e cidade (Esquema 1) -, definidos através coordenação pedagógica da Escola, com a
engendram parcerias e ações dessas do diálogo com a população local e com a participação do Movimento Trem de Ferro, Com relação às ações práticas, foram
escolas, que se apresentam como outras coordenação pedagógica da escola, visando convertendo-se em uma demanda a ser construídas atividades relativas a cada eixo
perspectivas de vida para esses jovens e fortalecer o debate em torno da cidadania incorporada nas atividades teóricas pensadas trabalhado. Para o eixo meio ambiente foi
para a comunidade onde se encontram. e da juventude, com o resgate da memória para cada eixo temático. Na prática, as construído, através de um mutirão, uma
A parceria do Curiar com os dois espaços local e a valorização do patrimônio, das atividades cartográficas foram direcionadas horta para a escola e um jardim no terreno
manifestações e das práticas que ocorrem para um momento independente, em da Igreja Nossa Senhora de Escada (Figura
em Escada e no Subúrbio Ferroviário de formato de oficina, contando com a 3), como demanda dos participantes para
Salvador. apresentação de outras experiências melhorar o espaço de socialização da
de mapeamentos participativos, com comunidade. Nesse eixo, uma consideração
comunicação e linguagem aproximadas importante quanto à intervenção efetiva no
do público infanto-juvenil, facilitando a espaço foi a multiplicação das ações por
20. CONDER - COMPANHIA DE DESENVOLVIMENTO URBANO DO ESTADO DA BAHIA (2016). Painel de informações: dados etapa posterior de criação e construção parte da Escola Comunitária de Escada,
socioeconômicos do município de Salvador por bairros e prefeituras-bairro - Sistema de Informações Geográficas Urbanas do das representações cartográficas dos a partir da articulação com moradores da
Estado da Bahia (INFORMS - Organizador). 5ed. Salvador: CONDER/ INFORMS.
participantes.
122 Além dos Muros da Universidade: Planejamento Urbano e Regional e Extensão Universitária capítulo 6 Co-criando a cidade com crianças e adolescentes 123

FIGURA 3: Mutirão para


construção de uma
horta e um jardim no FIGURA 4: Oficina de
espaço da Igreja e da Fotografia realizada
Escola Comunitária Nossa junto às crianças e
Senhora de Escada. adolescentes da Escola
Comunitária.
Fonte: Acervo Projeto AUÊ
Fonte: Acervo Projeto AUÊ

FIGURA 5: Desenhos produzidos durante a oficina com a


comissão de estudantes do CMEI União Boca do Rio.
localidade, proporcionando a emancipação comunidade, com um estímulo à solidariedade
desse processo. No que se refere ao tema e à colaboração, bem como as possibilidades Fonte: Acervo Curiar

de cultura, foi realizado um dia de oficinas de uma ocupação e utilização mais horizontal
e atividades, visando discutir e valorizar os e democrática do espaço. Além disso,
costumes e tradições locais de Escada, em colocou-se também a importância de garantir A realização dessa atividade demonstrou,
diálogo com outros projetos do Subúrbio uma nova identidade ao espaço, através da de forma mais enfática, a importância do
Ferroviário de Salvador. integração entre os espaços de brincadeira e diálogo com outras áreas disciplinares
aprendizagem, de forma lúdica e criativa. na construção de ações voltadas para a
No decorrer do processo, as produções discussão da cidade com o público infantil.
gráficas e as ferramentas de mídia utilizadas Pensando no diálogo com as crianças, Apesar do Curiar compreender previamente
pelo Curiar despertaram a atenção e a realizar adaptações e reestruturações no foi organizada uma comissão de vinte a possibilidade de que esses processos
curiosidade das crianças e adolescentes da planejamento colaborativo pensado através do estudantes, entre 2 e 5 anos, que participaram sejam modificados pelos participantes e a
Escola Comunitária, levando ao desejo e ao AUÊ, possibilitando avaliações e atualizações, de uma atividade, pensada e estruturada proposta ter sido elaborada para esse grupo
planejamento coletivo de uma série de oficinas a partir de transformações no processo. de maneira dinâmica e acessível, para que específico, o desenvolvimento dessa oficina
teóricas e práticas voltadas à temática dos eles pudessem expressar suas opiniões e com crianças tão pequenas, ressaltou alguns
recursos audiovisuais e gráficos. À vontade O projeto, realizado em parceira com o reivindicações. A atividade aconteceu em limites do campo. Ainda que o CMEI tivesse
de aprender e experimentar tais ferramentas CMEI União Boca do Rio, iniciou-se a partir três etapas: a primeira, com a contação de disponibilizado professoras e auxiliares para
somou-se a necessidade da própria escola do contato de sua coordenação pedagógica estória sobre uma escola imaginária, com acompanhar esse exercício e as linguagens
de registrar e documentar as atividades que com o Curiar para o desenvolvimento de uma lacunas a serem indicadas pelas crianças, utilizadas estivessem relacionadas com
acontecem ali. Assim, as oficinas de mídia proposta para a área externa da escola. As que representavam as possibilidades de ferramentas notadamente apropriadas por
(Figura 4), para além do objetivo da formação primeiras interlocuções com o local revelaram mudança e transformação do espaço; a eles, esse era o contato inicial de muitos
dos envolvidos, significaram, mesmo que as necessidades e demandas apontadas segunda, simultânea à primeira, contou dos participantes com o Escritório Modelo
em pequena escala, a emancipação e pelas professoras e coordenadoras, bem com a produção de desenhos, a partir do e nem todos se sentiram confortáveis para
autonomia da Escola no que se refere à como as dificuldades recorrentes enfrentadas estímulo da escuta da história (Figura 5); e interagir. Além disso, após alguns minutos,
produção de materiais gráficos e ao registro pelo Centro Municipal, que é vinculado à a última através das brincadeiras apontadas alguns estudantes sentiram-se entediados e
e compartilhamento das atividades e ações Prefeitura Municipal de Salvador. Nesse nos desenhos, após o reconhecimento dos pediram para retornar às salas de aula.
promovidas. Ao longo do desenvolvimento sentido, foram apontadas questões relativas espaços do Centro Infantil onde os novos
das atividades propostas, foi necessário ao fortalecimento da relação entre escola e materiais pudessem ser implementados.
124 Além dos Muros da Universidade: Planejamento Urbano e Regional e Extensão Universitária capítulo 6 Co-criando a cidade com crianças e adolescentes 125

FIGURA 7: Modelo dos desenhos dos manuais elaborados


para os brinquedos feitos de materiais reutilizados.

Elaboração: Curiar

A execução do projeto como um todo foi local. Para a organização do mutirão foram
pensada a partir de um processo de mutirão construídos manuais (Figura 7) de cada peça
que pudesse continuar envolvendo os a ser produzida, de maneira que a montagem
diversos sujeitos no processo, incorporando fosse facilitada e futuramente reproduzida e/
ainda mais a comunidade - através do ou adaptada, apontando todos os materiais
apoio da Associação de Moradores do e as ferramentas necessários, além do
bairro. Nesse sentido, foi dada prioridade passo a passo. O mutirão estava previsto
FIGURA 6: Sistematização das demandas e dos desejos da comunidade do CMEI Boca do Rio à elaboração de brinquedos e mobiliários, para acontecer no ano de 2019, entretanto
alocados nas área externa e feitos com o CMEI enfrentou alguns processos e
Elaboração: Curiar
materiais reutilizados – como pneus, canos modificações internas que impossibilitaram
e cordas –, que poderiam ser obtidos com a continuidade e execução da proposta.
Como sistematização desse processo com as intervenções foram colocadas em prática, auxílio da própria comunidade e do comércio
crianças, e também das reuniões realizadas como o início da construção da horta, através
anteriormente com a equipe pedagógica, foi da parceria com o Orquidário - grupo de
estabelecido um programa de intervenção paisagismo da Faculdade de Arquitetura
que contou com cinco eixos estruturantes, da UFBA. O Curiar também acompanhou
são eles: Brincadeiras/Aprendizagem; o plantio das mudas no pomar21 do CMEI,
Relação com a Natureza; Relação Escola- sendo as duas ações desenvolvidas em
Comunidade; Descanso; e Organização/ conjunto com crianças, pais, professores e
Gestão do Espaço (Figura 6). No âmbito funcionários da escola.
do eixo Relação com a Natureza, algumas

21. A ação do plantio de mudas foi desenvolvida pela Caravana da Mata Atlântica, da Secretaria Municipal de Cidade Sustentável e
Inovação (Secis) de Salvador, a partir da solicitação da direção do CMEI Boca do Rio.
126 Além dos Muros da Universidade: Planejamento Urbano e Regional e Extensão Universitária capítulo 6 Co-criando a cidade com crianças e adolescentes 127

ALGUMAS REFLEXÕES revelando também a necessidade de estar Nesse contexto, é importante pautar a introdução das
sempre aberto às trocas e disponível para discussões relacionadas à infância e à adolescência
A inclusão da criança e do adolescente nos ouvir e dialogar com as crianças. Como no campo da Arquitetura e Urbanismo, em diálogo
processos de planejamento e construção sugere a Pedagogia da Escuta, é necessário permanente com outras disciplinas, a exemplo da
da cidade é atravessada por diversos pedagogia e da educação, sendo fundamental que haja um
[...] reconhecer o direito da criança de ser
fatores que merecem atenção, dentre esforço e uma mobilização de diferentes grupos e agentes
protagonista e a necessidade de manter a
eles, a sensibilidade e a abertura para (re) curiosidade espontânea de cada uma delas sociais, em diferentes campos de atuação, para tornar
criar metodologias e instrumentos que em um nível máximo. Tínhamos de preservar efetiva a participação das crianças e dos adolescentes na
dialoguem com os universos da infância e da nossa decisão de aprender com as crianças, cidade. Para Sarmento “o que define a natureza do campo
juventude. Por isso, é fundamental trazer as com os eventos e com as famílias, até o multidisciplinar dos estudos da criança é a mobilização de
experiências realizadas através da parceria máximo de nossos limites profissionais, e saberes de diferentes proveniências disciplinares em torno
entre o Curiar e os dois interlocutores manter uma prontidão para mudar pontos de um objeto próprio: a criança e a infância”,24 sendo
de vistas, de modo a jamais termos certezas importante o caráter multidisciplinar não só para pensar
apresentados - a Escola Comunitária Nossa
demasiadas.22 um projeto coletivo de cidades mais inclusivas, como
Senhora de Escada e o CMEI União Boca
do Rio. O exercício e a experimentação, também para construir uma agenda política em torno do
em ambos os processos, foram de grande No âmbito dos projetos apresentados - direito da criança e do adolescente à cidade.
importância para a elaboração coletiva de desenvolvidos em articulações a partir do
ferramentas que relacionassem os temas Curiar –, vale destacar a importância da
Educação e Cidade, ao mesmo tempo que valorização dos processos, e das diferentes
o diálogo horizontal com as crianças e os temporalidades desses espaços, visto que é
adolescentes permitiu que esses dispositivos dessa relação, gradativamente construída e
fossem constantemente remodelados, para amadurecida, que se constituem os diálogos,
se ajustarem às demandas e às reivindicações as possibilidades e as mudanças. De acordo
levantadas por eles. com Dias & Ferreira,

Cartografias, cartilhas, oficinas, dinâmicas, Ao utilizar cotidianamente os espaços


urbanos, potenciando sua cidadania e
brincadeiras, vídeos e até folhas de papel em
urbanidade, as crianças terão a oportunidade
branco transformaram-se em instrumentos
de serem pessoas menos individualistas,
de ação e reflexão com os participantes das mais tolerantes e saudáveis – nas diversas
atividades. Estar em campo, desenvolvendo dimensões que constituem o ser humano –,
trabalhos com o público infantil, implicou mais responsáveis e conscientes de que o
em uma valorização das capacidades de bem coletivo se configura, também, como
reinvenção, flexibilidade e transversalidade o bem de cada um. Por uma ordem social
de todos os envolvidos nos processos, diferente, uma sociedade mais equitativa e
harmônica, de todos e para todos. 23

22. MALAGUZZI, op. cit., p. 60. 24. SARMENTO, op. cit., p. 33.
23. DIAS & FERREIRA, op. cit, p. 128-129.
Entre
Tensões
e Extensões
uma análise de
estratégias de atuação

capítulo 7
do Abricó - EMAU / UFRJ
Bruna Garritano Ferreira
Erick Santos de Mouros
Maria Eduarda Lessa
Mariana Alo´ Rodrigues Araujo da Silva

INTRODUÇÃO

Este artigo surge a partir da apresentação do trabalho


“A Extensão Universitária na formação em Arquitetura
e Urbanismo através dos EMAUs [Escritórios Modelo de
Arquitetura e Urbanismo]: estudo de caso sobre os cinco
anos de atuação do Abricó como EMAU da UFRJ”1 no XVIII
Encontro Nacional da Associação Nacional de Pós-Graduação
e Pesquisa em Planejamento Urbano e Regional - XVIII
ENANPUR, em Natal. A apresentação na Sessão Temática
Extensão Universitária e Assistência Técnica no Campo e na
Cidade2 proporcionou diversos debates e questionamentos
tanto por parte da mesa organizadora, quanto dos demais
ouvintes da Sessão. Aqui, a convite dos organizadores do livro,
vamos nos debruçar sobre parte desses questionamentos a
fim de expandir a compreensão sobre a complexidade da ação
Ocupação 9 de julho, São Paulo, 2018.
extensionista e a maneira como as adversidades dessa prática
foto_ Camila D’Ottaviano são contornadas ou incorporadas à própria metodologia de
trabalho da Extensão Universitária.
130 Além dos Muros da Universidade: Planejamento Urbano e Regional e Extensão Universitária capítulo 7 Entre Tensões e Extensões 131

O artigo se estrutura a partir de quatro Os esforços para a estudo dessas tensões e O POEMA foi concebido a partir de debates e dos rumos do Escritório. Essa diretriz,
dimensões que tensionam a ação das estratégias adotadas pelo Abricó diante questionamentos de estudantes sobre novas somada ao caráter horizontal de um EMAU,
extensionista e que perpassam todos os delas são motivados pelo reconhecimento da perspectivas para a arquitetura no Brasil e é fator importante tanto para a organização
trabalhos do Abricó ao longo dos anos. importância desse levantamento histórico e também do papel da universidade nessas interna quanto para os projetos de Extensão
A primeira delas é a Pesquisa, em que analítico para o trabalho do grupo. Tendo em discussões. Sua construção foi dada de forma desenvolvidos, já que se busca desenvolver
procuramos entender como o Abricó concilia vista que compreender processos anteriores coletiva durante os encontros nacionais da trabalhos de forma participativa em que todos
e articula ou não a Extensão com a Pesquisa. e a formas como se contornam (ou se FENEA, como o ENEA (Encontro Nacional os atores (integrantes do EMAU, organizações
Em seguida, visualizamos o Tempo como um incorporam) tensões diversas ao trabalho do de Estudantes de Arquitetura e Urbanismo) sociais e comunidades envolvidas) sejam
fator crucial no trabalho desenvolvido pelo coletivo é parte essencial do andamento de e o SeNEMAU (Seminário Nacional de protagonistas do processo.
grupo. Essa dimensão vai ser analisada a projetos presentes e futuros. Acreditamos EMAUs). A última versão do documento, de
partir da tensão entre o tempo acadêmico ainda que os aspectos aqui levantados são 2007, traz além da Carta de Princípios e do As demandas de trabalho de um EMAU
institucional e as demandas e urgências compartilhados com outros tantos grupos relato de experiência de outros escritórios, surgem de maneiras variadas, sendo ideal
do trabalho da Extensão. Nesse sentido, de Extensão e que a partir desse artigo é uma reflexão acerca do papel de um EMAU que o primeiro movimento seja uma iniciativa
também analisamos a tensão entre o Espaço possível fomentar debates e reflexões para dentro da universidade e sobre as práticas da comunidade. Dessa forma, dificulta-se
Institucional, no qual o Abricó e outros outros coletivos. extensionistas: que o projeto tome um rumo assistencialista,
projetos de Extensão Universitária estão em que o escritório possa ser tido como
[Um] EMAU atua de maneira inter e
inseridos e as especificidades de cada um interventor, quando na verdade busca
transdisciplinar, aliando a tríade do ensino,
território onde os trabalhos são realizados. pesquisa e extensão, a fim de se ter a ser um dos atores do processo. A atuação
Trabalhos esses que lidam com expectativas A FENEA, OS ESCRITÓRIOS MODELO experiência da prática profissional ainda na objetiva a troca de saberes entre os sujeitos
geradas tanto pelo coletivo que compõe E O ABRICÓ graduação, sem deixar de lado a necessária e também a difusão do acesso ao campo
o EMAU, quanto pelas comunidades reflexão teórica e a geração de novos técnico da arquitetura e do urbanismo.
envolvidas. Por fim, apresentamos uma Para um melhor entendimento da análise conhecimentos. Cada Escritório Modelo Importante destacar que as atividades são
reflexão sobre uma tensão que nasce junto desenvolvida neste artigo, é necessária uma possui uma dinâmica de trabalho a partir do desenvolvidas sem fins lucrativos, sendo os
com a iniciativa de implementação de um contexto em que se insere, mas essa deve se
reapresentação da estrutura organizacional recursos financeiros captados através de
basear nos princípios definidos no POEMA,
Escritório Modelo estando presente na e representativa do Abricó como Escritório editais, financiamentos coletivos ou recursos
e só assim poderá ser caracterizado como
sua consolidação e manutenção, além de Modelo. Enquanto tal, o Abricó se orienta EMAU.4 próprios das comunidades.
permear toda sua atuação: a necessidade de a partir dos princípios do POEMA3 (Projeto
recursos financeiros e materiais. de Orientação a Escritórios Modelos A partir da compreensão da estrutura de
de Arquitetura e Urbanismo) da FENEA O princípio básico de um EMAU, segundo o um EMAU enquanto projeto essencial para
(Federação Nacional de Estudantes de POEMA, é a sua gestão estudantil em todos uma Faculdade de Arquitetura e Urbanismo,
Arquitetura e Urbanismo). os âmbitos do trabalho. Dessa maneira, a estudantes da FAU/UFRJ deram início, no
autonomia do grupo é crucial na definição final de 2012, a um movimento de retomada

1. LESSA, M. E. S.; DE MOUROS, E. S.; & GARRITANO, B. (2018). A Extensão Universitária na formação em Arquitetura e Urbanismo
através dos EMAUs: estudo de caso sobre os cinco anos de atuação do Abricó como EMAU da UFRJ. In Anais do XVIII
ENANPUR. Natal: ANPUR.
2. Uma análise dos artigos apresentados durante a Sessão Temática poder ser visto no capítulo 09 “A Extensão Universitária no
4. LESSA, DE MOUROS & GARRITANO, op. cit., p.4.
XVIII ENANPUR”. (N.do E.)
3. FEDERAÇÃO NACIONAL DOS ESTUDANTES DE ARQUITETURA E URBANISMO/FENEA (2007). POEMA - Projeto de Orientação
a Escritórios Modelos de Arquitetura e Urbanismo. Florianópolis: FENEA.
132 Além dos Muros da Universidade: Planejamento Urbano e Regional e Extensão Universitária capítulo 7 Entre Tensões e Extensões 133

FIGURA 1: O quadripé do Abricó - EMAU / UFRJ

Montagem dos autores sobre imagem de


cavalete da Tok&Stok Design, 2019.

de um Escritório Modelo. No entanto, Conforme exposto durante a Sessão, esses Outra razão é que a demanda de pesquisa
somente em 2013, o Escritório Modelo foi questionamentos são parte constitutiva das por parte da universidade, o que inclui
batizado como Abricó - em homenagem aos diversas tensões experienciadas a partir da a Extensão, não é entendida como uma
Abricós de Macaco5 presentes no prédio prática extensionista. Tensões que não atuam prioridade para o escritório modelo. Há nisso
da FAU/UFRJ - e assumiu sua formação sobre a Extensão de maneira fragmentada relação direta com as tensões de dimensão
mais duradoura. De 2014 a 2015, o Abricó e isolada, mas sim de forma interconectada temporal presentes na atuação do Abricó,
se consolidou com trabalhos de caráter e simultanea. A fim de melhor ilustrar esse as quais serão abordadas posteriormente
majoritariamente extensionista, como processo de sobreposições, optamos por neste artigo. Ao se prescindir da pesquisa
Indiana e Valdariosa. Já a partir de 2016, inserir outras dimensões que também estiveram como parte inerente e contínua nos
novas frentes de trabalho surgem a partir presentes nas discussões durante o evento, projetos desenvolvidos, a produção de
do interesse pela Construção com Terra e sendo elas a maneira como lidamos com conhecimento realizada pela Extensão junto
Bioconstrução, em que além de projetos de questões referentes ao tempo e aos espaços. com os territórios parceiros não é objeto de
Extensão, oficinas de Terra e Bioconstrução Esses elementos serão melhor explicados nos reflexão crítica, exceto quando de alguma
são promovidas e ministradas por integrantes parágrafos a seguir, trazendo como exemplo as forma demandado.
do Abricó. No ano seguinte, 2017, um dos ações empreendidas pelo Abricó.
projetos mais importantes para o Abricó foi Raras exceções ocorrem para fora desse ciclo
TENSIONAMENTOS DA
a eletiva autogestionada pelos integrantes de demanda, como a produção voluntária
E A PARTIR DA PRÁTICA
do Escritório.6 dos artigos para o ENANPUR e de manuais,
i. Pesquisa como o de execução de parquinhos de
Durante as discussões da Sessão Temática
Ao longos dos anos de atuação, o Abricó ganha pneu e, mais recentemente, os de técnicas
Extensão Universitária e Assistência Técnica no
espaço e reconhecimento institucional. Esse A diretriz da indissociabilidade Ensino- de construção com terra crua e também
Campo e na Cidade no XVIII ENANPUR, foram
fato se dá, principalmente, pelo engajamento Pesquisa-Extensão, dada pela própria UFRJ, de amarras com bambu. Porém, enquanto
feitas diversas provocações e questionamentos,
político de seus integrantes no debate reforçada pelo POEMA e reconhecida produtos, são estruturados e produzidos
tanto sobre as atividades realizadas pelo
sobre o ensino de Arquitetura e Urbanismo, pelo Abricó em sua estrutura assume-se apenas pelos membros do Abricó, não
próprio Abricó quanto aos demais colegas
na difusão da importância da Extensão como um desafio. Entre as razões, há uma abrindo espaço para a participação dos atores
extensionistas. Optamos, então, por
Universitária e também pela articulação com idealização da prática dentro da Extensão das comunidades parceiras. Essa ausência
estruturar este artigo de forma a incorporar
o Centro Acadêmico. Esse posicionamento e a existência de uma lacuna metodológica deles não ocorre de maneira proposital, pois
questionamentos que nos foram feitos após
político aponta o Abricó também como um tanto internamente quanto para a há uma dificuldade ainda não transposta de
a apresentação do trabalho, dentre eles as
importante ator no Movimento Estudantil, construção horizontal de um conhecimento conceber um modelo de trabalho em que a
questões tangentes à produção de pesquisa e
sendo essa mais uma de suas bases, além do com as comunidades parceiras. A figura construção do conhecimento se dê de forma
às dificuldades de acesso a recursos financeiros.
tripé Ensino-Pesquisa e Extensão. do orientador poderia atenuar essa lacuna horizontal também na concepção de produtos
metodológica, porém a falta de clareza científicos. Junto a isso, como já dito, o
sobre a atuação do orientador dentro do próprio movimento de reflexão crítica sobre
Abricó dificulta as possibilidades de troca o conhecimento produzido em conjunto aos
entre esses dois atores. territórios parceiros é posto em segundo ou
5. Abricó-de-macaco ou Couroupita guianensis é uma árvore de origem amazônica, com grandes frutos amarronzados, muito até mesmo terceiro planos, dificultando a
presente nos campi da UFRJ.
criação de bases para análises futuras.
6. LESSA, DE MOUROS & GARRITANO, op. cit. – o artigo “A Extensão Universitária na formação em Arquitetura e Urbanismo
através dos EMAUs: estudo de caso sobre os cinco anos de atuação do Abricó como EMAU da UFRJ” trata sobre esses e outros
projetos do Abricó de 2012 a 2017 de maneira mais completa.
134 Além dos Muros da Universidade: Planejamento Urbano e Regional e Extensão Universitária capítulo 7 Entre Tensões e Extensões 135

Já do ponto de vista da demanda os conhecimentos produzidos de modo Um reflexo evidente na trajetória do Abricó expectativas entre estudantes - que
institucional, vinculada aos editais de a possibilitar, inclusive, a reformulação é a produção de um livro empenhado a esperavam uma maior iniciativa por parte
fomento e às bolsas de Extensão há uma de processos durante sua realização. Se partir de recursos obtidos através de um de sua nova orientadora em acompanhar
obrigatoriedade de participação na Semana a idealização da prática predomina ao edital de fomento a projetos de Extensão o desenvolvimento das ações e projetos -
de Integração Acadêmica da UFRJ. Isto longo da atuação do Abricó, o desejo pela em 2015, porém nunca realizado. O grupo e a própria - que revelou que esperava ser
implica na necessidade de elaborar uma reflexão crítica se manifesta individualmente de estudantes que compunham o escritório mais demandada pelos estudantes do que
reflexão sobre os projetos realizados e ou em pequenos grupos e se materializa modelo naquele momento definiu um ter de demandá-los no acompanhamento
uma síntese apresentada em formato eventualmente nas exceções já citadas. escopo estruturador dos conteúdos a serem e orientação do EMAU, respeitando
acadêmico, cuja linguagem e produtos se produzidos para o livro. Mas a redação os princípios da autonomia estudantil,
traduzem principalmente em apresentações Mesmo que se tente estruturar estratégias jamais seguiu adiante. Um obstáculo natural, autogestão e horizontalidade que regem o
e exposições de trabalhos. Essas ações, em para lidar com essa realidade, existe assim como em todas as ações realizadas funcionamento dos Escritórios Modelo de
sua maioria, acabam ficando limitadas aos uma lacuna metodológica para o pelo escritório, são as tensões relativas Arquitetura e Urbanismo. Essa indefinição
espaços acadêmicos. Uma exceção foi o desenvolvimento de análises mais robustas ao tempo, as quais trataremos à frente. sobre como se daria efetivamente a atuação
evento UFRJ na Rua7 que buscou apresentar e fundamentadas teórico-empiricamente. Entretanto, as dificuldades são amplificadas docente na orientação ao Abricó dificultou
as ações de Extensão realizadas pela É fato que a reflexão crítica e a produção pelo déficit do conhecimento necessário ao as possibilidades de diálogo e trocas entre
universidade para a sociedade através de teórica não são focos do ensino de desenvolvimento do escopo previsto pelos os estudantes e a professora que escolheram
um dia de atividades no Parque Madureira. graduação em Arquitetura e Urbanismo estudantes, o qual pretendia a redação e convidaram para orientá-los.
praticado na FAU-UFRJ. E como crítica de um livro que analisasse a trajetória do
As exceções ao ciclo da demanda institucional ao papel preponderante assumido pelo Abricó e sua atuação a partir de temas. A Por outro lado, em todas as vezes que foi
apresentadas ocorrem pela existência de projeto de arquitetura, principalmente, mas intenção era gerar um produto que não demandada pelo coletivo, a nova orientadora
divergências internas ao Abricó quanto também de urbanismo, é recorrente entre o fosse descritivo, isto é, que não consistisse enfatizou o incentivo à produção do livro e de
ao papel da análise crítica e da produção corpo discente o desejo pela prática, tanto num relato histórico, cronológico ou não, da artigos acadêmicos a partir das experiências
científica dentro do contexto da Extensão. a experimental-construtiva, quanto em seu trajetória do Abricó. de atuação do Abricó. Com o tempo e
Por um lado há um encantamento com a sentido social de lidar com problemáticas com a renovação do grupo de estudantes,
prática, em que deposita-se a expectativa da e situações da realidade de nossa cidade As mudanças na orientação do EMAU, o incentivo frutificou e a reflexão crítica
resolução de problemáticas e da produção e sociedade. Trata-se da idealização ou com as saídas sucessivas de seus então passou a ser vista como algo importante,
de conhecimento através do empirismo. Por encantamento pela prática, como referido orientadores,8 contribuíram para que a sendo apropriada por parte do grupo que
outro, o entendimento de que é necessário anteriormente. Como consequência, há um figura de professor orientador do escritório se propôs a produzir artigos analisando a
refletir e analisar os processos a partir de déficit na formação que não instrumentaliza modelo não auxiliasse para a superação atuação do escritório modelo e submetê-
uma reflexão crítica que permita sistematizar o estudante para a reflexão crítica, a desse déficit. A transição até a oficialização los à participação no XVIII ENANPUR e em
sistematização de conhecimentos e a da nova professora orientadora do Abricó outros eventos acadêmicos e científicos, com
produção teórico-científica. careceu de maiores definições acerca de abertura à discussão em torno da Extensão
sua atuação junto ao escritório modelo. Universitária e da assessoria técnica em
Associado a isso, houve um conflito de Arquitetura e Urbanismo.

7. O evento UFRJ na Rua foi realizado por estudantes de diversos cursos da UFRJ, em junho de 2019, e contou com participação do 8. LESSA, DE MOUROS & GARRITANO, op. cit.
Abricó em sua construção.
136 Além dos Muros da Universidade: Planejamento Urbano e Regional e Extensão Universitária capítulo 7 Entre Tensões e Extensões 137

ii. Tempo Em 2014, a disciplina eletiva Transformações É importante pontuar que, ao longo do
do Espaço Construído - onde começou o ano de 2015, as tensões relativas ao tempo
Equilibrar o tempo necessário de trabalho a. Tempo Acadêmico Institucional trabalho em torno da Comunidade Indiana apresentaram-se de formas diferentes com o
com o exigido na grade curricular é um Tijuca - foi uma estratégia para lidar com passar dos meses. Num primeiro momento,
desafio constante na atuação do Abricó,9 Em um curso cujo currículo sobrecarrega o a indisponibilidade de tempo dentro da com o trabalho em Valdariosa se iniciando
corpo discente de disciplinas, a disputa por
porém não é a única forma com a qual grade horária curricular. Assim, ao transferir durante o período de férias de verão da
espaço no horário dos estudantes se torna
os estudantes têm de lidar com esse a demanda para uma turma de graduação graduação, não houve grandes desgastes
desleal para as atividades de extensão.
tensionamento. Num coletivo formado por Mesmo entre os membros do Abricó - que através da disciplina eletiva, os integrantes na relação tempo dedicado à Extensão
pessoas diversas, os tempos individuais são por uma vontade militante dedicam parte do grupo puderam conciliar também os versus tempo dedicado à graduação. Num
também diversos e sujeitos a interferências considerável de sua vida acadêmica a estas esforços para estruturação do escritório, o segundo momento, os abricós,12 em grande
de origens pessoais (prioridades, planos, atividades - encontrar tempo para realizar que lhes permitiu no ano seguinte assumir parte, tiveram que conciliar as duas frentes
objetivos, necessidades) e do momento o trabalho, desenvolver reflexões sobre diretamente o protagonismo do trabalho de trabalho externas (Indiana e Valdariosa),
em que cada pessoa está na graduação as experiências práticas e aprofundar o junto à comunidade Indiana, no que podemos os mutirões de construção da Praça Verde
(diferentes acúmulos, diferentes demandas e acúmulo teórico relativo às questões que definir como uma assessoria técnica com no Morro do Alemão,13 a organização do
se põem ao EMAU mostrou-se um desafio
disponibilidades). Há ainda o tempo ditado envolvimento político-pedagógico. ENEA Rio,14 que contou com participação de
quase intransponível na sua completude.10
pelo calendário acadêmico, seccionado membros do Abricó, e também atividades
em semestres letivos, que por sua vez são A partir de então, o coletivo que compunha o da greve nacional da educação, deflagrada
seccionados em épocas de avaliações, No primeiro artigo, já tínhamos nos
11 escritório modelo passa a atuar numa perspectiva na UFRJ inicialmente pelos técnicos-
semanas acadêmicas e etc, e o tempo dos aproximado de uma reflexão sobre as mais tradicional em sua relação com essa administrativos. Em um terceiro momento,
projetos e editais de Extensão. Todos eles dificuldades em torno da disponibilidade de dimensão curricular do tempo, isto é, tentando com o fim dos trabalhos em Valdariosa, do
em constante tensionamento com o tempo tempo por conta da graduação e questões conciliar as atividades de Extensão às demandas ENEA Rio e da greve, a conciliação se deu
próprio dos territórios e comunidades, cada pessoais, mesmo que de forma breve. das disciplinas da graduação nos horários que entre o trabalho em Indiana, as disciplinas da
qual com suas urgências e expectativas, mas Concluímos que diversas vezes os estudantes sobram na grade curricular. Na prática, isto graduação e as reverberações do trabalho
também com suas limitações de mobilização que integram o Abricó se empenharam significou muitas idas a campo nos finais de no Morro do Alemão - a realização de uma
e participação social. na busca por formas de conciliar o tempo semana. Característica que se fez presente no exposição e a redação de um livro sobre a
demandado por atividades acadêmicas desenvolvimento do trabalho realizado nos experiência, ambos idealizados e propostos
curriculares e atividades desenvolvidas pelo condomínios Valdariosa, em Queimados, no pelos próprios estudantes.
EMAU. primeiro semestre de 2015, e em Indiana, mais
fortemente a partir do semestre seguinte.

12. Nome dado aos integrantes/participantes do Escritório Modelo.


13. Como relatado no artigo “A EXTENSÃO UNIVERSITÁRIA NA FORMAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO ATRAVÉS DOS
EMAUs: Estudo de caso sobre os cinco anos de atuação do Abricó como EMAU da UFRJ”, o projeto Praça Pr’Alemão Ter
9. LESSA, DE MOUROS & GARRITANO, op. cit.
surge de uma iniciativa estudantil dentro de uma disciplina de projeto optativa, cuja turma era composta em grande parte por
10. LESSA, DE MOUROS & GARRITANO, op. cit., p. 16.
membros do Abricó.
11. LESSA, DE MOUROS & GARRITANO, op. cit.
14. O ENEA Rio foi o XXXIX Encontro Nacional de Estudantes de Arquitetura e Urbanismo e ocorreu no Rio de Janeiro, em 2015, com
participação de membros do Abricó em sua organização.
138 Além dos Muros da Universidade: Planejamento Urbano e Regional e Extensão Universitária capítulo 7 Entre Tensões e Extensões 139

O quarto momento consistiu na conciliação grupo, como o CoNEA (Conselho Nacional modelo, que propiciasse a creditação ou, ainda, do próprio coletivo que compõe
entre as disciplinas e o trabalho em de Entidades Estudantis de Arquitetura das horas de trabalho dedicadas pelos o escritório modelo. No primeiro artigo16
Indiana, ainda no ano letivo de 2015, mas e Urbanismo) e o ENEA Rio 2015 (em que estudantes ao desenvolvimento de ações já se tinha um entendimento do impacto e
já adentrando 2016, no contexto pós-greve. foram realizadas atividades em Indiana e junto à comunidade Indiana Tijuca. das problemáticas do tempo acadêmico,
É a partir de então que incorpora-se à também no Morro do Alemão). Dessa forma, Após negociações com os professores principalmente relacionado à gestão e
atuação do escritório modelo a realização além de otimizar o tempo, aproveitou-se da orientadores, a proposta foi ressignificada, questões internas do Abricó, mas pouco se
de oficinas de experimentação construtiva, oferta de pessoal e também de recursos tornando a eletiva aberta ao corpo discente entendia como isso se rebatia no tempo de
a princípio com terra crua, numa busca pela financeiros. e com ênfase teórica, voltando-se ao debate projeto e, principalmente, nas expectativas
consolidação de um canteiro experimental de temas considerados inerentes aos da comunidade geradas em torno de
na FAU-UFRJ. Mais um elemento que A estratégia de vincular atividades princípios e à própria atuação do Abricó.15 um prazo. Podemos apontar a ideia de
demandaria tempo na já apertada grade extensonistas à grade curricular somente vai Apesar de ter contribuído para a captação demandas urgentes, que muitas vezes não
curricular dos estudantes. ser retomada em 2017, com abertura de uma de novos membros, para o acúmulo teórico conseguimos atender no tempo que temos.
nova disciplina eletiva, autogestionada pelos e metodológico em torno dos temas Há também as tensões entre prazo e as
As disputas pelo tempo travadas entre estudantes do Abricó. Uma das razões foi o debatidos, a eletiva não cumpriu o papel expectativas do escritório modelo em gerar
as diversas frentes de trabalho que se aumento da tensão em torno da necessidade desejado inicialmente, tornando-se uma nova com a comunidade um produto consistente.
apresentavam no período se materializaram de conciliar os tempos dedicados ao Ensino demanda a disputar o tempo dos abricós
em diferentes graus de presença do e à Extensão em virtude de uma estratégia envolvidos em sua realização, o que se O tempo-expectativa enquanto prazo
escritório modelo nos territórios. O que se adotada para o enfrentamento de outra rebatia diretamente em sua disponibilidade aparece de forma marcante no trabalho
aliava às especificidades de cada trabalho, questão: a necessidade de renovar o grupo. para atuar nas frentes externas de trabalho. realizado nos condomínios Valdariosa. A
tanto em relação à natureza de cada um, Buscando integrar novos membros, o Abricó previsão inicial de executar em três meses
inclusive metodologicamente, quanto em abre-se a três novas frentes de atuação os projetos de três espaços de convivência
termos conjunturais, não se traduzindo, externas e realiza uma chamada pública de em três condomínios do Programa Minha
portanto, numa problemática prioritária no novos membros em setembro-outubro de b. Tempo Expectativa Casa Minha Vida (PMCMV) no município
desenvolvimento dos trabalhos ao longo de 2016. A adaptação dos novos integrantes à de Queimados, na Baixada Fluminense,
2015 e 2016. Ao contrário de questões como forma de atuar do escritório modelo mostrou- A dimensão do tempo acadêmico foi rapidamente desconstruída pelos
a mobilização comunitária e a metodologia se bastante difícil e as tensões de dimensão institucional, enquanto tensionamento, estudantes. Entretanto, apesar de se
participativa, que se mostravam mais temporal se mostraram um fator crucial. se rebate em uma outra dimensão que apropriar do processo já em curso no qual
inquietantes em Valdariosa e no Alemão, em Nesse cenário, os membros mais antigos do influencia diretamente no trabalho de se inseriu, transformando prazos e métodos
Indiana os conflitos internos entre lideranças EMAU disputavam o tempo de dedicação Extensão junto às comunidades com as quais a partir de sua própria forma de atuação
comunitárias eram razão de desgastes e adaptação dos novos integrantes com o Abricó atua. Trata-se da tensão existente e princípios, o Abricó convive com a
crescentes. as disciplinas da graduação e os trabalhos entre o andamento do trabalho com foco necessidade de fechamento dos trabalhos
externos. metodológico e processual e as expectativas em Valdariosa. Necessidade que advém
De todo modo, com uma preocupação - tanto comunitárias, quanto institucionais da estrutura e do contexto prévio, 17 mas
de uma contínua presença nos trabalhos Com a abertura de outra turma de uma
em andamento, os integrantes do Abricó disciplina eletiva, os abricós tinham o
buscaram uma articulação entre projetos intuito inicial de realizar uma eletiva 15. LESSA, DE MOUROS & GARRITANO, op. cit.
e eventos estudantis construídos pelo prática, restrita aos membros do escritório 16. LESSA, DE MOUROS & GARRITANO, op. cit.
17. O Abricó foi convidado a compor este projeto quando o mesmo já se encontrava em andamento há mais de um ano. Nesse
contexto, o coletivo foi convidado por um de seus parceiros, o Coletivo Basurama, a compor os mutirões de construção dos
espaços coletivos, auxiliando inicialmente apenas na difusão das técnicas construtivas.
140 Além dos Muros da Universidade: Planejamento Urbano e Regional e Extensão Universitária capítulo 7 Entre Tensões e Extensões 141

também dos próprios abricós. Como citado institucional e os espaços nos quais são nos colegiados da Faculdade de Arquitetura O trabalho em conjunto com a comunidade,
anteriormente, à esta altura os abricós constituídas as demandas de trabalho do e Urbanismo, na consolidação de uma por sua vez, evidencia a necessidade da
conciliavam a atuação em Valdariosa Abricó. Ainda que o Abricó esteja inserido sala própria para o Escritório Modelo, nos incorporação de outros elementos na
com a assessoria à Comunidade Indiana dentro do espaço acadêmico institucional recursos viabilizados a partir das inscrições prática da Extensão para além daqueles
Tijuca, com a organização do ENEA Rio e da universidade, a proximidade com em editais de fomento e também na que são vivenciados no espaço acadêmico
posteriormente com a greve da educação e as comunidades parceiras, somadas às realização das duas disciplinas já oferecidas institucional. Esse processo de incorporação
os mutirões de construção da Praça Verde especificidades das mesmas e aos princípios pelo coletivo. Fora da universidade, esse das especificidades de cada território nas
no Morro do Alemão. norteadores de atuação dos escritórios reconhecimento também desempenhou metodologias de trabalho do Abricó não
modelos acabam por moldar a maneira importante papel, durante o ano de 2015, se dá de maneira homogênea, da mesma
As estratégias para lidar com isso partem, como se conformam as práticas de Extensão no processo judicial em que o Abricó, junto forma em que essas novas conformações
então, da reflexão sobre o processo pautada do coletivo. à Comunidade Indiana Tijuca e à Defensoria metodológicas não são estanques. Se
nos princípios de atuação dos Escritórios Pública do Estado do Rio de Janeiro, somou com o passar do tempo ampliam-se o
Modelo de Arquitetura e Urbanismo. Por um lado, a inserção institucional forças para viabilizar a permanência da número de espaços de atuação do Abricó,
Questionando a baixa participação condiciona as ações do Abricó a estarem comunidade em seu território. e consequentemente seus repertórios de
comunitária, principalmente de adultos, vinculadas a determinadas diretrizes práticas, a relação a longo prazo com as
O apoio oferecido pela Universidade foi por
como um fator que acarretaria na não burocráticas, como por exemplo os comunidades parceiras transformam as
duas vezes – em audiências públicas distintas
apropriação dos espaços construídos, torna- formatos e linguagem empregados em ocorridas durante a vigência dos projetos de demandas e expectativas desses territórios.
se possível a dilatação de prazos junto aos artigos, apresentações e exposições de extensão – considerado de grande valia.
demais atores envolvidos no processo em trabalhos; prazos alinhados com os ciclos Isto é passível de ser ilustrado a partir de dois
prol da busca pela mobilização de mais semestrais acadêmicos; e condicionantes Na primeira audiência, um aspecto projetos do Abricó: a experiência no conjunto
moradores. Há sucesso nessa tentativa, mas para inscrição em editais e consequemente inesperado da atuação do meio acadêmico PMCMV de Valdariosa, em Queimados e a
o grau de mobilização se dá conforme a faixa o reconhecimento da ação extensionista foi o fortalecimento oferecido à parte mais assessoria técnica prestada na Comunidade
etária para a qual o espaço de convivência dentro da universidade. Por outro lado, fragilizada, ou seja, à própria defensora Indiana Tijuca, já citada anteriormente.
tinha sido pensado. Assim, crianças e jovens o trabalho conjunto com as comunidades e aos moradores, pela simples aliança Nesses dois territórios, o pouco
se envolvem nos mutirões realizados nos parceiras demanda outras temporalidades institucional. A Universidade foi convidada envolvimento dos adultos em determinados
pela Defensoria a ter assento na sala da
condomínios 3 e 2, enquanto adultos e de ação, linguagens, instrumentos e um períodos do projeto era um grande entrave
sessão durante o julgamento. O posterior
idosos se envolvem mais nos mutirões do outro tipo de relação com a população de para a efetivação das atividades propostas.
desinteresse na desocupação da Indiana
condomínio 1. cada localidade. provocado na prefeitura, revelado até mesmo Assim, o coletivo optou por inserir em suas
no descumprimento do prazo e desleixo ações agentes geralmente negligenciados
Vale ressaltar que a institucionalidade do material apresentado como plano de nos processos participativos e decisórios
e o aparato burocrático não são vistos demolição das residências, exigência da nos planos de urbanização e que, apesar
iii. Espaço aqui de forma negativa ou limitante. O juíza nessa audiência, pode de certa forma disso, sempre se fizeram presentes durante
reconhecimento institucional foi e continua ser atribuído à força obtida.18 as ações iniciais de ambos os projetos:
Aqui, é importante esclarecer que quando sendo de extrema importância para o as crianças e jovens. Ainda que em linhas
tratamos do espaço enquanto um elemento Abricó, tanto dentro da UFRJ, quanto fora
de tensionamento, estamos nos referindo a dela. Na universidade, esse reconhecimento
dois espaços distintos: o espaço acadêmico se manifesta na conquista de espaços de fala 18. ALBERNAZ, M.P. G. L.; MINTO, F.C.N.; MIRANDA, M.F. de; & FELINTO, H.Q. (2017). Resistência e Melhoria Habitacional:
ref lexões sobre uma atuação dialógica junto à Comunidade Indiana na cidade Rio de Janeiro. In Anais do XVII ENANPUR. São
Paulo: ANPUR.
142 Além dos Muros da Universidade: Planejamento Urbano e Regional e Extensão Universitária capítulo 7 Entre Tensões e Extensões 143
FIGURAS 4 e 5: Registro das observações
FIGURAS 2 e 3: Mutirões de construção de um realizadas pelas crianças de Indiana no
parquinhos com crianças no Condomínio 2 do decorrer do percurso do Rio Maracanã.
Conjunto MCMV Valdariosa, em Queimados.
Fonte: arquivo “Entre Cidades” e Abricó -
Fonte: arquivo Abricó - EMAU / UFRJ EMAU / UFRJ.

gerais a incorporação desses agentes aos Em Indiana, por sua vez, a inserção das
respectivos projetos pudesse se dar de crianças e jovens nas ações de Extensão
forma semelhante, as demandas específicas se deu a partir de uma demanda bastante
de cada território exigiram o desenho de distinta daquela que se apresentou em
diferentes instrumentos e metodologias. Valdariosa. Com o objetivo de construir
um contra-laudo frente à nova ameaça de
Em Valdariosa, era preciso pensar a maneira remoção que a comunidade sofreu no início
como as crianças e jovens, em suas mais de 2018, as crianças e jovens, já presentes
diversas faixas etárias, poderiam compor nas ações de Extensão desde 2017, foram
os mutirões de construção dos espaços convidadas a protagonizar essa nova frente
coletivos pensados para cada um dos três de ação. Com uma maior disponibilidade de
condomínios do conjunto. Nesse processo, horário com relação aos adultos, somadas às
foi necessário compor grupos de trabalho suas observações perspicazes, esse grupo
específicos para cada faixa etária, de forma caminhou junto ao grupo extensionista19 ao
a se manter a responsabilidade sobre longo de todo o rio Maracanã. A caminhada
as ferramentas utilizadas e a qualidade mostrou que o principal personagem
dos equipamentos a serem construídos. tido como um entrave para permanência
Outra dificuldade do processo de mutirão da comunidade em seu território, o rio
era garantir a participação das meninas, Maracanã, não era poluído e também não
especialmente as mais velhas, pois as mesmas era ocupado apenas nas margens da favela,
frequentemente se sentiam fragilizadas conforme apresentavam os pareceres mesmo foi encerrado antes que as atividades
frente às comparações de força física feitas emitidos pelo Ministério Público (MP). Dessa daquele período terminassem, a defensora
pelos meninos. A partir dessas constatações, forma, lançando mão de diversos dispositivos responsável pelo processo reconheceu a
o Abricó questionou junto ao coletivo de registro, como vídeos, fotografias, importância do material elaborado pelas
coordenador do projeto a possibilidade de cartografias, questionários e brincadeiras, as crianças. Este fato é um aspecto importante
prorrogação do prazo para produção dos crianças puderam elaborar um vasto material que tensiona e, consequentemente,
espaços coletivos, sem que fosse necessário que evidenciava as contradições descritas reivindica a presença das crianças e jovens
abrir mão do processo participativo e, nos pareceres do MP. Ainda que o material nos espaços institucionais públicos e
consequente, excluir as crianças e jovens. a prática e as percepções da Extensão, as não tenha sido anexado diretamente nos decisórios.
Ali, os argumentos utilizados, como a expectativas institucionais e burocráticas, documentos do processo judicial, pois o
ausência de um processo participativo que e as demandas específicas do território, foi
não incorporasse os moradores do conjunto possível reestruturar o próprio projeto, sem
- independentemente de sua faixa etária - que o mesmo perdesse a legitimidade frente
ser um fator problemático para a posterior aos órgãos de financiamento. 19. Atualmente a frente de trabalho que atua na Comunidade Indiana Tijuca é formatada no projeto de extensão “Entre cidades de
apropriação e manutenção dos espaços direitos e cidades de privilégios: disputando narrativas na Comunidade Indiana Tijuca”, estabelecido a partir de parcerias entre
construídos, viabilizou a dilatação do prazo. os grupos Abricó - Escritório Modelo de Arquitetura e Urbanismo (Projeto de Extensão FAU/UFRJ 2013 - atual), a equipe de
Assim, em meio ao tensionamento entre Psicologia do NIAC - Núcleo Interdisciplinar de Ações para Cidadania (Programa de Extensão Interdisciplinar/ UFRJ 2006-atual)
e o Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional (IPPUR/UFRJ), dando sequência às atuações realizadas pelos
grupos de maneira paralela desde 2013.
144 Além dos Muros da Universidade: Planejamento Urbano e Regional e Extensão Universitária capítulo 7 Entre Tensões e Extensões 145

No processo de complementaridade foram concedidas três bolsas por um período o ano de 2016 é marcado pelo golpe sofrido Nesse processo, enquanto os estudantes do
entre as práticas dos espaços acadêmicos de três meses para os membros do coletivo. pela então presidenta Dilma Rousseff Abricó aprendem a lidar com a burocracia
institucionais e os espaços comunitários Sem interromper suas atividades nas (2011-2016). Desde 2016 até o presente juntamente com a sua nova orientadora,
parceiros, a própria ação extensionista se comunidades parceiras naquele momento, o momento, não surgiram novos editais que com experiência somente com editais de
converte em um elemento de tensão. Essa Abricó, a partir do edital, resolveu promover disponibilizassem recursos financeiros para pesquisa e pós-graduação, comete-se um
característica é colocada em evidência um evento que tornasse públicas as práticas aquisição de material permanente para erro no preenchimento da proposta a ser
quando tanto o Abricó como seus parceiros dos escritórios modelo e convidar novos projetos de Extensão. submetida e o projeto acaba por não obter
se apropriam das estruturas burocráticas integrantes para compor o coletivo. O aprovação na primeira edição do PROFAEX.
institucionais para garantir visibilidade e evento foi a primeira edição do CIPÓ - Ciclo Em 2016, o Abricó se mantém em termos O Abricó passa, então, o ano de 2017 sem
legitimidade às ações desenvolvidas por Integrado de Palestras e Oficinas do Abricó. financeiros apenas a partir da renovação do recursos para manter suas atividades. Como
ambas as partes. Se em um primeiro olhar edital PIBEX, garantindo suas antigas quatro alternativa, os estudantes ainda tinham o
a institucionalidade pode parecer um Ainda em 2014, a necessidade de se conseguir bolsas vinculadas ao edital e deixando grupo PET/Programa de Educação Tutorial
limitador para o desenvolvimento das ações recursos financeiros que garantissem a parte expressiva do seu corpo de antigos em criação na FAU-UFRJ. O grupo tinha
do coletivo, em outro momento, essa mesma permanência dos membros do Abricó e, ao bolsistas sem recursos, diferente do que sido idealizado pelo próprio Abricó, que
institucionalidade é ressignificada sem que mesmo tempo, viabilizassem a compra de havia ocorrido no ano anterior. Com o PIBEX convidou um professor para elaborar uma
sejam necessárias alterações nos princípios insumos permanentes para as atividades encerrado no início de 2017, o cenário proposta, em parceria com o Canteiro
metodológicos que norteiam as ações dos de campo, motivou as orientadoras do financeiro do coletivo piorou, momento em Experimental, a ser submetida no edital PET-
escritórios modelo. grupo a participar de dois editais, o ProExt/ que os estudantes do Abricó começaram a UFRJ, no início de 2017. O bom resultado
MEC/Programa de Extensão Universitária assumir a elaboração das propostas a serem nessa seleção garantiu que seis membros do
do Ministério da Educação e o PIBEX/ submetidas a novos editais de fomento. Abricó fossem contemplados com bolsas de
UFRJ/Programa Institucional de Bolsas Outro fato que contribui para a piora do tutoria pelo período de dois anos.
iv. Recursos Financeiros de Extensão da UFRJ. Obtendo uma boa cenário de oferta de recursos é a modificação
classificação nos dois editais para o ano das estruturas dos editais internos à UFRJ. A Em 2018, finalmente, o coletivo consegue a
Assim como diversos projetos de Extensão, de 2015, o coletivo pôde, após dois anos unificação dos editais de fomento à Extensão aprovação do projeto no edital PROFAEX,
a trajetória do Abricó se inicia antes pela iniciais de atividade, finalmente contar através do PROFAEX/Programa Institucional porém uma única bolsa é concedida. Essa
vontade de estudantes e professores com uma expressiva quantidade de bolsas de Fomento Único de Ações de Extensão bolsa, somada às bolsas do PET-2017,
inquietos com a conjuntura social e (totalizando nove estudantes bolsistas) e foi acompanhada pela interrupção da voltam a melhorar um pouco a manutenção
acadêmica do que com o reconhecimento recursos financeiros para adquirir materiais possibilidade de fomento a novos programas da permanência dos membros do coletivo
das necessidades da prática do escritório de consumo e permanentes, suprindo a de Extensão (que conferiam até dez bolsas nas ações de Extensão. Ao mesmo tempo,
modelo e os recursos para viabilizá-las. Tendo necessidade de equipamentos e materiais por projeto), permanecendo apenas alguns os estudantes do Abricó começam a
sua trajetória iniciada em 2013, apenas em de escritório, além de ferramentas para programas estratégicos na universidade. compreender os limites e possibilidades
2014 o coletivo consegue, pela primeira seus mutirões. É importante destacar que o Assim, os novos editais contemplam as dos editais de fomento. Se apropriando das
vez, se inserir em editais de fomento, um edital ProExt era vinculado ao Ministério da modalidades de projeto (com até cinco estruturas burocráticas dos editais, decidem
edital do Programa Institucional de Bolsas Educação, tendo sido lançado pela última bolsas cada), evento e curso de Extensão. começar a fragmentar as suas diversas
de Eventos (PIBEV). Nesse primeiro edital, vez no ano de 2016. Não por coincidência, Além de interromper a oferta de recursos frentes de atuação em diferentes projetos
para compra de material permanente. de Extensão, desenhando as mesmas
146 Além dos Muros da Universidade: Planejamento Urbano e Regional e Extensão Universitária capítulo 7 Entre Tensões e Extensões 147

enquanto desdobramentos do primeiro PR7 (Pró-Reitoria de Políticas Estudantis) em que o Abricó atua, onde os mesmos CONSIDERAÇÕES FINAIS
projeto submetido pelo Abricó. Essa da UFRJ cumpriram, ainda, o importante trabalham incessantemente na publicização
estratégia é pensada de forma a ampliar as papel de viabilizar a aquisição de materiais das ações da universidade e na garantia Algumas questões são importantes de serem
possibilidades de obtenção de bolsas, dado de consumo a serem reutilizados após os da mobilização comunitária em torno do retomadas antes de caminharmos para a
o limite de cinco bolsas por projeto. eventos em outras ações desenvolvidas pelo projeto. Por vezes inseridos em dinâmicas conclusão deste artigo. Uma delas é relembrar
Abricó. de trabalho informais e precárias, a que este texto é desdobramento de um
Tendo parte de suas frentes devidamente existência de bolsas para esses agentes artigo já existente, cujos questionamentos
aprovadas no edital RUA/Registro Único Conforme exposto nos parágrafos poderia se configurar como um importante deram origem aos tópicos apresentados
de Ações de Extensão, no final de 2018 e anteriores, o Abricó tem se adaptado às instrumento para intensificar as pontes anteriormente.21 No artigo apresentado
em 2019, com a aprovação no PROFAEX de estruturas institucionais e à escassez de entre a universidade e os territórios não no XVIII ENANPUR procuramos relatar a
mais duas frentes de trabalho, o coletivo editais de fomento às ações de Extensão contemplados pelas práticas dos arquitetos atuação do Abricó enquanto Escritório
atingiu um total de doze bolsas, sendo a partir da fragmentação das suas urbanistas e planejadores urbanos. 20 A Modelo de Arquitetura e Urbanismo e todo
nove delas vinculadas ao PROFAEX e três frentes. Vale ressaltar que a fragmentação institucionalização desses agentes junto à o processo de recriação e consolidação
delas vinculadas ao PET, que também foi institucional dessas frentes de trabalho universidade poderia finalmente tensionar do mesmo como Abricó. As conclusões
renovado. não implica em uma fragmentação do a aproximação da academia com as reais dessa análise apontaram que o Abricó tem
trabalho do Abricó. Pelo contrário, a demandas da sociedade. Ao mesmo procurado extrapolar as atribuições com
Além dos editais de fomento à Extensão, abertura de novas frentes foi extremamente tempo, esse processo também seria um as quais se compromete enquanto EMAU,
o Abricó também tem usado da mesma importante para a manutenção da unidade importante elemento para consolidar porém pouco foi analisado e discutido sobre
estratégia de fragmentação para se inscrever do coletivo e da conformação de novas as vias de mão dupla que a Extensão as tensões presentes na sua atuação, tanto
em editais de fomento a eventos. Assim, ainda estruturas metodológicas para se tratar busca constituir entre e universidade e dentro quanto fora da universidade. Assim,
em 2019, o coletivo submeteu propostas de das especificidades de cada comunidade a sociedade, uma vez que não apenas a nos apropriamos das discussões realizadas
fomento a dois eventos de caráter distintos. parceira. De todo modo, esse movimento universidade estaria cumprindo seu papel durante o evento e elencamos os tópicos
Um deles, a Semente/Semana de Ensino de não é suficiente para contornar a social ocupando espaços negligenciados expostos acima como forma de ilustrar as
Tecnologias Ecológicas, evento voltado para problemática dos recursos financeiros. pelo poder público, mas também estariam diversas nuances da prática extensionista.
popularização de técnicas de bioconstrução e sendo oferecidos instrumentos para que
permacultura em parceria com outros grupos Ainda que a dificuldade de acesso a esses mesmos espaços também pudessem É importante pontuar que os tópicos aqui
de Extensão da própria UFRJ, e também recursos para aquisição de materiais de uso estar ocupando a própria universidade, destacados não encerram a complexidade
a segunda edição do CIPÓ, fazendo um permanente continue sendo uma questão tensionando e questionando as tradicionais da ação da Extensão. Diversos outros
resgate histórico da trajetória do Abricó nos sensível, acreditamos ser ainda mais formas de produção do conhecimento. aspectos poderiam ser trazidos para esta
último cinco anos através de uma exposição, problemática a inexistência de alternativas análise, como, por exemplo, a forma com
além de rodas de debate com personagens para conceder bolsas a agentes que fazem que a Extensão gera expectativas, tanto
importantes de movimentos sociais e de parte do grupo extensionista, mas não
assessorias técnicas do Rio de Janeiro e de estão vinculados à universidade. Esses
São Paulo. Ambos eventos, financiados pelo agentes são importantes personagens
edital de fomento a eventos estudantis da nas dinâmicas comunitárias dos territórios 20. Entendemos que este problema não se limita apenas ao campo disciplinar da Arquitetura e Urbanismo ou do Planejamento
Urbano. Aqui, o recorte utilizado pretende apenas enfatizar as diretrizes expressas no POEMA naquilo que tange a atuação dos
Escritórios Modelos de Arquitetura e Urbanismo especificamente.
21. LESSA, DE MOUROS & GARRITANO, op. cit.
148 Além dos Muros da Universidade: Planejamento Urbano e Regional e Extensão Universitária

naqueles que a conduzem como aqueles que participam


dela. Também poderiam ser destacadas as tensões quanto
ao próprio processo participativo, não só no processo de
escuta, mas também no de elaboração e materialização de
outras formas de produção do conhecimento. Ainda seria
possível falar sobre as dificuldades de se manter a gestão
horizontal do coletivo. Todas essas questões, somadas
àquelas já apresentadas no primeiro artigo, atravessam de
maneira simultânea os diversos projetos conduzidos pelo
Abricó ao mesmo tempo que os conectam.

Por fim, compartilhamos os tensionamentos experienciados


a partir da prática extensionista do Abricó como forma
de contribuir para outras atividades de Extensão que
estejam em curso. Sem a pretensão de trazer fórmulas
fechadas para a superação de determinadas questões,
optamos por expor nossas dificuldades e, inclusive, as
contradições presentes no processo de incorporação das
diretrizes dos escritórios modelo à prática da Extensão.
Se no artigo anterior nos debruçamos sobre os elementos
que caracterizam o Abricó enquanto um EMAU, agora
partirmos da análise das práticas do dia a dia para repensar
a própria concepção dessas diretrizes e a maneira como
estas, quando confrontadas com a experiência prática, se
conformam quase como abstrações metodológicas. Aqui
as chamamos de abstrações pelo fato da consolidação de
uma estrutura metodológica, tanto para o funcionamento
do EMAU quanto para o trabalho a ser desenvolvido em
suas respectivas comunidades de atuação, só ser passível
de ser amadurecida a partir de somatórios de práticas
empíricas e de suas posteriores reflexões analíticas.
TRAJETÓRIA,
VIVÊNCIAS,
PERMANÊNCIA E
CONTINUIDADE
Reflexões sobre a

capítulo 8
Extensão no
XVIII ENANPUR
Jane Roberta de Assis Barbosa
Sara Raquel Fernandes Queiroz de Medeiros

O CONVITE PARA O RELATO E A REFLEXÃO

As Oficinas de Práticas Urbanas ocorreram pela primeira


vez, na programação do XVII Encontro Nacional de Pós-
graduação em Planejamento Urbano e Regional – XVII
ENANPUR, que ocorreu na cidade de São Paulo/SP, em 2017.
O relato dessa experiência está disponível em: Extensão em
Prelúdio: crônicas das oficinas de práticas urbanas do XVII
ENANPUR, capítulo elaborado por Karina Leitão e Caio
Santo Amore,1 onde é possível observarem-se os esforços
desempenhados por professores e pesquisadores para
apresentar processos e dinâmicas presentes nos campos de
suas atividades extensionistas e pesquisas.
Ilha do Bororé,
São Paulo, 2019
foto_ Débora Laub
152 Além dos Muros da Universidade: Planejamento Urbano e Regional e Extensão Universitária capítulo 8 Trajetória, Vivênvias, Permanência e Continuidade 153

Esforço semelhante foi o da Comissão compromissos assumidos, convidar nossos convite atendido, os relatos obtidos. Embora às Oficinas de pré-evento nas próximas
Organizadora da 18ª edição do ENANPUR, colegas para tomarmos um café e “bater tenhamos feito esforços para não privilegiar edições do ENANPUR, dado o papel que elas
realizada em Natal/RN, que acolheu o um papo” a respeito de suas experiências. uma ou outra Oficina, com o cuidado de desempenharam para o estabelecimento
desejo da comunidade anpuriana de dar Para isso, seguimos algumas estratégias. elaborar um roteiro básico para orientar a de conexões entre os participantes e a
continuidade às oficinas extensionistas. A primeira delas foi respeitar o tempo conversa, não pudemos evitar que alguns divulgação do conhecimento produzido
Nesse sentido, colegas dos programas de disponível e a compatibilidade de agendas, professores fossem mais detalhistas em sobre o território norte-rio-grandense. O
pós-graduação do Rio Grande do Norte, pois, nem todos poderiam dispor de tempo seus relatos, tornando possível explorar texto finaliza com algumas considerações
associados à ANPUR, aceitaram o desafio para, entre uma atividade e outra, se deslocar mais elementos na produção dos textos acerca dos relatos dos organizadores e notas
de apresentar o território e um portfólio para nos atender. A segunda estratégia diz correspondentes. Todavia, assumimos inteira da organização, procurando refletir sobre a
das suas práticas de Extensão, bem como respeito à escolha do local onde ocorreriam responsabilidade no que concerne ao modo importância da Extensão Universitária na
das pesquisas realizadas no âmbito de seus os encontros, e percebemos que realizá-los escolhido para expor o conteúdo dos relatos, atualidade.
programas. O evento ofereceu aos seus na circunscrição da universidade seria mais e, desde já, pedimos desculpas se não tivermos
participantes dez oficinas, que integraram cômodo. Os encontros, animados pelo café conseguido expressar a riqueza que envolveu Desejamos que o sabor, a intensidade e o
as atividades pré-evento, nos dias 25 e 26 e uma conversa agradável, além de nos os depoimentos dos colegas. Ao aceitarmos perfume do café que deu um toque especial
de maio de 2019. Elas serão apresentadas ajudar a compreender melhor as escolhas, o convite para escrever sobre as Oficinas, aos nossos diálogos acompanhem o leitor
neste texto por meio do relato dos seus estratégias, pontos positivos e desafios assumimos o desafio de refletir sobre o sentido deste texto.
organizadores. à oferta e realização das Oficinas de pré- da Extensão e sua realização no âmbito do
evento, proporcionaria, a nós e nossos XVIII ENANPUR. Assumimos ainda a escolha
Do convite à realização das Oficinas convidados, a oportunidade de conhecer de respeitar a liberdade de pensamento
percorreu-se um longo processo de melhor a prática do outro. daqueles que ouvimos e a liberdade de escrita TRAJETÓRIA
organização, o qual poderíamos ter descrito para traduzir, na forma de um texto, a riqueza
por meio das trocas de correspondências Cabe, no entanto, um esclarecimento. Das dez das ideias e vivências coletadas. Em virtude do sucesso obtido com a
eletrônicas, dos arquivos de documentos, Oficinas, três tiveram seus relatos enviados realização das Oficinas de Prática Urbanas
resumos e recibos de pagamentos. Seria, por e-mail, e os outros sete foram sendo O texto aqui apresentado está estruturado no XVII ENANPUR, houve uma expectativa,
portanto, um relatório técnico de prestação generosamente narrados/compartilhados em três partes, precedidas de uma breve por parte da Coordenação da 18ª edição,
de contas. Todavia, optamos por refletir e durante encontros presenciais. Os relatos que introdução cujo objetivo é convidar o leitor de dar continuidade às Oficinas. Para que
escrever a respeito das Oficinas com base ora apresentamos, obtidos no período de 29 para acompanhar o resultado do diálogo elas pudessem ocorrer seria necessário
no relato daqueles que as organizaram. de julho a 01 de agosto de 2019, não têm a estabelecido entre nós e os realizadores cumprir uma trajetória, haveria um caminho
Tentaríamos, portanto, abstrair-nos da pretensão de promover discussões teóricas das Oficinas. Em seguida, as Oficinas são a ser percorrido, a respeito do qual alerta
pressa habitual para cumprir as tarefas da e conceituais sobre a prática extensionista. apresentadas em sua trajetória, a qual o poeta Antonio Machado: “Caminante, no
vida docente (Ensino, Pesquisa, Extensão e Nosso interesse é apresentar, com a mesma perpassa questões relacionadas à sua hay camino, / se hace camino al andar”. E
administração) e, sem deixar de honrar os generosidade com a qual tivemos nosso elaboração e à execução. Na segunda parte, mesmo aqueles aparentemente mais curtos,
que tem foco nas vivências constituídas no dotados de equipamentos que facilitam o
âmbito da realização da atividade, exploram- trajeto, têm desafios que necessitam ser
se os ensinamentos e aprendizados superados.
1. LEITÃO, K. & SANTO AMORE, C. (2017). Extensão em Prelúdio. Crônica das Oficinas de Práticas Urbanas no XVII ENANPUR. In derivados da experiência. Na terceira parte,
C. D’OTTAVIANO & J. ROVATI. Para Além da Sala de Aula. Extensão Universitária e Planejamento Urbano e Regional. São Paulo: destaca-se a relevância de dar continuidade
FAUUSP/ANPUR, pp. 50-66.
154

Nesse
de vivências.

sentido,
compartilhamento

a
do

para cada ajuste das oficinas.


coordenação

distintos prédios da UFRN foram primordiais


e a comunidade. Afinal, se é verdade que a

ações que seriam realizadas, ocorreram


arquitetônica onde o evento estava abrigado
continuassem a promover espaços de

geral do evento, para definir e ajustar as


do Norte (ver Quadro 1). Nem sempre os
observar processos representativos das
Graduação em Planejamento e Dinâmicas

experiências com escalas que permitiram


Pós-graduação em Arquitetura e Urbanismo
público de uso coletivo e demais espaços
nos conselhos comunitários, no transporte

dinâmicas socioeconômicas do Rio Grande


colegas possibilitou uma diversidade de
UERN, associados à ANPUR. A adesão dos
Territoriais no Semiárido - PLANDITES/
graduação em Estudos Urbanos e Regionais
pesquisadores vinculados ao Programa de
do
prática acadêmica na rua, em assentamentos,
e construir caminhos para a reflexão da
era preciso “romper os limites” da forma
O primeiro deles era que as Oficinas

Extensão tem uma função social importante,


conhecimento

mensagens rápidas através de aplicativos, os


encontros nos corredores e nas escadas de
de e-mails, os telefonemas, as trocas de
por meio de reuniões formais. As trocas
convites e as conversas, com a coordenação
- PPEUR/UFRN e ao Programa de Pós-
- PPGAU/UFRN, ao Programa de Pós-
evento realizou convites para docentes e
produzido e de interação entre a universidade

Estados Unidos da América.


Além dos Muros da Universidade: Planejamento Urbano e Regional e Extensão Universitária

compunham o seguinte percentual: 8,24%.


mas, também, às faixas etárias, pois 18% dos
os dois dias de oferta, a saber: sábado e

a faixa entre 41-59 alcançou 15,05%. Os


inscritos tinham até 22 anos, 38% estavam
em processo de finalização. A diversidade
graduação ao doutorado, bem como a de
(5,4%), Rio Grande do Sul (4,3%), Santa
os números dos estados de Rio de Janeiro
estado do Rio Grande do Norte, oriundos
a escolha de bairros e comunidades situados
explorada nas Oficinas, bem como os lugares

que não informaram a data de nascimento


o percentual entre 31-40, e, finalmente,
na faixa etária entre 23-30 anos, 20,1% era
refere ao local de origem e sua titulação,
Quanto à titulação, a representação vai da
houve participação de estrangeiros nas
(3,3%) e Paraná (3,3%). Destaca-se que
sobretudo a UFRN, e 15% do estado de São
domingo. Dos participantes, 51% eram do
um amplo leque de opções, considerando
Sul, Extremoz e São Miguel do Gostoso,
em Natal, mas municípios como Tibau do
Fonte: elaboração das autoras, 2019

inscritos com pesquisas de pós-doutorado


oficinas, procedentes da Colômbia e dos
Catarina (4%), Pará (3,6%), Minas Gerais
Paulo; mas também foram representativos
de várias instituições de ensino superior,
a possibilidade de se fazer inscrição para
evidência para oferecer aos 279 inscritos
por exemplo, também estiveram em
onde elas ocorreram. Vê-se que predominou
QUADRO 1: Oficinas do XVIII ENANPUR

dos inscritos não estava apenas no que se


O Quadro 1 mostra a diversidade temática

Nº DE
W DIA OFICINA ORGANIZADORES LOCAL OBJETIVO
VAGAS

Apre(E)nder (com) o Espaço Realizar atividade de apreensão e registro de aspectos


SÁB / morfológicos de trechos definidos previamente, localizados
Urbano: Narrativas sobre a Vila de Ponta
1 20 José Clewton do Nascimento (PPGAU/UFRN) em Natal, visando reforçar a ideia do “olhar calmo e
Cidade de Natal através dos Negra, Natal/RN
DOM atento sobre a cidade”, no sentido da construção de um
Desenhos de Locação conhecimento e síntese do que é observado.

Comércio Popular e Gerar uma reflexão sobre a dinâmica urbana do Alecrim no


Cláudio Roberto de Jesus (PPEUR/UFRN); presente, visando sistematizar conhecimento acadêmico e
Reestruturação Urbana no Ruth Maria da Costa Ataíde (PPGAU/UFRN);
Bairro do Alecrim, questões propositivas que contribuam para a agenda dos
2 SÁB 40 Bairro do Alecrim: Espaço Alexsandro Ferreira Cardoso da Silva (PPEUR-
Natal/RN movimentos sociais mobilizados principalmente em defesa
PPGAU/UFRN); Maria Dulce Picanço Bentes
Público, Apropriações e dos direitos dos comerciantes informais do Alecrim, na
Sobrinha (PPEUR-PPGAU/UFRN).
Disputas Territoriais perspectiva do Direito à Cidade.

Jane Roberta de Assis Barbosa (Estúdio Refletir sobre as diversas apropriações do espaço,
O Outro Lado do Rio: Velhas Conceito/UFRN); Sara Raquel Fernandes Região considerando a produção do espaço residencial, as
Queiroz de Medeiros (PPEUR/UFRN); Beatriz Administrativa dinâmicas dos circuitos da economia, e o papel do
3 SÁB 20 e Novas Configurações da Medeiros Fontenele (PPEUR/UFRN); Daniel Norte de Natal/ planejamento urbano e regional na indução de dinâmicas
Periferia de Natal Nicolau de Vasconcelos Pinheiro (PPGAU/ RN de ocupação para o “desenvolvimento”,estando mesclado
UFRN).
com cenários de desigualdades socioespaciais.
Região
Paisagem e Vulnerabilidade Ruth Maria da Costa Ataíde (DARQ/UFRN); Metropolitana Conhecer e identificar os principais os principais pontos de
Socioambiental na Região Alexsandro Ferreira Cardoso da Silva (DPP/ de Natal, nos conflito entre a expressão da metropolização e a existência
UFRN) e Amíria Bezerra Brasil (DARQ/UFRN) municípios de
Metropolitana de Natal: das áreas ambientais – protegidas ou não – que revelam
4 DOM 20 . Apoio das pós- Parnamirim,
capítulo 8

Espaços Livres, Áreas Graduandas: Erika Milena Carvalho Guimaraes Extremoz, São algumas dimensões da problemática socioambiental,
Ambientais e os Dilemas de Leoncio (PPEUR/UFRN) e Karitana Maria de Gonçalo do discutindo os impactos à paisagem e as alternativas ao
Souza Santos (PPGAU/UFRN). Amarante e enfrentamento dos problemas.
uma Região em Crescimento
Macaíba

José Gomes Ferreira (PPEUR/UFRN). Apoio do Discutir a controvérsia pública sobre a construção do
Na Brisa do Vento: Energia São Miguel do
5 SÁB 40 pós-graduando: Herbert Emmanuel Lima de complexo eólico e sua inserção na paisagem e no conjunto
Eólica no Litoral Potiguar Gostoso/RN
Oliveira (PPEUR/UFRN). de atividades econômicas do município.

Cartografias Insurgentes: Winifred Knox (PPEUR/UFRN) e Cimone Conhecer novas formas de produção e reprodução dos
Rozendo (PGCS/UFRN). Apoio das pós- Pitangui,
6 SÁB 40 Economia Feminista e a Graduandas: Carine Santos (PGCS/UFRN) e Extremoz/RN
modos de vida e economia, assim como novas formas de
Agroecologia Victorya Carvalho (PPEUR/UFRN). relação com o ambiente.

Rodolfo Finatti (PPEUR/UFRN); Huda Andrade


Bicicletada na Orla: do Silva de Lima (Observatório das Metrópoles/ Percorrer o trecho da faixa litorânea e urbana de Natal
Via Costeira,
7 DOM 20 Imobiliário-turístico às Zonas de RMNatal). Apoio das pós-graduandas do PPEUR/ sobre bicicleta para presenciar conflitos diferenciados na
Natal/RN
UFRN: Alenuska Lucena Medeiros e Gabriela paisagem urbana da cidade
Proteção e de Interesse Social
Baesse Iglesias Alves Pereira.

Apoiar a comissão que discute sobre os moradores em


situação de rua em Natal/RN, na busca de respostas
Verônica Maria Fernandes de Lima (PPGAU/ para questões tão delicadas e urgentes como: O que é
Pessoas em Situação de Rua na Bairro da Ribeira,
8 DOM 40 UFRN); Ricardo Moretti (DARQ/UFRN); Tadeu população em situação de rua? Quem são as pessoas que
Cidade de Natal Natal/RN
Mattos (UFRN). a compõe? Quais são suas características? Quais são suas
principais demandas? Quais as soluções mais viáveis para
atendê-las?
Litoral Sul Situar o ordenamento territorial do turismo no Rio Grande
Josué Alencar Bezerra (PLANDITES/UERN) e
Trajetória, Vivênvias, Permanência e Continuidade

Pipa na Lógica Litorânea do da Região


9 SÁB 40 Larissa da Silva Ferreira Alves (PLANDITES/ do Norte, contextualizando o papel de Pipa (Tibau do Sul-
Turismo Sol e Praia Metropolitana de
UERN). RN) na lógica litorânea do turismo de ‘sol e praia’.
Natal/RN

Provocar reflexões sobre a experiência de Mãe Luiza e sua


Arena do Morro: Mais do que Nilberto Gomes de Sousa (UFRN) e Yuri de Bairro de Mãe
10 DOM 40 possível irradiação para outras localidades que passam por
155

um Projeto de Arquitetura Souza Duarte (UFRN). Luiza, Natal/RN


problemas semelhantes.
156 Além dos Muros da Universidade: Planejamento Urbano e Regional e Extensão Universitária

FIGURAS 1a 5 : Oficina 01

Fotos: Marcos Kyoto (1 e 2);


André Baptista (3 a 5)

A organização do XVIII ENANPUR cercou- As descrições detalhadas têm como objetivo Havia, para os dias em que se realizariam as
se de alguns cuidados para a realização das demonstrar que a prática de Extensão, com Oficinas de pré-evento, várias expectativas,
Oficinas. Os transportes contratados, ônibus exposição na realidade, requer cuidados e uma das quais dizia respeito à previsão
e micro-ônibus, estavam abastecidos com custos que por vezes não fazem parte da do tempo. Anunciavam-se manhãs de sol,
água e lanches. Foram contratados seguros prática administrativa das instituições e/ seguidas de pancadas de chuva, para as
de vida para cada participante, medida ou não estão previstas em orçamentos e tardes e noites dos dias 25 e 26 de maio
essa que exigiu o encerramento prévio contratações. de 2019. Os dias seriam quentes, mas havia
das inscrições para que se repassassem a possibilidade do sol não brilhar com
as informações pessoais dos inscritos à intensidade.
seguradora com antecedência de cinco dias
até a data de realização de cada Oficina. Os VIVÊNCIA A OFICINA 01, Apre(E)nder (com) o Espaço
custos com seguro são de valor reduzido Urbano: Narrativas sobre a Cidade de
e essa medida amplia consideravelmente A ideia de vivência nos remete ao conteúdo Natal através dos Desenhos de Locação,
a segurança para os participantes e os existencial que permeia as ações, encontros/ organizada pelo Prof. José Clewton do
organizadores. A bicicletada foi uma das desencontros, uso de objetos, consumos, Nascimento (PPGAU/UFRN), forneceu aos
ações com maior custo, pois envolveu, anseios e expectativas com as quais temos que nela se inscreveram a possibilidade
além do seguro, o aluguel de bicicletas, que lidar diariamente. São os prédios, as de observar a Vila de Ponta Negra como
a disposição de uma equipe médica em casas, as ruas, por exemplo, que, animados parte de um texto complexo cujo conteúdo
ambulância, equipe de apoio e suporte ao pela sociedade em movimento, dão sentido maior é a cidade de Natal. Seu objetivo
conserto das bicicletas. às cidades que habitamos. Essas formas foi, portanto, provocar reflexões e formas
ou objetos, com as quais cotidianamente de representação da cidade através do
Outro desafio que se buscou superar diz nos defrontamos para com elas coexistir, desenho, partindo de uma metodologia
respeito às ausências de alguns inscritos no compõem as paisagens resultantes das utilizada pelo Grupo Urban Sketchers (USK),
evento, muitas comunicadas e justificadas relações com os lugares, criadas ao longo que existe há sete anos no Departamento
em virtude das mudanças e cancelamentos do tempo. A observação atenta e criteriosa de Arquitetura da UFRN. A escolha do local
de voos da companhia Avianca (que estava da cidade pode, como um texto, revelar os deveu-se à possibilidade de oferecer um
em recuperação judicial). Desse modo, sucessivos processos de transformação que campo de observação interessante para os
algumas Oficinas foram executadas com resultaram na sua dinâmica atual. participantes, tendo em vista que nela estão
menos de 40% dos inscritos, embora a concentrados, num trecho curto da cidade,
maioria tenha sido realizada com cerca de Apresentamos aqui os relatos das Oficinas dois grandes contrastes: de um lado tem-
70% dos inscritos. Lembramos que não havia na sequência em que elas foram inseridas no se a especulação imobiliária da cidade, que
possibilidade de inscrições no dia da Oficina, site do evento, que corresponde, também, atinge a Vila de Ponta Negra, de outro,
em virtude dos seguros contratados. à sucessão dos acontecimentos: convite da a resistência frente a essa especulação.
coordenação do evento para os colegas, Além disso, ela ainda guarda referências
elaboração da proposta e divulgação. importantes da sua origem como vila de
pescadores.
158 Além dos Muros da Universidade: Planejamento Urbano e Regional e Extensão Universitária capítulo 8 Trajetória, Vivênvias, Permanência e Continuidade 159

O trajeto percorrido ficou a critério dos


participantes, os quais caminharam sem
roteiro previamente definido, cruzando ruas,
pontos comerciais e a feira livre do bairro.

A Oficina reuniu um público diverso, do A OFICINA 02, Comércio Popular e Os participantes puderam, então, conhecer
qual cerca de 60% eram arquitetos. Todavia, Reestruturação Urbana no Bairro do a cidade de Natal para além do roteiro
como 40% dos participantes não possuía Alecrim: Espaço Público, Apropriações turístico. Durante a tarde, o grupo se reuniu
familiaridade com a técnica do desenho, e Disputas Territoriais, contou com a para discutir os elementos que puderam
havia uma certa ansiedade sobre se os organização de Cláudio Roberto de Jesus observar nos locais visitados e estabelecer
participantes conseguiriam expressar no (PPEUR/UFRN), Ruth Maria da Costa comparações entre as experiências nesses
papel os elementos da paisagem observada. Ataíde (PPGAU/UFRN), Alexsandro Ferreira locais e as obtidas por meio de suas pesquisas
Para Clewton Nascimento, citando Eduardo Cardoso da Silva (PPEUR-PPGAU/UFRN) ou de paisagens que lhes são habituais.
Salavisa, mais importante que o desenho é e Maria Dulce Picanço Bentes Sobrinha
o processo de observação: o que observo? (PPEUR-PPGAU/UFRN). A proposta partiu A OFICINA 03, O Outro Lado do Rio: Velhas
Como a realidade observada pode ser do professor Cláudio Jesus, remetendo a e Novas Configurações da Periferia de
representada? Questões como essas foram uma proposta fomentada pelo Professor Natal, contou com a organização de Jane
amplamente discutidas na Oficina. Desse Roberto Monte-Mór, no XV ENANPUR, Roberta de Assis Barbosa (Estúdio Conceito/
modo, o ponto de partida era a observação realizado em Belo Horizonte, com foco em UFRN), Sara Raquel Fernandes Queiroz de
da paisagem, cuja representação poderia bairros populares. Para o XVIII ENANPUR, Medeiros (PPEUR/UFRN), Beatriz Medeiros
ocorrer através do desenho, mas poderia, essa ideia foi resgatada e agregaram-se a ela Fontenele (PPEUR/UFRN) e Daniel Nicolau
também, utilizar outros recursos variados, as demandas dos outros colegas do PPGAU. de Vasconcelos Pinheiro (PPGAU/UFRN).
como a colagem de materiais coletados na Conforme informado no resumo submetido
rua. Assim, o receio de não dominar a arte pelos professores que coordenaram a A intenção foi apresentar parte das pesquisas
de desenhar e o contato com uma paisagem atividade, “o bairro do Alecrim é área de e indagações colocadas pelo Grupo
que lhes era estranha – a maioria dos residências populares, de comércio de rua Cidades Contemporâneas sobre a Região
participantes não era de Natal – foi resolvido e de comércio formal, atraindo pessoas Administrativa Norte da Cidade de Natal.
com uma conversa. de todas as partes da cidade em busca Essa é uma área estigmatizada, em virtude da
de produtos baratos, oportunidades de sua ocupação por uma população de menor
O trajeto percorrido conduziu os emprego e renda, e dos serviços ofertados”. poder aquisitivo, mas que passa por amplos
participantes à Praça do Cruzeiro (tráfego processos de transformações advindos de
mais intenso), pela principal rua da Vila, A ideia era caminhar pelos principais pontos investimentos públicos e privados. A equipe
denominada Floresta, com posterior do comércio informal, considerando que organizadora da Oficina disponibilizou
parada em frente à Igreja Matriz de São a informalidade está diluída, inclusive em encarte com informações acerca do trajeto
João. O ponto final do trajeto foi uma diversas edificações. O grupo saiu do Hotel que seria percorrido, bem como um mapa
tapiocaria situada na Vila de Ponta Negra, Praia Mar e dirigiu-se até a entrada da para o exercício de observação/anotação.
onde se realizou a culminância da atividade Vila da Marinha. Trafegaram em direção
por meio da construção de um painel ao camelódromo, passando pelo relógio, A Oficina iniciou com um trajeto de trem,
síntese composto por desenhos, narrativas e então fizeram movimentos de dispersão partindo da estação da Ribeira com destino à
FIGURAS 6, 7 e 8 : Oficina 02
e palavras-chave. O final da Oficina foi e concentração, a cada 15-20 minutos, estação Nordelândia. Trata-se de um trecho
coroado com uma roda de samba e uma com o compartilhamento das experiências Fotos: Claudio Jesus fortemente demarcado pelas ocupações
apresentação cultural promovidas pela vivenciadas. irregulares, autoconstrução e bordas
tapiocaria.
160 Além dos Muros da Universidade: Planejamento Urbano e Regional e Extensão Universitária capítulo 8 Trajetória, Vivênvias, Permanência e Continuidade 161

FIGURAS 9 a 12 : Oficina 03

Fotos: Inês Martina (9 a 11); Marcos Kyoto (12)

dos conjuntos habitacionais. A segunda Explorando a escala da Região Metropolitana, A Oficina foi organizada prevendo dois
parte do roteiro foi realizada de ônibus, tivemos a OFICINA 04, Paisagem e momentos. O primeiro ocorreu pela manhã
adentrando os conjuntos da COHAB, com Vulnerabilidade Socioambiental na Região e correspondeu à entrega de material
uma perspectiva de ordenamento e padrão Metropolitana de Natal: Espaços Livres, para registro e cumprimento do trajeto
das moradias peculiares a Natal – que não Áreas Ambientais e os Dilemas de uma anteriormente mencionado. O segundo
possui a conotação de remoção de favelas, Região em Crescimento, que foi organizada consistiu no mapeamento e definição de
comum a outras capitais do Brasil. Além por Ruth Maria da Costa Ataíde (DARQ/ propostas: políticas, planos, leis, e foi
disso, ainda, no ônibus, foi possível observar UFRN), Alexsandro Ferreira Cardoso da realizado durante a tarde. Destacaram-se,
novos investimentos instalados na Região Silva (DPP/UFRN) e Amíria Bezerra Brasil nas observações, os marcos regulatórios de
Administrativa Norte de Natal, como o (DARQ/UFRN). Ela contou com o apoio proteção ao meio ambiente na cidade de
Ginásio Nélio Dias, equipamento esportivo das pós-graduandas: Érica Milena Carvalho Natal. Conforme relato dos seus realizadores,
inaugurado em 2008 e fechado desde 2017. Guimarães Leôncio (PPEUR/UFRN) e Karitana a Oficina permitiu a observação in loco,
O projeto é do arquiteto natalense Moacir Maria de Souza Santos (PPGAU/UFRN). enriquecendo, assim, as discussões daquele
Gomes – também autor do antigo estádio dia e durante o evento.
Machadão e do ginásio Machadinho. Conforme proposta divulgada no XVIII
ENANPUR, “os municípios contíguos a
Natal (Parnamirim, Extremoz, São Gonçalo
do Amarante e Macaíba) apresentaram, na
última década, crescimento mais acentuado
do que o polo da RM, especialmente em
Em seguida, o grupo foi conduzido ao suas áreas periféricas”. A escolha do roteiro
Partage Norte Shopping, onde se deu se deu com base na escolha de locais que
uma conversa com o seu administrador. A fossem representativos da temática que
culminância da Oficina ocorreu no Mercado seria abordada, abarcando, portanto, o anel
Público da Redinha, com a colaboração dos viário metropolitano, áreas turísticas e de
representantes do Conselho Comunitário especulação imobiliária, Zonas de Proteção
Jonh Pierre de Brito Nascimento e Ambiental (ZPAs), Aeroporto Aluízio Alves e
Gutemberg dos Santos, no restaurante empreendimentos do Programa Minha Casa
da Dona Marta, que recepcionou os Minha Vida situados próximo ao aeroporto
participantes com café, água de coco e (Natal e Extremoz; São Gonçalo e Macaíba;
ginga com tapioca – uma iguaria local. Parnamirim e Natal). É importante destacar
Os representantes do Conselho do bairro que esse percurso já havia sido realizado em
apresentaram a agenda de reivindicação uma disciplina da pós-graduação ministrada
da comunidade, destacando os conflitos pelas professoras Ruth Ataíde e Amíria
envolvidos nas obras de urbanização da orla Brasil.
da praia e os demais investimentos para
a atividade turística, que nem sempre se FIGURAS 13 e 14 : Oficina 04
refletem em melhorias para os moradores.
Fotos: Érica Guimarães
162 Além dos Muros da Universidade: Planejamento Urbano e Regional e Extensão Universitária capítulo 8 Trajetória, Vivênvias, Permanência e Continuidade 163

FIGURAS 15 a 18 : Oficina 05

Fotos: Anne Brustolin

A 128 km de Natal, o município de São


Miguel do Gostoso foi o local de realização
da OFICINA 05, Na Brisa do Vento: Energia Com o tema Cartografias Insurgentes:
Eólica no Litoral Potiguar, organizada Economia Feminista e a Agroecologia,
por José Gomes Ferreira (PPEUR/UFRN) a OFICINA 06 foi organizada por Winifred
e com o apoio do pós-graduando Herbert Knox (PPEUR/UFRN) e Cimone Rozendo
Emmanuel Lima de Oliveira (PPEUR/UFRN). (PGCS/UFRN), contando com o apoio das
A preparação desta Oficina se deu com cerca pós-graduandas Carine Santos (PGCS/
de seis meses de antecedência, demandando UFRN) e Victorya Carvalho (PPEUR/UFRN). A
contatos com o prefeito José Renato Teixeira proposta da Oficina foi promover uma visita
de Sousa e visitas mais técnicas para acertar à associação de mulheres que produzem
os pormenores do evento. e beneficiam algas, e, nesse momento,
realizar conversas coletivas, dinâmicas
A primeira parte da Oficina realizou-se sociais territoriais afetivas e almoço,
no Centro de Cultura de São Miguel do experimentando-se assim “novas formas de
Gostoso, com a visita ao parque principal produção e reprodução dos modos de vida
da Voltalia, os edifícios de manutenção e a e economia, assim como novas formas de
subestação. Os diversos equipamentos e, em relação com o ambiente”. O grupo ouviu
particular, a imponência das torres eólicas relatos de mulheres muito empoderadas,
construídas em betão pela DoisA Engenharia as quais falaram sobre a riqueza da sua
impressionaram os visitantes, assim como os participação na associação e suas conquistas.
impactos diretamente sentidos, entre eles
o ruído e o efeito estroboscópico das pás A proposta da Oficina deu visibilidade a uma
das turbinas ao girarem contra a luz do sol. experiência com mulheres pescadoras. A ideia
No encerramento da atividade, destacou-se, era mostrar abordagens sobre as pesquisas
por parte dos participantes, a compreensão que estão sendo desenvolvidas pelo grupo
da especificidade da produção de energia LabRural da UFRN, as quais estabelecem a
eólica em São Miguel do Gostoso e dos conexão universidade-comunidade.
arranjos conseguidos entre os atores sociais
no sentido de produzir energia eólica, Um mês antes da Oficina houve uma conversa
manter a atividade turística e a pesca – em com as mulheres sobre suas trajetórias, o que
São Miguel do Gostoso, o conflito existente seria importante ser explorado na Oficina e
na fase de instalação afastou os parques 2 definição da logística. Os alimentos utilizados
km da linha de costa – e reforçar a imagem na Oficina foram produzidos pelas próprias
da cidade como destino preferencial mulheres ou trazidos de comunidades
para turistas, velejadores, empresários, parceiras. Elas serviram alimentos à base de
e comunidade. Os participantes tiveram algas e frutos do mar, com uma variedade
FIGURAS 19, 20 e 21 : Oficina 06
a oportunidade de vivenciar importantes que impressionou os participantes. Além
momentos de aprendizagem. Fotos: Elionete Garzoni (19); Rayssa Cortez (20);
Cimone Rozendo (21)
164 Além dos Muros da Universidade: Planejamento Urbano e Regional e Extensão Universitária capítulo 8 Trajetória, Vivênvias, Permanência e Continuidade 165

FIGURAS 22, 23 e 24 : Oficina 07

Fotos: Anne Brustolin (22); Rossana Rebelo (23);


Rodolfo Finatti (24).

disso, procuraram dar visibilidade a outros O roteiro da Oficina, que previu diversos A Oficina teve como meta chamar a atenção
grupos e comunidades do entorno. Durante itens e paradas a serem observados, teve sobre o problema da população em situação
a Oficina, promoveu-se uma visita a lugares como ponto de partida a Praia de Ponta de rua, que já se manifesta intensamente
significativos na comunidade. Negra. Seguindo o sentido Via Costeira também em Natal. Para o enfrentamento
em direção à Ponte Newton Navarro. Os desse problema, o Serviço do Patrimônio
Quando questionados sobre os motivos participantes puderam observar como esse da União-SPU cedeu à prefeitura um
que fizeram escolher aquela Oficina, os trecho da cidade foi sendo concebido, ao casarão situado no bairro da Ribeira, junto
participantes destacaram a importância de longo de mais de trinta anos, para atender às ao porto de Natal, na perspectiva de
discutir questões relacionadas às mulheres, demandas do turismo, tornando-se também instalação de um equipamento público para
tendo em vista que há poucos espaços uma expressão de conflitos fundiários. Em atendimento à população em situação de
ofertados para discutir essa temática, e seguida, percorreu-se um trecho da orla rua. A Oficina se estruturou, pois, a partir
pelo debate sobre mulheres com foco nas proximidades de Mãe Luiza, Região de um exercício prático de visita ao prédio
na economia solidária, considerada pelas Administrativa Leste de Natal, onde, em e formulação do programa de necessidades
organizadoras uma prática insurgente. 2014, ocorreu um grande deslizamento para desenvolvimento do projeto para
de terra, deixando vários moradores esse equipamento, em conjunto com os
Uma das oficinas mais disputadas no XVIII desabrigados. Chegando à Fortaleza dos participantes e com os representantes da
ENANPUR, a OFICINA 07, Bicicletada na Reis Magos, o grupo reuniu forças para os população de rua que estavam presentes.
Orla: do Imobiliário-turístico às Zonas de dois trechos finais da bicicletada, a saber:
Proteção e de Interesse Social, contou a Ponte Newton Navarro e o Iate Clube de O Movimento Nacional de População de
com a organização de Rodolfo Finatti Natal, tendo sido realizado um passeio de Rua tem uma forte presença em Natal, e
(PPEUR/UFRN), Huda Andrade Silva de Lima barco. seu coordenador nacional, Vanilson Torres,
(Observatório das Metrópoles/RMNatal) teve um papel decisivo em todo o processo
e o apoio das pós-graduandas Alenuska O fato de o grupo ser bastante heterogêneo de mobilização e também na Oficina da
Lucena Medeiros (PPEUR/UFRN) e Gabriela atrapalhou o andamento da Oficina, mas, ENANPUR.
Baesse Iglesias Alves Pereira (PPEUR/UFRN). mesmo assim, a bicicleta proporcionou uma
Os organizadores dessa Oficina assumiram interação maior entre grupos participantes e No período da manhã foi feita uma visita ao
o desafio lançado pelo professor Márcio o meio circundante. O interesse das pessoas casarão e a alguns locais de concentração
Valença: a proposta de uma Oficina a ser pelo conteúdo abordado e a satisfação de de população em situação de rua na região
realizada com um percurso de bicicleta. integrar-se à atividade foram muito positivos. central da cidade. O trajeto incluiu uma
Diante disso, elaboraram um roteiro passagem pela Comunidade de Mãe Luiza
detalhado, o qual foi previamente testado, A OFICINA 08, Pessoas em situação de rua e o Ginásio de Esportes “Arena do Morro”,
com a preocupação em oferecer todos os a cidade de Natal, teve a organização de equipamento projetado pelo escritório
procedimentos de segurança. A distância Verônica Maria Fernandes de Lima (PPGAU/ Herzog & De Meuron, e que foi uma conquista
a ser percorrida foi testada várias vezes, UFRN), Ricardo Moretti (DARQ/UFRN) e emblemática do movimento organizado da
chegando-se a um percurso de 15 km. Tadeu Mattos (UFRN), e contou com o apoio comunidade. Ainda no período da manhã,
de Letícia de Lima. O relato foi enviado pelos foi projetado o curta-metragem “Catarro”,
organizadores, que destacaram aspectos de direção de Paulo Dumaresq, que trata do
elecandos a seguir.
166 Além dos Muros da Universidade: Planejamento Urbano e Regional e Extensão Universitária capítulo 8 Trajetória, Vivênvias, Permanência e Continuidade 167

FIGURAS 25 a 28 : Oficina 08

Fotos: Verônica Lima

tema, para auxiliar no processo de debate O destino mais desejado, Pipa, foi o campo concentra operações de lançamentos de
e reflexão, e também foi apresentada uma da OFICINA 09, Pipa na Lógica Litorânea foguetes de pequeno e médio porte, é uma
análise e diagnóstico do quadro da população do Turismo Sol e Praia, organizada por área militar de preservação permanente,
em situação de rua no Brasil e em Natal. Foram Josué Alencar Bezerra (PLANDITES/UERN) e e foi base militar de apoio aos Aliados
ainda debatidas as diretrizes, para a solução Larissa da Silva Ferreira Alves (PLANDITES/ na 2ª Guerra Mundial; Pirangi do Norte,
do problema, contidas no relatório que foi UERN). Entramos em contato com os Parnamirim - área de extensão urbana da
encaminhado ao Conselho Municipal de organizadores, que enviaram um relato, a Grande Natal, de investimento turístico de
Habitação de Interesse Social/CONHABINS. partir do qual formulou-se o texto. temporada e de relevantes pontos turísticos,
No período da tarde, foi lançado o desafio de como o maior cajueiro do mundo e os
preparação de um programa de necessidades A proposta da Oficina nasceu da demanda parrachos de Pirangi; Praia de Búzios, Nísia
e de um zoneamento definindo espaços e de abordar a dinâmica turística de Pipa, Floresta - ponto de urbanização extensiva da
funções para a proposta de reuso do casarão. no contexto da dinâmica internacional de Grande Natal, com edificações tipicamente
Foram formados dois grupos de trabalho que, desenvolvimento do turismo no Nordeste projetadas para segunda moradia; Estação
ao final da tarde, apresentaram e discutiram as brasileiro, inserindo-se no debate a formação Papary, Nísia Floresta - estação ferroviária
propostas formuladas. urbana desses espaços turistificados, tendo construída no final do século XIX e que hoje
em vista que, no NE, muitas políticas abriga o restaurante Marina’s Camarões
Surgiram duas diferentes propostas, ambas públicas de turismo tiveram o papel e perfil onde se deu a parada para o almoço; Lagoa
concebendo o uso do casarão em duas de políticas urbanas. de Guaraíras, Tibau do Sul - região que é a
partes: acesso público para atendimento maior produtora de camarão do país; Praia
de serviços básicos para a população em Os organizadores optaram por um percurso de Cacimbinha, Tibau do Sul - importante
situação de rua em geral, e constituição de que contemplasse boa parte do litoral oriental eixo de integração ao turismo de Pipa;
repúblicas, incluindo uma especificamente do RN, passando por núcleos urbanos com Santuário Ecológico de Pipa, Tibau do Sul
voltada ao público feminino. equipamentos turísticos importantes para - Trilha ecológica realizada no intuito de
o estabelecimento da atividade no estado, inserção no território, análise da paisagem e
estabelecendo então um elo na cadeia do da dinâmica ambiental; Centro de Pipa, Tibau
debate sobre turismo/urbanização. do Sul - relato sobre o processo histórico de
formação e atual contexto do turismo de
É importante ressaltar que o uso da Pipa; Chapadão da Pipa, Tibau do Sul - deu-
ferramenta Google maps (ver figura 28) se aí o encerramento do roteiro, exatamente
permitiu que o percurso, que teve início na às 17h, com vista do pôr do sol e da Praia do
Praia de Ponta Negra, fosse acompanhado Amor, finalizando o dia de atividades.
pelos participantes por meio da observação
da paisagem e da imagem de satélite
disponível na ferramenta, a qual expressou
com clareza a riqueza do itinerário. Percorreu-
se o seguinte trajeto: Centro de Lançamento
da Barreira do Inferno, Parnamirim - a base
168 Além dos Muros da Universidade: Planejamento Urbano e Regional e Extensão Universitária capítulo 8 Trajetória, Vivênvias, Permanência e Continuidade 169
FIGURAS 29 a 32 (página anterior): Oficina 09

Fonte mapa: produção própria (29)


Fotos: Rebeca Marota (30); Josué Bezerra (31 e 32).

FIGURAS 33 e 34 : Oficina 09 Fotos: Rebeca Marota (33); Cadmiel Mergulhão (34).

Durante a Oficina foi disponibilizado aos A número 10 das Oficinas, denominada Arena
participantes um material didático em do Morro: Mais do que um Projeto de
formato de mapa, que também fornecia Arquitetura, contou com a organização de
pequenos relatos de cada ponto visitado. Nilberto Gomes de Sousa (UFRN) e Yuri de
O roteiro permitiu uma compreensão mais Souza Duarte (UFRN). A Oficina foi realizada
ampla do turismo no estado do Rio Grande no bairro de Mãe Luiza. Conforme proposta
do Norte, a sua dimensão urbano-litorânea, divulgada, esse bairro originou-se da ocupação
a macrocefalia da RMNatal e as distintas de parte das dunas que limitam a cidade nas
composições urbanas. proximidades do litoral. Embora situada em
área valorizada, essa sempre foi uma das áreas
mais carentes e violentas da cidade.

A concepção da Oficina nasceu no âmbito


do grupo Estúdio e Conceito, que atua nas
discussões sobre os projetos de arquitetura e
seus efeitos na cidade. Nesse sentido, discutir
o projeto Arena no Morro se apresentou como
uma proposta interessante, pois Nilberto
conhecia os arquitetos suíços que fizeram o
projeto. A ideia era priorizar a apresentação
do projeto social que estava por trás do
projeto de arquitetura, dando voz à Pastoral,
aos arquitetos e à comunidade.

A presença de participantes não arquitetos


e de participantes residentes em Natal foi
bastante positiva, pois muitos desconheciam
o projeto em sua perspectiva arquitetônica e
social. Não sabiam, por exemplo, que o projeto
Arena abriga, além das atividades esportivas,
atividades culturais. A receptividade da
comunidade e seu interesse em participar,
colaborando inclusive com empréstimo de
som e cadeiras para que a Oficina pudesse ser
realizada, gerou uma economia de recursos
financeiros, com base na qual foi possível
comprar um datashow - item essencial para
a execução da Oficina - e doá-lo ao centro
pastoral, como uma contrapartida.
170 Além dos Muros da Universidade: Planejamento Urbano e Regional e Extensão Universitária capítulo 8 Trajetória, Vivênvias, Permanência e Continuidade 171

FIGURAS 35 e 36 : Oficina 10. Fotos: Anne Brustolin.

PERMANÊNCIA E CONTINUIDADE muito forte, que deve estar sempre ligado


à pesquisa” (Nilberto). “Ela é fundamental
A prática extensionista é, a um só tempo, para questionar e atualizar os debates
gratificante e desafiadora. E, conforme teóricos, uma vez que promove mediações
pudemos observar nos relatos obtidos, entre a realidade e uma teoria mais distante,
ela perpassa o percurso formativo de funcionando como um campo empírico para
muitos colegas. Faremos agora, alguns pesquisa” (Cláudio). Nessa mesma linha,
apontamentos, utilizando parte das Cimone reforça que “as oficinas promovem
experiências compartilhadas pelos colegas cooperação para a pesquisa e outras
durante os relatos, no que concerne à atividades que se deseje fazer. O desafio é
reflexão sobre a prática extensionista. encarar a Extensão como pesquisa”. Para
Utilizaremos o primeiro nome de cada isso, são necessárias mudanças substantivas
colega, no âmbito da informalidade de uma de valorização e reconhecimento das ações
conversa, que, aliás, não ocorreu com todos de Extensão.
Os relatos das vivências possuem suas ao mesmo tempo.
especificidades, mas também coincidem em As Oficinas organizadas no âmbito do
muitos aspectos. São palavras que se unem Para incorporar a Extensão em nossa ENANPUR proporcionam uma aproximação
em uma narrativa de atuação e integração prática acadêmica é necessário se despir teórica similar às escolhas das Sessões
dos participantes do XVIII ENANPUR. Como de preconceitos, estar abertos, segundo Temáticas (Cimone), o intercâmbio entre os
exercício de síntese, inserimos os relatos Cláudio, à negociação, e superar desafios. participantes, a possibilidade de “quebrar a
apresentados em um site gerador de nuvens De modo geral, o professor que faz Extensão bolha” para além do espaço do evento, muitas
de palavras (https://www.wordclouds.com/), é visto pelos demais, equivocadamente, vezes realizado em um hotel (Cláudio), abrindo
tendo o seguinte resultado: como menos profundo. Todavia, como novas perspectivas de olhar a paisagem e a
afirma Cimoni, não existe Extensão sem cidade (Huda e Rodolfo), colocando a todos
pesquisa e reflexão. A Extensão permite “cara a cara” com a realidade” (Nilberto).
a mediação entre as escalas “de fora”
(da universidade) e “de dentro” (da Por meio dos relatos obtidos é possível
universidade); permite um “corpo a corpo” ainda extrair aprendizados que podem ser
(Amíria). Assume, também, um papel considerados nas próximas edições do Evento.
fundamental no processo de formação O primeiro deles diz respeito à necessidade de
dos discentes. A universidade precisa detalhar mais as informações sobre os locais
estabelecer um diálogo mais estreito com onde as Oficinas serão realizadas. Isso implica
a comunidade, trazer essa população para a produção de um material didático no qual
dentro da Instituição. Deve-se reconhecer se busque explorar mapas e imagens dos
que a Extensão permite estabelecer o lugares percorridos durante as Oficinas, o que
FIGURA 37 : Nuvem de palavras. “elo perdido entre a universidade e a não foi pensado por todos os organizadores.
comunidade, sendo um pilar de apoio Igualmente importante é a escolha de espaços
Fonte: produção própria.
172 Além dos Muros da Universidade: Planejamento Urbano e Regional e Extensão Universitária

com boa estrutura para fazer a culminância, Durante a construção do relato, sentíamos
tendo em vista que, sendo um momento despertar, à medida que ouvíamos os
para o fechamento das ideias, eles devem organizadores, um desejo de que o dom da
oferecer as melhores condições possíveis onipresença tivesse nos permitido participar
para a produção de reflexões, relatórios e de de cada ação. As Oficinas, como um espaço
mapas-síntese. Destaque-se, no entanto, que de partilha e aprendizado, deixam legados
os organizadores das Oficinas relataram que importantes. A comunicação estabelecida
a logística disponibilizada para as oficinas do nas Oficinas foi ampliada com a formação de
XVIII ENANPUR atendeu a demanda e que alguns grupos de whatsapps. Recorremos
eles próprios não dispõem desse cenário em a esses grupos em busca dos registros
suas práticas como docentes. Além disso, fotográficos realizados pelos participantes.
alguns organizadores consideraram que o Registramos aqui nosso agradecimento
tempo necessário para a realização desse pela generosidade em ceder as imagens.
tipo de evento poderia ser ampliado para Reconhecemos, sobretudo, a força que a
que a exploração do material e a discussão Extensão possui de mobilizar mentes, corpos
pudessem se dar de modo mais profundo. e corações. A Extensão é essencial para
Surgiram, ainda, sugestões sobre a gestão trilharmos o caminho de uma ciência mais
da Oficina, a exemplo da proposta de que o humana, inclusiva, solidária, participativa e
fechamento das inscrições – do qual depende democrática.
a definição da logística necessária para a
realização da atividade – ocorra com maior E, finalmente, há que se agradecer ao sol,
antecedência, promovendo uma melhor que, contrariando nossos temores, agraciou
organização. Como as Oficinas de pré-evento as Oficinas pré-evento, cujos relatos ainda
do ENANPUR abarcam um público diverso, tiveram um sabor especial de cafezinho
inclusive com origem, idade e formação compartilhado!
variadas, evidencia-se a importância de
que ações no âmbito do ENANPUR sejam
propostas também por técnicos e gestores
da administração pública local.
A Extensão
Universitária no
XVIII ENANPUR
ê Martina Lersch
Ines

capítulo 9
´
Rita de Cassia Lucena Velloso

Este capítulo apresenta uma síntese dos trabalhos


debatidos na Sessão Temática 09 – Extensão Universitária
e Assistência Técnica no Campo e na Cidade (ST-09), do
XVIII Encontro Nacional da Associação Nacional de Pós-
Graduação e Pesquisa em Planejamento Urbano e Regional
– XVIII ENANPUR, realizado em Natal, de 27 a 31 de maio
de 2019.

Com base em nossas experiências, entendemos que os


principais objetivos da Extensão Universitária no campo
do Planejamento Urbano e Regional são estreitar laços e
consolidar vínculos entre a Universidade e a Sociedade,
com vista à melhor compreensão da realidade urbana e
política local, regional e nacional.
Ocupação Povo Sem Medo, Porto Alegre, 2019.
foto_ Ananda Rossi
176 Além dos Muros da Universidade: Planejamento Urbano e Regional e Extensão Universitária capítulo 9 A Extensão Universitária no XVIII ENANPUR 177

Fazemos Extensão para reafirmar o O espaço dedicado à Extensão se expandiu OS TRABALHOS DA ST - 09 A ST–09 registrou um público médio de 25
compromisso da Universidade com a desde o XVII ENANPUR realizado em São a 30 pessoas, contando sempre com amplo
construção de uma relação dialógica que a Paulo, no ano de 2017, avançando em número O Comitê Científico2 avaliou os artigos e instigante debate ao final de cada sessão.
aproxime da realidade e, a partir da ação, de artigos propostos, em número de mesas e segundo a relevância de seus conteúdos As relações entre artigos submetidos e
tencione nossas práticas de Ensino e Pesquisa. Sessões Livres, bem como na qualidade de e sua pertinência ao tema proposto pela apresentados nos dois últimos eventos da
suas discussões. organização do evento, com um olhar ANPUR são apresentados no Quadro 1.
Na prática extensionista, especificamente atento para as iniciativas que valorizavam o
em nossa área, as iniciativas devem Quando nos propomos a escrever sobre o compromisso social do conhecimento. Os trabalhos recebidos demonstraram uma
assegurar um processo de formação que realizamos nas atividades de Extensão, significativa representatividade institucional
norteado pela responsabilidade social e estamos exercitando a capacidade de registro A Sessão recebeu 57 trabalhos – 36 foram e regional, com trabalhos desenvolvidos de
pelo intercâmbio entre os saberes sobre a e de sistematização. Sistematizar, segundo selecionados para a categoria “Apresentação norte a sul do país. No universo dos trabalhos
cidade; o reconhecimento de que o outro Jara,1 “é refletir sobre as experiências”, é e Publicação nos Anais”, 5 para a categoria apresentados no último ENANPUR, vimos que
(comunidades, movimentos, atores sociais) “uma missão que recupera e reflete sobre as “Publicação nos Anais”. Dos selecionados a Extensão foi realizada predominantemente
não são objetos, mas sujeitos com os quais se experiências como fonte de conhecimento para apresentação e publicação, 35 por Instituições de Ensino Superior Federais
dialoga. Por isso mesmo, torna-se imperiosa do meio social para a transformação da comparecem nos Anais. (68%) e Estaduais (6%), com destaque para a
a defesa de uma política que conceba a realidade”. Nos apoiamos nos ensinamentos participação de alguns Institutos Federais nas
Extensão como um processo acadêmico desse educador popular, que tem como Cabe destacar que 30 trabalhos (86% do regiões metropolitanas e no interior do país
permanente, decisivo para a formação dos forte referência a obra de Paulo Freire, para: total) foram apresentados pelos seus autores associadas às Universidades Federais (3%)
alunos e qualificação dos professores em i) compreender a importância dos relatos e debatidos nas sessões do evento – ou e estaduais (3%). As instituições privadas
nível de graduação e pós-graduação. sobre as atividades de Extensão feitos por seja, de fato, houve presença, discussão e contribuíram com 14% dos trabalhos.
meio dos artigos e de suas apresentações; compartilhamento de experiências. Esse
A ANPUR, fórum historicamente dedicado ii) darmos continuidade à cultura do registro pode parecer um dado pouco importante, Entre as regiões do país, verificou-se a
principalmente à pesquisa, outorga hoje sobre a Extensão Universitária no campo do mas, considerando-se a grandeza do distribuição representada na Figura 1.
importante espaço para a reflexão e o Planejamento Urbano e Regional por meio da evento e o enorme esforço dispendido para
debate sobre a prática extensionista. presente publicação. organizá-lo, nada é mais frustrante do que
Este fato expressa o reconhecimento (e a uma sessão “esvaziada”, porque isso pode
prática efetiva) da indissociabilidade entre Com este artigo, queremos dar subsídios para refletir o desinteresse dos participantes,
Ensino-Pesquisa-Extensão. Trata-se de uma a compreensão sobre os avanços alcançados, suas dificuldades financeiras para estarem
conquista empreendida pelos colegas que sistematizando dados que podem nos auxiliar presentes ou mesmo algum desajuste na
nos antecederam. A eles, a nossa gratidão! no fortalecimento da Extensão em nossos agenda do evento.
próximos encontros.

2. Constituído pelas professoras Amadja Henrique Borges (PPGAU/UFRN), Inês Martina Lersch (PROPUR/UFRGS), Jane Roberta de
1. JARA, O. (2012) apud DE DEUS, S. (2019). Sobre Viver e Fazeres da Extensão. In: B.C.E. MELLO, G.R. NODARI, I.M. LERSCH & J.F. Assis Barbosa (Cidades Contemporâneas/UFRN), Rita de Cássia Lucena Velloso (NPGAU-EA/UFMG) e Sara Raquel Fernandes
ROVATI (Orgs.). Práticas Urbanas Emergentes: extensão universitária. Porto Alegre: UFRGS, p. 4. Queiroz de Medeiros (PPEUR/UFRN).
178 Além dos Muros da Universidade: Planejamento Urbano e Regional e Extensão Universitária capítulo 9 A Extensão Universitária no XVIII ENANPUR 179

QUADRO 1: Relações de artigos sobre Extensão


Universitária entre os dois últimos eventos da ANPUR
- o espaço público como lugar As experiências apresentadas emergiram
Fonte: produção própria. de acolhimento e aprendizagem, predominantemente de Escritórios
compreendendo experiências de Modelos (EMAUs), de Grupos (formais)
APROVADOS PARA
EVENTO/ ANO
ARTIGOS
APRESENTAÇÃO E
APROVADOS PARA
Nº DE SESSÕES
transformação e produção do espaço. de Pesquisa e Extensão, de Núcleos
SUBMETIDOS PUBLICAÇÃO
PUBLICAÇÃO São os casos dos trabalhos de GRUB; (exclusivos) de Extensão Universitária,
PARDO, ARAÚJO, BASTOS & ROCHA; de Coletivos de Assessoria Técnica e de
XVII ENANPUR (2017) 46 26 0 5 BUCHEBUAN & SIGNORI; profissionais arquitetos e urbanistas. No
que diz respeito aos parceiros externos,
XVII ENANPUR (2019) 57 36 5 7 - direito à cidade, com experiências observou-se relações firmadas com
de assessoria técnica de habitação de prefeituras municipais, organizações não-
VARIAÇÃO +24% +34% - - interesse social (ATHIS), associação a governamentais e movimentos sociais,
movimentos sociais, relatos de resistência como o MST (Movimento Sem Terra) e
e autoconstrução. São os casos dos movimentos de ocupações urbanas.
trabalhos de PANIZZI; SOUZA &
Os trabalhos foram distribuídos em mesas BORGES; MACHADO, BARRETO, SILVA Os relatos de experiências de Extensão
segundo as seguintes temáticas: & LOURENÇO; SCOCUGLIA; LESSA, apresentados foram desenvolvidos no âmbito
MEDEIROS & SANTOS; SOBRINHA, de cursos de graduação e de pós-graduação
- práticas urbanas, com iniciativas que DUARTE, LÉLIS & WANDERLEY; LIMA de cursos de arquitetura e urbanismo. Chamou
buscaram observar, intervir e ”fazer & RIBEIRO; BIENESTEIN, GORHAM, nossa atenção a presença significativa de
junto” com a comunidade, valorizando BIENESTEIN & SOUZA; SILVA & LEAL; alunos como apresentadores dos trabalhos.
um processo de ensino-aprendizagem MATSUNAGA, SILVA & TAKAMATSU; (Figuras 2, 3 e 5).
que vai além da sala de aula. São os casos PINHEIRO; FREITAS, LIMA & ARAÚJO;
dos trabalhos de autoria de MARTINI, MÁXIMO; LESSA, MOUROS & FERREIRA; POR QUE SISTEMATIZAR EXPERIÊNCIAS?
SANTOS, SILVEIRA & ROSA; COSTA & MOG, PICCININI, FIGUEIREDO &
SOUZA; MICELI & ALMEIDA; PEREIRA, REIS; LINHARES; VIEIRA, SCHERER & Oscar Jara, educador popular e referência
GIAVENUTI, MELO & BRASIL; JANSEN; CARNEIRO, BARROS, BAHIA para o contexto latino-americano na defesa
Fº & SOUZA; CARDOSO & LOPES; do legado de Paulo Freire, nos ensina
- indissociabilidade entre Ensino, Pesquisa SANTOS, MENDONÇA, SANTOS & que sistematizar experiências se trata da
FIGURA 1 : Distribuição dos trabalhos e Extensão, com projetos que procuraram SILVA; MOURA, DURAN & DIAS; RIERA “reconstrução do processo vivido para
segundo as regiões do pais
aproximar conteúdos operados na & ZANATA; KNEBEL. analisá-lo, interpretá-lo criticamente e, assim,
formação de estudantes de graduação extrair as aprendizagens significativas (lições
Fonte: produção própria.
e de pós-graduação, utilizando-se da Deve-se ressaltar que, em sua maioria, os da prática) e compartilhá-las”. O autor aponta
Extensão como estratégia pedagógica. trabalhos incluem relatos da empiria (da os motivos pelos quais devemos sistematizar
São os casos dos trabalhos de BASSANI, experiência vivenciada) e de questões de as experiências no campo da Extensão
MASSIMETTI & RODRIGUES; HECK, método, o que nos pareceu muito mais Universitária. Conforme Jara, são eles:
BECKER & MÜLLER; DEPONTI, KIST & significativa do que a simples apresentação
AREND; MELLO, NODARI, LERSCH & “objetiva” de resultados.
ROVATI; NEVES, COSTA & BARBOSA;
180 Além dos Muros da Universidade: Planejamento Urbano e Regional e Extensão Universitária capítulo 9 A Extensão Universitária no XVIII ENANPUR 181

a. compreender mais profundamente nossas SOBRE AS REFERÊNCIAS


experiências e assim poder melhorá-las;
FIGURAS 2 a 5: Mesas diversas da Seguindo a análise proposta por Rovati, Santo
Sessão Temática – 09 (ST-09)
b. trocar e compartilhar nossos aprendizados Amore e Lins,5 sobre os autores citados ao
Fotos: XVIII ENANPUR (2 e 5);
com outras experiências semelhantes; longo dos artigos da Sessão Temática 09, que
Martina Lersch (3 e 4). incluem em seus títulos a palavra extensão,
c. contribuir para a reflexão teórica com verifica-se que a dispersão continua sendo
conhecimentos surgidos diretamente das uma constante (Quadro 2).
experiências;
Além das citadas acima, vale destacar as
d. incidir em políticas a partir de aprendizados seguintes referências, que não incluem a
concretos advindos das experiências.3 palavra “extensão” em seus títulos:

Por meio dos relatos na ST-09, é possível - BRANDÃO, Carlos Rodrigues (1982).
identificar a existência de “abismos” entre o Educação popular. São Paulo: Brasiliense.
que foi pensado “no projeto” e o que, de fato,
foi realizado e alcançado. Mas, acima de tudo, - FREIRE, Paulo (1987). Pedagogia do
constata-se, também, que há significativos oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra.
aprendizados, mesmo com os percalços,
obstáculos, “pedras no caminho”, dias de - FREIRE, Paulo (1982). Ação cultural para a
chuva ou “as coisas não-planejadas”. Ainda liberdade e outros escritos. São Paulo: Paz e
por isso, “contar experiências, sistematizar, Terra.
permite superar a separação entre prática e
teoria; permite colocar no papel, além da cor e - FREIRE, Paulo (1996, 2000 e 2016). Pedagogia
do texto, o sentido de vidas e suas histórias”.4 da Autonomia: saberes necessários à prática
educativa. Rio de Janeiro: Paz e Terra.
Os artigos apresentados podem ser
compreendidos, portanto, como produtos de - FREIRE, Paulo (2000). Pedagogia da
sistematização dos processos enfrentados em Indignação: cartas pedagógicas e outros
contextos diversos e que encontram no ENANPUR escritos. São Paulo: Editora UNESP.
um espaço essencial para reflexão e debate.
- FREIRE, Paulo (1997). Educação como prática
da liberdade. Rio de Janeiro: Paz e Terra.

3. Material didático do Curso Educação Popular, ministrado por Oscar Jara e organizado pela Pró-Reitoria de Extensão/UFRGS, em
Porto Alegre/RS, 2019. Do mesmo autor, pode ser consultado: JARA, O. (2012). A sistematização de experiências: prática e teoria
para outros mundos possíveis. Brasília: CONTAG.
4. DE DEUS, op. cit., p. 4.
5. ROVATI, J.; SANTO AMORE, C.; & LINS, R. (2017). A Extensão Universitária no XVII ENANPUR. In C. D’OTTAVIANO & J. ROVATI. Para
Além da Sala de Aula. Extensão Universitária e Planejamento Urbano e Regional. São Paulo: FAUUSP/ANPUR, pp. 123-136.
182 Além dos Muros da Universidade: Planejamento Urbano e Regional e Extensão Universitária capítulo 9 A Extensão Universitária no XVIII ENANPUR 183

QUADRO 2: Sobre a Extensão: Trabalhos citados


nos artigos apresentados na ST – 09

Fonte: produção própria.

AUTORIA/ Nº DE AUTORIA/ Nº DE
ORGANIZAÇÃO
TÍTULOS CITAÇÕES ORGANIZAÇÃO
TÍTULOS CITAÇÕES

Reflexões e propostas sobre o tema “ensino e extensão Intervenção para o desenvolvimento rural: o caso da extensão
no projeto pedagógico” para o “Diálogo sobre o projeto 1
DEPONTI, Cidonea rural pública do Rio Grande do Sul. Porto Alegre, 2010. 276
ABRICÓ EMAU/UFRJ pedagógico: debates e reflexões”. In: Diálogo sobre o 1
Machado. f. Doutorado (Desenvolvimento Rural) – Universidade Federal
Projeto Pedagógico: debates e reflexões. Rio de Janeiro, do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2010.
2015. Caderno de Resumos. p 58-67.
ENCONTRO NACIONAL DO FÓRUM DE PRÓ-REITORES
Lei no 12.188, de 11 de janeiro de 2010. Institui a Política
FORPROEXT DE EXTENSÃO DAS UNIVERSIDADES PÚBLICAS, 7, 1993, 1
Nacional de Assistência Técnica e Extensão Rural para
Cuiabá. Anais... Cuiabá: Editora UFMT, 1993.
a Agricultura Familiar e Reforma Agrária - PNATER e o
BRASIL. Presidência
Programa Nacional de Assistência Técnica e Extensão Rural 1
FORPROEXT Política Nacional de Extensão Universitária. Manaus/AM, 2012. 3
da República.
na Agricultura Familiar e na Reforma Agrária - PRONATER,
altera a Lei no 8.666, de 21 de junho de 1993, e dá outras Extensão e comunicação? Rio de Janeiro, Paz e Terra,
providências. FREIRE, Paulo. 9
1977/1983.
CALDERÓN, Adolfo “Extensão universitária: institucionalização sem exclusão”. GIL, Carmem Zeli de Da Vila Dique ao Porto Novo. Extensão popular, rodas de
1 1
Ignacio. In: Revista Educação Superior. Piracicaba: EDUNIMEP, 2003. Vargas. memórias e remoções urbanas. São Leopoldo, Oikos, 2013.
A extensão universitária no Brasil, do assistencialismo à
CARBONARI, Maria; Residência Profissional em Arquitetura, Urbanismo e
sustentabilidade. São Paulo, Setembro de 2007. CORRÊA, 1
PEREIRA, Adriana. Engenharia: experiência inovadora em ensino, pesquisa e
Roberto Lobato. GORDILHO-SOUZA,
extensão. In 7º PROJETAR – Originalidade, criatividade e 1
Angela.
CARNEIRO, Daniel A extensão universitária e o campo das assessorias técnicas. inovação no projeto contemporâneo: Ensino pesquisa e prática.
1
Marostegan. XVIII ENANPUR. São Paulo 2017. Anais... Natal, 30 de setembro a 02 de outubro de 2015.

D’OTTAVIANO, GURGEL, Roberto Extensão Universitária: Comunicação ou Domesticação. São


Para além da Sala de Aula: Extensão Universitária e 1
Camila; ROVATI, João. 3 Mauro. Paulo: Cortez; Universidade Federal do Ceará, 1986.
Planejamento Urbano e Regional. São Paulo: FAUSP, 2017.
(orgs.).
As Práticas Curriculares e a Extensão Universitária. 2004.
Lugar da extensão. In: Construção Conceitual da extensão Disponível em: <http://br.monografias.com/trabalhos-
DEMO, Pedro. universitária na América Latina. P. 141-158. Doris Santos 1 JENIZE, Edineide. 1
pdf901/as-practicas-curriculares/as-practicas- curriculares.
(org.). Brasília: UNB, 2001. pdf> . Acesso em: 19/11/18.
A extensão universitária: história, conceito e propostas. LEÓN, Andres La Extensión Universitaria en América Latina desde
DE PAULA, João 1
Interfaces - Revista de Extensão, v. 1, n. 1, p. 05-23, jul./nov. 1 Leonard. Susorigenes a la Actualidad. Colombia, 201_.
Antônio.
2013.
Extensão Universitária em Arquitetura e Urbanismo: A
TIC e Agricultura Familiar: uma experiência de pesquisa Prática dos Escritórios Modelo. In: 7° Congresso Brasileiro
LODDI, L. B. R. et al. 1
DEPONTI, C. M.; KIST, e de extensão tecnológica no território do Citros-RS. de Extensão Universitária. Anais... Ouro Preto, 7 a 9 de
1
R. B. B.; AREND, S. C. In: Anais Seminário Internacional de Desenvolvimento setembro, 2016.
Regional, p., 2017.
184 Além dos Muros da Universidade: Planejamento Urbano e Regional e Extensão Universitária capítulo 9 A Extensão Universitária no XVIII ENANPUR 185

(cont.) QUADRO 2: Sobre a Extensão: Trabalhos citados


nos artigos apresentados na ST – 09

Fonte: produção própria.

A dispersão bibliográfica continua uma Desta vez, novos “grandes eixos” de debate
AUTORIA/ Nº DE
ORGANIZAÇÃO
TÍTULOS CITAÇÕES tendência – há poucas obras compartilhadas foram apontados pelos autores:
entre os autores dos trabalhos. Porém, a
La extensión universitaria en la transformación de la bibliografia citada no encontro de Natal/RN - cidade: como lugar de disputa, o
MENONI, José
universidad latinoamericana del siglo XXI: disputas y 1 é mais ampla e diversa do que a citada no ambiente no qual os projetos de Extensão
Agustín.
desafios. Buenos Aires: CLACSO, 2014 evento anterior. Constatamos ainda que Paulo estão acontecendo;
Freire continua sendo o autor mais citado
La extensión universitaria en la UNAM: principales
MENONI, José no campo extensionista, agora ladeado por - moradores: como caracterização do
tendencias históricas. COMIE - XIV Congreso Nacional de 1
Agustín. Carlos Rodrigues Brandão, outra importante público alvo predominante;
Investigación Educativa. Potosi, Bolívia, 2017.
referência no campo da educação popular.
NOGUEIRA, Maria Extensão universitária: diretrizes conceituais e políticas Belo - projeto: palavra empregada para se
das Dores Pimentel Horizonte: Fórum Nacional de Pró-Reitores de Extensão das 1 referir tanto ao meio pelo qual o arquiteto
(org.). Universidades Públicas/ UFMG, 2000. atua, quanto ao modo pelo qual a
SOBRE AS PALAVRAS-CHAVES Extensão é oferecida e exercida (“Projeto
NOGUEIRA, Maria
Políticas de Extensão Universitária Brasileira. Belo Horizonte: de Extensão”);
das Dores Pimentel 1
UFMG, 2005. Nem todos os artigos indicaram as palavras-
(org.).
chave. Por esta razão, não foi possível - processo: para caracterizar algo que
A (in)justiça cognitiva e a extensão universitária: uma realizar, para fins de comparação, a análise demanda tempo, dedicação permanente
experiência entre a escola e a comunidade. In: XVII proposta por Rovati, Santo Amore e Lins.6 (“preparação e cozimento” de todos os
PICCININI, Lívia
ENANPUR, 2017, São Paulo. Caderno de resumos: Empreendemos, em vez disso, um estudo das ingredientes), atenção por parte de todos
Salomão; MOROSO, 1
desenvolvimento, crise e resistência: quais os caminhos do palavras mais frequentemente empregadas os envolvidos, exercício da democracia;
Karla.
planejamento urbano e regional?. São Paulo: FAU-USP, 2017. em cada artigo (desconsiderando nomes
v. 1. p. 1-21. próprios), utilizando o método de nuvens de - extensão: palavra utilizada em
palavras, representadas de modo gráfico. diferentes dimensões e compreensões;
Conselho de Ensino, Pesquisa e Extensão da Universidade Imprecisões podem estar contidas neste
Federal de Minas Gerais. Resolução no 12, de 2015. estudo. Em todo caso, ele mostra que - assistência técnica: uma expressão que
PROEX/UFMG. 1
Formação em Extensão Universitária na UFMG. Diário algumas palavras foram empregadas com apareceu com mais força nas sessões deste
Oficial, Belo Horizonte, MG, 22 set. 2015. maior frequência, o que pelo menos nos evento do que no realizado em São Paulo
sugere alguns eixos de reflexão. em 2017, possivelmente porque estava
A construção conceitual da extensão universitária na
contemplada no próprio título da ST-09.
América Latina. In: Construção Conceitual da extensão
ROCHA, Roberto. 1 Inicialmente, foram geradas as “nuvens de
universitária na América Latina. P. 13-31. Doris Santos (org.).
palavras” de cada um dos textos, em separado. A
Brasília: UNB, 2001.
partir dessa primeira aproximação, foram então
A história da extensão universitária. Dissertação de Mestrado selecionadas as cinco palavras mais citadas em
SOUZA, Ana Luiza. em Educação Escolar Brasileira apresentado à Faculdade de 1 cada texto que, tomadas em conjunto.
Educação, Universidade de Goiás. Goiânia, 1996.

Os múltiplos conceitos da extensão. In: Construção


TAVARES, Maria. Conceitual da extensão universitária na América Latina. P. 1 6. ROVATI, SANTO AMORE & LINS, op. cit., p. 128.
73-85. Doris Santos (org.). Brasília: UNB, 2001.
186 Além dos Muros da Universidade: Planejamento Urbano e Regional e Extensão Universitária capítulo 9 A Extensão Universitária no XVIII ENANPUR 187

TRABALHOS APRESENTADOS NA ST-09

BASSANI, Jorge; MASSIMETTI, Flávia Tadim; RODRIGUES, Marla. Extensão universitária na Ilha do Bororé: o território
como instrumento pedagógico. In: Anais do XVIII ENANPUR. Natal, 27 a 31 de maio de 2019.
FIGURA 6: Nuvens de
palavras dos artigos
BIENENSTEIN, Regina; GORHAM, Cynthia; BIENENSTEIN, Glauco; SOUSA, Daniel Mendes Mesquita de.
da ST-09
Autonomia, resistência e enfrentamento: caminhos da assistência técnica. Contribuições para extensão
Fotos: produção própria universitária socialmente referenciada. In: Anais do XVIII ENANPUR. Natal, 27 a 31 de maio de 2019.

BUCHEBUAN, Terezinha de Oliveira; SIGNORI, Luiza. Construindo pontes: um lugar de vida na Zona do
Cemitério. In: Anais do XVIII ENANPUR. Natal, 27 a 31 de maio de 2019.

CARDOSO, Fernanda Simon; LOPES, João Marcos de Almeida. Assistência e assessoria técnica: entre o discurso
e a prática. In: Anais do XVIII ENANPUR. Natal, 27 a 31 de maio de 2019.

CARNEIRO, Daniel Marostegan e; BARROS, Iago Albuquerque; BAHIA FILHO, Léo Silviano; SOUZA, Erika
Barbosa de Oliveira. Assessoria técnica e extensão universitária, rompimentos temporais: o caso da Gamboa de
CAMINHOS O desejo das autoras deste sucinto relato
é que ele possa contribuir para a melhor Baixo. In: Anais do XVIII ENANPUR. Natal, 27 a 31 de maio de 2019.

Para o futuro, a partir das discussões compreensão da importância da Extensão


para a Universidade e para a produção COSTA, Isis dos Santos; SOUSA, Cláwsio Rogério Cruz de. Implementação da coleta seletiva em Pau dos Ferros-RN:
presenciais da ST-09, apontou-se sobretudo
do conhecimento, chamando a atenção Concepções baseadas a partir do Bairro Nações Unidas. In: Anais do XVIII ENANPUR. Natal, 27 a 31 de maio de 2019.
para a necessidade de incluir os atores
urbanos e os integrantes dos movimentos da responsabilidade que todos nós temos
quando a praticamos visando o diálogo DEPONTI, Cidonea Machado; KIST, Rosane Bernardete Brochier; AREND, Silvio Cezar. Ações de extensão como
sociais nos nossos fóruns de debate,
entre saberes técnicos e saberes tradicionais, intervenção para o desenvolvimento regional: relato de experiência do NEGAF/UNISC-RS. In: Anais do XVIII
procurando trazê-los aos nossos eventos.
comunitários, populares. ENANPUR. Natal, 27 a 31 de maio de 2019.
Supõe-se que isso poderá enriquecer muito
nossos debates, tencionando eventuais
narrativas “acadêmicas” ou unilaterais, e, Seguimos acreditando na Extensão FREITAS, Clarissa Figueiredo Sampaio; LIMA, Mariana Quezado Costa; ARAÚJO, Rogério da Costa. Os Sem

por conseguinte, valorizando as práticas de Universitária como um caminho para Endereço: a desinformação urbanística na ZEIS Bom Jardim e novas possibilidades de construção da cidadania

abertura, experimentação e diálogo que têm descobrir outras formas possíveis de ensinar urbanística. In: Anais do XVIII ENANPUR. Natal, 27 a 31 de maio de 2019.

demarcado a atividade extensionista. e aprender, sempre na esperança de um


outro mundo possível. GRUB, Julian. Aproximações: um convite à prática do acolhimento nos espaços infra-estruturais da cidade. In:
Anais do XVIII ENANPUR. Natal, 27 a 31 de maio de 2019.

HECK, Adalberto da Rocha; BECKER, Débora; MÜLLER; Angela Maria. A experiência da curricularização de
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posfácio
Dimensões
para
pensarmos
a Extensão
Universitária

Marcio
´ Jose´ Verissimo
´ Catelan

No XVIII Encontro Nacional da Associação Nacional de Planejamento


Urbano e Regional – ENANPUR –, ocorrido em Natal/RN, entre os dias
27 a 31/05/2019, aproximadamente 1500 participantes puderam se
encontrar, se reencontrar, para pensar, debater e construir narrativas
críticas em relação ao modo como vimos produzindo nossas cidades
e, para além disso, chegar às muitas formas de ação no planejamento
e na gestão urbanos no Brasil. Num país em que a desigualdade
socioespacial, o abismo de renda que separa segmentos sociais,
as normatividades de gênero, de sexualidade, de cor, compõem
um conteúdo espacial de separação e de fragmentação, o diálogo
estabelecido por meio de ações efetivas entre Universidade e
Sociedade é cada vez mais premente.

Minhas reflexões partem do momento e a partir da mesa Extensão


Universitária: desafios e o potencialidades na formação de
planejadores urbanos e regionais, apresentada no dia 29 de maio de
2019 e composta pelas professoras Karina Oliveira Leitão (FAUUSP)
e Luciana Correa Lago (IPPUR/UFRJ) e pelos professores Caio Santo
Amore de Carvalho (PPGAU/FAU/USP), e Renato Pequeno (PPGAU+D/
Ocupação José Bonifácio, São Paulo, 2019. UFC). O conteúdo da mesa, sem dúvida, necessário e instigante,
foto_ João Rovati
192 Além dos Muros da Universidade: Planejamento Urbano e Regional e Extensão Universitária posfácio Dimensões para pensarmos a extensão universitária 193

como bem ressaltam as professoras e os me incomodou e que trago aqui como forma de não somente levarmos nosso fragmento da cidade, para um conjunto
professores componentes da mesa, tratou proposta e hipótese para avançarmos na conhecimento, mas transformá-lo como de pessoas que no projeto da cultura
da “Extensão Universitária como prática discussão sobre a Extensão Universitária. um reagente que estimula meios e formas hegemônica não foram incluídas, nem seus
transformadora” pensada na dimensão do Me dedico aqui a explorar as três dimensões de organização social. O conhecimento lares, nem suas necessidades, muito menos
Ensino e da Pesquisa acadêmicos-científicos. que, ao meu ver, permitem dialogarmos no científico direcionado de forma direta, seus desejos que se diluem como aspirações
Além do âmbito acadêmico, outra dimensão campo de Extensão saindo e transpondo a experimentado e penetrado no cerne da de esperança de um dia melhor.
ainda ressalta sobre o caminho que orientou teoria e a prática com retorno à primeira. vida cotidiana, num contexto no qual
o debate dessa mesa que é a dimensão Não vou mais a fundo para dizer sobre isso
atualmente, a implosão tendencial da
pública, como forma de se valorizar o caráter No que tange à ação social, sem dúvida, porque só estou me referindo ainda aos
urbanidade desestabiliza a reprodução social
coletivo, como contexto por meio do qual se encontramos uma série de dificuldades da maneira mais evidente, articulando a luta fragmentos, aos pedaços da vida urbana
pode promover transformações. A vontade apresentadas pelos palestrantes. A diária pela sobrevivência à crise urbana, nos quais as práticas do urbanismo, do
em escrever sobre esta proposta advém um experiência junto à população do Jardim que é mais ampla e dolorosa nos países planejamento urbano e da gestão pública
pouco das inquietações sobre a Extensão Grajaú, na cidade de São Paulo, trabalho periféricos.2 chegam em partes, quando chegam!
Universitária e quais os desafios em sua que tem sido desenvolvido por meio de Concordo com Ana Clara Torres Ribeiro, a
relação com o Ensino e a Pesquisa quando a um curso de capacitação de profissionais cidade contemporânea, da “privatização do
A ideia de “implosão”, aqui, serve para
pensamos em termos de ação. que ao mesmo tempo levam conhecimento próprio imaginário urbano” se desfaz em
pensarmos o quão a prática da Extensão
à população com, inclusive, construção de “retalhos mal costurados, cacos, superfícies
Universitária efetiva e participativa pode
Para dar conta de algumas questões, vou obras de pequeno porte, mas de grande isoladas, fraturas e desagregação”.3 Por isso,
interromper um cotidiano de ausências
então reunir três dimensões de análises: 1. relevância ao cotidiano daquela população, nos animemos não somente em escrever,
em vidas periféricas ou mesmo aquelas
Uma primeira refere-se à Teoria da Ação, e a experiência que instiga a questionarmos mas também a experienciar, viver a Extensão
que são representativas das desigualdades
que aqui coloco com iniciais em maiúsculas quais são os limites da Extensão Universitária Universitária com o objetivo de transformar
socioespaciais ainda que ocupem espaços
para representar a relevância dessa proposta quando nos aproximamos de comunidade a prática, em solidificar a experiência que
centrais da cidade como nas ocupações de
feita pela professora Ana Clara Torres de vulnerabilidade social, periférica e a antes seria apenas sabermos sobre nossos
luta por moradia nos centros das cidades. A
Ribeiro;1 2. Em segundo, sugiro o conceito com muitas formas vividas de separação sujeitos e objetos pesquisados quase que
autora ainda fala do sujeito projetado pela
de experiência urbana como forma de não e necessidades daquilo que é básico ao numa perspectiva exploratória.
cultura hegemônica e homogeneizante,
somente sentirmos, mas apreendermos contexto da vida urbana em Fortaleza, me
convencido de que as coisas e a vida irão
como o cotidiano se processa; 3. Por levou à proposição feita pela professora Por isso, para falar da teoria de ação
acontecer. Enquanto assistia à mesa fiquei
último, parto da dimensão do sujeito como Ana Clara Torres Ribeiro, para quem a teoria concordando com Ana Clara Torres Ribeiro, o
pensando sobre isso. Sobre como pensarmos
escala e modo de chegarmos à construção da ação seria uma forma de reunirmos exercício é nos aproximarmos do fazer e em
uma ação que chegue nos lugares e nos
de ações efetivas. As três dimensões o conhecimento e a prática acadêmicas que pese o “fazer científico” transmutado
sujeitos? Confesso que me incomodo com
agrupam elementos que surgiram como de modo articulado. A professora e em práticas levadas ao cotidiano. O
o fazer “pontualista”, aquele de pequenas
questionamentos no momento da mesa pesquisadora insistiu num processo de enorme enfrentamento é construir uma
ações como intervir num bairro, num
realizada no ENANPUR diante do que mais construção de uma Teoria da Ação, uma ação no fragmentado, no retalho de cidade

2. RIBEIRO, op. cit., pp. 417-418.


1. RIBEIRO, A. C. T. (2005). Sociabilidade, Hoje: Leitura da experiência urbana. Caderno CRH, Salvador, v. 18, n. 45, Set./Dez, p. 3. RIBEIRO, op. cit., p. 419.
411-422.
194 Além dos Muros da Universidade: Planejamento Urbano e Regional e Extensão Universitária posfácio Dimensões para pensarmos a extensão universitária 195

esquecida pela anti-ação do aparato Gostaria de propor também essa segunda Quando, no final da tarde, a poeira do um café docinho sobre mesa com uma
institucional do Estado, e que faça da parte dimensão como proposta analítica e a pensar cimento, da terra, o barro nos tomou por bandeja coberta com um pano de prato alvo
um todo. A proposta é adotarmos a teoria um passo adiante da prática da Extensão inteiro, depois de ter provado daquela pintado à mão, com crochê feito pela vizinha.
da ação como condição e possibilidade de Universitária. A experiência espacial, tal comida em caldeirões carinhosamente feita Então não vou compartilhar da ideia de que
incorporação do conhecimento nas práticas como considera Mongin,4 não existe sem por mãos que já picaram cebolas enquanto experiências de Extensão Universitária que
da Extensão. a construção do lugar e um dos elementos em seu telhado adaptado a água da chuva chegam à dimensão da casa e do bairro
constitutivos da experiência urbana é nem sempre foi um alívio, depois de ter não são eficazes porque não rompem com
Vou, sem esgotar a primeira, falar da a relação entre escalas que conectam tomado aquele cafezinho doce, preparado a condição social daquelas pessoas. Que
segunda dimensão de análise no que tange à espaços. Mongin explora a escala do corpo para ser servido com um pão com manteiga incomoda, incomoda sim, quando vamos
prática da Extensão, um ponto que também como dimensão pela qual apreendemos a anunciando que ali café, pão e manteiga é embora no final da tarde, a pergunta se
me instigou a considerar a partir do debate experiência urbana. Assim, a experiência sinônimo de luta vencida, nós que vivemos fizemos algo de eficaz é latente.
que se estabeleceu na mesa já citada aqui seria uma possibilidade de chegarmos à a experiência espacial transpomos também
por mim. Enquanto o debate sobre a prática práxis, sem atingir a mudança profunda, barreiras que os métodos até então A experiência urbana seria, então, um dos
da Extensão Universitária ocorria não pude sem transformar de fato, mas trazendo apreenderam, mas nunca haviam sido elementos para explicarmos a intervenção
deixar de pensar sobre como considerarmos portas e janelas a determinado grupo social testados ali. Isso é a experiência. no espaço buscando revelar “um mundo
a experiência urbana no plano do cotidiano, promovendo, antes de tudo, a ação. Talvez escondido pela relação de um fora com um
tendo em vista que ao nos aproximarmos seja essa a principal proposta da Extensão Fico sempre com uma dúvida, é possível dentro”.5 Com a ideia de Mongin6 chego à
do que chamamos de senso comum se Universitária no campo da arquitetura, do intervir no cotidiano? Essa dimensão nos é terceira dimensão que traz a relação entre
estabelece um processo de criação junto aos urbanismo e do planejamento urbano e tão cara, é tão sólida que nem as canaletas o sujeito como meio para acessarmos as
sujeitos daquela “cena” à qual simulamos regional, sobretudo porque é neste campo de escoamento para água da chuva, o ações coletivas. O individual e coletivo,
fazer parte. Os casos apresentados na mesa e em que atingimos uma estrutura solidificada protótipo para que a casa ganhe mais o privado e o público representados nas
todos outros que somos capazes de lembrar da vida, da moradia e do lugar no qual qualidade ou um novo sistema de telhado ações cotidianas daqueles que vivem uma
sobre a prática da Extensão Universitária se vive a experiência pública na cidade, não são capazes de fato de remexer no experiência espacial incompleta na cidade.
no campo da arquitetura, urbanismo e o bairro. Não há como o profissional da cotidiano. No máximo conseguimos trazer O sujeito carrega subjetividades, razões
planejamento urbano e regional nos levam assistência técnica, do coletivo que luta por algo de novo, poderia até usar a palavra e emoções envolvidas por um campo do
a construir certa simulação para que num maior dignidade na moradia não considerar “esperança”, mas vou me furtar dela aqui, coletivo-social. Nesta dimensão, a Extensão
cotidiano construído por sujeitos que só que a essência desta experiência espacial deixo para outro momento. Por outro lado, Universitária tem o compromisso de não
se reconhecem pela experiência espacial é o quão se pode mudar pequenas coisas em lugares onde a dignidade não chega, de somente implementar um projeto, mas de
possamos, de certo modo, nos integrar. naquele cotidiano. fato transformar é uma ação mais simples. A pensar a ação com potencial transformador
teoria da ação aqui é amanhecer para tomar por meio do diálogo com a comunidade.

5. MONGIN, op. cit., p. 243.


4. MONGIN, O. (2009). A condição urbana. A cidade na era da globalização. São Paulo: Estação Liberdade. 6. MONGIN, op. cit.
196 Além dos Muros da Universidade: Planejamento Urbano e Regional e Extensão Universitária

Ousaria dizer, cada caso é um caso, para me referir ao quão


complexo o cotidiano olhado pelos sujeitos se torna. Na
Pesquisa, no Ensino e também na Extensão Universitária
o grande desafio será, sem dúvida, construir um processo
participativo, pois é por meio dele que chegaremos a
projetos e intervenções mais próximas da escala da vida
cotidiana. Os sujeitos, aqueles que animam o cotidiano,
estão prontos a receber novas e mais organizadas
formas de pensarmos o espaço e os ambientes? Esta é
uma questão relevante para sempre problematizarmos
sob quais perspectivas poderemos elaborar projetos de
intervenção na escala microlocal, visto que não poderemos
sempre achar que a intervenção ou mesmo ações como da
assistência técnica são ações de caridade. Este cotidiano
e estes sujeitos não precisam de caridade, eles buscam
dignidade.

Destacadas essas três dimensões, gostaria de tratar ainda


de um último ponto que nos ajuda a compreender que a
Pesquisa e a Extensão estão separados apenas por uma
questão institucional e de formalização dos currículos
acadêmicos. Acreditamos que num campo como a
Arquitetura e Urbanismo e Planejamento Urbano e Regional
o encontro da Pesquisa e da Extensão nos aproxima de
algumas possibilidades de avançar: 1. Aproximação entre
a Universidade e a Sociedade por meio da prática como
resultante de um conhecimento científico traduzido no
plano do senso-comum. Trata-se de fazermos um caminho
de volta a este plano, mas agora munidos de técnicas e
possibilidades de atuação em múltiplas escalas da vida
cotidiana; 2. Aprimoramento das metodologias com
ênfase àquelas que nos permitem experienciar o espaço e
tocar os sujeitos a ponto de promover mudanças.
Vila Nazaré, Porto Alegre, 2018.
foto_ Camila Alberti
sobre
os
Renato Pequeno
autores
Arquiteto
e Urbanista. Professor Associado IV do
Departamento de Arquitetura e Urbanismo
(UFC), do Programa de Pós-Graduação
em Geografia (UFC). Pesquisador das Ana Clara Oliveira de Araújo
Camila D’Ottaviano Arquiteta e Urbanista. Professora Associada redes Observatório das Metrópoles e de Davi Lima Bastos
da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo. Pesquisadora Pesquisadores sobre Cidades Médias.
Maria Luiza Freitas Rocha
do Observatório das Metrópoles (desde 2004) e do Laboratório de Habitação e Coordena o Laboratório de Estudos da
Assentamentos Humanos (LabHab-FAUUSP). Membro da diretoria da ANPUR | Gestões Habitação - LEHAB. Mariana Ribeiro Pardo
2015-2017 e 2019-2021.
O Curiar - Escritório Modelo de Arquitetura e Urbanismo
Sara Raquel Fernandes é um Programa de Extensão Permanente da Faculdade

Queiroz de Medeiros de Arquitetura da Universidade Federal da Bahia


João Rovati Arquiteto e Urbanista. Professor Titular da Universidade Geógrafa. Docente do curso de Graduação
(FAUFBA), que teve início em 2011, a partir da iniciativa
Federal do Rio Grande do Sul. Pesquisador do Cidade em Projeto - Laboratório de de um grupo de estudantes. O Curiar atua de forma
em Gestão de Políticas Públicas e do
Ensino, Pesquisa e Extensão. Membro da diretoria da ANPUR | Gestão 2015-2017 horizontal, processual e democrática, tendo contado
Programa de Pós-graduação em Estudos
com a participação de estudantes de Arquitetura e
Urbanos e Regionais. Secretária Executiva
Urbanismo, Urbanismo, Geografia, Psicologia, Serviço
da ANPUR | Gestão 2019-2021.
Inês Martina Lersch Arquiteta e Urbanista. Márcio José Veríssimo Social e Bacharelados Interdisciplinares. Os trabalhos
desenvolvidos pelo Escritório Modelo constituem-
Professora Adjunta do Departamento de Urbanismo da
Faculdade de Arquitetura/UFRGS. Pesquisadora do Cidade
Catelan Geógrafo. Docente Wrana Panizzi Filósofa e se através da interlocução com organizações
do Departamento de Planejamento, Bacharel em Direito. Professora Titular da comunitárias, movimentos sociais e outros coletivos
em Projeto - Laboratório de Ensino, Pesquisa e Extensão
Urbanismo e Ambiente e Programa de Pós- Universidade Federal do Rio Grande do Sul. organizados de Salvador e sua região metropolitana,
Graduação em Geografia da Universidade Reitora da UFRGS | Gestões 1996-2000 e buscando repensar os espaços e as instâncias nos
Jane Roberta de Assis Barbosa Estadual Paulista - UNESP - Câmpus de 2000-2004. Membro da diretoria da ANPUR | quais a cidade é constituída, debatida e efetivada,
Geógrafa. Professora Adjunta da Universidade Federal do Presidente Prudente/SP. É membro do Gestões 1983-1984, 1984-1986 e 1991-1993. bem como possibilitar a construção partilhada de
Rio Grande do Norte. Grupo de Pesquisa “Produção do Espaço Presidente da ANPUR| Gestão 1993-1995. conhecimentos.
e Redefinições Regionais”- GAsPERR, do
Centro de Estudos e de Mapeamento da
Jorge Bassani Arquiteto e Urbanista. Professor
Exclusão Social para Políticas Públicas - Bruna Garritano Ferreira Arquiteta e Urbanista. Pós-graduanda no curso
Associado da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da
CEMESP, Observatório das Cidades e da de especialização em Política e Planejamento Urbano (IPPUR/UFRJ). Extensionista do
Universidade de São Paulo.
Rede de Pesquisadores sobre Cidades Abricó - Escritório Modelo de Arquitetura e Urbanismo | 2014-2018. Participa do Projeto
Médias - ReCiMe. de Extensão “Entre cidades de direito e cidades de privilégio: disputando narrativas na
Luciana Corrêa do Lago Arquiteta Comunidade Indiana Tijuca” (IPPUR/UFRJ).
e Urbanista. Professora Titular aposentada do Instituto de
Rita de Cássia Erick Santos de Mouros Graduando da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo
Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional (IPPUR)/UFRJ).
Professora permanente no Programa de Pós-Graduação Lucena Velloso Arquiteta. da UFRJ. Integrante do Abricó | 2014-2019. Integra o núcleo RJ da rede BrCidades.
de Tecnologia para o Desenvolvimento Social do Núcleo Professora Adjunta na Escola de
Interdisciplinar para o Desenvolvimento Social (NIDES)/ Arquitetura e Design da UFMG.
Maria Eduarda Lessa Graduando da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da
UFRJ. Integrante do Abricó | desde 2017. Participa grupo de pesquisa naMORAR.
UFRJ). Pesquisadora do Observatório das Metrópoles. Coordenadora do grupo de pesquisa
Cosmopólis (CNPq).
Mariana Aló Rodrigues Araujo da Silva Geógrafa. Pós-graduanda
no curso de especialização Divulgação e Popularização da Ciência (COC/FIOCRUZ).
Professora de Geografia da rede municipal de Porto Real - RJ.
miolo pólen 70g/m2
capa alta alvura 240g
tiragem 300 exemplares

corpo texto Avenir LT Std


títulos capítulos Stockholm
subtítulos/ legendas Caviar Dreams
nome autores Golden Plains
cabeçalho Caviar Dreams | Antro Vectra
número de páginas Orator
notas de rodapé Nilland

ANPUR 2019

LPG . Publicação e Produção Gráfica

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