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DOI: 10.1590/1413-81232018242.

30582016 401

Políticas públicas na atenção à saúde mental de crianças

ARTIGO ARTICLE
e adolescentes: percurso histórico e caminhos de participação

Child and adolescent mental health policy:


history and paths to participation

Claudia Pellegrini Braga 1


Ana Flávia Pires Lucas d’Oliveira 1

Abstract People with mental disorders play an Resumo Na reforma psiquiátrica brasileira, é
important role in the mental health reform pro- importante a participação de pessoas com expe-
cess, which involves the creation of new public riência de sofrimento psíquico enquanto atores
policies, practices, knowledge, and ways of relat- sociais na construção desse processo, que envolve
ing to this experience. Using a guiding question a criação de novas políticas públicas, práticas, sa-
addressing the history of child and adolescent beres e modos de relação com essa experiência. A
mental health in Brazil and the participation of partir do questionamento acerca do percurso his-
child and adolescent mental health service users tórico específico da saúde mental infantojuvenil e
in the policy construction process, a narrative lit- da participação de crianças e adolescentes nesse
erature review was undertaken framing the main processo, foi feita uma revisão narrativa da litera-
policy developments and advances in this area tura que busca evidenciar os momentos principais
within the overall context of the Brazilian men- dessa trajetória, no que concerne à produção de
tal health reform. A search of technical, institu- políticas públicas e legislações. A revisão consistiu
tional, and legal documents in the thematic area na busca de documentos técnicos e institucionais
Mental Health was conducted using a national da área temática da Saúde Mental em base de
database. The material analyzed addressed mile- dados nacionais, além de documentos legais. O
stones in child and adolescent mental healthcare, material analisado versou sobre um conjunto de
highlighting the paths taken in building this field. marcos da atenção à saúde mental de crianças
The article also discusses the participation of child e adolescentes e a análise assinalou os caminhos
and adolescent mental health service usersin this trilhados na construção desse campo. Ainda, na
process in the form of a commentary. Finally, the perspectiva de um comentário, foi discutida a
article highlights the need to guarantee the par- participação de crianças e adolescentes com sofri-
ticipation of this group to enable them to play a mento psíquico nesse processo. Este artigo destaca
leading role in the struggle for the construction a necessidade de construir garantias concretas de
1
Departamento de and realization of rights. participação dessa população, possibilitando que
Medicina Preventiva, Key words Mental health, Child, Adolescent, assumam o papel de protagonista na luta pela
Faculdade de Medicina, Public policy, Social participation construção e garantia de direitos.
Universidade de São
Paulo. Av. Dr. Arnaldo 455, Palavras-chave Saúde mental, Criança, Adoles-
Cerqueira César. 01246- cente, Políticas públicas, Participação social
903 São Paulo SP Brasil.
claudia.pellegrini.braga@
gmail.com
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Braga CP, d’Oliveira AFPL

Construção e consolidação da saúde mental das compõem esse movimento, a saber: teórico-
infantojuvenil na reforma psiquiátrica conceitual, técnico-assistencial, jurídico-política
brasileira e sociocultural.
A dimensão teórico-conceitual refere-se ao
No cenário nacional, no final da década de movimento de ruptura com o paradigma psiqui-
1970, teve início o processo de reforma psiquiá- átrico e envolve a elaboração, a crítica e a produ-
trica no contexto de lutas pela redemocratização ção de novos saberes2. Na perspectiva da desinti-
do país1. Pode-se identificar o ano de 1978, com tucionalização produzida pela experiência italia-
a criação do Movimento dos Trabalhadores em na, que teve importante influência no Brasil, de-
Saúde Mental (MTSM), como um dos marcos senvolveu-se uma profunda crítica à instituição
do movimento social de crítica das condições de psiquiátrica em si – com seus aparatos científicos,
assistência psiquiátrica e de busca de novas pro- assistenciais, relacionais, administrativos, legisla-
posições1-3. Como resultado desta luta tem-se a tivos e culturais. Ainda, produziu-se uma ruptura
constituição da Política Nacional de Saúde Men- com a função e com o mandato social dos pro-
tal, que busca consolidar no âmbito do Sistema fissionais desta instituição. Segundo Basaglia6,
Único de Saúde (SUS) um campo de atenção para constituir um objeto fictício de intervenção,
psicossocial aberto, de base territorial, promo- que é a doença, a disciplina psiquiátrica separa a
tor de reintegração social e cidadania e inseri- experiência de sofrimento psíquico da existência
do nos contextos reais de vida das pessoas com global e concreta dos sujeitos. Em uma atitude
experiência de sofrimento psíquico1. Trata-se de crítica ao modelo existente, Basaglia6 propõe que
um movimento que conta com a participação se coloque a doença entre parênteses, e não o
de diversos atores sociais, sendo de fundamental sujeito, de modo que seja produzido um rompi-
importância a presença dos usuários dos serviços mento com um modelo psiquiátrico que objetiva
da rede de atenção psicossocial nessa construção, os sujeitos em torno de uma noção de doença e
assumindo o papel de protagonista na luta pela que se torne possível a aproximação com as expe-
garantia e produção de direitos. riências concretas e complexas de vida.
Nesse contexto, se insere a atenção à saúde Assim, nas práticas desinstitucionalizantes
mental infantojuvenil que, apesar de ter seus te- busca-se com ações práticas e reflexivas a descons-
mas incluídos mais tardiamente na agenda pú- trução dos modos de saber e de fazer vigentes,
blica, tem produzido significativos avanços no criando formas inéditas de ação. Nessa esfera te-
campo das práticas e da produção de saberes. órico-conceitual, Amarante2 destaca a necessidade
Considerando isso, bem como os 15 anos da Lei de considerar que a desinstitucionalização designa
n.º 10.216/014, completados no ano de 2016, e a as “múltiplas formas de tratar os sujeitos em sua
expansão da reforma psiquiátrica na construção existência e em relação com as condições concre-
de políticas públicas, torna-se significativo com- tas de vida”2. Dessa forma, trata-se de um processo
preender e dar lugar para o percurso histórico de desconstrução do problema, de saberes e práti-
específico da construção de políticas públicas no cas, e de estabelecimento de novas relações.
campo da saúde mental infantojuvenil. Essa ini- Articulada a essa dimensão situa-se a técni-
ciativa possibilita dar visibilidade para os prin- co-assistencial, que envolve a questão dos mo-
cipais marcos a partir da compreensão da con- delos assistenciais, sendo que toda construção
tínua necessidade de ampliação da participação de serviços está pautada em conceitos e teorias
de crianças e adolescentes usuárias de serviços de – a dimensão teórico-conceitual2. Se o objeto de
saúde mental na construção e produção dessas atenção for a doença e a periculosidade for um
políticas públicas. componente importante do campo, como é no
modelo psiquiátrico, as instituições deverão ser
Dimensões da reforma psiquiátrica normativas e disciplinares; porém, se a propos-
brasileira ta de atenção tiver como norte entrar em relação
com a existência complexa de sujeitos com sofri-
O percurso da reforma psiquiátrica confi- mento psíquico, os dispositivos de atenção deve-
gura-se como um processo social complexo que rão ser criados a fim de sustentar a multiplicidade
está para além da reestruturação do modelo as- de elementos do processo6. Por isso, a proposição
sistencial, envolvendo um incessante movimen- de novas modalidades de atenção exige a recons-
to com a inovação de atores, conceitos e princí- trução de concepções e a produção de inéditos
pios2,5. Para Amarante2, considerando o cenário modos de compreensão que visem à elaboração
brasileiro, diferentes dimensões inter-relaciona- de dispositivos e estratégias de intervenção2.
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No âmbito dessa dimensão da reforma psi- relevantes para a consolidação do processo de
quiátrica, os Centros de Atenção Psicossociais desinstitucionalização e da reforma psiquiátrica.
(CAPS) são os serviços estratégicos da Rede de Ademais, é componente indispensável da di-
Atenção Psicossocial (RAPS), instituída pela Por- mensão jurídico-política as quatro Conferências
taria n.º 3.088/11, republicada em 20137. Em suas Nacionais de Saúde Mental, realizadas em 1987,
diferentes modalidades, o CAPS é definido como 1992, 2001 e 2010, com ampliação progressiva
um serviço territorial responsável pela ordena- da participação e protagonismo de usuários e fa-
ção da rede de cuidados dos usuários da RAPS; miliares. Em suma, as Conferências Nacionais de
dentre as ações e estratégias de cuidado e de fo- Saúde Mental se revelaram importantes disposi-
mento de discussões, estão previstos acolhimen- tivos para organização, construção e consolida-
tos, atendimentos, ações de reabilitação psicos- ção do processo de reforma psiquiátrica, operan-
social, ações de articulação em rede intra e inter do transformações complexas na saúde mental,
setoriais, dentre outras8. O território, entendido com desdobramentos para além da dimensão
como um espaço plural com diversas histórias, jurídico-política em uma intercorrespondência
formas de viver e formas de habitar, constitui com as outras dimensões desse movimento.
para sujeitos e para coletivos modos de pertenci- Nesse cenário de luta por direitos e trans-
mento com múltiplos sentidos1,9. Ressalta-se que, formações, têm papel essencial os movimentos
além de diferentes modalidades de CAPS, a RAPS sociais, com destaque para o que veio a ser o
conta com outros seis componentes de atenção7. movimento da luta antimanicomial. No proces-
A criação e a consolidação de tal rede de so histórico da reforma psiquiátrica, foi a partir
atenção que entende a pessoa com experiência de da denúncia da violência existente nos Hospi-
sofrimento psíquico, antes de tudo, como um ci- tais Psiquiátricos que os trabalhadores em saú-
dadão, só são possíveis por meio da interlocução de mental passaram a se mobilizar, exigindo do
com o campo da política e do direito, o que resul- Estado mudanças concretas na atenção às pesso-
ta na terceira dimensão do processo de reforma as com sofrimento psíquico. Um momento im-
psiquiátrica, a dimensão jurídico-política. Vale portante desse processo refere-se à realização, em
afirmar que o caráter de legalidade e o direito são 1987, do II Congresso Nacional dos Trabalhado-
elementos fundamentais das lutas emancipató- res em Saúde Mental, em Bauru. Nessa ocasião,
rias: os ganhos dos movimentos sociais passam com a adoção do lema “Por uma sociedade sem
pela linguagem do direito, virando conquistas le- manicômios”, o movimento se ampliou e passou
gais. Pode-se afirmar que um dos primeiros mar- a contar com a presença e a participação dos usu-
cos dessa dimensão é a Declaração de Caracas, de ários de serviços de saúde mental e de seus fami-
1990, que assevera princípios e diretrizes para a liares2. A ampliação e o fortalecimento da partici-
reestruturação da atenção em saúde mental. Mas pação de usuários e familiares em tal movimento
o destaque é a promulgação da Lei n.º 10.216/01, social são indicativos da construção de novos
que dispõe sobre os direitos e a atenção às pes- lugares sociais para as pessoas com sofrimento
soas com sofrimento psíquico e redireciona o psíquico, produzidos pela reforma psiquiátrica.
modelo de atenção em saúde mental4, e a conco- Justamente, é nesse percurso de recriação de
mitante constituição de uma Política Nacional de novas formas de intervenção e de relação com as
Saúde Mental. pessoas com experiência do sofrimento psíquico
Acerca do processo histórico de promulgação que se encontra a quarta dimensão do processo
dessa Lei, resultado do debate em torno de um de reforma psiquiátrica, a sociocultural2, que diz
projeto de lei apresentado em 1989 que envolveu respeito “ao conjunto de ações que visam trans-
tensões, disputas e discussões entre diferentes formar a concepção da loucura no imaginário
instituições e aparatos sociais, Delgado10 ressal- social, transformando as relações entre sociedade
ta a emergência da figura do usuário de serviço e loucura”2. Assim, na dimensão sociocultural,
de saúde mental como sujeito político. Em di- são fundamentais as experiências e os projetos
álogo com profissionais, com familiares e com que buscam, na articulação com a cultura, trans-
o Estado, os usuários participaram da criação formar o lugar social do sofrimento psíquico; é
e da consolidação das bases consensuais para a uma dimensão estratégica da reforma psiquiátri-
elaboração dessa Lei e das políticas públicas de ca pelas reverberações que produz no tecido so-
saúde mental10. As garantias fornecidas pela pro- cial em geral. Essa dimensão está intrinsicamen-
mulgação dessa Lei impulsionaram o processo de te relacionada às outras três, uma vez que pela
reforma psiquiátrica em todas suas dimensões, criação de novas concepções e conceitos acerca
influenciando na criação de outras legislações do sofrimento psíquico, pelas práticas transfor-
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madoras realizadas na RAPS, e pela consolidação questão, foi sistematizada a discussão e produ-
de leis que estabelecem os direitos das pessoas zida uma análise crítica do ponto de vista teó-
com sofrimento psíquico é possível modificar o rico e conceitual. A busca pelos documentos foi
imaginário social acerca da loucura. Nesse cená- realizada em base de dados nacional (SciELO),
rio, a participação social e política dos atores so- com foco específico nas buscas de documen-
ciais é um aspecto fundamental dessa dimensão tos técnicos e institucionais da área temática da
e que possibilita a articulação intrínseca com as Saúde Mental da Biblioteca Virtual em Saúde e
demais. na consulta de documentos legais, constituindo
O que parece fundamental enfatizar é que o conjunto de documentos primários de análise;
processo de reforma psiquiátrica, compreendido ainda, para uma leitura desses documentos, fo-
na perspectiva da desinstitucionalização, consti- ram consultados artigos e livros relacionados
tui um percurso complexo e vivo. A busca pela ao tema em questão, identificados a partir das
transformação das relações entre o sofrimento citações e referências dos primeiros materiais e
psíquico e o tecido social e pela garantia de di- considerados chaves na discussão das políticas
reitos das pessoas com sofrimento psíquico, en- públicas analisadas. Na revisão, primeiramente,
volve a produção de saberes, o desenvolvimento foram selecionados todos os documentos técni-
de práticas inovadoras e a elaboração de políticas cos e institucionais produzidos pela área temática
públicas e de fundamentos legais para a viabiliza- da Saúde Mental da Biblioteca Virtual em Saúde,
ção e sustentação desse projeto2,3. Nesse percur- além dos documentos legais relativos à área. A
so, a participação de pessoas com experiência de partir de uma leitura exploratória inicial, foram
sofrimento psíquico na constituição de políticas selecionados os documentos que são marcos do
públicas para a construção de estratégias e redes campo da atenção à saúde mental de crianças e
de atenção é primordial; a essência desse proces- adolescentes. Com base nas referências desses
so é a luta por direitos e afirmação da cidadania materiais, foram selecionados documentos pu-
e, nesse sentido, trata-se de “um processo ético blicados na forma de artigos em revistas indexa-
-estético, de reconhecimento de novas situações das, bem como livros que, do ponto de vista in-
que produzem novos sujeitos de direito e novos formativo bem como crítico, tratassem do tema
direitos para os sujeitos”2. em questão. Dessa forma, os materiais analisados
compreendem documentos técnicos, institucio-
nais e legais, tais como legislações e documentos
Método orientadores e promotores de políticas públicas,
além de um conjunto de documentos sob a for-
Esse texto consiste em uma revisão narrativa da ma de artigos e livros específicos sobre o tema de
literatura, definida como uma revisão bibliográ- referência no campo.
fica não sistemática e apropriada para discussão Após leitura do conjunto do material e aná-
e desenvolvimento de um determinado assunto lise, a discussão teórica foi organizada em dois
de um ponto de vista teórico e contextual11. A eixos temáticos, a saber: caminhos para constru-
revisão foi desenvolvida a partir de uma questão ção da atenção à saúde mental infantojuvenil; e a
orientadora: considerando a centralidade da par- atenção à saúde mental infantojuvenil no âmbito
ticipação das pessoas com sofrimento psíquico da reforma psiquiátrica. Ainda, foi realizada ao
no processo de construção das políticas públicas final uma reflexão crítica, que constitui o comen-
na reforma psiquiátrica brasileira, quais são os tário da revisão narrativa, acerca da importância
principais elementos e marcos do percurso histó- de garantia da escuta da voz de crianças e adoles-
rico e do panorama atual específicos da atenção centes com experiência de sofrimento psíquico e
à saúde mental de crianças e adolescentes? A pro- usuários de serviços de saúde mental. Dessa for-
posta de uma revisão narrativa da literatura, com ma, pretendeu-se discutir e refletir sobre o desen-
enfoque no percurso de criação e implementação volvimento da atenção à saúde mental de crian-
de políticas públicas sustentadas por legislações, ças e adolescentes e os caminhos no processo de
consiste em situar o desenvolvimento e os avan- ampliação da participação de desses sujeitos na
ços do campo da saúde mental infantojuvenil no produção de políticas públicas.
cenário geral da reforma psiquiátrica brasilei- Destaca-se que este estudo é parte de pesquisa
ra, levando em consideração a participação das que objetivou analisar os motivos de internação
crianças e adolescentes nesse processo. de crianças e adolescentes, no contexto da refor-
Assim, foi feito o levantamento de um con- ma psiquiátrica, em uma instituição psiquiátrica
junto de documentos diversos que abordam a de caráter asilar a partir das perspectivas da insti-
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tuição, bem como das crianças e dos adolescentes e adolescentes que se encontravam em situação
internados/institucionalizados12. de vulnerabilidade social ou que haviam cometi-
do pequenos atos infracionais16.
Caminhos para construção da atenção O movimento pela redemocratização do país,
à saúde mental infantojuvenil no qual estava inserida a luta pela reforma psiqui-
átrica, deu visibilidade à necessidade colocada de
A criação de uma política de atenção à saúde se pensar a criança e o adolescente como cidadãos
mental específica para a população infantojuvenil e provocou a transformação da questão. A Cons-
está inserida no contexto macro do processo de tituição Federal de 1988 afirmou a cidadania das
reforma psiquiátrica e de consolidação da Política crianças e dos adolescentes, condição de sujeitos
Nacional de Saúde Mental, embora haja uma in- de direitos que resultou na promulgação de Lei
clusão tardia desse tema nessa agenda13. Assim, a n.º 8.069/90, o ECA17. Esse dispositivo em vigor
transformação do campo é uma ação recente que visa a enfatizar o caráter de cidadão das crianças
preenche uma lacuna na assistência à população e dos adolescentes e a garantir os seus direitos,
infantojuvenil com sofrimento psíquico. asseverando a necessidade de o Estado garantir a
Historicamente, por falta de investimentos proteção integral desses sujeitos, com a constitui-
e vontade do setor público, foram criadas para ção de ambientes e de vínculos sociais e familiares
crianças e adolescentes instituições totais com afetivos, o pertencimento a um território e a seu
modelos de atenção que não priorizaram a pro- tecido social, a educação em escolas, a promoção,
dução de cuidado integral, e nem tinham como proteção e recuperação da saúde, entre outros17.
foco a reinserção social e a relação com outros Com efeito, o ECA é um marco histórico para a
setores sociais14. Segundo Couto15, ao olhar para construção de novas políticas e modos de atenção
o histórico da atenção produzida para crianças e voltados para a população infantojuvenil.
adolescentes no cenário nacional, é possível en- No que se refere especificamente à atenção a
contrar duas situações principais vivenciadas por crianças e adolescentes com sofrimento psíquico,
essa população: crianças e adolescentes que habi- a consolidação do ECA, concomitantemente com
tam os “abrigos para deficientes” de lógica asilar o processo de reforma psiquiátrica e a implanta-
e à margem do sistema formal de saúde mental, ção da Política Nacional de Saúde Mental, exigiu
e crianças e adolescentes “diagnosticados como a reestruturação da atenção à saúde mental de
autistas ou psicóticos” que “são encontrados pe- crianças e adolescentes. Vale destacar que Del-
regrinando em busca de atendimento especiali- gado10 chama atenção para a “ausência do tema
zado, sem que os localize”. de crianças e adolescentes no debate da reforma
Assim, a assistência até então produzida para psiquiátrica” nos anos 1990, em um desencontro
essa população, com o engendramento de “um entre as discussões acerca das políticas públicas
conjunto de medidas, calcadas na lógica higie- para crianças e adolescentes e o campo da saú-
nista e de inspiração normativo-jurídica, que de mental. Justamente, apenas em 2001, foram
expandiu sobremaneira a oferta de instituições criadas condições concretas para construção de
fechadas para o cuidado”, acarretou não na in- políticas públicas para essa população com a
serção social em uma perspectiva de constru- promulgação da Lei 10.216/014; tão logo nesse
ção de direitos de crianças e adolescentes, mas, mesmo ano, na III Conferência Nacional de Saú-
sim, na “institucionalização do cuidado” e na de Mental, esta temática foi eleita como um dos
“criminalização da infância pobre”, o que gerou focos prioritários da reforma psiquiátrica, sendo
“um quadro de desassistência, abandono e exclu- assinalado que a “elaboração e execução de ações
são”14; trata-se de uma lógica de enquadramento no campo da Saúde Mental infantojuvenil devem
e de isolamento das crianças e dos adolescentes compor, obrigatoriamente, as políticas públicas
considerados desviantes. No âmbito jurídico-po- de saúde mental, respeitando as diretrizes do
lítico, esse cenário era corroborado inicialmen- processo da reforma psiquiátrica brasileira e os
te pelo Código de Menores de 1927, conhecido princípios do ECA”18.
como Código Mello Mattos, que foi substituído
pelo Código de Menores em 1979. Se o primeiro A atenção à saúde mental infantojuvenil
expressava a finalidade de “saneamento social”, o no âmbito da reforma psiquiátrica
segundo entendia que havia situações de riscos
na infância e na adolescência que precisavam ser A partir do contexto primordial produzido
resolvidas por meio de internações em massa, pela Lei 10.216/01, tem-se como um importante
sendo aplicadas preferencialmente para crianças marco para a efetiva transformação da atenção às
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crianças e adolescentes a promulgação da Porta- que cada sujeito faz a partir de seu quadro”14.
ria n.º 336/0219, que criou condições de financia- Uma das premissas desse documento refere-se
mento para a construção de CAPS em território à noção ampliada das experiências de vida e do
nacional, dentre eles a modalidade dos CAPSi. A processo saúde-doença, com o entendimento de
partir de então, há uma expansão significativa da que múltiplas dimensões compõem esse proces-
rede de atenção psicossocial e, com a instituição so; da parte dos serviços, tem-se como premissas
da RAPS, em 2011, e a promulgação da Portaria um compromisso ético radical e profundo com
nº 854/12, que busca qualificar as informações a singularidade do sujeito e uma real tomada de
das práticas dos CAPS, afirma-se pela legislação responsabilidade pelo cuidado. Nessa perspecti-
a articulação e integração dos diferentes pontos va da singularidade das experiências de vida, as
de atenção7, bem como ficam definidas as estra- condições de produção de cuidado e a atenção à
tégias e ações na prática cotidiana dos serviços, criança e ao adolescente com sofrimento psíqui-
incluindo o CAPSi8. co estão relacionadas a uma escuta atenta das ne-
Considerando especificamente o percurso cessidades reais dos sujeitos e a garantia de escuta
histórico da atenção à saúde mental infanto- da voz deles, que podem dizer de si e de seu so-
juvenil, é relevante assinalar que em 2003, por frimento. Trata-se de garantir o direito à palavra,
meio da Portaria n.º 1.946/03, e também como legitimar seus saberes e criar possibilidades para
decorrência das deliberações da III Conferência que crianças e adolescentes possam narrar suas
Nacional de Saúde Mental, foi criado um Grupo vivências, assinalar suas perspectivas e se respon-
de Trabalho, sendo a atribuição “proporcionar sabilizar subjetivamente por suas experiências
condições para a implantação de um Fórum Na- em suas trajetórias de vidas.
cional sobre Atenção à Saúde Mental de Crianças Ainda, nesse documento que aponta os cami-
e Adolescentes, que funcione como espaço de ar- nhos para a construção de políticas públicas de
ticulação intersetorial”20. saúde mental para crianças e adolescentes, consi-
A partir desta iniciativa, foi constituído, em dera-se primordial a articulação entre diferentes
2004, por meio da Portaria n.º 1.608/0421, o Fó- setores e a construção permanente dessa rede,
rum Nacional de Saúde Mental Infantojuvenil, sendo de responsabilidade dos serviços o acolhi-
sob a coordenação da Área Técnica de Saúde mento universal e o encaminhamento respon-
Mental, Álcool e outras Drogas, do Ministério da sável com a corresponsabilização dos distintos
Saúde, sendo composto por 32 representantes de atores envolvidos. Nessa linha, é necessária arti-
diferentes instâncias com assentos permanentes e culação com o território dos sujeitos, que envolve
vindos dos campos da saúde, educação, cultura, os vínculos sociais, as histórias, as relações que os
justiça, assistência social, saúde mental e direi- sujeitos estabelecem, os lugares que frequentam,
tos humanos. O colegiado do Fórum, através da entre outros14.
realização de reuniões temáticas e de plenárias, A partir desse conjunto de norteadores, entre
objetiva “debater as diferentes questões relacio- 2005 e 2012 o Fórum Nacional de Saúde Mental
nadas à saúde mental de crianças e adolescentes, Infantojuvenil realizou, no total, nove Reuniões
oferecendo subsídios para a construção das polí- Temáticas nacionais, além das regionais. Essas reu-
ticas públicas voltadas a essa população”22. Com niões produziram três recomendações para esse
efeito, esse colegiado é um dos principais atores campo de atenção, além de sínteses dos debates das
na construção das bases e das diretrizes para po- reuniões, no sentido de produzir entendimentos,
líticas públicas de saúde mental específicas para qualificar as discussões e fortalecer a construção
crianças e adolescentes, garantindo a construção de políticas públicas, abordando temas como os
e a consolidação de novos serviços estratégicos, desafios da desinstitucionalização para o campo
os CAPSi, e inéditos modos de cuidado. infantojuvenil no âmbito da RAPS, a articulação
O conjunto dos princípios norteadores para entre os operadores da saúde mental e da justiça,
a construção de tais políticas, explicitado em as estratégias de cuidado em rede – tendo em vista
documento publicado em 2005, afirma que a a intersetorialidade –, entre outros22. Importante
atenção em saúde mental infantojuvenil deve notar que na IV Conferência Nacional de Saúde
prever o acolhimento universal, o encaminha- Mental, em 2010, é feita a convocação de outros
mento implicado, a construção permanente da setores envolvidos com a construção das políticas
rede e a intersetorialidade na ação do cuidado, públicas em saúde mental, como os operadores
de modo a “possibilitar ações emancipatórias” e do direito, da assistência social, da cultura, entre
gerar “uma rede de cuidados que leve em conta outros23. Assim, pode-se afirmar que se a interse-
as singularidades de cada um e as construções torialidade na atenção à saúde mental de crianças
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e adolescentes já vinha sendo afirmada como um ter a multiplicidade de práticas realizadas na rede
fundamento necessário na construção de políticas de atenção psicossocial infantojuvenil atentas
públicas, com um diálogo intenso com diversos às singularidades das experiências, das histórias
setores em uma concepção de rede pública am- e dos contextos de vida dos usuários dos servi-
pliada24, esse tema é fortalecido no contexto da ços27. Este encontro configurou-se como um es-
IV Conferência Nacional de Saúde Mental e tem paço de compartilhamento de experiências e de
continuidade nas reuniões do Fórum Nacional de reflexão sobre os desafios colocados, compreen-
Saúde Mental Infantojuvenil. dendo a pluralidade de ações desenvolvidas não
Do conjunto das reuniões, merece destaque a apenas no campo da atenção psicossocial direta,
IX e última Reunião Ordinária do Fórum Nacio- mas também nos eixos da formação, da gestão e
nal de Saúde Mental Infantojuvenil, que ocorreu da política, indicando uma riqueza de ações no
em 2012 com o tema “Desafios para o campo da campo27.
infância e juventude no âmbito da rede de aten- Ainda nesse ano, a Área Técnica de Saúde
ção psicossocial (RAPS)”, em uma discussão que Mental, Álcool e outras Drogas em parceria com
“pretendeu qualificar o debate sobre a RAPS e outras e com o Conselho Nacional do Ministério
seus pontos de atenção, formular caminhos para Público, realizou uma consulta pública visando
a ampliação do acesso de crianças, adolescentes “estabelecer linguagem e entendimentos comuns
e jovens e qualificar a interface com o sistema de que possam fazer avançar o acesso e a qualifica-
garantia de direitos e o protagonismo juvenil”22. ção das ações voltadas à população de crianças e
Esta reunião produziu um conjunto de 41 propo- adolescentes nos âmbitos jurídicos e de atenção à
sições, dentre as quais se destacam a necessidade saúde”28. Como resultado desse processo, foi pro-
de tornar mais viável a participação de adoles- duzido um documento em que são afirmados, no
centes em fóruns municipais, estaduais, regionais contexto da RAPS, os principais temas e desafios
e nacionais, de fortalecer a RAPS e ações interse- concernentes à atenção de crianças e adolescen-
toriais, e construir mecanismos de sustentabili- tes, tais como o papel estratégico da educação, o
dade para os CAPSi22. Também é fundamental o uso abusivo de álcool e outras drogas, a proteção
fato de que, por meio da articulação entre a Área social integral, a atenção integral em saúde, as
Técnica de Saúde Mental, Álcool e outras Drogas medidas socioeducativas, e a atenção em situação
do Ministério da Saúde e o Programa de Cidada- de violência29.
nia dos Adolescentes do Fundo das Nações Uni- Esse documento é expressão do esforço de
das para a Infância (UNICEF), foi viabilizada a transformação significativa na atenção psicosso-
presença e a participação de adolescentes com so- cial. Nesse contexto, em uma perspectiva de uma
frimento psíquico nesse processo. Por conta dis- clínica ampliada que reconhece o sujeito a partir
so, nessa reunião, foi significativa a participação do que lhe “é próprio e singular”30, busca-se ga-
dos adolescentes, que atuaram como ouvintes, rantir uma produção de cuidado que incluam
debatedores e também relatores dos grupos de ações como “acolher, escutar, cuidar, possibilitar
trabalho e da plenária; dentre as várias recomen- ações emancipatórias, enfrentar estigmas e deter-
dações feitas pelos adolescentes na ocasião, ganha minismos”29. Assim, de um campo em que a exclu-
destaque “a necessidade de adequar os próximos são social, a violência e o descaso com o cuidado
fóruns e também os serviços da Rede de Atenção eram as marcas principais, estando a problemática
Psicossocial às demandas específicas e à lingua- ausente da agenda de debates, passa-se a ter um
gem dos adolescentes”25. campo vivo de invenções de serviços, de políticas
Ainda, em relação especificamente às pessoas públicas, e de modos de se relacionar com a expe-
com transtornos do espectro do autismo e suas riência de crianças e adolescentes com sofrimento
famílias, em 2011 é constituído um grupo de tra- psíquico, com ações compromissadas com dife-
balho e em 2013 é publicado um documento que rentes dimensões da reforma psiquiátrica.
“objetiva contribuir para a ampliação do acesso e
da qualificação da atenção” dessa população no A garantia da escuta da voz de crianças
âmbito da RAPS26. Apesar de não ser um docu- e adolescentes usuários de serviços
mento específico da saúde mental infantojuvenil, de saúde mental
tem relevância considerando a população atendi-
da nos CAPSi. Na perspectiva da desinstitucionalização, a
Dando continuidade às discussões no campo, busca pela ampliação do protagonismo e parti-
em 2013 foi realizado o I Congresso Brasileiro de cipação social é um dos pilares fundamentais e
CAPSi (CONCAPSi), que buscou abarcar e deba- um dos aspectos centrais na produção de proces-
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sos de reabilitação, na medida em que reabilitar daquele a quem se quer responsabilizar. Ao falar
significa “construir (reconstruir) acesso real aos sobre si e identificar-se com sua própria história, a
direitos de cidadania, ao exercício progressivo criança e o adolescente veem possibilidades de en-
desses direitos, à possibilidade de vê-los reco- contrar novos significados e novas formas de inser-
nhecidos e de agir a partir deles, à capacidade de ção na sociedade e na família28.
praticá-los”31. Ora, o exercício pleno de direitos é Para tanto, é imprescindível a disposição
o horizonte emancipatório e isso passa pela ga- para escuta e a legitimação dessas falas em um
rantia de que atos de fala de usuários de servi- processo de validação social. Nesse contexto, é
ços de saúde mental, que são cidadãos e sujeitos interessante notar que uma prática recorrente
de direitos, tenham espaço no tecido social. Ou dos serviços de atenção em saúde mental de base
seja, as vozes dos sujeitos precisam ser validadas territorial refere-se à realização de assembleias
e enunciadas em espaços que as legitimem, seja periódicas, nas quais os profissionais, os fami-
em assembleias nos serviços, seja em encontros liares e os usuários do serviço têm direito à voz;
ampliados dos movimentos sociais, seja em di- tal prática era largamente utilizada no contexto
versos espaços e instituições do território e do da experiência italiana de desinstitucionalização.
tecido social. Assim, a possibilidade de ampliação Assim, no cotidiano dos serviços, essa pode ser
da participação social está intrinsicamente rela- uma importante estratégia para ampliação da
cionada ao fortalecimento do poder contratual participação.
no jogo social. Para Vasconcelos et al.32, possibilitar que os
Como assinalado anteriormente, na refor- usuários dos serviços possam falar sobre suas ex-
ma psiquiátrica esse processo constituiu, e ain- periências e essas serem validadas significa forta-
da constitui, um percurso complexo, em que as lecer, ou “empoderar”, a voz de cada um, além de
mudanças conquistadas apenas se tornam possí- engendrar movimentos de transformação pelo
veis pela realização de debates e de deliberações fato de a voz ser “o instrumento de mudança so-
operados na esfera pública em que todos – traba- cial, cultural e institucional na sociedade civil”. O
lhadores, familiares, pessoas com sofrimento psí- conceito de empoderamento, de caráter polissê-
quico e sociedade em geral – participam. Assim, mico, pode ser compreendido como o “aumento
considerando o percurso histórico da atenção à do poder e autonomia pessoal e coletiva de indi-
saúde mental de crianças e adolescentes e a ne- víduos e grupos sociais nas relações interpessoais
cessidade de aumentar a participação desses su- e institutionais”33; assim, trata-se do fortaleci-
jeitos no debate, torna-se relevante, refletir sobre mento do poder de contrato dos sujeitos nas di-
como pode ser possível ampliar suas possibilida- versas relações, possibilitando uma participação
des de contratualidade e de participação social ampliada nas trocas sociais. Segundo Kinoshita34,
nesse processo, garantindo direitos e percursos o poder de contrato é estabelecido na relação
de transformações. com outros sujeitos na esfera social por meio de
Assim, pode-se afirmar, de modo geral, que processos de intercâmbios, estando relacionado à
por meio da garantia de fala opera-se com o reco- troca de bens, de afetos e de mensagens; no per-
nhecimento das crianças e dos adolescentes como curso de ampliação da participação social, da au-
sujeitos de direitos e de responsabilidades, cons- tonomia e do poder contratual das pessoas com
truindo, também, possibilidades para que sejam experiência de sofrimento psíquico, é possível o
protagonistas de seus processos. Tendo em vista profissional emprestar ao outro seu poder con-
essas premissas, no âmbito da luta pela reforma tratual, constituindo processos conjuntos de tal
psiquiátrica e de suas ações, as políticas públicas modo que, gradualmente, esse outro possa cons-
que vêm sendo construídas para a população in- truir sua própria trajetória singular. Dessa forma,
fantojuvenil enfatizam, como afirmado, a impor- se garantir poder contratual aos usuários é ponto
tância de dar voz às crianças e aos adolescentes de partida para a constituição de relações mais
com sofrimento psíquico, seja no espaço político horizontais nas práticas em saúde mental no âm-
como acontece nas Reuniões do Fórum Nacional bito da reforma psiquiátrica e ampliação da au-
de Saúde Mental Infantojuvenil, seja nos serviços tonomia, participação social e contratualidade,
de atenção psicossocial, seja no cotidiano, pois: revela-se imprescindível assegurar a escuta das
[...] na dimensão da saúde, enquanto produ- experiências vivenciadas por esses sujeitos en-
ção de uma comunidade de sujeitos responsáveis quanto estratégia de empoderamento.
pelo cuidado de si e do outro, questão essencial é Ainda segundo Vasconcelos et al.32, as nar-
a garantia do direito à palavra. Não há responsa- rativas dos usuários dos serviços sobre suas ex-
bilização possível sem que seja garantida a escuta periências possibilitam que as vivências sejam
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expressas a partir da perspectiva pessoal, social diana dos serviços, seja em espaços políticos am-
e política, em um processo de “afirmação da ex- pliados. A construção de tais ações constitui-se,
periência subjetiva humana e de seu papel como ainda hoje com tantos avanços, como um desafio
sujeito, em detrimento da autoridade e das nar- permanente da reforma psiquiátrica.
rativas feitas de fora e de cima pelos profissionais
e especialistas”. Ora, considerando em particular Caminhos a seguir
o direito à fala da criança e do adolescente, é rele-
vante notar que desde o princípio da construção A construção de políticas públicas e de mo-
de políticas de saúde mental infantojuvenil con- dos de atenção em saúde mental, em uma pers-
sidera-se que: pectiva de cidadania das pessoas com sofrimento
Incluir, no centro das montagens institucionais, psíquico, mostra-se como um processo contínuo
a criança ou o adolescente como sujeitos, com suas de luta pela construção e efetivação de direitos.
peculiaridades e responsabilidades sobre o curso de No campo da atenção à saúde mental infanto-
sua existência, é o único modo de garantir que não juvenil são notórios os avanços produzidos nas
se reproduza na sua assistência o ato de se discur- diferentes dimensões, com destaque para a cria-
sar sobre ela, de saber, por ela, o que é melhor para ção e expansão dos serviços para essa população
ela14. garantidos por meio da legislação e para as mo-
Justamente, de acordo com Vasconcelos et bilizações sociais e políticas na busca por garantir
al.32, quando as experiências narradas pelos usu- a escuta e a voz de crianças e adolescentes com
ários dos serviços podem ser compartilhadas experiência de sofrimento psíquico. Contudo, há
com as vivências de outros usuários, é possível que se destacar que a última reunião realizada
às pessoas colocarem-se “como porta-vozes mais pelo Fórum ocorreu em 2012 e, tendo em vista
universais dessas dimensões recalcadas do ser, que novas proposições e o seguimento de polí-
e reclamarem mudanças concretas nas formas ticas públicas estão relacionados a um campo
como a sociedade encara e trata dessas dimen- político ampliado, é temeroso que esses avanços
sões e dessas pessoas”. Nesse sentido, estar aten- enfrentem interrupções. Nesse sentido, é preciso
to ao modo como os sujeitos compreendem seu investir permanentemente na construção desse
processo significa abrir um campo de possibili- processo, construindo possibilidades no coti-
dades de transformação a partir da experiência diano dos serviços e em níveis diversos, com o
concreta desses sujeitos. desenvolvimento de projetos que estejam com-
A partir dessa compreensão, é preciso criar prometidos, de fato, com a ampliação da partici-
estratégias e possibilidades diversas para que es- pação social de crianças e adolescentes com sofri-
sas narrativas tenham lugar, seja na prática coti- mento psíquico e a garantia de cidadania.

Colaboradores Referências

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União 2003; 10 out. Versão final apresentada em 19/12/2016

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