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Políticas Públicas Na Atenção À Saúde Mental de Crianças
Políticas Públicas Na Atenção À Saúde Mental de Crianças
30582016 401
ARTIGO ARTICLE
e adolescentes: percurso histórico e caminhos de participação
Abstract People with mental disorders play an Resumo Na reforma psiquiátrica brasileira, é
important role in the mental health reform pro- importante a participação de pessoas com expe-
cess, which involves the creation of new public riência de sofrimento psíquico enquanto atores
policies, practices, knowledge, and ways of relat- sociais na construção desse processo, que envolve
ing to this experience. Using a guiding question a criação de novas políticas públicas, práticas, sa-
addressing the history of child and adolescent beres e modos de relação com essa experiência. A
mental health in Brazil and the participation of partir do questionamento acerca do percurso his-
child and adolescent mental health service users tórico específico da saúde mental infantojuvenil e
in the policy construction process, a narrative lit- da participação de crianças e adolescentes nesse
erature review was undertaken framing the main processo, foi feita uma revisão narrativa da litera-
policy developments and advances in this area tura que busca evidenciar os momentos principais
within the overall context of the Brazilian men- dessa trajetória, no que concerne à produção de
tal health reform. A search of technical, institu- políticas públicas e legislações. A revisão consistiu
tional, and legal documents in the thematic area na busca de documentos técnicos e institucionais
Mental Health was conducted using a national da área temática da Saúde Mental em base de
database. The material analyzed addressed mile- dados nacionais, além de documentos legais. O
stones in child and adolescent mental healthcare, material analisado versou sobre um conjunto de
highlighting the paths taken in building this field. marcos da atenção à saúde mental de crianças
The article also discusses the participation of child e adolescentes e a análise assinalou os caminhos
and adolescent mental health service usersin this trilhados na construção desse campo. Ainda, na
process in the form of a commentary. Finally, the perspectiva de um comentário, foi discutida a
article highlights the need to guarantee the par- participação de crianças e adolescentes com sofri-
ticipation of this group to enable them to play a mento psíquico nesse processo. Este artigo destaca
leading role in the struggle for the construction a necessidade de construir garantias concretas de
1
Departamento de and realization of rights. participação dessa população, possibilitando que
Medicina Preventiva, Key words Mental health, Child, Adolescent, assumam o papel de protagonista na luta pela
Faculdade de Medicina, Public policy, Social participation construção e garantia de direitos.
Universidade de São
Paulo. Av. Dr. Arnaldo 455, Palavras-chave Saúde mental, Criança, Adoles-
Cerqueira César. 01246- cente, Políticas públicas, Participação social
903 São Paulo SP Brasil.
claudia.pellegrini.braga@
gmail.com
402
Braga CP, d’Oliveira AFPL
Construção e consolidação da saúde mental das compõem esse movimento, a saber: teórico-
infantojuvenil na reforma psiquiátrica conceitual, técnico-assistencial, jurídico-política
brasileira e sociocultural.
A dimensão teórico-conceitual refere-se ao
No cenário nacional, no final da década de movimento de ruptura com o paradigma psiqui-
1970, teve início o processo de reforma psiquiá- átrico e envolve a elaboração, a crítica e a produ-
trica no contexto de lutas pela redemocratização ção de novos saberes2. Na perspectiva da desinti-
do país1. Pode-se identificar o ano de 1978, com tucionalização produzida pela experiência italia-
a criação do Movimento dos Trabalhadores em na, que teve importante influência no Brasil, de-
Saúde Mental (MTSM), como um dos marcos senvolveu-se uma profunda crítica à instituição
do movimento social de crítica das condições de psiquiátrica em si – com seus aparatos científicos,
assistência psiquiátrica e de busca de novas pro- assistenciais, relacionais, administrativos, legisla-
posições1-3. Como resultado desta luta tem-se a tivos e culturais. Ainda, produziu-se uma ruptura
constituição da Política Nacional de Saúde Men- com a função e com o mandato social dos pro-
tal, que busca consolidar no âmbito do Sistema fissionais desta instituição. Segundo Basaglia6,
Único de Saúde (SUS) um campo de atenção para constituir um objeto fictício de intervenção,
psicossocial aberto, de base territorial, promo- que é a doença, a disciplina psiquiátrica separa a
tor de reintegração social e cidadania e inseri- experiência de sofrimento psíquico da existência
do nos contextos reais de vida das pessoas com global e concreta dos sujeitos. Em uma atitude
experiência de sofrimento psíquico1. Trata-se de crítica ao modelo existente, Basaglia6 propõe que
um movimento que conta com a participação se coloque a doença entre parênteses, e não o
de diversos atores sociais, sendo de fundamental sujeito, de modo que seja produzido um rompi-
importância a presença dos usuários dos serviços mento com um modelo psiquiátrico que objetiva
da rede de atenção psicossocial nessa construção, os sujeitos em torno de uma noção de doença e
assumindo o papel de protagonista na luta pela que se torne possível a aproximação com as expe-
garantia e produção de direitos. riências concretas e complexas de vida.
Nesse contexto, se insere a atenção à saúde Assim, nas práticas desinstitucionalizantes
mental infantojuvenil que, apesar de ter seus te- busca-se com ações práticas e reflexivas a descons-
mas incluídos mais tardiamente na agenda pú- trução dos modos de saber e de fazer vigentes,
blica, tem produzido significativos avanços no criando formas inéditas de ação. Nessa esfera te-
campo das práticas e da produção de saberes. órico-conceitual, Amarante2 destaca a necessidade
Considerando isso, bem como os 15 anos da Lei de considerar que a desinstitucionalização designa
n.º 10.216/014, completados no ano de 2016, e a as “múltiplas formas de tratar os sujeitos em sua
expansão da reforma psiquiátrica na construção existência e em relação com as condições concre-
de políticas públicas, torna-se significativo com- tas de vida”2. Dessa forma, trata-se de um processo
preender e dar lugar para o percurso histórico de desconstrução do problema, de saberes e práti-
específico da construção de políticas públicas no cas, e de estabelecimento de novas relações.
campo da saúde mental infantojuvenil. Essa ini- Articulada a essa dimensão situa-se a técni-
ciativa possibilita dar visibilidade para os prin- co-assistencial, que envolve a questão dos mo-
cipais marcos a partir da compreensão da con- delos assistenciais, sendo que toda construção
tínua necessidade de ampliação da participação de serviços está pautada em conceitos e teorias
de crianças e adolescentes usuárias de serviços de – a dimensão teórico-conceitual2. Se o objeto de
saúde mental na construção e produção dessas atenção for a doença e a periculosidade for um
políticas públicas. componente importante do campo, como é no
modelo psiquiátrico, as instituições deverão ser
Dimensões da reforma psiquiátrica normativas e disciplinares; porém, se a propos-
brasileira ta de atenção tiver como norte entrar em relação
com a existência complexa de sujeitos com sofri-
O percurso da reforma psiquiátrica confi- mento psíquico, os dispositivos de atenção deve-
gura-se como um processo social complexo que rão ser criados a fim de sustentar a multiplicidade
está para além da reestruturação do modelo as- de elementos do processo6. Por isso, a proposição
sistencial, envolvendo um incessante movimen- de novas modalidades de atenção exige a recons-
to com a inovação de atores, conceitos e princí- trução de concepções e a produção de inéditos
pios2,5. Para Amarante2, considerando o cenário modos de compreensão que visem à elaboração
brasileiro, diferentes dimensões inter-relaciona- de dispositivos e estratégias de intervenção2.
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madoras realizadas na RAPS, e pela consolidação questão, foi sistematizada a discussão e produ-
de leis que estabelecem os direitos das pessoas zida uma análise crítica do ponto de vista teó-
com sofrimento psíquico é possível modificar o rico e conceitual. A busca pelos documentos foi
imaginário social acerca da loucura. Nesse cená- realizada em base de dados nacional (SciELO),
rio, a participação social e política dos atores so- com foco específico nas buscas de documen-
ciais é um aspecto fundamental dessa dimensão tos técnicos e institucionais da área temática da
e que possibilita a articulação intrínseca com as Saúde Mental da Biblioteca Virtual em Saúde e
demais. na consulta de documentos legais, constituindo
O que parece fundamental enfatizar é que o conjunto de documentos primários de análise;
processo de reforma psiquiátrica, compreendido ainda, para uma leitura desses documentos, fo-
na perspectiva da desinstitucionalização, consti- ram consultados artigos e livros relacionados
tui um percurso complexo e vivo. A busca pela ao tema em questão, identificados a partir das
transformação das relações entre o sofrimento citações e referências dos primeiros materiais e
psíquico e o tecido social e pela garantia de di- considerados chaves na discussão das políticas
reitos das pessoas com sofrimento psíquico, en- públicas analisadas. Na revisão, primeiramente,
volve a produção de saberes, o desenvolvimento foram selecionados todos os documentos técni-
de práticas inovadoras e a elaboração de políticas cos e institucionais produzidos pela área temática
públicas e de fundamentos legais para a viabiliza- da Saúde Mental da Biblioteca Virtual em Saúde,
ção e sustentação desse projeto2,3. Nesse percur- além dos documentos legais relativos à área. A
so, a participação de pessoas com experiência de partir de uma leitura exploratória inicial, foram
sofrimento psíquico na constituição de políticas selecionados os documentos que são marcos do
públicas para a construção de estratégias e redes campo da atenção à saúde mental de crianças e
de atenção é primordial; a essência desse proces- adolescentes. Com base nas referências desses
so é a luta por direitos e afirmação da cidadania materiais, foram selecionados documentos pu-
e, nesse sentido, trata-se de “um processo ético blicados na forma de artigos em revistas indexa-
-estético, de reconhecimento de novas situações das, bem como livros que, do ponto de vista in-
que produzem novos sujeitos de direito e novos formativo bem como crítico, tratassem do tema
direitos para os sujeitos”2. em questão. Dessa forma, os materiais analisados
compreendem documentos técnicos, institucio-
nais e legais, tais como legislações e documentos
Método orientadores e promotores de políticas públicas,
além de um conjunto de documentos sob a for-
Esse texto consiste em uma revisão narrativa da ma de artigos e livros específicos sobre o tema de
literatura, definida como uma revisão bibliográ- referência no campo.
fica não sistemática e apropriada para discussão Após leitura do conjunto do material e aná-
e desenvolvimento de um determinado assunto lise, a discussão teórica foi organizada em dois
de um ponto de vista teórico e contextual11. A eixos temáticos, a saber: caminhos para constru-
revisão foi desenvolvida a partir de uma questão ção da atenção à saúde mental infantojuvenil; e a
orientadora: considerando a centralidade da par- atenção à saúde mental infantojuvenil no âmbito
ticipação das pessoas com sofrimento psíquico da reforma psiquiátrica. Ainda, foi realizada ao
no processo de construção das políticas públicas final uma reflexão crítica, que constitui o comen-
na reforma psiquiátrica brasileira, quais são os tário da revisão narrativa, acerca da importância
principais elementos e marcos do percurso histó- de garantia da escuta da voz de crianças e adoles-
rico e do panorama atual específicos da atenção centes com experiência de sofrimento psíquico e
à saúde mental de crianças e adolescentes? A pro- usuários de serviços de saúde mental. Dessa for-
posta de uma revisão narrativa da literatura, com ma, pretendeu-se discutir e refletir sobre o desen-
enfoque no percurso de criação e implementação volvimento da atenção à saúde mental de crian-
de políticas públicas sustentadas por legislações, ças e adolescentes e os caminhos no processo de
consiste em situar o desenvolvimento e os avan- ampliação da participação de desses sujeitos na
ços do campo da saúde mental infantojuvenil no produção de políticas públicas.
cenário geral da reforma psiquiátrica brasilei- Destaca-se que este estudo é parte de pesquisa
ra, levando em consideração a participação das que objetivou analisar os motivos de internação
crianças e adolescentes nesse processo. de crianças e adolescentes, no contexto da refor-
Assim, foi feito o levantamento de um con- ma psiquiátrica, em uma instituição psiquiátrica
junto de documentos diversos que abordam a de caráter asilar a partir das perspectivas da insti-
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crianças e adolescentes a promulgação da Porta- que cada sujeito faz a partir de seu quadro”14.
ria n.º 336/0219, que criou condições de financia- Uma das premissas desse documento refere-se
mento para a construção de CAPS em território à noção ampliada das experiências de vida e do
nacional, dentre eles a modalidade dos CAPSi. A processo saúde-doença, com o entendimento de
partir de então, há uma expansão significativa da que múltiplas dimensões compõem esse proces-
rede de atenção psicossocial e, com a instituição so; da parte dos serviços, tem-se como premissas
da RAPS, em 2011, e a promulgação da Portaria um compromisso ético radical e profundo com
nº 854/12, que busca qualificar as informações a singularidade do sujeito e uma real tomada de
das práticas dos CAPS, afirma-se pela legislação responsabilidade pelo cuidado. Nessa perspecti-
a articulação e integração dos diferentes pontos va da singularidade das experiências de vida, as
de atenção7, bem como ficam definidas as estra- condições de produção de cuidado e a atenção à
tégias e ações na prática cotidiana dos serviços, criança e ao adolescente com sofrimento psíqui-
incluindo o CAPSi8. co estão relacionadas a uma escuta atenta das ne-
Considerando especificamente o percurso cessidades reais dos sujeitos e a garantia de escuta
histórico da atenção à saúde mental infanto- da voz deles, que podem dizer de si e de seu so-
juvenil, é relevante assinalar que em 2003, por frimento. Trata-se de garantir o direito à palavra,
meio da Portaria n.º 1.946/03, e também como legitimar seus saberes e criar possibilidades para
decorrência das deliberações da III Conferência que crianças e adolescentes possam narrar suas
Nacional de Saúde Mental, foi criado um Grupo vivências, assinalar suas perspectivas e se respon-
de Trabalho, sendo a atribuição “proporcionar sabilizar subjetivamente por suas experiências
condições para a implantação de um Fórum Na- em suas trajetórias de vidas.
cional sobre Atenção à Saúde Mental de Crianças Ainda, nesse documento que aponta os cami-
e Adolescentes, que funcione como espaço de ar- nhos para a construção de políticas públicas de
ticulação intersetorial”20. saúde mental para crianças e adolescentes, consi-
A partir desta iniciativa, foi constituído, em dera-se primordial a articulação entre diferentes
2004, por meio da Portaria n.º 1.608/0421, o Fó- setores e a construção permanente dessa rede,
rum Nacional de Saúde Mental Infantojuvenil, sendo de responsabilidade dos serviços o acolhi-
sob a coordenação da Área Técnica de Saúde mento universal e o encaminhamento respon-
Mental, Álcool e outras Drogas, do Ministério da sável com a corresponsabilização dos distintos
Saúde, sendo composto por 32 representantes de atores envolvidos. Nessa linha, é necessária arti-
diferentes instâncias com assentos permanentes e culação com o território dos sujeitos, que envolve
vindos dos campos da saúde, educação, cultura, os vínculos sociais, as histórias, as relações que os
justiça, assistência social, saúde mental e direi- sujeitos estabelecem, os lugares que frequentam,
tos humanos. O colegiado do Fórum, através da entre outros14.
realização de reuniões temáticas e de plenárias, A partir desse conjunto de norteadores, entre
objetiva “debater as diferentes questões relacio- 2005 e 2012 o Fórum Nacional de Saúde Mental
nadas à saúde mental de crianças e adolescentes, Infantojuvenil realizou, no total, nove Reuniões
oferecendo subsídios para a construção das polí- Temáticas nacionais, além das regionais. Essas reu-
ticas públicas voltadas a essa população”22. Com niões produziram três recomendações para esse
efeito, esse colegiado é um dos principais atores campo de atenção, além de sínteses dos debates das
na construção das bases e das diretrizes para po- reuniões, no sentido de produzir entendimentos,
líticas públicas de saúde mental específicas para qualificar as discussões e fortalecer a construção
crianças e adolescentes, garantindo a construção de políticas públicas, abordando temas como os
e a consolidação de novos serviços estratégicos, desafios da desinstitucionalização para o campo
os CAPSi, e inéditos modos de cuidado. infantojuvenil no âmbito da RAPS, a articulação
O conjunto dos princípios norteadores para entre os operadores da saúde mental e da justiça,
a construção de tais políticas, explicitado em as estratégias de cuidado em rede – tendo em vista
documento publicado em 2005, afirma que a a intersetorialidade –, entre outros22. Importante
atenção em saúde mental infantojuvenil deve notar que na IV Conferência Nacional de Saúde
prever o acolhimento universal, o encaminha- Mental, em 2010, é feita a convocação de outros
mento implicado, a construção permanente da setores envolvidos com a construção das políticas
rede e a intersetorialidade na ação do cuidado, públicas em saúde mental, como os operadores
de modo a “possibilitar ações emancipatórias” e do direito, da assistência social, da cultura, entre
gerar “uma rede de cuidados que leve em conta outros23. Assim, pode-se afirmar que se a interse-
as singularidades de cada um e as construções torialidade na atenção à saúde mental de crianças
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sos de reabilitação, na medida em que reabilitar daquele a quem se quer responsabilizar. Ao falar
significa “construir (reconstruir) acesso real aos sobre si e identificar-se com sua própria história, a
direitos de cidadania, ao exercício progressivo criança e o adolescente veem possibilidades de en-
desses direitos, à possibilidade de vê-los reco- contrar novos significados e novas formas de inser-
nhecidos e de agir a partir deles, à capacidade de ção na sociedade e na família28.
praticá-los”31. Ora, o exercício pleno de direitos é Para tanto, é imprescindível a disposição
o horizonte emancipatório e isso passa pela ga- para escuta e a legitimação dessas falas em um
rantia de que atos de fala de usuários de servi- processo de validação social. Nesse contexto, é
ços de saúde mental, que são cidadãos e sujeitos interessante notar que uma prática recorrente
de direitos, tenham espaço no tecido social. Ou dos serviços de atenção em saúde mental de base
seja, as vozes dos sujeitos precisam ser validadas territorial refere-se à realização de assembleias
e enunciadas em espaços que as legitimem, seja periódicas, nas quais os profissionais, os fami-
em assembleias nos serviços, seja em encontros liares e os usuários do serviço têm direito à voz;
ampliados dos movimentos sociais, seja em di- tal prática era largamente utilizada no contexto
versos espaços e instituições do território e do da experiência italiana de desinstitucionalização.
tecido social. Assim, a possibilidade de ampliação Assim, no cotidiano dos serviços, essa pode ser
da participação social está intrinsicamente rela- uma importante estratégia para ampliação da
cionada ao fortalecimento do poder contratual participação.
no jogo social. Para Vasconcelos et al.32, possibilitar que os
Como assinalado anteriormente, na refor- usuários dos serviços possam falar sobre suas ex-
ma psiquiátrica esse processo constituiu, e ain- periências e essas serem validadas significa forta-
da constitui, um percurso complexo, em que as lecer, ou “empoderar”, a voz de cada um, além de
mudanças conquistadas apenas se tornam possí- engendrar movimentos de transformação pelo
veis pela realização de debates e de deliberações fato de a voz ser “o instrumento de mudança so-
operados na esfera pública em que todos – traba- cial, cultural e institucional na sociedade civil”. O
lhadores, familiares, pessoas com sofrimento psí- conceito de empoderamento, de caráter polissê-
quico e sociedade em geral – participam. Assim, mico, pode ser compreendido como o “aumento
considerando o percurso histórico da atenção à do poder e autonomia pessoal e coletiva de indi-
saúde mental de crianças e adolescentes e a ne- víduos e grupos sociais nas relações interpessoais
cessidade de aumentar a participação desses su- e institutionais”33; assim, trata-se do fortaleci-
jeitos no debate, torna-se relevante, refletir sobre mento do poder de contrato dos sujeitos nas di-
como pode ser possível ampliar suas possibilida- versas relações, possibilitando uma participação
des de contratualidade e de participação social ampliada nas trocas sociais. Segundo Kinoshita34,
nesse processo, garantindo direitos e percursos o poder de contrato é estabelecido na relação
de transformações. com outros sujeitos na esfera social por meio de
Assim, pode-se afirmar, de modo geral, que processos de intercâmbios, estando relacionado à
por meio da garantia de fala opera-se com o reco- troca de bens, de afetos e de mensagens; no per-
nhecimento das crianças e dos adolescentes como curso de ampliação da participação social, da au-
sujeitos de direitos e de responsabilidades, cons- tonomia e do poder contratual das pessoas com
truindo, também, possibilidades para que sejam experiência de sofrimento psíquico, é possível o
protagonistas de seus processos. Tendo em vista profissional emprestar ao outro seu poder con-
essas premissas, no âmbito da luta pela reforma tratual, constituindo processos conjuntos de tal
psiquiátrica e de suas ações, as políticas públicas modo que, gradualmente, esse outro possa cons-
que vêm sendo construídas para a população in- truir sua própria trajetória singular. Dessa forma,
fantojuvenil enfatizam, como afirmado, a impor- se garantir poder contratual aos usuários é ponto
tância de dar voz às crianças e aos adolescentes de partida para a constituição de relações mais
com sofrimento psíquico, seja no espaço político horizontais nas práticas em saúde mental no âm-
como acontece nas Reuniões do Fórum Nacional bito da reforma psiquiátrica e ampliação da au-
de Saúde Mental Infantojuvenil, seja nos serviços tonomia, participação social e contratualidade,
de atenção psicossocial, seja no cotidiano, pois: revela-se imprescindível assegurar a escuta das
[...] na dimensão da saúde, enquanto produ- experiências vivenciadas por esses sujeitos en-
ção de uma comunidade de sujeitos responsáveis quanto estratégia de empoderamento.
pelo cuidado de si e do outro, questão essencial é Ainda segundo Vasconcelos et al.32, as nar-
a garantia do direito à palavra. Não há responsa- rativas dos usuários dos serviços sobre suas ex-
bilização possível sem que seja garantida a escuta periências possibilitam que as vivências sejam
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