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DOI: 10.4025/actascihumansoc.v30i2.

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A análise do discurso político


Ana Cleide Chiarotti Cesário* e Ana Maria Chiarotti de Almeida
Universidade Estadual de Londrina, Rod. Celso Garcia Cid, Pr 445, Km 380, Londrina, Paraná, Brasil.
*Autor para correspondência. E-mail: anaccesario@sercomtel.com.br

RESUMO. Este artigo aborda o discurso a partir de duas pesquisas já concluídas que, tomando
por base o texto jornalístico, interpretam tanto o processo discursivo quanto o acontecimento
político pela perspectiva do encontro da língua com a história e a ideologia. Desse modo, avalia os
princípios e procedimentos teórico-metodológicos da Análise de Discurso de linha francesa (AD)
a partir do seu uso no campo das Ciências Sociais, em especial pela Ciência Política. Mostra que
o encontro do cientista social com a AD propicia a descoberta de que ela não constitui um campo
exclusivo da Linguística, mas um entremeio formado também pela Psicanálise e o Marxismo,
mantendo estreita relação com as Ciências Sociais. Orientada pela releitura que Althusser faz de
Marx, revê os conceitos de ideologia e de sujeito e a relação que se estabelece entre eles no
processo de assujeitamento. O uso desta metodologia, que também é teoria, coloca, muitas vezes,
o cientista social, durante o processo de compreensão do objeto investigado, diante de desafios
teórico-metodológicos que podem levá-lo à revisão desse entremeio à luz de sua própria área de
formação e do seu campo disciplinar.
Palavras-chave: análise de discurso, ideologia, política e discurso jornalístico.

ABSTRACT. The analysis of political discourse. This paper deals with discourse based
on two previous studies with newspaper texts that interpret not only the discourse process
but also the political aspect concerning the linkage of language with history and ideology.
Thus, it evaluates the theoretical-methodological principles and procedures of the French
Discourse Analysis (DA), based on its use in the Social Sciences field, especially byPolitical
Science. It shows that the connection between the social scientist and DA allows the
awareness that it is not a field exclusive to Linguistics, but is formed by both Psychoanalysis
and Marxism, with close relation to the Social Sciences. Guided by Althusser’s analysis of
Marx, it reviews concepts of ideology and subject as well as the relation that is established
between them in the subjectivation process. The use of this methodology, which is also a
theory, places the social scientist, during the process of understanding the studied object, up
against theoretical-methodological challenges that may lead him/her to review this
reflection based on his/her own education and disciplinary fields.
Key words: discourse analysis, ideology, politics and newspaper discourse.

Introdução oficiais e de falas de entrevistados como se fossem


ilustrações ou provas do que a teoria e os dados
O que leva o cientista político a se aproximar dos
quantitativos indicam ou mesmo exigem como
estudos e da análise do discurso e, consequentemente,
informação complementar.
da Linguística?
Tais observações podem parecer descabidas já que,
A princípio, são motivações de natureza
para os pesquisadores, em geral, das áreas de Ciências
puramente metodológica, isto é, a necessidade de
Sociais, o discurso é sempre visto como algo denso e
maior rigor na interpretação e compreensão dos
opaco, que requer interpretação, por trazer, na sua
materiais empíricos – os textos –, geralmente
tessitura, aspectos relacionados às relações de poder e à
denominados, pelos cientistas sociais e historiadores,
ideologia. Mesmo assim, na maioria das vezes, o que o
de documentos, entrevistas ou depoimentos.
sociólogo ou cientista político faz é tentar compreender
Essas motivações se devem também a uma
o que o texto diz, ora por meio de uma adaptação da
insatisfação que acomete o pesquisador quando
análise de conteúdo1, ora se atendo a fragmentos
percebe que, após enorme e cuidadoso trabalho de
interpretação dos materiais coletados, o relatório ou
publicação final de sua pesquisa acaba transcrevendo 1
Sistematizada nos anos de 1940-50 por Lasswell, Lazarsfeld e Berelson, é
definida pelo último como “uma técnica objetiva, sistemática e quantitativa do
trechos de matérias jornalísticas, de documentos conteúdo manifesto da comunicação”. Por meio desta técnica, os conteúdos
passam por uma pré-categorização dos temas existentes nos textos e, na

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textuais, uma certa hermenêutica voltada para os governamentais no Brasil, a exemplo dos trabalhos
sentidos das palavras de enunciados considerados de Benevides (1976; 1981) e de Souza (1976).
relevantes para a interpretação. Desse modo, relaciona Duas obras, em especial, levam o pesquisador
os sentidos e significados perscrutados no material voltado para temas da política brasileira a refletir
qualitativo à hipótese de trabalho, à teoria que orienta a sobre o discurso político.
investigação e aos dados quantitativos sobre os quais a A primeira delas é a análise sobre o período do
pesquisa se apoia. governo Juscelino Kubitschek (JK) (Benevides,
O material qualitativo – os textos –, com muita 1976) que, embora seja irrepreensível do ponto de
frequência, é denominado discurso e os sentidos e vista teórico metodológico, pois analisa o
significados nele contidos são muitas vezes desenvolvimento econômico relacionado à
interpretados como representações, ideologia ou estabilidade do governo – sendo esta compreendida
imaginário, havendo quase sempre o consenso de como ordem política –, utiliza fontes documentais e
que a análise está se movendo num terreno que se entrevistas, interpretando-as, porém sem submetê-
convencionou chamar de simbólico. las a um exame de sua discursividade.
Não se quer aqui minimizar a importância das Ao final do livro, de modo, não se sabe ao certo,
análises qualitativas realizadas por cientistas sociais, pois ilustrativo ou documental, Benevides anexa
é indiscutível a eficiência de metodologias de entrevista a ela concedida pelo Presidente Juscelino
investigação usualmente empregadas no campo das Kubitschek, um texto carregado de sentidos e de
Ciências Sociais, como a etnografia, a hermenêutica, a extraordinária força imagética que, lá permanecendo
história de vida, a história oral, entre outras. O que se ao final do livro, parece convocar o leitor e também
pretende é discutir que, quando o objeto é o discurso, o analista para novas interpretações.
os cientistas sociais, e em particular o cientista político, A segunda, também considerada clássica sobre o
ainda encontram muita dificuldade com a análise desse mesmo período, embora não se restrinja apenas ao
objeto e que a Análise de Discurso de linha francesa Governo JK e se estenda também ao Governo de
(AD), tendo como principal representante Michel Jânio Quadros (JQ), é a de Cardoso (1978).
Pêcheux, pode ser não apenas uma metodologia eficaz, Apesar de a obra acabada sugerir que a autora
mas uma teoria e método que, ao se dedicar à dialogou com a Linguística, ela mesma confessa que
interpretação de textos, instala uma importante reflexão a análise de conteúdo pouco lhe ofereceu e que a
epistemológica sobre o poder e a política, análise estrutural, embora mais promissora, pareceu-
especialmente no campo do marxismo. lhe muito formalista.
A discussão que aqui empreenderemos está Admite, contudo, que, com o estruturalismo de
baseada em experiência de pesquisa sobre o discurso, Lévi-Strauss, aprendeu a se fixar menos nos termos
acumulada desde o ano de 1999, por um grupo de pelos quais o discurso se expressa e mais nas relações
pesquisadores da Universidade Estadual de Londrina presentes, ou seja, não no discurso, de certo modo,
que coordenamos, intitulado Discurso e Memória. uma aproximação indireta de Saussure. Atribui essa
influência às relações em feixe das estruturas dos
Parâmetros teóricos mitos indicadas por Lévi-Strauss, autor, como se
sabe, influenciado pelas ideias saussureanas.
A política brasileira pela ótica da pesquisa
pesquisa qualitativa Entretanto, o que pode parecer, inicialmente, um
Existem trabalhos que, mesmo não aderindo à trabalho de análise de discurso, influenciado pela
análise de discurso, ao se ocuparem de memória e de Linguística, na realidade, é uma construção teórica
história política – portanto com ênfase na análise intrincada, marcada pelo pensamento gramsciano,
qualitativa – produziram interpretações importantes pelo qual a autora afirma ter partido da ideologia –
sobre a política brasileira, conquistando merecido entendida num plano abstrato – lidando, portanto,
reconhecimento acadêmico e despertando interesse com discursos ideológicos.
no grande público. Por exemplo, trabalhos A autora entende que o conceito de hegemonia
orientados pela ideia de sistema político – que de Gramsci permite abordar as relações de classes
permite a compreensão das mudanças econômicas fora do terreno da produção econômica e,
como responsáveis pela emergência de novos grupos consequentemente, trabalhar os aspectos da
sociais que passam a disputar o acesso ao poder e a produção cultural e política, questões fundamentais
influência junto aos centros decisórios – produziram para o entendimento do discurso e da ideologia
obras clássicas sobre partidos políticos e períodos desenvolvimentistas do período em questão.
Da análise de conteúdo e da análise estrutural,
sequência, são submetidos a tratamento quantitativo com o objetivo de
Cardoso afirma ter originado a sua decisão de
interpretação. Ver Charaudeau e Maingueneau (2004, p. 42).

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trabalhar com temas definidos teoricamente e sugeridos e de compreender os debates teóricos no


índices que permitissem quantificação. campo do marxismo que provoca. Pois a ideologia, o
É assim que, ao se deter no período JK, sujeito e a luta de classes são temas frequentemente
analisando vários tipos de materiais – documentos abordados por Pêcheux, quando se ocupa dos
oficiais, trabalhos científicos, pronunciamentos e fundamentos dessa teoria e método.
entrevistas –, a pesquisadora elabora um quadro de No início dos estudos, fortes motivações teórico-
sete temas, cada qual composto de itens que, metodológicas moveram o grupo de pesquisadores a
segundo ela, por meio do relacionamento global estudar o discurso pela ótica de Pêcheux e dos
desses itens, poderia chegar a definições de posições teóricos com os quais ele dialoga.
ideológicas. Nessa abordagem, o par Em primeiro lugar, a descoberta do campo
segurança/desenvolvimento constitui tema principal teórico-político que envolvia o nascimento da AD,
para o entendimento do discurso e da ideologia influenciada pelo pensamento de Althusser, que,
desenvolvimentista do governo JK. relendo Marx, propôs uma política na teoria, uma
Após ressaltar as marcas estruturalistas do tentativa de revigorar o marxismo diante da crise que
pensamento de Althusser, criticando-o pelo modo se instalou na esquerda francesa, no início dos anos
como trabalha os níveis que compõem a formação 1960. Essas condições originárias praticamente
social capitalista – conferindo centralidade ao Estado antecipavam a inclinação preferencial da AD para o
e diminuindo a importância das lutas de classes –, a discurso político, marca inconteste que se mantém
autora submete o discurso ideológico, tema de seu até os dias de hoje. Uma origem que levou o grupo a
trabalho, a um tratamento próximo da linguística retornar aos escritos de Althusser e ao momento
formal, apresentando quadros de distribuição dos canônico do marxismo estrutural representado por
índices, deixando ao leitor a impressão de um sua obra e de sua inserção – e também a de Pêcheux
arranjo metodológico, por meio do qual os recursos – na história do estruturalismo.
de análise da linguagem constituem técnica e a Apesar da crítica que sempre pesou sobre
interpretação histórica gramsciana a via teórica de Althusser, por conta do teoricismo de suas ideias, a
contextualização da empiria: dos textos. leitura de sua obra indicava que o refúgio na teoria
Trabalhos como o de Cardoso (1978) aguçam a se devia à tentativa de defender Marx frente à
imaginação dos que trabalham o discurso político, publicização, no ocidente, das atrocidades cometidas
levando-os a estabelecer diálogo com profissionais pelo stalinismo e uma resposta à vulgata
de outras áreas, sobretudo os linguistas que, por economicista daquele regime.
terem como especialidade o estudo da linguagem
Esse desligamento do marxismo do seu próprio
verbal, têm também o domínio da análise do destino histórico nesse início dos anos 60 era um
discurso. meio de salvá-lo de sua rápida decomposição,
Quando a busca por uma metodologia de instalando-o no cerne da ciência. Responde à
investigação científica coloca o pesquisador em necessidade de sair de um marxismo oficial pós-
contato com a AD, logo se descobre que ela não é stalinista, portador de uma herança funesta,
um campo exclusivo da Linguística, mas um encerrado no dogma. Althusser permitia
complexificar o marxismo, cruzar a sua aventura
entremeio com estreita relação com as Ciências
com a das ciências sociais em pleno
Sociais, tanto pela leitura que faz do marxismo como desenvolvimento, e colher todos os frutos, dando-se
pelas aproximações que estabelece com o como discurso dos discursos a própria teoria das
pensamento de Michel Foucault. Entretanto, práticas teóricas. Ressuscitar um marxismo científico
questões menos familiares – referentes ao domínio desembaraçado das escórias dos regimes que se
da Linguística e da Psicanálise – colocam-se, de valem dele, tal é o desafio estimulante que Louis
modo imperativo, ao entendimento de quem dela se Althusser apresenta a uma geração militante,
temperada nos combates anticolonialistas (Dosse,
aproxima.
1993, v. 1, p. 329).

Discussão Uma leitura que permitiu também compreender


o anti-humanismo atribuído a Althusser como
Uma experiência de pesquisa e a análise do discurso político decorrente de uma polêmica que se instalou no
Foi a partir do encontro com a AD, influenciada, âmbito do Partido Comunista Francês (PCF),
na sua origem, por Michel Pêcheux, que o grupo de opondo as teses do marxismo humanista de Roger
pesquisadores que coordenamos, na Universidade Garaudy às teses althusserianas que defendiam o
Estadual de Londrina, viu-se sob forte atrativo de anti-humanismo teórico. Importante também era
descobrir os caminhos metodológicos por ela perceber que essa polêmica ocorria num momento

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pós-stalinista em que Kruschev apregoava o instrumentos já se dá a ver quando a AD se propõe a


“socialismo humanista” (Dosse, 1993, v. 1, p. 332). ser uma disciplina, um entremeio – não apenas
Se, por um lado, sabia-se das restrições existentes análise linguística –, articulando três áreas de
ao marxismo estruturalista de Althusser, por outro, conhecimento: o Materialismo Histórico, pela
percebia-se que a análise sintomal2 por ele proposta releitura que dele faz Althusser, revisando o conceito
colocava em evidência não apenas a espessura de ideologia; a Linguística, pela leitura que Pêcheux
semântica do texto – na sua discursividade –, faz de Saussure que acentua não apenas a langue, mas
propiciando o encontro da língua com a ideologia, a noção de discurso que dela deriva, permitindo a
mas, sobretudo, a possibilidade de análise histórica compreensão da produção dos sentidos, do singular,
por levar em consideração as condições de produção do específico, do equívoco e da falta; a Psicanálise,
do discurso (Orlandi, 1999), o que de certa forma por meio da leitura que Lacan faz de Freud e o
acenava para a possibilidade de abrir a proposta de modo como acentua o esquecimento, identificando
Althusser, libertando-a da grade estrutural e de o inconsciente estruturado como linguagem e
repensá-la à luz das ideias de Pêcheux. relacionado à ideologia.
A ideia de sintoma, que Althusser emprestou da Em terceiro, por desenvolver um repertório
obra de Lacan, acenava para a compreensão do que teórico com elementos familiares à análise política: a
não é visível, do que diz respeito à falta e à ausência. possibilidade de pensar o poder político e as formas
Algo possível de ser apreendido desde que de dominação pela via da ideologia e do seu
considerado no bojo dessa nova proposta de leitura funcionamento no discurso. Uma análise das formas
que Althusser faz de retorno à obra de Marx, ou seja, de sujeição ou domínio que, ao constituir o sujeito,
lendo-o do mesmo modo como ele leu o discurso fazem-no também constituinte.
do outro – de David Ricardo e Adam Smith –, Paulatinamente, conforme as leituras sobre a AD
mostrando o que não havia sido percebido por eles. iam sendo aprofundadas, percebia-se que Pêcheux
Um tipo de leitura que Pêcheux incorpora como abria uma frincha na ideia de assujeitamento de
procedimento na AD e que permite perceber, no Althusser, mostrando que o discurso tanto pode
discurso de modo geral, o que não se dá a ver, o que funcionar como reprodução ideológica, quanto
está na ordem do esquecimento, envolvendo a também é capaz de transformação.
ideologia, a produção dos sentidos e a constituição Como vimos, ao tratar dos fundamentos de sua
do sujeito. teoria materialista do discurso, Pêcheux introduz a
O apagamento de que o sujeito resulta de um ideia de condições ideológicas da
processo, apagamento necessário no interior do reprodução/transformação das relações de produção.
sujeito como ‘causa de si’, tem como conseqüência, a A partir dessa ideia, Pêcheux relativiza tanto o papel
nosso ver, a série do que poderia chamar as fantasias reprodutor da ideologia como o dos Aparelhos
metafísicas [...] propondo atribuir a esse efeito
Ideológicos de Estado.
fantástico – pelo qual o indivíduo é interpelado em
sujeito – o nome de ‘efeito Münchhausen’, em Se estamos destacando ‘condições ideológicas da
memória do imortal barão que se elevava nos ares reprodução/transformação das relações de produção’,
puxando-se pelos próprios cabelos (Pêcheux, 1995, é porque a área da ideologia não é de modo algum, o
p. 157). único elemento dentro do qual se efetuaria a
reprodução/transformação das relações de produção
Em segundo, por reivindicar para si um estatuto de uma formação social; isso seria ignorar as
de teoria e método e não apenas de técnica, já que determinações econômicas que condicionam ‘em
esta não pode ser considerada como mera última instância’ essa reprodução/transformação, no
disponibilização de instrumentos passíveis de próprio interior da produção econômica, fato
apropriação ou de empréstimo de uma área de evocado por Althusser no começo de seu trabalho
conhecimento para outra, sem antes compatibilizá- sobre os aparelhos ideológicos de Estado (Pêcheux,
los com o novo campo de conhecimento a que se 1995, p. 143-144).
destina (Pêcheux, 1997)3.
Esse trabalho de compatibilização dos Resultados
A AD como compreensão de acontecimentos políticos.
2
Sobre esta proposta de leitura, ver Althusser (1979). É certo que essas possibilidades de adequação
3
Pêcheux, especialmente no capítulo II do livro O Discurso: estrutura ou
acontecimento, na verdade a II Parte de uma conferência proferida nos EUA, em
teórico-metodológicas da AD à análise do discurso
1983, discute como os primeiros instrumentos de utilidade prática (como político foram sendo descobertas aos poucos e à
guindastes, planos inclinados e balanças) foram utilizados no desenvolvimento
da física galileana. Esta é apenas parte de uma discussão mais ampla que medida que dois projetos de pesquisa sobre a política
Pêcheux faz de um novo organon regido pelo rigor positivo e que se opõe ao
momento da escolástica aristotélica. em Londrina e Norte do Paraná foram
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desenvolvidos, ambos tendo o texto jornalístico possível a compreensão da formação ideológica


como material empírico de análise. De modo capitalista que orientou a colonização da região pela
bastante resumido e salientando apenas alguns Companhia de Terras Norte do Paraná (CTNP),
aspectos que aqui consideramos relevantes nos empresa de capitais ingleses associados ao capital
resultados das duas pesquisas, passaremos a um nacional (paulista e mineiro), sustentada
breve comentário para que o leitor tenha uma ideia politicamente por um compliance entre a CTNP e o
de como a análise empírica se desenvolveu orientada governo do Paraná.
pela AD e como o trabalho se realizava de modo Considerando as condições de produção do
paralelo aos estudos teóricos sobre essa teoria e discurso jornalístico do Paraná-Norte, periódico
método. financiado pela CTNP, a análise dos editoriais
O primeiro já concluído e intitulado Outras permitiu compreender, também, como o jornal
Palavras: sobre as formas de dizer e as formas de silenciar, constituía os sujeitos políticos: Willie Davids,
teve as transgressões como porta de entrada no primeiro prefeito de Londrina e, também, diretor da
Paraná-Norte, um pequeno jornal artesanal editado CTNP; o interventor Manoel Ribas; o sujeito
no período compreendido entre 1934 a 1952, anos político Vargas, primeiro como Presidente durante o
que coincidem com a fundação e ordenamento da curto período democrático (1934-1937) e, depois,
cidade de Londrina e colonização do chamado Norte como ditador (1937-1945).
novo do Paraná. Os textos, de um lado, produziam uma
Havia, além do jornal, outra fonte empírica – os discursividade marcada por qualificativos positivos e
Autos Criminais da Comarca de Londrina – que grandiloquentes a respeito da região, revelavam os
oferecia a barbárie (os crimes e a desordem), uma interesses das frações de classes burguesas que
discursividade diferente daquela presente no texto conduziam o processo de colonização –
jornalístico e, quando noticiada, perturbava os textos materializados no jornal enquanto empresa artesanal
civilizatórios do jornal. subsidiada pela grande companhia colonizadora de
O objetivo dessa primeira pesquisa foi, por meio capitais nacionais e estrangeiros –, antecipando uma
da análise do hipertexto – o modo como as notícias e formação discursiva regionalista que irromperia
matérias eram distribuídas no jornal –, da como força política incontida nos editoriais de 1945
interpretação das notícias sobre suicídio, da violência e no Manifesto contra Vargas, publicado no mesmo
na família e dos crimes registrados nos Autos, ver ano. De outro lado, a contensão da desordem –
como o jornal noticiava essas transgressões e, se não observada nas notícias (ou na sua ausência) sobre os
as noticiava, o que colocava no lugar. crimes e transgressões – e o discurso afirmativo dos
Esse trabalho foi desenvolvido por pesquisadores editoriais e das propagandas da CTNP sobre a região
e alunos das áreas de História, Linguística, obliteravam os sentidos ordinários dos grupos e
Sociologia e Ciência Política. classes dominadas, claramente observáveis nos autos
Nesse projeto, a análise política voltou-se para os criminais.
editoriais, pois neles as posições político-ideológicas O segundo projeto de pesquisa, também já
do jornal eram mais declaradas do que em outras concluído, intitulou-se Os sentidos da Marcha da
matérias. Ao todo, foram selecionados 30 editoriais Produção: o acontecimento no texto do jornal.
do Paraná-Norte, sendo dez dos dois primeiros anos O mesmo grupo de pesquisa analisou, por meio
de existência do município, 17 do período inicial do do jornal Folha de Londrina, um acontecimento
Estado Novo (1937-1938) e três do ano de 1945, político de 1958, conhecido como Marcha da
Produção. Na verdade, um episódio que fez parte de
incluindo um manifesto (Manifesto ao Povo do Norte
um movimento mais abrangente, iniciado na cidade
do Paraná) redigido e assinado por políticos de várias
de Marília, Estado de São Paulo, em 1956.
tendências ideológicas que formariam a Frente
Nesse segundo projeto, o acontecimento, a
Única de Oposições de Londrina – movimento de
princípio noticiado pelo jornal como parte de um
oposição à ditadura e à permanência de Vargas no
conjunto de fatos do cotidiano da vida londrinense,
poder.
A análise dos editoriais – tratados como texto – aos poucos vai tomando proporções de um
revelou os sentidos que o jornal produzia em acontecimento político regional – envolvendo
momentos políticos de instituição da ordem legal e lideranças de Maringá e outras cidades norte-
de crises políticas, Constituição de 1934 e primeira paranaenses – com repercussão nacional, já que se
eleição local em Londrina; Golpe de Estado e coloca contra o Governo JK e sua política
Constituição de 1937; término do Estado Novo econômica.
(1945) e movimento de redemocratização. Tornou Um movimento que, ao programar uma grande
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manifestação – marchar em caravana até o Catete, no aliança político-partidária de apoio a JK – Partido


Rio de Janeiro (sede do Governo Federal), para Social Democrático (PSD) e Partido Trabalhista
entregar ao Presidente um conjunto de Brasileiro (PTB) – e sua opositora, a União
reivindicações dos cafeicultores do Norte do Paraná Democrática Nacional (UDN).
–, revela uma força política, até então inimaginável, Por ser a UDN um partido bem organizado em
dos lavradores da região (era assim que se Londrina e por ser a cafeicultura o núcleo duro da
autodenominavam) contra a política econômica economia nacional até aquele momento, a Marcha
cafeeira, adotada pelo governo brasileiro, criou instabilidade para um governo até hoje
especialmente diante da instabilidade de preços do avaliado como dos mais estáveis da política brasileira,
mercado internacional e de acordos bilaterais e já que estabilidade para JK significava
multilaterais que o país vinha firmando com as desenvolvimento baseado na industrialização e não
organizações internacionais e com outros países mais na agricultura.
produtores e consumidores de café. A ameaça comunista aparece como uma das
O processo discursivo sobre esse acontecimento formas de dizer do jornal – pela voz do principal
começa bem antes do dia 18 de outubro de 1958 – líder do movimento, Álvaro Godoi, e pela voz da
dia marcado para a realização da Marcha –, por meio Igreja – para que não se duvidasse da legalidade da
de um intrincado trabalho de formulações Marcha. Era preciso que esse discurso fosse
(organização, convocações, encontros preparatórios), sustentado, pois, em outros momentos de conflito
todas indicando propostas, retomadas, no campo – envolvendo a posse da terra (Guerra de
deslocamentos, inversões de um lado a outro do Porecatu, final dos anos 1940 e início dos 50) e a
campo político. Notícias que prefiguravam exploração do trabalhador rural (Campanha de
discursivamente o acontecimento, dando-lhe forma sindicalização do trabalhador rural, em 1956) –, o
e figura, na esperança de garantir a sua concretização, anticomunismo foi tema recorrente no mesmo
mesmo que para isso fosse necessário adiá-lo jornal. Desse modo, revelou-se que o jornal se
algumas vezes. Discursividade marcada por inscrevia de um modo muito particular na proposta
condições de produção que revelam forte de governo de JK, aceitava e em alguns aspectos até
identificação do jornal com os interesses dos corroborava o desenvolvimentismo, mas desde que a
cafeicultores e com os grupos e setores da sociedade cafeicultura não fosse golpeada de morte pela
que a eles se articulam. industrialização pretendida pelo Presidente e pelo
As análises giraram em torno de três núcleos de seu esforço deliberado em modernizar o país.
interpretação: a Marcha como conjunto de sentidos Opunha-se também à aproximação que JK
políticos produzidos pelo jornal; os efeitos de mantinha, em alguns momentos, com os comunistas
sentidos produzidos sobre o comunismo e os (Gomes, 2002).
sentidos do imaginário e do cotidiano em Londrina. Esse trabalho também se ocupou do hipertexto,
No que diz respeito à Folha de Londrina, sua em particular analisando uma coluna intitulada
posição era de defesa dos interesses dos cafeicultores, Ronda pela cidade, as notícias policiais e artigos sobre
colocando-se contra JK, que acenava com um plano juventude e educação. Olhar esses outros textos
de governo (Programa de Metas) de natureza significava a procura dos sentidos ordinários, não se
capitalista, industrial-desenvolvimentista e atendo apenas à disputa que envolvia o Estado, as
modernizante (Faro e Silva, 2002). Esta posição se frações burguesas da sociedade local e regional e as
reveste tanto de um sentido fortemente regionalista elites políticas. Significava ouvir os rumores dos
quanto da demonstração de reprodução, da parte do sentidos ordinários, como sugere Pêcheux, como as
jornal, de uma ideologia nitidamente burguesa, vozes de grupos e classes não diretamente
porém de conteúdo mais conservador do que a do envolvidos na Marcha se manifestavam no jornal.
Presidente. Desse modo, houve a percepção de que o jornal
Outro aspecto que merece ser sublinhado é o de revelava diferentes temporalidades, já que as marcas
que a defesa dos interesses da cafeicultura em rurais e provincianas eram nítidas nas notícias sobre
Londrina estava nas mãos de líderes da Associação a sociabilidade e o cotidiano da cidade e da região.
dos Lavradores do Norte do Paraná (ALNP) que, ao Enquanto as elites brigavam com o governo, os
mesmo tempo, tinham vínculo partidário com a grupos e classes subalternas se expressavam, pela
União Democrática Nacional (UDN). Manifestava- Ronda pela cidade, reivindicando, junto ao poder local,
se no município a conhecida clivagem da política por melhores condições de infraestrutura nos bairros
brasileira existente naquele momento, que opunha em que viviam, por mais emprego, por melhor
os de dentro aos de fora, isto é, os que formavam a atendimento de saúde e educação. Enquanto a luta

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política ocupa os espaços de destaque do jornal, nos lugar dos signos linguísticos e ideológicos, em que
editoriais e manchetes de primeira página, não só as relações de poder envolvendo o Estado e a
noticiando o embate entre cafeicultores e governo sociedade se dão a ver, mas também como os
federal, as contradições econômicas e sociais que sentidos ordinários das classes dominadas se
afetavam diretamente os grupos e classes de manifestam ou deixam de se manifestar, a exemplo
trabalhadores se manifestavam nos espaços de do que asseverou o fundador da AD em seu clássico
menor destaque do jornal. Mesmo porque 1958 foi texto apresentado na Conferência Marxismo e
um ano em que a seleção brasileira de futebol Interpretação da Cultura: Limites, Fronteiras, Restrições,
conquistou a Copa do Mundo e as notícias sobre na Universidade de Illinois, em julho de 1983
esse feito dividiram espaço, no jornal, com a farta (Pêcheux, 1997). No mesmo texto, já sob influência
propaganda política dos candidatos que concorriam Mikhail Bakhtin e Michel de Certeau, faz uma
nas eleições de deputado e senador. Esses sentidos da autocrítica, numa clara alusão à influência de
vida cotidiana londrinense, além de revelarem uma Althusser, dizendo que o estruturalismo até então se
sociedade desigual, mostraram que o tradicional e o mantivera muito próximo do Estado e que, com o
moderno conviviam, com sentido diverso ao ideário intuito de se colocar a favor do marxismo, acabara
desenvolvimentista de JK, pois para os norte- escondendo-se em Marx. Desse modo, defende o
paranaenses o moderno era sempre traduzido por compromisso ético-político do intelectual em
progresso e este, na região, invariavelmente dependia escutar os rumores dos sentidos ordinários.
do desenvolvimento da cafeicultura. Atualmente, após a realização desses dois
Assim, o imaginário dos Anos Dourados, a ideia projetos, os pesquisadores se convenceram de que a
de um tempo com mais oportunidades e esperanças, aproximação da AD vem acompanhada de algumas
em Londrina, esteve muito mais marcado pelos dificuldades metodológicas e de desafios teóricos
signos do Ouro Verde – denominação atribuída ao que instigam a discussão e a revisão desse entremeio
café – do que pela industrialização proposta por JK e à luz da área de formação dos que dela se avizinham.
pela construção de Brasília. Quando nos vemos diante de questões
O projeto sobre a Marcha da Produção formuladas em face do material empírico e dos
possibilitou a relativização da ideia althusseriana de desafios encontrados ao longo do processo de
que a mídia enquanto Aparelho Ideológico do interpretação, muitas vezes, temos convocado
Estado (AIE) é mero reprodutor da ideologia conceitos de nossa área específica de formação, nem
dominante, pois o jornal se posicionava claramente a sempre diretamente pertencentes ao entremeio da
favor de uma fração da burguesia. Portanto, AD, mas de preferência próximos a ele. É assim que
colocava-se na luta de classes, revelando que o AIE é consideramos difícil a adesão e a filiação incontestes
atravessado por ela, como já sinalizara Althusser e à AD; a relação que com ela mantemos, embora não
como sempre asseverou Pêcheux que entende o seja meramente instrumental, ocorre de maneira
discurso como o lugar de manifestação da ideologia aberta, tomando-se, todavia, os cuidados próprios ao
e da luta de classes. Mais importante ainda foi métier do sociólogo (Bourdieu et al., 2004), ou seja, um
descobrir a atuação dos comunistas na região, por
uso de instrumentos técnicos e de recursos
meio dos sentidos anticomunistas presentes no
metodológicos revisados teoricamente e adequados
discurso de líderes da Marcha, como Álvaro Godoi,
ao campo disciplinar em que estão sendo utilizados e
e dos bispos das dioceses das cidades de Londrina,
um questionamento constante das implicações
Maringá e Jacarezinho.
epistemológicas de tal uso.
Conclusão
Referências
A experiência acumulada durante o
ALTHUSSER, L. Ler o capital. Rio de Janeiro: Zahar,
desenvolvimento dos dois projetos de pesquisa aqui 1979.
relatados tem demonstrado que, quando BENEVIDES, M.V.M. O governo Kubitscheck: o
profissionais das Ciências Sociais se aproximam da desenvolvimento econômico e a estabilidade política. 2.
AD, abre-se a possibilidade de acesso a princípios e ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1976.
procedimentos metodológicos fundamentais para o BENEVIDES, M.V.M. A UDN e o Udenismo:
entendimento do discurso e, ao mesmo tempo, ambigüidades do liberalismo brasileiro (1945-1965). Rio
instala-se uma fascinante discussão sobre a posição de Janeiro: Paz e Terra, 1981.
ético-política do pesquisador. BOURDIEU, P. et al. Ofício de sociólogo: metodologia da
Permite olhar o texto – nos dois casos em apreço, pesquisa na sociologia. Petrópolis: Vozes, 2004.
examinar o jornal – como materialidade discursiva, CARDOSO. M.L. Ideologia do desenvolvimento - Brasil: JK -

Acta Sci. Human Soc. Sci. Maringá, v. 30, n. 2, p. 121-128, 2008


128 Cesário e Almeida

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