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Sorria, você está sendo filmado!

Rubens Pileggi Sá

ILUSTRAÇÃO 1 – Exposição na UERJ, 2003.

O escritor argentino Jorge Luís Borges dizia que um autor escreve sempre o mesmo
livro. E isso passou pela minha cabeça ao ver o vídeo É a Questão, de 1987, de Ricardo
Basbaum. Nele, o artista repete ad infinitum a imagem de um olho desenhado, colocando-o
em múltiplas situações: em filipetas que são entregues nas ruas e nos ônibus, em cartazes
espalhados pelo campus da Universidade de Campinas, no meio de cálculos matemáticos, em
uma armadilha para formigas, etc. como se naquela imagem/olho que é vista, tivesse uma
câmera/olho “vendo” dentro de um sistema de vigilância constante.
O vídeo mostra um Basbaum jovem que, em tudo, lembra o Basbaum de agora: o
mesmo sorriso tímido e maroto e as mãos sempre a gesticular, uma em volta da outra,
explicando algo de seu trabalho.
Quando me deparei pela primeira vez como o que ele fazia, fiquei extremamente
intrigado com sua produção: já havia o NBP, os diagramas “explicativos” nas paredes, o EU-
VOCÊ coletivo, os ambientes que são, ao mesmo tempo, espaço de conforto e prisão, onde a
relação dentro/fora é sempre levada em consideração. E, também, já tinha aquela marquinha
octogonal do NBP – “uma unidade virótica” – que ele espalhava por várias situações, como
na banheirona revestida de ágata para as pessoas ficarem por algum tempo com ela.

ILUSTRAÇÃO BANHERONA – “Você gostaria de participar de uma experiência


artística?”, trabalho que se desenvolve desde 1994.

E mais, quando, em suas palestras, usava a voz como recurso de um pensamento que
busca ocupar lugar o tempo todo. O som entrando como mais uma dimensão da criação. A
palestra como motivo para um exercício de arte. Uma composição sonora considerada a partir
de um sistema de “transatravessamentos”: as ondas de rádio, telefone, as partículas atômicas,
a quantidade de luz do ambiente, etc. colocadas em atuação por um pensamento presente, que
dá consciência ao que já existe como potencialidade.
Venho tentando acompanhar Basbaum desde 2001. Procurando textos dele e sobre ele,
conversando, perguntando, tentando compreender a gênese de seu pensamento, a raiz de sua
criação. Fui em 4 ou mais exposição de arte de seus trabalhos, pelo menos, e em todas se
repete a mesma estratégia: um sistema de vigilância montado, com câmeras de tv gravando o
público, diagramas na parede, explicando (?) a situação dada e a criação de um espaço de
convivência.
Foi assim na galeria Artur Fidalgo (RJ), em 2002, como foi assim também que se deu
na 25ª Bienal de São Paulo (2002) e na galeria da UERJ, em outubro de 2003: uma exposição
feita de imagens que ele grava das outras mostras que fez, com imagens captadas durante a
visita das pessoas que vão para a exposição, os diagramas, um lugar para ficar e a marquinha
hexagonal, a tal.

ILUSTRAÇÃO 3 - Exposição na UERJ, 2003: espaço de convivência e vigilância.

Na exposição da UERJ, Basbaum adicionou uma gravação de áudio e coreografias,


realizadas a partir de desenhos de vários diagramas, junto com seus alunos, sob sua direção.
Basbaum me pergunta o que achei do trabalho. Digo-lhe que não o vi inteiro, quer dizer, não
vi as coreografias, que me pareceram sair de um desenho diagramático que propunha apenas
uma visão geral, como se fosse uma “planta baixa”. Maliciosamente, devolvo a pergunta,
querendo saber qual era a abertura para as pessoas entrarem, se quisessem, dentro da
coreografia, como parte do trabalho. Ele me responde: “- Com as camisetas eu-você?”
(camisetas distribuídas para os participantes da performance/coreografia. Algumas com as
palavras EU, outras com a palavra VOCÊ).
ILUSTRAÇÃO 4 – Diagramas das coreografias.
Então, mais uma vez, pergunta dentro da pergunta (aliás, título de um de seus textos)
instilo: “- Quer dizer que tudo é parte de um circuito integrado, mas, fechado? Ou seja, tal a
moça no rótulo da embalagem, mostrando a embalagem com a foto da moça segurando uma
embalagem, etc. etc.? Ou seja: Um jogo de espelhos com pequenas variações a cada
remontagem de trabalho?” E ele, muito sensato, muito claro em seus pensamentos, sério e
cioso de seu trabalho, responde: “- é...corre esse risco...”
E como uma fórmula matemática resolvida, dou-me por satisfeito. Mas ele volta à
carga (sim, forasteiro, esse Basbaum é cheio de munição!): “- Mas meu interesse estava
concentrado na reação do público diante do trabalho, na relação das pessoas com aquele
espaço de convívio”. “- Como assim, Ricardo?”. “- As pessoas são livres para fazer o que
quiser naquele espaço. Eu ofereço uma área de convívio, mas suas ações também me
interessam. Elas sabem que estão sendo gravadas, portanto, a liberdade ali passa por uma
consciência de lugar”.
Volto a re-pensar o significado de NBP (Novas Bases para a Personalidade) ao refletir
sobre esse território oferecido ao convívio: Uma subversão ao Big Brother, um “1984” ao
contrário, onde cada um é “jogado” para dentro do trabalho para pensar “o lado de fora” de
suas vidas. Seu lugar no mundo como livre arbítrio. “- Interessa-me”, diz ele, “essa relação
dentro/fora”.
Mais uma vez sou presa de sua inteligência poética e camaleônica, de sua capacidade
de inventar mapas em escala 1:1, que indicam e sugerem situações geográficas, sociais,
culturais, acadêmicas, imaginárias. Como no hall de entrada da Universidade Federal
Fluminense, onde ele instalou uma portaria idêntica à portaria, ao lado desta, só que, em vez
das informações oficiais, colocou outras, sobre NBP, criando, com essa intervenção, um
ruído, devolvendo ao ambiente o mesmo, um simulacro do real, uma virtualidade camuflada,
geradora de um certo distúrbio na certeza do passante acostumado com a realidade dada.
Mas, enfim, tudo o que me resta agora é a inquietação dentro desse núcleo virótico,
dessa marquinha hexagonal, dentro desse olho/lente que me vigia, ainda que eu tente,
novamente, a fuga, ou o roubo da imagem, porque me sei vigiado o tempo inteiro. Mas, de
repente, também isso se camufla e outros personagens surgem dentro dessa cela, onde eu,
cleptomaníaco confesso, pego no flagrante, sinto-me preso e confuso entre o que é real e o
que parece ser.
ILUSTRAÇÃO MAPA MARCA – Exposição na UERJ, 2003: Desenho da marca
NBP sobre planta baixa da UERJ.

E lá estão comigo outros fora-da-lei, como o compositor Filix Jair


(http://www.filixjair.blogspot.com), o internauta rirobas (@visualnet.com.br), o professor
Basbaum, o camarada Basba, o Ricardo híbrido, escritor (texto dentro d’água, sobre Artur
Barrio), curador (MISTURA + CONFRONTO – Portugal) e o artista que resolve inverter a
situação, fazendo da parte de dentro a parte de fora, perguntando solenemente, como um
cowboy que estivesse em um balão de história em quadrinhos, algo como: “- onde vocês
pensam que estão, forasteiros?”.
ILUSTRAÇÃO ARTUR FIDALGO – Vista externa da exposição na Galeria Artur
Fidalgo, 2002.
MOREIRA, Maria – Repersonalização, Enfrentamento e Reversibilidade – Revista Item.5 –
Editora Espaço/Capacete, RJ, fevereiro, 2002.
BASBAUM, Ricardo – Migração das palavras para a imagem – Revista Gávea, 13 – Ed. Da
Pontifícia Universidade Católica, RJ – setembro, 1995.
______. “(?)? Pergunta dentro da pergunta”. Arte & Ensaios, Revista do programa de pós-
graduação em Artes Visuais EBA-UFRJ, RJ, nº 7. 2000
______.Dentro d’água – Catálogo da exposição de Arthur Barrio para o Museu de Serralves,
Portugal, outubro de 2000
INTERNET: pesquisa em www.google.com.br :
www.hkw.de/forum/forum1/doc/arc/0059.html
www.ekac.org/basbentr.html
www.obraprima.net/materias/html601/html601.html

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