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A Biologia no Estuário: Um legado improvável.

Por: Cristovam Diniz..

Por caminhos tortuosos, quis o acaso que me fosse oferecida uma janela de expressão, no momento em
que o Campus de Bragança completava 30 anos. É minha impressão de que, o que ali se passou, é um
exemplo extraoardinário do que pode ser feito pelas universidades. Fruto de trabalho dedicado e
competente, materializaram-se ali mudanças substantivas. Falo da oferta de oportunidades educacionais
criadas a partir dos programas de interiorização da UFPA, tomando o Campus de Bragança como referência
e, em particular, me refiro às transformações no domínio das ciências da vida que acompanhei mais de
perto.

Para os que não presenciaram é bom lembrar que a Biologia no Estuário nasceu na manjedoura de palha
dos anos duros da educação superior e sua sobrevivência naqueles tempos difíceis, envolve lideranças de
quem vou me ocupar para que saibam os mais jovens a origem desse legado improvável.

Faço esse registro de punho próprio, antes que fique difícil reconhecer os contornos da fotografia e antes
que as palavras, que hoje posso escolher, comecem a se esconder de mim. É certo que elas em breve
perderão a cor, e a memória do que ali se passou, aos poucos se dissipará.

Realizações dessa natureza, que exigem manusear o arado para revolver a terra seca, semear, regar e
replantar sempre que a tempestade anuncia a hora, só se tornam possíveis quando nas mesmas pessoas,
coexistem múltiplos talentos. Nesse caso específico, era necessário que coabitassem, com igual vigor,
capacidade de liderança, competência e resistência à burocracia cega, ao isolamento científico e ao
financiamento espasmódico.

Vi e vivi esse tempo de vacas muito magras, quando ainda Reitor da UFPA, mas tive a sorte de reconhecer,
prontamente, as qualidades exigidas nos personagens desta narrativa. Estava convencido de que haviam
chances reais do improvável acontecer às margens do Caeté e de que o meu papel, em tempos difíceis, era
preservar os sonhos que moviam adiante o maior investimento humano da Amazônia brasileira de então, a
UFPA.

Ofereci, então, ao Horácio, um alforje quase vazio, mas cheio de promessas, e umas poucas vagas docentes
para que ele pudesse pôr o pé na estrada com os jovens doutores que os acompanhariam desde então. Ele
sabia que podia confiar e eu sabia que ele seria capaz de liderar a longa jornada que se anunciava.

Dono de um coração inquieto e atento às oportunidades que ampliassem o impacto de seu trabalho,
aceitou o desafio de chamar para si a instalação de um grupo de docentes pesquisadores no Campus
Universitário de Bragança. Com ele e a Profa. Iracilda que o acompanhou desde então, era esperado que o
Curso de Biologia do Campus de Bragança pudesse renascer e se voltar para o desafio de desvendar os
meandros da vida no estuário.

Entre o momento do desafio e o agora, decorreram 20 anos consecutivos de formação sistemática de


biólogos, que se misturando aos manguezais aprenderam a ver, documentar, proteger e entender o ritmo
da vida, no compasso das marés, dia a dia, mês a mês, ano a ano.

Desenharam e implementaram um Curso de Graduação voltado em suas experiências de campo e de


laboratório para a biologia costeira. Os alunos, muitos deles adolescentes, tinham que ultrapassar a curva
do rio e enfrentar, com ou sem temor, a arrebentação além dos bancos de areia, e navegar em mar aberto.
Tinham que visitar a linha do horizonte onde desaparecem e reaparecem os barcos pesqueiros e, nos
intervalos, comemorar seu batismo de fogo, dançando a marujada e o brega bragantinos.

Atolaram-se no mangue, adoeceram, choraram de saudade de casa, enxugaram as lágrimas e continuaram.


A semeadura às margens do Caeté começava a vingar. Ainda que o bornal estivesse quase vazio, sua força
onírica preenchia o resto, mantendo o moral da tropa. Materializaram a mudança palmo a palmo, prédio a
prédio, projeto a projeto e a paisagem física do campus foi sendo alterada em função das necessidades.

Em frente à velha escola do outro lado da rua, que abrigara desde o início os cursos intervalares da
graduação, subiam paredes e telhados. O prédio em ruínas, do velho mercado de carne cedido pela
Prefeitura de Bragança ao Campus, foi rejuvenescido para abrigar os livros. Os espaços para os laboratórios
foram demarcados e os jovens doutores foram progressivamente se organizando, em torno das poucas
facilidades com que começaram a jornada.

De mangas arregaçadas começaram a construção do amanhã. Sim, é verdade... naquela época, tudo
aconteceria no amanhã e os que ficaram, puderam testemunhar a chegada, quando na terra prometida
brotariam os primeiros frutos da árvore do conhecimento dedicada a biologia dos manguezais de Bragança.
Esta que se erguia isolada demostrando que era possível plantar e colher conhecimento, na costa
bragantina.

Esse progresso em infraestrutura foi acompanhado, de perto, pelo cuidado com a formação dos novos
biólogos. Os furos do Caeté, antes um rito de passagem para Ajuruteua, ganhavam agora nova dimensão.
Era necessário conhecê-los e usá-los como referência para os estudos de campo. Os furos do Meio, do Café,
da Ostra, do Taici, o furo grande e da estiva passavam a ser mais do que pontes ao longo da estrada que
corta o mangue... tornaram-se locais de coleta sistemática e de muito trabalho a cada viagem de campo.

A postura contemplativa da paisagem seria substituída pelo registro das observações: fungos, folhas, raízes,
flores e frutos, macro e microfauna nos cursos d’água e nas florestas dos manguezais, mamíferos e aves
que já não passavam despercebidos e precisavam ser contabilizados.

De fato, a vida que se plantou no encontro das águas oceânicas com o Rio Mar começou a ser perscrutada
em detalhe por todos que se juntavam ao curso de biologia, dispostos a adicionar aos afetos do olhar, as
lentes do método científico. Os meninos e meninas de Bragança que talvez não chegassem a ver com essas
lentes, por não poderem migrar para a cidade grande, puderam experimentá-las ali mesmo, investigando
problemas da região para a região.

Guiados por Docentes-Pesquisadores de diferentes especialidades, atuando de forma complementar em


diferentes domínios, aprenderam a construir conhecimento novo num lugar isolado, onde tudo ou quase
tudo, nessa esfera, estava por ser construído.

O que era no início apenas uma promessa, foi sucedida pela remoção de obstáculos, pelo convencimento
das agências, pela aplicação da experiência acumulada em um projeto integrado e integral à serviço da
compreensão da vida, na costa de Bragança. A responsabilidade partilhada na gigantesca tarefa e a vontade
inquebrantável os fez resistir às dificuldades, em tempos bicudos.

Quando sobrevieram novos governos, a UFPA, a FINEP, a CAPES, o CNPq, reaqueceram os investimentos e a
infraestrutura mínima necessária ao empreendimento improvável materializou-se. O trabalho pioneiro da
equipe de docentes pesquisadores, em associação com o MADAM, colocou o nome de Bragança no mapa
científico nacional e internacional, na esfera das ciências da vida pela primeira vez, e sua contribuição à
formação avançada de recursos humanos tem paulatinamente se consolidado, espalhando educação
científica no nordeste paraense.

Coletivamente, inauguraram novos programas de cooperação nacionais e internacionais, implantaram


novas linhas de pesquisa, e criaram o Programa de Pós-Graduação em Biologia Ambiental, abrindo espaço
acadêmico único para que jovens pesquisadores pudessem prosseguir. De fato, o Programa de Pós-
Graduação em Biologia Ambiental, com ênfase em Ecologia de Ecossistemas Costeiros, apesar de ter sido
implementado há 17 anos, continua sendo o único na Amazônia com um enfoque voltado para a área
costeira, testemunhando sua importância estratégica.
Esse Programa de Pós-Graduação foi o primeiro da Universidade Federal do Pará (UFPA), fora da capital
(Belém), fornecendo evidências sólidas de que era possível interiorizar o pilar da geração de conhecimento
novo. Esse que distingue as verdadeiras universidades que ensinam porque produzem conhecimento.
Ficara igualmente demonstrado que, para tanto, bastava que se identificassem as lideranças, municiando-
as com os recursos necessários à implementação das transformações.

Para guardarem as proporções do impacto relativo desse programa, os últimos 5 anos (2012 a 2016) foram
pródigos para a formação avançada de recursos humanos: formaram-se 107 novos mestres e 21 doutores.

Ainda que não possamos medir agora as consequências de longo prazo da excepcional contribuição do
Campus de Bragança à compreensão da trama da vida no estuário, pessoalmente avalio que o trabalho
desenvolvido, ali, é a obra de maior alcance do Programa de Interiorização da UFPA. Em duas ou três
gerações, quando as ações estiverem institucionalizadas com o aumento da densidade de cientistas nesta
região, e já não puderem ser destruídas facilmente, teremos a dimensão correta da extensão desse
trabalho pioneiro.

Com a admiração de sempre vai um abraço ao amigo Horacio, que como sempre não se entrega nunca.

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