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Pesquisas sobre

família e infância
no mundo contemporâneo

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Conselho editorial
Alex Primo – UFRGS
Álvaro Nunes Larangeira – UTP
André Parente – UFRJ
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Sara Viola Rodrigues – UFRGS
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Vicente Molina Neto – UFRGS

Apoio:

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Pesquisas sobre
família e infância
no mundo contemporâneo

Organizadoras
Claudia Fonseca
Chantal Medaets
Fernanda Bittencourt Ribeiro

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Copyright © Autores, 2018

Capa: Cléo Magueta, sobre arte de Lucas Richter; desenhos de Vinícius Fragoso
Projeto gráfico e editoração: Vânia Möller
Revisão: Vânia Möller
Revisão gráfica: Rafael Heidt Martins Trombetta

Editor: Luis Antônio Paim Gomes

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação CIP


Bibliotecária Responsável: Denise Mari de Andrade Souza – CRB 10/960

P474
Pesquisas sobre família e infância no mundo contemporâneo /
organizado por Claudia Fonseca, Chantal Medaets e
Fernanda Bittencourt Ribeiro. -- Porto  Alegre: Sulina, 2018.   
           246 p.; 23 cm.
 
ISBN: 978-85-205-0827-5

1. Antropologia Social. 2. Antropologia da Família. 3. Infância.


4. Ciências Sociais. 3. Família. 4. Parentesco. I. Fonseca, Claudia. II. Medaets,
Chantal. III. Ribeiro, Fernanda Bittencourt.

CDU: 316
572.3
CDD: 306.85
570

Todos os direitos desta edição reservados à


Editora Meridional Ltda.
Rua Leopoldo Bier, 644, 4° andar – Santana
CEP: 90620-100 Porto Alegre-RS

Tel: (0xx51) 3311-4082


www.editorasulina.com.br
e-mail: sulina@editorasulina.com.br
{Setembro/2018}
IMPRESSO NO BRASIL/PRINTED IN BRAZIL

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Sumário
7 Prefácio
Claudia Fonseca, Chantal Medaets e Fernanda Bittencourt Ribeiro
Parte I: Imagens de crianças, infâncias e famílias
23 Os limites do conceito de família na Itália: processos de kinning e de-kinning
em configurações familiares homoparentais 
Alice Sophie Sarcinelli
41 O nome da lei: violências, proteções e diferenciação social de crianças
Fernanda Bittencourt Ribeiro
66 Concepções de infância, vulnerabilidade e ética na pesquisa com crianças
Renata Lopes Costa Prado e Marcos Cezar de Freitas
85 A fabricação estatal da indiferença parental: agruras da reintegração familiar
Claudia Fonseca
Parte II: Participação política de crianças e jovens
109 Entre la tutela y la represión: nociones sobre la infancia y la identidad
mapuche ante la participación política infantil en Neuquén, Argentina
Andrea Szulc
130 “De cabeça e com o coração”: o fazer política de jovens ocupantes das escolas
estaduais de Porto Alegre (maio e junho 2016)
Chantal Medaets, Nadège Mézié e Isabel Carvalho
153 Infancias en debate: las experiencias infantiles durante la última dictadura
argentina
Valeria Llobet
Parte III: Modos de cuidado: estado, comunidade, família
173 A negação e a invenção da infância: mudanças geracionais a partir do
Programa Bolsa Família
Flávia Pires e Patrícia Oliveira Santana dos Santos
197 Sentidos y prácticas sobre el cuidado infantil en ámbitos estatales de
atención de la salud en el partido de La Plata, Argentina
María Adelaida Colangelo
215 “Mães nervosas”: um ensaio sobre a raiva entre mulheres populares
Camila Fernandes
232 Trabajo infantil en clave de cuidado: explorando un modo de análisis
Laura Frasco Zuker

241 Sobre os autores

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Prefácio
______________________________________________
Claudia Fonseca, Chantal Medaets, Fernanda Bittencourt Ribeiro

Fiel ao objetivo da IV Jornada de Pesquisa sobre Infância e Família,


cujas comunicações deram origem aos trabalhos apresentados nesta
obra, a proposição deste livro é a de dar visibilidade à contribuição
da antropologia ao campo interdisciplinar dos estudos da infância, no
intuito de promover o diálogo entre pesquisadores vindos de áreas
diversas.1 Coerente com a recente proposta de Sophia Rodriguez
(2017) por uma abordagem “disruptiva” da infância – abordagem que
desestabilizaria as imagens demasiadamente simples que assolam
esse campo temático –, apostamos em descrições etnográficas, ricas
e pormenorizadas de situações diversas. Observamos e escutamos
crianças e jovens, reconhecendo-os como interlocutores ativos da
pesquisa (Colangelo; Fernandes; Medaets, Mézié e Carvalho; Pires
e Oliveira; Sarcinelli; Szulc; Zucker). No entanto, também atentamos
para os adultos com os quais se relacionam – dos quais dependem, a
quem se opõem ou obedecem, com quem negociam. Esses adultos,
que podem falar direta ou indiretamente de suas próprias infâncias
(Llobet; Fonseca), são também nossos interlocutores; suas vozes vêm
compor a trama de relações na qual crianças e jovens estão inseridos.

1
Desde 2009, o Programa de Pós-Graduação em Antropologia da Universidade Federal do
Rio Grande do Sul (UFRGS) e o Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Pon-
tifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), numa parceria entre o Núcleo
de Antropologia e Cidadania (Naci/UFRGS) e o Idades – Grupo de Estudos e Pesquisas em
Antropologia (PUCRS), têm realizado as Jornadas de Pesquisa sobre Infância e Família. Em
sua quarta edição, o evento contou com o apoio da CAPES e do CNPq (por meio dos seus res-
pectivos editais de auxílio à promoção de eventos científicos) e trouxe a Porto Alegre pesquisa-
dores da Argentina, dos Estados Unidos, da Itália, da França e de diferentes estados brasileiros.

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Existe ainda uma vasta rede institucional que atua em nome da criança,
o que coloca um novo desafio ao pesquisador. Essas instituições e
as pessoas que nela trabalham – incluindo legisladores, psicólogos,
trabalhadores sociais, professores de escola e pesquisadores, entre
outros – são movidas por quais lógicas e controvérsias? Acionadas por
quais atores e produzindo quais efeitos? Essas perguntas cabem na
análise tanto dos serviços públicos da “proteção à infância” (Ribeiro)
quanto das práticas acadêmicas dos próprios pesquisadores em busca
de um proceder ético na pesquisa com crianças (Prado e Freitas).
Os trabalhos apresentados nesta obra têm em comum, portanto,
uma preocupação com o concreto, com a descrição detalhada de situa-
ções e dinâmicas de relações que se estabelecem entre pessoas inseridas
num contexto histórico, político e institucional preciso. Em cada um
desses contextos investiga-se o que “ser criança”, “ser jovem” ou “ser
adulto” significa. As categorias etárias não são tomadas como universais
ou naturais, pelo contrário. De acordo com uma compreensão bem es-
tabelecida nas ciências sociais – mesmo que ainda pouco adotada tanto
em outras áreas do conhecimento como no senso comum –, elas são
apreendidas como construções sociais.2 Adotar essa perspectiva signifi-
ca entender as categorias etárias como relacionais, isto é, como depen-
dendo tanto da maturação biológica individual quanto de especificida-
des históricas, econômicas e culturais do contexto em que o indivíduo
está inserido. Os textos aqui reunidos tomam igualmente distância de
usos reificados da palavra família. Ao invés disso, colocam perguntas:
O que se considera como família? O que se espera e o que efetivamente
se pratica ao realizar as diferentes atividades associadas à vida cotidiana
domiciliar? Os casos de famílias homoparentais descritas por Sarcinelli
e das “mães nervosas” estudadas por Fernandes são paradigmáticas des-
sa perspectiva atenta aos processos que produzem diferentes experiên-
cias do que permite “formar família”.

2
Desde os trabalhos clássicos de Ariès (1973) e James e Prout (1990) considerar a infância
como uma construção histórica tem sido moeda corrente. Para uma discussão a respeito da
emergência dessa concepção, ver, por exemplo, Fonseca (1989) ou Sirota (2006).

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Por fim, os trabalhos aqui apresentados partilham da perspectiva
(já consagrada em pesquisas de ciências sociais) que toma as crianças
como sujeitos ativos, capazes de resistir, negociar e reinventar as infor-
mações e os modelos que lhes são ofertados por adultos ( James, 2007,
2009; Hutchby;  Moran-Ellis, 1998; Sirota, 2005). Até os anos 1980
era comum, mesmo em trabalhos acadêmicos, descrever a criança como
objeto passivo da ação intencional adulta – como mero reprodutor de
comportamentos. Conforme a “lógica da menoridade” (Vianna, 1997),
insistia-se que esses jovens ainda não eram sujeitos, ainda não sabiam
ou não podiam participar das decisões que os afetavam. Nas últimas dé-
cadas, contudo, análises passaram a levar em conta a agência das crian-
ças, ou seja, sua capacidade de ação, apesar dos limites impostos por
condições estruturais e relações assimétricas de poder.3 Os autores dos
capítulos deste livro mergulham a fundo justamente nesse desafio.
Os quatro capítulos da primeira parte “Imagens de crianças, in-
fâncias e famílias” jogam luz sobre efeitos muito concretos tanto das
definições legais quanto das normatividades em disputa em torno do
bem-estar e do tratamento de crianças. Estas pesquisas focadas em ar-
ranjos não hegemônicos de parentesco (Sarcinelli), na produção e no-
minação de uma lei contra a violência (Ribeiro), nos efeitos de uma
política estatal de abrigamento infantil (Fonseca), bem como em refle-
xões sobre a polissemia das concepções de ética e infância nas ciências
(Prado e Freitas), examinam processos culturais, políticos e sociais nos
quais as noções de família, criança e infância figuram de forma dinâmi-
ca e diversa. Nos quatro capítulos é possível observar o entrelaçamento
de variáveis como nacionalidade, classe social e contexto histórico com
imagens de crianças, infância e família acionadas por diferentes atores
ou fixadas nas definições e intervenções institucionais. Nas abordagens
desenvolvidas nestes trabalhos, a atenção às relações de poder coloca
em relevo dinâmicas de parentesco e processos de diferenciação social

3
Uma discussão a respeito dos limites e avanços permitidos pelo conceito de agência utilizado
nos estudos sobre infâncias, pode ser lida em Lancy (2012), Delalande (2014) e Szulc et al. (2012)
(Artigos reunidos na sessão Debates e Controvérsias da revista eletrônica AnthropoChildren.
Disponível em: <https://popups.uliege.be/2034-8517/>. Acesso em: 18 maio 2018.)

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de crianças, ativos na formulação das leis, nas ciências e nas políticas
públicas de intervenção.
Alice Sophie Sarcinelli parte da identificação de uma distância
entre o parentesco vivido e o reconhecimento legal dos laços de pa-
rentesco em famílias homoparentais na Itália para analisar a relevância
das experiências institucionais nos padrões de vida cotidiana e de inti-
midade de famílias assim constituídas. Cruzando aportes da antropo-
logia moral e política, da antropologia do parentesco e interessada no
ponto de vista das crianças, a autora busca entender como as relações
de parentesco são construídas, desconstruídas e definidas por diferen-
tes atores. O caráter restritivo da legislação italiana no que se refere a
famílias LGBTI e a adoção por solteiros demanda estratégias da parte
de casais do mesmo sexo, na busca do reconhecimento cotidiano en-
quanto pai ou mãe para ambos/as. A autora aponta o estatuto ambíguo
dessas famílias e a frágil posição daqueles/as sem laço biológico com
a criança, e analisa os esforços de kinning e de de-kinning, ou seja, os
esforços para garantir a criação dos vínculos de parentesco nos seus
diferentes âmbitos empreendidos por pais e agentes do estado4, quan-
do se trata de laços não biológicos. As separações conjugais figuram
como uma situação bastante crítica quanto à explicitação da norma
consanguínea e a tendência das crianças aderirem a ela associando o
“verdadeiro” ao vínculo biológico. Essa adesão não implica ausência
de lugar para “a outra mãe” no diagrama do parentesco, mas sim uma
combinação de elementos como consanguinidade e sentimentos ou
intenções de paternidade e maternidade.
Fernanda Bittencourt Ribeiro toma como ponto de partida a atri-
buição do nome “menino Bernardo” à lei que proíbe “castigos físicos,
tratamento cruel e degradante de crianças e adolescentes” no Brasil. Ini-
cialmente demonstra como a imagem da “criança vítima de violência”
que predominou no debate parlamentar brasileiro constrói-se a partir

4
Optamos por grafar "estado" com minúscula para denotar a natureza não transcendente
desse conglomerado de pessoas e espaços. Seguimos assim a proposição de antropólogos como
Sharma e Gupta (2006), que concebem o estado não como uma entidade abstrata, mas como
um arquipélago de estruturas e instituições articuladas em nome do governo das populações.

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de associações entre violência e famílias pobres, enquanto Bernardo, a
criança cujo nome é atribuído à lei, é oriundo de uma família de classe
média. A fim de compreender esta nominação e instigada pela distân-
cia entre o grau de violência que resultou no homicídio de Bernardo e
aquele das práticas às quais se refere esta lei, popularmente conhecida
como “lei da palmada”, a autora retoma alguns aspectos da história
deste menino, tal como foram apresentados pela mídia. As informa-
ções veiculadas indicam claramente o obstáculo que a origem social de
Bernardo pode ter representado na atuação de agentes e instituições de
proteção. Recorrendo à figura da “criança típica das Américas” que ser-
viu de modelo aos sistemas de proteção à infância na América Latina,
a análise sugere que a origem social seja capaz tanto de potencializar a
estigmatização de famílias pobres, quanto de obstaculizar a legibilidade
de determinadas condições de vida de crianças de camadas médias e
altas em termos de violação de direitos.
O artigo de Claudia Fonseca retoma o tema da proteção à infância
tal como se produzia no âmbito de uma política estatal para a saúde
pública em meados do século XX. Fitando as famílias atingidas por
hanseníase (conhecida então como lepra), a autora revê a política que
decretava a separação compulsória de pais doentes dos seus “filhos sãos”
e a institucionalização desses em orfanatos especializados. A partir de
acervos documentais (citados em trabalhos de diversos historiadores)
assim como entrevistas com pessoas que passaram parte de sua infân-
cia nesses orfanatos, Fonseca explora a maneira como, em nome do
bem-estar infantil, a intervenção estatal provocava situações dramáti-
cas – tanto na hora da separação quanto no momento da reintegração
familiar. Ao sublinhar a tremenda dificuldade que pais tinham para
manter contato, ou ao menos conseguir informação sobre seus filhos
institucionalizados, sugere que esses repetidos esforços frustrados aca-
bam por produzir uma espécie de de-kinnning (desparenteamento) de
pais e filhos. As dificuldades constatadas no momento da reintegração
familiar de jovens (a maioria já chegando perto da maioridade) se-
riam reflexo, por um lado, de uma política estatal que durante longos
anos dificultava ao máximo a relação entre crianças institucionalizadas

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e seus familiares e, por outro, de uma visão naturalizada de família em
que os sentimentos paternos e filiais são supostos permanecer intactos
apesar de anos de afastamento sem nenhum contato.
No último capítulo da primeira parte desta obra, Renata Lopes
Costa Prado e Marcos Cezar de Freitas, em reflexão sobre a ética na
pesquisa com crianças viram a lente analítica para o mundo dos pesqui-
sadores. Articulando ética e infância, os autores chamam a atenção so-
bre as variações de concepção acerca destes termos não só entre ciências
naturais e ciências humanas, mas também no interior das ciências hu-
manas e sociais. Visando contribuir com os estudos sociais da infância,
a análise aborda diferenças e aproximações entre imagens de infância e
concepções de ética, e argumenta pela característica interdisciplinar não
só das pesquisas sobre a infância, mas também das discussões acerca de
normas éticas. Levando em conta a diversidade dos campos acadêmicos
que trabalham com crianças, os autores questionam a pertinência do
termo genérico “pesquisa com crianças”. Sugerem que seria mais apro-
priado apontar grupos específicos a serem considerados no debate sobre
ética e infância – grupos que podem ser formados tanto por adultos,
pais, pesquisadores ou professores como por crianças em suas particu-
laridades. A voz das “crianças com deficiência”, por exemplo, tenderia a
ser ainda menos reconhecida do que a das demais crianças. Entre várias
problematizações trazidas à reflexão sobre a alteridade da infância temos
a própria noção de vulnerabilidade. Quando organicamente associada às
crianças como seres vulneráveis, essa prenoção pode se constituir em
obstáculo ao diálogo. A análise proposta no capítulo deixa entrever que
outras perspectivas se abrem quando a vulnerabilidade é tomada como
uma condição contextual e relacional a ser observada na pesquisa ou
quando os debates sobre ética se interessam em pensar também sobre as
condições de escuta e a interpretações dos adultos.
Estes quatro capítulos demonstram de forma clara não só que as
imagens de infância e família são altamente variáveis conforme as cir-
cunstâncias de época e pelo seu contexto, mas, também, que são de
importância fundamental para a reflexão sobre as dinâmicas sociais,
as hierarquias morais e as desigualdades políticas que perpassam os
universos empíricos estudados.

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Na segunda parte da coletânea, “Participação política de crian-
ças e jovens”, o ativismo desses atores sociais, assim como a percepção
que eles possam ter sobre questões políticas são abordados por ângulos
diversos. Andrea Szulc, trabalhando com grupos indígenas na provín-
cia de Neuquén (Argentina), relata um ato de protesto protagonizado
por adolescentes Mapuche. A população Mapuche, cujos territórios na
Argentina são apenas em parte oficialmente reconhecidos pelo esta-
do como terras indígenas, tem entrado em conflito sobretudo desde
a última década com grandes fazendeiros, empresas e grupos petro-
leiros que causam diversos danos ambientais. Crianças e jovens indí-
genas participam desses enfrentamentos ou ações de protesto, e Szulc
mostra que essa participação se ancora em certa noção de infância e
num modo de viver as relações intergeracionais próprio dos Mapuche.
Para essa população, como para diversos grupos indígenas no Brasil
(ver, por exemplo, Tassinari, 2007), as crianças não são afastadas das
atividades produtivas e políticas dos adultos, elas as integram e par-
ticipam de diferentes maneiras. Essa não segregação das crianças das
atividades dos adultos com quem vivem é, aliás, comum também em
populações rurais não indígenas (ver, por exemplo, Medaets, 2018).
Como a situação política em que se encontram os Mapuche os compe-
le a protestar e reivindicar de diferentes maneiras seus direitos, crian-
ças, jovens e adolescentes são integrados com frequência a essas ações.
Eles realizam também alguns protestos sozinhos, como foi o caso no
dia 12 de outubro de 2001, quando pintaram frases sobre os “direitos
das crianças” no muro da sede de uma empresa petroleira. A polícia e
demais autoridades locais reagiram imediatamente e a manifestação
foi dissolvida à força. Em seus discursos, essas autoridades também
evocam o “direito das crianças”, mas dessa vez para se posicionar con-
tra as organizações Mapuche que teriam “exposto as crianças a uma
situação de risco”. É notável, com essa situação, como o discurso dos
“direitos das crianças” pode ser convocado para fins absolutamente di-
ferentes (Fonseca; Cardarello, 1999; Ribeiro, 1998). Se para as crianças
Mapuche sua própria “proteção” implicaria na expulsão das empresas
petroleiras de seus territórios, para as autoridades essa proteção signi-

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fica manter as crianças em suas comunidades e não permitir que par-
ticipem de atos políticos. Szulc afirma que esse tipo de acusação (que,
diante do protagonismo de crianças indígenas criminaliza os próprios
Mapuche) é comum: os pais são acusados de “abandonar seus filhos”,
de não zelar por sua segurança, de serem negligentes. Para a autora, por
trás do discurso governamental há uma concepção de infância que con-
sidera as crianças como “receptores da ação de outros”, como objeto de
educação, objeto de cuidado, de proteção, de disciplinamento... E não
como atores capazes de protagonizar atos políticos. Uma concepção de
infância, portanto, oposta a dos Mapuche.
Em um contexto totalmente diverso, o capítulo de Medaets,
Mézié e Carvalho também descreve a ação militante de adolescentes e
jovens: aqueles que ocuparam suas escolas por quase dois meses como
forma de reivindicar uma educação de melhor qualidade. Em 2016, de-
pois da ocupação de colégios em São Paulo, escolas foram ocupadas em
mais de 20 estados brasileiros por grupos de estudantes secundaristas
que se rebelavam contra os baixos salários de seus professores, contra
o mau estado de conservação dos prédios escolares e contra reformas
propostas por governantes que implicariam o fechamento de escolas.
As autoras acompanharam o cotidiano de uma ocupação, na cidade de
Porto Alegre, em maio e junho daquele ano. O texto mostra as cone-
xões desse movimento com outras ocupações de escolas na América
latina e, mais amplamente, com movimentos sociais de ocupação de
lugares públicos que se multiplicaram pelo mundo a partir de 2011
(ano da Primavera árabe e do Occupy Wall Street). Os jovens de Porto
Alegre entraram “de cabeça e com o coração” (nas palavras dos próprios
jovens) nessa que foi para muitos a primeira experiência de militância.
Observando as intensas emoções em jogo na ocupação (indignação,
raiva, admiração, “superamizades” e inimizades) e o vai e vem entre vida
pessoal e familiar e vida militante, as autoras dialogam com o campo da
antropologia das emoções e mobilizam autores que se interessam pela
presença das emoções na política, que a concebem como uma “política
apaixonada” (passionate politics, termo cunhado por Goodwin, Polleta e
Jasper, 2001). No texto acompanhamos, por meio de retratos de quatro

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ocupantes (três meninas e um menino), alguns dos dilemas, enfrenta-
mentos e de mudanças, a um só tempo pessoais e políticas, que esses
jovens viveram ao longo dos 41 dias em que partilhavam dias e noites
na escola ocupada.
Valéria Llobet examina não uma ação militante ou participação
em ato político de crianças e jovens, mas a memória que seus interlo-
cutores, adultos que moram na zona metropolitana de Buenos Aires,
guardam do período de ditadura na Argentina. Por meio de entrevistas
biográficas em que rememoram essa época, a autora explora as percep-
ções e os entendimentos que seus entrevistados tinham sobre o contex-
to sociopolítico autoritário por que passava seu país. Mostra, ainda, que
as crianças compunham suas percepções combinando diversas fontes.
Não necessariamente incorporavam de maneira acrítica os discursos
oficiais – muitos e insistentes – que lhes eram especialmente desti-
nados. Llobet trabalha com pessoas que não tiveram familiares desa-
parecidos, nem eram consideradas como opositores ao governo. Eram
crianças ditas “comuns”, de famílias ditas “normais”, que foram justa-
mente objeto de uma série de dispositivos educativos visando “restaurar
uma ordem moral e social”, no âmbito da “luta antisubversiva” em vigor
na ditadura: aulas de educação moral e cívica nas escolas, presença de
militares como professores de educação física, controle de materiais
didáticos, implementação de “delegacias infantis”. A autora mostra que,
apesar desse esforço oficial, as crianças não se fiavam unicamente a
esses discursos, mas integravam outras informações que captavam no
cotidiano. Vendo, por exemplo, uma casa ser interditada pela polícia,
onde sempre avistava um casal com um bebê, sob alegação de se tratar
de uma “casa de guerrilheiros”, uma de suas interlocutoras lembra de
ter passado a desconfiar do que assistia nos noticiários da TV. Outro
entrevistado relata ter ouvido atrás da porta conversas políticas num
bar próximo a sua casa; outro ainda lembra do dia em que descobriu, na
biblioteca de um vizinho, um livro sobre a Segunda Guerra Mundial,
e ao ler partes entendeu que os “guerrilheiros” podiam ser “do bem”.
Muitos contam ter percebido, nos silêncios ou nas contradições das
falas de seus pais, indícios de um contexto político que lhes era negado

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ou ocultado. Todos os entrevistados de Llobet tiveram, assim, em al-
gum momento, uma percepção crítica sobre o que se passava. Eles não
“compraram” totalmente o discurso oficial, reproduzindo-o de maneira
mecânica. Essa interpretação ativa das crianças evidencia, para a autora,
sua agência, a saber, o fato de serem “sujetos capaces de desplegar estra-
tegias específicas para aumentar sus campos de acción, sus trayectorias
por fuera del control adulto – y dictatorial”.
Na terceira parte de nosso livro, “Modos de cuidado: estado, co-
munidade, família”, entramos diretamente na questão da intervenção
estatal nas famílias em situação de vulnerabilidade. As análises de tais
situações tanto no Brasil como na Argentina revelam embates em tor-
no do melhor modo de cuidar de crianças, preparando-as para o futu-
ro, e inspiram uma reflexão comparativa. O artigo de Pires e Oliveira
inicia esta parte com a pergunta: “Quais mudanças de comportamento
foram produzidas pela introdução do Programa Bolsa Família?”. É a
partir de uma pesquisa etnográfica em um vilarejo na região agreste
do Nordeste brasileiro que as autoras consideram a abrangência dos
resultados desta política púbica. Ao comparar as falas das mães com as
das próprias crianças fica evidente a maneira como certas concepções
de infância – em particular as que envolvem trabalho e ludicidade –
mudaram de uma geração para outra. Muitas mães dizem que “nun-
ca tiveram infância”, pois desde a mais tenra idade eram obrigadas a
trabalhar em casa e na lavoura. Com a finalidade de contribuir com
a renda da família foram obrigadas a abrir mão das oportunidades de
estudo, assim como de muitos momentos de brincadeira. Seus filhos,
por outro lado, afirmam sem reservas que só têm obrigação de estudar
e brincar – frequentemente ficando com “as pernas para o ar”. Além
de perguntarem o que essas perspectivas distintas significam para as
relações intergeracionais, Pires e Oliveira também exploram possíveis
mudanças na organização familiar em termos econômicos e sociais,
provocadas pela introdução do Bolsa Família. A garantia de uma ren-
da mensal regular – por mínima que seja – serviria tanto para fixar as
crianças nas famílias até os 18 anos (quando cessa o benefício) quanto
para tornar mais rara a emigração sazonal das famílias à procura de

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emprego. A temporalidade, colocada como fator central nessa análise,
ressalta de forma clara como as particulares circunstâncias da época
(incluindo não só políticas públicas, mas também fluxos no mercado
de trabalho, oportunidades escolares, etc.) condicionam os sentimen-
tos sobre uma infância “adequada”, ocasionando novos desafios nas
relações entre gerações diferentes da rede familiar.
Maria Adelaida Colangelo, ao olhar para La Plata (Argentina),
examina outras dimensões dos programas de intervenção, colocando
em relevo as moralidades que acompanham programas de saúde in-
fantil. Com uma riqueza de detalhes etnográficos ressalta a hetero-
geneidade de situações. Os postos de saúde, onde há convivência de
longo prazo entre os profissionais e as pessoas atendidas, teriam uma
relação com os cuidadores de crianças de modo diferente dos agentes
de saúde e dos médicos que atendem nos hospitais mediante consulta
agendada. Dependendo das circunstâncias, a materialidade do corpo
infantil – e as tecnologias que a circundam – podem ocupar mais ou
menos o centro do palco. Em algumas circunstâncias, o simples peso
do bebê – indicador de sub ou até de sobrealimentação – pode levar o
pessoal médico a classificar a mãe (ou outra responsável) como boa ou
má cuidadora. É notável também como a origem nacional da cuidadora –
argentina, paraguaia ou boliviana – entra no computo moral à medida
que os profissionais rotulam certos comportamentos como “culturais”.
Perpassando as diferentes situações encontram-se as marcas da desi-
gualdade estrutural e a precariedade das condições materiais – tanto
nos serviços de saúde como nas vidas dos usuários. Contudo, no jogo de
acusações que envolvem a moralidade materna, essas considerações es-
truturais tenderiam a perder espaço para a culpabilização de indivíduos.
Os próximos dois artigos versam sobre práticas que, na perspectiva
dos familiares, podem ser consideradas práticas de cuidado, mas que as
políticas públicas procuram coibir por entendê-las como negativas: os
castigos físicos e o trabalho infantil. O artigo de Camila Fernandes, ao
falar de “mães nervosas” de um bairro popular do Rio de Janeiro, convi-
da o leitor a escutar as próprias mães sobre os motivos de suas atitudes.
Dessa maneira, as condições materiais de existência se tornam cada vez

17

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mais pertinentes à compreensão das atitudes maternas. Por um lado,
as mulheres se consideram incumbidas de ensinar os jovens a se de-
fenderem diante da possibilidade de confrontos violentos surgidos no
dia a dia do bairro. Por outro lado, as mulheres enfrentam situações de
enorme estresse e frustração que podem colocar limites a sua paciência
no trato com os filhos. Trazendo à tona uma vasta bibliografia – da
história, da psicologia e da filosofia – para falar das emoções de raiva
e frustração, Fernandes nos oferece a possibilidade não de justificar os
castigos físicos aplicados a crianças, mas de melhor compreender situa-
ções ambíguas. De forma eficaz, nos coloca em alerta contra julgamen-
tos morais fáceis que arriscam fazer pouco mais do que reforçar meca-
nismos de discriminação. Nesse sentido, o texto de Fernandes dialoga
de forma interessante com o capítulo de Ribeiro, também nesta obra,
sobre a lei da palmada. Ouve-se das “mães nervosas” que “essa lei (da
palmada) é maluca” e que pode provocar uma situação em que a criança
“vai estar batendo na gente”.
Laura Zuker situa sua pesquisa claramente no bojo das campa-
nhas internacionais contra o trabalho infantil – campanhas que, tendo
por base uma noção universal de criança, posicionam a infância e o
trabalho como duas esferas mutuamente excludentes. Dialogando com
aportes da sociologia feminista, a autora propõe analisar este assunto
à luz da organização social de cuidado – uma perspectiva que leva em
consideração tanto as políticas institucionais e as condições do merca-
do de trabalho quanto as práticas e perspectivas acionadas pelos pró-
prios sujeitos. Mediante pesquisa etnográfica entre famílias argentinas
na região mineira de Las Misiones, Zuker se aproxima de mulheres
que vivem da venda, à beira da estrada, de pequenas pedras preciosas.
Sua pergunta: “Na ausência de creches e escolas maternais, quais as
estratégias maternas para conciliar responsabilidades familiares e tra-
balho?”. Centrando atenções na perspectiva dos próprios atores – das
mães assim como das crianças – a autora propõe repensar os significa-
dos de brincadeira, trabalho e do próprio cuidado. Vê-se em particular
como, para as mães, manter os filhos junto a elas, incorporando-os às
atividades de venda, não deixa de ser uma maneira de cuidar deles. Tal

18

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rotina permite não só que elas passem mais tempo com seus filhos,
afastando-os de possíveis más influências, mas propicia a socialização
das crianças em diversas habilidades (trato com compradores/turistas,
negociação e cálculo de preços, etc.) que podem ser tão úteis para a vida
futura quanto os conhecimentos que adquirem na escola.
Enfim, o conjunto de trabalhos apresentado nesse volume vem
ao encontro das propostas de vanguarda dos estudos contemporâneos
da infância (Cohn, 2005; Tassinari, 2007; Rodriguez, 2017). Apesar
de rejeitar abordagens essencialistas, calcadas na ideia de característi-
cas universais inerentes à condição de infância, as autoras deste livro
mostram que essas visões naturalizadas de família e infância – tão
frequentes no senso comum e também entre gestores públicos – têm
consequências concretas. Quanto às vivências infantis, as análises
procuram superar tanto modelos binários que opõem a biologia à
cultura, quanto perspectivas reducionistas que explicam comporta-
mentos em termos de uma ou outra dimensão das condições de vida.
Ao invés disso, refletindo sempre a partir de situações precisas, obser-
vadas em contextos específicos, põem em relevo a complexidade do
entrecruzamento de variáveis múltiplas. Finalmente, apesar de com-
partilhar com outras linhas de análise o desejo de promover os direi-
tos das crianças, esses capítulos demonstram repetidamente que não
faz sentido pensar o bem-estar da criança como fenômeno isolado
dos múltiplos atores e relações sociais que a circundam. Em outras
palavras, é fundamental integrar a criança e a infância numa proble-
mática coletiva e social.

Referências
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Seuil, 1973.
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FONSECA, C. A história social no estudo da família:  uma excursão
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BIB, n. 27, p. 51-73. 1989.
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Disponível em: <https://popups.uliege.be/2034-8517/index.php?id=1253>.
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positions théoriques au travers du prisme de la socialisation. In: Bergonnier-
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SIROTA, R. Éléments pour une sociologie de l’enfance. Rennes: Presses universitaires
de Rennes, 2006.
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Disponível em: <https://popups.uliege.be/2034-8517/index.php?id=1270>.
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20

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PARTE 1
_____________

Imagens de crianças,
infâncias e famílias

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Os limites do conceito de família na Itália:
processos de kinning e de-kinning em
configurações familiares homoparentais 
___________________________________________________________
Alice Sophie Sarcinelli

Introdução1
Na Itália, os novos processos de reprodução e de práticas de pa-
rentesco desenvolvidos graças às Tecnologias de Reprodução Assistida,
assim como as mudanças sociais nas estruturas familiares receberam
muito pouco reconhecimento do ponto de vista legal. Em alguns casos,
os “pais de intenção2” e as suas linhas genealógicas não são reconhe-
cidos pelo estado italiano, e os laços de parentesco aceitos no exterior
não o são na Itália. Esses laços podem ser considerados como ambíguos
por causa da lacuna entre a forma que o parentesco é concebido para os
membros dessas configurações familiares3 e o reconhecimento jurídico
desses laços. Se fôssemos desenhar um diagrama ilustrando os laços de

1
Versões mais recentes deste capítulo foram apresentadas nas conferências “Transnational
politics: State practices and everyday life experiences”, Institut für Europäische Ethnologie de
Berlim, 8-9 set. 2016; no seminário com Florence Weber (Université Libre de Bruxelles, 7 ago.
2016); e na IV Jornada de Pesquisa sobre Infância e Família (Pontifícia Universidade Católica do
Rio Grande do Sul – PUCRS, Porto Alegre, 21-23 ago. 2017). Agradeço a Beatriz San Román,
Florence Weber e às coordenadoras deste livro pelos comentários. A pesquisa foi financiada
pelo Fond National de la Recherche Scientifique, Belgique.
2
Este conceito indica a intenção de tornar-se pai.
3
Utilizo aqui o termo ético “configurações familiares”, pois o termo família se refere a uma
norma familiar, ou seja, aquela da família nuclear hétero. Mesmo assim, o termo família é um
termo êmico utilizado pelos casais do mesmo sexo para reinvindicar um reconhecimento juríd-
ico e social da própria configuração familiar.

23

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parentesco assim como são descritos e vividos pelas famílias, e outro
baseado no reconhecimento jurídico do estado italiano, teríamos dois
diagramas totalmente diferentes representando a mesma família. Isso
acontece porque as configurações familiares homoparentais apresen-
tam uma incoêrencia de filiação, ou seja, uma dissociação entre a ma-
ternidade/paternidade legal/biológica e “cotidiana”4, assim como uma
ausência de tradução jurídica da maternidade/paternidade cotidiana.
Mesmo assim, em algums casos a incoerência é ainda maior quando a
dimensão do “parentesco prático” (a única dimensão para alguns pais)
perde os pontos de referência por falta de um lar comum, e de linha-
gem, como acontece com a separação de casais. Longe do modelo de
família nuclear, algumas dessas configurações familiares apontam para
mudanças que estão além das que são consideradas famílias “regulares”
e famílias “irregulares” (Meyer, 1977). Por isso, as relações entre esses
pais e funcionários públicos são caracterizadas, de um lado, por des-
confiança institucional e, por outro, pelo medo e pela ansiedade dos
próprios pais.
Esses “casos excepcionais” (Weber, 2005) nos ajudam a entender
a natureza mesmo do parentesco. O que é o parentesco, então, quando
não existe um laço de sangue (genético/biológico) ou jurídico, nem um
lar comum e nem uma linhagem? O que são esses laços e o que signifi-
cam para as instituições, para os pais e para os filhos? A partir de uma
etnografia de “situações-limite” (Weber, 2005), podemos procurar en-
tender o papel do parentesco na socialização durante a infância, sendo
que as crianças não são atores passivos, mas, sim, bem ativos, nesse pro-
cesso de socialização. O foco concentra-se no impacto sobre as famílias
a partir dessa lacuna entre a forma em que os laços de parentesco são
vividos e como são reconhecidos legalmente. É o caso de configurações

4
O conceito de “parentesco cotidiano” de Florence Weber (2005) indica os laços criados me-
diante o compartilhar da vida cotidiana e da economia doméstica como dimensões materiais e
afetivas, pois (segundo Weber) são condições necessárias (embora não suficientes) ao exercício
do parentesco. A dimensão do parentesco pela via do cotidiano geralmente é negligenciada no
estudo de laços de filiação, pois o foco se restringe ao biológico (sangue) e ao jurídico (tran-
smissão do nome e dos bens). A dimensão do cotidiano é útil para ir além das incoerências
mencionadas e para detectar o que é parentesco.

24

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familiares formadas por casais do mesmo sexo, em que a reprodução
normalmente é externa, conformando, assim, mais um tipo de laço de
parentesco não reconhecido legalmente na Itália.5
Neste capítulo irei me aprofundar na maneira que experiências
institucionais emolduram os padrões de vida cotidiana e a intimidade
dos membros de parentescos. Analisando o papel de diferentes
atores, assim como as estratégias individuais e familiares de kinning
e de-kinning, procurarei entender como as relações de parentesco são
construídas, desconstruídas e definidas por diferentes atores. Nesse
caso utilizarei os conceitos kinning (Howell, 2006) e de-kinning6 para
falar dos esforços investidos, dos pais e do estado, em fazer ou desfazer
laços de parentesco que não são biológicos/genéticos.

O projeto de pesquisa
Aqui serão apresentados os primeiros resultados e as análises da
pesquisa pós-doutoral intitulada “Os limites sociais, morais e políti-
cos do parentesco. Uma antropologia de filhos de casais gays e lésbi-
cos na Itália e na Bélgica”, a qual estou realizando como pesquisadora
do Fonds de la recherche scientifique e do Fonds national de la
recherche scientifique (FRS-FNRS) no laboratório de Antropologia
Cultural e Social da Universidade de Liege (Bélgica). Este projeto se
debruça em questões políticas e morais de filhos de casais gays e lés-
bicos e revisita os campos da antropologia do parentesco e dos novos
estudos sobre parentesco (new kinship studies – Carsten, 2004; Collard,
Zonabend, 2013; Franklin, 2013; Porqueres; Gené, 2009; Schneider,

5
Por exemplo, quando os pais voltam para Itália após a sub-rogação, eles encontram problemas
em ter a certidão de nascimento reconhecida. Os pais de intenção não são legalmente reconhe-
cidos, e isso inclui também os homoafetivos que adotaram filhos em seus países de origem,
antes de chegarem na Itália. Muitos outros laços de parentesco não têm reconhecimento legal.
É o caso da relação entre irmãos que têm o mesmo doador, ou o caso da criança do/a parceiro/a
que foi adotada na base de “adoção em casos especiais” e a linha genealógica do pai adotivo.
6
Claudia Fonseca (2011) utiliza esse termo para falar do “esforço institucional investido em
desfazer uma categoria naturalizada”, no caso dela, o da maternidade biológica.

25

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1984). A hipótese defendida é a de que a experiência das crianças está
diretamente ligada ao seu tratamento em espaço público e político.
Para testar esta hipótese, combino a antropologia moral e política com
a antropologia do parentesco do ponto de vista das crianças (LeVine;
Price-Williams, 1998; Toren, 2007). Estou realizando uma etnografia
combinatorial (Baszanger; Dodier, 1997) que atribui escolhas indivi-
duais a suas condições de possibilidades por meio de estudos locais e
comparativos (local comparative studies – Kröger, 2001) na Itália e na
Bélgica, sendo que esta inclui: i) uma etnografia das práticas familia-
res focalizada na perspectiva das crianças; ii) a cartografia dos debates
públicos e políticos; e iii) uma abordagem sociohistórica. É impor-
tante destacar que estes países são radicalmente diferentes no que diz
respeito a valores e normas da infância, assim como ao que se refere à
legislação de famílias homoparentais (Sarcinelli, 2018).

O contexto Italiano
A Itália está entre os países europeus em que a diversificação das
formas familiares aconteceu tarde (Saraceno, 2012), sendo que uma das
principais causas decorre da sua legislação em relação à família e aos
direitos reprodutivos, que é uma das mais restritivas da Europa. Es-
sas restrições continuam, apesar das mudanças sociais importantes nas
estruturas familiares que a Itália vivencia desde as últimas décadas, até
mesmo com inúmeras famílias criadas por casais que optaram por não
se casar, conhecidas como famiglie di fatto (famílias de fato), e com
famílias reconstituídas e homoparentais. O número de casais gays e
lésbicos que tiveram ou estão tentando ter filhos aumentou bastante
nos últimos anos.7 Todavia, a legislação italiana não se adaptou a essas

7
Nao existem estatísticas confiáveis sobre famílias homoparentais. Entretanto, segundo a pes-
quisa “Modo di” realizada em 2005 por Arcigay (a principal organização sem lucro, fundada
em 1985, para promover igualdade entre indivíduos independente da orientação sexual ou
identidade de gênero) em cooperação com o Instituto Superior de Saúde num conjuto de
dados sobre 10.000 pessoas com menos de 40 anos, 17,7 % de gays e 20,5 % de lésbicas têm

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transformações (Saraceno; Naldini, 2013). Após uma forte pressão da
Corte Europeia pelos Direitos Humanos, a união civil para casais do
mesmo sexo foi votada e aprovada em maio de 2016.8 Apesar dessa
recente lei, a Itália ainda está entre os países mais limitantes quanto
a leis para famílias LGBTI e famílias de solteiros, de qualquer orien-
tação sexual. Adoção por casais do mesmo sexo, fertilização in vitro
com doador, sub-rogação e reproduçãoo assistida não são permitidos
a solteiros e a casais do mesmo sexo: para isso, essas pessoas devem ir
a outro país, se tiverem condições materiais e econômicas para tanto.
Então, crianças nascidas de casais do mesmo sexo não possuem o direito
de transmissão bilateral da filiação, pois somente um dos pais ou uma das
mães ‒ conforme for a constituição da criança ‒, será considerado como
tal perante a lei.
Conforme o mapa e o índice Rainbow Europe, gerado pela
International Lesbian and Gay Association ‒ Europa, um índice que
mostra a situação atual de leis, políticas e práticas que afetam as pessoas
LGBTI na Europa, a Itália fica entre os piores países, com um escore
de 20%.
A Itália é bem limitante no que diz respeito a questões de família.
Aparentemente, as famílias tratadas neste texto não têm nenhum re-
conhecimento legal, e é notável, também, que várias normas nacionais
(civis, penais, de seguro social, seguros e sobre registro civil) e euro-
peias são frequentemente contraditórias. Além disso, na Itália existe a
possibilidade de “dar um jeito”, tanto regionalmente quanto em certas
localidades, pois a situação não é homogênea no país. Por exemplo, os
processos para adoção “em casos especiais” foram aprovados somente

pelo menos um filho e, cerca de 100. 000 crianças têm pelo menos um pai/mãe homosexual
(Arcigay et al., 2006).
8
Um momento de politização extraordinário da questão do reconhecimento de famílias do
mesmo sexo e dos seus laços de parentesco emergiu em 2016, no contexto do debate sobre
uniões civis, o qual teve diálogos bem ásperos. De fato, o projeto de lei supria o acesso à adoção
para os pais não biológicos. Todavia, essa parte da lei foi removida na versão final da lei, como
compromisso político. As primeiras uniões civis foram celebradas em agosto de 2016 em al-
gumas cidades da Itália, enquanto prefeitos de outras cidades protestavam contra a lei, agindo
como objetores de consciência.

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em alguns tribunais (como o de Roma, e somente por uma juìza), en-
quanto foram rejeitados sistematicamente em outros tribunais do país.
Prefeitos e municipalidades têm bastante poder na Itália, e são eles
que implementam serviços e estratégias de inclusão. A partir desses
dados, podemos classificar o contexto italiano como restritivo mas he-
terogêneo.9 A sociedade italiana encontra-se diante de um conjunto
complexo de definições, normas e valores de família.10 Contudo, apesar
dessa legislação restritiva, essas configurações familiares não somente
existem, mas estão aumentando, e nos últimos anos estão se tornando
mais visíveis na arena pública. Consideramos agora o encontro concre-
to entre os pais e o “estado”, ou seja como as configurações homoparen-
tais se arranjam entre definições múltiplas de família e de parentesco
na vida cotidiana.

Se tornar parente (o kin) de uma criança un-kinnable:


estratégias de casais do mesmo sexo para tornar-se parentes
Não tendo accesso à reprodução, casais do mesmo sexo precisam
de outras estratégias. Até alguns anos atrás, os espaços reprodutivos
transnacionais não eram ainda comuns, e os casais tinham que recor-
rer às clínicas “clandestinas” (conhecidas como o Itálian far-west das
tecnologias reprodutivas) ou a autoinseminação. Hoje em dia a maioria
dos casais do mesmo sexo com um projeto reprodutivo escolhem ir
ao exterior em busca de espaços reprodutivos transacionais ou, mais
recentemente, no centro de reprodução transfronteiriço entre a região

9
No seu estudo sobre “políticas arco-íris”, o sociólogo Fabio Corbisiero (2015) classificou
as cidades de rainbowfriendly (onde todas as políticas e os serviços são considerados), rainbow-
to be (as que começaram a trabalhar nessa direção sem ter ainda nenhuma política concreta) e
rainbow oriented (as que possuem somente umas dessas caraterísticas).
10
Por exemplo, a região da Toscana adotou uma definição mais abrangente de família e
substituiu esse termo pelo neologismo “famílias e uniões civis” (Ruspini; Luciani, p. 66), bem
antes da lei nacional, enquanto em 2001 a região Lazio adotou uma definição de família bem
restritiva, e acabou com os auxílios a casais não casados. Enfim, algumas cidades abriram o
registro dos pactos de coabitação e de uniões civis antes da lei nacional.

28

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Sud Tirol e a Áustria. Todavia, alguns casais femininos preferem ficar
na Itália e utilizar servicos de reprodução assistida para casais heteros-
sexuais: essa opção é possível procurando um doador e pretendendo ser
um casal. Outra opção possível para ter accesso à parentalidade (sem
reprodução nem parentesco) é ter a oportunidade de custódia de alguma
criança, mas isso significa que nenhum vínculo de parentesco é criado
com a criança e que ela não é incluida na família para a vida inteira.
Apesar da guarda (em que o casal não reproduz nem constrói laços
de parentesco com as crianças), as famílias homoparentais contam
com um estatuto ambíguo, no qual são suspeitos de duplicidade e
praticamente todas as conjunturas os situam em condição “irregular”.
Como faltam laços jurídicos e biólogicos, os casais adotam estratégias
para tornar parente o pai não estatutário, tanto simbólica como
juridicamente. Para que um deles torne-se pai, é necessário que
hajam caraterísticas “objetivas” (todo tipo de papel ou documento que
aponte alguma relação com a criança) e subjetivas (como a capacidade
de transmitir a imagem de “ser pai”) (Coutant, 2001, p. 33). Essas
caraterísticas são necessárias para ser reconhecido e tratado como pai
pela família, pela sociedade e pelo estado. Para isso, os pais adotam
“táticas” (De Certeau, 1990, p. 57-62) para “kin”, ou seja, para tornar-se
parente dos filhos.
Uso como exemplo Silvia Rossi11 (mãe) e Celeste Ferrari (comãe),
que decidiram dar o nome da comãe Celeste como segundo nome de
ambos os filhos (Mattia e Matilde). Assim, as crianças têm o próprio
nome, o nome da comãe e o sobrenome da mãe. Dessa forma, cada
mãe transmitiu um nome, formando uma lista de família bastante
homogênea: Silvia Rossi e Celeste Ferrari são mães de Mattia Celeste
Rossi e Matilde Celeste Rossi. Celeste Ferrari fala sobre esta decisão:
“Isso foi para colocar o preto no branco, que eu fazia parte da história
deles, que eles eram o resultado de duas pessoas, não de uma só”.
Celeste acrescenta que a sua tentativa de tornar-se parente dos seus

11
Os nomes reais foram alterados, assim como certas carateristicas pessoais das pessoas dos
exemplos, para tornarem-se anônimos.

29

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filhos deu certo. Ela contou que as pessoas acham que as crianças
parecem com ela.
Os pais procuram também opções administrativas e jurídicas para
um deles tornar-se pai dos filhos. O primeiro passo (e o mais fácil)
é pedir um documento chamado “status de família”. Esse documento
comprova que as pessoas moram juntas; que têm a mesma residência.
Os casais com um capital cultural, social e econômico maior encon-
tram formas mais sólidas e sofisticadas para conseguir as “caraterísticas
objetivas” de uma família. Erika e Anna, por exemplo, tiveram um filho
cada uma, e conseguiram ser “guardiãs em vida” do filho da compa-
nheira. Graças a esse status, a companheira é guardiã não somente em
caso de morte da mãe biológica, mas também enquanto ela estiver viva.
Esse casal conseguiu também escrever o nome da comãe na identidade
e no passaporte de cada criança, autorizando que a comãe viaje com as
crianças para o exterior sem a presença da mãe.
Outro exemplo é o de Véronique e Veronica, que são comãe e mãe
de Milù. Como é cidadã belga, Véronique conseguiu adotar o filho na
Bélgica, embora essa adoção não seja reconhecida na Itália. Com isso
ela acabou na situação kakfiana de ser a mãe de Milù na Bélgica e uma
desconhecida ou estranha na Itália. Embora na Itália Véronique esteja
na mesma situação que qualquer outra comãe (como o fato de precisar
de uma permissão escrita de Veronica para pegar Milù na escola ou
viajar com ele), o casal se sente protegido por “aquele papel” ‒ o com-
provante da Bélgica, o qual comprova que Véronique adotou Milù.
Apesar disso tudo, geralmente o cotidiano parece bastante tran-
quilo: os copais conseguem realizar as tarefas de parentais, como pegar
as crianças na escola ou levá-los ao médico sem encontrar muitos pro-
blemas. De fato, uma vez que os pais não estatutários têm as caraterís-
ticas subjetivas para serem identificados como pais, ninguém questiona
isso. Isso ocorre com Erika, que me disse:

Quando eu digo que sou a mãe de Andrea, ninguém me pede um


documento para comprovar. Inclusive quando nós viajamos para o
exterior nao me pediram nada. Se você pensa nisso, habitualmente

30

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um filho não tem o mesmo sobrenome da mãe12. Então, para se
dar conta que o filho não é meu, eles deveriam olhar a certidão de
nascimento; mas quem pede uma certidão de nascimento quando
se viaja, se uma pessoa declara ser a mãe daquele menino?

“Nao sou ninguém”: pais não estatutários


enfrentam o de-kinning

Embora essas táticas normalmente funcionem, o medo de ser


de-kinned (ou seja, de perder o papel de pai ou de mãe) ou de ser des-
coberto permanece forte. Como Erika discorre: “No fundo no fundo,
quando eu falo que sou a mãe de Andrea, eu sei que de certa forma
estou mentindo. Essa sensação permanece, apesar de tudo”. Irene, mãe
não estatutária de Alessandro, foi uma vez para Califórnia e teve que
levar o filho na emergência. Quando chegou lá ficou muito preocupada
de ser acusada de mentirosa e logo declarou:

Sou a mãe de Alessandro... Quer dizer, não sou... Ou seja, sou


a comãe dele, mas eu tenho uns papéis aqui comigo... e preciso
realmente que Alessandro seja aceito no hospital! Pelo amor de
Deus, aceitem ele!

A pessoa no guichet a interrompeu dizendo que nao tinha pro-


blema nenhum e pediu para ela se acalmar. Se esses tipos de interações
resultam da incorporação de uma experiência coletiva de discriminação
e de desqualificação dos homosexuais como pais, eles também são fruto
de situações reais de de-kinning simbólico, social ou jurídico vividos por
outros pais.
As primeiras experiências de de-kinning jurídico occorrem quando
os casais de pais voltam para Itália após sub-rogações. Foi o caso de

12
Na Itália os filhos têm somente o sobrenome do pai, e na identidade Itáliana não consta toda
a filiação.

31

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Daniele e Francesco: a transcrisão da certidão de nascimento dos gê-
meos deles foi recusada quando eles voltaram dos Estados Unidos. Eles
correram o risco de ser acusados de crime de sub-rogação. O casal,
então, contatou a Rete Landford, uma OGN de advogados criada para
defender os direitos das pessoas LGBTI na Itália. Com um ano de idade,
os gêmeos ainda nao tinham a certidão de nascimento aceita na Itália.
Outros episódios de de-kinning ocorrem se o casal se separa.
O kinning dos pais não biológicos depende do consentimento do
pai biológico, o qual detém de fato o poder de de-kin ao outro pai
a qualquer momento. Esse foi o caso de Alessandra e Consuelo,
um casal que teve duas filhas nos anos 1990 (Francesca e Isabella).
Alessandra utilizou autoinseminação graças ao esperma de Giacomo,
o namorado de Marcello, um casal gay bem amigo de Alessandra e
Consuelo. Nos primeiros anos, as pessoas consideravam as meninas
como filhas do casal, embora Consuelo tenha se sentido machucada
quando a mãe de Alessandra (que preparou quatro corações de ouro
para o nascimento da primeira filha) deu as duas peças maiores a
Alessandra e Giacomo (os pais biológicos, ou seja, a mãe e o doador) e
os menores a Consuelo e à filhinha. Esse primeiro episódio antecipou
o que Consuelo vivenciou depois. Ela me explicou assim: “A natureza
e a lei não estão do meu lado: é por isso que precisamos tanto de uma
lei que nos reconheça”.
Apesar do ocorrido, inicialmente Alessandra e Consuelo eram
consideradas as mães, e o casal gay ganhou a denominação de papini
(paizinhos). Eles eram amigos bem próximos e passavam bastante
tempo junto à família, como já faziam antes da chegada das meninas.
As filhinhas estavam ainda na creche quando Alessandra e Consuelo
se separaram. Os papini foram chamados para presenciar os acordos
da separação durante um encontro em que decidiram sobre a pensão
alimentícia que Consuelo iria dar a Alessandra e os dias que Consuelo
iria ficar com as filhas (três dias por semana, dois finais de semana por
mês, e 50% das férias). No entanto, dois anos depois, as coisas tomaram
um rumo diferente. Consuelo me explica o processo de de-kinning, ou
para utilizar as palavras dela, como Alessandra “tirou as filhas do coração

32

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dela”. A primeira coisa que Alessandra fez foi mudar as meninas de
escola sem assinar o documento que autorizava Consuelo a buscar as
filhas: “Você sabe, eu era ninguém, então eu precisava daquele papel, do
consentimento dela que podia buscá-las”. Para o de-kin de Consuelo,
Alessandra utilizou também os apelativos.13 Inicialmente, as crianças
chamavam Consuelo “mamma Elo” (mamãe Elo) para distinguir
entre elas e Alessandra. Após a separação, às vezes elas a chamavam
simplesmente de mãe (pois Alessandra não estava), mas Alessandra
queria que Consuelo as corrigisse quando elas a chamavam assim. Dois
anos após a separação, Alessandra impediu Consuelo de ver as crianças.
Entretanto, Alessandra se mudou para uma pequena cidade vizinha
e produziu uma nova narrativa sobre a sua história, e foi assim que
Consuelo relatou:

Ela fala que é uma mãe solteira, que o pai mora em Milão e trabalha
num banco (o que é o único elemento verdadeiro, pois Giacomo
trabalha num banco), e nunca dá dinheiro; então ela tem que fazer
tudo sozinha.

O fato de que o processo não deu certo para Consuelo não é


surpreendente se considerarmos a lei italiana. Como Consuelo disse:
“Claro que fui rejeitada, pois não era ninguém: eu, Consuelo Carta,
pedia autoridade parental sobre Francesca e Isabella Manzoni”.
Mesmo assim, o Tribunal decidiu abrir um inquérito para verificar a
situação dessa família e do bem-estar das crianças. Mais tarde, quando
Giacomo foi chamado ao Tribunal, o neuropsiquiatra disse a ele
que era o momento certo para pedir os seus direitos parentais se ele
quisesse. Consuelo se sentiu humilhada mais uma vez: “Sabe, estava me
acabando para obter um pouquinho e Giacomo recebeu uma proposta
num prato de prata”. Mais uma vez, como ela diria, a natureza e a lei
não estavam do lado dela. Ao final, o Tribunal reconheceu que tinha
occorido uma relação de parentesco entre Consuelo e as crianças, mas

13
Sobre o uso dos apelativos nas configurações familiares homoparentais ver Gross (2008).

33

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não estimou como necessário para as crianças restabelecer uma relação
com ela. Posteriormente, quando Francesca perguntou pelo seu pai,
Giacomo retomou a relação com ela... Ou seja, natureza e a lei foram
enfim restabelecidas.

As injunções paradoxais e a socialização das crianças nas


configurações familiares homoparentais
O que os filhos vivem nisso tudo? Eles têm que enfrentar as in-
coerências e injunções paradoxais tanto dentro quanto fora de casa. É
o caso de Chiara, que deu à luz à primeira criança do casal, enquanto
a segunda (do mesmo doador) nasceu de sua companheira Valentina.
Nos discursos do casal existe uma injunção se considerarmos o paren-
tesco do ponto de vista do “parentesco de intenção” e não do “biológi-
co e jurídico”. Os filhos “têm” que ter o mesmo sentimento de filiação
com os dois pais, assim como os avós “têm” que considerar as netas
da mes-ma forma. Todavia, os outros membros da configuração fa-
miliar não se conformam com essa injunção. Antes do nascimento
da segunda filha, Chiara declarou à sua mãe que ela tinha que amar
essa nova criança como amava a outra. A avó respondeu que isso não
era possível, pois os vínculos se criam com o passar do tempo. A mãe
de Chiara se apoia mais no parentesco prático do que a filha, que se
apoia na intenção, pois Chiara considera que o projeto de criança
comum entre ela e Valentina basta para suprir a falta de parentesco
prático, legal e biogenético. Por isso, ela não gostou quando a sua mãe
não foi vê-las quando a sua companheira pariu. Ao contrário, a mãe
de Chiara achou que dessa vez coubesse à mãe de Valentina viajar
para ajudar a filha que tinha parido. Segundo a mesma lógica, quando
Chiara e Valentina se separaram, ambas as sogras acharam que as
crianças iriam morar cada uma na casa “da própria mãe”, ou seja da
mãe biológica e jurídica.
Segundo Chiara e Valentina (que eu conheci alguns anos após a
separação), as incoerências da filiação seguem outras lógicas. Chiara

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defende que o parentesco continue, embora não tenha mais unidade
de casa e de linhagem. No entanto, atrás dessa mensagem explícita, as
práticas exprimem incoerências, como uma competição entre as duas
mães para ser “um pouco mais mãe do que a outra”, para ganhar pontos
na falta da maternidade jurídica e biológica. Nos acordos pós-sepa-
ração, o casal decidiu pela guarda compartilhada das filhas. Todavia,
tendo um capital econômico e uma disponilibidade de tempo maior
do que Valentina, Chiara consegue passar mais tempo com as crianças
e, do ponto de vista econômico, é ela quem contribui mais nas despe-
sas das filhas. Valentina adotou uma outra estratégia: ela se limita a
ser considerada como a “mãe principal” pela filha biológica Lucia, que
ela privilegia e com quem ela tem um vínculo maior. Valentina usa a
arma do “biogenético”, enquanto Chiara usa o cotidiano. Vamos ver um
exemplo concreto:

[...] no final do ano tem uma prova de judô, Valentina fica com
o livrinho de judô da filha, mas Chiara pede que Valentina o de-
volva para dizendo: “assim eu vou ficar com os dois livrinhos, é
mais fácil”. Depois Chiara insiste para pagar a corrêia de Lucia
(utilizando a desculpa que ela está cheia de trocado), mas Valentina
também queria pagar, mas não consegue. Valentina procura fisi-
camente afirmar a “maternidade principal”, tentando um contato
físico e verbal com Lucia e excluindo Chiara. Enquanto as crian-
ças vão trocar de roupa, os pais batem papo entre eles. Em certo
momento Valentina conta de uma vez que Lucia teve um acidente
na escola: no relato, ela fala de Lucia como se só ela fosse a mãe e
Chiara não existesse.

Enquanto as crianças (que eu conheci com 8 e 10 anos), durante


a preparação do diagrama de parentesco, se conformam às injunções
das mães. Irene (10 anos) indica primeiro ela e depois as duas mães.
No início, ela explica que Chiara é a mãe biológica, depois acrescenta
que não precisa marcar isso. A família dela é cheia de laços baseados
no parentesco prático; ela explica que mamãe Valentina e tia Giuliana
não são irmãs de sangue; ela me explica que o pai de mamãe Valenti-

35

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na morreu, enquanto tia Giuliana perdeu a mãe, então vovô Adriano
e vovó Giovanna casaram pela segunda vez e é por isso que se torna-
ram pais de Valentina e Giuliana. Depois, Irene pede para acrescentar
no diagrama a sua irmã Lucia indicando Valentina como a mãe bio-
lógica dela.
Embora Irene e Lucia utilizem frequentemente a palavra “mãe”
sem informar de qual mãe estão falando, elas consideram a mãe bioló-
gica como “mais mãe do que a outra”, “verdadeira mãe”, “mais mãe”,
“mãe natural”, depois se corrigem falando “mãe biológica é o termo mais
correto”. Segundo Irene, esse tipo de mãe “é aquela que te carregou na
barriga… lá dentro a voz chega de outra forma”. Lucia, a mais nova,
explica também o conceito de “verdadeira mãe”:

[...] é assim: têm duas crianças, quer dizer eu e Irene, que têm duas
mães: a mãe Valentina e a mãe Chiara. Não sei como te explicar
por que uma é mais mãe do que a outra… o termo correto é mãe
biológica: Valentina é mãe biológica de Lucia, e Chiara de Irene, ou
seja, a mãe que criou aquela criança.

Pesquisadora: Como assim, criou?


Lucia: Quer dizer que ela fez você.
Pesquisadora: O que significa “que fez você”?
Lucia: Que… perai… como é que se diz quando alguém tem
alguém na barriga? Quem te carregou na barriga… Embora lá, por
exemplo, tem dois meninos irmãos que têm dois pais, Simona e
Andrea, e um fala que o verdadeiro pai é Valerio, porque foi feito por
ele, ou seja, carregou na barriga, enquanto o outro fala que o verdadeiro
pai é Simona.
Pesquisadora: Mas pais não guardam crianças na barriga!
Lucia: Eu não sei te explicar… Me atrapalho. Vamos lá: esses dois
irmãos têm duas mães: uma chama-se Simona e a outra Andrea (pois
existem meninas chamadas Andrea. Uma das duas crianças fala que
a mãe é Andrea, e a outra, Simona. Por que Simona pegou a semente
para fazê-la e Andrea fez a mesma coisa para fazer a outra.

36

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Pesquisadora: E o que é essa semente?
Lucia: Ah, isso eu não sei não.
Pesquisadora: Mas a semente tem a ver com o doador?
Lucia: Acho que sim.
Pesquisadora: Então uma é “mais mãe” e a outra simplesmente mãe?
Lucia: Isso. Aquela é a minha mãe, enquanto a outra é chamada
tipo de mãe Simona (e fala o nome, ou seja para ela não é a verdadei-
ra mãe). Tipo, é como quando você tem um filho adotivo e para você
aquela não é a sua verdadeira mãe, mas você a chama de mãe de qual-
quer forma porque é alguém que te criou e então você não pode dizer
que é sua prima, né?
Ambas as crianças afirmam ter caraterísticas semelhantes à sua
“verdadeira mãe”. Contudo, para que as duas mães possam existir, uma
outra pessoa fica excluída das lógicas do parentesco prático: trata-se
da nova companheira de Chiara (Monica), que mora com ela e no dia
a dia cuida mais das crianças do que a mãe Valentina. Mesmo assim,
ninguém a considera como parte do parentesco. Quando fizemos os
diagramas de parentesco, Monica nao aparece naquele feito por Irene
nem naquele feito pela mãe Chiara. Quando eu pergunto se precisa
marcar o doador no diagrama, Irene nega. Ao fazer o diagrama, Irene
não menciona Monica. Assim que terminamos o diagrama, pergunto
para a Irene se tem que colocar Monica. Aí ela responde que pode co-
locá-la como namorada da mãe. Ou seja: ela não a percebe como ten-
do um laço de parentesco com ela. As crianças chamam Monica pelo
nome (e não com um apelativo de parentesco) e o doador é chamado
simplesmente de doador. A mãe Valentina a exclui mais ainda afirman-
do: “Ela não é ninguém para as crianças”.

Conclusões
Embora os laços de parentesco nunca sejam naturais, mas sempre
frutos de um processo de kinning, o processo que pais não estatutários

37

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enfrentam é bastante complexo e sempre correm o risco de se deterio-
rar. Como Consuelo diria, tanto a “natureza” (ou seja, a representação
social da genética e dos laços de parentesco) como a lei (nesse caso a
legislação italiana) contribuem para fragilizar esses laços. Se as ambi-
guidades e as contradições da legislação itáliana (que, como vemos, é
bem fragmentada) deixam espaço para margens de manobra, permi-
tindo aos casais do mesmo sexo de kin o pai/a mãe não estatutários,
elas também permitem processos de de-kinning. De fato, os pais não
estatutários podem passar rapidamente do estatuto de pai ou quase pai
frente aos funcionários do estado para aquele de “ninguém” em relação
à criança. Se casais procuram processos de kinning social, simbólico e
jurídico, em momentos de crise, como em separações, a natureza e a lei
são chamadas e a desigualdade entre pais e copais torna-se visível em
toda a sua violência. Sem nenhuma dúvida, o tratamento institucional
de famílias homoparentais contribui para emoldurar a vida íntima das
famílias, reforçando a relação de poder entre pais e copais, que já é
desigual por causa da “natureza”, ou seja, da representação cultural da
“natureza”, e a naturalização dos laços biológicos e genéticos.
O caso das configurações familiares homoparentais nos ajudam
a entender a “natureza” do modelo de filiação euro-americano. Essa
configuração questiona o sistema de filiação que coincide com as regras
genéticas e mostra que a filiação existe mesmo com ausência de bases
biogenéticas, jurídicas ou práticas, como no caso das separações. As
micropolíticas da vida familiar nos mostram a “natureza” complexa e
contraditória do parentesco. De fato, o parentesco é definido e vivido
de forma diferente tanto na forma jurídica, social e prática. As contra-
dições não existem somente entre esses três níveis, mas são também
internas a cada categoria. O método etnográfico me permite demons-
trar as ambiguidades e as contradições do estado italiano no que diz
respeito ao reconhecimento de laços de parentesco: se à primeira vis-
ta tem pouco ou nenhum espaço para o reconhecimento dos diver-
sos laços significativos nas configurações familiares homoparentais, na
verdade a situação é muito fragmentária e ambígua. A mesma pessoa
pode ser reconhecida ou não como pai pelo “estado”, pois dependerá do

38

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lugar que estiver e a situação que se apresentar. Isso significa que um
pai “não estatutário”14 pode facilmente passar do status de pai ou “quase
pai” do ponto de vista de funcionários do estado ao status de “ninguém”
em relação à criança. Por outro lado, o parentesco prático (nas suas três
subdimensões, ou seja, moral, emocional e cotidiana, conforme Weber,
2005) é vivido de forma diferente para cada membro de uma configu-
ração familiar. A filiação aparece em todas as suas componentes mais
clássicas (conforme Goody, 1982: “conceiving, bearing, transmitting a
juridical status of filiation, feeding, educating, marrying and giving a
profession and give heritance”15) e aquelas apontadas mais recentemen-
te (intenção e sentimento de paternidade/maternidade: Tarnowski,
2010; Fine; Courduriès, 2014). A natureza do parentesco é composta
por uma combinação de todos esses elemmentos que se mesclam dife-
rentemente conforme a situação, os atores e o momento.

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Fine, A.; Courduriès, J. (Eds.). Homosexualité et parenté. Paris: Armand
Colin, 2014.
Fonseca, C. The De-Kinning of Birthmothers. Reflections on Maternity and

14
Virgine Descoustures (2010) usa esse termo para mostrar o dobro handicap de não ser nem
o pai biogenetico nem legal, embora sendo pae de intenção.
15
Conceber, sustentar, transmitir um estatuto jurídico de filiação, alimentar, educar, casar e
possibilitar profissão e dar herança.

39

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O nome da lei: violências, proteções e
diferenciação social de crianças
_______________________________________________
1

Fernanda Bittencourt Ribeiro

Introdução
Lei menino Bernardo. Com este nome, após quatro anos de tra-
mitação (2010-2014) foi aprovado pelo Senado federal brasileiro um
projeto de lei que ao longo deste período popularizou-se como “lei da
palmada”. Apresentado pelo Executivo brasileiro em julho de 2010, sua
elaboração faz parte de uma ação transnacional promovida pela ONU
e por ONGs internacionais que desde o início dos anos 2000 militam
pela erradicação de castigos físicos e tratamento cruel e degradante nas
relações entre adultos e crianças ou adolescentes. Até o presente, 53
países, sete dos quais localizados na América Latina, aprovaram legis-
lações deste teor.2 Antecedido pelo Uruguai e pela Venezuela, o Brasil
foi o terceiro país da região a legislar sobre o tema. Entre 2010 e 2014,
no âmbito de uma pesquisa interessada nos desdobramentos desta ini-
ciativa no Brasil, acompanhei a tramitação deste projeto de lei (PL
7672/10) nas instâncias legislativas federais.
Em 2011, na Câmara dos deputados, uma comissão especial foi
constituída para a apreciação do projeto de lei, e a mesma realizou au-

1
Este texto foi originalmente publicado na revista Problèmes d'Amérique Latine, n. 108, v. 1,
2018.
2
Ver: <https://www.endcorporalpunishment.org>. Países latino-americanos que proibiram
castigos físicos: Uruguai, 2007; Venezuela, 2007; Brasil, 2014; Argentina, 2014; Bolívia, 2014;
Peru, 2015; Paraguai, 2016.

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diências públicas e emitiu parecer favorável à sua aprovação. No entanto,
nos dois anos seguintes, o projeto de lei permaneceu sem encaminha-
mento ao Senado federal sobretudo em função de obstruções causadas
por parlamentares contrários à proposta.3 A situação só se alterou em
maio de 2014, após o assassinato de Bernardo Boldrini, um menino de
11 anos, filho de um médico e residente em uma pequena cidade do
sul do Brasil. Este homicídio (cujas circunstâncias serão detalhadas a
seguir), do qual são suspeitos a madrasta e o pai do menino, teve grande
repercussão na mídia nacional e reavivou a tramitação do projeto de lei.
Menos de dois meses após este assassinato, “a lei da palmada” começou
a ser chamada “lei menino Bernardo” por seus apoiadores na Câmara
dos deputados, e o projeto de lei foi, finalmente, enviado ao Senado e
posto em votação no mesmo dia. A aprovação da lei em plenário acon-
teceu no dia 4 de junho de 2014, numa sessão plena de emoção e na
presença de importantes militantes da causa.
A relação entre a morte de Bernardo Boldrini e a repentina celeri-
dade no encaminhamento da lei contra castigos físicos e tratamento cruel
e degradante causou-me grande estranhamento. Primeiro porque, como
veremos, a análise dos discursos proferidos por ocasião das audiências
públicas realizadas na Câmara dos deputados colocou em evidência
as constantes referências a famílias e crianças pobres, residentes em
favelas, como as principais destinatárias da lei. Em segundo lugar, sur-
preendeu-me o fato de que uma lei que visa incidir sobre castigos físi-
cos e outras formas de violência tradicionalmente tidas como “brandas”
tenha recebido o nome de uma criança vítima de homicídio.
Como chave de leitura deste desfecho seguirei o argumento de
Lignier, Lomba e Renahy (2012) em relação à particularidade das
Ciências Sociais no campo interdisciplinar de estudos da infância, a sa-
ber, a abordagem da diferenciação social das crianças. Na apresentação
do dossiê “Differencier les enfants”, os autores sustentam que diante
de outros saberes que tendem a minimizar as diferenças e produzir co-
nhecimentos ancorados na noção universalista de “desenvolvimento”,

3
Este processo legislativo será detalhado mais adiante.

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caberia às Ciências Sociais o contraponto da diversidade das infâncias
abordada a partir das “variáveis classicamente colocadas em relevo pelas
Ciências Sociais: o gênero, a origem social, cultural, nacional, residen-
cial, etc.” (Lignier; Lomba; Renahy, 2012, p. 15). Entre essas variáveis,
a diferença relativa ao meio social de origem seria mais ignorada na
bibliografia do que a diferença de gênero, por exemplo. Seguindo esta
pista farei o exercício de colocar em perspectiva a figura da “criança ví-
tima de violência”, que emergiu no debate parlamentar brasileiro sobre
o projeto de lei contra castigos físicos e tratamento cruel e degradante e a
condição social do menino cujo nome batizou a lei aprovada no Brasil.
Em um segundo desdobramento, instigada pela distância entre o
objeto da lei e a causa da morte de Bernardo, retomarei alguns aspec-
tos de sua história, tal como foram apresentados pela mídia. Veremos
que Bernardo não era desconhecido dos agentes e das instituições do
sistema de proteção à infância de sua cidade. Bem pelo contrário. Na
última parte do texto, as dificuldades de intervenção identificadas na
trajetória de Bernardo serão relacionadas à figura “da criança típica das
Américas”4 presente desde os primórdios das políticas para a infância
na América Latina.
Para esta análise detenho-me ao terceiro registro de diferenciação
apontado por Lignier, Lomba e Renahy (2012): a identificação diferen-
cial que se refere a processos de definição, de classificação, de identifi-
cação distintiva das crianças ou grupos de crianças.5 Este eixo interessa
particularmente ao argumento que elaboro neste trabalho, pois propõe
que o reconhecimento público de diferenças entre crianças tem efeitos
potenciais sobre suas vidas e são especialmente visíveis quando foca-
mos identificações de ordem institucional. Nessa perspectiva analítica,
a “proteção à infância” e a própria noção de “violência contra a criança”
são tomadas como campos de pesquisa para o estudo de processos de
diferenciação social de crianças e jovens.

4
Los niños de las Américas é o título de uma publicação da Unicef.
5
Segundo os autores, outros dois registros de diferenciação seriam a diferenciação concreta, que
diz respeito a divergências quanto aos modos de tratamento das crianças e quanto aos seus
próprios comportamentos. A diferenciação percebida corresponde ao modo como as crianças
percebem suas diferenças e as de outras crianças.

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Violências e representações da infância
Em uma perspectiva histórico-cultural, a proibição legal de
qualquer forma de violência nas relações entre adultos e crianças pode
ser situada num longo processo de mudança nas sensibilidades, no
qual se observa a ampliação da categoria “violência contra a criança”
(Vigarello, 2005; Schultheis; Frauenfelde; Delay, 2007). Apesar da pre-
tensa universalização deste processo, sobretudo a partir da Conven-
ção sobre os direitos da criança (1989), acompanho Noiriel (2005) em
seu argumento sobre a força dos contextos nacionais (e regionais) nos
quais a noção de “violência contra a criança” é interpretada e as leis são
elaboradas. No Brasil, o percurso que associou a aprovação da “lei da
palmada” e o “caso Bernardo” deixa entrever a relevância da origem so-
cial como um marcador que opera múltiplas representações de infância
e expõe sensibilidades seletivas em relação à violência.
Em consonância com o que preconizam as abordagens relacionais
da infância (Pache Huber; De Suremain; Guillermet, 2016) considero
que os processos de diferenciação das crianças não se produzem unica-
mente na interação direta com elas, mas também entre (e em relação a)
adultos diversamente posicionados nas hierarquias sociais. No âmbito
das políticas de “proteção à infância” ou dos discursos sobre os “direitos
da criança”, por exemplo, a origem social pode compor representações
de infância nas quais as características da família são mais facilmente
percebidas como problemáticas para o desenvolvimento das crianças.
A interpretação dessas diferenciações coloca em evidência uma eco-
nomia moral da infância que, nos termos propostos por Fassin (2013),
cristaliza-se em torno da noção de criança vítima. Em relação à figura
da “criança vítima de violência” veremos a seguir como seu reconheci-
mento pode estar atravessado pela hierarquia de classe que tanto refor-
ça estigmas relacionados a famílias pobres quanto deixa escapar da ação
pública situações de violência familiar que se produzem em camadas
médias e altas.
Por outro lado, a grande comoção social e a cobertura midiática do
assassinato de Bernardo contrasta com “o véu de indiferença, compla-

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cência e cumplicidade” que cobre o vertiginoso crescimento dos índices
de homicídios de crianças e adolescentes no Brasil nos últimos 30 anos,
conforme denuncia o relatório Violência letal das crianças e adolescentes
do Brasil (Waiselfisz, 2015). Conforme dados de 2013 apresentados
neste relatório, com uma taxa de 4,3 homicídios por cem mil habitan-
tes, o Brasil é o terceiro país mais violento para crianças e adolescentes
de 10 a 14 anos em uma lista de 85 nações. Contabilizando somente
aqueles que tinham a mesma idade de Bernardo quando morreram, em
2013 foram assassinadas 23 crianças de 11 anos no país. Conforme o
mesmo relatório, diferente de Bernardo, as principais vítimas desses
homicídios são meninos pobres e negros, que vivem nas periferias e
em áreas metropolitanas das grandes cidades, sendo que o número de
homicídios de adolescentes negros é quase quatro vezes maior quando
comparado aos homicídios de jovens brancos. Também em contraste
com a violência familiar que vitimou Bernardo, os homicídios de crian-
ças e adolescentes no Brasil, na maioria das vezes, ocorrem no espaço
público e, frequentemente, envolvem policiais.

A “criança vítima de violência” nas audiências


públicas sobre a “lei da palmada”
O relatório da ONU que fundamenta a iniciativa global pela
erradicação de castigos físicos, tratamento cruel e degradante na educação
e no cuidado das crianças afirma que essas práticas atingiriam a quase
totalidade das crianças do planeta:

Conforme estudos provenientes de numerosos países pertencentes


a todas regiões do mundo, 80% a 98% das crianças sofrem castigos
corporais em casa, um terço ou mais sofrem castigos corporais seve-
ros infligidos com a ajuda de instrumentos (Nations Unies, 2006).

Perante o caráter generalizado das práticas que se quer coibir,


a atenção aos processos de diferenciação social pode ser um ângulo

45

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de visão produtivo para observar-se como a “criança onusiana” (De
Suremain; Bonnet, 2014) – definida exclusivamente em termos etários –
particulariza-se em contextos e debates culturais precisos. Foi esta par-
ticularização que elegi como foco para a escuta dos pronunciamentos
na Câmara dos Deputados e para a observação da presença de crianças
e adolescentes nas audiências públicas que discutiram o projeto de lei
n. 7672/10, popularmente conhecido como “lei da palmada”.6
A redação proposta para esta lei no Brasil segue o padrão sugerido
no âmbito internacional pelos organismos multilaterais e ONGs de
promoção de direitos humanos. Para além da categoria “maus tratos”,
já integrada às legislações alinhadas com a Convenção sobre os direi-
tos da criança de 1989, os países signatários são agora convocados a
especificar em lei a proibição de um repertório mais amplo de atos que
passam a ser formalmente reconhecidos como formas de violação de
direitos (Medaets; Ribeiro, 2016).
No caso brasileiro, o projeto de lei propôs a inclusão dos seguintes
artigos na legislação vigente, o Estatuto da criança e do adolescente (lei
8.069/90):

A criança e o adolescente têm o direito de serem educados e


cuidados pelos pais, pelos integrantes da família ampliada, pelos
responsáveis ou por qualquer pessoa encarregada de cuidar, tratar,
educar ou vigiar, sem o uso de castigo corporal ou de tratamento
cruel ou degradante como formas de correção, disciplina, educação,
ou qualquer outro pretexto.
Parágrafo único. Para os efeitos desta Lei, considera-se: I – castigo
corporal: ação de natureza disciplinar ou punitiva com o uso da
força física que resulte em dor ou lesão à criança ou adolescente.
II – tratamento cruel ou degradante: conduta que humilhe, ameace
gravemente ou ridicularize a criança ou o adolescente.

6
Foi realizada a transcrição de aproximadamente vinte e duas horas de gravações referentes
a todas as audiências públicas realizadas por esta Comissão. Os arquivos de áudio e todos os
documentos relativos à tramitação deste projeto de lei estão disponíveis no site da Câmara dos
deputados: camara.gov.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=483933.

46

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Como em outros países, também no Brasil a discussão sobre esta
proposta de interdição legal de castigos foi bastante controvertida.
Conforme pesquisas de opinião divulgadas pela imprensa por ocasião
do debate na Câmara de deputados, mais de 50% dos brasileiros se-
riam contrários à sua aprovação (Ribeiro, 2017). Esta oposição rechaça
sobretudo o que é percebido como forma de intromissão do estado na
vida familiar, e de empoderamento das crianças e jovens diante dos
pais e outras figuras de autoridade. Como demonstra Delanoë (2015),
nos debates sobre quais práticas deveriam ser proibidas são acionadas
teorias religiosas e profanas que atribuem um valor educativo ao sofri-
mento. A partir de Héritier (1996) podemos dizer que as perspectivas
críticas a estas teorias confrontam o princípio de anterioridade, segundo
o qual os pais nascem antes dos filhos e devem nutri-los e conformá-
los. Para esta tarefa, a violência (ou a não violência) sendo expressão de
um estado determinado das relações de poder poderia intervir com a
finalidade de “tornar conforme”. De um modo geral, como propõem
diferentes analistas (Damon, 2005; Segalen, 2010, entre outros), os de-
bates em torno dos modos de tratamento das crianças ilustram mu-
tações relativas à democratização das relações familiares e o desafio
colocado aos pais (ou tutores) na fase atual dos direitos da criança.
Conforme sintetiza Segalen, este desafio consistiria em conjugar a si-
metria preconizada por uma educação sem qualquer forma de violência
e a responsabilidade educativa que subjaz a relação tutelar. O grande
incômodo causado por esta proposta de mudança legal estaria relacio-
nado ao fato dela deslegitimar formas de punição (tal como a palma-
da) como prerrogativa simbólica da relação parental. A reivindicação
deste recurso (utilizado ou não) parece figurar como o último bastião
da autoridade parental diante do progressivo reconhecimento de crian-
ças como cidadãos plenos. Apesar do caráter controverso da proposta,
como veremos a seguir, no Brasil o debate na Câmara de deputados, em
função da composição da comissão encarregada de discuti-lo, caracteri-
zou-se pelo majoritário apoio à sua aprovação.
Entre agosto e dezembro de 2011 foram realizadas oito reuniões
de audiência pública promovidas por uma comissão formada por 25

47

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parlamentares e encarregada de emitir parecer sobre o projeto de lei.
Desses debates participaram 22 convidados externos: representantes
de conselhos nacionais de saúde, de justiça, de assistência social e de
direitos da criança e do adolescente, representantes da sociedade civil
ligados a organizações de proteção à infância, representantes do gover-
no e especialistas da infância (dois médicos pediatras, um membro da
Unesco e um juiz da infância). Para a última sessão de audiência pú-
blica, intitulada “fatos e versões”, sete adolescentes participantes junto
a projetos sociais e um jovem adulto maltratado na infância também
foram convidados a dar seus depoimentos. Com exceção de um juiz da
infância que problematizou a eficácia de uma lei desta natureza, todos
os demais convidados pronunciaram-se a favor da aprovação do projeto
de lei em questão. Enfatizou-se sobretudo a necessidade de adequação
da legislação brasileira às diretivas da ONU, posto que o país é signatá-
rio da Convenção sobre os direitos da criança.
Quanto ao objeto do projeto de lei, os discursos em seu apoio pau-
taram-se por associações entre violência familiar e as altíssimas taxas
de violência registradas na sociedade brasileira. Nessa perspectiva, a
aprovação do projeto de lei foi defendida como medida de pacificação
de uma sociedade que seria violenta porque “a família é violenta”. Um
argumento recorrente é o de que o projeto de lei seria um instrumen-
to para combater a reprodução intergeracional da violência no Brasil,
considerada como um fator explicativo da violência na escola e na so-
ciedade de modo geral. O discurso de uma deputada é ilustrativo deste
raciocínio: “Nossas famílias são extremamente violentas e ainda nos
surpreendemos que o Brasil tenha taxas de violência tão altas”. A escuta
atenta desses discursos coloca em evidência que não é de qualquer fa-
mília que se está falando. Afirma-se de forma categórica, por exemplo,
que a violência doméstica seria o principal motivo que leva crianças e
adolescentes para as ruas e instituições de abrigamento. Em relação
aos danos causados pela violência na dita “arquitetura cerebral” dessas
crianças, estudos neurocientíficos são apresentados de forma simplifi-
cada e determinista. Um dos principais entusiastas da aprovação da lei,
deputado e médico neurocientista, afirma:

48

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O impacto do estresse prolongado provoca a produção excessiva
principalmente do hormônio chamado cortisol, e diminui o volume
das estruturas cerebrais. Isso é irreversível e explica, por exemplo, por
que os meninos de rua são tão impulsivos. Essas alterações provo-
cam nesses meninos alterações no controle límbico. [...] Pergunte
para um menino de rua por que ele fugiu de casa, e ele dirá que foi
violentado em casa, aí vai pra rua, sofre mais violência, vai pro abrigo
é mais violentado [...] (Reunião com especialistas em 25 out. 2011).

No entanto, os dados sobre crianças e adolescentes vivendo na


rua no Brasil divulgados pelo “Observatório nacional criança não é de
rua” apresentam um quadro bem mais complexo: segundo esta fonte,
apesar de “vínculos familiares fragilizados” serem identificados como
motivo da saída de casa de 40,44% das crianças e adolescentes, a vio-
lência doméstica faria parte de apenas 8,09% das situações, enquanto
a condição de miséria caracterizaria 41,54% das famílias com crian-
ças ou adolescentes vivendo nas ruas.7 Portanto, enquanto os discursos
que acompanhamos na Câmara de deputados situam o problema da
violência sobretudo em famílias pobres, os dados sugerem que a ida
para a rua esteja motivada principalmente pela condição econômica da
família. Desta perspectiva, os “vínculos familiares fragilizados” estariam
na maioria dos casos relacionados a uma condição de vida precária e
não necessariamente à violência doméstica que corresponderia a uma
minoria de situações. De qualquer forma, na medida em que não exis-
tem dados nacionais sistematizados sobre violência contra a criança
no Brasil, não é possível afirmar a prevalência da punição corporal em
famílias pobres. Os dados oficiais sobre violência têm como fontes as
instituições do sistema de saúde e de segurança pública e correspon-
dem a registros de morbimortalidade. Portanto, são restritos a casos
graves que escapam inclusive ao escopo da lei que está sendo proposta.
Os demais dados a que se tem acesso referem-se a denúncias rece-
bidas por meio de um número nacional e gratuito destinado a este fim.

7
Disponível em: <https://www.observatorionacional.net.br/dadosExistentes.aspx>.

49

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Conforme o último levantamento divulgado por esta fonte sabe-se que
em 2016 foram recebidas em média 208 denúncias por dia referentes
a crianças e adolescentes, mas não se sabe o percentual de denúncias
confirmadas e nem sua composição conforme a classe social.8 Não se
conta tampouco com pesquisas nacionais comparativas com este recor-
te, sendo que os estudos recentes e mais abrangentes foram realizados
somente em regiões de periferia.9
Contrariando este padrão e visando estabelecer comparações,
Weber et al. (2004) apresentam um estudo sobre práticas de punição
corporal a partir de relatos de crianças de escolas públicas e privadas
de uma capital brasileira selecionada a partir do critério “nível
socioeconômico” (baixo, médio e alto). No entanto, logo na apresentação
dos resultados as autoras observam:

[...] a análise dos dados mostrou pouca diferença em relação à idade


e ao nível socioeconômico dos participantes (definido pelas escolas
que frequentavam) e, por este motivo, os dados serão apresentados
para o conjunto de participantes.

Relacionado a esta afirmação está o dado de que a escolaridade de


pais e mães (um indicador fortemente associado à classe social no Brasil)
também não influenciou na aplicação da punição corporal: “tanto pais
e mães que têm nível superior quanto aqueles que têm escolaridade
mínima utilizavam esta prática” (Weber et al., 2004). Portanto, os dados
disponíveis são insuficientes para afirmar que o recurso a palmadas e
outras formas de punição ditas educativas sejam práticas restritas
a famílias de baixa renda no Brasil. Além disso, se considerarmos a

8
Disponível em: <http://www.sdh.gov.br/disque100/balancos-e-denuncias/balanco-disque-
100-2016-apresentacao-completa/>.
9
Por exemplo: Karina Lira e Natalie Hanna em O que dizem as crianças?: uma consulta sobre
violência a partir da percepção de crianças e adolescentes [on line], Rio de Janeiro, Instituto
Igarapé, 2016. Nesta pesquisa de caráter consultivo sobre percepções de violência por crianças e
adolescentes residentes em regiões de baixa renda de 12 cidades brasileiras apresenta-se o dado
de que 89% das crianças e dos adolescentes entrevistados afirmaram sentirem-se seguros em
casa, e apenas 40% se sentem protegidos pela polícia.

50

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pobreza como fator de risco para negligência e maus tratos (Weber
et al., 2002), os discursos pelo enfrentamento da violência contra a
criança no país não poderiam ignorar o fato que 40% da população
brasileira até 14 anos vive em domicílio de baixa renda, e um terço
desses em condição de extrema pobreza (Fundação Abrinq, 2017).
Nos discursos proferidos nas audiências públicas aqui conside-
radas, a “criança vítima de violência” ganha visibilidade por meio de
algumas características de diferenciação distintiva: ela é uma “criança
de rua” ou residente em favelas, está entre aquelas que participam de
projetos sociais e sua família é usuária de serviços públicos de saúde e/
ou beneficiária de programas sociais do governo. Nesses discursos, de
forma recorrente, junto com o “menino de rua” são as “crianças pobres
das favelas” que figuram na representação de infância a ser protegida
pela lei em discussão: “as crianças que dormem ouvindo tiroteios são
traumatizadas e depois ninguém sabe por que não conseguem pres-
tar atenção na aula de matemática” (reunião com especialistas em 25
out. 2011). Uma referência indireta a crianças e famílias pobres é feita,
ainda, quando as ações de prevenção à violência, propostas como fun-
damentais para que a nova lei não seja inócua, focalizam sobretudo os
serviços públicos e os programas sociais do governo federal. Sugere-se,
por exemplo, que o tema da “educação sem violência” seja incluído no
pré-natal do serviço público de saúde e em outros programas voltados
às famílias de baixa renda. Em todas as audiências, apenas uma re-
presentante do governo perguntava-se como incidir sobre famílias das
elites brasileiras que não procuram os equipamentos públicos.
Finalmente, os adolescentes convidados a participar de reuniões
da comissão, na condição de representantes das crianças e adolescentes
brasileiros foram todos recrutados junto a programas sociais. Para a
última reunião de debates foram convidados sete jovens, três meninos
e quatro meninas, de treze a dezoito anos. Seus pronunciamentos são
carregados de referências à origem pobre, mas, enquanto a maioria dos
discursos nesta comissão colocou em relevo a violência familiar, esses
jovens enfatizam tratamentos humilhantes ocorridos em escolas, bem
como as condições precárias dessas instituições. Uma adolescente, por

51

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exemplo, chama atenção para o fato dos professores irem à mídia de-
nunciar que estão sendo agredidos por alunos e pergunta:

[...] porque ninguém se pergunta por que isso está acontecendo?


Vocês já repararam na falta de estrutura das escolas? As escolas
públicas são horríveis, ficamos muito estressados em ter que assistir
aulas em uma sala calorenta, [sentados] em cadeira de plástico [...].

Na sessão final da comissão especial, em 14 de dezembro de 2011,


quando o relatório conclusivo foi votado, deputados religiosos que não
tinham se manifestado durante as reuniões de discussão apresentaram
sua oposição ao objeto da lei por considerá-lo uma intromissão inacei-
tável na vida familiar e uma interferência nos “direitos individuais dos
pais”. Em relação ao posicionamento desses deputados nesta discussão,
cabe destacar que desde o final da década de 1990 observa-se no Brasil
o aumento da participação de evangélicos pentecostais na vida política
do país. Desde então, a composição de uma bancada (a chamada “ban-
cada evangélica”) integrada por deputados e senadores de diferentes
partidos políticos, e influente na definição de certas votações representa
uma transformação marcante no quadro político nacional (Duarte et
al., 2009). Criada em 2003, a Frente parlamentar evangélica atua orga-
nizadamente com a finalidade de influenciar na elaboração, tramitação,
aprovação e recusa de projetos de lei.10
Como estratégia de atuação, os deputados desta frente interferem
no processo legislativo mediante a participação nas comissões temá-
ticas que discutem os projetos de lei em tramitação, e têm influencia-
do discussões que envolvem temas moralmente controversos como o
aborto, a eutanásia, o casamento homossexual, a homofobia e a maio-
ridade penal (Almeida, 2016). Cabe chamar atenção para o fato de que

10
Frente parlamentar é uma associação civil, de caráter não governamental, com personalidade
jurídica, estatuto próprio e regimento interno que agrega indivíduos em defesa de projetos
específicos, de uma determinada área. O número de parlamentares que integram esta frente
vem aumentando, sendo que a última legislatura iniciou com 198 dos 513 deputados federais
e 4 dos 81 senadores. Disponível em: <https://www.camara.leg.br/internet/deputado/frente-
Detalhe.asp?id=53658>.

52

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nessas discussões a defesa de valores religiosos pela bancada evangélica
normalmente coloca-se em tensão com as liberdades individuais. No
entanto, no caso do projeto de lei relativo à proibição dos castigos físi-
cos, é em nome do “direito individual” dos pais em educar os filhos que
esta bancada irá atuar no sentido de obstaculizar sua tramitação após
ter sido aprovado na comissão especial. Na votação final do projeto de
lei, deputados da bancada evangélica, referindo-se a trechos bíblicos,
opunham-se ao uso da palavra castigo. Eles preferiam que o texto da lei
mencionasse a proibição de agressão corporal para que ficasse claro que a
lei não impede os pais de corrigir e disciplinar as crianças. Apesar desta
oposição, o parecer favorável ao projeto de lei foi votado e aprovado
na comissão especial com pequenas modificações. No entanto, com o
argumento de que o projeto de lei é de conteúdo polêmico e mereceria
ser mais debatido, esses parlamentares obtiveram apoio de deputados
externos à bancada evangélica, e durante dois anos e meio, mediante
obstruções de ordem burocrática, impediram que o projeto de lei fosse
encaminhado ao Senado federal. Somente em 2014, a exemplo do que
se observa em matéria de direito penal (Pires, 2012), quando a reper-
cussão de um fato impulsiona a criação de novos tipos penais (nem
sempre adequados ao que se pretende solucionar), a comoção causada
pelo assassinato de Bernardo Boldrini serviu à desobstrução do proces-
so e influenciou sua rápida aprovação no Senado federal. A lei passou
a chamar-se lei menino Bernardo em alusão ao “tratamento cruel e
degradante” ao qual esta criança vinha sendo submetida.11

O que se sabe sobre Bernardo


Em abril de 2014, Bernardo permaneceu desaparecido durante
dois dias e logo seu corpo foi encontrado a cerca de 80 km da cida-

11
Redação final sancionada pela Presidência da República em 24 jun. 2014. Disponível em:
<https://www. planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2011-2014/2014/Lei/L13010.htm>.

53

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de onde residia.12 A investigação policial apontou sua madrasta e uma
amiga como autoras do homicídio. Elas teriam agido com a conivência
do pai do menino. Foi mediante a dose letal de uma droga que ambas
teriam provocado a morte de Bernardo e enterrado o corpo com o au-
xílio de um homem.13
A reconstituição jornalística da vida do menino antes do crime
deixa claro que “o caso Bernardo” era do conhecimento de profissionais
de diferentes instituições, da escola ao sistema de justiça. Em novem-
bro de 2013, numa reunião de representantes de órgãos de proteção à
infância do município, uma assistente social teria manifestado preo-
cupação com o que chamou de abandono afetivo do menino: segun-
do ela, comentava-se na cidade que “o filho do médico” estava com
problemas. À promotora de justiça, esta assistente social perguntava
se o Ministério Público não pretendia intervir “na vida íntima desta
família de classe alta”. Neste mesmo mês, o Conselho Tutelar informou
à promotoria que o menino era vítima de negligência familiar e preci-
sava de acompanhamento.14 A escola também se manifestou, relatando
problemas desta ordem além da dificuldade de contato com a família.
Em dezembro, o Ministério Público recebeu relatório do serviço de as-
sistência social que informava que Bernardo era alimentado por outra
família, perambulava pelas ruas e residências de conhecidos, passava os
finais de semana fora de casa sem ser procurado pelo pai, fazia uso de
medicamentos controlados sem a supervisão da família, vestia-se de
forma inapropriada em dias muito frios, tinha problemas de higiene e
sérias desavenças com a madrasta. Em janeiro de 2014, Bernardo foi

12
Desde a morte de sua mãe, em 2010, o menino vivia com o pai e a madrasta. Sua mãe teria
se suicidado e foi encontrada morta na clínica do marido e pai de Bernardo, um conhecido
médico da região. A partir do assassinato do menino, a família materna contestou a hipótese
do suicídio da mãe e foi reaberta a investigação sobre a causa de sua morte.
13
Os quatro acusados permanecem presos aguardando julgamento. Disponível em: <https://
www. g1.globo.com/rs/rio-grande-do-sul/caso-bernardo-boldrini/>.
14
O Conselho Tutelar é a instituição encarregada de zelar pela garantia dos direitos de crianças
e adolescentes definidos no Estatuto da Criança e do Adolescente (lei 8.069/90). Existente
em todos os municípios brasileiros, os conselhos tutelares recebem denúncias e encaminham e
aplicam medidas relativas a violações de direitos.

54

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por conta própria ao Centro de defesa dos direitos da criança e do ado-
lescente queixar-se da madrasta e do pai e dizer que gostaria de morar
com outra família. Apesar deste depoimento não ter sido gravado, a
promotora conta que o relato de Bernardo foi contundente ao afirmar
estar com medo, cansado e não querer voltar para casa em razão das
brigas e dos maus tratos que recebia da madrasta com a conivência do
pai. A promotora determinou uma medida de proteção e solicitou ao
juiz que a guarda fosse transferida para a avó materna que a solicitava.
Em fevereiro de 2014, em audiência com o juiz da infância e da juven-
tude, o pai de Bernardo disse não querer entregá-lo à avó materna, nem
à outra família e pediu uma chance de reaproximação do filho. O juiz
acatou o pedido, tratou o caso como uma demanda de reconciliação e
marcou nova audiência e avaliação em 90 dias.
Nas reportagens que se seguiram ao acontecimento interroga-se
incansavelmente sobre as falhas na rede de proteção e/ou na atuação
dos profissionais que poderiam ter evitado a tragédia.15 Menciona-se
a falta de estrutura das instituições, a falta de profissionais especiali-
zados, as falhas da própria legislação e a dificuldade representada pela
posição social da família. Recorrentemente nos depoimentos trazidos
nas reportagens afirma-se que as pessoas “não queriam se intrometer
nessa família”. Destaca-se o embaraço causado pelas profissões dos en-
volvidos no crime: o pai, médico; a madrasta, enfermeira; e a amiga da
madrasta, assistente social: “A gente analisa que essas pessoas estão ali
para salvar vidas, não para destruir”. Apesar da situação de Bernardo
ser de conhecimento público e de medidas terem sido tomadas com a
intenção de protegê-lo, fica evidente que a profunda diferença de sua
família em relação àquelas que tradicionalmente transitam pelas insti-
tuições do sistema de proteção pode ter criado importantes obstáculos
para a intervenção.

15
Disponível em: <https://www. zh.clicrbs.com.br/rs/noticias/noticia/2014/04/especialistas-
apontam-falhas-no-sistema-de-protecao-a-infancia-no-caso-bernardo-4477179.html>;
<https://www.zh.clicrbs.com.br/rs/noticias/noticia/2014/09/as-falhas-na-rede-de-protecao-
que-nao-salvou-bernardo-boldrini-4608042.html>.

55

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Na medida em que as normas legais não são autoaplicáveis (Falk-
Moore, 1978), sua colocação em prática depende de diferentes fatores.
Referindo-se especificamente a medidas de proteção à infância, Sheriff
(2000) destaca o fato deste campo caracterizar-se por envolver situa-
ções de vida particulares avaliadas por especialistas que tomam decisões
a partir de suas subjetividades. A autora dá o exemplo de um trabalha-
dor social que ao ser chamado a decidir se a segurança de uma criança
está ameaçada agirá conforme as leis, as normas de prática e de gestão,
aos valores ao qual adere, “mas que também poderá agir conforme os
preconceitos e o senso comum não explícito e próprio à sua geração ou
à classe social com a qual ele se identifica” (Sheriff, 2000, p. 98, tradução
da autora).
No que diz respeito à situação de Bernardo, a posição social do pai
parece ter tornado mais complexa a assimetria que tende a caracterizar
o encontro entre pais e profissionais da proteção à infância. Se normal-
mente nesses contextos, os pais estão numa condição de inferiorida-
de perante os profissionais e desqualificados quanto à parentalidade,
a profissão do pai de Bernardo e também da madrasta perturba esta
ordem de posições de classe e de prestígio. Não deixa de ser curioso
observar que estas profissões da área da saúde e do serviço social estão
na origem da constituição de um campo de intervenção em torno da
infância na América Latina. No âmbito deste campo, a posição so-
cial de Bernardo e de sua família o afasta da representação de crian-
ça que precisa ser protegida. Encontramos na bibliografia referência
frequente ao fato de que a linguagem dos direitos da criança tende
a deixar sob o silêncio as condições de vida da maioria das famílias
cujas crianças passam por instituições do sistema de proteção. Nessa
perspectiva, encontramos críticas a processos de individualização “da
criança” em famílias que também poderiam ser vistas como vítimas de
violências múltiplas. A trajetória de Bernardo sugere a hipótese de que
esta tendência de individualização não siga a mesma dinâmica quando
se trata de crianças de camadas médias e altas. Dito de outro modo, a
individualização da criança como sujeito de direitos, perante seus pais

56

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ou responsáveis, seria favorecida por certa homogeneidade social das
famílias tradicionalmente alvo de intervenção. Nesse sentido, a origem
social das crianças apresenta-se como um elemento de diferenciação
fundamental para a própria atuação dos agentes. A seguir, por meio da
figura emblemática da “criança das Américas” viso situar essa diferença,
não na incapacidade ou insensibilidade de profissionais que cruzaram
o caminho de Bernardo, mas numa história mais longa da qual a “sua
infância” não faz parte.

A figura da criança “típica das américas”

O Instituto Interamericano del Niño, la Niña y Adolescentes


(INN), fundado em 1927 e localizado em Montevideo representa um
marco na constituição de um setor destinado à proteção da infância
no continente americano (Rojas Novoa, 2012; 2013). Recentemente,
em visita à sua biblioteca deparei-me com a Galeria de crianças típicas
da América, na qual alguns quadros permanecem lá expostos e outros
encontrei reproduzidos no boletim do INN, em edições do final da
década de 1970. Nestes quadros, a dita “criança típica” ganha rostos que
se assemelham quanto a algumas características: são principalmente
meninos, de pele morena, cabelos negros e algumas crianças são indíge-
nas e retratadas em paisagens rurais. Na capa da publicação em que os
quadros foram reproduzidos temos o desenho de um menino sentado
sobre o mapa da América Latina e olhando na direção da Europa. Re-
corro aqui a esta figura da “criança típica da América” para relacioná-la
ao atual momento dos direitos da criança e ter presente que as atuais
instituições e práticas apoiadas na missão de proteção à infância têm
suas trajetórias historicamente assentadas na assistência e no controle
social dos setores populares.

57

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Boletins do Instituto interamericano del niño, 1977-197816

Em relação aos países da América Latina (mas não exclusivamen-


te nesta região) os estudos socioantropológicos sobre políticas para a
infância observam a relevância dos marcadores sociais de classe e gê-
nero tanto na delimitação do público-alvo das políticas – mulheres/
mães e crianças de camadas populares – quanto dos protagonistas da
constituição deste campo de intervenção social (Guy, 1998a; 1998b).
Nas primeiras décadas do século XX, iniciativas como a dos congres-
sos panamericanos del niño e a própria criação do INN tiveram como
principais protagonistas pessoas oriundas das camadas médias: ini-
cialmente mulheres feministas preocupadas com o apoio às mulheres
pobres frente à maternidade e, posteriormente, médicos, cujo ideal era
o desenvolvimento de uma geração de cidadãos saudáveis capazes de
contribuir para o progresso da região. A partir da análise do siste-
ma interamericano de proteção à infância, García Méndez e Bellof
(2004) identificam na associação entre a figura da “criança de rua” e a
“criança perigosa”, assim como no estereótipo da “criança abandonada”
como um potencial “delinquente”, parte de uma problemática comum
latino-americana.
Os quadros das “crianças típicas” ilustram a missão do INN num
período em que o modelo de intervenção, no âmbito da proteção à in-

16
Estes quadros retratam crianças de El Salvador, Panamá, Chile, Equador, Nicarágua, Peru e
Guatemala. Em relação à entrega do quadro do menino do Peru lê-se no boletim do INN que ela
ocorreu numa “cerimônia solene e emotiva” em comemoração aos 50 anos do Instituto.

58

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fância no continente, está voltado para os ideais de modernização e de-
senvolvimento das nações. Progressivamente, a partir do final dos anos
1970, como analisa Schuch: “A ênfase numa infância definida como
acima de pertencimentos sociais passou a tornar-se cada vez mais hege-
mônica no cenário internacional” (2009, p. 123). No entanto, a publica-
ção Los niños de las Américas do início dos anos 1990, bem como docu-
mentos e campanhas recentes da Unicef e do Banco Interamericano de
Desenvolvimento na América Latina (Unicef, 2015) evidenciam que
esta designação continua vivamente associada à infância pobre latino-
americana, delimitando, em termos de pertencimento social, a infância
a ser protegida.17 Nesse sentido, no âmbito das práticas de intervenção,
a noção abstrata de “infância universal” parece não ter sido capaz de
deslocar simbólica e significativamente a associação entre “violação de
direitos” e “infância pobre”. Após os anos 1990, a bibliografia antropo-
lógica que aborda tecnologias de governo da infância e da família na
América Latina permite afirmar que este setor da “proteção à infância”
segue caracterizando-se como um espaço discursivo e de práticas dire-
cionadas à infância pobre (Fonseca; Cardarello, 1999; Fonseca; Schuch,
2009; Villalta, 2010; Cosse et al., 2011; Alvarado; Llobet, 2013).
Atualmente, em consonância com a campanha internacional
pela explicitação legal da proibição de castigos físicos, tratamento cruel
e degradante promovida no âmbito do sistema interamericano, o
congresso pan-americano de niñez y adolescencia, ocorrido no Brasil
em 2014, teve como lema: Niñez y adolescencia: construyendo ambientes de
paz. Na conferência magistral que fez alusão aos 25 anos da Convenção
sobre os direitos da criança, Marta Santos Pais, representante especial
da ONU, declarou:

Eu gostaria de expressar meu reconhecimento aos Estados


membros da OEA por escolherem a prevenção e a eliminação de
todas as formas de violência contra a infância como tema central

17
Disponível em: </blogs.iadb.org/desarrollo-infantil/2013/01/30/llos-ninos-de-las-americas/>;
<vimeo.com/25769041>; <unicef.org/brazil/pt/overview_9536.html>.

59

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deste foro regional. Queria também fazer uma convocação aos
Estados-membros deste Congresso pan-americano para que a
proteção da infância contra todas as formas de violência continue
sendo considerada uma clara prioridade no projeto da nova agenda
regional de infância.18

Conforme pretendo ter demonstrado, no Brasil as manifestações


por ocasião das audiências públicas relativas ao projeto de lei sobre a
interdição legal de castigos físicos indicaram que a condição de pobreza
permanece como uma característica que de fato delimita o espectro de
atuação das instituições e dos agentes de proteção à infância, apesar de
sua definição universalista. Ao interrogar o lugar da origem social nas
representações acerca de quem são as “crianças vítimas de violência”, a
análise trazida neste texto sugere que este marcador de distinção per-
manece potencializando a estigmatização de famílias pobres percebidas
como lugar de risco para as crianças. Conforme Nunes (2011), essa asso-
ciação sedimentou-se desde os primeiros congressos pan-americanos del
niño. Como outra face da moeda, a história de Bernardo sugere que esta
diferenciação também pode ser um obstáculo à legibilidade de determi-
nadas situações vividas por crianças de camadas médias e altas, por meio
do léxico da violência ou da violação de direitos. Ainda que a atribuição
de seu nome à lei possa sinalizar o reconhecimento de que a “violência
contra a criança” não se restringe às famílias pobres, o combate a este
estereótipo demandaria também, por exemplo, que as ONGs locais e as
agências internacionais de garantia de direitos no continente ampliassem
o escopo de suas atuações para além dos contextos de pobreza.

Considerações finais
Neste artigo abordei diversas representações da infância no âmbi-
to de uma produção legislativa que visa à estrita interdição da violência

18
Disponível em: <http://xxicongresopanamericano.org>.

60

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contra crianças. Em que pese o caráter pretensamente universal da ca-
tegoria “infância”, coloquei em relevo a noção de diferenciação social
e, especialmente, a origem social e familiar como uma variável funda-
mental de identificação distintiva das crianças em relação às situações
de maus tratos. A dissonância entre as representações acerca da “criança
vítima de violência” que emergiu durante os debates acerca da “lei da
palmada” na Câmara dos deputados no Brasil, e o nome atribuído à lei
quando de sua aprovação, foi o ponto de partida para esta análise em
perspectiva. Por ocasião dos pronunciamentos sobre a “lei da palmada”,
vimos que as referências à “criança a ser protegida” indicam a persistên-
cia da figura de uma criança que vive em condição de pobreza. Assim,
a “criança de rua” ou “moradora da favela” seria antes de tudo vítima
de uma família violenta. Dito de outro modo, a criança cuja condição
socioeconômica da família a coloca fora do espectro de atuação da as-
sistência social seria também uma criança que não transita pelas ins-
tituições diretamente encarregadas da “proteção à infância”. A história
de Bernardo deixa entrever que essa diferenciação não resulta exclusi-
vamente de uma suposta invisibilidade. Ou seja, do fato de crianças de
camadas médias e altas serem menos frequentemente usuárias de ser-
viços públicos, por exemplo. Bernardo perambulava pelas ruas, andava
de casa em casa, dirigiu-se diretamente ao judiciário para pedir ajuda
e, ainda assim, a ação de diferentes instituições foi bastante hesitante.
Buscando interpretar a dificuldade dos agentes em caracterizar sua
condição de vida como violadora de direitos retomei a figura da “crian-
ça típica” que desde os primórdios do campo da proteção à infância
estabelece uma genérica associação entre a noção de “infância latino-
americana” e problema social. Completamente às avessas, o pressuposto
cultural que situa a “criança vítima de violência” em famílias pobres,
aliado ao poder associado à profissão do pai de Bernardo teria dificul-
tado a escuta de suas demandas de ajuda. No entanto, paradoxalmente,
a condição de classe que dificultou a proteção de Bernardo também
parece ter ampliado a repercussão e comoção social com sua ocorrên-
cia. Afirmo isso em alusão à extrema gravidade das taxas de homicídio
de crianças e adolescentes referidas anteriormente e considerada pela

61

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Unicef como a face mais trágica das violações de direitos que afetam
meninos e meninas no Brasil.19 Diante delas, a atribuição do nome de
Bernardo à lei que proíbe castigos físicos, tratamento cruel e degradante
pode ser interpretada à luz da noção de diferenciação social. Se, por um
lado, a reconstituição de sua trajetória permite entender a nominação
da lei como um reconhecimento tardio dos maus tratos por ele sofridos
na família, por outro sua característica em termos de raça/cor e classe
social o distanciam radicalmente do perfil das crianças e dos adolescen-
tes vítimas de homicídio no Brasil.
Finalmente, a análise apresentada neste texto corrobora o argu-
mento de Lignier, Lomba e Renahy (2012) acerca da relevância da
abordagem da diferenciação social de crianças. O estranhamento cau-
sado pela nominação da lei aqui abordada mostrou-se produtivo para
demonstrar a permanência de representações que, ao associarem vio-
lência e famílias pobres, tanto reforçam a estigmatização desta origem
social quanto podem obstaculizar a legibilidade de determinadas con-
dições de vida de crianças de camadas médias e altas em termos de vio-
lação de direitos. De forma dramática, a história de Bernardo confirma
que o reconhecimento público de diferenças entre crianças tem efeitos
potenciais sobre suas vidas. Perante às trágicas estatísticas de homicí-
dio de crianças e jovens no Brasil, a homenagem que esta nominação
representa sugere que a identificação diferencial de crianças ou grupos
de crianças tem efeitos potenciais também sobre suas mortes.
Em que pese não contarmos com estudos que avaliem os efei-
tos da aprovação desta lei na sociedade brasileira, pode-se esperar, a
exemplo de outras legislações que afirmam e ampliam o espectro dos
direitos humanos (Fassin; Bourdelais, 2005), que a interdição legal de
castigos físicos cumpra sobretudo um papel pedagógico de mudança de
sensibilidades. No entanto, conforme alerta Segato (2006), a possibili-
dade de que o discurso legal inaugure novas moralidades e desenvolva
sensibilidades éticas desconhecidas depende de sua divulgação ativa da

19
Disponível em: <unicef.org/brazil/pt/activities.html>; <unicef.org/brazil/pt/activities_
31705.htm>; <nacoesunidas.org/brasil-perde-um-adolescente-por-hora-24-por-dia-alerta- chefe-
do-unicef-no-pais/>.

62

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aliança entre a lei e a publicidade. Do contrário, é previsível que a nova
lei somente seja lembrada no âmbito das agências de proteção à infân-
cia, por onde transitam quase exclusivamente famílias pobres.

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65

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Concepções de infância, vulnerabilidade e
ética na pesquisa com crianças
______________________________________________________
Renata Lopes Costa Prado
Marcos Cezar de Freitas

Aumentou significativamente a atenção dedicada à ética na pes-


quisa social de modo geral e, em particular, com as crianças (Morrow,
2008; Prado; Vicentim; Rosemberg, 2018). Trata-se de um fato a ser
celebrado, mas que também exige reconhecer que concepções de ética e
de infância variam enormemente entre os diferentes campos acadêmi-
cos, e mesmo dentro desses campos.
No contexto nacional há um debate sendo travado entre pesqui-
sadores das Ciências Biomédicas e das Ciências Humanas e Sociais
(CHS) a respeito da legislação sobre ética na pesquisa com seres huma-
nos (ver Fleischer; Schuch, 2010; Freitas; Prado, 2016; Sarti; Pereira;
Meinerz, 2017).
No âmbito desse debate, diferenças e nuanças nas concepções so-
bre ética em pesquisa no interior das CHS têm sido obnubiladas. Isso
decorre da busca em se evidenciar o contraste entre as duas grandes
áreas, que se esforçam por sublinhar uma diferenciação baseada na dis-
tância entre fazer pesquisa nos seres humanos e fazer pesquisa com os
seres humanos.
É compreensível que a dinâmica desse embate suscite a percepção
de que nessa diferenciação estão contidas “todas” as diferenças ou
aquelas que são consideradas “essenciais”.
No entanto, essa percepção obscurecesse a presença de outras pers-
pectivas no próprio campo das CHS, e disso resulta a necessidade de
revisitar algumas particularidades, que é o que faremos neste capítulo.

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O presente texto tem como objetivo olhar para diferenças e tam-
bém aproximações entre imagens da infância e concepções de ética
que fundamentam disciplinas das ciências sociais e humanas buscando
contribuir com o campo interdisciplinar dos estudos sociais da infância.
Esse campo de estudo apresenta revisões críticas das teorias so-
ciais operando um reenquadramento do lugar das crianças e propondo
conceituar infância com diferentes critérios.
Argumenta-se aqui que tanto o tema infância quanto o tema ética
exigem abordagem interdisciplinar, posto que ambos instigam simul-
taneamente reflexões da sociologia sobre relações de poder, da antro-
pologia sobre produção de sentido, da psicologia sobre autonomia e
heteronomia, da filosofia sobre responsabilidade e liberdade e assim por
diante, sendo possível agregar inúmeras perspectivas.
Infância e ética são dois temas amplos, polissêmicos e complexos,
e o reconhecimento disso nos impõe um texto de certa forma despre-
tensioso, que almeja contribuir com o debate iluminando alguns dos
aspectos que nos parecem importantes para a compreensão da ética na
pesquisa com crianças.
A ética na pesquisa com crianças diz respeito a questões que ex-
trapolam a interlocução entre proponentes de projetos e comitês de
avaliação. Trata-se de um tema-chave:

• para a compreensão das relações de poder que estão colocadas


entre adultos e crianças;
• para a reflexão sobre os processos de construção do saber cientí-
fico sobre a infância e as crianças;
• para a reflexão sobre a condição de crianças que uma vez consi-
deradas objeto de pesquisa “primordial” do campo da saúde têm
o lugar de sujeito sonegado na pesquisa social e educacional; e
• para subsidiar reflexões sobre “normas éticas” em pesquisa com
seres humanos em geral.

Discutiremos, para tanto, a ética na pesquisa, entendida como bus-


ca de uma vida boa para si e necessariamente para os outros também,

67

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em um contexto que o pesquisador se orienta pela criação de condi-
ções para que o diálogo possa ocorrer (Ricoeur, 1990; Baumam, 2011;
Oliveira, 2004; Christensen; Prout, 2002).
O pesquisador se esforça para estabelecer um diálogo com crian-
ças em seu trabalho de campo e se esforça também para, na escrita
do texto, mediar outros diálogos (de culturas majoritárias e infantis
que podem estar em confronto), colocando em perspectiva os sentidos
apresentados pelas crianças e aqueles provenientes da cultura adulta em
questão, os leitores do pesquisador.
Ora, para que o diálogo (relação de sentidos) seja possível nas pes-
quisas com crianças, há que se reconhecer o adultocentrismo predo-
minante nessa interação. Esse reconhecimento é condição sine qua non
para instaurar e garantir a imparcialidade do pesquisador, nos termos
definidos por Oliveira (2004), e que não se confunde com neutralidade.
Há que se levar em conta também que as crianças merecem ter re-
conhecidas suas semelhanças para conosco, ao mesmo tempo que pre-
servamos nossas diferenças (Christensen; Prout, 2002; Bauman, 2006).
Mais uma vez é importante afirmar o lugar imprescindível da abertura
ao outro, outro esse que se apresenta “na qualidade de pessoa com-
plexa”, que nem sempre se enquadra nas categorias sociais que pesam
sobre sua condição (Ferreira, 2010).
A ideia de vulnerabilidade tão imediatamente associada às crian-
ças pode se constituir como um obstáculo ao diálogo, à medida que a
necessária aproximação em relação a cenários concretos para se perce-
ber o que em cada cena torna (ou não) a criança vulnerável, pode dar
lugar à compreensão redutivamente orgânica de vulnerável.
Reduz-se, assim, o universo de observação e pesquisa aos expe-
dientes de consulta a repertórios clínicos que constroem o corpo sadio
e protegido sem aderência à situação concreta de cada criança. No en-
tanto, é justamente a particularidade de cada situação o mote que con-
duz o pesquisador a declinar dos cuidados éticos de sua aproximação.
Se ocorrem transferências de responsabilidade opinativa, da edu-
cação para a saúde, por exemplo, com base em pressupostos que natu-
ralizam a preeminência de um campo sobre outro, se instauram “vulne-

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rabilidades naturais” que interditam o reconhecimento da criança como
sujeito, subsumida que está à caracterização de suas “impossibilidades”.
Tendo elaborado tais considerações prévias, destacaremos tensões
e dilemas éticos que marcam pesquisas que se movem com o paradig-
ma da intervenção. Essas pesquisas têm, na contraface, no seu sentido
oposto, pesquisas que se esforçam por “falar de um lugar” marcado pelo
distanciamento em relação ao “objeto” de estudo.
Os dilemas entre conhecer e intervir muitas vezes são vivenciados
por pesquisadores quando situações específicas no campo de pesquisa
demandam ações para além da construção de conhecimento como, por
exemplo, nas situações em que o pesquisador testemunha violações de
direitos das crianças.

Ética e pesquisa
Ética é uma palavra intensamente utilizada, mas não é simples
defini-la. Tomamos aqui a definição proposta por Paul Ricoeur (1990,
p. 4), para quem a ética pode ser concebida como busca “de uma vida
consumada sob o signo das ações estimadas como boas”.
O autor entende ética a partir de três termos igualmente importan-
tes: “o desígnio de uma vida boa, com e para os outros, em instituições
justas” (1990, p. 5). Para tal desígnio, não há fundamento, não há causa
e nem razão que possa ser demonstrada ou logicamente deduzida: o
solo em que o self moral se enraíza é a incerteza (Bauman, 2011; 2006).
Concordamos com Bauman (2011) quando ele afirma que a socie-
dade sempre existiu por meio da autoconstituição, ainda que em outros
momentos isso não tenha nos parecido evidente:

Nas palavras de Castoriadis: embora tenha sempre sido autoconsti-


tuída, a sociedade, até agora, além disso, tem sido “auto-ocultada”.
E “auto-ocultação” consiste em negar ou dissimular a verdade da
autoconstituição, de modo que a sociedade pode enfrentar a preci-
pitação de sua própria autocriação como resultado de um comando
heterônomo ou da estranha ordem das coisas (Bauman, 2011, p. 33).

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No mundo medieval, por exemplo, fazer o certo significava confor-
mar-se à lei divina. Posteriormente, acreditou-se que os “sacerdotes da
ciência” substituiriam os sacerdotes de Deus. Não sendo mais a sociedade
tão eficiente em sua “auto-ocultação”, acabamos por reconhecer que:

[...] nenhuma autoridade é mais nobre e digna de confiança que


os próprios desejos e premonições dos homens para assegurar que
as ações que eles consideram dignas, justas e adequadas – morais –
sejam de fato corretas [...] (Bauman, 2011, p. 32).

Uma instrução heterônoma, se presume, é mais fácil de ser seguida


do que um projeto próprio não experimentado, que exige encarar
responsabilidades intransferíveis (Bauman, 2011). Se não há, e nem pode
haver, um código universal de leis que estabeleça o modo correto de agir
e se, além disso, não temos clareza do que seria uma vida boa com e para
os outros, então essa construção só pode se dar de maneira coletiva.
É nesse sentido que Oliveira relaciona ética com a preocupação
em “assegurar condições de possibilidade de estabelecimento de
acordos livremente negociados entre interlocutores” (2004, p. 22). A
humanidade, como afirma Bauman, fala em muitas vozes e:

A questão central de nossa era é como reforjar essa polifonia na


forma de uma harmonia e impedir que ela degenere em cacofonia.
Harmonia não é uniformidade; é sempre um jogo de uma série de
diferentes temas, cada uma mantendo a sua identidade distinta e
sustentando a melodia resultante por meio de, e graças a, tal iden-
tidade (2011, p. 383).

Referindo-se às pesquisas em antropologia, Oliveira (2004) vê o


pesquisador em uma condição mediadora entre as partes envolvidas e
insere aí, nessa mediação, o tema da ética em pesquisa. É o que também
defendemos no âmbito dos estudos sociais da infância.
É importante lembrar que as “partes envolvidas” extrapolam a
relação pesquisador e “pesquisado”, pois englobam também o grupo que
os “pesquisados” representam (nesse caso, as crianças – todas elas ou de

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culturas específicas, a depender da pesquisa) e o grupo para o qual o texto
se dirige (adultos, pesquisadores, especialistas, ou mesmo leigos).
O pesquisador se esforça, assim, para estabelecer um diálogo com
a(ou as) criança(s) em seu trabalho de campo e se esforça também para,
na escrita do texto, mediar outros diálogos, entre os sentidos apresen-
tados pelas crianças e aqueles provenientes da cultura adulta, seus e de
seus leitores. Larrosa (2002) também chama a atenção para a função
mediadora do pesquisador e sugere que a própria estrutura da com-
preensão tem sido definida como uma mediação entre o estranho e o
familiar, o mesmo e o outro.
No entanto, se, por um lado, as fronteiras semânticas entre culturas
são porosas e não intransponíveis (Oliveira, 2004, p. 24), por outro lado
é preciso lembrar que muitos são os obstáculos presentes nessa emprei-
tada e que, como afirma Larrosa (2002), palavras como convivência,
diálogo e pluralismo têm sido usadas de forma acrítica, tranquilizando
a nossa consciência e ajudando a sustentar uma imagem confortável de
nós mesmos.
O encontro com os outros tem potencialmente um efeito pertur-
bador e, talvez de forma a amenizar tal efeito, com frequência acabamos
por enquadrar esses outros, homogeneizando e quase reificando a sua
alteridade, em um movimento que acaba por definir a sua cultura como
uma “espécie de natureza”, “uma natureza, todavia, instituída” (Augé,
1999, p. 12). Recentemente, no entanto, temos visto a ampliação dos
estudos sobre a alteridade da infância (Gouveia, 2011) com a preocu-
pação voltada não apenas para conhecer mais as crianças e os modos
como interpretam o mundo, mas também para as dificuldades que nós,
enquanto adultos, apresentamos quando nos dispomos a conhecê-las e
a considerá-las. Ampliar o olhar e buscar incluir nas análises das pes-
quisas, além das falas e da observação das crianças, reflexões sobre a
escuta e a interpretação dos adultos nos parece fundamental, de modo
a reconhecer que falar do outro é também falar de si: somos não em
essência, mas nas relações.
Não à toa, Vigotski, por exemplo, afirmava que nos tornamos hu-
manos a partir dos outros; Freud defendia que ao falar do outro revela-
mos mais sobre nós; e, para Augé (1999), o indivíduo sempre se mostra

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como o “entrecruzamento necessário, mas variável de um conjunto de
relações” (p. 27).
Larrosa (2002), apoiando-se em Ricoeur, chega a afirmar que é o
crescimento da compreensão de si mesmo, enquanto intérprete, o que
se persegue ao buscar compreender o outro. Ele sugere que desse ponto
de vista a infância seja o outro em relação ao qual adultos constroem a
imagem que têm de si mesmos, e é preciso reconhecer que nessa cons-
trução buscamos nos sentir relativamente confortáveis.
Assim, crianças são apresentadas como vulneráveis perante a “ma-
turidade” e a “racionalidade” dos adultos. É esse o sentido da afirmação
de Larrosa: “o outro estrangeiro é que te permite sentir-se em casa”
(2002, p. 69). No entanto, o outro habita em nós e nos constitui, a alte-
ridade da infância, portanto, não é absoluta (Gouveia, 2011).
Crianças e adultos têm diferentes pontos de vista e podem seguir
diferentes lógicas; além disso, sofrem impactos distintos de fenôme-
nos como aumento de desemprego, diminuição da taxa de fecundidade,
crises econômicas ou desastres ambientais. Suas posições na estrutura
social são desiguais: um dos eixos de dominação das sociedades oci-
dentais contemporâneas é justamente a geração. Daí porque na relação
entre criança e pesquisador adulto pode haver, nas palavras de Bourdieu
(2005), uma “dissimetria redobrada”.
Com essa justificativa, Morrow (2008) argumenta que as pesqui-
sas sociais com crianças levantam as mesmas questões éticas e meto-
dológicas enfrentadas em pesquisas com outros grupos populacionais,
mas, além delas, levantam também questões que requerem considera-
ções específicas, principalmente por conta do modo como a infância é
construída e entendida em contextos culturais particulares.

Imagens da infância e de crianças: construções


das ciências em contextos adultocêntricos
Historicamente, as crianças e a(s) infância(s), com algumas exce-
ções, não se constituíram como tema de estudo das diferentes discipli-
nas que compõem as ciências sociais e humanas.

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Crianças eram vistas como um objeto de estudo menor ou como
tema e subtema de interesse apenas para os estudos na psicologia ou
nas ciências da saúde e sobre desenvolvimento humano; em outras pa-
lavras, sobre como crianças tornam-se adultos. Predominantemente, o
foco era (é?) o futuro adulto, havendo pouco interesse na vida presente
das crianças.
Disciplinas como sociologia, antropologia, história pareciam as-
sociá-las à ideia de natureza: por meio da educação, crianças tornar-
se-iam seres culturais, cidadãos, atores com participação na sociedade.
Se apareciam nas teorias sociais, era em condição marcada pela passivi-
dade, como alguém a ser socializado, um objeto que pela via da escola e
da família converte-se em ser social.
Raros eram os pesquisadores que se propunham a escutar as crian-
ças, já que a imagem que tinham delas era a de alguém que não sabia
ainda sobre o mundo e nem mesmo sobre si e que, além disso, são seria
capaz de informar adequadamente o pesquisador. Por vezes recorria-se
a pais, professores e especialistas como porta-vozes das crianças. Pouco
se problematizava o fato de que a visão de adultos costuma não con-
vergir com a visão das crianças. Nos casos em que essa divergência era
identificada restava a justificativa de que “nós, adultos, sabemos o que
é bom para elas”.
Quando as crianças foram escutadas ou observadas, em geral suas
falas e ações foram interpretadas em termos de maior ou menor com-
petência perante o padrão adulto, supostamente racional, maduro e
completo, enquanto ignorava-se a prática social da criança, com sua
estrutura de significados, específica e coerente ( Jenks, 2002).
Nas últimas décadas, com a emergência dos estudos sociais da in-
fância, um novo quadro passa a ser observado. Não há uma mudan-
ça radical e não podemos nem mesmo dizer que outros paradigmas
são hoje dominantes nos estudos sobre crianças e infância. Contudo,
importantes vozes dissonantes, de diversas disciplinas e em diferentes
países, têm criticado o adultocentrismo característico das instituições
que construímos, da produção acadêmica e das demais práticas sociais.

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Tais críticas acabam por sublinhar que a infância é socialmente
construída. Participam dessa construção, por exemplo, os direitos atri-
buídos às crianças, os espaços que elas encontram para participar da
sociedade, as concepções a partir das quais as definimos, os artefatos
culturais a elas destinados, além de suas interpretações acerca desses
direitos e espaços, dessas concepções e desses artefatos, e das ações e
produções que compartilham entre elas e conosco.
Diferentes maneiras de teorizar a infância e compreender as crian-
ças levantam questões éticas específicas (Morrow, 2008). James, Jenks e
Prout (1998) identificam cinco abordagens predominantes acerca delas:
a criança do desenvolvimento; a criança socialmente construída; a crian-
ça tribal; a criança do grupo minoritário; e a criança da estrutura social.
A “criança do desenvolvimento” é a abordagem mais frequente
na produção acadêmica e informa também o senso comum. Princi-
palmente a partir do século XIX, como afirma Gouveia (2011, p. 549),
“emerge como central o apagamento da alteridade” e a diferença passa
a ser analisada “como expressão da inferioridade, no interior de um
processo evolutivo universal, unilinear e etapista”.
Essa abordagem tende a subestimar modos de saber fazer, opi-
niões e visões das crianças, que são acessadas nas pesquisas por meio de
experimentos e observação. O pesquisador interpreta os seus achados e
os divulga, contribuindo por vezes para a disseminação de estereotipias
sobre crianças.
As outras quatro abordagens são mais recentes e provêm da sociolo-
gia. O enfoque da “criança socialmente construída” enfatiza a diversidade
de infâncias. A “criança tribal” é vista como habitante competente de um
mundo separado dos adultos, um mundo autônomo, com regras e prio-
ridades próprias. A etnografia é a principal inspiração metodológica para
os pesquisadores dessa abordagem. A abordagem da “criança do grupo
minoritário” coloca luz sobre a assimetria das relações entre adultos e
crianças e problematiza o modo como tais relações são estruturadas e
institucionalizadas. A criança é vista como participante competente em
um mundo compartilhado, mas centrado no adulto. Os mesmos métodos
e procedimentos utilizados em pesquisas com adultos são vistos como

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adequados também para as pesquisas com crianças. Por fim, na aborda-
gem da “criança da estrutura social”, elas são vistas formando um grupo
de atores sociais, que enquanto cidadãos possuem necessidades e direitos.
São sujeitos de pesquisa comparáveis aos adultos, mas com diferentes
competências, o que pode encorajar pesquisas que usem outros modos
de expressão como, por exemplo, os desenhos, que estão relacionados a
habilidades que crianças usam cotidianamente.
Aspectos das diferentes abordagens podem se misturar. Concor-
damos, por exemplo, com a visão de Morrow (2008) sobre as crianças:
elas são atores sociais, membros de um grupo geracional constrangido
por estruturas e práticas centradas nos adultos, participantes compe-
tentes de pesquisa, com habilidades particulares de comunicação, que
precisam ser reconhecidas. Na pesquisa, como ela afirma, grandes di-
ficuldades éticas decorrem da tendência que apresentamos enquanto
adultos na vida social cotidiana de não sermos respeitosos com as visões
e opiniões das crianças.
Se saberes “científicos” sobre infância sustentam-se em pesquisas
que não escutam, não respeitam ou não consideram as perspectivas das
crianças, então, para quê eles valem ou servem? Em que contribuem
para uma melhor compreensão do mundo, senão para servir, eles mes-
mos, de pistas acerca do modo como nós, adultos, lidamos com a alte-
ridade da infância?
E o que ocorre quando sequer consideramos crianças algumas
que, dentre as demais, são identificadas com a mediação de suas
particularidades?

Transferências de responsabilidade: a educação de crianças


tomadas como sujeito de pesquisa do campo da saúde
Harkness e colaboradores (2010) levaram a efeito um extenso pro-
grama de pesquisa relacionado às diferenças culturais e aprendizados
de crianças. Tinham a intenção de coletar as variações nos modos de
se referir à criança quando o adulto quisesse falar em seu nome para

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indicar que estavam seguras, bem cuidadas e aprendendo os místeres
do cotidiano.
Os resultados demonstraram como as variações culturais entre
grupos também se conectam às variações no modo de interpretar que
cada adulto tem a respeito das próprias obrigações em relação àquilo
que crianças demandam justamente porque são crianças.
Foi possível reconhecer a construção social de repertórios de “pa-
lavras adultas” com os quais crianças eram reconhecidas como “integra-
das e bem cuidadas” (Harkness, 2010, p. 11).
Coletando manifestações de mães da Holanda, da Espanha, da
Itália, da Coreia do Sul, dos Estados Unidos e do Quênia foi possível
concluir que as palavras definidoras para indicar que a criança estava
bem cuidada, aprendendo e menos vulnerável mudavam muito confor-
me as variações de cenário. Mudavam também conforme o sentido de
“bem cuidado” era construído pelo adulto que indicava “como” se sentia
responsável pelas crianças ao seu redor. Foi por dentro dessas situações
que se estabilizaram palavras para o adulto expor o que era de seu uni-
verso “específico” e o que não lhe dizia respeito. Não se apresentaram
apenas as previsíveis variações implícitas às diferenças idiomáticas e de
costumes. Emergiram diferenças de sentido e de significação.
A hipótese da equipe de pesquisa coordenada por Harkness foi a
de que em relação às crianças os grupos específicos como os pais, por
exemplo, elaboravam teorias sobre a razão de ser daquilo que faziam, o
que foi denominado na pesquisa como parental ethno theories.
É necessário e estratégico interpretar como compreendem, na
acepção de Weber (2010), o falar pela criança, porque isso expressa
também visões de mundo e representações da guarda de uma geração
sobre outra.
É importante citar essa pesquisa em meio à reflexão que estamos
fazendo sobre ética e os diferentes campos de conhecimento. Importante
porque é possível fazer um paralelo com situações concretas de crianças
em cuja descrição de suas particularidades encontramos também a
“destituição” de sua condição de sujeito educacional.

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Isso tem ocorrido em cenários escolares, na dinâmica de produ-
ção do sentido a respeito dos próprios fazeres, em que muitos pro-
fessores e gestores educacionais teorizam sobre a presença de crianças
com deficiências e, não raro, se configuram, no mencionado sentido
de Harkness, num grupo específico de convívio. No caso, estamos nos
referindo a um grupo específico convencido da incompatibilidade entre
seus fazeres e aquelas crianças que são precedidas pela descrição de seus
corpos e intelectos (Goffman, 2012).
Nessas condições, a de que grupos específicos explicam o que são
“crianças que aprendem”, é recorrente o registro de manifestações que
indicam que os saberes clínicos têm primazia sobre o corpo “dessas”
crianças e, com surpreendente regularidade, essas manifestações se des-
dobram em respostas a pesquisadores que afirmam que “não há pesqui-
sa educacional a ser feita” quando essa primazia é declarada.
O que se espera do pesquisador quando seu interlocutor afirma
que tem sob sua responsabilidade certo número de crianças e “mais
algumas de inclusão”, claramente cindindo seu universo de responsa-
bilidade entre crianças e não crianças? Essa cisão, porém, não ocorre
apenas no momento em que se proclama a presença de “não crianças”,
mesmo que isso ocorra sob eufemismos do tipo “crianças de inclusão”.
Na própria maneira de formalizar a razão de ser daquilo que se faz
engendra-se o risco de justificar dinâmicas excludentes com o modo
de propor dinâmicas inclusivas. Ou seja, muitas vezes se exclui com o
modo de incluir. Alguns círculos de debate podem, inclusive, surpreen-
der por identificar essa distorção antes mesmo de militantes envolvidos
com causas em prol da inclusão e dos direitos educacionais de pessoas
com deficiências.
É o que se percebe, por exemplo, nos Estados Unidos, na obra de
Martha Nussbaum (2013), que dialoga muito respeitosamente com o
liberalismo fundado na ética kantiana de John Rawls, e declara que sua
admiração pela teoria contratualista do autor não a impede de reco-
nhecer que sua formulação de justiça e contrato social não abrange a
pessoa com deficiência, o estrangeiro pobre e, para surpresa de muitos,
os animais.

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Rawls (1999) reconhece que seu modo de conceber a justiça não
abrange pessoas com deficiências, mas se defende indicando que arran-
jos legislativos posteriores podem “compensar” essa situação.
Nussbaum se alinha a Amartya Sen (1992) para afirmar, em perspec-
tiva ética de fundo aristotélico, que a aposta num pacto social que supõe
um contrato entre partes iguais no que toca à capacidade gerará injustiças
para os que destoam dos “padrões de normalidade”. Em suas palavras:

Crianças e adultos com impedimentos mentais são cidadãos. Qual-


quer sociedade decente deve responder às suas necessidades de
assistência, educação, autorrespeito, atividade e amizade. As teo-
rias do contrato social, no entanto, imaginam agentes contratantes
que projetam a estrutura básica da sociedade como “livres, iguais e
independentes”, e os cidadãos cujos interesses representam, como
“membros plenamente cooperantes da sociedade ao longo de uma
vida completa”. Também, muitas vezes, os imaginam caracterizados
por uma racionalidade particularmente idealizada. Tais abordagens
são insatisfatórias, mesmo em casos de impedimentos e deficiên-
cias físicas graves. Está claro que essas teorias só abordarão os im-
pedimentos mentais graves, e suas deficiências associadas em um
momento posterior, depois que as instituições básicas da sociedade
já tenham sido formuladas. Na prática, isso significa que pessoas
com impedimentos mentais não estão entre aquelas para as quais e
em reciprocidade com as quais as instituições básicas da sociedade
são estruturadas (Nussbaum, 2013, p. 120-121).

Ou seja, dependendo de como se concebe a estrutura do que se


faz passa-se a admitir que alguns, porque são o que são e “como são”,
não fazem parte ou se instalam “após arranjos específicos”, que surgem
a posteriori, não no momento em que se concebe a razão de ser da
estrutura engendrada.
A esse respeito demonstramos que a presença da criança com
deficiência nos domínios das estruturas educacionais, especialmente
escolas, muitas vezes é precedida por duas expectativas (Freitas;
Prado, 2016).

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Quanto à primeira, é constante a alusão a um “vazio de conhe-
cimento” relacionado aos déficits de formação e informação sobre a
“deficiência em si”. Em outras palavras, registramos número expressivo
de opiniões que produziam “um outro” a chegar contraposto a um “nós
que aqui esperamos”; em termos antropológicos, um estranhamento
formulado a partir da naturalização que presume que conhecer “o cego”,
“o surdo”, a condição que resulta da “paralisia cerebral”, etc. depende de
se receber previamente formação sobre “a cegueira”, “a surdez”, a “lesão
cerebral” e assim por diante. Projeta-se uma frágil universalidade com a
qual “todas” as (im)possibilidades interativas estariam contidas na defi-
ciência “em si”, da qual ou das quais a criança seria uma representante
(Goffman 2012; 2013), subsumida ao “seu problema”.
A segunda expectativa é a de que o campo da saúde, mencionado a
partir da medicina, da fonoaudiologia e da fisioterapia “ensine, previna
e forme”. Ou seja, o campo da saúde é chamado a tomar providências a
partir das quais se torne possível a aproximação educativa.
Nessas circunstâncias, resulta de ambas as expectativas um mo-
nolítico e contraditório quadro em que se esvazia a infância da criança
com deficiência, quadro esse pintado com os traços de uma a-histórica
referência ao corpo incapacitado, retratado como “incompleto entre os
completos” (Csordas, 2010; 2014).
A situação da criança com deficiência subsumida na deficiência
“em si” (Shakespeare, 2000) é uma situação de diluição da pessoa no
organismo (Siebers, 2000), e nesse processo abordá-la como criança
parece fazer menos sentido do que convocar diagnósticos, prognósti-
cos, técnicas e prescrições sobre o que fazer com a “causa” (Goffman,
2012) e, assim, administrar a “consequência” (Helman, 2010).
É assim que se formaliza um problema ético substantivo, pois
emolduram-se cenas (Goffman, 2014) nas quais se fixam os traços
de crianças cuja responsabilidade educacional provém da saúde, não
da educação.
Essa precedência, essa transferência de responsabilidade se agi-
ganta a ponto de se fazer dos processos inclusivos dinâmicas de abs-
tenção em relação à criança que passa a ser reconhecida como aquela

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que “não precisa ser escolarizada” porque sua (antinatural) presença
resulta de esforços inclusivos (Rey; Martinez, 2014). É evidente que
assim distorcemos o sentido de inclusão até torná-lo uma “exclusão por
dentro” no sentido que Bourdieu (2005) dá ao conceito.
Contudo, é na materialização desse problema como e enquanto
problema ético que se faz necessário perguntar a respeito de uma crian-
ça cuja voz é ainda menos reconhecida que a das demais crianças.
Trata-se de uma voz que é anulada não somente no adultocentris-
mo que procura ansiosamente pelo devir, mas no adultocentrismo que
fala em seu nome para profetizar nenhum devir, posto que a “história
natural da limitação” (Bluebond-Langner, 1999) se sobrepõe à história
da pessoa, que sequer como pessoa é vista.
Assim como Martha Nussbaum (2014) interditou a pretensão de
John Rawls de concretizar suas aspirações no sentido de concatenar
liberdade e contrato social, uma vez que pessoas com deficiências fica-
vam “para depois”, “questão a ser resolvida”, a subsunção dos direitos
educacionais à precedência da norma clínica mostra que inclusão edu-
cacional sequer consegue estabelecer-se caso seu ponto de partida seja
o campo da saúde.
Ao se estabelecer uma conexão precedente entre a prática docente
e a “deficiência em si” se estabelece também uma dinâmica de sustação,
de interdição de direitos educacionais à medida que cada criança com
deficiência não foi, não é, não será representante da “deficiência em si”.
A isenção de responsabilidade que se busca com base na alegação
de que há pouco a fazer em termos pedagógicos com a criança com
paralisia cerebral, por exemplo, porque não há apropriação prévia dos
limites e das possibilidades contidos “na paralisia cerebral em si”, revela
um reducionismo orgânico que supõe o ato educacional fracionado en-
tre organismos mais ou menos potentes, mais ou menos competentes e,
“com base no que cada um é” supõe-se uma partilha fundamentada em
alcances individualizados.
É como se, nos termos de Judith Butler (2014), fosse admissível
uma violência previamente desculpada por se saber de limitações con-
sideradas inseparáveis daquele que emerge em nossa narrativa como o

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que não importa. Ou ainda, é como se admitíssemos que tais crianças
teriam importância pedagógica (importância, no caso, de passar a im-
portar) se a precedência do campo da saúde tivesse sido respeitada.
Sem essa precedência, tomada por natural, admite-se um trabalho
instituído como precário antes de sua própria formalização. E essa pre-
cariedade “decorre” da criança e não do trabalho que, paradoxalmente,
não é “trabalho em si” tal como a deficiência é significada, mas “traba-
lho contanto que”, o que condiciona a ação inclusiva não à presença
reconhecida da criança com deficiência, mas à própria superação dessa,
ou seja, o que, na prática, torna aquela um não sujeito.
Se estudos da infância já mencionados demonstram que a proje-
ção de etapas da vida tem sido suficiente para reduzir o modo de inte-
ragir com crianças às projeções de um devir adultocentrado, a criança
com deficiência é, muitas vezes, conduzida por um paradoxo “próprio”,
o de ser tomada como representante de uma “fase única”, a “criança
para sempre”, nos marcos de suas singularidades corporais.

Considerações finais
As discussões sobre ética na pesquisa com crianças são subsídios
importantes para a reflexão sobre “normas éticas” em pesquisas com
seres humanos em geral, visto que as pesquisas com esse grupo popu-
lacional levantam as mesmas questões éticas com as quais pesquisa-
dores se deparam ao pesquisar com adultos, mas trazem, além disso,
preocupações específicas relacionadas ao encontro com o outro, com
o diferente, com aquele que se situa em posição mais vulnerável na
estrutura social, que não costuma ver seu saber fazer reconhecido e que
não ocupa, ele mesmo, nem o lugar de quem escreve e assina o texto da
pesquisa e nem o lugar daquele que a lê.
Em nome da ciência fala-se sobre as crianças, e esse discurso
participa da própria construção de suas infâncias, no sentido de que
ele pode contribuir para a compreensão e consideração de suas vi-
vências, de suas perspectivas e de seus pontos de vista ou pode, por

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outro lado, sustentar estereótipos que reforcem a posição subordinada
que ocupam na estrutura geracional. Outro risco, como vimos, é o de
relegar a grupos específicos de crianças o silêncio e a invisibilidade na
pesquisa social.
A ética na pesquisa transcende, portanto, os aspectos mais comu-
mente lembrados nos debates sobre o tema: consentimento/assenti-
mento informado, sigilo a respeito da identidade dos participantes,
aprovação dos comitês de ética.
Apesar de a geração ser uma categoria analítica útil para a com-
preensão de desigualdades que se manifestam tanto na pesquisa quanto
em outras práticas sociais (Qvortrup, 2010), buscamos chamar também
a atenção para o fato de que as diferenças que caracterizam as crianças
ou grupos específicos de crianças são tão importantes quanto aquilo
que compartilham entre si ( james, 2007).
Assim se amplia a percepção da riqueza contida num leque amplo
de possibilidades. Ou seja, reflexões sobre o fazer pesquisa com crianças
indígenas, quilombolas, caiçaras ou crianças com deficiência como aqui
enfatizamos, podem trazer para o debate densos e tensos aspectos para
o interessado no tema da ética em pesquisa e na pesquisa, em seu fazer.
Se “normas” éticas nas pesquisas com seres humanos são mesmo
indispensáveis – apesar de sempre insuficientes (Freitas; Prado, 2016) −,
seguindo os argumentos de Nussbaum (2014) faz-se necessário defen-
der que grupos minoritários, entre os quais as crianças e, entre elas, as
que ocupam posições ainda mais vulneráveis, como as com deficiência,
sejam consideradas na própria formulação de tais normas, e não apenas
no apêndice ou entre as questões a serem “mais para frente resolvidas”.
Sempre é necessário recuperar o fôlego, pois os temas criança,
infância, vulnerabilidades, ética e pesquisa nos levam a todo o mo-
mento ao ponto de partida, nunca ao ponto de chegada. Isso porque
a disponibilidade para recomeçar (e refazer perguntas) é também um
imperativo ético.

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84

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A fabricação estatal da indiferença parental:
agruras da reintegração familiar 1

______________________________________________________________________________________________________

Claudia Fonseca

Desde os anos 1980 existe entre antropólogos um consenso sobre


o caráter “construído” da noção de família (Schneider, 1985; Carsten,
2000). A constelação de elementos envolvida nessa noção abrangeria
vetores que se estendem aos mais diversos domínios − biologia, psi-
cologia, política, economia, etc. Penso que hoje já não basta reiterar o
óbvio – o caráter variável e híbrido da ideia de família, o interessante
é estudar, em contextos específicos, quais as circunstâncias que levam
a determinada ênfase nas políticas institucionais de família e quais os
efeitos dessa eleição.
Há uma tendência nos debates populares de contrapor uma famí-
lia repressora do passado, calcada no sangue, a uma família liberadora
“pós-moderna”, calcada na escolha e no afeto. Tal visão simplista ofus-
ca o que Foucault chamava de “polivalência tática” dos discursos – o
fato de que um mesmo valor (“a liberdade de escolha”, por exemplo)
pode ser acionado com proveito por pessoas de um lado ou do outro
do espectro político. A ideia de afeto (em vez de biologia) como prin-
cípio fundador da família tem sido usada, por exemplo, para justificar
inegáveis ganhos, tais como o direito ao divórcio, à “cultura da adoção”
e à legitimação de casais homossexuais. Por outro lado, a mesma ideia
pode alimentar estereótipos estigmatizantes, reforçando desigualda-
des existentes. A celebração da família adotiva, por exemplo, pode ser

1
Esse trabalho foi originalmente publicado em Política e Trabalho, n. 43: p. 19-35, 2016.

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realçada pelo contraste com as famílias pobres “abandonantes” de onde
os filhos adotados tantas vezes vêm. O papel da mãe de nascimento
seria limitado à procriação – um ato “meramente” biológico, enquanto
a “verdadeira mãe” – a que “desejou” a criança – seria a mãe adotiva.
No artigo que segue, ao sublinhar a perspectiva dessas famílias
pobres, espero que fique claro que em momento algum estou endos-
sando a superioridade “natural” dos vínculos de sangue. Pretendo, antes,
demonstrar a polivalência tática dos discursos, mostrando como a polí-
tica pública pode ora minimizar ora valorizar a “naturalidade” dos laços
biológicos de família. Ela pode, também, em determinado momento
decretar a retirada de crianças de suas famílias de origem e, no momen-
to seguinte, ordenar a devolução abrupta das crianças a essas mesmas
famílias – tudo em nome do bem-estar infantil. O que proponho neste
artigo não é tanto a arbitrariedade das políticas estatais – o que já foi
amplamente demonstrado por outros autores (Lugones, 2012; Zapiola,
2014) –, mas, antes, o quanto as próprias políticas participam da confi-
guração de afetos familiares (Stoler, 2007).
Meu universo empírico envolve filhos de pessoas que entre 1940
e 1980 foram compulsoriamente internados em hospitais-colônias
brasileiros para o tratamento de hanseníase (lepra). No Brasil existiam
mais de 40 dessas instituições, algumas com até 5.000 internos,
contando com “enfermos” dos dois sexos e de todas as idades. Nessas
instituições totais – onde os ocupantes lavravam sua terra, produziam
suas roupas e seus sapatos, construíam suas igrejas e forjavam seu
próprio dinheiro – as pessoas também namoravam, casavam e tinham
filhos. Aí terminava a paródia da vida normal, pois – conforme uma
política sanitária nacional implantada já nos anos 1920 e retomada na
Lei 610 de 1949: “Todo recém-nascido, filho de doente de lepra, [devia
ser] compulsória e imediatamente afastado da convivência dos pais”.
Em outras palavras, era política de estado que os filhos sadios de
pais “leprosos” fossem retirados de suas famílias de origem e colocados
em orfanatos especializados (denominados, na época, preventórios). A
medida não era só para proteger as crianças contra contágio; era tam-

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bém também para prevenir que essas crianças se tornassem vetores
da epidemia de lepra. Embora no início do século passado já fosse
geralmente reconhecido que a lepra não era hereditária, ainda existiam
muitas incertezas sobre as formas de contágio. Como a doença tem
um período longo de incubação, toda criança devia ser mantida num
tipo de quarentena – com exames periódicos – durante pelo menos
seis anos depois de deixar o convívio dos pais. Em princípio, a acolhida
em “meio familiar” era permitida. Contudo, os pais internados eram
geralmente pessoas muito pobres, oriundas das regiões rurais afasta-
das. Mesmo se conseguissem encontrar um familiar pronto para lidar
com o medo e o estigma de abrigar um “filho de leproso”, seria difí-
cil satisfazer as condições exigidas de quarentena. Assim, literalmente
milhares de “filhos de pais leprosos” acabaram sendo levados para os
orfanatos especializados.
No apogeu do sistema (meados da década de 1950) havia quase
cinco mil dessas crianças vivendo em mais de trinta instituições espa-
lhadas em 23 estados (Relatório, 2012). Estima-se hoje que dezenas
de milhares de crianças passaram por essas instituições especializadas
até o fim da política de internamento compulsório no início dos anos
1980. Nesse momento, os preventórios fecharam e as crianças foram
abruptamente devolvidas para suas famílias de origem. Foi uma época
que na maior parte dos países ocidentais ideias progressistas decreta-
vam o desmantelamento das instituições totais. Com o fim dos grandes
orfanatos, apresentou-se o problema: o que fazer com as crianças até
então institucionalizadas? Tratava-se de uma época que o “afeto” estava
se destacando e, em certos contextos, se sobrepondo ao critério clássico
do “sangue”, que definia a “família legítima”. No entanto, curiosamen-
te entre administradores públicos não havia dúvida quanto à política
adequada para as crianças saindo da instituição: o destino delas seria,
naturalmente, a “reintegração familiar”.
Sem dúvida que em muitos casos os reencontros foram bem-
sucedidos ou, pelo menos, aconteceram sem incidente maior. En-
tretanto, durante uma pesquisa inicial de campo realizada em 2012-

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2013 nas redondezas de ex-colônias2 perto de Belém do Pará, fiquei
impressionada pelos relatos de “filhos separados” (hoje com 35 a 70
anos) que falavam com mágoas e mesmo horror desse momento de
reintegração familiar. No entender dessas pessoas foram duplamente
vítimas: enquanto crianças, foram separadas à força de suas famílias;
alguns anos mais tarde, foram sumariamente enviadas de volta para
viver com essas mesmas famílias (pessoas “estranhas” que não reco-
nheciam mais como pais) onde passaram por novas experiências de
privação, castigos físicos e violência psicológica. Esses relatos foram
o ponto de partida de uma viagem que me levaria de pesquisas his-
tóricas a uma reflexão sobre políticas de abrigamento nos dias atuais.
Meu itinerário é inspirado em indagações sobre os efeitos da inter-
venção estatal na vida de certas famílias, e minhas conclusões (pelo
menos provisórias) sugerem que diferentes visões de família podem
ser acionadas para justificar políticas guiadas tanto por expediência
administrativa quanto pelo bem-estar infantil.

O retorno dos “filhos separados”

Para entender o contexto de nossa investigação, cabe destacar


que se desenvolve num ambiente propício à organização coletiva dos
“atingidos de hanseníase”. Graças a um bem-organizado e duradouro
movimento social que conta com fortes aliados políticos3, a primeira
geração de atingidos – pessoas que tinham sido compulsoriamente in-
ternadas para o tratamento pela hanseníase – conseguiram reparação
do Governo federal. Em 2007, junto com uma apologia oficial pela

2
Como frequentemente ocorre em casos de longa institucionalização, muitas pessoas ligadas
às ex-Colônias – tanto os pacientes quanto seus filhos – nunca conseguiram se afastar do local,
mesmo décadas depois do fechamento das instituições.
3
Morhan ‒ Movimento pela Reintegração de Pessoas Atingidas de Hanseníase. Disponível
em: <https://www.morhan.org.br>.

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violação estatal dos seus direitos fundamentais, veio o direito a uma
pensão vitalícia. Logo depois dessa conquista, o movimento virou suas
atenções para a causa da segunda geração – a dos “filhos separados”.
Sublinhando a maneira com que esses indivíduos, enquanto crianças,
tinham sido privados do carinho de seus pais e submetidos ao regime
austero e muitas vezes violento do educandário, o movimento deman-
dava reparação também para essas vítimas.
Assim, quando iniciei essa pesquisa, os “filhos” já tinham uma
identidade coletiva politicamente forjada. Já estavam acostumados a
compartilhar histórias de sofrimento – contadas no âmbito de reuniões
locais, audiências públicas e reportagens jornalísticas (Fonseca;
Maricato, 2013). Havia muitos relatos sobre o trauma da separação
abrupta da mãe. Os que tinham nascido na colônia repetiam histórias
que sem dúvida ouviram da geração mais velha. Após o parto, não
deixaram a mãe segurar seu bebê nem um instante; a criança nunca
mamou no peito de sua mãe, foi logo depositada numa cesta, junto com
mais dois ou três outros, para ser transportada até o orfanato. Os que
viveram a separação quando mais velhos relembram as cenas violentas
de como a polícia sanitária veio prender a mãe ou o pai doente, e como
eles e seus irmãos, chorando desesperadamente, foram jogados no
ambiente estranho do orfanato sem entender o que estava acontecendo.
Quase todos têm histórias de tristezas ou maus-tratos vividos ao longo
de sua estadia no educandário.
Embora extremamente comoventes e de uma sinceridade in-
questionável, essas narrativas “públicas” não surpreendem, pois acom-
panham o espírito das reivindicações contra um estado violador de
direitos. Quero falar aqui de outra dimensão da experiência dessas pes-
soas – uma que desponta nos círculos de comadres, mas que raramente
é exposta em público – sobre as dificuldades que os “filhos separados”
experimentaram quando finalmente foram “liberados” do orfanato
e entregues às suas famílias. Trago inicialmente dois relatos – entre
muitos que encontrei – da decepção dos “filhos” com o momento
de reencontro.

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Ingrid4, cerca de 40 anos, liderança firme e enérgica do movimen-
to dos filhos, já tinha me falado da volta traumática dela para a sua
família quando me passou a cópia mimeografada de um texto de sua
autoria, redigido mais de dois anos antes. Neste documento, ela descre-
ve o educandário como “a casa do TERROR” (maiúsculas no original),
onde passava fome, onde trabalhava na lavoura “como escrava” no sol
quente, onde chorava “de tanta porrada e beliscão de arrancar o nos-
so couro da pele”. Entretanto, quando fechou a instituição em 1982,
ela – já com nove ou dez anos – não queria ir embora. Seus pais estavam
separados há bastante tempo e já que a mãe se dizia sem condições para
receber mais filhos, Ingrid teria que ir com o pai. “As freiras diziam: É
O PAI DE VOCÊ” (maiúsculas no original). Quando chegou na casa
paterna, junto com mais dois irmãos, sentia “tudo diferente e estranho
de medo dele”. Ingrid queria continuar as rotinas do educandário – por
exemplo, recebendo remédio para dormir, mas o pai negava:

Eu não consegui dormir, eu chorava muito todos os dias eu chorava.


O meu pai já falava com raiva e me batia com o cinto e deixava eu
de joelhos com meus irmãos com o botijão na cabeça das 9:00 h
até 12:00 h no sol quente. [outros relatos sobre castigos corporais.]
Isso foi pior do que estar no educandário. Meu pai era um monstro.

Malgrado seu relato de torturas e privações sofridas na instituição,


minha interlocutora foi enfática: a convivência com seu pai foi pior.
Ficou comigo a maneira que ela terminou a conversa naquele primeiro
dia que nos encontramos. Resumindo a passagem do orfanato para a
casa do pai, concluiu: “Saí do escuro para entrar no inferno”.
Edmundo, cerca de 40 anos, também liderança do movimento,
conta uma experiência muito semelhante. Seu relato veio em resposta a

4
Algumas das falas citadas aqui já circularam na mídia, com identificação do enunciante.
Outras falas foram registradas por mim em situações mais informais. Embora ninguém tivesse
dúvida quanto a meus interesses de pesquisa, por causa da natureza mais “espontânea” das
conversas durante a observação participante, resolvi neste artigo resguardar a identidade das
pessoas por meio do uso de pseudônimos.

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minha pergunta sobre a casa de tijolos, bastante vistosa, em que ele vive
e onde nosso encontro ocorreu. Ao explicar que ele tinha herdado a
casa do pai, logo encadeou uma reflexão sobre a ironia desse legado. Ele
é da mesma geração que Ingrid. Assim, para desligá-lo, o educandário
não esperou até seus 16 anos – como tinha sido a política em gerações
anteriores. Convocada em 1982 a sumariamente terminar todas suas
atividades, a instituição localizou, um por um, os pais das crianças para
anunciar que seus filhos – depois de anos internados – estariam che-
gando “de volta” em casa.

Aí, quando meu pai telefonou de lá onde estava trabalhando em


Santarém, a mãe disse para ele que nós [os filhos] íamos sair do
educandário. Sabe o que ele respondeu? Disse: “Filhos? Que filhos?
O governo levou. Que tome conta deles!”. Nem queria a gente em
casa. Minha mãe não podia fazer grande coisa. Já estava doente e
morreu poucos meses depois de a gente sair. Meu pai nos surrava,
não dava comida, a gente passava fome. Ficamos quatro a cinco
anos nessas condições, antes de ele morrer.

Edmundo contrasta a rudez de seu pai com a generosidade de


outras pessoas – as irmãs da igreja, a família “adotiva” de sua irmã, uma
vizinha – pessoas que “terminaram de me criar” e sem as quais a vida
dele teria sido bem diferente. Mesmo assim, sublinha como foi duro
para ele aprender a ser pai amoroso para seu próprio filho (hoje ado-
lescente): já que não teve um pai “verdadeiro”, ele custou para aprender
como ser um bom pai.
Ao contemplar esse tipo de relato, cabe em primeiro lugar infe-
rir que, quando finalmente voltaram a suas famílias, muitas das crian-
ças não se sentiam bem recebidas. Na época, a noção de “direitos da
criança” ainda era incipiente. Era praxe encontrar castigos corporais
nos processos formais e informais de ensino e aprendizagem. Que a
situação fosse dentro das instituições ou dentro das famílias, era raro
que alguém colocasse um limite à violência adulta que pesava sobre a
educação dos jovens. A história social nos regala de exemplos dos usos

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rotineiros da violência para resolver conflitos familiares e para sociali-
zar as crianças ( Joseph; Battegay, 1977). Nesse aspecto, as histórias dos
filhos de pais compulsoriamente internados – tanto daqueles institu-
cionalizados quanto daqueles colocados com familiares – se parecem.5
É evidente que houve transformações na vida familiar provocadas
ao longo das décadas de 1950, 1960 e 1970 pelas profissões emergentes
de trabalho social e psicologia (ver, por exemplo, Rose, 1990; Cosse,
2010). Podemos imaginar que os internos – em geral, agricultores in-
terioranos de origem humilde e com pouca escolarização – ficavam
bastante alheios a essas transformações. Apesar de ter suas vidas es-
quadrinhadas pelas rotinas da colônia, nunca tinham experimentado os
efeitos desse poder tutelar sobre sua relação com os filhos. Sem convi-
vência nenhuma com seus filhos, os pais não tiveram a oportunidade de
familiarizar-se com as novas filosofias de educação.
Ademais, não devemos esquecer o contexto particular das narra-
tivas que ouvimos. Por um lado, contar histórias de sofrimento virou
uma verdadeira arte nesses últimos anos de “lógica humanitária” em
que causas políticas se nutrem de relatos trágicos (Fassin, 2010). Por
outro lado, os narradores vistos acima estão relembrando uma época
de infância ou de juventude quando suas expectativas eram, quiçá, ex-
traordinariamente altas. Muitos dos filhos viveram boa parte de seus
anos formativos numa instituição regida por freiras católicas. Imagens
da sagrada família assim como o sonho de um lar aconchegante (em
contraste ao ambiente institucional) podem ter atiçado a idealização da
“vida familiar”. Essas imagens podem ter aguçado a decepção desses
“órfãos de pais vivos” em relação aos seus pais “abandonantes”. Pode
ser que, abraçando uma noção quase mística do vínculo consanguíneo,
estivessem esperando do reencontro tão longamente antecipado um es-
talo, um reconhecimento afetivo instantâneo. A realidade, porém, era
frequentemente muito diferente. O reencontro envolvia pessoas que
em muitos casos se viam como estranhos – pais e filhos que tinham

5
Vide o depoimentos de Sandra Gonsalves, reproduzido no Relatório Preliminar 2012.

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tido nenhum ou mínimo contato e que, fossem se cruzar na rua, não
teriam se reconhecido.
Contudo, algo me soava incompleto no quadro que emergia de
minhas primeiras análises que – dando eco aos relatos dos filhos −
pareciam reafirmar o moralismo do senso comum. Isto é, pareciam
dividir o mundo entre os pais “que faziam um esforço” e os outros
“negligentes”, entre famílias “estruturadas” e “desestruturadas” ou, sim-
plesmente, entre “civilizados” e “bárbaros”. Meu desconforto urgia levar
a reflexão mais adiante, para “a redistribuição moral da responsabi-
lidade” (Lugones, 2012). Tal proposta, que representava para mim uma
rotação radical de perspectiva, jogou sob nova luz uma citação já vista
acima. Refiro-me às palavras atribuídas ao pai de Edmundo: “Filhos?
Que filhos? O governo pegou. Que tome conta deles.”.
Seguindo essa pista, comecei a enxergar algo ausente até então
na minha análise: a importância da mão estatal na constituição da in-
diferença parental. A partir desse momento, as questões que passei
a formular me levaram a aprofundar meu diálogo com os trabalhos
de outros pesquisadores que versam sobre os “atingidos”. Agora, para
adensar minhas impressões originais, passei a explorar o vasto material
garimpado em distintos locais e épocas sobre o vínculo entre os “filhos
separados” e suas famílias.

A “rejeição familiar”
É uma clássica recomendação em determinados exercícios
etnográficos justapor as falas de pessoas diferentes discorrendo sobre
um mesmo tema – para dar relevo ao objeto em discussão. As más
experiências de reintegração familiar que vimos acima apareceram nas
acusações de filhos contra a rudez ou indiferença dos pais. Vemos ago-
ra o depoimento de uma mãe, moradora da antiga Colônia de Itapuã
(no Rio Grande do Sul), falando do mesmo assunto: a reticência dos
pais em receber seus filhos de volta do educandário. Começa dizendo o
quanto fica revoltada quando lembra como se dava um nascimento na

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Colônia: “a gente só via [a criança] quando nascia... mas ficar aqui não
ficava com os pais”.

Então esses tempos, já faz muito tempo, a diretora lá do... ela veio
aí e fez uma reunião lá na enfermaria, chamou todos os pais pra
ir lá, daí eu fui, não sabia o que era. Daí ela disse que agora quem
quiser trazer os filhos pra cá morar com os pai pode trazer... Todo
mundo ali ficou quieto. Eu levantei em pé e disse assim: Não, a
senhora vai me desculpar, os meus não vêm pra cá morar aqui, por-
que quando eles nasceram não deixaram ficar com nós, mandaram
pra lá e agora que estão grandes, que podem trabalhar6... (Barcelos;
Borges 2000, p. 146).

Essa mulher não nega a dificuldade dos pais em acolher seus fi-
lhos, mas, ao narrar detalhes do processo, ela efetiva uma sutil redistri-
buição da responsabilidade moral por essa situação. Nas suas palavras
hesitantes, começamos a ver como, no caso das colônias, houve uma
intervenção estatal com efeito pedagógico praticamente inverso ao que
foi promovido por agentes do estado nas famílias “normais” (não in-
ternadas). Aparecem os contornos de uma política arbitrária que ora
desencoraja qualquer relação afetiva entre pais e filhos ora dita uma
reaproximação instantânea.
Olhemos mais de perto esse primeiro momento, de afastamen-
to. Sem dúvida, os relatos mais dramáticos dizem respeito à retirada
dos recém-nascidos de suas mães parturientes. Quevedo, ao entrevistar
uma ex-interna da Colônia de Itapuã, Dona Rute (com filhos nasci-
dos entre 1948 e 1951), traz uma narrativa que ouvi repetidamente em
todos os lugares que visitava: [...] logo que eles nasciam, a gente não
tinha muito contato. Eles arrancavam da gente. Nascia, a gente olhava...
eles lavavam, vestiam e já enrolavam e levavam pra [o educandário]
(Quevedo, 2005, p. 155).

6
Para manter coerência com o estilo deste artigo, modifiquei a transcrição fonética desta fala
para o português convencional.

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Ironicamente, uma das justificações originais para a construção dos
preventórios era aliviar a angústia dos pais, evitando que eles fugissem do
hospital para porvir às necessidades dos filhos deixados em casa. Contu-
do, para afastar o perigo de contágio, a política institucional exigia que
os pais cortassem todo contato com esses mesmos filhos. Conforme o
próprio Regulamento dos Preventórios (cerca de 1942): “Serão evitadas,
o mais possível, as comunicações pessoais entre o menor internado e o
hanseniano, internado ou não” (Monteiro, 1998, p. 16).
Os preventórios eram construídos longe das colônias, numa ten-
tativa de evitar aos filhos tanto o estigma social (por ter pais “lepro-
sos”) quanto a doença em si. Pais que queriam visitar seus filhos en-
frentavam obstáculos quase insuperáveis. Para visitá-los, tinham, em
geral, que “dar negativo” nos exames médicos, comprovando a cura de
sua doença. Mesmo quando os pacientes tinham saúde para se des-
locar e meios financeiros para custear o transporte, era difícil receber
permissão para entrar no educandário. Alguns dos meus interlocuto-
res dizem que visitas eram permitidas apenas às pessoas sem sequelas
ou lesões aparentes – “para não assustar as crianças”.
Em certas épocas, os próprios educandários fretavam uma Kombi
para levar as crianças até a colônia. No entanto, o encontro entre pais e
filhos se realizava num ambiente que poderia ser tudo, menos compen-
sador. Especialmente nas primeiras décadas havia sempre algum tipo
de barreira material – ora um muro baixo de tijolo ora uma parede de
vidro – para impor uma distância entre filhos visitantes e pais visitados.
Conforme alguns relatos, não era raro haver certa confusão sobre qual
criança pertencia a qual pai ou mãe. Os pais não podiam levar presen-
tes, muito menos oferecer um afago ou outra forma de carinho físico.
Em muitos relatos, a frustração da visita passava a ser um tipo de tor-
tura, desestimulando as tentativas paternas de manter contato.
Um arquivo histórico bem preservado ligado ao Preventório
Santa Terezinha no estado de São Paulo revela a resistência da insti-
tuição à manutenção de qualquer vínculo entre pais e filhos internados
(Monteiro, 1998; Santos Silva, 2009). Nos prontuários das crianças
encontram-se cartas escritas especialmente pelas mães aos seus filhos

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internados – muitas cartas aparentemente nunca entregues ou, quando
entregues, cheias de palavras e frases apagadas pelos censores da admi-
nistração. A calcular pelos repetidos apelos por notícias, deduz-se que
boa parte dessas cartas nunca foi respondida.
Contudo, talvez o material mais comovente diga respeito às
cartas escritas pelos pais, endereçadas à própria instituição, suplicando
à diretora por uma foto ou qualquer notícia da criança internada. A
historiadora Claudia Santos Silva (2009, p. 144) reproduz uma carta
de 1941, de uma mãe procurando saber qualquer coisa sobre suas filhas
internadas dois anos antes:

Quem lhe dirige esta é uma enferma asylada que por intermédio
destas humildes linhas vem pedir-lhe encarecidamente um grande
favor e ao mesmo tempo [Caridade] de enviar-me notícias de três
filhas minhas que residem ahi e estão sob sua proteção.
Já tenho lhe escripto diversas cartas e ainda não consegui resposta,
mais espero em Deus que esta lhe chegue logo as mãos e eu tenha
a felicidade de receber logo a resposta que desejo.
Desejo imensamente receber as fotografias delas.

Neste caso, a diretora do preventório manda uma resposta: que ela


só pode prestar informações quando os pedidos são feitos diretamente
pela Caixa Beneficente ou pela Diretoria Hospitalar. No entanto, o
exame dos arquivos mostra que, mesmo depois do pedido ser formu-
lado segundo os canais protocolares, essa mãe nunca recebeu notícias.
Vemos nos arquivos também cartas de pais e mães que fazem tudo
para tirar seus filhos do orfanato – recomendando, por exemplo, que se-
jam entregues a uma avó ou a outra família substituta. Infelizmente, no
caso paulista, os administradores de então aderiam estritamente à po-
lítica sanitária que decretava uma espera de no mínimo seis anos antes
de deixar a criança voltar ao convívio com pessoas não atingidas pela
lepra. Nem a própria mãe, já considerada curada e com alta do hospital,
podia levar seu filho para casa antes desse período de incubação.7

7
Monteiro (1998) conta como, ainda na década de 1950, em certos educandários a saída da
criança era condicionada a um resultado médico que comprovasse a imunidade natural à lepra.

96

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O estudo de Santos Silva descreve casos em que a instituição “es-
quece” de notificar os pais que seu filho faleceu, e os pais seguem es-
crevendo cartas durante anos na esperança de receber notícias. Aliás,
nos primeiros anos dos preventórios, a taxa de mortalidade infantil era
enorme mesmo para aquela época – beirava 40%. Por um lado, afasta-
dos de suas mães e impedidos de serem nutridos por amas de leite (por
medo que estas se contagiassem), os recém-nascidos recebiam subs-
titutos inadequados de leite materno. Por outro lado, dificuldades de
transporte tornavam os cuidados médicos rotineiros difíceis. Os recém-
nascidos já tinham que percorrer longas distâncias entre a Colônia onde
nasciam e o orfanato; seu novo lar, frequentemente implantado numa
região rural, também dificultava recurso à assistência médica regular.
Os pais internados tinham sem dúvida uma ideia quanto à fragilidade
da vida de seus recém-nascidos nas mãos dos funcionários de estado,
mas estavam sem possibilidade de resistir às ordens da instituição.
Com os anos e a maior eficácia de tratamentos ambulatórios, o
internamento obrigatório dos leprosos foi abrandado. Contudo, para os
pacientes internados, permaneceu a proibição de qualquer contato com
seus “filhos sadios”. Ainda nos anos 1970 encontramos histórias que
ilustram os estragos da política de segregação. Vide o caso de Ana, uma
senhora idosa que encontrei durante recente visita a uma comunidade
em Maranhão. Dona Ana já tinha oito filhos quando, com quarenta
anos de idade, veio grávida do interior para ser internada na Colônia.
Poucos meses depois nasceu seu nono filho, levado imediatamente para
o educandário. A partir desse momento, ela e o marido (que vinha vi-
sitar sua mulher frequentemente) não pararam de pedir notícias do
filho. Ela lembra como cada vez que aparecia a kombi (a que trazia
crianças do educandário para um encontro com seus pais internados),
Dona Ana perguntava pelo seu bebê, cobrando das monitoras “pelo
menos uma foto” (que nunca recebeu). Em resposta, vinha só a notícia
que a criança estava “forte e sadia”. Assim, o choque foi grande quan-
do, um pouco antes do que seria o primeiro aniversário do seu bebê,
Dona Ana recebeu a notícia de que ele tinha morrido. Esta mãe e seus
demais filhos desconfiam que a suposta morte da criança foi inventada

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para encobrir sua adoção ilegal.8 Seja qual for a verdade, permanece o
sentimento de total impotência dos pais em relação ao destino do filho.
Ironicamente, depois de cinco anos na Colônia, quando essa se-
nhora recebeu alta e voltou a conviver com sua família, o seu penúltimo
filho – que mal caminhava quando sua mãe foi internada – estranhou a
presença dela por muito tempo. Segundo uma filha mais velha de Dona
Ana, seu irmãozinho ficou com raiva da família por ter acolhido esta
“estranha” na casa. No início, Dona Ana tampouco demonstrou muito
afeto por este filho: “Mãe tinha certa antipatia por ele”, me diz a filha.
“O pai brigava com ela, disse ‘não é um filho adotivo! Como que pode
tratar ele assim?’”.
Embora, nesse caso, as relações de carinho tenham sido rapida-
mente reatadas, há muitos relatos de casos nos quais o estranhamen-
to do reencontro nunca foi superado. Vide o que diz Dona Isabel da
Colônia de Itapuã (Porto Alegre), cujas filhas tinham sete e oito anos
quando ela foi declarada “curada” e pôde viver mais uma vez com elas:

Elas ficaram revoltadas! Elas são umas gurias sem amor, elas não
têm amor por mim... [...] Assim, aquilo frio, que nem uma pessoa
estranha não faz isso... a pessoa estranha quando vê a outra já se
abraça se beija e ela é uma coisa fria. Elas acham assim que... que eu
não as quis, que elas foram pra lá porque a gente não quis... elas não
aceitam, aquilo não entra na cabeça (silêncio). Então a gente sofreu
muito nessa parte... (Quevedo, 2005, p. 157-158).

Nos anos 1970, os administradores começam a ver os educandá-


rios como contraproducentes (Curi, 2010). Ironicamente, conforme a
maioria de analistas, essa mudança de perspectiva oficial é inspirada
menos em sentimentos humanitários (sensibilizados pelos sofrimentos
de pais e filhos) do que por considerações pragmáticas. A ditadura mi-
litar, tendo assumido o poder, resolve botar ordem no orçamento da
união. É nesse momento que se descobre que os educandários repre-

8
Há constantes rumores – alguns mais, outros menos fundamentados – sobre a “venda” de
crianças nos orfanatos públicos e filantrópicos durante os anos 1970 e 1980 (Abreu, 2002).

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sentavam uma “verdadeira calamidade pública” (Curi, 2010). As forças
progressistas de então, que dominavam a filosofia pedagógica de boa
parte dos países ocidentais, ditavam o desmantelamento das grandes
instituições. Tornou-se evidente, assim, que os educandários eram um
desastre não só econômico, mas também político. Em 1976 foi assi-
nado o decreto colocando fim às colônias (e qualquer possibilidade
de segregação compulsória) e os internos das colônias eram insisten-
temente convidados a sair para, depois de décadas de segregação for-
çada, tentar a vida “lá fora”. Dentro de pouco tempo, os educandários
também propiciaram a “reintegração familiar”, despejando os filhos
“de volta” nas suas famílias.
Diante de uma política estatal que resultava, para os pacientes in-
ternados, na frustração de qualquer sentimento paterno ou materno,
é pouco surpreendente constatar uma relativa indiferença dos pais no
momento da reintegração familiar dos seus filhos É verdade que, nos
últimos anos antes da extinção das colônias, os impedimentos ao con-
tato tinham diminuído. Com o avanço dos tratamentos médicos dos
anos 1960, certas colônias até permitiam curtas estadias dos filhos. E
há índices que comprovam (dependendo da colônia) que alguns in-
ternos conseguiam desde cedo burlar as regras, trazendo seus filhos
“contrabandeados” (por vias escondidas) para visitas (Mendonça, 2012;
Fonseca, 2017). No entanto, em geral, o fim abrupto das grandes ins-
tituições no início dos anos 1980 representava o “reencontro” de pais e
filhos que mal se reconheciam, causando estranhamento de todo lado.


Políticas arbitrárias de família e suas justificativas morais
O que aconteceu com os filhos é, ironicamente, resultado das in-
tenções “sanitárias” progressistas do estado moderno. Havia, já no início
do século XX, controvérsias sobre a eficácia epidemiológica da segre-
gação dos doentes, mas prevaleceu uma política autoritária que acabou
por provocar atos de extrema violência dignas de situações de ditadura
e guerra. Basta comparar o que descrevo neste artigo com as narrativas

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relatadas por Marre (2014) sobre a Guerra Civil Espanhola. Encon-
tramos as mesmas cenas dramáticas de recém-nascidos arrancados dos
braços de suas mães parturientes, de crianças assustadas transportadas
para serem entregues a estranhos, dos avisos enviados pelo orfanato aos
pais, anunciando que tal ou tal filho tinha falecido (sem mais detalhes),
e das adoções “clandestinas” realizadas sem a autorização dos pais. E,
certamente, a história dos “filhos separados” desperta lembranças do
rapto dos filhos de presos políticos pelos militares durante a ditadura
argentina – tanto que hoje é usada uma mesma técnica genética para
tentar reunificar membros perdidos da família, mesmo décadas depois
da separação forçada (Penchaszadeh; Schuler-Faccini, 2012). No caso
brasileiro descrito neste texto, observam-se consequências trágicas se-
melhantes às encontradas nos casos espanhol e argentino – sugerindo
que faz pouca diferença para os “atingidos” que as motivações dos ges-
tores fossem “esclarecidas” ou “benévolas”.
Proponho agora inspirar-me no trabalho de Carla Villalta (2012)
que, no seu estudo sobre o sequestro de crianças durante a ditadura
argentina, revela o quanto um momento de violência excepcional nos
fala da violência de práticas rotineiras. Numa minuciosa reconstituição
de detalhes administrativos da época (1976-1983), essa autora mostra
como dispositivos legais para a adoção de crianças facilitavam o enco-
brimento dos sequestros, e como muitos desses mecanismos legais con-
tinuaram em vigência depois da ditadura, usados agora contra famílias
humildes sem poder político para resistir contra a retirada de seus fi-
lhos. Nesse mesmo espírito, eu gostaria de sugerir que a tragédia dos
“filhos separados” – uma história muito particular – pode nos ensinar
algo sobre políticas de atendimento à infância hoje.
Penso especialmente nas políticas contemporâneas de abrigagem
e adoção de crianças em dificuldade. Na farta e qualificada literatura
existente sobre a institucionalização de crianças e adolescentes em “si-
tuação de vulnerabilidade”, encontra-se relativamente pouca discussão
sobre o desligamento de jovens da instituição.9 É como se a problemati-

9
Dantas (2011) e Rifiotis (2017) têm pesquisado egressos que saem do sistema institucional
quando chegam à maioridade legal. A Associação Brasileira Terra dos Homens (2002ª, 2002b,

100

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zação analítica da vida institucional do jovem tivesse como pressuposto
o caráter não problemático da situação familiar projetada como pós-ins-
titucionalização. Pior, a constatação do frequente “fracasso” da reintegra-
ção familiar (efetivada dentro de prazos legais cada vez mais exíguos)
serve como prova do caráter desnaturado irrecuperável das famílias de
origem. Daí a ênfase nas famílias adotivas como principal, senão única,
solução para crianças vivendo situações de grande dificuldade. A família
“disfuncional” não merece continuar com o poder familiar, e a criança
deve ser liberada para ser assimilada numa nova família adotiva. Assim,
ironicamente, a “convivência familiar”, originalmente pensada para ga-
rantir apoio às famílias em dificuldade, é reinterpretada para acelerar a
colocação permanente e irreversível numa família adotiva.
Ora, o caso dos “filhos separados” que descrevi acima chama aten-
ção para um elemento crucial nessa história: quais as medidas institu-
cionais tomadas para nutrir os vínculos familiares? Isto é, para facilitar
ou mesmo permitir minimamente o contato entre as crianças abrigadas
e suas famílias de origem? Há, surpreendentemente, poucos estudos
sobre esse tema no Brasil (ou outras partes do mundo). Os que conheço
parecem reforçar a conclusão de Zapiola (2014), que sublinha a im-
pressionante persistência de uma lógica negadora dos laços familiares e
sociais de crianças abrigadas em instituições públicas e filantrópicas.10
Boa parte das pesquisas sobre instituições contemporâneas pare-
ce ignorar os laços familiares, tacitamente reforçando a ideia de que
os abrigados são, na sua maioria, “abandonados”.11 Ribeiro e Moraes
(2015) comentam a facilidade com a qual as próprias estatísticas so-
bre jovens abrigados podem ser mal-interpretadas, justamente para

2016) é uma das únicas fundações brasileiras a ter se dedicado sistematicamente a programas e
estudos sobre reintegração familiar. No exterior, encontramos também literatura sobre a reuni-
ficação familiar de crianças que passaram por “foster care” (ver, por exemplo, Marcenko et al.,
2011 e Child Welfare Gateway, 2012).
10
A base de seu estudo sobre a primeira instituição de acolhimento para meninos na Argentina
(uma colônia agrícola concebida conforme as ideias mais progressistas do início do século XX),
esta autora demonstra como se trata de uma filosofia institucional que atravessa o século vinte
e que só recentemente está sofrendo inflexões “embora não sem dificuldades” (2014, p. 196).
11
Ver Fávero et al. (2008) para uma rara olhada sobre as famílias de crianças e adolescentes
abrigados.

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não ameaçar estereótipos do senso comum – isto é, a crença de que os
meninos foram “abandonados” pelas suas famílias e que não mantêm
vínculo algum com a família original. Os poucos estudos que versam
sobre a manutenção dos vínculos entre o internado e sua família cha-
mam atenção para os obstáculos institucionais infindáveis a qualquer
contato (ver, por exemplo, Cruz, 2006).
Assim, com raras exceções (que normalmente dizem respeito à ma-
nutenção de vínculos entre irmãos), parece haver pouquíssimo encoraja-
mento institucional para que os internados mantenham contato com seus
familiares. De fato, existe uma falta espantosa de criatividade nas políticas
institucionais para esse fim. Raramente se ouve falar de técnicos ou pro-
fissionais dando telefonemas, facilitando horários ou fornecendo trans-
porte para pais que querem ver seus filhos.12 É possível que atualmente
alguns jovens abrigados consigam usar tecnologias modernas, Whatsapp
e Facebook, por exemplo, para estabelecer suas próprias vias de comu-
nicação. Contudo, sejam quais forem as práticas informais, o fato é que,
fora os raros programas de acolhimento familiar, a manutenção de vín-
culos entre as crianças abrigadas e seus familiares ocupa muito pouco
das atenções dos planejadores e administradores.
Em compensação, a noção da “família mal-tratante” é uma preo-
cupação constante. Em muitos casos, as famílias de onde vêm os jovens
internados parecem ser vistas como tão perigosas e contaminadoras
quanto os pais leprosos que descrevi acima. Quero deixar bem claro:
admito sem problema que há situações em que − por motivos eco-
nômicos ou outros − a criança não pode continuar morando com sua
família de origem; mas o que estranho é cortar todo contato. Sugiro
que, ironicamente, a política estatal para lidar com as famílias continua
seguindo o modelo segregacionista da lepra. A intervenção estatal pa-
rece cunhada para provocar uma espécie de desmame sentimental que,
em vez de corrigir as condições que provocaram a retirada da criança,

12
Encontramos esses elementos na descrição de programas de acolhimento familiar (foster
families) (Moraes, 2012; Fonseca; Schuch, 2009; Valente, 2013) – ironicamente, uma
modalidade de “convivência familiar” muito negligenciada no Brasil.

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tendem a exacerbá-las. Assim, não há nada surpreendente nos repe-
tidos fracassos das tentativas de reintegração familiar, nem na pressa
cada vez mais acentuada para tornar esse modelo segregacionista defi-
nitivo – por meio da adoção plena.
Ouellette (1995), comentando a adoção de crianças em Quebec
(Canadá), sugere que o sistema judiciário “sanitariza” a relação entre
pais e filhos adotivos, limpando a criança de qualquer associação ao
seu passado. Isto é, que queira mais informações ou não sobre a vida
preadotiva do seu filho, a família adotiva nunca saberá mais do que o
que os funcionários de juizados querem lhe dizer. O acesso das famílias
biológicas à informação permanece, em geral, ainda mais difícil.
Pergunta-se quais as possibilidades de uma mãe – depois de destituída
do pátrio poder – receber quaisquer notícias sobre seus filhos abrigados
ou vivendo em famílias adotivas.13
E quanto ao filho adotivo, é impressionante o quanto, não obstante
mudanças na legislação brasileira14, pessoas adotadas, já adultas, con-
tinuam enfrentando obstáculos nos juizados quando tentam se valer
do direito de consultar seu próprio processo adotivo, repleto de no-
mes e endereços (Fonseca, 2011b). Uma rápida comparação com pro-
cedimentos em outros países sugere que, mesmo sem contato direto,
pode existir uma variedade de maneiras para facilitar o fluxo de infor-
mações – incluindo o acesso a processos administrativos ou, na falta
deste, a troca de cartas entre pais biológicos e o filho dado em adoção
(Allebrandt, 2013). Contudo, em muitos lugares, a política oficial pare-
ce continuar a busca de uma maior distância possível entre pais e filhos,
tal como nos antigos preventórios, para prevenir o perigo de contágio
(essa vez, moral).
O que ocorreu com os “filhos separados” era considerado, na época,
como uma política esclarecida de cuidado. Hoje, estudos mostram

13
Em outro lugar, descrevemos o discurso de certo juiz explicando para uma mãe prestes a dar
seu filho em adoção as consequências dessa “entrega”: “Você não saberá nunca mais nada dessa
criança. Será como se ela tivesse morrido” (Fonseca, 2011ª).
14
Conforme o artigo 48 da lei 8.069 de 2009, “O adotado tem direito de conhecer sua origem
biológica, bem como de obter acesso irrestrito ao processo no qual a medida foi aplicada e seus
eventuais incidentes, após completar 18 (dezoito) anos”.

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que dependendo do país existiam outros métodos para combater a
“epidemia” de lepra, e que o modelo segregacionista não era o mais
eficaz. Assim, a separação forçada de pais e filhos, vista naquela época
como política de um governo humanitário, é hoje encarada como
afronto aos direitos fundamentais das pessoas, exigindo reparação pelo
estado violador. Espera-se que, na atual conjuntura, os planejadores
se conscientizem quanto a semelhantes situações problemáticas, se
informem quanto às diversas alternativas e, assim, evitem a repetição
de violações do passado.

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PARTE 2
_____________

Participação política
de crianças e jovens

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Entre la tutela y la represión:
nociones sobre la infancia y la identidad
mapuche ante la participación política infantil
en Neuquén, Argentina.
______________________________________________________________
Andrea Szulc

Introducción
Las situaciones de exclusión que viven las poblaciones indígenas
en las diversas regiones de Argentina, en el caso de la provincia del
Neuquén ‒que investigo desde el año 2000‒ ha dado lugar a numerosas
movilizaciones y acciones de las organizaciones y comunidades ma-
puche, en las que suelen participar tanto adultos como niños.
Analizamos aquí entonces el caso de los niños mapuche de la
patagónica provincia del Neuquén involucrados en diversas acciones de
reclamo por la contaminación ambiental generada por los incontables
emprendimientos hidrocarburíferos en la región. Examinamos los
desencuentros y conflictos suscitados, considerando en particular el
rol asignado a los niños desde los discursos del estado y desde otras
perspectivas.
Así, en este texto analizaré por un lado cómo y porqué los niños
participan de tales actividades políticas, qué nociones mapuche sobre
la infancia y sobre la identidad indígena intervienen. Por otro lado,
procuraré explicar cómo responde generalmente el gobierno provincial
(estadual), y también qué nociones sobre la infancia y sobre la identi-
dad mapuche operan en tales respuestas ‒como represión policial y/o
intentos de revocar la patria potestad de los padres‒ que reactualizan

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la lógica de la minoridad (Vianna, 2010), y la impronta entre tutelar
y represiva del poder estatal sobre la idealizada y a la vez demonizada
población indígena (Souza Lima, 2012).

Algunas coordenadas imprescindibles


Los conflictos que atraviesan las diversas comunidades mapuche
en la Argentina, y las respuestas estatales, no pueden entenderse sin
considerar las situaciones de exclusión que históricamente viene pade-
ciendo esta población.
Estos procesos se encuentran históricamente enraizados en el
modo en que fue incorporada al estado nación argentino. Si bien varió
regionalmente (Szulc, 2004): “la consolidación del estado-nación
argentino a fines del siglo XIX incluyó entre sus rasgos fundantes
el intento de eliminar, silenciar o asimilar a su población indígena”
(Gordillo; Hirsch, 2010, p. 15). Así, implicó a nivel general un proceso
de construcción en el cual junto con la nación argentina se fueron
recortando distintos tipos de “otros internos”, grupos excluidos
de los atributos definidos como nacionales (Briones, 1995). En el
caso de los pueblos indígenas, una vez neutralizados militarmente,
quedaron incorporados como colectivo subordinado, “potenciales
ciudadanos, aunque sin pleno acceso a los derechos de los cuales
goza al resto de la población” (Carrasco; Briones 1996, p.13). Es por
ello que puede vincularse el caso argentino con el análisis propuesto
por Souza Lima para el Brasil, pues también aquí ha operado el
poder tutelar, entendido como el “ejercicio del poder estatal sobre
espacios (geográficos, sociales, simbólicos), que actúa a través de la
identificación, nominación y delimitación de segmentos sociales
despojados de las capacidades plenas necesarias para la vida cívica”
(Souza Lima, 2012, p. 784, nuestra traducción). Téngase en cuenta que
las personas indígenas fueron consideradas por la ley civil argentina
como “menores” –independientemente de su edad‒ hasta mediados
del siglo XX (Lenton, 1992).

110

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En ese misma dirección, el sentido común hegemónico en
Argentina ha excluido a los pueblos indígenas de la “identidad nacio-
nal”, proyectando y relegando su existencia a un tiempo pasado remoto,
previo a la conformación del estado nación (Szulc, 2004). Este proces-
so, por una parte, ha implicado un tardío reconocimiento legal de sus
derechos, junto con una marcada asistematicidad en la política indi-
genista, signada aún hoy por la tendencia a “‘dar respuestas puntuales
a casos puntuales’ […] desde los momentos claves de consolidación
del estado argentino” (Briones, 2005, p. 36). Por otra parte, esto ha
significado la fosilización de las culturas indígenas – y la consecuen-
te deslegitimación de sus manifestaciones culturales contemporáneas
(Chiodi, 1997), como se puede ver en el tratamiento del tema indígena
en los contenidos educativos (Novaro, 1999), “donde subyace hasta el
día de hoy el enfoque evolucionista decimonónico” (Szulc, 2004, on-
line). Esta invisibilización resulta llamativa, considerando que las últi-
mas estadísticas dan lugar a sostener que la población que se reconoce
como indígena o descendiente de indígena en Argentina es proporcio-
nalmente mayor a la de Brasil.1
La situación del pueblo mapuche en la Argentina es particular-
mente compleja. Principalmente porque han sufrido un genocidio,
antes, durante y después de la llamada “conquista del desierto”, que
implicó el exterminio de parte importante de la población, el “repar-
to” de mujeres y niños como sirvientes de las elites de los centros ur-
banos, y el confinamiento de la población sobreviviente en campos de
concentración (Briones; Delrio, 2007; Pérez, 2016). Durante el siglo

1
La Encuesta de pueblos indígenas, el instrumento construido por el estado para ampliar la
información que se desprendiera del Censo Nacional 2001, se desarrolló entre 2004 y 2005 y
sostiene que 600.329 personas se reconocían entonces como indígenas o descendientes de in-
dígenas en Argentina. Disponible en: <http://www.indec.gov.ar/webcenso/ECPI/index_ecpi.
asp>. Acceso en: 28 oct. 2013). Como en 2011 destacaron Gordillo y Hirsch, esto supone que
se referencia con lo indígena el 1,5% del total de población, para pensar en contraste, esta cifra
triplica los datos de Brasil (dónde el 0,4 % de la población se encuentra en iguales condiciones)
Disponible en: <http://pib.socioambiental.org/es/c/no-brasil-atual/quem-sao/povos-indige-
nas>. Acceso en: 28 oct. 2013). Los datos argentinos más recientes estiman una población
indígena aún más significativa, con un total de 955.032 personas, esto es el 2,38% del total de
población (Censo 2010).

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XX a través de largos itinerarios, algunos fueron obteniendo permisos
de ocupación precaria, de zonas marginales para el modelo agroex-
portador (que no interesaban a los latifundistas, por su aridez), y en
algunos casos incluso algún reconocimiento de tierras en carácter de
reservas permanentes.
Sin embargo, estas zonas que a nadie interesaban, comenzaron a
cobrar relevancia a partir de la creciente explotación hidrocarburífera,
minera y turística, y de un procesos de traspaso y concentración de la
tierra en manos de grandes empresarios, algunos extranjeros, confor-
mando así extensos latifundios (en uno de los que, por ejemplo, se ha
privatizado el acceso a un lago), lo que viene acrecentando la conflic-
tividad territorial de numerosas comunidades mapuche. Ante lo cual,
nos encontramos hoy en un escenario aún más complejo por la forma
en que crecientemente el gobierno está respondiendo represivamente
a las demandas indígenas, con criminalización y encarcelamiento de
dirigentes indígenas, extranjerización de los mapuche en particular, y
represión violenta, que ya ha ocasionado detenciones de hombres, mu-
jeres y niños, heridos de distinto grado de gravedad, desapariciones
forzadas y también muertes.2
Planteado este escenario, mi objetivo en este texto es reflexionar
desde una mirada antropológica sobre cómo y porqué en los casos que
vengo estudiando en la provincia del Neuquén desde hace 18 años, los
niños y niñas mapuche frecuentemente participan en las acciones de
reclamo en el espacio público, y cómo actúa ante eso el estado provin-
cial y porqué.
Pues en la Argentina, en las últimas décadas, se han incorporado
con rango constitucional reconocimientos normativos de los derechos
indígenas y de los derechos del niño, la niña y los adolescentes, que en
ambos casos incluyen el derecho a la participación. Sin embargo, la im-

2
Disponible en: <https://www.pagina12.com.ar/54307-represion-tiros-y-un-desaparecido>.
Acceso en: 30 nov. 2017; Disponible en: <https://www.pagina12.com.ar/78518-represion-
y-muerte-en-la-patagonia>. Acceso en: 30 nov. 2017; Disponible en: <http://www.
eldestapeweb.com/preparados-una-guerra-asi-fue-el-belico-operativo-prefectura-que-mato-
un-mapuche-n36363>. Acceso en: 30 nov. 2017.

112

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plementación de tales reconocimientos viene resultando problemática,
en un campo de interlocución en el cual los diversos actores –gobiernos
nacional y provinciales, organizaciones y comunidades indígenas, y or-
ganismos de derechos humanos– disputan la legitimidad de tal partici-
pación a través de discursos y prácticas enraizados en nociones diversas
sobre la niñez, sobre los pueblos indígenas y sobre sus derechos, que
ameritan un análisis antropológico. Coincidimos así con la propuesta
formulada por Fernanda Bittencourt (2005) en cuanto a la necesidad
de estudiar etnográficamente la participación infantil, problematizan-
do el sentido común o vulgata instalada a partir de la Convención In-
ternacional sobre los derechos del Niño, la niña y el adolescente.
A partir entonces de materiales etnográficos y de registros peri-
odísticos, analizaremos aquí las reacciones estatales ante la partici-
pación política infantil ‒como represión policial, institucionalización e
intentos de revocar la patria potestad de los padres‒ que ponen en ten-
sión el discurso de los derechos humanos, reactualizando viejas lógicas
de la minoridad (Vianna, 2010) y oscilando entre la demonización y el
ejercicio de un poder tutelar sobre los pueblos indígenas (Souza Lima,
2012). Argumentaremos aquí que la semejanza en las reacciones es-
tatales obedece a la existencia, en los contextos analizados, de compar-
tidas preocupaciones morales y políticas sobre el ideal de niño y la me-
dida de su “participación”, al igual que sobre la no menos idealizada y a
la vez demonizada noción acerca del “indígena”, en particular mapuche.
A partir de este análisis, reflexionaremos sobre los diversos sen-
tidos que adquiere ser niño y ser indígena para las distintas miradas
involucradas, qué roles y espacios son los legitimados para ellos, y cómo
tales sentidos conforman lógicas específicas en las que se inscriben dis-
tintas intervenciones institucionales. Al mismo tiempo, nos propone-
mos problematizar la cuestión de los derechos humanos, abordando
cómo los estados involucrados tienden a administrar los conflictos,
cómo categorizan a estos particulares “otros”, y cómo a su vez ellos
se apropian y participan de las disputas de sentido por definir en qué
consisten tales derechos.

113

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Contexto y abordaje etnográfico

El estudio aquí presentado se basa en materiales etnográficos ori-


ginales y fuentes periodísticas relevados entre el año 2001 y 2017 en
la zona centro y sur de la provincia del Neuquén en el marco de una
investigación más amplia sobre los procesos identitarios entre niños
mapuche, y sobre las tensiones en la implementación de sus derechos
(Szulc, 2015). La estrategia metodológica ha sido combinar registros
de campo, con la indagación de fuentes, interpretadas desde el conoci-
miento de situación que brinda el propio trabajo de campo.
Actualmente el pueblo mapuche se asienta principalmente en las
provincias de La Pampa, Buenos Aires, Neuquén, Río Negro, Chubut
y Santa Cruz –en Argentina– y en Arauco, Bio-Bio, Malleco, Cautin,
Valdivia, Osorno y Chiloe, en Chile, con una importante proporción de
población dispersa en zonas rurales no reconocidas como comunidad
mapuche (Carrasco; Briones, 1996) y más del 70% asentada en centros
urbanos, según estimaciones del Instituto Nacional de Estadística y
Censos. En Argentina, la población mapuche ha sido estimada entre
113.000 y 300.000 personas, dependiendo de la fuente. En la región
patagónica reside cerca del 70% de las 113680 personas mapuche esti-
madas por el Instituto Nacional de Estadística y Censos (ECPI 2004-
2005), siendo la provincia del Neuquén una de las provincias del país
con mayor proporción de población indígena, 7.86 %, según el Cen-
so 2010, que estimó 43.357 personas mapuche en esta provincia. En
Neuquén existen más de cincuenta comunidades mapuche, parte im-
portante de las cuales no ha logrado la regularización de su personería
jurídica ni de sus territorios.
A pesar de su peso demográfico y de la creciente visibilidad de sus
demandas, las comunidades no reconocidas por el gobierno neuqui-
no (aunque en algunos casos sí por el estado nacional) y la población
mapuche urbana, no suelen ser contempladas en las políticas asisten-
ciales o de reconocimiento provinciales. A su vez, el tener registrada su
personería jurídica tampoco implica necesariamente que se respete su

114

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derecho a la consulta previa, libre e informada en temas de emprendi-
mientos hidrocarburíferos, ni sus territorios.
A partir de un abordaje etnográfico, entonces, trabajaremos sobre
un corpus conformado tanto por materiales de primera mano como
por fuentes secundarias, procurando ofrecer claves para comprender los
desacuerdos suscitados por la participación política de niños indígenas
en la provincia del Neuquén.

El caso
Aunque el análisis se basa en numerosas situaciones registradas a
lo largo de los años en que investigo en este contexto, en el presente
apartado describiré brevemente una serie de hechos en particular, que
si bien ha ocurrido hace ya bastante tiempo, condensa prácticas y ma-
trices de sentido aún vigentes, y resulta por tanto un buen modo de
ejemplificar esta problemática.
El día viernes 12 de octubre de 2001 en la ciudad de Neuquén
–capital de la provincia homónima–, un grupo de niños, niñas y ado-
lescentes mapuche se encontraba pintando murales sobre los derechos
del niño en la sede de una empresa petrolera acusada de contaminación
ambiental3, a modo de contra festejo por el feriado nacional del “Día
de la Raza”.4
El gobierno provincial de Neuquén desplegó ante este hecho dos
tipos de respuesta. En primer lugar, envió a la policía provincial, que
disolvió por la fuerza la manifestación y detuvo en dependencia policial
a uno de los adolescentes de mayor estatura por unas horas, probable-
mente suponiendo que sería mayor de edad. En segundo lugar, poste-
riormente y ante el debate suscitado por tal accionar, el gobernador de
la provincia que ordenó el operativo policial se desligó de toda respon-

3
Disponible en: <http://www1.rionegro.com.ar/arch200110/s13j10.html>. Acceso en: 10 ene.
2018.
4
En el año 2010 pasó a denominarse “Día del Respeto a la Diversidad Cultural”.

115

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sabilidad por la violenta represión e irregular detención e, invocando
también los derechos del niño, denunció a los miembros de las organi-
zaciones mapuche y a la titular de la “Defensoría de la niña, el niño y
el adolescente” como responsables de las consecuencias de la represión
policial, por haber expuesto a los niños a una situación riesgosa, al per-
mitirles o no haberles impedido realizar tal acción en la vía pública.
Como anticipé, no fue esta la primera ni la única ocasión en que
los niños, niñas y adolescentes mapuche han participado de actividades
políticas, así como tampoco constituye una excepción el que diversos
agentes estatales manifiesten su desaprobación o bien directamente
acusen a los padres y madres mapuche de “abandono”.5 A continuación,
abordaremos las tensiones que en estos conflictos surgen en torno a los
niños y niñas mapuche, orientándonos a analizar las nociones sociales
de infancia y de identidad mapuche que entran en disputa.

Reflexiones antropológicas6
Ante las problemáticas descritas, desde una perspectiva antropo-
lógica, se tornó imprescindible atender a las tensiones entre discursos
y prácticas. Fonseca y Schuch (2009) ofrecen elementos para pensar la
distancia entre los discursos generales sobre los derechos de los niños
y las situaciones sociales concretas de vulneración de derechos, al plan-
tear que los discursos suelen universalizar la condición hegemónica de
la infancia, la idea de una “infancia universal” (vinculada a la inocencia,
la protección y la preparación para la vida adulta), pero esto no equivale
a universalizar las condiciones de acceso a derechos que habiliten expe-
riencias infantiles menos desiguales.

5
Disponible en: <http://rionegro.com.ar/arch200401/24/r24j05a.php>. Acceso en: 10 ene.
2018.
6
Algunas reflexiones fueron inicialmente trabajadas comparativamente con Noelia Enriz, con-
siderando también el caso de niños mbya guaraní que mendigan en las calles de la ciudad de
Posadas (Szulc; Enriz, 2016).

116

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Así, en primer término consideramos que para comprender ade-
cuadamente la participación de los niños en las actividades políticas
mencionadas, es necesario tener en cuenta y analizar los conflictos que
las poblaciones indígenas atraviesan actualmente: confinamiento terri-
torial, contaminación ambiental, necesidades básicas insatisfechas, etc.
Si bien no podemos explayarnos aquí sobre tales conflictos, con-
sideramos relevante enfatizar algunos puntos. Como hemos planteado
junto con Noelia Enriz en otra ocasión (Szulc; Enriz, 2016), por una
parte, frente a tales vulneraciones de sus derechos, las respuestas de los
estados provinciales y nacional no se manifiestan de modo tan inmediato
y activo como ante las acciones de reclamo o las prácticas de subsistencia
en las ciudades capitales que “atentan contra el orden público”. Es decir,
frente a una denuncia de intrusión de una empresa o particular no in-
dígena en un territorio indígena, las reacciones estatales suelen demorar
y desenvolverse de modo lento y burocrático, directamente brillar por
su ausencia, o incluso revertir la imputación, acusando a los indígenas
de usurpación.7 En cambio, “frente a la presencia de niños indígenas en
el espacio público, la respuesta del estado es pronta, firme y consistente:
esos niños deben ser retirados del allí y/o ser separados de sus familias y
comunidades, consideradas ya sea incompetentes para cuidarlos o bien
directamente culpables de descuidarlos” (Szulc; Enriz, 2016, p. 208).
Por otra parte, entonces, es importante señalar que es en tales ter-
ritorios donde los niños indígenas ‒tanto como los adultos‒ sufren re-
currentes vulneraciones de sus derechos, ante la inacción o complicidad
estatal; en igual medida que por el accionar estatal represivo ante sus
demandas o estrategias de subsistencia en el espacio urbano.
Así, el accionar estatal en lugar de propiciar la resolución de los
conflictos que involucran derechos fundamentales ‒que como plantea-
mos atraviesan a las comunidades como un todo, del que los niños for-
man parte‒, por el contrario, suele generar más conflictividad, y nuevas

7
Incluso existiendo desde 2006 la Ley Nacional 26160 de emergencia territorial indígena, que
suspende los desalojos y ordena la realización de un relevamiento tendiente a la regularización
de sus territorios, el avance en su implementación ha sido inusitadamente lento (Gorosito,
2013).

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vulneraciones de derechos, atentando no sólo contra las nociones in-
dígenas de niñez, comunidad, paternidad y maternidad, sino al mismo
tiempo contra derechos reconocidos con rango constitucional a todo
niño y también contra los derechos colectivos de los pueblos indígenas.
En este sentido, las respuestas públicas de distintos actores de go-
bierno que hemos descrito se fundan en una arraigada noción de sen-
tido común que recluye a los niños al ámbito doméstico (Szulc, 2006),
según un modelo de niñez surgido a partir de la modernidad occidental
que instauró una especie de “cuarentena” por la cual los niños ‒reclui-
dos en su “hogar” y en las aulas‒ fueron separados del fluir cotidiano de
su entorno, en particular de los juegos de azar, las actividades laborales,
políticas y festivas, en las que con anterioridad participaba plenamente
(Ariès, 1962). Ariès ha analizado esto como un proceso de progresiva
privatización que fue sacando a los niños de la calle y del mundo del
trabajo, y recluyéndolos en “pequeños guetos” espacios desurbanizados
como sus hogares, las instituciones de protección y las escuelas (1995).
Así, el proceder estatal se funda en la premisa de que los niños
indígenas deben desarrollarse exclusivamente en los contextos comu-
nitarios rurales. Entonces, mientras los derechos territoriales de la po-
blación indígena son descuidados e incluso vulnerados por los propios
estados, hegemónicamente se insiste en la fijación de tal población al
ámbito rural comunitario (Szulc, 2004), más aún tratándose de niños.
Pues el modelo hegemónico de niñez suele cosificar a los niños,
relegándolos a “un rol completamente pasivo, más de objeto que de
sujetos: Objeto de educación, cuidado, protección, disciplinamiento o
de abandono, abuso y explotación. El signo de la acción ejercida so-
bre ellos puede ser positivo o negativo, pero en ambos casos el lugar
asignado a los niños es el de meros receptores de las acciones de otros,
por supuesto, adultos; noción que remite a la lógica dicotómica que ha
marcado el abordaje de otras problemáticas, como género y etnicidad”
(Szulc, 1999).
Por tanto, esta mirada estatal confronta claramente con la noción
de niño compartida por los mapuche y otros pueblos indígenas según
la cual los niños y niñas constituyen sujetos activos de sus comunidades,

118

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teniendo plena participación en las distintas actividades e iniciativas de
su grupo (Szulc, 2006; Tassinari, 2007; Enriz, 2010), incluyendo por lo
tanto las actividades productivas y reivindicativas. A la vez, desde las
concepciones indígenas de niñez se enfatiza la necesidad de cuidado de
los niños, cuidado que no puede ser delegado en cualquier otra persona,
lo que conduce a que usualmente los niños acompañen a su familia en
todas las tareas que ésta desarrolla. En ese sentido, es importante recal-
car que, en las acciones de reclamo aquí analizadas, como anticipamos,
generalmente los niños participan junto con sus comunidades.
La idea de que los niños, en compañía de los adultos de sus comu-
nidades, se encuentren en situaciones de peligro por el sólo hecho de no
estar en su entorno cotidiano, supone entonces no sólo una percepción
estática referida al desarrollo de la persona y un trato de los niños como
meros objetos, sino también, en los casos analizados, una consideración
de los niños indígenas ya no como niños, sino como menores.
Pues debemos recordar que desde un comienzo, la noción de
“niño” ‒no sólo en Argentina sino en el contexto americano y europeo
occidental‒ ha estado históricamente reservada a determinado sec-
tor de la población infantil. Mientras en torno a “la infancia” se han
construido representaciones positivas y conmovedoras (Vianna, 2010),
definiéndola como objeto de socialización y protección en manos de
la familia y la institución escolar, los “menores” ‒excluidos de aquel
status y considerados potencialmente peligrosos‒ devinieron objeto de
control socio-penal estatal a través de instancias diferenciadas (García
Méndez, 1993).
Al reclamar, vender artesanías o mendigar en las calles, los niños
indígenas son entonces excluidos del status de “niño” ‒a quienes las
familias y la escuela ofrecen cuidado, contención y educación‒ y se tor-
nan “menores”, por hallarse en situación de abandono “moral o materi-
al” y considerados potencialmente peligrosos, encarnando el fantasma
de la pobreza entreverada con la criminalidad y sugiriendo la ausencia
de familia, o al menos de una familia capaz de “gestionar menores, apar-
tándolos de los males que podrían alcanzarlos, pero también de los que
ellos mismos les pudieran causar” (Vianna, 2010, p. 29). Así, es desple-

119

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gando una lógica de la minoridad que el Poder Ejecutivo de Neuquén
ordenó aquel 12 de octubre el desalojo policial, activando dispositivos
represivos ante la actividad de los niños mapuche de pintar murales.
De este modo, se evidencia que a pesar de las modificaciones en
la legislación8, el modelo de niñez y su correlato, la minoridad, tal
como lo hemos delineado en los últimos párrafos, mantiene aún su
carácter hegemónico en los contextos aquí analizados, enraizados en el
sentido común.
Debemos tener presente entonces este modo de entender la niñez,
al considerar las tensiones que genera la participación de los niños en
las actividades políticas en el espacio público, las cuales para sectores no
indígenas constituyen no sólo una grave transgresión de la “cuarente-
na” a la que deberían estar sujetos todos los niños, sino que son objeto
también de la persistente tendencia a criminalizar las prácticas de los
“otros”, tanto la protesta social como las actividades de subsistencia
callejeras, como abordamos comparativamente en otra ocasión (Szulc;
Enriz, 2016).
Planteamos que hay una criminalización de las prácticas, por un
lado, por las diversas afirmaciones y acciones que desde el estado cul-
pabilizan a las familias, considerando que “atentan” contra los niños
al exponerlos a situaciones de “peligrosidad”. Con lo cual, al acusar a
los padres de los niños por haberlos descuidado y a la defensora de la
niñez neuquina por mal desempeño, al igual que en las diversas de-
nuncias de abandono o negligencia parental que se han registrado en
diversos casos, el accionar gubernamental reactualiza la condición de
minoridad, como relación de dominación que involucra una cadena
de evaluaciones y autoridades superpuestas (Vianna, 2010, p. 29). Los
casos analizados evidencian así que, como ha planteado Robert Coles,

8
En Argentina la CIDN fue ratificada e incorporada a la Constitución Nacional en 1994, a
partir de lo cual algunas provincias han ido sancionando leyes que adecúan su normativa a los
postulados de la Convención, entre ellas, la provincia del Neuquén y la ciudad de Buenos Aires
en 1999, y la provincia de Buenos Aires en 2004. En el año 2005 se sancionó en Argentina la
Ley Nacional 26.061 de la Protección Integral de los Derechos de Niños, niñas y adolescentes,
derogando los artículos aún entonces vigentes de la Ley 10.903 del Patronato de Menores.

120

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la población de sectores subordinados “siempre vive más cerca de la
ley, más cerca de los caprichos e inclinaciones de la autoridad política”
(1986, p. 31, traducción propia).
Asimismo, en los casos aquí trabajados consideramos que la clá-
sica teoría de la patria potestad o poder parental se ve potenciada al
articularse con la tendencia característica de la guberna mentalidad
neoliberal (Gordon, 1991) de responsabilizar a los propios sujetos –o a
sus tutores en el caso de menores de edad‒ de gobernar su propio com-
portamiento (Rose, 2003), la cual viene de diversos modos operando
fuertemente en nuestro contexto, en particular cuando de población
indígena se trata (Lenton; Lorenzetti, 2005; Szulc, 2013).
En ese sentido, debemos tener en cuenta que tal accionar estatal
se vincula también con el hecho de que se trate de población indí-
gena, como anticipamos invisibilizada, proyectada a tiempos remotos
y deslegitimada entonces su existencia en el presente, una población
que más allá de los cambios normativos, continúa en cierta medida
tutelada, es decir involucrada en un complejo “vínculo de sumisión/
protección” (Souza Lima, 2012, p. 785, nuestra traducción), vínculo que
en los últimos años en el caso mapuche va transformándose en una
demonización por parte del estado y los medios masivos de comuni-
cación, que como anticipamos agrava y complejiza la cuestión.
Nos parece en ese sentido relevante enfatizar las implicancias que
conlleva la escenificación de los conflictos indígenas en contextos ur-
banos, evidenciando que, como ha planteado Souza Lima para el caso
del Brasil, “algunos de los peores aspectos de la tutela pueden siempre
aflorar” (2002, p. 22, nuestra traducción).
En el caso mapuche, la alta proporción de población urbana y la
profundidad histórica de tal situación, ha sido acompañada por la crea-
ción de organizaciones indígenas urbanas, y por la articulación, aunque
no en forma continua, entre las organizaciones rurales y urbanas, las
cuales, entre otras líneas de reclamo, vienen hace tiempo instalando la
legitimidad de su vida en las ciudades (Szulc, 2004). Es de destacar, sin
embargo, que los niños y adolescentes “de los barrios” cotidianamente
suelen ser blanco preferido de irregulares acciones policiales, hecho
que se extrema cuando participan de movilizaciones políticas.

121

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Así, las actividades contestatarias en el espacio público inspiran
“desconfianza según los sentidos hegemónicos, que ven en la política
un agente contaminante de “la cultura” (Szulc, 2011, p. 93). Porque al
reclamar en la vía pública, están interpelando al estado, pues en ese
mismo acto en que se expresan las condiciones de vida, las poblaciones
indígenas manifiestan la distancia entre los idearios de derechos y la
experiencia cotidiana de las comunidades. Y al expresar ese conflicto,
ponen en tensión la idea de sujeto indígena exótico, inocente y habitan-
te del ámbito rural, el estereotipo al que Alcida Ramos sugerentemente
denominó “indio hiperreal” (Ramos, 1990) y que el sentido común he-
gemónico insistentemente ubica en el tiempo pasado remoto, al volver
a situarlos como parte del “patrimonio muerto” en los términos en que
lo planteara Ratier (1997).
Así, se instalan fuertes “sospechas sobre la autenticidad de inte-
lectuales indígenas cuya escolarización o capacidad política los distancia
de la imagen del ‘indígena verdadero’, tan pasivo e incompetente, como
sumiso y fácil de satisfacer desde políticas asistenciales mínimas”
(Briones, 2005, p. 39).
Tales sospechas parecen extremarse cuando es un niño, concebido
como maleable por definición (Szulc, 2013), quien con su actividad en
las calles visibiliza sus injustas condiciones de vida, o bien cuestiona
y reclama por sus derechos. Estas prácticas se evidencian como inad-
misibles para los gobiernos locales, pues la acción de los niños en la
vía pública supone ‒desde el ideal de sentido común occidental y de
clase media‒ una anomalía que ‒al confundir “los géneros distintos de
las cosas” (Douglas, 1973, p. 76)‒ entraña cierto peligro, como ha sido
señalado también en otros casos de niños en las calles (Stephens, 1995)
y de niños trabajadores (Szulc, 2001). En los últimos años, incluso, en
la ciudad de Buenos Aires se han debatido proyectos de ley para prohi-
bir la presencia de niños y adolescentes en movilizaciones políticas.9

9
El diputado de la ciudad de Buenos Aires Julián Obligio, ha promovido esa iniciativa, que
alienta la prohibición de que niños y adolescentes formen parte de colectivos públicos de
demanda, a través de la aplicación de multas; presumiblemente a partir de la transcendencia
que en su momento adquirió una serie de reclamos de estudiantes secundarios por problemas

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En ocasiones, no obstante, en lugar de impugnar la pertenencia
étnica de quienes realizan el tipo de actividades en cuestión, se procede
por el contrario a esencializar tales comportamientos. Así, este tipo de
argumento opera por momentos en el caso mapuche, donde en ocasio-
nes se atribuyen sus reclamos a un supuesto “ethos” combativo, que se-
ría propio de este pueblo. Confiriéndole a su tan mentada “belicosidad”
carácter esencial, se reifica y se demoniza como “terrorista” su compor-
tamiento, en lugar de considerar las vulneraciones de sus derechos, las
injustas condiciones de vida que los motivan.
Por último, un punto relevante a destacar es cómo el gobierno pro-
vincial (estadual) dirige también su accionar represivo a otros actores
no indígenas, vinculados directa o indirectamente con estas acciones.
Puede tratarse de otros efectores públicos, o bien de actores de la socie-
dad civil que se involucran en la problemática indígena brindado apoyo
de algún tipo, y que por lo tanto son acusados de “mal desempeño” o
de “complicidad” por agentes de los poderes ejecutivos provinciales. Ya
mencionamos cómo esto ocurrió con la Defensora de los Derechos del
Niño en Neuquén, u otros defensores los derechos indígenas, como en
el más reciente caso de Santiago Maldonado.

Comentarios finales
El artículo aquí presentado permite abrir una serie de reflexiones
en torno a diversos ejes vinculados con la tensión general que repre-
senta para los estados ciertas prácticas de las poblaciones indígenas,
especialmente respecto de los niños. En primer lugar, queda claro que
las respuestas del estado provincial de Neuquén frente a las actividades
políticas de niños y niñas indígenas, reeditan el modelo de la minori-
dad, a pesar de que el mismo haya sido derogado en la legislación, y a
pesar de que los funcionarios públicos en su discurso apelen a la retóri-
ca de la protección integral y a los derechos del niño.

edilicios. Disponible en: <http://www.pagina12.com.ar/diario/elpais/1-225754-2013-08-01.


html>. Acceso en: 16 oct. 2015.

123

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Al mismo tiempo, en segundo lugar, el análisis presentado eviden-
cia cómo persisten en el abordaje estatal de las problemáticas indígenas
acciones y discursos ligados al poder tutelar que caracterizó al indige-
nismo en diversos países de América. Pues, como ha planteado Souza
Lima, el fin jurídico de la tutela “no debe ilusionarnos en cuanto al fin
de formas de ejercicio del poder, de moralidades y de interacción que
podríamos calificar como tutelares” (Souza Lima, 2002, p. 23)
Asimismo, en tercer lugar, nos parece interesante el caso de los
niños mapuche aquí trabajado para reflexionar en torno a la compleja
relación entre la niñez y la política. El trabajo presentado evidencia que
si bien para el modelo occidental hegemónico la niñez se vincula con
la política sólo como objeto de protección y asistencia, ésta es en reali-
dad constituida políticamente (Carli, 2002; Scheper-Hughes; Sargent,
1998; Stephens, 1995). Ello se nota claramente cuando los propios
niños dan cuenta de su posicionamiento y manejo político, como en el
caso mapuche aquí analizado, al igual que en el trabajo de A.M. Smith
(2007), y nos lleva a sostener, siguiendo el planteo pionero de Coles
(1986), la necesidad de reconocer y comprender la participación de los
niños en los procesos políticos, que como atinadamente ha planteado
Bittencourt, no se reduce a “tomar la palabra” (2005).
En este sentido, queremos resaltar que a pesar del cambio norma-
tivo a nivel provincial y nacional, a partir del cual entre otros se recono-
ce el derecho de los niños a la participación, coincidimos en lo señalado
por Corona y Pérez (2000, citado en Smith, 2007) en cuanto a que el
discurso de la “participación infantil” al tiempo que abre un espacio
válido para la expresión de las opiniones de los niños, corre el riesgo
de pasar por alto las experiencias “reales” de participación infantil, por
ejemplo, en los movimientos de resistencia popular.
Plateamos aquí que dicha tendencia obedece a la conceptualiza-
ción idealizada de niñez, y cosificante de los niños, mediante lo cual
a su vez se neutraliza su potencial político, es decir su posible pro-
puesta transformadora, al negar la dimensión antagónica constituti-
va de “lo político” (Mouffe, 2007) o la mera posibilidad de que tales
sujetos actúen políticamente. Al mismo tiempo, es también resultado
de la persistencia de una imagen idílica y a la vez demonizada sobre

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“el indígena”, y de la política como un agente contaminante. En ese
mismo sentido, en cuarto lugar, podemos afirmar que la participación
infantil en actividades políticas despierta tan fuertes reacciones, por la
persistencia en el sentido común hegemónico del ya citado modelo de
infancia, que aspira a su exclusión de esta esfera de la vida social (Szulc,
2001), al mismo tiempo que confiere a los niños inconmensurable valor
afectivo ( Jenks, 1996). Así, ya sea que los niños se encuentren comer-
cializando artesanías o reclamando por sus derechos, la respuesta esta-
tal opera a partir de una lectura de la situación como un “problema del
orden público”, atendiendo más a las molestias que puedan ocasionar
a la población no indígena de las ciudades que a las vulneraciones de
derechos que estos niños sufren.
Por último, los materiales analizados evidencian la necesidad de
problematizar antropológicamente la noción de “derechos”, atendien-
do a que los “derechos humanos están en un constante proceso de
desarrollo y que su historia está altamente politizada” (Liebel, 2013,
p. 27). Pues las Declaraciones de Derechos Humanos –entre ellas las
referidas a Derechos del Niño‒ al constituirse como “textos abstrac-
tos” (Godelier, 1998), pueden ser utilizadas en distintos contextos con
diversas interpretaciones, abriendo un campo de negociaciones y dis-
putas que requiere de un abordaje extra-legal (Messer, 1993). Es por
esto que, en nombre de la protección de derechos, el gobierno del
Neuquén reprimió a los niños mapuche que pintaban murales sobre
sus derechos aquél 12 de octubre, deteniendo a uno de los adolescen-
tes. Compartimos con Schuch una mirada sobre los Derechos Hu-
manos que, alejándose de una concepción ontológica, los aborda desde
los significados, usos, producciones y apropiaciones en sus formas con-
cretas, situadas histórica y contextualmente, atentas a que deben con-
siderarse “los sentidos y significados que son construidos en contextos
particulares, en la materialidad de las experiencias de los agentes que
constituyen la realidad social en sus múltiples dimensiones” (Schuch,
2009, p. 15. Traducción propia).
Consideramos que así, distanciándonos de una noción de dere-
chos abstracta y genérica, pueden comprenderse con mayor profundi-
dad los modos en que los diversos niveles de estatalidad involucrados

125

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en los casos en que trabajamos administran los conflictos, desde qué
nociones de niñez, de lo indígena y de los derechos humanos, prestan-
do al mismo tiempo atención a cómo estos “otros” disputan por definir
el sentido de tales derechos.
En el contexto presente, no podemos dejar de señalar nuestra
preocupación por el carácter crecientemente represivo que el estado na-
cional y los estados provinciales patagónicos despliegan, y que a ritmo
acelerado vienen multuplicando los hechos de violencia punitiva frente
a la participación política de niños y jóvenes mapuche.

Nota al mapa: En rojo coloreada la provincia de Neuquén.


Fuente: www.educ.ar (16 de Octubre de 2015) Ministerio de Educación de la Nación.

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“De cabeça e com o coração”: o fazer política
de jovens ocupantes das escolas estaduais de
Porto Alegre (maio e junho 2016)
_____________________________________________________________
Chantal Medaets
Nadège Mézié
Isabel Carvalho

Entre 11 de maio e 21 de junho de 2016, aproximadamente 150


escolas estaduais do Rio Grande do Sul1, a maioria situada na capi-
tal, foram ocupadas por estudantes secundaristas em protesto contra as
más condições de ensino. Sobrepondo-se a uma greve de professores2 e
declarando seu apoio a ela, os secundaristas pediam ainda: a contrata-
ção imediata de mais professores e o fim do parcelamento dos salários
dos docentes; o repasse de verbas estaduais atrasadas (que deveriam
garantir uma manutenção mínima do espaço físico das escolas); a sus-
pensão da tramitação na Assembleia Legislativa Estadual do Projeto
de Lei n. 44 (PL 44), que permitia a ampliação da participação da ini-
ciativa privada em serviços públicos3. Em nível nacional, os estudantes
se posicionavam contra o Projeto de Lei “Escola sem Partido”. Inspi-
rados pelos movimentos de ocupação de escolas ocorridos no Chile em
2006, e no estado de São Paulo em 2015, a ocupação dos colégios pelos

1
O número de escolas varia segundo as fontes. Enquanto a Secretaria Estadual de Educação
fala de 120, o movimento Ocupa Tudo RS estimou em 180 as escolas ocupadas.
2
A greve de professores da rede estadual do Rio Grande do Sul ocorreu entre 16/5/2016 e
7/7/2016. Na pauta, um pedido de reajuste salarial e a revisão do calendário de implantação
do piso salarial nacional.
3
Apesar de ter se comprometido, com o fim das ocupações, em adiar a votação deste projeto de
lei para 2017, o governo levou o PL a plenário poucos dias antes do natal de 2016.

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secundaristas gaúchos impôs, ao mesmo tempo, a suspensão das aulas e
uma agenda de negociações com a Secretaria Estadual de Educação e
com o próprio governo do estado do Rio Grande do Sul.
Neste texto abordamos esse movimento por um ângulo preciso: o
da experiência de um grupo de secundaristas ocupantes da escola esta-
dual Toledo Barbosa4, localizada num bairro residencial de classe média
na região norte de Porto Alegre. Muitos dos seus alunos não eram, no
entanto, moradores do bairro e faziam longos trajetos de ônibus para
chegar ali. Acompanhamos diferentes atividades organizadas durante
a ocupação e, logo após o seu término, realizamos entrevistas coletivas
e individuais e tivemos muitas conversas informais com os jovens do
pequeno grupo que participou da ocupação: aproximadamente 30 dos
675 alunos inscritos no Ensino Médio. No contato com esses jovens
que, em muitos casos, descobriam com esta experiência também a da
militância, o entrelaçamento entre experiência militante e vida pessoal
e afetiva ficou evidente. Para dar visibilidade a esse entrelaçamento e às
particularidades de cada um dos jovens com quem convivemos, esco-
lhemos apresentar o material empírico no formato de retratos. As his-
tórias do envolvimento dos jovens com as ocupações carregam, ao mes-
mo tempo, elementos particulares, pessoais, e refletem aspectos mais
gerais do movimento, que dão uma ideia da rotina, organização e de
suas preocupações naquele momento. Assim, em cada retrato, um con-
junto inextricável de convicções políticas, aprendizagens, informações
factuais, fragmentos de trajetórias, experiências pessoais e emoções, por
vezes íntimas, são apresentadas.
Escolhemos, para este texto, apresentar dois retratos que nos per-
mitem abordar analiticamente dois eixos temáticos. Ao final do primei-
ro retrato, de Taísa e André, abordaremos a questão do uso do espaço
como uma modalidade de ação política, o que inscreve esse movimento

4
O nome da escola, assim como o de todos os alunos aqui citados, foram alterados para preser-
var suas identidades. Reafirmamos aqui o agradecimento, já feito pessoalmente, aos jovens com
quem trabalhamos, pela confiança e pelos bons momentos passados juntos.

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particular numa tendência global de protestos sob a forma de “ocupa-
ções” (Byrne, 2012; Pickerill et al., 2015). Ao final do segundo retrato,
de Amanda e Helena, trataremos da presença da afetividade na mili-
tância e dos impactos do engajamento político sobre a vida pessoal, o
que inscreve esta pesquisa no campo dos estudos sobre emoções na ação
política (Goodwin et al., 2001; Fernández Álvarez, 2011).

Taísa e André
André (16 anos, 1o ano do Ensino Médio) não podia dormir na
ocupação por causa do estado de saúde de sua mãe, “em casa sou só
eu e ela, então se acontece alguma coisa de noite, tenho que estar lá”.
Contudo, antes das oito horas da manhã, nos contaram, ele já estava na
escola acordando “com batuque de chinelo” quem ainda dormia. Como
a maioria dos outros “ocupantes”, ele vinha de ônibus, usando o crédito
do seu Tri5 e, depois do almoço organizado pelos responsáveis do dia
pela cozinha, seguia no início da tarde com Taísa (17 anos, 3o ano do
Ensino Médio) para um curso de programação informática ofereci-
do pela parceria da Rede Brasil Sul de Televisão (RBS TV) ‒ afiliada
gaúcha da Rede Globo ‒ com a Pontifícia Universidade Católica do
Rio Grande do Sul (PUCRS). Dos 30 estudantes de Ensino Médio de
Porto Alegre selecionados para frequentar o curso (entre centenas de
candidatos), 16 participavam de ocupações em suas escolas. “Eles esco-
lhem os que têm mais iniciativa, ‘empreendedores’ eles falam, então, cai
bem em que tá nas ocupações”, André nos explicou.
Para melhor aproveitar de suas habilidades em informática, na
divisão de tarefas da ocupação na Toledo, André e Taísa passaram a
integrar a comissão de comunicação. Seguindo o manual que reúne
ensinamentos de secundaristas das ocupações do Chile (2006), da
Argentina (2010-2011) e de São Paulo (2015) e que circula em grupos
de Whatsapp e Facebook, os ocupantes da Toledo, como de outras

5
Passe de ônibus da cidade de Porto Alegre.

132

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escolas de Porto Alegre, se organizavam por comissões.6 Na Toledo
foram criadas a comissão de relações externas (responsável por reuniões
com representantes do poder público e pelo contato com outras
escolas), a comissão de comunicação e mídia, de segurança, de limpeza
e a comissão da cozinha.
Na comissão de comunicação, entre outras funções, Taísa e André
respondiam e tentavam agendar as várias ofertas que eles recebiam
pela página no Facebook da ocupação na Toledo7 de pessoas se dis-
pondo a dar oficinas: “A gente teve oficina de gênero, de primeiros
socorros, sobre o Irã, teve uma sobre racismo [...] Na real, a gente quer
aprender o máximo possível!” Ao falar das oficinas, o entusiasmo vi-
sível de André era o mesmo de outros integrantes da ocupação. “Não
tem nada a ver isso de falar que a gente não quer aula! Cara, toda a
educação é bem-vinda aqui dentro. Você quer vir falar sobre teatro,
sobre feminismo, sobre a França? Qualquer coisa nova que a gente vier
a aprender, é superbom”, ele explica. O público dessas oficinas, que na
Toledo aconteceram num ritmo de uma a duas por semana durante o
período de ocupação, era sobretudo de alunos que aderiam ao movi-
mento. Quando perguntamos sobre a ausência de outros alunos nessas
atividades, seus jovens organizadores deram como justificativa, não
sem um certo desdém, a falta de interesse dos colegas: “Esse pessoal
tá mais preocupado com as férias!” (Taísa); “Eles querem certificado e
não conhecimento” (Carla, 16 anos, 2o ano do Ensino Médio). Mesmo
nas oficinas de física e química organizadas com objetivo explícito se
exercitar para o Enem, a presença de alunos que não participavam do
movimento da ocupação foi baixa.

6
O manual pode ser lido em: <https://issuu.com/omaleducado/docs/como-ocupar-verso-
web_fe32bdfbe0b515>. Acesso em: 10 maio 2018. Voltaremos a falar dele e das conexões entre
os diferentes movimentos de ocupação das escolas abaixo.
7
No Rio Grande do Sul, como já havia sido o caso de outros movimentos de ocupação de
escolas em outras cidades, a maioria dos grupos de ocupantes criou uma página no Facebook,
da sua escola ocupada, com nomes como “OcupaToledo” ou “OcupaTudoJulinho”. Por
meio dessas páginas, os jovens recebiam mensagens de apoio (como também mensagens de
desaprovação e insultos), pessoas se dispunham a fazer oficinas e os alunos faziam também
pedidos de alimentos que precisavam, por exemplo.

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O modelo de ensino “professor no quadro e aluno sentado escu-
tando” (Helena, 16 anos, 2o ano do Ensino Médio), que os jovens com
quem conversamos reconheciam como aquele mais adotado nas aulas,
foi criticado por muitos deles, que viam nas oficinas realizadas durante
a ocupação um tipo de educação muito mais “aberta” e atrativa. O de-
poimento de André, mostra essa percepção:

Por exemplo, a gente teve uma oficina de física aqui na Toledo,


né? Daí a gente sentou em círculo e tudo, e o professor começou
falando, e o que o professor falou? Tipo, coisas interessantes. Ele
falou sobre coisas de física... a matéria física! E todo mundo estava
ouvindo e falando, todo mundo conversando, e não era nada pare-
cido com o que era uma sala de aula, entendeu? [Por]que na aula
é o professor, o quadro e cálculos. Então, por que a gente tem que
ter uma física tão chata na sala de aula, [por]que a gente não pode
abordar a matéria física, o conteúdo de física, de uma forma que
nem esse moço que veio dar oficina para a gente abordou, enten-
deu? Porque, tipo, seria muito mais interessante, seria muito mais...
Daria vontade de estudar física, entendeu? (risos)

Além de serem percebidas como participativas, as oficinas abor-


davam temas que os jovens diziam não ter a oportunidade de ver em
aulas. Na Toledo houve oficinas sobre o racismo, feminismo, filosofia
(dadas por professores da UFRGS), primeiros socorros e defesa pessoal
(dada por ex-alunos), desenho, movimentos sociais e ocupações pelo
mundo (dadas por secundaristas ou estudantes universitários vindos de
outros estados), além de oficinas de matérias regulares, como a de física
descrita acima, e de química.
Se criticavam as aulas e seus métodos com frequência, todos pare-
ciam concordar que perder essas mesmas aulas regulares era um problema.

Olha, é uma faca de dois lados... Porque todo mundo quer ter aula.
Eu também quero ter aula! Bah, eu tô no terceiro ano, tudo que eu
mais quero é terminar e sair da escola! Mas às vezes a gente tem
que sacrificar uma coisa que é do nosso interesse pessoal por uma

134

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causa geral, que é pra todo mundo, né? E até mais pra quem vem
depois da gente do que pra gente mesmo... Por todos os alunos que
vão vir a estudar aqui ou em outras escolas (Taísa).

Com relação ao espaço físico do colégio, a atitude foi similar: os


“ocupantes” não deixaram de criticar as más condições do prédio esco-
lar, mas longe de tratá-lo com desprezo, reinvestiram nesse espaço. As
chaves das diferentes salas, as muitas das quais eles não tinham acesso
antes da ocupação, não saíam das mãos dos líderes do grupo. Nas con-
versas conosco, eles as manipulavam, balançavam, tocavam a todo mo-
mento. Em quase todas as escolas, os ocupantes encontraram pilhas de
livros nunca abertos, materiais de laboratório em caixas e até estoques
de alimentos que não vinham sendo servidos (ouvimos por exemplo, a
história de um grupo que encontrou uma grande quantidade de pacotes
de filés de frango congelados que, de acordo com os alunos, as respon-
sáveis pela cozinha haviam dito não ter recebido). Também circulavam
diversos relatos sobre consertos e pequenas melhorias realizadas em
diferentes prédios escolares de Porto Alegre durante as ocupações: um
pai pedreiro que arrumou o telhado, um irmão mais velho que conser-
tou a parte elétrica de um setor da escola, muitas pinturas.
Na Toledo, Taísa tomou a frente da pintura dos banheiros. “As
portas tavam cheias daquelas frases nada a ver, frases agredindo os ou-
tros... Pintamos tudo de branco. Claro, falta terminar bem ainda, mas
a gente fez alguma coisa pelo colégio, sabe? Não ficou só reclamando.”
Vários ocupantes relataram de fato sentir, agora, a escola como sua:
“É uma coisa bem legal, porque a gente se sente dentro, não é aquela
coisa que tu vem, tem aula e vai embora. Em casa, não suporto limpar
o banheiro, mas aqui eu limpei! Tu te sente parte disso, porque a gente
é parte disso, e o que é nosso tem que cuidar!” (Taísa). Em mutirão, na
Toledo, eles também lavaram todas as paredes das salas. Mas já naque-
les últimos dias de ocupação, André já ponderava, pensativo, que “o
difícil vai ser quando os outros voltarem...”.
De fato, durante a primeira semana de aula após o término da ocu-
pação, um lugar concentrou visualmente as posições antagônicas dos

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alunos. Um grande grafite celebrando a ocupação foi pintado, durante
a ocupação, num muro no pátio central da escola (Figura 1). Ao lado
das figuras principais de uma guria e um guri em trajes de manifestação
(lenço em torno da boca, capuzes na cabeça, punho fechado, spray na
mão), uma série de bordões provocativos foram inscritos (como “Tchau
querida”, “Estamos com a PM”, “Vão pra Cuba”), ecoando uma rivali-
dade que opõe, nos últimos anos, um espaço bem maior que o desta ou
de outras escolas de Porto Alegre (Bucci, 2016).

Figura 1. Graffiti em homenagem à ocupação, com inscrições provocativas

Fotografia das autoras, 30 de junho de 2016. [o nome da escola e dos alunos foram desfocados]

Ocupar como modo de protesto, em Porto Alegre e alhures


As ocupações das escolas em Porto Alegre se inscrevem num mo-
vimento mais amplo de luta política de estudantes secundaristas que
recorrem à estratégia de ocupação do espaço escolar como forma de dar

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visibilidade e força às suas reivindicações. Em 2006, no Chile, durante
o movimento que ficou conhecido como a Revolta dos Pinguins, mais
de 400 escolas foram ocupadas por estudantes secundaristas que bus-
cavam melhores condições de ensino, a gratuidade do transporte para
estudantes e uma redução da taxa de inscrição para a Prova de Seleção
Universitária (Aguillera Ruiz, 2012; Bellei et al., 2010; Domedel; Peña
y Lillo, 2008; Pinochet, 2007). Em 2010 e 2011, na Argentina, escolas
foram ocupadas em Córdoba e Buenos Aires (Enrique, 2010; Beltrán;
Falconi, 2011). Em 2012, estudantes argentinos da Frente de Estudian-
tes Libertarios redigem e divulgam o manual Cómo tomar un colégio?,
com base nas experiências chilena e argentina.8 Em 2013, o coletivo de
estudantes paulistas O Mal-Educado publicou em seu site uma tradu-
ção em português deste manual9, que se tornou um documento-guia
para todas as ocupações no Brasil. Entre novembro de 2015 e janeiro
de 2016, em São Paulo, na capital e em algumas cidades do interior
do estado, mais de 200 escolas da rede estadual foram ocupadas por
secundaristas que se opunham ao plano de “racionalização” do siste-
ma educativo proposto pelo governo Alkmin (Campos et al., 2016;
Martins et al., 2016; Piolli et al., 2016; Santos; Segurado, 2016). Se-
guindo essas ocupações em São Paulo, em 2016 uma “onda” de ocu-
pações se alastrou por mais de 20 estados brasileiros – no Paraná mais
de 700 escolas foram ocupadas.10 As maneiras de agir dos jovens nes-
ses diferentes lugares foi bastante semelhante (Catini; Melo, 2016;
Pinheiro, 2017; Novaes, 2016)11, o que não é surpreendente, já que esses
movimentos estavam conectados e seguiam modelos comuns. O ma-

8
Deste manual, encontramos apenas menções na internet (ver, por exemplo: <http://www.perfil.
com/noticias/politica/difunden-un-manual-para-tomar-y-ocupar-escuelas-20120921-0010.
phtml>. O manual foi publicado no site da Frente de Estudiantes Libertarios, site que não
existe mais.
9
Sobre o coletivo O Mal-Educado, ver seu site: <https://gremiolivre.wordpress.com/quem-
somos/>. Acesso em: 10 maio 2018. A versão em português do manual pode ser encontrada
no link citado na nota 6.
10
Ver, entre outras, a matéria: <https://g1.globo.com/educacao/noticia/pelo-menos-21-
estados-tem-escolas-e-institutos-ocupados-por-estudantes.ghtml>.
11
Estes dois trabalhos apresentam dados das ocupações em diferentes estados brasileiros,
oferecendo uma visão do conjunto das ocupações no país.

137

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nual a que nos referimos acima e os documentários Acabou a Paz, isto
aqui vai virar o Chile!12 e A rebelião dos pinguins13, que retratam respec-
tivamente as ocupações de escolas em São Paulo e no Chile, tornaram-
se referências importantíssimas e eram repetidamente lembrados pelos
estudantes. Se o manual informava e dava diretrizes para a organização
cotidiana dos ocupantes (ali recomenda-se a divisão das tarefas em co-
missões, a realização de assembleias diárias, de um registro de pessoas
que entram e saem da escola, a realização de atividades como rodas de
conversas e oficinas durante a ocupação), os filmes eram fonte de ins-
piração e instrumento de construção da legitimidade do movimento.
“Tá tudo ali...”, nos diziam os jovens da Toledo, que consideravam que
as imagens explicavam melhor que palavras as suas “causas”. Não raro
pediam que seus pais os assistissem, esperando assim convencê-los do
bem fundado e da importância da sua luta, como veremos no retrato
de Amanda.
Além de estarem conectados entre si, esses movimentos estudantis
latino-americanos de “ocupação” inscrevem-se também num conjunto
mais amplo de protestos que vem acontecendo, desde os anos 2000, em
diferentes lugares do mundo e que recorrem à estratégia da ocupação
de espaços públicos.14 Para os secundaristas como para os militantes
envolvidos em outras ocupações que se multiplicam depois do Occupy
Wall Street e a ocupação da praça Tahrir (Egito) durante a primave-
ra árabe, ambos eventos ocorridos em 2011, ocupar implica assumir
temporariamente o controle de um espaço público ou prédio estatal,
reafirmar seu caráter público e realizar ali atividades que espelhem as
ideias que defendem os manifestantes (Byrne, 2012; Harvey, 2012;
Mitchell, 2012; Pickerill et al., 2015; Pleyers; Glasius, 2013; Ogien;
Laugier, 201415). Seguindo essa perspectiva, em Porto Alegre, o enga-

12
Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=LK9Ri2prfNw>. Acesso em: 10 maio
2018.
13
Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=3J_5EVhJaJQ>. Acesso em: 10 maio
2018.
14
Sobre a difusão e a circulação dos movimentos sociais, ver Sommier (2010a).
15
Para Laugier e Ogien (2014, p. 29), esses movimentos recentes de protesto via ocupação têm
diversos pontos em comum: buscam por horizontalidade nas relações entre seus membros (fre-

138

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jamento dos jovens com os espaços físicos não foi o de destruição ou
depredação, mas ao contrário, de cuidado, como se vê na postura de
Taísa coordenando a pintura dos banheiros, e em tantas outras ações
no cotidiano da ocupação.
Não se deve no entanto, a nosso ver, interpretar essa relação de
cuidado com o espaço de forma ingênua. Os jovens desejavam passar
uma imagem de responsáveis, sérios, comprometidos, que respeitam o
bem comum e lutam por melhorias nesse bem. Havia, assim, um esfor-
ço de comunicação explicitamente reconhecido pelos jovens ocupantes,
que consideravam essa uma boa estratégia para contradizer aqueles que
os acusavam de serem “vagabundos”, “invasores”, “vândalos”, um “ban-
do de maconheiros”16 – muitas vezes colegas, alunos da própria escola,
ou pais que não concordavam com as ocupações.
Ocupando uma escola, a estratégia do cuidado e a postura de
“críticos-construtivos” se refletia também no que os jovens militantes
diziam sobre a educação, sobre possibilidades de aprendizagem. Desa-
provavam os métodos de ensino com os quais estavam acostumados na
escola, mas mostravam-se abertos e desejosos de receber outros tipos
de experiências educativas. Nesse aspecto, também, a crítica não era
desacompanhada de sugestões e ideias de como “fazer diferente”. As
oficinas eram descritas como sendo a prova viva de que as aulas pode-
riam ser muito mais interessantes. Essas atividades, no entanto, ocu-
pavam apenas uma pequena parcela do tempo dos estudantes (uma a
duas oficinas por semana) e, de acordo com os relatos, em outras escolas
não era diferente. Assim, grande parte do tempo em que estavam na
escola ocupada, pelo que observamos, os jovens passavam conversando
“de tudo que tu possas imaginar”, como disse um deles, ou seja, tendo
“papos cabeça” sobre política e questões sociais, mas também trocando

quentemente promovendo a rotatividade de funções), são apartidários e recusam-se a filiar-se


a partidos políticos (ou, no caso dos estudantes, a entidades de representação estudantil como
a UNE, UBES, etc.), são não violentos e organizam-se majoritariamente por meio de redes
sociais.
16
Expressões que apareciam em comentários, de pessoas contrárias à ocupação, na página do
Facebook OcupaToledo.

139

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confidências, falando de acontecimentos do dia a dia, olhando seus te-
lefones e comentando. Quando não estavam em manifestações de rua,
nos encontros que ocorriam em outras escolas ou ainda cuidando das
tarefas cotidianas como cozinha e limpeza, os víamos em torno da mesa
da “cozinha” falando sério ou fazendo gozações, descansando nos col-
chões dos “quartos”, telefones nas mãos, ou conversando em pequenos
grupos perto do portão de entrada. Para esse pequeno grupo de apro-
ximadamente 30 jovens que ocuparam a Toledo, o espaço escolar ficará
“para sempre”, como diziam, marcado pela experiência da ocupação:
“Nunca mais isso aqui vai ser só uma classe...”; “Pra mim, aqui sempre
vai ser a cozinha, sempre”.
Pintar o graffiti no muro central do pátio da escola foi também
uma forma de marcar o território17, criando um lugar de memória, na
medida em que o graffiti celebrava a experiência da ocupação e tinha
vocação a permanecer após seu término. Os nomes dos ocupantes as-
sinados no centro da imagem revelam o orgulho de ter participado do
que eles qualificaram de “momento histórico” (num post no Facebook).
Já os insultos e as provocações registrados nele, em seguida, tornavam
evidentes as dissensões existentes entre o alunos. Sobre isso é preciso
dizer que em nenhum momento, no contato conosco pelo menos, vimos
emergir entre os ocupantes a preocupação em tentar incluir ou realizar
atividades capazes de atrair os alunos que não estavam participando da
ocupação. Quando perguntamos a eles sobre isso, suas respostas foram
às vezes evasivas e às vezes bem diretas: “Caguei pros ignorantes que
não nos querem! (risos)”, nos disse Caio (3º ano do Ensino Médio, um
dos líderes da ocupação). “A gente se basta”, replicou rindo Carol (2º
ano do Ensino Médio), antes de completar: “Mas a gente vai ficar bem
sozinho [após o término da ocupação]..., isso vai”.
A permanência do graffiti foi questionada pela direção da escola e
por parte dos alunos. Logo após o fim da ocupação, em sete de julho de
2016, um plebiscito para decidir se ele deveria ser retirado foi realizado

17
Diversos estudos mostram que uma das funções do graffiti é justamente de marcar o territó-
rio, ver, por exemplo, Ricardo Campos (2013) e Nicolas Mensch (2014).

140

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pelo grêmio da escola, que esteve à frente da ocupação. A maioria dos
votos obtidos foi em favor da sua permanência. Durante as férias, no
entanto, a direção retirou-o, alegando ter de fazer obras naquela parede
em função do vazamento de um cano que passava ali. A decisão pro-
vocou, como era de se esperar, a indignação dos alunos ex-ocupantes.

Helena e Amanda

A ocupação foi, por razões diferentes, um momento de inflexão


na relação de Amanda e de Helena com seus pais. Em 2016, Amanda
tinha 15 anos, Helena 16 anos e ambas cursavam o segundo ano do
Ensino médio.
Helena entrou na Toledo no primeiro ano do Ensino médio, e
logo percebeu que o “clima” ali era muito diferente do que ela tinha
conhecido na sua antiga escola.

É um clima geral. Aqui na Toledo as pessoas têm cabeça aberta,


aceitam as pessoas do jeito que elas são sabe? Na minha outra esco-
la ficavam olhando o tênis, a roupa...., se tá muito diferente, se é
barata, se tu anda mal arrumada, se tem um jeito... Tudo eles já iam
começar a falar de ti, entendeu? Aí antes de entrar aqui eu fiquei
uma semana escolhendo a roupa que ia [vir] pra escola! E quando
eu olhei assim, todo mundo “foda-se a roupa!” Aí eu “ah, então
foda-se!”Até os meninos, tipo “ah esse é gay, não sei o quê”, nunca
ouvi isso... É muito diversificado o ar do colégio.

Ao final do primeiro ano do Ensino Médio, em meio a esse clima


que ela percebia como sendo “cabeça aberta”, “diversificado”, Helena
viveu uma experiência reveladora na relação uma colega de turma: “é
que eu descobri que eu sou... eu sou bi, tá ligado? Eu também gosto
de ficar com meninas. E essa, ela foi um amor mesmo. A primeira vez
que me apaixonei assim. Eu amava muito ela”. Filha de um policial
e de uma cabelereira que Helena considera “superconservadores”, ela

141

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não queria contar aos pais, mas a mãe acabou descobrindo por meio
da irmã, e “ficou chocada”, conta Helena. A mãe proibiu o namoro e
apesar da menina não ter “bem obedecido”, a proibição teria afetado a
relação: “a gente acabou se afastando... porque eu não tinha coragem
de enfrentar minha mãe, eu preferia mentir sabe? E ela [a namorada]
não aceitava isso...”. Esse primeiro namoro homossexual acabou por
terminar, e as brigas em casa então diminuíram. Até chegar a ocupação.
Com as conversas, as trocas e o apoio do grupo durante a ocupa-
ção, Helena nos contou não ter mais conseguido “ficar quieta”, escon-
dendo suas preferências e histórias:

Aqui, a gente fala de tanta coisa sabe? Além das coisas de política
mesmo. Então a gente se apoia. E tiveram as oficinas, uma de
gênero, uma de feminismo, com pessoas que... tipo, não se prendem
a padrões, sabe? Tudo isso...

Helena estava, durante a ocupação, saindo com outra menina, e


mesmo com os enfrentamentos em casa sendo difíceis ela dizia não
estar mais disposta a “se esconder”:

Eu vou me assumir e deu. A mãe fica “não, isso você tá sendo in-
fluenciada, porque não é o que tu quer, porque tu só tem 16 anos e
não sabe o que tu quer, porque tu gosta sim de homem”. Então tipo,
ela quer impor, entendeu? “Não, tu gosta de homem sim.” “Mãe
quem sabe do que eu gosto sou eu! Oi... Meu corpo, minhas regras!”
(Risos)

Helena vê a afirmação da sua orientação sexual – e, mais ampla-


mente, do seu direito de fazer escolhas próprias – como um processo,
que começa com sua entrada na Toledo e tem na experiência da ocupa-
ção uma etapa crucial:

Se eu pensar, desde o dia que entrei aqui as coisas foram mudan-


do. Mas é que agora foi bem forte. É que se tem uma coisa que
eu aprendi aqui com a ocupação, todo mundo aqui [aprendeu],

142

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com certeza. É que não dá pra ficar aceitando coisa que é imposta,
e ficar quieto.

Amanda também decidiu enfrentar a família durante a ocupação.


Se questões ligadas à sexualidade não faziam parte das suas “reivindi-
cações”, como ela se refere às reclamações que fazia aos pais, o pano
de fundo da desavença é o mesmo de Helena: um sentimento de des-
respeito em relação as suas escolhas. Os pais de Amanda a impediram
de participar da ocupação. Depois de tentar conversar e negociar essa
proibição com eles e de não ter obtido escuta, a jovem decidiu então
fugir de casa. Ao sair, ela deixou uma longa carta a seus pais:

Eu não estou em casa hoje e nem vou estar durante um tempo.


Podem me procurar no colégio e na casa de todos os meus ami-
gos, mas vocês não irão me achar. Não estou saindo de casa por-
que sou “rebelde” ou porque estou “louca”, mas sim por uma causa:
o diálogo.18

A carta continua, enumerando pontos que Amanda considerava


impossíveis de continuar tolerando: os “não e pronto” impostos pelos
pais sem mais explicação, a diferença de tratamento, sobretudo no que
se refere às tarefas domésticas, que Amanda sentia entre ela e seu ir-
mão e o que a jovem percebia como uma falta de interesse dos pais por
ela. O que aparecia como tão importante para a jovem de 15 anos era
que seus pais a vissem, vissem o que a mobilizava naquele momento e
que estava sendo tão forte e importante para ela. Por meio da atenção,
mesmo que breve, que ela pedia que seus pais dessem ao movimento
das ocupações, era também para seus movimentos e seus interesses que
ela chamava a atenção. O reconhecimento dos pais parecia, assim, fun-
damental para Amanda.19

18
Depois de citar a carta em entrevista, Amanda aceitou compartilhar trechos dela conosco,
via Messenger.
19
Há aqui uma correspondência entre a busca pelo reconhecimento do movimento, de sua le-
gitimidade, uma busca por um reconhecimento coletivo dos jovens que querem ser vistos como

143

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Pedi pra tu, mãe, curtir a página “ocupa Toledo” que mostra por
fotos e textos o que a gente está fazendo lá dentro. Queria teu
entendimento, e talvez até teu apoio se possível, mas não foi o que
rolou. Por último, mas não menos importante, implorei para vocês
assistirem os documentários A rebelião dos pinguins e Acabou a paz,
isso aqui vai virar o Chile. Contei que descreviam as ocupações no
Chile e São Paulo. O objetivo era que vocês compreendessem a
grandeza do movimento. Que não somos só nós, da Toledo [nome
da escola modificado], que estamos na luta. São + de 180 escolas
ocupadas apenas no RS. É algo novo no Brasil, algo totalmente
diferente das outras formas de manifestações, e eu só gostaria que
vocês tivessem tido o mínimo interesse em conhecer. Nem que fos-
se por mim (trecho da carta de Amanda aos pais).

Amanda passou duas semanas dormindo na casa de amigos. Vol-


tou quando a mãe, com quem trocava mensagens por Facebook (“Ah, se
eu não tivesse dado pelo menos sinal de vida, ela ia na polícia!”, explica
Amanda rindo), disse que aceitaria que Amanda participasse do movi-
mento. A força e a motivação para fazer esse enfrentamento, Amanda
atribui ao apoio do grupo e à experiência da ocupação. Ela falava emo-
cionada da experiência de companheirismo vivida nesse período:

Aqui a gente criou um companheirismo, uma parceria sabe?


Quantas vezes a Taísa me emprestou o Tri dela, gastei um monte
o Tri dela. Porque pra eu poder sair de casa, minha casa [casa dos
pais] era aqui do lado, mas a casa onde tava era longe. [...] Então
era cada um cuidando do outro. A gente fala que meio que a gente
virou uma grande família, sabe?

atores políticos competentes e também legítimos (face aos governantes, aos adultos em geral, a
seus pais...) e ainda uma busca de reconhecimento no âmbito pessoal, por escolhas e caminhos
trilhados individualmente. Todas estão intimamente ligadas. As reflexões de Axel Honneth
(2003) sobre as diferentes formas de “luta por reconhecimento” ou “contra o desprezo” seriam
úteis para aprofundar essas reflexões que evocamos aqui brevemente.

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“É, uma grande família...”, completa Taísa, que nos escutava com-
penetrada.
Por fim, Amanda insistiu sobre a importância da vivência da ocu-
pação e do grupo como impulsionador da ação. O fato de ter encontra-
do outras pessoas que também acreditam, que também se mobilizam, e
com quem eles vivem a experiência de fazer, de integrar um movimento
em ação, parece ter tido uma força incontestável.

Principalmente, o que eu tiro daqui, é a coisa de lutar pelos seus


direitos, sabe. Porque eu já era uma pessoa que não concordava, não
me conformava com certas coisas, mas eu não ia atrás. Eu reclamava,
mas não fazia entendeu? Então, o que adianta reclamar e não fazer?
E aqui eu aprendi que a gente tem que fazer. Até essa coisa de sair
de casa. Antes eu já pensava em dar um tempo de casa, mostrar tudo
que eu não gostava, mas eu não fazia nada. Eu aprendi que eu tenho
que lutar pelo que eu quero. Lutar e ter esperança nas coisas. Porque
tem pessoas que querem mudar as coisas, às vezes a gente não vê, mas
tem... E aqui dentro eu encontrei pessoas assim (Amanda).

A fala de Amanda ecoa com a percepção de André:

Além desse espírito de família, o que eu quero guardar, repassar, é


esse sentimento novo de que tem gente que quer melhoria... Isso
tinha quase morrido em mim, porque na minha outra escola eu via
que ninguém lá queria fazer nada, ninguém fazia, era uma merda.
Aqui eu descobri que tem gente que realmente quer, quer melho-
rias, quer fazer as coisas. Então isso fez voltar essa chama em mim,
ver que tem gente se apoiando... que dá pra se apoiar nas mudanças.

Entrar “de cabeça e com o coração”


A partir dos anos 1990, estudos têm mostrado a importância de
incluir as emoções em análises sobre movimentos sociais, protestos e
militância política (Demertzis, 2013; Goodwin et al., 2001; Goodwin;

145

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Jasper, 2006; Fernández Álvarez, 2011). Até então, elas tinham ficado
“à sombra” (Fernandez Alvarez, 2011, p. 64), já que desde os anos 1960-
1970, estratégias políticas racionais eram privilegiadas nas análises.20
No contato com os jovens secundaristas em Porto Alegre a dimensão
afetiva nos pareceu central para entender suas práticas e discursos. Eles
experimentaram o movimento, entraram nele, como diziam, “de cabeça
e com o coração”.
A ocupação implicou convivência densa: por um lado, dormir e
passar dias inteiros juntos, e por outro, partilhar momentos “fortes”,
como eles dizem, que têm uma carga emocional importante, tal como
enfrentamentos com a polícia, discussões entre militantes, o enfren-
tamento de outros alunos ou pais que se opunham às ocupações. Esse
contexto engendrou um sentimento de coesão e de solidariedade de gru-
po ressaltado por vários jovens: “Aqui dentro a gente até pode ter nossas
diferenças... mas, assim, a gente não é mais cada um uma pessoa, a gente
é um grupo. Se alguma coisa acontecer com qualquer um dessa mesa, a
gente se põe na frente!” (Carla). A metáfora da “grande família”, empre-
gada por Amanda e por vários dos nossos interlocutores é reveladora.
Nesses 41 dias, amizades antigas se reforçaram, novas se criaram,
amores mais ou menos passageiros surgiram, disputas e inimizades
também. Tudo vivido muito intensamente, relatado com emoção, em-
polgação, raiva. Eventos e experiências certamente típicas dessa idade,
mas que foram moduladas e moldadas pelo tempo condensado (con-

20
No início do século XX, a “psicologia das massas” e outras teorias do comportamento coletivo
advindas sobretudo da psicologia social americana e francesa, estudaram protestos e mobili-
zações sociais sob o ângulo das emoções. Mas esses estudos insistiam sobre a irracionalidade
dos atores, sobre a violência que decorria dos encontros e sobre o fenômeno de “contágio” em
grandes aglomerações (Sommier, 2010b, p. 187). Em reação a esse quadro interpretativo, a
partir dos anos 1970, pesquisadores trabalhando sobre movimentos sociais adotaram majori-
tariamente a perspectiva do ator racional, considerado como alguém que faz escolhas e age de
maneira lógica. Como sintetizam Jeff Goodwin, James Jasper e Francesca Polletta (2001, p.
71): “Enquanto os teóricos precedentes haviam descrito os participantes de protestos como
emotivos para demonstrar sua irracionalidade, os novos teóricos demonstraram sua raciona-
lidade, negando as emoções”. É a partir dos anos 1990 que as emoções voltam à cena nas
pesquisas sobre política, movimentos sociais e protestos.

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cretamente, muitas horas passadas juntos e horas que marcaram por
serem palco de eventos percebidos como trágicos).21 Como disse Taísa:

Às vezes, tu leva anos pra construir uma relação com uma pessoa,
e a gente levou duas semanas pra tá todo mundo já uma família
gigante. [...] A gente ganhou tanto sentimento um pelo outro que
lá no dia da Secretaria da Fazenda22 quem tava aqui na escola...
tava chorando.

A criação desses vínculos, assim como a experiência de se sentirem


capazes de realizações políticas, de poder transformar a realidade, de
encontrar pares que têm os mesmos desejos, em quem “se apoiar nas
mudanças”, como disse André, todos esses elementos sensíveis podem
ser considerados, nos termos de Daniel Gaxie, como “retribuições
simbólicas” da militância, ou seja tudo que tem a ver com “satisfações,
vantagens, prazeres, alegrias, felicidades, frutos, benefícios, gratificações,
incitações, recompensas” proporcionados pela prática militante (2005,
p. 160). Dentro dessas retribuições, o autor inclui a valorização da
autoestima e capacidade de afirmar-se. Fatores que nos parecem ter sido
cruciais para as tomadas de posição de Helena e de Amanda perante
seus pais. Como Gaxie, outros pesquisadores mostraram a importância
dos vínculos afetivos (amizades e relacionamentos amorosos) que
nascem entre militantes e investigam como esses vínculos conduzem –
ou não – ao aprofundamento do engajamento político dos membros e à
duração do movimento (Brenner, 2018; Goodwin, 1997; Klatch, 2004;
Lichterman, 1996; McAdam, 1988; Taylor; Rupp, 2002).

21
McAdam, já nos anos 1980, evoca a força de um momento curto, porém de convivência in-
tensa na militância: uma viajem, em 1964, feita por uma centena de jovens brancos ao Missis-
sippi para inscrever negros em listas eleitorais. Ele relata (1988, p. 66-115) o desenvolvimento
de amizades e ligações amorosas durante essa ação que ficou conhecida como Freedom Summer.
22
No dia 15 de junho, aproximadamente 40 integrantes do Comitê de Escolas Independen-
tes – CEI (escolas cujo grêmio não era afiliado a entidades estudantis), dentre os quais vários
alunos da Toledo, ocuparam o prédio da Secretaria da Fazenda. Em consequência, os alunos
maiores de idade, além de dois jornalistas, foram presos. Liberados no dia seguinte, eles con-
tinuaram respondendo por processo por “dano qualificado contra o patrimônio do estado”.

147

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No caso de Helena e Amanda, mais do que uma influência de
amigos na relação dos jovens com a própria militância, nos parece in-
teressante pensar nas repercussões que essas amizades e a experiência
militante teve sobre a relação das jovens com suas famílias, ou seja fora
do movimento militante. Ambas afirmam que foi o que viveram na ocu-
pação que as permitiu e propulsou a enfrentar os pais. Em outro artigo
(em preparação) mostraremos o quanto a experiência militante também
impactou as relações amorosas e sexuais entre os jovens.

Conclusão

Fonte de coragem e de uma nítida empolgação na afirmação de


suas posições, os laços afetivos tecidos no grupo que continuava, um
ano depois, a trocar declarações emocionadas de companheirismo via
Facebook, parecem ter sido parte fundamental da experiência militante
dos secundaristas de Porto Alegre. Fazer política com emoção, “de ca-
beça e com o coração”, uma política repleta de amizades e inimizades
“super fortes”, e que impacta relações fora do círculo militante, foi o
jeito de fazer política dos jovens com quem convivemos.
Essa experiência, como mostramos, não estava desconectada de
outros movimentos estudantis latino-americanos e de um movimento
global de manifestações que praticam “ocupações” de espaços públicos.
Há entre esses movimentos um repertório comum de ações: algumas
são explicitamente recomendadas, outras são desaconselhadas ou sim-
plesmente desvalorizadas.23 Nesse sentido, Marina Sitrin (2011) sugere,
analisando e participando de movimentos de ocupação em Nova York
e na Argentina, que as emoções são também codificadas: há emoções
e maneiras de manifestá-las que são incentivadas, elas são pensadas
como sendo “as boas maneiras” de manifestar suas emoções, ou ainda

23
O estudo já clássico de Charles Tilly (2008) sobre lutas populares em diferentes épocas e
contextos já aborda essa questão da existência de um repertório comum de ações de um movi-
mento de protesto e a estandardização das ações (performances) de seus militantes.

148

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“as boas emoções a se sentir”, pois se estima que essas e não outras são
as mais coerentes com as convicções políticas defendidas. As convic-
ções políticas vêm assim moldar as emoções e sua expressão.
Por meio dos retratos, vimos como os jovens fizeram da militância
na ocupação da escola um tempo de explorações que são ao mesmo
tempo identitárias e políticas: ser bissexual, escapar às regras impostas
pelos pais, usar na ocupação competências que se adquire num curso
extra-escolar, refletir e ensaiar discursos sobre o que é mais importante
a se aprender e como se pode aprender, se posicionar politicamente
numa sociedade cada vez mais polarizada... Vimos também que essas
explorações se realizam num espaço que os jovens investiram e contro-
laram, ou tentaram controlar. A política que esses jovens praticaram,
para além de discursos reivindicatórios, manifestações e afrontamentos
com homens políticos (o que eles também realizaram) se materiali-
zou na ocupação do espaço escolar e na sua gestão. Buscavam fazer da
ocupação um espaço autônomo, em que a decisão de quem podia ou
não entrar cabia a eles, assim como a decisão de como organizá-lo e
de que atividades ali realizar.24 Pessoas de fora, em geral adultos, po-
diam ser aliados: passavam então pela mediação dos jovens para trazer
contribuições (alimentos, oficinas, conselhos). Ou então representavam
ameaças: a polícia, o movimento Desocupa, pais de alunos contrários
ao movimento.
Nossa opção foi a de estudar essa ocupação buscando ir além do
que os jovens diziam sobre o movimento estudantil, as ocupações e a
militância. Observamos diversos momentos de descanso, de “relax” (o
“Nescau na cozinha”, planejando a saída da noite, as gozações entre
si...), os interrogamos tanto sobre a experiência militante quanto so-
bre temas não necessariamente ligados a ela, ou à política e à escola.
Ficamos atentas às histórias particulares de cada um, em sua dimensão

24
Uma analogia nos parece possível com o espaço do quarto de adolescentes, um espaço que
querem seu, e sobre o qual, em negociações constantes, tentam assumir o controle: começam
a exigir que seus pais batam na porta antes de entrar, negociam o tempo a ficar sozinhos ali,
escolhem o que por em suas paredes, etc. Sobre a relação de adolescentes ao próprio quarto, ver,
por exemplo, Joel Zaffran (2014) ou Nina Duque (2017).

149

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existencial (relação com pais, consigo mesmo, com outros amigos, com
desafetos). Tentamos, assim, por meio dos retratos e da discussão que
fizemos de cada um, mostrar esse emaranhado de histórias, convicções,
emoções e descobertas que os jovens viveram durante a ocupação na
capital gaúcha.

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Infancias en debate:
las experiencias infantiles durante la última
dictadura argentina.
_______________________________________________________________
Valeria LLobet

Introducción

El carácter político de la infancia es un tópico relativamente bien


establecido en el campo de estudios, si bien la naturaleza de tal politi-
cidad puede resultar más bien controversial. Su lugar entre las normas
públicas y la vida privada (Schepher-Hughes; Sargent, 1998) hace de
la infancia una institución especialmente fértil para el gobierno de la
población y el policiamiento de la familia (Donzelot, 1998) y por lo
mismo, niños y niñas suelen estar en el centro de las retóricas políticas.
La construcción de un futuro para los niños, de un mundo justo, de un
ambiente apropiado para la infancia, muestra el valor que los discursos
sobre lo infantil tienen para la construcción de hegemonía. La infan-
cia es así una poderosa superficie política, y complementariamente, la
minorización de los niños basada en la atribución de incompetencia –y
su exclusión de la ciudadanía– ha sido un elemento central a la propia
construcción de la institucionalidad estatal y el establecimiento de los
límites de lo político.
Al mismo tiempo, su participación directa en procesos políticos
asociados a demandas específicas es muchas veces, condenada como
una manipulación de los niños inocentes en planteos adultos. Otras
veces, la participación misma es deslegitimada como tal, nombrada
como comportamientos disruptivos, violencia o síntoma.

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El foco en el carácter pedagógico de la socialización política, así
como en el valor instrumental de los niños y niñas en el marco de
proyectos sociopolíticos “de adultos”, han dificultado, en nuestro cam-
po de estudio, una comprensión menos lineal de la relación entre niños
y política. Esto es, una que supere el carácter eminentemente utilitario
y unilateral de los que se tiende a dotar a tal relación, y que se muestre
menos presta a caer en reduccionismos voluntaristas, en moralismos
reaccionarios y en remozados temores morales asociados al papel de los
niños en la sociedad. En ese contexto, a pesar de su presencia generali-
zada en los estudios, la noción de agencia infantil, entendida como un
proceso de reflexión sobre el yo fragmentario y el mundo, y de actuar si-
multáneamente dentro y sobre las constricciones materiales y culturales
de ese mundo (Ortner, 2016; Maynes, 2008; Maynes; Pierce; Laslett,
2008; Elshtain, 1997; McNay, 2004) se ha desdibujado, y no ha ganado
el interés analítico para estudios sociales e históricos más amplios que
podría tener.
Me propongo aportar a las exploraciones de estas relaciones entre
infancia y política a partir de examinar narrativas biográficas retrospec-
tivas sobre la experiencia infantil durante la última dictadura. Analizaré
relatos de 48 personas que no tuvieron familiares directos desapare-
cidos o exiliados, ni perpetradores, y que vivieron en una ciudad me-
diana del interior y en el área metropolitana de Buenos Aires, con la
expectativa de iluminar algunas aristas de importancia para discutir la
noción de agencia infantil desde tres ejes: las competencias de los niños
para comprender el contexto socio-político, el papel de la mediación de
la memoria desde la adultez en esta comprensión, y la relación de los
niños con el futuro y su peso político.
Las inquietudes que orientan este artículo pueden entonces cir-
cunscribirse en las siguientes preguntas: ¿De qué maneras es posible
comprender la agencia infantil, las formas políticas de acción de niños
y niñas, en contextos de autoritarismo y violencia política? Niños y
niñas actúan desde posiciones de menor poder, marginalidad e invis-
ibilidad, y la más de las veces, se actúa sobre ellos, ¿cómo, entonces,
las actividades cotidianas de lxs niñxs despliegan la agencia? ¿Cómo

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estas prácticas y esta agencia infantil contribuyen o no a la transfor-
mación social? ¿Cómo nos ayuda a la comprensión de las posibilidades
de los sujetos subalternos/subordinados el intento de comprensión de
la agencia infantil, en especial en contextos dictatoriales?

El proyecto dictatorial y el papel de los niños


Los proyectos dictatoriales argentinos de las décadas de 1960 y
especialmente de 1970, otorgaron un papel cardinal a la infancia y a
los niños. A los niños “normales”, de familias “normales”, les era di-
rigida una interpelación directa destinada a restaurar un orden moral
y social en el que los niños (re)asumieran un papel subordinado en
las relaciones intergeneracionales, y su comportamiento legitimara la
autoridad parental.
Los niños estaban en el centro de la agenda política por un lado
como actores sociales, ya del reordenamiento social buscado por la dicta-
dura o de la amenaza a tal orden, y por otro lado como símbolos de la re-
tradicionalización que la dictadura esperaba lograr, a partir de la restau-
ración del orden intergeneracional quebrado por la juventud politizada.
La educación, formación y “purificación” de aquella generación
de “niños comunes”, de familias “normales”, que no hicieron parte de
la participación política revolucionaria, constituía entonces un núcleo
político central del establecimiento de la “nación como familia” (Filc,
1997). Múltiples fueron las formas en que ello se evidenciaba, desde las
declaraciones de jerarcas militares alrededor del papel de la escuela, la
censura de libros de texto, la incorporación de militares como profeso-
res de educación física, la implementación de “Gendarmerías Infanti-
les” (Lvovich; Rodríguez, 2011), y más en general, un texto moralista
que señalaba la importancia de la autoridad paterna y la afectividad
moralizante de la madre (Cosse, 2009; Cosse, 2014; Filc, 1997) reuni-
dos en un hogar en el que no se hable de política.
En efecto, los actores conservadores habían procurado esforzada-
mente la expansión y dominancia del modelo de familia doméstica que

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desde mediados de la década de 1960 había sido debilitado por las
tendencias demográficas que se consolidaron a finales de la década de
1980: hogares con jefatura femenina y el novedoso fenómeno de muje-
res solteras viviendo solas, eran muestras de proyectos biográficos con-
tradictorios de los valores conservadores (Cosse, 2014). Desde finales
de la década de 1960, y con fuerza en la última dictadura militar, una
parte importante de los discursos de la “lucha antisubversiva” se enca-
minaba a la supuesta defensa de “la nación, la familia y la moral”, con-
cebidos como valores a-temporales y fijos asociados a una visión cató-
lica, tradicional y autoritaria (Filc, 1997; Manzano, 2005; Cosse, 2014).
En este contexto, los niños eran tratados como efectos de las fa-
milias, víctimas potenciales pero también, potenciales enemigos. La
escuela se transformó en un “campo de batalla”, en el que los niños
“normales” debían ser formados: “Los niños y jóvenes constituyen la
‘tierra’ donde se arraiga la subversión”, en palabras de las autoridades
educativas. El Consejo Federal de Educación estableció así en setiem-
bre de 1976 los objetivos para el plan nacional de educación alrededor
de la unidad y estabilidad familiar, y se comenzó a dictar la materia
Educación Moral y Cívica (2/4/76), cuyo foco era la legitimación del
tradicionalismo católico autoritario.
Pero esos “social scripts” sobre la infancia, hegemónicos en una cul-
tura en un momento dado, tienen una relación compleja con la expe-
riencia. Lo dictatorial era el escenario de la vida cotidiana, y las narrati-
vas biográficas permiten abrir preguntas sobre lo social como escenario
de los procesos represivos, y sus resonancias subjetivas y éticas. Si bien
los recursos para hacer sentido de la experiencia son tomados del repo-
sitorio cultural disponible (Ortner, 2016), esta apropiación no es lineal
ni tan instrumental como parece interpretarse de algunos trabajos re-
cientes. En su estudio sobre las autobiografías de infancias traumati-
zadas, Douglas señala atinadamente que “colectivamente revelan más
sobre nuestras contemporáneas preocupaciones sociales, políticas y cul-
turales sobre la infancia que lo que revelan sobre el pasado” (Douglas,
2010, p. 6). Así, las controversias culturales del presente dan forma a re-
cuerdos personales sobre la infancia, y proveen de los scripts disponibles

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para narrarlos. Hasta aquí, nuestro acuerdo. Los estudios sobre memo-
ria han señalado insistentemente que es el trabajo desde el presente
lo que da forma a la memoria narrada (Portelli, 2007; Traverso, 2011;
Franco; Levin, 2007; Fried, 2011; Bjerg, 2012; Stoler, 2010; Arfuch,
2014; Sarlo, 2007). Para Douglas las autobiografías podrían ser anali-
zadas en términos de su despliegue o utilización políticos, sirviendo a
propósitos contemporáneos (en su caso, la legitimación del marco de
derechos de niños y niñas a partir de la exposición del maltrato y abuso
de los niños). No obstante, esa extensión instrumental de la relación
compleja del trabajo de memoria con el presente parece omitir las ten-
siones subjetivas y la complejidad emocional y política de la experien-
cia infantil y su recuerdo. En especial, a partir de las narrativas de los
sujetos entrevistados, resulta importante debatir el carácter tan plástico
y neutral de la experiencia infantil que parece desprenderse de trabajos
como el de Douglas, problematizando la capacidad de agencia política
de los entonces niños y el propio trabajo de la memoria como un es-
fuerzo político que lidia con los rastros y los productos de tal agencia.
La discusión sobre las posibilidades de los niños de captar y en-
tender el contexto sociopolítico no es colocada en este artículo desde
el punto de vista de la evaluación de capacidades, ni desde el punto de
vista del juicio crítico o de la construcción de conocimiento. Reviso en
el relato biográfico, aquellos aspectos que retrospectivamente consti-
tuyeron las claves para resignificar el contexto dictatorial, considerando
su punto de anclaje en la memoria colectiva y en el tiempo presente,
pero también su relación inestable con la temporalidad.
En efecto, la casi totalidad de los sujetos de la investigación relata-
ron algún momento crítico en su problematización, en el pasado, de lo
dictatorial: la vez que un grupo de niños fue en bicicleta, a ver una casa
acribillada a balazos, en la que supuestamente el ejército había atrapado
a un grupo guerrillero, frente a lo que una de ellas se preguntó cómo
eso habría sido posible, si ella recordaba que allí vivía una pareja con un
bebé. Otro de los entrevistados, que recordaba escabullirse en el bar de
su familia y escuchar, sin ser notado, las conversaciones nocturnas de los
parroquianos, plagadas de comentarios políticos. Muchos, que simple-

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mente miraban la televisión hasta después del noticiero internacional,
atentos a los conflictos que llenaban la pantalla. Otro que visitaba las
casas de los vecinos, y hallaban sorpresas como una biblioteca con te-
soros a los que podía acceder, donde uno descubrió, en la historia de la
resistencia en la Segunda Guerra, que los guerrilleros podían estar del
lado de “los buenos”. Todavía otra, que podía escuchar, aparentando es-
tar dormida, una conversación sobre la desaparición de un joven vecino
que recordaría toda la vida.
Lo “no sabido” era desafiado por los entonces niños, y si bien un
supuesto “pleno sentido” permanecía incierto (del mismo modo que
para la mayoría de los adultos) la dictadura adquiría textura cognitiva,
moral, emotiva y política. La minucia del recuerdo de la vida cotidiana
y los modos de procesar lo dictatorial en lo mínimo –la certeza del pe-
ligro de recortar la palabra guerrilla en una tarea escolar, la indicación
persistente y generalizada de no levantar paquetes del suelo por temor
a que sean bombas, la disciplina escolar mimetizando la rigidez militar-
son recordados como instancias relevantes, y así, recortados de la masa
continua de gestos cotidianos.
Desde su peculiar perspectiva, los entonces niños y adolescentes
fueron capaces de distinguir las relaciones cotidianas en su densidad
autoritaria, y su articulación con una moralidad ordinaria (Das, 2012)
desplegada en las formas de establecimiento de regulaciones sobre el
cuerpo encarnadas en prácticas escolares, por ejemplo en la distancia
apropiada entre los cuerpos en los patios escolares, la constitución de
lo femenino y lo masculino en las prácticas deportivas, en los modos
disciplinares, en la textura moral de la gramática escolar, en la presen-
tación en el espacio público, en las regulaciones del pudor y la moral
en el vestido, en las imágenes de los cuerpos femeninos en el cine y las
revistas, etc. Estas regulaciones corporales y las jerarquías y distancias
generacionales, los modos de actuar la autoridad, son recordadas por
la mayoría de las y los entrevistados como instancias de emergencia
de un sentido de injusticia o rememoradas como un orden social ya
perimido, o bien como muestras de un orden que debería volver a ins-
taurarse. Y esa diferencia en el valor del recuerdo en contraste con el

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presente, se vincula con la posición política respecto de la dictadura y
más en general, respecto del orden social. Pero lo interesante de ello es
que, lejos de ofrecerse como una mera manipulación desde el presente,
esos recuerdos muestran la complejidad entre el trabajo de memoria,
la ideología, y la experiencia infantil. Ninguna de esas dimensiones es
capaz de hacer desaparecer a la otra. Todas dejan su rastro visible.
Las formas en que los entonces niños de entre 4 y 12 años ac-
cedieron a momentos, datos, informaciones y perspectivas contradic-
torias con la información oficial, las que adoptaron ya entonces un
valor –incluso si subjetivo– exceden el ámbito familiar o escolar. Es-
tas modalidades de acceso a la información política y social muestran
niños activos en la comprensión del mundo, capaces de capturar de
manera independiente los indicios que si bien no pudieron ser plena-
mente comprendidos entonces, de todas maneras son claves para rear-
ticular el posicionamiento que ellos mismos tendrán sobre la dictadura
apenas comenzada la escuela secundaria, y les permitió cimentar una
distancia crítica con el desconocimiento que alegaban los padres, o
bien, en algunos casos, apoyar el posicionamiento familiar. Vamos a
discutir eso ahora.

Vivir en un frasco
La posición que madres y padres sostuvieron respecto de la dicta-
dura está mediada por la afectividad entramada en las relaciones pater-
no-filiales, y por la sensibilidad política de las y los sujetos. Pero tam-
bién adquiere matices específicos alrededor de eventos contingentes y
peculiares de la trama familiar (tales como el divorcio de los padres, la
muerte de algún familiar, o el nacimiento de un hermano/a), la edad de
los padres en el presente, y una posición más o menos explícita en re-
lación con la política de derechos humanos, ya sea relativa a los juicios
y condena a los perpetradores de crímenes de lesa humanidad, como a
los tópicos que se asocian a estos temas en el discurso social hoy (pa-
radigmáticamente, el “problema de la inseguridad” y sus reverberacio-

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nes relativas a los “derechos humanos para los criminales y no para la
gente”, como repiten los periodistas de matutinos radiales y televisivos
hasta el hartazgo).
Los testimonios de las personas entrevistadas registran un amplio
espectro de posiciones de sus mayores sobre la dictadura. Hay quienes
retratan a sus padres “viviendo en un frasco”, ajenos e ignorantes de lo
que estaba aconteciendo. Otros los recuerdan “mirándose el ombligo”,
en un gesto que privilegia el interés personal. Estos padres aparecen,
en los recuerdos, abocados a la vida cotidiana, y sus preocupaciones se
vinculaban antes con los avatares de la economía que con la violencia
dictatorial. En los relatos de los y las entrevistados, se construye la idea
de que para muchos de los padres, el temor se había localizado en el
tiempo previo a la dictadura, que media entre 1968 y 1975, con su pico
de violencia a partir de la muerte de Perón y el inicio de los asesinatos
a militantes populares por parte de la Triple A.1 Con la dictadura, el
mundo parecía haber “vuelto a la normalidad”, como enunciaron varios
entrevistados.
Sobre estas evaluaciones pesan no sólo la memoria colectiva y los
debates políticos del presente. También impactan la historia de la re-
lación filial, ya sea la continuidad amorosa o el distanciamiento más o
menos extremo con madres y padres a partir de vínculos percudidos
por el autoritarismo, la frialdad, la falta de sensibilidad que los entre-
vistados atribuyen a sus mayores, los conflictos adolescentes irresueltos.
Jorge (7 años al momento del golpe) por ejemplo, habla de su
padre enfocado en las fluctuaciones de los precios que afectan su la-
bor como chacarero y comerciante. Lo describe como el típico hombre
que se preocupaba por llenar los zapatos de la función del proveedor,
circunscribiendo la esfera política a la participación en la cooperativa

1
La Triple A, Alianza Anticomunista Argentina, fue un grupo paramilitar de extrema derecha
creado durante el gobierno de Perón en 1973 por el Ministro de Bienestar Social, José López
Rega y el jefe de la Policía Federal Alberto Villar. De acuerdo con el informe de la Comisión
Nacional sobre la Desaparición de Personas (Conadep), al menos 122 asesinatos de líderes y
activistas de izquierda fueron cometidos por la organización, aunque las estimaciones llegan
a 1200.

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eléctrica del pueblo (en la costa del Uruguay, en la provincia de Entre
Ríos). Las imágenes del entonces ministro de economía Martínez de
Hoz y las referencias a “la 1050”2 llenaban la vida hogareña. En su casa,
la cotidianeidad se construía políticamente alrededor de las decisiones
económicas del gobierno, y se evaluaban los impactos en el trabajo, el
campo, la cosecha. Ese “estar en un frasco”, desentendido de los acon-
tecimientos políticos, también era propio de su posición como dueño
del almacén de ramos generales que funcionaba como bar para los pai-
sanos, y que por lo tanto invitaba a ser reservado con sus opiniones para
mantener a la clientela. Jorge habla de su padre con afecto distanciado.
No fue un mal hombre, su relación no tuvo conflictos importantes, pero
vivieron mundos irreconciliables y Jorge asume que, si bien heredó las
propiedades familiares y eso marca su posición como productor agríco-
la, está en las antípodas de su padre en términos políticos. No obstante,
se posiciona continuando algunos de sus valores: una ética del trabajo
y de la provisión para la familia coincidentes con una figura masculina
tradicional, la importancia de las relaciones vecinales y en general un
tono moral para aproximarse a la vida. En este terreno, la desvincula-
ción de su padre respecto de la dictadura es, para Jorge, mucho más una
consecuencia natural de sus preocupaciones cotidianas que una posi-
ción de ignorancia activa.
Hernán (también 7 años al inicio de la dictadura) por el contrario,
visualiza a su padre como alguien mucho más esforzado en su distan-
ciamiento del contexto histórico. Es alguien que “algo sabe” y procura
mantenerlo fuera del contexto familiar. Así, cuando Hernán protago-
nizó un equívoco hecho con la policía del barrio de Caballito, en la
ciudad de Buenos Aires, que hubiera podido costarle la vida si el juego
(arrojar en la calle unos volantes del ERP hallados en un baldío) hu-

2
La Circular n. 1050 del Banco Central de la República Argentina, emitida en abril de 1980,
ató el interés mensual de los créditos hipotecarios al valor del dólar estadounidense. En febre-
ro de 1981, cuando la especulación financiera llegaba a sus picos, el entonces Ministro de
Economía, el descendiente de ganaderos Martínez de Hoz, anunció una fuerte devaluación,
que se siguió con la estatización de la deuda externa de numerosos grandes empresarios, la
impagabilidad de los créditos de pequeños y medianos empresarios, y la pérdida de sus hogares
por parte de las familias que los habían comprado con aquellos créditos hipotecarios.

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biera sido interpretado como una provocación, sus padres reaccionaron
dejando ver toda su angustia y el peligro al que ellos consideraban que
Hernán se había expuesto. Esta ignorancia activa, esta construcción
esforzada de un silenciamiento de ciertos temas en el hogar, la primacía
de la desconfianza en las relaciones vecinales, se trama con los afectos
que resuenan en el relato, presentando una relación paterno-filial mar-
cada por la distancia y el resentimiento.
El enojo es una marca compartida por varios de los varones entre-
vistados del contexto metropolitano, se dirige hacia padres que parecen
encontrarse en una transición entre posiciones tradicionales ante el ma-
trimonio y la paternidad y unas formas novedosas que comenzaban a
hacerse visibles, en las que era posible conformar una nueva familia a
despecho de la anterior, o reconocer con culpa la existencia de amantes
y vidas paralelas. Así, el “mirarse el ombligo” es extensivo a las formas de
gestión de la vida privada que se visualizan como emergentes, toma el
tono emocional del reproche, y articula narrativas de desidentificación,
un “de dónde saliste” cargado de viejo pero actualísimo dolor. Esos eno-
jos no obstante se procesan en el valor de la verdad en las relaciones con
los hijos, antes que en la adopción de formas de masculinidad y pareja.
Por su lado, Laura, que creció en Concepción del Uruguay (Entre
Ríos) y tenía 5 años en marzo de 1976, señala la ambigüedad de la
posición de sus padres:

Mis viejos no han estado muy en desacuerdo con la dictadura. Me


parece más de los que pueden llegar a decir ‘bueno, no fue tan así, no
hubo tantos desaparecidos’. Yo me peleaba con mi viejo por ese tipo
de frases y él decirme ‘¿Qué sabes si no lo viviste?’. Entonces, por
eso te digo, era tal vez una familia que no te inculcaban nada, ni te
bajaban línea, pero tampoco respetaban por ahí tu forma de pensar.

Para ella resulta ilegítimo sobre todo que su padre no reconozca la


legitimidad de su posición y de su experiencia. En el relato, remarca la
falsedad de la frase que deslegitima su conocimiento de primera mano.
El trabajo con el recuerdo de la experiencia infantil y el distan-
ciamiento de los padres se traduce en concepciones reflexivas y dife-

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renciadas sobre el papel de madres y padres, los modos de construir
la autoridad parental y la relación paterno-filial, y las ideas sobre la
infancia. Si lxs entrevistados señalan el carácter autoritario, hasta vio-
lento, de sus padres, en continuidad con el tono moral de la época, y
la relación con ellos como basada fundamentalmente en el miedo, la
mentira y el disrespeto, también dirán que su propio posicionamiento
como madres y padres se construye hoy en oposición a esas prácticas.
Y las transformaciones demográficas les dan la razón. Así, aparecen
como sujetos activos en la transformación histórica de las concepciones
sobre los niños como sujetos con voz y capacidad de decisión, así como
la transformación de las prácticas de crianza, que configuran las repre-
sentaciones más extendidas (y legitimadas) en la clase media urbana.

Los niños como testigos del pasado


A esas miradas evaluativas de las posiciones parentales se agrega
el propio conocimiento sobre la dictadura, para abrir preguntas sobre
la inscripción en una genealogía y la reconstrucción, como adultos, del
lazo filiatorio.
El cambio en los patrones culturales cotidianos que implicó la dic-
tadura, las formas sonoras y sensibles de la vida cotidiana “gris” y “cato-
licona” en palabras de varias entrevistadas, su textura moral y política,
es diáfana en muchos recuerdos, en contraste con procesos anteriores
(la prohibición del carnaval, por ejemplo) y posteriores (el “destape” de
la recuperación democrática).
La ponderación del contexto dictatorial, y la toma de posición res-
pecto al mismo, requirió de un tiempo posterior y de la narrativa histó-
rica provista por la recuperación democrática. Las huellas precedentes,
huellas significativas y densas, fueron reordenadas en una narrativa his-
tórico-política, ya no como experiencias singulares sino compartidas,
a partir de la narrativa colectiva que proveyó, sobre todo, la labor de la
Comisión Nacional sobre la Desaparición de Personas (Conadep) en
el establecimiento de la magnitud y profundidad de la represión en el

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contexto de recuperación democrática. Narrativas que fueron revisita-
das en los últimos años, y que forzaron una nueva interrogación a partir
de la presencia legitimada y constante de los organismos de derechos
humanos en la escena pública y de los cambiantes discursos institucio-
nales sobre la dictadura.
En ese escenario, una marca generacional importante, compartida
por una gran parte de los entrevistados3, parece radicar en un distan-
ciamiento con los padres que no tenían interés en la política o justifi-
caron la represión. Preguntas inapropiadas en la mesa familiar, interés
temprano de niños y niñas en noticieros televisivos y una incipiente –y
muchas veces resistida por los padres‒ incorporación adolescente a la
actividad política en centros de estudiantes y marchas jalonan la sen-
sación de distancia, puntuada por frases como “de dónde saliste vos?”.
La recuperación democrática proveyó un escenario para que la
aparentemente aniquilada tensión intergeneracional llevada a su pico
con la radicalización política de las décadas de 1960 y 1970, reaparecie-
ra bajo la forma de intereses disidentes, de hijos que ponían en cuestión
las dimensiones políticas, culturales y simbólicas del lazo filiatorio me-
diante su inmersión adolescente y generalizada en la primavera demo-
crática inaugurada en 1983, al son del rock nacional (Manzano, 2005).
Con ese movimiento se crean problemas a la hora de pensar lo in-
fantil y su memoria. Como adultos, se preguntan, al igual seguramente
que cada nueva generación, qué hicieron los padres frente al predica-
mento que les tocó vivir, y qué harán sus hijos con su memoria. Algu-
nos de los entrevistados colocan la memoria de la infancia en un pasado
melancólico: “crecimos en un mundo que ya no existe más”, cerca de los

3
Las/os entrevistados provienen de sectores medios (altos y bajos) y obreros. Un tercio de ellos
son hijos o nietos de personal de las fuerzas de seguridad (militares y policías), y un quinto
alcanzó sólo el secundario completo, en tanto el resto tiene terciario o universitario completo,
una parte hasta el nivel de doctorado. Alrededor de la mitad participó en los tempranos años
ochenta de los centros de estudiantes de escuelas secundarias, y en cuatro casos continúan una
participación política partidaria orgánica. En un cuarto de los casos madres y/o padres se man-
ifestaron abiertamente a favor de la dictadura. Sólo cinco de las personas entrevistadas dejaron
entrever que el “cierre” del pasado les resultaba necesario, cuestionando el relato institucional
sobre los crímenes de la dictadura sostenido por los gobiernos kirchneristas y reclamaron una
mayor preocupación por “la inseguridad” antes que por “los derechos humanos”.

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padres y centrando su interés en la reproducción de la vida cotidiana.
Otros, a medio camino entre una infancia melancólica y un pasado que
sirve de testimonio al presente, dan peso ético a las decisiones sobre la
transmisión, procuran alentar en sus hijos una apreciación de las po-
siciones militantes o rupturistas con las que construyeron sus propias
posiciones identitarias. Otros finalmente señalan el carácter paradojal
de ese pasado, despreocupado y protegido, pero ensombrecido por el
terror, como señaló una de las entrevistadas: “Eso era lo normal y como
que los momentos de felicidad y demás discurrían en medio de todo
eso, entonces, no daba como para pensar”.

Discusión
A partir del recorrido del artículo, las preguntas iniciales relativas
a las formas de agencia infantil en contextos dictatoriales rememora-
das por adultos, adquieren renovados matices teóricos y políticos. En
primer lugar, es posible señalar una dimensión dinámica e histórica de
la agencia. Esto es, hay una reinterpretación de la historia de la propia
infancia a lo largo del trabajo biográfico, en los contextos culturales y
políticos cambiantes en los que se inscribe tal trabajo. En particular, en
este trabajo es posible dar cuenta del reordenamiento de las categorías
de autoridad parental e infancia, que articulan nuevos modelos sociales.
En ellos, la crítica al autoritarismo y a la pasividad paterno/materna
durante la dictadura constituye un punto sustantivo en la configuración
de los posicionamientos de los hoy adultos.
En segundo lugar, la comprensión del contexto socio-político
emergía en espacios liminares o intermedios, incluso mediante estra-
tegias de invisibilización y ocultamiento que los niños desplegaron
ante el mundo adulto o a la autoridad de algunos adultos. Niños y
niñas encontraban en las distracciones, en las dudas y silencios “carga-
dos”, en las contradicciones de sus padres, el acceso a un conocimiento
del contexto histórico que era negado o silenciado. En tal sentido,
estas estrategias se vinculan con el planteo de Scott sobre los modos

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resistenciales de los dominados (Scott, 1985), en tanto operan sobre
la base del ocultamiento, aunque debemos hesitar sobre nombrarlas
como resistencia, en tanto si bien se vinculan con formas de desobe-
diencia, ni tienen carácter colectivo ni una relación con la transfor-
mación de un orden. No obstante esas limitaciones, resulta de interés
comprender el carácter oposicional que adquiere la relación de poder
intergeneracional para las y los niños. En efecto, antes que apoyarse en
madres y padres para obtener información y acceder al conocimiento,
los entonces niños actuaron contra la autoridad adulta, a sus espaldas,
o en sus “zonas ciegas”.
En tercer lugar, las dimensiones éticas, emocionales y subjetivas de
la experiencia, muchas veces tienen un peso determinante en el des/co-
nocimiento, pero sobre todo en virtud de las relaciones intergeneracio-
nales en las que se traman, antes que en la edad de los niños o en la su-
puesta manipulación de los adultos. El juicio crítico y distanciado que
puede resultar nítido respecto de los crímenes del aparato represivo, se
ve complicado al llegar a las minucias concretas en que se desplegaba la
dictadura en la vida cotidiana, con su tono menor. Aquí, las relaciones
intergeneracionales y paterno-filiales ponen de relieve el tono afectivo
y el valor identitario de las interpretaciones políticas y éticas sobre el
pasado, y al hacerlo, contribuyen a desestabilizar los límites entre lo
privado y lo político.
En cuarto lugar, y derivado de lo anterior, es posible problematizar
la política del conocimiento de los hechos, en tanto esta no se “alcanza”
en un momento del desarrollo ni es una “capacidad” individual, sino
que se trata antes bien de una resultante de procesos sociales y políticos
y de las experiencias subjetivas, en una temporalidad no lineal ni pro-
gresiva. Al contrario, el conocimiento en las narraciones aparece trama-
do en relaciones sociales, en una pluralidad de ámbitos de socialización
diversos y controvertidos, y en diferentes momentos de la vida.
La experiencia infantil funciona así como una dimensión de la
agencia no sólo cuando aconteció en tiempo real. Debido a las diná-
micas de temporalidades intersectadas funcionan como un fenómeno
activo toda la vida, fluido, continuamente sujetas a revisión, continua-

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mente significativas en la agencia humana en el presente, continua-
mente históricas. Muchas perspectivas sociológicas sobre la agencia no
toman en cuenta esta dimensión temporal y desestiman el valor analí-
tico de la experiencia infantil retrospectiva.
En efecto, supuestamente la falta de autonomía moral y las li-
mitadas capacidades cognitivas y emocionales de los niños, los harían
materia “fácil” del usufructo adulto, para bien y para mal. Los niños, se
supone, son incapaces de comprender el pleno sentido de su contexto
histórico y de la política en que están inmersos. No sólo porque su
capacidad cognitiva es limitada, sino porque está doblemente mediada,
por la emocionalidad y por la dependencia respecto de los adultos que
transmiten e interpretan esa realidad para los niños.
En la película The Boy in the Striped Pyjamas4, Bruno, uno de los
dos jóvenes protagonistas de 8 años, se esfuerza en negar una realidad
amenazadora: su padre es abominable, no puede estar orgulloso de él.
Y en su esfuerzo por negar aquello que en el fondo sabe, pierde la vida.
Está claro que es mucho lo que se le escapa a Bruno, es mucho aquello
que le resulta opaco: la maquinaria nazi y su implacable burocracia,
el carácter irreversible de la muerte, la equivalencia entre desaparición
y exterminio. Pero este des/conocimiento no resulta diferente a aquel
que, en el marco de la última dictadura militar en Argentina, permitía a
los adultos señalar su lejanía respecto de nuestra propia maquinaria de
desaparición y exterminio. No sabían, se excusaban.
La narrativa autobiográfica muestra aquí su densidad política. No
toda huella es materia de tal politicidad, pero sí parece posible señalar
que la tramitación de las experiencias infantiles requiere de un sujeto
crítico que las haya inscripto en primer lugar. Esto es, su carácter polí-
tico es impreso o no por el sujeto infantil en el modo de dotar de valor
a esos recuerdos menores, cuyo sentido pleno se le escapan, pero que
son recuperados a posteriori, y confluyen en construir el lugar de enun-

4
The Boy in the Sriped Pyjamas (2008) es una película inglesa dirigida por Mark Herman, a
partir de la novela homónima de John Boyne, que muestra el Holocausto desde la perspectiva
de un niño de 8 años, hijo del comandante nazi del campo de exterminio.

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ciación del sujeto, ya adulto, y va a cimentar la articulación de nuevos
modelos de paternidad, maternidad, autoridad.
Los entonces niños son retratados en las narrativas retrospec-
tivas como sujetos capaces de desplegar estrategias específicas para
aumentar sus campos de acción, sus trayectorias por fuera del control
adulto –y dictatorial–, y en esas mismas estrategias desplegaron una ca-
pacidad crítica que cimentó las transformaciones biográficas que ellos
mismos encarnaron.

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PARTE 3
_____________

Modos de cuidado:
estado, comunidade, família

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A negação e a invenção da infância:
mudanças geracionais a partir do
Programa Bolsa Família
____________________________________________________________________________________

Flávia Pires
Patrícia Oliveira Santana dos Santos 

De um certo modo, e por paradoxal que essa afirmação possa


parecer, não se nasce criança, vem-se a sê-lo. ( Javeau, 2005)

Introdução e metodologia

O presente artigo é resultado de pesquisas de campo de caráter


antropológico realizadas em 2012, 2016 e 2017 na pequena comunida-
de rural de Feira Nova (Orobó) no Agreste pernambucano, e tem por
objetivo discorrer sobre as mudanças geracionais que vêm ocorrendo a
partir da implementação do Programa Bolsa Família (PBF). Isto por-
que acreditamos, assim como Rego e Pinzani (2013), que a garantia
de uma renda mínima regular proporciona mudanças significativas na
vida das pessoas. A observação participante foi a principal metodologia
utilizada, mas nos apoiamos também em outras técnicas de pesquisa,
a exemplo do uso de entrevistas semiestruturadas e de grupos focais,
além de desenhos e redações temáticos utilizados exclusivamente com
as crianças. Fizemos entrevistas semiestruturadas a partir de um rotei-
ro prévio, o qual não foi seguido com rigidez, de forma que, quando
necessário, foram acrescentadas outras perguntas. Às vezes, devido aos
seus desdobramentos, as entrevistas tomaram um caráter de conversas
informais (Mayall, 2005). O gravador, a máquina fotográfica e o diá-

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rio de campo foram empregados (Christensen; James, 2005). Consi-
derando as experiências anteriores, a pesquisa aqui retratada se voltou
inicialmente para as crianças de comunidades cujas famílias fossem ou
já tivessem sido contempladas com o benefício. Apesar disso, não nos
detemos apenas às crianças, uma vez que os projetos de pesquisas aos
quais nos dedicamos privilegiam as crianças, mas não excluem os adul-
tos (Pires, 2007, 2011, 2012, 2014; Pires; Jardim, 2014; Santos, 2014).
Nesse sentido, partimos das crianças para, se fosse o caso, irmos até os
adultos. No entanto, do ponto de vista teórico, filiamo-nos à linha de
análise proposta por Allison James e Alan Prout quando afirmam que:

[...] as crianças devem ser vistas como ativas na construção e de-


terminação de suas próprias vidas, na vida daqueles que as cercam
e das sociedades onde elas vivem. As crianças não são simplesmen-
te sujeitos passivos frente às estruturas e processos sociais ( James;
Prout, 1990, p. 8, tradução nossa).

O Programa Bolsa Família é um programa de transferência con-


dicionada de renda baseado em contrapartidas educacionais e de saúde,
criado a partir da unificação de diversos outros programas sociais já
existentes, visando beneficiar famílias que se encontram em situação de
pobreza e de extrema pobreza.1 Foi instituído em outubro de 2003 no
governo Lula, advindo da integração de diversos outros programas so-
ciais existentes e implantados no governo FHC. Apesar de haver uma
disputa sobre a paternidade do Programa entre esses dois governos,
discussão que não entraremos, é preciso destacar que um grande salto
em termos de cobertura foi dado justamente com a unificação dos be-
nefícios, além da autonomia familiar em relação ao gasto do benefício,
o que antes não ocorria. O objetivo central do Programa é o de assegu-
rar o direito humano a uma alimentação adequada, promovendo segu-
rança alimentar e nutricional, contribuindo, com isso, para a conquista

1
De acordo com as definições atuais do programa, são consideradas famílias em situação de ex-
trema pobreza aquelas cuja renda per capita mensal seja de até R$ 85,00 e famílias em situação
de pobreza aquelas de renda per capita mensal entre R$ 85,01 e R$ 170,00 (valores de 2017).

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da cidadania por aquela parcela da população que se encontra mais
vulnerável à fome. A garantia de uma renda mínima regular propicia
grandes mudanças no interior das famílias, como vimos demonstrando
em outros momentos (Pires; Rego, 2013; Pires, 2014; Pires; Jardim,
2014; Santos, 2014). Sobretudo quando há crianças essas mudanças
podem ser mais nitidamente observadas, principalmente ao traçar um
paralelo entre as gerações. Sugerimos, a partir de pesquisa em Catin-
gueira, Paraíba, que:

[...] há mudanças na estrutura da casa sertaneja [que revelam] [...]


o surgimento de uma nova geração, a “geração Bolsa Família”, que
tem como características principais e distintivas a possibilidade
de consumir alimentos, bens e serviços antes inacessíveis e a
priorização da escola em detrimento do trabalho na vida da criança
(Pires; Jardim, 2014, p. 108).

Com o auxílio do Programa de Erradicação do Trabalho Infantil


(PETI) o Programa Bolsa Família proscreve a exigência do trabalho na
vida das crianças. O apoio da condicionalidade, exigindo a frequência
escolar mínima de 85% para que a família possa receber o benefício
financeiro, faz com que a criança se insira e permaneça na escola, o que
impede o abandono escolar. Além disso, com o PETI e a ausência do
trabalho, a criança tem mais tempo livre para desenvolver atividades
lúdicas.2 Vale a pena destacar que as crianças já no ventre materno são
beneficiadas pelo Programa Bolsa Família, que incentiva e condiciona
o seu recebimento ao pré-natal das gestantes.
Nesse artigo, discorremos sobre mudanças geracionais que se ca-
racterizam sobretudo pelas marcas que individualizam as infâncias. Es-
colarização e ludicidade são dois elementos que hoje marcam a infância
das crianças da comunidade de Feira Nova. Por ludicidade, compreen-
demos as diversas formas de brincadeiras realizadas pelas crianças, não

2
Pires (2012) destaca que entre as crianças beneficiadas pelo PBF na cidade de Catin- gue-
ira, PB, as que se encontravam inseridas no PETI eram mais facilmente dispensadas do tra-
balho doméstico e tinham mais tempo livre.

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tendo lugar ou tempo específico para acontecer, incluindo nesse con-
ceito o tempo livre e o ócio. Por escolarização, entendemos a educação
formal das crianças nas instituições de ensino. Nesse sentido, as gera-
ções de avós e mães das crianças que hoje encontram-se inseridas no
Programa Bolsa Família negam terem vivido a infância, posto que, esse
período de suas vidas teve como marca indelével o trabalho. Embora o
trabalho na infância possuísse características específicas na história cul-
tural daquele determinado grupo, como veremos adiante, ele desenca-
deou a ausência das características que, mais tarde, acredita-se estarem
irrevogavelmente ligadas à noção de infância, a saber, a escolarização e
a ludicidade. A atual geração de crianças faz parte de uma geração que
rompe com a reprodução geracional de um ciclo vicioso marcado pelo
trabalho infantil que foi vivenciado por suas avós e mães. Diante disso,
consideramos que as transformações das relações intergeracionais das
famílias em Feira Nova, como as que são aqui retratadas, podem ser
examinadas por meio do impacto das mudanças sociais no curso da
vida e das relações familiares pela redefinição da infância.
É pertinente dizer que estamos entendendo geração no mesmo
sentido que descreve Sarmento, a saber, enquanto um:

[...] grupo de pessoas  nascidas na mesma época, que viveu os


mesmos acontecimentos sociais durante a sua formação e cresci-
mento e que partilha a mesma experiência histórica,  sendo
esta significativa para todo o grupo, originando uma consciên-
cia comum, que permanece ao longo do respectivo curso de vida
(Sarmento, 2005, p. 364).

Compartilhamos também da definição de Debert sobre geração,


compreendendo que “mais do que a idade cronológica, [geração] é a
forma privilegiada de os atores darem conta de suas experiências extra-
familiares” (1994, p. 19). Assim,

entendemos geração como um conjunto de indivíduos que com-


partilham um momento histórico determinado, marcado pelo nas-

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cimento, e que, como consequência, estão sujeitos aos mesmos pro-
cessos históricos-sociais (Pires; Jardim, 2014, p. 99).

Mas, se o conceito de geração também é útil para compreender


processos familiares isso só é possível por que o conceito mesmo lança-se
para fora desse círculo, exigindo a análise das relações intrageracionais.
Face ao exposto, o presente texto encontra-se estruturado em três
partes, além da introdução e das considerações finais. Na primeira parte
apresentamos o contexto de pesquisa, a comunidade de Feira Nova na
cidade de Orobó (PE). Na segunda parte nos detemos sobre a nega-
ção da infância em virtude do trabalho. Na terceira parte apresenta-
mos a quebra do ciclo geracional marcado pelo trabalho, a vivência e
o desfrute de elementos que na comunidade são associados à infância,
notadamente a escolarização. Concluímos sugerindo que a “invenção
da infância” (Santos, 2014) foi possível com o surgimento da “geração
Bolsa Família” (Pires; Jardim, 2014), dando continuidade às discussões
já engendradas em outros momentos (Pires, 2013, 2014).

Contexto de pesquisa
Antes de adentramos na questão central do capítulo é necessário
apresentar o lugar do qual falamos, pois, sem considerar o contexto
aqui retratado corre-se o risco de uma generalização dos resultados, o
que não é nossa intenção.
Orobó é um município situado na mesorregião região do Agreste
Setentrional pernambucano, na microrregião do Médio Capibaribe e
que faz divisa ao norte com o estado da Paraíba. Distante aproxima-
damente 118 km da capital do estado de Pernambuco, a cidade do
Recife, caracteriza-se como um município predominantemente rural,
uma vez que dos seus 22.878 habitantes, 14.645 vivem na zona rural
(IBGE 2010). O centro do município, área considerada urbana, conta
com uma população aproximada de 8.233 residentes. Nessa área há um
constante fluxo da população rural em busca dos serviços ofertados ‒

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escolas, hospitais, comércio, agência dos correios, agências bancárias,
repartições públicas, dentre outros serviços ‒, que contribui para a di-
nâmica e o desenvolvimento da cidade (Paulo, 2011). É considerado
um município com uma boa oferta de serviços de educação. Muitas
comunidades rurais possuem grupos escolares, transporte escolar entre
elas e das comunidades até a sede municipal. Dar continuidade aos es-
tudos mediante cursos superiores hoje em dia já é possível sem que seja
necessário se deslocar do próprio município, como acontecia até bem
recentemente, por meio de um sistema de faculdades que funcionam
apenas aos sábados. O Ensino Médio e superior são oferecidos na sede
municipal. Em relação aos serviços de saúde, há, em quase todas as co-
munidades, unidades básicas de saúde da família, mas quando se trata
do acesso a serviços de saúde de urgência ou internação, a solução está
no centro de Orobó, ou em cidades vizinhas.
Falamos de Orobó, sede municipal, para falar da comunidade ru-
ral de Feira Nova, uma das várias comunidades rurais existentes em
Orobó, com uma população de aproximadamente 530 habitantes (190
famílias).3 Sua aparência é de um pequeno vilarejo organizado por um
aglomerado de casas, uma colada à outra, em geral com aparência se-
melhante, se diferenciando visualmente apenas pela cor, apesar de al-
gumas diferenças arquitetônicas que denotam uma melhor condição
financeira familiar. A comunidade dispõe de um posto de saúde, o qual
é bastante frequentado também por moradores de sítios vizinhos.4 As
crianças e os adolescentes têm acesso ao ensino fundamental na própria
comunidade, no Grupo Escolar Sebastião Gomes. Além disso, Feira
Nova conta com um mercadinho, algumas “bodegas” (mercearias), dois
bares, uma pequena loja de roupas e acessórios, duas lojinhas de diver-
sidade (como bonecas, guarda-chuvas, escovas, lápis e outros) e uma
lan house. Todos esses estabelecimentos são extensão da própria casa,

3
Dados adquiridos através da Agente Comunitária de Saúde da comunidade. Esses dados são
uma aproximação, uma vez que o IBGE apresenta os dados totais do município.
4
No campo religioso, encontra-se em Feira Nova uma igreja católica e uma igreja evangélica
Assembléia de Deus, popularmente conhecida como a igreja dos crentes, cujos membros são
dos sítios vizinhos, segundo as informações dos próprios moradores.

178

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sendo parte de um terraço que foi ampliado, ou de um quarto que teve
sua parede quebrada.5
A maioria da população da comunidade de Feira Nova sobrevive
das aposentadorias rurais e dos auxílios do Governo Federal, a exemplo
do Bolsa Família. Viver com a contribuição desses auxílios parece não
ser algo raro em pequenas cidades do Nordeste brasileiro, tendo em
vista que o mesmo foi observado Catingueira, no sertão da Paraíba
(Pires, 2011). Considera-se que a comunidade, assim como a cidade de
forma geral, não apresenta muitas oportunidades de emprego. Algumas
poucas pessoas conseguem um emprego público, vinculado à prefeitura
municipal. Conseguir a aposentadoria rural continua sendo o desejo de
muitas pessoas que já atingiram a idade exigida, mas esse é um processo
difícil dado às exigências burocráticas de comprovação do trabalha-
dor rural. Ter na família alguém aposentado é sinal de uma segurança
familiar, o que foi também observado por Mireya Suaréz (2006), em
pesquisa em diversas cidades brasileiras, como destacado a seguir:

[...] além do benefício recebido da Bolsa Família e dos programas


remanescentes, a renda de alguns grupos domésticos é incremen-
tada com benefícios procedentes do Programa de Erradicação do
Trabalho Infantil [...], bem como das aposentadorias de pais e so-
gros das beneficiárias e de prestações continuadas. A importância
desse tipo de renda para a sobrevivência do grupo familiar é apon-
tada por todas as entrevistadas [...] (Suaréz et al, 2006, p. 20-21).

5
Feira Nova, assim como outros lugares do município, não possui um sistema de abastecimen-
to de água adequado, de forma que apenas nos últimos anos foi realizado um encanamento na
comunidade que passa pelas ruas e chega até a frente das residências. Cada casa, com exceção
das casas do final da rua, das quais diz-se que a água não chega com força o suficiente para
entrar, recebe um encanamento improvisado que passa pela quina do muro seguindo pelo canto
da parede até o final da casa, ou seja, vai do muro da frente até o quintal da casa, onde em geral
está localizada a caixa d’água ou um grande reservatório. A água chega nas casas apenas uma
vez por semana, no conhecido “o dia da água”, em que ocorre armazenamento semanal, uma
vez que a distribuição da água tem hora para chegar e para terminar. Atualmente a prefeitura
municipal está com um projeto de ampliação de abaste- cimento de água na comunidade que
vai contribuir para que os seus moradores recebam água mais de uma vez por semana.

179

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O trabalho na agricultura já não é tão realizado como antigamen-
te, muito embora algumas pessoas ainda o desenvolvam, sobretudo os
mais velhos. É comum, no entanto, encontrar casas onde há alguma
plantação nos quintais, um pequeno roçado, ou ainda a criação de ani-
mais de pequeno porte, como galinhas e porcos. Tais atividades em
geral são de responsabilidade das mulheres. O trabalho alugado, tra-
balho em propriedades rurais por dia de serviço, é outra alternativa,
apesar de considerado “a pior opção” de trabalho, como destaca Garcia
Jr. (1989). Muitos homens da comunidade desempenham a atividade
de motorista de Toyota, veículo adquirido em geral depois de longos
anos de economia e trabalho em outras cidades, mas com o intuito de
voltar a morar na comunidade e de exercer uma atividade remunerada
autônoma. Ser toyoteiro já foi sinônimo de status no local, no entanto,
hoje em dia essa atividade encontra-se em declínio, tendo em vista a
regularização e fiscalização do transporte de passageiros. Esse fato fez
com que muitos abandonassem essa atividade seguindo na busca por
outros trabalhos. Não raro pequenos bicos também são realizados sem-
pre que aparecem, contribuindo para a renda familiar.
A escassez de opções dignas de trabalho afeta sobretudo os mais
jovens, sendo essa uma queixa recorrente. Wanderley destaca que
73,4% dos jovens oroboenses entrevistados afirmaram que possuíam
algum irmão morando fora do domicílio, sendo que a maioria por razão
de trabalho. “Dos que saíram, em sua maioria jovens, vão trabalhar em
outras cidades, mas mantêm a referência ao domicílio paterno, para
onde voltam com uma certa frequência” (2006, p. 44).
A jovem Jeane6, moradora da comunidade, exemplifica:

Meus irmãos, um trabalha em Recife, outro trabalha no Rio de


Janeiro e eu tô aqui. Já houve um distanciamento, mas eles têm
vontade de voltar. Silvinho tem vontade de morar aqui, Leonardo
tem vontade de morar aqui, Wesley tem vontade de morar aqui.
Não moram por falta de oportunidade mesmo. Meu irmão no Rio

6
Todos os nomes próprios de pessoas são fictícios.

180

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de Janeiro é porteiro, Wesley e Leonardo são garçons. Então, eles
querem obter uma vida melhor assim como todo mundo, então eles
têm que sair daqui pra procurar uma coisa melhor fora ( Jeane, 27
anos, moradora de Feira Nova, em entrevista para essa pesquisa).

Paulo (2011) destaca que tem-se observado no município uma


diminuição da migração dos pais em virtude dos programas sociais.
A migração temporária atinge predominantemente os jovens e tem
destino principalmente a cidade do Recife. É preciso destacar ainda
que a partida se dá no momento em que atingem a maioridade, pois é
quando podem trabalhar com carteira assinada. Chama a atenção e não
acreditamos que seja apenas mero detalhe, que esse momento também
coincida com o desligamento do jovem ao Programa Bolsa Família,
cuja família deixa de receber o Benefício Variável vinculado ao Ado-
lescente. Em relatório apresentado ao Ministério do Desenvolvimento
Social, Suaréz (2006) destaca que:

[...] Possivelmente o término do benefício obriga esses adole-


scentes a buscar formas alternativas de sustento e a abandonar a
escola. Se assim for, como a pesquisa de campo sugere, o corte da
bolsa causa uma mudança abrupta da condição de criança para a
vida adulta em condições ainda muito vulneráveis e no momento
mais crítico da adolescência. Dados discursivos obtidos durante o
trabalho de campo sugerem que esses(as) jovens enfrentam muita
dificuldade para ingressar no mercado de trabalho, deparando-se
com o desemprego ou subemprego... (Suárez, 2006, p. 16).

Embora correto, não enfatizamos que o término do benefício obri-


gue os jovens a buscar formas alternativas de sustento, mas que receber
o benefício contribui para que o jovem permaneça por mais tempo na
família e na comunidade. Sem esse auxílio, essa saída talvez ocorresse
antes de se atingir a maioridade, ou esse jovem já na infância adentraria
ao mundo do trabalho, processo já vivenciado por algumas gerações.
Nesse sentido, já nos remetendo ao próximo tópico, acreditamos que
o Programa Bolsa Família vem contribuindo para uma mudança ge-

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racional, que atinge não só as crianças, mas contribui sobretudo para
uma nova experiência de infância na comunidade. No próximo tópico
discorremos, entre outras coisas, sobre como o trabalho é percebido
como inibidor da infância.

A negação da infância
Nesse tópico faremos uma discussão sobre o trabalho e a infância.
Nas entrevistas lançamos mão da pergunta: “Como foi sua infância?”.
De imediato ouvíamos uma negação da infância: “Eu não tive infância,
não. A minha infância foi muito sofrida! Eu tive que trabalhar muito
cedo... ”. Rizzini (2010) já afirmou que as crianças pobres sempre tra-
balharam. Cipola (2001) afirma também que as condições de pobreza e
de miséria das classes menos favorecidas economicamente, acopladas à
baixa escolaridade dos pais é o que, em muitos casos,produz e reproduz
o uso da mão de obra infantil entre as gerações. Esses podem ser con-
siderados um dos principais motivos para o a utilização precoce dessa
mão de obra, mas é certo que há outros fatores, como a moralidade e
a educação próprias do mundo rural que incidem sobre essa questão.
O trabalho, em muitos casos, é considerado como a razão para a
ausência total ou parcial de duas gerações de crianças do âmbito esco-
lar, além de restringir o tempo das práticas lúdicas. Nesse contexto, po-
demos perceber que uma infância de trabalho não é considerada uma
infância. O ideal de infância encontra-se relacionado à escolarização,
ao não trabalho e à ludicidade. No entanto, para os adultos e idosos é o
trabalho que marcou essa fase do curso da vida, logo, essa tríade não foi
vivenciada plenamente por essas gerações, o que nos leva a entender o
por quê da negação da infância. As famílias das crianças que encontra-
ram-se inseridas no mundo do trabalho não davam pouco valor à esco-
larização, apesar do alto índice de abandono escolar. Entendemos que
a escolha pelo trabalho em detrimento da escolarização está associada
entre escolher o que é prioridade e o que é importante. Neste caso, a
escolarização acabou sendo tomada como importante, enquanto o tra-

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balho tornou-se a prioridade, o que não significa que a escolarização
fosse desvalorizada.
Temos que levar em conta o contexto histórico da escolarização na
região e no Brasil, em que a tônica parece ser as dificuldades de acesso
e a permanência na escola. Vasconcellos (1991) destaca que dentre os
vários fatores que contribuem para a não escolarização das crianças
rurais estão as condições de deslocamento e o acesso à escola. Ele afir-
ma ainda que nas escolas de 1ª a 4ª séries da zona rural brasileira, o
acesso era feito a pé, sendo, em muitos casos, a distância percorrida
demasiadamente longa. Muitas das entrevistadas alegaram que tinham
que caminhar quilômetros até chegar à escola e da escola até sua casa
posteriormente. Essa dificuldade, que acarreta em cansaço, bem como
nas dificuldades intrínsecas às longas caminhadas diárias, foi um dos
fatores que fez com que muitas crianças ficassem excluídas do sistema
escolar. Paralelo a isso, o autor ainda destaca que o ensino de 5ª a 8ª
série na zona rural brasileira era praticamente inexistente.

Devido à falta de transporte, bem como à dificuldade de os


pais arcarem com os custos de um transporte privado, as crianças
param de estudar, entrando prematuramente no mercado de
trabalho ou em atividades informais: em toda a zona rural
brasileira, é reconhecidamente baixa a taxa de conclusão do 1º
grau, sendo mínima a proporção de crianças que passam da 4ª série
(Vasconcellos, 1991, p. 94).

Beatriz esclarece a situação do seu ponto de vista:

Aqui só obtinha até a 4ª (série), aí da quinta série a gente tinha


que ir pra Matinadas (povoado vizinho). Aí eu estudava à noite, e
a gente ia de pé. Às vezes a gente ia na Kombi da prefeitura que
levava os professores, mas às vezes nem tinha. Imagina aí! A gente
não tinha chance não. [...]. Hoje em dia, não. Hoje em dia tem
carro até demais pra carregar esses estudantes. Oportunidade pra
estudar hoje, eu acho que não falta, visse. Mas em relação assim, de
eu criança pra hoje, eu acho que mais dificuldade mesmo foi essa

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aí, o transporte escolar, que antes não tinha e hoje tem, né. Hoje
tem à vontade (Beatriz, 28 anos, em entrevista para essa pesquisa).

Ouvimos ainda relatos de pessoas que com muito custo conse-


guiam frequentar a escola, mas para continuar estudando a única al-
ternativa possível era repetir a mesma série por várias vezes. Isso por-
que, não havendo escolas com as séries subsequentes na comunidade
ou proximidades, e nem tendo condições de pagar um transporte para
o deslocamento, a escolarização se tornava inviável. Dessa forma, “não
sendo um requisito para o trabalho rural e, nesse caso, indispensável
para a reprodução do capital, a educação rural fica negligenciada”
(Damasceno; Bezerra, 2004, p. 5).
Dona Maria, hoje avó, é uma figura emblemática da sua geração.
Na infância era o trabalho que tomava a maior parte do tempo em seu
dia a dia. A escola não ocupou muito espaço na vida dessa senhora, que
com muito esforço conseguiu frequentar até a terceira série do Ensino
Fundamental. É interessante notarmos a importância do aprendizado
formal no seu tom de voz quando diz: “Na minha escola, eu não sei que
milagre, eu ainda consegui aprender uma coisinha...”. Muito menos
teve tempo de brincar, ao que ela se refere por meio do signo da “roda”,
em contraposição à “enxada”. Sobre sua vida, ela diz:

A minha vida? Oxe, a minha vida é longa! Oxe, a minha vida era
apanhando café, era arrancando mandioca, era fazendo farinha.
Moendo mandioca, cevando mandioca, plantando roça. Tudo isso
era a minha infância. (E a senhora tinha mais ou menos quantos
anos quando fazia tudo isso?) Eu? Oxe, quando eu comecei, quan-
do mãe ensinou a gente a fazer as coisas, eu era deste tamanho oia
(e fez uma expressão com a mão em direção ao chão mostrando
que era bem pequena). [...] E então, pra cevar mandioca era assen-
tada dentro do cevador, porque não alcançava chegar no cocho de
cevar. A minha infância foi trabalho, foi o cabo da enxada. Pode botar
aí, era o cabo da enxada ao invés da roda! (Dona Maria José, 55 anos,
em entrevista para essa pesquisa, grifo nosso).

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De outro lado, o trabalho está largamente ausente da infância de
hoje, que tem como marca principal a escolarização, em paralelo à lu-
dicidade, que também pode ser chamado de tempo livre (Pedro, 9 anos;
Viviane, 7 anos).

Pesquisadora: Fala, Pedro!


Pedro: Moro em Feira Nova.
Pesquisadora: Tem quantos anos?
Pedro: 9.
Pesquisadora: Estuda?
Pedro: Estudo.
Pesquisadora: Trabalha?
Pedro: Não!
Viviane: Só fica em casa com o cu pra cima assistindo televisão!

Consideramos que a infância dessa geração de avós e mães das


crianças que hoje são beneficiadas pelo Programa Bolsa Família teve
como grande marca a entrada precoce no mundo do trabalho, legado
advindo de uma existência vivida em situação de pobreza. É certo que,
nas conversas e entrevistas realizadas com pessoas pertencentes a essas
gerações, a maioria delas nos apresentou o trabalho enquanto neces-
sidade familiar. Muitas alegavam que não eram obrigadas a trabalhar,
mas devido à situação da família acabavam se inserindo no meio da
labuta para auxiliar no orçamento familiar, pela responsabilidade as-
sumida como membro familiar pleno (Pires, 2012). No entanto, todas
elas se referiram a algum tipo de privação advinda dessa situação de
inserção precoce no trabalho, seja no âmbito escolar ou no desenvol-
vimento de atividades lúdicas (“Pode botar aí, [minha infância] era o
cabo da enxada ao invés da roda!”, Dona Maria José).
Parece que as mudanças que estamos tratando podem estar re-
lacionadas ao Programa Bolsa Família. O auxílio de um benefício
financeiro de uma política pública, dinheiro considerado pouco, mas
certo, contribui para uma série de mudanças que reverberam sobretu-

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do na vida da atual geração de crianças. É importante destacar que as
condicionalidades são cumpridas pelas crianças e pelos adolescentes
desencadeando um processo de reivindicação do recurso nos seios das
famílias. Esse processo de negociações levado a cabo principalmente
pelas crianças em relação às suas mães, leva em conta o esforço da
criança de ir cotidianamente à escola e sua persistência em aprender.
Assim, o recurso é entendido como “direito das crianças”, uma vez
que elas garantem seu recebimento ao ir para a escola (sobre isso
tratamos em outra oportunidade, Pires et al., 2014). Observamos
também outras mudanças entre as famílias beneficiadas pelo Progra-
ma Bolsa Família como a “expansão das possibilidades de consumo e
priorização do consumo de bens voltados para as crianças (alimentos,
material escolar, vestimentas e calçados)” (Pires; Silva Jardim, 2014,
p. 107). É nesse sentido que corroboramos a ideia de uma “geração
Bolsa Família” (Pires; Silva Jardim, 2014). Referimo-nos a crianças
que têm a possibilidade de permanecer na escola em detrimento da
execução do trabalho na roça, o que detona um processo de mudança
entre as relações intrafamiliares, inclusive no que tange ao status das
crianças (Pires, 2014; Pires et al., 2014), além de gozarem os ganhos
da expansão do consumo, sendo prioridade em relação ao gasto fami-
liar do benefício.
Com efeito, sabemos que essa mudança que corrobora com a que-
bra de um ciclo geracional e muda a vivência da infância das gerações
seguintes não se dá única e simplesmente pela implantação do Progra-
ma Bolsa Família, mas por uma série de fatores advindos mediante a
interferência do estado, como o aumento sistêmico do salário mínimo
que impacta as aposentadorias, a criação de legislação de proteção e a
participação da criança e de adolescente por meio do ECA, e de po-
líticas públicas como o PETI, o Bolsa Escola e atualmente o Bolsa
Família. Tudo isso, obviamente, culmina com mudanças inter e intra-
geracionais. Enquanto a infância da avó foi “o cabo da enxada”, a in-
fância do neto é assistir televisão “com o cu para cima”, fazendo nada,
e a infância da mãe uma transição entre duas realidades tão distintas.

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Acreditamos que as mudanças ocorridas entre as gerações corroboram
com o que chamamos de “invenção da infância” (Santos, 2014), uma
vez que tais mudanças afetam as práticas sociais perpetuadas entre as
gerações, dando um novo significado a essa fase da vida que chamamos
de infância. É sobre isso que nos deteremos agora.

A invenção da infância

Em História social da criança e da família (1981), Ariès discute a


emergência da noção de infância como categoria social, mostrando que
a infância é uma construção sócio-histórica. A infância deve ser to-
mada enquanto processo e não um produto. Nesse sentido, não é algo
natural nem universal. Ele afirma que até a Idade Média a criança não
possuía espaço particular no âmbito familiar, sendo vista e considerada
como réplica de um adulto, um adulto em miniatura.

Até por volta do século XII, a arte medieval desconhecia a in-


fância ou não tentava representá-la. É difícil crer que essa au-
sência se devesse à incompetência ou à falta de habilidade. É mais
provável que não houvesse lugar para a infância nesse mundo
(Ariès, 1981, p. 17).

A descoberta da infância se daria apenas na modernidade, com o


surgimento da escola e mediante a família burguesa. Assim, no início
do século XVII surge a instituição escolar com um anseio de moraliza-
ção, e fazendo uma separação, de fato, entre crianças e adultos, ou ainda,
entre o mundo das crianças e o mundo dos adultos. Nessa fase ocorreu
o surgimento de dois sentimentos básicos em relação à infância: a pa-
paricação e a escolarização. Em consequência da última, a disciplinariza-
ção, o enclausuramento e a vigilância tornam-se uma constante na vida
das crianças.
A respeito disso, Kramer afirma:

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A ideia de infância não existiu sempre e da mesma maneira. Ao
contrário, ela aparece com a sociedade capitalista, urbano-industrial,
na medida em que mudam a inserção e o papel social da criança
na comunidade. Se, na sociedade feudal, a criança exercia um papel
produtivo direto (“de adulto”) assim que ultrapassava o período
de alta mortalidade, na sociedade burguesa ela passa ser cuidada,
escolarizada e preparada para uma atuação futura. Este conceito de
infância, pois, é determinado historicamente pela modificação nas
formas de organização da sociedade (Kramer, 1996, p. 19).

O que antes era comum, a convivência e a permanência das


crianças nos mesmos espaços que os adultos, se modificou. A infância
passou a ser considerada como uma etapa da vida, e a criança sendo
vista de um modo especial. A infância retratada por Ariés encontra-
se relacionada ao período do renascimento na Europa, e acredita-se
que o estudo realizado pelo referido autor está associado às elites da
época, posto que os pobres não podiam gozar desse privilégio, pois
necessitavam que seus filhos, tão logo conseguissem se locomover,
os ajudassem no trabalho. Desse modo, o ideal seria que falássemos
então em infâncias, no plural, e não em infância no singular. Apesar
disso, a descoberta de Ariès sobre a “invenção da infância” e sobre os
sentimentos da infância, se estendem para além das elites europeias.
Assim sendo, ainda que não possamos falar em uma infância univer-
sal, há alguns elementos que são comuns a várias delas, ou ao menos
encontram-se presentes no ideal que se tem de infância. A ludicidade
é umas dessas características, e segundo Sousa (2004a) ela pode ser
considerada o lugar comum entre as infâncias. Emilene Sousa em sua
dissertação de mestrado intitulada “‘Que trabalhais como se brincás-
seis’: trabalho e ludicidade na infância Capuxu”, enfatiza a presença
da ludicidade mesmo quando as crianças trabalham. A escolarização
é a outra característica.
O Programa Bolsa Família, ao buscar quebrar com o chamado
círculo vicioso da pobreza por meio da condicionalidade escolar, con-
tribui com aquilo que chamamos de uma “invenção da infância” (Santos,

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2014) tardia e situada. Em pleno século XXI as crianças brasileiras
estão finalmente acessando a escola. A escolarização é reafirmada pelo
Programa Bolsa Família por meio da condicionalidade escolar mínima
de 85%, o que ultrapassa a disposta na legislação do Ministério da
Educação (Mec), a qual preconiza 75% de frequência escolar para que
o aluno possa ser aprovado.
Para o ideal de infância existente em Feira Nova, a subtração da
criança da escola descaracteriza a infância. A condicionalidade escolar
imposta pelo Programa Bolsa Família traz a criança para o que é consi-
derado em Feira Nova, o seu lugar. Assim, “[...] a escola tem um papel
fundamental, considerada como o lugar adequado, por excelência, para
a presença das crianças. A infância requer a escola, assim como a escola
‘produz’ a infância” (Becchi, 1996 apud Gomes, 2008, p. 87).
O que queremos dizer é que o Programa Bolsa Família proporcio-
na um novo olhar para a criança, e é por meio dela que os idealizadores
do programa atingem seu objetivo maior, que é a diminuição da situa-
ção de vulnerabilidade social que encontram-se muitas famílias.7
Ao lado da escolarização, o sentimento de paparicação também
descrito por Ariès compõe o quadro de “invenção da infância”. Beatriz,
jovem mãe, pondera:

Tem diferença (entre a vida dela quando criança e a dos filhos).


Porque assim, hoje, meus filhos graças a Deus, têm tudo o que que-
rem, em termo de casa. Na minha casa eles têm tudo o que eles
querem. Antigamente pra mim ter uma boneca eu tinha que... Ave
Maria! Meu pai trabalhava em Recife, aí trazia uma boneca usada
pra me dar. Ou então minha mãe teve que aprender fazer boneca

7
Temos, é claro, uma nítida mudança geracional, sobretudo pela permanente frequência
escolar advinda da obrigatoriedade da condicionalidade educacional do programa. A educação,
no entanto, é uma questão a ser sempre revista e analisada, pois seu acesso é fundamental,
embora não suficiente; é preciso uma maior atenção na educação de forma geral, uma melhoria
educacional e não apenas uma ampliação ao acesso. Contudo, é inegável que o acesso escolar
está garantido por meio da condicionalidade e do apoio pecuniário que faz a criança permanecer
na escola sem danos financeiros para a família.

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de pano para me dar. Hoje não. Eu compro uma boneca de pano
para minha filha porque eu acho bonita. Eu compro qualquer coi-
sa para a minha filha, porque? Porque aquilo ali eu já tenho uma
condição melhor, entendesse? Antigamente meus pais não tinham
uma condição de me dar alguma coisa. O que eles pegavam era
mais pra alimentação, pra roupa. Eu acho que a gente tinha uma
vida mais humilde mesmo. Hoje não (Beatriz, 28 anos).

A paparicação é entendida como uma maior atenção dada à


criança. Nesse sentido, podemos depreender que há uma paparicação
das crianças do Bolsa Família, à medida que elas são consideradas em
seus desejos e recebem alguns mimos, sobretudo quando a mãe vai
ao supermercado e leva para casa um produto do agrado da crian-
ça, como, por exemplo, um iogurte ou uma bolacha recheada (Pires,
2013). Em um contexto no qual “satisfazer os desejos alimentares
dos filhos é parte do que se considera o dever de uma boa mãe”, é
“inquestionável a priorização do consumo voltado para as crianças”
(Pires; Jardim, 2014, p. 104, 106).

Antigamente quem falava em cereal? Ninguém! Tu ouvia falar em


cereal? Não! Eu nunca escutei, na minha infância pra ser bem fran-
ca pra tu eu nunca comi cereal não, visse. Meus filhos hoje em dia
têm. Hoje a comida dos meus filhos é muito diferente da minha
comida de antigamente [...] Hoje mesmo tendo uma vida humilde
eu posso dá mais aos meus filhos (Beatriz, 28 anos).

Nessa perspectiva, acreditamos que a criança que se encontra in-


serida no Programa Bolsa Família recebe maior atenção no meio fa-
miliar, destacando-se claramente essa mudança entre as gerações em
termos de consumo, como podemos ver a seguir:

Hoje a comida dos meus filhos é muito diferente da comida minha,


de antigamente. Eu nunca passei fome, fome eu nunca passei. Mas
já comi mal? Já comi! Não vou dizer que sempre na minha vida
eu comi bem. Não. Teve épocas da minha vida que meu pai estava

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desempregado, a minha mãe estava desempregada, não existia o
Bolsa Família, entendeu?! A gente já morava aqui na rua, minha
avó plantava, só que safra é safra. Você não planta hoje e colhe
amanhã. Você planta hoje e colhe daqui a três meses, quatro meses,
cinco meses, seis meses, dependendo do que você planta. Aí eu
acho que a dificuldade antigamente era muito maior. Hoje não.
Hoje você vai no mercadinho ali, compra, aí, tu não tem dinheiro
hoje não? Amanhã tu paga. Porque amanhã tu tem com o que
pagar. Entendeu? (Beatriz, 28 anos).

Além disso, o entendimento da criança enquanto peça funda-


mental para o recebimento do benefício, uma vez que é ela quem
cumpre a condicionalidade escolar exigida pelo programa para que
haja o repasse do benefício financeiro, faz com que sirva como for-
necedora de status e segurança para a família (Pires, 2014). Por meio
dela assegura-se a ascensão social da família com fins de atingir o
objetivo central do Programa Bolsa Família, que é a saída das famílias
da situação de pobreza e de extrema pobreza. A criança, antes inserida
no espaço considerado do adulto, no mundo do trabalho, encontra-
se então cercada dos cuidados com sua saúde e sua educação. Dessa
forma, a vida da família organiza-se também em função das necessi-
dades, dos desejos e sonhos das crianças, o que antes não acontecia,
tendo em vista as extremas dificuldades financeiras enfrentadas. Nes-
se processo, o Programa Bolsa Família também faz com que a criança
seja um canal no qual a família adquire poder e sentido, reforçando
os laços familiares como, por exemplo, o reforço empregado no papel
da mulher como mãe e cuidadora do lar, a despeito de toda crítica
feminista que é feita ao programa. Vemos, então, uma “invenção da
infância” (Santos, 2014), em que a marca principal é a escolarização
das crianças associada ao tempo livre, processo tardio em relação à
modernidade europeia e situado no agreste pernambucano. Essa in-
fância é inventada ao mesmo tempo que floresce a “geração Bolsa
Família” (Pires; Jardim, 2014), na qual escola, consumo e não trabalho
se associam para definir o cotidiano das crianças. Processos similares

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vem sendo observados em Catingueira, Paraíba (Pires; Jardim, 2014;
Pires, 2013; Pires, 2014; Pires et al. 2014).

Considerações finais

Criança e infância estão comumente associadas. No entanto, o que


é a criança? O que são as crianças? O que é ser criança? E, ainda, o que
significa a infância? Como tentamos mostrar aqui, as gerações de avós
e mães da comunidade rural de Feira Nova (Orobó, PE) nos falaram
de suas vidas quando crianças, mas não associam o ser/ter sido criança
a ter vivenciado a infância. Nesse sentido, ter sido criança não signifi-
cava para elas ter tido infância, isso porque o sentimento da infância se
altera em cada época, uma vez que ele se encontra vinculado às práticas
sociais (Kramer, 1984).

[...] Essas concepções são determinadas pelos papéis que as crianças


desempenham no seu ambiente social, pela situação de vida, expli-
citando formas de educar diferenciadas e impossíveis de julgamen-
to, mas carentes de compreensão (Yamin; Mello, 2004).

Temos, então, que observar um fenômeno em seu contexto socio-


cultural. Buscar entendê-lo em seus próprios termos. Logo, não pode-
mos equalizar os conceitos de criança, crianças e infância. Para Allison
James (2012, p. 270) “infância” é o espaço social, “crianças” é uma ca-
tegoria geracional e “a criança” é um indivíduo que representa a sua
categoria geracional e habita o seu espaço social. Nesse sentido, se não
podemos falar em infâncias, faz sentido falar de criança(s)? Parece-nos
que aqui a crítica comumente feita à Ariès pode ser aplicada. Se não
havia infância aos moldes da modernidade ou dos tempos contemporâ-
neos, isso não implica que não houvesse crianças e infâncias.

[...] Portanto, parece que, a bem dizer, não existem crianças sem in-
fância, mas, sim, crianças cujas infâncias são tão infames e distintas

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do modo como a sociedade entende como a infância deve ser, que
essas crianças não se parecem com crianças... (Castro, 2013, p. 73).

Disso retiramos, mais uma vez, o caráter situado das infâncias. Se


há alguma generalidade a ser extraída da infância ela está justamente na
universalidade da sua particularidade.
Tentamos mostrar aqui um processo de mudança das práticas so-
ciais de um grupo específico, o qual desencadeia uma construção da in-
fância, ou no que chamamos de “invenção da infância” (Santos, 2014),
tomando emprestada a expressão de Ariès. Um processo de mudan-
ça geracional que rompe com práticas advindas de um ciclo vicioso
exercido mediante a situação de pobreza e privação em que se vivia, e
produz uma nova geração com características próprias, a saber, acesso
à escolarização, acesso à bens de consumo e tempo para o lazer. Essas
mudanças produzem um efeito significativo no contexto aqui retratado,
embora estejamos falando de uma primeira geração que rompe com
esse ciclo geracional. Portanto, finalizamos esse texto enfatizando que a
“invenção da infância” (Santos, 2014) em Feira Nova é um processo ad-
vindo do surgimento de uma nova geração, a “geração Bolsa Família”,
em que as crianças não trabalham, estudam, dispõem de tempo livre
e não passam privação materiais severas. Todas essas características as
distinguem categoricamente das gerações anteriores, principalmente se
comprarmos com a geração das avós.
Consideramos que os resultados aqui apresentados requerem a
continuidade da pesquisa, tanto porque o Programa Bolsa Família é
um programa relativamente novo, com apenas 14 anos de implemen-
tação, como pelo fato de que as mudanças mais consideráveis estarem
relacionadas à educação escolar das crianças que demanda tempo para
que possam ser sentidas. Ao mesmo tempo, chamamos a atenção para a
necessidade de evitar a construção de um novo ciclo geracional focado
apenas no consumo e em uma escolarização de má qualidade. São ne-
cessários maiores investimentos educacionais para além da melhoria do
acesso, a fim de garantir a qualidade da educação. Sem isso, a escola não
será “vista como a serviço da emancipação individual e coletiva” mas, se

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muito estará “simplesmente a reboque dos imperativos da economia”,
apenas capacitando indivíduos para o mercado de trabalho, como ad-
verte sabiamente Lúcia Rabello de Castro (2013, p. 111).

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Sentidos y prácticas sobre el cuidado infantil
en ámbitos estatales de atención de la salud en
el partido de La Plata, Argentina
_______________________________________________________________
María Adelaida Colangelo

Introducción

El cuidado infantil ocupa un lugar central en las preocupaciones


e intervenciones cotidianas de los equipos de atención de la salud, es-
pecialmente de aquellos que se desempeñan en efectores públicos des-
tinados a la atención primaria. En efecto, los modos de criar y atender
cotidianamente a los niños, sobre todo durante sus primeros dos años
de vida, son temas en torno de los cuales gira gran parte de las consultas
y de los procesos de atención de la salud. Este interés por el cuidado
infantil no se limita a los profesionales médicos, sino que involucra a
otros integrantes los equipos de salud: enfermeros, promotores de sa-
lud, psicólogos, trabajadores sociales.
Entendido en términos generales como el conjunto de prácticas
materiales y simbólicas, socialmente producidas y organizadas, orien-
tadas a mantener la vida de los niños y su bienestar (Llobet, 2011;
Pautassi; Zibechi, 2013), el concepto de “cuidado infantil” aparece es-
trechamente relacionado con el de “crianza”, si bien este último hace
especial énfasis en los procesos de atención y formación de los niños
que se producen en los entornos más próximos, como las familias, du-
rante los primeros tramos de la vida. En este sentido, el análisis del
cuidado trasciende el ámbito doméstico e implica considerar un con-
junto más amplio de actores e instituciones particulares, comunitarios

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o estatales (Llobet, 2011; Faur, 2014), entre los cuales se encuentran los
establecimientos estatales de atención de la salud.
El cuidado infantil se torna materia de intervención en las insti-
tuciones sanitarias a partir de un intenso proceso de medicalización de
la crianza iniciado en Argentina hacia fines del siglo XIX (Colangelo,
2012). El mismo implicó tensiones, disputas y negociaciones –que aún
hoy continúan– entre el saber médico y los saberes populares, tradi-
cionales y religiosos sobre la crianza, en un proceso a través del cual se
construyó la creencia en legitimidad de la medicina como saber experto
en el cuidado infantil, aunque no devino en una transformación total
de las prácticas.
Los niños aparecen como los principales destinatarios de las polí-
ticas públicas de salud, junto con las mujeres en su condición de madres.
Así, tal como lo muestran Nari (2004) y Pozzio (2007) para diferentes
momentos históricos, “niños” y “madres” son considerados la población
más vulnerable –la “población materno-infantil”– y, por lo tanto, la que
debe ser atendida en forma prioritaria. Desde esta perspectiva mater-
nalista, la protección de la mujer madre es considerada también una
manera indirecta de cuidar a los niños.1
Partiendo de estas consideraciones generales, en este trabajo se
propone reflexionar sobre los sentidos y prácticas sobre el cuidado in-
fantil –y las concepciones de infancia, familia, maternidad, cuerpo a él
vinculadas– puestas en juego por los agentes de diferentes instituciones
estatales de atención de la salud en el partido de La Plata, Argentina.2
Ello requirió de una aproximación a las prácticas cotidianas allí de-
sarrolladas, a fin de poder ver, de alguna manera, los encuentros –o

1
Si bien el análisis del enfoque maternalista de las políticas públicas de salud no es el foco
de este trabajo, cabe señalar que categorías como las de “binomio madre-hijo” o “salud
materno-infantil”, aún vigentes en las mismas, se construyen de conjunto con el procesos de
medicalización de la crianza infantil, entre fines del siglo XIX y comienzos del XX (Nari,
2004; Colangelo, 2012).
2
La Plata es la capital de la provincia de Buenos Aires. “Partido” es el nombre que reciben en
la provincia de Buenos Aires las divisiones territoriales y administrativas correspondientes a los
municipios. En este caso, abarca el casco urbano de la ciudad de La Plata y varias localidades
periurbanas. Según datos del Instituto Nacional de Estadística y Censos, en 2010 el partido de
La Plata contaba con una población de 654.324 habitantes.

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desencuentros– entre el cuidado propuesto por los profesionales de la
salud y los cuidados realizados por las familias. El interés, entonces, es-
tuvo centrado en las prácticas concretas, situadas, heterogéneas a través
de las cuales el cuidado infantil es abordado en espacios estatales de
atención de la salud que atienden a la población de sectores populares
y sectores medios bajos, culturalmente diversa. Esto ha sido realizado a
partir de dos investigaciones de carácter etnográfico.
La primera de ellas fue llevada a cabo hace poco más de diez años,
en el consultorio de “Niño Sano” del Servicio de Pediatría de un im-
portante hospital público, dependiente de la administración provin-
cial, situado en una localidad que dista 10 km del centro de la ciudad.
El énfasis estuvo puesto en la observación del proceso del llamado
“control de niño sano”.
Como continuación de ese trabajo, actualmente se está explorando
el modo en que el cuidado infantil es abordado en dos centros de aten-
ción primaria de la salud (CAPS), que dependen del gobierno munici-
pal y están situados en diferentes localidades, una de ellas contigua al
casco urbano; la otra, a unos 10km de distancia. Esta indagación pone
el foco en las prácticas y representaciones del equipo de salud y en la
relación que se establece entre éste y las familias usuarias del servicio.
Aquí no se pretende profundizar en cada una de estas investigaciones
particulares, sino recuperar algunos interrogantes y líneas de análisis
que los atraviesan y que pueden ser profundizadas.
El análisis propuesto hace indispensable tener en cuenta las condi-
ciones y ámbitos de trabajo de los equipos de salud que, con frecuencia,
lejos de corresponder a los ideales de la atención de la salud, implican
condiciones de precariedad institucional, laboral, de recursos, edilicia.3
Estas condiciones se acentúan en los CAPS, haciendo que las reflexio-

3
El Servicio de Pediatría del hospital está integrado por médicos de planta, residentes y
enfermeros; en caso de ser necesario, se realizan derivaciones a otros servicios dentro del mismo
hospital, entre ellos, los de Psicología y Servicio Social. En los CAPS, el equipo de salud está
integrado por médico pediatra y/o generalista, ginecóloga u obstétrica, odontólogo, enfermeros,
promotores de salud, trabajador social, psicólogo (pudiendo algunos de estos profesionales no
estar o ser “compartidos” entre dos Centros).

199

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nes sobre el cuidado cobren otras dimensiones, que llevan a preguntarse
acerca del que reciben los propios cuidadores de los niños –familias y
personal de salud. La sensación de “descuido” que percibe el personal
de salud es expresada por una profesional de uno de los CAPS, quien
explica las dificultades del trabajo cotidiano:

[...] por la descalificación, porque es de poca monta, te comparan


con el hospital, porque siempre los que estamos acá sabemos me-
nos que el resto y, en realidad, somos los que estamos en el barro y
conocemos a la gente (Entrevista psicóloga CAPS, 2017).

Abordajes del cuidado infantil en los ámbitos estatales


de atención de la salud
Los ámbitos de atención de la salud pueden ser considerados como
espacios donde constantemente se producen apreciaciones e interven-
ciones con respecto a los cuidados recibidos por los niños. Las pautas
de cuidado cotidiano y la educación del niño suelen ser temas en torno
de los cuales gira gran parte de la consulta pediátrica, sobre todo si se
trata del control periódico de salud.4
“El control”, como lo nombran habitualmente los usuarios y los
profesionales del sistema de salud, constituye un espacio y un proceso
donde se condensan y se ponen en juego múltiples representaciones
acerca de la niñez, el cuidado, la familia y la maternidad. Considerado
como un elemento central de la atención primaria de la salud y sus es-
trategias eminentemente preventivas, el control de salud del niño sano
implica una serie de acciones: medir, pesar, observar, registrar, compa-
rar, evaluar, interrogar, indicar; acciones que configuran una rutina que,
con variaciones, se pone en práctica en los consultorios pediátricos de
las diferentes instituciones de salud estudiadas.

4
De acuerdo con el Ministerio de Salud de la Nación, el control del niño sano, también lla-
mado control de crecimiento y desarrollo, debe realizarse con la siguiente frecuencia: de 1 a 6
meses: cada mes; de 6 a 12 meses: cada 2 meses; de 1 año hasta el año y medio: cada 3 meses;
del año y medio hasta los 3 años: cada 6 meses; de 3 a 6 años: uno por año.

200

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A partir de las observaciones realizadas en éste y otros momentos
de atención de la salud infantil, han surgido varios interrogantes: ¿Qué
aspectos del cuidado son abordados en los ámbitos estatales de aten-
ción de la salud? ¿De qué se habla cuando se habla de cuidado? ¿Qué
relaciones se establecen entre cuidado y salud? ¿Cómo se materializa el
cuidado infantil en características visibles, observables, evaluables para
los agentes del sistema de salud? Es decir, ¿dónde ver? ¿Cómo hacer
para saber cómo es cuidado un niño? ¿Qué modos de tratar al niño son
considerados como cuidado y cuáles no?
En relación con estos interrogantes, el análisis ha permitido de-
linear provisoriamente tres ejes que atraviesan el abordaje del cuidado
realizado por los equipos de atención de la salud infantil: la centralidad
del cuerpo del niño, el papel atribuido a la madre y a la familia, y el
lugar asignado a las diferencias culturales.

El cuerpo infantil como evidencia de los cuidados recibidos


Si la atención de la salud infantil, especialmente en “el control”,
conlleva una evaluación de los cuidados recibidos por el niño en la fa-
milia (y, como veremos más adelante, de la capacidad de ejercicio de la
maternidad por parte de la mujer que tiene un hijo), ¿cómo se evidencia
ese cuidado a los ojos del personal de salud? Es el examen del cuerpo
infantil, complementado en mayor o menor medida con las preguntas
realizadas a los adultos que acompañan al niño, el que proporciona los
elementos necesarios para una primera evaluación del modo en que
está siendo criado.
Así, en cada control de salud, el médico pesa y mide al niño, obser-
va sus conductas y actitudes, registra y compara los datos obtenidos con
los parámetros estandarizados de crecimiento y desarrollo, interroga
y da indicaciones a los adultos responsables de la crianza sobre la ali-
mentación, hábitos de sueño, juegos, aptitudes y capacidades motrices,
aspectos emocionales, etc. A lo largo de todo este proceso el cuerpo del
niño aparece como el territorio donde son leídos, a modo de evidencia,
los cuidados que se le han brindado.

201

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No son demasiado los trabajos antropológicos o sociológicos que
tengan el cuerpo del niño como eje de sus análisis. Al respecto, se con-
sidera importante recuperar los aportes de James, Jenks y Prout (1998)
quienes, luego de revisar algunos trabajos producidos sobre el tema,
plantean la necesidad de poner el foco en los cuerpos materiales de
los niños como un modo de análisis que permite explorarlos al mismo
tiempo como un constructo del discurso y como un aspecto de la expe-
riencia de las vidas de esos niños que modela relaciones sociales tanto
como es modelado por ellas. En ese sentido, alertan sobre la necesidad
de no perder de vista la materialidad del cuerpo infantil, desdibujada
en ciertos enfoques constructivistas que sólo lo ven como mero efecto
del discurso; materialidad del cuerpo que, no obstante, no equivale a
las versiones de la biología o de la ciencia médica occidental, ni puede
ser pensada por fuera o independiente de los sentidos social y cultural-
mente construidos. En un contexto más próximo, puede establecerse
un diálogo con los trabajos de Grinberg (2010) quien, en su análisis de
la construcción social del maltrato infantil da cuenta del lugar del cuer-
po y su materialidad en la definición de los intolerables socialmente
definidos con respecto a la infancia.
En el caso concreto aquí estudiado, a partir de la lectura médica
de las características del cuerpo del niño –lectura que implica una par-
ticular cartografía y teoría sobre ese cuerpo– se derivan intervenciones
concretas sobre él y su familia, que trascienden el espacio de los esta-
blecimientos de salud.
El cuerpo infantil concebido por la medicina es un cuerpo en
transformación, cuya normalidad está dada por la capacidad de cam-
biar, de aumentar de tamaño y complejizarse progresivamente, dentro
de un recorrido esperable. Las nociones de crecimiento y desarrollo
sintetizan esas características y constituyen el núcleo de la concepción
de la niñez que ha ido construyendo y sobre la que se funda la pedia-
tría –aunque no sólo ella- y la condición vital que ha permitido a esta
especialidad médica recortar la infancia de las otras etapas de la vida,
así como periodizarla en sub-etapas (recién nacido, lactante, primera
infancia, segunda infancia, adolescencia) (Colangelo, 2008).

202

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Una serie de parámetros, entre los que se destacan las medidas
antropométricas de peso y talla o estatura, en su relación con la edad,
han sido construidos por la pediatría como los indicadores del creci-
miento, como medidas que expresan, traducen ese proceso a través de
las variaciones corporales y su posibilidad de cuantificación. Su utiliza-
ción requiere de la construcción de patrones de normalidad, elaborados
estadísticamente, que ofician de parámetros de comparación para las
medidas de los niños y poblaciones infantiles reales. El aumento de ta-
maño corporal también reflejaría indirectamente el desarrollo infantil,
proceso que es evaluado más específicamente mediante la observación
de la presencia de determinados eventos o “hitos madurativos” en los
momentos esperados del curso de la niñez - cierre de las fontanelas,
dentición, capacidad de permanecer sentado, aparición del habla, co-
mienzo de la marcha, entre otros- también establecidos mediante la
edad promedio en que suceden en la mayoría de los sujetos.
La práctica de cuidado que concentra la mirada del personal de sa-
lud, en tanto estrechamente vinculada con los procesos de crecimiento
y desarrollo, es la alimentación. Aunque gran parte de las campañas de
promoción de la salud siguen poniendo el foco en el incentivo a la lactan-
cia materna, no es esta la práctica que preocupa a los profesionales entre-
vistados, quienes reconocieron que está muy arraigada en las poblaciones
con las que trabajan. La atención se concentra más bien en la alimenta-
ción –composición y modo de administración– posterior al destete.
Si en el momento en que se realizó la investigación en el hospital
público, en años inmediatamente posteriores a la crisis económica y
política que estalló en Argentina en 2001, el problema que más se evi-
denciaba era la desnutrición, actualmente el tema más mencionado por
los médicos es el sobrepeso, aún en niños muy pequeños. Por exceso o
por defecto, la alimentación produce cambios que alejan a los cuerpos
de los niños de los estándares de normalidad, tal como también lo ad-
vierte Serre (1997) en otro contexto.5 El cuerpo excedido en peso es

5
Serre (1997), en su estudio sobre la atención materno-infantil contemporánea en Francia,
encuentra la construcción de una taxonomía corporal y de comportamientos: gordo/delgado,

203

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tomado como la evidencia de un desorden en las costumbres alimen-
tarias de la familia.
Luego, entre las indicaciones sobre el cuidado realizadas por los
médicos, siguen las que tienen que ver con la higiene corporal, con la
prevención de enfermedades estacionales y de accidentes domésticos,
así como algunas indicaciones sobre el modo en que deben dormir los
bebés y la vestimenta que deben llevar.
En consonancia con lo planteado por Vianna (2002), puede afir-
marse que la infancia es vista como un periodo crucial de gestación de
patologías o de condiciones saludables, en el que confluyen las poten-
cialidades biológicas del niño con los aspectos vinculados a la alimenta-
ción, los cuidados y la educación que recibe en su grupo de pertenencia.
La concepción del niño como un ser maleable, vulnerable y dependien-
te de los adultos, constituye la base de la preocupación por establecer
las pautas de un “cuidado adecuado”, consideradas necesarias para que
el crecimiento y desarrollo se produzcan de acuerdo a lo esperado. Es
en este punto donde las características familiares y, sobre todo, las acti-
tudes y cuidados maternos, se tornan objeto de observación, evaluación
e intervención por parte de los servicios de salud.

Cuidado, familia y maternidad


A través de las características del niño y las evidencias sobre los
cuidados recibidos, los agentes del sistema de salud evalúan, más o me-
nos explícitamente, la capacidad de cuidado de la familia, especialmente
de la madre. Así, por ejemplo, la presencia de un niño desnutrido o
con sobrepeso instala una cierta “sospecha” de descuido que las sucesivas
intervenciones deberán despejar, a fin de saber si el problema se debe a
causas orgánicas, a la pobreza o a la atención inadecuada por parte de
los adultos responsables de la crianza. Esto se realiza no sin tensiones

fuerte/débil, grande/pequeño, excitado/apático; taxonomía que responde a un sistema de cla-


sificaciones socialmente elaborado y está indisociablemente unida a categorías morales. Este
trabajo permite pensar como los registros del lenguaje corporal operan en la atención mater-
no-infantil contemporánea, mostrando que a partir de ellos se definen ciertos tipos de cuerpos
infantiles como “desviantes”.

204

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y dudas, poniendo en juego mecanismos – cambiantes, dilemáticos, in-
formales– orientados a “estimar” o “calibrar” responsabilidades y capa-
cidades familiares, en los términos en que lo analiza Barna (2014) para
otros contextos. Estos mecanismos combinan la observación del niño,
la evaluación de información que arrojan estudios de laboratorio, la re-
cuperación de datos de su historia clínica, el conocimiento previo de la
familia (en ocasiones, reemplazado por relatos sobre la misma realizados
por otros integrantes del equipo de salud), el interrogatorio a la persona
que acompaña al niño, las impresiones subjetivas que esa persona ha
causado. A su vez, los casos que más preocupan y salen del ámbito del
consultorio médico, para activar las intervenciones de otros integrantes
de los equipos de salud (trabajadora social, psicóloga) y, eventualmen-
te, de otro organismos estatales, son justamente aquellos que implican
conflictos familiares que se expresan en forma de violencia, abuso sexual,
adicciones o padecimientos psíquicos en los adolescentes.
Si el papel de la familia en el cuidado del niño es un punto clave de
las intervenciones de los equipos de salud, más aún lo es el de la madre,
reforzado por una mirada social sobre el cuidado que lo vincula con el
género femenino, el altruismo y el espacio doméstico.
Las observaciones realizadas en los distintos establecimientos sa-
nitarios han permitido ver que, especialmente en el ámbito del hospital
público, las mujeres que llevan a los niños al “control” son indefectible-
mente llamadas “mamá”: “Mamá, ¿qué le das de comer?”, “Mamá, vas a
traerlo nuevamente el mes que viene”… Parece ser tan obvio que quien
debe llevar al niño al control es su progenitora que, cuando la supuesta
“mamá” resulta no ser la madre biológica, sino una tía, una hermana, la
madrina o una vecina, se enciende una especie de alarma que reorienta
las preguntas médicas hacia la conformación de la familia y las caracte-
rísticas de los adultos cuidadores del niño.
Este cambio del eje de la preocupación que se produce ante ciertas
características familiares o de organización del cuidado del niño, puede
ejemplificarse con una situación registrada en el trabajo de campo que
involucra a una mujer joven que lleva al “control” a una niña de dos
años. Cuando, en un momento del diálogo con la médica, aclara que

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ella no es la madre sino la tía de la nena, las preguntas dejan de cen-
trarse en la criatura y la posible alergia que podría padecer, para pasar a
hacer foco en la organización familiar con respecto a la crianza:

Pediatra: ¿Y por qué no la trae la mamá?


Tía de la niña: Porque trabaja.
Pediatra: Pero puede venir los sábados.
Enfermera: Yo le dije que también se atiende los sábados a la mañana.
Tía de la niña: Lo que pasa es que yo quise traerla para que no se
le pasara el turno…

Al explicar esta última que ella y su marido tiene a la niña a su


cuidado durante la semana, pues la madre trabaja en otra ciudad, la
inquietud parece redoblarse y le exigen que la progenitora asista al pró-
ximo control.
Esta y otras breves escenas observadas permiten pensar que, a pe-
sar de los cambios de enfoque que las profesiones ligadas a la atención
de la infancia han atravesado recientemente, relativizando la supuesta
naturalidad de la familia nuclear e incorporando -por lo menos a nivel
discursivo- otros modelos familiares posibles, la distinción entre “fami-
lias normales” y “familias desorganizadas o disfuncionales” continúa en
parte orientando sus intervenciones. La preocupación que genera entre
las pediatras y enfermeras del hospital la ausencia de la madre biológica
como principal figura cuidadora, así como el desempeño de ese papel
por parte de otros integrantes de la familia (hermanos, tías, abuelas,
madrinas, etc.) ilumina el modo en que el ideal normativo de la familia
nuclear sigue operando (Fonseca, 2005) y la inquietud que producen
otras formas de organizar y llevar a cabo la crianza infantil.
Sin embargo, aquí cabe señalar una diferencia entre lo que sucede
en el espacio más anónimo del hospital público y lo observado en uno
de los CAPS, cuyo equipo de salud tiene más de diez años de trabajo en
la misma localidad y ha establecido un vínculo estrecho y prolongado
con su población. El conocimiento de varias familias a lo largo del tiem-
po –en algunos casos, a lo largo de más de una generación– hace que sus

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distintas formas de organización no sean necesariamente vistas como
incompatibles con el cuidado adecuado de los más pequeños. Así, por
ejemplo, se está realizando un acompañamiento sostenido, impulsado
por la trabajadora social, a un hombre que ha quedado solo al cuidado de
sus cinco hijos pequeños, a los fines de evitar la institucionalización de
los mismos. Si bien se asume la dificultad para transformar la situación
de alcoholismo y trabajo precario que atraviesa este padre como parte de
sus condiciones de vida en la pobreza –ingredientes que, sumados a los
estereotipos de género, lo tornarían el candidato ideal a ser desestimado
como cuidador- se ha priorizado el vínculo que sostiene con sus hijos
para armar una red de instituciones (establecimientos escolares, club,
comedor barrial, copa de leche evangélica, centro de salud) que, aunque
de manera a veces discontinua, contribuyen al cuidado de los chicos.
Esto nos lleva a tomar en cuenta el papel que desempeñan en el cuidado
médico del niño las relaciones –de confianza, empatía o, por el contrario,
de extrañeza y rechazo– que se establecen entre los adultos responsables
de su crianza y el personal de salud, así como las perspectivas construi-
das por éste acerca de las poblaciones con las que trabaja.6
Más allá de las diferencias en las miradas e intervenciones, a lo
largo del proceso de atención de la salud infantil va siendo construida
y actualizada una clasificación más o menos implícita entre “buenos” y
“malos” cuidadores, poniendo en juego una serie de sentidos sobre la res-
ponsabilidad parental, de cuya elaboración no sólo participan los agen-
tes de salud, sino también los propios usuarios de los establecimientos.
Esta clasificación se refuerza en relación con las mujeres madres,
sobre todo en el Servicio de Pediatría del hospital, distinguiendo a las
madres responsables de las madres “deficitarias” o “negligentes”.7 El ar-

6
En sus estudios etnográficos con médicos de familia en la ciudad de Río de Janeiro, Bonet y
Fazzioni (2017) también encuentran que, además de la formación específica, variables como las
emociones, los afectos, las trayectorias personales y profesionales y el tiempo de permanencia
en el contexto de trabajo, son fundamentales en las prácticas de los profesionales que trabajan
en la atención básica.
7
También Ortale (2002), en su estudio sobre las prácticas y representaciones acerca de la des-
nutrición infantil, encuentra que en los médicos de los hospitales públicos hacen mayor énfasis
en las características maternas negativas como causa de los problemas que aquejan a los niños,

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quetipo de las primeras está representado por la mujer pobre, pero sa-
crificada, que aún en una situación desfavorable, logra “sacar adelante”
a sus hijos. Las observaciones realizadas en dicho hospital, por ejemplo,
han mostrado que las mujeres que se muestran receptivas y colabora-
doras con las indicaciones médicas y parecen “caer bien” al personal
de salud, tienen mayores posibilidades de ser ayudadas y acompañadas
ante los problemas de sus hijos.
Las segundas son caracterizadas como aquellas que no llevan a sus
hijos a los controles, pierden turnos o no cumplen con las indicaciones
médicas. A ello se suma la sospecha de un interés en la obtención de
recursos de diferente tipo (desde leche hasta la inclusión en programas
sociales) a través de la concurrencia al control de salud, de un “uso”
del niño, que implicaría, en cierta manera, un cuidado no tan altruista
como se supone que debería ser.
Sin embargo, como ya se dijera, esas valoraciones no son exclusivas
del personal de salud, pues las propias mujeres usuarias de los estab-
lecimientos sanitarios ponen en juego categorías morales y construyen
clasificaciones entre “buenas” y “malas madres”, de las que procuran dife-
renciarse. Así, en conversaciones informales en salas de espera o durante
recorridos barriales acompañando a las promotoras de salud, han podi-
do escucharse afirmaciones, que aluden veladamente a algunas vecinas,
como: “Si estás atenta y no te dejás estar, nunca vas a tener a tus hijos
internados por bronquiolitis” o “¿“Cómo es posible que las promotoras
tengan que ir a buscar a las madres a la casa para que lleven a sus hijos
al control?”. Tal como lo afirma Santillán (2011), las familias de sectores
populares participan, junto con diferentes instituciones estatales y so-
ciales en general, de la producción de sentidos sobre la responsabilidad
parental; sentidos que, como plantea esta autora, no son homogéneos y
se actualizan de modos diferentes en distintas interacciones y situacio-
nes (con agentes de instituciones estatales o comunitarias, con familias
vecinas, de las que se procura aproximarse o diferenciarse, por ejemplo).

con respecto a los profesionales de los de los establecimientos de atención primaria, donde se
establece un lazo más próximo con las familias.

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Vemos así que el lenguaje del cuidado infantil, tal como lo señala
Vianna (2002), se constituye en un medio para la traducción de signi-
ficados y categorías morales, sintetizados en términos como “responsa-
bilidad”, “altruismo”, “irresponsabilidad”, “interés”, desde los cuales se
establecen papeles y obligaciones parentales y familiares.

Los “usos” de la cultura en el abordaje del cuidado infantil


El supuesto carácter universal de la infancia y del cuerpo infantil
desde el cual se construye el saber médico –por lo menos desde sus
versiones hegemónicas– en ocasiones es interpelado y puesto en cues-
tión en los espacios concretos de la práctica de atención de la salud.
Con frecuencia, del lado de las familias hay aceptación y adopción de
las pautas recomendadas, pero en otras oportunidades parece primar el
desencuentro, expresado mediante la indiferencia, la no concurrencia, la
resistencia silenciosa a las sugerencias profesionales, junto con la puesta
en práctica de otras formas de criar a los niños. Cuanto mayor es la
distancia social y cultural con las familias de los pacientes, y menor el
conocimiento de sus vidas y contextos, como sucede en el hospital, más
insalvable parece ser la brecha de comunicación que se produce. “No
hablan”, “no entienden”, “se te quedan mirando y después hacen lo que
quieren”, suelen ser las frases preocupadas que enuncian algunos profe-
sionales de ese establecimiento.
Al momento de construir explicaciones sobre esas dificultades y
otros problemas vinculados con el cuidado infantil, el discurso de los
agentes del sistema público de salud evidencia una tensión, difícil de
resolver, entre adjudicar sus causas a ciertos hábitos y conductas de los
adultos responsables (atribuidos mayormente a la “falta de educación”),
a las condiciones sociales ligadas a las desigualdades estructurales, que
exceden la voluntad de su modificación por parte de las familias y del
personal de salud (la “pobreza”, que se manifiesta en los bajos ingresos,
el tipo de vivienda, los terrenos en los cuales éstas se asientan, etc.) o,
en términos bastante difusos, a “la cultura”.
En este marco, “la cultura” ocupa un lugar vago y ambiguo, que
se traduce tanto en su utilización como una suerte de comodín que

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permite atribuir sentido a prácticas de crianza que no logran ser com-
prendidas, como en su invisibilización u opacamiento con respecto a
otras características de la población con la que se trabaja. Sobre todo en
el espacio del hospital, suele escucharse “es por su cultura” o “son cues-
tiones culturales”, haciendo de “la cultura” la base de las explicaciones
que permiten dar cuenta, a modo de atenuante, de aspectos del cuidado
infantil que se quisiera pero no se logra desterrar o transformar (como
si cultura y pautas culturales tuvieran solamente los “otros”).
En ese concepto de cultura suelen incluirse “costumbres”, “creen-
cias”, “formas de vida” que se atribuyen a tradiciones ancestrales, a las
condiciones de vida de los sectores pobres o, con mayor frecuencia, a
diferentes orígenes nacionales. En efecto, es en relación con las na-
cionalidades de los migrantes bolivianos y paraguayos, que componen
gran parte de las comunidades que asisten a los establecimientos sani-
tarios estudiados, que suelen pensarse las particularidades culturales.
Con frecuencia, se las asocia a ciertos estereotipos construidos sobre
esas poblaciones: las madres bolivianas suelen describirse como su-
misas, calladas y obedientes y las paraguayas como más plantadas y
querellantes. Estos atributos estereotipados pueden ser tomados como
parte de visiones negativas sobre esas poblaciones, pero también pre-
sentados como características positivas:

Es un gusto trabajar con bolivianos y paraguayos, pues es gente


muy respetuosa y hasta sumisa con respecto a las indicaciones del
personal de salud; suelen ser muy cumplidores con la atención de
salud de sus hijos (Entrevista con médico de CAPS, 2017).

Sin embargo, ante la pregunta sobre prácticas concretas ligadas a


las particularidades culturales, aparecen referencias vagas a la alimenta-
ción, aunque esto pareciera ser enunciado sin mucho convencimiento,
más bien para conformar a la investigadora. De alguna manera, en-
tonces, esas prácticas no son visibilizadas en algunos de los espacios
de atención de la salud infantil, ya sea porque, como admite una tra-
bajadora social, la falta de tiempo que signa el trabajo cotidiano no

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permite aproximarse a ellas con profundidad o porque – y esto a modo
de hipótesis a ser profundizada- las propias familias silencian estraté-
gicamente sus saberes tradicionales o populares en los espacios de la
medicina hegemónica.
En los discursos de los agentes de salud, ese mismo lugar ambiguo
e impreciso, a modo de telón de fondo, es ocupado a menudo por las
condiciones socioeconómicas de la población: se reconoce su impor-
tancia y se les atribuye una causalidad general, pero a la hora de cons-
truir explicaciones sobre padecimientos o problemas concretos, se pier-
den de vista, para dejar lugar a los comportamientos individuales. En
ocasiones, pareciera que atribuir los problemas a los comportamientos
individuales de los adultos cuidadores aliviaría algo de la angustia y la
impotencia que parece producir el trabajo en contextos de desigualdad
que aparecen como mucho más difíciles de modificar.
Nuevamente, cabe aclarar que las mencionadas representaciones
no son homogéneas sino que presentan matices según las característi-
cas e historias de los equipos de salud, las perspectivas ideológicas de
sus integrantes y las relaciones construidas con las poblaciones usuarias
de los servicios de salud.

Consideraciones finales
A partir de una concepción naturalizada de la infancia y del cuerpo
infantil, basada en los procesos de crecimiento y desarrollo, los equipos
de salud inscriben el cuidado infantil en un orden moral, desde el cual
se establecen obligaciones y responsabilidades parentales y familiares.
Sin embargo, el trabajo etnográfico realizado ha permitido percibir que
las intervenciones sobre los niños y sus familias, más allá de sus lógicas
generales, están lejos de ser homogéneas y unívocas. Por el contrario,
ponen en juego múltiples actores y estrategias y están atravesadas por
las diferencias entre instituciones, así como por la heterogeneidad exis-
tente al interior del equipo de salud, por las prácticas de los propios
niños y sus familias y por las diversas relaciones que se establecen, en

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distintos momentos, entre los adultos que se atribuyen responsabilidad
en el cuidado infantil (padres, familiares, médicos).
Así, hemos visto que no son iguales las relaciones que pueden
establecerse entre familias y equipos de salud en el Servicio de Pedia-
tría del hospital y en los CAPS, ni tampoco lo son, por consiguiente,
los abordajes del cuidado infantil que se realizan en unos y otros.
En los CAPS donde la continuidad del personal permite un vínculo
más estrecho y prolongado con la población, las explicaciones e in-
tervenciones suelen partir de versiones menos estereotipadas y más
contextualizadas de la familia y los papeles parentales. Pero, como ya
se afirmara, aún al interior de cada equipo varían las apreciaciones
sobre el cuidado del niño y las indicaciones sobre las mejores formas
de llevarlo a cabo. De la misma manera, Serre (1997), al estudiar las
prácticas de intervención con familias, llevadas a cabo por los tra-
bajadores de centros de atención de la salud infantil de Francia, ha
encontrado que sus clasificaciones, percepciones y acciones no pue-
den resumirse a criterios teóricos y abstractos, sino que resultan de
un sentido práctico. Elementos como el lugar del profesional en la
estructura jerárquica de la institución, su posición social más o menos
cercana a la de los usuarios, la solidaridad de género -“yo les hablo
como madre”, cuenta una médica-, la empatía con ciertas madres, la
propia trayectoria familiar y social, relativizan o median la imposición
simbólica de reglas y pautas pre-establecidas.
A su vez, resulta necesario destacar el papel de los agentes de
salud no profesionales, que puede ser igual o más determinante que
el de los propios médicos en el proceso de atención de la salud in-
fantil y medicalización del cuidado. Enfermeros, promotores de salud,
empleados administrativos, se constituyen en “mediadores”, en tanto
facilitadores u obstaculizadores de la mayor parte de las relaciones y ac-
ciones puestas en juego en el cuidado de la salud infantil (por ejemplo,
asignando o no los turnos a los pacientes, ofreciendo o no soluciones
alternativas ante dificultades en el acceso a recursos o atención médica,
facilitando información adicional que permita sortear dificultades bu-
rocráticas para hacer atender a los niños).

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También los adultos responsables de los niños participan e in-
ciden en los procesos de atención de la salud a partir de sus conoci-
mientos de los diferentes actores y dinámicas institucionales. En de-
terminadas situaciones de desventaja pueden recurrir al silencio como
modo de resistencia. Pero también, desde su conocimiento y evalua-
ción de las características de cada profesional –valoran especialmente
el trato hacia el niño y su familia, el conocimiento de los pacientes y la
minuciosidad en la revisación de los pequeños–, desarrollan estrategias
para elegir que sus niños sean atendidos por aquellos que consideran
más competentes, a la vez que amables. Las madres y otras cuidadoras
suelen comentar entre ellas y comparar los modos de atención de tal
o cual profesional o las características institucionales de los CAPS,
llegando, por ejemplo, a ahorrar dinero para llevar a sus hijos al con-
sultorio particular de una pediatra muy querida y respetada, que ya no
trabaja más en el centro de salud de la zona. De uno u otro modo, esta
complejidad y variedad de acciones y relaciones observadas en el tra-
bajo de investigación pone de manifiesto el lugar crucial del cuidado
infantil, no sólo entre quienes intervienen desde el sistema de salud,
sino también para las familias de los niños.
A su vez, sin dejar de valorar las relaciones que se establecen
entre los diferentes actores que participan del cuidado infantil, cabe
preguntarse por ciertas condiciones generales necesarias para el ejer-
cicio del derecho a la salud que, en contextos de desigualdad como
el del presente estudio, deberían poder garantizarse más allá de las
características y vínculos personales de los agentes involucrados. Si
el trabajo a partir del encuentro con la singularidad de los sujetos y
sus historias es central para un abordaje del cuidado infantil atento
a la multiplicidad de saberes, el opacamiento de las condiciones es-
tructurales puede llevar a explicar problemas sociales en términos de
responsabilidades individuales de los trabajadores o de los usuarios
del sistema de salud, dejándolos entrampados en mutuas acusaciones,
como se trasluce en varios de los discursos analizados y como también
lo observan Schuch y Fonseca (2009) en relación con otros problemas
ligados a la infancia.

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Referencias
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professionnel(le)s de la petite enfance. (Mimeo) Colloque Ciências Sociais,
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Vianna, A. de R. B. Limites de menoridade: tutela, família e autoridade em
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“Mães nervosas”: um ensaio sobre a raiva
entre mulheres populares
_________________________________________________________
Camila Fernandes

Este capítulo parte de uma discussão elaborada na minha tese de


doutorado, na qual realizei uma etnografia junto a mulheres moradoras
de um complexo de favelas da Zona Norte do Rio de Janeiro (Morros
da Mineira e São Carlos).1 Durante o trabalho de campo, em meus
primeiros deslocamentos pelas creches, casas de mulheres que “tomam
conta”, grupos de amigos e gestores de programas sociais havia falas
constantemente reiteradas, não apenas nas instituições, mas também
pelos moradores, de que os serviços públicos, os programas sociais
e as políticas de estado “não funcionam bem”, porque afinal, “essas
mulheres transam muito e não param de fazer filhos”. Segundo
muitos dos discursos que ouvi, as mulheres “dão pra qualquer um”,
“têm filhos de forma inconsequente”, “não planejam a gravidez” e
colaboram dessa maneira para gerar uma demanda excedente e de
atendimento impossível: “é por isso que tem muita criança, muita
gente pra atender e o estado não tem como dar conta”, como algumas
falas enfatizavam.
Outra variação dessas afirmações aponta que “as mulheres da fa-
vela transam muito” e “têm muitos filhos sem prevenção”, uma vez que
no morro, “tem muita gente pra cuidar”. Ouve-se ainda que “quan-
to mais ajuda, programa social, mais incentivo a fazer filhos”, e nesse

1
A tese realizada no PPGAS/MN/UFRJ foi intitulada: “Figuras da causação: sexualidade
feminina, reprodução e acusações no discurso popular e nas politicas de estado” e orientada pela
professora Adriana de Resende Barreto Vianna.

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sentido, maiores seriam os estímulos a uma sexualidade intensiva das
mulheres. O condensador exemplar desse pensamento é o programa
Bolsa Família, apontado como o maior responsável pela sexualidade
livre e como um incentivo a “fazer filhos”.
Sobre esse fundo discursivo, foram-me apresentadas a exempli-
ficação dessas “verdades”. O que eu deveria enxergar é que essas afir-
mações perambulavam incorporadas em algumas mulheres apontadas
como exemplares de um comportamento desviante, que eu comecei
a chamar de "figuras da causação" (Fernandes, 2017). Esta categoria
surgiu a partir da compreensão de que determinadas mulheres são en-
quadradas (Goffman, 2012) como figuras paradoxais do cuidado, per-
sonagens de escrutínio e perturbadoras do cotidiano. De maneira geral,
essas falas e afirmações reúnem acusações sobre mulheres representan-
tes de uma sexualidade considerada errada e lasciva.
Neste artigo, proponho pensar sobre uma destas figuras, a saber,
as mulheres apontadas como “nervosas” e “agressivas” no trato com
seus filhos.2 Nas narrativas populares e das “administrações de estado”
(Lima; Teixeira, 2010), a sexualidade errada seria a gênese do proble-
ma das mães más, uma vez que tais mulheres engravidaram “sem que-
rer”, tiveram filhos “sem planejar” e, logo, “não desejaram” seus filhos.
A fabricação de “filhos demais” seria uma das explicações para o “ner-
voso” e a “falta de paciência” de determinadas mulheres. Em muitos
casos, segundo tais narrativas, haveria também uma rejeição latente
das crianças. O caráter da reprodução biológica, junto à marcação
simbólica de elementos como sexo, desejo, ventre, útero, procriação,
cuidado, afeto, vida e morte virtualizam a “reprodução social” de um
mundo feminino que gera e que deveria cuidar dos seus, tanto de seu
corpo físico, como de suas relações.

2
Na tese discuto as representações sobre outras “figuras da causação”, as “novinhas” e as “mães
abandonantes” (2017).

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A percepção dos profissionais sobre a chamada
“violência” feminina
O termo “mãe violenta” ou “agressiva” é usado em diversos mo-
mentos para se referir a determinadas mulheres: “sabe o que me chama
atenção? É que elas não se percebem como violentas, elas humilham
o filho na nossa frente, gritam, batem, é assim!”, comenta estupefata
uma psicóloga da Clínica da Família. Na creche que acompanhei, os
“problemas” apresentados por algumas crianças são enunciados como
resultado da ação ou da inação de suas mães: “ela é seca, ela não dá
amor”, falam da mãe de um menino considerado “agressivo”. “Ela não
liga pros filhos”, falam da mãe de uma menina considerada “pra frente”
e “sexualizada”. “Ela nem abre a mochila da criança”, falam da mãe de
uma criança que está com alergias. “Isso é falta de mãe. Aquele que
ficou com ela, você percebe o suporte que ele teve; mas o que ficou sem
a mãe, você percebe a desestrutura”, falam sobre uma criança que mora
somente com o pai.
Durante um tempo, ouvi reiteradamente essas e outras frases di-
tas por profissionais de escolas, creches e unidades de saúde. Seja pela
inação, ou pelo excesso de ação, de um jeito ou de outro é esse agir que
será evocado para explicar diversos tipos de desordens ou problemas
relacionais das crianças, da “política” e do território.
Não é de hoje que o “nervoso” é um componente central nas clas-
ses populares. Este fato foi analisado por Luiz Fernando Dias Duarte
(1998), quando mostra a forma como “a linguagem do nervoso” cons-
titui um código moral no qual diferentes “perturbações”, exigências e
dimensões da vida dos trabalhadores estão profundamente intricadas.
Em seu livro Da vida nervosa nas classes trabalhadoras urbanas, Duarte
mostra como a “mãe” é associada às “perturbações físico-morais” que
as crianças manifestam. Nessa perspectiva, o “nervoso infantil” deriva
de uma série de fatores, tais como a exposição a “pancadas” e “surras”, a
morte de um dos familiares ou o afastamento da criança da mãe, “seja
quando abandona a unidade doméstica, seja quando a criança é confia-
da ou doada a outra família do mesmo espaço social ou entregue como

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empregada muito cedo a famílias bem de vida” (1988, p. 185). O autor
mostra que o “afastamento da figura paterna” é assunto menos tema-
tizado como fonte de “perturbação físico moral”, até porque “a mãe é
obrigada a assumir, nolens volens, os encargos da reprodução ampla da
casa” (1988, p. 185). Nesse sentido, veremos de que maneira as indica-
ções preciosas feitas por Duarte persistem no contexto analisado.
Por outro lado, entendo que essa “proliferação de discursos”
(Foucault, 2008) que radicam na maternidade a fonte precípua de
problemas sociais, não é algo novo e constituiu a preocupação de muitos
especialistas desde o século XIX. Elizabeth Badinter (1985) atenta para
a forma como “o discurso psicanalítico contribuiu muito para tornar a
mãe o personagem central da família” (1985, p. 295). Badinter analisa
a divulgação das ideias psicanalíticas que se espalharam no contexto
europeu e chama atenção para o sucesso dos primeiros “vulgarizadores”
da psicanálise e seu impacto no imaginário, na mídia e na política,
sobretudo na prática das famílias com seus filhos.
Alguns conceitos foram muito ricos na propagação de certo tipo
ideal da “mulher normal”. Lembremos apenas das críticas a universa-
lização do complexo de Édipo, a famosa inveja feminina do pênis e
a necessária troca do falo pelo filho como condição de superação do
complexo e estabelecimento de uma mulher sana. Cabe lembrar das
considerações sobre a “histeria” e o “trauma” analisados inicialmente a
partir da escuta de mulheres, que permitiram ao psicanalista Sigmund
Freud estabelecer as bases para uma teoria da sexualidade; a necessi-
dade de uma “mãe suficientemente boa” na produção de sujeitos sau-
dáveis, segundo o pediatra e psicanalista Donald Winnicott; ou ainda
a importância do “Nome do Pai” na comunicação e na linguagem (na
distinção fundamental entre neurose e psicose), segundo as considera-
ções de Jaques Lacan.
Aqui, não se trata de invalidar conceitos forjados em determi-
nados contextos históricos, ou questionar o caráter produtivo de tais
ideias, mas apenas lembrar que, como destacam Badinter (1985), Rubin
(1986) ou Foucault (2008), o discurso científico, em muitos casos, se
fez atrelado a um discurso moral sobre a normalização de um compor-

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tamento feminino.3 As ideias de agressividade, “desapego materno” e
desejo sexual foram tratadas muitas vezes de forma patológica e nor-
mativa, e tais imagens ainda podem ser encontradas tanto no discurso
popular, como nas administrações de estado.

A percepção das mulheres apontadas como “nervosas”


Diante desse campo discursivo profundamente ativo nas relações
cotidianas, resolvi levar a sério tais discursos e fui atrás das chama-
das mulheres más, “ruins” e “agressivas”, buscando ouvi-las sobre esta
chamada “violência”. Aos poucos, entendi que essa percepção é muito
variável, e cada situação oferece uma significação distinta. Inicialmente,
chamou minha atenção o fato de que as mulheres tratavam do tema da
“violência” a partir do riso e da comicidade. Muitas contavam, rindo,
sobre as surras dadas nos filhos, lembrando das cenas nas quais batiam
e narrando os mil e um motivos e porquês. Debochavam de possíveis
recriminações, das injunções a “não bater” nos filhos ou a não aplicar
castigos corporais nas crianças. Viam a existência de uma “lei da pal-
mada” como algo distante da realidade, e que ao mesmo tempo, em
alguns casos, o conselho tutelar poderia ser mencionado. Para algumas,
bater era imprescindível, afirmavam assim o caráter positivo e neces-
sário desses gestos, “se a gente não educar em casa, quem vai educar
amanhã? Vai tá aí apanhando de polícia, apanhando de bandido. Essa
lei é maluca. E vai tá batendo na gente”.
Ao mesmo tempo, isso não significa dizer que entre as mulhe-
res toda e qualquer “violência” seja aceita ou motivo de chacota. Nas
interações entre as mulheres existem muitos debates sobre as formas
corretas, boas e ruins de se tratar as crianças. Dentro desse campo de
formas, existem escalas daquilo que pode ser realizado ou não, daquilo

3
No Brasil, ver também os trabalhos de Marta de Luna Freire (2008) e Dagmar Meyer (2005),
que mostram como a maternidade se constituiu como fonte de preocupação política nas últi-
mas décadas.

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que transita entre o necessário, o justificável e o abuso. “Nós somos
contra a lei, a gente não é a favor de espancar, mas uma palmada edu-
cativa não faz mal, não. Nós crescemos com essas palmadas e isso faz
bem pra nossa formação”.
Outro marcador que ouvi diversas vezes é a sentença: “Bater é
diferente de espancar”. Essa distinção entre “bater e espancar” pode ser
entendida a partir de considerações antropológicas e filosóficas sobre
as diferenças entre a raiva e o ódio que pretendo elaborar mais adiante.
Nas conversas, entendi que a chamada “agressividade”, que pode ser
compreendida como parte do domínio da raiva, pode se expressar de
diversas maneiras, não sendo um bloco monolítico de sentimentos.4 Ao
presenciar diversos tipos de expressão dessa “raiva”, seja na presença
de cenas de batida, ou a partir da escuta das surras narradas, a imagem
que me vinha na cabeça era a de uma paleta de cores. Numa paleta
existem diversas variações e gradações de coloração, de modo que
existem muitas opções para se exprimir a tonalidade da cor desejada.
Foi a partir dessa imagem que eu comecei a entender essa chamada
raiva, a partir das inúmeras manifestações variadas, que cintilavam
cores-emoções diversas.
Pequenos deboches proferidos de maneira comum às crianças,
“olha só a cara dela de Trakinas, olha só esse cocô!5”, batidas vindas
do nada apenas para chamar atenção, gritos de alerta, objetos lançados
durante algum momento de tensão, apertões, chacoalhadas, ameaças
de castigos ou de morte ao atender a chamada de um filho no telefo-
ne, tais como, “deixa eu ver o que essa criança quer, eu vou matar essa
criança”. No diálogo, as frases continuam, “fala logo, é o quê que é? Eu
já falei pra você ficar em casa, se eu te ver na rua eu vou te espancar, vou

4
Duarte também chama a atenção para a variedade dos fenômenos “negativos”, ja Aurel Kolnai
(2013) enfatiza que o amor e sentimentos positivos são descritos na literatura com maiores
nuances do que o ódio. Segundo este autor, existe uma dificuldade de classificação e de oferecer
descrições com gradações para o ódio: "Esta divergência que acabamos de mencionar se faz
mais visível quando vemos a multiplicidade muito mais ampla das formas de amor. Falam de
amor benevolente, amor concupiscentia e, amor intelectual; mais jamais se tem acometido uma
classificação correspondente para o ódio”.
5
Trakinas é o nome de um biscoito recheado.

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te quebrar todinho”. Essas falas e esses gestos, as cores do sentimento,
se distribuem de forma diferente, e de modo algum podem ser vistos
como algo correspondente a níveis graduais. Quero dizer que, da forma
como entendi, tem mãe que “só bate”, tem mãe que “só xinga”, tem mãe
“que espanca”, e, sem correr o risco de ser óbvia, a imensa maioria das
mulheres não “agridem” os seus filhos.6
Junto às mulheres “que batem”, comecei a perguntar sobre os mo-
tivos que levavam a tais situações, o que provocava essas ações, e como
elas se sentiam. Elas diziam que era um sentimento que não sabiam
como explicar: “Camila, eu não sei te explicar, ela só vem”. Falavam
também que muitas vezes elas eram, “sozinha para tudo”, “é tudo em
cima de mim”. Uma pequena minoria dizia sentir-se culpada, enquanto
a maioria das mulheres afirmava não sentir culpa, nem remorso. Uma
das mulheres certo dia disse que, “bater é melhor sem ter culpa. Se for
pra bater com culpa, melhor não bater”.
Em muitos casos, aquele riso ao qual me referi dava lugar à raiva.
Elas falavam de uma raiva que sobe até a cabeça, que faz “ficar cega”.
Contavam de uma raiva que vinha de repente, e que as dominava, fa-
zendo com que elas não aguentassem e explodissem. As batidas irrom-
piam como expressão desse crescente de emoções contidas, silenciosas,
escondidas ou de difícil nomeação.
Ao mesmo tempo, em algumas situações, bater fazia parte de uma
rotina, algo que se faz num gesto ritualizado, tais quais as “cenas” ana-
lisadas por Maria Filomena Gregori (1993). Numa dessas cenas nar-
radas, Mara (35 anos, mãe de Pedro, de 8 anos) descreve como se dão
estes momentos:

[...] Eu estava em casa, pedindo pra ele parar de atazanar. Eu pedi


três vezes, e ele não parava de pular no sofá, já tinha derrubado
o suco. Na quarta vez eu só virei e joguei o que estava na minha

6
Diaz-Benítez (2015) chama atenção também para “a linguagem do excesso, como uma das
principais chaves na produção da humilhação”, a partir dessa chave podemos entender o uso
de diversos xingamentos e ameaças, “vou te quebrar”, “vou colar sua língua na frigideira”, “vou
torcer seu pescoço”.

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frente, joguei aquela caixa de ovo de geladeira e bateu na cabeça
dele. Nossa, ele abriu o berreiro. Mas gente, eu faço o quê? Eu faço
isso mesmo.

Essas cenas falam de momentos nos quais são evocadas “imagens


que desempenham papéis” (Gregori, 1993, p. 164), seja de feminilida-
de, maternidade, infância, criança, autoridade, obediência, transgres-
são, abuso e desigualdade, que são explicitamente colocadas em ação.
Gregori descreve como as “cenas de briga” vão além do “motivo da bri-
ga” em si, e trabalha a ideia de “atos de linguagem”, num universo feito
de réplicas que somam-se umas às outras, expõem conteúdos enuncia-
tivos, emitem sentidos e significados particulares sobre tais relações.
O uso de violências ou de qualificativos depreciativos funcio-
nariam, então, como uma linguagem, rica para comunicar sobre algo
mais profundo correspondente a outra série de questões. Nesse sentido,
como Gregori define, “a agressão funciona como uma espécie de ato de
comunicação, no qual diferentes matizes podem estar atuando” (1993,
p. 166). É sobre essas diferentes matizes que podemos relacionar a série
de questões que as violências encobrem e que são de difíceis nomeação.
A paleta de cores e seu degradê ganham densidade.
Em um sentido próximo, nos sets de “pornô de humilhação” ana-
lisados por Maria Elvira Díaz-Benítez (2015), a autora afirma que a
diferença de tamanho entre as pessoas, dominador e dominada, visa
evidenciar um claro desequilíbrio das forças. Chama atenção que uma
das cenas mais celebradas no pornô de humilhação sejam as de mãe e
filha, em que o par dominador/escravo é encenado por mulheres nessa
disposição, “o mais importante neste tipo de cena é que as pessoas se-
jam verdadeiramente família, e que o sexo seja agressivo para passar a
ideia de que o nojo e a humilhação da escrava são reais”(2015, p. 69).
Como analisa Díaz-Benítez, a produção da humilhação e da violência
é um tensor libidinal fundamental para o sucesso da cena e seu efeito
de realidade. A autora abre espaço para pensar que a “fissura”, conceito
forjado em sua análise:

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[...] não é exclusiva nem do repertório sexual, nem do universo
comercial da sexualidade. É possível pensá-la em função de outras
relações sociais (pais e filhos, por exemplo); e quanto aos afetos,
crenças e atos sobre infringir dor e sofrimento entre os pares de um
casal pelo fato de serem observadas como características inerentes
ao amor (2015, p. 79).

É evidente que no contexto que analiso, esse desequilíbrio está


exposto frontalmente nas cenas cotidianas, na vida real. O desequilíbrio
inerente dessas forças é um dos fatores de flagrante desigualdade, e seu
maior ponto de injustificável e intolerável se encontra justamente nessa
condição assimétrica e radical.
Creio que tal como as atrizes do pornô de humilhação, as mu-
lheres mães “sabem que certos atos causarão dor” (2015, p. 71). Dessa
forma, “saber bater” é condição fundamental para não produzir a cha-
mada fissura, “aquele instante e espaço que nas práticas de humilhação
se transpassa do consentimento ao abuso” (2015, p. 78). No entanto,
assim como nos sets, embora as mulheres não intentem causar danos
maiores às crianças como sequelas, cortes, perfurações ou coisas do tipo,
as agressões podem produzir situações abusivas ou violentas.
Lembro que um dos primeiros lugares que frequentei na pesqui-
sa foi uma extinta biblioteca que ficava no alto do São Carlos, que
havia sido implementada por uma empresa e era um lugar de encon-
tros de adolescentes e crianças.7 Lá, conheci Luan, um adolescente de
13 anos, muito articulado e falante. Uma das primeiras falas sobre a
intensidade das surras e palmadas veio dele, numa conversa ocasio-
nal. Eu estava conversando sobre “batidas” com outras duas mulheres
adultas quando ele interrompe a conversa e fala: “A minha mãe me

7
A biblioteca foi extinta devido aos confrontos policiais no território. O espaço se situava numa
das ruas principais da comunidade. A empresa avaliou que a “situação de risco” era motivo para
suspender as ações do projeto. Isso mostra como a violência institucional de estado influencia
na mobilidade vivenciada no território. Um lugar fundamental de encontros, empregabilidade,
lazer, estudo e formação foi interditado a partir de uma operação especial do BOPE (Batalhão
de Operações Policiais Especiais).

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bate bem”, eu viro para ele e pergunto, “como assim?”. Nesse momento,
Luan pega a minha mão e alisa uma parte da sua perna. No lugar em
que toco sua pele, sinto uma camada mais fina, e ele continua, “isso
aqui ó, ela deu com um pedaço de madeira”. Impressionada, pergunto o
que havia acontecido para sua mãe lhe bater desta forma, e ele explica:

Eu fui falar com uma garota que achava que eu tinha falado mal
dela, fui lá na casa dela, bati no portão, “oh coisinha, você está
achando que eu falei mal de você? Eu não falei não”. Daí essa me-
nina agarrou no meu pescoço e apertou. E ela é adulta tia, quando
eu contei pra minha mãe o que ela tinha feito, minha mãe fez isto.

Ao contar determinada cena, Luan desencadeia uma espécie de


gatilho para falar de outras situações e conta de outra vez que apanhou
da mãe com um cinto:

Eu estava em casa e só tinha um biscoito e minha irmã pegou, eu


fui pegar dela e a gente começou a brigar, sendo que minha mãe
já tinha falado que não queria que a gente brigasse mais. Ela nem
esperou, e vapo (barulho do cinto), aqui ó tia, mostra uma cicatriz
entre o olho esquerdo e a sobrancelha.

Ao presenciar meu estado de perplexidade, Luan finaliza, “É tia,


minha mãe é ruim...”. Após recuperar o raciocínio, pergunto a Luan
como ele se sentia diante das surras e o menino responde:

O que eu sinto? Eu sinto dor, e uma coisa aqui dentro (bota a


mão no coração com as mãos fechadas), uma angústia, uma revolta,
de porque eu ainda tenho que passar por isso, tia? Ainda mais na
frente dos outros, essa humilhação que ela me faz passar! Quando
ela faz isso eu tenho vontade de sair de casa, ir pra casa do meu
padrinho, eu só não vou por causa da minha vó, minha vó é doente,
ela tem ácido púrico, sabe? Têm dias que as pernas dela ficam in-
chadas e ela não pode fazer nada. E eu ajudo ela. Só por causa dela,
que eu tenho que ajudar minha avó, eu não vou.

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Assim, é certo afirmar que cenas vividas no interior de famílias
feitas de xingamentos e surras, em algumas situações, se forjam como
espaços de produção da humilhação e violência. Essa produção da hu-
milhação é feita em gestos, ora episódicos ora ritualizados, e podem
invariavelmente se constituir em momentos de fruição da raiva e agres-
sividade. A situação vivida por Luan é uma das situações que falam
do abuso e da fissura, podemos dizer que aqui há uma nítida ultrapas-
sagem da palmadinha para a surra, do controle para o descontrole, da
“raiva” para a “agressão”.
Diante desse campo múltiplo de sentimentos e suas expressões,
é certo afirmar que tais agressões podem marcar, e se fazem antes de
qualquer coisa na pele dos sujeitos que apanham. Podemos dizer que
esses gestos fazem parte de uma superfície, de algo que não apenas é
sentido na pele, na forma do nervoso das mães, mas se faz também
na pele das crianças, a partir das batidas que recebem. Sendo a pele
uma das camadas mais superficiais e expostas à agressão, caberia pensar
mais adentro, embaixo da derme, sobre os motivos que levam às cha-
madas explosões e aos ataques de raiva.
Dessa maneira, pele, superfície, interior, profundidade, cabeça, ex-
plosão, raiva e um mundo de coisas que estão “tudo em cima”, estão
em jogo numa fenomenologia dos corpos e relações.8 Examinar a pro-
fundidade desses sentimentos, além da sua superfície, além da sua pele
e cobertura, demanda um mergulho nesse caos maternal, naquilo que
Nise da Silveira, inspirada nos arquétipos de Jung, chamou de “reino
das mães”. 9

8
Retomo aqui, novamente os achados de Duarte sobre o “afloramento ao nível da pele” (1988,
p. 30), não apenas como algo que aparece nessa superfície, mas como força que tem como alvo
a própria superfície dos outros.
9
O “Reino das Mães” é uma metáfora cunhada por Nise da Silveira a partir das pinturas de
Adelina Gomes, uma das pacientes do Centro Psiquiátrico Nacional do Engenho de Dentro,
no Rio de Janeiro. Segundo as análises da psiquiatra, Adelina, uma moça pobre, viveu uma
relação de intenso apego e repressão com sua mãe, com quem morava no interior do estado e
que censurou a paixão e o envolvimento da filha com um rapaz. Após este episódio, Adelina
se apresentava cada vez mais nervosa, até chegar ao ponto de estrangular sua gata. Este evento
desencadeou sua internação no Centro, onde recebeu o diagnóstico de esquizofrenia e perma-
neceu internada até o fim da sua vida. As pinturas de Adelina são famosas por retratar imagens

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Um mergulho no “Reino das Mães”
É comum que se entenda esses sentimentos na grade da irracio-
nalidade. Mães nervosas seriam, nesse sentido, algo da ordem do inin-
teligível e do intolerável. Em seu “Ensaio sobre o ódio”, Aurel Kolnai
(2013) explica que há no ódio uma função histórica: “o ódio não se
dirige nem a uma essência nem a um enlace causal, mas antes a uma
função histórica”. Maria Claudia Coelho e Claudia Rezende (2010),
chamam atenção para fortes componentes morais da raiva, na qual o
que está em jogo não é somente a “pessoa que sente a raiva mas tam-
bém o conjunto de relações sociais ao seu redor” (2010, p. 39).
Durante o trabalho de campo, acompanhei inúmeras dificuldades
com as quais as mulheres devem lidar. Elas são as principais realiza-
doras do cuidado dos filhos, devem levá-los para a escola, cuidar da
alimentação, e a atenção a questões relacionais e psicológicas são con-
tínuos de tarefas realizadas por elas.
Érika, por exemplo, é uma mãe considerada “violenta” por suas
amigas. Durante a pesquisa, o casarão onde ela morava, uma ocupa-
ção em que muitas mulheres residiam, foi incendiado por um homem
que, ao visitar a sua ex-companheira, raptou a filha e ateou fogo no lo-
cal. Nayara, considerada “violenta” por bater muito nos filhos, trabalha
como faxineira em uma creche, seu primeiro emprego de carteira assi-
nada. Ela luta pela inclusão do nome do pai de uma de suas filhas no
registro de nascimento, posto que esse homem, apesar de acreditar que
a filha é sua, “só quer tirar a dúvida”. Seu outro ex-marido, pai de duas
filhas suas, batia muito nela, motivo que levou à separação. Este mes-
mo homem casou de novo e foi preso por ter esfaqueado e matado a

femininas, tais quais flores, plantas e mulheres. Ao analisar estas pinturas, Nise afirmou que
estas seriam manifestações do inconsciente coletivo a partir de arquétipos. A comunicaçãopor
meio das pinturas e esculturas feitas por Adelina expressa o que é indizível na linguagem fala-
da, remetendo, por sua vez, às informações arquetípicas, relacionadas muitas vezes a situações
de trauma e transformação da subjetividade. Sobre este e outros aspectos da vida de Adelina
Gomes e da trajetória de Nise da Silveira, ver trabalho de Felipe Magaldi (2015). Sobre suas
pinturas, ver o documentário “No reino das mães”, de Leon Hirszman, disponível em: <https://
www.youtube.com/watch?v=4ChaFsprUsI>.

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sua outra mulher. Francine, considerada violenta com seus filhos, igual-
mente apanha muito do marido. Esse mesmo rapaz é conhecido por ter
espancado tanto a sua ex-mulher que “deixou ela maluca, hoje ela vive
no pinéu”. A casa de Francine não tem água, e essa falta de água, bem
como de outras mercadorias fundamentais para a produção da vida, faz
parte de uma gestão feminina das responsabilidades e vulnerabilidades.
Portanto, o nervoso e a violência feminina devem ser conside-
rados à luz de condições concretas de vida e de algumas dinâmicas
relacionais que levam mulheres à exaustão. O léxico utilizado no trato
com as crianças, “vou te matar”, “vou te quebrar inteiro”, “infeliz”, entre
outros nominativos destacados, não é muito distinto das formas pelas
quais essas mulheres são tratadas, seja na relação com agentes de estado,
que as ameaçam constantemente, seja com a polícia local.
Essa realidade é aquilo que Nancy Scheper-Hughes (1997) cha-
mou de “pensamento maternal”, uma expressão de Sara Ruddick, para
nomear ações pragmáticas éticas e morais que orientam as práticas.
Aqui, creio que esse “pensamento maternal” opera em duas dimensões.
na primeira dimensão existe uma lógica segundo a qual é necessá-
rio “bater para evitar o pior”. Apesar das inúmeras fissuras provocadas,
mulheres dizem que sabem o que fazem e afirmam o caráter necessário
e produtivo dessa forma de lidar. Asseveram a necessidade das agres-
sões na chave do controle, da educação e, especialmente, como forma
de evitar o pior. Aqui, há algo do fantasma de uma ameaça contido no
devir da criança, daquilo que pode se tornar caso não seja controlada. O
assombro do “mal que se adivinha”, descortinado por Adriana Vianna
(1999), está presente entre as mulheres.
As mensagens sobre evitar que o pior aconteça são reconhecíveis
em outros vasos comunicadores, os “vulgarizadores”, nos termos
de Badinter (1985). Um muro situado logo na entrada do Morro da
Mineira contém um grafite com a seguinte mensagem: “eduquem as
crianças de hoje, para que amanhã não tenhamos que puni-las”. Ao
lado da frase, vemos o desenho de dois homens. Após um tempo, soube
que se tratava de uma representação dos antigos “donos do morro”,
traficantes que se encontram presos. Em outra conversa com uma

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moradora sobre outro assunto, entendi como esse horizonte do “dar
errado” é algo sedimentado no imaginário da favela. Mães contam com
orgulho dos filhos que viraram “trabalhadores”, que “não são bandidos”.
Contam da criação que elas deram e que no final “deu certo”, já que os
filhos “não deram pra bandido, nem pra traficante, nem pra prostituta”.
Essa dimensão se relaciona diretamente com os discursos que ouvi na
escola que frequentei na pesquisa, que diziam que as novinhas são: “tudo
aprendiz de prostituta”. Desta forma, é certo dizer que parte das brigas
envolvendo mães e filhos está relacionada a evitar que a violência de fora
chegue em casa, e evitar que o filho, em última instância, “dê errado”.
Na segunda dimensão, a criança figura como um canal para des-
contar. Esta dimensão envolve uma dinâmica na qual as crianças são
vistas como responsáveis por uma série de danos, prejuízos e conse-
quências ruins que as mães têm de lidar. Esse pensamento, me pare-
ce, opera na tensão entre consciente e inconsciente, em que o afeto, a
pressão, a raiva e a obrigação de atender ao outro se encontram forte-
mente misturados. Como demonstra Kolnai, “o ódio somente é possí-
vel quando se pode atribuir responsabilidade e consciência ética àquele
que é alvo do ódio” (2013, p. 148). Há, assim, uma inversão estrutural
do paradigma de adultos como responsáveis. É possível afirmar que as
crianças são vistas, ao mesmo tempo, como dotadas de consciência do
que fazem, e consideradas inocentes, sem culpa e sem responsabilidade
pelo que as mães passam.
Lembramos que nas retóricas de estado, crianças podem aparecer
como responsáveis por “coisas ruins”, seja na figura do “menor”, seja nos
impedimentos dos rolezinhos nas praias da Zona Sul, seja quando lidas
como nascidas “fora de hora” e consideradas obstáculo para o bom fun-
cionamento da “política pública”, a partir da falta de vagas na creche,
em hospitais, entre outros serviços. Crianças e adolescentes populares
são vistos como “sementinhas do mal”, o que justifica a presença poli-
cial nas escolas e creches, a fim de conter os “alunos rebeldes”.
Nessa dinâmica do bater e o do apanhar, há algo sobre quem bate
e quem apanha. Para além das agressões nos corpos, quem apanha está
recebendo algo, apanhar é, portanto, reter um conteúdo de alguém. A

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criança é aglutinadora dessas relações assimétricas de desigualdade, ela
é o significante que representa tais relações, ela é o objeto mais dis-
ponível para expressão deste apanhar/descontar. É dessa maneira que
ela recebe uma carga externa e se constitui como um dos canais mais
acessíveis para o escoamento da raiva, num universo no qual se diz às
mulheres, constantemente, que não podem ser agressivas. Ainda que
todos os descasos sejam permitidos, mulheres mães em situação de
exasperação e vulnerabilidade não podem agredir seus filhos.
Crianças, portanto, recebem a carga de acusação na qual mulheres
também estão inseridas. A raiva, dessa maneira, compreende diversos
campos de luta: uma luta histórica de mulheres contra homens, pais
ausentes, violentos e que não comparecem, e uma luta histórica de
mulheres contra o estado, representado em todos esses dispositivos que
viram as costas para elas quando estas precisam. Entretanto, essa luta
sempre tem contornos falhos, ela nunca é precisamente delimitada,
estando sempre borrada e nebulosa. As cores do sentimento são turvas,
se mancham, se apagam e se misturam no cotidiano.
Nesse colorido confuso do “Reino das Mães”, é quase irresistível
apontar a violência praticada pelas famílias como produtora da violên-
cia nas escolas e consequentemente produtora da violência na socieda-
de. Contudo, o “pensamento maternal” das minhas interlocuras nos diz
o contrário: mulheres devem impedir que a violência de fora chegue em
suas casas. Finalizo, assim, com algumas considerações de Audre Lord
(2003) sobre a raiva produzida pelo racismo, quando ela diz:

A resposta das mulheres ao racismo passa por fazer explícita sua


ira, a ira provocada pela exclusão, pelos privilégios estabelecidos,
pelas distinções raciais, pelo silêncio, os maus tratos, a estereoti-
pação, as atitudes defensivas, a estigmatização, a traição e as impo-
sições (2003, p. 44).

Lorde fala da importância de sair do registro da culpa, para assu-


mir a ira como uma forma de “corrigir os defeitos”; alerta também para
a necessidade de se prestar atenção aos “contextos vitais” nos quais as

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mulheres vivem. Essas mulheres que seguem “contendo a duras penas a
ira”, mesmo que outros entendam que a expressão dessa ira seja contra-
producente (2003, p. 45). A autora fala da necessidade de chegar à “raiz
da ira”, essas mil raivas espalhadas pelo “sistema”, que se embrenham
aqui e ali e se acumulam, forjando uma espécie de bomba no interior
nos ventres femininos, em seus corpos “histéricos”, prestes a explodir.
Não é por acaso que elas nos dizem, “aí eu não aguentei”, “aí eu
explodi”. Reconhecer essa ira requer um processo doloroso de tradução
para conseguir enxergar os “verdadeiros inimigos”. A raiva, para Audre
Lorde, está “carregada de informação e energia” (2003, p. 46). Esse en-
tendimento permite suspender momentaneamente um paradigma se-
gundo o qual a “violência das mulheres” é vista unicamente como uma
prática injustificável e que deve ser o quanto antes silenciada, quando
não criminalizada.
O meu convite é, portanto, para atentarmos à necessidade de mer-
gulhar no caos maternal, neste reino das mães, num exercício doloroso
de tradução da raiva. Para Lorde (2003), o ódio e a ira são muitos
distintos, uma vez que os dois não têm os mesmos objetivos, e a fina-
lidade do ódio leva a destruição. Kolnai (2013) também faz distinção
entre raiva e ódio, o que nos ajuda a pensar sobre os alertas que as
mulheres nos dão, sobre como bater é diferente de espancar. Com es-
sas considerações, entendemos que, quando a violência é prontamente
criminalizada, ela é encoberta num manto de culpa. A forma como se
lê esta raiva, é, portanto, por meio do desvio e da produção de estereó-
tipos. Ao final, são essas as “mães nervosas”. Em que medida o apelo à
integridade das crianças serve como retórica moderna e de estado para
que se estanque e domestique esta raiva a fim de abafar desigualdades
raciais, de classe e de gênero? É assim que o horror perante a “violência
contra criança” se faz, a partir de um estado ausente, no qual as próprias
instituições que deveriam cuidar se ocupam precariamente dos “filhos
dos outros”.

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Referências
BADINTER, E.  Um amor conquistado: o mito do amor materno. Rio de Janeiro:
Nova Fronteira, 1985.
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Trabajo infantil en clave de cuidado:
explorando un modo de análisis
__________________________________________________
Laura Frasco Zuker

Introducción
¿Qué aportes puede hacer el cuidado para comprender mejor el
objeto de estudio “trabajo infantil”? Este interrogante guía las siguientes
páginas y el ejercicio que me propongo aquí es intentar responderlo
considerando un conjunto de literatura sobre cuidado. En primer lugar,
haré una breve caracterización del tema de investigación en el que se
enmarca esta pregunta, luego haré referencia a algunas líneas específicas
de cuidado que permiten complejizar el tema y finalmente colocaré
algunas reflexiones en torno a las ventajas y limitaciones que supone el
uso de esta categoría de análisis.
El objetivo general de la investigación etnográfica a la que hago
alusión, realizada en el marco de un doctorado en antropología social en
curso, es analizar las experiencias de trabajo infantil según generaciones,
géneros y trayectorias familiares en una serie de unidades domésticas del
noroeste de la provincia de Misiones, Argentina. Tomando como punto
de partida una investigación precedente (Mastrángelo, 2006), tenía co-
nocimiento previo acerca de la existencia de algunas familias en las que
había niños/as que trabajaban junto a sus madres y padres en la extrac-
ción y venta de piedras preciosas en Wanda. En esta localidad, situada a
50 kilómetros de Puerto Iguazú (ciudad en la que se encuentran las cata-
ratas de Iguazú y uno de los principales puntos turísticos de Argentina)
se encuentran las llamadas minas de Wanda, un importante atractivo
turístico debido a las piedras preciosas que se extraen de allí.

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Figura 1: Mapa de localización del área bajo estudio

El aprovechamiento de este recurso natural no renovable consti-


tuye una alternativa económica para muchas familias que viven en los
barrios más cercanos a los pozos mineros a cielo abierto. Sea de modo
exclusivo o combinado con otros trabajos1, “ir al monte” a buscar pie-
dras con herramientas de uso corriente (palos de hierro) y luego ven-
derlas sin elaboración a los turistas es un modo de obtener un ingreso

1
Fundamentalmente vinculados a la forestación y cosecha de yerba mate.

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para estas familias. Es frecuente encontrar a los niños/as vendiendo
las piedras junto a sus madres, sobre todo, en la avenida principal por
la que pasan obligadamente todos los turistas que pasan por allí para
visitar las dos empresas mineras de la zona que ofrecen visitas guiadas
a los yacimientos y cuentan con locales que venden distintos tipos de
artesanías hechas con piedras pulidas.

Figura 2: Niño extrayendo piedras de pozos mineros a cielo abierto

Figura 3: Niños vendiendo piedras en la avenida que da acceso a las empresas mineras

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A partir del trabajo de campo realizado con algunas de estas fa-
milias que se dedicaron y/o se dedican a la venta de piedras, se ha
evidenciado que entre los distintos trabajos que realizaron y/o realizan
hay una continuidad en las distintas generaciones de mujeres: son ellas
quienes, además de este trabajo, se encargan de llevar a cabo diversas
tareas de cuidado y el trabajo doméstico. Por su parte, los hombres de
estas familias trabajan fuera del ámbito doméstico y fundamentalmen-
te en empleos informales que, concomitantemente, no proveen servi-
cios de cuidado infantil.

Enfoques teórico metodológicos del cuidado


La observación de esta diferenciación entre tipos de trabajo y gé-
neros, sumado a un interés propio por incluir temas “de género” en mi
investigación, me llevaron a buscar enfoques que problematicen teórico
metodológicamente este aspecto. Así, tuve un primer acercamiento al
tema de género y cuidado infantil desde la perspectiva de una socióloga
feminista, Eleonor Faur, cuyo objeto de análisis actual es la organiza-
ción social del cuidado. Influenciada por esta mirada, hice el ejercicio
de articular el enfoque de cuidado con mi propio tema de investigación
preguntándome específicamente si es posible pensar la presencia de
trabajo infantil en el marco de los arreglos de cuidado y trabajo (o “es-
trategias de conciliación familia y trabajo”) que realizan madres, padres
o familiares a cargo. Es decir, a través de la incorporación de la orga-
nización social del cuidado a mi tema, tenía la pretensión de analizar
el fenómeno no solamente centrándome en el nivel familiar sino tam-
bién incorporando otras dimensiones y escalas de análisis que podrían
contribuir a comprenderlo mejor. Por ejemplo, colocando la mirada en
los servicios de cuidado infantil y las regulaciones estatales tendientes
a conciliar la vida laboral y familiar. La organización social del cuida-
do (Faur, 2014) es una categoría que supone una mirada simultánea
en las políticas estatales, las regulaciones del mundo laboral y en las
estrategias desplegadas por los sujetos y permite analizar las distintas

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instituciones involucradas en la provisión del cuidado sin limitarse a
una en particular.
Así, el primer acercamiento que tuve al tema de cuidado se vin-
culaba específicamente al cuidado de niños/as. Y fue tomado como un
marco teórico que procuraba mirar desde un nivel macrosocial cuál es
el contexto en el que esas madres resuelven las tensiones entre trabajar
y cuidar a sus hijos/as sin limitarse a explicar el trabajo infantil como un
tema de “la cultura”2 de las familias que viven en zonas rurales.
Ahora bien, este enfoque no resulta especialmente productivo para
echar luz sobre aquello que los propios sujetos entienden por cuidar, o,
en términos de Mol (2010), aquello que los sujetos performan como un
buen cuidado. Esta segunda perspectiva resulta adecuada para entender
que la propia práctica del trabajo infantil (por cierto una categoría que
debe ser problematizada) puede ser conceptualizada como una práctica
de cuidado desplegada por esas madres. Por un lado, porque ellas mismas
sostienen que es mejor que sus hijos/as estén trabajando junto a ellas
a que estén robando o sin hacer nada. Es decir, ellas lo ven como algo
positivo, incluso más útil para el futuro que ir a la escuela pues el trabajo
emerge como una herramienta que “les puede servir el día de mañana
para tener lo suyo”. Por otro lado, en sus relatos aparece una dimensión
del cuidado más vinculada a la responsabilidad que al amor maternal:
muchas veces la presencia de niños/as en actividades laborales es “la úni-
ca” manera de estar con ellos/as porque “no hay con quién dejarlos”. De
modo que desde la perspectiva de esas madres el “trabajo infantil” no es
meramente algo bueno que se opone al robo sino también un modo de
cuidarlos (al no dejarlos solos) frente a la ausencia de lugares de cuidado
infantil en la zona. En suma, al hablar del trabajo infantil estas madres
hablan también del cuidado y no lo hacen meramente en términos afec-
tivos. Tal como sugiere Molinier (2013), el cuidado es significado tam-
bién como una responsabilidad, como un imperativo moral.

2
Una de la razones a las que más se alude para explicar la persistencia de trabajo infantil en
zonas rurales es "la cultura" de las familias. Teniendo en cuenta que generalmente la forma de
pago por cantidad (caso de la cosecha de yerba mate) es frecuente que trabaje toda la unidad
doméstica, incluyendo a niños/as.

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Esta segunda forma de estudiar al cuidado se interesa más por las
prácticas de cuidado (Mol, 2010) que tienen sentido en situaciones es-
pecíficas y en tiempos determinados (Molinier, 2012). Explicitar la es-
pecificidad de las prácticas y de lo que es considerado bueno en contex-
tos singulares es un aspecto clave de esta perspectiva, más ´etnográfica´
que la anterior. Al poner en el centro las prácticas y la perspectiva del
actor, se evita caracterizar al fenómeno analizado desde juicios previos
del/de la investigador/a. Sin embargo, sostener que en el contexto bajo
análisis el trabajo infantil no es visto como una forma de explotación y
vulneración de derechos no debiera confundirse con que el/la investi-
gador/a sostiene lo mismo.
Además, esta perspectiva centrada en las prácticas (Mol, 2010;
Epele, 2012) y descripciones (Molinier, 2012) de situaciones especí-
ficas resulta una ´lente´ especialmente interesante para mostrar otro
aspecto vinculado al cuidado. Esto es, que quienes deberían ser sujetos
de cuidado (los/as niños/as) son muchas veces quienes cuidan de otros/
as, incluso adultos/as.
Probablemente si buscáramos enfatizar el papel subordinado de
las mujeres con relación a los hombres y asociado a ello que las tareas
de cuidado pesan desproporcionadamente sobre ellas (a diferencia de
otros tipos de trabajo) se perdería de vista esta situación específica. Y
para los fines de la presente comunicación constituye una importante
puerta de entrada que permite interrogar las relaciones de poder entre
generaciones, además de entre quienes cuidan y son cuidados. En las
experiencias de vida de varias mujeres adultas y quienes son actualmen-
te niños/as, cuidar de sus padres enfermos, discapacitados o hermanos/
as menores es habitual, por lo que es pertinente su consideración como
otra modalidad de trabajo infantil característica del lugar de estudio.

A modo de cierre
Responder qué significa el cuidado lleva necesariamente a indagar
en distintas perspectivas teóricas que plantean cosas muy diferentes. Sin

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embargo, hay consenso sobre ciertos aspectos que constituyen casi un
supuesto en el campo académico (Zirbel, 2016; Palomo; Terrón, 2015;
Faur, 2014; Llobet; Milanich, 2014; Diniz, 2007). Entre ellos, que el
cuidado implica ante todo una relación de interdependencia, y que esta
relación está atravesada por relaciones de poder; que no solamente hace
referencia a un trabajo; que no se funda naturalmente en el amor ma-
ternal ni se reduce a la esfera doméstica o privada; que pone en juego
una moralidad, una idea de buen cuidado que se performa prácticas es-
pecíficas. Por supuesto que lo que cada una de estas autoras desarrolla
es mucho más complejo y extenso pero no es intención de este trabajo
resumir sus investigaciones. Se trata más bien de mostrar cómo cada uno
de estos aspectos señalados están presentes en los relatos de las mujeres
entrevistadas y que éstos adquieren sentidos particulares que varían de un
contexto a otro. Es por ello que la etnografía emerge como una perspecti-
va adecuada para mostrar de qué modos singulares se practica el cuidado.
Esta comunicación se trata de ejercicio en el que fueron agrupados
estudios cuyo tema principal es el cuidado, y en particular imbricado
con el cuidado infantil, en dos perspectivas que dialogan más que otras
con mi tema de investigación. El primer grupo habilita a colocar al
cuidado como un terreno en el que se articulan políticas y estrategias
familiares y que constituye una lente que examina las relaciones entre
organización social del trabajo remunerado y organización social del
cuidado. Así, permite incluir en el análisis las regulaciones estatales
sobre cuidado, los servicios de cuidado infantil públicos, privados y
también las dinámicas familiares. Es decir, interroga al cuidado no sólo
como una cuestión doméstica y femenina. Ahora bien, esta mirada que
pone el foco en la tensión entre trabajo formal y protección social que
en el escenario de estudio es escasa o nula puede tener la desventaja de
enfatizar las carencias (falta de trabajo formal, falta de regulaciones so-
bre cuidado, falta de servicios de cuidado infantil). Tal como sostienen
Llobet y Milanich (2014) “enfocando mayormente en la relación ver-
tical entre el estado (y las transferencias condicionadas) y las mujeres,
puede estar oscureciendo un escenario más complejo” (p. 61)
Aquí cobra especial relevancia otra perspectiva de análisis que jus-
tamente hace posible iluminar la complejidad de los escenarios. Una

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mirada en las prácticas de cuidado, su observación, su descripción et-
nográfica, nos enseña sobre los valores de lo bueno y lo malo puestos en
juego desde la perspectiva de los sujetos. En términos de Mol (2010),
aprender sobre el “buen cuidado” y el “mal cuidado” es posible por me-
dio de la observación de prácticas de cuidado en las que se performa
lo bueno (formas de cuidado deseadas) y lo que se performa como lo
malo (formas de cuidado rechazadas) y en las que existe ambivalencia.
Por ejemplo, desde la perspectiva de algunas madres el hecho de que
sus hijos trabajen es una de las mejores opciones en ese contexto pero
esa decisión no ha estado exenta de conflictos y tensiones (estar solas y
no tener a nadie que los cuide mientras ellas trabajaban).
Así, articular ambas perspectivas puede acrecentar el tema de in-
vestigación propio, eso se ha intentado mostrar aquí.

Referencias
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en las Transferencias Condicionadas de Ingresos. Un aporte al debate sobre el
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ZIRBEL, Ilze. Uma teoria política feminista do cuidado. Tese de doutorado, PPG de
Filosofia, UFSC, 2016. – Capítulo 1, p. 29-64.

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Sobre os autores

Isabel Cristina de Moura Carvalho é pesquisadora da Universidade


Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) no Programa de Pós-
Graduação em Antropologia Social e pesquisadora do CNPq. Tem
formação em psicologia pela Pontifícia Universidade Católica de
São Paulo (PUC-SP), mestrado pela Federação Getúlio Vargas
(FGV), doutorado em Educação pela UFRGS e pós-doutorado em
Antropologia na University of California San Diego (UCSD/EUA).
Desenvolve pesquisas na interface entre Educação e Antropologia,
e seus temas de interesse são aprendizagem, ambiente, educação
ambiental e movimentos sociais.
E-mail: isacrismoura@gmail.com

María Adelaida Colangelo é antropóloga e trabalha como


pesquisadora na  Comisión de Investigaciones Científicas (CIC) da
região de Buenos Aires  e como professora na  Facultad de Trabajo
Social  da  Universidad Nacional de La Plata, ambas na Argentina.
Suas pesquisas abordam as práticas de cuidado infantil em contextos
de diversidade cultural e desigualdade social e o papel dos saberes
considerados como expertises – especialmente aqueles oriundos da
medicina – na construção social da infância. 
E-mail: adecolangelo@yahoo.com.ar

Camila Fernandes é doutora em Antropologia pelo Programa de Pós-


graduação em Antropologia Social do Museu Nacional da Universida-

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de Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e mestre em Antropologia pelo
Programa de Pós-Graduação em Antropologia da Universidade Fe-
deral Fluminense (UFF). É pesquisadora associada ao Núcleo de Es-
tudos em Corpos, Gênero e Sexualidades (Nusex) da UFRJ. O artigo
apresentado nesta coletânea é parte da sua tese de doutorado intitula-
da: “Figuras da causação: sexualidade feminina, reprodução e acusações
nos discursos populares e nas políticas de estado”. Seus interesses de
estudo incluem gênero, sexualidades, família, raça, favelas e estado.
E-mail: fernandesv.camila@gmail.com

Claudia Fonseca é  professora do Programa de Pós-Graduação em


Antropologia Social da Universidade Federal do Rio Grande do Sul
(UFRGS).  Seus interesses de pesquisa incluem parentesco, gênero,
ciência e direito, com ênfase particular nos temas de direitos humanos
e tecnologias de governo.  
E-mail: claudialwfonseca@gmail.com

Marcos Cezar de Freitas é professor associado livre docente do depar-


tamento de Educação da Escola de Filosofia, Letras e Ciências Huma-
nas da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP). Coordena o
Laboratório de Antropologia Educacional e Vulnerabilidades Infantis
e dirige o projeto internacional Plataforma de Saberes Inclusivos. É
professor do Programa de Pós-Graduação em Educação da Univer-
sidade Federal de São Paulo (Unifesp) e pesquisador do CNPq. Seu
tema de pesquisa é a vida cotidiana e institucional de crianças com
deficiências ou cronicamente enfermas. Trabalha a educação inclusiva
sob uma perspectiva antropológica. 
E-mail: marcos.cezar@unifesp.br

Valeria LLobet é doutora em psicologia pela Universidad de Buenos


Aires (UBA) e realizou pós-doutorado em Ciencias Sociales, Niñez y

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Juventud num programa oferecido em conjunto pela Pontifícia Uni-
versidade de São Paulo (PUC-SP), pelo Colegio de la Frontera Norte,
México (COLEF) e pelo Centro de Estudios de la Universidad de
Manizales, Colombia (Cinde-Manizales). É pesquisadora do Consejo
Nacional de Investigaciones Científicas y Técnicas (Conicet) e codire-
tora do Centro de Estudios Desigualdades, Sujetos e Instituciones na
Universidad de San Martín (UNSAM). É também professora adjunta
nesta universidade em temas de direitos humanos, gênero e infância, e
dirige na mesma o Programa de Estudios Sociales de Infancia y Juven-
tud. Suas pesquisas tratam de políticas de proteção social e de direitos
para crianças e jovens em contextos de desigualdades sociais.
E-mail: valeria.s.llobet@gmail.com

Chantal Medaets é pós-doutoranda pelo programa Capes-Cofecub


no Institut de Hautes Études de l’Amerique latine da Université
Sorbonne Nouvelle (Paris, França). É doutora em Antropologia pela
Université Paris Descartes (2015), na qual defendeu a tese sobre
práticas de transmissão e de aprendizagem de populações ribeirinhas
da região do baixo Tapajós. Desde então, continua trabalhando nesta
região e tem também desenvolvido pesquisas em outros espaços
educativos, como o das escolas ocupadas de Porto Alegre, que são o
objeto do capítulo que apresenta, em coautoria com Nadège Mézié e
Isabel Carvalho, nesta coletânea.
E-mail: chantal@uol.com.br

Nadège Mézié é professora adjunta da Faculté de Sciences Humaines


et Sociales da Université Paris Descartes (Paris, França). Doutora em
Antropologia pela mesma universidade, onde realizou uma tese sobre
o protestantismo no Haiti. Suas áreas de interesse são antropologia
da religião, da violência e da aprendizagem. A pesquisa de campo
para o capítulo que apresenta nesta coletânea foi realizada durante o
estágio pós-doutoral que realizou no Programa de Pós-Graduação de

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Antropologia Social na Universidade Federal do Rio Grande do Sul
(UFRGS), em 2015 e 2016.
E-mail: nadege.mezie@wanadoo.fr

Flávia Ferreira Pires é professora dos Programas de Pós-Graduação


em Sociologia e em Antropologia da Universidade Federal da Paraíba
(UFPB) e bolsista de produtividade do CNPq. Trabalha com crianças a
partir da perspectiva dos novos estudos da infância e da antropologia da
infância desde 2003, e é líder do grupo de pesquisas Crianças, Sociedade
e Cultura na UFPB. Orienta pesquisas de mestrado e doutorado e
é autora de textos que versam sobre metodologia de pesquisa com
crianças, os efeitos do Programa Bolsa Família na vida das crianças e
suas famílias, trabalho das crianças, religião e infância, dentre outros.
E-mail: ffp23279@gmail.com
 

Patrícia Oliveira Santana dos Santos é doutoranda em Ciências


Sociais pelo Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da
Universidade Federal de Campina Grande (UFCG), mestra em
Antropologia pela Universidade Federal da Paraíba (UFPB), bacharel
e licenciada em Ciências Socais também pela UFPB. É pesquisadora
integrante e membro fundadora do grupo de pesquisas Crianças,
Sociedade e Cultura na UFPB. Desde a graduação realiza pesquisa
sobre a temática da infância, com e a partir das crianças do Nordeste
brasileiro, e atualmente tem se dedicado a pesquisar a infância rural na
região do Agreste Pernambucano. 
E-mail: patriciaoss1288@yahoo.com.br

Renata Lopes Costa Prado é professora adjunta do Instituto de


Educação de Angra dos Reis, da Universidade Federal Fluminense
(UFF). É pesquisadora do Laboratório de Antropologia Educacional
e Vulnerabilidades Infantis da Universidade Federal de São Paulo

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(UNIFESP) e do Grupo de Estudos e Pesquisas sobre Sociologia da
Infância e Educação Infantil da Universidade de São Paulo (USP).
Seus principais temas de pesquisa são o trabalho infantojuvenil, a ética
na pesquisa com crianças e a participação de crianças na sociedade.
E-mail: renata.lopescp@gmail.com

Fernanda Bittencourt Ribeiro é doutora em Antropologia Social


(2005) pela École des Hautes Études em Sciences Sociales (EHESS)
Paris, França. É professora do departamento de Ciências Sociais e
do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Pontifícia
Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS) onde coordena
o Grupo de Estudos e Pesquisas em Antropologia ‒ Idades. Seus
principais interesses de pesquisa em antropologia da infância são:
infância e tecnologias de governo; infância e direitos; acolhimento
institucional.
E-mail: feribeiro2@gmail.com

Alice Sophie Sarcinelli é pós-dotouranda no Dipartimento di Scien-


ze Umane per la Formazione, da Università di Milano Bicocca (Itá-
lia) e membro do Laboratoire d’Anthropologie Sociale et Culturel-
le, da Université de Liège (Bélgica). Sua tese de doutorado sobre a
infância cigana, realizada na École des Hautes Etudes en Sciences
Sociales (França), sob orientação de Didier Fassin, recebeu o prêmio
Richelieu da Chancellerie des Universités de Paris. Atualmente faz
pesquisas em antropologia da infância e do parentesco entre minorias
e grupos estigmatizados na Europa e no Brasil. O capítulo apresen-
tado na coletânea, sobre filhos de casais do mesmo sexo na Itália, faz
parte de uma pesquisa apoiada pelo Fond National pour la Recherche
Scientifique (Bélgica). 
E-mail: alice.sarcinelli@unimib.it

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Andrea Szulc é doutora em antropologia pela Universidad de Buenos
Aires e pesquisadora adjunta do Consejo Nacional de Investigaciones
Científicas y Técnicas (Conicet, Argentina). Dirige a equipe de pes-
quisa Niñez, Alteridad y Ciudadanía (FB Niñez Plural). É professora
de graduação e pós-graduação na Universidad de Buenos Aires (UBA).
Desenvolve, desde 2001, trabalhos de pesquisa com comunidades e or-
ganizações mapuche da região de Neuquén, onde investigou antropo-
lógicamente os sentidos de pertencimento de meninos e meninas, e
como aparecem os discursos de direitos humanos nos âmbitos familiar,
comunitário, educativo, sanitário, organizacional e político. Atualmen-
te dedica-se a  problematizar o cuidado infantil, indagando como se
articula com a alteridade, a diversidade e a desigualdade em contextos
locais, no caso da infância mapuche.
E mail: andrea.szulc@gmail.com

Laura Frasco Zuker é doutoranda em Antropologia Social no Instituto


de Altos Estudios Sociales, da Universidad de San Martín (UNSAM)
e graduada em Antropologia Sociocultural na Universidade de Buenos
Aires (UBA). Seus temas de investigação são infância, trabalho
infantil, cuidado e saúde. Particularmente, no capítulo que compõe
essa coletânea, se  focaliza sobre a potencialidade de pensar o trabalho
infantil como uma estratégia de cuidado.
E-mail: laurefz@gmail.com

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.

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