Você está na página 1de 5

1

A Fábula das Abelhas, de Bernard Mandeville Lançavam-se a negócios de fabulosos lucros;


Outros estavam condenados à foice e à
espada,
Uma grande colméia, repleta de abelhas, E a todos esses árduos e cansativos ofícios
Que viviam com luxo e comodidade, Nos quais, voluntariamente, desgraçados suam
Porém eram tão famosas por leis e armas dia após dia,
Quanto por copiosos e precoces enxames, Esgotando as forças e os membros para
Era tida como o grande berço poderem comer,
Das ciências e da indústria.
Não havia abelhas que possuíssem governo Enquanto outros se dedicavam a mistérios
melhor, Aos quais poucos encaminhavam aprendizes,
Maior volubilidade ou menos contentamento; Que não requeriam outro cabedal senão o
Não eram escravas da tirania, descaramento,
Nem governadas pela desenfreada E podiam estabelecer-se sem um centavo
Democracia, sequer,
E sim por reis, que não podiam errar, Como trapaceiros, parasitas, gigolôs,
Pois seu poder era restrito por leis. jogadores,
Punguistas, falsários, charlatães, adivinhos
Esses insetos viviam como os homens, E todos os que, inimigos
E todas as nossas ações executavam em Do trabalho honesto, astuciosamente
miniaturas; Convertiam em seu próprio benefício
Faziam tudo o que se faz na cidade, O trabalho do afável e incauto próximo.
E o que é da alçada da espada ou toga,
Embora os trabalhos engenhosos dos membros A esses chamavam velhacos, mas exceto pelo
minúsculos nome,
De tão ligeiros escapassem à vista humana. Os austeros industriosos eram iguais;
Entretanto, não temos máquinas, Todos os negócios e cargos tinham algo de
trabalhadores, desonesto,
Navios, Castelos, armas, artífices, Nenhuma profissão era isenta de embustes.
Ofício, ciência, loja ou instrumento
Para os quais não possuíssem equivalente; Os advogados, cuja arte tinha por base
Estes, sendo sua língua desconhecida, Suscitar contendas e dividir causas,
Devem ser chamados com os nomes que Opunham-se a todos os registros, pois as
damos aos nossos. trapaças
Poderiam dar mais trabalho com propriedades
Como concessão, entre outras coisas, hipotecadas,
Queriam dados, mas tinham reis, Como se fosse ilegal que o patrimônio de
E estes tinham guardas, do que se pode, alguém
acertadamente, Fosse conhecido sem uma ação judicial.
Concluir que algum jogo havia, Postergavam deliberadamente as audiências,
A menos que exista um regimento Para embolsar polpudos honorários,
De soldados que não pratique nenhum. E, para defender uma causa iníqua,
Grandes números abarrotavam a fértil colméia, Examinavam e observavam as leis,
Porém essa multidão fazia com que Como ladrões que espreitam lojas e casas
prosperassem; Para descobrir qual o seu ponto fraco.

Milhões empenhavam-se em satisfazer Médicos valorizavam fama e riqueza


Mutuamente sua cupidez e vaidade, Acima da saúde dos depauperados pacientes
Enquanto outros milhões labutavam Ou de sua própria habilidade; a maior parte
Para ver destruídas suas obras. estudava,
Abasteciam metade do universo, Em vez de as regras da arte,
Porém tinham mais trabalho que Olhares graves e pensativos e atitudes
trabalhadores. apáticas,
Alguns, com grande capital e pouco esforço, Para ganhar a simpatia do boticário
2

E elogios das parteiras, sacerdotes As pensões eram pequenas, e eles viviam à


E todos os que lidavam com nascimentos e larga,
funerais, Porém jactavam-se de sua honestidade,
Suportar a incessante tagarelice da tribo, Chamando, sempre que extrapolavam seus
E ouvir a tia da dona da casa prescrever, direitos,
Com um sorriso afetado e um cortês “como Gratificação a seu logro matreiro;
vai?” E, quando entendiam seu jargão,
Para bajular toda a família Mudavam o nome para emolumento,
E, o que é o pior de todos os tormentos, Relutantes em ser concisos ou explícitos
Agüentar a impertinência das enfermeiras. Com tudo o que se referisse a ganhos;
Pois não havia abelha que não quisesse
Entre os muitos sacerdotes de Júpiter, Ganhar mais, não direi, do que merecia,
Contratados para invocar as bênçãos do céu, Porém do que ousava permitir que soubessem
Alguns havia sábios e eloqüentes, Aqueles que lhes pagavam, como jogadores
Mas milhares lascivos e ignorantes; Que, embora jogando limpo, nunca revelam
Contudo, todos preenchiam os requisitos que Aos perdedores o quanto ganharam.
podiam ocultar
Sua preguiça, luxúria, avareza e orgulho, Mas quem pode enumerar todas as suas
Pelos quais eram tão famosos quanto alfaiates fraudes?
Por sonegar retalhos e marinheiros por rum. O próprio material que na rua
Alguns, magros e pobremente vestidos, Vendiam como esterco para enriquecer o solo,
Rezavam misticamente por pão, Freqüentemente, como descobria o
Com isso querendo dizer uma farta despensa, comprador,
Contudo, literalmente, não recebiam nada Era sofisticado com um quarto
além. De pedras e argamassa imprestáveis,
E, enquanto esses santos labutadores passavam Embora pouca razão tivesse para queixar-se
fome, Aquele que também vendia gato por lebre.
Alguns preguiçosos a quem serviam
Abandonavam-se ao ócio, com todas as graças A própria Justiça, célebre pela equanimidade
Da saúde e da fartura nas faces. Embora cega não perdera o tato;
Sua mão esquerda, que deveria sustentar a
Os soldados, que eram forçados a lutar, balança,
Se sobrevivessem, auferiam honrarias, Deixara-a muitas vezes pender, subornada com
Embora alguns, que se esquivavam de brigas ouro;
sangrentas, E, conquanto parecesse imparcial,
Houvessem sido feridos na fuga. Quando se tratava de punição corporal,
Alguns generais valentes combatiam os Alardeava seguir curso regular
inimigos, Em assassinatos e todos os crimes violentos,
Outros aceitavam suborno para deixa-los Porém alguns, primeiro mandados ao
escapar; pelourinho por desonestidade,
Alguns aventuravam-se sempre onde a luta era Eram enforcados na própria corda com que
mais renhida, haviam sido açoitados.
Perdiam ora uma perna, ora um braço, Contudo, pensava-se, a espada que ela
Até que, totalmente inválidos, eram postos de empunhava
lado, Reprimia apenas os pobres e desesperados
E viviam com a metade do soldo, Que, impelidos por mera necessidade,
Enquanto outros nunca apareciam no campo Eram amarrados à árvore dos desgraçados
de batalha, Por crimes que não mereciam tal destino,
E ficavam em casa recebendo em dobro. Senão para proteger os ricos e poderosos.

Seus reis eram servidos, porém astutamente Assim, o vício imperava em cada parte,
Logrados pelo seu próprio ministério; Embora o todo fosse um paraíso;
Muitos, que pelo seu bem-estar arduamente Incensados na paz, temidos na guerra,
trabalhavam, Tinham o respeito dos estrangeiros,
Roubavam a própria coroa a quem salvavam; E, na abundância de riqueza e vidas,
3

Eram a força preponderante entre todas as aventurança,


colméias. E de que a perfeição, cá embaixo,
Tais eram as bênçãos daquele estado Está acima do que os deuses podem conceder,
Que seus crimes conspiravam para torna-lo E os queixosos animais ter-se-iam contentado
grandioso; Com ministros e governo.
E a virtude, que com a política Porém eles, a cada sobrevento,
Aprendera milhares de artifícios sutis, Como criaturas irremediavelmente perdidas,
Tornara-se, pela feliz influência, Maldiziam os políticos, o exército, as frotas,
Amiga do vício, e desde então Enquanto cada um gritava “Abaixo os
O pior elemento em toda a multidão desonestos!”,
Fazia algo para o bem comum. Apesar de cônscio dos próprios defeitos,
Era essa a estatística que regia Dos demais, barbaramente, não tolerava
O todo, do qual cada parte reclamava; nenhum.
Isso, como na harmonia musical,
Conciliava as dissonâncias no geral. Um, que conseguira patrimônio principesco
Grupos diretamente opostos Enganando o patrão, o rei e os pobres,
Ajudavam-se mutuamente, como por Atrevia-se a bradar “Que a terra pereça
perversidade, Por todas as suas fraudes!”; e quem pensais”
E a temperança e a sobriedade Que o patife pregador do sermão censurava?
Serviam à embriaguez e à gula. A um luveiro, que vendera couro grosseiro por
pelica!
A avareza, raiz do mal,
Esse maldito, perverso, pernicioso vício, A menor coisa feita incorretamente,
Era escrava da prodigalidade, Ou que obstasse aos negócios públicos,
O pecado nobre; enquanto o luxo E já todos os velhacos gritavam
Empregava um milhão de pobres, disfarçadamente:
E o orgulho odioso, mais um milhão. “Oh, Deus! Se ao menos houvesse
A própria inveja e a vaidade honestidade!”
Eram ministros da indústria; Mercúrio sorria ante a imprudência,
Sua extravagância predileta, a volubilidade E outros chamavam-na falta de senso,
No comer, vestir-se e mobiliar, Sempre a protestar contra o que amavam.
Tornara-se, vício estranho e ridículo, Porém, Júpiter, cheio de indignação,
A própria roda que movia os negócios. Finalmente, irritado, jurou livrar
Suas leis e seus trajes eram, igualmente, Da fraude a vociferante colméia. E assim o fez.
Coisas mudáveis, No mesmo momento, ela se foi
Pois, o que em certo momento era bem visto, E a honestidade encheu seus corações;
Meio ano depois tornava-se crime. Revelaram-se-lhes, como na árvore do
Entretanto, enquanto assim alteravam suas conhecimento,
leis, Os crimes dos quais se envergonharam,
Sempre encontrando e corrigindo E que então, em silêncio, confessaram,
imperfeições, Enrubescendo ante sua torpeza,
Através da inconstância reparavam falhas Como crianças que, desejando esconder suas
Que a prudência não poderia prever. faltas,
Pela cor denunciam os pensamentos,
Assim, o vício fomentava a engenhosidade Imaginando, ao serem olhados,
Que, unida ao tempo e ao trabalho, Que os outros vêem o que fizeram.
Propiciava as comodidades da vida,
Seus verdadeiros prazeres, confortos e Porém, oh deuses! Que consternação!
facilidades, Quão grande e súbita foi a alteração!
A tal ponto que mesmos os pobres Em meia hora, no país inteiro,
Viviam melhor que os ricos de outrora, A carne caiu um pêni por libra;
E nada mais havia a acrescentar-se. A máscara da hipocrisia despencou,
Do grande estadista ao palhaço;
Como é vã a felicidade dos mortais! E alguns, tão conhecidos pela aparência
Tivessem eles noção dos limites da bem-
4

afetada, O clero despertou da preguiça;


Pareceram estranhos com a sua natural. Não mais delegaram suas incumbências às
abelhas auxiliares;
O tribunal ficou silencioso a partir de então, Isentos de vício, serviram pessoalmente
Pois agora os devedores, voluntariamente, Aos deuses, com oração e sacrifício.
pagavam Todos os que eram inaptos, ou sabiam
Mesmo o que os credores haviam esquecido, Serem dispensáveis seus serviços, retiraram-
E estes desobrigavam os que não podiam saldar se;
as dívidas. Nem havia trabalho para tantos
Os que estavam sem razão calaram-se (se é que os honestos precisam de algum).
E desistiram dos esfarrapados e vexatórios Somente uns poucos permaneceram com o
processos, sumo-sacerdote,
Com o que, já que ninguém prospera menos A quem os demais juraram obediência;
Do que advogados em uma colméia honesta, Ele próprio ocupou-se de assuntos divinos,
Todos, exceto os que tinham grandes posses, Cedendo a outro os negócios de estado.
Partiram, levando consigo seus tinteiros. Não escorraçou de sua porta nenhum faminto,
Nem roubou aos pobres seu salário;
A justiça enforcou alguns, outros libertou, Em sua casa os esfomeados foram
E, após esvaziarem-se as prisões, alimentados,
Não mais sendo necessária sua presença, Os subordinados tiveram pão sem restrições,
Retirou-se com todo o seu cortejo e pompa. E os viajantes necessitados, cama e comida.
Na vanguarda marcharam ferreiros, com
cadeados e grades, Entre os grandes ministros do rei
Grilhões e portas com chapas de ferro; E todos os administradores subalternos
A seguir, carcereiros, guardas e ajudantes; A mudança foi grande pois, frugalmente,
Á frente da deusa, a alguma distância, Passaram a viver de seu salário.
Seu fiel ministro principal, Que uma abelha pobre viesse dez vezes
Dom Algoz, o grande executor da lei, Pedir o que lhe era devido, uma quantia
Empunhando não a espada imaginária, irrisória,
Mas seus próprios instrumentos, o machado e a E por um escrivão bem pago fosse obrigada
corda; A dar algo por fora ou nunca receber,
Então, em uma nuvem, a bela de olhos Seria agora considerado absoluta
vendados: desonestidade,
A justiça em pessoa, impelida pelo ar; Embora antes fosse prerrogativa.
Em volta de sua carruagem, e na retaguarda, Todos os lugares, antes administrados por três,
Seguiram sargentos, esbirros de todas a Que vigiavam mutuamente suas velhacarias,
espécie, E muitas vezes, por camaradagem,
Beleguins e todos aqueles funcionários Promoviam os roubos uns dos outros,
Que das lágrimas arrancam seu sustento. Felizmente passaram a ser geridos por um só;
Com isso, foram-se outros milhares.
Embora vivesse a medicina enquanto houvesse
doentes, Nenhuma honra agora poderia satisfazer-se
Ninguém prescrevia senão abelhas habilitadas, Em viver devendo pelo que gastava;
As quais dispersaram-se tanto pela colméia Librés ficaram expostas em lojas de penhores,
Que nenhuma precisava de condução; Desfizeram-se de carruagens por uma
Deixaram de lado controvérsias inúteis e pechincha,
esforçaram-se Venderam cavalos magníficos às parelhas,
Por livrar os pacientes do sofrimento; E casas de campo para saldar dívidas.
Abandonaram as drogas produzidas em países
desonestos Evitou-se o gasto inútil tanto quanto a fraude;
E usaram os produtos da sua própria terra, Não mais mantiveram exércitos no exterior;
Sabendo que os deuses não mandam doenças Riram-se da estima dos estrangeiros
A nações sem remédios. E das glórias vãs conseguidas com guerras;
Lutaram, mas pelo bem da pátria,
5

Quando o direito e a liberdade estavam em E as roupas, bem como as modas,


jogo. permaneceram.
Tecelões que produziam ricos brocados
Olhai agora a gloriosa colméia e vede E todos os ofícios subordinados
Como se conciliam honestidade e negócios: Extinguiram-se. Ainda reinava a paz e a
O espetáculo terminou; esvaiu-se abundância,
rapidamente, E tudo era barato, porém simples.
E apresentou-se com face bastante diversa, A bondosa Natureza, livre do jugo dos
Pois não só foram-se aqueles jardineiros,
Que somas vultosas gastavam anualmente, Concedia todos os frutos no seu próprio
Mas multidões, que neles tinham seu ganha- tempo;
pão, Contudo, raridades não se podia mais obter
Foram diariamente forçadas a fazer o mesmo; Quando os esforços para consegui-las não eram
Inutilmente buscara outros ofícios, pagos.
Pois estavam todos superlotados.
Caiu o preço da terra e das casas; À medida que minguaram orgulho e luxo,
Palácios maravilhosos, cujos muros, Gradativamente deixaram os mares,
Como os de Tebas, foram feitos para o Agora não os mercadores, mas companhias.
espetáculo. Fecharam fábricas inteiras.
Puseram-se para alugar, enquanto os outrora Todas as artes e ofícios foram abandonados.
garridos, O contentamento, ruína da indústria,
Bem estabelecidos deuses domésticos ficariam Fê-lo apreciar seu estoque caseiro
Mais satisfeitos em morrer no fogo do que ver E não buscar nem cobiçar mais.
A modesta inscrição na porta
Sorrir das soberbas que eles exibiam. Assim, poucos permaneceram na vasta
A construção civil foi aniquilada, colméia;
Não se empregaram mais artífices, Não puderam manter nem a centésima parte
Nenhum pintor ganhou fama por sua arte, Contra as afrontas dos numerosos inimigos,
Canteiros e entalhadores não se tornaram A quem, valentemente, enfrentavam,
conhecidos. Até encontrar algum refúgio bastante
fortificado,
Os que permaneceram tornaram-se Onde morriam ou defendiam seu território.
moderados, Não houve mercenários em seu exército;
Esforçaram-se não para gastar, mas para viver, Bravamente, lutaram eles próprios.
E, tendo pago a conta da taverna, Sua coragem e integridade
Resolveram lá não mais entrar. Foram finalmente coroadas com a vitória.
Nenhuma ex-noiva de taverneiro em toda a Triunfaram, porém não sem custo,
colméia Pois milhares de abelhas pereceram.
Pôde, então, usar tecidos de ouro e prosperar, Calejadas dos árduos trabalhos e exercícios,
Nem perdulários adiantar tão grandes quantias Consideraram vicio a própria comodidade,
Para borgonhas e verdascos. O que aperfeiçoou de tal modo sua
Foi-se o cortesão que com sua querida, moderação.
Diariamente ali jantava um banquete de natal, Que, para evitar extravagâncias,
Gastando, em duas horas de estada, Voaram para uma árvore oca,
O que sustentaria o dia todo uma tropa de Abençoadas com satisfação e honestidade.
cavalaria.

O arrogante Cloé, que para viver à grande,


Fizera seu marido roubar ao Estado,
Agora, contudo, vendeu sua mobília,
Que fora saqueada nas Índias,
Reduziu o dispendioso cardápio,
E usou um ano inteiro os mesmo trajes
duráveis:
A era da futilidade e do capricho passou,

Você também pode gostar