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Escolha, e Aperte!

Por Douglas Eralldo


Caros leitores,

Este texto é uma versão preliminar que ainda está em construção e que foi
compartilhado com o objetivo de angariar sugestões e opiniões acerca de seu
caráter experimental.

Portanto, é uma obra que não passou por qualquer processo de revisão ou
edição, e por isso peço desculpas por possíveis e prováveis erros, e desde já
fiquem a vontade de apontá-los ou mencioná-los.

Como dito, a intenção de distribuir este ARC é receber de vocês, leitores,


o retorno com sugestões e feedbacks acerca desta obra estranha e onírica, projeto
que tenho dedicado um pouco da minha escrita.

Quem se interessar pelo mistério desta narrativa e desejar acompanhar a


mesma como beta reader pode contatar pelo e-mail douglaseralldo@gmail.com.

Também ficaria muito feliz com aqueles que compartilharem suas


opiniões nos comentários da postagem deste arquivo no
www.facebook.com/douglaseralldo ou no @douglaeralldo.

Atenciosamente,

Douglas Eralldo
1.

Está gelado.
O piso é frio e se encontra com minha pele nua; eu estou nu. Tudo isso é
muito estranho. Desperto grogue e não sei onde estou, ou sequer quem sou eu, ou
ainda, o que sou. Eu não sei nada, e isto é a única coisa que posso saber enquanto
desperto.
Há uma luz intensa que penetra por meus olhos causando-me uma
cegueira momentânea. Não sinto dor, mas é como se tivesse sentido há pouco
tempo. Mexo-me ainda caído no chão, braços ao redor dos joelhos, músculos
lentos cuja reação causa sofrimento e dores. Mordo meus lábios, há um gosto
amargo na boca; um gosto de metal.
Pisco duas ou três vezes.
Preciso me acostumar com a incandescência do lugar. Toda aquela luz
está jogada sobre mim; me ataca; me assusta. Quem sou eu?
Alguém que desperta, que tenta levantar-se, mas o corpo rui em fraqueza.
Meus braços estão flácidos, minha ação é lenta; estou sonolento.
Leva algum tempo até que a tentativa de sentar-me no chão, enfim dá
certo. O piso continua gelado. E eu continuo preso?
Não saber quem sou atrapalha um bocado a tentativa de imaginar onde
estou. É como se não houvesse nada em mim ou dentro de mim até o momento
que desperto dentro desta caixa; acho que é uma grande caixa.
Não é um ambiente espaçoso. Quatro paredes de aço, imagino,
aprisionam-me. A luz intensa vem de lâmpadas fortíssimas penduradas a um teto,
um teto inalcançável graças a sua altura.
Tento pensar.
Tento lembrar.
Ainda não há nada dentro de mim. Apenas sei que preciso compreender o
que acontece. Isso me faz olhar o local de forma analítica. Eu tenho instintos.
Estou preso em não mais que seis ou oito metros quadrados. Todo material
da cela que me aprisiona é frio, descubro ao tocar uma de suas paredes, tão frias
quanto o piso cinzento.
Tudo é cinza onde estou; a luz apenas altera suas tonalidades.
Vejo então que além de mim, há outra coisa naquele pequeno espaço: uma
mesa. Não sei como sei que aquilo é uma mesa, apenas sei. É uma mesa simples,
parece de lata ou qualquer outro metal vagabundo. Não tem mais que oitenta
centímetros de comprimento e percebo que há algo nela.
Caminhar até a mesa é difícil. É como se eu não soubesse caminhar. Os
pés doem ao movimento. Minha mente parece saber como se faz, mas ainda
estou grogue, e o corpo reage lentamente às minhas ordens.
Ainda penso que se soubesse quem sou, certamente entenderia porque
estou aqui. Não entendo, porém deve haver algum motivo para que eu desperte
em um lugar tão inóspito e misterioso. Um quarto de metal, vazio, sem janelas e
luzes artificiais que pareciam agora começar a esquentar o ambiente.
Com sacrifício chego à mesa. Ela também é cinza. O papel não. O papel
que está sobre ela é pardo. Não sei por que penso que há um contraponto
acontecendo aqui. É tanto metal que penso em futuro. O papel me diz que há
passado, no entanto esse é um tempo que a mim está fechado.
Pego o papel pardo, mas não sem antes de uma série de tentativas por
causa da debilidade de minhas mãos que parecem não ter firmeza, ainda. Há
grafismos naquele papel, então descubro que posso lê-lo.

“Você deve procurar pela saída; há perigo para encontrá-la. Seu fracasso
é o fim; seu sucesso pode não ser sua vitória. Para encontrar a saída você
precisa escolher, e apertar. Sempre dois botões, uma escolha. Boa Sorte!”

É o que está escrito no papel. Nada mais.


Então percebo os dois botões sobre a mesa. Estão mesmo ali. Um branco.
Outro preto. E preciso escolher um deles.
E ainda não sei quem sou.
2.

Aperto o botão preto.


Algo me diz que há alguma coisa na cor negra, alguma coisa confiável. O
branco soa como armadilha, falsa paz, nele tudo se reflete, tudo pode ser outra
coisa que não o próprio branco. Não sei de onde brotam tais conclusões, mas são
elas que levam-me a apertar o botão preto.
Um som nasce; rasga o silêncio que havia até então. É um arrastar-se
metálico, estridente. O aço abre-se. Há uma porta, um losango negro de linhas
indefinidas que surge em plena parede. Penso que ali pode ser a saída, mas e se
não for?
Talvez o seguro seja permanecer neste grande quarto vazio. Talvez eu
tenha apertado o botão errado. Cogito ficar, esperar, por que não? Porque sirenes
soam alto, e urgentes. Sinto um frio percorrer meu abdômen, pois mesmo
ignorante de tudo, há um instinto de que o barulho infernal que toma minha
prisão é uma marcação de tempo, um tempo que se acelera, como percebo
através da distinção sonora. Compreendo que aquilo é um aviso, um aviso de que
minha escolha foi feita e eu preciso seguir em frente.
Caminho até a porta que se abriu em plena parede. Ela está a uns vinte
centímetros do piso, e no corredor de formato estranho há uma base com largura
suficiente apenas para que eu caminhe por ela, embora caminhar seja para mim
algo ainda difícil.
Entro pela abertura feita. Estou coberto por sombras. Não há luz. Negro
como o botão apertado é o corredor. Zzziip. Um som rasga às minhas costas.
Clinc. Sei que foi a porta fechando-se atrás de mim.
O breu é intransponível. Tateio com as mãos, mas elas não encontram
nada, absolutamente nada além de mais metal frio. Continuo preso.
Click...
Uma lâmpada circular acende-se atrás de mim.
click... click...
Luzes acendem-se sobre mim.
Click... Click... Click... click... click...
Agora há um pequeno corredor iluminado diante de mim. Sinto que devo
caminhar; seguir em frente. Faço isso vagarosamente já que meus passos são
lentos e desajeitados. Ao que avanço novos clicks trazem luz ao corredor. Ainda
não sei onde estou, mas estou em um lugar muito diferente de onde despertei.
Imagino que isto é bom. Click. Me parece um corredor longo.
Clack.
Percebo a vogal. Percebo coisas que não sabia poder perceber. A vogal
nesse caso é a lâmpada que se apaga atrás de mim.
Continuo caminhando. Ainda nu e desajeitado. Minhas pernas parecem
compridas demais, faltam-lhes carnes, quase vejo os ossos. A coisa pendurada
entre elas balança com o andar, e até isso traz mais cansaço. Mas eu sei que o
caminho é em frente.
Clack...
Clack... Clack... Clack...
Cresce a tensão dentro de mim. Há algum tempo ouço mais clacks do que
clicks.
Clack... Clack... Clack... Clack...
A luz se desfaz em escuridão atrás de mim. É o breu que volta, é o breu
que sei que me deseja para sempre perdido nas entranhas deste corredor. Mais
uma vez o instinto bafeja vozes inexistentes, corra.
Eu corro.
Clack... Clack... Clack... Click...Clack…Clack…
Busco forças que sequer sabia que tinha. Eu preciso correr, não sei bem
como se faz, mas assim mesmo faço, eu corro. Minhas pernas doem, meus
joelhos se batem, minha boca arfa por ar. Sei que se o breu chegar até mim,
adeus, saída! Eu quero sair, descubro. Só não sei ainda os motivos deste querer.
Corro tanto que clacks e clicks não chegam mais até mim. Não posso lhes
dar atenção. Tenho de me concentrar na corrida. A corrida mais desengonçada de
todos os tempos, uma corrida que é interrompida pelo final de um corredor sem
saída. Estanco, parado como um poste.
Clack... Clack... Clack... Clack....
Apenas as últimas três lâmpadas não apagam-se sobre mim. Suas luzes
revelam os poucos metros daquele corredor em que a visão pode ver algo. Seu
final é tão sólido quanto as paredes de meu último cativeiro. É nesse fim de linha
que vejo os dois botões acoplados ao metal.
Um botão cinza. Um botão laranja.
Tenho de escolher um deles.
Algo me diz que a escolha correta é o botão cinza. Ainda assim aperto o
botão laranja.
3.

O chão abre-se sob mim.


Perco meu peso. Minhas tripas se revoltam. Mergulho vertiginosamente
num novo vazio. Sou passageiro do destino, não há nada que possa fazer, sou ao
mesmo tempo pluma e também pedra. Rio, meu corpo manda-me rir, é como se
sofresse descargas de alguma energia desconhecida.
Está escuro. Mesmo assim fecho os olhos e amplio as sombras. Estou
caindo, é a única coisa que sei. Tragado por alguma força que me leva para baixo
em alta velocidade. Vai acabar, penso.
Perco os sentidos novamente.
Desperto com o corpo ainda mais doído. Sinto um piso quente e arenoso.
Tento abrir os olhos, mas há tanta luz, que mais uma vez estou cego. As coisas
parecem se repetir. No entanto não estou mais naquele pequeno quarto de metal,
tampouco são luzes artificiais que me ilumina.
Abro e fecho os olhos por algum tempo buscando me acostumar com a
claridade vinda de uma única fonte, um sol esplendoroso fixado no meio de um
céu muito azul. Teria eu encontrado a saída?
Isso é muito curioso, no bilhete havia a uma ordem expressa de que eu
deveria encontrar uma saída. Penso agora que não sei por que preciso de uma
saída e muito menos para onde ela poderá me levar. Porém, ou encontro-a, ou
chego ao fim. O fim parece-me finito, sem volta; a saída posterga. É um
argumento, enfim.
Tento levantar-me, mas nesse momento todos sabem do quão fraco estou.
E caí novamente, ou seja, estou ainda mais fraco.
Meus olhos estão quase acostumados com a luminosidade natural de um
dia fora de qualquer prisão metálica. Eu caí, e disso tenho certeza, embora não
haja neste lugar qualquer indício de onde eu caí. Não há nada no céu sobre mim
além de sua abóboda celeste. Pensei ter escorregado por algum cano, senti em
alguns momentos meu corpo tocar suas bordas. As queimaduras em meu corpo
provam isto.
Mas não há nada sobre mim. E se houver está tão distante que meus olhos
não podem ver, se este for o caso eu não deveria estar vivo.
Mas estou. Sinto meu corpo, ainda nu, arder, doer, queimar. Aliás, está
quente sob meus pés; é areia, areia de um deserto que parece não ter fim. Devo
ter me enganado de botão, só pode ser isso...
Au. Au. Au. Auau.
É um cão que surge não sei de onde. Pelos pardos e negros, late e faz
movimentos com a cabeça como se quisesse alguma coisa de mim. Não falo a
língua dos cães. Não posso entendê-lo, e talvez se pudesse pensaria estar ficando
louco; acho que não sou louco...
Aauuuuuuuuuu...
O uivo vem de trás de uma duna. Arrepio-me ao ouvi-lo. Algo me diz que
isto representa perigo. O latido do cão me pareceu mais amistoso. O uivo,
ameaça. Um novo uivo ecoa pelo deserto e a loba surge em uma silhueta
sombreada no topo do cômoro.
O cachorro vem até mim, dança na minha frente e late novamente. Atrás
de mim um trovão ribomba no céu, nuvens erguem-se ameaçadoras no horizonte
distante enquanto o cachorro late alguns passos a minha frente. Ainda não
compreendo a língua dos cães, mas acabo deduzindo que preciso seguir o cão.
E seguir também a loba, pois é na direção dela que o cão me guia.
Sigo-os.
Não demora muito e caminhamos juntos, lado a lado. E no meio,
debilitado e nu. Minha nudez deve continuar por algum tempo, pois não há
vislumbre de qualquer coisa neste imenso deserto. Apenas areia, calor e a
companhia dos caninos que descubro olharem-me com certa ternura. Poderia
esperar isso do cão, talvez não da loba. De repente sinto uma frouxidão nas
pernas, desmaio.
O sol já se adiantou de posição. Percebo isso ao despertar novamente.
Dessa vez não fiquei tão cego quanto nas outras. Talvez a água cuspida pelo cão
em minha cara tem ajudado nisso. Água, sequer tinha parado para pensar nela,
sentir sua falta. Não lembro nada antes de acordar naquele quarto, não sei há
quanto tempo estou sem beber água, mas agora estou com uma sede imensa.
Giro meu corpo enfiando meu rosto numa pequena poça em meio a tanta
areia. Demoro a me importar com esse fato, apenas bebo, bebo muita água.
Apenas quando sinto-me satisfeito é que paro para refletir, não havia qualquer
sinal de água quando desmaiara não sei quanto tempo atrás.
Olho ao meu redor, a areia ainda domina, mas há água e estranhas árvores.
Vejo frutos nelas, e agora sinto fome. Mas os frutos estão no alto, e enquanto
penso como fazer a loba que ainda está próxima resolve o problema com uma
cabeçada num tronco. O fruto cai, eu como-o.
O cão volta a latir. Diz-me novamente que preciso seguir em frente, e
como se tivesse alguma relação entre os latidos do animal e o clima, volta a
trovejar. Mais uma vez compreendo qual é a necessidade.
Antes de deixar o pequeno oásis olho para trás, tento imaginar como eu
cheguei até ali, ou “se ali chegou até mim”. A resposta está grafada em linhas
tortas na areia. Fui arrastado até ali, ou pela loba, ou pelo cão.
Já não importa, aprendi a confiar em ambos desde que escolhi segui-los.
Nossa jornada recomeça. Não estamos mais tão próximos. O cão parece ir
mais a frente enquanto a loba fica na retaguarda. Preocupo-me porque meus
salvadores estão preocupados.
Mas não tenho muito tempo para martirizar tais preocupações no
pensamento. A mim, o perigo parece sempre espreitar, e mais uma vez sinto-me
sugado por alguma coisa. Nesse caso pela areia que afunda sob meus pés. Estou
sendo engolido pelo deserto, literalmente.
A loba uiva, se esganiça, anda em círculos, mas não se aproxima do
terreno movediço. A esta altura já estou pelos joelhos tapado com areia. O cão vê
nosso desespero, mas some. Pensou mal de seu desaparecimento enquanto cada
vez mais me afundo no chão ao forçar uma saída. Estou com a cintura coberta
quando o cão retorna trazendo à boca um galho forte o suficiente para que possa
me puxar.
E o cão me puxa do atoleiro. Estou nu e muito mais arranhado; a areia é
grossa e cheia de pedregulhos. Percebo alguns finos fios de sangue em minha
pele, e espero sinceramente que isso não atice a fome de meus companheiros de
jornada.
Sento-me exausto. Tenho vontade de gritar, de chorar, de ficar ali mesmo.
Mas recomeço minha jornada insólita ao som de latidos e trovões, e estes agora
parecem próximos.
Entretenho-me durante a caminhada. Deixo pensamentos irrelevantes
dominarem-me e apagarem-me de tal modo que assim também queimam o
tempo. Quando dou por mim há crepúsculo, o sol é apenas fragmentos
alaranjados desaparecendo no horizonte. É quando ouço o grasnar mais tenebroso
que tenho a impressão de ter conhecido. Volto-me na direção do som diabólico, e
por um momento vejo apenas um ponto negro movendo-se no céu crepuscular.
Um novo grasnido quase congela-me. O ponto negro parece aumentar de
tamanho. Voa com rapidez, e não demora muito para que se aproxime de tal
forma que as formas terríveis do imenso pássaro se apresentem claramente a
mim. Bicos longos, mortais e famintos; suas garras dão a impressão de não
deixar escapar uma só presa. Tudo isso numa constituição enorme, anormal,
monstruosa. E o monstro vem até mim, traz junto sua fome irascível, posso
pressentir.
Há um encantamento na cena que transcorre. Não consigo deixar de olhar
para a figura que se agiganta cada vez mais sobre mim. Os latidos do cão
parecem distantes, não soam o alerta que deveria soar. Poucos metros separam-
me da criatura alada. Serei sua presa mais voluntariosa...
Mas o encanto se quebra quando a não mais do que quatro ou cinco
metros de mim o ataque do pássaro é bloqueado por um salto fantástico da loba.
Ela abocanha o pássaro pela ligação de uma das asas com o dorso e os dois se
engalfinham caindo no chão deixando um grande rastro pela areia riscada.
Olho o combate mortal. O monstro de penas não se dá por vencido. Rasga
a loba com suas garras. Ela contra-ataca, mas o pássaro é muito maior, livra-se
do bote e agora ataca-a com o bico. Por sorte ela desvia o golpe e morde o
pássaro em uma de suas pernas...
Não vejo o desfecho da luta, os latidos do cão, enfim, tem minha atenção.
Sei o que ele quer, e agora parece tudo mais urgente. Corro atrás dele. Ainda
escuto os sons da luta quando vejo o cão parar em um local e começar a cavar a
areia com as patas. Ele tem pressa, e quando chego até ele para da areia removida
revela algo enterrado na areia, uma caixa, um cubo enferrujado que deve estar ali
há muito tempo.
É neste cubo que estão os dois botões.
4.

Um botão é amarelo. O outro verde. Ambos estão com as cores


desgastadas; não é fácil discernir suas cores. O cão late novamente e aperto o
botão verde torcendo para não errar.
Dessa vez nada acontece. O chão não se abre sob mim e tampouco surge
alguma porta no horizonte. É verossímil, portas não se abrem no horizonte, e por
isso tempo por ter apertado o botão que leva ao fim.
Levanto-me ao som de trovões como plano de fundo de minha narrativa.
Sinto o bafejar da tempestade próxima. Traz uma sensação de frio refrescante, e
quero olhar para trás e observar sua chegada. Mas não faço isso porque sinto a
presença de alguém à minhas costas, e o medo me paralisa. Quando enfim,
segundos após a indecisão defino por descobrir o que é essa presença sinto o
impacto na nuca.
Clanc.

Estou começando a ficar incomodado com tanta violência. Há sempre em


meu caminho algo para me fazer sentir dores. Desperto, e por instinto a mão
massageia a nuca dolorida. Há um galo no local exato da pancada. Dói.
Provavelmente uma paulada. Não sei quem ou o quê me atacou, mas
caramba, doeu e eu desacordei novamente.
Mesmo assim consigo recordar de tudo, de tudo até o maldito quarto de
metal. Antes disso, nada, é como se eu não existisse até então.
Tento me levantar do chão. Estou num novo ambiente, percebo. É úmido e
fofo. A luz não cegou-me porque penetra parcialmente através das folhas. Olho
para o alto e vejo as copas das árvores dançarem ao ritmo do vento. Estou numa
floresta.
Também estou cercado, descubro.
Há um círculo de selvagens ao meu redor. São feios, medianos e de
aspecto violento. Parecem curiosos com a minha presença. Vestem-se com peles
rústicas que mal cobrem seus corpos. Ainda assim estão vestidos, e por causa
disso sinto-me envergonhado por ainda estar nu. Na verdade estava quase
esquecendo desce detalhe, andar pelado por aí. Mas agora, entre outros, bem,
parece-me humilhante minha nudez.
Estou amarrado, agora mais lúcido, percebo. Uma corda ata-me como um
animal. Há um burbúrio que se espalha pelos membros do círculo. Talvez se
estivesse mais forte e meu corpo não doesse tanto pudesse lutar contra meus
captores. Mas no momento acho melhor manter-me calmo, resiliente.
Descubro que assim como não compreendia a língua dos cães, também
não compreendo a língua destes selvagens. Eles falam, gesticulam, mas são os
puxões na corda que me fazem caminhar seguindo-os pela trilha na floresta.
É uma trilha estreita. Galhos e folhas arranham o corpo. O piso é irregular,
hora fofo demais, hora pedregoso, e às vezes é preciso saltar por sobre galhos e
troncos caídos.
Uma sinfonia de sons ecoa pela mata. Deve ser seus habitantes. Pela
diversidade de sons, a diversidade de bichos também deve ser grande, imagino.
Alguns sons parecem canções de tão belos, outros, porém, de tão agourentos
causam-me horror. Meus captores, talvez acostumados com o lugar, não parecem
dar muita importância para esta sinfonia.
A não ser alguns deles, cujo medo é impresso durante os piores sons.
Nesses casos, às vezes percebo que a marcha é acelerada. Por isso, caminhamos
um bom bocado. Então, quando menos espero, uma clareira revela o povoado.
Fica incrustrado aos pés de um monte rochoso bastante vertical. Esta
enorme parede rochosa não deve distar mais que quinhentos metros da pequena
vila. Olhando daqui parece que o monte pode tocar o céu de tão alto. E como se
fosse uma lágrima, uma grande queda d’água desenha um risco nas pedras.
Estou tão interessado no paredão que demoro e perceber para onde os
selvagens me levam. Um monumento feito de pedras. Há uma espécie de
escadaria, e o topo numa base bem no alto. A palavra sacrifício me assusta.
Mas com o círculo agora uma meia-lua fecha, sou libertado das amarras.
Um dos selvagens gesticula apontando para seu monumento. Ele parece exigir
algo. Seria mais fácil se eu compreendesse sua língua, mas estou quase
acostumando, e entendo que o que todos querem de mim é que siga em frente.
Faço isso, subindo degrau por degrau da escadaria de pedras. É bem mais
alto do que imaginava. Estando pouco mais da metade da subida já é possível
observar toda a clareira e suas choupanas. Chego ao topo e um imenso universo
verde descortina-se ao sul. Estou acima da altura das árvores, e a floresta parece
infinita vista daqui. Parece quase impossível que eu tenha chegado até aqui, e
inevitavelmente pergunto-me por quanto tempo fiquei inconsciente desde a
última pancada?
Olho para baixo, os selvagens agora parecem formiguinhas agitadas no
solo. A rocha fica ao norte, e mesmo no topo do monumento ainda não é o
suficiente para emparelhar altura. Tento observar a tudo, para só então procurar
pelo que já suspeitava. Agacho-me, fico de joelhos e ali estão eles. Dois botões
entalhados na pedra. Dois botões com cor-de-pedra, apenas um mais claro que o
outro. Recordo da já distante mensagem encontrada na prisão de metal, escolha e
aperte.
Escolho. E aperto o botão cor-de-pedra mais claro.
5.

Estou me acostumando com coisas fantásticas. Vivo como se fosse um


sonho. Porém, tudo é real, minhas dores podem comprovar, não?
Tão logo aperto o botão começo a ouvir o barulho de engrenagens. Mas
são engrenagens ríspidas e o som é seco, como se as pedras do monumento
trocassem de lugar entre si. Sinto o leve tremor que toda essa movimentação
provoca, e então percebo, o monumento está andando.
É como se a grande escadaria tivesse ganhado vida. Rasga o solo e se
dirige lentamente para o rochedo. Imagino que seja outro tipo de estágio. Ainda
não sei nada sobre mim, ainda estou nu, mas já consigo perceber estar tendo de
enfrentar diferentes estágios de desafio. Ao menos é isso que penso que estão
fazendo os botões, jogando-me de um estágio ao outro.
Ainda não consigo imaginar qualquer sentido para tudo isso. Talvez se eu
me lembrasse de alguma coisa anterior a esta jornada ajudaria; mas continuo
vazio.
Estou a muitos metros de altura, não tenho o quê fazer, a não ser aguardar
para onde me levara este monumento andante. Não imagino que tenha apertado o
botão “Fim”, creio que quando cometer esse erro saberei de imediato. As chances
são grandes, afinal, meio a meio em cada escolha, não sei se estou tendo sorte, ou
sabedoria, até aqui.
O rochedo se agiganta ainda mais. A proximidade revela que o
monumento chega ao máximo a uma terça parte da altura da imensa parede
rochosa que nos aguarda. Seguimos uma linha muito reta na direção das pedras,
mais precisamente da cachoeira imensa. É diretamente para ela que o
monumento me leva cativo. Volto a considerar a possibilidade de sacrifício. No
momento que a queda d’água me atingir certamente serei atirado para a morte.
Minha única chance é segurar-me com firmeza no topo do monumento.
Deito-me o possível em seu cume e agarro-me às extremidades das pedras.
Entramos no domínio das águas, e elas caem com violência. Meu corpo é
espancado pelo peso da água e é como se tivesse levado uma centena de
pontapés.
Mas não caio do monumento.
Transpomos as águas e paramos justamente na altura da entrada de uma
caverna. Não era enfim um monumento, mas sim uma ponte.
Sei o que tenho de fazer. Sigo em frente.
Há pouca luz no túnel por qual penetro o rochedo. É como se tivesse de
caminhar numa noite sem lua. Caminho a passos seguros, lentos, sem afobação.
De toda forma não poderia ser mais veloz que isso, estou acabado, tudo dói. Mas
não vou desistir.
As pedras irregulares do piso do túnel rasgam partes da sola dos pés.
Tateio as paredes, apenas pedras também. Em determinados lugares teias de
aranhas proliferam em estranha arquitetura. Não me parece haver aqui qualquer
lugar para dois botões. Continuo em frente.
O túnel então é cortado por outro túnel. Os caminhos fazem um “xis” nas
entranhas da montanha. Estaco sem saber o que fazer. Aí vejo ela. Primeiro um
vulto disforme que vem pelo túnel da intersecção. Depois os contornos de
alguém como eu, mas não totalmente como eu, é uma mulher, afinal.
Ela também está nua. Ela corre e de tão distraída em sua corrida não me
vê, bate em mim e cai. Imagino que ela vá me xingar. Não é o que faz.
“Desculpa aí, cara. Preciso encontrar a saída” é a única coisa que diz
quando se levanta do chão e continua sua corrida pelo túnel, o que não é o meu
túnel.
Sua presença me impacta. Sei que ao vê-la estou diante de pistas ou
elementos que podem me auxiliar com tudo isso que está acontecendo. Porém,
não consigo ligar as coisas e perco algum tempo paralisado por estes
pensamentos.
Então volto á minha realidade. Também preciso encontrar a saída. Sigo
em frente pelo meu túnel.
Depois de uma longa caminha monótona, enfim chego onde imagino
precisaria chegar. Este é um salão bem interessante para estar no fundo de
rochas. Parece com alguma base secreta de algum experimento mais secreto
ainda. Há um salão cuja nave é bem espaçosa e seu domo é como se fosse um
prato invertido. Do chão ao domo suas paredes são tomadas por centenas de
aparelhos, e cada um deles consegue reproduzir a imagem de gigantescos olhos
que observam minha chegada.
Isso é muito assustador, na verdade.
Não há sons, não há cores aqui. Apenas esses olhos curiosos que parecem
observar-me. De certo, especulam qual será minha escolha. Os botões estão em
uma banqueta cinzenta disposta bem no centro do salão. Há o botão de um azul
cobalto, e o botão de um vermelho bastante tímido.
Decido apertar logo um botão. Ter aqueles olhos vigilantes sobre mim
apressa-me para a escolha. Não consigo raciocinar com clareza sendo observado
de forma tão invasiva. Fecho os olhos e aperto o botão. Quero me livrar logo
daquelas terras.
A força de meu punho enterra o botão na banqueta, sinto. É justamente
quando toda a montanha rochosa começa a tremer.
6.

É o rolar de um pedregulho minúsculo que me desperta. Esse pequeno


grão desliza abrindo um caminho por qual passa o ínfimo fio de luz em meio a
tanto breu.
Não sequer questão mais de dor, meu corpo simplesmente parece prestes a
explodir. Estou pressionado, há peso sobre mim, muito peso. Distante como se
fossem sonhos ouço passos corridos e vozes que não me alcançam de forma
legível. Um Mundo de acontecimentos parece pairar sobre mim.
Vez por outra ouço estouros.
Regularmente ouço passos. Eles não param.
Quero gritar. Não consigo. Meu peito arfa e dói. Um grito é impossível.
Então grunho; meu grunhido é um chamado por esperança. Mas não acredito que
serei ouvido, lá em cima as coisas parecem agitadas.
Ouço então algo animador.
Há movimento nas pedras. Escuto-as sendo arrastadas. Imagino que fui
descoberto. Descoberto sob meu cativeiro mortal. A suspeita se confirma, muito
vagamente tenho a sensação de escutar “Ei, senhor. Acho que o encontramos”.
Enfim alguém a minha procura. Pode ser uma pista, afinal se alguém me procura,
deve ao menos saber quem sou.
Espero. É o que há para fazer. Grunho mais um pouco para certificar-me
de cumprir algum papel em meu resgate.
A nesga de luz vai aumentando. Vejo mãos enluvadas penetrar brechas
por entre os entulhos. De repente liberdade. O que me oprimia é retirado de cima
de mim. É como mijar, um alívio. O vulto então desdobra-se sobre mim. Suas
mãos me encontram e ele me puxa.
“Venha homem, não está na hora de partir, ainda”. Diz pouco antes de eu
desfalecer, exausto.
Acordo.
Pela primeira vez não vejo-me nu. Estou atirado sobre uma cama de
campanha. Há outros que grunhem como eu. Muitos outros. Estamos num galpão
imenso. Fileiras triplas. Visto panos leves que alguma lembrança remota diz ser
um pijama.
Tento lembrar ou imaginar onde possa estar. Não sei. Imaginava estar sob
uma montanha. Agora estou aqui. Vejo de relance a bolsa de onde sai o líquido
que entra em meu corpo por dois pequenos tubos.
Ainda estou cansado. Adormeço novamente.

“Levante-se, homem. Você ainda tem algo a fazer”. É um homem nanico,


mas de fisionomia carrancuda. Veste roupas camufladas e pelo tom de voz sei
que tem autoridade. “Vista-se logo e me siga imediatamente”.
Ganhei roupas camufladas; visto-as.
Mal estou vestido e o Homem Nanico começa a caminhar. Marchar. Sigo-
o como fiz com o cão e a loba, embora tais lembranças soem agora como algum
tipo de sonho. O Homem Nanico é rápido, logo saímos do galpão e atravessamos
um longo corredor.
Estou numa sala com outros homens, todos fardados, todos armados,
apenas eu não por arma alguma. “Você...” Berra o Homem Nanico apontando em
minha direção. “Suba naquela maldita torre e desarme a porcaria do sistema
deles”. Ordena. “Os garotos vão te dar cobertura.” Diz apontando agora para o
restante do grupo, os que estão armados.
A porta se abre, e a noite escura adentra minha realidade. Vielas sombrias
e decadentes. Ruínas em plena construção. Começo a andar, os homens montam
linhas em minha defesa.
Começo um andar tranquilo. Sequer sei onde fica a maldita torre, mas
logo descubro. Não foi difícil vê-la, gigante entre tantas construções rasteiras.
Começo a andar na direção da torre.
Ra-ta-ta-tá
É quando começam os primeiros tiros.
Ra-ta-ta-tá rata-ta-tá...
Começo a correr. Balas tracejam desenhando linhas luminosas na noite.
Vem e vão. Os tiros do inimigo são rechaçados com tiros de minha cobertura.
Não sei como desarmar merda de sistema algum. Para o Homem Nanico parecia
que sim.
Não me resta nada além de tentar, ao menos.
Quebro por ruas estreitas, muros esfacelados por tiros.
Um tiro rasga sobre mim e se choca contra os escombros de uma casa. É
chuva de aço sobre meu grupo. Sinto medo. Também vejo o medo na face de
meus companheiros.
Nas sombras os inimigos movimentam-se. Sobre-humanos. Vejo uma ou
outra silhueta. Não se parecem como nós. Tenho a impressão de ver três pernas.
De ver quatro braços. Provavelmente o calor de uma batalha.
Dou por mim na base da torre. Conseguimos chegar. A tarefa de subir em
minha. Começo a escalada por suas escadarias.
Uoó uó uó...
Um alarme dispara. Sinto que há relação com o que estou fazendo. Meu
pelotão de proteção parece encurralado. Coisas se movimentam nas sombras.
Tiros ecoam. O cerco se fecha.
Quando enfim estou na sala que imagino estar, gritos tenebrosos dos
homens invadem a noite. Arrepio-me. São gritos de horror. O silêncio é ainda
mais assustador, instala-se logo após o último grito.
Devo ser o próximo a gritar.
Tenho de agir com rapidez, penso. Não sei como desligar o sistema como
dissera o Homem Nanico. Ainda não sei quem sou, ou o que sou. Parece-me que
sou um soldado, um guerreiro. Ainda não tive tempo de esclarecer isso.
Procuro por algum lugar que possa haver alguma chave ou comandos. Não
os encontro, mas encontro dois botões.
Descubro então que ainda estou no jogo.
7.

Um botão é prata, o outro dourado.


Minha desconfiança que sonhara com desertos, florestas e prisões rui por
terra com a aparição destes dois botões. Eles estão ali, e esperam por minha
decisão.
Aperto o botão prata.
Um som mecânico ecoa pelo salão da torre. Surge uma vez, duas vezes,
três vezes...
Tenho a impressão de que há uma contagem em andamento. Decrescente,
conforme as nuances da tonalidade dos tons. Sinto um presságio. Um último som
vibra com autoridade.
A torre estremece. Penso em terremoto, seja lá o que for isso. As
estruturas metálicas da estrutura cantam numa vibração sonora que ainda não
ouvi. Pelo menos não desde o que consigo lembrar-me da minha existência, meu
despertar naquele quarto de aço.
Ao menos não estou mais nu. Visto-me com roupas militares. Talvez seja
uma pista de quem sou o que sou. Mas não consigo pensar nada agora. O agora é
tão somente a preocupação com a torre, com sua locomoção.
A torre está em movimento. Sobe reto em direção ao céu. Não estranho. Já
caí em canos profundos, afundei em areia e cavalguei monumentos andantes.
Uma torre que voa não me parece assim tão ridículo.
Supero o tremor em minhas pernas e caminho até a borda do vitral da
torre. A janela revela uma cortina de densa fumaça sob nós e uma cidade que se
distancia.
A torre continua tremendo. É por imposição que ela corta o espaço.
A cidade cada vez menor.
Distante.
Tão distante que suas luzes são como estrelas. Não sei mais onde estou. É
como se estivesse entre dois céus. Sob e sobre estrelas luminosas.
O movimento da torre se estabiliza. Pelo vidro vejo apenas uma imensidão
negra e sem vida.
Ouço um chiado. Um assobio.
Olho por todo o salão. Percebo a fumaça que emana das entranhas
metálicas desta torre curiosa. Não me nada bom.
A fumaça toma a base do chão, e aumenta em volume.
Temo ter feito a escolha errada. O silêncio no espaço permite-me ouvir
meu próprio coração. Retumbante como tambores. Não há como não ficar tenso.
A fumaça está na altura de meu peito.
Uma fumaça de cheiro estranho. Difícil de descrever.
Não vejo mais nada. Respiro. Tento, ao menos...
Mas sinto sono...
Muito sono...
Sono...

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