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TEMAS LIVRES FREE THEMES


Por que é relevante a ambientação e a aculturação visando
pesquisas qualitativas em serviços para dependência química?

Why is environmental adaptation and acculturation relevant


when seeking to conduct qualitative research
in drug dependency services?

Dione Viégas de Almeida Ribeiro 1


Renata Cruz Soares de Azevedo 1
Egberto Ribeiro Turato 1

Abstract This study conducted at the Outpatient Resumo Este trabalho realizado no Ambulatório
Service of Psychoactive Substances, in the Uni- de Substâncias Psicoativas do Hospital das Clíni-
versity General Hospital of Campinas, sought to cas da Unicamp, objetivou relatar uma experiên-
report on an experience of proactive participation cia de entrada em campo como fator de facilitação
to study the life experience of chemically depen- do estudo das vivências de sujeitos dependentes
dent patients attended in a specialized university químicos vistos em um serviço universitário espe-
service. These observations emerged from the re- cializado. As observações surgiram a partir das
searcher’s experiences in the environmental ad- vivências da pesquisadora em fase de ambientação
aptation and acculturation period, namely e aculturação, ou seja, a partir da inserção no
through the researcher insertion in the outpa- ambulatório, em fase preliminar à coleta de dados
tient service, during the preliminary data collec- para uma pesquisa qualitativa. A experiência foi
tion for qualitative research. This experience was importante, pois permitiu compreender melhor o
important as it enabled clearer comprehension of universo psicocultural da população atendida e
the psycho-cultural universe of the population como se dão as relações profissional-paciente, am-
attended and how the relation professional-pa- pliando o conhecimento do campo onde depois foi
tient is conducted, broadening the knowledge of realizada a pesquisa. A partir desta entrada inicial
the field where the research was later carried out. em campo, delimitou-se melhor o tema e a popu-
From this initial entry in the field, it was possible lação a ser pesquisada, adequando às necessidades
to define the subject-matter and the population e à realidade observada naquele serviço, bem como
being studied more clearly, adapting to the needs refletir sobre o método de pesquisa (clínico-quali-
and the reality observed in that service, as well as tativo) que melhor serviria para compreender as
to reflect on the research method that serve to bet- questões levantadas, e, inclusive, elaborar um ro-
ter understand the issues raised, and even draw up teiro para as futuras entrevistas do estudo. Con-
1
Departamento de a roadmap for future interviews in the study. It clui-se ser muito útil esse momento preliminar
Psicologia Médica e was concluded that this preliminary stage is very como fase habitual em novas pesquisas que usem a
Psiquiatria, Faculdade de
useful as standard practice in new studies using mesma metodologia nos settings clínicos.
Ciências Médicas,
Universidade Estadual de the same methodology in clinical settings. Palavras-chave Aculturação, Transtornos rela-
Campinas. Cidade Key words Acculturation, Substance-related dis- cionados ao uso de substâncias, Pesquisa qualita-
Universitária Zeferino Vaz.
orders, Qualitative research tiva
Caixa Postal 6111.
13083-970 Campinas SP.
erturato@uol.com.br
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Ribeiro DVA et al.

Introdução “Na virada do século XIX para o XX, localiza-


se o projeto de uma Antropologia do indivíduo e
O presente artigo pretende discutir a relevância da singularidade cultural, projeto que se opõe à
da aproximação do objeto de uma pesquisa e do anterior tendência de buscar a universalidade do
lugar onde esta se desenvolverá, através de estra- homem nos estudos comparativos das diferentes
tégias de ambientação e de aculturação. Opta- culturas. É, ainda nesta virada de séculos que a
mos por vivenciar um primeiro momento de Antropologia moderna, se institui como ciência”5.
ambientação e aculturação em um ambulatório Nesse momento surge então, o interesse em
universitário para dependentes de substâncias conhecer o indivíduo imerso em sua cultura. Essa
psicoativas (SPA), visando posterior pesquisa Antropologia moderna exige então uma postura
utilizando o método clínico-qualitativo. do pesquisador de observação participante, dan-
A antropologia e a psicanálise, dentre outras do origem aos métodos atuais de pesquisa etno-
áreas do conhecimento científico, têm feito uso, gráfica, na qual o observador é também inserido
historicamente, dos chamados métodos qualita- na cultura que pretende pesquisar5.
tivos, desde o início do Século 20. Posteriormen- A pesquisa etnográfica privilegia a observação
te, as disciplinas científicas da área da educação, sistemática das situações reais no local onde os fe-
das ciências sociais, das ciências da saúde e da nômenos ocorrem. Esse tipo de pesquisa não se
psicologia também passaram a se valer desses configura como uma aplicação de uma técnica, mas
métodos. Essas disciplinas são consideradas per- vai se desenvolvendo “na medida em que o pesqui-
tencentes ou associadas às Ciências Humanas, sador vai se imbricando no campo, vai se relacio-
as quais visam compreender e interpretar os ne- nando com os sujeitos e construindo um processo
xos de significados presentes nos fenômenos in- reflexivo sobre suas vivências e impressões”6.
dividuais e sociais1. O antropólogo Bronislaw Malinowiski se tor-
Um amplo estudo de revisão bibliográfica nou referência primordial para estudos clássicos,
apontou que, ao longo dos anos, constituiu-se desenvolvidos pioneiramente em trabalho de cam-
um representativo campo para estudos sobre a po com nativos em cultura do extremo oriente.
construção científica na área das ciências sociais Para ele, o trabalho de campo deveria produzir
em saúde. Na década de 60 surgiram no Brasil uma visão autêntica da vida da comunidade em
importantes cientistas sociais, muitos como au- estudo, devendo-se ultrapassar alguns obstácu-
todidatas em questões da Saúde, começando tra- los, tais como a falta de domínio da língua nativa,
balhos multiprofissionais especialmente voltados os preconceitos e opiniões de pessoas externas ao
para a comunidade. O material que surge desses grupo observado. O trabalho de campo também
trabalhos – e que incorpora tanto um conheci- deveria estar integrado a problematizações teóri-
mento dos aspectos médicos, assim como soci- cas ao propiciar um contato, o mais íntimo pos-
ais, culturais e psicológicos – pretendia ser uma sível, na perspectiva do grupo estudado7.
aproximação interdisciplinar e conduzia a um Trabalhos em campo constituem-se etapa
retrato biopsicossocial2-3. central da pesquisa qualitativa em saúde. Nesse
Ao buscar um refinamento da compreensão tipo de pesquisa, é crucial uma relação de inter-
de significados pessoais atribuídos aos diversos subjetividades e de interação social com o pes-
fenômenos observados, especificamente em set- quisador, que resulte em conhecimentos novos,
tings da Saúde, e considerando a experiência clí- que podem ser confrontados com a realidade
nica do pesquisador, o método eleito para este concreta e com pressupostos teóricos, gerando
estudo conduzido em serviço ambulatorial uni- uma construção mais ampla de saberes8.
versitário de referência, é o clínico-qualitativo. Este artigo trata de descrever as experiências
Este nasce da necessidade de uma estruturação de entrada em campo, as quais são chamadas de
metodológica específica com os cuidados clíni- aculturação e ambientação, mas que não se trata
cos com a saúde, nomeadamente ao sofrimento de uma etnografia, mas parte da importância
existencial e psicológico, associados às manifes- destacada em trabalhos etnográficos ao conhe-
tações no processo saúde-doença4. cimento prévio da população e ambiente a serem
Quando se pretende utilizar uma metodolo- estudados.
gia qualitativa, na compreensão de um fenômeno É descrito em literatura como etapa anterior
ou setting, faz-se fundamental antes de qualquer ao trabalho da pesquisa de campo propriamente
intervenção, conhecer bem o campo em que se dita, a fase exploratória, na qual serão definidos:
dará a coleta dos dados, ainda que não lacemos o espaço da pesquisa, o grupo a ser pesquisado,
mão do trabalho etnográfico propriamente dito. os critérios de amostragem e a estratégia de en-
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trada em campo8. Sempre considerando que a Verificamos na literatura a importância de se
pesquisa qualitativa preocupa-se com o aprofun- buscar uma maior aproximação do grupo a ser
damento e a abrangência da compreensão seja de estudado, não apenas para se conhecer melhor as
um grupo humano, de uma organização ou de especificidades do mesmo, mas também para que
uma instituição. É necessário à pesquisa qualita- o pesquisador seja previamente aceito pelos sujei-
tiva conhecer amplamente os sujeitos envolvidos, tos, posto que a qualidade dos dados obtidos de-
com idas repetidas a campo, antes do trabalho de pende, em grande parte, de como se dá a relação
coleta propriamente dito. Tal fase de ambienta- entre sujeito e pesquisador. “Dessa forma é possí-
ção e aculturação permite o fluir da rede de rela- vel manter uma relação dialógica, de proximidade
ções e possíveis correções iniciais dos instrumen- e confiança, baseada em princípios éticos”10.
tos da futura coleta formal de informações8. Leite e Vasconcellos11, também apontam que
Pressupõe-se que, a todo pesquisador que a entrada em campo e o contato inicial com os
parte para a fase da investigação em settings, é informantes merecem atenção especial por de-
necessário essa fase de ambientação e acultura- terminarem o início de uma relação que preten-
ção, em espaço de tempo se não longo, porém em de ser de confiança. Sendo que, quando o pes-
profundidade. O termo ambientação está aqui quisador consegue assimilar a linguagem e o
entendido como a adaptação geral à rotina do universo cultural do grupo em estudo, ocorre
setting onde se coletarão os dados, bem como a uma maior aceitação por parte dos seus interlo-
aquisição de informações sobre o cotidiano das cutores e a interação entre eles pode ser aprofun-
pessoas que ali trabalham e daquelas que são aten- dada. Todavia, tal interação é um processo que
didas no local. Por sua vez, aculturação, conceito demanda tempo, por isso a necessidade de uma
mais abrangente, pressupõe um contato com a aproximação do grupo, antes do início da pes-
incorporação das mentalidades, costumes e valo- quisa propriamente dita.
res da população deste campo de investigação9. Clifford12 aponta a importância de se cons-
Apesar de propormos os processos de ambi- truir “um mundo de experiências partilhadas, em
entação e aculturação de forma simultânea e com- relação ao qual todos os ‘fatos’, ‘textos’, ‘eventos’ e
plementar, devemos apontar que, conforme defi- suas interpretações serão construídos”. A qual se
nições anteriores, são conceitos diferentes e, por dá a partir da experiência do pesquisador em
vezes, podem ter pesos diferentes em uma pesqui- campo, com seus sentimentos intuitivos, percep-
sa de campo, sendo priorizado ora um, ora outro. ções e inferências.
Turato4 acrescenta, ainda: havendo uma adap- A observação participante exige um bom
tação do pesquisador, a partir da ambientação e aprendizado da língua ou mesmo da linguagem
da aculturação, ao espaço do serviço de saúde do grupo estudado em sentido amplo, o que fa-
onde ocorrerá a pesquisa, à rotina de trabalho, vorece ainda certo grau de envolvimento. Tam-
aos hábitos, à linguagem e à problemática viven- bém é preciso algum despojamento das expecta-
ciada, poderá ser construído um setting, um tivas pessoais e culturais do observador12.
ambiente delimitado para a realização das futu- Paul Rabinow13, também demonstra em seus
ras entrevistas. trabalhos etnográficos um cuidado com as pes-
A necessidade desse momento de ambienta- soas envolvidas. Buscando estar “separado o
ção e aculturação surge com a necessidade de suficiente para evitar uma identificação fácil, pró-
transpor barreiras que afastam pesquisador e ximo o suficiente para compreender de uma for-
pesquisado. Conhecer anteriormente a rotina de ma benevolente, embora crítica”.
trabalho, a linguagem utilizada, a problemática O antropólogo Roberto da Mata14 afirma que
ali exposta, é fundamental para que se possa rea- para escrever uma boa etnografia é necessário
lizar uma pesquisa qualitativa de forma mais aproximar-se empaticamente das pessoas do gru-
apurada e com menos vieses4. po estudado, mas também perceber-se solitário
Na pesquisa qualitativa em Ciências Sociais, em seu trabalho de observação. Podendo entrar
o estudo etnográfico é a principal ferramenta em contato com os sentimentos despertados ao
utilizada para se conhecer mais profundamente relacionar-se com essas pessoas. Ele propõe tam-
uma população. Este se dá exatamente a partir bém a tarefa de transformar o “exótico em fami-
da inserção do pesquisador no ambiente a ser liar e o familiar em exótico”. O primeiro caso
estudado, por um espaço de tempo por vezes corresponde ao movimento original da Antro-
prolongado, com contato direto com o objeto pologia, mas a segunda transformação propos-
de estudo, sendo posteriormente relatado em tex- ta visa estranhar algo em nosso quotidiano fa-
to, de forma sistemática10. miliar, “o exótico no que está petrificado dentro
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Ribeiro DVA et al.

de nós pela reificação e pelos mecanismos de le- consideração a diversidade de usos e de compor-
gitimação”. tamentos, tanto em relação aos produtos como
A partir do que conhecemos em estudos an- em relação ao contexto social em que ocorrem. A
teriores, apontados nesta revisão bibliográfica, especificidade das dependências químicas proce-
compreendemos ser fundamental haver um con- de do encontro do indivíduo com uma SPA em
tato prévio com o grupo a ser estudado, sem um determinado contexto sociocultural. O uso
ambicionarmos o trabalho de um etnógrafo, trei- indevido de drogas, como dito, constitui fenô-
nado para esses fins, mas ainda buscando nos meno de grande complexidade, não podendo ser
familiarizar com o grupo a ser pesquisado, sua reduzido a componentes biológicos, nem com-
linguagem e seu modo de funcionamento. Acre- preendido apenas a partir de aspectos da condu-
ditando que o conhecimento acerca de um grupo ta dependente ou da psicodinâmica envolvida,
se dá de forma constante, como uma constru- mas pensando que todos estes enfoques estão
ção, que inclusive só se faz possível com a figura presentes concomitantemente e se influenciam
do pesquisador inserida naquele grupo e atento mutuamente18. Sendo que, em função de tais es-
aos seus próprios movimentos internos, por isso pecificidades, a dependência química se faz pre-
propõe-se a aculturação e a ambientação. sente não apenas no campo da saúde, mas tam-
Entre as subáreas que compõe a saúde men- bém em campos como o jurídico e o sociológico.
tal, algumas se beneficiam particularmente da A dependência química, também é uma área
aproximação do objeto em função de especifici- envolta em preconceitos, e mesmo entre os espe-
dades relacionadas aos sujeitos, ao contexto e à cialistas há divergências nas formas de compre-
visão social do tema, entre outras. Neste sentido ender a problemática e atuar junto a essa popu-
o estudo de temas relacionados ao consumo de lação. Assim sendo, uma aproximação anterior
substâncias psicoativas merece particular atenção. do objeto de estudo, pode ser fundamental para
O uso de substâncias psicoativas, com maior minimizar a possibilidade de haver uma imposi-
repercussão social, é um fenômeno relativamente ção de um olhar contaminado com ideias pre-
recente. Embora o consumo de drogas psicoati- conceituosas, ao trabalho de pesquisa propria-
vas seja milenar, seu uso só se tornou um proble- mente dito.
ma social amplo, na maior parte dos países oci- Portanto, o olhar antropológico sobre a for-
dentais, a partir do quarto final do século XIX, ma de se fazer pesquisa em saúde, pode ser mui-
com a criminalização e a medicalização dessas to útil nos estudos em dependência de SPA. Ele
substâncias. Tal ocorreu inicialmente nos EUA, em favorece aqueles voltados para as relações entre
função de movimentos religiosos e sociais, e, prin- saúde e condições de vida, incorporando tam-
cipalmente, por interesses de ordem econômica15. bém a visão do sujeito, por exemplo, o usuário
A dependência de Substâncias Psicoativas de um serviço de saúde. Deve buscar um redi-
(SPA) é considerada pela Organização Mundial mensionamento dos limites da ciência, amplian-
de Saúde (OMS) como um transtorno mental e do a sua interação com outras formas de apre-
do comportamento. A Classificação Internacio- ender a realidade. Com isso, abre-se espaço para
nal das doenças (CID–10) e o Manual Diagnós- novas formas de construção científica que expli-
tico e Estatístico de Transtornos Mentais norte- quem a realidade19.
americano (DSM–IV) discriminam os principais Neste relato, mencionamos a experiência da
quadros relacionados ao uso de SPA, bem como ambientação e da aculturação da pesquisadora
a dependência, caracterizada de forma semelhante em ambulatório universitário especializado, vol-
em ambos, a saber: um desejo pronunciado de tado para tratamento de dependência de SPA.
tomar a substância; dificuldade em controlar o Fundamental foi conhecer intimamente a reali-
uso; estado de abstinência fisiológica; tolerância; dade de um serviço de saúde, a linguagem das
relegar a um segundo plano as necessidades, in- pessoas ali atendidas e as dinâmicas das relações
teresses e atividades prazerosas; e uso persisten- envolvidas a fim de se ter inserção suficiente para
te, não obstante os danos causados à própria o subsequente trabalho de pesquisa na aborda-
pessoa e aos outros; e por fim, um critério que gem qualitativa.
descreve um padrão intermediário entre uso e Buscamos com este trabalho relatar uma ex-
dependência que é o uso nocivo ou abuso16-17. periência de entrada em campo como fator de
Para a compreensão dos diversos aspectos facilitação do estudo das vivências de sujeitos
da dependência de SPA faz-se necessária a exis- dependentes químicos vistos em um serviço uni-
tência de um enfoque abrangente, que leve em versitário de especialidade psiquiátrica.
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Relato de vivências da pesquisadora frente Este período de ambientação e aculturação foi
à estruturação do campo uma fase preliminar à coleta de dados de uma
(percurso dos procedimentos) pesquisa qualitativa, marcada pela observação do
campo. A pesquisadora esteve presente no am-
Contextualizando a descrição do campo, o tra- bulatório uma vez por semana, no período da
balho aqui apresentado deu-se a partir da inserção manhã, durante seis meses consecutivos, até o
da pesquisadora, mestranda do Programa de Pós- início da pesquisa propriamente dita. Acompa-
Graduação em Ciências Médicas da Faculdade de nhou as discussões de casos clínicos conduzidas
Ciências Médicas da Unicamp, no serviço assisten- por equipe multiprofissional, e também frequen-
cial de seu hospital público de referência. O Ambu- tou seminários teóricos. Participando do ASPA, a
latório de Substâncias Psicoativas (ASPA) é parte pesquisadora teve ainda a oportunidade de diri-
do conjunto de ambulatórios psiquiátricos do gir um grupo informativo, a cada dois meses, sen-
Hospital das Clínicas de Campinas (HC/UNI- do responsável por discutir aspectos psicológicos
CAMP) e atende principalmente à população do da dependência de SPA em reuniões. Também
Município e Região. Os atendimentos são sema- conduziu um grupo motivacional misto, de fre-
nais para os habitantes locais, enquanto pessoas quência semanal. Nele, pacientes são atendidos
vindas de municípios distantes ou mesmo de ou- antes mesmo de passarem por consulta médica,
tros estados são atendidas para devida avaliação e sendo um momento de recepção, uma primeira
encaminhamento a serviços próximos à localidade escuta sobre o que os levou a buscar esta ajuda. É
de origem. O atendimento é integralmente gratui- desempenhada uma tarefa que, além de oferecer
to e a entrada no serviço é ágil, todos que procu- uma escuta para as angústias trazidas, visa forta-
ram o serviço são imediatamente inseridos no lecer a motivação para o tratamento.
ambulatório, já iniciando participação em grupos.
A inserção no ambulatório independe de encami- Reflexões acerca da experiência de
nhamentos via rede básica de saúde. ambientação e aculturação do pesquisador
A população ambulatorial é composta princi-
palmente por adultos que têm o diagnóstico de O primeiro ponto que merece reflexão trata-
dependência de álcool, tabaco e/ou drogas ilícitas, se do emprego dos conceitos de ambientação e
sendo frequente a existência de comorbidades clí- aculturação. Em pesquisa qualitativa, não lança-
nicas e/ou psiquiátricas. Os pacientes participam mos mão dos chamados pré-testes ou das entre-
inicialmente de um grupo de recepção onde se tra- vistas-piloto, cujo objetivo, equivalentemente, é
balha a motivação para o tratamento, sendo pro- assegurar-se de que os instrumentos de investi-
postas reflexões sobre as consequências da droga gação estão ‘regulados’ para a aplicação e a coleta
em sua vida, o real desejo de mudança, de deixar validadas visando o alcance dos objetivos do
ou de diminuir o uso de substâncias. Os pacientes empreendimento. Nas pesquisas qualitativas, nas
também são atendidos individualmente por médi- quais o pesquisador é o próprio instrumento, o
cos residentes de psiquiatria, para devida avaliação entrevistador deve adquirir experiência prévia em
clínica e possível farmacoterapia. Após estas eta- coletar os dados adequadamente planejados4.
pas, alguns grupos são oferecidos, conforme o in- Neste período, de ambientação e acultura-
dicado a cada pessoa. Para álcool e outras drogas, ção, pôde-se conhecer de perto, além do funcio-
há o grupo que trabalha técnicas de prevenção à namento operacional do serviço de ambulató-
recaída e o grupo no qual são fornecidas informa- rio, enquanto campo físico desenhado para a
ções sobre as drogas, sua constituição e efeitos a pesquisa, também o universo psicocultural da
curto e longo prazo, bem como o grupo de apoio população atendida e como se dão as relações
para familiares. Para tabagistas, há um grupo onde profissional-paciente; bem como aspectos rele-
se trabalha a motivação para o tratamento e o aban- vantes para serem aprofundados na investiga-
dono do hábito de fumar, e um grupo terapêutico. ção clínico-qualitativa.
Além dos médicos residentes, atuam nos atendi- Durante o processo de ambientação e acultu-
mentos: psicólogos, assistentes sociais, enfermei- ração é importante destacar como foi a experi-
ros e auxiliares de enfermagem; todos, de algum ência da inserção da pesquisadora no serviço. No
modo, vinculados à Unicamp, como funcionários, ASPA, foi bem aceita pelos profissionais respon-
estagiários ou voluntários. Lembrando que se tra- sáveis, sendo prontamente incluída nas discus-
ta de um hospital-escola e, assim sendo, os atendi- sões e atividades. Também não teve dificuldade
mentos geralmente são acompanhados por alu- em adaptar-se à rotina do ambulatório e com-
nos-observadores. preender a linguagem ali utilizada.
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Ribeiro DVA et al.

Os profissionais, particularmente os residen- cientes buscarem o tratamento e o que espera-


tes, demonstraram essa boa receptividade em vam receber no ambulatório. Seguia-se pelo ques-
relação à pesquisadora, principalmente ao pro- tionamento de como estava o envolvimento com
curarem sua opinião nos casos atendidos por ela a substância, quais as perdas acumuladas no
e também encaminhando pacientes para seu gru- decorrer do tempo de uso, quais objetivos de cada
po. Percebeu-se nos profissionais um real pro- um com o tratamento, que atitudes poderiam
pósito de ajudar seus pacientes, embora lidas- ajudá-los a atingir seus objetivos. No papel de
sem com a frustração das constantes recaídas. terapeuta, procurava ser empática com os pro-
As mais importantes reflexões e conclusões blemas trazidos pelo grupo, oferecia alguns es-
acerca do que era observado e experimentado clarecimentos sobre as substâncias e seus efeitos
em campo ocorriam, efetivamente, a posteriori. no organismo, e sobre os atendimentos ofereci-
Durante a vivência no ambulatório, a pesquisa- dos no ASPA, mas deixava claro que respeitaria
dora envolvia-se de tal modo com o serviço e a as escolhas individuais. No decorrer do processo
agitada rotina dos atendimentos, discussões e a terapeuta também passou a discutir com os
encaminhamentos, que se sentia como membro médicos possíveis encaminhamentos.
da equipe, não como mero observador. Este papel desempenhado pela pesquisadora
Verificou-se que para profissionais e pacien- foi bastante enriquecedor, pois dessa forma pôde,
tes uma nova ajuda, uma visão adicional sobre a ao mesmo tempo, estar mais próxima dos paci-
problemática atendida era bem-vinda. Não se entes e vivenciar um pouco os papéis exercidos
pode esquecer que se tratava de um ambulatório pelos profissionais envolvidos no serviço. Isso
dentro de um hospital-escola, onde as pessoas favoreceu uma maior compreensão das reais de-
tenderiam a ser mais receptivas a qualquer nova mandas e necessidades do ambulatório e da po-
informação. Todavia, podemos compreender que pulação nele atendida.
os profissionais demonstravam uma angústia Essa integração entre papéis assistenciais e de
semelhante à de seus pacientes, talvez identifica- investigação científica consiste em rica estratégia,
dos com eles em seus sofrimentos, no desejo de já que usa este meio disponível e a condição de
cessar a dor. Mas, por outro lado, talvez sentin- favorecimento com o fim de alcançar o objetivo
do a necessidade de dividir as angústias e os ques- específico da pesquisa. Pode-se considerar uma
tionamentos despertados pelos atendimentos. forma de se conhecer mais profundamente este
Conforme anteriormente descrito, a pesqui- campo, inclusive tendo um papel definido em um
sadora teve contato com os pacientes do ambu- grupo, com as mesmas características da popu-
latório em dois grupos, sendo que o motivacio- lação a ser pesquisada.
nal, por ser de frequência semanal e com menos Como vimos na literatura, é um elemento
participantes, foi o campo onde se fez a maior central em pesquisa de metodologia qualitativa a
parte das observações. Dessa forma, é impor- incorporação do campo, não partindo de um
tante compreender o processo deste grupo, no pressuposto dado, mas sim da construção de seu
qual a pesquisadora desempenhava um duplo sentido, do mergulho em suas singularidades21.
papel, o de observadora e o de terapeuta. Enquanto observadora do serviço em ques-
O que seria então motivação? Miller e Rollni- tão, a pesquisadora adotou uma postura mais
ck20 falam de motivação como um “estado de pron- ativa, não somente a de escuta, mas também par-
tidão para mudança”, que varia de pessoa a pes- ticipando e opinando a respeito dos casos aten-
soa, é mutável e influenciável. Portanto, um paci- didos. Ela pôde ter uma compreensão mais am-
ente pode estar mais ou menos pronto para a pro- pla, não apenas da dinâmica do serviço, mas tam-
posta do tratamento, mas, com um trabalho espe- bém sobre a de cada paciente ali atendido. Tal
cífico, pode-se favorecer a tal prontidão. Isto pode compreensão, mais global e profunda, favore-
ser alcançado através de algumas estratégias pro- ceu o trabalho terapêutico da pesquisadora no
postas pelos autores anteriormente citados, a sa- grupo motivacional que coordenava, tendo ob-
ber: oferecer orientação, remover barreiras, tido mais ferramentas para discutir as dificulda-
proporcionar escolhas, diminuir o aspecto desejá- des trazidas pelo grupo, descrever a eles o serviço
vel do comportamento, praticar a empatia, pro- ali oferecido e a importância do tratamento.
porcionar feedback, esclarecer objetivos e ajudar ati- Ocupando o lugar de observadora/terapeuta
vamente20. a pesquisadora pôde se aproximar do grupo, bus-
No referido grupo motivacional, conduzido cando tornar familiar o ambiente (ambulatório)
pela pesquisadora, buscava-se oferecer um mo- ainda parcialmente desconhecido, mas também
mento de reflexão inicial sobre o porquê dos pa- buscava descobrir não necessariamente pontos
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“exóticos” em meu familiar papel de terapeuta, mas ambulatório, decidiu-se o tema da futura pes-
perceber aquela realidade em toda sua complexi- quisa clínico-qualitativa. Percebeu-se a necessi-
dade. Como visto na teoria, o processo de “estra- dade de compreender o significado do tratamento
nhar o familiar” ocorre quando confrontamos in- ali oferecido para as pacientes mulheres. Inicial-
telectualmente, e mesmo emocionalmente, diferen- mente pensamos em estudar apenas uma popu-
tes versões e interpretações pré-existentes. Haja vis- lação de mulheres dependentes de cocaína e cra-
ta que “o que sempre vemos e encontramos pode ck, mas com o conhecimento prévio do serviço,
ser familiar, mas não é necessariamente conhecido percebemos que não haveria um número sufici-
e o que não vemos e encontramos pode ser exóti- ente de sujeitos para a pesquisa. Assim sendo,
co, mas, até certo ponto, conhecido”22. propusemos um estudo sobre as significações
Através desse recurso de observação partici- psicológicas da adesão ao tratamento de mulhe-
pante, constatou-se que o papel de terapeuta pre- res dependentes de SPA.
cisa ser flexível, ora acolhendo o sofrimento, ora
ensinando conceitos (como efeitos e consequên-
cias do uso de substâncias), ora motivando, ora Considerações finais
esclarecendo ao paciente uma realidade que ele
não consegue ou não quer ver. Vivenciou-se ain- A experiência de ambientação e aculturação foi
da o sentimento de frustração em situação de entendida como momento importante para um
abandono do tratamento, ou recaídas dos paci- trabalho de investigação clínico-qualitativo, de-
entes, bem como a necessidade do terapeuta bus- vendo ser indicado como fase habitual em novas
car em si mesmo a referida “motivação” para pesquisas que utilizem a mesma metodologia nos
transmitir ao paciente. settings clínicos. No tocante à ambientação, per-
Com relação às observações da população cebemos que um serviço ambulatorial, dentro
atendida pelo ASPA, destaca-se a importância de um hospital-escola, possui particularidades
dada pelos pacientes ao apoio sentido por parte que o diferencia de outros serviços especializa-
da equipe técnica e do grupo. Na pesquisadora dos em dependência. Pôde-se conhecer as limita-
ficou a impressão de que, em um espaço no qual ções e as vantagens de um serviço como este, bem
os pacientes pudessem falar livremente de seu como perceber que a população que busca o ASPA
sofrimento frente à substância e ouvir relatos de também tem suas condições. Quanto à acultura-
companheiros que vivenciam situações seme- ção, esta se mostrou importante para facilitar a
lhantes, seria uma ajuda fundamental. aproximação da pesquisadora das mulheres a
Percebeu-se ser frequente o abandono do tra- serem pesquisadas, como por exemplo, ao co-
tamento, sendo grande a rotatividade no grupo. nhecer e utilizar a linguagem verbal e gestual da
Muitos retornavam algum tempo depois e rela- referida população, que em parte servem para
tavam os motivos do abandono. Verificou-se que criar uma cultura própria de comunicação (que
tais motivos passavam por processos de recaída por vezes exclui o profissional) e por outro lado,
do uso, porém, foi constatado também o aban- uma vez entendida, permite uma maior compre-
dono em função da melhora do paciente, que ensão de sentidos.
interrompia o tratamento e seguia reconstruin- A pesquisadora registrou, já no primeiro con-
do sua vida com a família e o trabalho. Havendo tato com a população do ASPA, a importância
o retorno ao ambulatório em um momento pos- de se oferecer uma recepção cuidadosa a pacien-
terior quando novamente sentiam que precisa- tes que procuram tratamento em função do uso
vam de ajuda. de drogas, a fim de ajudá-los a superar medos de
Outro ponto rapidamente observado, foi que exporem-se e de serem julgados como estão ha-
no grupo motivacional conduzido pela pesqui- bituados. Demonstraram a necessidade de serem
sadora, havia uma quantidade maior de homens ouvidos e auxiliados na melhor compreensão de
do que mulheres (cerca de sete homens para cada seus problemas.
mulher), sendo mais frequente o abandono por A partir da vivência de aculturação e ambien-
parte das mulheres. Percebeu-se que estas intera- tação da pesquisadora, verificamos um aspecto
giam menos nos grupos, falando quando esti- relevante a ser bem estudado que é o perfil de
muladas e demonstrando certo enfado com as atitudes diferentes entre os gêneros, notadamen-
falas dos companheiros homens. te conhecer as especificidades de um atendimen-
Devido às diferenças constatadas durante o to necessário a mulheres. Por conseguinte, a vi-
processo de aculturação e ambientação entre a vência da fase preliminar à coleta de dados em
população masculina e feminina atendida no campo de pesquisa confirmou a relevância cien-
1834
Ribeiro DVA et al.

tífica de se empreender o estudo das representa- Colaboradores


ções psicossociais e significações simbólicas so-
bre a adesão de mulheres ao tratamento especi- DVA Ribeiro participou pesquisa em campo, dis-
alizado para dependência de SPA. cussão e redação do artigo. RCS Azevedo e ER
Turato orientaram a pesquisa de campo e parti-
ciparam das discussões e redação do artigo.

Agradecimento

Agradecemos a Capes pelo financiamento da pes-


quisa envolvida no estudo descrito neste artigo.

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