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O MUNDO DA GLADIATURA NA ROMA ANTIGA: BASES

PARA A COMPREENSÃO DE UM FENÓMENO COMPLEXO

Editora Leya ou Estampa

1
INTRODUÇÃO

À primeira vista, o mundo dos gladiadores parece bem conhecido. De facto, não
faltam estudos históricos, nem películas cinematográficas sobre o tema, acessíveis ao
grande público. Basta evocar o nome de Roma para que os combatentes da arena
assomem rapidamente ao nosso imaginário, constituindo um dos elementos essenciais
dessa civilização. No entanto, a visão que a maioria da gente tem sobre esta matéria é,
em grande parte, falseada ou distorcida. Em geral, as abordagens sobre os gladiadores
caracterizam-se por um certo distanciamento.

Desde o BaixoImpério romano, o fenómeno gladiatório conheceu uma série de


críticas de autores cristãos, comportando quase sempre juízos de ordem moral, mais ou
menos explícitos, o que impede uma apreciação do carácter concreto desses combates.
Esta visão deturpada perdurou até à Idade Contemporânea, aparecendo, por exemplo,
na obra de reputado historiador Jérôme Carcopino, La vie quotidienne à Rome à
l'apogée de l'Empire (Paris, 1939): no capítulo dedicado aos espectáculos, o historiador
debruçou-se sobre a gladiatura em último lugar, como se o fizesse contra a própria
vontade. O título desse capítulo ilustra, aliás, as reticências e os preconceitos do autor,
que, em vez de abordar os «combates de gladiadores», se centrou no «anfiteatro e as
suas matanças»: a introdução dessa parcela mostra uma incompreensão total do
fenómeno gladiatório:

«Porque enfim, ao penetrar nas arenas depois de quase 2000 anos de cristianismo, temos a
impressão de entrar no inferno da Antiguidade. Por honra dos Romanos, quereríamos arrancar
do livro da sua história esta folha em que um sangue indelével macula e apaga a imagem de uma
civilização de que eles criaram as palavras significativas e cuja realidade viva propagaram.
Reprovar não é bastante»1.

A gladiatura é um fenómeno incómodo, perturbador, mas não podemos arrancar uma


página tão importante da civilização romana, se desejarmos compreender tal como ela
foi e não como deveria ter sido. De facto, durante considerável espaço de tempo, os
estudiosos do meio académico evitaram manifestar excessivo interesse pelo «mundo»
dos gladiadores e dos anfiteatros: talvez alguns até ficassem incomodados e
desconcertados perante a tremenda popularidade que esses espectáculos sangrentos
gozaram, fascinando os Romanos, e continuou a suscitar curiosidade e interesse em
muita gente, já em plena Idade Contemporânea.

No século XIX, empreenderam-se as primeiras iniciativas académicas mais rigorosas


e sistemáticas, que se materializaram no exame e na compilação de elevado número de

1 Consultámos a versão portuguesa: A vida Quotidiana em Roma no Apogeu do Império, Lisboa, s.d., p. 281.

2
documentos literários e epigráficos relativos à gladiatura, para além de uma série de
outros relativos à sociedade e cultura romanas: nesta árdua e morosa tarefa, destacou-
se Ludwig Friedländer com a volumosa obra em quatro volumes, Darstellungen aus
der Sittengeschichte Roms in der Zeit von August bis zum Ausgang der Antonine 2

(1862-1871) e, igualmente, Georges Lafaye e outros, em verbetes elaborados para o


Dictionnaire des Antiquités grecques et romaines d'après les textes et les monuments
(9 volumes, 1896-1911), sob a direcção de C. Daremberg, E. Saglio e M. Pottier.

No século XX, as abordagens de reputados historiadores como Michael Grant, Roland


Auguet3 e C. W. Weber4 sobre a gladiatura viram-se afectadas, como sucedeu com J.
Carcopino, não tanto pela dependência das colectâneas documentais existentes, mas
sobretudo por uma clara antipatia ou aversão sobre este importante aspecto da cultura
romana: na primeira edição do seu pequeno livro versando os gladiadores, M. Grant
censurou claramente os combates gladiatórios, vendo-os como uma das manifestações
mais horrendas e sanguinárias que o mundo alguma vez conheceu 5. Em 1989, Chester
Starr advertiu para a necessidade de se adoptar uma nova atitude historiográfica, ao
dizer que «parece haver aqui uma ortodoxia que não se deve desafiar [….] Sem, todavia,
admirar o derramamento de sangue, merecem ser estudados o recrutamento, o treino e
a organização da profissão gladiatória, como reflexos do engenho e da eficácia da
estrutura administrativa romana»6.

Os sentimentos de reprovação e preconceito relativamente aos munera explicam, pelo


menos parcialmente, a razão por que somente nas últimas décadas se compulsaram de
maneira sistemática as vertentes conectadas com os jogos gladiatórios, o que,
aparentemente, marcou o levantamento e estudo circunstanciado dos anfiteatros.
Porém, esta propensão tem vindo a ser contrariada em artigos e livros recentes.
Atentemos ao que escreveu Helena P. de Abreu de Carvalho: «A quantidade
considerável de fontes sobre o assunto tem estimulado abordagens muito diversas de
que são exemplo alguns trabalhos sobre a origem e o desenvolvimento dos munera
gladiatoria, teses sobre o aparecimento e evolução do anfiteatro ou a publicação de

2«Representações da História dos Costumes Romanos desde o tempo de Augusto até ao fim dos Antoninos»

3 Cruauté et civilisation: les jeux romains, Paris, 1970, p. 10: «a sua aparente gratuidade incita-nos, pouco a pouco, a
atribuir a violência que nos revelam a uma crueldade exclusiva dos romanos, prejulgamento que nem sequer um
contacto estreito com a Antiguidade pode corrigir».

4 Panem et circenses, Massenunterhaltung als Politik im antiken Rom, Düsseldorf/Viena, 1983.

5 Gladiators: The Bloody Truth, Harmondsworth/Londres/Nova Iorque, Penguin Books (1ª edição, 1967), 2000, p. 105:
«The constant recurrence of this unrestrained blood-thirstiness throughout long centuries is one of the most appalling
manifestations of evil that the world has ever known».

6 Past and Future in Ancient History, 1989, p. 63.

3
corpora epigráficos. A diversidade de abordagens tem presente uma mesma
necessidade: a tendência para apreender os jogos, não como fenómeno lúdico isolado,
mas como um conjunto complexo de representações, espelho da ordem social e da sua
manutenção»7.

Para a compreensão desta faceta sombria dos Romanos, não devemos contemplar os
gladiadores a partir de uma posição distante, superior, nem por eles alimentar uma
mescla de repugnância, tristeza e comiseração. Pelo contrário, é necessário empreender
um esforço imaginativo, aliado a um rigoroso processo de reconstituição histórica
documental, a fim de nos «introduzirmos» num ludus, a caserna onde viviam e se
treinavam os membros de uma familia gladiatoria, «visitando» também as oficinas
onde eram manufacturadas, reparadas e aperfeiçoadas as suas armas, para
responderem às expectativas de um público cada vez mais exigente, e servirem,
obviamente, de úteis instrumentos letais para combatentes que se tornaram cada vez
mais profissionais. Mais: urge «acompanharmos» os gladiadores até à arena, desde a
pompa (o desfile que marcava o começo do espectáculo), que aguçava o entusiasmo da
multidão, até ao climax, o momento dramático em que, depois do combate, o vencido
depositava, na plena acepção do termo, o seu destino nas mãos do editor e dos
espectadores.

A primeira vertente que compulsámos incidiu na génese e na evolução do fenómeno


gladiatório, dos primórdios ao seu declínio e subsequente desaparecimento, tentando
rastrear as suas várias fases e características. Em apreciável número de obras, esta
matéria não mereceu grande desenvolvimento, razão pela qual decidimos abordá-la
com bastante minúcia e rigor. Procurámos também identificar os diversos tipos de
gladiadores, segundo critérios minimamente fiáveis. Não há muito, Filippo Coarelli
alertou para a necessidade de se levar a cabo tal tarefa: «O estudo das diferentes
categorias de gladiadores […] constitui um tipo de exercício de carácter antiquarista
que nunca desembocou em soluções definitivas ou, pelo menos, que tenham sido
aceites por todos […] Na verdade, a confusão quase inextricável que reina neste
domínio particular de pesquisa é, em larga medida, resultado, como amiúde acontece
em tais casos, de uma abordagem obstinadamente “especializada” na divisão
tradicional do trabalho entre disciplinas diferentes e, todavia, vizinhas» 8.

7 Helena Paula de Abreu de Carvalho, «Os jogos de gladiadores no mundo romano», Rituais e Cerimónias, Revista de
História das Ideias, Instituto de História e Teoria das Ideias da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, 15
(1993), p. 8.

8 F. Coarelli, «L'armamento e le classi di gladiatori», in A. La Regina (ed.), Sangue e arena, catálogo da exposição,
Nápoles, 2001, p. 153 (153-173): «Lo studio delle varie categorie di gladiatori […] costituisce una tipica esercitazione di
carattere antiquario, che non è mais sboccata su soluzione definitive o comunque acettate da tutti […] A bem vedere, la
confusione quasi inestricabile che regna in questo particolare settore della ricerca è in gran parte il risultato - come
spesso in tal casi – di un aproccio testardamente “specilistico” e del conseguente rifiuto di farsi carico fino in fondo

4
Os Romanos não foram avaros a produzir representações artísticas sobre a gladiatura
(nos mais variegados suportes), fenómeno que tanto os cativou. Estas imagens, pelo
menos as executadas em suportes imperecíveis como o metal, a pedra ou a terracota,
chegaram até nós em grande número. No entanto, a iconografia gladiatória tradicional
fundamenta-se muitas vezes nos mesmos documentos. Estas imagens antigas foram,
por outro lado, amalgamadas com uma documentação moderna de inspiração
arqueológica, como, por exemplo, o célebre quadro Pollice verso do francês Jean-Léon
Gérôme, pintado em 1872, que contribuiu para criar uma visão deturpada da realidade
gladiatória. Ademais, muitas figurações plásticas romanas de combates de gladiadores
têm sido utilizadas por considerável número de historiadores apenas a título de meras
ilustrações em livros, sem uma prévia análise e interpretação crítica das mesmas. Se
prestarmos a devida atenção, essas imagens ainda são mais numerosas do que se
imaginava. As cenas de porfia correspondem quase sempre a uma realidade técnica,
mas estão longe de assentar só num conjunto de atitudes estereotipadas e repetitivas.

Neste sentido, é imprescindível dispor de um amplo corpus iconográfico, mesmo que


não constitua uma compilação exaustiva. O acervo em que nos baseámos não significa
um mero repertório genérico de objectos ligados à gladiatura, nem um catálogo das
lucernas (lamparinas de azeite) decoradas e de relevos, estatuetas ou mosaicos que
figuram gladiadores. Este corpus não obedece ao propósito de coligir «os gladiadores»
entendidos como um todo informe, já que se teve o cuidado de o organizar através do
importante critério das armaturae, isto é, os vários tipos de gladiadores, sendo desta
maneira que os Romanos os classificavam e diferenciavam a partir do Principado de
Augusto em diante. Assim, uma lucerna que comporte uma representação de um
confronto entre um thraex e um murmillo não consiste apenas numa ocorrência, mas
em duas, já que a decoração do artefacto proporciona um exemplo de um thraex e
outro de um murmillo.

Paralelamente ao acervo iconográfico, importa fazer um ponto da situação sobre os


dados epigráficos associados à gladiatura. Aqui, também, o corpus epigráfico não se
fundamenta apenas nas menções ao termo gladiator. À semelhança do conjunto de
elementos icónicos, o qual vem completar, só as ocorrências atestadas de um nome
próprio relacionado (pela inscrição ou pela imagem que a acompanha) a uma
armatura são tidas em conta. A partir daqui, podemos determinar a frequência com
que surge este ou aquele tipo de gladiador mediante dois conjuntos de fontes distintas
que usualmente os estudiosos correlacionaram insuficientemente. Afora as armaturae,
o corpus epigráfico é um conjunto documental que proporciona informações preciosas,

anche delle testimonianze divisione del lavoro, a discipline diverse, anche se confinanti».

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tais como a idade, a origem, o número de vitórias e outros dados referentes a uma série
de gladiadores.

O conjunto de testemunhos reunidos serve para uma aproximação estatística prudente


a questões concretas respeitantes à gladiatura, com base em recentes descobertas
arqueológicas, colectâneas documentais e numa série de elementos inventariados por
historiadores e arqueólogos. Tendo como esteio a documentação epigráfica (mais de
450 referências a gladiadores) e, sobretudo, um vasto acervo iconográfico (1524
representações plásticas),compreende-se melhor a realidade dos combates gladiatórios,
assim como a gladiatura no seu todo. Graças à análise crítica destas fontes, à
confrontação entre as mesmas e aos contributos facultados pela chamada «arqueologia
experimental»9, é exequível rever a percepção histórica da gladiatura com acrescida
profundidade. A própria releitura dos textos literários antigos, mediante uma
abordagem de enfoque fundamentalmente técnico, permite captar melhor o que os
contemporâneos nos transmitem sobre este fenómeno. A par desta aproximação
revisionista, o inventário das fontes icónicas oferece a possibilidade de classificar uma
massa documental mais fértil e precisa do que até há bem pouco tempo se supunha.

Na presente obra, reservamos menos espaço aos caçadores e combatentes de animais


das venationes (venatores e bestiarii), bem como aos condenados às feras, embora lhes
dediquemos comentários em dois capítulos deste livro. Estes espectáculos são, muitas
vezes, confundidos com os combates de gladiadores, apesar de possuírem uma natureza
muito diferente. O motivo para esta confusão entre gladiatura, caçadas e execuções
públicas relaciona-se com o facto de estes três géneros de «representações» terem lugar
na arena a partir de meados do século I a. C. Se pusermos de parte elementos dispersos
como um medalhão de aplique, um pormenor dos mosaicos de Zliten, na Líbia, e um
outro do mosaico que se conserva na Galleria Borghese, em Roma, as cenas a descrever
os criminosos condenados à morte na arena (designados como damnati ou noxii) sendo
supliciados não parecem ter encantado especialmente os Romanos. Isto explica-se pela
diferença fundamental existente entre a superioridade de um combate entre dois

9 Não se trata de simples reconstituições históricas. A arqueologia experimental busca a compreensão científica das
técnicas antigas. Na Alemanha, em Itália, Reino Unido e França, as investigações neste domínio específico têm sido
empreendidas, respectivamente, por Marcus Junkelmann (membro da Familia Gladiatoria Pulli Cornicinis), Dario
Battaglia (ligado ao grupo Ars Dimicandi), Dan e Susanna Shadrake (fundadores da associação Britannia), por Brice
Lopez e Éric Teyssier (pertencentes à Acta expérimentation) e François Gilbert (presidente do grupo Pax Augusta).
Trata-se de grupos compostos por historiadores e desportistas, tanto profissionais como amadores, especializados no
estudo de antigas modalidades de combate, alguns dos quais também realizaram pesquisas aprofundadas sobre o
exército romano. Através de numerosos testes experimentais, foi possível compreender mais a fundo como se
desenrolavam na prática os combates de gladiadores, encarando-os numa perspectiva mais próxima da realidade
histórica, estudando-se meticulosamente os equipamentos e as técnicas empregues pelos gladiadores nas pugnas. Neste
ramo inovador da arqueologia «viva» dá-se igualmente grande importância ao exame crítico dos achados arqueológicos,
bem como das fontes literárias iconográficas e epigráficas. No entanto, há que usar de cautela na total aceitação das
conclusões atingidas nestes testes experimentais, uma vez que, a despeito do mérito daqueles que os realizam,
significam recriações artificiais de práticas antigas efectuadas por pessoas com hábitos de vida totalmente diferentes dos
que tinham os gladiadores de antanho.

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homens dominando perfeitamente técnicas elaboradas e o fraco valor visual de homens
indefesos sendo atirados às feras (damnatio ad bestias) ou mortos por um gládio
(damnatio ad gladius)10.

Tanto a nível simbólico como visual, foram os gladiadores que mais público atraíram,
fascinando verdadeiramente as multidões, juntamente com as corridas de quadrigas no
Circo. É certo que, durante algum tempo, se registou uma certa ambiguidade ou
polivalência entre gladiadores e caçadores. No entanto, desde o fim do século I a. C., as
imagens diferenciam radicalmente os venatores e bestiarii dos gladiadores. Doravante,
os caçadores surgiriam quase sempre representados a envergar túnicas decoradas e
munidos de uma lança como sua única arma.

Depois de esclarecido o problema das identificações, é menos difícil abordarmos a


questão dos equipamentos gladiatórios, encarando-os, acima de tudo, como objectos
técnicos consecutivamente aperfeiçoados e providos de temível eficácia. Fabricadas por
profissionais, as armas ofensivas e defensivas eram postas ao serviço de técnicas de
combate bem concretas, o que convirá examinar em pormenor, a fim de percebermos
que significados as mesmas podiam assumir à luz da mentalidade dos Romanos. De
facto, a análise atenta das armaturae permite realçar a sua estabilidade técnica, ao
rastrearmos o seu sucesso relativo. É, pois, importante averiguar que imagem tais
combates projectavam, fosse no período dos Júlio-Cláudios, Flávios ou dos Antoninos.

Nos eventos gladiatórios, ainda que a morte tenha sido menos sistemática do que
diversos autores sustentaram, ela esteve invariavelmente presente na arena. Nos casos
em que ela se arriscava a «ser dada», e mais ainda quando ela era efectivamente
oferecida ao público, o veredicto final dado pelo editor significava o corolário de um
processo que principiara com o ingresso de um homem nesta carreira tão perigosa.
Aqui, de novo, as representações plásticas do instante fatal, bem como a sua frequência,
evoluíram consoante os períodos, daí que requeiram ser exploradas com prudência e
discernimento.

Por último, tentámos não descurar os aspectos puramente utilitários da gladiatura, de


ordem económica e logística. Sem nos apartarmos demasiado da arena e do ludus,
apontamos para algumas pistas que podem completar a aproximação essencialmente
política e social que, em regra, os estudiosos valorizam no estudo da gladiatura. Ao
abordarmos objectivamente, os gladiadores, consegue-se proceder a uma reavaliação
deste fenómeno plurissecular. Através da utilização de novos modelos operatórios na
10 As execuções tinham lugar aquando do meridianum spectaculum (ou ludi meridiani), evento que se desenrolava do
meio-dia até aproximadamente às 15h 30 m, a seguir à venatio matinal e antes dos combates gladiatórios (que duravam
até ao cair da noite), que tinham lugar. A partir o Principado augustano, um munus comportava habitualmente estes
três espectáculos distintos, ocupando todo o dia.

7
investigação, as vertentes socioeconómicas da gladiatura, no conjunto do mundo
romano, ganham mais inteligibilidade, não se vendo ela somente reduzida à sua
dimensão ideológica e moral.

CAPÍTULO I - A génese da gladiatura: desde os primórdios até à


Revolta de Espártaco. Os primeiros munera em Roma. A criação das
armaturae «étnicas»

Origines gladiatorum

Apurar as origens do fenómeno gladiatório em Roma é uma tarefa que se afigura


deveras complexa, quase impossível. Se nos reportarmos aos duelos entre combatentes,

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treinados e armados com panóplias muito específicas, para oferecerem às massas das
cidades espectáculos sangrentos, com regras precisas e travados num espaço
acondicionado para o efeito, como um forum, ou construído ex professo para os
munera, o anfiteatro, então a resposta dá a impressão de constituir algo quase linear:
estamos perante um tipo de evento especificamente romano que se desenvolveu
verdadeiramente na etapa final da República, durante o século I a. C. e se codificou no
tempo de Augusto, por volta da mudança para a nossa era. Contudo, se tentarmos
descobrir as raízes mais profundas destes espectáculos, então pisamos terreno muito
mais movediço.

Os mais ambiciosos estadistas romanos, como Júlio César entre outros, ofereceram
porfias singulares celebradas como rituais familiares de cariz funerário (cf. infra), mas,
ao mesmo tempo, converteram-nos em mais um meio de promoção política. Ao longo
do processo, o munus transformou-se em ludus, dever e serviço prestado para com o
defunto que se metamorfoseava num espectáculo 11
. Quanto os próprios romanos
buscaram mergulhar na génese dos munera experimentaram muitas dúvidas e
incertezas, atribuindo a origem dos mesmos tanto a Etruscos, como a Samnitas ou a
Campanianos.

Efectivamente, se o espectáculo gladiatório no anfiteatro é um fenómeno tipicamente


romano, o mesmo não se poderá dizer em relação ao combate até à morte (forçado ou
não), em que se derramava sangue em honra do falecido para propíciar o seu espírito, o
que se costuma enacarar como a primeira forma da gladiatura. Os Romanos praticaram
este acto ritual por sua própria conta, ou porque o tomaram de empréstimo a vizinhos
(como os Etruscos ou os Campanianos), mas cabe enfatizar que o mesmo também foi
característico de outros povos que só entraram em contacto com Roma mais tarde.Para
citarmos um exemplo mais próximo, na cultura ibérica, o hábito de homens lutarem até
à morte em honra de um defunto de alto estatuto parece ter sido bem conhecido. Vale a
pena mencionar o caso narrado por Tito Lívio (28.21), ocorrido em 206 a. C., durante a
Segunda Guerra Púnica: Cipião, o futuro Africano, decidiu celebrar jogos funerários em
honra de seu pai e tio, que haviam perecido numa contenda, na cidade de Carthago
Nova (Cartagena, Espanha), recém-conquistada aos Cartagineses (cf. infra). No trecho
sobre este episódio, vê-se que, para um nobre romano do século III, os duelos
gladiatórios constituíam um dever (munus) mas, como Lívio escrevia acerca de um
acontecimento que teve lugar duzentos anos antes, viu-se compelido a explanar aos
seus leitores romanos imperiais que aqueles «gladiadores» não tinham nada a ver com
os coevos, nem no seu nível social, nem na sua motivação.
11 Fernando Quezada Sanz, «En honor del difunto: el origen de la gladiatura en Roma», Desperta Ferro/Arqueología
& Historia, 14 (Agosto-Septiembre 2017), p. 6.

9
Por outro lado, esse fragmento textual utiliza-se usualmente como prova de que os
duelos eram conhecidos pelos Iberos para várias situações, como, por exemplo, a de
homenagear um grande chefe, mas Lívio não se mostra explícito neste aspecto: poderia
suceder que os líderes hispânicos tivessem adoptado um hábito romano, mas
acrescentando elementos diferentes, auctótones12. Há, pelo menos, outra passagem
literária que demonstra a existência do munus funerário gladiatório na Hispânia, sem
intervenção romana, o celebrado em honra de Viriato, que Apiano descreveu (Iber. 75).
Diodoro, por seu turno, especifica que neste funeral participaram duzentos pares de
combatentes (33.21 a).

A ideia de uma eventual «gladiatura» hispânica, bastante anterior ao contacto com os


Romanos, tem registado desenvolvimentos na investigação académica: J. M. Blázquez
Martínez 13, S. Montero 14, C. Aranegui, M. Bendala Galán 15, R. Olmos Romera 16
e J.
González Navarrete , entre outros, consideraram ter encontrado a prova em imagens
17

esculpidas em monumentos de grandes dimensões que se interpretaram como


mortuários, haja em vista o caso de Porcuna, em Jaén (século V a. C.) ou o de Osuna
(século II a. C.). O mesmo se aplicará, porventura, a muitas cenas de pelejas pintadas
nos vasos ibéricos de Lliria (Valência), datados de finais do século III a. C., ao vaso
decorado de Archena, estudado por R. Olmos Romera, e um grupo de esculturas
descoberto em Obulco, onde estão representados dois guerreiros já no fim da porfia,
um tombado no solo, sem vida ou moribundo, aos pés do vencedor, objecto da atenção
por parte de M. Almagro Basch18.

A presença (nos relevos de Osuna ou em alguns vasos de Lliria) de músicos a tocar


instrumentos de sopro adiciona peso a uma interpretação simbólica, ritual e até
12 Como referiu Maria Engracia Muñoz Santos, «É algo que ainda nos escapa saber como se produziu a fusão dos
costumes entre a tradição ibérica e a itálica», mas, devido aos antecedentes, ela seria de fácil adopção entre os indígenas,
habituados a lutas do mesmo género: cf. «Anfiteatros y ludi gladiatorii: Las fuentes clásicas e Hispania como ejemplo.
Una aproximación», Saitabi. Revista de la Facultat de Geografia i Historia, 62/63 (2012-2013), p. 33.

13 Cf. «Posibles precedentes prerromanos de los combates de gladiadores romanos en la Península Ibérica», in El
Anfiteatro en la Hispanía Romana. Colóquio Internacional, Mérida, 26-28 de noviembre de 1992, Mérida, Junta de
Extremadura, Consejería de Cultura y Patrimonio, 1994, pp. 31-37.

14 J. M. Blázquez Martínez e S. Montero, «Ritual funerario y status social: los combates gladiatorios romanos en la
Península Ibérica», Veleia 10 (1993), pp. 71-84.

15 «Virtus y pietas en los monumentos funerarios de la Hispanía Romana», in D. Vaquerizo (ed.), Espacios y usos
funerarios en el Occidente Romano, Córdova, 2002, pp. 67-86

16 «Posibles vasos de encargo en la cerámica ibérica del Sureste», Archivo Español de Arqueología, 60 (1987), pp. 21-
42.

17 Escultura ibérica del Cerrillo Blanco (Porcuna, Jaén), Jaén, Diputación Provincial de Jaén, 1987.

18 «Los orígenes de la toréutica ibérica», Trabajos de Prehistoria, 3 (1979), pp. 173-212.

10
«gladiatória», numa acepção lata. Seja como for, cabe destrinçar essas porfias
funerárias da monomachia, o combate singular, documentado nas fontes escritas e
iconográficas, e pode ter muitas outras causas. Quanto ao enfrentamento opondo
Corbis a Orsua, no espectáculo organizado por Cipião, monomachia19 e munus
juntaram-se num só evento.

Por seu turno, segundo Possidónio, citado por Ateneu (Deipn. 4.154A), entre os Celtas
também se travavam duelos no decurso de banquetes, enquanto modalidade de
diversão mas que, às vezes, culminavam na morte de um dos guerreiros. Neste
contexto, não se afirma que isto acontecesse no seio de um conteúdo funerário, mas é
possível que se efectuassem lutas em situações deste género.

Assim, o combate gladiatório funerário não foi exclusivo dos Romanos ou de outros
povos itálicos entre os séculos V e II a. C., dado que há elementos que deixam supor que
constituiu uma prática em numerosas culturas circun-mediterrânicas, onde os ritos
fúnebres assumiam certa complexidade e havia aristocratas guerreiros e formas de
clientela militar. Até na Ilíada, cuja configuração final se situa em meados do século
VIII a. C., encontramos duelos singulares associados ao funeral de Pátroclo, os quais,
em função do que dissemos, se podem qualificar de «gladiatórios». Aquiles não só
sacrificou doze prisioneiros troianos como carneiros (Il. XXIII,173-182), organizando
corridas de carros puxados por cavalos e um «doloroso pugilato» (ibidem,
XXIII,659ss.), mas também ofereceu as armas do troiano Sarpédon como prémio para
os guerreiros que iriam defrontar-se numa peleja. O mais vetusto testemunho literário
de um «duelo em armas», organizado em honra de um defunto ilustre, encontra-se no
Canto XXIII da Ilíada: aqui, Homero descreve um combate ritual entre Ajax e
Diomedes, armados com escudos e lanças 20
. Este confronto, que se viu interrompido
antes de haver derramamento de sangue, teve lugar aquando do funeral de Pátroclo. O
duelo entre os dois guerreiros não constituiu um acto isolado, tratando-se do ponto alto
de um conjunto de provas que se desenrolaram antes e depois dessa peleja. Cada uma
das provas que Aquiles organizou tinha prémios para recompensar os vencedores.

Tais competições, em que os melhores campeões participavam em corridas de carros,


corridas a pé, no arremesso do peso ou do dardo, bem como no pugilato e na luta
(pale), correspondiam todas as modalidades olímpicas. Só o duelo com armas escapava
à esfera desportiva, afirmando-se como um confronto ritual particularmente intenso. O

19 J. García Cardiel, «La monomachia celtibérica. Vida y muerte al final de la Historia», in C. del Cerro, G. Mora, J.
Pascual, E. Sanchez Moreno (eds.), Ideología, identidades e interacción en el Mundo Antiguo (CERSA), Madrid, UAM,
2012, pp. 579-601.

20 A. Bernet, Les Gladiateurs, Mesnil-sur-l’Estrée, Perrin, 2002, p. 22.

11
trecho da Ilíada pode encarar-se, em certo sentido, como uma «certidão de
nascimento» literária da gladiatura21. Neste combate funerário, ninguém obrigou os
guerreiros a lutar, pelo contrário, participaram de livre vontade, cada um buscando
ganhar os prémios propostos por Aquiles, como aparecer como o campeão incontestado
da sua respectiva facção. Além disso, se o objectivo consistia em fazer verter o
«primeiro sangue» (ou seja, até à primeira efusão de sangue), a morte era certamente
encarada como uma possibilidade pelos dois oponentes de «olhares terríveis»,
impacientes por combater. Foi justamente a probabilidade de um desfecho fatal que
levou à cessação do combate: não por vontade de um dos protagonistas, mas através da
intervenção do público, que constituía, juntamente com o organizador dos jogos
(Aquiles), um importante actor no confronto.

M. Poliakoff22 recolheu exemplos de contendas relacionadas com jogos funerários


ainda mais recuados, nos tempos micénicos, como a pintura de um larnax de Tanagra,
mas o estudioso teve renitência em associar o rito funerário com a origem dos
desportos de combate no mundo grego.

As características do duelo entre Ajax e Diomedes remetem para várias realidades


essenciais da gladiatura. Seja como for, há que ter prudência e evitar assimilar todo e
qualquer duelo a um combate de gladiadores. Com efeito, o combate singular «pré-
hoplítico», idêntico ao dos Horácios e Curiácios 23, representava um ideal aristocrático,
o qual, todavia, nos séculos V e IV a. C. veio a ser proibido. Não obstante a interdição,

21 É. Teyssier, La mort en face. Le dossier Gladiateurs, Arles, Actes Sud, 2009, p. 13; cf. Homero, Il. XXIII, 797-825:
«Então o filho de Peleu depôs uma lança de longa sombra, que trouxera para a arena, um escudo e um elmo, armas de
Sarpédon, que Patróclo lhe arrebatara. E disse, de pé, entre os Argivos: “Para estes prémios, convidamos dois homens-
os melhores- revestidos das suas armas e empunhando o bronze que trespassa a carne, a medirem-se diante do círculo
dos Aqueus. Ao primeiro que, investindo, tocar a bela pele e atingir a carne o sangue negro através das armas, darei esta
esplêndida espada cravejada de prata e vinda da Trácia, que tirei a Asteropeu. As outras armas serão levadas em
conjunto pelos dois, e nós servir-lhes-emos uma excelente refeição na minha tenda”. Assim falou. Levantaram-se então
o grande Ajax Telamoníada e o robusto Diomedes Tidida. Ambos armados, cada qual a seu canto, foram para o centro,
ansiosos por combater e lançando olhares terríveis; e a admiração apoderou-se de todos os Aqueus. Marcharam um
contra o outro e acercaram-se, e três vezes se arrojaram de perto. Então, Ajax bateu no escudo bem equilibrado do
adversário, sem chegar à pele, que estava protegida pela couraça. O Tidida [filho de Tideu] ameaçava incessantemente o
pescoço de Ajax, com a ponta da sua lança reluzente, por cima do grande escudo. Então, receando pela vida de Ajax, os
Aqueus pediram que a luta cessasse e recebessem prémios iguais; mas foi ao filho de Tideu que o herói deu a grande
espada, com a bainha e o boldrié bem talhado».

22 Combat Sports in the Ancient World: competition, violence and culture, New Haven, 1987.

23 Os combates singulares ou duelos podiam ser formalmente acordados com os antagonistas, costume que se assinala
precisamente na história lendária dos três irmãos romanos Horácios (Horatii) que lutaram contra os três irmãos
Curiácios (Curiatii), que provinham da vizinha Alba Longa; de acordo com a tradição (Tito Lívio, Ab Urbe Condita, I,
23-27), dois dos romanos foram rapidamente derrotados, embora ainda tenham ferido os seus adversários; no entanto,
o último Horácio, ao simular a fuga, lançou os Curiácios em sua perseguição, conseguindo o primeiro matá-los um a um.
Quando regressou à Urbs, ovacionado pelo exército e pelos seus concidadãos, ele golpeou mortalmente a sua irmã
(noiva de um dos Curiácios) por esta não o receber com suficiente entusiasmo. Esta é, segundo Adrian Goldsworthy
«uma das histórias de heroismo singular – mesmo que a sequela seja brutal e usada para documentar a gradual
regulação dos violentos comportamentos masculinos pelo grosso da comunidade»: Generais romanos. Os homens que
construiram o Império Romano, Lisboa, Esfera dos Livros, 2007, p. 27; S. P. Oakley, «Single combat in the Roman
Republic», CQ 35 (1985), pp. 392-410.

12
esta ideia do duelo, que permitia ao indivíduo distinguir-se do grupo, mesmo correndo
o risco de perder a vida, nunca chegou a desaparecer por completo. Bem mais tarde, a
atracção pela prática da gladiatura no próprio seio dos membros das classes mais
elevadas e abastadas do Alto-Império talvez encontre uma motivação mais ou menos
consciente nessa mesma ideia.

Mas, a este respeito, É. Teyssier colocou uma questão assaz pertinente: «como definir
a gladiatura e diferenciá-la dos duelos puramente aristocráticos?» Entre os séculos IV e
I antes da nossa era, devemos tomar em consideração três elementos básicos: primeiro,
a gladiatura parece integrar-se num contexto de celebrações fúnebres; neste aspecto,
Ajax e Diomedes inscrevem-se plenamente num quadro que se reencontra na Lucânia,
no século IV a. C., e em Roma, entre os séculos III e I a. C.; segundo, este confronto
entre dois homens realiza-se sem a existência de uma provocação prévia e baseia-se no
combate, em teoria até à morte, de duas pessoas que não alimentam qualquer
antagonismo uma em relação à outra. Assim, distingue-se do duelo propriamente dito,
em que dois indivíduos resolvem uma querela de natureza privada ou pública, quando
se trata de um combate, por exemplo, de chefes ou campeões, como foi o caso dos
Horácios e Curiácios; terceiro, finalmente, o critério basilar das armaturae (vocábulo
que designa os vários tipos de gladiadores), desenvolveu-se progressivamente neste
período, para depois se fixar, de maneira duradoura, no início do Alto-Império romano.
O último critério ajuda a diferenciar um tipo de gladiador de outro, independentemente
das razões pelas quais lutava24.

***

Como mostrou Alfonso Mañas Bastida na sua tese de doutoramento 25, é possível
descobrir o conceito de combate singular ritualizado, de carácter funerário, em todo o
globo terrestre, desde o Pacífico até à América, passando pelo Oriente. E se incluirmos
na noção de gladiatura não apenas os duelos em funerais, mas igualmente outros
travados noutros contextos rituais, como os conectados com a fertilidade da natureza,
encontramos muitos mais exemplos, em distintas coordenadas espacio-temporais.
Costuma-se apodar de «gladiatórios» ritos como o tlacaxipehualzti entre os Aztecas,

24 É. Teyssier, La mort en face…, pp. 14-15.

25 Munera Gladiatoria: Orígen del Deporte Espectáculo de Masas, tese apresentada à Faculdad de Filosofía y Letras,
Departamento de Historia Antigua, Universidade de Granada, Granada, 2011: cf. «Capítulo I», alíneas 1.2 «Orígen del
deporte de la lucha com armas y precedentes anteriores a Roma», pp. 35-38 («1.1.1. Culturas Primitivas», pp. 39-42, e
«1.1.2. Culturas de Tiempos Historicos», pp. 43-49). Dois anos depois, o autor publicou um livro intitulado Gladiadores.
El Gran Espectáculo de Roma (Barcelona, Editorial Ariel, 2013), que encerra uma parte substancial da sua tese, mas
vários dos capítulos originais foram suprimidos e o aparato das notas de rodapé reduzido ao mínimo, por razões
editoriais.

13
em que um prisioneiro de guerra de elevado estatuto lutava – brandindo uma arma sem
gume – sobre uma laje circular de pedra contra vários antagonistas até sucumbir
devido à acumulação de ferimentos debilitantes, assunto que foi compulsado por I.
Bueno 26
. Com efeito, a narração de Diego Muñoz Camargo na sua Descripción de la
ciudad y provincia de Tlaxcala (1584) mencciona que o combate era «à maneira dos
gladiadores romanos», embora, na realidade, aqui se trate de um sacrifício humano em
que o cativo não reunia possibilidades para sobreviver, celebrado em público para
reforçar simbolicamente o poder do estado azteca. Uma conotação, aliás, tão-pouco
alheia à gladiatura romana em todas as suas etapas históricas. Estas porfias,
naturalmente, devem compreender-se no seu respectivo âmbito cultural, já muito longe
do que consideramos a gladiatura propriamente romana, pelo que convém regressar e
centrar o foco na península itálica entre os séculos V e II a. C.

***

As raízes do munus romano em Itália perdem-se nas brumas do tempo. Os autores


antigos mencionam uma série de origens e não se põe de acordo no carácter funerário
dos primeiros jogos: Tertuliano remontou os mesmos aos sacrifícios funerários durante
os funerais como génese das pugnas gladiatórias (cf.infra), assim como Sérvio, no seu
comentário da Eneida (Ad Aen. 10.519), e Festo (Frg. 134b). Mas nenhum deles atribui
esta prática a um povo em concreto, ainda que saibamos que os Etruscos 27 levaram a
cabo matanças de prisioneiros após a batalha naval ao largo de Alalia (Aleria), em 540
a. C., ou na guerra movida contra Roma (358-351 a. C.) 28.

Remontando a tempos bem posteriores aos lendários combates homéricos,


encontramos os primeiros vestígios figurativos deste género de confrontos rituais em
Itália, por volta de princípios do século IV a. C. As teorias quanto à origem dos
combates gladiatórios são, essencialmente, duas: certos estudiosos ligam-nos ao
mundo etrusco, ao passo que outros ao contexto osco-lucaniano, na cidade de Paestum
(a grega Poseidónia), na Lucânia, a sudeste de Nápoles. A primeira tese repousa em
ideias transmitidas por vários escritores da Antiguidade. No entanto, não há qualquer
elemento de carácter arqueológico que permita garantir a prática destes combates na

26 I. Bueno Bravo, «El sacrificio gladiatório y su vinculación com la guerra en la sociedad mexicana», Gladius 29
(2009), pp. 184-204.

27 Mais especificamente da cidade de Caere (Cerveteri), que apedrejaram até à morte prisioneiros gregos e cartagineses
que capturaram nessa refrega.

28 Em 358 a. C., 307 prisioneiros de guerra romanos foram massacrados enquanto sacrifícios humanos no forum de
Tarquínia.

14
Etrúria antes do século III a. C. De facto, os túmulos etruscos dos séculos VI e V antes
da nossa era, como os descobertos em Tarquínia, são extremamente prolíficos na
representação de cenas de jogos associados a ritos funerários, mas não surgem em
combates rituais na decoração desses monumentos mortuários.

Porém, chamemos à atenção para uma cena peculiar, representada em três túmulos
de Tarquínia29, datando da segunda metade do século VI a. C., anteriores às primeiras
representações plásticas de guerreiros em armas), que vários estudiosos entenderam
tratar-se de um vestígio recuado da gladiatura: na composição pictórica foi
representado um homem, acompanhado por uma legenda contendo o nome Phersu,
que cinge uma coifa cónica e enverga uma veste multicolor; segura, através de uma
trela, o que parece ser um cão de caça ou um felino; o animal ataca um indivíduo com o
rosto coberto por um pano ou uma espécie de capuz, que está munido de uma maça. Na
realidade, a imagem, frequentemente designada «jogos de Phersu», que se interpretou
das mais variadas maneiras (uma execução, um sacrifício funerário ou algum tipo de
evento desportivo peculiar) evoca muito mais a sorte de um homem condenado às feras
do que um protótipo de um «pré-gladiador».

Aprofundemos um pouco mais a «questão etrusca». Em 1845, J. Henzen 30 tentou


explicar o paradoxo de os gladiadores serem objecto de tanto desprezo quando, na
realidade, participavam activamente numa das actividades sociais romanas mais
importantes; esse autor considerou que tal facto tinha a ver com as origens históricas
dos munera gladiatórios, que não eram, de todo, romanas, mas um fenómeno tomado
de empréstimo dos etruscos. Esta teoria alicerçou-se em diversas fontes literárias. A
primeira consiste numa asserção do historiador greco-sírio Nicolau de Damasco
(segunda metade do século I a. C.), citada posteriormente por Ateneu n’O Banquete dos
sofistas (Deipnosophistai, escrita no século I d. C.), na qual se afirma de forma
categórica que os Romanos adoptaram tal costume dos Etruscos 31:

«Os Romanos organizaram exibições de gladiadores, costume que adquiriram dos Etruscos,
não só nas festividades e nos teatros, como também nos banquetes. Ou seja, certas pessoas
convidavam frequentemente os seus amigos para um festim e outros agradáveis passatempos,

29 O «Túmulo dos Augures», o «Túmulo de Pulcinella» e o «Túmulo das Olimpiades», todos datando
aproximadamente da segunda metade do século VI a. C. Consultem-se: G. Ville, La Gladiature en Occident, des origines
à la mort de Domitien, Roma, École française de Rome, 1981, pp. 4-6; M. Pallottino, Etruscologia, Milão, U. Hoepli,
1963, p. 285; A. Baldi, «Perseus e Phersu», Aevum, 35 (1961), pp. 131-133; G. Becatti e F. Magi, Monumenti della
pittura antica scoperti in Italia, fasc. III.4: Pitture delle tombe degli Auguri e del Pulcinella, Roma, Istituto Poligrafico
dello Stato, 1955. Consulte-se, igualmente, A. Mañas Bastida, Munera Gladiatoria («1.2.2. Evidencias halladas en la
Cultura Etrusca»), p. 57ss.

30 J. Henzen foi, efectivamente, o primeiro estudioso a defender uma origem etrusca para os jogos na sua Explicatio
Musivi in villa Burghesiana asservati, Roma, 1845, pp. 74-75; mais tarde, já no século XX, outros autores subscreveram
esta tese, designadamente L. Malten, «Leichenspiel und Totenkult», MDAI(R), 38 (1923-1924), pp. 300-341, e, décadas
mais tarde, E. Richardson, The Etruscans, Chicago, University of Chicago Press, 1964, pp. 229-230.

31 Deipnosophistai 4.153.

15
mas, para além disso, existiriam dois ou três pares de gladiadores. Quando todos já tivessem
comido e bebido muito, eles chamavam os combatentes. No momento em que se cortava a
garganta de um, os espectadores batiam palmas com prazer. E, por vezes, até acontecia que
alguém determinava no seu testamento que as mulheres mais bonitas que comprara deveriam
lutar entre si, ou outra pessoa podia deixar escrito que dois rapazes, os seus favoritos, teriam de
fazer o mesmo».

Muito mais tarde, já na época visigótica, o erudito Isidoro de Sevilha, no dicionário


etimológico Origines32, de começos do século VII d. C., Isidoro de Sevilha também
expôs a mesma ideia, atribuindo a origem do vocábulo latino lanista a uma palavra
etrusca, lani, que serviria para designar um «algoz» ou um «talhante» 33. Por último, há
o testemunho do cristão Tertuliano, que viveu em finais do século II e princípios do III
d. C.: no Apologeticum, ele relata uma cena passada no anfiteatro de Cartago, depois de
terminadas as execuções de criminosos no espectáculo do meio-dia, em que entrava na
arena um homem disfarçado de Dis Pater, deus do mundo inferior, juntamente com
outro desempenhando papel do deus Mercúrio, tendo ambos a missão de escoltar os
corpos quando estes se removiam da pista. Ao relatar esta cena, Tertuliano viu em Dis
Pater, brandindo um martelo/malho, uma evocação do deus etrusco da morte,
portador de tal atributo, chamado Charu/Charun 34.

Se a teoria de que os gladiadores tiveram uma génese etrusca prevaleceu durante largo
tempo, não obstante a ausência de elementos probatórios, em parte é porque, durante
décadas, forneceu aos historiadores modernos (cujos valores humanitários colidiam
com os munera gladiatórios), uma explicação moralmente satisfatória. Neste sentido, a
reputação dos Romanos enquanto povo civilizado poderia ser salva, caso ficasse
demonstrado que estes jogos haviam tido origem noutra região.Uma origem etrusca
revelou-se apelativa para os que defendiam a tese, muito difundida na Europa do século
XIX, de que havia um vínculo inequívoco entre «moralidade» e «raça»: os Romanos
indo-europeus, moralmente superiores, teriam sido maculados ao entrarem em
contacto com os Etruscos, moralmente decadentes. A argumentação carreada para esta
teoria viu-se reforçada por relatos de autores clássicos, aludindo tanto à imoralidade
dos Etruscos – visível, por exemplo, no papel invulgarmente activo que as suas
mulheres desempenhavam na vida social -, como a sua origem oriental.

Foi Heródoto o primeiro a veicular a ideia de que os Etruscos chegaram a Itália depois
de se verem obrigados a abandonar a Lídia num período marcado pela fome 35. De

32 Origines 10.159

33 Ibidem, 10. 247.

34Cf. Apologeticum, 15.5; IDEM, Ad nationes, 1.10.47. Veja-se, também, Fik Meijer, The Gladiators: History's Most
Deadly Sport, Nova Iorque, 2005, p. 14. No capítulo VIII exploraremos mais este assunto.

35 Heródoto, 1, 94.

16
acordo com esta perspectiva, qualquer coisa que se afigurasse inaceitável na vida
romana poderia fazer-se remontar à decadência «oriental» etrusca, à qual então se
imputaria a culpa. Como aliás sucedeu outras vertentes da teoria racial, este aspecto
atingiu proporções quase absurdas nos escritos pseudo-científicos de ideólogos nazis,
advogando estes que o «clericalismo» trazido pelos Etruscos para a Itália do Oriente
explicaria o motivo pelo qual os romanos se tornaram decadentes ao ponto de aceitar o
Cristianismo católico, cujos valores eram tão opostos às lealdades raciais de grupo que
os teóricos nazis atribuiram aos «puros» indo-europeus ou arianos 36.

A partir da segunda metade do século passado, efectuaram-se investigações mais


sistemáticas e científicas sobre os Etruscos, que contribuíram bastante para os tornar
menos estranhos e «misteriosos». Além disso, os estudiosos começaram a alimentar
mais dúvidas quanto à contribuição de algum fluxo migratório significativo proveniente
do Mediterrâneo Oriental para o desenvolvimento da Itália Central, desde a Idade do
Bronze Villanoviana até à Idade do Ferro Etrusca 37
. Actualmente, a maior parte dos
historiadores tende a considerar os Etruscos como um povo autóctone da península
italiana, embora não há muito, outros especialistas, baseando-se nos resultados obtidos
a partir de exames do ADN (amostras recolhidas entre habitantes de várias localidades
outrora pertencentes à Etrúria), vieram a inclinar-se novamente para a teoria de que os
Etruscos talvez tenham provindo da Ásia Menor; seja como for, esta corrente
interpretativa não reuniu consenso no seio da comunidade científica internacional.

De facto, se alguns eruditos romanos sustentaram que certos elementos da sua cultura
gladiatória tiveram origem nos Etruscos, os seus argumentos traduziram-se mais em
afirmações de cariz moral do que propriamente histórico, daí que caiba entendê-las ao
nível do significado simbólico da Etrúria, como uma categoria moral no pensamento
romano. Na Roma arcaica, a Etrúria representou a comunidade mais próxima ao longo
do curso do rio Tibre, que não falava latim e era «estrangeira». Assim, os hábitos
etruscos passaram a simbolizar uma «alteridade» moral, exemplificada, como se disse,
pelo frouxo controlo exercido sobre as mulheres; esta «alteridade» consolidava-se
ainda mais pelas míticas origens lídias dos etruscos. A categoria «etrusca» possuía,
então, uma poderosa força explicativa em relação a costumes e instituições pelos quais
os Romanos nutriram sentimentos ambíguos, especialmente os associados ao poder
estatal. Estrabão escreveu:
36A questão etrusca interessou especialmente o ideólogo nazi Alfred Rosenberg (no contexto da oposição católica face
aos Nazis): V. Losemann, Nationalsozialismus und Antike, Hamburgo, 1977, p. 140ss.

37 N. Spivey e S. Stoddart, Etruscan Italy: An Archaeological Survey, Londres, 1990; M. Cristofani et alii, Etruschi,
una nuova immagine, Florença, Giunti, 2000; F. Lara Peinado, Los etruscos: pórtico de la história de Roma, Madrid,
Cátedra, 2007. Dionísio de Halicarnasso defendeu que os Etruscos eram auctótones (I, 28.2ss.), mas de forma a
persuadir os seus leitores que todos os Italianos eram virtuosos Europeus: E. Gabba, Dionysius, Berkeley, University of
California Press, 1991, p. 112ss.

17
«Diz-se que o garbo triunfal e o dos cônsules e, basicamente, o de qualquer magistrado para lá
foi levado a partir de Tarquínia, como o foram também os fasces, as trombetas, os ritos
sacrificiais, a adivinhação e a música, já que os mesmos são publicamente utilizados pelos
Romanos»38.

Alguns destes símbolos podem ter sido introduzidos na Urbs por uma «dinastia de
reis etruscos»39. No decurso de períodos caracterizados por rápidas mudanças sociais
conectadas com a formação do poder estatal, há indícios de ter havido uma forte
tendência para se tomarem de empréstimo símbolos políticos de culturas vizinhas: isto
serviria para reforçar o estatuto da elite, cujos contactos com culturas «estrangeiras»
facultavam um acesso mais fácil a tais objectos simbólicos e os conhecimentos aos
mesmos associados. Mas nem todas as instituições que os Romanos cunharam de
«etruscas», devido à sua ambivalência moral, procederam historicamente da Etrúria: o
teatro romano é um exemplo notável 40. Posto isto, a atribuição de uma origem etrusca
aos jogos gladiatórios tem, de igual modo, que ser perspectivada como resultado da
ambiguidade romana quanto aos munera, e não vice-versa.

Quanto à outra tese, preconizando a origem osco-lucaniana, é, actualmente, a mais


aceite e que reúne maior consenso no meio académico: o primeiro estudioso a sustentar
tal ponto de vista foi F. Weege, em 1909. Sobre o mesmo assunto, decénios depois,
Georges Ville abreviou o debate da génese da gladiatura, propondo uma hipótese que
congraçou, em certa medida, as duas teses referidas numa só: «Em começos do século
IV [a. C.], a gladiatura é inventada na Itália do Sul, criação de uma população
compósita, osca, samnita, etrusca: não se tentará precisar mais do que isto; no fim do
século IV ou no início do III, os munera são adoptados na Etrúria; em 264 a. C., Roma
vê o seu primeiro munus e os organizadores introduzem talvez uma fórmula que os
Etruscos já haviam naturalizado na sua região» 41.Um dos trechos mais citados a favor

38 Estrabão, Geographia, 5, 2.2.

39 Para comentários profícuos sobre este assunto, consulte-se J.-P. Thuillier, «Les origines de la gladiature: une mise
au point sur l’hypotèse étrusque», in C. Domergue, C. Landes, J.-C. Paillier (eds.), Spectacula I. Gladiateurs et
amphitéâtres, Lattes, 1990, pp. 137-146.

40 A este respeito, veja-se a obra de F. Dupont, L'acteur-roi ou le thêatre dans la Rome antique, Paris, Les Belles-
Lettres, 1985.

41 G. Ville foi, a partir da década de 60 do século XX, um dos mais acérrimos defensores da teoria de uma origem
campaniana ou, mais especificamente osco-samnita, para os combates gladiatórios, inovação que o historiador francês
situou em princípios do século IV a. C., na Itália Meridional: na sua monografia, atrás referida, La Gladiature en
Occident..., o primeiro capítulo é dedicado a esta questão (pp. 1-56). Trecho citado: p. 56. J. Mouraditis apresenta uma
visão muito semelhante à de Ville sobre a génese da gladiatura («On the Origin of the Gladiatorial Games», Nikephoros
9, 1996, pp. 111-134), bem como J. Garrido Moreno («El anfiteatro: una oscura imagen de la antigua Roma», Berceo, nº
149, 2005, p. 156: cf. «Hoje pode afirmar-se que este costume procede directamente de um rito praticado pelo povo
osco-samnita, na região itálica da Campânia (finais do século V-IV a. C.). Foi aí onde o assumiram os Etruscos, que o
levaram também às suas regiões do Norte (século IV-III a. C.). Os Romanos tomaram-no deles»). Observem-se também:
R. Bloch, «Jeux et sport en Etrurie», Dossiers de l’Archéologie, 45 (juillet-aout 1980), pp. 39-41; D. Briquel, «Ludi/Lydi:
jeux romains et origines étrusques», Ktema, 11 (1986), pp. 161-167; J.-P. Thuillier, Les Jeux athlétiques dans la
civilisation étrusque, Roma, École Française de Roma, 1985, e a obra colectiva, editada pelo mesmo autor, Spectacles
sportifs et scéniques dans le monde étrusco-italique, Roma, 1993.

18
desta tese é da autoria de Tito Lívio (que faleceu no tempo augustano), que, na
descrição da vitória dos Romanos aliados aos Campanianos sobre os Samnitas, em 309
a. C., disse:

«Os Campanianos, por orgulho e ódio aos samnitas, com semelhante ornato [as esplêndidas
armas dos samnitas] armaram os gladiadores que serviram como espectáculo nos banquetes,
denominando-os “samnitas”» (Ab Urb. Cond. 9.40.17).

Também Sílio Itálico (Pun. XI.52-54), escrevendo num tom mais cruento, atribuiu aos
Campanianos a celebração de banquetes incluindo combates, e, «amiúde, os
combatentes tombavam mortos sobre as taças dos convivas, e as mesas ficavam
manchadas com esguichos de sangue». No entanto, uma vez mais, os autores não são
explícitos sobre o «mundo» campaniano como génese da gladiatura.

Possivelmente já após conhecer uma existência com cerca de 150 anos no Sul de Itália
e na Etrúria, é que a gladiatura terá aparecido em Roma. Se bem que certos autores
latinos, muitos posteriores aos factos que relatam, tenham afirmado que os romanos
tomaram de empréstimo tal prática dos Etruscos, há também que não descartar a
probabilidade, de uma influência campaniana directa sobre Roma, conforme defendeu
Fabrizio Paolucci 42. Esta origem não se vê confirmada pelas fontes literárias, pois que,
contrariamente à «tese etrusca», nenhum autor antigo se refere à gladiatura como
nascendo na Lucânia. Em contrapartida, neste ponto, a iconografia presta algum
auxílio: no século XIX, acharam-se, nas referidas necrópoles de Paestum, dezenas de
túmulos pintados43, construídos por volta de 370-340 a. C. (outra cronologia apontada:
380-320 a. C.), em que se atesta a existência de combates rituais desde o século IV a. C.
Nas superfícies parietais destes monumentos, representaram-se as cerimónias fúnebres
dos notáveis locais de uma maneira bastante concreta. Em 28 destes túmulos, as
pinturas murais exibem guerreiros a combater e a infligir, por vezes, ferimentos, uns
nos outros. À primeira vista, a natureza funerária destes confrontos pode ser colocada
em causa: muito provavelmente, eles talvez se devam interpretar como ilustrações dos
combates homéricos ou mitológicos.

Mas, como na Ilíada, nestes túmulos há também afrescos evocando corridas de carros
e cenas com pugilistas e outros lutadores. Em certas imagens, os combatentes estão
acompanhados por carpideiras, flautistas e tocadores de tamboretes ou, então, a
defrontar-se na presença de uma terceira pessoa, como se vê num afresco lucaniano do

42 F. Paolucci, Gladiatori. I dannati dello spettacolo, Florença, 2003, pp. 9-12.

43 Para mais dados sobre estas pinturas tumulares: F. Weege, «Oskische Malerei», JDAI, 24 (1909), pp. 99-162; P. C.
Sestieri, «Tombe dipinti di Paestum», RIA, 5-6 (1956/1957), pp. 65-110; C. Nicolet, «Les Equites campani et leurs
représentations figurées», MEFRA, 74 (1962), pp. 463-517; A. Pontrandolfo e A. Rouveret, Le tombe dipinte di Paestum,
Módena, Franco Cosimo Panini, 1992, com as cenas pictóricas aqui em foco categorizadas como duello, (pp. 55-58).
Veja-se, igualmente, G. Ville, La gladiature..., p. 20.

19
«Túmulo nº 7» da necrópole de Gaudo (Paestum): para M. Junkelmann, tal indivíduo
poderia corresponder a um «guarda», sugerindo que os participantes nestes confrontos
poderiam ser coagidos a lutar entre si44. No entanto, esse homem talvez consistisse num
árbitro, o que nos parece mais verosímil45. Assim, estes pormenores permitem
depreender, ainda que não de maneira categórica, que as lutas seriam de carácter
agonístico e não se apresentariam conectadas com a comemoração de combates de
natureza militar.

Na maioria destas pinturas parietais, o equipamento dos combatentes corresponde


praticamente ao armamento ofensivo e defensivo dos guerreiros osco-samnitas deste
período e, em casos mais raros, às panóplias clássicas dos hóplitas gregos 46
. As
diferentes posturas reproduzidas nestas pinturas tumulares possibilitam que se
compreenda o desenrolar desses confrontos, directamente tomadas de empréstimo ao
domínio militar coetâneo. Em algumas composições, os adversários estão munidos de
vários dardos, geralmente em número de três, que seguram na mão esquerda, atrás do
seu escudo 47. Estas armas de arremesso seriam decerto empregues numa fase inicial,
em cada um dos protagonistas se mantinha à distância, procurando ferir o adversário.
De facto, em diversas pinturas, observam-se dardos cravados nos escudos de ambos os
oponentes, que confirmam esta primeira etapa do duelo. Num segundo estádio, o
combate prosseguia no corpo a corpo. Neste momento, o confronto era travado quase
sempre através de «lança contra lança».

Contudo, noutra cena, vemos um guerreiro a desembainhar a espada, gesto que se terá
seguido à quebra do cabo da lança: nesta imagem, capta-se o preciso instante em que
esse combatente se aproxima do adversário, ao mesmo tempo que retira a espada da
bainha48. O seu oponente, que ainda se mantém na posse da sua lança, parece
surpreendido ante esta investida e esboça um movimento de recuo. Repare-se que esta

44 Gladiatoren: Das Spiel mit dem Tod, Mainz, edição revista e ampliada, Philipp von Zabern, 2008, p. 33, fig. 43.

45O que se observa num duelo onde está presente um árbitro, figurado no afresco na parede sul de um túmulo na
necrópole de Andriuolo, em Paestum: cf. A. Pontrandolfo e A. Rouveret, Le tombe dipinte di Paestum, p. 210, est. 2.
Veja-se também E. Köhne, «Bread and Circuses: The Politics of Entertainment», in E. Köhne e C. Ewigleben (eds.), The
Power of Spectacle in Ancient Rome: Gladiators and Caesars, Berkeley/Los Angeles, University of California Press,
2000, p. 11.

46 A. Bernet, Les Gladiateurs…, p. 24.

47 Haja em vista um combate representado na parede setentrional do «Túmulo 10», Laghetto (Paestum): A.
Pontrandolfo e A. Rouveret, Le tombe dipinti di Paestum, p. 202, est. I.A maior parte destas pinturas tumulares tende a
mostrar composições figurativas estereotipadas e algo estáticas.

48 Nas necrópoles de Arcioni e Andriuolo, os túmulos 271-1976 e 1-1971, que datam de aproximadamente de 380 a.C.,
são os dois únicos casos em que um combatente armado de escudo e espada enfrenta um adversário igualmente munido
de escudo, mas utilizando uma lança. Em ambos os exemplos, não foi representada as bainhas das espadas. Não
obstante tais excepções, o confronto «lança contra lança» seria, em princípio, a norma nos combates fúnebres
lucanianos.

20
fase não seria possível nos restantes casos figurados: de facto, os demais combatentes
mostram-se desprovidos de espadas e só podem lutar com as lanças. Sublinhe-se
igualmente que estes dois guerreiros são os únicos que apresentam um equipamento
hoplítico completo, caracterizando-se pelo uso de um elmo do tipo «Coríntio» clássico,
apenas assinalável nestes dois combatentes, no conjunto dos guerreiros representados
na necrópole de Paestum. As protecções são compostas por panóplias, que não se
apresentam ainda muito definidas.

Contrariamente à gladiatura estabelecida pelos Romanos séculos mais tarde, estes


«pré-gladiadores» não transmitem a ideia de lutarem sob armaturae padronizadas 49.
Efectivamente, apesar de consistir num acervo pictórico que engloba sessenta
guerreiros, raros são os pares de combatentes que têm equipamentos absolutamente
iguais ou muito similares. O último compreende quase sempre um casco, à excepção
das cenas em que os adversários aparecem com a cabeça descoberta. Em quase todos os
afrescos (à excepção de um), os guerreiros exibem elmos pertencentes ao género
«Calcidíco50, que, ocasionalmente possuem uma cimeira. A estes elementos-base
acrescentaram-se, em determinados casos, cnémides (grevas de metal) e uma couraça,
como se constata num afresco do «Túmulo Andriuolo» nº 58. Esta é, habitualmente, do
género linothorax, típica dos guerreiros helenísticos (feita de linho).

Todavia, num afresco tumular de Paestum que ilustra combatentes equipados com
escudos hoplíticos e munidos de cnémides, um deles apresenta-se de tronco nu e o
oponente mostra um protege-tórax trilobado, característico dos guerreiros samnitas
coevos 51. Depreende-se que estes «pré-gladiadores» se batiam, às vezes, inteiramente
nus ou apenas vestindo uma tanga presa por um cinturão (que em latim se chamava
balteus). Esta pintura parietal constitui o único caso bem preservado da representação
de dois duelos diferentes em simultâneo: não se figuraram dois momentos sucessivos
de um só combate, já que o par situado à esquerda luta sem qualquer tipo de protecção
corporal ou roupa, e o da direita distingue-se pela utilização da tanga, idêntica ao
posterior subligaculum empregue pelos gladiadores romanos. Este exemplo afigura-se,

49 E. Teyssier, La mort en face…, p. 14.

50 Michel Feugère, Casques antiques, Paris, Errance, 1994, pp. 19-22.

51Esta protecção, composta por três círculos de bronze soldados entre si, aparece recorrentemente nos túmulos de
guerreiros samnitas dos séculos IV e III a. C. Tais peças de equipamento figuram também em afrescos achados em
Cápua, mas, em princípio, estas pinturas parietais não não devem reportar-se a combates rituais. Na obra de Peter
Connolly (Greece and Rome at War, 2ªedição, Londres, 1998, p. 108), vê-se a reprodução de um protege-tórax trilobado
achado em Alfedena (fig. 1), e uma fotografia de uma estatueta de bronze (que se crê ter sido descoberta na Sicília), à
qual se designou como «Guerreiro Samnita», conservada no Museu do Louvre. Observe-se uma fotografia de outro
pectorale deste tipo em N. Sekunda e S. Northwood, Early Roman Armies, Oxford, 3ª edição, 1999, p. 39: a peça foi
recuperada no Norte de África, tendo sido possivelmente utilizada por um mercenário itálico ao serviço dos
Cartagineses, datando de finais do século III a. C. Está actualmente exposta no Museu Nacional de Bardo, em Tunes.

21
portanto, excepcional, já que nas restantes imagens apenas se representa um par de
combatentes neste tipo de duelos rituais.

O único elemento omnipresente nas panóplias das pinturas tumulares de Paestum é,


então, o escudo do tipo clipeus, similar aos aspis redondos e bombados dos hóplitas
gregos da idade clássica52. Esta arma defensiva constitui um elemento distintivo
essencial entre os «pré-gladiadores» e os seus longínquos sucessores da época imperial
romana. De facto, nenhuma armatura romana incluiu este tipo de escudo. Mas,
independentemente dos seus equipamentos, estes guerreiros não participariam num
simulacro de combate ou numa espécie de dança ritual: nas imagens, eles mostram-se
cobertos de feridas nas pernas, nos ombros, no ventre ou na cabeça. Numa cena, vê-se
claramente um combatente, ferido numa coxa, prestes a atingir o seu adversário com
uma lançada dirigida à cabeça. Noutra, um guerreiro coberto de sangue sucumbe ao
assalto do oponente, também este ferido.

Evidencia-se nitidamente o carácter sangrento destes confrontos funerários. A lógica


inerente aos mesmos parece relacionar-se com o sangue derramado pelos combatentes
sobre a terra, o qual depois seria recolhido por uma figura de elevada condição, num
contexto ritual mágico-religioso. Num destes túmulos, importa chamar à atenção para
um combate de pugilistas ou pancraciastas, que se desenrola por ocasião do mesmo
ritual. Esta luta com mãos nuas revelava-se igualmente sangrento e podia, de igual
modo, conduzir à morte do vencido. O munus, termo pelo qual Romanos designavam
estes jogos violentos, encontra nestes exemplos plásticos o seu sentido primeiro de
«dádiva/oferta» e de «dever/obrigação». Segundo o testemunho tardio de Tertuliano,
esses combates significariam o reflexo de antigos rituais arcaicos de sacrifícios
humanos, em relação aos quais os primeiros significariam uma espécie de versão
mitigada: segundo o autor cristão, o gladiador era sacrificado aos manes (fantasmas)
dos defuntos53:

«Os Antigos pensavam que realizar este espectáculo era um dever para com os mortos, e
depois temperaram-no com uma atrocidade mais humana. Pois que outrora, como se acreditava
que as almas dos defuntos eram aplacadas pelo sangue humano, ao adquirirem cativos ou
escravos com mau carácter, eles sacrificavam-nos enquanto parte do ritual funerário. Mais
tarde, decidiram mascarar a impiedade como entretenimento. E, então, os que eles compravam
e treinavam com armas e da maneira que pudessem, apenas para aprenderem a ser mortos, eles
depressa os expunham à morte no dia do funeral. Assim, buscavam consolo pelo falecimento de
alguém através do homicídio. Foi esta a origem do munus […] As oferendas para propiciar os
mortos apresentavam-se como ritos fúnebres.Este tipo de coisas é idolatria […]».

52 Konstantin Nossov, Gladiator: Rome's Bloody Spectacle, Oxford, Osprey, 2009, p. 45.

53 De spectaculis, 12, 1-4.

22
Consequentemente, dentro desta linha de pensamento, os cristãos não deviam assistir
aos jogos gladiatórios porque estes se baseavam na idolatria e nas emoções das
multidões, usadas pelos pagãos para arrastar os primeiros rumo a uma pecaminosa
sede de sangue. Sangue que, por outro lado, aparece citado como elemento expiatório
no sacrifício na própria Bíblia, como citou M. Poliakoff: «Porque o princípio vital da
carne está no sangue […] pois é o sangue que opera a expiação por uma pessoa […]»
(Lev. 17.11)

Hoje em dia, esta tese ainda possui os seus cultores. Alison Futrell, numa monografia
relativamente recente, defendeu este ponto de vista, juntando-o a outro importante
tema associado ao combate gladiatório, o poder romano. A autora alegou que os jogos
de gladiadores teriam sido originalmente sacrifícios humanos destinados a sustentar o
poder político romano54. Javier Garrido Moreno, por seu lado, segue basicamente pelo
mesmo caminho quando escreve: «Entre estes povos itálicos, o ritual, reservado à elite,
tinha uma finalidade funerária e sacrificial. O sangue derramado no combate aplacava a
ira das divindades infernais e ajudava o espírito do defunto na sua passagem definitiva
para o Além»55.

Não há dúvida que, nos seus primórdios, os munera romanos estiveram ligados aos
funerais. Além disso, a elite greco-romana fora educada a ler as obras de Homero e os
seus membros terão ficado com a impressão, ao basearem-se na descrição de Aquiles
chacinando prisioneiros troianos aquando do funeral de Pátroclo, que tais sacrifícios
humanos seriam típicos da idade heróica. Heródoto, por seu lado, atribuiu a prática de
sacrifícios humanos em funerais aos Etruscos . Esta ideia ainda estava viva bastante
56

mais tarde: em 40 a. C., em plena guerra civil, Octávio (o futuro Augusto, primeiro
imperador de Roma) saqueou Perusia (actual Perugia) e mandou massacrar os cativos,
alegando que, outrora, tais mortes haviam sido uma tradição etrusca 57.

54 Blood in the Arena: The Spectacle of Roman Power, Austin, 1997, pp. 205-210. Vejam-se também: A. W. Lintott,
Violence in Republican Rome, Oxford, 1968, p. 40; P. Connolly, Colosseum: Rome's Arena of Death, Londres, 2003, pp.
68-69. Porém, outros, como T. Wiedemann, dissociaram categoricamente o sacrifício humano dos funerais romanos:
«there is no evidence at all that the Romans at any period thought that any such human sacrifices were appropriate in
conexion with funerals» (Emperors and Gladiators, Londres/Nova Iorque, Routledge, 1995, 2ª edição, p. 34).
Wiedemann avançou ainda com outro argumento para defender o seu ponto de vista: os gladiadores, com o seu intenso
desejo de glória e receptividade em aceitar a morte apenas em última instância, não fariam boas vítimas sacrificiais; um
dos requisitos essenciais numa imolação efectiva radicava na cumplicidade, real ou fictícia, da vítima. Além disso, nem
todos os combates gladiatórios terminavam com a morte de um dos oponentes. Seja como for, na génese da gladiatura,
talvez houvesse um género de ritual funerário que implicasse sacrifícios humanos: contudo, não há quaisquer vestígios
concretos desta prática. D. Kyle, Spectacles of Death in Ancient Rome, Londres/Nova Iorque, Routledge, 2001 (2ª
edição), p. 40; D. S. Potter, «Entertainers in the Roman Empire», in D. S. Potter e D. J. Mattingly (eds.), Life, Death and
Entertainment in the Roman Empire, Ann Arbor, Michigan, 1999, pp. 305-307.

55 «El anfiteatro…», p. 156.

56 Heródoto, 6.71ss.

57 Suetónio, Divus Augustus, 15; M. Grant, Gladiators…, p. 14.

23
Os afrescos tumulares da etrusca Caere (actual Cerveteri) foram interpretados muitas
vezes nestes termos, embora possamos avançar com outras propostas interpretativas.
Apesar de existirem fontes que se reportam a tais imolações como práticas correntes
dos Etruscos, não dispomos de provas concludentes de que os gladiadores fossem
sacrificados dessa forma, estivessem ou não associados aos funerais etruscos. Também
não se preservaram elementos concretos que confirmem que os romanos, em período
algum, pensassem que os sacrifícios humanos fossem apropriados em conexão com os
funerais58. G. Ville (e outros académicos) entendeu não ter cabimento a gladiatura
funcionar como um elemento substitutivo dos sacrifícios humanos. O historiador
francês escreveu que, apesar de a gladiatura ter, originalmente, um carácter funerário,
ela não teria de corresponder a uma modalidade sacrificial mas antes, na sua essência,
uma actividade agonística e competitiva. A menção literária mais remota a este
respeito, a Ilíada, aponta inequivocamente nesse sentido. Se houve imolações em Itália,
o que ainda não ficou comprovado, terão possivelmente desaparecido antes da
«alvorada da história».

Formulou-se ainda outra teoria, superficialmente atractiva, segundo a qual os


gladiadores consistiriam numa espécie de «bodes expiatórios», sobre os quais uma
comunidade carregava com a culpa por um ou vários problemas que estava a enfrentar,
vendo-se os primeiros expulsos da última, de forma a afastar a ira da divindade (ou
divindades) ofendida da comunidade enquanto um todo. Para esta modalidade de
mortes de tipo «bode expiatório» no império romano, as evidências são muito escassas
e, de qualquer maneira, irrelevantes para o caso dos gladiadores. Há, é certo, a história
de um cristão, Dásio, que foi martirizado em Durostorum, no Danúbio, sob a égide de
Maximiano e Diocleciano, por rejeitar desempenhar o papel suicida de Cronos,
aquando de uma festividade ligada ao solstício de Inverno. O que se encontra por trás
desta narração não se afigura claro, mas é incorrecto apresentá-la como prova de que a
execução de um «bode expiatório» fazia parte integrante da esfera dos rituais religiosos
romanos, e menos ainda que os gladiadores seriam vistos como «bodes expiatórios» 59.

O que se pode afirmar com meridiana certeza é que havia um claro elo de ligação entre
o combate gladiatório e a morte. Desde a altura em que os gladiadores lutaram pela
primeira vez em Roma, em 264 a.C. (cf. infra), e até ao tempo de Augusto, eles
surgiram só em ocasiões em que se honravam indivíduos ilustres recentemente
falecidos. Interpretar esse elo de ligação no contexto de um sacrifício humano, do modo

58 T. Wiedemann, Emperors and Gladiators…, pp. 33-34.

59 S. Weinstock, «Saturnalien und Neurjahrsfest in den Märtireacten», in A. Stuiber e A. Hermann (eds.), Mullus.
Festschrift Theodor Klauser, JAC, Ergänzungsband, 1, 1964, pp. 391-400.

24
como fez Tertuliano, equivale a enfatizar a ideia de matar e não a de morrer, enquanto
ponto fulcral do espectáculo.

Regressemos à «pré-gladiatura» do século IV antes da nossa era. Neste período não se


descortinam evidências de que os combatentes fossem constrangidos ou obrigados a
defrontar-se e a matar-se entre si. Pelo contrário, o seu ardor combativo leva-nos a
imaginar que participavam na qualidade de voluntários, como Ajax e Diomedes, para
rivalizarem, na bravura, com o respectivo adversário, aquando dos duelos rituais. Outro
aspecto em que estes «pré-gladiadores» se apartam dos gladiadores romanos dos
primeiros séculos da era cristã tem que ver com o seu equipamento, que em nada se
distinguia do que se utilizava a nível militar, nas guerras de então.

Mediante certos indícios, presumimos que os combatentes funerários do século IV a.


C. não estariam ainda organizados em pares bem definidos, em que dois tipos de
guerreiros distintos se envolviam num confronto. Não obstante o seu número reduzido,
os documentos iconográficos manifestam grande diversidade de situações, mesmo
quando o combate «lança contra lança» representa o momento álgido da porfia. Nestes
pares, os combatentes que aparecem figurados nas paredes tumulares de Paestum
aparecem sempre individualizados: reproduziram-se os traços fisionómicos de cada
«duelista», o que leva a crer que estes «pré-gladiadores» não seriam escravos coagidos
a lutar ou indivíduos intercambiáveis, mas guerreiros voluntários cuja memória seria
comemorada60.

Por fim, e numa direcção completamente diferente, Ateneu evocou o livro I da obra de
Hermipo, intitulada Sobre os legisladores de Hermipo (século III a. C.), e as Histórias
de Éforo (século IV a. C.), autores que referiram que a origem das lutas gladiatórias
radicou na cidade grega de Mantineia, no Peloponeso, cujos habitantes se viram depois
imitados por outros povos, como o de Cirene:

«…foi em Mantineia onde se idearam pela primeira vez espectáculos de combate com armas
pesadas, e foi Démeas [Hermipo cita Demonacte] quem deu a conhecer esta invenção»
(Deipnos. 4.194C).

A monarquia macedónia tão pouco ignorou este género de combate ritual: se nos
basearmos em Ateneu, em 317 a. C., Cassandro organizou combates funerários em
honra do rei de Cina e da rainha de Aegae/Aigai (Deipnosophistai,4.55); participaram
quatro soldados nestas «monomaquias»: é justamente este vocábulo grego que servia
para designar os combates gladiatórios no mundo grego, durante o Alto Império. Como

60 Os testemunhos mais vetustos a nível iconográfico mostram que os combates gladiatórios constituíam só um dos
ludi funerários da Itália Central e Meridional. Afora tais pugnas, havia competições de pugilismo e corridas de carros. Cf.
G. Ville, La gladiature…, pp. 14-15.

25
na Lucânia, estes confrontos traduziam-se indubitavelmente em lutas armadas
livremente consentidas, podendo conduzir a uma morte aceite. Não faltam exemplos,
noutras coordenadas temporais e geográficas, de suicídios ocasionados pela morte de
um chefe venerado, desde a Antiguidade até ao Japão do século XX 61. Para além disso,
como nos mostra o trecho da Ilíada sobre Ajax e Diomedes, o prazer que sentiriam ao
bater-se e ao evidenciarem a sua coragem ante uma prestigiosa assembleia constituiria,
decerto, outra importante motivação.

Porém, a gladiatura na Grécia apenas se atesta em parcos testemunhos e não se pode


entender como se tratando do mesmo fenómeno que se desenvolveu na península
itálica. Quando, em 174 a. C., Antíoco IV ofereceu um munus público à maneira romana
em Antioquía (Tito Lívio, 41.20.11-12; cf. infra) para celebrar uma vitória militar, é-nos
dito que o público, ao princípio, ficou aterrorizado ao assistir às pugnas, porque não
habituado a semelhantes espectáculos, só depois vindo a tomar-lhe o gosto.

No entanto, alguns académicos opinaram que os próprios Gregos, já estabelecidos na


Campânia desde o século VIII a. C., podem ter introduzido os seus jogos fúnebres
acompanhados de sacrifícios humanos. Talvez acreditassem que o sangue de
prisioneiros oferecesse força aos mortos, aos quais prestavam a derradeira homenagem
para assim empreenderem a difícil viagem rumo ao Hades. Com o tempo, os jogos
organizados no Sul de Itália terão perdido gradualmente as suas raízes helénicas,
passando a substituir-se os sacrifícios humanos por combates até à morte, travados
junto do local de inumação de alguém recentemente falecido. Há abundantes
referências literárias para os jogos funerários na Hélade. O exemplo mais conhecido é a
passagem sobre o prélio entre Ajax e Diomedes, mas de outros heróis lendários gregos,
como Édipo, Pélias, Amarynkeus, Oenomaus, Pélopes, Melicertes e Ofeltes também se
colhem notícias de se verem honrados em jogos funerários. Que esta prática não se
confinava à lenda é algo que se confirma pela menção do Hesíodo aos jogos funerários
homenagendo um tal Amphidamas, onde o poeta ganhou um prémio pelo seu talento
nos versos62.

Anualmente, celebravam-se competições atléticas em memória de heróis militares


gregos falecidos, como Miltíades, Brásidas, Timoléon e Philopoemen. Até grupos de
guerreiros se honravam através de jogos idênticos, como os realizados no «Festival da
Liberdade» (Eleutheria), onde se celebrava o heroísmo dos Helenos que tombaram na

61A este respeito, G. Ville citou o caso dos soldados do imperador Otão, que, em 69 d. C., se suicidaram diante da sua
pira funerária, «por amor ao seu princeps» e o do general japonês Nogi, vencedor dos russos em Port Arthur, no começo
do século XX (no contexto da Guerra Russo-Nipónica de 1904-1905), que cometeu seppuku (matando-se também a sua
mulher) no dia do funeral do imperador Meiji.

62 Op. 654-657.

26
batalha de Platea, que se saldou numa vitória sobre os Persas, e outro evento,
Epitaphia, em que se honrava os Atenienses mortos na guerra, como, aliás, o seu nome
sugere63. Estas competições, tanto as lendárias como as históricas, consistiam
sobretudo em exibições de modalidades atléticas de estilo grego, englobando corridas
de carros e a pé, luta com mãos nuas (pale, orthopale, pancrácio), pugilismo,
arremesso de dardos, lançamento do disco e saltos em comprimento, mas, como vimos,
nos jogos organizados por Aquiles para homenagear Pátroclo houve um duelo com
armas que se assemelha bastante a uma porfia gladiatória. No entanto, Aquiles, a
pedido dos seus compatriotas, mandou parar o combate quando Diómedes parecia
estar prestes a ferir Ajax no pescoço. A intervenção dos soldados gregos a assistirem à
peleja, dirigindo-se a Aquiles, que presidia aos jogos, antecipa a prática da arena
romana, em que a multidão comunicava por gritos ou gestos a sua vontade quanto ao
destino que merecia o gladiador vencido ao editor.

Mas avulta uma diferença muito substancial: os espectadores romanos toleravam


perfeitamente ferimentos graves e até a morte de um gladiador, porque estes
combatentes eram indivíduos desprovidos de estatuto social, como condenados,
prisioneiros de guerra e escravos, enquanto Ajax e Diómedes eram nobres, líderes
heróicos dos contingentes gregos em Troia. Mark Golden salientou que os homens
honrados nos jogos gregos eram heróis (como Pátroclo): «As competições afirmavam o
especial estatuto dos defuntos, ao mesmo tempo que … revelavam os dos vencedores
vivos»64 . Esta asserção também se pode aplicar aos jogos gladiatórios apresentados em
Roma durante a República, que honravam figuras importantes, frequentemente com
brilhantes carreiras militares 65
. T. Wiedemann descreveu o propósito destes munera
oferecidos como tributos funerários a grandes homens pelos seus filhos: «Na
República, um munus privado simbolizava a sobrevivência dos indivíduos na memória
dos seus concidadãos por causa da sua virtude militar»66.

63 M. Golden, Sport and Society in Ancient Greece, Cambridge, 1998, pp. 91-93.

64 Ibidem, pp. 92-93.

65 Sugeriu-se que os gladiadores empregues no primeiro munus oficialmente registado seriam prisioneiros de guerra
que marcharam na procissão triunfal de D. Iunius Pera. Veja-se RE, 10.1 (1914), 1026, 59. Não sobreviveram quaisquer
dados sobre os feitos políticos e bélicos de Pera, mas o ser-se honrado desta maneira inovadora e em público indica que
se tratava de alguém com muita importância, que possivelmente se distinguiu na guerra e na política do seu tempo, as
únicas carreiras abertas para um aristocrata romano. Tudo o que podemos afirmar seguramente é que ele pertencia a
uma das mais proeminentes famílias nobres da República romana. O seu filho Decimus, um dos que apresentou o
munus em sua honra, ocupou o cargo de cônsul dois anos antes do funeral e foi-lhe concedido o triunfo pelas suas
vitórias no Norte e Sul de Itália. Eis outros membros notáveis da família juniana. L. Iunius Brutus, que, segundo reza a
lenda, desempenhou um papel relevante na criação da própria República; M. Iunius Pera, um descendente de Pera, que,
mais tarde no século III a. C., foi nomeado dictator, uma magistratura constitucional de duração limitada, atribuída, em
momentos de crise, aos cidadãos mais ilustres da Urbs; e, por último, M. Iunius Brutus, líder dos assassinos de Júlio
César.

27
Em 2010, numa monografia sobre a gladiatura, Dario Battaglia, membro do Istituto
Ars Dimicandi de Milão e perito em «arqueologia experimental», contrariamente à
maioria dos estudiosos que advogaram a génese do fenómeno gladiatório num contexto
campano-lucaniano e etrusco, derramou nova luz sobre os diferentes géneros de lutas
agonísticas helénicas e a sua presença nas comunidades da Magna Graecia, em Itália,
preconizou a teoria de que as cidades campano-lucanianas teriam sido especialmente
influenciadas pelos Gregos, ao passo que, por outro lado, os Etruscos se teriam
inspirado em práticas dos Celtas. Ademais, Battaglia entende que a gladiatura não
começou em jogos funerários, mas em competições armadas em que se enfrentavam
cidadãos livres 67
. Este conjunto de argumentos deve ser tido em conta, se bem que
continuem a subsistir dúvidas sem solução à vista.

Os mais antigos combates gladiatórios romanos inscreveram-se num conjunto de


elaborados ritos funerários em honra e memória de indivíduos importantes; as famílias
serviam-se deles para facilitar a passagem de um parente defunto do mundo dos vivos
para o reino dos mortos e, paralelamente, aproveitavam para ostentar o seu estatuto e
poder. Frequentemente, o aristocrata falecido deixava instruções para o programa dos
eventos, e os seus familiares simplesmente punham em prática os seus últimos desejos.
Isto explica o motivo pelo qual os jogos funerários eram denominados como munera,
uma vez que significavam uma tarefa a ter de ser impreterivelmente cumprida, uma
«obrigação» para com o defunto, e, ao mesmo tempo, uma «dádiva» ou «oferta» ao
mesmo. Os munera eram um assunto de família, custeado a nível privado pelos seus
membros, como forma para realçar e até elevar a sua condição social. Eram, então,
organizados sem qualquer envolvimento estatal, mesmo que os seus patronos fossem
figuras destacadas e activas na vida pública. Assim, os antigos romanos tinham a
convicção de que estariam a efectuar um serviço aos mortos ao apresentarem tais jogos.
Embora não subsistam provas nesse sentido, em tempos muito recuados, os funerais
romanos podem ter implicado um género mais «frio» de sacrifício humano.

Prisioneiros e escravos de menor valor, adquiridos apenas para este propósito, talvez
fossem imolados de acordo com a crença de que a alma do defunto teria de se ver
purificada através do derramamento de sangue humano. Tertuliano, como vimos,
insistiu nesta tecla, mas possivelmente porque pretendia, acima de tudo, desacreditar
os combates gladiatórios. No entanto, a explicação deste escritor cristão acha-se,
igualmente numa obra mais antiga, pelo cálamo de Festo, que viveu no século II d. C.:
66 «Das Ende der Gladiatorenspiele», Nikephoros 8 (1995), p. 151.

67Cf. D. Battaglia e L. Ventura, De Rebus Gladiatoriis. Dal gymnasion al ludus attraverso i sepolcri, Rovello,
Assoziacione Ars Dimicandi, 2010, pp. 6-14. Battaglia foi quem redigiu o texto da obra, e Ventura o responsável pela
pesquisa bibliográfica.

28
«Era costume sacrificar cativos junto aos sepulcros de bravos guerreiros; quando a crueldade
deste hábito se tornou conhecida, passou a haver combates gladiatórios ao pé do local da
inumação».

Sérvio escreveu praticamente o mesmo:

«… sane mos erat in sepulchris virorum fortium captivos necari: quod postquam crudele
visum est, placuit gladiatores ante sepulchra dimicare, qui a bustis bustuarii appelati sunt»68.

Muitos autores refutam liminarmente a tese de que os combates gladiatórios


funcionariam como «substituto mais suave» para as imolações humanas. No entanto,
ficamos com a impressão de que eles talvez não consigam ver, mesmo diante dos seus
olhos, a lógica desta conexão sacrificial. Esses estudiosos alegaram que tanto os Gregos
como os Romanos, se, de facto, fizeram sacrifícios humanos durante cerimónias
fúnebres, degolavam as vítimas junto das piras dos defuntos ou queimavam-nas vivas,
mas nunca as poriam a lutar com armas umas contra as outras. Segundo tal
argumentação, os combates gladiatórios não teriam qualquer conexão com imolações
humanas, mas cabe perguntar se não houve mesmo uma raiz sacrificial na génese da
gladiatura.

***

Façamos uma pausa para apresentar um balanço crítico minimamente elucidativo


sobre a controvérsia em torno das origens dos combates gladiatórios. Ela partiu da
premissa de que os mais antigos munera romanos constituiriam, por assim dizer, uma
«anomalia» não romana. Tal ideia talvez reflicta um raciocínio precipitado. Na enorme
diversidade dos comportamentos humanos,a prática dos duelos enquanto performance
ritual, tanto para os vivos, como na qualidade de ritual em honra dos defuntos, não
significou um conceito bizarro. É muito provável que a «versão» romana do combate
gladiatório representasse o produto da sistematização de um fenómeno comum entre
os povos itálicos, e não se tratasse propriamente de uma «importação». Esta hipótese
deve ser equacionada, sobretudo tendo em conta a natureza bastante frágil dos
argumentos esgrimidos pelos autores que defenderam as duas principais teorias das
origens gladiatórias. A gladiatura significa, talvez, um rito quase universal, tanto lacial,
como etrusco e campaniano, cuja génese se perde na proto-história. Para Donald Kyle,
a questão até pode não ter uma resposta conclusiva, no sentido de definir uma origem
ou local precisos e únicos, implicando uma «simples transmissão linear» 69. No entanto,

68 Sérvio, Ad Aeneidos, 10.519.

69 Spectacles of Death in Ancient Rome, p. 45. «The origin of gladiatorial and beast combats is probably not a historical
question answerable in terms of a single original location (e. g. Etruria or Campania), a single original context (e.g.

29
deve valorar-se que, efectivamente, os tipos de gladiadores mais antigos correspondem
a imagens de inimigos estrangeiros de Roma, em especial o trácio (thraex) e,
sobretudo, o samnita (samnis ou samnes).

Conforme referimos, G. Ville considerou que, partindo de uma origem osco-samnita, a


gladiatura funerária passou à Etrúria e, daqui, até Roma, em princípios do século III a.
C. Para Michael Grant, todavia, o processo seria o inverso: uma tradição etrusca
adoptada pelos Campanianos do Sul e pelos Romanos 70
. No meio de tudo isto, a
incerteza afirma-se, assim, a norma. No entanto, de entre todas as teorias e hipóteses,
parece mais plausível uma combinação de influências etruscas e da Campânia, e as
guerras do século IV a. C. contra os Samnitas, uma fase possível para o nascimento da
gladiatura 71. Parece, então, que cabe procurar as raízes do fenómeno gladiatório na
Itália Central e Meridional 72.

***

Aproximadamente no fim do século IV ou princípio do III a. C., operou-se uma


evolução que acarretaria consequências significativas para a história da gladiatura.
Inicialmente religiosos e sagrados, os combates vieram a tornar-se profanos e
«espectaculares». Se bem que o pretexto funerário ainda tenha subsistido, pelo menos
até ao século II a. C., a função espectacular acabou por levar totalmente de vencida a
vertente fúnebre, no culminar de um longo processo de desenvolvimento. Ao ganharem
renovado sentido, os combates funerários passaram a ser mais regulamentados. Esta
regulamentação tornou-se perceptível quando foi preciso dar um nome concreto a estes
combatentes, a fim de os distinguir do domínio estritamente militar. Podemos então
afirmar que a verdadeira gladiatura apareceu com a noção da armatura. Este vocábulo
é fundamental para compreender a realidade do fenómeno gladiatório 73. Ainda hoje,
alguns estudiosos vertem amiúde armatura por «armadura», o que significa uma das

sacrifice, contests, vengeance, scapegoats), and a simple linear transmission (e. g. Etruria to Rome). Combats, sacrifices
and blood sports were simply too widespread in antiquity».

70 Gladiators…, pp. 17-18.

71 F. Quezada Sanz, «En honor del difunto. El origen de la gladiatura en Roma», p. 9.

72 G. Ville, La gladiature…, pp. 1-56, J.-C. Golvin e Ch. Landes, Amphithéâtres et gladiateurs, Paris, 1990, pp. 25-29.

73 Aspecto que, em finais do século XIX, já é mencionado por G. Lafaye, «Gladiator», in C. Daremberg e E. Saglio
(eds.), Dictionnaire des Antiquités romaines et grecques, IV, 1896, p. 1586ss; posteriormente, L. Robert referiu-se
também às armaturae (Les gladiateurs dans l’Orient grec, Paris, Bibliothèque de l’École pratique des hautes études,
1940, p. 304), bem como R. Auguet, Cruaté et civilisation, pp. 64-79, embora as mesmas nem sempre se viram bem
tipificadas. Em tempos mais recentes, três autores enfatizaram particularmente a importância do vocábulo armaturae,
com base em novos critérios e diferentes interpretações: M. Junkelmann, Gladiatoren: Das Spiel mit dem Tod, pp. 101-
102; F. Coarelli, «L’armamento e le classi di gladiatori», in A. La Regina (ed.), Sangue e Arena…, pp. 153-173; E.
Teyssier, La mort en face…, pp. 19-20.

30
numerosas contradições ou ideias erróneas que teimam em prevalecer sobre esta
matéria. Com efeito, tal étimo faz assomar à mente a imagem de um guerreiro
inteiramente «couraçado» de finais da Idade Média. Esta ideia, por seu lado, é
esporadicamente realçada por historiadores que se servem de expressões artificiais e
erróneas, descrevendo os gladiadores como indivíduos «armados dos pés à cabeça» ou
gladiadores «pesados» que alegadamente lutariam contra outros «ligeiros», igualmente
anacrónicos.

O termo armatura reportava-se somente ao combatente, fosse um gladiador ou um


militar. Tito Lívio alude a milites armaturae gravis (soldados fortemente equipados»,
e Marco Túlio Cícero aos milites armaturae levis (soldados levemente equipados). Se,
por um lado, na esfera militar o termo armatura se refere a um combatente provido de
equipamento mais ou menos completo, por outro, esta dicotomia jamais se aplicou no
léxico gladiatório. No caso dos gladiadores, a palavra armatura não se podia entender
por si só, dado que tinha de estar sempre acompanhada por algo mais que a
explicitasse. Numa primeira fase, essa distinção assumiu um carácter étnico: as
armaturae samnita, gaulesa e trácia reportavam-se aqueles que lutavam com os
armamentos típicos destes povos. Mais tarde, a noção adquiriu uma conotação técnica,
quando apareceram em cena o eques («cavaleiro») ou o secutor («perseguidor»).
Contrariamente ao observável na esfera castrense, nunca se colocou a questão da
existência de uma divisão entre gladiadores «pesados» e gladiadores «ligeiros». Este
género de abordagem, que vários estudiosos ainda adoptam, é um anacronismo que
advém dos desportos modernos e se aplicadou erradamente à gladiatura, uma vez que
nenhum desporto antigo conhecia categorias de peso.

No contexto da génese e da evolução das armaturae, a etapa fundamental ocorreu


quando os combatentes começaram a ser equipados de uma maneira mais precisa e
estável. Este ponto de viragem assaz importante na génese do fenómeno levou à criação
da primeira armatura, a samnita, no fim do século IV a. C., em princípio pelos
Campanianos (mais concretamente os habitantes de Cápua, no Centro da Campânia).
Na centúria subsequente, terá sido a vez de os Etruscos usarem as armas dos seus
principais inimigos, adoptando a armatura gaulesa. Ainda que faltem provas
documentais, é possível que neste momento histórico esses combates tenham sido
protagonizados por prisioneiros de guerra obrigados a lutar uns contra os outros,
munidos dos equipamentos característicos das étnias inimigas.

Os primeiros espectáculos gladiatórios em Roma

31
Convém escrutinar judiciosamente o teor das fontes literárias, já que a maior parte
delas (Floro, Tito Lívio, Cícero e, em menor grau, Políbio) é geralmente bastante
posterior aos factos narrados; assim, tais escritos podem comportar, pelo menos
parcialmente, transposições da realidade em que esses autores viveram para o passado,
ao relatarem a situação dos gladiadores nos séculos IV e III a. C. Cabe, pois, manter
uma atitude cautelosa em relação às fontes literárias. A data que estas registam para o
mais antigo munus na cidade de Roma é 264 a. C., a qual é aceite por quase todos os
historiadores actuais. Porém, colhem-se indícios de que talvez antes já se organizassem
combates gladiatórios na Urbs 74
. É em Suetónio que se colhem os dados mais
concretos: historiador atribuiu o estabelecimento de munera regulares e patrocinados
pelo «Estado» a Tarquínio-o-Antigo ou Prisco (que, de acordo com a tradição, terá
reinado de 616 a 579 a. C.). Os Tarquínios 75 são geralmente associados aos começos do
desenvolvimento de Roma como entidade urbana e à introdução de instituições típicas
de um modus vivendi civilizado76. Sob a égide dos Tarquínios, drenou-se o espaço onde
se ergueu o Forum (também projectado por esta altura), construiu-se o Templo
Capitolino, ganhando então a cidade de Roma muitos elementos reveladores de alta
cultura.

Mais pertinente para o assunto em foco é a suposta influência tarquiniana na religião e


nos símbolos estatais. A ênfase romana na manutenção de uma relação altamente
formalizada com os poderes divinos, bem como as formas particulares que essa relação
assumiu, foi atribuída ao duradouro prestígio da prática etrusca. De facto, Roma
adoptou vários «marcadores» políticos (atrás mencionados), como a sella curul, a toga,
os fasces e a própria cerimónia do triunfo77, precisamente no período da denominada
«hegemonia» etrusca. Pode ter sucedido que os munera, instituição comemorativa
quase religiosa e de antiguidade incerta mas com conotações políticas definidas, se
74 Assinalam-se sugestões neste sentido em J.-C. Golvin, L'Amphitéâtre romain. Essai sur la théorisation de sa forme
et de ses functions, t. I, Paris, De Boccard, 1988, pp. 17-21.

75 Atentemos às palavras de Suetónio: Tarquinius Priscus prior Romanis duo paria gladiatorum edidit quae
comparavit per annos XXVI, que é citado por A. Reifferschied, C. Suetonii Tranquilli praeter Caesarum libros
reliquiae, Leipzig, B. G. Teubner, 1860, p. 320. Não se afigura claro em que obra suetoniana estaria inserido este
fragmento textual: podia encontrar-se no De Regibus, enquanto parcela de uma lista presumivelmente mais extensa das
iniciativas mais relevantes tomadas por Tarquínio. Resta também a alternativa dessa frase haver estado incluída nos
livros de Suetónio sobre os jogos e os espectáculos romanos, fazendo parte de uma explicação mais detalhada da
natureza e das origens dos munera, escritos que lamentavelmente se perderam: G. Ville não conferiu grande
importância à passagem acima referida (La Gladiature, p. 8, n. 32).

76 Sobre a influência etrusca em Roma: L. Bonfante, «Roman Triumphs and Etruscan Kings: The Changing Face of the
Triumph», JRS 60 (1970), pp. 49-66 , e IDEM, Out of Etruria, Oxford, BAR International Series, 1981, pp. 93-110. T. J.
Cornell, por seu lado, na obra The Beginnings of Rome, Londres, 1995, pp. 156-172, apresenta um modelo diferente para
esta interacção cultural, pondo em causa a primazia etrusca.

77 Para alguns filólogos, os étimos populus e miles, respectivamente «povo» e «soldado», derivam igualmente de
palavras etruscas.

32
entendessem ulteriormente como havendo «chegado» a Roma dentro do contexto
global do progresso «civilizador» dos reis etruscos. Ora esta interpretação encontra um
paralelo no hábito assinalável nas fontes literárias romanas da construção de um
derivado etrusco da prática como um todo.

Também potencialmente importante para o pano de fundo dos mais antigos munera
romanos foi o desenvolvimento continuado dos Jogos: os ludi 78
romanos, em regra,
foram intimamente identificados com as cerimónias religiosas do Estado romano, as
mais antigas delas sendo a Equirria e a Consualia, respectivamente em honra de Marte
e Consus. Os jogos votivos, prometidos habitualmente a Júpiter em troca de êxitos
militares, vieram a regularizar-se sob a designação de Ludi Magni, celebrando-se
anualmente. Os grandes Ludi, incluindo a Floralia e a Cerialia, terão sido adicionados
ao calendário romano sobretudo durante o século III a. C., período de manifesta
relevância crítica para a expansão da influência romana para além da Itália Central,
uma fase que se invocava o auxílio divino, porque especialmente necessário e
propiciador da concessão de vitórias 79.

Certamente que não é uma simples coincidência que a data atribuída ao primeiro
munus em Roma se situe em meados do século III a. C. Mas pode-se efectivamente
aceitar tal data como algo absoluto? Ou será que os Romanos assistiram a espectáculos
de gladiadores antes de 264 a. C.? Captamos provas indirectas disto nas iniciativas
empreendidas por um tal C. Maenius, e no vocábulo específico para as divisões
existentes entre lugares sentados nos anfiteatros, maeniana. Ménio, que foi censor em
338 a. C., mandou erigir uma coluna no Forum, a oeste do Comitium, e a sul do Carcer
80
. De acordo com Festo, os maeniana derivaram de Maenius, já que este fora o
primeiro a aumentar a capacidade dos lugares sentados no Forum, destinados ao
público durante os espectáculos (no entanto, a palavra utilizada, spectacula, podia
apenas reportar-se a entretenimentos em geral, e não aos munera em particular 81
).

78Os ludi eram festividades em honra das divindades e eventos estatais, no decurso das quais se ofereciam diversos
entretenimentos. O étimo ludus tem aqui a acepção de «jogo» ou «exercício», aplicando-o os Romanos, antes do século
III, às corridas de carros no Circo (ludi circences) e às representações teatrais (ludi scaenici ou ludi theatralis), não o
misturando com a palavra munus, isto é, os combates gladiatórios. A este respeito, veja-se J. Toutain, «Ludi public!», in
C. Daremberg e e E. Saglio (eds.), Dictionnaire des Antiquités..., vol. III.1 [D-S], pp. 362-378. Importa realçar que, mais
tarde, o vocábulo ludus também passou a designar as «escolas» ou centros de treino dos gladiadores e dos venatores.

79 Sobre o tópico da associação das conquistas territoriais do expansionismo romano com a organização oficial de
jogos, cf. Th. Mommsen, «Ludi Romani», Römische Forschungen, Berlim, Weidman, 1864-1879, e G. Jennison,
Animals for Show and Pleasure in Ancient Rome, Manchester, Manchester University Press, 1937, pp. 42-43.

80 É o mesmo Maenius que erigiu os Rostra a seguir à batalha de Antium. Para a localização precisa da coluna, veja-se
F. Coarelli, Il foro romano, vol. II, Roma, Quasar, 1983-1985, pp. 39-53.

81 Cf. Festo, De Verborum Significatione, par. 135 M = par. 107 Th: Maeniana appelata sunt a Maenio censore, qui
primus in foro ultra columnas tigna proiecit, quo ampliarentur superiora spectacula. Veja-se S. Shadrake, The World
of the Gladiator…, p. 50.

33
Assim, a identificação de Maenius com os assentos para os espectadores de combates
gladiatórios sugere que tal facto ocorreu em finais do século IV a. C 82.

Descortina-se outro indício da existência de combates gladiatórios antes do século III


na introdução da armatura samnita. Presume-se que os tipos de gladiadores «étnicos»
conhecerem a sua origem através da utilização de prisioneiros de guerra forçados a
participar em duelos 83
. Em conformidade com tal premissa, o período temporal mais
lógico da codificação do tipo samnes pelos Romanos inscrever-se-ia, obviamente, nas
Guerras Samnitas, que se desenrolaram entre 343 e 290 a. C., isto é, antes da primeira
exibição gladiatória textualmente conhecida em Roma 84.

Centremo-nos, então, no munus que teve lugar em Roma, em 264 a. C. (ano em que
começaria a Primeira Guerra Púnica). De acordo com Tito Lívio, «Decimus Iunius
Brutus foi o primeiro a organizar combates gladiatórios em honra do seu falecido
pai»85. Esta asserção vê-se reiterada por Valério Máximo, que incluiu mais detalhes,
especificando quais foram os editores e em que local ocorreu o munus:

«O primeiro espectáculo de gladiadores oferecido a Roma foi apresentado no forum boarium,


sob o consulado de Appius Claudius e de M. Fulvius. Foi organizado por Marcus e Decimus,
filhos de Brutus, para prestar as honras fúnebres aos despojos mortais do seu pai [ano 489 de
Roma]. Quanto aos combates dos atletas [athletarium], deveram-se à munificência de M.
Scaurus»)86 .

Os dois filhos do ex-cônsul D. Iunius Brutus Pera apresentaram o munus pouco após
o funeral do seu progenitor, no mercado do gado, situado perto da Ilha Tiberina, o
chamado Forum boarium 87
. Existem mais pormenores sobre este evento, que vale a
pena mencionar: eles encontram-se em fontes escritas muito posteriormente (afora
Valério Máximo) ao episódio narrado, mas não deixam ser revelar credíveis; Ausónio,

82 A. Futrell, Blood in the Arena..., p. 20.

83 O termo, em si mesmo, não apareceu entre os Samnitas. Não faria qualquer sentido que eles próprios possuíssem um
tipo de gladiador denominado Samnis. Isto sugere, pois, uma perspectiva exterior aos samnitas. Cf. P. Meier, De
Gladiatura Romana: Quaestiones Selectae, tese de doutoramento apresentada à Universidade de Bona, 1881, pp. 14-20.

84 A discrepância entre as datas das Guerras Samnitas e a da introdução tradicional dos munera em Roma no século
III a. C., talvez se explique caso encaremos a armatura samnis como uma espécie de relíquia do sistema campaniano ou
etrusco, posteriormente adoptada pelos Romanos.

85 Tito Lívio, Epit. 16: D. Iunius Brutus munus gladiatorium in honorem defuncti patris primus edidit. Veja-se J.-C.
Golvin, L' Amphitéâtre romain. Essai…, t. I, pp. 17-18.

86 Valério Máximo, Factorum et Dictorum Memorabilium, 2.4.7: Nam gladiatorium munus primum Romae datum
foro Boario Ap. Claudio, M. Fulvio consulibus: dederunt Marcus et Decimus filii Bruti Perae funebri memoria patris
cineris honorando. Note-se que em alguns manuscritos o «Perae» está omisso. Valério Máximo a sua obra
(alternativamente intitulada Facta et Dicta Memorabilia/«Factos e ditos memoráveis») durante o reinado de Tibério,
baseando-se em Tito Lívio e nos anais enquanto mananciais informativos. No entanto, as suas fortes semelhanças com o
relato de Tito Lívio devem-se, possivelmente, mais ao facto de os dois autores recorrerem aos dados analísticos.

87 O primitivo Forum boarium foi um lugar fundamental na configuração da Roma arcaica e republicana. O seu
simbolismo e carácter sagrado são manifestos. Veja-se, a propósito, F. Coarelli, Il Foro Boario. Dalle origini alla fine
della Republica, Roma, 1988.

34
no século IV d. C., adianta que participaram três pares de gladiadores, que lutaram
sucessivamente, de acordo com o «estilo trácio» 88; um contemporâneo desse poeta,
Sérvio, especulou sobre a natureza inicial da instituição do munus e o costume de se
utilizarem cativos obedecendo a algum género de obrigação devida ao defunto. Aqui
observa-se uma implicação, a da alta condição do falecido, o que, per se, justificava tal
prática, mas Sérvio contribuiu com mais alguns detalhes sobre a celebração juniana 89.
Assim, estes testemunhos mostram-se concordantes ao realçar que o espectáculo de
264 a. C. foi o primeiro munus a ocorrer em Roma, ganhando este ano o carácter de
data «canónica».

A gens Iunia estava associada ao lendário passado de Roma, designadamente com a


própria presença etrusca na Cidade 90. O mais antigo indivíduo portador desse nome foi
um certo Marcus, que desposou a irmã de Tarquínio-o-Soberbo, adquirindo, assim,
laços mais estreitos com a Etrúria. O filho que resultou desta união, Lucius Iunius
Brutus, foi o celebrado libertador do povo romano, o fundador da República romana e
o seu primeiro cônsul. A historicidade desta figura, à semelhança do que sucede com
outros personagens do remoto passado de Roma, afigura-se questionável, bem como a
sua conexão com o histórico clã Juniano. Porém, uma coisa é certa: L. Iunius Brutus foi
um patrício, ao passo que a posterior gens era plebeia 91. Outra questão que fica por
explicar é o da execução dos dois filhos de Brutus, o que limitou, no mínimo, a sua
descendência directa92. Contudo, os detentores do nome Iunius durante a República
reivindicaram e defenderam veementemente a sua ligação de parentesco com o
afamado libertador do povo romano.

Outro aspecto estranho é o duplo cognomen do defunto, Brutus e Pera, que são
ambos cognomina conhecidos dos Iunii, mas, à excepção do trecho de Valério Máximo,
jamais aparecem juntos em nenhuma outra fonte, sabendo-se que estes dois ramos da
família se separaram em tempos ainda recuados . Mas o cognomen Brutus Pera não
93

88 Ausónio, Griphus, 36-37: tris primas Thraecum pugnas tribus ordine bellis Iuniadae patrio inferias misere
sepulcro.

89 Sérvio, Ad Aen. 3.67: Apud veteres etiam homines interficiebantur, sed mortuo Iunio Bruto cum multae gentes ad
eius funus captivos misissent, nepos illius eos qui missi erant inter se composuit, et sic pugnaverunt: et quod muneri
missi erant, inde munus appellatum. Para a questão do sacrifício humano, A. Futrell, Blood in the Arena, cap. 5: «The
Magic Ring: Human Sacrifice in the Arena», pp. 169-210.

90 W. Smith (ed.), A Dictionary of Greek and Roman Biography and Mythology, vol. I, Londres, J. Murray, 1876, pp.
507-513; II, p. 658; F. Münzer, «Iunius Brutus», RE, 10: I, col. 1023.

91 B. Niebuhr, The Roman History, vol. I, Londres, C. and J. Rivington, 1827, pp. 522-530

92 Possidónio sugeriu a existência de um terceiro filho, que seria ainda criança aquando das mortes dos seus irmãos,
autor que Plutarco cita em Brut. I.

93 Atestam-se outros cognomina: Bubulcus, Gracchanus, Norbanus, Paciaecus, Pennus, Pullus e Silanus.

35
invalida o relato, já que a sua invulgaridade não prova a sua falta de historicidade 94
.
Tito Lívio e Sérvio não utilizaram o cognomen Pera, omissão que torna mais fácil uma
possível identificação com um homem concreto: pode ter correspondido a Iunius
Brutus Scaeva, que foi cônsul em 292 a. C. 95
. Sob os seus auspícios, empreendeu-se
uma campanha vitoriosa contra os Faliscanos, que foram derrotados, o que
proporciona um contexto para a existência de um vínculo mais recente com os vizinhos
setentrionais de Roma e, assim, o eventual acesso a tradições funerárias alternativas
não romanas. A vitória faliscana também poderia explicar que ele tivesse à mão
prisioneiros de guerra, o que se coaduna com as palavras de Sérvio. No entanto, depois
de haverem passado umas três décadas, os cativos do conflito já estariam muito
decrépitos em 264 a. C.

Se o cognomen Brutus foi erradamente atribuído pelas fontes ao primeiro indivíduo


honrado por meio de combates gladiatórios, então o defunto talvez fosse o pai de D.
Iunius Pera, cônsul em 266 a. C., juntamente com N. Fabius Pictor . O primeiro
96

venceu, em duas ocasiões distintas, os Sassinates, Sollentini e os Messapii. Neste


sentido, é lícito supor que os prisioneiros itálicos, que se trouxeram para Roma a fim de
integrarem os cortejos triunfais, tenham sido forçados a combater nesses ludi funebres.
Novamente, o acesso a cativos de guerra significaria uma vantagem para os editores
desses jogos, que comportaram apenas três pares de homens lutando no munus,
quando a aquisição de mais combatentes não representaria um fardo excessivo em
termos de «gastos»97.

O próprio sítio onde teve lugar o munus difere consoante as fontes: Valério Máximo
especifica que foi no Forum boarium, enquanto Ausónio o localiza junto do próprio
túmulo, perto de uma zona simbolicamente importante fora das muralhas da cidade 98.
Ausónio, como vimos, acrescentou que se tratava de gladiadores do tipo thraex. A data
para a introdução deste armatura ainda suscita debates e incertezas. Segundo alguns
estudiosos, os mercenários trácios terão sido capturados no decurso da guerra movida
contra Perseu (171-167 a. C.) e, a seguir, levados para Roma, onde foram obrigados a

94 F. Münzer («Iunius Brutus», RE, 10:I, col. 1026) aceitou o duplo cognomen.

95 Tito Lívio, Ab Urb. Cond. 10.43.47.

96T. R. Broughton, The Magistrates of the Roman Republic, vol. I, Cleveland, Cleveland Press of Case Western
University, 1968, pp. 201-202; veja-se também Münzer, «Iunius Brutus», RE, 10: I, nº 124. Curiosamente, o filho do
cônsul de 266 a. C. tornou-se dictator em 216, depois da batalha de Canas, no mesmo ano em que se apresentou o
munus emiliano.

97 A. Futrell, Blood in the Arena…, p. 22.

98 Remetemos para as disposições referentes aos sepultamentos extramuros, consignadas numa das Doze Tábuas
(Tábua X, «Lei Sagrada»). Veja-se o conteúdo das Doze Tábuas em E. H. Warmington (ed.), Remains of Old Latin, 3,
Cambridge, Mass., Harvard University Press, 1935, pp. 424-513.

36
lutar como gladiadores 99
. Para outros, eles terão surgido no tempo de Lúcio Cornélio
Sula (Lucius Cornelius Sulla), após a guerra mitridática de meados da década de 80 a.
C. . Ambas as teorias defendem a emergência do estilo de combate thraex bastante
100

depois de 264 a. C., pelo que Ausónio recorreu provavelmente a uma espécie de licença
poética, anacrónica, na sua descrição do munus101.

A estes primeiros gladiadores, os autores antigos chamaram bustuarii, étimo que


deriva de bustum, significando uma pira funerária ou um túmulo. Mas isto não quer
dizer necessariamente que os combatentes tenham lutado mesmo junto do túmulo do
defunto, apenas que a actuação dos mesmos fazia parte integrante de uma cerimónia
fúnebre: em princípio, devem ter combatido algum tempo após o funeral propriamente
dito, a seguir a um breve período de luto, isto é, volvidos nove dias após a inumação 102
.
O étimo bustuarius, sinónimo de gladiador, permaneceu em uso corrente em Roma até,
pelo menos, ao tempo de Cícero 103. Os três pares parecem apropriados para um evento
celebrado pela primeira vez, um modesto começo num cenário também relativamente
modesto, ao passo que a identificação dos gladiadores como «cativos» se adequa ao
facto de os prisioneiros de guerra representarem uma das principais fontes para a
obtenção de homens para a arena ao longo da história dos jogos.

Haveria interesse em apurar se os combates do munus celebrado em 264 a. C.


terminaram ou não com a morte de um dos adversários. Devido à falta de provas, é
impossível respondermos categoricamente a esta questão. Ausónio conta que os três
pares de gladiadores foram apresentados enquanto oferenda funerária para o túmulo
de Pera, o que talvez sugira, mas não forçosamente, que a morte seria um desfecho
esperado 104
. Mas o poeta representa um testemunho assaz tardio (seis séculos após o
evento relatado), daí que possivelmente não seja fiável neste aspecto. Donald Kyle
sustentou a ideia de que os primeiros gladiadores terão lutado até à morte 105.

No entanto, o primeiro caso documentado de combates gladiatórios em que não se


permitiu que um oponente vencido fosse poupado remonta a finais do século I a. C.

99 J. Henzen, Explicatio Musivi..., pp. 112-113.

100 P. Meier (De Gladiatura..., p. 33) citou Plutarco (Vida de Crasso, 8) na descrição dos ludi de Lêntulo.

101 Lembremos que Ausónio escreveu cerca de setecentos anos depois do evento narrado, num momento histórico em
que os combates gladiatórios já há muito se encontravam estabelecidos e padronizados.

102 R. Auguet, Cruauté et civilisation…., p. 19.

103 Cícero, Pis. 19.

104 Gryphus, 37.

105 Spectacles of Death..., pp. 47-49.

37
Acreditamos que estes primeiros confrontos em Roma foram como os que se lhe
seguiram até ao fim da República – duelos que podiam culminar numa morte, mas não
obrigatoriamente. Um gladiador podia alcançar a vitória deixando o seu adversário
apenas incapaz ou sem vontade de continuar a porfia. Esta interpretação inserir-se-ia
numa certa continuidade histórica, se tivermos em conta a sugestão proposta por David
S. Potter, de que os combates de gladiadores do século IV a. C., no Sul de Itália,
durariam até à primeira aparição de sangue 106
. A aceitarmos esta interpretação, então
esses combates na Itália Meridional podem mesmo ter influenciado o «formato» dos
primeiros duelos em Roma, mesmo eventualmente com uma influência etrusca de
permeio.

O munus em memória de D. Iunius Brutus Pera foi suficientemente importante ao


ponto de vários autores antigos o assinalarem como um marco na história de Roma.
Estes ludi funebres consistiam, como dissemos, numa manifestação organizada pela
família do falecido, para a qual se convidavam os cidadãos da cidade. Os combates que
para essa ocasião se travavam entendiam-se na qualidade de um presente, munus,
oferecido em memória do ente desaparecido (Lívio, Ab Urb. Cond. 23.30.15). Através
desta cerimónia, o munerarius prestava homenagem ao seu parente falecido, mas ao
mesmo tempo, aproveitava para demonstrar o seu peso político na cidade, ao reunir,
em torno das exéquias e do munus, o maior número possível de espectadores, que
acorriam ao evento atraídos pelos combates107.

Em menos de cem anos, a gladiatura despertou um interesse e um entusiasmo cada


vez mais fortes entre os Romanos, pelo que com o passar dos anos, estes combates
ganharam crescente amplitude e frequência. O munus seguinte mencionado nas fontes
literárias foi em 215 a. C., quando, como conta Tito Lívio, «os três filhos, Lucius,
Marcus e Quintus, ofereceram jogos funerários ao longo de três dias e 22 pares de
gladiadores no Forum, em honra [do seu pai] M. Aemilius Lepidus, que fora duas vezes
cônsul e áugure» 108
. A atmosfera em que decorreu o evento mostrou-se ainda de
natureza mortuária, mas o munus em si mesmo adquiriu maior espectacularidade,

106 D. S. Potter, «Gladiators and Blood Sport», in M. Winkler (ed.), Gladiator: Film and History, Malden, Mass., 2004,
p. 80.

107 G. Ville advertiu para a diferença essencial entre os munera privados e os ludi públicos, que desta forma explica o
emprego da expressão munus gladiatorium em vez de ludus gladiatorium (La gladiature…, p. 19): «Cela vient de ce
que les ludi privati, c’est-à-dire surtout des jeux funéraires, s’étaient réduits de plus en plus à un cadeau de gladiateurs,
et que l’expression munus, que désigne le cadeau d’un mécène, se dit tout de même plus souvent des gladiateurs qu’il
offre à titre privé que des jeux publics qu’il offre une fois élut magistrat…».

108 Tito Lívio, Ab Urb. Cond. 23.30: Et M. Aemilio Lepido, qui bis consul augurque fuerat, filli tres, Lucius, Marcus,
Quintus, ludos funebres per triduum et gladiatorum paria duo et viginti in foro dederunt.

38
passando de três pares de gladiadores, que combateram em 264, para 22 pares em 215
a. C.

O ramo nobre Lepidus, da gens Aemilia, surge pela primeira vez nos registos
históricos no início do século III a. C., com M. Emílio Lépido, cônsul em 285 a. C. a. C.
e, talvez, avô do defunto homenageado em 216 a. C. . A partir daí, os Aemilii Lepidi
109

converteram-se numa poderosa força política, tendo cônsules em quase todas as


gerações. O Lepidus honrado com o munus, que havia exercido o alto cargo de cônsul
em duas ocasiões (como escreveu Lívio), uma em 232, e a outra, possivelmente, em 220
a. C. . Durante o seu primeiro consulado, ele comandou tropas contra os Sardos.
110

Lucius e Quintus, seus filhos, são-nos conhecidos apenas mediante a citada passagem
liviana, mas já do outro, Marco, sabe-se que desempenhou as funções de pretor na
Sicília em 218 a. C., e ocupou possivelmente o mesmo cargo em Roma no ano seguinte.
Tito Lívio alude à sua candidatura mal sucedida ao consulado no ano de 216. Esta
primeira associação que se conhece entre a apresentação dos munera e a eleição para
os mais elevados ofícios da magistratura romana viria a converter-se num padrão-
chave na politização dos combates gladiatórios nos tempos ulteriores da República.

Capta-se mais um indício do carácter público na própria «localização» historiográfica


dos munera 111
. Lívio constitui a nossa fonte mais relevante para os mais antigos
combates atestados, daí que a compreensão do contexto em que estes se inseriram nos
escritos livianos seja essencial para a interpretação dos eventos. A notícia do munus
aparece, por assim dizer, «encaixada» entre os relatos da dedicação do Templo de
Vénus Erycinae e da celebração dos Ludi Romani e dos Ludi Plebeii, que significavam
grandes acontecimentos estatais anuais.

Houve realmente um intervalo de 45 anos entre a apresentação do «primeiro» munus


e o «segundo»? Para responder a esta questão formularam-se várias interpretações. De
acordo com uma delas, o costume de apresentar um espectáculo gladiatório no contexto
de uma cerimónia fúnebre pode não ter gozado de popularidade logo a seguir à sua
«primeira» ocorrência em 264 a. C. Isto implicaria que uma resistência inicial à
violência sangrenta dos combates gladiatórios. No entanto, esta teoria carece de
credibilidade se tivermos em conta a natureza belicosa do povo romano, sendo difícil
que este revelasse tais susceptibilidades 112.

109 W. Smith (ed.), A Dictionary of Greek and Roman Biography, II, pp. 762-770.

110 Tito Lívio, Ab Urb. Cond. 23.30; Políbio, 2.21; Zonaras, 8, p. 401.

111 A. Futrell, Blood in the Arena…, p. 23.

112 R. Dunkle, Gladiators…, pp. 153-154.

39
Congeminou-se uma explicação alternativa para o hiato entre o munus juniano e o
emiliano: numa primeira fase, Roma estaria decerto assoberbada com a Primeira
Guerra Púnica (264-241 a. C.) e, depois, com o começo da Segunda Guerra Púnica (218-
215 a. C.). Mas esta interpretação não leva em linha de conta o período de 23 anos que
separou os dois conflitos armados, nem o facto de o munus organizado em honra de
Lépido ter lugar no ano a seguir à pior derrota militar que os Romanos sofreram na sua
história, na batalha de Canas (Cannae), em 216 a. C. D. Kyle esgrimiu argumentos
convincentes no sentido de que a refrega terá conferido um forte ímpeto para o
aumento da frequência dos combates gladiatórios, servindo estes para encorajar os
Romanos mais inseguros através de demonstrações de brutal violência. Esta mensagem
viu-se, aliás, reforçada pela medida de se recrutarem escravos para combaterem como
soldados em nome de Roma, homens com a mesma condição social que os gladiadores
.
113

Por último, resta a possibilidade de se terem celebrado outros munera ao longo desse
período, mas nenhum significativo ao ponto de merecer referências nos registos
históricos. Tito Lívio conta que, em 174 a. C., se organizaram diversos munera, mas
todos insignificantes à excepção de um que ele teve o cuidado de descrever . A este
114

respeito, importa ter em mente um princípio geral: os munera mencionados nas fontes
literárias e epigráficas representaram, possivelmente, uma pequena percentagem em
relação a todos os que realmente se ofereceram em Roma. Se um munus não assumisse
clara relevância e não fosse apresentado por alguém ilustre, tornar-se-ia altamente
improvável que atraísse a atenção dos antigos historiadores. Aparentemente há indícios
que apontam para a ocorrência de numerosos munera em Roma e em várias outras
regiões de Itália, patrocinados por magistrados e cidadãos privados, mas foram quase
de imediato olvidados 115.

Como vimos, segundo Lívio, no munus em honra de Lepidus participaram 22 pares de


gladiadores, representando um salto significativo comparativamente com os três pares
de 264 a. C. Além disso, o espectáculo prolongou-se por três dias, quando o dedicado a
Iunius Pera apenas durou um dia. Os combatentes terão sido distribuídos de maneira
mais ou menos equitativa por esses três dias. Mas talvez a mudança mais significativa
seja a do local (isto se acreditarmos que o «primeiro» munus teve como palco o Forum

113 D. Kyle, Spectacles of Death…, pp. 47-49. Para o recrutamento dos escravos, vejam-se Tito Lívio, Ab Urb. Cond.
22.57.9-12, e Valério Máximo, Factorum et Dictorum Memorabilium, 7.6.1.

114 Tito Lívio, Ab Urb. Cond. 41.28.11.

115 J. C. Edmondson, «Dynamic Arenas: Gladiatorial Presentations in the City of Rome and the Construction of Roman
Society during the Early Empire», in W. J. Slater (ed.), Roman Theater and Society, Ann Arbor, Michigan, 1996, p. 76
(69-112).

40
boarium), travando-se as pugnas no Forum Romanum, o centro social, político,
jurídico e religioso da Cidade Eterna. Esta alteração parece apontar para a plena
aceitação da ideia de que os combates gladiatórios eram uma maneira apropriada para
os Romanos honrarem um parente falecido.

Sublinhemos também o aumento da popularidade destes eventos. Os organizadores


do munus de Lepidus devem ter calculado que 22 pares de gladiadores, ao longo de três
dias, atrairiam bastante gente, o que requereria um amplo espaço a céu aberto no
Forum. No entanto, cabe não depreender automaticamente que os familiares do
defunto tivessem total liberdade para agirem como mais lhes aprouvesse: na realidade,
o que acontecia é que a decisão da oferta do munus, assim como o número de
combatentes envolvidos, a data e o próprio local poderiam ter sido previamente
exarados, entre as instruções destinadas aos descendentes, no testamento do indivíduo
que dessa maneira se via homenageado 116.

Num testamento, as instruções para os descendentes apresentarem um munus foram


escritas num tom ameaçador: o famoso poeta Horácio relatou o episódio de um
«alpinista social» conhecido pela sua avarícia, chamado Staberius que, no documento
onde discriminou as suas últimas vontades, ordenara que os seus herdeiros fizessem
gravar no seu túmulo o valor patrimonial do legado, ao mesmo tempo que os advertiu
que se desobedecessem aos seus ditames seriam obrigados a organizar um munus
compreendendo cem pares de gladiadores (um grande espectáculo para munerari
privados e decerto muito oneroso!) . Julga-se que Staberius desejava anunciar
117

publicamente a sua generosidade póstuma em relação aos seus descendentes.

O notório recrudescimento do número de pares gladiatórios, quando cotejado com os


três que combateram em 264 a. C., sugere que, em 215, os três filhos de Lepidus viram
no munus não só uma ocasião para honrarem o seu progenitor, mas também uma
óptima oportunidade com vista a elevar a reputação e o prestígio da sua família, através
de uma exibição pública no coração simbólico de Roma (o Forum). Aqui, talvez
estejamos perante o mais antigo exemplo conhecido de competição entre os
aristocratas romanos, que rivalizavam uns contra os outros no intento de oferecerem
espectáculos cada vez maiores e melhores. Doravante, os patrícios possuiriam uma
outra saída para o seu desejo de se distinguirem dos demais e ganharem notoriedade –
o munus. Tendo em conta esse espírito de emulação que havia entre os membros da
elite, se o editor apresentasse um munus com o mesmo número (ou até menos) de

116 Séneca, Dial. 10.20.5; Cícero, Sull. 54.

117 Sat. 2.3.84-99.

41
gladiadores que o oferecido noutro espectáculo, isto representaria um tremendo
embaraço para o mesmo.

Durante o remanescente da época republicana, o número de gladiadores não cessou


de aumentar, acompanhado de uma magnificência cada vez maior dos jogos. Este
fenómeno prosseguiu sob o Império e de uma forma ainda mais avassaladora, já que os
imperadores, muitas vezes dispondo de recursos quase ilimitados, ofereceram munera
de enormes proporções, que, quando cotejados com os organizados durante a época
republicana, reduzem os últimos a uma espécie de «micro-espectáculos». A seguir à sua
descrição sumária do munus em honra de Lépido, Tito Lívio alude à celebração dos
Ludi Romani de 215 a. C.:

«Os curule aediles [edis curuis], C. Laetorius e Ti. Sempronius Gracchus […] ofereceram os
Ludi Romani, que se prolongaram pelo espaço de três dias» 118.

Os ludi, como referimos, eram festividades religiosas dedicadas aos deuses, mas que
incluíam corridas de quadrigas (ludi circenses, dado que tinham lugar em pistas, circi)
e representações teatrais (ludi scaenici ou ludi theatralis) que habitualmente se
realizavam no Forum. Ora esta menção aos Ludi Romani com a duração de três dias é
digna de ressalva, uma vez que o munus de Lepidus também se desenrolou no mesmo
número de dias que os primeiros, em honra de Júpiter, os mais prestigiados dos ludi
anuais119. Porém, não queremos com isto dizer que a simples duração de um munus,
patrocinado a nível privado, tivesse a «estatura» dos veneráveis Ludi Romani ou outros
afins: afinal, o munus servia para homenagear um ser humano (ainda que se tratando
de um importante membro da aristocracia romana), enquanto os ludi eram dedicados
aos deuses. Mas, de qualquer modo, queda implícita a crescente relevância dos
munera, competindo em popularidade com os entretenimentos apresentados nos ludi.
Dito isto, pensamos que os filhos de Lepidus tentaram responder a uma procura
pública por um género de espectáculo que o povo romano se sentia especialmente
atraído.

O subsequente munus de que temos registo foi oferecido pelos filhos de M. Valerius
Laevinius, que serviu como primeiro comandante das forças romanas na Guerra
Macedónia contra Filipe V, e que sucedeu ao grande M. Cláudio Marcelo, como general
na Sicília. Mas, na óptica dos Romanos, a maior honra de Laevinius terá sido o facto de
haver liderado a embaixada que trouxe para Roma, em 205 a. C., o culto da Magna

118 Tito Lívio, Ab Urb. Cond. 23.30.16.

119Os Ludi Romani eram muitas vezes chamados os «Grandes» (Magni) ou os «Maiores» (Maximi). Os Ludi Romani e
outros ludi anualmente celebrados, tais como os Ludi Plebeii (Jogos Plebeus), Ludi Cereales (em honra ao deus Ceres),
Ludi Apollinares (dedicados a Apolo), Ludi Florales (consagrados à deusa Flora) e os Ludi Megalenses (Cíbele), eram os
mais antigos destas festividades religiosas. Ao longo da República e da época imperial continuaram a acrescentar-se
outros ludi ao calendário religioso de Roma.

42
Mater (também conhecida pelo nome de Cíbele) de Pessinus, que actualmente
corresponde à cidade de Balhisar, na Turquia Central. Esta transferência da imagem de
Cíbele (que consistia numa simples pedra) e do seu respectivo culto para a Urbs
obedecera, segundo reza a tradição, a uma ordem ditada por um oráculo sibilino, como
acto necessário para a expulsão de Aníbal do solo itálico. Dois anos depois, o general
cartaginês viu-se forçado a abandonar definitivamente a península, partindo rumo a
África e, por fim, Roma ganhou a guerra. Consequentemente, sob o ponto de vista
religioso, a deusa recompensara a hospitalidade dispensada pela cidade, ao conceder-
lhe a vitória e, neste desfecho, Laevinius desempenhou um papel fundamental. Quando
o último morreu em 200 a. C., os seus dois filhos apresentaram um munus em sua
honra, consistindo em 25 pares de gladiadores 120, o que representa apenas um pequeno
acréscimo face aos 22 pares que participaram no funeral de Lepidus, mas isto pode ter-
se devido ao facto de existirem fundos limitados.

O seguinte munus celebrou-se em honra de P. Licinius Crassus (183 a. C.), cujo feito
mais notável se traduziu na sua eleição para o cargo de pontifex, ficando à cabeça de
um colégio de pontífices e que tinha como principal função supervisionar a religião
estatal romana121. Lívio não nos fornece a identidade do(s) seu(s) organizador(es), mas
o munus foi certamente apresentado por um filho ou outro parente masculino chegado.
Depois de um período de dezasseis anos, os 25 pares de gladiadores já não eram mais
vistos como um número impressionante, daí que o patrocinador (ou patrocinadores) do
munus de Crasso tenha aumentado a cifra para 60 pares, perfazendo o dobro dos
combatentes que intervieram no espectáculo em memória de Laevinius. Se bem que
Lívio não especifique a duração do munus de Crassus, é possível imaginarmos qual terá
sido: sabemos que no munus de Lepidus, os 22 combates repartiram-se por três dias,
uma média de algo mais de sete pugnas por dia.

Noutro munus, em honra de Flaminius (cf. infra), houve 37 confrontos durante três
dias, que, se distribuídos equitativamente, corresponderiam a doze em cada um dos
dois dias e treze no último. Assim, se nos ativermos a este padrão, os sessenta combates
do munus de Crasso necessitariam de cinco ou, no máximo, seis dias para concluir o
espectáculo, embora não se deva descartar a possibilidade de o programa se concretizar
num ritmo mais apressado 122. Ainda se acrescentou ao munus de Crassus ludi funebres
durante três dias, os quais, à semelhança dos ludi estatais consagrados às divindades,

120Tito Lívio, Ab Urb. Cond. 31.50.4.

121 Ibidem, 39.46.1.

122 G. Ville (La gladiature…, p. 396) calculou que treze combates seria o número máximo que se poderia apresentar
adequadamente num só dia de espectáculo.

43
incluíram, com toda a probabilidade, corridas de carros e peças teatrais. Aos
entretenimentos acrescentou-se a visceratio (a distribuição de carne pelos
espectadores), além de um banquete público (epulum), que se tornariam em elementos
frequentes nos funerais aristocráticos. O que aqui mais salta à vista é a preponderância
atribuída aos jogos gladiatórios, que com a sua duração, ofuscaram os restantes eventos
associados ao munus de Crassus.

Mas o constante aumento dos pares gladiatórios, desde 264 a. C., foi subitamente
interrompido pelo munus em homenagem ao famoso general T. Quinctitius Flaminius
(174 a. C.), que se destacou por sair triunfante na contenda contra Filipe V e por
desempenhar um activo papel na dominação romana no Oriente grego . Na sua
123

récita, Lívio refere que, no mesmo ano, se ofereceram diversos munera, mas nenhum
digno de importância, excepto o de Flaminius, mas o certo é que os 37 pares de
combatentes significaram um decréscimo de 23 pares relativamente ao espectáculo de
Crassus. O número relativamente pequeno de combates no munus de Flaminius pode
apreciar-se melhor quando cotejado com um outro que reuniu trinta pares, oferecido
em 132 a. C. por um tal C. Terêncio Lucano em honra do seu avô, que não teria grande
status, facto que se confirma por nem sequer haver escrito o seu nome completo 124. A
diminuição dos efectivos gladiatórios no espectáculo de Flaminius é especialmente
surpreendente se tivermos em conta a fama e prestígio do defunto. As fontes não
apresentam os motivos para este facto. Talvez tenha influído a preferência, do filho de
Flaminius, de reduzir o orçamento em relação aos gladiadores, a favor de gastar mais
capital noutros eventos populares, como a visceratio, o banquete público e as
representações teatrais 125
. Por outro lado, neste período cabe advertir para o aumento
das despesas na organização dos munera que se registou neste período, o que pode ter
pesado na decisão tomada pelo filho de Flaminius.

Com efeito, em meados do século II a. C. os gastos na apresentação de um munus de


certa qualidade se haviam tornado quase astronómicos: captamos um bom indicador
desta espiral nos custos dos munera no funeral de L. Emílio Paulo (Aemilius Paulus), o
general romano que venceu Perseu, filho de Filipe V, na batalha de Pidna, em 168 a. C.,
e faleceu em 160 a. C. Como os livros da obra de Lívio que narravam este período não
sobreviveram, vemo-nos compelidos a recorrer a Políbio, que, todavia, não demonstrou

123 Tito Lívio, Ab Urb. Cond. 41.28.11.

124 Plínio-o-Velho, Naturalis Historia, 35.52.

125Veja-se R. C. Beacham, Spectacle and Entertainment of Early Imperial Rome, New Haven, CT, 1999, pp. 14-15. Por
outro lado, A. Futrell (Blood in the Arena, p. 24) afirmou que se apresentaram 74 pares no munus em honra de
Flamínio, em 174 a. C. No entanto, a autora não reparou que Tito Lívio se referiu ao número total de gladiadores neste
munus, não aos pares.

44
interesse em mencionar o número de pares de gladiadores, mas, em compensação,
fornece dados sobre os gastos que implicaram a organização de um espectáculo
gladiatório de larga escala que teve lugar por essa altura. Políbio conta que, ao ver que o
seu irmão Fábio, um dos filhos de Paulo, não conseguia arcar com os custos do munus
em honra do pai, Cipião (que fora adoptado pela família Cipiónica), que mais tarde
ganharia a celebridade por haver sido o comandante do exército romano que derrotou
Cartago na Terceira Guerra Púnica, pagou metade das despesas 126
. O historiador
heleno afirmou ainda que um munus verdadeiramente apropriado para honrar um
grande conquistador custaria, no mínimo, 30 talentos 127
. É impossível calcular com
precisão qual seria o valor de uma soma de dinheiro no mundo antigo nos dias de hoje.
Políbio só nos diz que trinta talentos representavam uma «pletórica soma de dinheiro
[plethos]» . Ficamos com uma ligeira ideia deste valor se tivermos em conta que o
128

património global de Emílio Paulo ascenderia a pouco mais de 60 talentos 129


. Acresce
que este general, embora não imensamente rico, tinha bastantes posses 130
.
Consequentemente, as despesas com o munus consistiram em cerca de metade do valor
total dos bens de um indivíduo moderadamente próspero. E isto, atente-se, para um só
evento, que durou, no máximo, seis dias.

***

Detenhamo-nos neste montante de 30 talentos: facilmente se constata que é uma


soma avultada mas, ao mesmo tempo, vaga. Assim, procuremos avaliar este número
com mais exactidão. O talento de que fala Políbio representava 29, 196 kg, pelo que um
munus grandioso custaria o equivalente a 898 kg de prata, uma massa impressionante
mas, ainda assim, abstracto quanto ao seu valor concreto. Outras cifras do tempo de
Políbio podem ajudar-nos a imaginar a importância de tal soma: em 168 a. C., Perseu,
rei da Macedónia, preparava-se para guerrear contra os Romanos; para o efeito, propôs

126 31.28.1-6.

127 O talento era uma unidade monetária grega. Políbio escrevia para leitores helenos, pelo que facultou as somas de
acordo com o sistema grego. Para uma discussão mais pormenorizada sobre o problema de se efectuarem cálculos para
imaginar qual seria o valor dessas antigas quantias em dinheiro actualmente, veja-se R. C. Beacham, Spectacle and
Entertainment…, p. 258, n. 26.

128 Paul Veyne estimou que esta quantia serviria para pagar os soldos de 1500 legionários romanos durante um ano,
ascendendo a 720 000 sestércios: Bread and Circuses: Historical Sociology and Political Pluralism (tradução em
língua inglesa do original em francês Le pain et le cirque, Paris, Ed. du Seuil, 1976), Londres, 1990, p. 223, 271, n. 92. No
entanto, este reputado historiador não especificou como procedeu a tal cômputo.

129 Políbio, Hist. 31.28.3.

130 Paulo poderia ter sido um homem fabulosamente rico. A este respeito, é notável a sua atitude após a vitória sobre
Perseu: entregou grandes quantidades de ouro e prata (que encontrara nos palácios de Perseu) ao tesouro romano. Os
únicos despojos que tomou para si próprio foram os livros de Perseu, que aliás ofereceu aos seus filhos, Fábio e Cipião
(Plutarco, Aem. 28.10).

45
300 talentos a Genthios como prémio para a sua aliança; simultaneamente, Euménes, o
soberano de Pérgamo pediu-lhe 500 talentos como preço para a sua neutralidade e
mais 1500 para não se intrometer a fim de fazer cessar as hostilidades. Perseu estaria
então disposto a oferecer, no contexto de uma aliança militar, 9 toneladas de prata,
bem como 15 e 45 toneladas, respectivamente, para que o monarca de Pérgamo não se
intrometesse.

Assim, o preço de um munus não estava ao alcance de qualquer um, mas corresponde
bastante bem às quantias que estiveram em jogo quando os Romanos combateram os
Gregos no tempo de Políbio. De facto, neste período, os munera foram amiúde
organizados pelos generais vitoriosos que regressaram imensamente ricos das suas
campanhas no Oriente. Os editores podiam também ser políticos que tentavam captar o
favor da plebe, acalentando a esperança de se tornarem, a seguir, conquistadores.
Emílio Paulo trouxe da Macedónia um enorme volume de despojos, valendo cerca de
213 milhões de sestércios. Ora sabendo que a oferta de um munus faustoso conferia
grandes hipóteses de promoção social e política a um indivíduo rico e ambicioso, a
pequena tonelada de prata referida por Políbio como preço para um munus importante
parece, em termos económicos, relativamente razoável, tendo o seu organizador em
mente a perspectiva de mais tarde conseguir um retorno sobre o seu investimento.
Mais concretamente, qual seria o valor monetário de uma tal quantidade de metal
precioso? Se o denário romano de prata pesava 4,1 kg, no tempo de Políbio, cada
talento valeria então 7 120 denários. Ao multiplicarmos este número por 30, a soma
obtida é de 213 600 denários, ou seja, 854 400 sestércios (HS). No propósito de tornar
esta cifra menos abstracta, cabe convertê-la de uma maneira que seja mais objectiva.
Caso tomemos como ponto de referência o soldo anual auferido pelos legionários sob a
égide de Júlio César, 300 denários, atinge-se o pagamento anual de 712 soldados, que
formavam basicamente uma coorte.

Recordemos, comparativamente, que, em 52 a. C., em plena Guerra das Gálias, César


comandou doze legiões, isto é, 48 000 infantes, apoiados por milhares de tropas
auxiliares e, talvez, por uns 50 000 escravos e serviçais de toda a espécie. Aqui, uma vez
mais, se nos interessarmos ainda pelos «30 talentos» de Políbio, compreendemos sem
dificuldade que este montante era certamente muito considerável para um particular,
mas, por outro lado, coadunava-se com as capacidades financeiras de Roma no final da
República.

***

46
Os gastos com os munera subiram vertiginosamente devido à crescente popularidade
que foram assumindo os combates gladiatórios, facto que se encontra ilustrado, aliás,
por um episódio ocorrido precisamente durante o munus em honra de Paulo: o
dramaturgo Terêncio tinha apresentado pela primeira vez a sua peça Hecyra (que
significa «A Sogra») aquando dos Ludi Megalenses, em 165 a. C., mas teve de a
suspender por causa do barulho dos espectadores, que inquietos, se sentiram atraídos
por outros eventos que decorriam nas proximidades, envolvendo malabaristas e
pugilistas. Terêncio não desanimou e resolveu exibir a mesma peça no momento em
que teve lugar o munus em memória de Emílio Paulo, em 160 a. C. Mas de novo se
registaram problemas: durante o segundo acto, circulou o rumor, fora do teatro (que
consistia numa estrutura provisória montada em madeira), que iria ocorrer um
espectáculo gladiatório no mesmo recinto 131
. Por fim, Terêncio, não querendo desistir
do seu intento, voltou a apresentar a Hecyra pela terceira vez. Dirigindo-se aos
espectadores através de um discurso proferido pela boca de um dos seus personagens, o
autor pedia-lhes que tentassem assistir tranquilamente à peça:

«Mostro-vos novamente a Hecyra, porque nunca consegui apresentá-la no meio da calma.


Uma infelicidade impediu que tal acontecesse. A este infortúnio o vosso bom senso irá pôr
cobro, se me apoiardes na minha empresa. A primeira vez que apresentei a minha peça, tive de
abandonar a cena antes do fim por causa dos pugilistas, do seu grupo de apoiantes, por causa do
ruído, dos gritos das mulheres e, ademais, por se esperar a actuação de um funâmbulo.
Instruído pela minha experiência passada, fiz uma segunda tentiva para buscar manter a peça
em cena […]. O primeiro acto passou-se bem, mas, de súbito, circulou o rumor que ia haver
combates de gladiadores; o público abalou, gerou-se agitação, gritou-se e bateu-se nas bancadas.
Evidentemente que não consegui manter-me em cena. Hoje não há vadios e impera a calma, o
silêncio. A ocasião ofereceu-se para mostrar a minha peça, e vós tereis a possibilidade de prestar
honra a um divertimento teatral. Graças a vós, a arte cénica não será apenas o privilégio de uma
minoria. A seriedade da vossa atitude constituirá a defesa e a ilustração da seriedade do meu
trabalho».

Aqui, Terêncio atesta a oposição já então existente entre os jogos gladiatórios,


reputados de populares, e o teatro, que se tornava «o privilégio de uma minoria». O
dramaturgo também evoca a «seriedade», a «calma» e o «silêncio» do teatro, aspectos
que se contrapunham aos «gritos das mulheres», à «agitação» e à desordem,
característicos do comportamento do público que tanto vibrava com as pugnas
gladiatórias. O grande sucesso dos espectáculos, que se tornaram rapidamente numa
componente fundamental da vida romana, conduziria à sua oficialização pelo Senado
em 105 a. C. Esta data significa uma evolução relevante. Segundo Jean-Claude Golvin e
Christian Landes, a inserção dos munera gladiatoria nos ludi públicos traduz a
vontade de desenvolver jogos de «carácter viril, susceptíveis de contrariar a influência
demasiado grande dos jogos gregos, que, em relação aos valores romanos, apareciam

131 Terêncio, Hecyra, 39-41. No começo da época imperial, Horácio mostra-nos que, no seu tempo, as representações
teatrais continuavam a não cativar suficientemente o público, que preferia assistir a combates de pugilismo ou a
venationes envolvendo ursos.

47
como um risco de amolecimento e perversão» 132. Tomara-se igualmente a consciência
de que a popularidade dos jogos seria profícua para utilizá-la com propósitos políticos.

Na opinião de Monique Clavel-Levêque, por seu lado, a necessidade da celebração dos


munera e a sua crescente popularidade estiveram preferencialmente ligadas à imagem
simbólica da dominação do mundo, a um Império que submeteu a natureza, conquistou
povos e obteve abundante quantidade de escravos. Assim, para esta historiadora,
buscava-se excluir, através de um ritual, os elementos perigosos de uma comunidade
que não cessava de se dilatar. Neste sentido, o cariz «educativo e virilisante» dos
munera traduzia-se não só pela contemplação das técnicas de combate e da bravura na
morte, mas também, e principalmente, para garantir aos olhos de todos a ordem do
mundo133.

Mais tarde, os munera passaram a anunciar-se publicamente com certa antecedência


em relação à data aprazada, mas nestes tempos mais recuados, a programação do
evento e os anúncios faziam-se de maneira mais desordenada ou fortuita. Perante a
notícia da apresentação iminente de combates, a reacção do público causou uma grande
confusão, com gente a entrar precipitadamente no teatro, o que depressa gerou enorme
vozearia e violência, lutando os expectadores pelos seus lugares 134
. Trata-se dos
melhores testemunhos do que sentia o povo romano pelas pugnas gladiatórias.
Nenhum outro entretenimento, salvo as corridas circenses, conseguia verdadeiramente
rivalizar com os munera enquanto polo de atracção das multidões.

***

Sintetizemos os dados atrás expostos, ao mesmo tempo que introduzimos outros ainda
não referidos: embora os combates de gladiadores ainda conservassem a sua faceta
originariamente funerária, vieram a adquirir uma forte dimensão ideológica. A partir
do começo do século II a. C., a última amplificou-se na Roma conquistadora e
expansionista dos últimos duzentos anos da República. Com efeito, após a derrota de
Aníbal e a vitória decisiva sobre Cartago aquando da Segunda Guerra Púnica, Roma
deixou de possuir um adversário estrangeiro à sua medida. Ao longo dos séculos II e I
a. C., os êxitos bélicos dos «Filhos de Marte» sucederam-se praticamente sem

132 Amphitéâtres et gladiateurs…, p. 27.

133 M. Clavel-Levêque, L’empire en jeux. Espace symbolique et pratique sociale dans le monde romain, Paris, 1984,
pp. 63-77; IDEM, «Rituels de mort et consommation de gladiateurs: images de domination et pratiques impérialistes de
reproduction», in Mélange Lerat, Paris, 1984, pp. 189-208.

134 Consulte-se Holt Parker, «Plautus vs. Terence: Audience and Popularity Re-examined», AJP, 117.4 (1996), p. 593.

48
interrupções na Grécia, na Ásia, no Norte de África, na Hispânia e na Gália. Cada novo
triunfo conduziu à submissão de um número cada vez maior de povos e de regiões
distantes; nessas campanhas arrebatava-se, quase sempre, avultada quantidade de
despojos e cativos.

Se entre os Campanianos e os Etruscos o recurso aos prisioneiros de guerra se afigura


provável, entre os Romanos ela afirma-se mais do que garantida, como aliás se atesta
no famoso episódio de Espártaco. O emprego de prisioneiros de guerra num tipo de
espectáculo ainda muito ritualizado pode ser facilmente explanável por razões de
ordem económica e de segurança. Desde logo, cada campanha vitoriosa era secundada
por um afluxo de escravos para o mercado italiano. Estas fornadas de cativos que, em
certas ocasiões, até foram maciças, vieram a conduzir a uma queda relativa do preço
dos escravos. De facto, ainda que vendido, por assim dizer, «ao preço da chuva», um
escravo precisava de ser sempre alimentado pelo seu proprietário. Se este não lhe
pudesse confiar uma tarefa que compensasse o seu preço, o escravo «supranumerário»
rapidamente se transformava num fardo inútil.

Como a oferta de trabalho não era inesgotável na Itália do século II a. C., o brusco
afluxo de fornadas de prisioneiros após campanhas vitoriosas devia provavelmente
entupir esse mercado. Deste modo, tornava-se uma solução cómoda sacrificar uma
parte dos homens que o mercado da mão-de-obra servil não conseguia absorver. A
imagem é, claro está, cruel, mas a gladiatura representaria nesta época, quiçá, uma
maneira prática de reduzir a quantidade de escravos (no âmbito da oferta servil), o que
permitiria estabilizar mais os preços nesse mesmo mercado. Este critério estritamente
económico viu-se provavelmente reforçado por outro, relacionado com a segurança: se,
efectivamente, uma parte desses homens reduzidos à escravidão após uma vitória
militar era composta por guerreiros vencidos, estes seriam decerto os menos aptos a
aceitar a sua nova condição servil e, por extensão, os mais dispostos a revoltar-se.
Nestes dois casos, os Romanos teriam, claramente, interesse em extraírem do mercado
os indivíduos mais combativos e insubmissos para deles fazerem gladiadores. Esta
evolução rastreia-se, como atrás se disse, através do recrudescimento do número de
pares de gladiadores ao longo do século II a. C.

Em meados do século II a. C., os munera tornaram-se cada vez mais habituais e, em


simultâneo, crescentemente apreciados pela multidão. Não admira, pois, que este
fenómeno tenha ganho uma tal amplitude que chegou mesmo a competir com as
representações teatrais e a superá-las. Foi igualmente no início desta centúria que
apareceram as primeiras caçadas postas em cena. Por esta altura, o público romano já
havia observado, extasiado, a exibição de animais de grande porte e exóticos como os

49
elefantes, mas a primeira venatio propriamente dita foi a que patrocinou Marcus
Fulvius Nobilior, em 186 a. C. Neste espectáculo cinegético participaram leões, tigres e
leopardos – trazidos de várias regiões com grandes despesas até à cidade de Roma –
que lutaram entre si ou contra caçadores.

À semelhança do que acontecera com os primeiros gladiadores, cerca de oitenta anos


antes, as caçadas foram entusiasticamente acolhidas pelos espectadores. Juntamente
com as venationes instituiu-se a pena capital da damnatio ad bestias: este castigo
ignominioso, cuja primeira referência remonta a 167 a. C., aplicou-se a desertores
condenados a ser esmagados por elefantes. Vinte e um anos depois, aquando do triunfo
de Cipião Emiliano sobre Cartago, outros desertores foram, pela primeira vez, lançados
às feras.

Actualmente, muitas pessoas ainda confundem estes espectáculos com os combates


gladiatórios, embora tivessem naturezas bem distintas. O motivo para esta confusão
entre a gladiatura, a venatio e as execuções prende-se ao facto de os três eventos se
desenrolarem no mesmo recinto. Com efeito, desde a segunda metade do século II a. C.,
os Romanos puseram em cena três tipos de espectáculos diferentes, e, desde meados do
século I da nossa era, juntaram-se num só, que se caracterizava por um ritual bem
preciso que ocupava quase todo um dia, praticamente sem interrupções. A manhã era
consagrada às caçadas ou venationes; a seguir, por voltado meio-dia, tinham lugar as
execuções capitais que consistiam por vezes, mas não em exclusivo, na damnatio ad
bestias, em que se atiravam criminosos condenados, por vezes com os braços
amarrados, às feras sem esperança de salvação, o que a distinguia totalmente das
venationes. Saliente-se que as representações figurativas, que se cifram em centenas
para os gladiadores, são extremamente raras no que concerne à ilustração do suplício
dos condenados, sob o Alto-Império. Apuleio estabeleceu perfeitamente esta distinção
entre géneros:

«Quem possui suficiente talento ou suficiente eloquência para ser capaz de descrever, em
termos apropriados sob todos os seus aspectos, os diversos preparativos que se faziam? Aqui, os
gladiadores de braço renomado, ali, os bestiarii de uma agilidade comprovada, acolá, os
culpados, votados à morte, são cevados para servir de alimento às feras» (Apuleio, IV, 13).

Nesta passagem, Apuleio apresenta os três momentos fortes de um dia de espectáculo


no anfiteatro, durante a época imperial, não na sua ordem cronológica, mas segundo a
sua hierarquia em face dos gostos do público. Por último, desde o começo da tarde,
apresentavam-se os combates gladiatórios.

Também no século II a. C., a importância adquirida pela gladiatura coincidiu com o


aparecimento de práticas sumptuárias vindas do Oriente. Assim, esta gladiatura de

50
natureza ostentatória esteve indiscutivelmente associada ao recrudescimento do luxo
privado. Sob este prisma, estes combates já se encontrariam inseridos no quadro da
«decadência moral» condenada e denunciada, bastante tempo depois, por alguns
célebres intelectuais romanos. O constante crescimento da frequência, das proporções e
da popularidade dos munera tendem a provar que a gladiatura romana foi mudando de
natureza ao longo do século II a. C., o que se confirmou com particular acuidade na
última centúria da República. Se os guerreiros estrangeiros derrotados podiam fazer
bons gladiadores, o facto de se coagir antigos adversários dos campos de batalha a lutar
em espectáculos para satisfazer o prazer do povo romano não deixava de ter um
relevante significado sob o ponto de vista ideológico: cada combate adquiriu um valor
comemorativo, ao reavivar a lembrança dos anteriores triunfos de Roma, que foi
sempre empurrando para mais longe os limites territoriais da sua dominação. Esta
primeira «racionalização» dos combatentes correspondeu aos gladiadores «étnicos», já
que os guerreiros lutavam com as armas e as técnicas próprias das suas «nações».

Aparição das armaturae «étnicas»

Os «Samnitas» (samnitis/samnites)

Segundo Tito Lívio, que viveu no tempo de Augusto, o «nascimento» da mais antiga
armatura pode fixar-se em 310 ou 308 a. C. Os Romanos e os seus aliados Capuanos
obtiveram nesse ano uma significativa vitória sobre os Samnitas, durante a Segunda
Guerra Samnita (327-304 a. C.). Estes, ao combaterem, apareceram providos de
esplêndidos equipamentos, alguns guerreiros exibindo escudos ornados de ouro ou
prata. Depois de os derrotarem, os Romanos consagraram os despojos preciosos dos
Samnitas aos deuses, transportando os troféus para o Forum, enquanto os seus aliados
Capuanos afectaram essas armas para outro uso:

«Os Campanianos, por desprezo e ódio aos Samnitas, delas se serviram para armar os
gladiadores que lutaram durante os banquetes, os quais ficaram com o nome de Samnitas» 135.

Para Lívio, a invenção fundamental das armaturae sucedeu de maneira quase fortuita
e com o objectivo expresso de humilhar um inimigo detestado. É importante sublinhar
que nesta ocasião se empregaram as armas dos Samnitas, mas não os guerreiros feitos
cativos. Na realidade, na passagem acima citada, nada se diz que estes primeiros
gladiadores «étnicos» fossem escravos, nem que os combatentes consistiam em
135 Tito Lívio, Ab Urbe Condita, 9.40.17: «Campani ab superbia et odio Samnitium gladiatores, quod spectaculum
inter epulas erat, eo ornatu armarunt Samnitusmque nomine compellarunt». Veja-se, a propósito, Agnès Rouveret,
«Tite-Live, Histoire romaine, IX, 40: description des armées samnites ou les pièges de la symétrie», in Guerre et
sociétés en Italie (Ve-IVe s. avant J.-C.), PENS, Gap, 1988, pp. 91-120.

51
capuanos que se batessem voluntariamente com o equipamento bélico arrebatado ao
inimigo. Mas neste episódio descrito por Lívio, existe algo mais do que uma simples
demonstração de desprezo. Não resta a menor dúvida que esta prática conferia sentido
ao combate pelos vencedores. Ao regressarem do campo de batalha, os guerreiros
vitoriosos realçavam a bravura do antagonista vencido, sob o olhar dos seus
concidadãos: quanto mais aterradores os vencidos surgissem durante essas exibições,
maior era a glória que cabia aos vencedores.

Além da «pré-gladiatura» dos afrescos sepulcrais de Paestum, a primeira gladiatura


«étnica» deixou pouquíssimos vestígios tangíveis. Urge então recorrer a testemunhos
indirectos. Tito Lívio faculta uma definição do guerreiro samnita, que, aparentemente,
se aplica mais a finais do século IV a. C. do que ao gladiador homónimo. No entanto,
importa citar tal fonte, já que o gladiador «étnico» samnis, assim como o gaulês ou o
trácio, reutilizou a totalidade ou, pelo menos, parte do armamento do povo que
representava. Mas os únicos guerreiros samnitas que Tito Lívio pôde contemplar (este
historiador redigiu a sua obra no século I a. C.) foram certamente os gladiadores
pertencentes a tal armatura. Embora se tenha escorado em fontes textuais ou
representações figurativas mais antigas, é provável que os Samnitas que o autor
descreveu se aproximassem mais dos gladiadores assim designados 136:

«Eis qual era a forma do escudo, mais dilatado no sítio que cobre o tronco e os ombros, a sua
parte superior oferecia uma largura igual; a inferior estreitava-se em cunha, para que ele fosse
mais manejável. O peito do soldado era protegido por um tecido de feltro e a sua perna esquerda
botim. Os cascos eram sobrepujados por um penacho, para que perecessem mais altos os
homens que os cingiam».

Esta descrição fornece elementos valiosos. A menção ao «peito do soldado, protegido


por um tecido de feltro» reporta-se a uma protecção do tórax típica dos guerreiros
samnitas, chamada cardiophylax, pectorale ou spongia pectoris: ela podia ser
constituída por uma peça de tecido espesso, do mesmo género que o das couraças do
tipo linothorax (feitas com linho) da época helenística. Lamentavelmente, destas
protecções não restaram vestígios materiais, assim como as de feltro referidas por
Lívio. Em contrapartida, nos túmulos de guerreiros samnitas encontraram-se
numerosos espécimes de protecções para o tórax: consistem em três discos de bronze
destinados a defender os órgãos vitais do torso 137.

136 É. Teyssier, La mort en face…, p. 22.

137 Veja-se, por exemplo, uma fotografia de uma couraça trilobada samnita (de cobre), datável do século IV ou III a. C.,
pertencente à Colecção Axel Guttman, na obra de S. Shadrake, The World of the Gladiator, p. fig. 49, p. 136. Os
Samnitas usavam também outros tipos de peitorais, designadamente o modelo em que reproduzia no metal a
musculatura do torso (couraça «anatómica») e um, mais simples, consistindo apenas numa placa situada na parte
superior do tronco.

52
A extrema raridade de fontes iconográficas para esta época não permite garantir que
os «pré-gladiadores» samnitas138 estariam providos desta protecção. Mas se
atribuirmos à descrição de Tito Lívio um efectivo valor informativo, é muito provável
que tal sucedesse. Esta fonte literária é tanto mais útil quanto o facto de dispormos de
pouquíssimas representações mostrando incontestavelmente este tipo de gladiador.
Numa pintura parietal conservada no Museo Nazionale alle Terme di Diocleziano, em
Roma, observa-se uma cena de combate entre guerreiros que parecem guardar alguma
relação com o trecho de Tito Lívio atrás citado. Os combatentes aparecem desnudos e
sem elmos, mas têm escudos perfeitamente conformes às palavras escritas pelo
historiador romano: o topo dos mesmos corresponde, de facto, à largura dos ombros,
ao passo que a parte inferior é mais estreita. Quanto aos guerreiros com equipamento,
surgem protegidos por couraças de feltro ou linho, e os seus elmos estão sobrepujados
por um alto penacho: se bem que esta imagem pictórica não exiba um combate de
gladiadores mas antes uma contenda bélica, é possível que o artista, à semelhança de
Tito Lívio, se tenha inspirado nos combatentes do circo que ele terá visto com os seus
próprios olhos139.

Os samnitis combateram em espectáculos durante um considerável espaço de tempo,


já que, aparecendo a partir do século IV a. C., aproximadamente, apenas parecem ter
desaparecido sob Augusto ou durante o reinado do seu sucessor, Tibério, como o atesta
uma inscrição de Venusia. Plínio-o-Velho ainda evoca esta armatura, aludindo a um
famoso gladiador de finais da República. O autor da Naturalis Historia escreveu o
seguinte:

«Tritannus, de corpo magro, célebre entre os gladiadores que pertenciam à armatura dos
samnitas, tinha uma força extraordinária e, tal como o seu filho, soldado do grande Pompeio, ele
possuía os nervos dispostos como uma rede, tanto no comprimento como na largura, por todo o
corpo, mesmo nos braços e nas mãos».

Legionário de Pompeio Magno, bem como o seu filho, Tritannus notabilizou-se como
gladiador por volta de meados do século I a. C. O facto de Plínio precisar que ele
combatia com a armatura samnita, vivendo o escritor no tempo dos Flávios, não quer
dizer que este tipo de gladiador ainda existisse por essa altura. É, todavia, possível que
os leitores de Plínio tivessem conhecimento desta armatura, mesmo que já tivesse
desaparecido 140.

138 M. L. Caldelli, «Gladiatori com ‘armaturae’ etniche: il samnes», Archeologia Classica (2001), pp. 279-295.

139 É. Teyssier, La mort en face…., p. 24.

140 A última menção a gladiadores samnitis encontra-se na inscrição de um túmulo colectivo em Venusia, na Apúlia,
que data do tempo de Augusto (CIL IX.466).

53
Afora escassas indicações literárias, dispomos igualmente com reduzidíssima
quantidade de fontes iconográficas. A única representação plástica quase garantida
deste tipo de combatente procede de uma pintura mural de Pompeia, descoberta na
«Casa do Sacerdos Amandus» 141
: a despeito de evidenciar uma medíocre factura,
parece não restar a menor dúvida de que essa imagem se inscreve num contexto ligado
à gladiatura. Com efeito, à direita desses dois combatentes, um outro par bate-se a
cavalo, na presença de um tocador de tuba. Datada de finais do século II a. C., esta
representação deve ser das mais antigas que se preservaram sobre a gladiatura. Caso
identifiquemos estes homens como pertencentes à armatura samnita, então o seu
equipamento compor-se-ia essencialmente de um scutum e um elmo, aparentemente
pertencente ao modelo «Montefortino»142. O seu armamento ofensivo reduzia-se a um
gládio, de lâmina relativamente curva, empregue para desferir estocadas.

Os «Gauleses» (galli)

A seguir, em termos cronológicos, apareceram os gladiadores gauleses (galli). Mais


ainda do que os samnites, as referências em fontes antigas a este tipo de combatentes
são quase nulas. No entanto, há uma interessante passagem na História de Políbio que
testemunha a difusão precoce da gladiatura nos seus primeiros estádios e a existência
da armatura gaulesa; se bem que o vocábulo «gladiador» jamais apareça citado nesse
trecho, que relata um episódio que teve lugar durante a Segunda Guerra Púnica, o
combate organizado por Aníbal está indubitavelmente relacionado com a gladiatura
«étnica». Este fragmento textual elucida-nos ainda sobre certos elementos psicológicos
ligados a este fenómeno.

A cena descrita por Políbio situa-se em 218 a. C., pouco depois da travessia dos Alpes e
da batalha do Ticino e mesmo na véspera da contenda que se veio a travar em Trébia.
Aníbal, depois do primeiro êxito contra os romanos, queria que os seus homens
estivessem preparados para novas refregas e, com este fim em mente, organizou um
espectáculo particular tendo como público as suas tropas:

141 A. Mauiri, «Le pitture delle case di ‘M. Fabius Amandio’, del ‘sacerdos Amandus’ e di ‘P. Cornelius Teges»,
Monumenti della pittura antica scoperti in Italia 3. Le pitture ellenistico romane. Pompei 2 (1938), pp. 3-5, fig. 5a, b; L.
Jacobelli, Gladiators at Pompeii, Los Angeles, Paul Getty Museum, 2003, p. 75, fig. 62.

142 Vejam-se duas reproduções fotográficas de um elmo «Montefortino» - «tipo C», descoberto em Piquete de la
Atalaya, Espanha - em Raffaelle d'Amato e Graham Sumner, Arms and Armour of the Imperial Soldier: From Marius
to Commodus, 112 BC- AD 192, Frontline Books, 2009, p. 34, fig. 5.

54
«Ao reuni-los, ele mandou trazer os jovens que haviam sido feitos prisioneiros quando
atacaram os Cartagineses no decurso da sua marcha através dos Alpes 143...; primeiro deu ordens
para que fossem maltratados. Acorrentados, famintos, todos feridos com golpes, esses homens
foram apresentados à assembleia e Aníbal mandou que à frente dos mesmos se colocassem
panóplias144 gaulesas, como aqueles que utilizam os chefes desta nação quando vão participar
num combate singular. Além disso, ele fez com que se arranjassem cavalos e saios de grande
valor. Depois, mandou que se perguntasse aos jovens cativos quais, de entre eles, desejavam
travar um combate singular contra um dos seus camaradas, cujo vencedor teria como
recompensa os prémios que ali se encontravam expostos, e o vencido, libertado pela morte do
seu sofrimento. Então, todos, em uníssono, gritaram que desejavam bater-se. Aníbal decidiu que
se procederia a um sorteio e que os dois homens assim designados receberiam armas para se
defrontarem. Ao ouvirem tais palavras, os prisioneiros ergueram as mãos para o céu e cada um
deles alimentou a esperança de que a sorte nele recaísse. Quando se conheceu o resultado do
sorteio, a alegria dos dois eleitos foi enorme e constatou com a atitude dos seus camaradas. No
fim do combate, não se invejava menos, no grupo dos cativos, aquele que se deixara matar do
que o seu vencedor. Não se encontrava o primeiro livre de mil males cruéis, ao passo que para os
sobreviventes o pior ainda estaria para vir? Este combate permitiu a Aníbal incutir nos seus
homens os sentimentos que pretendia. Tomou então a palavra e explicou-lhes que a sua
intenção, ao agir desta maneira, tinha sido a de lhes fazer ver claramente, mediante o exemplo
de outros, o risco que podiam correr, isto de molde a dar-lhes a possibilidade, na situação em
que se achavam, de tomar o melhor partido…Era necessário, com efeito, vencerem ou
morrerem, em vez de caírem vivos nas mãos do inimigo…Este espectáculo, bem como o discurso
que se seguiu foram muito apreciados pelos homens, que manifestaram todo o seu entusiasmo e
ardor belicoso que o orador tinha procurado neles suscitar».

Este trecho reveste-se de interesse, na medida em que lança luz sobre diversos pontos
obscuros. Em primeiro lugar, mesmo que o termo «gladiador» não apareça consignado
por Políbio, constata-se que este género de combate não significou um fenómeno
exclusivo dos povos de Itália. Efectivamente, Aníbal convidou os seus soldados a
assistir a um duelo-espectáculo. Além do mais, refere-se explicitamente que os cativos
combateram com a armatura gaulesa 145
. Se admitirmos que a palavra panóplia foi
empregue pelo autor na sua acepção gladiatória, então este detalhe poderá interpretar-
se como a prova de que tal armatura já existiria desde o fim do século III a. C., ou, em
todo o caso, pelo menos desde meados da subsequente centúria, no tempo em que
Políbio viveu. A adopção deste tipo de duelo explica-se, igualmente, como a vontade,
por parte de um vencedor, de pôr a combater os seus prisioneiros de acordo com
técnicas que lhes fossem familiares. No que respeita aos «gladiadores» em si mesmos, o
seu recrutamento e as suas motivações revelam-se de grande interesse, estando nós
aqui perante o caso de prisioneiros de guerra. Aníbal, se nos ativermos à récita
polibiana, não coagiu os cativos a lutarem, mas deu-lhes a oportunidade de arriscarem
as suas vidas para se tornarem livres.

143 Mais à frente, Políbio precisa que eram prisioneiros gauleses.

144 O vocábulo grego «panóplia» é o equivalente da palavra latina armatura. Torna-se difícil perceber se Políbio o
emprega no sentido de «equipamento militar» ou na acepção gladiatória do termo. Seja como for, a tradução
habitualmente apresentada - «armadura gaulesa» - é enganadora, não ajudando à compreensão do texto.

145 É. Teyssier, La mort en face, p. 26.

55
A reacção dos prisioneiros parece ter sido unânime, já que todos ansiavam pelejar, a
tal ponto que nos leva a perguntar se este costume não seria também habitualmente
praticado por estes Gauleses do Norte de Itália. Mas não se tratava apenas da liberdade
que estava em jogo, uma vez que o líder púnico ofereceu ao vencedor da liça cavalos e
saios como prémios. Ora estas recompensas podiam aumentar ainda mais a motivação
dos combatentes, conferindo ao combate um carácter mais honroso ou digno. Atrás
vimos, no relato homérico do duelo entre Diomedes e Ajax, que se ofereciam prémios,
expostos à vista de todos, ao vencedor. Assim, constatamos a presença de um elemento
fundamental do fenómeno gladiatório. Independentemente da época e da forma que
poderia assumir, um gladiador devia estar sempre motivado para o combate. Estes
cativos, reduzidos à condição humilhante e miserável de escravos, suplicaram para
participar num combate cujo desfecho se traduzia em matar um dos seus semelhantes
ou então perecer. Longe de ficarem apreensivos, os dois homens escolhidos através do
sorteio evidenciaram uma forte alegria. O destino do vencido até era invejável, quando
comparado com o dos que permaneciam vivos. Posto isto, esta passagem é o melhor
testemunho literário sobre os primórdios da gladiatura, ajudando-nos a melhor
entender as vertentes mais profundas deste fenómeno.

Para É. Teyssier, «Contrariamente à nossa percepção hodierna, a sorte do gladiador


aparece como sendo menos cruel que a de um mero escravo» 146. Neste sentido, o
desenlace para o vencido não se encarava como um castigo, mas como uma
possibilidade a ser aproveitada. Este reflexo, lógico para os combatentes, era-o também
para os organizadores do espectáculo. Com efeito, sem motivação, era impossível pôr a
lutar eficazmente um escravo que quisesse fugir da sua condição servil ou um homem
livre que buscasse fazer fortuna. No entanto, cabe matizarmos um pouco este aspecto.
Aqui situamo-nos no quadro de guerreiros batendo-se sob o olhar de outros que iriam
colocar as suas vidas em jogo na batalha que teria lugar no dia seguinte. Neste contexto,
o duelo conservava uma dignidade que já estaria ausente a partir do momento em que
os confrontos se passaram a realizar para satisfazer o prazer de uma multidão de civis
que assistia ao espectáculo.

Por último, o episódio relatado por Políbio apresenta uma importante razão a presidir
à organização destes combates: não eram de combates que se travam no âmbito de
cerimónias fúnebres, organizados para se prestar um derradeiro tributo de homenagem
a um determinado notável. Para Políbio, Aníbal quis que a demonstração da porfia
tivesse, por assim dizer, um valor «didáctico»: para além do espectáculo apreciado
pelos seus homens, o general cartaginês pretendeu transmitir a ideia de que mais valia

146 Ibidem, p. 26.

56
morrer com bravura, de arma na mão, do que se ficar à mercê do inimigo vencedor. O
acabrunhamento dos cativos que não tiveram a oportunidade de lutar serviu para
motivar as tropas púnicas. Torna-se evidente que tal valor «pedagógico» constituiria,
então, uma das motivações fortes destes espectáculos. Vários séculos depois, ele
continuaria a desempenhar o seu papel, se nos ativermos aos escritos de Cícero, Séneca
ou de Plínio-o-Moço.

Se nos fundamentarmos no testemunho ulterior de Lívio, os gladiadores gauleses


terão surgido em Roma a partir de 186 a. C. Ainda que nenhum texto o confirme, é até
provável que esta armatura já tivesse sido experimentada pelos Etruscos no século
precedente, como parecem indicar as poucas fontes iconográficas disponíveis. Pode-se
até aventar a hipótese da armatura gaulesa haver sido «criada» pelos Etruscos, uma
vez que estes estiveram em contacto directo com as populações célticas da Gália
Cisalpina, contra as quais guerrearam frequentemente entre os séculos IV e III a. C. 147
.
Algo de similar se verifica, por seu lado, com os Capuanos, que terão criado o gladiador
samnita em jeito de referência evocativa aos seus perigosos e odiados antagonistas.

Mas quando a armatura dos «gauleses» apareceu em Roma, os Romanos também se


encontravam em guerra com os Celtas do Norte de Itália, há jámais de dois séculos.
Note-se que a data de 186. C. se insere num contexto triunfal. Com efeito, depois de
haver derrotado Cartago, Roma logrou derrotar os Insubres e os Boii (Boios), no
seguimento de dez anos de conflitos que só terminariam em 190 a. C. Por esta altura,
Roma começou a consolidar a sua autoridade sobre a planície do Pó, e o acabamento
das obras de construção da Via Flamínia até Placentia (actual Piacenza), em 187 a. C.,
reflecte precisamente esta ofensiva romana sobre o mundo celta. Assim, a aparição da
armatura do gallus nos munera romanos não significou um mero acaso. Ela serviu,
através da espectacular mise-en-scène do guerreiro celta, a capacidade de Roma de
levar de vencida a resistência oferecida pelos povos mais tenazes. Ademais, a vontade
de facultar à plebe a visão de guerreiros que tinham constituído um dos principais
componentes dos exércitos cartagineses também não deve ser posta de parte 148.

Deixando à margem as suas motivações mais profundas, o surgimento desta segunda


armatura manifesta uma evolução e uma diversificação da gladiatura. Não restam
grandes dúvidas de que a necessidade de nomear um segundo tipo de gladiador
correspondeu a um desejo de apresentar variantes nos prazeres oferecidos ao público.

147 Ibidem, p. 27.

148 A criação de uma armatura puramente «púnica» seria digna de interesse em termos simbólicos. Contudo, a
natureza assaz cosmopolita e heterogénea do exército cartaginês, composto sobretudo por mercenários de diversas
origens, obstou à emergência de um tipo de gladiador representativo. Quanto ao gallus, poderia servir para representar,
simbolicamente, tanto o inimigo «étnico» tradicional como uma parte significativa dos contingentes cartagineses.

57
À semelhança dos «samnitas», as representações figurativas deste outro tipo de «proto-
gladiador» são bastante raras: as mais antigas podem identificar-se em certos baixos-
relevos etruscos; uma delas observa-se numa urna funerária que se conserva no Musée
Calvet de Avignon (fig. ): mostra dois combatentes, ambos em tronco nu, e com as
cabeças desprovidas de cascos, que parecem lutar num contexto ritual. De facto, a
enorme crátera (um género de vaso antigo) que se localiza entre os dois homens tanto
se pode interpretar como o prémio que estava em jogo, como a urna do próprio defunto
em honra do qual ambos os guerreiros estavam a pelejar. Assim, esta cena reproduz um
combate associado a um funeral.

O equipamento dos combatentes é simples e não condiz com as descrições conhecidas


dos guerreiros samnitas. Pelo contrário, estes homens estão munidos de um escudo
diferente do scutum samnita e de espadas compridas. Confirma-se que são espadas
pela presença de uma longa bainha rígida posicionada num dos flancos do combatente
situado à direita. Ora este equipamento é típico dos Celtas, que foram os únicos, ao que
se saiba, que guerrearam com espadas compridas dotadas de bainhas metálicas assaz
elaboradas. Este género de armamento induzia, aliás, a posturas de combate que se
revelam muito raras na iconografia bélica da Antiguidade. No referido relevo, o escudo
é colocado mais par a frente, ao passo que a espada é mantida por cima da cabeça,
pronta a golpear através de cutiladas e não por estocadas.

Encontramos outro testemunho icónico de gladiadores gauleses na decoração das asas


de uma sítula de bronze, descoberta em Pompeia e hoje no Museo Archeologico
Nazionale de Nápoles149 (fig. ): este objecto peculiar talvez consista na nossa melhor
fonte respeitante ao gladiador «étnico» gaulês. É certo que não está plenamente
garantida a identificação dos dois combatentes enquanto gladiadores. Contudo, o facto
de se representarem dois guerreiros totalmente idênticos prestes a defrontar-se leva a
supor que estamos perante um duelo e não de um confronto em campo de batalha.
Além do mais, a plataforma sobre a qual se posicionam os dois combatentes é
suportada por dois escudos celtas a flanquear um bucrânio, que serve para evidenciar o
carácter ritual da cena. Ambos os combatentes estão em tronco nu e têm barbas e
cabelos compridos, elementos que sublinham o seu aspecto «bárbaro», para além de
envergam as bragas características do vestuário celta. Estes gladiadores estão providos
de um tipo de escudo plano, munido de uma spina (nervura de madeira colocada
verticalmente ao longo da superfície exterior do escudo). Os dois escudos são mantidos
na horizontal, com a extremidade inferior colocada sobre o ombro do adversário, como
que para manter a distância em relação ao mesmo. Descreveram-se os dois oponentes

149 L. Jacobelli, Gladiators at Pompeii…, pp. 99-100, fig. 80.

58
no momento em a desembainham as espadas, pelo que o artista reproduz o início de
uma porfia. Nesta cena, o choque entre os combatentes representou-se de maneira
muito realista, realçando neles os seus rasgos étnicos. Se, por um lado, podemos
admitir a natureza gladiatória deste testemunho imagético, por outro, é difícil
determinar a sua datação bem como a origem deste objecto. Apesar de se ter achado
este artefacto em Pompeia, não restam grandes dúvidas de que terá sido produzido
numa altura bem anterior à erupção do Vesúvio. Também não existe garantia alguma
de que a sítula tenha sido fabricada nesta localidade, daí que não seja de descartar a
hipótese de ter uma eventual origem etrusca.

Noutro documento iconográfico (um monumento funerário), de meados do século I a.


C., procedente de Amiternum, perto da actual cidade de L’Aquila, vemos uma
composição escultórica mostrando dois gladiadores a lutar, ladeados por igual número
de assistentes, pegando em lanças ou dardos (fig. ). Frequentemente, os dois
combatentes foram identificados como pertencentes à armatura dos samnitis 150
. No
entanto, consideramos que tal atribuição não está correcta: repare-se, desde logo, que
tal monumento foi encontrado em pleno Samnium, daí não fazer sentido mostrar
gladiadores representativos dos guerreiros samnitas num munus; é certo que, à
primeira vista, os dois indivíduos estão equipados com panóplias quase iguais, munidos
de lanças compridas (o que poderia ser um elemento característico dos samnitis),
escudos facto rectangulares dotados de uma cercadura metálica, de uma bossa e uma
nervura no centro da sua superfície externa, uma greva na perna esquerda e uma cota
de malha a proteger o tronco; mas, curiosamente, os dois homens não cingem elmos
(apenas uma espécie de pluma no cimo da cabeça) e exibem fartas cabeleiras, bem ao
jeito do costume dos povos celtas. Posto isto, se, de facto, a datação deste relevo estiver
certa, a cena talvez mostre dois prisioneiros de guerra capturados aquando das vitórias
de Roma sobre os Helvetii, o que aconteceu em meados do derradeiro século da
República. Neste sentido, em vez de samnitis julgamos que correspondem a dois galli,
como sustentaram Filippo Coarelli e Susanna Shadrake 151.

Com o gladiador gallus apresentava-se ao público outro povo inimigo de Roma. Este
exemplifica, à sua maneira, as conquistas de Roma num momento em que ela acabara
de submeter a península itálica. Esta nova armatura implicava, igualmente, uma
técnica muito diferente da utilizada pelos samnitas. Ora tal distinção dos tipos de
combatentes constituiu uma etapa importante na génese do fenómeno gladiatório.

150 Como, por exemplo, M. Junkelmann, Gladiatoren: Das Spiel mit dem Tod…., p. 105.

151 Respectivamente: «L’armamento e le classi dei gladiatori», p. 161; The World of the Gladiator…, pp. 139-140, figs.
52-55. Por seu turno, K. Nossov (Gladiator…, p. 75) optou por se referir apenas à divisão entre os especialistas quanto à
identificação dos gladiadores do relevo de Amiternum.

59
Efectivamente, a longevidade da gladiatura explica-se, em larga medida, pela variedade
de combinações dos combates propostos aos espectadores. Através dos binómios
samnitas e gauleses, a gladiatura «étnica» podia então proporcionar duas armaturae
muito distintas. Em face das magras fontes que subsistiram, não é possível termos a
certeza se os Romanos puseram estes dois tipos de combatentes a lutarem um contra o
outro, mas nada obsta a que avancemos com esta hipótese.

Se isto efectivamente aconteceu, os organizadores dos munera teriam ao seu dispor, a


partir do século II a. C., três combinações (pelo menos) plausíveis: samnitas-samnitas,
gauleses-gauleses e samnitas-gauleses. Estes confrontos terão sido, certamente, o
«motor» de uma competição e de uma «pesquisa» incessantes entre os proprietários de
grupos de gladiadores, com o objectivo de melhorar as performances dos seus
combatentes. Mesmo que o facto só se ateste na época imperial, afigura-se igualmente
possível que a existência de duas armaturae «étnicas» tenha suscitado o aparecimento
de adeptos para uma ou outra. O sistema, estimulado pelo investimento de somas cada
vez mais avultadas, evoluiu com certo rapidez, adquirindo maior «eficiência» e
acrescida diversidade. Os testemunhos icónicos de gladiadores são, como se disse,
pouco numerosos e passíveis de uma interpretação delicada. Além disso, embora já
estivessem presentes em Roma desde o início do século II a. C., nenhuma
representação romana nos ajuda a precisar as características da armatura dos galli.

Ainda assim, no período entre o fim da República e o começo do Principado, algumas


imagens indiciam que a armatura gaulesa conheceu uma evolução. Num relevo
descoberto em Bolonha (antiga Felsina), é muito provável que estejamos perante uma
representação concreta desses gauleses «tardios», datando a obra escultórica de finais
do século I a. C.; talvez estejamos plasmados na pedra os derradeiros momentos desta
armatura étnica, numa fase em que a gladiatura se encontrava em plena mutação. No
relevo, o gallus vencedor aparece provido de um escudo oval contendo a spina
característica desta arma defensiva utilizada pelos guerreiros celtas. Mais: o seu elmo
pode ser associado aos cascos gauleses do tempo de Júlio César 152
. Este tipo de elmo,
adoptado pelo exército romano, constitui o primeiro elo de uma longa série de
coberturas militares para a cabeça que os historiadores e arqueólogos britânicos
identificaram e classificaram como «imperiais-gálicas» . Se bem que o equipamento
153

defensivo corresponda ao de um guerreiro gaulês, o gladiador do relevo começa, por


outro lado, a afastar-se de vários elementos puramente étnicos. De facto, embora o

152 M. Feugère, Casques antiques…, pp. 67-76

153 M. C. Bishop e J. C. N. Coulston, Roman Imperial Equipment, Londres, B. T. Batsford, 1993, p. p.93, fig. 56,
números 3 e 4.

60
guerreiro celta estivesse geralmente equipado com uma espada comprida, o gaulês
representado à esquerda na cena brande uma espada bastante curta.

Outro aspecto a realçar no relevo é a presença de uma protecção, visível no antebraço


do gaulês vitorioso: composta por segmentos articulados e provavelmente feita de
couro, ela consiste numa manica. Esta peça, muito raramente empregue no domínio
militar154 foi, pelo contrário, típica da gladiatura: destinada a proteger o braço armado,
a manica veio a cobrir, progressivamente, o conjunto do braço direito dos gladiadores.
A questão que se coloca é se estamos ainda diante de um gladiador «gaulês» ou, então,
em face de uma das suas evoluções técnicas. É impossível darmos uma resposta, mas
esta fonte iconográfica é indubitavelmente coeva da fase em que os gladiadores étnicos
sofreram uma mutação.

O Trácio (thraex ou thrax)

No mesmo relevo, ao lado dos combatentes «gauleses», observamos outro gladiador,


numa atitude triunfal: embora não vejamos o seu adversário (a obra escultórica está
incompleta), não há dificuldade em identificar o combatente posicionado à esquerda
como um gladiador trácio: este empunha um gládio curvo, a sica, e segura com a mão
esquerda um pequeno escudo, a parma. Vêem-se bem as duas grandes ocreae (grevas)
protegendo-lhe as pernas até acima do joelho. O thraex, a terceira armatura étnica,
representa, em princípio, uma invenção puramente romana. Como habitualmente
acontece, é difícil datar com exactidão a altura em que terá surgido pela primeira vez.
De facto, os textos antigos evocam a existência de um novo tipo de gladiador somente
quando a sua utilização em espectáculos ficava bem estabelecida, podendo assim os
leitores saber, sem hesitações, a que armatura o autor se referia. Em regra, passavam
várias décadas entre a aparição de um novo tipo de gladiador e a sua menção na
literatura e noutras fontes escritas. Quanto às fontes iconográficas, também não
facultam grande ajuda por causa da sua relativa raridade e certa imprecisão.

Existem dois cenários hipotéticos para ao momento histórico da aparição do gladiador


thraex em Roma 155
: primeira, quando os Romanos capturaram mercenários trácios na
guerra contra Perseu da Macedónia (171-167 a. C.); segunda, quanto muitos Trácios
foram feitos prisioneiros no decurso dos conflitos contra Mitridates, rei do Ponto, nos

154 Apenas observamos a adopção da manica entre os legionários de Trajano, figurados nos relevos das métopas do
Tropaeum de Adamklissi (Roménia) a combater contra os Dácios.

155 R. Dunkle, Gladiators…, p. 101.

61
anos 80 antes da nossa era. Como foi Cícero (106-43 a. C.) o primeiro a mencionar
textualmente 156
o thraex, afigura-se muito possível que esta armatura tenha surgido
na última ocasião. A denominação thraex reportar-se-ia às vitórias romanas contra os
monarcas do Oriente grego e evocaria os guerreiros helenísticos (mais tarde criou-se a
armatura do hoplomachus, que aludia explicitamente ao hóplita grego, provido de uma
lança): com efeito, os dois tipos de thraeces «elaborados» nos últimos tempos da
República, evocavam tanto o falangista macedónio como o guerreiro oriental a nível
mais genérico. A sua própria arma branca, a sica, ou mais raramente designada falx
supina, consistia numa espada de lâmina curva que lembrava, em tamanho mais
reduzido, o kopis macedónio utilizado pelos exércitos de Alexandre-o-Grande e dos
seus sucessores. Para além do kopis, a sica evidencia também afinidades formais com a
falcata, típica dos guerreiros ibéricos, contra os quais as legiões de Roma lutaram,
desde o tempo de Aníbal até ao século I a. C.

Munido de um pequeno escudo quadrangular convexo, o thraex diferenciava-se tanto


do gallus como do samnis. Essa protecção de reduzido tamanho via-se completada por
um par de grandes grevas que subiam até acima do joelho. Tal especificidade, a de
dispor de duas ocreae em vez de uma só, como sucedia com outros gladiadores,
constituía uma das principais características da silhueta deste tipo de combatente.
Outro dos elementos originais do thraex radicava no seu casco «Ático» 157, utilizado na
guerra desde o século IV ao II a. C. Este género de elmo, atestado por numerosos
exemplares que sobreviveram até hoje, é frequentemente representado nas peças de
cerâmica grega deste período: possui paragnátides móveis e volutas laterais que
terminam ao nível das têmporas, mediante um reforço central emoldurado. O capacete
é também sobrepujado por uma cimeira longitudinal de fraca espessura. Este casco,
muito corrente no mundo grego na altura do saque de Corinto (146 a. C.), simbolizaria,
aos olhos dos romanos, o guerreiro grego derrotado pelas legiões romanas. O elmo
ático assemelha-se aos que dois thraeces exibem num relevo romano conservado no
Museo Nazionale Romano alle Terme di Diocleziano (fig. Teyssier): nesta escultura
bidimensional, que data possivelmente de começos do século I a. C., o thraex situado à
esquerda brande a sica curva e está munido de uma parma quadrangular muito
convexa, bem como por grandes ocreae 158.

156 Prov.Cons. 9; Phil. 6.13.

157 M. Feugère, Casques antiques…, pp. 31-33.

158 É. Teyssier, La mort en face…, pp. 32-33.

62
Tais atributos continuaram associados a esta armatura pelo espaço de mais de quatro
séculos. Assim como os galli e samnitis, os thraeces, que representavam outro dos
antagonistas de Roma, combatiam entre si. À semelhança das primeiras armaturae
étnicas, o seu armamento remetia para os equipamentos bélicos dos inimigos vencidos.
No entanto, contrariamente aos gladiadores samnitis e galli, que sempre se equiparam
de maneira idêntica, os thraeces conheceram uma evolução significativa, da qual
resultaram dois equipamentos ligeiramente diferentes.

No relevo de Roma, um dos combatentes pega numa parma quadrangular, enquanto o


seu adversário tem outra com formato circular. Conquanto não seja possível distinguir
a arma do seu oponente (sica ou gládio curto?), o seu escudo, simultaneamente
redondo e abaulado, diferencia-o claramente do outro thraex. Em contrapartida,
ambos surgem protegidos pelos mesmos pares de grandes ocreae, que compensavam a
pequenez das suas parmae. Consequentemente, esta imagem escultórica parece sugerir
que os primeiros thraeces apareceram mediante estas duas variantes. Se, por um lado,
o gladiador com escudo quadrangular lembra os guerreiros trácios que os Romanos
enfrentaram muitas vezes159, por outro, o combatente do escudo redondo faz
indubitavelmente referência ao guerreiro grego helenístico.

Igualmente próxima do hoplita, pelo seu equipamento composto por uma espada de
lâmina direita similar ao parazonium e pelas duas grevas que lembram as cnémides,
esta variante de thraex distingue-se do guerreiro da idade clássica através do seu
escudo de menores dimensões. Na realidade, esta parma redonda acerca-se do laiseion
dos falangistas macedónios 160. Ora tal tipo de equipamento recorda o dos soldados dos
monarcas helenísticos que defrontaram as legiões na Ásia, aquando da conquista do
Oriente por Roma. Assim, os dois combatentes figurados no relevo consistem,
indiscutivelmente, em «proto-gladiadores». Como sucedia com os samnites e os galli,
eles traduziam simbolicamente o expansionismo de Roma quando se comemoravam as
vitórias das suas legiões contra os sucessores de Alexandre Magno, os chamados
Diadochoi (Diádocos, que significa «sucessores»).

É.Teyssier viu no thraex a primeira armatura directamente «criada» pelos Romanos,


sem ter havido de permeio qualquer tipo de envolvimento dos Capuanos ou dos
Etruscos: «Ora esta inovação prova que os Romanos se tinham apropriado totalmente

159 Os Trácios viviam no Norte da antiga Grécia, numa região que corresponde, grosso modo, à actual Bulgária.
Conhecidos pelo seu valor guerreiro, os soberanos helenísticos serviram-se frequentemente deles como mercenários,
que lutaram muitas vezes contra os Romanos durante o século II a. C.

160 Descobriu-se um espécime de laiseion em 1875, num túmulo situado em Amathonte, na ilha de Chipre. Tendo um
diâmetro de 30 cm, ele corresponde aproximadamente ao tamanho da parma redonda destes gladiadores.

63
da prática da gladiatura, convertendo-a num dos importantes rasgos da sua
civilização»161. Esta ideia, contudo, ao não assentar em sólidas bases probatórias,
resume-se a uma mera suposição. Continua a não haver uma explicação concludente
que mostre por que razão o thraex foi o único gladiador «étnico» que conheceu maior
longevidade. Provavelmente isto deveu-se ao singular estilo de combate do thraex162,
que tanto cativou os espectadores durante o século I d. C.

O que concretamente se pode afirmar é que nestas armaturae «étnicas» existiu uma
manifesta vontade de «representação» do inimigo 163
. Desde tempos recuados que os
Romanos tiveram o cuidado de elaborar imagens figurativas referentes a batalhas
ganhas, quando comemoravam os triunfos dos seus generais. Essas representações
plásticas encontram-se, aliás, e em larga medida, nas próprias origens da arte dos
romanos. Não causa estranheza, pois, numa sociedade como a romana, que sempre se
mostrou sensível à comemoração das proezas mavórticas dos seus antepassados, que os
combates de gladiadores «étnicos» significassem uma espécie de «quadros vivos». Tal
como os triunfos, de que constituíam um prolongamento, estes combates permitiam
aos vencedores exibir ou «representar» os guerreiros inimigos derrotados à população
civil, que não participara nessas campanhas ou batalhas exitosas. À semelhança do que
sucedera nos tempos dos primeiros «gladiadores» na Campânia, estes espectáculos
simbólicos contribuíam largamente para dar ainda mais prestígio aos triunfadores e aos
seus soldados.

O mencionado relevo de Bolonha é outro testemunho plástico de um thraex antigo.


Nesta fonte, denota-se uma nova característica no seu elmo: a presença de uma cimeira
decorada com um protomo de grifo, que, até ao fim do fenómeno gladiatório
representaria uma marca emblemática da armatura thraex. Verifica-se, de igual modo,
que o casco veio a adquirir rebordos cada vez mais salientes em relação à sua parte
superior. Em princípio, é provável que estejamos a assistir a uma etapa da evolução

161 La mort en face…, p. 34.

162 Sobre o thraex, veja-se a tese de Lukáš Kratochvil, Gladiátor Trák a jeho armatura od archeologicé evidence po
rekonstrkci, apresentada à Masarykova Univerzita/Filozofická fakulta, em 2012, sob a orientação de E. M. Gagetti. O
autor examinou as evidências arqueológicas (peças de equipamento) e as fontes iconográficas (relevos, mosaicos, peças
decorativas), bem como tentou reconstituir as técnicas de combate utilizadas pelo thraex, seguindo a metodologia
preconizada por M. Junkelmann. Sobre a origem e a evolução desta armatura, veja-se Gladiátor Trák, pp. 12-14.

163 M. A. Janković afirmou que os Romanos criaram, na realidade, «etnicidades imaginárias»; segundo o autor,
nenhum dos tipos etnónimos de gladiadores – o Samnis, o Gallus e o Thraex – esteve relacionado a priori com o povo
que cada uma destas armaturae representava, nem mesmo a nível geográfico. Salientou ainda que os estudiosos, ao
lidarem com o rigor «das apresentações na arena de acordo com evidências arqueológicas, repararam que o
equipamento gladiatório dos gladiadores trácio, samnita ou gaulês não era tão fidedignos como previamente se
acreditou. Assim, temos diversas etnicidades construídas ao mesmo tempo mediante as quais autores antigos e
modernos tentaram definir diferentes populações no interior e nas periferias do mundo romano»: «Violent ethnicities:
Gladiatorial spectacles and display of power», pp. 53-54. Do mesmo académico, aconselhamos igualmente a leitura de
outro artigo, «Konstrisanje identiteta u rimskoj Dalmacijii salonitanski gladijatori i nijhov druŝteni status»,
Etnoantropoloŝki problemi 7.3 (2011), pp. 699-713.

64
técnica, induzida pelos combates dos próprios gladiadores; ao contrário do capacete
anteriormente descrito, este tipo de elmo não foi decalcado a partir de um modelo
extraído do domínio militar, mas derivou de uma evolução interna na gladiatura. Neste
fenómeno, o desenvolvimento das panóplias dos combatentes da arena constituiu um
dos seus aspectos essenciais.

* * *

Neste período da gladiatura «étnica», o povo romano contemplava os bárbaros


subjugados do alto das galerias do Forum e, mais tarde, no Circo. Assim, Roma que se
imaginava normalmente como uma cidade rodeada pela barbárie, apresentava, graças à
gladiatura, uma imagem invertida. Os samnitis, os galli e os thraeces lutavam para
satisfazer os Romanos que os tinham subjugado. Ao coagi-los a participarem em
espectáculos, diante dos cidadãos reunidos, os Romanos tinham, indubitavelmente, a
sensação de estarem a rebaixar os seus antigos inimigos. No entanto, e aqui reside um
dos paradoxos da gladiatura, a humilhação dos antagonistas que se oferecia no
espectáculo podia, também, atenuada por uma certa admiração pelo valor guerreiro
daqueles.

Mas esta contradição é relativa, pois que embora ao «vencer-se sem perigo se triunfa
sem glória», a exibição de um valente guerreiro inimigo servia principalmente para
enfatizar a superioridade do povo vencedor. Por outro lado, é curioso constatar que em
nenhum momento histórico se criou um gladiador «romano»; esta ausência tem toda a
lógica, na medida em que, caso se introduzisse um combatente «romano», equivaleria a
admitir a possibilidade de ele poder ser vencido por um gaulês, um samnita ou por um
trácio, o que seria chocante e verdadeiramente inimaginável aos olhos do público.

Ressalve-se, igualmente, que nesta altura em que Roma ainda se encontrava na sua
fase conquistadora, a gladiatura já parecia fascinar os povos subjugados ou vencidos
pelos romanos. Como atrás vimos, até o próprio Aníbal organizou um munus a seguir
às suas vitórias em Itália. Em 206 a. C., por seu turno, Cipião Emiliano apresentou um
munus na Hispânia, em Carthago Nova (actual Cartagena), relatado por Lívio (Ab Urb.
cond. 28.21, 2-3): para o efeito, o célebre general romano recorreu aos serviços dos
lanistae; estes indivíduos desprezados, vistos como «mercadores de carne humana»
tornaram-se, doravante, nos profissionais incontornáveis da gladiatura: proprietários
de familiae gladiatórias, eles treinavam, alugavam ou vendiam os seus combatentes a
personagens eminentes que desejassem organizar um munus.

65
O espectáculo oferecido por Cipião, o primeiro, que se saiba, realizado fora de Itália,
suscitou grande interesse entre os Hispanos 164, dado que Tito Lívio conta que muitos
Iberos se terão apresentado voluntária e gratuitamente para participarem em
combates. Estas mobilizações espontâneas constituem, em nosso entender, o primeiro
testemunho específico da outra grande fonte de recrutamento que eram os homens
livres que escolhiam de plena vontade esta carreira, sob a designação de auctorati. Eis
um trecho de Valério Máximo (XI, ano de Roma 547):

«Cipião-o-Africano deu um espectáculo de gladiadores em Carthago Nova, em memória do


seu pai e do seu tio. Dois filhos de um rei que acabara de morrer apresentaram-se na arena e
anunciaram que iriam ali disputar a realeza, a fim de engrandecer, pelo seu confronto, o brilho
do espectáculo. Cipião aconselhou-os preferir a discussão às armas para decidir qual dos dois
deveria reinar [cujos nomes eram Corbis e Orsua, que disputavam o domínio sobre a cidade de
Ibes], e o mais velho aceitou a sua opinião; no entanto, o mais novo, fiando-se no seu vigor
físico, persistiu nesta louca determinação. Uma vez travada a luta, ele viu-se condenado pela sua
fortuna e pagou com a vida a sua obstinação».

O entusiasmo dos habitantes da Hispânia face aos combates gladiatórios explica-se,


como anteriormente referimos, por haver idênticas práticas levadas a cabo por certos
povos da Península Ibérica, antes ainda da introdução dos munera romanos 165
. Num
relevo do Museo Arqueológico de Madrid, observamos possivelmente um desses
duelos: dois guerreiros armados com falcatas lutam entre si; à semelhança das cenas
tumulares de Paestum, ficamos com a impressão de se tratar de um combate ritual, já
que este é acompanhado por uma mulher tocando flauta. Seja como for, desde o século
II a. C., os Iberos terão definitivamente adoptado a gladiatura 166
. Apiano (Iber. 6.75),
evoca um grande munus envolvendo duzentos pares de «gladiadores», aquando do
funeral do famoso caudilho lusitano Viriato, em 139 a. C. Neste caso, tais duelos
reflectiam, paralelamente, um costume local e uma influência das pugnas romanas 167.

164 Para uma análise detalhada dos jogos gladiatórios de Cipião, remetemos para E. Hernández Prieto e R. Martín
Moreno, «Juegos funerarios: los munera gladiatoria de Escipión en Carthago Nova, una fórmula de interacción com
los pueblos hispanos», in G. Bravo e R. Gonzalez Salinero (eds.), Formas de morir y formas de matar en la antigüedad
romana, Madrid, Signifer Libros, 2013, pp. 439-458. Os espectáculos gladiatórios cipiónicos significaram um fenómeno
de interacção sociopolítica (p. 449) e um «veículo ideológico e propagandístico».

165 De facto, voltemos a lembrar que se descobriram fontes iconográficas que provam a existência de combates rituais
já praticados por povos ibéricos: cf. J. M. Blásquez Martinez e S. Montero Herrero, «Ritual funerario y status social: los
combates gladiatorios prerromanos en la Peninsula Ibérica», Veleia 10 (1993), pp. 72-73.

166 Mas, ao fazê-lo, mesclaram elementos tradicionais autóctones com o modelo romano gladiatório, incluindo, por
exemplo, entre as armas utilizadas pelos combatentes, a caetra e a falcata.

167 Mauricio Pastor Muñoz, Viriato, Lisboa, A Esfera dos Livros, 2006, pp. 189-191. Tanto Apiano como Diodoro Sículo
nos oferecem versões sobre o funeral de Viriato. De acordo com o relato do primeiro historiador, «O cadáver de Viriato,
magnificamente vestido, foi queimado numa pira altíssima. Imolaram-se muitas vítimas, enquanto os soldados, tanto de
infantaria como de cavalaria, corriam em formação em redor da pira, com as suas armas e entoando as suas glórias ao
modo bárbaro. Não se retiraram dali até que o fogo da pira se extinguisse por completo. Terminado o funeral,
celebraram combates singulares sobre o seu túmulo»; segundo Diodoro, «O cadáver de Viriato foi honrado
magnificamente e com um esplêndido funeral. Fizeram combater duzentos pares de gladiadores frente ao seu túmulo,
honrando assim a sua extraordinária coragem». Não resta a menor dúvida de que os companheiros de Viriato o
consideravam como um verdadeiro herói, daí que participassem na homenagem em memória do seu caudilho,
derramando o seu próprio sangue junto do túmulo numa espécie de «torneio» fúnebre, idêntico aos jogos celebrados
por Aquiles em honrado seu amigo Pátroclo. Veja-se também E. Hernández Prieto e R. Martín Moreno, «Juegos
funerarios: los munera gladiatoria …», p. 443.

66
Também no século II a. C., o monarca selêucida da Síria, Antíoco IV Epífanes (que
reinou de 175 a 164 a. C.), deu um munus em 166 a. C., integrado numa extraordinária
festividade que teve lugar no santuário de Apolo em Daphne, perto de Antioquía168,
para celebrar a sua vitória, obtida no mesmo ano, sobre Ptolemeu VI. Além desta razão
concreta, Antíoco, ao organizar um faustoso espectáculo, desejava competir com o
renomado general romano Emílio Paulo, conhecido por oferecer munera sumptuosos e
memoráveis. O soberano selêucida divulgou o evento, enviando anúncios para uma
série de cidades do Mediterrâneo, assim logrando reunir muitos espectadores e
embaixadores provenientes de todo o mundo conhecido. Em Antioquía, lutaram 240
pares (480 homens), adquiridos a alto preço e trazidos de Roma, sendo os primeiros
gladiadores profissionais a actuarem fora de Itália. Antíoco atingiu os resultados
pretendidos, melhorando as relações com a República do Lácio e, ao mesmo tempo,
promovendo o militarismo nos seus jovens súbditos. Importa notar que este soberano
helenístico vivera durante quase dois anos (188-187) em Roma como refém. Durante o
tempo que lá esteve ganhou gosto pelos combates gladiatórios, ao ponto de mais tarde
os «exportar», pela primeira vez, para o Oriente. Os jogos organizados por Antíoco
surpreenderam, obviamente, os gregos da Síria. De acordo com Tito Lívio:

«Este combate de gladiadores à maneira romana causou, primeiramente, mais pavor do que
prazer, já que as gentes não estavam habituadas a tais espectáculos. Com o tempo, o público
acostumou-se com este género de pugnas, que se suspendiam mal se registasse o primeiro
ferimento ou, então, continuavam até que sobreviesse a morte; acabou por ganhar gosto por este
espectáculo, que desenvolvia nos jovens a paixão pelas armas» (Ab Urb. Cond. 41.20).

A partir do início do século I a. C., os Romanos já contavam com vários tipos de


gladiadores, o que serviu para diversificar os prazeres de uma multidão decerto cada
vez mais exigente quanto à qualidade dos munera apresentados. Neste período, o
sucesso da gladiatura assumira tais proporções que ele veio mesmo a conduzir a sua
evolução técnica, ao mesmo tempo que assegurou a difusão do fenómeno fora dos
limites de Itália. A própria importância da gladiatura esteve, como oportunamente se
verá, na génese de uma crise profunda que implicou pesadas consequências.

A revolta de Espártaco

A revolta de Espártaco marcou uma ruptura incontestável no mundo da gladiatura.


Porém, antes de nos centrarmos neste episódio que chegou a estremecer os alicerces do

168 L. M. Günther, «Gladiatoren beim Fest Antiochus’ IV zu Daphne (166 v. Chr.)?», Hermes 117 (1989), pp. 250-252;
M. Carter, «The Roman Spectacles of Antiochus IV Epiphanes at Daphne, 166 BC Nikephoros», Zeitschrift für Sport
und Kultur im Altertum 14 (2001), pp. 45-62.

67
Estado romano, importa especificar o contexto no qual o mesmo ocorreu. Roma havia
entrado no século I a. C. já na qualidade de grande potência do Mediterrâneo.
Derrotara os Cartagineses e seus aliados e dominava a Península Ibérica, a Itália, a
Sicília, parte do Norte de África, a Grécia e os reinos helenísticos da Ásia Menor e da
Síria. Neste momento histórico, parecia que nada nem ninguém poderiam desafiar tal
hegemonia. A expansão territorial havia fornecido a Roma, entre outras riquezas,
ingentes quantidades de mão-de-obra e escravos para o desenvolvimento da economia
romana. A maioria deles era canalizada para as grandes explorações agrícolas,
trabalhando em condições desumanas, e para as minas que se estendiam por todos os
seus domínios. A crueldade no tratamento que lhes dispensavam levou a que na Sicília
eclodissem duas sublevações de escravos (as chamadas «Guerras Servis», entre 135-102
a. C.), mas que foram rapidamente sufocadas pelas tropas romanas.

Concomitantemente, a República atravessava um período marcado por uma profunda


instabilidade política: à Guerra Social (91-88 a. C.), seguiu-se a Guerra Civil (88-82 a.
C.) entre Caio Mário e Lúcio Cornélio Sula/Sila, as figuras maiores da altura que
representavam, respectivamente, os reformadores (populares) e os aristocratas
(optimates). Quase mesmo tempo, apareceram vários focos de insurreição contra a
dominação de Roma, em diferentes cenários geográficos: o levantamento do númida
Jugurta, o rei Mitridates VI do Ponto, que ameaçou pôr em pé de guerra todo o orbe
grego e, na Hispânia, Sertório veio a rebelar-se. Nesta conjuntura, foram os patrícios
que saíram vencedores do conflito em Roma e garantiram o poder numa república que
não tardaria em converter-se num império. No entanto, o clima de instabilidade
política conduziu a que a corrupção se instalasse nas instituições romanas e os que
acediam aos cargos públicos, fossem civis ou militares, reuniam as melhores
possibilidades para aumentar o património pessoal de maneira vertiginosa.

Neste pano de fundo apareceu, em 73 a. C., Espártaco (Spartacus). Pouco sabemos


sobre a sua origem e os escassos dados de que dispomos procedem de historiadores
greco-romanos como Plutarco, Floro ou Apiano. Se bem que estes autores tenham
narrado a sua revolta, conhecida como a «Terceira Guerra Civil» ou «Guerra dos
Gladiadores», as informações que nos oferecem sobre a sua biografia são reduzidas e
vagas ou, então, influenciadas pelo pensamento dos mesmos. De facto, ignoramos até o
seu verdadeiro nome. Uma das poucas certezas que temos é que Espártaco provinha da
Trácia (região histórica dos Balcãs) e, como em diversas ocasões se denominavam os
gladiadores de acordo com a sua terra-natal, o seu nome pode ter sido um derivado da
região trácia conhecida como Espartakia. Certos estudiosos modernos sugeriram que

68
ele poderia haver nascido na actual localidade búlgara de Sandanski, mas não existe
consenso académico sobre tal hipótese.

A historiografia greco-romana fornece versões distintas e informes vagos ou lacónicos


sobre o trácio. A hipótese que parece merecer mais crédito, até porque explicaria o
talento militar e os conhecimentos das tácticas romanas que Espártaco demonstraria
possuir durante a rebelião, é a de que Espártaco, talvez oriundo de uma família nobre
(se nos ativermos a Plutarco ), terá servido como mercenário ou auxiliar no exército
169

romano, provavelmente no decurso da Primeira Guerra Mitridática, nos anos 80 a. C.


Depois, por motivos que nos escapam, desertou e tornou-se salteador. A dada altura foi
capturado pelos Romanos e, reduzido à condição de escravo, devido à sua força física e
experiência militar, saiu da pedreira onde fora enviado para trabalhos forçados, ao ser
vendido a Lêntulo Batiato170, proprietário de uma escola gladiatória (ludus) em Cápua,
no Sul de Itália171. Esta cidade era a principal da Campânia, região dotada de solo fértil e
que, com o influxo de escravos para trabalharem nos campos, gozava de grande
riqueza, assente numa economia eminentemente agrícola e pastoral. Cícero diz-nos que
essa opulência veio a gerar uma atitude pautada pela luxuria e pela superbia, o que
decerto influiu no recrudescimento dos espectáculos gladiatórios nessa zona 172
. A
formação e o treino de escravos para se converterem em gladiadores de primeira
categoria, juntamente com as despesas com o seu armamento e manutenção,
constituíam, sem dúvida, um luxo. Os combatentes campanianos eram considerados a
crème de la crème da gladiatura. Note-se que a sua reputação estelar ainda estava
presente em 249 d. C., quando um munerarius de Minturnae (hodierna Minturno) se
vangloriou, numa inscrição, de ter ordenado a morte de onze gladiadores de topo da

169É o único autor clássico a conferir uma certa dignidade a Espártaco, apresentando-o como uma nobre trácio
helenizado. No entanto, convém frisar que isto talvez se explique pelo propósito de Plutarco em querer estabelecer um
contraste com Crasso, em relação ao qual o historiador alimentava uma forte animosidade.

170 O nome oficial romano de Batiato (Batiatus) seria, provavelmente, Cn. Cornelius Lentulus Vatia. A variante
Batiatus só aparece em Plutarco, uma fonte grega, que substitui o V pelo B e acrescenta um sufixo. A confusão do B e V
era um fenómeno linguístico relativamente corrente no Império. A este respeito, consulte-se E. H. Sturtevant, The
Pronunciation of Greek and Latin: The Sounds and Accents, Chicago, 1920, pp. 8, 142-143.

171 A escola de Batiato englobava, na sua maior parte, escravos e prisioneiros de origem trácia e gaulesa: Brent Shaw,
Spartacus and the Slave Wars: A Brief History with Documents, Boston, 2001, p. 131. Neste livro, o leitor pode ter
acesso directo a um considerável acervo de fontes textuais antigas, bem como a uma visão circunstanciada das Guerras
Servis. Aconselhamos igualmente: S. Bussi e D. Foraboschi, «Spartaco: il personaggio, il mito, la vicenda», in A. La
Regina (ed.), Sangue e Arena, Roma, 2001, pp. 29-41; Nick Fields, Spartacus and the Slave War 73-71 BC, Oxford,
Osprey, 2009; P. J. Pacheco López, La rebelión de Espartaco, Madrid, Sátrapa Ediciones, 2010; Barry Strauss, La
guerra de Espartaco, Barcelona, 2010; e, por fim, a recente abordagem de É. Teyssier, Spartacus, entre le mythe et
l'histoire, Paris, Perrin, 2012: mediante um exame crítico das fontes, este historiador francês, tenta desmistificar e, ao
mesmo tempo, oferecer-nos o verdadeiro rosto de Espártaco: um grande chefe de guerra, um notável táctico, um
excepcional condutor de homens mas um diplomata medíocre, que acabaria «dar» final trágico à sua «guerra servil», a
terceira com esta designação.

172 Leg. Agric. 2.95.

69
Campânia (Gladiatores Primarii Campaniae XI) durante o espectáculo que ofereceu
aos seus concidadãos 173.

Na ausência de dados mais concretos, só nos resta conjecturar quanto ao período de


treino de Espártaco no ludus capuano. Por esta altura, a gladiatura achava-se
suficientemente estruturada, pelo que os instruendos se viam submetidos a uma
formação rigorosa e especializada. Não há grandes dúvidas que recebeu um tratamento
intenso e duro a fim de o preparar adequadamente para lutar na arena. Mas existia
outro motivo para que tenha sido objecto de violência por parte dos instrutores: muitos
dos instruendos que lá se encontravam haviam sido condenados a servir numa escola
gladiatória (damnatio ad ludos) por vários tipos de crimes. Espártaco e os seus colegas
estavam literalmente presos no ludus, sob apertada vigilância. Desconhecemos se o
trácio terá lutado alguma vez num munus. Seja como for, apesar de estar confinado ao
ludus, Espártaco terá aí gozado da companhia de uma mulher, supostamente uma
sacerdotisa.

O que se sabe é que, em 73 a. C., Espártaco e outros duzentos gladiadores iniciaram a


revolta no ludus, mas, de novo, a pouca clareza das fontes antigas impede que
conheçamos quais foram, exactamente, os motivos que impulsionaram o trácio e os
seus companheiros a evadirem-se. Um deles, todavia, relacionava-se claramente com a
vergonha e a humilhação de que eram vítimas, ao exibirem-se para pura diversão de
outros. Pelo menos, segundo Apiano, terá sido um dos argumentos esgrimidos por
Espártaco no discurso proferido aos seus camaradas, a fim de os convencer a fugirem
da escola 174. Como não tinham acesso às armas (guardadas a sete chaves num depósito,
sendo utilizadas apenas nos espectáculos, uma vez que nos treinos se empregavam
réplicas de madeira), assaltaram a cozinha para se apropriarem de facas, conforme nos
relata Plutarco. Os confrontos que se seguiram com os guardas devem ter sido
realmente duros, já que apenas uns setenta homens conseguiram escapar. Uma vez já
fora de Cápua, Plutarco informa-nos que Espártaco e os seus colegas tiveram a sorte de
encontrarem pelo caminho uma carroça carregada com armas, que se dirigia,
ironicamente, para o ludus de Batiato 175.

173 ILS 5062. Noutro capítulo abordamos novamente esta fonte.

174 Bellum Civile, 1.14.116.

175 Vida de Crasso, 8-9.1. Mais tarde, durante o reinado de Nero, registou-se uma tentativa de sublevação num ludus
situado em Praeneste (hodierna Palestrina), a leste de Roma, mas que foi prontamente sufocada pela própria guarda
militar. G. Ville (La Gladiature, p. 284, n. 134), em face desta escola provida de tropas, sugeriu que devia tratar-se
decerto de um ludus imperial (em geral, as escolas privadas não dispunham de uma tal protecção). A caserna de
Praeneste comportava essencialmente condenados e prisioneiros de guerra mantidos sob apertada vigilância.

70
Espártaco e os seus homens refugiaram-se no Monte Vesúvio, o famoso vulcão que
cerca de cem anos depois entraria em erupção, e a notícia da rebelião propagou-se
como pólvora. Muitos escravos dos latifúndios da região campaniana fugiram para se
unir aos ex-gladiadores, e o tamanho do grupo foi aumentando rapidamente. Estes
fugitivos revelar-se-iam especialmente úteis para Espártaco, já que muitos deles eram
guerreiros gauleses, trácios ou germânicos aprisionados nos recentes conflitos contra
Roma.

Apesar de serem claros os sinais de revolta, o Senado inicialmente não considerou o


assunto um verdadeiro desafio ao seu poder, mas antes distúrbios provocados por um
grupo de bandidos, daí que se tenha subestimado o carácter belicoso dos sublevados.
Ademais, as guerras na Ásia Menor e na Hispânia exigiam o envio e a presença dos
principais recursos militares nestes teatros de operações. Consequentemente, para
reprimir a revolta, o Senado mandou um exército de 3000 homens da milícia, com
reduzida experiência em combate e sob o comando do pretor Clódio Glabro: não eram,
portanto, as melhores legiões, já que nessa altura dois grandes exércitos romanos
lutavam fora de Itália, um chefiado por Pompeio, contra Sertório na Hispânia, e outro,
por Licínio Lúculo na Ásia Menor, enfrentando o rei Mitrídates. As tropas romanas
rodearam o Vesúvio, à excepção de uma das suas encostas, julgada inacessível. Foi
então que Espártaco deu a sua primeira amostra de audácia enquanto comandante:
ordenou aos seus homens que fizessem cordas com plantas trepadeiras e as utilizassem
para descerem pelo flanco desprotegido, atacando, de surpresa e pela retaguarda, o
acampamento romano. Os gladiadores massacraram os romanos e lograram apoderar-
se de uma grande quantidade de equipamento militar.

Com esta vitória esmagadora, o grupo dos revoltosos ganhou redobrado estímulo e
coragem. As notícias das suas proezas levaram a que cada vez mais escravos se
evadissem, a tal ponto que não demorou que Espártaco viesse a estar à frente de um
«exército» totalizando aproximadamente 40 000 pessoas, que não parava de crescer.
No entanto, deve matizar-se esta imagem tão romântica de um grupo de escravos
lutando contra a «tirania», já que no seu seio se desenvolviam vários problemas: em
primeiro lugar, havia tensões étnicas entre os sublevados devido à heterogeneidade do
grupo, um «exército» composto por representantes de orgulhosas culturas guerreiras
como os trácios ou os gauleses. Embora a solução para evitar fricções tenha sido o de
entregar o comando supremo nas mãos de Espártaco, os seus dois coadjutores directos,
Crixo e Eromao, eram gauleses, o que devia suscitar invejas e ressentimentos. Em
segundo lugar, apesar de o grupo haver atraído um elevado número de seguidores, tal

71
facto tornava-o um objectivo ainda mais perigoso para Roma, que não hesitaria em
empregar mais recursos contra os revoltosos.

O Senado romano enviou outros dois exércitos, provavelmente mais numerosos que o
anterior (sob o mando do pretor Varínio), mas, de novo, formados por tropas
auxiliares. Espártaco não se deixou encurralar e actuou com discernimento, vencendo
os soldados romanos em três recontros. A rebelião continuou a alimentar-se de
«recrutas», mas estes já não eram só escravos, mas igualmente pequenos agricultores
arruinados pelo sistema das grandes propriedades dos patrícios e, até, gente
empobrecida proveniente das cidades. É caso para dizer que o Sul de Itália talvez
sonhasse com uma revolução em grande escala.

Até aí, o «exército» de rebeldes limitara-se a agir por impulsos erráticos, sem ter um
objectivo claro. Mas, no fim de 73 a. C., Espártaco e os seus «lugares-tenentes»
decidiram que deviam regressar às suas terras-natais. Propuseram-se, então, dirigir-se
para o Norte de Itália, atravessar os Alpes e depois chegar às suas regiões de origem na
Gália, na Trácia e na Germânia. Essa decisão coincidiu com uma mudança de atitude de
Roma, que finalmente tomou mais a sério a ameaça. Enviou dois exércitos, mas desta
feita o Senado nomeou dois cônsules (o cargo mais elevado na República), Lúcio Gélio e
Cneu Lêntulo, para generais das tropas e recrutaram-se quatro legiões. As forças
lideradas por Gélio partiu para sul e o outro dirigiu-se rumo a norte para bloquear a
marcha para Picenum.

As dissenções no seio do já enorme tropel dos revoltosos causaram uma cisão entre os
mesmos: Crixo e os que preferiram segui-lo foram atacados pelas legiões de Gélio e
sofreram uma estrondosa derrota, junto ao monte Garganus. Aqui pereceu o chefe
celta e perto de 20 000 homens. Espártaco, porém, defrontou os dois cônsules e
venceu-os um após o outro. As fontes romanas, sempre parciais, ocultaram como os
gladiadores levaram de vencida tais legiões com uma força teoricamente pior
preparada. Em contrapartida, os historiadores latinos mais hostis ao trácio discorreram
sobre a sua crueldade: como homenagem póstuma a Crixo, sacrificou trezentos
prisioneiros, mas ultrajando-os, visto que obrigou os soldados romanos a combaterem
entre si como gladiadores até à morte (segundo Floro 176) ou, segundo outra versão
(Apiano), mandou que fossem executados. Sob a óptica romana, este acto constituiu
uma afronta e uma ignomínia, uma vez que subvertera o costume romano de se
utilizarem escravos como Espártaco e os seus colegas para combaterem em funerais de
ilustres patrícios. Agora, os papéis invertiam-se: à semelhança de um rico aristocrata

176 Floro, Epitomae, 28. Também, Orósio, Historiarum Adversum Paganos, 5.24.

72
em Roma, um gladiador fez de editor num munus em que os soldados romanos
proporcionaram o entretenimento para o público.

Depois, Espártaco marchou para norte, rumo aos Alpes. Perto de Mutina, porfiou
contra outro exército romano, liderado por Caio Cássio, o pretor da Gália Cisalpina,
também o derrotando. No entanto, o trácio não cruzou a cordilheira para fugir de Itália:
pelo contrário, numa atitude enigmática, decidiu voltar de novo para o sul, talvez por
causa da falta de víveres ou devido a uma eventual oposição manifestada pelos seus
seguidores, que, inebriados pelas vitórias e pelos despojos obtidos (tudo o que
capturavam era distribuído equitativamente), continuaram a saquear campos e aldeias.
Corria o Verão do ano 72 a. C. Os insurrectos passaram próximo de Roma, como
acontecera com as tropas do cartaginês Aníbal cerca de século e meio antes, durante a
Segunda Guerra Púnica, o que gerou o pânico em muitos cidadãos, mas as forças de
Espártaco, embora numerosas, careciam de meios para assediar a Urbs ou tentar
realizar um assalto contra as suas muralhas.

Em face desta alarmante situação, o Senado procurou um novo líder para esmagar a
rebelião. Parece que ninguém queria defrontar Espártaco e os seus homens, uma vez
que não havia glória alguma para aquele que lograsse derrotar um «exército» de
escravos e gladiadores, envolvendo, em contrapartida, muitos riscos em sofrer uma
derrota diante de Espártaco. Ainda assim, um patrício romano ofereceu-se para salvar a
República: de uma família nobre, chamava-se Marco Licínio Crasso e tinha a fama de
ser o homem mais rico de Roma, possuindo muitos escravos e latifúndios no Sul, pelo
que ansiava aniquilar rapidamente os rebeldes. Anos antes, participara na Guerra Civil
do lado de Sila e dos plebeus, o que lhe permitiu aumentar a sua fortuna.

Ainda que as suas riquezas tenham impulsionado a sua ambição política, conseguindo
alguns êxitos no Senado, Crasso foi eclipsado pelas vitórias militares de Pompeio em
África e na Hispânia, e pelas de Lúcio Licínio Lúculo na Ásia. Consequentemente, ele
precisava de obrar uma façanha bélica que lhe conferisse prestígio acrescido, e por esta
razão resolveu aceitar o repto para vencer Espártaco em 72 a. C. O Senado nomeou-o
pretor e concedeu-lhe um poder militar excepcional; Gélio e Lêntulo (que ainda
mantinham o cargo) cederam-lhe o mando das tropas. Crasso reuniu seis novas legiões,
uns 30 000 homens, adicionando as quatro dos dois cônsules, ou o que restava delas, e
avançou para sul. Era um exército com quase 50 000 legionários, muito superior a
todos os anteriores, comandado por um general duro e implacável, apostado em obter
uma vitória retumbante.

73
Crasso mandou à frente o seu «lugar-tenente», Múmio (Mummius), comandando as
legiões anteriormente castigadas, para acossar e vigiar os rebeldes. Mas, num ímpeto de
audácia, Múmio foi para além das ordens recebidas e, ao confiar na sua posição
vantajosa, resolveu carregar sobre o inimigo. Sofreu uma clara derrota: grande parte
dos seus homens fugiu diante das forças de Espártaco. Crasso, enfurecido, castigou
quinhentos legionários, ordenando que fossem dizimados (através da prática da
decimatio, isto é, executando um em cada dez homens), mortos pelos seus próprios
camaradas. Ele não admitia a mínima manifestação de fraqueza ou de cobardia nas
suas tropas. Esta medida drástica serviu para restaurar a disciplina, já que, a partir de
então, os soldados passaram a temer mais o castigo por debandar do que pelejar até à
morte.

O plano da campanha de Crasso consistia em empurrar os sublevados para o extremo


sudoeste de Itália, em direcção a Reggio, e encurralá-los aí até que se livrasse a batalha
final. Em Janeiro de 71 a. C., Espártaco tentou passar com os seus homens para a
Sicília, que se situava perto, mas havia falta de meios de transporte. Buscou a ajuda de
uns piratas da Cilícia para chegar à ilha (através do estreito de Messina) onde
pretenderia sublevar os escravos, transformando a Sicília na sua fortaleza e, ao mesmo
tempo, num território livre sem escravos. Mas os piratas não cumpriram a sua palavra.
Como se isto não bastasse, houve uma nova dissenção entre os revoltosos e alguns
grupos separaram-se, avançando para norte outro problema; estes depressa foram
perseguidos e chacinados pelas tropas de Crasso.

O general romano ergueu uma longa paliçada de madeira, de maneira a impedir que
os rebeldes escapassem. Estava-se no Inverno e os Romanos estavam bem cientes que a
falta de víveres debilitaria o inimigo. Seja como for, Espártaco não hesitou em usar de
crueldade para manter a disciplina, ordenando que a crucificação de um prisioneiro
romano à frente das suas fileiras, enquanto exortava os seus seguidores a não
esmorecer, dizendo-lhes que seria esse o funesto destino que os esperava caso fossem
capturados. Sem mais delongas, o líder trácio investiu e, numa noite de tempestade,
assaltou um sector da paliçada. O ataque apanhou os romanos desprevenidos, mas a
acção não resultou num sucesso, já que nesse assédio terão sucumbido uns 12 000
insurrectos.

Os membros do Senado, indignados e furiosos com o arrojo de Espártaco, reclamaram


o regresso das legiões da Hispânia e da Ásia Menor. Mas Crasso não queria partilhar a
sua vitória com os seus rivais Pompeio e Lúculo, pelo que continuou a perseguir os
revoltosos. Em 71 a. C., Espártaco deslocou-se a Brindisium (actual Brindisi, na Apúlia,
no calcanhar da «bota» de Itália), tencionando, ao que parece, retornar por via

74
marítima à sua terra-natal. Porém, em vez disso, deparou com as legiões de Lúculo,
recém-chegadas ao solo itálico. Crasso, por seu lado, não desistia de levar de vencida os
revoltosos. Espártaco tentou negociar uma saída, mas a resposta do pretor foi
categórica: Roma não pactuava com escravos. Só restava pelejar.

Em Abril de 71 antes da nossa era, Espártaco dispôs os seus homens junto do rio
Silarius, e degolou o seu cavalo à vista de todos: num gesto de forte dramatismo, ele
terá dito que se vencesse arranjaria muitos outros equídeos e, caso perdesse, não
precisaria de uma montada. Assim, com a morte do seu cavalo, o trácio mostrava que
apenas existiam duas opções, lutar ou morrer 177
. A batalha campal travada contra
Crasso e Lúculo (aliados, desta vez, por força das circunstâncias) foi extremamente
encarniçada e cruenta. As legiões fizeram valer a sua disciplina face a um antagonista
esgotado por uma fuga constante. A dada altura, Espártaco arremeteu directamente
contra Crasso, mas os legionários acumularam-se à frente do trácio, protegendo o seu
comandante. O ex-gladiador ainda matou dois centuriões, mas depressa se viu
suplantado pelo inimigo. Como era expectável, a morte do líder provocou a debandada
do «exército» de escravos, que foi massacrado. Cerca de 6 000 homens saíram vivos da
contenda, mas não tardou que fossem capturados. Crasso ordenou que todos eles
fossem crucificados, em intervalos regulares, ao longo da Via Ápia, para servirem de
exemplo e simultaneamente de aviso contra futuros actos de rebeldia contra Roma 178
.
No campo de batalha, depois da carnificina, não foi possível reconhecer o cadáver de
Espártaco.

Alguns sobreviventes trataram de escapar para norte, mas na Etrúria (na actual
Toscana) toparam com o exército de Pompeio, que aproveitou a ocasião para massacrá-
los. Não tardou que se vangloriasse de ter sido ele a pôr o ponto final à guerra: «Crasso
havia derrotado os escravos numa batalha, mas ele, Pompeio, destroçara as raízes da
guerra», fazendo assim sombra aos méritos do seu rival político. Se bem que Crasso
tivesse logrado derrotar e matar Espártaco em meio ano, de Outono de 72 a Abril de 71
a. C., não pôde monopolizar a vitória. No último ano, Pompeio e Lúculo festejaram,
com um triunfo, as suas respectivas façanhas bélicas (na Hispânia e na Ásia Menor),
mas Crasso viu-se obrigado a contentar-se com uma celebração menor, ovação pública
(ovatio). O triunfo só se concedia por lei aos vencedores em guerras contra inimigos
externos, não a quem só derrotara uma turba de escravos e miseráveis rebeldes em solo

177É possível, igualmente, que ao matar o seu cavalo Espártaco pretendesse fazer um sacrificio ritual aos seus deuses,
o que, aliás, estaria conforme a um costume típico de algumas tribos trácias.

178 Para a crucificação dos seguidores de Espártaco, cf. Apiano, Bell. Civ. 1.14.120. Para a distância que haveria entre as
cruzes plantadas ao longo da Via Ápia, veja-se B. Shaw, Spartacus and the Slave Wars, p. 144, n. 8. Contudo, Plutarco
não menciona tal modalidade de punição capital, afirmando que fora Pompeio, que acabar de regressar da Hispânia, que
massacrou os sobreviventes das forças de Espártaco (Vida de Crasso, 11.11)

75
itálico. A «Revolta dos Escravos» vaticinou, em certa medida, a decadência da
República: as injustiças do seu sistema esclavagista permitiram que um pequeno grupo
de gladiadores reunisse um grande «exército», e o regime político, caracterizado pela
soberba e pela corrupção, mostrou-se incapaz de reprimir a sublevação com celeridade.
Pompeio e Crasso foram eleitos cônsules em 70 a. C. Ambos compartilharam o poder
durante lustros e perderam a vida de forma violenta. Mas a glória de Espártaco
sobreviveu à dos dois generais vitoriosos. O nome do rebelde trácio não se eclipsou com
o seu fracasso e morte. Volvidos menos de dez anos, formou-se o Primeiro Triunvirato
com Pompeio, Júlio César e o próprio Crasso. A seguir eclodiriam novas guerras civis e
o Império instaurar-se-ia definitivamente sob o Principado de Octávio Augusto.

A percepção dos Romanos sobre este episódio marcante da sua história evidencia
grande ambiguidade. Os gladiadores eram, e continuaram a sê-lo, tanto admirados pela
sua bravura e destreza na porfia, como, no outro extremo, desprezados pela sua
condição infame. A narração que Floro nos fornece sobre a revolta liderada por
Espártaco transmite perfeitamente tal ambivalência. No início do relato, o autor, que
escreveu cerca de duzentos anos depois dos factos descritos, manifesta cabalmente o
seu desdém pelos rebeldes:

«Mas que nome dar à guerra provocada por Espártaco? Não sei, já que nela participaram
escravos, nela comandaram gladiadores. Os primeiros são de uma condição infame, os últimos
da pior das condições, servindo de joguetes para outros homens» 179.

O desprezo de Floro, que o fez situar os gladiadores ainda mais abaixo do que os
simples escravos, ainda sobressai com maior acuidade quando descreve o chefe dos
sublevados:

«Espártaco, um trácio mercenário tornado soldado, e que a seguir passou a desertor e a


salteador, foi depois gladiador por causa da sua força. Ele celebrou os funerais dos seus oficiais
mortos, apresentando combates com a solenidade reservada a generais e forçou os prisioneiros a
lutarem entre si, de armas na mão, em torno das suas piras. Este antigo gladiador esperava
deste modo apagar a infâmia do seu passado, ao oferecer jogos gladiatórios»180.

Não obstante estas asserções, Floro acaba por prestar homenagem à coragem
evidenciada pelos gladiadores:

«Por fim, lançaram-se sobre os Romanos e morreram como bravos. Como convinha os
soldados de um gladiador, combateram sem pedir perdão [sine missione pugnatum est]. O
próprio Espártaco pelejou com valentia e pereceu na primeira linha como um verdadeiro
general»181.

179 Epit. 28.

180 Ibidem.

181 Ibidem.

76
Plutarco, que estava longe de ser admirador dos combates gladiatórios romanos, critica
a «injustiça» que havia recaído sobre Espártaco e os seus companheiros, obrigados pelo
seu proprietário a lutarem como gladiadores 182. Sendo um escritor versado em filosofia,
as suas opiniões a este respeito estavam conformes às de alguns outros intelectuais
gregos, mas diferiam das do resto da sociedade helénica, que, como os Romanos,
acreditavam que os gladiadores, homens de baixíssima condição e desprovidos de
dignidade, mereciam o seu destino183.

Piores que simples escravos empregues em tarefas domésticas ou agrícolas, embora


títeres ao serviço de outros homens, mas igualmente valentes como os legionários e os
autênticos profissionais do combate, os gladiadores foram, em simultâneo, tanto
objecto de repulsa como modelo, ao mesmo tempo infames e heroicos, perigosos mas
indispensáveis.Esta relação passional representa, sem dúvida, outra razão fundamental
para se compreender a longevidade que atingiu o fenómeno gladiatório e a sua
importância social em Roma e em todo o Império. Ela permite também explicar porque
é que os Romanos chegaram a fazer evoluir a gladiatura a fim de melhor a controlar. A
presença de escravos treinados no combate com armas significava um perigo constante
face ao qual Roma só teve plena consciência depois de haver sufocado a revolta de
Espártaco. Em 73 a. C., os guardas do ludus de Cápua foram incapazes de conter o
trácio e os seus colegas. A própria vigilância dos grupos de gladiadores também se
converteu num pesadelo, sempre que os soldados de Roma se viam mobilizados para
empreender campanhas fora de Itália.

Actualmente, Espártaco continua a representar o gladiador mais célebre no


imaginário colectivo. A sua rejeição da carreira que a escravidão lhe impôs e a luta
desesperada pela liberdade ganharam popularidade com a novela histórica Spartacus,
de Howard Fast, publicada em 1951 e, ainda mais, com o filme protagonizado pelo actor
Kirk Douglas e realizado por Stanley Kubrick em 1960 (cujo argumento se baseou no
referido livro). Na realidade, desde o século XVIII que a figura de Espártaco foi
resgatada do olvido, sendo utilizada por novelistas, dramaturgos e cineastas para
desenvolverem o tópico da liberdade pessoal: por exemplo, a tragédia da autoria do
francês Bernard-Joseph Saurin (que se escorou em Plutarco), titulada Spartacus (1792)
serviu para dar voz pública ao desejo pela liberdade que a Revolução Francesa
alimentou. Por seu turno, a peça teatral de Robert Montgomery Bird, The Gladiator
(1831) constituiu um ataque velado contra a instituição da escravatura nos Estados

182 Vida de Crasso, 8.1; Mor. 997 C.

183 Outros autores gregos mostraram pontos de vista similares aos de Plutarco, haja em vista, por exemplo, Demonax
(Luciano, Demonax, 57). Veja-se também Dião Crisóstomo, Orationes, 31.121. Cf. L. Robert, Les gladiateurs dans
l'Orient grec, pp. 239-248.

77
Unidos da América. O próprio Karl Marx encarou a figura do trácio como um
antecedente para a sua teoria da luta de classes: a partir daí, Espártaco transformou-se
numa referência para o socialismo revolucionário.

Em Itália, na película (1913) de Giovanni Enrico Vidali, Spartaco o Il gladiatore della


Tracia, Espártaco tornou-se no símbolo do nacionalismo italiano (o realizador
inspirou-se no épico de Raffaello Giovagnoni, Spartaco, dado à estampa em 1874) 184
.
Depois da Primeira Grande Guerra, vários partidos de extrema-esquerda adoptaram
nomes alusivos ao gladiador trácio, como foi o caso da Liga Espartaquista alemã em
1919. No entanto, na segunda metade do século passado, graças à obra de Howard Fast
é que Espártaco se converteu num revolucionário comunista, no seu intento de fazer de
Roma uma sociedade sem classes. Entretanto, os países comunistas canonizaram o
mito de múltiplas maneiras: desde estudos historiográficos (sem dúvida distorcidos
pela doutrina política), o célebre ballet de Aram Kachaturian e, inclusive, os desportos.
A URSS promoveu as Espartaquíadas, uma espécie de alternativa aos Jogos Olímpicos,
a qual se celebrou entre 1928 e 1952. Fundaram-se também numerosos clubes de
futebol na Europa de Leste, como, por exemplo, o Spartak de Moscovo ou o A. C.
Spartak de Praga.

Quando o romance histórico foi adaptado ao grande ecrã, a mensagem comunista de


Fast viu-se deliberadamente esbatida de maneira a tornar o filme aceitável para o
público norte-americano do período pós-McCarthy 185
. Espártaco passou a ser
simplesmente um homem nascido já escravo que começou a rebelião por causa do
amor a Varínia, outra escrava (duas das licenças introduzidas pelos guionistas, em nada
correspondendo à realidade histórica), que tenta conduzir o seu «exército» de
seguidores de regresso às suas terras de origem, sugerindo, simbolicamente e ao
mesmo tempo, as aspirações coevas tanto dos negros como dos judeus e o ideal
incontroverso da liberdade humana. Ainda que se tenha diminuído a carga ideológica
da obra de Fast, esta longa-metragem contém um poderoso discurso político: os
gladiadores representam a luta dos oprimidos pela liberdade contra uma Roma que
encarna a dupla moral dos poderosos e a corrupção do «capitalismo». Curiosamente, o
filme até cativou os segmentos populacionais mais conservadores (a nível político e
religioso) dessa altura nos E.U.A., ao apresentar um Espártaco crucificado na última
cena, equivalendo a Jesus Cristo, e ao substituir a luta de classes pela piedade religiosa

184 Para uma discussão minudente dos romances históricos, peças teatrais e filmes que Espártaco inspirou, consulte-se
Maria Wyke, Projecting the Past: Ancient Rome, Cinema and History, Nova Iorque, 1997: «Chapter 3 – Spartacus:
Testing the Strength of the Body Politic», pp. 34-72.

185 Referimo-nos à chamada «caça às bruxas» e à «cruzada» anti-comunista liderada pelo senador McCarthy na
década de 50 do século XX.

78
enquanto motivação da resistência do trácio contra a tirania de Roma. Assim, esses
elementos conservadores viram em Espártaco um símbolo da guerra fria dos E.U.A
contra as ditaduras comunistas ateias, em especial a União Soviética e Cuba.

CAPÍTULO II - Início de uma profunda mutação na gladiatura: dos


derradeiros tempos da República até ao Principado augustano. Os
munera sob o Alto-Império

Nos cinquenta anos a seguir à rebelião de Espártaco, Roma acabou por transformar o
Mediterrâneo no Mare Nostrum. Esta extraordinária expansão territorial exigiu um
aumento proporcional de efectivos militares, tanto para conquistar novas regiões, como
para conservar as que já tinham sido dominadas. Se a esta conjuntura acrescentarmos
as guerras civis, que ocuparam o essencial deste período, salta à vista que Roma não se
podia dar ao luxo de colocar milhares de soldados a vigiarem um número tão grande de
escravos peritos no manejo das armas. Embora cientes do perigo que estes homens
representavam, os Romanos não tiveram grande escolha para a resolução deste
problema. A solução mais sensata seria, naturalmente, a de renunciar a tais

79
espectáculos, que os Modernos sempre consideraram indignos de Roma. Mas é muito
provável que nem se tenha pensado nessa hipótese ao tempo.

De facto, não era mais possível suprimir os combates gladiatórios, nem em Roma,
nem nas províncias romanizadas. Tornados quase «consubstanciais» ao exercício do
poder, numa República agonizante, os munera não podiam ver-se abolidos nem
substituídos por lutas de animais. Longe de concorrerem para a sua revogação, as
conquistas vieram a estimular ainda mais a gladiatura. Cada campanha vitoriosa trazia
consigo um general que arrebatava elevada quantidade de despojos ao inimigo, o qual
se mostrava impaciente por brilhar, ao nível político, em Roma, tentando deslumbrar a
plebe, assim como as classes dirigentes. Com os troféus e as riquezas que se ostentavam
aquando do triunfo do imperador, este mostrava também representações de novas
batalhas vitoriosas. Então, os combates gladiatórios converteram-se no ponto fulcral de
uma demonstração de força: força política daquele que oferecia espectáculos mais
brilhantes do que os adversários; força simbólica, que transmitia, nos combates
travados no Circo e nos novos anfiteatros, a manifestação concreta do poder de Roma.
Um poder que provocava a humilhação dos vencidos ao ponto de serem obrigados a
exibir-se e a morrer em público.

Pese embora a ameaça de emergir um novo Espártaco no horizonte, como privar a a


população deste tipo de espectáculos? Em vez de se assistir à supressão da gladiatura,
esta, pelo contrário, não cessou de se reforçar após o revés de Espártaco. Ante a
apresentação de um crescente número de combatentes, oferecidos pelos editores, o
público só podia tornar-se mais exigente. Para evitar a monotonia, os editores deviam
exigir aos lanistae mais qualidade nos combates, bem como uma maior variedade. É
neste contexto que se explica certamente a aparição de novas armaturae; numa
primeira fase, estas derivaram das mais antigas sem, no entanto, as substituir.

Este período de transição situou-se, aproximadamente, entre meados do século I a. C.


e a morte de Augusto. Tal lapso temporal foi suficiente para que os doctores dos ludi
inventassem e adaptassem novos combatentes, permitindo ao público familiarizar-se
com as novas finuras da sua arte. Sem dúvida alguma que os espectadores encararam
os provocatores ou os murmillones como produtos da evolução natural dos samnitis ou
do galli ao apreciarem as diferenças das técnicas empregues comparativamente ao
thraex e, a fortiori, ao retiarius. Mas a aparição destes novos tipos de combatentes,
mais técnicos, requeria mais treino. Tais aperfeiçoamentos contribuíram para agravar o
perigo, já que os Romanos se encontravam «condenados» a manter as massas de
escravos votados à morte, os quais, não obstante a sua condição social, tinham ao
alcance da mão os meios para reconquistarem a sua liberdade. Aceitar uma tal situação,

80
sem proceder a qualquer tipo de mudança, após a experiência traumatizante de
Espártaco, teria sido um acto suicida por parte de Roma. Mas, como aliás sucedeu em
muitas ocasiões, o pragmatismo habitual dos «Filhos de Marte» na esfera militar
permitiu uma adaptação da gladiatura. O reinado de Augusto conduziu, pois, a um
justo equilíbrio entre as exigências da plebe e os imperativos da segurança pública.

Foi o próprio entusiasmo dos Romanos que proporcionou uma solução para esta
«quadratura do círculo»: os espectadores, ou pelo menos parte deles, transformaram-
se em actores da sua paixão a partir deste período . Depois da revolta de Espártaco,
186

os romanos não podiam mais coagir indefinidamente milhares de escravos a morrerem


na arena, e isto por claras razões de segurança. A melhor solução que serviria para
impedir a eclosão de revoltas dos gladiadores radicaria, então, no recurso a
combatentes voluntários. Foi sem dúvida neste contexto posterior à rebelião de
Espártaco e anterior à estabilização augustana que a «instituição» dos gladiadores
voluntários se disseminou.

Aparição dos auctorati

Independentemente do estatuto social, o aristocrata, o cidadão romano plebeu, o


homem livre de estatuto inferior (ingenuus) ou o liberto ingressaram nesta carreira por
sua própria e livre vontade. Ao fazê-lo, renunciavam a todas as suas prerrogativas
jurídicas para se tornarem, durante alguns anos, escravos de um lanista 187. Este género
de indivíduo que ingressava na gladiatura desta forma tornou-se conhecido como
auctoratus («contratado»), isto é, um indivíduo que se vendia. Este género de contrato
(auctoratio) estava perfeitamente enquadrado pela lei, já que devia ser previamente
declarado diante de um magistrado antes de um candidato a gladiador assinar o
contrato com o lanista. Ao entrarem formalmente na gladiatura, os auctorati recebiam
o prémio que estava previsto das cláusulas contratuais, o chamado pretium. Por fim, o

186 É. Teyssier, La mort en face…, pp. 38-39.

187 M. Lemosse, «La condition ancienne des auctorati», in Revue Historique de droit français et étranger, nº 2 (avril-
juin, 1983); A. Guarino, «I gladiatores e l’auctoramentum», Labeo, 29 (1983), pp. 7-24. Noutro capítulo aprofundamos
este assunto.

81
auctoratus prestava um juramento que o arrojava para o nível mais baixo da escala
social.

Ao cotejar o compromisso assumido pelo filósofo ao do gladiador, Séneca menciona a


fórmula de juramento (sacramentum). Ela mostra, de maneira bem explícita, que os
voluntários se comprometiam, com pleno conhecimento de causa, em enveredar por
uma carreira de risco. De acordo com as palavras de Séneca, «o mais nobre e o mais
infame dos compromissos comportam a mesma fórmula: aceitar suportar o fogo, as
correntes, a morte pelo ferro [gládio]»188. Praticamente na mesma época, Petrónio, no
Satyricon, evocou também o mesmo juramento (assunto que desenvolvemos mais nos
capítulos V e VII). Seja no quadro de uma encenação burlesca, ou numa abordagem
filosófica, é interessante verificar que as duas fórmulas se identificam perfeitamente
uma com a outra; esta concordância na fraseologia demonstra que tal juramento era
bem conhecido entre os Romanos. Eram múltiplas as razões que impeliam os homens
livres a enveredar pela gladiatura. Horácio sugere-nos algumas:

«Eutrápelo … prosperava habilmente, oferecia a si mesmo vestes magníficas. Quando alguém


se vê tão bem ataviado, dizia ele, sentir-se-á feliz, ele aspirará a algo de grande, dormirá durante
toda a manhã e preferirá uma acção vil aos seus deveres mais essenciais, pedirá empréstimos
aos usurários e tudo isto fará com que ele acabe por se tornar um thraex ou um auxiliar de
jardineiro» (Ep. 1.18).

Segundo este excerto, escrito no início do Principado, a gladiatura atrairia sobretudo


desempregados, ociosos, aventureiros, as «ovelhas negras» de famílias de elevada
condição e homens endividados, ou seja, uma parte potencialmente significativa da
população. Além disso, os mais miseráveis podiam acalentar a esperança, afora o
atractivo dos ganhos, de ter uma vida relativamente estável, pelo menos durante alguns
meses ou anos. Estes e outros poderosos motivos garantiam aos lanistae um número
considerável de voluntários. Para se compreender esta escolha tão singular, cabe ter em
mente que a existência da maioria dos homens livres estava longe de ser invejável: sem
protectores e sem fontes de rendimento, muitos cidadãos indigentes possuíam poucas
possibilidades de sobreviver por muito tempo na sociedade romana de finais da
República ou sob o Principado de Augusto.

Se quisermos estabelecer uma analogia com um fenómeno mais tardio, na Europa da


Idade Moderna, este género de «alistamento» na gladiatura conhece, em certa medida,
paralelos na Veneza do século XVI e na França, sob o reinado do Luís XIV, no que
respeita à sorte bem pouco invejável dos galerianos: fossem estes prisioneiros
berberescos reduzidos à escravidão, malfeitores condenados às galés, gente de baixa
condição ou protestantes obstinados, a sua existência era a mais miserável de todas aos

188 Ad Atilius, 4.37.1.

82
olhos dos súbditos do Rei-Sol. No entanto, o seu destino via-se partilhado por um
apreciável número de galeotes voluntários chamados em italiano buonevoglie «de boa
vontade», que, na segunda metade da centúria de Quinhentos, na República do
Adriático, bem como mais tarde, no século XVII, cuja condição, na realidade se
acercava mais da chusma (ciurma) dos remeiros forçados do que dos tripulantes livres
a bordo das galés189.

Os auctorati encontravam-se numa situação idêntica sob o ponto de vista social. É


certo que os gladiadores voluntários poderiam decerto temer o índice de mortalidade,
talvez superior aos dos galerianos livres. Em contrapartida, os auctorati beneficiavam,
durante o período de vigência do seu «contrato», de um nível de vida superior,
podendo, além disso, alimentar a ambição de adquirir fortuna ou glória, aspiração à
qual os infortunados buonevoglie não tinham acesso. Nos primeiros tempos, em face
dos riscos da arena, os cidadãos romanos voluntários deveriam ser, indubitavelmente,
pouco numerosos. Os perigos da «profissão» e, talvez mais ainda, o desprezo de que
eram vítimas os indivíduos que participavam nos espectáculos, só poderiam atrair para
junto dos lanistae a escória social de Itália. No entanto, apesar de haver poucas fontes
ilustrativas para este período, supõe-se, através de certos indícios, que este movimento
de «alistamentos» voluntários veio naturalmente a recrudescer com o passar do tempo,
pois diversos factores estavam a contribuir para isso.

As maiores ofertas de numerário dos editores, em busca constante por novos talentos,
levaram a que essa actividade de risco se tornasse mais recompensadora para os que
conseguissem sobreviver aos combates e ascendessem à categoria de vedetas dos
munera. O afluxo de capital propiciado pelas vitórias bélicas de Pompeio e de Júlio
César concorreu, também, para tal evolução. Por esta altura, as rixas que opuseram os
partidários dos dois homens mais poderosos de Roma ilustram bem o clima de
violência que reinava em Itália. Nestes conflitos políticos que Salústio e Cícero
evocaram, a figura do gladiador começou a aparecer, por fim, mais frequentemente nas
ruas, envolvendo-se em actos violentos e agressões armadas (aspecto que abordaremos
noutra alínea), do que no Circo, para se apresentarem ao público. Segundo Marco Túlio
Cícero, o próprio termo «gladiador» servia mais para qualificar um homem pronto a
tudo fazer sem olhar aos meios, violento e com liberdade de movimentos, do que o
combatente-escravo mantido acorrentado no ludus.

189 Luca Lo Basso, Uomini da Remo. Galee e galeotti del Mediterraneo in età moderna, Milão, Edizioni Selene, 2003,
pp. 24-31 («Parte I – Il problema dei galeotti»); André Zysberg e René Burlet, Venise: La Sérénissime et la mer, Paris,
Gallimard, 2007, pp. 44-47

83
A conexão entre os munera e a política em finais da época republicana

A tendência para se gastarem somas cada vez maiores de dinheiro nos munera e nos
eventos a eles associados continuou a verificar-se durante o século I a. C. Cícero criticou
este despesismo, invectivando aqueles que esbanjavam as suas posses em banquetes
públicos, em actos de distribuição de carne à plebe, nos munera, ludi e venationes,
considerando o famoso político e orador romano tudo isto um desperdício inusitado,
defendendo que o capital deveria ser melhor gasto em iniciativas bem mais edificantes
e úteis, como o pagamento de resgates de cativos que estivessem nas mãos dos seus
raptores ou, ainda, ajudando amigos de maneiras diversas, designadamente na
liquidação das suas dívidas, na oferta de dotes para as suas filhas ou apoiando-os na
aquisição de bens190. Cícero afirmava também que as pessoas se lembrariam dos
espectáculos apenas por pouco tempo ou depressa os olvidariam. No entanto, estas
asserções pecam nitidamente pelo exagero, além de que elas apenas se aplicariam
efectivamente a espectáculos que nada tivessem de excepcionais. Os munera mais
grandiosos mantinham-se na memória de muita gente e, como já o dissemos, serviam
não só para honrar o ilustre defunto e a sua família, como também contribuíam
eficazmente para as aspirações políticas dos seus organizadores. Cícero aproveitou
também para demonstrar a sua discordância em relação ao filósofo grego Teofrasto
(370-285 a. C.), que tinha uma imagem positiva sobre os espectáculos:

«[Teofrasto] vai demasiado longe ao louvar o magnífico aparato dos espectáculos populares e
acredita que a habilidade de se gastar dinheiro desta forma é a recompensa da riqueza» 191.

No entanto, o mundo antigo em geral partilhava a mesma visão que Teofrasto. Os


homens ricos, tanto na Grécia como em Roma, encontravam-se, na realidade, sob o
efeito de uma grande pressão social para gastarem o seu dinheiro em espectáculos para
entretenimento dos seus concidadãos. Ora este facto, em Roma, era especialmente
aplicável aos munera. Era difícil resistir a essa pressão. Mas os benefícios que
advinham de tais eventos não seguiam numa «rua de sentido único»: o editor obtinha a
gratidão e a boa vontade da multidão. As recompensas para um editor são especificadas
numa carta de Plínio-o-Moço, já citada, dirigida a Máximo: ganhava reputação pela sua
generosidade e magnanimidade geral192. Atente-se, a propósito, que o autor de um
exercício retórico, imaginando-se na pele de um indivíduo que havia sido condenado a

190 De Officiis, 2.55-56.

191 Ibidem, 2.56.

192 Epistulae, 6.34.

84
combater como gladiador, lamentava-se amargamente que o editor ganhava o apoio
popular à custa do derramamento do seu sangue 193
. A fama gerada pela munificência
podia beneficiar grandemente um editor numa altura em que fosse haver eleições para
cargos públicos. Neste âmbito, Júlio César constitui um exemplo paradigmático sobre a
influência que os espectáculos e um faustoso munus podiam exercer nas decisões
políticas do povo romano. Como Plutarco escreveu:

«Enquanto ele [Júlio César] foi edil, apresentou 320 pares de gladiadores e, com outras
despesas e extravagâncias, como peças de teatro, cortejos e banquetes públicos, conseguiu que o
povo se esquecesse das ambiciosas exibições oferecidas por outros antes dele. Assim, ele
predispôs o povo a buscar novos ofícios e novas honras através das quais lhe pudesse
retribuir»194.

Cícero minimizou a importância dos munera para uma carreira política: numa missiva
endereçada a C. Escribónio Curião, questor na província da Ásia, ele tentou convencer o
seu destinatário, ainda jovem, a não se envolver na organização de um espectáculo
gladiatório tremendamente dispendioso. Cícero defendia a ideia de que um candidato a
um cargo político tinha de se fiar no seu próprio «carácter, estudos e fortuna», ao invés
de apostar avultadas somas nos jogos gladiatórios195. Não há dúvida de que, em teoria,
um candidato político devia ser julgado por esses critérios, e não de acordo com a sua
capacidade ou engenho em financiar e oferecer espectáculos extremamente onerosos,
mas dizer, como Cícero, que toda a gente estava «farta» de tais entretenimentos, não
correspondia à verdade. Aqui, Cícero escreveu mais como filósofo do que como político.
Quanto a Curião, viu-se enredado na competição política, traduzida na oferta de um
munus e de outros eventos. Ele já enviara um agente a Roma com o expresso propósito
de anunciar o munus em honra do seu pai, um dos primeiros passos essenciais para a
apresentação deste género de espectáculo.

Depois de anunciado o munus, não havia forma de se voltar atrás na decisão tomada,
sem que provocasse no povo mal-estar e ressentimento. Mais, significaria um
«suicídio» político, se, depois de publicitado, o munus não se concretizasse. Ignoramos
quantos pares de gladiadores participaram no munus patrocinado por Curião: seria um
número «decente», não excessivamente grande, nem embaraçosamente pequeno. Mas
Curião introduziu uma inovação que parece nunca mais haver sido adoptada: no último
dia do munus, resolveu apresentar gladiadores que tinham saído vitoriosos no primeiro

193Pseudo-Quintiliano, Declamationes Maiores, 9.6.

194Caesar, 5.9. Por outro lado, apresentar sumptuosos espectáculos não era, por si só, garantia absoluta para se ganhar
o favor do público, dado que este também se via influenciado pela personalidade do organizador de tais eventos. Tanto
Júlio César como Pompeio Magno ofereceram aos habitantes de Roma espectáculos extravagantes, mas o primeiro
gozou de maior boa vontade por parte da população do que o último. Veja-se Z. Yavetz, Plebs and Princeps, Oxford,
1969, p. 49.

195 Ad Familiares, 2.3.1.

85
dia (não era invulgar que gladiadores lutassem mais do que uma vez num munus) 196
.
Aparentemente, Curião terá ficado na bancarrota após o munus, daí que, mais tarde,
César viria a ter a possibilidade de comprar o seu apoio político 197. Com efeito, a
bancarrota não constituía uma consequência incomum após se oferecer um munus nos
derradeiros tempos da República: o próprio Júlio César experimentou a insolvência a
seguir ao dispendioso espectáculo que apresentou em 65 a. C.

Cabia aos edis curuis a organização dos ludi que se celebravam anualmente contando
com a ajuda financeira do aerarium, isto é, o tesouro estatal, mas, em finais da
República, esperava-se que estes magistrados contribuíssem nos gastos com dinheiro
saído dos seus próprios bolsos, para mais abrilhantar os jogos. Embora tal
responsabilidade fosse deveras pesada, a maioria dos patrícios romanos aceitavam
levar a cabo este dever por se revelar um factor essencial para singrarem na carreira
política 198
. Se um edil impressionasse o povo romano com os seus ludi, era quase
garantido que aumentava grandemente as suas hipóteses de se ver eleito para o cargo
seguinte, mais elevado, da magistratura, o de pretor, que funcionava como porta de
acesso para o consulado, o ponto culminante do cursus honorum de um político 199
.
Uma estratégia ainda melhor consistia em patrocinar um munus privado, para além
dos ludi públicos. Por causa da tremenda popularidade dos combates gladiatórios, em
detrimento dos ludi públicos, os edis mais ambiciosos investiram enormes montantes
de dinheiro nos seus munera.

A popularidade dos munera não se restringiu obviamente à Urbs: estendeu-se pelas


demais cidades de Itália, nas quais os habitantes frequentemente exerciam pressão no
sentido de forçar a oferta de um munus: por exemplo, o comportamento dos cidadãos
de Pollentia (actual Pollenzo) mostra bem até que ponto a multidão, desejosa de se
divertir com um belo espectáculo, estava disposta a ir; quando um centurião morreu na
cidade, a populaça local, com o assentimento de alguns magistrados, recusou-se a
permitir que o corpo do defunto fosse retirado do forum (onde teve lugar o funeral), até
que os herdeiros do militar decidissem contribuir com numerário para realizar um
munus. O imperador Tibério, ao inteirar-se do facto, reagiu com prontidão, fazendo uso

196 Naturalis Historia, 36.120.

197Suetónio, Divus Iul. 29.2; Díon Cássio, Hist. rom. 40.60.1-3; R. C. Beacham, Spectacle Entertainment of Early
Imperial Rome, New Haven/CT, 1999, p. 72.

198G. Ville (La gladiature…, p. 86) advertiu para o facto de todos os munera republicanos mencionados nas fontes
antigas terem sido apresentados por membros da ordem senatorial, para os quais a política era a sua carreira. Com
efeito, não temos registo de um munus oferecido por um membro da ordem equestre. Esta incluía homens
consideravelmente ricos, só que não perseguiam objectivos políticos.

199Lily Ross Taylor, Politics in the Age of Caesar, Berkeley, University of California Press, 1964, pp. 30-31.

86
da força, e para lá enviou um destacamento de tropas, daí resultando o encarceramento
de considerável número de cidadãos e de vários magistrados. Alguns deles foram
condenados à prisão perpétua, pena raramente aplicada sobre romanos 200.

Como Wilfried Nippel notou, distúrbios deste género não foram habituais em Roma,
principalmente porque na Urbs se ofereciam mais jogos gladiatórios201. O mesmo
obviamente não sucedia no caso das cidades dotadas de recursos relativamente
escassos no resto do território itálico. Havia, contudo, limites para a vontade do povo
em desfrutar de um munus. Nicolau de Damasco conta que num testamento ficara
estipulado que os jovens amantes do falecido teriam de lutar um contra o outro como
gladiadores. A reacção dos habitantes dessa localidade (cujo nome desconhecemos) foi
tão negativa que teve de se proceder à anulação dessa disposição testamentária 202.

Frequentemente muitos consideram que os munera em Roma usufruíam sobretudo de


popularidade entre a gente comum ou a plebe, e que seriam menos apreciados pela
elite, mas esta visão está incorrecta: na realidade, as classes mais elevadas e ricas
constituíam um alvo bem mais importante, enquanto grupo, para todos os que
aspirassem a ocupar cargos políticos ao oferecerem munera. Os romanos mais
desfavorecidos e mesmo indigentes não eram, efectivamente, o único público para os
combates gladiatórios. As duas importantes e típicas ordens da sociedade romana, a
dos senadores e dos equites (cavaleiros), tinham nas suas fileiras muitos indivíduos que
eram igualmente espectadores entusiásticos, além de que dispunham do privilégio de
ter bons lugares no anfiteatro, situados perto da arena. De facto, sublinhemos que aos
munera assistia uma percentagem bastante maior dos membros da elite do que do
resto da população urbana.

O apoio político do patriciato era bem mais valioso para os candidatos a cargos
públicos do que o proporcionado pela plebe203. A razão maior para isto relacionava-se
com a própria maneira como se conduziam as eleições para as duas magistraturas mais
elevadas romanas: nos actos eleitorais respeitantes à pretura e ao consulado, quanto
mais abastado um indivíduo fosse, mais o seu voto influiria no resultado final. As
eleições decorriam nos comitia centuriata, assembleia em que o povo romano estava
dividido em unidades de votantes, as «centúrias», que, em teoria, compreendiam 100

200 Suetónio, Divus Tiberius, 37.3.

201 Public Order in Ancient Rome, Cambridge, 1995, p. 41.

202 Ateneu, Deipnosoph. 4.39.

203Paul J. J. Vanderbroeck, Popular Leadership and Collective Behavior in the Late Roman Republic (c. 80-50 BC),
Amesterdão, 1987, pp. 79-80.

87
indivíduos; na prática, porém, podiam englobar menos pessoas e, muitas vezes, até
mais. Cada «centúria» tinha um voto determinado pela vontade da maioria no seio da
mesma. A ordem de voto efectuava-se de acordo com os dados do recenseamento
cadastral, isto é, quanto mais rico fosse um homem mais cedo votaria. Os cidadãos mais
prósperos, uma minoria no Estado, encontravam-se distribuídos pelo maior número de
centúrias, que votavam antes dos que tinham menos posses. Por exemplo, se bem que a
gente mais pobre fosse em muito maior número do que os membros das classes
privilegiadas, ela achava-se reunida numa centúria que votava só em último lugar.

À luz da mentalidade oficial romana, tal disposição justificava-se pelo princípio de que
as duas magistraturas que detinham o poder de vida e morte sobre os seus concidadãos
deviam ser eleitas por aqueles que tivessem maior participação financeira na
administração estatal. Assim, caso as «centúrias» constituídas pelos cidadãos mais
ricas mostrassem unanimidade na sua escolha, então ficariam logo conhecidos os
vencedores candidatos aos postos de pretores e cônsules, isto depois, repare-se, de
apenas 197 das 373 centúrias terem votado. Podia até dar-se o caso de os cidadãos mais
pobres nem chegarem a ter a oportunidade de votar.

Estabeleceu-se outra salvaguarda, com a finalidade de aumentar a influência exercida


pela elite romana na assembleia de voto: escolhia-se, mediante sorteio, uma «centúria»
de entre as que englobassem os cidadãos mais ricos para que votasse primeiro, o que
serviria de sinal para as demais unidades eleitorais de em quem deveriam votar
(centuria praerogativa, a centúria que possuía a prerrogativa de votar em primeiro
lugar). Como, de acordo com a ideologia oficial, se considerava que a selecção da
centúria por meio de um sorteio traduzia a vontade dos deuses, acreditava-se que esta
prática conferia ao Estado uma maior possibilidade de eleger magistrados que
usufruíam do facto de receberem aprovação divina 204. Porém, quando os cidadãos mais
abastados não chegassem a consenso na escolha dos candidatos aos cargos, nestas
ocasiões as camadas mais desfavorecidas da população conseguiam ter a possibilidade
de influir na no acto eleitoral. Mas mesmo nestas circunstâncias, a boa vontade dos
membros dos grupos principais da sociedade ainda se revelava importante para os
candidatos em questão, já que os clientes (dependentes) dos primeiros votariam nos
homens que os seus ricos patronos apoiavam.

Posto isto, embora um editor procurasse agradar a todos quantos assistissem ao seu
munus, é mais do que claro que obter a satisfação dos elementos pertencentes às
classes mais elevadas constituía o objectivo crucial no contexto político. Seja como for,

204L. Ross Taylor, Roman Voting Assemblies from the Hannibalic War to the Dictatorship of Caesar, Ann Arbor,
Michigan, 1966, pp. 56-57.

88
os espectáculos exitosos oferecidos por um indivíduo que viesse a ocupar a posição de
edil não significavam garantia absoluta para se atingir um alto cargo político 205
.
Observe-se, a título ilustrativo, o caso de M. Emílio Escauro (Scaurus), que, durante a
sua edilidade (58 a. C.), esgotou todos os seus recursos financeiros e contraiu grandes
dívidas: se bem que tenha ascendido à pretura, não logrou tornar-se cônsul. Em
contrapartida, Cícero, enquanto foi edil, evitou gastos excessivos nos espectáculos e não
chegou a oferecer um munus, mas atingiu a pretura e o consulado 206.

Mas alguém com aspirações políticas que ignorasse o entusiasmo dos Romanos pelos
espectáculos podia ver o seu futuro seriamente em risco: Lúcio Cornélio Sula, que
posteriormente se converteu no primeiro dictator de Roma, perdeu a sua corrida pela
pretura porque optou por não se candidatar à edilidade, não apresentando, pois,
quaisquer jogos. A amizade que Cornélio Sula tinha com o rei da Mauritânia, no Norte
de África, tinha criado a esperança, no povo romano, de que quando ele ocupasse a
edilidade, ofereceria certamente extraordinárias venationes com grandes felinos norte-
africanos, que eram imensamente apreciados em Roma. Depois, em jeito de desforra,
os eleitores rejeitaram-no nas eleições para a pretura 207.

Mais do que qualquer outro romano, Júlio César serviu-se amplamente da estratégia
da oferta de entretenimentos para alcançar muitos dos seus intentos: em 65 a. C., ele,
juntamente com o seu colega, Marco Bíbulo, ambos edis, apresentaram tanto os Ludi
Romani como os Ludi Megalenses numa escala que, ao tempo, foi grandiosa. Mas, no
mesmo ano, César decidiu financiar um munus opcional em honra de seu pai, no qual
exibiu 320 pares de gladiadores, o que resultou num espectáculo sem precedentes, não
só quanto ao número de combatentes envolvidos, mas também pela sua duração 208
. G.
Ville sugeriu que o munus se desenrolou ao longo de quinze a vinte dias 209
. Plutarco,
por seu lado, considerou que o munus de César, afora outros entretenimentos
associados como peças teatrais, procissões e banquetes, significara o evento mais
dispendioso que até então se apresentara210.

205P. Veyne (Bread and Circuses, pp. 224-225) salientou que os espectáculos eram apenas um dos factores
importantes para as eleições.

206De Off. 2.59. Cícero era um caso especial. Os seus enormes dotes oratórios e o seu ascendente político libertaram-no
da necessidade de apresentar espectáculos extravagantes.

207 Plutarco, Sull. 5.1.

208 Plutarco, Vida de César, 5.9.

209La gladiature…, p. 82. A maneira como Júlio César se aplicou tanto na produção deste
munus (mesmo sendo ele
dono de um grande ludus em Cápua) demonstra que os seus espectáculos não eram apenas um meio para atingir
objectivos políticos, mas também uma paixão sua.

210 Vida de César, 5. 9.

89
O grande munus de César em 65 a. C. concorreu em larga medida para as elevadas
dívidas que ele veio a acumular quando estava prestes a partir para governar a
província de Hispânia, no ano seguinte à sua pretura (era habitual que ex-cônsules e
ex-pretores desempenhassem as funções de governadores provinciais no ano a seguir à
sua magistratura) 211. Com efeito, César contraira diversos empréstimos para custear os
seus vários espectáculos, a tal ponto que, na altura em que já viajava rumo à Península
Ibérica, se viu impedido de prosseguir pelos seus credores até que saldasse as dívidas.
Crasso, um dos homens mais ricos dessa altura, pagou o montante das mesmas, de
forma a permitir que César pudesse deixar Roma212.

De acordo com Suetónio, em 65 a. C. Júlio César tinha planeado apresentar mais do


que os 320 pares de gladiadores que efectivamente exibiu 213. O biógrafo não nos diz
qual seria o número de combatentes que ele inicialmente pensava mostrar à multidão,
mas certamente que representaria uma cifra que terá assustado de imediato os seus
opositores políticos, que suspeitaram que César talvez recorresse a esses gladiadores
para levarem a cabo actividades revolucionárias, para além de os utilizar no munus 214.
Lembremos que, afinal de contas, só tinham passado seis anos após a derrota de
Espártaco e dos seus colegas gladiadores, que reuniram um «exército» composto por
uns 12.000 escravos e camponeses e infligiram várias e surpreendentes derrotas sobre
tropas romanas.

Ao longo anos 60 a. C., César era visto como um homem ambicioso e temível,
alegadamente apoiante de Catilina, cuja conspiração Cícero veio a desmascarar, a qual
se viu sufocada em 63 a. C. 215
. Os rivais e inimigos de César temiam que ele viesse a
empregar esse grande número de gladiadores para os silenciar através de uma
demonstração de força ou, até, para derrubar o próprio governo. De qualquer modo,
perante tais rumores e a proibição, decretada pelas autoridades, que limitava a
quantidade de gladiadores a poderem estar em Roma ao mesmo tempo, César
reconsiderou e aceitou apresentar um número menos grande, mas apesar de tudo
imponente, 320 pares, isto é, 640 combatentes216.

211Plutarco refere que as dívidas acumuladas por César ascendiam a 1 300 talentos (31. 200.000 HS), uma enorme
soma de dinheiro.

212Plutarco, Vida de Crasso,7.6; Vida de César, b 11.1-2. Para a ascensão ao poder através de uma bancarrota
deliberada, veja-se P. Veyne, Bread and Circuses…, p. 14.

213 Divus Iul. 10.2.

214 Cícero, Ad Att. 7.14.2.

215 R. Dunkle, Gladiators…, pp. 163-164.

216 Richard A. Billows, Julius Caesar: The Colossus of Rome, Routledge, Londres/Nova Iorque, 2009, pp. 84-85.

90
***

Ao voltarmos a pegar no valor de 30 talentos que Políbio referiu para um munus no


século precedente, concluimos que o custo médio desses 640 gladiadores seria de 1 335
HS 217
. No entanto, os combates não poderiam constituir a única animação do munus.
Torna-se difícil de saber se o montante apontado por Políbio incluiria as caçadas, mas,
em princípio, as venationes já fariam parte dos munera no século II a. C. Para além dos
animais, as pugnas gladiatórias pressupunham, desde este período, uma mise-en-scène
importante: era necessário ter em conta a pompa, cerimónia solene que marcava o
início do espectáculo, os músicos, os árbitros, os auxiliares da arena (ministri,
harenarii) e os equipamentos de combate, que, se nos ativermos a Plínio-o-Velho, eram
às vezes manufacturados com metais preciosos para tais ocasiões. As distribuições de
alimentos ao público revelavam-se igualmente indispensáveis para o êxito de um
munus, pelo que constituíam, assim, parte do orçamento. Também, sob a República,
podemos reter como valor médio 1 000 sestércios por cada gladiador «operacional»
enquanto base razoável de cálculo. Por mais astronómica que pareça, esta soma não era
desmesurada. Mesmo que nem todos os magistrados não dispusessem dos meios de
César, que, aliás, se arruinou neste negócio conforme se disse, numerosos notáveis das
províncias podiam avançar com dinheiro para oferecerem um número relativamente
considerável de pares. Se, por um lado, não possuimos indicações sobre os munera
provinciais da época republicana, por outro, as fontes do século I d. C. permitem afinar
a nossa percepção acerca dos gastos potenciais dos combates gladiatórios.

***

Passados dois anos, o Senado ainda demonstrava viva apreensão não apenas com o
elevado número de gladiadores que estava na escola (ludus) de César, situada em
Cápua, como igualmente face à grande concentração de outros homens da arena em
Roma, integrados em vários ludi. Um decreto senatorial ordenou então que esses
grupos de gladiadores fossem levados para Cápua, aqui ficando a residir assim como
noutras localidades vizinhas218. Cícero, que por esta altura era cônsul (63 a. C.), enviou
um exército para Cápua, sob o comando de um questor, Séstio, que era seu amigo, que
ao chegar lá erradicou da cidade um tal C. Marcelo, devido às suas frequentes visitas

217 É. Teyssier, La mort en face…, pp. 396-397.

218 Salústio, Cat. 30.7.

91
aos sítios onde estava um grupo muito grande de gladiadores, provavelmente os que
pertenciam a César . Catorze anos mais tarde, eles ainda eram encarados como uma
219

possível ameaça para a manutenção da paz e da ordem pública, na véspera da eclosão


da guerra civil entre Júlio César e Pompeio, quando o cônsul Lêntulo, que fazia parte
dos seguidores do último, decidiu reunir gladiadores do ludus de César no forum de
Cápua, e lhes forneceu até cavalos com a intenção de os utilizar como uma força de
cavalaria contra o conquistador das Gálias. No entanto, os colegas de Lêntulo avisaram
César deste plano, pelo que tais homens foram transferidos para outro local, algures na
Campânia, onde serviriam como uma espécie de guarnição 220.

Durante a República, os gladiadores, devido à infamia da sua profissão (tópico que


exploraremos noutro capítulo), não se entendiam como dignos de combater nas fileiras
do exército romano, mas, na época imperial, em momentos muito excepcionais e de
enorme gravidade para o Estado, permitiu-se que alguns se tornassem soldados 221
.
Quanto ao resto dos gladiadores de César que, aparentemente, planeariam evadir-se
das suas casernas, vieram a ser aboletados por Pompeio em habitações locais, na razão
de dois por cada fogo, assim reduzindo a pesada concentração de gladiadores num
ludus 222
. Ao tempo, os homens da arena converteram-se num tema caracterizado por
acaloradas discussões: Cícero abordou este assunto com César numa série de cartas, e
tentou dar-lhe alguns conselhos amigáveis, ao mesmo tempo que buscou instá-lo a
licenciá-los ou, a dispersá-los223.

Os gladiadores e a sua associação com a violência política

O medo que os gladiadores de César provocaram não era de todo infundado. No caos
que se viveu nos derradeiros anos da República, os políticos recorreram a gladiadores
tanto para porem em prática os seus desígnios, como para se protegerem dos seus

219 Cícero,Pro Sestio, 9.

220 Júlio César, B. Civ. 1.14.4-5.

221Durante as guerras civis de 69 d. C., Otão incorporou 2 000 gladiadores no seu exército, mas revelartam-se maus
combatentes nos campos de batalha (Tácito, Historiae, 2.11;2.34-35; 3.76-77). Cerca de um século mais tarde, Marco
Aurélio empregou uma unidade de gladiadores na sua guerra contra os Marcómanos (Marcomanni), chamando aos
primeiros Obsequentes («Obedientes»), decerto uma referência à lealdade tradicional dos combatentes da arena. Didio
Juliano (imperador efémero em 193 d. C.) armou os gladiadores de Cápua quando soube que se aproximava Sétimo
Severo [História Augusta/SHA Marc. (Julius Capitolinus) 21.7 e Did. Jul. (Aelius Spartianus) 8.3]

222 Cícero, Ad Att. 7.14.2.

223 Ibidem, 8.2.1.

92
opositores. Os titulares de cargos políticos acharam conveniente e útil comprarem
gladiadores, em vez de só os alugar aos lanistae. Assim, fora dos espectáculos, os
políticos empregavam-nos muitas vezes como guarda-costas, formando autênticos
pequenos «exércitos» privados. Esta prática generalizou-se a tal ponto que Varrão
menciona a existência de cinco contingentes desse género, compostos por gladiadores -
Cascellani, Caeciliani, Aquiliani, Faustiani e Scipionarii -, cada um dos quais
designado a partir dos nomes de proeminentes políticos da primeira metade do século I
a. C.: A. Cascélio (Cascellius), M. Cecílio Metelo (Cecilius Metellus) ou Q. Cecílio Metelo
Nepos, Aquílio Galo (Aquillius Gallus), Fausto Sula (Faustus Sulla) e Metelo Cipião
(Metellus Scipio)224.

Embora faltem provas concretas de Cascélio e Galo utilizarem gladiadores para os seus
objectivos políticos, não causa estranheza, todavia, que os tivessem utilizado, dado que
eles foram proprietários de homens da arena. No que respeita aos Caeciliani, podem
haver pertencido a um de dois políticos, ambos associados aos gladiadores: M. Cecílio
Metelo ou Q. Cecílio Metelo Nepos; o primeiro ofereceu um munus em 60 a.C. 225
,eo
outro reuniu um bando de gladiadores e rufias na sua tentativa para forçar a passagem
de uma lei que tornaria Pompeio comandante contra os conspiradores catilinários, os
quais, de acordo com Plutarco lhe teriam conferido o poder supremo em Roma: Metelo
trouxe o seu bando até ao Forum e mandou que se colocassem nos degraus do Templo
de Cástor e Pólux, com o claro intuito de intimidar os seus inimigos políticos 226. Quanto
a Fausto Sila, tinha uma guarda pessoal com trezentos gladiadores (os Faustiniani), da
qual se serviria caso fosse necessário. Q. Metelo Cipião, por seu turno, segundo
Ascónio, rodeava-se de «homens armados», que, com toda a probabilidade seriam os
Scipionarii227. Até Cícero, que reiteradamente denunciou a violência perpetrada por tais
grupos, possuía uma mão-cheia de jovens de Reate armados de gládios, empregando-
os, sem hesitar, durante a repressão da conjura de Catilina. Mas, neste caso, nenhum
deveria ser gladiador profissional 228.

224 O facto de se designarem os grupos de gladiadores de acordo com os nomes dos seus proprietários já anuncia as
denominações que ulteriormente se deram aos gladiadores imperiais (chamados, por exemplo, Iuliani e Neroniani); no
entanto, a raíz deste costume remontava aos primórdios da história romana, quando os grupos gentilícios, que incluíam
tanto a parentela propriamente dita, como os seus dependentes, eram conhecidos pelo nome da respectiva família (e.g.
Horatii, Curiatii, Fabii, etc.)

225A. W. Lintott, Violence in Republican Rome, Oxford, 1968, p. 84.

226 Plutarco, Cato Min. 27.1-8.

227 Ascónio, Ad loc Scaur 18; Ad loc Mil.; A. W. Lintott, Violence in Republican Rome, p. 84.

228 Cícero, Cat. 3.5.10.

93
Os gladiadores desempenharam um papel significativo nos conflitos entre bandos que
ocorreram ao longo do decénio de 50 a. C.: eles estiveram presentes na sangrenta
disputa pelo poder político que assolou os últimos anos da República, havendo um
grande antagonismo entre os optimates, «os melhores», a facção mais conservadora
dos patrícios, e os populares, «os campeões do povo», o partido revolucionário). Em 57
a. C., o inimigo figadal popularis de Cícero, P. Clódio, interveio com gladiadores para
interromper a sessão de uma assembleia que ia votar a favor do regresso de Cícero do
exílio (em relação ao qual Clódio fora o principal responsável), episódio que ficou
marcado pela morte de diversas pessoas 229
. Clódio obtivera esses gladiadores do seu
irmão, Ap. Cláudio, que os havia adquirido a fim de os exibir no munus em honra do
seu pai230. Cícero deixou-nos um relato em segunda mão de tal acontecimento na sua
Defesa de Séstio (Pro Sestio), no qual descreveu os factos de forma algo exagerada mas,
ainda assim, transmitindo uma visão global sugestiva de tudo o que sucedeu:

«Lembrai-vos agora, membros do júri, que o Tibre estava juncado de cadáveres de cidadãos,
que o Forum foi limpo do sangue por esponjas, daí resultando que todos pensassem que um tão
grande número [de gladiadores] não teria sido patrocinado por um cidadão privado ou plebeu
[Clódio], mas por um pretor de categoria patrícia [Ap. Cláudio]»231.

O célebre orador descreveu o episódio como se tratasse de um munus, apresentando


Ap. Cláudio como o editor e identificando o seu irmão, Clódio, enquanto aquele que
efectivamente desencadeou o ataque na assembleia. Mais adiante, na mesma alocução,
Cícero afirma que os gladiadores implicados eram noviços (novices) que Clódio tentou,
à viva força, fazer passar por veteranos (muito mais desejáveis para um munus com
garantias de êxito), para os utilizar no espectáculo em memória do seu pai, durante a
sua edilidade. Pouco depois, Cícero veio a ser autorizado a deixar o desterro mediante
uma lei promulgada para o efeito. Após o seu regresso, Cícero conta como conseguiu
evitar ser apanhado num violento incidente arquitectado por Clódio, servindo-se mais
uma vez de gladiadores:

«Permaneci em casa enquanto a situação esteve caótica, quando se tornou conhecido que os
teus escravos, há muito por ti preparados para aniquilarem homens bons, juntamente com o teu
bando de indivíduos desprezíveis e incorrigíveis, se deslocaram até ao Capitolium [zona na
Colina Capitolina onde se localizava o Templo de Júpiter Optimus Maximus]. Quando me
contaram isto, informaram-me que ficasse em casa, para não de oferecer a ti e aos teus
gladiadores, a oportunidade de prosseguir o massacre. Depois, recebi a notícia de que o povo
romano se reunira no Capitólio […] e alguns dos teus capangas haviam deposto as armas, ao

229 Díon Cássio, Hist. rom. 39.7.2.

230 A razão para a diferente grafia dos nomes dos dois irmãos relaciona-se com o facto de Clódio, que passara para a
classe plebeia, escrever o seu nome de acordo com a forma como os grupos sociais inferiores pronunciavam o nome
Cláudio.

231 Pro Sest. 77.

94
passo que a outros lhes foram arrebatadas, fugindo aterrorizados […] e eu apareci então,
desprovido da força de quaisquer tropas, apenas acompanhado por uns quantos amigos» 232.

Tito Ânio Milão (Milo), amigo de Cícero, que fez uso da violência ao encabeçar um
grupo apoiando o regresso do estadista a Roma, também arranjou gladiadores para se
envolverem nos distúrbios. Milão, note-se, era um verdadeiro apreciador dos combates
gladiatórios e uma presença assídua da arena, que, segundo Cícero, «havia esbanjado o
equivalente a três heranças» em espectáculos, incluindo um munus aquando da sua
tentativa bem-sucedida de se tornar pretor 233
. Assim, não é surpreendente que ele
tenha começado a integrar gladiadores no seu «gangue» político, neles se destacando
dois combatentes famosos da altura, Eudamus e Birria 234. Milão também adquiriu uma
«trupe» de bestiarii, (os quais, nos tempos finais da República, quase não se
distinguiam dos gladiadores), para servir num «exército» privado contra Clódio e os
seus acólitos 235
. Repare-se que a compra desses homens teve de ser efectuada por
terceiros, isto porque o proprietário do grupo era um inimigo político . A artimanha
236

resultou, para grande espanto e embaraço do vendedor, quando descobriu que havia
negociado com Milão.

No que toca às circunstâncias em torno do assassinato de Júlio César, os gladiadores


desempenharam um papel secundário. Díon Cássio escreveu que os assassinos de César
tinham posto gladiadores no teatro de Pompeio, precisamente onde teve lugar a fatídica
reunião do Senado na qual César foi morto. Alegou-se como pretexto que os
gladiadores iriam participar num espectáculo que ocorreria no teatro, mas o verdadeiro
propósito da presença dos mesmos era o de protegerem os conspiradores após o
magnicídio237. Esses homens da arena pertenciam a D. Júnio Bruto Albino, que
supostamente tencionava exibi-los num munus 238. Plutarco referiu que uma das razões
pelas quais se aliciara Bruto a aderir à conjura se devia ao facto de ele ser dono de um
grupo de gladiadores 239
. Embora não tenham estado directamente envolvidos no
assassinato, se nos ativermos a Veleio Patérculo, eles vieram a escoltar os

232 Ibidem, 78.

233 Dom. 6.

234 Ascónio, Ad loc. Mil., 27.

235 Ibidem, 28.

236 R. Dunkle, Gladiators…, pp. 166-167.

237 Díon Cássio, Hist. rom. 44.16.2. Veja-se também Apiano, B. Civ. 2.17.118.

238 Apiano, B. Civ. 2.17.122; Plutarco, Brut., 12.5.

239 Brut. 12.5.

95
conspiradores quando ocuparam a Colina Capitolina, o que lhes conferiu, fugazmente,
uma certa aura de poder 240.

O planeamento da data para a celebração de um munus funerário

Nos derradeiros tempos da República, o único motivo para a oferta de um munus


continuou a ser ostensivamente o mesmo, desde a altura em que este costume foi
introduzido em Roma: prestar homenagem a um parente masculino falecido. Mas, na
prática, a maioria dos munerarii estava tanto ou mais preocupada em ganhar votos
como em honrar o defunto. Júlio César, por exemplo, apresentou o seu famoso munus
em memória do pai 25 anos após a sua morte. Este atraso era compreensível, já que
César tinha apenas catorze ou quinze anos quando o seu progenitor faleceu. Situação
análoga se verificou com Fausto Sula, filho do dictator Cornélio Sula: Fausto tinha
somente oito anos quando o pai morreu, daí que não cause estranheza ele esperar
dezoito anos para, finalmente, o honrar com um munus. À semelhança do que sucedera
com César, os inimigos políticos de Sula alimentaram fortes suspeições de que este
adquirira um grupo de gladiadores com vista a utilizá-lo para «homicídios e distúrbios
políticos», até porque os havia comprado bastante tempo antes de oferecer o munus 241.

No entanto, entre os dois casos havia uma diferença: César, tal como muitos outros
políticos, ofereceu o munus durante a sua edilidade, aproveitando a ocasião em que
podia combiná-lo com os ludi que os edis tinham de apresentar por lei e, desta forma,
surtir o máximo efeito positivo na sua carreira política. Fausto Sula, por outro lado,
exibiu o munus antes de possuir a idade requerida para poder ocupar um importante
cargo público. Como o seu pai deixara instruções no seu testamento para que Fausto
oferecesse um munus em sua honra, é muito possível que nesse documento estivesse
exarada uma data concreta, cabendo a Fausto a obrigação de a cumprir 242
. Em face
disto, fica claro que a principal motivação por detrás do munus de Fausto radicava na
pietas: devoção para com o seu pai. Quanto a César, pelo contrário, a sua razão maior
era, obviamente, a vontade de progredir na política. Ele tinha 35 anos na altura do

240 2.58.2. Também, Apiano, B. Civ. 217.120.

241Cícero, Sull. 54.

242 Ibidem.

96
munus de 65 a. C., e podia ter organizado o evento com relativa facilidade dez anos
antes, com uma idade não muito diferente da de Fausto. O munus, que começara por se
tratar de uma oferenda ao defunto, convertera-se, a partir de então, numa dádiva,
acima de tudo, ao povo romano, de maneira a influenciar os seus votos.

O munus enquanto meio corruptor

Nos anos finais da República, o suborno dos eleitores e dos membros do júri tornou-
se prática cada vez mais generalizada e frequente, a tal ponto que a apresentação do
munus por parte de um edil se passou a encarar quase tão-só como uma forma mais
subtil de corrupção. Havia duas leis que, em teoria, serviam para atenuar o grande
efeito exercido pelo munus sobre o eleitorado: a Lex Calpurnia de ambitu e a posterior
Lex Tullia de ambitu (termo que se reportava à corrupção do eleitorado), da autoria de
Cícero 243. Praticamente nada se sabe acerca da Lex Calpurnia, excepto o facto de uma
das suas provisões interditar um candidato a determinado cargo público de distribuir
lugares sentados num munus de acordo com a organização por «tribos» 244
. Estas
constituíam as 35 divisões políticas do povo romano, formando a base da comitia
centuriata que elegia os cônsules e os pretores 245
. Na Lex Calpurnia reconhecia-se a
profunda influência que os espectáculos gladiatórios exerciam sobre as eleições das
magistraturas mais poderosas, mas proibir a distribuição dos lugares significava apenas
um paliativo superficial para o problema. O que realmente estava em causa era a oferta
desses eventos por políticos que pretendiam candidatar-se aos cargos mais elevados.

Neste contexto, a Lex Tullia revelou-se mais ambiciosa. Podemos ficar com uma ideia
da fraseologia desta disposição legal mediante uma referência que a ela fez Cícero na
sua Defesa de Séstio: «[a minha lei] proibe expressamente que alguém dê um
espectáculo gladiatório dentro de um período de dois anos, durante o qual esteve a
exercer um cargo ou se vai candidatar a um» 246
. Noutro dos seus escritos, Cícero
descreveu a lei praticamente com a mesma fraseologia, mas acrescentando: «a não ser

243 O proponente de uma lei conferia a esta uma forma adjectival do seu apelido, que modificava o substantivo
feminino lex. Assim, uma lei proposta por M. Túlio Cícero ficava conhecida como lex Tullia.

244 Cícero, Pro Mur. 67.

245F. Marsh, A History of the Roman World from 146 to 30 BC, edição revista com notas adicionais da autoria de H.
H. Scullard, Londres, 1957, pp. 374-377. As 35 tribos também formavam a estrutura da Assembleia Tribal, que elegia os
magistrados menores e votava na passagem das leis.

97
que o dia [para a apresentação do munus] tenha sido estipulado num testamento» 247.
Esta excepção tinha, pois, em conta o caso em que um filho ou outro parente masculino
se via comprometido, pelo teor do testamento do falecido, a oferecer um munus dentro
desse período de dois anos. Para os Romanos, a devoção filial assumia precedência
sobre os assuntos de cariz político. A ilustrar tal excepção contida na Lex Tullia está o
munus que C. Escribónio Curião (Scribonius Curio) apresentou em 52 a.C. em honra de
seu pai (que morrera um ano antes), em cujo testamento ordenava ao filho que
organizasse um munus em sua homenagem. O evento não pôde ser apresentado
enquanto parte do funeral de Curião-o-Velho, porque o filho se encontrava na província
da Ásia a exercer a função de questor, onde, legalmente, só lhe era permitido regressar
a Roma em 52 a. C.

A situação contemplada na Lex Tullia fez com que C. Escribónio Curião oferecesse o
munus nesse ano e, ainda, em 51 a. C. candidatou-se a edil, cargo que ele esperava
ocupar em 50 a. C. 248. Ao que se julga, o testamento do seu pai deveria especificar que o
munus em sua memória teria de ser oferecido dentro do espaço de doze meses a seguir
à sua morte. Escribónio Curião, tal como a maioria dos indivíduos com pretensões
políticas, preferiria atrasar mais a data do munus até à altura em que já fosse edil curul,
dado que obteria maiores benefícios a nível político.

G. Ville interpretou o conteúdo da Lex Tullia da seguinte maneira : o referido


249

período de dois anos principiava em 1 de Janeiro do ano anterior àquele em que tinha
lugar a eleição, terminando mal a mesma se realizasse 250
. Mas como é que, na prática,
isto funcionava? As disposições da Lex Tullia tornavam impossível que um edil
politicamente ambicioso lograsse aparesentar um munus. Antes da promulgação da
Lex Tullia, um edil poderia oferecer o munus durante o ano em que estivesse no cargo e
declarar a sua intenção de se candidatar à pretura no começo do ano subsequente à sua
edilidade, uma maneira que servia para manter o munus ainda fresco na memória dos
votantes (um indivíduo não podia candidatar-se a um cargo enquanto ainda estivesse a
exercer outro). A eleição efectuar-se-ia em Julho desse ano e, caso o candidato tivesse
êxito, nada impedia que assumisse a pretura no segundo ano após a sua edilidade.

246As eleições decorriam em Julho do ano anterior àquele em que o candidato bem-sucedido ocupava o cargo, em
Janeiro. Cf. Cícero, Pro Sest. 133.

247 In Vatinium, 37.

248Curião, inicialmente, planeara candidatar-se à edilidade do ano 50 a. C., mas, em vez disso, tornou-se candidato
para tribuno da plebe, vendo-se eleito para este cargo no mesmo ano.

249 La gladiature…, p. 83.

250Na realidade, não era exactamente um período de dois anos, mas antes ano e meio, já que as eleições tinham lugar
em Julho. Mal o candidato fosse eleito, pouco importava se tivesse oferecido ou não um munus.

98
Porém, a fim de se observar a «regra dos dois anos» prescrita na Lex Tullia, se um edil
em 60 a. C. desse um munus neste ano, não poderia avançar como candidato à pretura
de 59 a. C. Teria, então, de esperar até 58 a. C. para tentar ser eleito para a pretura em
57 a. C. Consequentemente, na Lex Tullia presumia-se que o efeito positivo de alguém
oferecer um munus durante a edilidade ficaria grandemente diminuído por ter de
aguardar mais um ano antes da candidatura à pretura.

Mesmo assim, uma vez pelo menos, a Lex Tullia foi ignorada, ao que parece,
impunemente: Cícero acusou P. Vatínio de infringir a lei ao apresentar um espectáculo
gladiatório ao mesmo tempo em que se candidatou à pretura de 55 a. C. no ano
precedente 251
. Vatínio alegou em sua defesa que não organizou um munus de
gladiadores, mas de bestiarii numa venatio, aproveitando-se do facto de tanto os
bestiarii como os gladiadores utilizarem gládios e possuirem um equipamento idêntico.
O certo é que Vatínio conseguiu escapar indemne a tal acusação e a sua campanha para
a pretura, que assentou numa considerável quantidade de subornos, veio a ter sucesso
.
252

O último munus oferecido por Júlio César

Em 46 a. C., Júlio César ofereceu outro munus sumptuoso, claro antecedente dos
grandiosos espectáculos da época imperial, enquanto parte das suas celebrações
triunfais. Ele anunciara, em 52 a. C., que tencionava apresentar um munus em honra
da sua filha Júlia, que falecera em 54 a. C., constituindo este espectáculo o primeiro de
que há registo em homenagem a uma mulher. Sabe-se que, na iminência do evento, em
Roma se gerou uma enorme expectativa por parte da multidão, em especial entre
aqueles que se lembravam do seu munus de 65, quando César era edil. Em 46 a. C.,
César comemorou quatro triunfos em quatro dias distintos, evocativos das suas vitórias
nas Gálias, no Egipto, no Ponto (actual zona norte da Turquia Central) e no Norte de
África. Além do munus para a sua filha, César prometeu um banquete público numa
escala sem precedentes253.

À primeira vista, parecia que César estava a agir como candidato a um novo cargo,
mas, na realidade, ele já era o governante supremo de Roma, ostentando o título de

251 Pro Sest. 134.

252 In Vat. 37.

253 Suetónio, Divus Iul. 26.2.

99
dictator, função para a qual havia sido nomeado vitaliciamente nesse mesmo ano. No
entanto, o seu munus ainda perseguia um objectivo político: a despeito de possuir um
grande poder, ele necessitava do apoio do povo para contrariar a má vontade que havia
suscitado entre os defensores aristocratas da República. Recorde-se que César tinha
ascendido ao poder graças à sua oposição face aos elementos conservadores do
patriciato senatorial, do qual era membro . Ele teve igualmente que dissipar o medo
254

que as suas recentes vitórias sobre Pompeio Magno e outros rivais políticos nas guerras
civis haviam infundido na população. Muitos romanos lembravam-se perfeitamente o
que acontecera quando Cornélio Sula se convertera em dictator, após numerosos
triunfos militares: Sula ordenou que se elaborassem listas de proscrição contendo os
nomes dos seus inimigos políticos, o que conduziu à morte violenta de milhares de
pessoas.

O temor do povo cresceu durante as impressionantes celebrações triunfais, incluindo


desfiles de prisioneiros, sobressaindo Vercingetorix, o filho de Juba e a irmã de
Cleópatra, Arsínoe 255
: os habitantes de Roma ao verem a última, uma mulher famosa
que antes até fora rainha, reduzida à escravidão, sentiram pena dela e, ainda que
admirassem César, muitos imaginaram que também eles podiam transformar-se em
escravos do dictator. Além do mais, a demonstração do poder pessoal nestas
celebrações triunfais revelou-se alarmante, o que se manifestou, por exemplo, no
enorme número dos seus «guarda-costas» oficiais, os lictores, sem paralelo até então
.
256

Por outro lado, o efeito causado pelos dispendiosos entretenimentos foi globalmente
mais reconfortante para o povo. No zénite do seu poder político, César decidiu gastar
avultadas quantias de dinheiro para satisfazer a plebe, em vez de as empregar em
proveito próprio. Contrariamente ao que Nero faria cerca de cem anos depois, César
poderia ter utilizado todo esse numerário para erigir um palácio monumental que
servisse como uma proclamação da sua autoridade despótica sobre os seus súbditos.
César tentou, ao invés, ganhar as boas graças da população, o que em larga medida
conseguiu, dando um exemplo que seria retomado por futuros «bons» imperadores,

254 Veja-se Z. Yavetz, Plebs and Princeps…, p. 47.

255Contudo, Arsínoe e o filho de Juba, ainda criança, viram-se poupados ao funesto destino de Vercingetorix, que foi
ritualmente estrangulado no final do triunfo da Gália, de acordo com a antiga tradição romana: cf. A. Goldsworthy,
César. A Vida de um colosso, 2ª edição, Lisboa, A Esfera dos Livros, 2013, pp. 603-606 (para uma descrição
relativamente extensa das comemorações cesarianas).

256 Díon Cássio, Hist. rom. 43.19.2.

100
que optaram por cultivar uma imagem de generosos patronos do povo, em detrimento
de outra que realçasse a sua governação autocrática257.

César foi provavelmente o primeiro a aperceber-se da importância do princípio que


mais tarde Frontão traduziria em palavras: «O povo romano preocupa-se com duas
coisas, essencialmente annona [o costume, depressa transformado em instituição
durante a República, de distribuir pelos habitantes de Roma cereais, em especial trigo e
pão] e espectáculos; a governação não é menos julgada pelas coisas triviais do que pelas
coisas sérias»258. Não se guardou registo textual do número de pares de gladiadores que
se apresentou no munus, mas foi indiscutivelmente grande. Depois do seu grande
espectáculo em 65 a. C., em que combateram 640 gladiadores, César não terá, por
certo, exibido uma cifra inferior neste munus em honra da sua filha, até porque estava
conectado com os seus jogos triunfais. Díon Cássio, a única fonte que aborda o tópico
do número, referiu que preferia não avançar com algarismos devido à dificuldade que
teve para encontrar a verdade no meio de estimativas altamente exageradas 259.

César pretendia apresentar um espectáculo que maravilhasse os espectadores. Com


este propósito em mente, ordenou que os gladiadores famosos que planeava apresentar
no munus fossem imediatamente retirados da arena caso a público não ficasse satisfeito
com a exibição dos mesmos, permanecendo estes em reserva para futuros combates 260
.
Não cabe qualquer dúvida de que nesta matéria César provou ser um «bom psicólogo
das multidões». A perspectiva de sofrerem a humilhação por falta de bravura ou
habilidade em combate encorajou esses orgulhosos veteranos da arena a darem o seu
melhor.

Não bastava oferecer pugnas gladiatórias: os espectadores esperavam assistir a bons


duelos e César não queria, de modo algum, que o munus se visse arruinado pela má
prestação dos seus gladiadores. César mandou, igualmente, que todos os combatentes
principiantes (tirones, que iam participar nos seus primeiros confrontos) recebessem,
algum tempo antes, adequada instrução por parte de membros das ordens senatorial e
equestre, conhecidos pela sua destreza e experiência no manuseamento de armas 261. Ao
que supomos, Júlio César estaria a procurar revestir de uma aura mais dignificada o

257 P. Veyne, Bread and Circuses…, p. 251, 259.

258 Principia Historiae, 2.18. Z. Yavetz, Plebs and Princeps…, p. 47.

259 Hist. rom. 43.22.4.

260 Suetónio, Divus Iul. 26.3.

261Suetónio alude a cartas enviadas por Júlio César a membros das ordens equestre e senatorial, pedindo-lhes que
supervisionassem esse treino.

101
seu munus, quando resolveu associar alguns dos seus gladiadores a romanos
pertencentes às classes altas que tinham adquirido perícia marcial durante o período
em que serviram como oficiais no exército 262.

O munus cesariano causou uma excitação febril entre certos membros da aristocracia
romana: um senador, Fúlvio Sepino, quis participar no evento, combatendo todo
equipado. Porém, o dictator não autorizou que ele pudesse satisfazer tal desejo: um
senador a lutar como gladiador apenas poderia implicar vergonha e desonra para si
próprio e para a sua ordem. Mas, em contrapartida, César permitiu que um ex-senador,
Q. Calpeno combatesse na arena 263. O facto de Calpeno já não ser senador, posição que
normalmente se ocupava por toda a vida, significava que ele fora afastado do Senado
possivelmente por ter estado envolvido em algum escândalo ou evidenciar uma conduta
indigna. Neste sentido, portanto, nada obstava a que Calpeno actuasse na condição de
uma profissão infame, quando já se achava despojado de honra. César também não
colocou objecções à participação de membros da ordem equestre no munus, de entre os
quais constava o filho de um pretor264.

Acresce que César proibiu os senadores de lutarem na arena, medida que se viu
formalizada por um senatus consultum promulgado em 38 a. C., isto é, seis anos depois
do seu assassinato265. Ainda assim, menos de dez anos após tal decreto, Octávio, o filho
adoptivo de César, não obstante ser acérrimo apoiante da dignidade senatorial,
permitiu que um senador chamado Q. Vitélio combatesse na arena 266. Não subsistem
provas de que se tenha revogado interdição oficial. Consequentemente, Octaviano
concedeu uma isenção a título excepcional nessa altura, uma vez que ele ainda foi mais
longe do que César ao criar uma lei que não só incluía os senadores mas igualmente os
cavaleiros e os filhos dos primeiros, impedindo-os de entrar em munera (22 a. C.) .
267

No entanto, em 11 a. C., vários elementos da ordem equestre tiveram permissão para


lutarem como gladiadores, sem por isso incorrerem em desonra. Mas, na prática, a
situação afigurava-se relativa: Dião Cássio comentou que a proibição de os membros do

262Durante a República, os aristocratas romanos principiavam habitualmente as suas carreiras servindo como oficiais
no exército. Observe-se, a este respeito, na referência de Cícero ao seu próprio treino militar no Pro Caelio (11).

263 Díon Cássio, Hist. rom. 43.23.5; Suetónio, Divus Iul. 39.1.

264Díon Cássio, 43.23.5. Desde o tempo de Públio Cornélio Sula (princípios do século I a. C.), quem se tornasse questor
(quaestor), o cargo mais baixo na escala hierárquica do cursus honorum (o conjunto das principais magistraturas
disponíveis para um político romano), tinha o direito de ocupar um lugar permanente no Senado. O filho de um senador
possuía a condição equestre até que fosse eleito para o questorado.

265Díon Cássio, Hist. rom. 48.43.2-3.

266 Ibidem, 51.22.4.

267 Ibidem, 54.2.5.

102
ordo equester lutarem na arena era inútil, visto não existirem maneiras concretas para
impedir que eles se envolvessem nos espectáculos 268.

A imposição das leis sempre foi um problema em Roma. A aparição de indivíduos da


ordem equestre na pista do anfiteatro gozava, aparentemente, de grande popularidade
e suscitava grande interesse junto do público 269. Augusto chegou a mostrar a aprovação
implícita desta prática ao assistir a munera onde intervieram gladiadores pertencentes
à ordem equestre 270
. A sua flexibilidade neste assunto foi, sem dúvida, ditada pelo
desejo de agradar à multidão. Durante a época imperial, os espectadores romanos
ligavam ao estatuto social dos gladiadores: preferiam um de condição livre (auctoratus)
ao que fosse escravo (servus), valorizando também mais um combatente de origem
patrícia a outro que fizesse parte das camadas inferiores da sociedade271.

Esta preferência alicerçava-se na convicção de que quanto mais elevado fosse o lugar
ocupado por um gladiador voluntário na escala social, maior empenho e desejo ele teria
em combater, já que o fazia de livre vontade. É provável que os Romanos tivessem visto
demasiados gladiadores de condição servil mostrarem falta de combatividade e
relutância nas porfias. Este preconceito (chamemos-lhe assim) contra os gladiadores
escravos descortina-se numa passagem do Satyricon de Petrónio. Este colocou na boca
de um dos seus personagens plebeus, que conversava com os amigos, a seguinte
alocução: «Vamos desfrutar de um excelente munus ao longo de três dias […] o grupo
de gladiadores não é propriedade de um lanista, mas é composto por numerosos
homens libertos»272. Alguns destes indivíduos, mesmo depois de ganharem a sua
alforria, terão prosseguido a sua carreira gladiatória como um negócio independente e,
tal como os seus próprios patrões, estavam dispostos a arriscar a vida para entreter o
público e, ao mostrarem tal destemor, poderiam reunir outras oportunidades para
actuarem na arena 273.

A despeito de prevalecer certa brandura em relação ao envolvimento de membros da


ordem equestre na gladiatura, o Senado baniu novamente a participação dos últimos
268 Ibidem, 56.25.7.

269 Ibidem, 56.25.7-8.

270 Ibidem, 56.25.8.

271 G. Ville, La gladiature…, p. 252, 262.

272 Saty. 45.4.

273Este munus fictício não ia celebrar-se em Roma, mas numa cidade não identificada do Sul de Itália. Na época
imperial, quando os espectáculos gladiatórios na Urbs estiveram sob o exclusivo controlo do imperador e
supervisionados pelos seus procuradores, só em cidades como aquela é que familiae gladiatoriae privadas geridas por
um lanista tinham a possibilidade de subsistir, ao serem contratadas para actuar a nível local.

103
nos munera num decreto emitido provavelmente nos últimos anos de vida de Augusto
. Mesmo interditos por lei, os cavaleiros surgiram ocasionalmente na arena em
274

espectáculos ocorridos sob os reinados de Calígula e Cláudio, através de isenções


especiais, mas, no tempo de Nero, apareceram não só equestres como também
senadores no anfiteatro, num ritmo quase epidémico 275. O próprio Nero que, como
imperador, em nada se preocupava por se ver maculado pela infamia, deu o exemplo
aos senadores e aos equestres, ao subir ao palco como cantor e músico e, até, actuando
em peças teatrais, profissões que, à semelhança da dos gladiadores, desonrariam
qualquer cidadão romano virtuoso e digno 276.

Consequentemente, não admira que elementos de ambas as ordens, por vezes em


grande número e com o intuito expresso de agradar ao seu imperador cada vez mais
tirânico, tenham decidido descer à arena como gladiadores, mesmo perante a
desaprovação social. Em 69 d. C., o efémero imperador Vitélio proibiu a participação de
senadores e equestres de combaterem nos munera277. Mas o seu decreto não sobreviveu
ao seu fugaz reinado (menos de três meses). Embora não sistematicamente,
continuaram a aparecer na arena membros da elite romana até, pelo menos, finais do
século II d. C. Quando, em determinado momento, Marco Aurélio expressou as suas
reticências quanto à candidatura de um antigo gladiador a um cargo público, o último
salientou em sua defesa que conhecia muitos pretores no Senado que tinham lutado na
arena durante a sua carreira278.

Os cenários dos combates gladiatórios: desde os primórdios até ao final da


República

A maior parte das provas materiais associadas aos mais antigos munera aponta para
uma íntima relação com a morte, não só em termos do risco que corriam os indivíduos
que combatiam, mas igualmente, como vimos, pela homenagem comemorativa do
274 Suetónio, Divus Augustus, 43.3.

275 Díon Cássio, Hist. rom. 59.8.3. G. Ville, La gladiature…, p. 258.

276 Suetónio, Divus Nero, 21.3.

277 Tácito, Hist. 2.62; Díon Cássio, Hist. rom. 65.6.3.

278 História Augusta/SHA Marc. (Júlio Capitolino)

104
defunto através da apresentação de jogos fúnebres. A maioria dos historiadores
acredita que as cenas representadas nos afrescos tumulares descobertos na Campânia
descrevem eventos que se desenrolavam nesse contexto. A este respeito, acharam-se
vasos itálicos também decorados com motivos funerários conectados com cenas que
talvez ilustrem primitivos combates gladiatórios 279
. Que impacto teve tal contexto nas
considerações pragmáticas que presidiam à exibição dos munera? Que papel
desempenhavam por estes jogos nos funerais?

Para responder a estas questões, há que recorrer ao que conhecemos sobre os ritos
funerários romanos: havia três locais possíveis adequados para a realização dos
munera, que, em gera,l ocorriam depois do funeral: o primeiro seria a própria
habitação do falecido. A maior desvantagem na escolha deste sítio prendia-se, a nível
prático, com a limitação do espaço, mas tal não significava necessariamente uma
barreira intransponível. Mas, para a nossa abordagem, a localização de um munus
numa habitação privada tem pouca importância, na medida em que os combates
gladiatórios dificilmente constituiriam o propósito primeiro de uma moradia, daí que
exercesse reduzido impacto no desenho arquitectónico das residências, além de que a
arquitectura doméstica não afectava a concepção planimétrica dos edifícios destinados
a espectáculos. O segundo local mais óbvio para os primeiros munera consistia num
espaço vizinho ao próprio túmulo. Podia arranjar-se um recinto cujo terreno estivesse
nivelado e em redor do qual ficariam reunidos os espectadores, criando-se, assim, uma
arena improvisada. Ora como tais eventos ocorriam fora das muralhas da cidade, não
se registavam constrangimentos impostos pelas estruturas urbanas. Tertuliano sugere o
cenário sepulcral:

«Então, no dia aprazado, eles traziam aqueles que haviam treinado […] para os utilizar diante
dos túmulos dos mortos». 280

Sérvio alude à questão do local indirectamente. Ao comentar o vocábulo bustuarius, o


autor afirma ser costumeiro matar cativos junto dos sepulcros de homens importantes,
o que depois pareceu um pouco cruel, pelo que se decidiu apresentar combates de
gladiadores junto dos túmulos . Assim, através de Sérvio e Tertuliano, dispomos de
281

mais detalhes sobre a fundamentação lógica subjacente aos mais antigos munera

279Mais evidentes na presença da columna lemniscata na hydria descoberta em Caivano e no monumento do vaso
denominado Tischbein, exemplos citados por G. Ville como provas da existência de combates gladiatórios campanianos.
Veja-se O. Elia, «Caivano. Necropoli pre-romana», NSA (1931), pp. 577-614, autor que viu nessas figurações confrontos
armados mas não gladiatórios. Quanto ao vaso Tischbein I.60, cf. S. Reinach, Répertoire des vases peints grecs et
étrusques, Paris, E. Leroux, 1922-24, p. 293.

280Tertuliano, De spectaculis, 12.3: quos paraverant, armis quibus tunc et qualiter poterant eruditos, tantum ut
occidi discrent, mox edicto die inferiarum apud tumulos erogabant.

281Sérvio, Ad Aeneidos, 10.519: sane mos erat in sepulchris virorum fortium captivos necari: quod postquam crudele
visum est, placuit gladiatores ante sepulchra dimicare, qui a bustis bustuarii appelati sunt.

105
fúnebres, mas, por outro, há poucas especificações quanto à organização dos lugares
sentados e às exibições que se efectuavam na área da necrópole. Nenhum dos dois
autores antigos alude concretamente às origens dos munera, se tiveram uma génese
campaniana, etrusca ou mesmo romana282.

É possível reconstituir as instalações básicas em torno de um túmulo com base em


evidências materiais da Etrúria: numa urna descoberta em Perugia (ant. Perusia),
representou-se uma vedação de madeira, destinada presumivelmente a separar os
espectadores do espectáculo em si mesmo e, ao mesmo tempo, a manter a multidão sob
controlo283. Ainda mais se extrapola a partir do ciclo de cenas do «Túmulo das Bigas»
(Tomba delle Bighe), em Tarquínia (figs. 7-8). Nestes afrescos, os competidores e os
espectadores aparecem figurados em níveis diferentes, o que parece sugerir a existência
de algum género de podium a servir de apoio. O público está sentado em bancos de
madeira, suportados por uma infraestrutura feita do mesmo material. Os espectadores
surgem a flanquear os participantes, o que talvez signifique que haveria lugares
sentados em dois dos lados, pelo menos, da arena.

Por seu turno, na Urbs, havia um terceiro cenário típico para os munera. Os combates
gladiatórios em Roma não se podem perspectivar sem termos em conta a publicitação e
a politização do funus publicum dos defuntos ilustres284. O Forum republicano era um
centro cívico polivalente, funcionando como «quartel-general» governativo, mercado
agrícola, de fulcro do culto público, além de consistir num bom local para encontros,
comércio, troca de ideias e, também, para entretenimento. De facto, Vitrúvio especifica
que os fora das cidades itálicas se conceberam para acolher spectacula, sendo a forma
alongada dos mesmos especialmente adequada para os combates de gladiadores 285
.
Para os recintos mais apropriados para o efeito, Vitrúvio aconselhava que tivessem uma
proporção de 3 para 2 no que respeita ao seu comprimento e largura. Embora a função
primária do forum fosse de cariz político ou comercial, os dados facultados por Vitrúvio
mostram que os requisitos para os munera que ocorressem nesse espaço estavam
presentes aquando da fase do planeamento edificatório e, talvez até, assumissem
precedência sobre as necessidades ligadas à política e ao comércio, menos exigentes ou

282 No entanto, conforme referiu A. Futrell (Blood in the Arena…, p. 239), «Except perhaps Servius by implication, as
his comment is associated with Italic Turnus' rampage. This could be taken as evidence for Italic as opposed to Etruscan
practice»

283Urna que foi publicada e reproduzida pela primeira vez no livro de U. Tarchi, L'arte nell'Umbria e nella Sabina, I,
Milão, Fratelli Treves, 1936, est. Lxx. Veja-se também J.-C. Golvin, L'Amphitéâtre romain. Essai, vol. I, pp. 16-17.

284Que tinha elementos muito públicos, designadamente a elogia e a pompa funebris, para além dos ludi. Estes
ocorriam provavelmente no oitavo dia depois do sepultamento propriamente dito, o novendialis.

285Vitrúvio, De architectura, 5.I: ad spectaculorum rationem utilis dispositio.

106
restritivas, afora o facto de que as últimas actividades se podiam desenrolar num amplo
leque de outros cenários.

As áreas que formaram os centros urbanos de Paestum e Cosa não possuíam,


aparentemente, construções anteriores que distraíssem a atenção dos homens que
projectaram as cidades, daí que os fora que existiram em ambas correspondessem a
rectângulos bastante regulares. O forum de Cosa media 140 m por 60, isto é,
representando uma ratio de 2.33:1, muito semelhante ao de Paestum (150 por 57, ratio
2.63:1)286. Outro forum, situado em Luni (antiga Luna), no Noroeste de Itália, fundado
em 177 a. C., é, igualmente, mais comprido e estreito do que as dimensões
recomendadas por Vitrúvio, com a proporção de 1.75:1 287
. Centros citadinos mais
antigos, como os de Pompeia e Roma, tenderam a manifestar uma forma mais
trapezoidal, distorção causada pelo seu papel enquanto pontos de junção de estradas.
Estes fora mediam, respectivamente, cerca de 110 por 30 m (2.89:1) e 118 por 67 m
(1.76:1) 288
. Se bem que todos eles se acercassem do rectângulo vitruviano, as
proporções não se traduzem no ratio de 3:2. Consequentemente, neste aspecto, bem
como noutros expostos no seu tratado, Vitrúvio apresentou um ideal teórico em vez de
uma representação concreta de normas arquitectónicas.

Percebemos melhor as exigências pragmáticas impostas pelos espectáculos romanos


sobre a arquitectura, assim como os requisitos autênticos que inspiraram a ratio de
Vitrúvio, ao definirmos o foco primário da área de actuação dos tipos de edifícios
relacionados com o entretenimento: teatro, odeum (odeão, estrutura onde se exibiam
poetas e músicos), estádio e circo 289
. Certos aspectos básicos do principal espectáculo
que tinha lugar em cada um desses tipos de edifícios eram elementos-chave para a
determinação da forma que cada um assumia.

Os teatros serviam para acolher peças dramáticas; era importante que houvesse uma
boa acústica, a fim de que o público pudesse ouvir bem o que os actores diziam 290.

286P. C. Sestieri, Paestum, Roma, Istituto Poligrafico dello Stato, 1967, e F. Castagnoli, Orthogonal Town Planning in
Antiquity, Cambridge, Mass., Harvard University Press, 1972, p. 132. Recorde-se que tanto Paestum como Cosa foram
fundadas na qualidade de colónias romanas em 273 a. C.

287O forum de Luna media aproximadamente 47 m de comprimento por 82 de largura. S. L. Siena, Luni: Guida
archeologica, Sarzana, 1985; T. W. Potter, Roman Italy, Berkeley, University of California Press, 1987, pp. 74-75.

288J.-C. Golvin, L'Amphitéâtre romain. Essai…, pp. 304-306, e A. Maiuri, «Saggi nell'arena del foro di Pompei»,NSA
3 (1941), pp.371-404. Quanto a Roma, vejam-se J.-C. Golvin, L'Amphitéâtre romain. Essai…, pp. 18-21, e F. Coarelli, Il
foro romano, vol. II, pp. 125-149.

289Para uma discussão mais circunstanciada sobre o carácter funcional dos recintos usados para os espectáculos: J.-C.
Golvin, L'Amphitéâtre romain. Essai…, pp. 298-300.

290A este respeito, F. Canac, Acoustique des théâtres antiques, Paris, Éditions du Centre Nationale de la Recherche
Scientifique, 1967, p. 178: o autor sugeriu que a capacidade máxima nos teatros seria de 12 000 lugares.

107
Quanto ao odeum (odeão), destinava-se à música e a recitais poéticos, e não tanto a
representações, afigurando-se a acústica ainda mais relevante neste caso 291. No tocante
aos estádios, nestes tinham lugar corridas e outras actividades atléticas: consequente, a
ênfase que se conferia a estes recintos centrava-se no movimento e não na acústica:
para os eventos que aí se desenrolavam, requeria-se a existência de uma pista plana e
estreita, com certo comprimento e largura, sendo a percepção visual por parte dos
espectadores um factor secundário292. Quanto aos circos, privilegiavam igualmente o
movimento dos participantes, mas aqui estes precisavam de dispor de bastante espaço
de maneira a acomodar a velocidade e o tamanho dos carros puxados por cavalos.
Algumas facetas próprias das corridas de quadrigas vieram a obrigar a modificações
naquilo que, de outro modo, se assemelharia a uma pista de grandes dimensões de um
estádio: introduziram-se os carceres (cf. infra, Capítulo III) para compensar o menor
comprimento da pista interior e estabeleceu-se uma spina (um muro longitudinal feito
de pedra) no meio, que permitia o movimento contínuo dos agitatores e dos seus
veículos293.

E que dizer das vertentes mais importantes para os munera em termos de concepção
espacial294? Provavelmente deu-se prioridade a uma combinação entre a percepção
visual e o movimento. O público tinha de ver o que se passava na arena com certa
clareza, de molde a apreciar totalmente a riqueza e a diversidade das estruturas cénicas,
das indumentárias e do equipamento gladiatório, o que lhe possibilitava sentir o pleno
impacto psicológico gerado pelo perigo, pelo sangue e pela morte. Quanto mais
próximo estivesse um espectador dos combates, maior era o seu grau de envolvimento e
diversão 295
. No que respeita ao movimento, era necessário um amplo espaço a céu
aberto adequado à «multidireccionalidade» dos combates 296.

O Forum romano foi empregue como recinto para a celebração dos munera desde o
século IV a. C., altura em que, segundo várias fontes literárias, se procederam a
291 O. Navarre, «Odeum», in C. Daremberg, E. Saglio e E. Pottier (eds.), Dictionnaire des antiquités grecques et
romaines, vol. IV, parte I, Paris, Hachette et Cie, 1911, pp. 150-152.

292 A. Sorlin-Dorigni, «Stadium», Ibidem, vol. IV, parte 2, pp. 1419-1456.

293A. C. Bussemaker e E. Saglio, «Circus», Ibidem, vol. I, parte 2, Paris, Hachette, 1887, pp. 1187-1207. Para mais
detalhes arquitectónicos dos circos romanos, J. Humphrey, Roman Circuses, Berkeley, University of California Press,
1986.

294 J.-C. Golvin, L'Amphitéâtre romain. Essai…., pp. 307-310.

295Em termos económicos, era importante para os editores dos munera, e provavelmente também para os construtores
dos anfiteatros imperiais: quanto maior número de espectadores houvesse, usufruindo avidamente todas as sensações
do espectáculo oferecido, tanto melhor. Existia indubitavelmente um cuidadoso equilíbrio entre a maximização da
percepção visual do público e a capacidade para acolher cada vez mais lugares no recinto, sendo o Coliseu o edifício que
representa o limite máximo possível.

296 A. Futrell, Blood in the Arena…, p. 37.

108
modificações para receber spectacula. À medida que foi crescendo a importância de
Roma na esfera itálica, o Forum viu-se renovado de forma a reflectir o estatuto e o
poder cada vez mais prestigiosos da Urbs. A inflamabilidade da parte baixa da cidade
também conduziu a que nela se realizassem frequentes obras edificatórias 297. A Basílica
Pórcia foi mandada erigir por Catão em 184 a. C., no sítio onde antes havia alguns atria
públicos, um dos quais era propriedade de um tal Maenius, presumível descendente do
homónimo atrás citado, o construtor da coluna e dos lugares sentados. Catão conseguiu
adquirir este lote apenas na condição de que Ménio e os seus familiares tivessem o
direito de reivindicar uma coluna específica da dita basílica, enquanto área reservada
para se sentarem por ocasião dos munera 298.

O direito de acesso a zonas específicas no Forum para os munera era, aparentemente,


um privilégio muito valorizado, concedido exclusivamente a dignitários e notáveis
servidores civis. Tal foi o que aconteceu com Ser. Sulpicius «homem tão excelente que
encontrou a morte quando fora embaixador em nome do Estado», em honrado qual o
Senado decidiu que se erguesse «uma estátua de bronze nos Rostra às suas custas e que
à volta desta efígie se reservasse um espaço de cinco pés em todas as direcções para os
seus filhos e demais descendentes nos ludi e nos combates gladiatórios, porque ele
falecera ao serviço do Estado299. Assim, deduz-se que os melhores sítios «pertenciam»
aos magistrados romanos e às suas famílias, para utilização exclusiva aquando dos
combates gladiatórios.

Por volta de 170 a. C., o Forum ganhou as proporções gerais que teria durante a sua
fase de maior desenvolvimento dos espectáculos durante o período tardo-republicano.
A Basílica Emília e a Basílica Pórcia situavam-se a norte, a Basílica Semprónia a sul,
rodeando o espaço relativamente aberto no centro do Forum, encontrando-se o centro
cívico à parte do resto da cidade. As colunatas nos lados mais compridos das basílicas
proporcionavam lugares sentados para os espectadores 300. A área central possuía

297J.-C. Golvin, L'Amphitéâtre romain. Essai…, pp. 18-21; F. Coarelli, Il foro…, II, pp. 125-149. Não restam dúvidas
que foi necessário proceder a algumas renovações, por exemplo, depois do incêndio que deflagrou em 210a. C.

298 Pseudo-Ascónio, Div. In Caec. 16-50.

299Cícero, Phil. 9.7.16: cum talis vir ob rem publicam in legatione mortem obierit senatui placere Ser. Sulpicio
statuam pedestrem aeneam in rostris ex huius ordinis sententia statui, circumque eam statuam locum ludis
gladiatoribusque liberos posterosque eius quoquo versus pedes quinque habere, quod is ob rem publicam mortem
obierit. Note-se que o privilégio se concedia aos filhos e demais descendentes, sem qualquer tipo de restrição,
aparentemente para sempre.

300A Basílica Pórcia foi erigida durante a censura de M. Pórcio Catão, em 184 a.C. Seguiu-se a Basílica Emília em 179,
na altura em que M. Emílio Lépido e M. Fúlvio Nobilior foram os censores mais activos em termos de construções
arquitectónicas. Quanto à Basílica Semprónia, foi levantada em 170 a. C., quando Ti. Semprónio Graco ocupava o cargo
de censor. Para os lugares nas colunatas, veja-se Vitrúvio, 5.1. No que respeita à Basílica Opimia, a oeste do Templo de
Saturno, foi acrescentada ao Forum em 120 a. C.; ironicamente, comemorava o derrube de C. Graco, filho do edificador
da Basílica Semprónia. Para mais dados sobre o Forum republicano, consultem-se: F. Coarelli, Guida archeologica de
Roma, Milão, A. Mondadori, 1974, pp. 53-81; e J. E. Stambaugh, The Ancient Roman City, Baltimore, Johns Hopkins
University Press, 1988, pp. 106-114.

109
tribunais em cada uma das extremidades, cuja configuração curva terá transformado o
Forum, a nível visual, numa pequena arena parecida a um estádio delimitado pelas
basílicas e pelo Regia 301.

Embora beneficiando de restauros, o Forum manteve, essencialmente, a mesma forma


básica até ao incêndio que deflagrou em 52 a. C., o que abriu caminho à reconstrução
da área feita a mando de Júlio César, convertendo-se, em certa medida, num
monumento para o próprio dictator, conferindo-se menor ênfase às formas tradicionais
da participação política 302. O novo Forum tornou-se um mostruário do legado romano,
um local admirado pelos cidadãos e um espaço concebido para o espectáculo. A Basílica
Semprónia foi demolida para dar lugar à Basílica Júlia, de maior tamanho, ao mesmo
tempo que Júlio César ordenou o restauro da Basílica Emília 303
. Removeu-se o
Comitium, que servira como local para a assembleia popular, transferindo-se as suas
funções em grande parte para os Saepta Julia, no Campus Martius (Campo de Marte),
afastado do centro cívico304. Os Rostra, antigo monumento em honra da vitória naval
romana, também foram remodelados e realinhados 305.

Se bem que já se empregassem vários géneros de argamassa desde há milénios, foi sob
os auspícios de Roma que o cimento (opus caementicum) veioa ser introduzido,
correspondendo a um material composto por porções de massa (caementa), uma
argamassa de alta qualidade feita de cal, água e de um tipo especial de cinza vulcânica
conhecida como pozzolana (termo que deriva de Pozzuoli, junto de Nápoles, o seu
principal lugar de extracção), que constituía, no fundo, uma espécie de argila cozida
pelo calor do vulcão 306
. O cimento307 era, pois, um material aglutinante que resistia à
água e à acção atmosférica combinação é que torna esta argamassa em algo de especial
(como a pozzolana possuía um elevado teor de sílica, permitia que fosse colocada

301A descrição de Plutarco em Caio Graco (12.10), pode indicar que os tribunais, incluindo os Rostra e o Comitium,
tinham formas curvas. Veja-se uma reconstituição das imponentes instalações de Júlio César no Forum, da autoria de K.
Welch, «The Roman Arena in Late -Republican Italy: A New Interpretation», JRS 7 (1994), pp. 73-75, figs. 6-8.

302Para as renovações levadas a cabo por César no Forum: J.-C. Golvin, L'Amphitéâtre romain. Essai…, pp. 45-51, e
por F. Coarelli, Il foro…, II, pp. 233-257.

303 A Basílica Pórcia não foi reconstruída depois do incêndio.

304G. Gatti, «I Saepta Iulia nel Campo Marzio», L'Urbe, 2.9 (1937), pp. 8-23; C. Nicolet, The World of the Citizen in
Republican Rome, Berkeley University, University of California Press, 1980, pp. 249-250.

305F. Coarelli, Il foro…., II, pp. 244-255.

306A pozzolana encontrava-se principalmente na Câmpania, embora existindo também noutras zonas da Itália Central.

307 Não se confunda com o cimento moderno, que data de meados do século XVIII, consistindo numa mistura de cal
com um pouco de gesso e pozzolana italiana, que foi preparada pela primeira vez por Smeaton. É o chamado cimento
Portland, que hoje em dia se produz a partir de uma matéria-prima composta por 25% de argila e 75% de calcário,
cozido a cerca de 1450 º C.

110
debaixo de água). Este tipo de argamassa era consideravelmente mais forte do que
outras, e os arquitectos romanos depressa se aproveitaram da sua qualidade.

A acessibilidade imediata aos ingredientes do cimento romano tornava-o bem mais


barato para se usar do que os outros materiais tradicionais de construção. Ademais, a
adaptabilidade do cimento em relação às formas curvas conduziu a experiências e
inovações ao empregá-lo em estruturas abobadadas, o que exemplifica, mais do que
qualquer outra coisa, a chamada «revolução arquitectónica romana» 308
. É possível
observarmos as mais antigas experiências com opus caementicum nas muralhas
citadinas de Cosa, datando de começos do século III a.C. Em Roma, o Porticus Aemilia,
uma espécie de armazém-entreposto construído perto do Tibre em 174 a. C. mostra
como se conjugou o uso do cimento com abóbadas de berço. Mas a combinação da opus
caementicum e das formas curvilíneas das abóbadas aplicou-se no seu melhor em dois
novos géneros de edifícios conceptualizados no século II a. C.: o teatro romano e o
anfiteatro.

O teatro romano diferia do grego pela sua autonomia em relação ao meio físico em que
estava implantado, em geral na encosta de uma colina. Assim, o teatro romano era uma
entidade independente suportada por galerias abobadadas, que irradiavam
perpendicularmente em relação à linha formada pelos lugares sentados. As limitações
ditados por terrenos planos puderam, doravante, ignorar-se, conseguindo os
arquitectos romanos erguer teatros sem dificuldades de maior. Esta autonomia foi
crucial para o desenvolvimento do anfiteatro romano e precedeu-o em apenas uns
quantos anos. O mais antigo teatro romano que chegou até nós, da última metade do
século II a. C., foi descoberto na Campânia, mais propriamente em Teanum 309
. Para
diversos especialistas, terá sido igualmente nesta região que se erigiram os primeiros

308 Para mais pormenores, consultem-se: H.-O. Lamprecht, Opus Caementitium: Bautechnik der Römer, Düsseldorf,
Beton-Verlag, 1984, pp. 19-68; J. B. Ward-Perkins, Roman Architecture, Nova Iorque, H. N. Abrams, 1977, pp. 97-99;
W. L. MacDonald, The Architecture of the Roman Empire, I, New Haven, Yale University Press, 1965, pp. 152-161.

309 Embora existissem teatros de pedra definidos como «romanos», isto é, erigidos, pelo menos, sob os auspícios
romanos, haja em vista os de Pompeia, Cales e Cápua, todos datando da primeira metade do século II a. C., eles não
significaram estruturas verdadeiramente autónomas, pelo que não se inscreveram no «estilo» romano.

111
anfiteatros310, mas, como veremos mais adiante, esta teoria talvez não corresponda à
verdade.

O papel preponderante que a Campânia aparentemente desempenhou nas inovações


mais recuadas assinaláveis na arquitectura romana pode explicar-se de várias maneiras
.No âmbito dos sistemas materiais, a Campânia teve a sorte de dispor de abundância
311

em pozzolana, que, ao longo de séculos, se viu regurgitada pelo monte Vesúvio. Mais: a
Baía de Nápoles possuía um dos raros bons portos de Itália, o que possibilitou que a
actividade mercantil gerasse prosperidade económica. De igual modo, a fertilidade do
ager Campanus fez da agricultura campaniana uma actividade assaz lucrativa. Ora
muita da riqueza assim obtida foi redistribuída na região mediante programas de obras
públicas312. Dos 310 edifícios públicos conhecidos em toda a Itália sob a República, 128
localizam-se nesta zona313.

Um elemento-chave para o fomento desta política edificatória pode ter radicado no


desafio que a Campânia representou para Roma durante a Guerra Social (90-88 a. C.).
A resposta à rebelião itálica traduziu-se na colonização romana, que implicou a
reconstrução forçada da região por Cornélio Sula. A colonização romana, pela sua
própria natureza, conduziu à subjugação e ao controlo daqueles que se opunham aos
interesses dos «Filhos de Marte»314. Estabeleceram-se lá colónias para punir a
resistência local, ao mesmo tempo que as mesmas serviam para garantir a segurança na
região. Também cabe perspectivar as colónias como um utensílio do imperialismo
cultural, por meio da introdução de uma série de padrões cívicos que eram romanos e
não itálicos na sua base. No caso pontual de Sula, talvez se detecte uma motivação
310Segundo alguns estudiosos, os anfiteatros mais antigos terão sido construídos em Cápua, Cumae e Liternum, em
finais do século II a. C. A estes primeiros exemplos campanianos juntaram-se os edifícios de Puteoli, Telesia, Abella,
Teanum, Cales e Pompeia, antes do término da República. Paestum, se bem que situada na Lucânia, localiza-se
suficientemente perto dos anfiteatros campanianos, ao ponto de ser ver influenciada pelos mesmos factores. Os outros
quatro anfiteatros republicanos incluem dois na Etrúria e igual número na Hispania Baetica, áreas que figuram com
mais ou menos proeminência nos primórdios dos munera, adequando-se, aliás, aos interesses tradicionais locais.
Diversos tipos de evidências servem como critérios de datação dessas estruturas: para W. Johannoswsky, as de Cápua,
Cumae e Liternum devem remontar ao século II a. C., caso se tenha em conta o emprego do mesmo género de opus
reticulatum (cf. «La situazione in Campania», in P. Zanker, ed., Hellenismus in Mittelitalien, I, Göttingen, Vandenhoec
und Ruprecht, 1976, pp. 267-299); o anfiteatro de Cales, por seu lado, é datável pela sua técnica de construção, o mesmo
sucedendo com o de Teanum (acrescido de uma simplicidade em termos de desenho); o de Puteoli, anfiteatro de
pequenas dimensões, localiza-se cronologicamente pela sua técnica edificatória (à semelhança do de Telesia, com muros
em opus reticulatum, tanto no anfiteatro como na colónia silana) ainda que, por vezes, ele tenha sido datado já do
período augustano; o anfiteatro de Paestum, pelo material utilizado para realizar a arena e a base da cavea; quanto à
estrutura de Sutri, parece primitiva no seu desenho e na execução. O material de construção de Ferentium é comparável
aos de Pompeia e Telesia. O material de Carmo assemelha-se ao de Pompeia. O contexto edificatório do anfiteatro de
Ucubi é, aparentemente, cesariano.J.-C. Golvin, L’Amphithéâtre romain. Essai…,pp. 24-25, 32-44; K. Welch, «The
Roman Arena in Late-Republican Italy …», JRS 7 (1994), pp. 65-69.

311 W. Johannowsky, «La situazione in Campania…».

312Alguma desta riqueza foi reinvestida no estrangeiro. Os mercadores campanianos estabeleceram enclaves em Delos
e na Ásia Menor, a fim de protegerem os seus interesses.

313H. Jouffroy, La Construction publique en Italie et dans l’Afrique romaine, Estrasburgo, AECR, 1986, pp. 1-56.

314 Apiano, B. Civ. I.7; Sículo Flaco (Siculus Flaccus), De Cond. agr. P. 135, 20.

112
ideológica ainda mais específica para a imposição de instituições romanas enquanto
formas de «discurso político»315. O processo restruturante da distribuição do poder
romano por Sula buscava igualmente o reforço e a manutenção da ordem senatorial,
aspecto que os seus apoiantes asseguraram.

O plano de colonização ideado por Sula visava minar a autoridade popular itálica
através da implantação de uma nova elite romana e de instituições romanas nas áreas
recentemente submetidas. O dictator estava disposto a recorrer à força para atingir os
seus objectivos. É provável que ele também pretendesse servir-se da força simbólica: a
incorporação do anfiteatro na política de dominação do território itálico. Isto acarretou,
naturalmente, significativas consequências para a difusão do anfiteatro nos decénios
subsequentes à ditadura de Sula. A utilização inovadora do anfiteatro a favor da política
conservadora pode haver criado um precedente para a arena romana, assinalável na
manifesta predilecção pelos munera por parte dos partidários anti-populistas do
período tardio da República.

Dos anfiteatros republicanos conhecidos, a maioria localiza-se nas colónias romanas,


incluindo as de Pompeia, Abella e Telesia (criadas no tempo de Sula) . Os vestígios
316

materiais achados em Pompeia são especialmente elucidativos, uma vez que se


preservou a inscrição-dedicatória do seu anfiteatro 317: nesta fonte epigráfica, os duoviri
quinquennales especificam o beneficiário das suas despesas cívicas da colónia,
composta por soldados veteranos de Sula; além disso, os duoviri (duumvir no singular)
garantiam o direito que assistia a esses colonos de terem lugares sentados no anfiteatro,
a título perpétuo. Nessa fonte, não se faz qualquer menção aos residentes «pré-
coloniais» da cidade, que terão sido excluídos da política e limitados na sua mobilidade
pessoal 318
. Aqui, observa-se um elemento ilustrativo da inspiração para os
empreendimentos arquitectónicos na Campânia no período tardo-republicano. As
estruturas ao estilo romano não consistiam apenas em luxuosos derivados da paz e da
prosperidade de Roma, mas também em exemplos persuasivos da «boa vida» agora
patrocinada pela Urbs. Esses edifícios albergavam instituições romanas, a fim de
lembrarem, de forma permanente, a hegemonia romana, aspecto que se atesta pelas
inscrições feitas pelos colonos romanos. Os meios violentos pelos quais se conquistou
315 A. Futrell, Blood in the Arena…, p. 40.

316 K. Welch, «The Roman Arena in Late-Republican Italy …».

317CIL X 852: C. Quinctius C. f. Valgus M. Porcius M. f. duovir. quinq. coloniai honoris caussa spectacula de sua peq.
fac. coer. et coloneis locum in perpetuom deder.

318Cícero (Pro Sulla, 60-61) descreve os colonos como sendo diferentes, por definição, dos locais em termos de
participação política ou suffragium, e de ambulatio, o que alguns estudiosos modernos entenderam como um termo
técnico associados com as eleições, ao passo que outros nele viram uma referência à liberdade de movimentos dos
mesmos. Veja-se, a propósito, P. Castrén, Ordo Populusque Pompeianus, Roma, Bardi Editore, 1975, pp. 54-55.

113
tal hegemonia seriam, em larga medida, «recriados» nos munera apresentados pelos
magistrados de Pompeia 319.

A Campânia era uma região que beneficiava de grandes vantagens materiais para a
arquitectura em geral e, também, para a criação de uma inovadora arquitectura pública
em particular. Todavia, como advertiu Alison Futrell, não devemos considerar «o tipo
de edifício que é o anfiteatro como parte integrante da “arquitectura campaniana”,
distinta da arquitectura romana»320. De facto, foi só durante a dominação e com o
impulso de Roma que se levaram a cabo estes desenvolvimentos em materiais e estilos,
os quais conheceram paralelos tipológicos na Urbs. Contudo, a nova arquitectura
surgiu na capital já depois da sua aparição na Itália Meridional. Embora alguns
historiadores possam interpretar este fenómeno como mais um caso ilustrativo da
tendência dos Romanos em imitarem em vez de inovarem em termos estilísticos,
sugerir que se verificou alguma espécie de atraso ou retardamento no desenvolvimento
arquitectónico em Roma é uma ideia enganadora.

As numerosas construções especialmente evidentes em Roma distorcem a imagem,


com edifícios republicanos que, apesar de originais na altura em que foram concebidos,
se viram ofuscados pela brilhante e sumptuosa arquitectura da época imperial. Ainda
assim, Roma só veio a ter um teatro permanente nos últimos tempos da República. As
razões subjacentes a este atraso não estão relacionadas com a falta de sofisticação
técnica ou de escassez de recursos financeiros, mas antes com a situação especial em
Roma, repleta de grande carga política e relevante para a função do anfiteatro 321.

A primeira menção textual a um teatro romano reporta-se a acontecimentos ocorridos


em 154 a. C., quando os censores Valério Messala e C. Cássio Longino quiseram
construir um teatro feito de pedra ao lado do Palatino, mas deparam com a oposição do
Senado, principalmente por parte de Cipião Nasica, entre outros 322
. O edifício foi
destruído e proibiu-se, nos anos seguintes, a edificação de bancadas monumentais que
ficassem a uma milha de distância da cidade 323. Formularam-se teorias explicativas
para os motivos inerentes a tal interdição: que Nasica encarava os teatros como

319 Para a crescente disseminação dos munera e dos anfiteatros enquanto parte da imposição de uma identidade
romanizada, observe-se T. Wiedemann, Emperors and Gladiators…, pp. 1-54.

320 Blood in the Arena…, p. 41.

321 E. S. Gruen, Culture and National Identity in Republican Rome, Ithaca, Cornell University Press, 1992, pp. 205-
210.

322 Há indícios de construções anteriores, designadamente em 179 a. C. (Tito Lívio, Ab Urb. Cond., 40.51) e 174 a. C.
(T. Lívio, Ab Urb. Cond. 41.27), se bem que no último caso a estrutura seja descrita como uma scaena e não enquanto
um teatro per se. O facto de os censores serem, aparentemente, responsáveis por estas criações torna improvável que as
mesmas constituíssem apenas palcos temporários destinados aos jogos anuais. O Nasica aqui mencionado é o mesmo
que ofereceu animais selvagens para o munus que apresentou em 169 a. C., na qualidade de edil.

114
«inúteis» e uma afronta para a moral pública, ou que seria mais apropriado para a
virilidade e carácter dos Romanos ficarem de pé aquando das exibições públicas 324.

Interpretou-se este diferendo no contexto da confrontação entre pró-helenos e anti-


helenos, caso tomemos em consideração o comentário de Valério Máximo, que afirma
que a virilitas não é própria da raça grega325. Outros autores realçaram com acerto o
papel que podiam desempenhar os teatros em distúrbios democráticos, analisando a
posição dos espectadores de pé no anfiteatro como uma eficaz medida preventiva
contra a agitação popular326. O teatro representava uma ameaça para o controlo
oligárquico do eleitorado urbano: a existência de uma estrutura permanente,
especificamente destinada para reuniões de massas, com uma acústica a facilitar a troca
de palavras, era demasiado perigosa para os membros conservadores da elite
governativa de Roma. As classes dirigentes tinham o maior interesse em manter o
monopólio sobre a esfera pública, principalmente os locais em que se organizassem
assembleias públicas de todo o género e feitio327.

Destaquemos outro aspecto: a transitoriedade das estruturas montadas para a


realização dos espectáculos estava, em larga medida, ligada à própria circulação do
poder no seio das magistraturas, cujos cargos se caracterizavam pela sua curta duração.
Ora, os edifícios permanentes indicariam um controlo político permanente. As
principais obras públicas, incluindo templos, estradas e aquedutos, encontravam-se nas
mãos dos censores, que exerciam o seu ofício aos pares durante cinco anos. Assim,
quando Messala e Longino desejaram erigir o teatro, o Senado encarou essa iniciativa
como propiciando a censura a tornar-se em algo demasiado permanente 328.

Breves comentários sobre o anfiteatro de Pompeia e a génese da forma


elíptica

323 E. S. Gruen viu nestas medidas uma clara proibição para a existência de lugares sentados, fossem permanentes ou
temporários.

324 Tito Lívio, Per. 48: P. Cornelius Nasica auctore tamquam inutile et nociturum publicis moribus ex senatus
consulto destructum est. Valério Máximo, Fact. et Dict. Memor. 2.4.2: ut silicet remissioni animorum junta standi
virilitas, propria Romanae gentis nota, esset. Para a ideia de ser desejável os espectadores ficarem de pé, o que se
coadunava mais com o carácter romano, veja-se L. R. Taylor, Roman Voting Assemblies, Ann Arbor, 1966, pp. 30-31.

325 M. Bieber, History of the Greek and Roman Theater, Princeton, Princeton University Press, 1961, p. 321.

326 Apiano, B. Civ., 1.28. E. Frézouls, «Aspects de l’histoire du théâtre romain», ANRW II.12.1 (1983), pp. 353-354.

327 C. Nicolet, The World of the Citizen in Republican Rome, p. 363. E. S. Gruen (Culture and National Identity, p.
210) salientou a necessidade, por parte da elite, de controlar a expressão artística e a sua recepção, sublinhando a faceta
cultural da vertente política, e não tanto a necessidade pragmática de manipulação espectacular.

328 Tito Lívio, epit. 48, 55-60.

115
Todos os anfiteatros romanos conhecidos, salvo casos particulares muito raros,
possuem uma arena elíptica. Por que motivo e onde, ao certo, se concebeu esta forma?
Durante largo tempo acreditou-se que o primeiro anfiteatro a adoptá-la havia sido o de
Pompeia, mas, hoje em dia, esta opinião deve ser revista, à luz das investigações mais
recentes sobre a matéria. As razões que incitaram a privilegiar o caso de Pompeia
relacionam-se principalmente com o razoável estado de conservação do monumento e o
facto de a sua antiga datação se encontrar garantida. Os restantes anfiteatros
republicanos, menos bem preservados, permaneceram pouco estudados durante
muitos anos e nenhum deles foi datado com exactidão. O mesmo não sucede com o ano
de inauguração do edifício de Pompeia, que pode ser fixado precisamente através da
sua inscrição-dedicatória atrás referida, descoberta quase intacta. Nela lê-se o seguinte:

«C. Quinctius C. f. Valgus e M. Porcius duoviri quinquennales da colónia, como um dever do


seu cargo e à sua própria custa, foram responsáveis pela construção do edifício [spectacula] e
ofereceram-no aos membros da colónia para todo o sempre».

O monumento aparece qualificado como spectacula, o que é digno de nota, visto que
esta palavra também servia para se reportar à estrutura de madeira que se montava no
Forum Romanum nas ocasiões em que se celebravam aí espectáculos.

Assim, o anfiteatro pompeiano foi erigido a expensas de C. Quinctius Valgo e M.


Porcius, quando exerceram as funções de duoviri (os magistrados mais importantes da
cidade), acrescidos do título de quinquennales, o que significa que estavam empossados
do cargo por cinco anos e encarregados de realizar o censo e cobrar impostos para o
governo de Roma, facto que permite deduzir, sem dúvida, o ano correspondente (70 a.
C.). No entanto, embora o conhecimento desta data se revista de relevância, ela não
possibilita que afirmemos que este monumento foi realmente o primeiro de todos os
anfiteatros. Informa-nos simplesmente que, a partir dessa data, se construiu um
monumento elíptico, mas cumpre não excluir a eventual existência de um ou vários
edifícios mais antigos, que não tenham deixado vestígios materiais. Tal ideia merece
uma reflexão ponderada, já que suscita várias questões: por que é que terá sido
materializada uma invenção tão notável numa cidade de importância secundária?
Como exerceria a pequena cidade de Pompeia uma influência de primeiro plano em
todo o mundo romano? É difícil compreender tudo isto, uma vez que faria muito mais
sentido que a invenção ocorresse em Roma. Além do mais, nada impede que se descarte
a hipótese da dita invenção na própria Urbs (e no Forum Romanum) desta forma
elíptica inovadora, que se viria a impor por toda a parte.

Com efeito, vários argumentos, fundamentados no estudo do contexto histórico do


período e das personalidades dos doadores tornam essa possibilidade assaz plausível.

116
Estas figuras são conhecidas e o essencial das suas carreiras pode ver-se reconstituído.
Trata-se dos primeiros magistrados de Pompeia que foram nomeados por Sula,
sobrinho do dictator, actuando a mando de Roma. Construiram o anfiteatro somente
dez anos depois da fundação da colónia de Pompeia, em 80 a. C. Os veteranos
correspondem claramente aos «membros da colónia» mencionados na inscrição, na
qualidade de destinatários do monumento «para todo o sempre», referência que situa o
nascimento deste monumento numa conjuntura específica. O edifício foi oferecido aos
veterani por dois personagens que provavelmente estavam intimamente ligados à
carreira castrense, pois que, ao tempo, os duoviri da maioria das colónias sulanas eram
tribunos militares e centuriões das legiões colonizadoras. Sabe-se, igualmente, que
Valgus e Porcius terão enriquecido no contexto das guerras secundadas de proscrições
conduzidas por Sula.

Os colonos recém-estabelecidos desejaram edificar rapidamente e, acima de tudo para


eles próprios, um anfiteatro. Estes milites aposentados conheciam a gladiatura e os
enquadramentos monumentais que serviam para o seu treino. Este género de
espectáculo e monumento disseminou-se então pelas colónias coevas. Nas colónias
sulanas, Roma estendeu a sua influência e a inscrição-dedicatória de Pompeia sublinha
que o anfiteatro foi erguido pelos dois magistrados «como um dever do seu cargo», o
que demonstra a sua necessidade e carácter primacial. Com Roma impondo largamente
o seu modelo, é lógico que se conhecessem as realizações monumentais feitas na
capital, e que a invenção de uma nova solução arquitectónica se disseminasse por todo
o lado.

A necessidade de montar e desmontar muitas vezes um edifício provisório no Forum


Romanum proporcionou a ocasião para aperfeiçoar as estruturas de madeira e
experimentar as soluções consideradas mais eficazes. O local prestava-se, mais do que
outro qualquer, à inovação e foi aí, muito possivelmente, que se descobriu ser a melhor
forma para a arena a elipse, como, aliás, sustentou Katherine Welch 329, ideia que mais
recentemente Jean-Claude Golvin também subscreveu, adicionando mais dados 330
.
Esta figura geométrica, simultaneamente alongada e curva, afirmava-se verdeiramente
superior a outras para o traçado da arena. O seu alongamento reproduzia o do Forum,
onde, como vimos, na sua origem (segundo Vitrúvio), constituiu palco para pugnas

329 Com efeito, K. Welch carreou argumentos plausíveis e convincentes na defesa da sua teoria de que a forma
arquitectónica dos anfiteatros da Campânia derivou das estruturas de madeira erguidas no Forum Romanum cf. «The
Roman Arena in Late-Republican Italy: A New Interpretation», JRA 7 (1994), pp. 77-80; IDEM, The Roman
amphitheatre from its origins to the Colosseum, Cambridge, Cambridge University Press, 2007, pp. 192-198.

330 J.-C. Golvin, «Lamphithéatre de Pompéi, monument de transition?», Nikephoros, Zeitschrift für Sport und Kultur
im Altertum, 20 (2007), pp. 295-300; IDEM, L’Amphitéâtre romain et les jeux du cirque dans le monde antique,
Lacapelle-Marival, Archéologie Nouvelle, 2012, pp. 23-25.

117
gladiatórias. Quanto à sua curvatura era, por seu turno, contínua e regular. A arena não
apresentava ângulos mortos e toda a superfície via-se bem utilizada. Os espectadores
sentados nas tribunas curvas que a rodeavam, assistiam ao espectáculo nas melhores
condições possíveis: de frente, ligeiramente de cima para baixo e sem esforço, porque a
arena se achava inserida no seu campo visual.

Por último, a elipse integrava-se melhor no Forum trapezoidal do que a configuração


arcaica do «pseudo-anfiteatro», que não podia ficar paralela em relação às duas
basílicas concomitantemente. A criação da elipse, que representou um aperfeiçoamento
inegável a todos os títulos, não se traduziu num acaso, mas em algo intencional. Não
temos, porém, maneira de apurar se o primeiro monumento elíptico englobava
tribunas perfeitamente curvas ou, então, se compunha por partes rectilíneas ajustadas,
o que daria um contorno poligonal.

A relação dos dois eixos da arena elíptica, aquela que define a sua forma concreta, é,
em média, igual a 5/3, se nos ativermos às conclusões do estudo minucioso do conjunto
dos anfiteatros romanos, preferência que não foi, decerto, fortuita. Pode-se demonstrar
que é a aplicação matemática na forma da elipse da relação ideal dos lados do recinto
rectangular destinado aos munera, conforme preconizou Vitrúvio (De arch. 5.1): este
afirmou que não se devia conceber a praça romana como a ágora grega, já que «pelos
nossos antepassados, o costume foi transmitido no sentido de que os combates de
gladiadores se travem na praça pública»; linhas à frente, ele recomenda que a relação
espacial seria de 3/2.

A concepção do spectacula fora dos limites do Forum permitia dotá-lo de uma cavea
(anel concâvo das bancadas) com grande amplitude, o que bebeu inspiração directa da
do teatro, um edifício, como dissemos, de origem grega, que havia muito se revelara
eficaz no que respeita ao princípio da repartição e da distribuição dos lugares sentados,
acolhendo elevado número de espectadores.

O monumento de Pompeia foi provavelmente o primeiro anfiteatro implantado à parte


de um forum construído em pedra: as suas peculiares características arquitectónicas
provam, de facto, que ele ocupa uma posição singular no quadro da evolução geral
deste tipo de edifício. A sua planta mostra que o envasamento do monumento não é
elíptico, contrariamente ao da cavea; esta disparidade não se assinala em qualquer
outro exemplo. A heterogeneidade da sua concepção é surpreendente, dado que nada a
justifica a nível funcional: pelo contrário, o arquitecto até teria interesse em evitá-la. A
incongruência entre as duas partes constitutivas do edifício pauta-se pela sua
ilogicidade e levanta um problema, visto não dispormos de elementos que sirvam para

118
a justificar, tanto em termos de composição arquitectónica, como no plano técnico. A
única explicação minimamente satisfatória com que se pode avançar para esta
«esquisitice» consiste em presumir que o monumento conheceu duas fases distintas.

A forma do envasamento reproduz a de um monumento de tipo «arcaico», com os


seus pequenos lados rectilíneos e as extremidades semicirculares. Assim, parece ter-se
inspirado directamente no spectacula de madeira do Forum que, desde há muito, se
montava em Roma. Acontece que o edifício, erigido pela primeira vez sem ser no
Forum, podia comportar uma cavea de grande largura e construído com materiais
duráveis, uma vez que perdia o seu carácter temporário. Ele foi instalado numa posição
periférica, num ângulo do recinto e no interior da cidade (encostado a uma porção da
muralha circundante), demolindo-se para o efeito, um quarteirão de habitações.

A concepção do edifício, «rústica», traduz, em todos os aspectos, o espírito de uma


arquitectura militar, funcional e económica. A arena e a parcela inferior da cavea foram
cavadas directamente no solo, e a parte superior do monumento fez-se a partir da terra
removida aquando da escavação, mantendo-se in situ através de um muro de contenção
periférico munido de contrafortes. Estes encontravam-se unidos por meio de arcos e o
muro foi construído com aparelhamento reticulado de pedras pequenas (opus
reticulatum). A solução baseou-se nas estruturas de suporte que já haviam sido
inventadas, como as visíveis, por exemplo, no Templo de Fortuna, em Praeneste (actual
Palestrina). Conferiu-se uma inclinação bastante reduzida às bancadas, a fim de evitar
uma fachada de grande altura e, ao mesmo tempo, para simplificar os problemas do
escoramento do entulho acumulado. Pelas escadas exteriores, muito simples, o público
podia aceder a um amplo terraço periférico, de onde penetrava na cavea. Se
reconstituirmos o contorno da arena deste edifício, salta à vista as semelhanças com o
que se instalava no Forum Romanum: não só tem a mesma forma, mas também
idênticas dimernsões que em Roma. Assim, e citando J.-C. Golvin, «o projecto de
Pompeia inspirou-se visivelmente numa solução arquitectónica afinada na capital, o
que não é nada surpreendente»331.

Seria necessário proceder a uma sondagem bem exaustiva no anfiteatro de Pompeia


para se acharem vestígios de uma arena mais antiga e, desta maneira, obter a prova que
houve uma primeira fase construtiva. O aparelhamente pétreo do muro periférico da
cavea que actualmente se observa difere do que se encontra no envasamento, o que
parece confirmar que a primeira foi realizada à parte. Terá sido, portanto, numa
segunda etapa que os arquitectos criaram no interior do vasto envasamento uma cavea
elíptica, que inicialmente não estava prevista e o novo modelo só pode haver procedido
331 L’Amphithéâtre romain et les jeux du cirque…, p. 25.

119
da Urbs. De acordo com esta hipótese interpretativa, a invenção da forma elíptica
ocorreu antes de 70 a. C., já que a inscrição-dedicatória de Pompeia (descoberta por
cima da grande entrada-oeste) diz respeito à cavea elíptica e não ao envasamento e à
arena, mais antigos. É, então, de supor que a forma elíptica não existiria antes de 80 a.
C. (ano em que se fundou a colónia pompeiana), de outro modo os construtores do
anfiteatro de imediato a adoptariam.

Posto isto, as primeiras obras edificatórias do monumento foram posteriores a 80


antes da nossa era, e as segundas datando de 70 a. C. Consequentemente, o espaço
cronológico cifra-se em cerca de dez anos. Os arquitectos terão mesmo modificado o
seu programa conceptual no decurso da construção. Só assim é possível compreender o
aspecto compósito do anfiteatro pompeiano. O seu envasamento mostra as
características de um spectacula de tipo arcaico, e a sua cavea, a nova forma inventada.
Esta não foi difícil de inserir, bastanto somente uma simples escavação e redisposição.
O aspecto discordante do monumento é único porque testemunha o momento que
marcou a transição entre a forma antiga e a forma nova do anfiteatro. Isto explica
igualmente que nenhum outro anfiteatro ulterior possua afinidades com o de Pompeia,
pelo menos no estado actual dos conhecimentos das pesquisas arqueológicas.

Todos os demais anfiteatros republicanos conhecidos, ao redor de uma vintena, têm,


com efeito, uma forma elíptica e nenhum, um envasamento comparável ao de Pompeia,
daí que tenham sido edificados mais tarde. O envasamento do anfiteatro pompeiano é,
além disso, o único a perpetuar a forma do spectacula arcaico, uma vez que o modelo
de madeira em que se baseou não nos deixou vestígios materiais. Não admira, pois, que
sob este ponto de vista, este edifício se revista de excepcional interesse. Ele atesta que o
anfiteatro elíptico em, pedra e com grande capacidade para acolhimento do público se
inventou a partir de 70 a. C. Este género de monumento, de aspecto utilitário, não era
ainda encarado por Vitrúvio como um edifício digno de comentários. Apesar de o
referir no seu tratado sob a denominação inovadora de amphitheatrum, ele não
discorreu sobre o mesmo, ao contrário do teatro, sobre o qual dedicou uma série de
linhas.

Apesar da «rusticidade» do anfiteatro de Pompeia, a sua concepção não é desprovida


de qualidade. O podium apresentava-se claramente separado do resto da cavea por
meio de um balteus 332
(parapeito/barreira guarnecido por uma cornija que servia para
proteger os espectadores sentados nas primeiras filas das bancadas) e possuía um
modo de distribuição próprio, a partir de um ambulacro situado sob as bancadas e
dividido em quatro partes, que serviam também a zona inferior da cavea. A maioria dos
332 Vocábulo que também designa o cinturão usado pelos gladiadores.

120
degraus localizados no cimo do edifício não era de pedra; talvez consistissem em
degraus de madeira instalados nos taludes.

Mesmo no topo da cavea encontravam-se galerias às quais se acedia pelo terraço do


envasamento, lembrando os maeniana superiora do Forum a que se reporta Vitrúvio,
entre outros, e que se implantaram em Roma assim como nas outras cidades de Itália.
Isto significa igualmente um sinal de arcaísmo: nenhum dos anfiteatros conhecidos e
suficientemente bem conservados mostra, tanto quanto julgamos, tal característica.

***

Em 58 a. C., Emílio Escauro, agindo na sua capacidade de edil, mandou construir


bancadas com lugares sentados destinados a acolher 80.000 espectadores para os ludi,
e, a partir de 55 a. C., Roma veio a ter o seu primeiro teatro de pedra. Nesse ano, o
famoso Pompeio Magno decidiu construir um enorme complexo teatral enquanto parte
do santuário do Templo consagrado a Venus Victrix (local religioso que nenhum dos
seus rivais mais invejosos teria a veleidade de deitar abaixo) 333
, justificando uma tal
ameaça para a a segurança pública com o fervor piedoso 334
.

A proibição de lugares sentados num teatro permanente dentro dos limites da Urbs
também deve ter sido extensiva aos anfiteatros, principalmente por causa da volátil
ambiência política dos munera durante os derradeiros tempos da República. Mas é
provável que a alternativa se revelasse mais atractiva: os políticos podiam estar
desejosos de explorar o interesse da multidão pelos combates de gladiadores, numa
base mais frequente e variegada, mandando erigir só arenas temporárias de madeira.
Apesar de evitarem uma estrutura permanente, os editores conseguiam impressionar o
público com inovadoras e vistosas estruturas, mesmo que efémeras.

É precisamente neste sentido que urge compreender a obra erguida por C. Escribónio
Curião. Este, em 52 a. C., talvez prevendo a sua candidatura à edilidade, ordenou que se
construíssem dois grandes teatros de madeira assentes em eixos giratórios, que podiam
ficar de «costas» voltadas um para o outro. Como entretenimento matinal havia
actuações teatrais e, depois do meio-dia, enquanto os espectadores permaneciam nos
seus lugares, ambos os teatros iam rodando até ficarem frente-a-frente, formando o

333 Cícero, De officiis, 2, 57; Idem, Pro Sestio, 116.

334 Aulo Gélio, Noctes Atticae, 10.1.7. O teatro de Pompeio consistiria no amplo e elaborado pórtico de um templo
relativamente pequeno.

121
recinto um círculo praticamente perfeito, altura em que o público podia assistir a um
munus gladiatório; assim, a combinação de um teatro de cada lado criava, literalmente,
um amphiteatrum, ou seja, um «teatro em ambos os lados» 335
. Independentemente do
grau de historicidade que o episódio narrado por Plínio encerra, o certo é que o relato
sugere que, quando se apresentavam jogos para as massas, era habitual mostrar
novidades 336.

Obras realizadas por Júlio César

Após o referido incêndio que devastou o Forum Romanum em 52 a. C., César mandou
realizar grandes obras no local: no lado norte, demoliu o Comitium para dar início à
construção de uma grande cúria (Curia Iulia); no lado sul, fez substituir a Basílica
Semprónia por um novo edifício, com o seu nome, a Basilica Iulia, mas estes trabalhos
ficaram inacabados com a morte do dictator em 44 a. C. Mais tarde vieram a ser
retomados e concluídos por Augusto, seu filho adoptivo.

Por seu turno, Júlio César erigiu no Forum Romanum um edifício para espectáculos
em madeira, entre outros monumentos e manifestações destinadas à celebração do seu
quádruplo triunfo (46 a. C.). Suetónio dá-nos conta disto (Divus Iulius, 39.2):

«Ele ofereceu espectáculos de diferentes géneros: um combate de gladiadores, representações


teatrais em todos os bairros da cidade e mais ainda, por actores falando todas as línguas, bem
como jogos de circo, lutas de atletas e uma naumaquia. Na pugna gladiatória apresentada no
Forum, tomaram parte Furius Leptinus, pertencente a uma família pretoriana, e Q. Calpenus,
antigo senador e advogado.»

O monumento erguido no Forum é também evocado por Díon Cássio (Hist. rom.
43.22.3):

«Ele construiu uma espécie de kynegetikon theatron em madeira, a que se chamou anfiteatro
por ter lugares sentados a toda a volta, não havendo uma plataforma para o palco».

Tratava-se, pois, de uma estrutura temporária. Embora G. Ville tenha considerado


este «teatro cinegético» idêntico a outros que existiram no Forum, o certo é que Dião

335 Plínio-o-Velho, Nat. Hist. 36.24.117; Plutarco, Cato Min. 45.

336 Parece-nos uma falsa etimologia, além de que convém lembrar que Plínio estava a escrever muito depois do facto
narrado. Não subistem provas documentadas que se usasse correntemente a palavra amphitheatrum antes do século II
da nossa era. Atesta-se, pelo contrário, o emprego frequente do termo spectacula até à época imperial e, a seguir,
amphitheatra, antes da aplicação deste vocábulo no singular entrar em voga. Veja-se R. Étienne, «La naissance de
l’amphithéâtre, le mot et la chose», REL 43 (1966), pp. 213-220. J.-C. Golvin mostra-se inteiramente convencido sobre a
historicidade da estrutura de Curião: L’Amphithéâtre romain. Essai…, I, pp. 30-32, est. 4.

122
distingue inequivocamente o kynegetikon theatron daquilo que César edificou no
Forum 337
. O teatro de caça, tal como descreve DíonDião, parece indicar que César
estaria familiarizado com o tipo de edifício do anfiteatro. Os primeiros passos rumo ao
futuro modelo do Anfiteatro Flávio materializaram-se graças aos progressos
observáveis nas obras arquitectónicas romanas, incluindo o desenvolvimento do betão
e um género de teatro com características tipicamente romanas. As galerias
subterrâneas, descobertas intactas sob o lajedo do Forum, foram identificadas como
vestígios de tal monumento338: constituem os únicos indícios materiais que se
conservaram, já que os elementos de madeira obviamente não sobreviveram.

O edifício de César, não obstante o seu carácter efémero, tinha características notáveis
339
: foi o primeiro, que se saiba, a estar dotado de um subsolo aperfeiçoado que permitia
ao espectáculo funcionar continuamente, oferecendo assim novas possibilidades de
mise-en-scène. A organização do subsolo (hypogeum) era engenhosa: possuía uma
longa galeria de serventia mediana, acessível mediante um alçapão com 3, 50 m de
profundidade, situada diante da tribuna dos Rostra (a oeste). Ela seguia no sentido
longitudinal e tinha ramificações subsidiárias, três curtas galerias transversais, mas,
num determinado sítio, via-se bruscamente interrompida para evitar atingir e danificar
o grande esgoto da Urbs (Cloaca Maxima), que atravessava a praça de um lado ao
outro. A quarta galeria transversal, independente das outras três, dispunha de um
alçapão particular. Refira-se que as galerias secundárias foram dispostas regularmente
a uma quinzena de metros de distância.

Este sistema de circulação subterrâneo tinha doze alçapões de saída com 1, 20 m de


lado, localizados de maneira a servirem o conjunto da arena. Em cada um deles havia
uma fossa quadrangular medindo 70 cm de profundidade, com um orifício central para
a evacuação das águas pluviais. No fundo de cada fossa encaixava-se a estrutura em
madeira de um monta-cargas, cuja parte superior era movimentada por uma corda
puxada por um cabrestante340 situado no centro de um dos pequenos compartimentos
de serviço adjacentes. Estes «ascensores» funcionariam como meio para trazer à
superfície da arena gladiadores e animais. Deste modo, César conseguia evitar o
perigoso risco de ter os participantes à espera de entrar em cena fora da área do edifício

337 G. Ville, La gladiature…, p. 70.

338 G. Carettoni, «Le gallerie ipogee del foro i ludi gladiatori forensi», BCAR 76 (1956-1958), pp. 23-44; C. F. Giuliani e
P. Verduchi, L’area centrale del foro romano, Florença, L. S. Olschki, 1987, pp. 52-66; F. Coarelli, Il Foro, II, pp. 211-
213.

339 J.-C. Golvin, L’Amphithéâtre romain et les jeux du cirque…, pp. 34-35.

340 A força motriz consistia em quatro homens movendo o cabrestante.

123
no Forum . O grande interesse que apresenta também o bom estado de conservação
341

deste subsolo é o de haver cristalizado certas características dos edifícios de madeira


construídos no Forum. A posição ocupada pelos alçapões permite, efectivamente,
definir a extensão global da arena (cerca de 48 x 18 m), mas queda a incerteza a última
seria «arcaica» ou «elíptica». Todavia, há razões para acreditar que a primeira
polivalente fosse elíptica, como todas as subsequentes.

Plínio-o-Velho conta igualmente que os espectadores estavam protegidos por um


toldo/velum, «mais admirável ainda que o próprio espectáculo». Isto dever-se-ia às
suas qualidades estéticas (cores, motivos decorativos, douraduras) ou às suas
dimensões, caso o velum cobrisse «todo o Forum», o que se afigura exagerado, dado
que seria difícil fazer algo assim sob o ponto de vista técnico. Mais vale pensar que o
velum se estenderia sobretudo por cima do sítio do monumento para espectáculos.

César também fez construir um estádio de madeira e apresentou uma naumachia


(num anexo a este capítulo, teceremos comentários sobre este género de espectáculo
aquático) no Campo de Marte, além de utilizar o Circo Máximo, destinado às corridas
de cavalos, como palco de numerosos combates gladiatórios.

Em circunstâncias excepcionais, empregavam-se diferentes tipos de edifícios para


espectáculos, mas em 46 a. C., foi a primeira vez que as venationes e os munera se
ofereceram na mesma arena. Ora a diferença de escala entre o espectáculo que se podia
ver na arena e o apresentado no Circo Máximo é, desde logo, evidente. Estabeleceu-se
um forte laço entre as características de cada tipo de edifício e o género de espectáculo
que em cada um deles podia ter lugar. As venationes mostradas no «anfiteatro» de
César não podiam assumir a amplitude do que tinha lugar no Circo Máximo, facto que,
aliás, as fontes antigas evocam. Na arena do Forum Romanum, o público observava os
animais mais de perto do que no recinto circense, e muito melhor igualmente as
técnicas dos venatores, mas, por outro lado, não era possível exibir na arena, como
aconteceu no circo, um grande número de elefantes.

Como o «anfiteatro» fora criado para os munera, as venationes, que apareceram no


circo, tiveram de se adaptar à estrutura e dimensões do primeiro. Nos tempos
subsequentes, as venationes viram-se anexadas aos munera de maneira definitiva. As
dimensões relativamente reduzidas da arena, comparativamente, à enorme pista do
circo, implicaram claras repercussões, tanto a nível quantitativo como qualitativo. Não
só se podiam organizar na arena venationes tão grandes como no circo, mas também
era preciso concebê-las de outra forma. Neste sentido, a invenção do hypogeum

341 R. Dunkle, Gladiators…, p. 250.

124
revestiu-se de particular interesse. Oferecia a possibilidade de renovar constantemente
os animais, não obstante a pequenez da arena, e de os mostrar em condições superiores
de observação para os espectadores do que no Circo Máximo. Assim, o que o
espectáculo perdia em efeito de massa, ganhava em qualidade e variedade.

Em suma, o «anfiteatro» de Júlio César não figura como monumento secundário na


evolução geral deste tipo de edifício: pelo contrário, marca uma etapa importante na
sua concepção arquitectónica. Restava só adaptar a invenção do subsolo aos
verdadeiros anfiteatros, o que sucederia pouco tempo depois. Que saibamos, nenhum
anfiteatro republicano dispôs de um hypogeum. É provável que, tal como a forma
elíptica, tal invenção tenha ocorrido em Roma.

A passagem da República para o Império

A substituição do governo republicano pelo regime imperial surtiu um efeito profundo


na organização e oferta dos munera. As guerras civis que eclodiram após o assassinato
de César conduziram ao confronto decisivo entre Octávio, filho adoptivo e herdeiro de
César, e Marco António, que se aliara à sua amante, a célebre Cleópatra. Travou-se,
então, em 31 antes da nossa era, uma batalha naval ao largo da faixa litorânea da Grécia
continental, em Actium, em que Octávio e o seu conselheiro militar, Agripa, derrotaram
estrondosamente as forças coligadas de Marco António e da rainha do Egipto. Daí
resultou que Octávio tenha ficado como o único governante do mundo romano. Ele
optou por dissimular a sua governação absoluta sob a capa de um regime republicano,
fingindo ser apenas o Princeps, «o homem principal» do Estado.

Após a contenda de Actium, ocorreu outro facto que pode ter vindo a consolidar este
movimento: sabe-se que Octávio, vitorioso, se achou à cabeça de um número tão
pletórico de legiões que teve de licenciar algumas delas. Para vários destes soldados
houve a possibilidade de se estabelecerem pacificamente nas novas colónias em
territórios conquistados, mas para outros, demasiado jovens para usufruírem da
generosidade de Augusto ou, então, desejando continuar a viver do ofício das armas sob
uma outra forma, a gladiatura voluntária constituiria, obviamente, um exutório quase
perfeito. A assinatura do compromisso do auctoratus representou, para diversos destes
homens, já com formação nas armas, uma espécie de prolongamento natural da sua
vida militar e dos perigos a ela inerentes.

125
Ademais, com a Pax Romana e o regresso da paz civil imposta por Augusto, o público
passou a revelar-se ainda mais exigente em matéria de combates viris. Mais do que
nunca, o gladiador deveria incarnar os fantasmas de uma sociedade em que os cidadãos
se sentiam cada vez menos constrangidos a participar em guerras e a prestar o serviço
militar. Por outro lado, no fim da República e no começo do Império, citou-se mais
como exemplo a coragem evidenciada pelos gladiadores, haja em vista Cícero, que
evocou, em várias ocasiões, as qualidades «pedagógicas» da gladiatura:

«Ora se de tal é capaz o samnis, homem desprezível, digno dessa vida e dessa condição social, o
homem nascido para a glória terá na sua alma uma parte tão fraca que não a possa endurecer
com uma prática metódica? O espectáculo dos gladiadores parece muitas vezes cruel e
desumano para alguns, o que talvez seja verdade, assim como o conhecemos hoje: mas quando
eram criminosos que cruzavam o ferro, mesmo que haja muitos outros para os ouvidos, para os
olhos, pelo menos, nenhum método de aprendizagem pode ser mais eficaz contra a dor e a
morte» (Tusculanae Disputationes, 2.41)342.

Neste trecho, Cícero confirma nitidamente a ideia de uma gladiatura que, durante
largo tempo, se fundamentou na coacção («quando eram criminosos»), no seu tempo,
evoluiu a favor do voluntariado: é sem dúvida neste sentido que devemos interpretar a
frase «assim como o conhecemos hoje», quando o autor se refere ao espectáculo
«cruel». Com efeito, não devia existir qualquer piedade ou compaixão, ao contemplar-
se a morte de criminosos condenados ou de escravos, enquanto a morte de cidadãos
livres era algo que podia chocar alguns romanos. Seja como for, o gladiador constituía o
fruto de um treino rigoroso que o conduzia à superação de obstáculos e contrariedades
e, acima de tudo, à sua coragem face à morte. Um século mais tarde, Séneca, na
qualidade de observador atento da gladiatura e dos munera, retomou esta ideia em
várias ocasiões:

«Vi um gladiador extremamente corajoso. Ele estava ferido mas continuava a combater,
permanecendo firmemente de pé diante do seu adversário […]. Noutra ocasião, observei outro
ainda mais valente, que, depois de ser ferido, se virou para a multidão, que pedia o perdão para
ele por causa da sua bravura, fazendo sinal com o braço, indicando que nada havia feito [digno
de valor] e não queria ser recomendado por ninguém».

O período entre Júlio César e Augusto significou, inquestionavelmente, uma transição


que, em muitos aspectos, se revela, no entender de E. Teyssier, comparável com o
quarto de século da Revolução Francesa e do Primeiro Império 343. O mundo não mudou
drasticamente em 1789, mas o facto é que o movimento revolucionário marcou a
passagem da Idade Moderna para a Contemporânea na Europa; quanto ao assassinato

342Samnis, spurcus homo, vita illa dignus locoque; vir natus ad gloriam ullam partem animi tam mollem habebit,
quam non meditatione et ratione corroboret? Crudele gladiatorum spectaculum et inhumanum non nullis viderit
solet, et haud scio na ita sit, ut nunc fit; cum vero sontes ferro depugnabant, auribus fortasse multae, oculis quidem
nulla poterat esse fortior contra dolorem et morten disciplina. A este respeito, veja-se Magnus Wistrand,
Entertainment and Violence in Ancient Rome: The Attitudes of Roman Writers of the First Century AD, Gotemburgo,
1992, pp. 77-78; D. Kyle, Spectacles of Death in Ancient Rome…, p. 89.

343 E. Teyssier, La mort en face…, p. 41.

126
de César ou o Principado de Augusto, não resta a menor dúvida que foram etapas
relevantes no seio de uma profunda transformação da sociedade romana. A atitude em
relação à coragem e ao valor militar fez parte dessa evolução.

A virtus (sobre a qual nos pronunciaremos no capítulo V) conservava ainda um


prestígio e uma importâncias inegáveis no tempo augustano, como o atestam as
numerosas estátuas de civis envergando couraças, a proliferação de recintos castrenses
e de muitos frisos compostos por representações de armas a ornamentarem túmulos.
Contudo, num exame atento, não é raro deparar com armas tipicamente gladiatórias
nesses motivos decorativos e simbólicos. Também podemos avançar com a sugestão de
que os gladiadores teriam herdado uma parcela da virtus militar desde o período
cesariano. É certo que, neste momento histórico, os soldados de Roma serviam menos a
República do que o seu líder.

Com a pax augustana, os legionários passaram a ficar aboletados numa série de bases
permanentes (fortalezas e fortins) situadas junto às fronteiras do Império e deixaram
de estar sob o olhar da população civil romana. Mas esta, em contrapartida, podia
admirar, à sua vontade, o heroísmo dos profissionais do combate-espectáculo. Esta
evolução teve como consequência lógica os combates tornarem-se menos sanguinários
do que os travados no tempo de Espártaco. Porém, as razões para esta mudança não
tinham que ver com preocupações humanitárias. A primeira foi de ordem económica:
um gladiador bem adestrado constituía um investimento num capital de risco; o custo
da sua vida era bastante superior ao de um escravo adquirido com pouca despesa entre
os milhares de prisioneiros de guerra que se conduziram para Itália a seguir às
campanhas militares vitoriosas.

O aumento do preço pela morte de um gladiador só podia exercer uma influência


moderadora sobre a decisão do editor, no momento altura de mandar executar este ou
aquele combatente; a outra razão que levou à diminuição do número de mortes na
arena provinha da necessidade de não exaurir demasiado depressa as vocações. Ao
atrair mais homens livres, a perspectiva de combates que não eram mais
sistematicamente fatais para o vencido, permitia também aos gladiadores escravos
suportarem melhor a sua sorte. A esperança num desfecho favorável, mediante a
obtenção da rudis libertadora, significava aquilo que E. Teyssier afirmar como uma
saída «por cima»344.

A gladiatura tornou-se indiscutivelmente menos «sacrificial», na medida em que


passou a ser mais «desportiva» e espectacular; com efeito, este rito de cunho

344 Ibidem, pp. 41-42.

127
aristocrático, inicialmente privado, sofreria uma metamorfose ao longo dos últimos
tempos da República e do início do Principado. O seu significado religioso e funerário,
o eco ritual e a sua lógica simples, ficariam impressos na imagem da arena. No entanto,
no seu contraste com a nova realidade de Roma, o munus foi atraindo novas acepções
semânticas e diferentes objectivos. Neste sentido, foi crucial a passagem da esfera
privada para a pública. Assim, o ritual converteu-se em espectáculo 345. Logo, desde os
primeiros combates organizados em público, se pôde ver o impacto produzido nos
observadores. À medida que a sua popularidade cresceu avassaladoramente, a razão
funerária do munus foi-se diluindo, e o evento começou a encarar-se como um presente
à comunidade, o mais dispendioso e valorizado pelo povo 346.

A nova gladiatura proporcionava aos escravos mais possibilidades de ganharem a


liberdade do que o recurso à força ou à fuga. Depois do exemplo fatídico de Espártaco,
esta evolução foi a causa principal para o desaparecimento das revoltas gladiatórias de
grande amplitude. Resta determinar quem seriam estes novos gladiadores: se, por um
lado, eles são relativamente bem conhecidos através das fontes iconográficas a partir
dos primeiros principes Júlio-Cláudios (embora as representações imagéticas sejam
ainda bastante raras até meados do século I d. C.), por outro, sabemos que o essencial
das mudanças teve lugar ao longo deste período. Mas, felizmente para nós, estudiosos
do passado, foi neste período que apareceram também as primeiras figurações de
gladiadores: estas, tanto pela sua natureza como pela qualidade do suporte em que
foram executadas, constituem o sinal tangível da influência helénica sobre um mundo
romano no qual as imagens foram, durante considerável espaço de tempo, raras.
Vejamos três casos em pormenor.

A descoberta de baixos-relevos na antiga Lucus Feroniae em 2007: um


importante testemunho plástico sobre a gladiatura no final da República

No dia 24 de Janeiro de 2007, em Itália, o Ministério para os Bens e para as


Actividades Culturais anunciou o êxito de uma operação policial (cuja investigação
principiara três anos antes) realizada num sítio que outrora correspondia à localidade

345 Sobre a contiguidade e a diferença entre rito e espectáculo nas civilizações antigas, consulte-se D. Lanza, «Lo
spettacolo», in M. Vegetti (ed.), Oralità, scrittura, spettacolo, Turim, 1983, p. 107ss; para um panorama abrangente, e
com um enfoque antropológico, remetemos para a introdução de J. J. McAloon na obra colectiva Rite, Drama, Festival,
Spectacle: Rehersals Towards a Theory of Cultural Performance, Filadélfia, 1984, pp. 1-15.

346 Para uma abordagem dos significados do termo munus e da sua evolução, cf. G. Ville, La gladiature, pp. 72-77.
Inicialmente, o seu sentido predominante era o de um encargo e oferta. Assim, resulta sintomático que tenha acabado
por se tornar sinónimo de munus gladiatorium, misto de presente e obrigação. Sobre os gastos que se moviam na
organização dos munera, veja-se a monografia de M. A. Cavallaro, Spese e Spettacoli. Aspetti economi-strutturali degli
spettacoli nella Roma giulio-claudia, Bona, 1984.

128
de Lucus Feroniae, perto da actual cidade de Fiano Romano, a cerca de 40 km a norte
de Roma, que permitiu recuperar um significativo conjunto de relevos decorativos
funerários347. Na realidade, estes painéis ha iam sido descobertos cerca de 22 anos antes
por um trabalhador da rede viária; este, em vez de comunicar o achado, arranjou três
ou quatro cúmplices, que o ajudaram a transportar as peças para uma propriedade sua
e, pouco depois, para um terreno vizinho, onde as enterraram sob uma fina camada de
terra. As forças policiais, avisadas do sucedido, já estavam a vigiar esses indivíduos que
procuravam um comprador no estrangeiro para obter um farto lucro.

No momento em que as autoridades intervieram, os blocos esculpidos estariam, de


acordo com as notícias veiculadas pelos meios de comunicação italianos, prestes a
partir rumo à Suíça, com vista a serem vendidos, tendo como intermediário um japonês
a diferentes coleccionadores estrangeiros. O certo é que se exumaram os ditos painéis e
se detiveram os homens envolvidos neste esquema ilegal. Foi, pois, um milagre que
estas peças tenham logrado escapar ao mercado paralelo dos objectos arqueológicos.
Além dos doze blocos de mármore, a polícia italiana encontrou numerosos elementos
arquitectónicos, fragmentos de inscrições e a parte inferior da estátua de um togatus.
Na abalizada opinião de Anna Maria Moretti, superintendente da arqueologia no Norte
de Roma, este conjunto de elementos terá pertencido a um importante mausoléu dos
últimos tempos da República348, que albergou os restos mortais de alguém que,
possivelmente, patrocinou combates gladiatórios no anfiteatro local349.

Contendo dois registos de blocos sobrepostos, as faces exteriores foram decoradas com
relevos de elevada qualidade. Formavam, originariamente, um friso extraordinário com
mais de 9 m de comprimento por 1,60 m de altura. Embora os blocos do primeiro nível
se tenham preservado, do registo superior só se recuperaram três blocos, não se
encontrando os remanescentes outros cinco que outrora também faziam parte do
monumento; lamentavelmente, as peças em falta continham a representação dos torsos
dos gladiadores. O lado exterior direito do mausoléu é o que melhor se conservou, nele

347 Sarah Yeomans, «Victorious Gladiators: sculptures from a first century B. C. tomb escape the clutches of looters»,
Archaeology, 60.6 (September/October 2007), pp. 9-10, 68. Habitualmente, quando os historiadores se referem estes
relevos dizem que foram encontrados em Fiano Romano. No entanto, preferimos designá-los como os painéis de Lucus
Feroniae, já que procedem de um túmulo localizado na zona onde outrora existia essa cidade.

348 Ibidem, p. 6: Moretti sugeriu que a riqueza e a sofisticação decorativa do túmulo deveriam honrar um rico e
influente membro da elite romana. Os relevos talvez indiquem que o proprietário da tumba fosse um organizador de
jogos públicos ou, então, podem evocar os combates funerários travados em memória do defunto. Seja como for, a alta
qualidade plástica e a natureza das imagens escultóricas destinaram-se a ser uma espécie de «testamento» do prestígio
político e do poder económico do falecido. Juntamente com os painéis, recuperou-se também uma inscrição
fragmentária que parece mostrar-nos que o túmulo pertenceria possivelmente a um tal «Rius, filho de Marcus» (Rius
Marci filius), que certamente desejava ser lembrado pela sua generosidade como editor de munera. Veja-se, também,
Dalu Jones, «Extraordinary Gladiator Reliefs found by Italian Police near Rome», Minerva 18.3 (May-June 2007), pp.
3-4.

349 Com efeito, descobriu-se um anfiteatro dentro da área ocupada pelo centro urbano de Lucus Feroniae: cf. F.
Coarelli, «Lucus Feroniae», Studi Classici e Orientali 25 (1975), pp. 164-166.

129
se contemplando dois pares de gladiadores quase completos, acompanhados por um
músico tocando trompa.

O primeiro par que vamos analisar consiste num combatente que acabou de derrotar o
adversário, tendo este colocado um joelho em terra. O gladiador vitorioso exibe um
escudo bastante oblongo; a sua mão direita, que devia brandir uma arma, não chegou
até nós (Fig. ). No entanto, é possível afirmar que ela corresponderia a um gládio de
lâmina curva, uma sica. Com efeito, duas grandes ocreae que chegam acima dos joelhos
permitem que identifiquemos este gladiador como um thraex 350. Esta identificação vê-
se, aliás, confirmada pela forma do escudo que, a despeito de revelar um tamanho
relativamente considerável, não atinge as dimensões de um scutum, pelo que estamos
diante de uma parma. Como o topo da composição se encontra danificado, não é
possível observarmos a decoração da cimeira do elmo. Ainda assim, tudo leva a crer que
a cimeira estaria ornamentada com um protomo de grifo, caraterístico dos cascos dos
thraeces. Quanto ao elmo do seu oponente, tem uma cimeira e está aparentado com o
modelo «Ático», ao qual anteriormente se fez referência. Provido de duas grandes
grevas, idênticas às do oponente, o gladiador ajoelhado distingue-se do outro por
ostentar um pequeno escudo e um gládio com lâmina recta. A própria postura de
ambos os combatentes indica uma evolução digna de interesse na maneira de os
descrever em termos plásticos: aqui, o artista, ou mais provavelmente o encomendador,
optou por ilustrar um outro momento significativo – os dois homens já não estão a
lutar, uma vez que o vencido acabou de colocar um joelho no solo; por cima dele, o
vencedor dirige o olhar para trás.

Esta imagem é, quiçá, a mais antiga que chegou até nós mostrando a «submissão»
(decumbere ou succumbere), bem como o pedido de perdão ou misericórdia de um
gladiador. Por esta razão, esta cena manifesta várias mudanças fundamentais. A partir
da altura em que se elaboraram tais relevos, a morte não ocorria sistematicamente na
arena, já que havia uma distinção clara entre o facto de se ser derrotado e o de perecer.
Do mesmo modo, o aparente desdém ou sobranceria com que o vencedor encara um
vencido ainda armado prova também a existência de regras bem estabelecidas que
proibiam o último retomar o combate depois de haver admitido a sua derrota.

Por último, a atitude do gladiador vitorioso, que se vira para trás, sugere a expectativa
de uma resposta quanto à sorte que estaria reservada ao seu adversário. Aqui, uma vez
mais, este gesto atestar-se-ia durante largo tempo na iconografia gladiatória. De facto,
o sentido destes combates conheceu uma profunda mutação neste período: não se
tratava mais de derramar sangue em honra de um ilustre defunto, mas, acima de tudo,
350 M. Junkelmann, Gladiatoren: Das Spiel mit dem Tod…, p. 205, fig. 344.

130
o de se dar uma satisfação ao público, facultando-lhe a impressão, pelo menos, de
participar activamente na escolha entre a vida e a morte em relação ao vencido. É certo
que o gladiador vencedor deveria lançar o seu olhar para o editor do espectáculo. Mas o
editor organizava e apresentava estes combates mais para satisfazer a plebe do que
para homenagear um parente falecido. Seja como for, a representação da liça marca
aqui, pela primeira vez, o dramático momento em que o vencido retinha a respiração
enquanto a multidão manifestava ruidosamente a sua indulgência ou o condenava à
morte. Nos séculos seguintes, este tipo de cena ressurgiria abundantemente em todos
os géneros de suportes. Este relevo testemunha a passagem para uma gladiatura
profissional, em que o derrotado só perdia a vida se não cumprisse adequadamente o
que estava estipulado no contrato, que o obrigava a combater com honra e com todo o
empenho possível. Uma gladiatura profissional que se converteu numa actividade
gradualmente mais técnica.

Na mesma parcela escultórica, noutra cena, observam-se mais dois gladiadores que já
terminaram igualmente a sua pugna (fig. ); aparentemente trata-se de um par de galli;
esta proposta de identificação da armatura fundamenta-se nos escudos que ambos os
combatentes puseram de parte: estas peças do equipamento são idênticas uma à outra e
correspondem sem dúvida aos escudos celtas coetâneos da guerra das Gálias. Com
superfície plana e de formato oval, estão munidos de uma spina na sua face exterior. Os
cascos, igualmente semelhantes, distinguem-se do modelo utilizado pelo outro par de
gladiadores. Os elmos destes galli diferem do tipo ático por não possuírem cimeiras. A
atribuição de um tipo de casco a um determinado gladiador contribui para o diferenciar
claramente do seu adversário. O primeiro par de combatentes que descrevemos filia-se
na tradição helénica, ao passo que os dois cascos dos gladiadores galli se aproximam
dos modelos célticos ocidentais do período La Tène final (por volta de finais do século
II a. C.) 351.

Se o aspecto étnico assume uma importância concreta para a identificação dos elmos,
não excluamos a hipótese destas variantes também poderem corresponder a técnicas
distintas de combate, induzidas pelas demais peças do equipamento. Por fim, as
espadas, ambas ostentadas pelo vencedor, possuem lâminas largas e são relativamente
compridas; no entanto, elas não são, verdadeiramente, espadas célticas: com efeito, a
guarda e o pomo mostram mais afinidades com o gládio de origem hispânica que, no
fim da República, foram utilizados pelos legionários romanos. Além disso, os dois
homens, apenas vestindo um subligaculum, não estão munidos das bainhas metálicas
que habitualmente acompanhavam as longas espadas celtas. Assim, estes combatentes

351 M. Feugère, Casques antiques…, pp. 66-68.

131
ilustram, à sua maneira, a evolução da própria gladiatura. Esta, aparentemente, ainda
punha «em cena» armaturae étnicas, mas nestas já introduzindo, progressivamente,
alterações nos seus elementos tradicionais, decerto para as tornar mais eficazes.

Na representação destes galli, observa-se outro elemento inovador, a presença de


protecções para o braço: o gladiador derrotado enverga, tal como sucede no referido
relevo de Bolonha, uma manica no braço direito que sobe desde a mão até ao cotovelo.
Este braçal, ausente na panóplia dos guerreiros celtas, foi uma novidade gladiatória
criada no período augustano: destinada a proteger o braço armado do gladiador, esta
protecção permitia evitar certos ferimentos que forçassem a interromper o combate
demasiado cedo. Terá sido por este motivo que o emprego da manica se generalizou,
estendendo-se rapidamente a todos os os tipos de gladiadores.

O vencedor também está equipado com uma protecção de couro no braço esquerdo.
Ao contrário da que defende o braço direito, esta peça não é uma manica, pois que
apenas protege o punho esquerdo, possuindo um tamanho bastante reduzido. A
finalidade técnica desta protecção não era, pois, do mesmo género que a assinalável no
braço direito. Ao estar protegido pelo escudo, o braço esquerdo não se achava sujeito
aos mesmos riscos que o direito, exposto aos golpes directos do adversário. Este
elemento protector do lado esquerdo tinha, certamente, por finalidade permitir ao
punho apoiar-se, sem sofrer qualquer lesão, no rebordo interior do escudo, mesmo por
cima do manipulus: este, composto por uma barra metálica horizontal, observa-se bem
no escudo da esquerda do baixo-relevo, que mostra a sua face interna. Este pormenor,
raro, reveste-se igualmente digno de nota no que concerne à tecnica de construção dos
escudos: aparentemente, eles eram fabricados em madeira, tendo uma cercadura
metálica, a «orla». Esta prolongava-se no centro para formar o manipulus, ao mesmo
tempo que reforçava o escudo. Tal dispositivo, que permitia ao utilizador segurar o
escudo com a mão, situava-se acima de uma cavidade vazada na spina de madeira,
visível na face exterior.

Assim, estes gladiadores com armatura «gaulesa» representavam, sem dúvida, os


guerreiros celtas que durante largo tempo inquietaram muito Roma. Mas cabe
ressalvar que essa armatura obedecia mais a preocupações de ordem técnica do que à
vontade de «representar» de maneira precisa os inimigos definitivamente derrotados.
Se a panóplia sofreu mudanças, o mesmo se pode dizer quanto à forma de descrever
figurativamente os combates, que também evoluiu. Enquanto o relevo anteriormente
referido ilustra o instante em que o vencido acabou de reconhecer a sua derrota e
mantém ainda a arma na mão direita, a cena dos gauleses mostra uma situação

132
diferente: neste caso, o vencedor segura nas mãos tanto o seu gládio como o do
oponente derrotado.

Talvez para completar a primeira composição escultórica, o momento representado


anuncia o facto de o gladiador vencido estar prestes a ser morto. Sublinhou-se esta
altura trágica através do «olhar resignado e patético do condenado» 352. Ao
constatarmos a vertente psicológica que extravasa do baixo-relevo, podemos associá-lo
à grande tradição da escultura grega353. O olhar do gladiador, que parece entregar-se à
morte, contrasta violentamente com o tocador de trompa que se posiciona ao lado do
par de combatentes, rematando assim a primeira fase do momento. Pela sua presença
tão próxima dos gladiadores, este músico realça, pela primeira vez que se saiba, o papel
desempenhado pelos diferentes ministri que se encontravam na arena ao mesmo
tempo que os combatentes. Com as bochechas dilatadas, o músico faz ressoar o
instrumento de sopro, com toda a força, de maneira a enfatizar a acção fatídica que o
vencedor está prestes a concretizar.

Apesar de haver uma quebra entre os dois blocos pétreos que nos impede de visualizar
o gesto fatal, ainda conseguimos constatar que o vencido parece dobrar o braço direito
a fim de pôr a mão na lâmina adversa que lhe vai tirar a vida; longe de ser um
movimento de resistência, esta atitude mostra uma vontade resignada de ajudar a guiar
a arma do oponente ao sítio certo para assestar o golpe de misericórdia. Assim,
juntamente com a submissão anteriormente observada, este gesto da aceitação da
morte significa um outro instante bem forte da nova gladiatura a partir de finais da
época republicana: o escultor não representou aqui um escravo indigno da menor
piedade, mas, pelo contrário, atribuiu-lhe dignidade ao combatente que vai perecer, o
qual não apenas aceita o seu funesto destino, como também ajuda o próprio vencedor a
matá-lo. Esta atitude face à morte era o que os Romanos esperavam dos gladiadores,
que, entretanto, se converteram em autênticos profissionais da arena.

Se, por um lado, foram recuperados três blocos do registo inferior do monumento, por
outro, do registo superior apenas um terço chegou até nós. Do primeiro par de
combatentes que aí se vê, apenas sobreviveu a parte que vai dos pés à cintura dos
mesmos. Não obstante esta lacuna, é possível identificar estes gladiadores como
equites: facilmente concluimos que eles pertenciam a tal armatura por causa de ambos
estarem vestidos com a lorica squamata típica deste tipo de combatentes; esta espécie
de loriga composta de escamas metálicas derivou directamente da esfera militar.

352 E. Teyssier, La mort en face…, p. 46.

353 É possível que os artistas que esculpiram a composição fossem de origem grega.

133
Reencontramo-la noutros baixos-relevos coevos, como, por exemplo, o conservado em
em Munique, na Staatliche Antikensammlung und Glyptothek 354
(fig. ). A factura
desta obra escultórica patenteia afinidades formais com os relevos de Lucus Feroniae;
consequentemente, ela permite imaginar como seriam as parcelas que estão em falta no
monumento funerário que temos vindo a analisar. Os dois combatentes de Munique
utilizam elmos e estão armados com gládios muito parecidos aos dos gladiadores de
Lucus Feroniae. Além disso, em ambos os casos, o momento escolhido é o que
imediatamente precede a execução, que se sublinha por músicos tocando trompas.

Por fim, no relevo de Munique os gladiadores estão protegidos pelo mesmo género de
lorica squamata que se assinala na composição mutilada dos painéis de Lucus
Feroniae. A escultura bidimensional da Glyptotek apresenta, igualmente, escudos
redondos e planos, peças típicas do equipamento dos equites. Este tipo de gladiador, o
eques, que ainda não havíamos encontrado, já existiria provavelmente há várias
décadas na altura em que se executaram os baixos-relevos para o túmulo de Lucus
Feroniae. Como facilmente se infere pela sua denominação, o eques combatia a cavalo,
mas a maior parte das fontes iconográficas representa-o já na fase final da pugna, que
se desenrolava estando ele apeado. Embora este par de gladiadores se tenha preservado
de maneira assaz fragmentária, não resta a menor dúvida quanto à sua identificação:
com efeito, a couraça de escamas era envergada pelos equites nos derradeiros tempos
da República355.

Além dos exemplos dos relevos da Glyptotek de Munique e de Lucus Feroniae, há


outros testemunhos coevos que representam esta oposição entre dois gladiadores
idênticos, dotados de gládios e protegidos por uma lorica squamata e por um escudo
redondo e plano356. No painel de Lucus Feroniae, os dois gladiadores são captados no
calor da contenda; entre ambos vemos as pernas de um terceiro personagem, que traja
uma túnica e não é um combatente: só pode tratar-se de um árbitro a intervir no
confronto. Uma vez mais, este relevo apresenta uma novidade. Mesmo sendo as
representações de árbitros relativamente frequentes em cenas alusivas aos munera
produzidas na época imperial, da República apenas dispomos deste testemunho, o mais
antigo que atesta a presença de um árbitro nos combates. Assim, o facto de
observarmos esta figura no relevo indica-nos uma mutação na gladiatura.

354 T. Wiedemann, Emperors and Gladiators…, fig. 13.

355 Durante a época imperial, os equites perderam esta protecção, mas continuaram a distinguir-se dos demais
gladiadores, mediante o uso sistemático de uma túnica.

356 É o que acontece, por exemplo, com um fragmento escultórico conservado em Civitella San Paolo, nos Abruzzi, e
um relevo que se encontra na Ville Torloni, em Roma.

134
Mas a ideia em si mesma da arbitragem não era nova, já que se atestam estes
personagens na iconografia grega: no entanto, aqui, o árbitro/hellanodika 357
não
intervinha no desenrolar de duelos entre guerreiros, mas em competições envolvendo
pugilistas ou lutadores gregos; fossem lutadores, pugilistas ou pancraciastas, estes
combatentes de mãos nuas dos estádios (stadia) da Hélade já se defrontavam havia
séculos em eventos desportivos rituais e espectaculares. Consequentemente, a adopção
de árbitros na gladiatura, que terá ocorrido durante o período tardo-republicano
romano, serve como claro indicador da evolução desse fenómeno. Este, anteriormente
de carácter funerário e religioso, converteu-se num espectáculo desportivo com regras
definidas e aceites por todos os participantes.

Estes combates, que eram regidos por normas específicas, observam-se igualmente na
representação do segundo par de duelistas na parte superior do monumento de Lucus
Feroniae; a identificação da armatura do combatente situado à direita não suscita
dificuldades em termos de identificação: estamos perante um thraex, como se confirma
através das duas grandes ocreae que lhe protegem as tíbias. Além do mais, esta cena
completa os dados informativos facultados pelo primeiro relevo atrás descrito: a arma
emblemática do thraex, a sica é aqui bem visível, tendo a peculiar forma curva desta
peça oriental: montada numa empunhadura clássica de um gládio, a lâmina mediria
entre quarenta e cinquenta centímetros de comprimento. Nesta imagem não se
descortina a manica do thraex, mas seria decerto idêntica às envergadas pelo outro
thraex e pelo gallus vencidos que aparecem nos anteriores relevos: consistia numa peça
de couro, forrada por tecido, apertada por meio de uma correia também em couro. Os
pequenos rectângulos dispostos ao longo da superfície da manica podem interpretar-se
como reforços metálicos ou de couro espesso, destinados a proteger o punho e o
antebraço direito do gladiador dos golpes assestados pelo adversário.

Se a identificação do combatente vencido não levanta problemas, já o mesmo não


sucede com o seu oponente, o vencedor, que surge representado à esquerda. Em função
do primeiro painel que estudámos do monumento mortuário, seria expectável a
presença de um indivíduo provido de um escudo redondo e abaulado, que constituiria,
ao tempo, o tipo de gladiador que defrontava o thraex, mas tal não é o caso. Não
obstante apenas se terem conservado os membros inferiores desse combatente, a
ausência das grandes ocreae dos thraeces mostra que estamos diante de outra
armatura: em vez das altas grevas que empregavam os gladiadores munidos de um
escudo de pequeno tamanho, o oponente do thraex revela apenas uma protecção,
aparentemente feita de couro entrançado, na canela esquerda, representando um

357 Os árbitros gregos também usavam uma vara ou férula para intervir no desenrolar das competições.

135
elemento característico de um combatente dotado de um grande escudo. Este surge
noutras fontes iconográficas coetâneas do monumento tumular com relevos de Lucus
Feroniae, haja em vista uma escultura bidimensional, igualmente fragmentária, que
pertence ao espólio do Museo del Sannio de Benevento: o gladiador aqui observável
apresenta-se protegido por um escudo grande (tipo scutum) e exibe um elmo muito
similar ao dos gladiadores de Lucus Ferionae, bem como o seu gládio, pontiagudo e de
lâmina larga. Apesar de restarem incertezas, é plausível que o escudo parcialmente
figurado no pano de fundo do braço esquerdo do thraex derrotado corresponda à parte
inferior da peça defensiva do seu adversário. Neste caso, o escudo do vencedor não
mediria uma cinquentena de centímetros de altura, como as parmae dos thraeces, mas
pouco mais de um metro. Assim sendo, o seu tamanho equivaleria ao do scutum dos
samnitis, atrás descrito. Tratar-se-ia de um samnis a lutar, nesta ocasião, contra um
adversário não habitual? Nas fontes literárias nada permite dizer que os samnitis
combatessem com outras armaturae, apenas que pelejavam entre si.

Por outro lado, nada impede que se possa afirmar o contrário: que os Romanos
tivessem querido «misturar» as armaturae estabelecidas aquando da fase «étnica» da
gladiatura, não é algo que nos surpreenda. No entanto, afigura-se provável que o
gladiador que mais tarde se iria opor ao thraex, a partir do começo do Alto-Império, já
existisse ou se encontrasse em curso de «elaboração»; se foi isto que aconteceu,
estaríamos, portanto, na presença de um murmillo 358
. Caso se descobrisse a parcela
superior deste baixo-relevo, esclarecer-se-ia em absoluto esta questão. De facto, se
verificássemos que o gladiador vitorioso ostentava uma protecção no tórax, de imediato
o identificaríamos como um samnis; se dela estivesse desprovido, então seria possível
aventar a hipótese de consistir num tipo de gladiador em mutação, da qual resultaria o
murmillo. Lamentavelmente, as lacunas do relevo não ajudam a clarificar tal aspecto.
Seja como for, o monumento de Lucus Feroniae marca uma importante etapa na
evolução do fenómeno.

Neste par de gladiadores, o vencido acabou de receber um golpe que o obrigou a


reconhecer a sua derrota. Esse golpe brutal, que o fez tombar no solo, impede-o de
retomar o combate, até porque o adversário lhe pisa o punho com um dos pés 359, sobre
o qual assenta todo o seu peso. Embora o rosto do thraex tenha desaparecido, não custa
muito imaginarmos que o semblante deveria expressar sofrimento, tal como o do
gaulês derrotado, que parece espelhar melancolia. Na incapacidade de se reerguer e

358 Refira-se que a armatura do murmillo surge citada várias vezes por Cícero.

359 K. M. Coleman, «Spectacle», in A. Barchiesi e W. Scheidel (eds.), The Oxford Handbook of Roman Studies, Oxford,
2010, p. 656 (651-670). A autora sugeriu que atitudes como estas eram permitidas no quadro das regras que presidiam
às pugnas.

136
voltar a brandir a sua arma, o thraex também largou o seu escudo; tê-lo-á perdido ao
cair, a menos que o abandonasse voluntariamente para levantar o braço esquerdo. Sem
qualquer hipótese de prosseguir o combate, o thraex vê-se coagido a admitir o mais
rapidamente possível a sua derrota, a fim de fazer cessar a pressão que o oponente
exerce sobre o seu punho. O thraex tem, igualmente, todo o interesse em evitar o
prolongamento inútil de uma pugna já perdida, uma vez que o seu adversário se pode
aproveitar da vantagem ao ponto de o ferir mais ou, mesmo, matá-lo, caso ele tarde em
reconhecer a sua derrota. Para o efeito, o thraex tem como único recurso fazer um sinal
com o indicador esticado para cima360.

Tal como a presença do árbitro, este gesto, aqui claramente figurado, é também outro
elemento tomado de empréstimo às práticas dos lutadores gregos. De facto, quando um
lutador ou um pancraciasta era vencido, ele devia erguer um dedo da mesma maneira,
de molde a pôr termo à dolorosa pressão que o seu adversário sobre ele exercia. À
semelhança da cena do par de gauleses, este gesto crucial é enfatizado pelos dois
tocadores de tubae, que fazem ressoar os seus instrumentos, mostrando as bochechas
dilatadas por causa do esforço do sopro. Saliente-se que ambos os músicos se revelam
assaz similares a outros dois tubicines que foram representados no relevo da Glyptotek
de Munique (fig. p. 348): com efeito, observamos o mesmo tipo de túnica, o mesmo par
de instrumentos, a mesma postura. Não há dúvida que os músicos se converteram num
elemento importante numa gladiatura cada vez mais codificada. A sonoridade destes
metais servia para ritmar os momentos mais intensos e decisivos de um combate: o
início, o pedido de perdão (missio) do vencido, a execução...

A face lateral esquerda do conjunto de Lucus Feroniae é a mais incompleta: os três


blocos do registo inferior estão intactos, mas não se conservou qualquer porção do
registo de cima. Ante os nossos olhos, apenas vislumbramos seis pares de pernas,
correspondendo, obviamente, a três personagens, que se apresentam cortados ao nível
da bacia. Apesar de mutilado, este relevo permite confirmar certos pontos observados
nas outras duas faces do monumento. O primeiro par é composto, novamente, por um
gladiador munido de duas grandes ocreae metálicas, e por um adversário cujas pernas
estão protegidas por uma espécie de botins de couro, chegando até meio da tíbia.
Mesmo não se vendo os seus escudos, não é difícil supormos que estamos diante de
uma oposição entre um gladiador dotado de uma parma e de outro com um scutum.
Tal como na outra fase do relevo, não é possível determinarmos se foi representado um
samnis ou, então, um gladiador já pertencente à armatura dos murmillones.

360 Este gesto reflectia a tradição de combater ad digitum, isto é, até que um dos adversários estendesse um dedo,
assim reconhecendo a sua derrota.

137
Embora não possamos adiantar muito mais sobre esses dois combatentes, torna-se
evidente que, uma vez mais, se encontra um árbitro a intervir no desenrolar da porfia;
ainda que não tenha sobrevivido a parte superior, restando apenas a figuração dos
membros inferiores a partir da linha da cintura para baixo, ele é reconhecível, todavia,
pela sua túnica, que o diferencia dos gladiadores. Além disso, aqui o árbitro exibe um
instrumento particular, que aparece sob a forma da extremidade de uma vara de
madeira, que consiste, certamente numa rudis. Com este objecto, o árbitro fazia
suspender a investida de um combatente ou, mesmo, impedi-lo de cometer um acto
ilícito. Trata-se da primeira vez que se observa, no corpus iconográfico da gladiatura, a
rudis. Esta vara de madeira viria a tornar-se, ao longo de vários séculos, no atributo
característico dos árbitros representados em imagens produzidas em relevo, em pintura
e em mosaicos datando do Alto-Império.

Por fim, o último par de gladiadores mostra combatentes exibindo duas grandes
ocreae. Mesmo estando os escudos invisíveis, é possível imaginar que se trata de uma
parma redonda oposta a uma parma rectangular. Aqui reencontramos a mesma
configuração assinalável na outra face deste conjunto de relevos. A diferença é que os
gladiadores na face direita estão prestes a terminar o combate, ao passo que os da parte
esquerda se encontram a começar o confronto. A presença dos árbitros e a posição das
pernas dos gladiadores nesta cena indicam que contenda está a principiar ao contenda
ou, então, que foram «captados» no instante imediatamente anterior ao seu início.

Este conjunto de painéis relevados de Lucus Feroniae361 transmite ao observador um


determinado sentido de leitura das composições. Esta representação de um munus
pode, assim, ter obedecido a uma orientação no sentido dos ponteiros do relógio, para a
se contemplar os combates desde o começo até ao fim, na ordem em que se vão
desenrolando. Não obstante as suas lacunas, esta série de imagens escultóricas
constitui uma peça-chave para a compreensão da mutação que se operou na gladiatura
antes ou no início do Principado de Augusto 362. Estes baixos-relevos testemunham o
novo significado que então viera a adquirir o fenómeno. A presença de armaturae mais
variadas, com cinco tipos diferentes, e a figuração de certos combatentes como os
equites, já não se definindo mais por se reportarem a uma etnia derrotada pelas legiões
romanas, mas às suas próprias técnicas de combate, mostram os principais traços desta
evolução. Esta permitiu que se introduzisse maior diversidade nos espectáculos de

361 Actualmente, os painéis conservam-se na Villa Giulia, em Roma.

362A datação do terceiro quartel do século I a. C., proposta pelos arqueólogos italianos com base no critério estilístico
dos escultores, corresponde, de facto, às características de uma gladiatura que estava em mutação neste período. Cf. E.
Teyssier, La mort en face…, p. 489.

138
gladiadores, que se foram afastando progressivamente da sua justificação ritual e
funerária.

O carácter nitidamente mais regulamentado dos combates é enfatizado pela presença


de três árbitros e pela utilização de sinais convencionais, inteligíveis tanto para os
gladiadores como para o público. Este não surge representado, mas a sua presença
queda sugerida pela colocação em cena, afora os combatentes, de três músicos tocando
dois instrumentos distintos. Estes novos personagens na gladiatura tinham por função
transmitir, de maneira sonora, certos momentos fortes do combate. Tal pormenor
mostra que o público não só estava presente e «actuante», mas também, decerto, que
seria cada vez mais numeroso, ao ponto de alguns grupos de espectadores já se
situarem demasiado longe para distinguirem cada um dos gestos dos gladiadores.

Estes aspectos confirmam uma evolução rumo a uma acrescida profissionalização e


para uma encenação espectacular. Neste monumento mortuário emerge uma mutação,
que G. Ville já havia realçado nos planos simbólico e político, mas sob o ponto de vista
técnico. Existe ainda uma outra fonte imagética, cuja datação é mais precisa, também
recentemente trazida à tona, que corrobora, à sua maneira, esta evolução registada no
tempo de Augusto.

Baixo-relevo augustano conservado no Museo Nazionale Romano alle


Terme di Diocleziano (Roma)

Esta composição escultórica bidimensional, descoberta junto ao Tibre, entre Roma e


Óstia, datável do período augustano, mostra, em princípio, a mais antiga descrição
plástica de dois provocatores combatendo: à esquerda, vemos, com efeito, dois
gladiadores pertencentes à mesma armatura, envergando tangas muito pregueadas
presas por cinturões de metal; ambos possuem uma ocrea na perna esquerda, subindo
até à altura do joelho; na parte inferior do braço direito, estão guarnecidos por uma
manica, que o escultor reproduziu meticulosamente; como protecção parcial para o
peito exibem um cardiophylax ou spongia pectoralis (placa metálica); nas cabeças
cingem um elmo com um amplo cobre-nuca horizontal, grandes paragnátides a
ladearem o rosto, motivos ornamentais assemelhando-se a sobrancelhas estilizadas
gravadas na parte frontal dos cascos e plumas, uma da cada lado da calote, mas sem
crista ou cimeira. Os escudos, de tamanho médio, pertencem ao género que tem as
extremidades arredondadas (providos de uma spina que desce ao longo do

139
comprimento do escudo). Quanto às armas ofensivas, os dois gladiadores servem-se de
espadas curtas de lâmina recta 363.

Os elmos reproduzidos neste relevo são dignos de atenção, por constituirem a mais
antiga representação conhecida do modelo designado como tipo «Weisenau» (ou
«Gálico Imperial»), que combina elementos célticos e romanos e terá surgido no tempo
augustano. Cabe referir que os cascos destes homens da arena correspondem ao padrão
mais recente do capacete militar utilizado pelos legionários romanos. As plumas
colocadas nos dois lados da parte frontal da calote, que frequentemente se reencontram
em elmos do exército da mesma altura, constituíam uma característica típica da
tradição do Centro e do Sul de Itália, e os encaixes onde elas se fixavam observam-se
em muitos exemplares de cascos que sobreviveram até hoje. No equipamento
gladiatório, as plumas não surgiam só nos elmos dos provocatores, mas também nos da
maior parte das demais categorias de combatentes, amiúde com uma crista central (um
penacho feito de crina de cavalo ou com penas).

Além do elmo, o pectorale (preso por correias de couro à parte superior do tronco) é o
elemento mais distintivo da panóplia dos provocatores: o que se vê no gladiador
situado à esquerda no relevo tem a forma de um aegis (peitoral cuja configuração alude
ao avental de Minerva) e encontra-se decorado com uma cabeça de Górgona. Só no
combatente à direita se observa a fivela na parte de trás do peitoral.

À direita do par de provocatores, vemos esculpido um gladiador pertencente a uma


armatura distinta: não exibe um pectorale no peito e o seu elmo apresenta-se
adornado com um penacho de crina de cavalo, em forma de crista. Como esta
composição relevada sofreu alguns danos, não temos maneira de confirmar se ele
estaria provido de grevas; mas imaginando que as tinha, seriam curtas, terminando
abaixo do joelho. O combatente em foco deixa cair o gladius da sua mão, num claro
sinal de rendição, balouçando a arma de um laço preso ao seu pulso. Quanto ao seu
escudo, de extremidades arredondadas ou oblongo, assemelha-se ao usado pelos
provocatores. Do seu adversário só descortinamos o seu escudo rectangular, muito
mais pequeno, parecendo quase garantido que se trata de um thraex. Assim sendo,
estamos perante um combate «clássico» opondo um thraex a um murmillo (que teria,
então, uma pequena greva na perna esquerda, não visível por causa da mutilação do
suporte).

Na borda superior do relevo observam-se legendas inscritas, dando informes sobre os


gladiadores figurados e os seus respectivos destinos. O nome do combatente situado à
363 M. Junkelmann, «Familia Gladiatoria: The Heroes of the Amphitheatre», in E. Köhne e C. Ewigleben (eds.),
Gladiators and Caesars, Berkeley/Los Angeles», 2000, p. 37.

140
esquerda perdeu-se, mas o que restou da legenda – IVL VVV (por extenso, Iulianus
pugnarum V, coronarum V, vicit) – mostra que ele pertenceu ao Ludus Iulianus,
escola gladiatória fundada em Cápua por Júlio César, que seria, portanto, um dos ludi
mais proeminentes no início da época imperial. Além disso, na inscrição refere-se que
esta fora a sua quinta pugna, que ganhou (vicit), e nos anteriores quatro combates, que
se saldaram em vitórias incontestáveis, viu-se recompensado com uma coroa (corona)
de louros em cada um, incluindo o do relevo, o que deixa pressupor que teria obrado
grandes proezas na arena (a cada vencedor entregava-se normalmente uma palma, ao
passo que a coroa representava uma distinção especial, merecendo uma referência à
parte em muitos monumentos gladiatórios).

A derrota do seu oponente é indicada pelo facto de o escudo do mesmo se encontrar


deposto no solo e o seu braço direito estar erguido, gestos típicos feitos por um
gladiador que reconhecia ter sido vencido. Conservou-se o seu nome, Clemens, bem
como o que lhe sucedeu após a derrota (permitiu-se que deixasse a arena com vida,
após solicitar o indulto, M=missus). No que respeita ao murmillo, posicionado mais à
direita, somos informados que abandonou o recinto igualmente vivo, mas que veio a
perecer em sequência dos ferimentos sofridos, conforme se evidencia pelo signo theta
(theta nigrum) gravado perto do seu elmo, o qual se reporta ao vocábulo grego
thanatos/«morte»364.

Para concluir, este relevo ilustra, aparentemente, a transição do velho para o novo
sistema gladiatório. Verifica-se a aparição de um novo tipo de elmo, só que ainda não se
encontra provido do elemento característico dos ulteriores cascos da época imperial, a
viseira a cobrir o rosto, que, ao que se julga, foi introduzida nos últimos anos do
reinado augustano, talvez pouco depois da execução desta obra escultórica.

***

Já provavelmente criadas no fim da República, como o atesta o monumento de Lucus


Feroniae, as armaturae prosseguiram a sua profunda evolução durante o Principado
de Augusto. Este promulgou a Lex pugnandi, que veio a conduzir a uma estabilização
364G. R. Watson, «Theta Nigrum», The Journal of Roman Studies, 42 (1952), pp. 56-62.

141
quase definitiva das categorias e das modalidades de combate até ao crepúsculo do
fenómeno gladiatório. Apesar de não terem chegado até nós quaisquer detalhes dessa
lei, Suetónio realçou, a propósito de Augusto, que este submeteu «a regras muito
severas as lutas dos atletas e os combates de gladiadores» (Divus Augustus, 45).

No final do reinado augustano, as duas armaturae mais antigas, a do samnita e do


gaulês, desapareceram ou, pelo menos, estariam em vias disso. Certos estudiosos da
gladiatura viram, nesse desaparecimento, a vontade, por parte dos romanos, de não
querer ofender ou melindrar as populações que se achavam totalmente integradas no
Império. Se isto correspondeu à realidade, a armatura do thraex teria igualmente
desaparecido. Ora, atestam-se gladiadores thraeces até, pelo menos, finais do século III
d. C. É possível que a necessidade de «representar» os povos vencidos se tenha esbatido
com a absorção desses antigos bárbaros no mundo romanizado. Mais do que
verdadeiramente desaparecimento, julgamos preferível falar antes em diversificação e,
sobretudo, na evolução das técnicas de combate das armaturae. Esta evolução,
historicamente conectada com as mudanças atrás evocadas, marcou, em definitivo, a
história da gladiatura.

Assim, à excepção do thraex, as demais armaturae «étnicas» cederam o lugar a novas


denominações fundamentadas em critérios de ordem técnica. Durante o principado de
Augusto, várias armaturae, surgidas no tempo de Júlio César, vieram a estabilizar-se.
Entre os tipos de combatentes que teriam o futuro garantido estava o provocator, que é
citado por Cícero, a partir de 56 a. C. Torna-se difícil precisar uma data concreta para a
aparição do retiarius, o murmillo ou o hoplomachus, mas vários testemunhos antigos
permitem supor que os mesmos terão aparecido entre o período ciceroniano e o começo
do Principado. Estes combatentes deixaram muitos vestígios epigráficos e iconográficos
para a época imperial, mas os dados escasseiam em relação ao período augustano 365.

A emergência das novas armaturae técnicas: o testemunho das obras do


ceramista Chrisippus de Lyon (antiga Lugdunum, França)

Todavia, um conjunto de artefactos – as peças de cerâmica que o oleiro Chrisippus


elaborou em Lugdunum (conservadas no Musée de la Civilisation gallo-romaine de
Lyon) – torna mais perceptível a evolução dos gladiadores sob a égide de Augusto 366.

365Esta falta de informações acha-se indubitavelmente na origem das numerosas contradições que amiúde se topam
na identificação dos diferentes tipos de gladiadores.

366 Estas peças de cerâmica procedem de oficinas dirigidas por oleiros itálicos que contribuíram com o seu savoir-faire
técnico mas igualmente com as suas imagens na Gália, que fora conquistada há cerca de uma geração.

142
Graças a tais vasos e taças, é possível ensaiar uma reconstituição de três pares
fundamentais de gladiadores com base em cinco armaturae diferentes367. Armand
Desbats368 datou esta série de peças (que em francês se rotulam genericamente de
gobelets), ornamentadas com cenas de combates gladiatórios, como tendo sido
produzidas entre 20 a 15 a. C., aproximadamente. Estas imagens constituem as
primeiras representações garantidas e datáveis dos principais tipos de combatentes que
actuaram nos anfiteatros sob o Império romano. Importa também frisar que são, ao
que se julga, as primeiras figurações de temática gladiatória que se descobriram fora de
Itália.

O primeiro motivo decorativo de um destes objectos mostra o confronto entre dois


homens com equipamentos idênticos. Através deste combate «espelho», os gladiadores
inscrevem-se na tradição dos combatentes «étnicos», que essencialmente se
fundamentava na oposição entre dois indivíduos munidos das mesmas armas e
protecções. Os equipamentos defensivos exibidos por estes gladiadores conduzem a que
os identifiquemos como sendo um par de galli369. Com efeito, os escudos planos e de
formato oval lembram claramente os dos guerreiros celtas do fim da independência e os
dos auxiliares do exército romano do tempo do Principado de Augusto. Tanto na forma
como nas dimensões, os escudos assemelham-se ao ostentado pelo chamado «guerreiro
de Mondragon» (estátua que pertence ao espólio do Musée Calvet, em Avignon 370
):
esta escultura, de vulto redondo e em tamanho natural, foi também datada do período
augustano. Esta efígie funerária, de acordo com a maioria dos especialistas, representa
um oficial galo-romano de tropas auxiliares. Mediante um exame comparativo desta
estátua com os dois galli figurados na peça executada por Chrysippus, detectam-se
grandes similaridades. Em ambos os casos, os escudos planos têm a mesma forma oval
e estão dotados da mesma spina fina, reforçada por um umbo central.

Os elmos são igualmente característicos das protecções empregues pelos gauleses no


fim da sua independência, do tipo «Port» 371 e, mais ainda, da sua evolução romana
traduzida no tipo de casco «Weisenau»372, datado do período augustano. No gladiador
situado à esquerda da cena, são bem visíveis os colchetes, de tradição céltica,

367 Veja-se, a propósito, E. Teyssier, La mort en face…, pp. 53-70.

368 Vases à medaillons d'applique des fouilles récentes de Lyon, Lyon, 1981, pp. 9-26. Consulte-se também um artigo
do mesmo autor, elaborado juntamente com Martine Genin e Jacques Lasfargues, «Les productions des ateliers de
potiers antiques de Lyon», LIII, suplemento de Gallia (1996).

369 E. Teyssier, La mort en face…, p. 54.

370 Adrian Goldsworthy, The Complete Roman Army, Londres, Thames & Hudson, 2003, p. 30.

371 M. Feugère, Casques antiques, p. 76.

143
martelados sobre a parte frontal do elmo. Ora estes mesmos reforços vieram a ser
utilizados, sensivelmente na mesma altura, nos cascos dos legionários de Augusto.
Importa também chamar à atenção para dois outros elementos defensivos: o primeiro
diz respeito às protecções das canelas, que não constituem ainda verdadeiras ocreae.
Aqui, tais protecções parecem ser compostas por faixas de couro bem apertadas
chamadas fasciae.

Por seu lado, certos relevos mostram, com maior detalhe, essas protecções nas tíbias
de certos gladiadores. A outra particularidade desta peça de cerâmica de Lyon consiste
na representação de pequenas manicae cobrindo somente o punho e o antebraço dos
combatentes. Este género de protecção, já observado nos galli dos relevos de Lucus
Feroniae e do Museu de Bolonha, data provavelmente do extremo final da época
republicana. Sob Augusto, estes elementos estão ainda mais aparentados a uma espécie
de luvas do que propriamente às manicae gladiatórias do Alto Império. Ainda assim,
elas representaram uma importante inovação destinada a proteger melhor um
combatente profissional que se foi tornando cada vez mais precioso.

Se cascos e escudos são incontestavelmente de inspiração gaulesa, as armas ofensivas


revelam-se, pelo contrário, menos claramente célticas. O oleiro Chrysippus representou
nos seus gobelets um tipo de arma branca com lâmina bastante curta e afilada. Face a
estas duas características, cabe evocar as espadas dos baixos-relevos de Lucus Feroniae
e de Bolonha. Essa arma significa uma espécie de híbrido entre o gládio romano (de
que ela possui o comprimento) e a espada céltica, no tocante à reduzida largura da sua
lâmina. No entanto, a postura dos dois guerreiros faz-nos inclinar indubitavelmente
para a espada céltica. Com efeito, se o gládio romano era quase sempre empregue como
arma de estoque, a espada celta, por seu turno, era utilizada para assestar cutiladas,
graças ao tamanho da sua lâmina.

Na cena do objecto de cerâmica, a posição de ataque dos dois combatentes, com a


mão por cima da cabeça para um e o braço estendido para trás para o outro, indica a
intenção de utilizar a arma para cutiladas. Mas, por outro lado, a postura dos
combatentes está em contradição face ao reduzido tamanho desses gládios. Porém, a
diminuição do comprimento das lâminas pode haver sido intencional: há que não
perder de vista o facto de se estar na presença de gladiadores profissionais a lutarem
num espectáculo. Ademais, a redução do comprimento das espadas celtas obrigaria,
mecanicamente, a que os combatentes se aproximassem mais um do outro para se
defrontarem. Este acréscimo de risco na pugna seria provavelmente o objectivo

372M. C. Bishop e J. C. N. Coulston, Roman Military Equipment, p. 93, fig. 56. Observem-se também as reproduções
fotográficas de vários elmos deste tipo na obra de M. Feugères, op. cit., pp. 77, 86, 88-97.

144
perseguido pelo lanista que alugava os seus homens a um editor. Ora este deveria
satisfazer um público que exigia, sem dúvida, mais envolvimento físico e superior
destreza técnica por parte dos contricantes. Caso se aceite este raciocínio, então nada
impede que se pense que os gladiadores galli de Chrysippus constituem o testemunho
da evolução final desta armatura muito antiga. Ao abandonarem a longa espada
tradicional céltica, este tipo de combatentes só poderiam vir a fundir-se numa ou em
várias das novas armaturae que surgiram durante este período de mutação.

Vislumbramos outro exemplo de uma armatura em curso de evolução no caso do


thraex e do seu adversário nas peças do oleiro de Lyon; estes dois gladiadores podem
ser identificados como thraeces373. Em ambas as fontes iconográficas, observamos um
par de combatentes dotados de ocreae muito altas, chegando acima dos joelhos, a fim
de compensar o tamanho relativamente pequeno dos escudos. Estes têm formas
distintas: quadrangular para o gladiador situado à esquerda, redondo para o da direita.
Por fim, o casco do combatente munido de escudo redondo lembra o dos seus
homólogos mais antigos. Nos dois casos, ele possui o mesmo tipo de protecções para o
rosto, o mesmo género de protege-nuca e a mesma cimeira baixa, típica dos elmos
áticos. Estas semelhanças permitem constatar que o modelo ático, simbólico do mundo
helenístico, seria sempre utilizado para caracterizar os thraeces no tempo augustano.
Mas o seu equipamento foi evoluindo de maneira bastante visível, como queda
perceptível num dos gobelets de Chrysippus (ima., p. 58). De entre essas novidades,
assinalemos a alta cimeira do gladiador situado à direita. Ainda que seja difícil
determinar o que nela se representa em concreto, é provável que se trate de uma
espécie de rapace. Esta cimeira foi colocada num elmo que também se pauta pela
presença de novas formas, com grandes rebordos. Se tais características serviram para
o distinguir claramente dos outros combatentes ostentando cascos de tradição céltica,
então parece plausível que se tenha pretendido diferenciá-lo do seu adversário por
meio de uma decoração específica.

Esta vontade de caracterizar o thraex evidenciou-se noutras obras plásticas, perto de


cem anos depois da feitura das peças da oficina do ceramista de Lyon. Com efeito, seja
no relevo de Bolonha, seja nos elmos mais tardios de Pompeia que se conservaram, ou
em numerosos exemplos icónicos mesmo muito modestos, a cimeira do thraex aparece
quase invariavelmente ornamentada por um protomo de grifo. Este animal mítico e
híbrido, com corpo de leão e cabeça de águia, significa um elemento emblemático do
Oriente, o qual se supunha que o thraex deveria representar.

373 E. Teyssier, La mort en face…, p. 58.

145
A comparação da cimeira do casco do thraex de Chrysippus com um elmo pertencente
à mesma armatura descoberto em Pompeia (actualmente no Museo Archeologico de
Nápoles, fig. p. 193), mostra explicitamente essa filiação. Em ambos os casos, os largos
rebordos afiguram-se muito similares; quanto à cimeira, resume-se apenas à cabeça do
grifo, mas este conserva este aspecto de rapace que Chrysippus soube executar com o
seu buril. Posto isto, este documento apresenta, sem dúvida, o momento em que o
thraex se começou a distinguir claramente dos restantes gladiadores, não só pelo seu
equipamento, mas também pela própria decoração do seu casco. Este motivo
ornamental não obedeceu, decerto, a critérios meramente estéticos: é possível que, por
tal meio, se quisesse diferenciar o thraex do seu oponente com escudo redondo, o qual
começou, igualmente, a evoluir de maneira autónoma.

Efectivamente, no combate reproduzido por Chrysippus, o adversário do thraex


aparece, pela primeira vez, provido de uma lança. Esta não significa propriamente uma
novidade no âmbito da gladiatura: recordemos que os «pré-gladiadores» representados
nos túmulos de Paestum já utilizam essa arma nos confrontos; no entanto, em
contrapartida, desde a criação das armaturae, os gladiadores dos séculos III e II a. C.
terão brandido provavelmente apenas espadas. Na figura esculpida por Chrysippus, a
lança serve para manter o adversário à distância, ao mesmo tempo que aguarda pelo
momento oportuno para o golpear. A arma de haste tem um tipo de empunhadura que
permite ao seu utilizador segurá-la com maior firmeza na mão e utilizá-la eficazmente
no combate. Será que este dispositivo na lança deve encarar como um desejo de
regressar às origens lendárias e homéricas da gladiatura? Embora esta hipótese não
deva ser posta de parte, talvez seja mais provável que aqui haja uma vontade de pôr à
frente do thraex uma outra variante de guerreiro grego: este, tal como o hóplita clássico
ou o falangista macedónio, apresenta-se, portanto, provido de uma arma de haste.

Uma fonte coeva das peças de cerâmica de Lyon coloca em cena combatentes de
inspiração helénica no seio dos munera: trata-se do mausoléu dos Iulii, em Glanum,
que se encontra decorado com relevos comemorando contendas travadas num contexto
oriental: podem interpretar-se como uma oposição entre Orientais e Romanos, uma
referência histórica às campanhas militares empreendidas pelo antepassado dos
dedicadores desse monumento mortuário. Detectam-se notórias afinidades entre os
relevos de Glanum e as imagens dos objectos de cerâmica da oficina de Chrysippus:
tanto nuns como noutras, os combatentes adoptam a mesma posição de guarda e
possuem escudos e cascos muito semelhantes 374. Com base nestas fontes artísticas,
podemos extrair algumas conclusões significativas: a despeito da raridade ou, mesmo,
374 O último elemento é, ademais, digno de interesse pela sua decoração. Com efeito, o guerreiro de Glanum ostenta
sobre a sua cimeira um prótomo de grifo, que constitui já o animal emblemático dos gladiadores thraeces.

146
da ausência de informações literárias concretas, parece verosímil que o thraex tenha
aparecido por volta do final do século II a. C. e, que desde o início, fosse representado
com um escudo indiferenciadamente redondo ou quadrangular.

À medida que a gladiatura foi evoluindo e se tornou mais técnica, os dois tipos iniciais
de thraeces tiveram certamente a tendência de se destrinçarem mediante um
armamento destinado a praticar duas técnicas de combate diferentes. O thraex com
escudo quadrangular passou a brandir, de maneira sistemática, a sua sica (ou falx) de
lâmina curva, que consistia na sua arma emblemática; o seu adversário, munido de
escudo redondo, terá recebido a lança provavelmente no início do Principado. Esta
evolução conduziu, pois, à criação de um novo tipo de gladiador, uma vez que a sua
técnica se converteu em algo totalmente novo e muito peculiar.

Face a este oponente com arma de haste, o thraex estava protegido por um escudo
demasiado pequeno para aparar os golpes que podiam ser alternada e rapidamente
desferidos pelo adversário, visando a cabeça e as pernas. Este perigo era tanto maior
quanto o facto de os gladiadores deste período histórico lutarem ainda com o rosto
descoberto. Consequentemente, e para remediar este desequilíbrio é que a parma do
combatente modelada por Chrysippus se revela anormalmente grande, quando
comparada com representações plásticas ulteriores 375. Aqui, uma vez mais, denota-se a
preocupação de proteger mais eficazmente os gladiadores profissionais. Não obstante, o
maior tamanho conferido à parma não parece ter sido uma solução satisfatória: perdia-
se a vantagem da mobilidade de um escudo pequeno, assim como não oferecia uma
resposta que se adaptasse adequadamente às lançadas. Ora esta constatação esteve
certamente na base da busca de um novo adversário e mais adaptado a estas duas
variantes de thraex376. Por fim, como o combatente provido de lança desenvolvia uma
técnica totalmente distinta, os romanos viram-se com certeza impelidos a dar-lhe outro
nome, a fim de o diferenciar de imediato. Esta denominação, que terá surgido no início
do Alto-Império, balizou a criação de uma nova armatura «técnica», fruto da evolução
de uma armatura «étnica».

Os gobelets de Lyon fornecem outro exemplo desta busca pela variedade nos combates
gladiatórios do tempo augustano: deparamos com a representação de um terceiro par
de combatentes que, estamos em crer, talvez seja a mais instrutiva de todas as que
Chrysippus realizou: neste terceiro par, presente em várias peças de cerâmica, vê-se, à

375 Com mais de duzentas e cinquenta ocorrências repertoriadas até hoje entre o século I e o III d. C., o
thraex é o
gladiador mais representado do corpus iconográfico do império romano. Este pormenor constitui um dos sinais
tangíveis da grande fiabilidade técnica dos informes facultados pelos gobelets de Chrysippus.

376 Sob o Alto Império, os gladiadores equipados com lança viram-se opostos aos murmillones na maioria dos casos.

147
direita, um gladiador bastante semelhante aos dois galli anteriormente analisados; a
postura do braço armado e erguido, a utilização da espada como instrumento para
assestar cutiladas, a forma do elmo, as tiras de couro visíveis nos pulsos ou nas tíbias
são, efectivamente, do mesmo género. Porém, existem certos detalhes que o distinguem
dos dois galli: o escudo, sempre munido de uma spina, apresenta-se aqui rectangular e
não redondo; a espada parece também um pouco mais comprida e o casco evidencia
uma minúscula cimeira, que não se encontra nos elmos dos galli. Assim, este gladiador
poderia corresponder ao resultado de uma evolução do samnis; com efeito, o seu
escudo é mais largo em cima do que em baixo, no que se coaduna com a descrição do
guerreiro samnita feita por Tito Lívio. No entanto, o seu oponente nada tem de gallus
ou de samnis.

Acontece que temos quase a certeza de que esta evolução dos gladiadores samnitas e
gauleses foi, pelo menos em parte, ditada pela aparição deste tipo de adversário muito
original. Este gladiador não pode ser comparado com qualquer outra representação
coetânea ou cronologicamente anterior: equipado com uma rede munida de uma corda
e um tridente, ele pertence, indiscutivelmente, à armatura dos retiarii. Este tipo de
combatente deve a sua designação, como facilmente infere, à rede (rete), que
permaneceu, ao longo de quatro séculos, como a sua arma paradigmática, afora, claro
está, o tridente. Assim, nos gobelets de terra sigillata de Lyon, descobrimos a mais
antiga imagem de um retiarius até hoje conhecida. A rede que segura na mão direita
parece enrolada, parcialmente, à volta do seu antebraço, enquanto uma corda liga o
tridente à rede. O tridente (fuscina, fascina ou, mais raramente, tridens), mantido na
vertical é agarrado pela mão esquerda. Esta arma possui um cabo anormalmente curto
em relação ao tamanho «clássico» de um tridente. Contudo, realcemos que este «proto-
retiarius» não aparece já dotado do punhal ou adaga que, sob o Império, lhe servia
para terminar os seus combates.

A figura corresponde a uma protótipo inicial do retiarius377: já revela os elementos


fundamentais do seu equipamento, mas aos quais se acrescentam outros mais
inesperados: os últimos, insólitos e surpreendentes para um retiarius, indicam a
existência de uma fase de emergência da armatura e de várias experiências; para além
da sua rede epónima e do característico tridente, o retiarius utiliza aqui duas grandes
ocreae, conformes ao modelo assinalável nos thraeces. Se admitirmos que estes
beneficiavam de tais protecções para compensar o reduzido tamanho do seu escudo,
nada mais lógico supormos que os «criadores» do retiarius deverão ter resolvido

377 E. Teyssier, La mort en face…, p. 61, 62 (detalhe); Alfonso Mañas Bastida, «Was Pontarii Fighting the Origin of the
Gladiator-Type Retiarius? An Analysis of the Evidence», The International Journal of the History of Sport (2018), pp.
1-3 (fig. 1).

148
atribuir as grevas a um gladiador que estava inteiramente desprovido de elementos
defensivos.

Para compensar esta carência de protecções, o «proto-retiarius» enverga uma cota de


malha. Este facto afigura-se verdadeiramente excepcional, dado que os gladiadores são,
em geral, representados com o tronco nu. Essa cota de malha pertence a um género
aparentemente muito próximo dos modelos militares deste período; pode-se cotejar tal
protecção com a que se observa, por exemplo, no guerreiro coevo de Vachères (Musée
Calvet, Avignon, de finais do século I a. C.). Tal como no caso do chamado «guerreiro
de Mondragon» atrás referido, trata-se de uma efígie que se identificou como
representando um auxiliar galo-romano, remontando provavelmente ao tempo de
Augusto. Além da lorica hamata, cobrindo o torso e a bacia, os braços estão protegidos
desde os pulsos até aos ombros. É difícil determinada a natureza exacta destes braçais.
Relativamente ao braço direito, aventamos duas hipóteses: tanto pode tratar-se de uma
cota de malha, como de uma lorica squamata (loriga de escamas de metal), já que o
oleiro de Lyon teve o cuidado de dar um tratamento plástico diferente do reservado ao
tronco; a outra hipótese será a de consistir numa parte da rede enrolada no antebraço
direito. A última solução interpretativa parece a mais plausível por várias razões: para
já, a rede, tal como se vê representada pendurada, por baixo do braço do retiarius,
aparente ser demasiado pequena, não tendo, pois, qualquer utilidade para apanhar o
adversário; por outro lado, as cruzetas que cobrem o braço assemelham-se muito às
malhas visíveis da rede.

Doravante, a rede começou a desempenhar um papel suficientemente fundamental na


técnica própria do retiarius, ao ponto de lhe dar o seu nome 378
. Os «criadores» deste
tipo de gladiador depressa terão verificado que a protecção do braço direito só serviria
para estorvar o manejo da rede, tornando os seus lançamentos menos poderosos e
eficazes. Assim, em termos de protecção, a vantagem reduzida de uma manica
cobrindo esse braço perder-se-ia em larga medida, devido ao incómodo que ela
causaria para a utilização da rede. Consequentemente, temos motivos para acreditar
que, sob as malhas da sua rede, o «proto-retiarius» de Lyon não possuiria qualquer
elemento protector. O facto é que este braço direito sem qualquer defesa veio a
constituir, a partir de então, numa das particularidades do retiarius em relação aos
demais gladiadores. Quanto à natureza concreta da protecção do braço esquerdo, ela
também se revela difícil de identificar, mas capta-se um pormenor de grande
importância: a peça arredondada colocada por cima do ombro esquerdo do combatente

378 Desconhecido sob a República, o termo retiarius aparece com Valério Máximo, durante o reinado de Tibério, mas a
designação deve ter sido criada sob o principado de Augusto.

149
corresponde, claramente, num galerus379. Este elemento característico do retiarius
servia para reforçar e guarnecer o braço esquerdo, que era o mais ameaçado pelos
golpes adversos, devido à ausência de escudo.

Chamemos também à atenção para a coexistência do galerus e do elmo. O galerus


completava a manica, a fim de funcionar como paliativo para a falta de escudo, mas
não para a do casco. De facto, quando o elmo do retiarius despareceu, o galerus, por
seu turno, manteve-se em uso. Centremo-nos agora na protecção para a cabeça do
retiarius: à semelhança dos elmos dos gauleses, o casco exibe semelhanças com os
capacetes militares galo-romanos da mesma altura, aproximando-se do tipo
«Weisenau»; provido de paragnátides, ele comporta igualmente uma viseira mais
desenvolvida do que nos exemplares empregues pelos legionários. Assim como a cota
de malha e as ocreae, esta protecção desapareceu rapidamente da panóplia defensiva
do retiarius. Como facilmente se constata, o equipamento deste gladiador é tributário
da ausência do escudo. Esta particularidade, a todos os títulos singular relativamente às
panóplias guerreiras, terá incitado os «criadores» deste novo tipo de combatente a
superprotegê-lo. A sua postura também advém desta falta do escudo. Com efeito, a
maneira de segurar o tridente não corresponde à que se observa nas numerosas
imagens produzidas sob o Alto Império 380. Aqui, o tridente não é mantido na
horizontal, como uma arma de haste destinada a ameaçar o oponente e a mantê-lo à
distância; pelo contrário, aparece na vertical, como se servisse para estabelecer uma
barreira protectora entre o retiarius e o seu oponente. Efectivamente, o pequeno
comprimento do cabo do tridente devia permitir ao retiarius utilizar a arma no
confronto corpo-a-corpo, depois de ter arremessado a sua rede.

A rede foi representada de maneira original: pouco atestada no corpus iconográfico


dos retiarii da época imperial, ela quase nunca surge, como neste caso, dotada de uma
corda de «recuperação» (spira). A última parte do tridente, agarrado pela mão
esquerda do gladiador, liga-a à rede, que a mão direita segura. Este dispositivo, que
tinha por objectivo recuperar a rede em caso de fracasso no seu lançamento, devia
tolher consideravelmente os movimentos do retiarius. Caso a corda da rede estivesse
presa ao cabo do tridente, então tal dispositivo impedia que se empregasse a rede de
forma autónoma e ofensiva. A partir dos testes efectuados no contexto da «arqueologia
experimental», chegou-se à conclusão que esta corda «recuperadora» se revestiria de
fraco interesse para um retiarius suficientemente hábil. De facto, fosse ela presa ao

379 Galerus significa literalmente «boné de couro». Trata-se, originalmente, de uma peça destinada a proteger o rosto,
ao constituir um prolongamento da manica, que também devia ser em couro.

380 Até à data, o corpus icónico permite recensear mais de duzentas representações distintas do retiarius. Na
esmagadora maioria dos casos, o retiarius aparece com o seu tridente e, muito raramente, cerca de 10%, com a rede.

150
punho ou, como aqui acontece, ao tridente, esta corda significava um entrave para a
manipulação das outras armas. Ademais, a recuperação da rede só teria êxito se o
adversário não se opusesse a tal manobra.

Por último, com a experiência acumulada em diversos combates, o retiarius acabaria


por ajustar o arremesso da sua rede ao momento julgado mais oportuno. Por esta
razão, a rede foi cedo considerada como uma arma de um «só golpe», que convinha
utilizar com prudência e não de maneira precipitada ou irreflectida. A presença da
corda significa, assim, a marca de uma armatura em curso de «elaboração» 381. Deste
conjunto de elementos acrescentados ao equipamento emana uma certa sensação de
peso, impressão que não se coaduna com a imagem tradicional de um gladiador como o
retiarius, que se perfilava, acima de tudo, como um modelo de ligeireza e habilidade.
Fica, pois, a ideia de que esta representação alude a um tipo de combatente
recentemente criado e que estaria, por essa altura, nos seus balbuciamentos. É provável
que os primeiros combates tenham evidenciado as potencialidades de um gladiador
dotado de duas armas tão originais como a rede e o tridente.

Os primeiros retiarii, ou os seus lanistae, depressa terão compreendido que, face a


adversários muito mais ligeiros e protegidos por um escudo, o «sobre-equipamento»
não significaria propriamente uma vantagem. Mesmo sem escudo, o retiarius ganhava
mais ao bater-se desprovido de casco, das ocreae e da cota de malha. Além disso, no
intento de fazer da mobilidade a sua melhor qualidade, o retiarius deve ter abandonado
rapidamente estas protecções pesadas, para assim se esquivar mais habilmente dos
ataques do adversário, tirando o melhor proveito possível das suas armas. Esta
evolução do «proto-retiarius» augustano permitiria desembocar, sem grande demora,
na versão definitiva do retiarius imperial 382.

Na imagem de Chrysippus, à frente do retiarius está um combatente que, pela sua


atitude, se pode assimilar à armatura dos galli. No entanto, embora a espada por ele
brandida ainda seja bastante comprida, o escudo mostra-se mais abaulado do que o
utilizado pelos gauleses. Este primeiro contraretiarius parece traduzir, assim, uma
espécie de hesitação entre o scutum do samnis e o escudo plano dos galli.
Provavelmente assistimos, de novo, a uma fase de tacteamentos em relação ao que
poderia corresponder a um «proto-myrmillo». Seja como for, a identificação deste
combatente revela-se mais delicada que a do retiarius.

381 Curiosamente, a corda «recuperadora» reaparece somente em imagens tardias muito raras: tal é o caso de um
mosaico do século IV, procedente de Roma e conservado em Madrid. Será de ver neste retorno ao passado uma vontade
de atenuar a menor qualidade dos retiarii neste período de declínio da gladiatura?

382 Foi necessário cerca de um século de processo evolutivo para o retiarius e o seu oponente, antes de se tornarem os
gladiadores mais conhecidos do século II d. C.

151
Para além destes gladiadores pouco representados ou mesmo inéditos neste período,
mas com um promissor futuro garantido, nas peças de cerâmica de Lyon existem
figurações de mais dois pares de combatentes que iriam permanecer na categoria dos
extremamente raros. A identificação do primeiro par não suscita dificuldades de maior:
os dois homens são archeiros com cascos e uma protecção no braço esquerdo. Se os
interpretarmos isoladamente, parecem tratar-se de tropas auxiliares do exército
romano. Porém, o contexto gladiatório em que Chrysippus os inseriu leva a que os
identifiquemos como sagittarii. Esta representação é verdadeiramente excepcional: de
facto, ao que julgamos, apenas há dois baixos-relevos que ilustram este tipo de
gladiador, e, no domínio literário, acha-se muito mal documentado. Uma passagem
frequentemente citada, da autoria de Pérsio (Sátiras, 4.42), na realidade não deve ter
nada a ver com a gladiatura; o seu teor consiste, essencialmente, numa metáfora de
cariz moral sobre o facto de não nos preocuparmos com as nossas próprias fraquezas,
prestando só atenção às manifestadas pelos outros:

«Nós atacamos e, quando chega a nossa vez, expomos as nossas pernas aos sagittarii».

Noutro trecho, desta feita de Herodiano, também amiúde referida, o seu conteúdo
apresenta-se manifestamente associado com o mundo do anfiteatro: mas repare-se que
o autor evoca o imperador Cómodo a matar centenas de animais selvagens com arco e
flecha a partir do alto da sua tribuna. Assim, não descreve um combate de gladiadores
mas discorre sobre os bestiarii. Herodiano também não se reporta aos gladiadores
sagittarii, que por essa altura, se terão convertido numa simples variante de caçadores
da arena. Os testemunhos epigráficos também não se revelam de grande ajuda, dado
que só existe uma referência funerária que se pode relacionar com este tipo de
combatente: encontra-se numa inscrição colectiva que reúne os gladiadores de um
ludus de Venusia, na Apúlia (CIL IX 466)383.

Como outros combatentes da arena, o sagittarius consistia num gladiador procedente


da esfera militar. O arco jamais fora uma arma muito empregue pelos romanos e, havia
muito tempo, que tinham recorrido a auxiliares estrangeiros para assumir esta
especialidade nas fileiras do seu exército. À semelhança do gaulês, do samnita ou do
trácio, o sagittarius partilhava com estes o carácter estrangeiro que caracterizou, como
vimos, a primeira gladiatura «étnica». Mas esta especialidade não obteve suficiente
adesão do público romano a ponto de se tornar popular, caso contrário, esta armatura
teria certamente recebido o nome de um povo concreto que fosse conhecido pela sua
destreza no tiro ao arco384; nada disto aconteceu e os sagittarii rapidamente caíram no

383 Este epitáfio diz respeito ao sagittarius Quintus Granius. A sua morte, ainda como tiro, parece demonstrar que este
género de combate com arco não estaria isento de perigo, podendo conduzir a uma interrupção prematura da carreira.

152
olvido como gladiadores. Ainda assim, as representações plásticas de arqueiros
perduraram mais tempo no domínio das venationes que tinham lugar nos anfiteatros.

Resta examinar o derradeiro par discernível nos gobelets de Chrysippus, o qual A.


Desbats identificou com acerto, como sendo gladiadores andabatae. De acordo com a
maioria dos autores, estes combatentes tinham como principal característica lutarem
com os olhos vendados, e de se fazerem notar entre si por meio de pequenos sinos. A
interpretação formulada por A. Desbats parece justificada, já que o objecto que estes
dois homens seguram na mão direita é demasiado pequeno para corresponder a uma
parma; pode, então, tratar-se de uma sineta; além disso, a cabeça bastante levantada
do gladiador da direita indica, aparentemente, que não consegue ver bem o seu
adversário.

Caso aceitemos esta hipótese, os gobelets de Lyon assumem uma importância ainda
maior, ao facultarem, pela primeira vez, uma representação deste misterioso tipo de
gladiador. Segundo os testemunhos literários de Hierão e de Varrão, muitas vezes
citados mas que se devem ler ou aceitar com cautela, estes gladiadores combateriam
com uma faixa sobre os olhos. Estas fontes díspares e pouco fiáveis não impediram
vários estudiosos de glosar, cada qual ao seu modo, sobre este gladiador. A natureza
aleatória deste género de combate constituiria, aos olhos desses autores, a prova
tangível dos gostos sádicos atribuídos aos romanos. A cena elaborada por Chrysippus é
tanto mais interessante quanto o facto de ela constituir uma fonte que permite
identificar mais especificamente este tipo de combatente (de outra maneira só nos
restariam suposições ou conjecturas para o fazer!). No entanto, tal como o caso dos
sagittarii, o termo armatura talvez não seja apropriado para este tipo de gladiadores.

Que saibamos, não sobreviveu qualquer epitáfio de um andabata; também se torna


difícil de dizer se ele consistiria numa verdadeira categoria de gladiador ou se não seria
apenas um elemento que participaria num género de animação que fosse apresentada
em paralelo aos autênticos combates da arena. Pela disposição das figuras na peça de
Chrysippus, inclinamo-nos mais para a última hipótese: efectivamente, é possível
discernirmos os dois andabatae situados entre dois pugilistas à esquerda e o combate
do «proto-retiarius» à direita. Assim, num espectáculo, os andabatae serviriam para
marcarem uma espécie de crescendo, que se iniciava com a exibição das disciplinas
clássicas de luta de origem grega385 e culminava com as verdadeiras pugnas
gladiatórias.

384 Os Sírios, durante toda a época imperial, constituiram as unidades de arqueiros do exército romano. Contudo, seria
decerto muito inapropriado exibir na arena estes aliados fiéis e tão necessários a Roma. Os Partos, outro povo de
archeiros inimigos de Roma, poderiam, em contrapartida, identificar-se com este tipo de gladiador. Mas estes temíveis
antagonistas combatiam essencialmente a cavalo.

153
Os confrontos entre andabatae teriam uma conotação provavelmente burlesca386 ou
até histriónica, e os gládios que utilizavam nem sequer teriam as lâminas afiadas.
Cícero, o primeiro autor a aludir a este tipo de combatentes, sugere, por seu lado, que o
andabata seria de facto um gladiador, mas de fraco interesse. Numa carta para um
amigo, o ilustre advogado, orador e político evoca os combates de gladiadores num tom
de brincadeira ou gracejo; Cícero, que ficara em Roma, mete-se com o seu amigo
Trebatius, que então se encontrava no Norte da Gália 387:

«Possuis motivos para te regozijares por teres ido para onde estás, numa região em que podes
fazer figura de sábio. Ah, se tu também te tivesse deslocado à Britânia, não haveria aí ninguém,
certamente, nessa ilha, ainda que tão grande, que fosse mais forte do que tu!... Mas és mais
prudente na guerra do que nos teus pareceres: não foste tu que te recusaste a nadar no Oceano,
tu, que apesar disso, és um apaixonado pela natação? Não foste tu que te negaste a usufruir do
espectáculo dos essedarii, tu que anteriormente nós já não conseguíamos enganar como a um
andabata?» (Ad Trebatius, 7.10).

Os essedarii que Cícero cita significam tanto uma alusão aos guerreiros da Britânia
que pelejavam em carros movidos por cavalos, como a uma categoria específica de
gladiadores (sobre a qual oportunamente nos debruçaremos). As tropas a mando de
Júlio César lutaram contra os Celtas, durante as duas expedições sucessivas à Britânia,
utilizando os últimos ainda carros de combate, ao passo que os Gauleses do continente
europeu já os haviam abandonado. Cícero troça, assim, do seu amigo, por não ter
viajado até essa ilha para enfrentar tais guerreiros («és mais prudente na guerra...») e
faz uma comparação entre os essedarii e os andabatae388. Da passagem acima citada
extraem-se dois elementos informativos: primeiro - os essedarii consistiam mesmo em
gladiadores apresentados em munera ao público desde o tempo de Júlio César, de
outra forma o cotejo com outro tipo de combatente da arena seria incompreensível;
segundo - os andabatae representariam a categoria mais medíocre dos gladiadores: só
assim se compreende o sentido de «não conseguíamos enganar como a um
andabatae».

Dito isto, os andabatae não seriam propriamente gladiadores, mas indivíduos que
tinham por função fazer «subir o pano», isto é, tal como os pugilistas representados no
gobelet de Lyon, prepararem os espectadores para o espectáculo a sério que se
desenrolaria a seguir. Ao admitirmos esta função menor dos andabatae, então afigura-

385 Além disso, este gobelet é o único documento plástico que associa pugilistas a gladiadores. Mesmo que os laços
entre a gladiatura e as disciplinas olímpicas de combate sejam evidentes, a representação em simultâneo destas duas
modalidades reveste-se de grande interesse.

386 Como seria, mais tarde, o caso dos paegniarii.

387 A correspondência epistolar data de 54 a. C. Trebatius Testa (84 a. C-4 d. C.) foi um reputado jurista que se veio a
tornar um dos conselheiros de Júlio César, mediante recomendação de Cícero.

388 Sendo o vocábulo igualmente de origem gaulesa, a sua utilização também se pode justificar nesta carta.

154
se lógico depreendermos que estes «combates de gladiadores» com os olhos vendados,
indiscutivelmente grotescos, não tinham comparação possível com os confrontos
técnicos dos profissionais do anfiteatro. Ao que parece, os combates entre andabatae
não culminavam na morte de um dos oponentes, a menos que correspondessem a
homens condenados a aniquilar-se mutuamente para maior satisfação do público 389.

Ao tomarmos em consideração estes dados, os objectos de cerâmica (sobretudo vasos)


decorados com cenas gladiatórias que Chrysippus elaborou na sua oficina não só
oferecem uma representação muito precisa de um par de galli, armatura característica
dos primeiros tempos da gladiatura, como também revelam quatro armaturae que
viriam a transformar-se nos «pilares» da gladiatura «clássica»: de facto, vemos
reunidos, pela primeira vez, em pares, um thraex, um retiarius, um samnis-murmillo e
um thraex-hoplomachus. Além disso, dois tipos de gladiadores pouco conhecidos,
como o sagittarius e o andabata foram igualmente figurados, ainda que pouco futuro
viessem a ter após o reinado de Tibério.

O estudo comparativo desta diversidade com as armaturae presentes nos relevos de


Lucus Ferionae vem a demonstrar um processo de aceleração de inventividade por
parte dos lanistae no início do Principado. As esculturas bidimensionais de Lucus
Feroniae terão sido executadas por volta dos decénios de 40 ou 30 a. C.; se, por um
lado, elas nos mostram já uma gladiatura codificada e profissional, por outro, a mesma
ainda se fundamenta nas armaturae directamente procedentes da gladiatura «étnica».
Alguns anos depois, os vasos manufacturados em Lyon confirmam esta tendência, ao
mesmo tempo que acentuam a faceta espectacular. Atesta-se esta evolução mediante a
aparição de gladiadores que abandonaram definitivamente a sua conexão com o
domínio militar e se transforamaram em verdadeiros profissionais do combate-
espectáculo.

Não admira que os gobelets de Chrysippus possuam bastante valor para o estudo da
génese da gladiatura «clássica». Lamentavelmente, nestas peças de cerâmica não
aparecem as designações dadas a tais armaturae. Provavelmente, os nomes de certos
tipos destes novos gladiadores não deveriam estar ainda totalmente estabelecidos. O
combatente que mais tarde seria identificado como hoplomachus distingue-se ainda
mal do thraex, assim como o myrmillo relativamente ao gallus ou ao samnis. Só a
partir do século I d. C. é que estas denominações técnicas da nova gladiatura viriam a
ficar claramente definidas.

389 Não é inverosímil supor que os andabatae correspondessem aos «antepassados» dos paegnarii, partilhando com
estes o carácter de combatentes paródicos.

155
Perante um acervo documental tão excepcional, vale a pena perguntar que evento terá
justificado a produção de tais imagens; com efeito, como explicar estas cenas de
gladiadores tão precisas e completas, reunidas num mesmo local e num lapso de tempo
tão curto? De acordo com A. Desbat, as peças produzidas na oficina de Chrysippus
datam, possivelmente, entre 20 e 15 a. C. Esta grande exactidão cronológica, tão rara no
domínio gladiatório, permite que aventemos uma hipótese: mesmo que nada sirva para
garantir que estas peças possuem um carácter «lionês», a concentração das mesmas no
local de Muette leva a supor que terão sido feitas por ocasião de um acontecimento
concreto; sabemos que Agripa, em 20-19 a. C., e Augusto, em 16 a. C., se deslocaram à
Gália, e que passaram, certamente, por Lugdunum (Lyon); nesta ordem de ideias, tudo
leva a crer que, tanto um como o outro tenham oferecido jogos na nova capital das
Gálias. No entanto, neste período, a região não contaria ainda com ludi dignos desse
nome. Mesmo assim, nada nos impede de pensar que Agripa e Augusto possam ter
recorrido aos seus próprios gladiadores, provenientes das escolas italianas. Se, de facto,
estes jogos se realizaram, então foram os primeiros de alguma importância que a Gália
conheceu. Neste caso, não seria surpreendente, pois, que um ceramista, eventualmente
proveniente de Itália, aproveitasse a ocasião para apresentar à sua clientela romano-
gaulesa imagens de gladiadores – já conhecidos na península itálica mas que ainda
constituiriam uma novidade do outro lado dos Alpes.

Se bem que a comemoração de um munus não passe de uma suposição, o certo é que
os vasos decorados de Chrysippus formam um conjunto icónico deveras precioso para
o entendimento da gladiatura na sua globalidade. Podemos fazer esta constatação por
três razões: a) estas imagens mostram, talvez pela primeira vez, um munus completo e
permitem identificar várias armaturae bem distintas num único género de suporte,
que foi produzido em série; b) estas peças de cerâmica estão datadas, como já dissemos,
com exactidão, fenómeno incomum no corpus iconográfico gladiatório; c) o momento
histórico em que foram elaborados estes gobelets afirma-se verdadeiramente crucial na
história dos gladiadores; neste período, a gladiatura já havia deixado de parte os
esquemas rituais arcaicos; quanto à aparência «étnica» da gladiatura do tempo da
República conquistadora, também se apresenta já ultrapassada. A este título, não é fácil
imaginar como os galo-romanos de fresca data, que terão assistido ao combate entre
dois galli em Lyon, reagiram a este espectáculo.

Todavia, não restam dúvidas que, para os colonos romanos vindos de Itália, este
duelo, talvez exibido pela primeira vez em território celta, suscitou, decerto, um justo
sentimento de orgulho entre os filhos dos conquistadores do tempo de Júlio César. Por
seu turno, os gauleses de velha cepa podem igualmente ter apreciado este tipo de

156
confronto, encarando-o como uma espécie de homenagem à bravura dos guerreiros
seus antepassados e das respectivas técnicas de combate. Aproximadamente na mesma
altura, idêntica atitude terão revelado os habitantes de Samnium para com o gladiador
samnis/samnita. Seja como for, romanos e galo-romanos deviam comungar da mesma
admiração pelos combatentes profissionais, dos quais, tanto uns como outros
apreciariam, sobretudo, as qualidades técnicas.

No tempo de Chrysippus, durante o principado reformador e pacificador de Augusto,


a nova gladiatura saiu da matriz da República findante. Neste momento histórico, já
estariam presentes os elementos básicos da gladiatura «clássica» da época imperial,
com as principais armaturae técnicas. Contudo, as imagens fugazes esculpidas por
Chrysippus na argila dos seus moldes não estavam totalmente definidas, uma vez que
os gladiadores do século subsequente ainda continuariam a evoluir. Deste modo, as
referências às peças de cerâmica da oficina de Lyon são valiosas para compreendermos
e datarmos as mutações que posteriormente se iriam operar.

***

Em 27 a. C., o Senado atribuiu a Octávio o título de Augustus. Ele passou a controlar


os exércitos de Roma e o aerarium, anteriormente sob a tutela do Senado, cujo poder e
capacidade decisória muito diminuíram. A maior parte das antigas magistraturas
republicanas ainda existia mas elas estavam prestes a tornar-se em cargos honoríficos.
Agora, ninguém era nomeado para um cargo, nem podia fazer algo de significativo
enquanto o exercesse sem a aprovação de Augusto 390. As eleições populares, minadas
numa primeira fase por Júlio César e, depois, por Augusto, acabaram por desaparecer
durante o reinado de Tibério, filho adoptivo e sucessor de Augusto no trono. O processo
eleitoral passou a desenrolar-se no Senado, que não desejou contrariar os desígnios do
imperador. Teoricamente, apesar de haver uma certa aparência de constitucionalidade
na sua forma, na prática, o governo romano transformou-se numa monarquia 391.

Com tudo isto, o munus também sofreu alterações: ao longo da República, este evento
consistia num assunto inteiramente privado (nominalmente, pelo menos), um dever e
uma oferta levados a cabo pelos filhos em honra dos seus progenitores 392. O único sinal
de interesse que o governo evidenciou pelos combates gladiatórios durante a República

390 Díon Cássio, Hist. rom. 53.21.6. Veja-se Z. Yavetz, Plebs and Princeps…, p. 103.

391 R. Dunkle, Gladiators…, p. 174.

392 R. C. Beacham, Spectacle Entertainment of Early Imperial Rome…, pp. 13-14.

157
foi em 105 a. C., ainda que de forma indirecta, altura em que os Romanos, mergulhados
numa grave crise militar (haviam sofrido uma terrível derrota contra os invasores
germânicos em Arausio (actual Orange, França), procuraram a ajuda de instrutores
que trabalhavam numa escola gladiatória. Valério Máximo diz-nos que os cônsules
desse ano, P. Rutílio e Cn. Málio, contrataram os doctores do ludus pertencente a C.
Aurélio Escauro para treinarem os soldados em manobras ofensivas e defensivas,
esperando, com tal medida, incutir nas tropas mais coragem aliada a uma melhor
técnica de combate393. No referido ano de 105 a. C., não restam grandes dúvidas de que
os cônsules utilizaram dinheiro do Estado para custear a formação dos soldados, mas
não se registou qualquer tentativa, da parte das autoridades, para assumir o controlo
do munus, ao contrário do que alguns autores sustentaram. Não se estabeleceu, pois,
em tal momento histórico, um precedente para o financiamento governamental dos
munera.

Mas organizaram-se munera financiados parcialmente com fundos públicos nas


possessões romanas (províncias e colónias), antes de o mesmo acontecer na Urbs: por
exemplo, na lex Ursonensis394, de 44 a. C., que correspondia aos estatutos ou
constituição da cidade de Urso (também denominada em latim Colonia Genetiva Iulia,
correspondente à actual Osuna, província de Sevilha), uma colónia cesariana na
Hispania, especifica-se que os duoviri (os dois principais magistrados a nível local,
eleitos por um ano 395
) seriam obrigados a oferecer um munus ou representações
teatrais396 ao longo de quatro dias, no âmbito dos ludi em honra de Júpiter, Juno e
Minerva. Eles teriam de desembolsar, a título pessoal, um mínimo de 2 000 HS
(iniciais empregues nas fontes romanas para designar os sestércios), recebendo, por

393 Factorum et Dictorum Memorabilia, 23.2.Enódio, um autor do século V, afirmou que Rutílio e o seu colega deram
um munus patrocinado pelo governo, a fim de que o povo de Roma pudesse experimentar a sensação da guerra
(Panegyricus dictus clementissimo regi Theodorico, 19). No entanto, é provável que tal asserção constitua uma
distorção deliberada do ideário de Valério Máximo, para servir, um pouco, de propaganda tardia a favor da existência
das pugnas gladiatórias, a fim de contrariar as crescentes objecções suscitadas pelos polemicistas cristãos.

394 A. d’Ors, Epigrafía Jurídica de la España Romana, Madrid, 1953, pp. 259-265; M. H. Crawford et al. (eds.),
Roman Statutes, I, Londres, 1996, pp. 393-454. Trata-se de um conjunto de medidas gravadas em tábuas de bronze, que
reproduzem um texto legal exarado em Roma em começos do século I d. C.

395 O título completo desta magistratura era duumviri iure dicundo, isto é, o «duumvir para dizer a lei», «encarregue
de fazer justiça». O «executivo» de uma cidade compunha-se frequentemente de seis magistrados, que formavam um
pequeno cursus honorum local: dois questores, dois edis e os duoviri. Estes e os edis constituíam, amiúde, um
verdadeiro colégio. Para um candidato a duumvir, era necessário que fosse livre e cidadão local, possuir um censo, que
variava segundo as cidades, mas que podia ir até aos 100 000 HS; também precisava de ter 25 anos de idade, pelo
menos, e exigia-se um prazo entre as magistraturas: para um indivíduo que buscasse tornar-se duumvir, havia que
aguardar algum tempo (por vezes cinco anos) e antes ter ocupado o cargo de edil. Para mais dados sobre a
administração municipal romana, consultem-se: J.-P. Martin, Les Provinces Romaines d’Europe Centrale et Occidental
(31 avant J. C.-235 après J. C.), Paris, Sedes, 1994, pp. 192-193; B. Lançon, L’État Romain – Quatorze siècles de
modèles politiques, Paris, Éditions Nathan, pp. 66-67.

396 Esta obrigação traduzia-se na expressão munus vel ludus scaenicis.

158
outro lado, não mais do que igual montante do erário público 397. Embora o texto desta
lei date do tempo de Júlio César, é muito provável que os pontos-chave que nela se
estabelecem se tenham mantido no começo da época imperial.

Lex Ursonensis, 70:

Ilviri quicumque erunt ei praeter eos, qui primi post hanc legem facti erunt, ei in suo
magistratu munus ludosve scaenicos Iovi Iunioni Minervae deis deabusque quadriduom
maiore parte diei, quot eius fieri poterit, arbitratu decurionum faciunto inque eis ludis eoque
munere unusquisque eorum de sua pecunia ne minus HS ∞ ∞ consumito et ex pecunia publica
in singulus Ilviros dum taxat HS ∞ ∞ sumere consumere liceto, itque is sine fraude sua facere
liceto, dum ne quis ex ea pecunia sumat neve adtributionem faciat, quam pecuniam hac lege
ad ea sacra, quae in colonia aliove quo loco publice fient, dari adtribui oportebit;

«Quem quer que seja duumvir, excepto aqueles que sejam nomeados pela primeira vez após
esta lei, deve, durante a sua magistratura organizar […] um munus ou jogos cénicos em honra de
Júpiter, Juno e Minerva, e para os deuses e deusas, durante quatro dias, durante grande parte
do dia, desde que seja possível segundo a decisão do conselho, e no mencionado munus ou jogos
cénicos, cada um deles [os dois duoviri] deve gastar não menos de 2 000 HS do seu próprio
dinheiro, e do tesouro público será lícito que cada duumvir retire uma soma que não exceda 2
000 HS, e não há fraude em que assim actuem, sem prejuízo para eles, desde que não se
apropriem desse dinheiro que, segundo esta lei, lhes é dado para [gastar] nos sacrifícios públicos
que se realizam nesta cidade ou noutro lugar».

A concepção e a prática no funcionalismo local dentro do mundo romano eram muito


distintas da filosofia subjacente que actualmente vigora. Hoje em dia, esperamos que os
membros dos conselhos locais se vejam compensados pelas despesas efectuadas
enquanto representam a sua comunidade. Os Romanos, pelo contrário, esperavam que
um homem pagasse pelo privilégio de pertencer a um ordo (conselho) ou de ser um dos
magistrados eleitos, porque o estatuto tinha o seu preço. Assim, quando os eleitores de
Urso escolhiam entre os diferentes candidatos, estavam a eleger um dos mecenas rivais.
O trecho acima citado afigura-se típico da meticulosa lei romana. É curioso verificar
como se estipula explicitamente que os espectáculos (um munus ou uma representação
teatral) deviam durar «grande parte do dia», não sendo possível escapar apenas com
uma manhã.

Ao estipular que os magistrados, a nível individual, tinham de reunir o dinheiro


fornecido pela respectiva cidade a partir dos seus próprios recursos pessoais, Júlio
César estava a institucionalizar, efectivamente, o que por essa altura já era uma prática
comum em Roma. Para os jogos organizados pelos edis (aediles, no singular aedile, a
segunda magistratura mais importante, logo abaixo dos duoviri), menos honoríficos, a
cidade e os magistrados necessitavam de facultar 1 500 HS cada. Mas não se atribuíam
somas de numerário para os munera gladiatórios: não por que não ocorressem, mas

397 ILS 6087.70. Cf. K. Welch, «The Roman Arena in Late-Republican Italy […]», p. 62.

159
pela razão de que, tal como sucedia na Urbs, eram oferecidos por indivíduos na sua
capacidade privada 398.

No século I da nossa era, os munera financiados com fundos públicos tornaram-se


relativamente comuns nas cidades de Itália 399
. Numa fonte epigráfica descoberta em
Pompeia (55 d. C.), depreende-se que se levava a cabo tal prática em relação aos
munera, porque no documento se louva um ilustre magistrado, Aulus Clodius Flaccus,
que exercia o cargo de duumvir quinquennalis 400
(função idêntica à de censor em
Roma) por haver oferecido um espectáculo envolvendo touros, javalis e ursos e trinta
pares de atletas e cinco pares de gladiadores à sua própria custa (solus) 401
; organizou
ainda uma segunda venatio e um munus com 35 pares de gladiadores, desta feita
partilhando as despesas com o seu colega quinquennalis (cum colega) 402
. Numa
inscrição procedente de Lugdunum, presta-se homenagem ao filho de um liberto pela
«munificência dos espectáculos que ofereceu por sua própria vontade ou, então, por
não se negar a apresentá-los quando lhes fossem pedidos 403.

Nem todos os detentores de cargos municipais e provinciais possuíam recursos para


custear os dispendiosos espectáculos que o povo estava à espera de assistir. Em 27 d.
C.,Tibério proibiu que oferecessem munera nas municipalidades italianas todos os que
não tivessem o valor patrimonial requerido a um membro da classe equestre, 400 000
HS, montante que, aliás, Petrónio menciona no Satyricon, como equivalente aos gastos
com um munus numa localidade campaniana que tivesse a duração de três dias Os
imperadores subsequentes vieram a legislar mais a fim de se estabelecer um limite
superior àquilo que fosse esperado, para grande alívio dos magnatas locais. Em certas
ocasiões, as cidades tiveram de fornecer numerário aos seus magistrados, de maneira a
permitir-lhes apresentar o que, em teoria, seriam ofertas gratuitas destinadas ao povo.
Em Allifae, por exemplo, L. Fadius Piero ofereceu uma venatio completa e 21 pares de
gladiadores durante o seu duumvirato, recebendo 130 000 HS da municipalidade 404.

398ILS 6087. Consultem-se igualmente as provisões da Lex Irnitana flávia, AE 1986.333 § 77, e T. Wiedemann,
Emperors and Gladiators…, p. 9.

399 Para mais dados sobre os editores dos munera em Itália, consulte-se M. Fora, I munera gladiatoria in Italia.
Considerazioni sulla loro documentazione epigrafica, Nápoles, 1996, pp. 19-40.

400 A cada cinco anos, os duoviri tinham a tarefa suplementar de inscrever os novos membros do conselho (ordo
decurionum) e actualizar a lista dos cidadãos locais, responsabilidade que se reflectia no título especial de duumvir
quinquennalis.

401 CIL IV 7991.

402ILS 5053= CIL X 1074. Na derradeira alínea deste capítulo, centramo-nos novamente em Aulus Clodius Flaccus,
bem como noutros editores de espectáculos de Pompeia.

403 AE 1982.681: vel postulata non negavit.

160
Com o passar do tempo, os incentivos para os membros das elites municipais para
gastarem os seus recursos em tais espectáculos públicos tornaram-se cada vez mais
fracos, à medida que diminuiu gradualmente o interesse pela ocupação de cargos e, até,
pelo prestígio no seu sentido lato, no seio das comunidades. Daqui resultou que a
responsabilidade pela oferta de jogos e de outros espectáculos se converteu em algo
semioficial. Assim, de dádivas voluntárias os combates gladiatórios converteram-se em
eventos obrigatórios cujo patrocínio se exigia aos cidadãos mais abastados. Em
Praeneste (actual Palestrina, onde existiu um importante ludus gladiatório), temos
notícia de um indivíduo, Gnaeus Voesius Aper, que exerceu a função de curator
muneris publici em três alturas distintas405. Deparamos com o mesmo título em fontes
epigráficas de Grumentum, Ticinum (Pavia), no Norte e no Sul de Itália,
respectivamente, e em Dea Vocontiorum (Dié), na Gália meridional406.
Aproximadamente na mesma altura, a expressão «munus público» é empregue em
duas inscrições procedentes de Fondi (antiga Fundi)407.

Na Cidade Eterna, atestam-se munera regularmente patrocinados pelo Estado a partir


de finais do século I a. C. Como se viu, só nas derradeiras décadas da República é que o
governo começou a dar-se conta, em pleno, dos perigos políticos inerentes a tais
espectáculos e, extensivamente, a tentar eliminá-los através de medidas legais (como as
referidas Lex Calpurnia de ambitu e a Lex Tullia de ambitu). Em 22 a. C., sob a égide
de Augusto, este, por lei, passou a ter nas mãos a regulamentação dos munera,
podendo utilizá-los quando fosse conveniente ou oportuno. Em face dos antecedentes
históricos dos munera ao longo dos últimos decénios da época republicana, Augusto,
no início do seu Principado, decidiu estabelecer um controlo bem mais apertado na
oferta destes espectáculos. É muito possível que ele tenha ficado alarmado com o
grande êxito que teve uma venatio, apresentada em 25 a. C. pelo pretor P. Servilius, na
qual se massacraram trezentos ursos e idêntico número de animais africanos. De
acordo com Díon Cássio, Servilius «fez o seu nome» graças a este evento, tal como
durante a República o fizeram muitos políticos ambiciosos 408.

404 ILS 5059 = CIL IX 2350: Duumviratu suo acceptis a re p. xiii [m] n: venation. plenas et gladiatorum paria xxi
dedit»

405 CIL XIV 3014.

406 ILS 6252; ILS 6451, 6742, 6992.

407 CIL X 6240; 6243.

408 Hist. rom. 53.27.6. J.P.V. D. Balsdon (Life and Leisure in Ancient Rome, Londres, 1969, p. 307) viu neste evento «o
último grande espectáculo de animais oferecido por um indivíduo privado».

161
Três anos depois, Augusto introduziu disposições legais que muito dificultavam que
alguém recorresse a espectáculos para obter benefícios políticos. O princeps confiou a
responsabilidade por todos os espectáculos (incluindo combates gladiatórios e
venationes) a uma comissão de pretores409. Anualmente escolhiam-se por sorteio dois
indivíduos pertencentes ao colégio dos pretores para realizarem essa tarefa, recebendo,
para o efeito, um estipêndio do tesouro público 410. Quaisquer gastos adicionais
efectuados por um dos pretores, a título pessoal, nos espectáculos não poderiam
exceder os do seu colega 411.

Esta limitação imposta nas despesas servia obviamente para impedir que um
determinado pretor clamasse maior crédito no financiamento dos eventos para si
mesmo em detrimento do seu colega. Também se impôs uma restrição sobre a quantia
de numerário que os pretores podiam retirar dos seus próprios bolsos (possivelmente
talvez equivalendo a um montante igual ao do estipêndio governamental), o que se
deduz quando, três anos mais tarde, Augusto deu autorização aos pretores para
gastarem, se assim o desejassem, uma quantia três vezes superior à que haviam
recebido do aerarium 412
. Ao que parece, a atitude de Augusto reflectiria o facto de se
sentir mais seguro na sua posição, pelo que encararia como menos perigosas do que
antes as ambições políticas alimentadas pelos pretores.

À semelhança dos ludi durante a República e a época imperial, o munus apresentado


pelos pretores era um evento anual, patrocinado pelo Estado. Recorde-se que nos
tempos republicanos, todos os munera e caçadas de animais selvagens constituíam
espectáculos opcionais que não eram legalmente exigidos aos edis (ao contrário dos
ludi), mas por eles financiados a título privado, como fossem um prolongamento dos
ludi. Estes, apesar de serem antigos entretenimentos rituais em honra de várias
divindades, não despertavam o mesmo entusiasmo que os combates gladiatórios (salvo
as corridas circenses, outra grande paixão dos Romanos), que se converteram no
principal instrumento empregue pelos homens politicamente ambiciosos no decurso da
República.

Imperadores mentalmente instáveis, como um Calígula, mostraram-se especialmente


suspicazes relativamente à ambição privada que pudesse estar subjacente à oferta de

409 Díon Cássio, Hist. rom. 54. 2.3-4.

410 Ibidem, 59.14.2.

411 Ibidem, 54.2.3-4. Veja-se, a propósito, G. Ville, La gladiature…, p. 120.

412 Díon Cássio, Hist. rom. 54.17.4. Estas regras não se aplicavam ao imperador nem aos membros da sua família, que
não tinham limites definidos para as despesas com os espectáculos.

162
um munus. Calígula, depois de constatar que o tesouro se encontrava quase vazio,
resolveu, num acto de desespero, vender gladiadores da sua escola imperial a preços
exorbitantes, não só aos dois pretores que apresentavam o munus anual, mas também a
cidadãos privados, permitindo-lhes ignorar a lei que limitava o número de gladiadores
que se podia exibir num espectáculo. Alguns compradores adquiriram os combatentes
de livre vontade, mas a maioria fê-lo coagida, com medo de ofender o imperador. No
entanto, Calígula depressa se arrependeu das vendas e apercebeu-se da ameaça que os
compradores de gladiadores poderiam criar à sua governação e prestígio: assim,
ordenou que se envenenassem os melhores homens da arena que tinham sido vendidos
.
413

Suspeição análoga esteve possivelmente por detrás da substituição que Cláudio fez
dos pretores por questores na qualidade de editores do munus anual, bem como da sua
recusa em autorizar a apresentação dos munera patrocinados a nível privado, mesmo
que oferecidos em nome do bem-estar do imperador 414. Posteriormente, já na dinastia
Flávia, mais propriamente no reinado de Domiciano, os munera em Roma foram
apenas oferecidos pelo próprio imperador ou, então, por um seu familiar ou um
magistrado agindo como seu representante415.

Apesar de se registarem mudanças políticas em Roma, a passagem do governo


republicano para o regime imperial não comportou grandes alterações nas demais
cidades de Itália: nelas, a política continuou activa, em certa medida, nos mesmos
moldes em que se desenvolvera em Roma, sob a República: os patrícios locais
competiam entre si pela disputa de cargos que encerravam verdadeiro poder, sendo
eleitos para os mesmos pelo povo, quase sempre sem a interferência do imperador.
Assim, como na Urbs republicana, o munus desempenhava importante papel na eleição
dos candidatos para os cargos públicos e ofícios políticos. Um dos motivos pelos quais
se encontram menções aos munera em inscrições municipais, como provas da
liberalidade de um dignitário local, prende-se ao facto de constituírem espectáculos
excepcionais, para além de significarem uma obrigação muitas vezes formalmente
exigida aos titulares de cargos municipais.

413 Ibidem, 59.14.1-5.

414 Ibidem, 60.5.6. G. Ville, La gladiature…, pp. 164-165

415T. Wiedemann, Emperors and Gladiators…, p. 8. A organização dos munera dados pelo imperador ficava a cargo de
um funcionário imperial incumbido desta tarefa. Temos conhecimento de um superintendente (curator) de munera e
venationes, sob a égide de Calígula, que desapontou seriamente o princeps. Este ordenou então que o espancassem com
correntes durante vários dias consecutivos. A certa altura, o cheiro nauseabundo dos miolos do infortunado servidor
levou Calígula a pôr termo à sua agonia, mandando matá-lo (Suetónio, Calígula, 27.4).

163
Numa destas fontes, um munerarius que apresentou um espectáculo em determinada
localidade, declara ter sido «o primeiro de todos os editores a fornecer cinco animais
selvagens à sua própria custa» 416, e noutra, um notável afirma que foi «o primeiro
editor» em Paestum417. Em Óstia, um munerarius gabou-se de ser «o primeiro de
todos, desde a fundação de Roma, a apresentar mulheres a combater» 418.

Como essas despesas eram esporádicas, atingiam totais menos cumulativos do que os
dos ludi municipais regulares. Isto não quer dizer necessariamente que fossem gastos
implicando somas quase insignificantes, embora, em certas ocasiões, os montantes
pudessem ser de facto bastante reduzidos. Na mencionada Lex Ursonensis, aparece
como valor mínimo o montante de 8 000 sestércios; em Iguvium, uma fonte epigráfica
alude a um magistrado, Gnaeus Satrius Rufus, que doou 7 750 HS para os jogos da
vitória de Augusto, os Ludi Victoriae Caesaris Augusti 419
. Por outro lado, a cidade de
Pisaurum deixou um legado de 600 000 HS, que se destinava a financiar a oferta de
um munus gladiatório de cinco em cinco anos. Se partirmos do princípio de que o
capital se investia com um retorno ou lucro de 4%, então ficariam disponíveis cerca de
120 000 HS no fim de cada quinquénio 420.

Num trecho do Satyricon de Petrónio, Equião, o farrapeiro, fala sobre um munus que
iria ser oferecido numa cidade no Sul de Itália (ao qual já nos referimos). Note-se que
embora Equião seja uma personagem fictícia, os comentários que o «árbitro da
elegância» lhe colocou na boca reflectem, com algum rigor, a relação havida entre um
munus e a campanha com vista à ocupação de um cargo público: Equião expressa
confiança de que o munus que iria ser apresentado por um tal Tito, teria excelente
qualidade. Por outro lado, o mesmo personagem reporta-se a um munus barato dado
por um certo Norbanus, salientando que dessa forma não reuniria condições para
ganhar as eleições com vista a uma magistratura que não se especifica. Equião imagina
então a resposta de Norbanus às suas críticas: «No entanto, eu ofereci-te um
espectáculo gladiatório», ao que Equião replica, «E eu aplaudo-te, mas se pensares
bem, dei-te mais do que recebi. Uma mão lava a outra» 421. Os espectadores que

416CIL IX 2237: quod primus omnium editorum sumptu proprio quinque feras dederit.

417 AE 1975.252: primus ediderat.

418 M. Cébeillac-Gervasoni e F. Zevi, «Revisions et nouveautés pour trois inscriptions d'Ostie»,Mélanges de l'École
Française à Rome, 88.2 (1976), p. 612. No Capítulo IV, referimo-nos novamente a esta fonte, na alínea respeitante às
mulheres na gladiatura.

419 ILS 5531.

420 CIL XI.6377: ex DC usuris.

421 Petrónio, Satyricon, 45.13

164
ficassem desapontados com um munus constituíam uma responsabilidade imputável a
um munerarius politicamente ambicioso.

A actividade política local continuou a desenvolver-se dinamicamente nos territórios


imperiais fora da península itálica. A única interferência por parte do imperador dizia
respeito aos dignitários provinciais romanos, e não aos políticos locais: por exemplo,
Nero emitiu um decreto proibindo os munera oferecidos pelos magistrados provinciais
e outros funcionários, alegando que tais espectáculos significavam uma tentativa para
distrair os provinciais dos abusos governamentais422. T. Wiedemann sugeriu que o
motivo real de Nero ao promulgar este decreto tinha a ver com o seu medo de que a
popularidade ganha pelos editores ao oferecerem os munera viesse a criar rivais para a
sua governação423. No entanto, esta proibição não terá sobrevivido à morte do
imperador.

O munus anual patrocinado pelo Estado era uma garantia de que haveria, pelo menos,
um evento gladiatório em cada ano para entreter o povo (Augusto declarou que, se lhe
fosse pedido, autorizaria a organização de dois). Com o estrito controlo governamental
sobre os munera, registou-se, decerto, um acentuado declínio dos espectáculos
apresentados e custeados por indivíduos a nível privado. Augusto tinha estipulado que
eram necessários três requisitos básicos para um editor de um munus opcional: a
permissão oficial do Senado, o limite máximo de dois munera por ano e o número de
pares de gladiadores não poderia exceder os sessenta 424. Não estaremos errados se
pensarmos que a população esperaria que o imperador acabasse por ceder um pouco,
dando alguma folga.

Alguns imperadores reagiram mais favoravelmente que outros, em função do interesse


pessoal que nutrissem pelos combates gladiatórios. O curriculum de Augusto no
patrocínio dos munera afigura-se instrutivo: embora apreciasse os espectáculos em
geral e os jogos gladiatórios em particular, não se pode dizer que ele tenha sido um
editor muito activo dos munera. No resumo dos feitos da sua vida (Res gestae),
Augusto declara haver oferecido munera em seu nome por três vezes, e cinco em nome
dos seus enteados e «netos»425. Ora isto perfaz apenas oito munera num reinado de 45

422 Tácito, Ann., 13.31.

423 Emperors and Gladiators…, p. 43.

424 Díon Cássio (Hist. rom. 54.2.4) atribuiu tais restrições ao munus pretoriano, mas julgamos, subscrevendo a opinião
de G. Ville (La gladiature, p. 121) que as limitações se aplicariam mais logicamente aos cidadãos, a título privado, e não
aos pretores.

425 Augusto custeou estes munera que não se apresentaram em seu próprio nome. Nestes jogos, os seus enteados e
«netos» sentavam-se no lugar de honra do editor, no anfiteatro, durante os espectáculos. O objectivo desta prática
relacionava-se com a promoção das carreiras dos homens mais novos, uma espécie de resquício da principal função

165
anos, embora caiba acrescentar que, quando ele patrocinava espectáculos, estes
assumiam proporções épicas. Augusto também refere ter exibido 10 000 gladiadores
nesses oito munera, o que correspondia a uma média de 1 250 combatentes por cada
munus, praticamente o dobro do número que César proporcionou ao público em 65 a.
C. 426.

Nos tempos iniciais do Império, o munus funerário ainda estava em voga em Roma,
mas, tal como os outros munera, viu-se cada vez mais limitado pelo imperador e pela
sua família. Enquanto Augusto exerceu o poder, apresentou dois munera em memória
do seu principal general, Agripa427. Sublinhe-se que se celebraram igualmente munera
fúnebres durante o reinado de Augusto, organizados por Tibério em honra do seu pai
biológico (Tibério Nero) e do seu avô (Druso Cláudio Nero), bem como pelos «netos»
de Augusto, Germânico e Cláudio (o futuro imperador) em homenagem ao pai de
ambos, Druso (filho de Lívia, esposa de Augusto, e irmão de Tibério) 428.

Aparentemente, o último munus funerário oferecido em Roma teve lugar sob Nero,
em honra da sua mãe, Agripina. No entanto, neste espectáculo, os combates não se
travaram entre profissionais treinados, mas opondo membros masculinos e femininos
das ordens equestre e senatorial429. Na Urbs, depois do Principado de Augusto, não se
encontram quaisquer referências a munera funerários em honra de cidadãos privados,
ainda que tenham continuado a realizar-se noutras localidades em Itália, como, por
exemplo, o munus oferecido por Máximo em memória da sua falecida esposa, em
Verona.

Em 7 d. C., uma forte pressão orçamental conduziu Augusto a suspender a entrega dos
fundos destinados ao munus anual pretoriano, o que só foi reintroduzido 32 anos mais
tarde, no reinado de Calígula 430. É caso para perguntar: por que motivo é que o munus
anual pretoriano permaneceu suspenso durante tanto tempo? Talvez se deva atribuir a

política do munus republicano. Desta maneira, o imperador manifestava claramente o apoio que dava e a esperança que
alimentava pela progressão política daqueles e pela sua popularidade. Veja-se Díon Cássio, Hist. rom. 54.19.5 (para a
promoção de Augusto quanto aos seus dois enteados Tibério e Druso).

426 Augusto deu-se conta da importância de tudo isto, tanto para satisfação e entretenimento do povo, como para a sua
própria governação. Por outro lado, Dião Cássio diz-nos que era frequente Augusto não estar presente no anfiteatro
durante os espectáculos que ofereceu (54.29.6). Na sua ausência, o princeps arranjava um representante para agir como
munerarius em seu lugar.

427 O segundo munus, ocorrido em 7 a. C., consistiu em gladiadores lutando em duelos e em grupos ( gregatim),
estes envolvendo igual número de combatentes de ambos os lados (Díon Cássio, Hist. rom. 55.8.5). Aparentemente,
Augusto apreciava assistir a esta última modalidade de confrontos.

428 Díon Cássio, Hist. rom. 55.27.3; Suetónio, Divus Tib. 7.1; iv. Clau., 2.2.

429 Díon Cássio, Hist. rom. 61.17.3.

430 Ibidem, 59.14.2.

166
responsabilidade por tal facto a Tibério, filho adoptivo e sucessor directo de Augusto, o
qual não possuía, de todo, as capacidades sociais necessárias para um editor de
munera 431. Tácito esclarece-nos um pouco este aspecto:

«A aversão [de Tibério] pelos jogos gladiatórios foi explicada de várias maneiras. Alguns dizem
que as multidões o faziam sentir-se desconfortável; outros, que tal se relacionava com a sua
personalidade melancólica e ao medo de se ver comparado com a afável interacção de Augusto
com o público»432.

É muito provável que, durante os dois munera funerários, um para seu pai e o outro
para o avô (atrás referidos), em que esteve, pela primeira vez, no centro das atenções
como editor, que Tibério tenha começado a não alimentar interesse no patrocínio de
tais espectáculos . Além disso, nas linhas anteriores às acima citadas, Tácito dá a
433

entender que Tibério ficava perturbado com os jogos gladiatórios per se: no primeiro
ano do seu reinado, ele repreendeu vivamente o filho Druso, que fora o editor do seu
próprio munus, por demonstrar excessivo prazer ante o derramamento de sangue 434.
Por seu turno, Díon Cássio (57.14.3) refere-se ao desagrado de Tibério face a outro
episódio ocorrido nesse munus: recusou-se a assistir a um duelo gladiatório entre dois
membros da ordem equestre, criticando que ambos contribuíam manifestamente para
a degradação do seu status, enquanto elementos da elite. Tibério interditou o vencedor
desta pugna de combater novamente na arena435.

Depois do munus de Druso, não há notícia de outros espectáculos destes patrocinados


pelo imperador ou pela sua família durante o resto do reinado de Tibério . Mas,
436

possivelmente, houve munera organizados por cidadãos privados, só que devem ter
sido considerados de pouca importância para atrairem a atenção dos historiadores
romanos. Foi, pois, um período de provação para os adeptos dos combates e, até, em
certa medida, para os próprios gladiadores. Séneca conta que, por esta altura, um
famoso gladiador, chamado Triumphus, lamentava-se dos poucos munera que tiveram
lugar sob a égide de Tibério, tendo supostamente exclamado: «Como a nossa bela era

431 De facto, Tibério reduziu os gastos nos jogos e a sua hostilidade para com os espectáculos entendeu-se como uma
amostra de arrogância, tornano-se o imperador impopular, o que serviu de lição para os seus sucessores: J. C.
Edmondson, «Dynamic Arenas: Gladiatorial Presentations in the City of Rome and the Construction of Roman Society
during the Early Empire», in W. J. Slater (ed.), Roman Theater and Society, Ann Arbor, 1996, p. 84 (69-112).

432 Ann.1.76.

433Suetónio, Divus Tiberius, 7.2. R. C. Beacham, Spectacle Entertainment of Early Imperial Rome, p. 157.

434 Tácito, Ann., 1.76.

435 Houve mais dois imperadores que não apreciaram os combates gladiatórios: Vespasiano, por razões
indeterminadas, e Marco Aurélio, por causa da sua aversão pelo derramamento de sangue (Díon Cássio, 71.29.3).

436 Suetónio, Divus Tiberius, 47.1; Tácito, Ann., 4.62.

167
perece!»437. Os habitantes de Roma, esses terão sentido o mesmo ou ainda mais em
relação à falta de espectáculos e diversão.

A combinação de uma procura reprimida com a escassez de combates gladiatórios na


Urbs culminou num terrível desastre provocado por um só homem: um liberto,
Atílio/Attilius de seu nome, tirou proveito financeiro desta situação, ao proporcionar
um evento gladiatório, mas não gratuito, já que os espectadores tiveram de pagar
«bilhetes» para a entrada (munus assiforanum). Ele sabia que, na sua condição de
antigo escravo, teria poucas hipóteses de obter permissão para apresentar o espectáculo
em Roma, especialmente sob Tibério. Então, Atílio mandou construir um anfiteatro
temporário na cidade de Fidenae, a pouco mais de duas milhas a norte da capital.
Lamentavelmente, a sua ânsia de obter lucro a todo o custo conduziu a que ignorasse os
procedimentos básicos no que respeita à construção do anfiteatro, que não reunia
condições de segurança para acolher o peso de uma grande multidão. Os habitantes de
Roma, tanto homens como mulheres, afluíram para o local aos milhares, o que
contribuiu para que se desse uma tragédia ainda pior: toda a estrutura do anfiteatro
desabou, causando 50 000 mortos e feridos graves.

Logo a seguir à catástrofe, Atílio foi desterrado e o Senado romano reagiu a este
acidente com um decreto, segundo o qual alguém que oferecesse um munus deveria
possuir bens patrimoniais com um valor mínimo de 400 000 sestércios (a fortuna
requerida, precisamente, para se pertencer à classe equestre, como atrás dissemos),
além de que antes de se celebrar o espectáculo, teria de haver uma meticulosa
inspecção das fundações do recinto e da qualidade da estrutura edificatória 438. Mas a
culpa pelo que acontecera cabia, segundo Tácito, ao próprio Tibério em última
instância, já que nada fizera para satisfazer os «prazeres» do povo romano 439. Contudo,
o munus constituía uma instituição tão profundamente enraízada na vida e na própria
natureza dos Romanos que era impossível que desaparecesse. O que Cícero escreveu
durante a República ainda correspondia à verdade na época imperial:

«Não se pode privar o povo romano da diversão dos ludi, dos espectáculos gladiatórios e dos
banquetes … que consistem mais em actos de generosidade do que exibições interesseiras»440.

Praticamente todos os imperadores tiveram plena consciência da popularidade dos


munera entre os habitantes de Roma e do valor dos espectáculos para a «saúde»
437 Dial. 1.44.

438 Tácito, Ann. 4.63. Durante o reinado de Augusto, a qualificação patrimonial para se pertencer ao ordo senatorial
subiu para 1 milhão de sestércios.

439 Ann. 4.62.

440 Pro Murena, 77.

168
política do Estado. A maioria dos detentores do ofício imperial viram no munus uma
oportunidade soberana para ostentarem a sua «riqueza, poder e prestígio» e, o que
ainda era mais importante, uma ocasião muito apropriada para estabelecer um laço
entre eles e os súbditos441. O munus também significava uma força estabilizadora para o
Estado romano, ao funcionar como «válvula de escape» para os problemas e o
descontentamento das multidões442. Desde há muito que os ajuntamentos de gente em
Roma serviam para que o povo frequentemente expressasse as suas queixas e opiniões
políticas.

Cícero enumerou os três géneros de reuniões populares onde isso acontecia: as duas
primeiras eram de cariz especificamente político, os comitiae (assembleias centuriadas
e tribais), nos quais, durante a República, se elegiam magistrados e se votavam leis, e
ocorria o contio, altura em que os magistrados davam informações aos eleitores e
respondiam às suas questões ou dúvidas antes de votarem nos comitiae 443
. Sob
Augusto, estas assembleias já se encontravam moribundas. Os comitia, ao perderem a
sua função de elegerem os magistrados no começo do século I d. C., serviram para
passar as suas últimas leis no fim da mesma centúria, e deixando elas de existir, não
havia necessidade para o contio. Por fim, a terceira espécie de reunião pública que
Cícero mencionou era o espectáculo, englobando os munera e os ludi 444.

No Pro Sestio, Cícero dá um exemplo de um munus utilizado ao jeito de um forum


político: quando Sestio, tribuno da plebe e apologista do regresso de Cícero do exílio,
entrou no recinto e ficou no meio da multidão que assistia a um munus no Forum, foi
ovacionado pelos aplausos de toda a gente que ali estava. Como o público do munus
consistia em indivíduos de todas as classes, das altas às baixas, Cícero interpretou esta
calorosa atitude como um claro sinal de que o povo romano estava, unanimemente, a
favor que ele voltasse a Roma445. Outro caso ilustrativo do apoio do povo a Cícero
encontra-se na hostilidade que demonstrou em relação a Ap. Cláudio, irmão de P.
Clódio (que esteve por detrás do desterro de Cícero): ao chegar a um munus, Ápio
evitou ser visto pelos espectadores, encolhendo-se todo à medida que se dirigia para o

441 B. Ward-Perkins, From Classical Antiquity to the Middle Ages: Urban Public Building in Northern and Central
Italy AD 300-850, Oxford, 1984, p. 105.

442 W. Nippel, Public Order in Ancient Rome…, p. 87. G. Ville («Les jeux de gladiateurs dans l’empire chrétien»,
Mélanges d’archéologie et d’histoire, 72, 1960, p. 312) afirmou que, com o fim da República, quando a gente corrente
perdeu o seu poder político, «os munera [tornaram-se] uma das principais compensações que lhes foram oferecidas
[…]» para manter o «equilíbrio entre as classes».

443 Pro Sestio, 50-106: Etenim tribus locis significari maxime de tre de re publica populi Romani iudicium ac
voluntas potest, contione, comitiis, ludorum gladiatorumque consessu.

444 Ibidem, 106.

445 Ibidem, 124.

169
seu lugar, mas quando os últimos se deram conta da sua presença, ele foi logo vaiado
com assobios e apupos em sinal de protesto 446
. O clamor atingiu tamanhas proporções
que os equites, que nesse momento combatiam na arena, se assustaram, o mesmo
acontecendo com os seus cavalos447.

Ao perderem-se as oportunidades para a expressão política do povo, os espectáculos


gladiatórios e outros, designadamente os jogos circenses, ganharam ainda maior
relevância, traduzindo-se em ocasiões para o povo ver de perto e comunicar com o seu
imperador. Os espectadores aproveitavam então para lhe transmitirem os seus desejos
sobre diversos assuntos. Flávio Josefo descreve-nos numa breve passagem a interacção
ideal entre o público e o imperador:

«...em relação às coisas que [o povo romano] precisa, aparecendo numa grande multidão, ele
faz pedidos aos seus imperadores, que, ao considerarem os mesmos legítimos, não os tratam
com desprezo» 448.

Até Tibério, no início do seu reinado, não obstante demonstrar posteriormente ser
avesso a espectáculos de qualquer tipo, assistiu regularmente aos ludi, «a bem da boa
conduta da multidão e para aparentar partilhar o prazer que a mesma sentia nos
espectáculos»449. A populaça gostava de um imperador que frequentasse os
espectáculos e mostrasse o mesmo interesse e entusiasmo face às actividades que se
desenrolavam na arena. Júlio César foi criticado pelo facto de prestar mais atenção a
tratar dos seus documentos e negócios durante um munus do que a assistir, delirante,
ao espectáculo. Augusto aprendeu bem a lição a partir da experiência do seu pai
adoptivo, revelando o maior interesse possível a tais eventos, o que sem dúvida suscitou
simpatia junto do público450. Mais tarde, Cláudio revelou-se um autêntico
«especialista» a agradar os espectadores, já que estes constatavam que ele sentia
genuíno prazer em contemplar os jogos451. É óbvio que o povo reagia bem à
munificência de um imperador, quando este, na qualidade de editor, dava esplêndidos
espectáculos452.

446 Cícero referiu-se sarcasticamente ao caminho que Ápio percorreu até ao seu lugar como «Via Ápia», a estrada mais
famosa de Roma, construída por um antepassado proeminente de Ápio, em finais do século IV a. C.

447 Pro Sest. 126.

448 Antiguidades Judaicas, 19.24.

449 Díon Cássio, Hist. rom. 11.5. J. C. Edmondson, «Dynamic Arenas: Gladiatorial Presentations in the City of
Rome…», p. 84. Possivelmente, os espectáculos a que Tibério assistiu no começo do seu reinado não terão sido
gladiatórios.

450 Suetónio, Divus Augustus, 45.1.

451 Suetónio, Divus Claudius, 21.5.

170
Mas a usufruição de um entretenimento particularmente agradável não era a única
consequência de um munus. O sentimento de bem-estar geral do público via-se
catalisado pelo próprio evento, que transmitia a todos os presentes uma mensagem
poderosa sobre a estrita administração da justiça e da dominação que Roma exercia no
seu Império, aspectos que eram reiteradamente lembrados aos espectadores, quando
na arena apareciam criminosos condenados e prisioneiros de guerra a lutarem como
gladiadores, a serem lançados às feras durante a venatio ou então executados no
meridianum spectaculum 453.

O munus imperial: elementos caracterizadores

Após a rejeição e o desprezo de Tibério para com os munera, o que se precisava para a
restauração do munus e, extensivamente, para lhe conferir a sua anterior glória, era de
um imperador inequivocamente mais receptivo e generoso: os dois imperadores
imediatamente subsequentes, Calígula e Cláudio, preencheram na perfeição os
requisitos desse papel. Em ambos os reinados, o munus viu-se restabelecido na sua
assiduidade e sofreu, também, uma metamorfose que o dotou da sua forma «clássica».
Como se disse, o munus imperial consistia num evento tripartido e que durava, em
média, dois dias inteiros, principiando de manhã, com uma venatio, à qual se seguiam
as execuções do meio-dia e, à tarde, os combates gladiatórios, o principal espectáculo. É
impossível afirmarmos em que momento exacto terá surgido este formato concreto, até
porque a lógica leva-nos a supor que o mesmo foi produto de um processo gradual.

Contudo, o munus triunfal de César em 46 a. C. terá funcionado claramente como


modelo inspirador aos espectáculos vindouros. Com efeito, tal munus assumiu um
carácter de charneira em duas vertentes básicas: consistiu num munus tradicional
funerário, em honra da falecida filha de César, mas, ao mesmo tempo, fez parte de uma
celebração triunfal, assim se estabelecendo um precedente para os futuros imperadores
triunfantes, como Augusto e Trajano.Com base em Dião Cássio, o anfiteatro temporário
que Júlio César mandou erguer para esse munus, serviu de palco para os combates

452 Esperava-se, usualmente, que o imperador oferecesse um munus de altíssima qualidade, mas nem sempre foi este o
caso. Calígula, por exemplo, numa fase de mau-humor, deu um munus com gladiadores que foram os mais baratos que
arranjou, e os animais selvagens que também participaram encontravam-se em péssimas condições: Suetónio, Divus
Caligula, 26.5.

453 F. Millar, The Emperor in the Roman World (31 BC-AD 337), Ithaca/Nova Iorque, 1977, pp. 373-375; W. Nippel,
Public Order…, p. 87.

171
gladiatórios e para a venatio: estamos diante do primeiro testemunho literário de que
os dois entretenimentos se desenrolaram no mesmo sítio454.

A venatio, isto é, a caçada de animais selvagens posta em cena com outros elementos
associados, correspondeu primeiramente um evento autónomo, mesmo no início do
Principado época imperial. Embora na sua Res gestae Augusto apresente, na lista dos
espectáculos que ofereceu durante o seu reinado, os munera e as venationes em
separado, há indícios de que nos derradeiros anos da sua governação ambos tenham
sido associados, ainda que não sistematicamente, tornando-se os eventos mais
trepidantes, variados e populares455.

Em 6 d. C., os irmãos Germânico e Cláudio (o futuro imperador) apresentaram um


munus funerário em memória do seu pai, Druso: parte do espectáculo consistiu na
exibição de elefantes domesticados e treinados para fazerem malabarices. Como
adiante veremos mais em pormenor, esta era uma das características típicas da venatio
456
. Nas fontes que aludem a tal munus, não se colhe qualquer referência à realização de
uma caçada, talvez porque os escritores tenham considerado menos digno descrevê-la.
Como uma das habilidades feitas pelos paquidermes neste espectáculo terá sido a de
imitarem os movimentos dos gladiadores em combate, resta saber se isto não fora
concebido para chamar à atenção para o novo laço que passaria a existir entre a venatio
e os jogos gladiatórios. Apesar de continuarem a realizar-se venationes independentes
nos reinados de Calígula e Cláudio, a certa altura, provavelmente sob a égide do último
imperador, parece haver-se estabelecido um vínculo mais forte entre a venatio e o
munus gladiatório. Atente-se ao que Suetónio escreveu:

«[Cláudio] ofereceu numerosos espectáculos gladiatórios em diferentes locais: [por exemplo]


um no Campo Pretoriano, para celebrar o aniversário da sua ascensão, sem incluir uma venatio
[…] e outro, justo e legítimo [iustum atque legitimum, ou seja, comportando também a venatio]
nos Saepta [«Recinto do Voto»]»457.

O munus e as suas novas funções

O munus adquiriu novas funções desde o começo da época imperial, algumas das
quais se podem atribuir a Augusto. Durante a República, a única razão aceitável para

454 Hist. rom. 43.22.3.

455 Cf. 22. G. Ville, La gladiature…, p. 126.

456 Plínio-o-Velho, Nat. Hist. 8.4-5.

457 Divus Claudius, 21.4.

172
oferecer um munus, pondo de parte as considerações políticas, era a comemoração de
um defunto. Mas, por volta de meados do século I d. C., o munus funerário encontrava-
se já quase obsoleto, pelo menos na cidade de Roma. Ao que se julga, Augusto terá
buscado transformar o munus num rito religioso: em 12 a. C., ele apresentou combates
gladiatórios enquanto componente principal de uma festividade chamada
Quinquatrus/ «Festa dos Cinco Dias», que, no calendário romano, decorria de 19 a 23
de Março. Estes ludi eram celebrados em honra de Minerva, deusa cujo carácter
marcial herdara da grega Atena458. Ovídio diz-nos que se dedicavam os últimos quatro
dias do festival à realização de jogos gladiatórios, a fim de assim agradar à «deusa
belicosa»459.

No mesmo ano (12 a. C.), Augusto patrocinou ainda uma exibição de guerreiros
armados em Atenas, durante a festividade Panatenaica 460. Díon Cássio, o autor que
descreve tal espectáculo, não se refere, porém, aos guerreiros como monomachoi
(étimo grego equivalente a gladiador), preferindo definir as competições que lá tiveram
lugar como «combates pesadamente armados» (hoplomachias agonas), nos quais se
utilizariam apenas armas embotadas, de gumes cegos. O motivo mais plausível para
não se empregarem armas afiadas e letais é que Augusto não pretenderia chocar o
público ateniense. Neste período, a maioria dos Gregos ainda não teriam aceitado os
jogos gladiatórios com o seu inevitável derramamento de sangue e o subsequente
cortejo de mortes461.

No entanto, já antes se assistira a uma tentativa de estabelecer uma conexão entre o


munus e uma divindade: em 42 a. C., os edis da plebe, que estavam encarregados de
apresentar os jogos para Ceres (Ludi Cereales), substituiram as tradicionais corridas de
carros circenses por combates gladiatórios. Como, até então, nenhum munus havia sido
associado a um deus, o público romano terá encarado esta inovação religiosa como algo
excessivamente radical. De facto, não se repetiu tal «experiência», o mesmo parecendo
ter sucedido com o referido munus oferecido em honra de Minerva462.

458 G. Ville, La gladiature…, pp. 119-120.

459 Fasti, 3.813-814.

460 Díon Cássio, Hist. rom. 54.28.3.

461 A introdução dos espectáculos gladiatórios em Antioquía por Antíoco IV, a que atrás aludimos, teve êxito depois de
um começo algo vacilante, mas este sucesso parece ter sido apenas temporário. L. Robert, Les Gladiateurs …., pp. 239-
254, 264. T. Wiedemann, pelo contrário, considerou que os combates de gladiadores se tornaram «uma instituição
regular em Antioquía» (Emperors and Gladiators, p. 42), mas a sua dependência relativamente ao relato de Lívio
(41.20.13) para fazer tal asserção talvez seja injustificada.

462 R. Dunkle, Gladiators…, p. 183.

173
Quando Augusto decidiu criar um munus anualmente recorrente, organizado pelos
pretores, a medida significou um reconhecimento público da razão real para os
combates gladiatórios: o entretenimento 463
. Não sabemos se o munus pretoriano foi
adstrito a uma altura específica do ano no tempo de Augusto, mas aproximadamente
em meados do século I d. C., talvez durante o reinado de Calígula, tinha lugar em
Dezembro. Com o seu sucessor, Cláudio, a apresentação do munus anual passou a ficar
a cargo dos questores, e não dos pretores, facto ao qual já nos reportámos 464
. Mais
tarde, quando Domiciano foi imperador e mesmo para além do seu reinado, o munus
anual ainda era apresentado pelos questores em Dezembro, havendo, é certo, algumas
interrupções na sua periodicidade, pelo menos no século IV a. C. 465.

O denominado Calendário de Fúrio Dionísio Filócalo (354 a. C.) fornece as datas


específicas em Dezembro: 2 (initium muneris), 4, 5, 6 (estes três dias correspondiam ao
munus arca, isto é, a arca do tesouro imperial), 8 (dia do munus kandidati, quando o
candidato escolhido pelo imperador para o questorado adicionava os seus recursos
destinados à apresentação de um espectáculo particularmente impressionante), 19, 20,
21, 23 e 24 (munus consummatum)466. Estes jogos gladiatórios viam-se interrompidos
com a celebração dos Saturnais (Saturnalia), no dia 17 de Dezembro. Para os Romanos,
o munus não era uma maneira apropriada para venerar as divindades 467.

Introduziu-se, ainda assim, uma inovação, um género de munus que tinha uma
dimensão religiosa, envolvendo uma prece: tratava-se do costume de oferecer um
munus «pela saúde» (pro salute) do imperador e da sua respectiva família. G. Ville
referiu, a propósito, que a oferenda do munus pro salute presumia a existência de um

463 Díon Cássio, Hist. rom. 54.2.3-4.

464 Tácito, Ann. 11.22; G. Ville, La gladiature…, pp. 164-166.

465 G. Ville, La gladiature…, pp. 166-168, n. 55. O imperador Severo Alexandre (222-235 d. C.) introduziu uma
distinção entre questores com futuro político e os que não o tinham: os primeiros chamavam-se quaestores candidati,
aos quais se requeria que dessem munera totalmente às suas próprias expensas, com a promessa de que seriam
escolhidos para pretores. Os últimos, designados quaestores arcarii, também apresentavam munera, só que menos
faustosos, recebendo dinheiro do tesouro para fazer face aos gastos com os espectáculos: História Augusta/SHA,
Alexandre Severo (A. Lamprídio), 43.3-4.

466 K. Latte, Römische Religionsgeschichte, Munique, 1960,p. 431ss. T. Wiedemann acreditou que Augusto teria
decretado dois munera anuais, um tendo lugar em Março e o outro em Dezembro: Emperors and Gladiators, p. 47;
tanto nesta obra como num artigo mais recente (cf. «Das Ende der Gladiatorenspiele», Nikephoros 8, 1995, p. 151),
Wiedemann conferiu especial simbolismo ao «emparceiramento» do bem atestado munus de Dezembro e o alegado
munus de Março; este historiador viu nestes dois munera anuais, apresentados durante os solstícios do Inverno e da
Primavera, símbolos de renovação; o munus de Dezembro marcava o fim do ano velho e o de Março celebrava a
regeneração da Primavera. No entanto, G. Ville (La gladiature, pp. 159-160) sustentou que existiu só um munus anual
que, no tempo de Augusto, ocorria em Março; mais tarde, o espectáculo passou para Dezembro, sob Calígula. Neste
aspecto parece-nos mais plausível a opinião de G. Ville. Nas fontes ulteriores ao reinado augustano não se encontra
menção alguma ao munus de Março, e nenhuma referência ao munus de Dezembro durante o seu principado. Note-se,
por último, que o Calendário de Filócalo (século IV d. C.) reporta-se somente ao munus de Dezembro.

467 É certo que no século IV, a celebração dos Saturnalia se estendia por vários dias; os jogos gladiatórios viam-se
suspensos por causa da data tradicional da festividade: R. M. Ogilvie, The Romans and Their Gods, Londres/Toronto,
1969, p. 98.

174
contrato com um ou vários deuses (embora estes jamais apareçam nomeado, seja a
nível individual, seja a nível colectivo, enquanto grupo), através do qual se trocavam as
vidas dos gladiadores pela vida daquele (ou daqueles) a quem se dedicava o munus468.
Um dos exemplos mais antigos deste tipo de munus data do reinado de Tibério, quando
se ofereceram jogos gladiatórios em Pompeia «pela saúde» de Lívia (mãe do imperador
e esposa de Augusto) e dos membros da família imperial 469. O munus pro salute
tornou-se especialmente popular com Nero: numa ocasião, organizou-se para o efeito
uma venatio isolada, a qual o futuro imperador patrocinou em nome do seu padrasto
Cláudio470. Já durante o seu reinado, Nero foi objecto de munera pro salute que se
apresentaram em Pompeia471. Anos depois, organizaram-se numerosos munera pro
salute para Vespasiano, o fundador da dinastia flaviana, certamente quando adoeceu
fatalmente em 79 d. C. 472
. Em Pompeia, o notável Nigidius Maius ofereceu um munus
no contexto da dedicação de um altar que foi associado ao bem-estar do imperador e da
sua família 473: a inscrição que proclama tal dedicação dá a entender que se efectuariam
sacrifícios no altar pela saúde de Vespasiano e pela dos seus filhos. Em Venafrum
(actual Venafro), na Campânia, um tal Q. Vibius Rusticus ofereceu um munus pro
salute em benefício da família imperial, em data não especificada mas seguramente no
decurso do século I d. C. 474.

Idêntico na intenção ao munus pro salute era o voto que um indivíduo fazia para
combater na arena enquanto acto de sacrifício pelo bem-estar do imperador: quando,
no início do reinado, Calígula ficou gravemente doente, houve dois homens que se
comprometeram, sob juramento, a fazê-lo, arriscando perderem as suas vidas, caso o
imperador viesse a recuperar: um cidadão de extracção social inferior, chamado
Afranius Potitus, terá aparentemente prometido suicidar-se, ao passo que um membro
da ordem equestre, Atanius Secundus, quiçá numa atitude de alegada voluntariedade,
afirmou que lutaria como gladiador. Quando Calígula se restabeleceu, ambos os
homens tentaram fugir às suas promessas, mas o imperador forçou-os, sadicamente, a

468 La gladiature…, pp. 160-161.

469 CIL IV.9969.

470 Suetónio, Divus Nero, 7.2.

471 CIL IV.1181; 3822; 7988b; 7989 a.

472 CIL IV.1180; 1196; 1197; 1198; 7986 a; 9964; 9971 a.

473 CIL IV.1180.

474 CIL X.4893.

175
cumpri-las. Atânio perdeu a vida na arena 475
. Díon Cássio viu no comportamento
desses dois homens uma atitude subserviente para ganharem a boa vontade do
imperador e, eventualmente, uma recompensa em dinheiro. É possível que assista
razão ao historiador, ao não vislumbrar qualquer espécie de altruísmo nessas
promessas476. Ocorreram mais episódios afins na mesma altura em que Calígula esteve
muito enfermo: Suetónio descreve uma vigília feita por diversas pessoas, alarmadas
com a possibilidade de o imperador não recuperar, na Colina Palatina; várias delas
declaram que lutariam na arena caso Calígula vencesse a doença 477.

A lógica interna deste tipo de voto fincava raízes numa vetusta prática religiosa que se
levava a cabo em tempo de guerra, a devotio, a qual se acreditava ser um meio eficaz de
salvar muitas vidas mediante a morte voluntária de um só homem. Um autor da
Antiguidade Tardia sugeriu que os jogos gladiatórios (e a venatio), oferecidos pelos
imperadores que partiam em campanhas militares constituíriam uma espécie de
devotio, uma vez que as mortes dos gladiadores (bem como dos venatores e dos
bestiarii) na arena poderiam satisfazer a deusa Nemésis, em troca da sobrevivência dos
cidadãos romanos envolvidos na guerra. O escritor não enfatiza muito tal teoria, mas
não deixa de proporcionar um curioso paralelo relativamente às ideias similares
observáveis no tempo de Calígula478.

Os editores encontravam outras ocasiões julgadas oportunas para celebrarem munera,


designadamente aquando da inauguração de um edifício público, que muitas vezes era
comemorada com um espectáculo gladiatório: Augusto, por exemplo, ofereceu vários
munera para celebrar as dedicações do Santuário de Júlio César, do templo de Quirino
e do templo de Marte479. Nero, por seu lado, inaugurou o seu famoso anfiteatro de
madeira com pugnas gladiatórias, tal como fez Tito em relação ao Anfiteatro Flávio (o
Coliseu), apresentando um faustoso munus 480. Como já tivemos o ensejo de referir, os
munerarii em diversas cidades da Itália inspiraram-se nestes casos.

475 Díon Cássio, Hist. rom. 59.8.3.

476 R. Dunkle, Gladiators…, p. 184.

477 Divus Caligula, 14.2.

478 História Augusta/SHA, Max & Balb. (Júlio Capitolino), 8.5-6. G. Ville («Les jeux…», p. 288) entendeu esta
passagem como «propaganda a favor dos munera», os quais estavam sob ataque cerrado por parte dos escritores
cristãos.

479 Díon Cássio, Hist. rom. 51.22.4; 54.19.4-5; 55.10.6.

480 Suetónio, Divus Nero, 12.1; Díon Cássio, Hist. rom. 66.25.1-3.

176
Outra altura considerada usual para a celebração de um munus nas localidades
italianas era o do agradecimento ao eleitorado pela nomeação do editor para uma
magistratura. Mas este género de espectáculo também se afigurava adequado para
aniversários, haja em vista Cláudio, que ofereceu um munus especial no Campo
Pretoriano para celebrar a data da sua ascensão ao trono imperial 481. Décadas depois, os
consules resolveram comemorar o dia em que nasceu o imperador Vitélio com um
enorme munus, que se desenrolou em vários sítios em simultâneo na Urbs482.

Os triunfos, naturalmente, significavam outro poderoso pretexto popular para a


oferta de um munus: antes de se travar a batalha de Actium, Marco António,
aparentemente demasiado confiante na vitória, reuniu um grupo de gladiadores para
combaterem no seu munus triunfal. Claro está que não teve oportunidade de o fazer, ao
ser vencido e pouco depois, matando-se. Por seu turno, Octávio, que o venceu no prélio
naval, celebrou a sua vitória em Actium, com um munus483. De entre outros
imperadores vitoriosos posteriores que também ofereceram munera na qualidade de
celebrações triunfais, avultam Domiciano e Trajano, que dirigiram campanhas contra
os Dácios484.

Estimativas sobre a frequência dos combates e o número de gladiadores


em cada munus na época imperial

No século I, o fenómeno gladiatório, para além de estar longe de diminuir em Roma,


conheceu uma difusão cada vez maior em todo o império. Os cidadãos das diversas
cidades incitavam, então, directa ou indirectamente, os notáveis locais a organizarem
espectáculos envolvendo despesas consideráveis. Tal como na Urbs, os combates
gladiatórios nunca se ofereciam isoladamente ao público. As fontes epigráficas do
mundo grego atestam, amiúde, a apresentação dos munera juntamente com
representações teatrais, distribuições de dinheiro, e associados a obras públicas bem
como ao fornecimento de trigo e azeite. Estava igualmente estabelecido como prática
corrente oferecerem-se venationes (nas inscrições gregas alude-se a lutas entre feras
«indígenas e estrangeiras») durante a manhã e pugnas gladiatórias ao longo da tarde.
Os sumos- sacerdotes do culto imperial que estavam na origem destas dádivas às suas
481 Suetónio, Divus Claudius, 21.4; Díon Cássio, Hist. rom. 60.17.9.

482Tácito, Hist. 2.95. Mas a venatio parece ter sido uma das maneiras mais habituais para celebrar o aniversário do
imperador. Veja-se, por exemplo, Díon Cássio, Hist. rom. 54.26.2, e Passio Sanctarum Perpetuae et Felicitatis, 7.9.

483 Díon Cássio, Hist. rom. 51.7.2-3; 53.1.4-6.

484 Ibidem, 67.18.4; 68.15.1.

177
respectivas comunidades eram louvados pela sua generosidade se não demonstrassem
parcimónia nos gastos. Quando assim era, dizia-se do generoso evergeta «que preferiu
a sua pátria à sua fortuna» (CIG 4377).

Se, por um lado, importava a qualidade e a celebridade dos gladiadores, por outro, o
número de pares oferecido aos espectadores também era um critério importante.
Certos valores numéricos, muitas vezes citados e literalmente aceites pelos estudiosos,
não proporcionam, verdade se diga, uma imagem realista da gladiatura. Augusto
declarou ter apresentado 10 000 gladiadores durante o seu longo principado. Nos
reinados subsequentes, à excepção do de Tibério, registou-se um aumento dos paria.
Se nos ativermos aos que participaram nos munera oferecidos por imperadores como
Tito ou Trajano, seriam centenas de gladiadores que podiam ver-se reunidos para uma
só ocasião. Na realidade, estas cifras eram de carácter excepcional e, talvez, nem
sempre englobassem verdadeiros gladiadores.

De facto, nesses eventos não actuavam só profissionais, mas de igual modo grupos de
indivíduos colectivamente conhecidos como catervarii, que serviam para dilatar os
efectivos presentes nos espectáculos. Pouco sabemos sobre estes catervarii, assim
como acerca dos combatentes envolvidos nas naumachiae. Tanto num caso como
noutro, não sobreviveu qualquer imagem antiga que mostre como eles lutavam ou que
equipamentos utilizariam. As fontes literárias limitam-se a nomear os imperadores que
patrocinaram tais espectáculos, não facultando elementos precisos. Esta ausência de
informes, que nada ajuda a esclarecer o conteúdo das inscrições, talvez se explique pelo
facto de serem prisioneiros de guerra, que lutariam, à semelhança dos primeiros
gladiadores, com panóplias mais ou menos «étnicas». Com efeito, estas «orgias»
gladiatórias e, sobretudo, as naumachiae, em que se defrontavam milhares de homens,
ocorriam quase sempre a seguir à celebração de triunfos militares. Assim, é possível
imaginar que se procedesse a uma espécie de «escoamento» dos cativos e dos escravos
tornados redundantes, que o mercado não podia mais absorver.

Ademais, esses antigos guerreiros podiam revelar-se perigosos para os seus amos,
caso a ânsia pela liberdade os conduzisse a revoltar-se. Estas rebeliões podiam envolver
grupos de homens, como sucedeu com Espártaco e os seus companheiros, ou então
limitar-se a actos circunscritos e de modesta envergadura, como os Cântabros que, no
tempo de Augusto, assassinaram os seus proprietários antes de regressarem às
montanhas na sua terra-natal, a fim de retomarem a luta armada. Para evitar estas
situações, o anfiteatro e a naumachia eram soluções mais práticas e, simultaneamente,
espectaculares. Com a promesse de liberdade para alguns dos sobreviventes, na óptica
romana afigurava-se útil eliminar centenas de prisioneiros dificilmente recuperáveis no

178
âmbito económico, ao servirem para recrudescer a quantidade dos participantes nos
munera. Na realidade, embora esta hipótese não deixe de ser puramente conjectural,
parece-nos pertinente aqui aventá-la.

Afigura-se também possível que os combatentes dos munera imperiais fossem


gladiadores devidamente treinados. Um imperador como, por exemplo, Trajano,
enriquecido pelas suas vitoriosas campanhas, não recorreu certamente aos referidos
combatentes de grupos que tinham menos interesse para o público. Além disso, as
pugnas gladiatórias que foram consignadas nos anais desenrolaram-se sempre em
períodos bastante longos: quando, em 107 d. C., Trajano ofereceu 10 000 gladiadores
para celebrar o seu triunfo sobre os Dácios, o munus durou 123 dias consecutivos 485
.A
enormidade do número relacionou-se com o tempo que duraram os festejos, já que o
Optimo Princeps devia apresentar, em média, «apenas» 40 pares de combatentes por
dia, isto de acordo com Díon Cássio (68.15). Repare-se, a propósito, que quarenta pares
correspondiam ao número máximo que um notável provincial poderia oferecer à sua
cidade. Se, de facto, o imperador não podia fazer menos por Roma, também não nos é
dito que conseguisse fazer muito mais, não por motivos financeiros, mas por causa do
espectáculo em si mesmo. Oitenta gladiadores apresentados durante uma tarde
significariam, decerto, um máximo para lá do qual o interesse do público poderia
diminuir. Assim, era inútil oferecer mais combatentes, pois que havia o risco de se
verem as bancadas do anfiteratro a ficarem vazias antes do espectáculo findar, por
desinteresse da multidão ou porque já estava a anoitecer…

485 Foi o munus mais longo que alguma vez ocorreu, através do qual Trajano celebrou a vitória obtida em 106, na sua
segunda guerra contra os Dácios. Já em 106, antes de chegar a Roma, Trajano mandara que Adriano oferecesse munera
para se comemorarem os êxitos militares ocorridos na Dácia, mas foi em 107, quando o imperador chegou à Urbs, que
teve lugar o grande munus (R. Dunkle situa erradamente o munus em 106, cf. Gladiators…, p. 188). A breve resenha de
Díon Cássio (68.15) não corresponde, de todo, com a magnitude do evento: «Trajano, ao regressar a Roma… ofereceu
espectáculos durante 123 dias, no decurso dos quais uns 11 000 animais – tanto selvagens como domesticados – foram
mortos e combateram 10 000 gladiadores». De acordo com uma inscrição, o munus terá principiado em finais de Maio
ou em finais de Junho de 107. Jesper Carlsen manifestou reticências quanto aos 10 000 gladiadores nos espectáculos de
Trajano, número sintomaticamente próximo da cifra dos combatentes que participaram nos munera organizados por
Augusto: o autor sugeriu que «10 000 gladiadores correspondem provavelmente a 5 000 duelos, nos quais diversos
gladiadores participaram mais do que uma vez» (cf. «Exemplary Deaths in the Arena: Gladiatorial Fights and the
Execution of Criminals», in J. Engberg, U. Holmsgaard Eriksen e A. Klostergaard Petersen (eds.), Contextualising Early
Christian Martyrdom, p. 88. É hipótese que encerra plausibilidade, a qual também aventamos. Os custos dos jogos
trajânicos foram, sem dúvida, enormes, mas isto não constituiu problema para Trajano, já que a conquista da Dácia
resultara excepcionalmente proveitosa; o total dos despojos terá correspondido a cerca de 10 000 toneladas de ouro,
400 toneladas de prata e 500 000 prisioneiros inimigos (a quantidade de ouro pode parecer excessiva mas o facto é que
a Dácia tinha uma extraordinária riqueza neste mineral, o que significou, aliás, um dos motivos que levaram à sua
conquista; este reino estava repleto de minas auríferas e os Romanos exploraram-nas exaustiva e sistematicamente). As
arcas do Estado estavam tão cheias que, em 109, Trajano voltou a organizar um munus, desta feita durando 117 dias, no
qual lutaram 9 824 gladiadores. A epigráfia proporciona reduzidos informes sobre os espectáculos apresentados pela
família imperial; no entanto, encontramos algumas menções aos mesmos nos fasti Ostienses, designadamente acerca
dos munera patrocinados por Trajano entre Maio de 107 e Novembro de 109, onde se aponta o número preciso de
combatentes que participaram (4,941 ½), assim confirmando o relato sumário de Díon Cássio, segundo o qual Trajano
ofereceu munera ao longo de 123 dias, neles lutando 10 000 gladiadores e morrendo 11 000 animais selvagens (cf. B.
Bargagli e C. Grosso, I Fasti Ostienses. Documento della storia di Ostia, Roma, 1997: contêm detalhes fragmentários
sobre ludi scaenici, ludi circenses, munera, venationes e competições atléticas no agon Capitolinus nas secções
referentes ao período que vai de 109 a 175 d. C.). Veja-se, também, M. J. Carter e J. Edmondson, «Spectacle in Rome,
Italy, and the Provinces», in C. Bruun e J. Edmondson (eds.), The Oxford Handbook of Roman Epigraphy, p. 545. Mais
tarde, durante a chamada «crise do século III», Filipe-o-Árabe celebrou o milénio de Roma com espectáculos em que as
cifras de animais selvagens e gladiadores se aproximaram bastante dos de Trajano.

179
Para a organização de sumptuosos munera na Urbs, o imperador contava com apoio
das próprias «escolas» imperiais, com o Ludus Magnus à cabeça, que se localizava nas
proximidades do Anfiteatro Flávio. Este vasto complexo edificatório compreendia
forçosamente os melhores gladiadores, que se destinavam a actuar nos espectáculos
dados pelo imperador. O complexo edificatório do Ludus Magnus albergava um
número de «pensionistas» que ficava muito dos gladiadores que se precisavam que
para os munera de maior amplitude; dispunha de 70 «células» distribuídas em três
registos, oferecendo um máximo de 210 cubículos. Ao admitirmos, o que é pouco
provável, que todos estes «alvéolos» se conceberam para os gladiadores e que
existiriam, em média, três homens por cada habitáculo, obtemos um total de 600
gladiadores. Havia ainda outras duas «escolas» de gladiadores em Roma, o Ludus
Dacicus e o Ludus Gallicus. Ao sabermos que estes eram mais pequenos que o Ludus
Magnus, podemos calcular que a capital do Império possuiria pouco mais de um milhar
de gladiadores em regime de permanência. Este número é pouco elevado mas tem a sua
lógica, uma vez que, embora se compusesse de profissionais, estes permaneciam
perigosos pelas suas terríveis técnicas de combate. Manter mais gladiadores treinados
em Roma constituiria um risco para a segurança pública e até para a estabilidade
política.

Em termos concretos, uns mil gladiadores bastavam para «alimentar» o Coliseu num
período normal, mas já seriam insuficientes para um munus que incluísse 2 000
combatentes. Num espaço de tempo com jogos que se desenrolassem durante quatro
meses, certos gladiadores poderiam participar duas vezes, pelo menos, nos munera. Foi
o que aconteceu com o thraex Marcus Antonius Exochus, que combateu como tiro no
Coliseu no segundo dia do munus póstumo em honra de Trajano, em 117 (organizado
pelo seu sucessor Adriano), celebrando a sua vitória sobre os Partos. A seguir, Exochus
travou o seu segundo combate, no mesmo anfiteatro, no nono dia de festividades (CIL
IV 10194 = ILS 5088 = P. Sabbatini Tumolesi, EAOR I, nº 92) e, provavelmente, um
terceiro e último, em que terá perdido a vida 486. Estes «reincidentes» concorriam assim
para reduzir o número total de gladiadores exigido. Se aceitarmos uma média de 2
duelos por cada gladiador no conjunto do munus, «só» restariam uns 4 000
gladiadores a fazer vir para Roma, tendo em conta os cerca de 1000 fornecidos pelos
ludi imperiales da capital. Para lograr reunir um tal número de combatentes, Trajano
viu-se obrigado a apelar, de maneira maciça, aos ludi espalhados por todo o território

486 Não podemos afirmar categoricamente que Exochus lutou uma terceira vez nos mesmos jogos, porque a inscrição
funerária, incompleta, termina com a menção ao segundo combate deste thraex: segundo K. Hopkins e M. Beard,
«something then took place ‘at the same games’, but as the text frustratingly breaks off at that point we do not know
what that «something’ was – perhaps the fight that killed him»: The Colosseum, Londres, 2005, p. 89; A. Futrell, The
Roman Games. A Sourcebook, Londres, 2006, p. 133.

180
do império, neles buscando os seus gladiadores mais talentosos e reputados. Ainda que
pareça um número enorme, 4 000 combatentes, não deixa de ser uma cifra plausível.

Quanto aos anfiteatros no império, se nos ativermos aos estudos mais recentes, estão
repertoriados perto de 400 no território imperial (ainda que muitos deles se conheçam
somente por fontes literárias e epigráficas). Ao supormos que muitas das cidades que
tivessem investido capitais para ter recintos destes possuissem igualmente «escolas»
gladiatórias, então não haveria qualquer problema em satisfazer amplamente as
necessidades excepcionais do grande espectáculo organizado por Trajano.

É. Teyssier, numa estimativa conjectural, parte do princípio que existiriam 200 ludi
(correspondentes a cerca de 200 anfiteatros), e que cada um destes forneceria em
média 20 gladiadores. Assim, a contribuição dos 200 ludi serviria para se arranjarem
os 4 000 gladiadores que faltavam para os 120 dias de combates. Ora entre pequenas e
grandes «escolas», Teyssier calculou uma média de 40 gladiadores operacionais
presentes nas primeiras. Este número seria mais do que suficiente para satisfazer ao
mesmo tempo as necessidades do imperador e das províncias. Assim, 9 000-10 000
gladiadores estariam prontos a bater-se, mantidos em regime de permanência no
império romano. O historiador francês, neste assunto, fez um exercício apenas baseado
na lógica e sem suporte documental. Ademais, não dispomos de provas que cada centro
urbano provido de um anfiteatro dispusesse necessariamente de um ludus, apesar de
albergar, decerto, uma familia gladiatoria. Estas cifras parecem-nos desnecessárias e
redundantes. O único ponto a ter em mente é que para espectáculos grandiosos, como
os de Trajano em Roma, não faltariam combatentes para lutar na arena do Coliseu.

Os vários milhares de pares referidos pelos autores antigos afiguram-se credíveis para
os munera de carácter excepcional celebrados na Urbs. Para reunir este número tão
grande, os melhores gladiadores do império seriam obrigatoriamente solicitados para
actuarem, o que, aliás, tinha especial interesse para eles. Tais eventos constituiriam
ocasiões aproveitadas entusiasticamente pelas «escolas». Caso um gladiador tivesse
êxito em Roma, ele atingiria o zénite da sua carreira provincial, ganharia uma garantia
de celebridade e o seu valor económico subiria nos confrontos subsequente que
travasse na arena.

Transitemos para o tópico da sucessão dos combates. Só desta maneira uma parte
significativa dos habitantes de Roma poderia assistir a uma ou várias pugnas de
gladiadores no Anfiteatro Flávio. Possuindo cerca de 45 000 lugares, seria preciso,
efectivamente, encher o Coliseu pelo menos vinte vezes para que cada habitante da
Urbs tivesse a oportunidade ver um espectáculo. Com 120 dias de munera, Trajano

181
oferecia (em teoria) aos habitantes da Cidade as possibilidade de usufruirem, em
média, de 6 dias de combates num ano 487. Por último, este número reduzido é
comparável ao que os notáveis provinciais podiam oferecer nos seus espectáculos.
Logicamente, as fontes epigráficas evocam números muito mais pequenos quanto aos
gladiadores que os munerarii apresentavam nos espectáculos das províncias. Pompeia,
Lugdunum ou Éfeso não eram, obviamente, Roma. Mas, para além de serem muitas
vezes precisos, os dados epigráficos provinciais não podem colocar-se em dúvida. Com
efeito, o número de pares reunido por um editor generoso era, forçosamente, reflexo de
uma realidade que os contemporâneos dessas inscrições podiam testemunhar. Por
outro lado, como dissemos, na gladiatura «técnica», tudo se fundamentava mais na
qualidade, do que na quantidade.

Neste ponto, as actuais corridas de touros servem para uma esclarecedora comparação
analítica: num espectáculo tão normalizado como a «corrida», certamente que não virá
à cabeça de ninguém propor a participação de mais touros, que teriam de ser mortos
por maior número de toureiros. É interessante verificar que, nas origens da «corrida»,
o principal atractivo para o público consistia na rapidez com que se executava o touro.
No entanto, à medida que se foi codificando, a técnica e o cerimonial vieram a ocupar
um lugar progressivamente maior, o que conduziu a uma diminuição do número de
touros mortos. Esta constatação significa apenas um elemento entre outros que permite
estabelecer um paralelo entre a gladiatura e a tauromaquia. Se bem que estes dois
fenómenos não possuam qualquer vínculo «genealógico», em face do hiato cronológico
demasiado grande que os separa, as motivações humanas destes espectáculos revelam-
se basicamente os mesmos e encerram as mesmas consequências práticas.

Se, no início da gladiatura romana provavelmente se buscou a quantidade, o mesmo


acontecendo, talvez, no fim da mesma, tal não é aplicável ao Alto-Império. Nesta época,
a documentação fornece quase sempre um número relativamente restrito de
gladiadores. Um exemplo ocidental que os estudiosos frequentemente citam é o de
Titus Sennius Sollemnis: este sacerdote de Roma e de Augusto exerceu todos os cargos
na sua cidade, incluindo o de duumvir em quatro ocasiões, «sem sorteio». Generoso
evergeta, Sollemnis, nascido na cidade de Aregenua (actual Vieux-la-Romaine,
França)488, foi amigo e cliente de um propretor da província Lugdunensis (actual
Lyonnaise, França) e de um prefeito do pretório. No começo do século III da nossa era,

487 Para mais informações sobre a carreira de T. Sennius Sollemnis, veja-se Pascal Vipard, MARMOR TAVRINIACVM.
LE MARBRE DE THORIGNY (VIEUX, CALVADOS). La carrière d’un gran notable gaulois au début du troisième siècle
ap. J.-C., Paris, De Boccard, 2008, pp. 81-88.

488G. Chamberland, «Munera. La organización de los espectáculos», Desperta Ferro/Historia y Arqueología, nº 14


(agosto-septiembre 2017), p. 44.

182
ele ainda ilustra perfeitamente o modelo de um notável de província que, através da sua
prodigalidade municipal e, depois, provincial, conseguiu atrair as boas graças do poder.
Em contrapartida, de tais iniciativas ganhou um prestígio apreciável, ao alimentar
financeiramente a «economia gladiatória».

Na descrição da sua carreira, exarada no «Mármore de Thorigny» (EAOR, V.58)489,


Sollemnis apresenta, à cabeça dos seus feitos, os combates de gladiadores que ofereceu
na qualidade de sumo-sacerdote do santuário das Três Gálias, em Lugdunum. Afora
«toda a espécie de espectáculos», Sollemnis organizou «32 combates gladiatórios, de
entre os quais, ao longo de 4 dias, oito foram dados sine missio». Esta inscrição merece
um exame atento, já que nos proporciona alguns dados profícuos para a compreensão
de certos aspectos: sobressai, desde logo, a questão do combate sine missio; muitos
autores concluiram que eram duelos em que um dos gladiadores perderia
inevitavelmente a vida.

Assim, o «cruel» Sollemnis estaria a vangloriar-se de ter ordenado a degolação de oito


homens aquando destas pugnas, constituindo eles ¼ dos gladiadores. Em si mesma, a
proporção de mortos não é surpreendente, uma vez que corresponde ao aumento
geralmente admitido de execuções de combatentes na arena no decurso do século III.
Contudo, a noção da morte sistemática do vencido suscita problemas, já que esta
interpretação não se afigura convincente por várias razões.

Dificilmente se concebe que os combates tivessem como desfecho unicamente a morte,


no caso de gladiadores que lutavam como verdadeiros profissionais, preocupados em
honrar a sua familia gladiatoria. Se, no fim de uma porfia encarniçada, um dos
contendores acabava por ceder devido à exaustão ou a ferimentos sofridos, não era
lógico sancioná-lo com uma morte automaticamente fulminante. Deixando de parte
considerações de cariz «humanitário», despropositadas porque anacrónicas, era
principalmente o público que sairia mais lesado neste assunto. Ao condenar-se
antecipadamente cada vencido, os espectadores não poderiam participar (como
habitualmente o faziam, na qualidade de detentores de «poder») na decisão de
conceder o indulto a um campeão infortunado ou de ordenar iugula em relação a um
mau combatente.

O carácter alegadamente sistemático da morte, admitido por historiadores que não


reflectiram ponderadamente sobre esta vertente, esvaziaria, a gladiatura de uma parte
substancial do seu significado, pelo menos tanto quanto o facto de os gladiadores
serem, essencialmente, técnicos do combate. Na realidade, a expressão sine missio

489 P. Vipard, MARMOR TAVRINIACVM (transcrição e tradução do texto em questão), pp. 48-52.

183
também pode querer dizer que uma pugna não terminaria de imediato mal se
derramasse sangue, e que o editor não concederia stantes missi, isto é, o perdão para
ambos os combatentes. No caso em foco, teria de haver necessariamente um ganhador
e um perdedor em cada combate. A seguir, o público poderia pronunciar-se quanto à
sorte do vencido, fosse poupando a sua vida ou recusando-lhe a missio. Só na última
situação é que o perdedor seria morto. Posto isto, esta referência à sine missio reportar-
se-ia mais a confrontos «sem piedade» ou que pudessem findar com uma execução, em
vez de significar exclusivamente uma condenação antecipada de todos os derrotados,
sem ter-se em conta a qualidade das suas prestações na arena. O interesse de uma tal
explicitação radicaria no facto de os combatentes se entregarem com todas as suas
forças nos duelos, sabendo que arriscavam a vida e haveria um vencedor e um vencido.

Aqui, também, o público podia desempenhar o seu papel, influindo no destino, fatal
ou não, que o editor decidiria para o vencido. Certamente que no seu espectáculo
Sollemnis condenou à morte vários gladiadores derrotados, mas, e isto não consta na
inscrição, terá igualmente agraciado os combatentes vencidos caso estes evidenciassem
coragem e profissionalismo, ou então, mandando matá-los se os espectadores assim o
exigissem. Para este editor, o essencial era que para a posteridade ficasse escrito que ele
não havia organizado pugnas com armas embotadas. É curioso, ademais, que Sollemnis
tenha destacado, entre os 32 pares, os oito para os quais o combate fora sine missio.
Para um munus com a duração de quatro dias, poder-se-ia interpretar a inscrição como
uma oposição, durante três dias, entre actuações com armas não letais e verdadeiros
combates «sem perdão», no quarto e último dia dos jogos, utilizando os gladiadores
armas autênticas490. Esta menção aos combates sine missione corresponderia aos
munera em que os gladiadores empregavam armas afiadas, o que aparece exarado em
certas inscrições da Ásia Menor: a cidade de Smyrna (actual Izmir, Turquia), por
exemplo, honrou o asiarca Julius Menecles Diophantus, no início do século III, por
oferecer ao público um espectáculo com armas afiadas 491
. Nas províncias orientais, a
expressão sine missione foi substituída por outra, em grego, apotomos piygmé ou
zygos apotomos. Encontram-se exemplos em duas inscrições efesianas, onde se evoca
os combates sem perdão/zygoi apotomoi. Numa delas, consegue-se restituir a
expressão no texto original com forte grau de probabilidade, a propósito de um notável

490 Sobre os munera oferecidos por Sollemnis, observem-se os comentários de P. Vipard, MARMOR TAVRINIACVM,
pp. 88-93.

491 Este texto foi gravado na base de uma estátua (L. Robert, «Monuments de gladiateurs dans l’Orient grec»,
Hellenica 5, 1948, pp. 81-82, nº 318.7-12): «o asiarca que apresentou um munus durante cinco dias seguidos, com
gladiadores combatendo com armas afiadas».

184
asiarca que ofereceu treze dias de combates, envolvendo 39 pares de gladiadores, na
razão de três por dia492.

Assim, depreendemos que o uso de armas letais não era uma obrigação e, quando tal
sucedia, os gladiadores corriam obviamente mais riscos de perder a vida e o editor, por
seu lado, de fazer face a despesas muito mais avultadas. De acordo com Michael J.
Carter 493
, o imperador é que concederia autorização para se utilizarem armas
verdadeiras; é, aliás, o que nos diz uma inscrição de 240 d. C., descoberta em Beroia,
na Macedónia 494
, em que um editor se gaba de ter obtido uma indulgentia imperial, a
fim de apresentar um par de gladiadores a «lutarem pelas suas vidas» (AE, 1971, 431).
Consequentemente, estes munera dispendiosos compreendiam duelos em que a morte
constituía uma possibilidade real, mas não um facto obrigatório.

O número de gladiadores oferecido por Sollemnis ao redor de 220 d. C. é outro


elemento relevante do «Mármore de Thorigny». Se nos cingirmos unicamente a este
testemunho, o espectáculo apresentado parece bastante modesto comparativamente
aos munera de Roma, mas, bem vistas as coisas, nem é o caso: 64 gladiadores a
porfiarem durante quatro dias perfazem somente oito combates por dia. Ao partirmos
do princípio que uma pugna a sério dificilmente duraria mais de 5 minutos, por razões
psicológicas a que já aludimos, um dia de espectáculo talvez rondasse uns 40 minutos,
o que não ocupava, nem de longe nem de perto, toda uma tarde. Os combates
significavam o momento mais aguardado.

Quando Sollemnis recorda que apresentou «toda a espécie de espectáculos», não se


preocupando em pormenorizá-los, estaria decerto a referir-se a tudo o que servisse para
ocupar e entreter a multidão, desde a abertura solene do anfiteatro até aos oito duelos
travados ao longo de quatro dias. Para além das venationes, as caçadas que se
desenrolavam de manhã, e das execuções de condenados aquando do meridianum
spectaculum, a arena só devia receber gladiadores dispostos a morrer. As actuações
burlescas de anões e de animais que certos mosaicos nos mostram, bem como de
paegniarii, pugilistas, lutadores e a distribuição de alimentos representariam outros
tantos momentos lúdicos que o público apreciava. Mais próxima da gladiatura, a

492 Iv. Ephesos, VII, 1, 3070 (texto intacto); 3071 (restituído); estes documentos datam do século III d. C.: cf. L.
Robert, Les gladiateurs…, pp. 17, 250, n. 1, 259-262 (onde o autor lembra o significado dos duelos apotomoi), 349.

493 «Archiereis and Asiarchs: A Gladiatorial Perspective», Greek, Roman, and Byzantine Studies 44 (2004), p. 50.

494L. Gounaropoulu e M. B. Hatzopoulos, Inscriptiones Beroeae, I, Atenas, 1998, p. 69. Para outros exemplos
documentais da autorização imperial, vejam-se, por exemplo: SEG XXXV 1132 (Mileto) e L. Robert, Les gladiateurs, nº
63 (Gortyna).

185
pompa marcava, com o ressoar das trombetas, a majestosa chegada ao recinto daqueles
que aceitariam oferecer o seu sangue e, mesmo, a sua vida, aos espectadores.

Cada um dos combatentes, em função do palmarés e prestígio, era individualmente


apresentado ao público, pela voz do pregoeiro público (praeco) e por cartazes ou
painéis transportados e exibidos pelo pessoal do anfiteatro (ministri). Caso
adquirissem um libellus munerarius, os espectadores podiam obter informações mais
detalhadas antes de o espectáculo começar. A preceder as verdadeiras pugnas tinha
lugar o prolusio, altura em que os gladiadores procuravam cativar o público mediante a
exibição da sua mestria técnica, ao mesmo tempo que mediam a força dos seus
oponentes. Só a seguir ocorriam os combates do dia, que por vezes se qualificavam
como sine missione. Aqui, novamente, uma comparação com a tauromaquia pode
revelar-se útil: na última, um dia de espectáculo assenta, de maneira imutável, no
confronto de seis touros com três toureiros. Cada duelo durava apenas alguns minutos,
pelo que tudo depressa terminaria se a corrida se limitasse só a isso. Ora cada lide
traduz-se no ponto culminante que se espera de um encadeamento ritual em que
intervêm tanto picadores como bandarilheiros. A gladiatura repousava, grosso modo,
em princípios idênticos: pouco importaria que a pugna final opondo dois campeões
consagrados durasse só uns quantos minutos, porque estes instantes coroavam um
longo dia de festa para o público eram o corolário de vários meses para os gladiadores.

Para a duração dos munera e o número de combatentes presentes em cada evento,


dispomos de um conjunto de fontes esclarecedoras. Num corpus de 27 anúncios de
espectáculos gladiatórios (suficientemente conservados para serem utilizáveis 495
) que
se celebraram em Pompeia, vários destes edicta discriminam o número de gladiadores
oferecidos; em treze, os combates realizados nesta cidade ou noutras vizinhas
prolongam-se por um espaço que oscila entre um e cinco dias, mas com jogos que
duram mais usualmente três ou quatro dias. Em 18 «anúncios», observa-se a indicação
precisa do número de pares apresentados ao público 208 496
. O mais pequeno é de 20
pares e o maior 49, mas os casos mais frequentes situam-se entre 20 e 30 paria, com
seis e oito ocorrências respectivamente. Assim, o valor médio é de 28 pares de
gladiadores por cada munus.

Na realidade, este número seria um pouco mais reduzido, uma vez que um editor,
faltando-lhe suficientes meios financeiros ou generosidade para oferecer mais do que
495 São eles: CIL IV, 7994; CIL IV, 821; CIL IV, 1180-1184; 1186; CIL IV, 1204; CIL IV, 2508; CIL IV, 3 881-83; CIL IV,
3834; CIL IV, 7986; CIL IV, 7991; CIL IV, 7995; CIL IV, 7992; CIL IV, 9968-70; CIL IV, 9972; CIL IV, 9973; CIL IV,
9981; CIL IV, 9983; CIL IV9985; CIL IV, 9986. É. Teyssier analisou este conjunto de edicta munerum (La mort en
face…, pp. 406-407).

496

186
um dia de porfias, evitaria mencionar no edictum o número de gladiadores. Neste caso,
um munus durava só um dia e o seu organizador anunciaria, laconicamente, que o seu
conjunto de gladiadores iria combater. Consequentemente, o número de gladiadores
oferecidos ficar-se-ia por uma dezena de pares para apenas um dia de espectáculo. Seja
como for, as cifras pompeianas do século I d. C. mostram uma notável estabilidade,
estando bastante próximas das apresentadas no munus de Sollemnis no século III.

Os números apontados tendem a confirmar que os munera provinciais durariam entre


dois e quatro dias, neles se oferecendo 8 a 12 pares de gladiadores por dia. Tal
estabilidade explica-se também por um limite máximo imposto pelo poder central,
ainda que esporadicamente este outorgasse privilégios derrogatórios, como sucedeu em
Siracusa; esta cidade, sob o reinado de Nero, solicitou ao Senado a possibilidade de
ultrapassar o número prescrito de gladiadores, como nos conta Tácito:

«Eu não discorreria sobre um senatus consultum de tão pouco interesse como o que permitiu
aos Siracusenses exceder nos jogos o número prescrito de gladiadores, se Thraseas, ao combatê-
lo, não tivesse dado a ocasião aos seus detractores de censurarem o seu voto. Já que, enfim, se
ele acreditava na liberade do Senado, tão necessária à República, porquê interessar-se por tais
frivolidades? Seria, então, a única reforma a fazer, a de impedir que Siracusa não gastasse
excessivamente em espectáculos?».

Vemos, portanto, que no século I da nossa era o número de pares gladiatórios era
limitado pelo poder central, como de resto havia sucedido igualmente no fim da
República, mediante a promulgação da Lex Tullia de ambitu. Por outro lado, o senador
Tácito expressa bem o seu desdém por aquilo que rotulou de «frivolidades». Este
sentimento, certamente partilhado por outros historiadores pertencentes ao seu meio,
reveste-se de importância. Foi, aliás, por causa deste a priori que ficámos desprovidos
de mais dados informativos sobre a gladiatura, além dos factos directamente ligados
aos imperadores, «bons» ou «maus» que tiveram lugar no Anfiteatro Flávio. No trecho
acima citado, o silêncio que Tácito se justifica por haver rompido é uma das principais
causas para o nosso desconhecimento de uma série de aspectos técnicos do fenómeno
gladiatório.

Felizmente que Pompeia representa um filão insubstituível relativamente à questão do


número de pares oferecidos nos munera. Com base no exame dos edicta munerum
desta cidade, é possível extrairmos várias conclusões. Os munera organizados noutras
localidades da Campânia aparecem anunciados em Pompeia, daí que, provavelmente,
esta fizesse o mesmo nos centros urbanos situados num raio de acção de cerca de 50
km. Esta difusão de notícias sobre os munera de uma cidade para outra indicia a
existência de uma espécie de «turismo» da gladiatura e de competições certamente
renhidas. Ela implicaria também a deslocação dos membros do ludus de uma cidade

187
rumo a outras comunidades numa determinada região 210 . Um grafito de Pompeia
497

atesta estas digressões no decurso de uma mesma «temporada» (CIL IV 4299): «A 28


de Julho, em Nuceria, Florus vencedor; a 15 de Agosto, em Herculano [outra vez],
vencedor». Tais périplos não envolviam apenas uma familia gladiatoria, incluindo
igualmente os seus adeptos locais, imbuídos de fervoroso «espírito barrista», que
apoiariam os combatentes da sua cidade.

Outra ressalva se impõe: enquanto as venationes são frequentemente mencionadas


nos edicta, os suplícios apenas surgem uma única vez. Há várias explicações para este
facto; os condenados à morte podiam não ser em número suficiente para
«participarem» em cada um dos munera; alternativamente, este género de espectáculo
talvez não fosse muito apreciado pelo público, pelo menos ao ponto de se anunciar
constantemente este evento nos edicta. No presente caso, torna-se difícil escolhermos
uma destas hipóteses. Constatamos também que os dias de munus nem sempre eram
consecutivos, «vazios» que decerto se relacionariam com dias considerados nefastos,
que se interpunham no período consagrado aos jogos, ou com uma propensão de fazer
arrastar os festejos, a fim de prolongar a animação e o afluxo de visitantes provenientes
das localidades vizinhas: efectivamente, cabe equacionar o aspecto da valorização
económica dos jogos.

Teoricamente, os combates efectuavam-se entre os meses de Fevereiro e Novembro.


No entanto, se a Primavera e o Outono eram as estações privilegiadas, o Verão não se
afigurava muito convidativo por causa das condições climatéricas próprias do período
estival. De facto, nos edicta pompeianos só detectamos uma data aprazada para o
começo de Julho. Não obstante a presença do velum (grande toldo de tela que se
desfraldava no topo do anfiteatro) nos anúncios de vários espectáculos realizados na
Primavera e um só no Outono, o sol não era propício às pugnas gladiatórias. Para além
do velum se destinar a proteger sobretudo os espectadores, uma canícula sufocante só
contribuiria para diminuir a resistência e a capacidade respiratória dos combatentes.
Assim, Julho e Agosto constituíam uma espécie de «trégua» ou de interrupção de
combates, principalmente em regiões quentes como era a Campânia.

No que respeita à Ásia Menor, outro grande palco para a comemoração dos munera, a
documentação referente aos anúncios dos espectáculos também assume especial
importância. Nos últimos, gravados sobre a pedra em diferentes cidades, as tendências
que se assinalam são semelhantes às de Pompeia. Louis Robert chamou à atenção para
13 inscrições onde se indica o número de gladiadores, variando entre de 7 e 50. A média
situa-se em 25 pares por cada munus, número que muito se acerca dos 28 observados
497

188
em Pompeia. O número de dias revela-se, de igual modo, coerente: nas 15 inscrições
que aludem ao tempo de duração do espectáculo, as cifras variam entre 2 e 51 dia 498s. O
último número, captado num documento de Ancyra (actual Ancara, Turquia)499, é
verdadeiramente excepcional e não englobava apenas combates. Com efeito, estes 51
dias de festa não se destinaram unicamente para o munus, até porque o organizador
«só» ofereceu 50 pares de gladiadores. Afora estes casos particulares, a maior parte dos
munera durou entre 3 e 8 dias. Só em dois exemplos os jogos atingiram 12 e 13 dias,
respectivamente em Mileto e em Éfeso. Se pusermos à margem do corpus o espectáculo
de Ancyra, então a média estabelece-se em 5 dias de munus, o que corresponde a um
número outra vez bastante próximo do que se verifica no «Mármore de Thorigny» e das
médias registadas na Campânia.

Para esta análise examinámos cerca de trinta documentos. Deste acervo sobressai o
facto de que, nos munera, a qualidade dos combatentes preponderva sobre a
quantidade. É certo que o número de gladiadores se viu restringido por uma legislação
adoptada nos tempos derradeiros da República e que se manteve sob o Império,
visando limitar a quantidade de combatentes oferecidos ao público. O preço
representava, também, um obstáculo garantido; porém, o que se pretendia era a
exibição de gladiadores de excepção. A emergência de um estrelato cada vez mais
evidente sob os Antoninos atesta tal tendência. Assim, em virtude dos limites legais e
da forte ritualização do fenómeno gladiatório, o número de combatentes manteve-se
bastante estável. Em contrapartida, ao longo do Alto-Império o preço dos campeões
veio a subir. No século II, os editores experimentaram crescentes dificuldades para
fazer face às suas obrigações e custear os espectáculos, daí que o poder central se tenha
visto compelido a legislar sobre esta matéria. O senatus consultum do Aes Italicense
(literalmente «Bronze de Italica»), documento também conhecido como «Tábua de
Italica», decretado no fim do reinado de Marco Aurélio, revela-se plenamente
ilustrativo a este respeito. Examinaremos esta fonte noutro capítulo.

Os editores munerum em Pompeia

Os quase cem edicta munerum descobertos em Pompeia (pintados nas paredes dos
edifícios públicos, habitações e, até, na superfície de túmulos) anunciam espectáculos

498 Números corroborados por investigações mais recentes: afora a tese de doutoramento de M. J. Carter, para um
estudo circunstanciado da gladiatura na Ásia Menor remetemos o leitor para a dissertação de mestrado de J. Thériault-
Langelier, Les gladiateurs grecs en Asie Mineure durant le Haut-Empire romain à Éphèse, Aphrodisias et Side, Faculté
des arts et des sciences, Université de Montréal, 2012, pp. 53-106.

499 A inscrição data do reinado de Tibério, constituindo a mais antiga referência epigráfica à apresentação de combates
gladiatórios no Oriente: cf. M. J. Carter, The Presentation of Gladiatorial Spectacles in the Greek East: Roman Culture
and Greek Identity, pp. 217-218, nº 448.

189
que iriam ter lugar nesta cidade, mas alguns referem-se a munera celebrados em
centros urbanos vizinhos, como Nola, Nuceria e Herculano, bem como noutras
localidades mais afastadas: Puteoli, Cumae, Cales, Cápua, Forum Popili. Tais
inscrições, por mais interessantes que sejam a nível individual, revelam-se de superior
utilidade quando estudadas no seio de um corpus. O catálogo de Patrizia Sabbatini
Tumolesi, Gladiatorum paria. Annunci di spettacoli gladiatorii a Pompeii (Roma,
1980) permite reconstituir alguns aspectos do calendário dos espectáculos numa
pequena cidade como Pompeia, e observar a generosidade de certas famílias da elite
local500.

As fontes pompeianas aludem a nove editores, pelo menos, todos pertencentes à


magistratura local 501
. No período em que esta cidade campaniana tinha o estatuto de
colónia, à cabeça da administração civil estavam dois «presidentes da câmara», os
duoviri iure dicundo, incumbidos de exercer a justiça, de convocar e presidir às
assembleias que elegiam os magistrados, bem como o conselho citadino (ordo
decurionum) 502
. Imediatamente abaixo dos duoviri encontravam-se os edis (aediles),
também em número de dois, que tratavam da manutenção das ruas, dos edifícios,
mercados, ao mesmo tempo que eram responsáveis pela ordem pública. Por último, de
cinco em cinco anos, eram eleitos os duoviri quinquennales, em lugar dos duoviri iure
dicundo, que possuíam como tarefa principal actualizar o censo. Estes magistrados
estavam em contacto com o governo central e tinham maior autoridade do que os
duoviri regulares. Cabe referirmo-nos também aos indivíduos que ocupavam cargos
sacerdotais: o pontifex, que velava pelo culto oficial na cidade, e o áugure, perito em
adivinhação. Até o culto do imperador era administrado por uma hierarquia de
sacerdotes e sacerdotisas; os mais importantes consistiam nos flamines Augusti;
quanto aos membros das classes inferiores só podiam tornar-se augustales, sacerdotes
de baixa categoria.

Embora os magistrados da cidade não recebessem salários, era expectável-se que


gastassem avultadas quantias de dinheiro dos seus próprios bolsos enquanto
estivessem em funções. De facto, eles viam-se obrigados a oferecer espectáculos ou a
financiar obras públicas durante os seus mandatos, porque tinham, impreterivelmente
que levar a cabo actos de beneficência em prol da sua comunidade. Assim, alguém que

500 A este respeito, consulte-se S. L. Tuck, «Scheduling Spectacle: Factors Contributing to the Dates of Pompeian
munera», CJ 104 (2008-2009), pp. 123-143.

501 Para uma visão rigorosa sobre os magistrados e a elite dirigente em Pompeia, aconselhamos a leitura da
monografia de H. Mouritsen, Elections, Magistrates and Municipal Elites. Studies in Pompeian Epigraphy, Roma,
1988. Em relação aos editores de espectáculos nesta cidade: L. Jacobelli, Gladiators at Pompeii, pp. 42-45.

502 Uma espécie de senado à escala local.

190
quisesse seguir uma carreira política precisava de ser suficientemente rico para fazer
face a todos os gastos associados. Em contrapartida, os magistrados municipais
usufruíam de múltiplos privilégios honoríficos. Vejamos quais foram os munerarii que
se destacaram em Pompeia.

Clodius Flaccus foi editor duas vezes, uma na qualidade de duumvir, e outra como
quinquennalis 503
. Sob o principado augustano, ele pertencia à aristocracia local, mais
especificamente à gens dos Clodii, proprietários de vinhedos na área do Vesúvio e
produtores do famoso vinho Clodianum. Numa inscrição sepulcral, hoje desaparecida
(CIL X 1074 d)504, havia pormenores das actividades de Clodius Flaccus como
munerarius: durante o seu primeiro duumvirato (c. 20 a. C.), ele organizou para a
festividade de Apolo uma procissão solene incluindo todos os participantes dos jogos
no forum (pompa); apresentou ao público touros e «toureiros», pugilistas e 3 pontarii
(gladiadores que lutavam sobre uma plataforma505). Clodius Flaccus também
patrocinou representações teatrais, incluindo histriones e mimos, entre estes
sobressaindo Pylas, que ganhou fama ao criar o género da pantomima. No seu segundo
duumvirato (quando foi quinquennalis), apresentou diversos entretenimentos,
coicidindo com os Ludi Apollinares. De novo, organzou uma pompa no forum de
Pompeia, exibindo touros e pugilistas. Nesta ocasião, substituiram-se as peças teatrais
por um dia de competições envolvendo 30 pares de lutadores e 40 pares de gladiadores
no anfiteatro. Neste ponto, no texto divide-se o número 40 em 35 + 5, pormenor que
levou alguns estudiosos a suporem ter havido 35 pares de combatentes masculinos e 5
femininos.

Apesar de haver provas documentadas sobre a presença de mulheres na arena, na


realidade era um fenómeno de carácter excepcional. Caso existissem mulheres no
espectáculo, a sua participação seria decerto anunciada antes, o que possivelmente
atrairia muita gente. Também se realizou uma caçada com javalis selvagens e ursos,
bem como actuaram taurocentae, indivíduos que saltavam de cavalos em pleno galope
para cima de touros, procurando derrubá-los. A última vez que parocinou espectáculos,
Clodius Flaccus (3-2 a. C.), a exibição foi menos generosa ou, então, resumiu-se a
descrição da mesma no seu túmulo: «com o seu colega, ele ofereceu os jogos com uma

503 Numa inscrição, afirma-se que Aulus Clodius, «para o seu [primeiro] duumvirato, ele deu 10 000 sestércios para a
conta pública»: isto consistia numa transferência directa de dinheiro que fectuavam tanto os duovires como edis. Esta
prática correspondeia às taxas que os funcionários locais e novos membros do ordo tinham de pagar por ocuparem os
seus cargos. Estas taxas representavam uma importante fatia do orçamento de uma cidade. Os herdeiros de Flaccus
sublinharam esse pagamento específico para deixarem bem claro que ele pagara mais do que a taxa corrente: M. Beard,
Pompeia: O dia-a-dia da mítica cidade romana, Lisboa, A Esfera dos Livros, 2010, p. 251.

504 P. Sabbatini Tumolesi, Gladiatorum paria. Annunci di spettacoli gladiatorii a Pompei, p. 18, nº 1.

505 Modalidade de combate que descrevemos numa alínea do Capítulo IV.

191
companhia de primeira categoria e música extra», não se apresentaram combates
gladiatórios, mas antes peças de teatro com actores de gabarito.

Outro editor, M. Tullius, deu um espectáculo em Pompeia que decorreu entre 4 e 7 de


Novembro. Sobre este evento dispomos de três edicta munerum pintados sobre
túmulos na necrópole situada junto da chamada Porta Nocera (CIL IV 9979-81). Tal
como Clodius, Tullius era de uma família abastada e poderosa no tempo de Augusto.
Pode ter sido ele a erigir o Templo da Fortuna Augusta à sua própria custa. O munus
englobou lutas com animais e pugnas compreendendo 20 pares de gladiadores.

Quanto a Decimus Lucretius Satrius Valens e ao seu filho Decimus Lucretius Valens,
foram dois importantes editores 506
. Por vezes, aparecem juntos nas inscrições como
editores munerum (CIL VI 3884, 7992, 7995, 1185) 507. O pai, Satrius Valens, exerceu a
prestigiosa função sacerdotal de flamen Neronis Caesaris Augusti fili perpetuus508.
Mas isto não era o único vínculo que o unia a Nero. Com efeito, julga-se que entre
ambos terá havido uma relação relativamente estreita. A este respeito, importa que
tenhamos em conta a conhecida pintura que descreve os violentos tumultos que
tiveram lugar no anfiteatro pompeiano em 59 d. C. 509; numa das paredes junto dessa
composição, lêem-se a seguintes legendas: «D. Lucretio fel(I)citer», e outra, mais em
baixo, escrita em letras gregas: Σατρί(ψ) / Ούάλεντι / Ογούστψ [sic] Νήρ(ωνι)
ψηλύκιτ(ερ) - «Satri[o] Oualenti, O(g)ousto Ner(oni) feliciter»510. Segundo alguns
autores, esta aclamação associando Satrius Valens a Nero sugere que que o ilustre
pompeiano intercedeu possivelmente junto do imperador para que autorizasse a
reabertura do anfiteatro da cidade, que, durante anos, ficou encerrado por ordem do

506 Encontraram-se anúncios dos jogos apresentados por D. Lucretius Satrius Valens e pelo seu filho em quatro zonas
diferentes da cidade (CIL IV 3884 = ILS 5154 = Gladiatorum paria, 5; CIL IV 7995, 7992, 1185 = Gladiatorum paria, 6-
8). Veja-se também, M. J. Carter e J. Edmondson, «Spectacle in Rome, Italy, and the Provinces», in C. Bruun e J.
Edmondson (eds.), The Oxford Handbook of Roman Epigraphy, pp. 545-546

507 Sobre a propriedade dos Lucretii Valentes, consulte-se M. De’ Spagnolis Conticello, «Sur rinvenimento della villa e
del monumento funerario dei Lucretti Valentes», RStP 6 (1993-1994), pp. 147-166.

508 Vários grafitti atestam o prestígio deste flamen e dos espectáculos que patrocinou: «[Viva] o sacerdote de Nero
César!» (CIL IV 7996), ou «[Viva] o principal homem da colónia!» (CIL IV 1185 = Gladiatorum paria, 8 – p(rincipi)
colonia[e] (feliciter), palavras pintadas junto de um dos edicta). Veja-se Henrik Mouritsen e Ittai Gradel, «Nero in
Pompeian Politics. Edicta Munerum and Imperial Flaminates in Late Pompeii», Zeitschrift für Papyrologie und
Epigraphik 87 (1991), pp. 145-155.

509 Afresco da chamada «Casa de Anicetus», em Pompeia. Conserva-se no Museo Nazionale de Nápoles, nº de nv.
112222): cL. Jacobelli, Gladiators at Pompeii, fig. 58. Sobre os tumultos no anfiteatro em 59 d. C.: E. Magaldi, «I judicia
Augusti e la rissa dell’Anfiteatro», Rivista di Studi Pompeiani (1936); A. Maiuri, «Pompei e Nocera», Rendiconti
dell’Accademia di Archeologia Lettere e Belle Arti di Napoli, n. s. 33 1958 (publicado em 1959), pp. 35-40; W. O.
Moeller, «The Riot of A. D. 59 at Pompeii», Historia 19 (1970), pp. 90ss; H. Galsterer, «Politik in römischen Städten: die
‘seditio’ des Jahres 59 n. Ch. In Pompei», Studien zur antiken Sozialgeschichte: Festchrift für Friedrich Vittinghoff,
Colónia/Viena, 1980, pp. 323-338; H. Mouritsen, Elections, Magistrates and Municipal Elite, p. 35, n. 143, 148. Idem e
I. Gradel, «Nero on Pompeian Politics…», pp.151-155.

510 CIL IV 2993 x-y; Gladiatorum paria…, est. I.2.

192
Senado. Neste sentido, a referida pintura pode ter sido encomendada para celebrar tal
ocasião.

Por seu lado, a curiosa inscrição numa coluna do chamado Campus de Pompeia lança
uma luz questionável acerca da esposa de D. Lucretius Valens (filho de Satrius): nela se
alude à venda de dois gladiadores de «primera categoria» (primae rationis) – um
eques e um thraex-murmillo – à mulher de Lucretius. Afigura-se, no mínimo, estranho
que ela tivesse feito esta compra. Além disso, um magistrado ou um sacerdote que
oferecesse um espectáculo não seria, pelo menos a nível oficial, proprietário de uma
familia gladiatoria (embora se saiba que alguns notáveis, tanto na parte ocidental do
império como, sobretudo, no Oriente helenístico, adquiriam combatentes da arena em
vez de os alugarem a um lanista sempre que organizassem um munus, o que saía mais
dispendioso). Neste caso, o verbo venio que surge na inscrição talvez comportasse um
sentido obsceno nesta alusão à esposa do editor Lucretius Valens: à semelhança de
outras matronas da alta sociedade, ela poderia, quem sabe, ter sido seduzida pelo
encanto dos gladiadores…

Ti. Claudius Verus foi outro editor de Pompeia durante o reinado de Nero: ofereceu
um espectáculo nos dias 25 e 26 de Fevereiro, pela saúde do imperador (pro salute
Neronis), no qual se assistiu à exibição de atletas e venationes, mas não actuaram
gladiadores (CIL IV 1181, 7989), o que se deveu possivelmente ao facto de ainda estar
vigente a proibição de se celebrarem munera no anfiteatro, após os distúrbios de 59. O
mandato de Verus enquanto duumvir estendeu-se de 61 a 62 d. C. Lembremos que
nesse mesmo mês, no dia 5 de 62, um sismo particularmente violento destruiu
parcialmente Pompeia. Assim, é insólito que, passados só cerca de vinte dias, se tenha
apresentado um espectáculo (que não se desenrolou no anfiteatro, que sofreu danos,
mas noutro local).

Outro editor muneris deste período foi o edil A. Suettius Certus, cujo espectáculo
incluiu combates protagonizados pelos famosos gladiadores neroniani (CIL IV.1189-91,
7987). Nos anos finais de Pompeia, isto é, pouco antes da trágica erupção do Vesúvio,
N. Popidius Rufus sobressaiu pela sua actividade política, que organizou uma venatio
com animais selvagens; a inscrição pintada diante da entrada para o ludus gladiatorius
(CIL IV 1186) especifica que durante o evento se iria desfraldar o velarium (ou velum)
e, aparentemente – o texto não se revela muito claro – também se distribuiriam maçãs
pelo público.

No entanto, o mais célebre organizador de espectáculos foi Gnaeus Alleius Nigidius


Maius. As fontes epigráficas descobertas na cidade facultam numerosas informações

193
sobre esta figura influente: em 55-56, ocupou o cargo, juntamente com outro, de
duumvir quinquennalis; também exerceu a função sacerdotal muito cobiçada e
prestigiosa de flamen, e os seus munera eram tão faustosos que Nigidius até ganhou o
epíteto de «príncipe dos munera» (princeps munerariorum, CIL IV 7990) 511. Suspeita-
se que esteve envolvido, de alguma forma, no episódio violento de 59 d. C., mas o certo
é que não sofreu qualquer castigo ou penalização, uma vez que Nigidius continuou a
pertencer à elite de Pompeia e a participar na sua vida social e política. Vários edicta
(CIL IV 1177-78, 7993, 3883) anunciam espectáculos que Maius apresentou aquando
da inauguração de um operis tabularium, que, segundo alguns estudiosos,
corresponderia a novos arquivos administrativos (tabularium), restaurados após o
terramoto de 62. Todavia, outros autores defenderam que tais espectáculos se
realizaram na altura em que se inauguraram várias pinturas sobre madeira (tabulae)
que Maius encomendou, a fim de lembrar à população os esplêndidos munera que
patrocinara durante o seu mandato.

O edil M. Casellius Marcellus foi mais um editor activo nos tempos finais da dinastia
Flávia, surgindo louvado como competente organizador de jogos numa inscrição (CIL
IV 4999) achada perto da entrada do que corresponderia provavelmente a sua
residência. Por fim, capta-se uma referência a outro munerarius, L. Valerius Primus,
mas desconhecemos em que âmbito temporal patrocinou espectáculos; ofereceu um
munus augustalis, ou seja, jogos em honra de Augusto (CIL IV 9962).

Anexo: Eventos paragladiatórios

Além dos duelos gladiatórios e das venationes, havia outras modalidades de


espectáculo, como a recriação de batalhas de infantaria e as já mencionadas
naumachiae. Enquanto arte integrante dos seus jogos comemorativos em 46 a. C., Júlio
César, um estadista extremamente astuto e um exímio manipulador de massas,
introduziu duas inovações notáveis: a exibição de refregas opondo homens apeados e a
naumachia (que significa «batalha naval»). De acordo com Suetónio, no quinto e

511 W. O. Moeller, «Gnaeus Alleius Nigidius Maius princeps coloniae», Latomus 32 (1973), pp. 515-520. Num dos
anúncios pintados de Pompeia, Nigidius Maius, na altura duumvir quinquennalis, explicita que ia organizar uma
grande exibição de gladiadores «sem quaisquer custos para a bolsa do público».

194
último dia, o programa dos eventos completou-se através de um prélio em larga escala
envolvendo dois «exércitos», cada um compreendendo 500 infantes, 30 cavaleiros e 20
elefantes512.

A apresentação de pequenos «exércitos» travando uma batalha era, como afirmou K.


M. Coleman, «uma extensão previsível» das pugnas gladiatórias 513. Os relatos de Díon
Cássio e Plínio-o-Velho fornecem pormenores que Suetónio omitiu. Díon reporta-se a
quatro batalhas distintas: cavalaria versus cavalaria, infantaria, duas «companhias»
consistindo tanto em efectivos de infantaria e cavalaria como indivíduos apeados a
lutarem uns contra os outros, e um confronto entre combatentes montados em
elefantes514. Plínio, por seu lado, diz-nos que houve duas contendas: 20 elefantes contra
500 infantes, e 20 elefantes providos de torres com 60 soldados de infantaria versus
500 infantes e 500 cavaleiros515. A descrição de Plínio é, provavelmente, mais selectiva,
concentrando-se em detalhes específicos que serviam para despertar a atenção dos seus
leitores. Díon e Plínio parecem concordar no facto de os paquidermes carregarem nos
dorsos torres repletas de soldados. Díon não menciona as torres, mas somente
«homens lutando a partir de elefantes», o que dá a ideia de estar a aludir a esta típica
forma de combate marcial empregando proboscídeos, bem conhecida dos Romanos 516.
César viu-se compelido a proceder a alterações no Circus Maximus para acomodar tais
batalhas517. Isto constituiu uma oportunidade para muitos romanos experimentarem,
em primeira mão, a visão de enfrentamento bélicos, que tornaram Roma dona de um
extenso e diversificado império. As referidas batalhas não corresponderam a modernas
recriações de famosas pelejas do passado, em que os participantes fingem sofrer
ferimentos ou tombam como se estivessem mortos. Os intervenientes nestas batalhas
para entretenimento eram prisioneiros de guerra e criminosos condenados que
infligiam ferimentos reais e se matavam entre si.

Octaviano prosseguiu com a tradição deste género de espectáculo iniciado pelo seu pai
adoptivo: em 29 a. C., aquando da consagração do santuário de JúlioCésar, Octaviano
apresentou um munus dividido em duas partes, a primeira consistindo nos habituais

512 Divus Iul. 39.3.

513«Launching into History: Aquatic Displays in the Early Empire», JRS 83 (1993), p. 49.

514 Hist. rom. 43.23.3.

515 Nat. Hist. 8.22.

516 Lucrécio, 5.1302; Juvenal 12.110.

517 Suetónio, Divus Iul. 39.3.

195
duelos gladiatórios e a outra numa batalha envolvendo elevado número de homens de
cada lado. Defrontaram-se duas tribos, «representadas» por prisioneiros de guerra, os
Suebi e os Dácios. Esta refrega não evocou um episódio concreto do passado; basta
reparar que a grande distância geográfica a separar estes povos tornava um confronto
altamente improvável. O que uniu estes cativos neste múnus foi indiscutivelmente o
seu envolvimento com Roma, mais em particular, com a família Juliana. Júlio César,
com efeito, derrotara os Suebi em 58 a. C., que novamente se viram vencidos por um
exército romano em 29 a. C., no mesmo ano em que se celebrou o referido munus.
Quanto aos Dácios, colocaram-se do lado de Marco António contra Octaviano, na
recente guerra civil, e foram capturados e levados para Roma como prisioneiros de
guerra518.Esta batalha demonstrava vividamente ao público romano o êxito da família
Juliana contra inimigos externos e internos. Era também um bom exemplo dos
conquistadores romanos forçando os cativos a lutarem, para entretenimento dos
primeiros, uma prática que, em tempos bem mais recuados, havia conduzido ao
desenvolvimento dos tipos gladiatórios «étnicos» como o Samnita, o Gaulês e Trácio.

Cláudio, seguindo na esteira de César e Octaviano, deu uma exibição de confronto em


massa no Campo de Marte, numa celebração triunfal da sua vitória na Britânia, que
ocorreu pouco após o regresso do imperador da velha Albion em 44 d. C519. O
espectáculo sobressaiu pela sua invulgaridade, no sentido em que mostrava um exército
romano a tomar de assalto uma cidadela. Tomaram-se todos os cuidados para garantir
que não acontecesse uma reviravolta em termos históricos, desfecho que, obviamente,
arruinaria a celebração triunfal. Ora nem o prínceps, nem os espectadores ficariam
satisfeitos ao assistirem a um prélio em que os Romanos saíssem derrotados 520. Há,
porém, uma questão que se reveste digna de interesse: quem eram, ao certo, os
«soldados romanos» nesta batalha artificial? Tratava-se de verdadeiros legionários ou
uma combinação de prisioneiros de guerra e condenados, os últimos sendo os
candidatos usuais para espectáculos deste género? R. Dunkle optou pela primeira
hipótese521. A ideia de se trajar cativos e sentenciados como tropas romanas seria
certamente ultrajante para os Romanos. Assegurar que os reais milites romanos
sairiam vitoriosos nesta exibição não seria difícil;um elevado efectivo ajudaria
sobremaneira para um resultado exitoso. É também possível que se tenham distribuído
armas rombas pelos Bretões, a fim de minimizar quaisquer riscos para a integridade
518 Díon Cássio, Hist. rom. 51.22.6-8.

519Suetónio, Div. Claud. 21.6.

520 K. M. Coleman, «Launching into History…», p. 71.

521 Gladiators…, p. 192.

196
física dos militares romanos. O espectáculo findou, então, com a rendição dos reis
bretões, que se encontravam na Urbs nesta ocasião para desempenhar os seus papéis,
para benefício e glória do povo romano. Cláudio deve ter oferecido aos seus súbditos
um exemplo visualmente impactante do poder militar romano sob a liderança do seu
imperador.

O outro evento paragladiatório que César adicionou à sua celebração triunfal em 46 a.


C. foi a naumachia, inovação popular522 e complemento dos enfrentamentos de
infantaria no Circo Máximo. As dificuldades na encenação da naumachia levaram a que
este espectáculo jamais reunisse condições para se apresentar frequentemente; era algo
que estava resevado para ocasiões verdadeiramente especiais e oferecidas em Roma, ou
nas suas cercanias, pelo imperador. A única informação que dispomos sobre a
naumachia de César é que ocorreu num lago artificial, no Campo de Marte ou na outra
margem do Tibre, nela se defrontando duas frotas de navios que representavam uma
refrega naval entre «Tirienses» (Fenícios) e «Egípcios» 523. Apesar de César tentar
conferir um contexto histórico para a naumachia, mediante a menção a dois povos
específicos, na verdade não sobreviveu qualquer registo nas fontes antigas de uma
batalha no mar tendo ambos como contendores. No entanto, o rigor histórico não
constituía o ponto principal. O que estava em causa relacionava-se com a fantasia
historicizante que os nomes destes oponentes de paragens exóticas evocavam 524.
Independentemente de quais fossem os beligerantes, existia, contudo, um requisito
relevante, nos dois lados, nesta ou noutra qualquer naumachia. Os espectáculos
tinham, impreterivelmente, de ser capazes de distinguir os dois lados em contenda. K.
M. Coleman sugeriu duas formas através das quais isso podia acontecer: cada lado
podia ver-se designado, fosse mediante cores contrastantes para os barcos e
indumentárias identificativas dos participantes, ou, de uma maneira mais onerosa,
fosse com o equipamento e os navios mostrando, mais ou menos acuradamente, o que
essas forças teriam efectivamente utilizado em batalha 525. A multidão que assistia era

522 Sobre a naumachia, consultem-se os seguintes estudos: Anne Berlan, «Les premières naumachies romaines et le
développement de la mystique impériale (46 av. J.-C.-52 ap. J.-C.)», in Hypothèses, Publications de la Sorbonne, nº
1997 (1, 1997), pp. 97-104; Michel Redde e J.-C. Golvin, «Naumachies, jeux nautiques et amphithéâtres», in Spectacula
I, Actes du colloque tenu à Toulouse et à Lattes, 26-29 mai 1987, Lattes, Éditions Imago, 1990, pp. 165-177. Quanto a
monografias pirmenorizadas sobre este género de espectáculos, remetemos para A. Bajard, Les spectacles aquatiques
romains, Roma, Collection de l’École française à Rome, 360, 2006, e Gérald Cariou, La naumachie. Morituri te
salutant, Paris, PUPS, Coll. Passé Présent, 2009.

523 Tapou-se o lago depois da morte de Júlio César por causa da suspeição de que o primeiro teria estado na origem de
um surto pestífero (Díon Cássio, 45.17.8).

524 K. M. Coleman, «Launching …», p. 70.

525 Ibidem, pp. 67-68.

197
informada sobre como reconhecer cada facção no combate, por meio do recurso a
cartazes (tabellae) com inscrições e arautos (praecones).

As naves de guerra, consistindo em birremes, trirremes e quadrirremes (com dois, três


e quatro bancos de remos, respectivamente), levavam a bordo bastantes homens
armados526. A naumachia desenrolava-se à imagem e semelhança de uma verdadeira
batalha naval. Embora a destreza do capitão do navio e dos remadores desempenhasse
o seu papel nas tentativas de abalroar o barco adverso, o prélia traduzia-se sobretudo
em abordagens e lutas encarniçadas de corpo a corpo entre indivíduos munidos de
espadas, mas, como sucedia no posterior meridianum spectaculum, desprovidos de
armamento defensivo. A naumachia obedecia ao mesmo objectivo prático que as
batalhas de infantaria – a morte de todos os criminosos condenados e dos prisioneiros
de guerra, que participavam na qualidade de tropas de guarnição naval e de remeiros
no espectáculo527. A naumachia proporcionava um cenário sensacionalmente
dramático para o fim das vidas desses homens infortunados, à medida que se iam
matando uns aos outros ou se afogavam quando os seus navios iam a pique. Tal como
nos choques envolvendo infantes e cavaleiros, os gladiadores, bem treinados e
profissionalizados, não participavam neste género de espectáculo, tanto em terra como
no mar, porque a sua perícia e valor se perderiam no caos destas batalhas, isto para não
aludirmos aos tremendos gastos por causa do elevado número de homens necessários
para tais eventos. O fulcro destas contendas não radicava na exibição individual da
habilidade combativa, mas na grande escala das mesmas. Na naumachia de César
intervieram decerto muitos indivíduos, mas nenhuma fonte nos indica uma estimativa
da cifra dos combatentes. Esta naumachia contribuiu significativamente para a enorme
multidão que encheu Roma para assistir aos espectáculos de gala do conquistador das
Gálias em 46 a. C528. Afigura-se claro que César havia estabelecido uma espécie de
modelo para os espectáculos vindouros apresentados pelos imperadores, aquando da
celebração de importantes momentos. A naumachia continuou a levar-se a cabo até ao
século III d. C.

O fundador do Principado, Augusto, deu uma naumachia que fez parte integrante do
munus que apresentou para a consagração do templo de Mars Ultor (Marte-o-
Vingador), em 2 a. C. Este santuário foi dedicado a Marte pelo princeps na batalha de
Philippi, em 42 a. C., onde ele vingou o assassinato do seu pai adoptivo, ao derrotar os

526 Suetónio, Div. Iul. 39.4.

527 Estes eventos, que significavam «execuções» mútuas pelos participantes, tinham a mesma função que o
meridianum spectaculum (tópico que desenvolveremos noutro capítulo), só que numa escala muito maior.

528 Suetónio, Div. Iul. 39.4.

198
seus principais homicidas, Bruto e Cássio. Não subsistiram detalhes acerca das pugnas
gladiatórias, exceptuando as que tiveram lugar nos Saepta, o recinto destinado às
votações no Campo de Marte. Porém, o historiador Veleio Patérculo louva não só o
munus gladiatório, como também a naumachia, definindo-os como «espectáculos
magníficos»529. A naumachia decorreu num lago artificial construído por Augusto
(stagnum Augusti) no Tibre, abrangendo aproximadamente 47 acres, tendo mais de
500 m de comprimento530 e uma forma possivelmente elíptica531. Aí participaram 3 000
combatentes, distribuídos por 30 birremes e trirremes, além de numerosas
embarcações pequenas532. Em face do tamanho do espaço disponível no stagnum
Augusti, os navios maiores tinham, sem dúvida, dimensões similares aos que
navegavam no mar e nos rios, desenvolvendo operações bélicas. A naumachia recriava
uma batalha naval histórica, opondo «Atenienses» a «Persas», a famosa contenda de
Salamina533. Nesta ocasião, os «Atenienes» venceram, como sucedera em 480 a. C., mas
talvez tenha havido algum tipo de «gestão» do espectáculo aquático, de molde a
garantir que o desfecho correspondesse à vitória helénica centenas de anos antes 534. Por
outro lado, afinal de contas, o resultado até podia não se revestir de tanta importância,
uma vez que não estiveram envolvidas forças militares romanas 535.

Paul Zanker propôs uma interessante sugestão sobre o «significado oculto» desta
naumachia: assim como as vitórias dos Atenienses sobre os Persas no século V a. C.
foram interpretadas no mundo grego como um triunfo do Ocidente civilizado sobre o
Oriente bárbaro, a vitória de Augusto na batalha naval de Actium, sobre Marco António
e Cleópatra pode haver sido encarada pelos Romanos à mesma luz 536. Se Zanker estiver
certo, então o desfecho da naumachia terá sido cuidadosamente salvaguardado em
proveito dos «Atenienses». Este espectáculo serviria, portanto, como substituto para

529 2.100.2.

530 Jean-Claude Golvin, L’Amphithéâtre romain et les jeux du cirque dans le monde antique…, p. 92. A naumachia
teve lugar num local situado no Trastevere, sendo a bacia do lago alimentada por um aqueduto especial, o aqua
Alsietina.

531Augusto, Res Gestae, 23.

532 Ibidem.

533 Ovídio, Ars amatoria, 1.171-2.

534 Díon Cássio, Hist. rom. 55.108.

535 K. M. Coleman, «Launching…», p. 70.

536 The Power of Images in the Age of Augustus, trad. De A. Shapiro, Ann Arbor, MI, 1990, p. 84.

199
um triunfo sobre Marco António, na medida em que o mesmo não se poderia celebrar
porque o inimigo derrotado era romano537.

Que saibamos, a mais memorável de todas as naumachiae foi a oferecida por Cláudio
em 52 d. C., enquanto evento completamente autónomo, que prosseguiu com a tradição
de situar os oponentes num contexto pseudo-histórico 538: eram eles os «Sicilianos» e os
«Rodienses», um conflito que, na realidade, nunca chegou a acontecer. Esta
naumachia apresentou-se num cenário natural, no lago Fucino, a cerca de 50 milhas a
leste de Roma, com os espectadores sentados nas suas margens e na encosta
montanhosa, que funcionavam como um teatro criado pela mãe-natureza. A presidir ao
evento estava o imperador, envergando o manto de general – ele ganhara o direito de o
usar por haver conduzido, ainda que indirectamente, as forças romanas à vitória na
Britânia, mas a razão para esta naumachia não era uma celebração de vitória. Com o
espectáculo aquático pretendia-se celebrar uma proeza a nível tecnológico, a drenagem
do próprio lago onde a naumachia se desenrolou. O propósito dessa drenagem visava
tornar a área menos atreita a inundações e, em simultâneo, aumentar a superfície da
terra arável. Mas o projecto saldou-se num fracasso, não se concretizando os seus
objectivos539.

Há uma série de motivos para a fama que esta naumachia granjeou: à batalha deu-se
uma dimensão mítica através de um «Tritão», que, erguido através de um dispositivo
mecânico, emergiu a partir do meio do lago e fez ressoar uma trombeta curva de guerra,
anunciando o início das hostilidades540. Tritão era, recorde-se, uma divindade menor do
mar, muitas vezes representado a emitir sons utilizando para o efeito uma concha.
Depois, havia também a questão da sua magnitude. Como Tácito notou, o espectáculo
claudiano superou a naumachia de Augusto, com navios maiores e mais numerosos541.
Como o espectáculo augustano consistiu em 30 grandes navios a moverem-se num lago
artificial de limitadas dimensões, não parece razoável que Cláudio, claramente desejoso

537 Ibidem, p. 72. Já tinha havido uma celebração triunfal pela sua vitória sobre Cleópatra, uma rainha estrangeira.

538 Calígula parece que apresentou naumachiae, mas nada sabemos sobre estas. Dispomos somente de uma referência
confusa à escavação da zona dos Saepta, que o referido imperador mandou que se enchesse de água. No entanto, mesmo
após tal esforço, o sítio apenas podia acomodar um navio, o que dificilmente se pode qualificar como se tratando de uma
naumachia. Díon Cássio afirma, enigmaticamente, que Calígula transferiu os seus espectáculos «para outro local», o
que implicou a demolição de muitos edifícios de grandes proporções (50.10.5). Seja como for, podemos presumir que, se
o imperador tivesse dado uma notável naumachia noutra zona, certamente que subsistiriam registos da mesma em
fontes antigas.

539 H. J. Leon, «Morituri Te Salutamus», TAPA 70 (1939), pp. 46-47; Díon Cássio, 60.11.5.

540Suetónio, Div. Claud. 21.6.

541Annales, 12.56.

200
de apresentar uma naumachia de proporções épicas que ultrapassasse em amplitude as
anteriores batalhas navais encenadas, utilizasse menos seis naves num lago artificial
muito mais espaçoso. Díon Cássio e Tácito oferecem diferentes tipos de informes acerca
da naumachia, mas tomando-se em consideração os seus números, os dados mostram
mais lógica que os avançados por Suetónio. Tácito afirma que os navios eram trirremes
e quadrirremes, só que não adianta coisa alguma sobre quantos estiveram presentes na
batalha. Todavia, ele é a única fonte que nos proporciona o número de participantes
humanos: 19 000, que deviam incluir os «soldados» e os remadores 542.

Díon Cássio, em contrapartida, não indica o número de indivíduos envolvidos mas


refere que os navios ascendiam a 100543. Se Tácito estiver realmente certo quanto ao
total dos combatentes, então haveria uma quantidade de barcos bem superior aos 24
mencionados por Suetónio para acomodar tantos marinheiros. Os 100 navios de Díon
Cássio fazem sentido. Os trirremes requeriam 170 remadores e podiam transportar 40
tropas544. Se todas estas naves correspondiam a trirremes, 100 barcos e 19 000
participantes significa uma média de 190 remeiros e combatentes por cada navio. Uma
vez que os quadrirremes careciam de mais homens para remar, tal média subiria um
pouco mais; no entanto, ainda parece situar-se dentro dos limites do possível.

Foi nesta naumachia que os combatentes se dirigiram a Cláudio com as palavras que
se tornariam famosas através das películas versando gladiadores – «Avé César, os que
vão morrer te saúdam!»/Have Imperator, morituri te salutant»545. Quando um grupo
representativo proferiu esta alocução, este estaria provavelmente a bordo, perto da
costa, encontrando-se Cláudio sentado numa cadeira em terra firme. Desde há muito
que os argumentistas de diversos filmes e séries televisivas atribuíram esta frase aos
gladiadores, a tal ponto que a mersma se alojou na mento do público como se se
tratasse da maneira como principiava um espectáculo na arena; todavia, é mais do que
garantido que os gladiadores jamais pronunciaram tais palavras. Não existe registo, nas
fontes documentais, deles dizerem tal frase em direcção a um munerarius e, mais
significativamente, os combatentes profissionais nunca começavam uma porfia com
uma atitude tão derrotista546. Mas estas palavras já seriam apropriadas para os
damnati antes de começar uma naumachia; estavam prestes a lutar numa batalha em
542Suetónio, Div. Claud. 21.6.

543 Ann. 12.56.

544 Hist. rom. 60.33.4.

545 Cf. OCD, «Trireme».

546 R. Dunkle, Gladiators…, p. 196.

201
que o imperador e todos os outros que assistiam esperavam que perecessem, assim se
cumprindo a pena de morte a que eles haviam sido sentenciados.

A conhecida frase aparenta consistir num apelo à misericórdia do princeps, que tinha
um bizarro sentido de humor, bem manifesto quando retorquiu «Ou não»/Aut non,
dando a entender que talvez lhes fosse permitido sobreviver caso combatessem com
tenacidade, o que, de facto, veio a acontecer. Contudo, os damnati viram na resposta de
Cláudio a concessão de perdão, julgando eles que não precisariam de lutar mais. O
primeiro pensamento do imperador foi o de mandar matá-los a todos ali, mas se o
fizesse arruinaria o seu espectáculo, além de que seria uma tarefa difícil, dado que os
damnati estavam armados. Quando, finalmente, principiou a batalha, os damnati
actuaram de forma renitente, mas acabaram por se ver forçados a lutar até à morte 547.

A força foi aplicada por unidades de infantaria e cavalaria pretorianas, que no local se
achavam estacionados para evitar que esse elevado número de condenados armados
buscasse a evasão548. Acresce que os soldados pretorianos também dispunham de uma
espécie de muralha fortificada à sua frente, a partir da qual podiam empregar a
artilharia, disparar flechas e arremessar pedras, enquanto navios repletos de tropas
romanas patrulhavam o lago. Cláudio não tencionava correr quaisquer riscos. A fuga
dessa multidão podia resultar num desastre que podia trazer à memória a revolta de
Espártaco, no século anterior. Mal a refrega começou com todo o seu vigor, os damnati
combateram de maneira magnífica, ultrapassando todas as expectativas. Tácito
comenta que «…os condenados lutaram com o espírito de homens corajosos…». Ora
isto traduz-se num forte louvor por parte de um autor que usualmente desprezava
todas as formas de espectáculos, não os considerando dignos de menção nos registos
históricos549. No fim, os damnati que conseguiram manter-se vivos ganharam a
liberdade por iniciativa de Cláudio, em jeito de reconhecimento pelo seu modo feroz de
porfiarem550.

Quanto a Nero, incluiu uma naumachia como parte do seu munus de 57 d. C., no seu
novo anfiteatro de madeira, seguindo o exemplo de Augusto, com uma batalha entre
«Atenienes» e «Persas». Não possuímos detalhes sobre o prélio, nem tão quanto do
número de navios e de combatentes que participaram. A única característica a ressalvar

547Díon Cássio, Hist. rom. 60.33.4; Suetónio, Div. Claud. 21.6.

548 Díon Cássio, Hist. rom. 60.33.4.

549 Ann. 13.31.1. Veja-se M. Wistrand, Entertainment and violence in Ancient Rome: The Attitudes of Roman Writers
of the First Century A.D., Gotemburgo, 1992, pp. 26-27.

550 Ann. 12.56.

202
desta naumachia radicou na tecnologia utilizada para a sua realização: Díon Cássio
refere-se a um súbito afluxo de água no interior da arena, o que sugere tratar-se algo
destinado a surpreender os espectadores551. É fácil imaginar o público siderado ante a
apariçãorepentina da água na arena. Ainda mais recrudesceu a surpresa com a
apresença de peixes e outras criaturas marinhas a nadarem no interior do recinto 552.
Quando a naumachia terminou, escoou-se rapidamente a água da arena, seguindo-se a
exibição de homens travando duelos (Díon Cássio não os designa como gladiadores),
que depois tomaram parte numa escaramuça de infantaria 553. Assim, Nero, numa só
tarde, apresentou uma naumachia e uma contenda terrestre no mesmo local, o que se
encarou como uma espectacular proeza tecnológica ao tempo 554. A este respeito, K.
Coleman comentou: «A ênfase na rapidez e subitaneidade destes feitos de engenharia
contribuiu para a impressão de que os imperadores que os mandaram efectuar
detinham poderes sobre-humanos»555.

Decerto menos espectacular foi a própria naumachia, em especial quando cotejada


com a de Cláudio. A arena do anfiteatro de Nero, mesmo que tivesse aproximadamente
igual tamanho que a do ulterior Anfiteatro Flávio, só poderia, quando muito, acolher
uma pequenina naumachia, contando com uns poucos navios de dimensões reduzidas
e, também, baixo número de combatentes e remadores. Na realidade, o principal
aspecto desta naumaquia não se achava no seu realismo, mas na adaptação do
espectáculo ao anfiteatro. O êxito desta exibição de tecnologia conduziu a uma
«reedição» mais complexa, sete anos depois: Díon Cássio afirma que ela ocorreu num
«teatro» (mas refere-se a um anfiteatro), sem dúvida o mesmo edifício de madeira que
albergou a primeira naumachia556. Desta vez, tudo começou com uma venatio, o que
talvez nos leve a crer que Nero tencionava alterar a ordem dos eventos para voltar a
conferir à naumachia o efeito-surpresa, como antes sucedera. Após travar-se a batalha
naval, de que não restaram de pormenores, a água foi drenada e apresentaram-se
combates gladiatórios no mesmo recinto. No entanto, o que deve ter surpreendido mais
551 Hist. rom. 61.9.5.

552Suetónio, Divus Nero, 12.1.

553 Ibidem.

554 Como K. M. Coleman salientou (Launching…», p. 56), embora os espectáculos aquáticos requeressem, em teoria,
uma estrutura construída especificamente para o efeito, o certo é que os Romanos tinham o hábito de inundar espaços
pré-existentes, como os Saepta e o Circus Flaminius.

555«Launching…», p. 57.

556 Hist. rom. 62.15.1. Díon Cássio, escrevendo em grego, refere-se regularmente ao anfiteatro romano como um
«teatro» ou «teatro cinegético», provavelmente devido a facto de a venatio aí se desenrolar. Por exemplo, cf. Hist. Rom.
66.25.2 e 66.21.2.

203
os espectadores foi o facto de a arena se ver novamente inundada, servindo de cenário
para um banquete aquático organizado por Tigelino, o prefeito da Guarda Pretoriana de
Nero, com a comida colocada sobre uma espécie de grande jangada; no meio desta, o
imperador e os seus convidados jantaram, existindo, ao longo dos seus lados tabernas
para se beber desenfreadamente e lupanares onde a prática do sexo estava disponível
para mulheres de todos os níveis da sociedade romana 557 – em suma, no dizer de R.
Dunkle, era uma autêntica «orgia flutuante»558.

Mais tarde, e marcando o climax das cerimónias de inauguração do Coliseu em 80 d.


C., o imperador Tito apresentou uma naumachia representando um enfrentamento
entre «Corcirenses» (de Corcyra, antiga denominação da ilha de Corfu) e «Coríntios»,
conflito que se travou efectivamente antes da eclosão da Guerra do Peloponeso, saindo
vencedores os primeiros. O espectáculo desenrolou-se na arena do Anfiteatro Flávio 559.
A inundação deste espaço para naumachiae tornou-se objecto de uma acrimoniosa
controvérsia entre os eruditos da Europa Ocidental, em começos do século XIX 560.

Seja como for, os académicos modernos tendem em aceitar, quase unanimemente, a


possibilidade de o espectáculo se desenrolar no anfiteatro. K. M. Coleman sublinhou a
ideia de que o Coliseu fora construído no sítio do lago artificial de Nero, que antes se
situava na sua Domus Aurea, no centro da Urbs, daí presumindo que o mesmo teria
capacidade para fornecer água em grande quantidade para tal área. A referida estudiosa
afirma também que os leitores imaginassem uma bacia com poca profundidade sob o
solo da arena, como as descobertas nos anfiteatros júlios-cláudios de Augusta Emerita
(Mérida) e Verona, entre outros, uma vez que a zona subterrânea (dotada de dois
registos) que actualmente ainda se observa no Coliseu não terá sido instalada até ao
reinado de Domiciano561. Na naumachia, desconhecemos qual dos lados venceu, assim
557 Díon Cássio, Hist. rom. 62.15.1-5. Tácito (Ann. 15.37) descreve um festm aquático similar, igualmente oferecido por
Tigelino, mas localiza os prostíbulos (sem incluir menção alguma às tabernas) nas margens do stagnum Agrippae, lago
artificial criado pelo comandante-chefe das forças navais de Augusto, Agripa. G. Ville (La gladiature…, p. 140) entendeu
que os dois jantares aquáticos correspondem, na realidade, a um só e argumenta que, contrariamente à localização, por
parte de Díon Cássio, do espectáculo de Nero num «[anfi]teatro», o espectáculo ocorreu, na verdade no stagnum
Agrippae. Porém, localizar o evento num lago artificial suscita um problema: o truque de inundar, drenar e voltar a
encher de água não seria possível num lago artificial. Portanto, será melhor ver no banquete descrito por Tácito um
evento separado daquele que foi narrado por Díon Cássio. Cf. K. M. Coleman, «Launching…», pp. 51, 53-54.

558 Gladiators…, p. 198.

559 J.-C. Golvin, L’Amphithéâtre romain et les jeux du cirque…, p.85, 92 (sugestiva composição pictórica do autor
evocando a naumachia de Tito no Coliseu), 93.

560Consulte-se, a este respeito, «The Great Colosseum Debate», in Ronald Riley, The Eagle and the Spade:
Archaeology in Rome during the Napoleonic Era, Cambridge, 1992, pp. 217-237.

561 «Launching…», pp. 58-60. Remetemos também para os seguintes estudos: Jean-Claude Golvin, L’Amphithèâtre
Romain…, vol. I, p. 335; Peter Connolly, Colosseum: Rome’s Arena of Death, Londres, 2004, pp. 139-151; Hazel Dodge,
«Amusing the Masses: Buildings for Entertainment and Leisure in the Roman World», in D. S. Potter e D. J. Mattingly

204
como quantos navios participaram: como atrás dissemos, não seria difícil arranjar uma
maneira para os «Corcirenses» ganharem. À semelhança do sucedido nas duas
naumachiae de Nero, os navios consistiriam em pequenos barcos, só conseguindo levar
a bordo «soldados» e remadores.

A arena elíptica do Coliseu apenas poderia acomodar dois trirremes com tamanho
natural, mas não havia maneira de se meterem naves com estas dimensões no interior
do edifício através das entradas habituais 562. Consequentemente, como acontecera com
a naumachia de Nero em 57 d.C., a batalha per se e a sua escala não significavam a
vertente principal do espectáculo. Porém, fica-se com a impressão de que Tito desejava
superar Nero. Díon Cássio conta que, a seguir à venatio e às pugnas de gladiadores,
deu-se um súbito influxo de água na arena 563. Posto isto, as lutas terrestres
converterem-se inesperadamente em porfias aquáticas. Eis o comentário tecido por
Marcial sobre este espectáculo:

«Se fores um espectador que acabou de chegar de costas distantes, que assistes ao primeiro
espectáculo romano, então esta batalha naval, com os seus navios e a água que parece que o mar
te não engana, esta área era, recentemente, terreno seco. Não acreditas nisto? Observa,
enquanto as águas estão a extenuar Marte; acontecerá tão rapidamente que dirás: “Aqui, há
pouco tempo, havia um mar”»564

Este «truque» só seria viável de se concretizar com a utilização de um pavimento de


madeira, que se removia para ter lugar a naumachia e, depois, voltava-se a coloca-lo ao
terminar o evento. Pode também ter sido este o caso em relação aos munera de Nero no
seu anfiteatro de madeira. Todavia, o espectáculo oferecido por Tito introduziu mais
elementos: Díon relata, de modo algo impreciso, que cavalos e touros adestrados, afora
outros animais, entraram na arena inundada como se encontrassem em terra. As
exibições de animais treinados eram uma das componentes usuais da venatio, mas Tito
teve a honra de ser o primeiro dos imperadores a apresentar uma venatio aquática. Á
naumachia seguiram-se outros dois eventos que se desenrolaram na água, um
tratando-se da recriação da lenda de Hero e Leandro e outro um ballet protagonizado
pelas Nereides (deusas do mar)565. Como Hero e Leandro morreram afogados, é

(eds.), Life, Death, and Entertainment in the Roman Empire, Ann Arbor, MI, 1999, p. 236.

562 K. M. Coleman, «Launching…», p. 61.

563 Hist. rom. 66.25.2-3

564 Liber spect. 27.

565 Ibidem, 28-30. K. M. Coleman («Launching…», pp. 62-65). A lenda recriada neste espectáculo relacionava-se com
um jovem chamado Leandro, que, guiado pela lamparina da bela Hero, nadava todas as noites, atravessando o
Helesponto, para estar com ela. Mas, numa noite de tormenta, o vento apagou a chama da lamparina e Leandro,
desorientado, afogou-se. Hero, quando se deu conta do sucedido, num acto de desespero, veio a atirar-se do alto de uma
torre para o mar, também perdendo a vida.

205
provável que os seus papéis tenham sido desempenhados por damnati, que perderam a
vida da mesma forma, no decurso do espectáculo.

A troca terra-água constituiu igualmente o tema do segundo munus de Tito, que


ocorreu no lago artificial de Augusto no Tibre, o já mencionado stagnum Augusti. Este
munus repetiu os eventos do primeiro, que se desenrolou no Coliseu. De novo, realizou-
se uma venatio, houve duelos gladiatórios e, por fim, uma naumachia. O asprecto mais
relevante desta repetição vem revelada no comentário de Marcial, de que «o que quer
que seja visto no circo e no anfiteatro, a rica água te oferece, César [Tito]» 566. O que era
difícil de efectuar no anfiteatro ainda se afigura mais complexo de empreender nas
águas do stagnum Augusti. Assim como o Coliseu necessitou de sofrer algumas
modificações para acolher uma naumachia, o stagnum Augusti precisou de ser
adaptado para eventos terrestres. O lago de Augusto viu-se parcialmente coberto por
uma plataforma de madeira, onde se apresentaram, no primeiro dia, combates
gladiatórios e uma venatio, e no segundo, uma corrida de carros (note-se, acima, a
referência de Marcial ao circo). No terceiro dia, teve lugar a naumachia, opondo
«Atenienses» a «Siracusenses», contenda, como vimos, que sucedeu antes de estalar a
Guerra do Peloponeso. Nela porfiaram 3 000 homens, mais uma vez damnati. No
entanto, esta «batalha naval» não terminou como havia começado, isto é, na água: o
seu ponto álgido foi uma refrega de infantaria, numa pequena ilha no lago, onde os
«Atenienses», contrariamente ao que se verificou no acontecimento histórico,
derrotaram os «Siracusenses», tomando de assalto uma muralha erigida em torno de
um monumento567. E sabido que os Romanos não atribuíam grande importância ao
rigor histórico nas suas recriações, mas, uma vez mais, durante a época imperial, eles
tendiam a identificar-se com os Atenienses.

Não resta a menor dúvida que Tito encarou os espectáculos de Nero em 57 e 64 como
um desafio. O evento organizado por Tito no Coliseu (venatio e lutas gladiatórias,
rematadas por uma naumachia e outras exibições aquáticas) mostra que, no mínimo, o
filho mais velho de Vespasiano logrou igualar as «proezas» de Nero. O que notabilizou
Tito em relação ao seu predecessor foi o seu imaginativo espectáculo no stagnum
Augusti: ele tentou levar a cabo uma tarefa mais difícil, adaptando um lago concebido
para a apresentação de uma naumachia, de molde que eventos passados em terra
pudessem concretizar-se com poucas ou, mesmo nenhumas, interrupções. Tto serviu-se

566 Liber spect. 34.9-10.

567 Díon Cássio, Hist. rom. 66.25.2-4. O monumento pode ter sido dedicado aos dois netos de Augusto, Caio e Lúcio
César, designados como seus herdeiros mas que faleceram antes do princeps. O nome da área em que se localizava o
lago era «Bosque dos Césares» (Nemus Caesarium), assim chamado em honra deles. Veja-se K. M. Coleman,
«Launching…», p. 54.

206
da plataforma de madeira, que cobriu uma porção do lago. O que mais impressionou o
público foi, provavelmente, a corrida de carros, que fez como que a plataforma
submergisse um pouco, dando a impressão de que os veículos puxados por corcéis se
deslocavam mesmo por cima da água, à semelhança do carro conduzido por Neptuno.
Pelo menos é que parece sugerir Marcial, ao descrever o munus de Tito568.

O segundo imperador da dinastia Flávia ultrapassou efectivamente Nero, ao


transformar a naumachia numa batalha naval no lago. Espectáculos como estes de
Nero e Tito foram concebidos não apenas como entretenimentos para o povo, mas
também como demonstrações dos poderes divinizantes dos imperadores. Marcial
reforça esta ideia ao enfatizar a reacção de espanto dos deuses face à venatio de Tito.
Tétis e Galateia, duas divindades marinhas, ficaram assombradas com a presença de
animais terrestres na água (talvez empurrados para fora da plataforma por venatores) e
Tritão viu-se desconcertado ao ver os carros avançarem sobre a massa aquática.
Marcial foi quem mais louvou a naumachia de Tito no lago de Augusto: «Que se
olvidem o lago Fucino e a bacia de Nero; as gerações vindouras só conhecerão esta
naumachia»569.

Domiciano, irmão de Tito, ofereceu igualmente uma naumachia no Coliseu, mas nada
sabemos em concreto sobre este espectáculo, salvo a breve notícia transmitida por
Suetónio570. O biógrafo mostra-se bem mais entusiástico acerca das múltiplas
naumachiae que esse imperador apresentou num lago artificial, rodeado por lugares
sentados que se construíram na outra margem do Tibre, na área da actual Piazza di
Spagna. Suetónio afirma que se tratava de um espaço suficientemente grande para
acolher o número de navios que participariam numa verdadeira batalha naval 571. Só
dispomos de informes sobre uma das naumachiae, em que quase todos os combatentes
sucumbiram e, facto digno de nota, morreram igualmente muitos espectadores. Isto foi
obra de Domiciano, considerado por muitos como um dos imperadores mais cruéis de
Roma. Enquanto se feria a refrega aquática, sobreveio uma violenta tempestade
marcada por chuva torrencial e fortes rajadas de vento. O princeps protegeude
imediato o corpo com vários mantos de lã, mas não permitiu que os espectadores

568 K. M. Coleman (Launching..», p. 53) notou que a drenagem de um lago daquela dimensão levou provavelmente
dezassete dias a realizar-se.

569 Liber spect. 34.5-6.

570 Divus Dom. 4.1.

571Ibidem, 4.2.

207
usassem vestuário mais quente, o que a que muita gente perdesse a vida por causa da
febre e da constipação.

Agora, retrocedamos um pouco mais no tempo, para discorrermos sobre uma


invulgar naumachia organizada por SextoPompeio, filho do célebre Pompeio Magno,
num ambiente natural, no mar alto, no Estreito de Messina, entre a «bota» de Itália e a
Sicília. O espectáculo foi dado não como entretenimento, mas para rebaixar Octaviano,
o futuro Augusto. A naumachia celebrou as duas vitórias navais sobre o futuro
primeiro imperador, em 37 e 36 a. C. Sexto, que se apoderara da Sicília, apresentou a
sua naumachia bem à vista do filho adoptivo de Júlio César, que estava em Rheghium,
na costa itálica, perseguindo expressamente o propósito de vexar o antagonista
derrotado572. Obviamente, quem saiu vencedora da contenda foi a frota de Sexto. Outro
exemplo curioso de uma naumachia consistiu numa exibição sem derramamento de
sangue, representando a batalha de Actium, organizada a nível privado por um amigo
do poeta Horácio, Lólio Máximo (Lollius Maximus), no seu próprio lago. Lolio
desempenhou o papel de Octaviano, ao passo que o seu irmão fez de Marco António.
Horácio descreve os navios empregues neste «exercício» como galés, movidas a remos
por escravos573. A recriação de Lólio, tal como os hodiernos re-enactments de batalhas,
traduziu-se apenas numa diversão inofensiva, onde se simulava a violência.

Para concluir, diremos que a derradeira naumachia de que há registo foi a oferecida
por Filipe-o-Àrabe, aquando da celebração do milénio de Roma (248 d. C.), que
ocorreu possivelmente no stagnum Augusti574.

572Díon Cássio, Hist. rom. 48.19.1.

573 Horácio, Epist. 1.18.61-4; K. M. Coleman, «Launching…», pp. 61-62.

574 Aurélio Victor, Caes. 28.1.

208
CAPÍTULO III – No contexto dos ludi: representações teatrais e
corridas de carros e provas atléticas no Circo. Panem et circenses

Em finais do século IV a. C., quando se apresentaram pela primeira vez combates de


gladiadores em Roma, lembremos que já havia dois entretenimentos muito populares
para as massas: as corridas de carros puxados por cavalos e as peças teatrais, que, como
vimos, se desenrolavam durante os jogos públicos organizados pelo Estado e
financiados pelo aerarium. Atrás dissemos que os ludi propriamente ditos e os munera
gladiatórios tiveram origens bastante distintas: os primeiros já se realizavam em
começos da República, servindo para celebrar ocasiões especiais, caracterizados por
actos solenes de veneração de certas divindades. Estas festividades que inicialmente
duravam apenas um dia, eram organizadas pelos sacerdotes adstritos ao culto de
determinados deuses, às quais se dedicavam os jogos.

Entre tais eventos, os mais vetustos eram a Equirria e a Consualia, no decurso das
quais se efectuavam corridas de cavalos; a Equirria tinha lugar em 27 de Fevereiro e em
14 de Março, celebrada em honra do deus Marte; a Consualia, em 21 de Agosto e em 15
de Dezembro, em homenagem a Consus, que estava associado a Neptuno, deus do mar
e dos cavalos 575
. Já sob o Império (após 27 a. C), acrescentaram-se mais ludi ao
calendário romano. Os primeiros jogos descritos nas fontes literárias antigas como

575 F. Meijer, The Gladiators, pp. 18-19.

209
tendo a duração superior a um dia foram os atrás mencionados Ludi Romani, dos quais
encontramos a primeira referência nos escritos de Tito Lívio, em conexão com os
eventos ocorridos em 366 a. C. (17)576.

Segundo reza a tradição, estes ludi terão sido instituídos pelo primeiro dos «reis
etruscos» de Roma, Tarquínio Prisco, em honra de Júpiter, Juno e Minerva, no
propósito de se comemorar o aniversário da consagração do Templo de Júpiter no
Capitólio, no dia 13 de Setembro. Este evento passou a durar cerca de duas semanas,
entre 4 e 19 de Setembro, um autêntico festival onde se destacaram dois elementos
fundamentais, os ludi scaenici ou theatrici (actuações teatrais) e os ludi circenses
(corridas de carros que se faziam no circo). Reservavam-se mais dias para o teatro do
que para as corridas, dado que as últimas constituíam uma modalidade de diversão
bem mais onerosa. Por vezes, o programa também incluía banquetes públicos, paradas
militares e competições atléticas577.

Ao longo do século I a. C., o calendário romano veio a englobar mais datas previstas
para os ludi: os Ludi Plebei, em honra de Júpiter, celebravam-se anualmente entre 4 e
17 de Novembro; os Ludi Apollinares, dedicados a Apolo, comemoravam-se desde 6 até
13 de Julho. Depois, existiam igualmente os Ludi Megalenses (4-10 de Abril), em honra
da Magna Mater Cíbele, a deusa-mãe da Frígia. O mês de Abril era um período
verdadeiramente repleto de festividades, já que os Ludi Cerealis, em homenagem à
deusa da fertilidade Ceres, iam de 12 a 19 de Abril, e 27 era o primeiro dia dos Ludi
Florales ou Floralia, jogos organizados para a deusa Flora, que se prolongavam até 3 de
Maio. Estas cerimónias tradicionais estatais de Roma não incluiam, originariamente, os
combates gladiatórios e as venationes. Só mais tarde vieram a ser inseridos no conjunto
dos eventos dos ludi. Importa entender o papel dos últimos, dado que nos facultam um
enquadramento elucidativo quanto aos espectáculos púlicos na Urbs. No texto
destinado à revisão da Constituição romana, Cícero apresentou uma cópia de uma
revisão da Constituição romana, elaborado possivelmente durante o consulado de
Pompeio, em 52 a. C., os ludi publici aparecem descritos da seguinte maneira:

«Os jogos públicos devem dividir-se entre os que têm lugar na cavea [teatro] e os que ocorrem
no Circo. No Circo, corridas a pé, pugilismo, luta e corridas de carros; no teatro, cantar, tocar
lira e flauta»578.

576

577Para uma visão mais detalhada sobre alguns aspectos aqui aflorados, consulte-se a obra colectiva editada por J.-P.
Thuillier, Spectacles sportifs et scéniques dans le monde étrusco-italique, Roma, 1993.

578 De legibus, 2, 38.

210
Patenteia-se perfeitamente o carácter público dos ludi numa descrição de Dionísio de
Halicarnasso579, redigida no tempo de Augusto. Inicialmente, segundo o autor, as
pessoas tomavam os seus lugares segundo as curiae, unidades tribais ou eleitorais. O
Circo e, pelo menos, alguns teatros eram considerados templa, lugares sagrados
pertencentes aos deuses. Embora o magistrado que presidia em cada ocasião ganhasse
crédito e reputação ao apresentar um programa de festejos particularmente magnífico
– crédito que depois se materializaria sob a forma de votos na sua próxima campanha
eleitoral – os ludi significavam oferendas às divindades por parte de toda a
comunidade, não apenas pelo magistrado que presidia aos espectáculos. Tratava-se de
alturas mais do que apropriadas para se ostentar o poder da comunidade romana.
Quando Roma passou a dominar todo o Mediterrâneo, uma das formas de simbolizar
esse poder radicava na exibição de diversos animais exóticos (importados dos
territórios que Roma havia conquistado) e, a seguir, na aniquilação dos mesmos diante
da presença do povo romano, reunido, fosse no Circo, fosse num teatro, enquanto
símbolo visual do controlo exercido por Roma: a mais famosa destas exibições talvez
tenha sido a organizada por Pompeio, em 55 a.C., ocasião em que se mataram mais de
mil leões e leopardos, além de se mostrar ao público romano um lince da Europa
Setentrional e um rinoceronte indiano pela primeira vez 580.

Importa não esquecer que os espectáculos romanos eram uma ostentação pública do
poder e este afigurava-se, em primeiro lugar, militar. O exercício do poder na guerra
desempenhava um papel nuclear no sistema da competição política e na auto-estima da
elite romana (e na vida romana em geral). Em regra, o êxito nas batalhas e nas
campanhas via-se recompensado em todos os escalões da hierarquia do exército
romano. Para aqueles que tinham comandado forças vitoriosas, o sinal mais elevado de
reconhecimento público consistia na recompensa traduzida num triunfo.

Os cortejos triunfais, com os jogos associados para se agradecer aos deuses (jogos
votivos) e retribuir o apoio prestado pelos mesmos, eram momentos em que o poder do
Estado romano se conectava publicamente à glória de um determinado líder político.
Devemos distingui-los dos ludi regulares. Se bem que os jogos triunfais tivessem de
receber a autorização do Senado romano, eles eram financiados pelo general que havia
averbado a vitória, servindo-se para o efeito dos despojos obtidos, e reflectiam-se na
sua pessoa: como, aliás, Tito Lívio afirma em relação a Rómulo, o primeiro romano a

579 Dionísio de Halicarnasso, 7, 72ss.

580 Cícero, De republica, 2, 20; Plínio-o-Velho, Naturalis Historia, 8, 20; 24; 28-29.

211
protagonizar um triunfo, este tinha como efeito torná-lo pessoalmente mais respeitado,
augustiorem 581.

Contrariamente aos ludi, a ostentação triunfal centrava-se na figura do general que


tinha regressado à capital, a tal ponto que a primeira lhe conferia, temporariamente,
uma posição monárquica, visualmente representada em peças da sua indumentária que
entrava em conflito com os ideais de uma cidade-estado republicana, o que igualmente
incomodava os seus pares e, até, os seus acólitos: daí a necessidade de se quebrar a
tensão nesse evento, ao permitir-se que os soldados contassem anedotas obscenas
sobre o triumphator, e de se colocar atrás deste um escravo, no seu carro, para lhe
lembrar que era somente um ser mortal como os demais. Paralelamente, o poder que a
procissão triunfal anunciava era o poder do povo romano, expresso mediante o seu
exército. A amplitude desse poder via-se simbolizada por cartazes com inscrições e
representações plásticas evocando os sucessos empreendidos pelo exército sob o
comando do general, assim como pelo cortejo dos prisioneiros estrangeiros capturados.
Num fragmento textual das Histórias de Salústio, em que se descreve como um
apoiante de Cornélio Sula, Metelo Pio, retornou à sua base provincial após uma
campanha bem-sucedida, observa-se claramente que tal género de ostentação triunfal
transmitia a reivindicação de Roma pelo poder universal, além de que causava, entre os
pares do general, desconforto e ressentimento face às eventuais pretensões a nível
privado:

«Quando Metelo regressou em grande glória do ano que passou na Hispânia Ulterior, vieram
ao seu encontro homens e mulheres de toda a parte, e o povo contemplava-o em todas as ruas e
a partir dos telhados. O seu questor, Gaio Urbino, e outros sabiam o que ele queria; quando o
convidaram para jantar, envidaram todos os esforços […], adornando a casa com tapeçarias e
insígnias e montando palcos para a actuação de actores. O pavimento foi coberto por açafrão e
flores, à semelhança do que sucede nos melhores templos. Quando ele se sentou,
surpreenderam-no ao fazer descer uma representação de Vénus, acompanhada pelo som de uma
trovoada artificial, que colocou uma coroa na sua cabeça. Quando entrou para jantar, eles
honraram-no com incenso, como a um deus. Quando ele se reclinou, envergava a toga bordada e
o manto [atributos típicos de um triumphator], e o banquete incluiu alimentos da melhor
qualidade, não apenas de todas as províncias, como também provenientes do ultramar, com
muitas variedades de aves e carne da Mauritânia que até então não se conheciam. Estas coisas
levaram a que ele perdesse algum do seu prestígio, especialmente junto dos homens mais velhos
e conservadores, que as consideraram soberbas, graves e indignas do poder romano» 582.

Estas características das exibições tradicionais romanas, os ludi e os triunfos merecem


a nossa atenção porque, com o decorrer do tempo, foram associadas a outro fenómeno
que se desenvolvera em diferentes circunstâncias, enquanto forma distinta de
ostentação, o munus gladiatório, originalmente (como vimos) não relacionado com o
poder público, mas com a morte individual.

581 Tito Lívio, Ab Urb. Cond. 1, 8; H. Versnel, Triumphus, Leiden, 1970, p. 33ss.

582 Salústio, Histórias, Fg. 2.70, Maurenbrecher = 2.59: … superba illa, gravia, indigna Romano imperio.

212
Por seu lado, tanto Cornélio Sula como Júlio César, os dois dictatores do século I a. C.,
criaram mais jogos para festejarem os seus êxitos e proezas militares: os ludi Victoriae
Sullanae, que se celebraram de 26 de Outubro a 1 de Novembro, e os ludi Victoriae
Caesaris, de 20 a 30 de Julho. Durante o Principado de Augusto, o número de dias
reservados para os ludi ascendia a 61, dos quais 48 se destinavam aos eventos teatrais e
os restantes treze às corridas de carros. Bastante mais tarde, Marco Aurélio (161-180 d.
C.) decidiu reduzir as datas dos ludi, passando a ser, doravante 135 dias, pelo que se
depreende que antes dessa medida terá havido um número bem maior.

As representações em palco e as corridas de carros desenrolavam-se em cenários


diferentes: até perto do fim da época republicana, como atrás dissemos, Roma não
dispôs de nada comparável aos teatros da antiga Hélade: de facto, até 145 a. C., não
existiam ainda estruturas adequadas para tal efeito. A partir daí, a maior parte das
actuações scaenici teve lugar no teatro de madeira que Lúcio Mémnio oferecera à
Cidade Eterna para comemorar as suas conquistas na Grécia, ocorridas um ano antes.
Foi só em 55 a. C. que Pompeio Magno mandou construir um teatro de pedra, o
primeiro da Urbs. No entanto, ao tomar esta iniciativa, ele infringiu a proibição que
havia de se edificarem recintos teatrais de pedra para entretenimento público. Em 19 a.
C., conforme atrás dissemos, surgiu o segundo, o teatro de Cornélio Balbo e, seis ou oito
anos depois, o Grande Teatro de Marcelo, do qual ainda hoje se podem contemplar as
suas ruínas.

Não se pode propriamente dizer que as performances teatrais que se ofereciam ao


público primassem pela sofisticação: o que estava acima de tudo em causa era entreter
e distrair as multidões, o que equivalia a fazê-las rir. Para tal objectivo, afiguravam-se
apropriados dois géneros teatrais específicos, a mímica e a pantomima. A primeira,
consistia num espectáculo burlesco em que os actores, fazendo só uso de gestos,
abordavam uma série de temas da vida quotidiana: o adultério, a paixão amorosa, os
desvios sexuais, as mentiras e os enganos, os homicídios, tudo isto se representando em
palco com especial animação. Em função da maneira como os espectadores reagiam, os
actores logo ficavam a saber se as suas actuações se coadunavam ou não com o gosto do
público. Se determinada peça não captava a audiência, então era quase certo que se
gerava irritação e vozearia, saindo as pessoas, com grande alarido, antes de o
espectáculo terminar.

Aproximadamente nos derradeiros tempos da República, a pantomima começou a


competir com a mímica. Na pantomima, a personagem principal via-se acompanhada
por um coro e por uma orquestra, afora contracenar com actores secundários, quando
se evocavam histórias mitológicas. Este tipo de representações conduzia, por vezes, o

213
público a uma espécie de estado de êxtase, entoando os espectadores as músicas do
espectáculo com toda a força e potência das suas cordas vocais. Algumas melodias
transformavam-se em verdadeiros sucessos entre a plebe, o que não agradava a todos:
certos patrícios entendiam que tais peças escapavam ao seu controlo e que a
pantomima era terrivelmente vulgar, além de que os actores, com a sua aparência
efeminada representavam uma ofensa aos valores tradicionais romanos. A este
respeito, numa passagem, Tácito refere-se à licentia theatralis, ou seja, à licenciosidade
do público, que se deixava arrebatar pelos actores e as suas actuações, comportando-se
de forma indisciplinada (21)583.

Em relação aos protagonistas do outro espectáculo que se oferecia nos ludi, as


corridas de carros584, não seriam certamente acusados de fraqueza ou efeminação: com
efeito, os agitatores eaurigae eram considerados atletas de grande categoria e viam-se
frequentemente enaltecidos pela sua habilidade e ousadia. Devido à extrema relevância
que assumiram as corridas circenses, reveste-se de plena pertinência que tracemos uma
esclarecedora resenha histórica sobre este tipo de espectáculo que levou
frequentemente as multidões ao rubro e muito rivalizou com a popularidade dos
munera gladiatórios. Numa determinada altura, durante o século I d. C., num dos
cemitérios dos arredores da Roma imperial, Plínio-o-Velho (Nat. Hist. 7.168) conta-nos
que aí ocorreu um episódio bizarro: à volta da pira funerária de um condutor de carros
chamado Felix (da factio Vermelha cf. infra), que perdera a vida numa tremenda
colisão na pista do circo), estava reunido um grupo de adeptos enlutados do defunto;
mesmo não sendo o cocheiro mais famoso do seu tempo, nem por isso Felix deixou de
inspirar profundo fanatismo, até na morte, dado que quando a sua pira atingiu o pico
da sua elevada temperatura, com a carne de Felix já a desfazer-se e a transformar-se em
cinzas, eis que um fã enlouquecido saltou para o meio das chamas, imolando-se
juntamente com o seu ídolo. Esta exibição tão intensa e radical de devoção perturbou
os adeptos das outras facções circenses, que converteram o incidente num acidente – o
homem, decerto, deve ter desfalecido com o calor e o incenso e, inadvertidamente, caiu
para dentro da pira…

Este relato de Plínio-o-Velho assume especial interesse por duas razões: em primeiro
lugar, o seu narrador assevera que leu este facto nos acta diurna; isto sugere que as
notícias desportivas seriam um elemento ocasional ou até regular na gazeta diária de

583

584 Sobre os ludi circenses vejam-se, por exemplo, o estudo circunstanciado de John H. Humphrey, Roman Circuses:
Arenas for Chariot Racing, Londres, Batsford, 1986, bem como os artigos em Christian Landes (ed.), Cirques et les
courses de chars à Rome e à Byzance (catálogo de uma exposição, Lattes, Musée Archéologique Henri-Prades, 1990),
designadamente Michel Molin, «Les chars de course romains», p. 149ss, e Michel Eloy, «Le cirque romain et la course
de chars au cinéma et dans la bande dessiné», pp. 53-73.

214
Roma585; em segundo lugar, o que se afigura mais importante, mostra a intensidade dos
sentimentos dos fãs em relação ao desporto das corridas de carros, as suas facções e os
seus heróis. O facto deste caso, possivelmente, o exemplo mais extremo do
comportamento dos adeptos a chegar até nós a partir do teor dos anais da Urbs ter
origem no mundo circense talvez surpreenda a maioria dos leitores. Entre as muitas
ideias erradas sobre os jogos romanos que se generalizaram, especialmente como
resultado de filmes e da televisão, encontra-se a convicção de que os combates
gladiatórios significariam o espectáculo de primeira relevância em Roma. Há quem
suponha, por exemplo, que as maiores audiências ou a maioria dos adeptos, mas isto
não corresponde à verdade. O Circus Maximus era muitos séculos mais velho e
consideravelmente maior do que o Coliseu, e as corridas de carros faziam afluir
enormes multidões à capital e a outros hipódromos ao longo do território imperial,
fenómeno que persistiu séculos após o desaparecimento dos munera gladiatórios.
Ademais, não subsistem evidências de que os espectadores nos anfiteatros se
comportavam de maneira tão fanática como os que estavam nos circos ou mesmo,
ainda que num grau mais reduzido, nos teatros586.

A cultura romana era uma cultura de performance, e o Circus Maximus o seu palco
mais grandioso587. Não houve estrutura maior construída pelo homem em todo o
império romano e nenhum, como veremos, acolheu uma audiência tão numerosa.Na
sua forma totalmente desenvolvida, esta edifício tornou-se um paradigma para as
tradições reverenciadas de Roma, de esplendor urbano e ambições globais, «um lugar
apropriado para uma nação que conquistou o mundo» (Plínio-o-Moço, Panegy. 51),
bem como o protótipo para dúzias de espaços similares em torno do Mediterrâneo.

Em Roma, entre as colinas quase paralelas do Aventino e do Palatino, erigiu-se,


provavelmente há mais de dois mil anos, o circo romano mais faustoso do Império, o
Circo Máximo588, símbolo supremo da referida expressão panem et circenses. O local
era conhecido como Vallis Murcia, um vale que servia de escoadouro natural das águas

585 B. Baldwin, «The Acta Diurna», Chiron, 9 (1979), pp. 189-203.

586 G. Fagan, The Lure of the Arena: Social Psychology and the Crowd at the Roman Games, Cambridge, 2011, p. 93,
n. 34, 221.

587 S. Bell, «Roman Chariot Racing: Charioteers, Factions, Spectators», in P. Christesen e D. G. Kyle (eds.), A
Companion to Sport and Spectacle in Greek and Roman Antiquity, Wiley Blackwell, 2014, p. 493

588Para uma visão sintética, consulte-se o artigo de M. Junkelmann, «On the Starting Line with Ben Hur: Chariot-
Racing in the Circus Maximus», in E. Köhne e C. Ewigleben (eds.), The Power of Spectacle in Ancient Rome: Gladiators
and Caesars, Berkeley/Los Angeles, University of California Press, 2000, pp. 86-102. Do mesmo autor, Há duas boas
monografias em alemão: Die Reiter Roms I. Reise, Jagd, Triumph und Circusrennen, Mainz, Philipp von Zabern, 1990;
Die Reiter Roms III. Zubehör, Reitweise, Bewaffnung, Mainz, 1992.

215
pluviais em direcção ao Tibre589. Antes da edificação do circo, crê-se que ali existiria um
altar consagrado a uma antiquíssima divindade protectora das colheitas, o deus
Consus, ao qual há pouco nos referimos, dedicando-se ao mesmo, após a recolha dos
cereais, jogos em sua honra. De acordo com uma narrativa lendária, terá sido
precisamente numa dessas celebrações que Rómulo, ciente da falta de mulheres entre
os romanos, decidiu convidar povos vizinhos para tal evento e, a determinada altura, ao
fazer um sinal, os seus compatriotas romanos procederam ao célebre Rapto das
Sabinas.Tal vale, longo e estreito, reunia as condições quase ideais para a realização de
corridas de cavalos e carros. No entanto, para adaptá-lo convenientemente para essa
finalidade, foram necessárias obras de drenagem e aplainamento na época dos «reis»,
assim como a instalação das primeiras bancadas de madeira (fori publici) para que o
público pudesse assistir às corridas comodamente sentado. Bastante mais tarde, estas
bancadas converteram-se em tribunas de pedra calcária e, por fim, o mármore acabou
por se impor como material de construção.

No último terço do século IV a. C., erigiram-se os compartimentos (carceres) de onde


partiam os carros com os seus condutores e cavaleiros. Durante a mesma altura ter-se-á
também levantado a Porta Pompae, entrada de acesso ao circo. Pouco depois,
construiu-se a spina, um muro longitudinal de alvenaria, que dividia a pista de areia do
circo em duas partes590. Naquela, ergueram-se estátuas, altares e templetes, bem como
os sete ovos de pedra que serviam para contar as voltas dadas ao circuito pelos
participantes das corridas. A estes elementos, em 33 a. C., Agripa acrescentou outros,
designadamente os sete golfinhos esculpidos em bronze que tinham a mesma função
que os ditos ovos. Nas extremidades da spina, colocaram-se as metas, emblemas em
forma ovóide que assinalavam as linhas de partida e de chegada da pista. Numa delas,
igualmente, situava-se a torre onde ficavam os juízes das corridas e os organizadores
dos jogos (editores spectaculorum).

Grandes parecem ter sido as obras levadas a cabo a mando de Júlio César no circo, que
só vieram a terminar-se sob a égide de Augusto: de entre elas, contou-se a construção
do euripo, destinado a canalizar as águas para um fosso que separava os espectadores
da arena e que desembocavam no rio, e a implantação na spina de um grande obelisco
egípcio, monumento do tempo de Ramsés II e que fora transportado de Heliópolis para
Roma após a batalha de Actium (actualmente está na Piazza del Popolo). Acabados

589 Alison Futrell, The Roman Games: A Sourcebook, Oxford, Blackwell Publishing, 2006, p. 189ss.

590Veja-se Luís Baena, «Circo Máximo, la pasión de los romanos», Historia/National Geographic, nº 38 (Abril 2007),
pp.66-77. Observe-se a reconstituição da aparência do circo nas pp. 72-73.

216
estes trabalhos edificatórios, o Circo Máximo passou a figurar entre os monumentos
mais imponentes e esplendorosos da Cidade Eterna.

Os lugares para os espectadores (designados como cavea, à semelhança do que


sucedia no anfiteatro ou teatro) em redor da pista repartiam-se em três registos,
separados por corredores na horizontal, e na vertical, por escadas, obviamente
imprescindíveis para o trânsito das pessoas e para o acesso às portas de entrada e às
bancadas (vomitoria). O registo mais baixo de assentos (ima cavea), o que se localizava
mais perto da pista, destinava-se a ser preenchido por senadores, enquanto nas filas
imediatamente mais acima se situavam os membros da ordem equestre. No último
registo, o superior, encontravam-se os lugares para a plebe, onde se misturavam
homens e mulheres. Separados do resto, havia, naturalmente, os assentos para a
família imperial, num camarote chamado pulvinar (estrutura que Augusto mandou
fazer), local onde também ficavam as imagens das divindades. Os registos superiores
(media e summa cavea) eram de madeira, o que, em várias ocasiões, provocou
desabamentos com trágico desfecho, devido à grande afluência de público: no reinado
de Antonino Pio, por exemplo, morreram mais de 1.100 pessoas num destes acidentes.

Nero foi o primeiro imperador a mandar empreender uma grande reconstrução do


Circo Máximo, a seguir ao terrível incêndio que deflagrou em Roma em 64 d. C., que
consumiu parte das suas estruturas. Mais tarde, já na dinastia Flávia, Tito construiu e
porta triunfal de saída, dotada da configuração de um magnífico arco de três vãos, na
parcela meridional do recinto, em cuja inscrição se evocava a vitória do imperador
sobre os judeus. Depois, em finais do século I e princípios do II d. C., respectivamente,
Domiciano e Trajano fizeram mais obras no circo, essencialmente com o propósito de o
embelezar ainda mais e de lhe conferir acrescida amplitude.

Trajano gabou-se de converter o Circo Máximo num recinto tão espaçoso que até
poderia acolher toda a população de Roma! Em 100 d. C., a magnificência do circo na
capital competia, nas palavras de Plínio-o-Moço, com o esplendor dos templos, sendo
algo verdadeiramente digno de uma nação que havia vencido e subjugado tantos povos,
tão grandioso quanto os espectáculos que se celebravam no seu interior. Estes
comentários são compreensíveis, se pensarmos na imensidão do conjunto das bancadas
ao longo das duas ladeiras do vale e na monumentalidade das edificações que se
localizavam nas extremidades do circo, onde sobressaíam as grandes portas em forma
de arcos do triunfo. Para termos uma ideia um pouco mais concreta de como deverá ter
sido este gigantesca estrutura, com seiscentos metros de comprimento por 140 de
largura, podemos valer-nos de certas reconstituições, principalmente da maquete da
cidade de Roma que está em exposição no Museo della Civiltà Romana.

217
Diversos estudiosos calcularam que o Circo Máximo acolheria 200 000 espectadores.
Em fontes antigas, como as facultadas pelo próprio Plínio-o-Velho, este número vê-se
elevado a valores claramente hiperbólicos, como, por exemplo, 385 000 espectadores.
Seja co mo for, essa multidão devia ser simultaneamente intimidante e espectacular,
sobretudo se comparamos com a capacidade dos actuais estádios de futebol, que estão
longe de receber uma tamanha mole humana. No século IV d. C., produziram-se ainda
mais obras de melhoramento e embelezamento do Circo Máximo: Constâncio II
adicionou outro obelisco ao pré-existente, que desde logo se tornou no monumento
mais alto de Roma, procedente igualmente do Egipto, removido do templo do faraó
Tutmés III, situado em Tebas (hoje em dia na Praça de São João de Latrão).

A fachada do circo estava rodeada, em toda a sua extensão, por três ordens de arcadas,
através das quais se tinha acesso às escadas, por onde naturalmente entravam e saíam
com certa facilidade milhares de pessoas ao mesmo tempo. Sob as abóbadas destas vias
de acesso existiam, para além disso, tendas de comerciantes (taberneiros, pasteleiros,
ceramistas, etc.) prontos a satisfazer a clientela. No tempo de Cícero, sabemos que o
circo constituía o local de reunião predilecto dos astrólogos, embora mais tarde as
arcadas que rodeavam o edifício se tenham transformado em sítios propícios para a
prostituição.

A paixão despertada pelas corridas de carros permitiu que elas tenham continuado a
realizar-se durante séculos, a despeito das diatribes e admoestações feitas por bispos e
papas, mesmo depois de desaparecido o Império romano do Ocidente. Temos notícia
de que o Circo Máximo terá acolhido a sua derradeira competição em 549 d. C.,
organizada por Tótila, rei dos ostrogodos. Actualmente, restam apenas magras ruínas
do circo, embora não reste a menor dúvida de que debaixo da terra ainda estarão
ocultas parcelas do edífício (na década de 1930 efectuaram-se algumas escavações mas
com resultados pouco conclusivos e, até hoje, não se retomaram as prospecções
arqueológicas no vale).

Recorde-se, todavia, que em Roma existiram outros dois locais destinados aos ludi
circenses, o já aqui referido Circo Flamínio, no Campo de Marte, e o Circo de Maxêncio,
erigido por este imperador em princípios do século IV d. C. (situado na villa que ele
possuía na antiga Via Ápia, do qual sobreviveram algumas parcelas feitas de tijolaria e
pedra), mas nenhum deles se equiparou com o Circo Máximo. No Oriente grego, assim
como no Norte de África, as corridas de quadrigas também foram muito populares
Ressalve-se, porém, que parte oriental helenística, no princípio da época imperial, este
tipo de evento desportivo seguia, ainda, a tradição grega, não havendo circos
permanentes, nem factiones (associações específicas com carros, cavalos, aurigas e

218
numeroso pessoal auxiliar), como em Roma: só no século IV d. C. é que os ludi
circenses se tornaram mais correntes e romanizados. Em Bizâncio, já após o colapso do
Império romano do Ocidente, continuaram a realizar-se tais espectáculos.

No Circo Máximo, não se realizavam apenas corridas de carros (puxados por dois,
três, quatro, as mais usuais e, em certas ocasiões, seis, oito e dez cavalos –
respectivamente bigae, trigae, quadrigae, seiugae, octoiugae e decemiugae): havia
competições de origem grega como a luta, pugilismo, pancrácio, corridas a pé,
lançamento de dardos e discos e actividades mais acrobáticas, em que cavaleiros
(desultores) saltavam de um corcel para outro em pleno galope. De entre os principais
jogos, destacavam-se os já mencionados Ludi Romani ou Maximi, celebrados durante o
mês de Setembro no circo, os quais remontavam indiscutivelmente aos primórdios da
história de Roma. Outros espectáculos, de carácter extraordinário, eram, por exemplo,
os Ludi Saeculares, que festejavam o centenário da fundação da Urbs.

Os jogos circenses, com o tempo, foram recrudescendo em duração, variedade e luxo


na sua apresentação. Em 186 a. C., celebrou-se no Circo o primeiro certame atlético de
que há memória escrita, organizado por Marco Fúlvio Nobilior. Contudo, tais
competições, ainda que aceites, jamais vieram a gozar realmente do favor do público.
Durante a época republicana, também tinham lugar no circo simulacros de combates e
outras exibições marciais, levados a cabo por jovens cidadãos munidos de armas
(embotadas), couraças, escudos e elmos, prática que Augusto restabeleceu na
denominada Festa de Tróia, celebrada em honra de Eneias, do qual o imperador
clamava descender, continuando a ocorrer sucessivas vezes sob a dinastia Júlio-
Cláudia, ao longo do século I d. C. Aquando da organização de jogos em grande escala,
note-se que também se desenrolavam venationes e pugnas gladiatórias no circo.

Antes do começo dos jogos circenses, celebrava-se um acto solene de cariz religioso:
uma procissão (pompa, vocábulo igualmente empregue para o desfile inicial dos
gladiadores na arena), que descia do Capitólio, atravessava o Forum e, por fim, entrava
no Circo Máximo pela Porta Pompae. Dionísio de Halicarnasso relata que o cortejo era
precedido pelo magistrado patrocinador dos jogos, indo de pé sobre um carro quando
se tratava de um cônsul ou um pretor. Atrás dele, vinha a juventude romana, com
rapazes a cavalo ou apeados, de acordo com a sua classe social, seguindo-se os aurigas
com as suas quadrigas. A pompa contava ainda com muito mais gente: havia grupos de
dançarinos, constituídos por homens, rapazes e crianças vestidos com túnicas de cor
escarlate, que amiúde se meneavam ao som da música tocada por uma série de
flautistas e tangedores de liras. Viam-se, igualmente, indivíduos disfarçados de sátiros

219
envergando peles de animais, para além das ménades e de raparigas com véus
transparentes que, por vezes, exibiam atributos fálicos, uns e outras dançando.

Participavam ainda na procissão os portadores de incensórios e das insígnias de ouro e


prata do Estado romano. Por último, apareciam as imagines das divindades, colocadas
sobre tronos e padiolas, secundadas pelos seus atributos, que eram transportadas em
carros ricamente ataviados. Os símbolos divinos, claro está, viam-se acompanhados por
um numeroso séquito de sacerdotes e de pessoal auxiliar dos cultos. A rematar o
cortejo, na época imperial, figuravam as efígies dos imperadores divinizados. Já no
recinto circense, o público nas bancadas recebia a procissão e o magistrado que a
encabeçava, levantando-se e aplaudindo ruidosamente. Na altura que precedia as
corridas, doze carros requintadamente adornados, representando quatro factiones, os
cavalos com luxuosos arneses e os aurigas curtas túnicas, exibindo a cor a que
pertenciam, tinham de aguardar pacientemente, nas doze portas dos carceres, a altura
da abertura das cancelas, que os separavam da pista. Uma vez abertas, saíam então, por
entre as ovações dos espectadores, posicionando-se junto da linha branca, onde,
alinhados, ficavam atentos ao sinal de partida. O magistrado que presidia ao
espectáculo, ao deixar cair um lenço branco (mappa), dava começo à prova.

O espaço lateral da pista, entre as bancadas e a spina, não permitia a corrida em


simultâneo das doze quadrigas: assim, o agitator mais hábil (ou o que tivesse os
cavalos mais velozes e treinados) partia em primeiro lugar, seguindo-se, instantes
depois, os demais. A corrida incluía a realização de sete voltas completas à arena, cada
uma das quais era assinalada mediante a queda de um dos ovos e a inversão de um dos
golfinhos brônzeos, situados, como dissemos, nas extremidades da pista. O percurso
totalizava cerca de 7 km, com a duração aproximada de quinze minutos. Celebravam-se
corridas desde as as primeiras horas da manhã até ao pôr- do- sol.

O ofício de condutor de carros implicava elevado risco e não era nada fácil, já que
exigia anos de duro treino físico, bem como conhecimentos sobre os recursos e as
possibilidades dos equídeos (além do seu adestramento), começando a conduzir
primeiramente bigas e, depois, as quadrigas. Em cada corrida, o auriga arriscava-se a
morrer ou a acabar os seus dias com sérias lesões, provocadas por quedas frequentes. O
tipo de carro utilizado nas corridas consistia num veículo de madeira bastante leve 591,
ao qual se atrelavam quatro cavalos: dois deles, os chamados introiuges, estavam
presos directamente à viatura, enquanto os outros dois, os funales, ficavam nos
extremos, apenas unidos aos animais do meio por correias e bridas (conjunto formado
591 Jean Spruytte, «L'attelage sportif. Le quadrige de course», Plaisirs équestres, 102 (1978), pp. 418-424, e de Ange
Ruiz, «Reconstituer et expérimenter un char de course romain», Histoire Antique & Medievale, Hors série, nº 26 (Avril
2011), pp. 40-49.

220
pelas rédeas e pelo freio). Os últimos corcéis teriam de revelar-se suficientemente
destros para conseguirem dar as voltas nas metas.

O agitator ou o auriga, com o torso protegido por um cossolete, feito de tiras de couro
por cima da túnica, e por um casco do mesmo material a cobrir-lhe a cabeça, possuía as
rédeas atadas à cintura. Consequentemente, ele precisava de estar bem ciente das
consequências que advinham nos movimentos de rotação muito apertados devido à
imediata proximidade dos restantes carros. Se a manobra se efectuasse mal, havia o
claro risco de se estatelar contra a spina. Mas, pelo contrário, nas alturas em que
dispusesse de espaço lançava-se então com toda a velocidade. Quando um carro
chocava com a spina ou colidia com outro, o auriga necessitava de cortar logo as rédeas
com um punhal curvo, a fim de evitar ver-se arrastado pelos cavalos.

O prémio para o vencedor traduzia-se, a nível simbólico, na entrega de uma coroa ou


de uma palma (que também se ofereciam aos gladiadores vitoriosos nos munera),
reproduzidas em alguns mosaicos. Naturalmente que existia também uma avultada
soma de dinheiro, sobretudo durante a época imperial, que servia para amortizar as
despesas da facção, bem como se repartia pelo chefe da mesma e o auriga. Em certos
casos, um condutor de condição servil lograva obter a sua liberdade. Para os que
ficavam em segundo e terceiro lugares, recebiam ricas vestes e até jóias.

Os jogos circenses, para além de grandiosos espectáculos, tinham como pano de fundo
uma verdadeira «indústria» bem lucrativa, que movimentava milhões de sestércios ao
longo do ano, proporcionando, ademais, trabalho a milhares de pessoas. As facções
eram geridas e conduzidas por directores (domini factionum) que faziam parte da elite
romana, em regra do ordo equestre. Elas constituiam associações privadas bem
organizadas, dispondo de elevado número de adeptos, dos seus próprios mitos, ídolos,
regulamentos e, naturalmente, estábulos (stabula factionum) que se concentravam no
Campo de Marte, área hoje correspondente ao Campo dei Fiori, afora disporem de
campos de treino nas zonas rurais. Nas factiones trabalhavam muitos libertos, escravos
e homens livres assalariados (compreendendo carpinteiros, sapateiros, alfaiates,
médicos, mensageiros, camareiros e administradores subalternos), todos contribuindo
para que os carros, aurigas e corcéis estivessem no seu melhor para realizarem as
corridas. A eles se juntavam os agentes que se encontravam nas províncias,
encarregados de fornecer cavalos de qualidade, transportadores e toda uma rede de
intermediários. Ao possuírem um objectivo e uma organização fundamentalmente
empresariais, as facções começaram a adquirir acrescida importância, comportando-se,
em certa medida, de forma similar aos clubes desportivos da actualidade. Os aurigas

221
representavam a face visível da facção e eram, indubitavelmente, as figuras mais
importantes para os espectadores.

De facto, os agitatores foram verdadeiros ídolos das massas. Os adeptos das corridas,
por vezes, nem sequer hesitavam em custear a feitura de estátuas em honra dos
vencedores, ou de inscrever em monumentos pétreos as suas proezas, deixando-as para
a posteridade. Foi o que aconteceu com Gaius Appuleius Diocles (104-146 d. C.), auriga
oriundo da Lusitânia, que gozou de enorme fama nos principais circos de Itália,
sobretudo no Circo Máximo. No ano em que faleceu, com 42 anos, sete meses e 23 dias,
os seus admiradores e os seguidores da sua factio dedicaram-lhe um monumento: foi
uma forma de homenagear o seu idolatrado campeão. Numa inscrição funerária
descoberta em Roma (CIL VI 10048), evoca-se a sua carreira: Diocles participou na sua
primeira corrida pertencendo à facção dos «Brancos», sob o consulado de Acilius
Aviola e de Corellius Pansa (122); dois anos depois, obteve a sua primeira vitória na
mesma factio, sob o consulado de M. Acilius Glabrio e de Gaius Bellicius Torquatus;
em 128, ele correu pela primeira vez na facção dos «Verdes», mais tarde ficando ao
serviço dos «Vermelhos». Ao todo, Diocles conduziu carros durante 24 anos, tomando
parte em 4257 corridas e venceu 1462, das quais 1064 em corridas simples, 347 em
corridas duplas e 51 em triplas. Ao acumular tantas vitórias, tornou-se um miliarius,
isto é, um auriga de topo (em cuja categoria ficavam os que obtiveram para cima de mil
vitórias), e ganhou um total de 35 863120 sestércios, soma verdadeiramente
astronómica.

Além de Diocles, os testemunhos epigráficos permitem conhecer outras estrelas das


pistas circenses, como Paulus, de Emerita Augusta (Mérida), Martianus, de Italica, ou
os nomes e as façanhas de outros aurigas que usufruiram de grande popularidade e
prestígio, convertendo-se quase em «deuses vivos» do circo em Roma, tais como
Marcus Aurelius Liber (3 000 vitórias), Flavius Scorpus (detentor de 2 048 vitórias
quando morreu, aos 26 anos numa corrida 592
, Porphyrius , Venustus, Pompeius
593

Musculosus (3 559 vitórias), Epaphroditus, Crescens, entre outros. Tal como os


gladiadores e os actores, os aurigas estavam submetidos a um regime legislativo
especial, a tal ponto que não podiam ver-se punidos se cometessem certo tipo de delitos
menores, já que se supunha que o risco das carreiras já era suficiente castigo. Isto
mostra a extraordinária importância que se conferia às políticas de distracção das
massas.

592 R. Syme, «Scorpus the Charioteer», American Journal of Ancient History, 2 (1977), pp. 86-94. Ainda em vida,
tornou-se objecto de um autêntico culto, tanto em Roma como em todo o Império.

593 A. Cameron, Porphyrius the Charioteer, Oxford, Clarendon Press, 1973.

222
Não obstante muitos serem escravos ou indivíduos de humilde extracção social, as
fontes literárias e iconográficas não deixam qualquer margem para dúvidas quanto à
devoção da plebe pelos aurigas. No entanto, não foram poucas as vezes em que eles
ficaram envolvidos em sérios conflitos. Sabe-se que durante a Antiguidade Tardia era
comum a prática da magia e da utilização de venenos neste sector lúdico. Alguns
escritores latinos fizeram eco de como os profissionais do circo recorriam a tais
métodos para eliminar os cavalos dos seus rivais ou, mesmo, os próprios competidores.
Para além disso, parece haver sido prática corrente muitas pessoas proferirem
maldições, exaradas por escrito, contra os aurigas pertencentes às outras facções. Os
breves textos, inscritos em tabuinhas (das quais se preservaram muitos exemplares) 594,
dão conta do comportamento da gente comum e dos procedimentos mágico-religiosos
que efectuavam para lograrem obter a vitória da sua equipa predilecta, e com isso,
também, beneficiarem de proveito nas apostas que tinham feito.

Os quadrigarii e bigarii das não eram o único objecto de adoração dos espectadores:
os cavalos também possuíam protagonismo, transformando-se alguns em autênticas
lendas em função das vitórias obtidas. Os equídeos que, frequentemente, eram
herdeiros de conhecidas linhagens, procediam da Grécia, do Norte de África, da
Hispânia, bem como da península itálica. Como facilmente se pode imaginar, viam-se
sujeitos a um duro adestramento para deles fazer animais vencedores, além de
rigorosas selecções, a fim de servirem como introiuges ou funales. Do mesmo modo
que os aurigas, conservaram-se até hoje os nomes de vários desses famosos corcéis,
perpetuados em mosaicos: cavalos como Eridanus (observável numa composição
pertencente ao espólio do Museo Arqueológico de Barcelona) e Inluminator, presente
num mosaico exposto no Museo de Arte Romano de Mérida. Também sobreviveu o
nome de outro, Victor, que alcançou o surpreendente número de 429 vitórias!...

A manutenção do dispositivo organizativo e logístico dos ludi circenses acarretava


enormes gastos, suportados pelos magistrados que organizavam os jogos durante a
República e, mais tarde, pelos imperadores. À margem deste desembolso de capitais,
cabe ainda ter em conta as apostas feitas pelo público: elas tanto causavam súbitas
fortunas como ruínas fulgurantes. Elas serviam não só para tornarem as corridas mais
emocionantes, como também constituíam um autêntico negócio. Apostava-se nos
cavalos, nas facções ou nos aurigas. Porém, neste negócio quem realmente ganhava
eram as próprias oficinas das apostas, muitas das quais eram controladas por membros
da ordem equestre ou por funcionários da casa imperial.

594 J. G. Gager, «Curse and competition in the ancient circus», in H. W. Attridge, J. J. Collins e T. H. Tobin (eds.), Of
Scribes and Scrolls, Baltimore, University Press of America, 1990, pp. 215-228.

223
Como atrás se disse, as factiones identificavam-se pelas suas cores: a «Branca»
(albata), a «Vermelha» (russata), a «Verde» (prasina) e a «Azul» (veneta). O
imperador Domiciano veio a introduzir mais duas cores, a «Dourada» e a «Púrpura»,
mas não tardaram em desaparecer. Desde os primeiros tempos do Império, os
«Verdes» e os «Azuis» relegaram as restantes factiones para segundo plano. Na época
imperial, a facção «Verde» parece ter representado essencialmente os interesses da
plebe, ao passo que a «Azul» se encontrava, em regra, associada à ordem senatorial. A
rivalidade entre estas duas factiones conduziu à concentração de adeptos em ambos os
pólos, e os próprios imperadores, como vimos, não hesitaram em apoiar publicamente
uma ou outra 595.

Resta fazer uma breve menção às numerosas fontes iconográficas que reproduzem
cenas circenses, acervo plástico que prova cabalmente a popularidade deste género de
eventos: entre muitos outros exemplos, podemos destacar um mosaico datável do
século II ou III d. C., conservado no Musée de la Civilisation Gallo-Romaine, em Lyon,
no qual se ilustra uma corrida de quadrigas, e um baixo-relevo em mármore,
pertencente ao Museo Archeologico de Foligno (Itália), onde se observa oito veículos a
competir na pista, sob o olhar atento dos organizadores do espectáculo.

Parcialmente ocultos pela poeira levantada pelas corridas, os jogos circenses serviram
de cenário onde se projectaram os conflitos e as tensões existentes entre os grupos
sociais na competição desportiva, enfrentando-se em equipas rivais aqueles que, na
realidade, eram opositores políticos. A figura do imperador situava-se oficialmente
acima destas questões, garantindo-se desta forma a coesão ideológica do sistema. Com
a canalização «lúdica» das disputas e a minimização dos problemas sociais, Roma pôde
preocupar-se em conquistar o mundo sem alimentar especial temor pela eclosão de
uma violenta agitação social interna 596
. A política de «pão e circo» constituiu uma
maneira relativamente airosa através da qual Roma buscou dissimular os desmandos
de um sistema gradualmente mais corrupto e decadente. Quando a facção «Verde»
vencia a «Azul» no circo, a gente comum entrava em delírio, porque nessas ocasiões, a
nível simbólico, se invertia a ordem estabelecida. Mas, longe de infligir uma derrota ao
sistema, na realidade, a multidão estava a contribuir para a sua legitimidade.

Panem et circenses597

595 Para mais detalhes sobre as facções e as corridas, remetemos para a monografia de A. Cameron, Circus Factions:
Blues and Greens at Rome and Byzantium, Oxford, Clarendon Press, 1973.

596 A. Bóveda e L. E. Herrero, «El Juego en la Capital» (Dossier), Historia y Vida, nº 522 (Setembro 2011), p. 45.

224
As autoridades romanas sempre se mostraram prontas em organizar espectáculos
para captar o favor do povo. Foi a política do «pão e circo» 598, tal como a definiu o poeta
satírico Juvenal, em finais do século I d. C. De facto, conforme pudemos constatar,
espectadores entusiastas, provenientes de quase todos os pontos do Império,
ovacionavam os gladiadores nos munera, vibravam com as corridas de quadrigas no
circo (para além de fazerem apostas) e assistiam ainda a representações teatrais, a
paradas militares, lutas de feras e naumaquias. Em suma, manifestações lúdicas que
entretinham e inflamavam os ânimos não só da plebe, mas igualmente da elite romana,
mas cujo objectivo radicava na obtenção de aprovação política. O crescente
desenvolvimento destes espectáculos durante a República conduziu à sua intensificação
enquanto veículos propagandísticos durante a época imperial. Consequentemente, o
divertimento das massas e a distribuição de alimentos converteram-se em duas grandes
ferramentas para o controlo social.

Ao longo da República, os espectáculos foram aumentando em número, de tal modo


que o ócio (otium) se transformou numa preocupação prioritária para o próprio meio
político romano. Numa primeira fase, foram templos, senadores e grupos de notáveis à
escala local que promoveram estes jogos. A contratação de gladiadores, o transporte e a
manutenção de animais selvagens para as venationes e para as corridas circenses,
assim como a montagem de estruturas e cenários para as peças teatrais, envolviam,
obviamente, um significativo esforço financeiro. Mas o mecenato deste tipo de eventos
encarava-se como um investimento na projecção pública.

Os edis, magistrados encarregados de velar pela ordem pública, começaram a


impulsionar estes espectáculos, no intento de ganhar a simpatia e a adesão dos
espectadores quando pretendiam ser eleitos para cargos políticos superiores. No
entanto, como atrás se viu, o montante de capital que podiam gastar dava apenas para a
celebração de jogos modestos, o que era insuficiente para satisfazer os seus desejos de
popularidade e a sua ambição política. Foi por isso que a partir do século II a. C. os
magistrados vieram a beneficiar da possibilidade de acrescentar à soma atribuída pelo
erário o dinheiro que considerassem apropriado para celebrações verdadeiramente
esplendorosas. Afinal de contas, o público só recordaria o edil que se mostrasse mais

597 Traduz-se habitualmente a expressão de Juvenal por «pão e circo» (Sátiras, 10, 77-81), mas, na realidade, a última
palavra foi escrita no plural em latim, daí que seja «pão e circos». O sentido de «circos» quer dizer, na realidade
espectáculos em geral. Eis a frase original em latim: Nam qui dabat olim imperium fasces legiones omnia, nunc se
continet atque duas tantum res anxius optat, panem et circenses.

598 Assunto que foi objecto de vários estudos, das quais destacamos as de A. Cameron, Bread and Circuses: The
Roman Emperor and His People, Oxford, Clarendon Press, 1974, P. Veyne, Le pain et le cirque, Paris, Éditions du Seuil,
1976 (de que consultámos a versão em língua inglesa) e de C. Weber, Panem et Circenses, Dusseldorf e Viena, 1983..

225
generoso e munificente, e como estava em causa a eleição para magistraturas
superiores, os candidatos competiam entre si para oferecerem os ludi mais
espaventosos e atraentes. Alguns não hesitaram em servir-se das suas fortunas, ao
ponto de, em várias ocasiões, ficarem arruinados. A organização dos jogos tornou-se
em mais uma das incumbências destes representantes políticos, a par da manutenção
da ordem, da vigilância dos mercados ou da supervisão do culto estatal. A faceta
religiosa com que haviam nascido os ludi não tardou em esbater-se, situando-se cada
vez mais em segundo plano. Os jogos, que outrora se tinham instituído em honra dos
deuses, passaram a ser, essencialmente, grandes fastos.

Entre a massa popular cresceu e enraizou-se o interesse por tais eventos, a qual, por
outro lado, desfrutava de excesso de tempo livre. Com efeito, era frequente em Roma
encontrar-se uma considerável quantidade de gente desocupada, que conversava e
discutia nas ruas as façanhas obradas por gladiadores e aurigas. Posto isto, a
instrumentalização política que as autoridades fizeram do ócio contou com a plena
colaboração de muitos indivíduos que se divertiam com os espectáculos, alheados e de
costas voltadas para as autênticas lutas pelo poder.

Os meios políticos empregues para a distracção popular e para a propaganda estavam


intimamente interrelacionados, não se podendo dissociar uma vertente da outra. No
entanto, as grandes doses de populismo 599 que se ministravam ao povo romano não se
ficavam por aqui: durante os jogos e nos períodos em que grassou a fome na Cidade
Eterna, era comum distribuírem-se alimentos, basicamente pão ou trigo, com o fito de
apaziguar as barrigas dos habitantes de Roma; a dinastia Flávia, em especial, pôs em
prática uma política continuada de gastos a favor da plebe urbana, que incluiu
fornecimentos de trigo, dinheiro e, claro, magníficos espectáculos. A distribuição
gratuita de pão, uma peculiar forma de «populismo digestivo» 600, veio a
institucionalizar-se por meio da denominada annona, isto numa cidade que já padecia
com os efeitos de uma forte pressão demográfica. Repare-se que, sob o reinado de
Vespasiano, a capital teria já alcançado um milhão de habitantes.

A annona, instituição criada durante a época republicana e que continuou a existir ao


longo do Império, cumpriu bem a sua função de controlar os preços do trigo (para
evitar que subisse em flecha) e da distribuição do pão pelas classes baixas de Roma.
Interessados em captar o apoio político, os magistrados demonstraram considerável

599Para a questão dos espectáculos enquanto meio de populismo controlado, cf. T. Wiedemann, Emperors and
Gladiators…, pp. 165-183.

600 Raul Cruz e Luís E. Herrero, «Pan y circo en Roma» (Dossier), Historia y Vida, nº 522 (Setembro 2011), p. 33 (31-
37)

226
prodigalidade nas dádivas alimentícias entregues ao povo, especialmente nos
momentos em que preponderaram períodos marcados por más colheitas, carestia e
fome. Na Urbs, não foram raros os distúrbios populares, protagonizados pela plebe,
pelo que convinha às autoridades assegurar a ordem através da política do panem et
circenses. Afora esta expressão de Juvenal, Frontão601, retórico e político que viveu no
século II d. C., avançou com outra fórmula de significado idêntico, annona et
spectacula, reconhecendo que estes dois elementos não podiam faltar caso se
pretendesse ter sob controlo o povo romano. Desde que as fomes assolaram Roma no
século II a. C., a política dos preços dos cereais converteu-se numa das prioridades
políticas e numa responsabilidade do próprio Estado. Mais tarde, estabeleceu-se um
organismo administrativo que trataria, de forma permanente, a aquisição e a
distribuição do trigo e do pão. Durante a época imperial, continuou a ser importante
tanto distrair as mentes da população como o apaziguamento do seu estômago. Isto foi,
efectivamente, uma realidade, a tal ponto que Valentiniano I, no século IV d. C., até
considerou necessário proibir que os padeiros se ausentassem do local de trabalho sob
pretexto algum. Os espectáculos adquiriram a categoria de um direito, algo que a
cidade oferecia gratuitamente aos seus cidadãos, sendo também relativamente corrente
a organização de banquetes em que qualquer um poderia participar, podendo partilhar
o momento perto dos seus representantes políticos. Nas bancadas dos anfiteatros, os
espectadores usufruíam ainda das sparsiones, isto é, de prendas e vales que se lhes
atiravam, os últimos trocando-se por peixe, carne, e até chegou a haver alguns que
funcionavam ao jeito de rifas, tendo como prémios vivendas no campo. Também se
lançava à multidão bolsas com doces e, mesmo, dinheiro ou jóias.

Ante o fausto dos espectáculos, o povo entregava a sua vontade com toda a paixão,
fenómeno que provocou a estupefacção de alguns ilustres membros da sociedade
romana, que, como alguns filósofos, só viam nisto uma degeneração da política e dos
valores tradicionais. Os jogos não estiveram isentos de controvérsias na Roma
senatorial. Os detractores neles denunciavam, não o seu carácter sangrento, nos casos
dos combates gladiatórios, execuções públicas e das venationes, mas o sistema
clientelar e populista que tais eventos geravam. Panem et circenses eram as coisas que
realmente importavam ao povo romano, como deplorou Juvenal. Mas essas vozes,
juntamente com o filósofo Séneca, que criticaram a indiferença generalizada face à
perda dos valores dos ludi, depressa cairiam no olvido, para depois ressurgirem, numa
óptica totalmente diferente, mediante o cálamo dos escritores cristãos.

601 Frontão, 2.216.

227
As lutas senatoriais deixaram a República numa situação muitíssimo periclitante e
frágil, abrindo caminho a uma fase personalista e autocrática, centrada na figura do
imperador, a autoridade suprema a nível militar, político e religioso: a sua mão, firme e
única, dilatou ainda mais as fronteiras de Roma, mas, paralelamente, rompeu com os
laços de união existentes entre o poder político e o povo. Ao não haver mecanismos
intermédios que ligassem a cabeça do Estado às massas, os primeiros Césares
aperceberam-se da enorme relevância que os jogos podiam assumir enquanto
modalidade de vinculação com a plebe. O facto de os espectáculos significarem um
excelente meio de controlo social conduziu a que eles tenham sido monopolizados pelos
imperadores.

Este dirigismo, que tendia a paralisar a iniciativa privada, apresentava o inconveniente


de reduzir o número de espectáculos apresentados, daí, como aliás frisámos nas
primeiras páginas deste capítulo, os imperadores delegassem as celebrações nos
questores (magistrados incumbidos das finanças) e nos pretores (justiça). É claro que
estes ofereciam jogos mais modestos, logo, de menor valor propagandístico. Deste
modo, os Césares permitiam que o povo desfrutasse do entretenimento, ao mesmo
tempo que refreavam as aspirações ou veleidades dos magistrados mais ambiciosos.
Nas cidades provinciais, onde o imperador não detinha o monopólio dos ludi,
celebravam-se espectáculos mais singelos. Os magistrados e os notáveis locais, à
medida que o tempo foi decorrendo, começaram a ver nesta obrigação um encargo
deveras dispendioso e, nas postrimetrias da época imperial, eles tentariam evitar
organizá-los.

Os resultados desta prática exclusivista favoreceram as finalidades propagandísticas


dos imperadores, que reservaram para si próprios as tarefas de construção e
restauração de circos, teatros e anfiteatros. O envolvimento dos imperadores nos ludi
não se cingiu à organização e ao financiamento dos eventos, uma vez que também
estavam presentes nos mesmos. Quer fosse no anfiteatro ou no circo, a proximidade
física do César gerava uma imagem geralmente positiva entre o público, embora,
ocasionalmente, a franqueza da plebe tenha atentado contra o decoro e os bons
costumes. Disto temos um bom exemplo num episódio, em que Diocleciano se viu alvo
de comentários mordazes por parte de um seu súbdito; este julgou que ficaria protegido
no meio da multidão anónima, mas o certo é que depressa o identificaram e o
imperador, sentindo-se afrontado, mandou que o atirassem para a arena.

Os jogos identificavam-se directamente com a glória dos imperadores, e alguns deles


chegaram mesmo a participar em combates e competições: sob a égide da dinastia
Júlio-Cláudia, Calígula foi o primeiro a tomar parte nos jogos, no Circo Máximo,

228
apoiando entusiasticamente a facção «Verde»; frequentemente, comia nos próprios
estábulos e até lá passava as noites; ao seu auriga predilecto, Eutico, ofertou mesmo um
milhão de sestércios. Nero quase igualou Calígula no arrebatamento pelas corridas de
carros, não tendo problemas em apresentar-se no Circo Máximo, segurando as rédeas
de uma quadriga da facção «Verde». Mais tarde, Cómodo apareceu muitas vezes na
arena como secutor (mas não lutando em pugnas com armas cortantes), tal era o seu
obsessivo fascínio pela gladiatura, além de se revelar um fervoroso admirador das
corridas circenses, convivendo amiúde com os aurigas. Caracala, por seu turno,
incondicional apoiante da facção «Azul», não hesitou em mandar matar Eupredes, o
mais célebre auriga dos «Verdes» do seu tempo.

Para alguns romanos, o Circo representava mesmo uma manifestação do cosmos 602
. As
razões por detrás desta convicção encontravam-se, decerto, nos profundos laços
existentes entre a religião e a arquitectura, que iam bem para além dos significados
específicos atribuídos pelos autores antigos às características peculiares das corridas e
dos recintos circenses. Os rituais de fundação de uma cidade, por exemplo,
significavam um meio de trazer o firmamento para uma paisagem terrena, ficando o
ambiente urbano desta forma sob o poder e a protecção da esfera divina.

As conexões concretas entre o espectáculo e o poder imperial estabelecidas pelos


Césares continham igualmente esses vínculos entre a ordem divina e a realidade
experiencial dos ludi romanos: o imperador afigurava-se como o agente dos deuses,
pelo que tudo o que ele criasse se via abençoado e santificado. Acresce que esta faceta
cósmica se estendia também à arena dos anfiteatros.

CAPÍTULO IV. Os diferentes tipos de gladiadores sob o Alto Império:


análise da sua evolução, panóplias e estilos de combate.As
armaturae «técnicas»

A segunda metade do século I a. C. constituiu efectivamente um período crucial para


a evolução da gladiatura. Esta mutação possibilitou a passagem progressiva de uma
gladiatura «étnica», baseada essencialmente em prisioneiros de guerra coagidos a
lutarem entre si de acordo com as suas tradições bélicas, para uma gladiatura técnica
602 E. B. Lyle, «The Circus as Cosmos», Latomus, 43 (1984), pp. 827-841; A. Futrell, The Roman Games..., p. 76.

229
em que a maioria dos combatentes era composta por voluntários metodicamente
treinados. Iniciada no tempo de Júlio César, esta evolução terá terminado, a nível
global, no fim do reinado de Augusto.

Este fenómeno não sofreu alterações radicais, já que os principais tipos de gladiadores
«étnicos» evoluiram dentro de um processo gradual, feito de aditamentos e
experiências, que conduziu, por fim, à emergência de novas armaturae. Estas não se
basearam mais nos equipamentos, por vezes «exóticos», dos guerreiros derrotados
pelos exércitos romanos, mas escoraram-se antes em técnicas de combate específicas,
que, fossem antigas ou novas, se conceberam directamente para o «combate-
espectáculo». Durante este período, os gladiadores tornaram-se, pois, em combatentes
peculiares que se distinguiram cada vez mais da esfera estritamente militar, sem,
contudo, romperem totalmente os laços com a última. Como anteriormente se disse,
geralmente é bastante difícil determinar em que momento histórico específico apareceu
esta ou aquela armatura. Mas, na maior parte dos casos, trata-se mais de um conjunto
de mutações do que de uma criação ex nihilo. Torna-se, contudo, tarefa delicada saber
exactamente de que armatura procede um novo tipo de gladiador e em que altura
concreta se terá consumado tal mutação, já que os textos antigos são quase mudos
acerca deste fenómeno. Este género de classificação só ganha contornos mais nítidos
através de uma análise rigorosa e objectiva das fontes iconográficas (e igualmente das
epigráficas) que chegaram até nós.

Thraeces e murmillones: os gladiadores mais populares no século I d.C.

O thraex, um dos três gladiadores «étnicos» conhecidos, é dos mais facilmente


identificáveis, tendo a sua armatura primado tanto pela longevidade como pela
estabilidade. A «elaboração» do murmillo, o seu principal adversário sob o Alto
Império, constituiu o resultado de um longo período de experiências e tacteamentos.
Uma vez estabelecido, ele tornou-se, juntamente com o thraex, um dos pares
fundamentais da gladiatura técnica. As origens do murmillo permanecem obscuras: o
facto de haver sido oponente de três tipos diferentes de gladiadores – o thraex, o
retiarius e o hoplomachus – dificulta ainda mais a sua identificação. O murmillo foi uma
das armaturae mais «maltratadas» nas descrições dos historiadores hodiernos. Ao
basearem-se numa canção referida por Pompeio Festo, no fim do século II d. C., muitos
autores associaram o murmillo ao «proto-gladiador» gaulês. As palavras dessa canção
que o retiarius dirige ao seu adversário são as seguintes (De Verborum Significatione, 16):

«Não é a ti que eu quero, é ao teu peixe, para onde foges, gaulês?» (Non te peto, piscen peto, quid
me fugis, Galle?).

Esta passagem, citada por quase todos os historiadores da gladiatura, conduziu a que
a alusão feita por Festo se convertesse efectivamente num truísmo, mas sem que a frase
tivesse sido submetida a uma rigorosa abordagem crítica, nem confrontada com outras
fontes disponíveis. Em primeiro lugar, como bem referiu E. Teyssier, parece estranho
que um retiarius «cantasse» em pleno combate: «Quem o poderia ouvir? Dirigir-se-ia
ele à multidão? Mas os espectadores, sentados nas bancadas do anfiteatro a dezenas de
metros dos combatentes, estariam certamente mais ocupados a proferirem gritos de
encorajamento para o seu favorito do que a escutarem a sua canção. Cantaria ele para o
gladiador contra o qual lutava? No entanto, o oponente do retiarius, fosse ele um

230
murmillo ou um secutor estava forçosamente protegido por um casco que lhe cobria a
cabeça; esta protecção metálica, forrada por uma calote de pele ou tela, para além do
surdo rumor dos gritos do público, fazia com que o gladiador nada pudesse ouvir de
forma articulada»603.

Tal fonte levou diversos autores a afirmarem frequentemente, num tom peremptório
e definitivo, que os retiarii teriam sempre como adversários os murmillones, e que estes
derivavam da armatura gaulesa e que nos elmos ostentavam a figuração de um peixe,
de onde procederia o nome murmillo. Estas afirmações merecem ser reexaminadas,
utilizando as fontes literárias, iconográficas e epigráficas e cotejá-las com a realidade
dos combates. No que respeita ao peixe, nenhum equipamento que chegou até hoje,
nem qualquer das representações conhecidas comportam tal elemento ornamental no
casco de um gladiador. O elmo decorado com um peixe que vemos cingido pelo
murmillo no célebre quadro do pintor francês J.-L. Gérôme, intitulado Pollice verso
(1872), consistiu, verdade se diga, num elemento forjado pelo artista precisamente por
causa do teor da canção do retiarius citada por Festo.

É certo que, do ponto de vista simbólico, o peixe se podia justificar ao relacioná-lo


com a rede do retiarius 604. Mas bastará ter bom senso para se compreender que um tal
adorno, empregue em combate, proporcionaria uma enorme vantagem ao retiarius.
Este, com efeito, apanharia com maior facilidade a cabeça do oponente nas malhas da
sua rede, graças às asperezas que essa saliência certamente ofereceria. Ora o que se
passa é que jamais se observa um tal desequilíbrio na gladiatura, pelo simples motivo
que retiraria todo o interesse ao espectáculo, que constituía a razão de ser destes
combates. Na realidade, esta visão das coisas é típica em muitos estudiosos actuais, que
se manifestam demasiado prontos a servir-se de certas fontes, interpretando o teor de
asserções antigas de maneira precipitada e irreflectida, não parando para reflectirem
sobre o aspecto prático de vários elementos.

Embora não fosse sistematicamente esculpido num casco gladiatório, um «peixe», ou


melhor, um golfinho, que então se considerava um elemento propiciador de sorte,
podia surgir como motivo decorativo no elmo, ainda que não se situasse
necessariamente na cimeira mas antes no bojo. Ele foi gravado num casco de murmillo
de Pompeia, e reencontramo-lo também como ornamento, produzido mediante a
técnica de repuxado (relevo executado sobre metal, a frio, batendo a peça pelo reverso
com martelo e cinzel), num elmo de thraex e num galerus de retiarius. Assim, os
equipamentos de gladiadores descobertos em Pompeia exibem, pois, várias decorações
com o «peixe», mas se este fazia parte da simbólica e dos motivos ornamentais
gladiatórios, não era de modo algum apanágio dos murmillones, como tantas vezes se
sustentou. A realidade do murmillo mostra-se, portanto, distinta da que erradamente se
deduziu a partir, unicamente, da canção veículada por Festo.

Transitemos agora para a questão «genealógica» que faz do murmillo um descendente


do gallus do século I a. C., assunto que cabe analisar atentamente. Pouco depois de
evocar a canção, Festo (359) escreveu uma frase de grande relevância mas que
raramente se citou, que versa esta matéria: «… a armatura do murmillo é gálica e estes
murmillones chamavam-se outrora galli» (murmilionicum genus armaturae Gallicum est,
ipsique murmillones ante Galli apellanbantur …). Se, todavia, tomarmos em consideração
os murmillones de finais do século II d. C., tal como foram representados no tempo em

603 E. Teyssier, La mort en face…, p. 98.

604Além disso, talvez, ao tempo, se entendesse a crista angular do elmo do murmillo como a evocação
estilizada de uma barbatana dorsal: cf. R. Dunkle, Gladiators…, p. 105.

231
que viveu Festo, esses combatentes nada têm em comum com os os Gauleses do
período das suas guerras pela libertação contra Roma. No entanto, existe aqui um
pormenor importante: a obra de Festo significa uma espécie de resumo do léxico da
autoria de Vérrio Flaco (Verrius Flaccus), famoso gramático do tempo de Augusto.
Assim, a descrição apresentada por Festo transmite mais uma visão do período
augustano do que do fim do período dos Antoninos. Como seria então o equipamento
dos primeiros murmillones? Para respondermos a esta pergunta, temos que nos servir
do corpus iconográfico, quase sempre um recurso indispensável.

Os gladiadores galli, bem como os guerreiros que os inspiraram, lutavam sempre


munidos de escudos longos e planos, com as extremidades ligeiramente arredondadas.
Em contrapartida, os murmillones, representados em elevado número de imagens dos
séculos I e II d. C., aparecem invariavelmente dotados de um scutum rectangular e
bastante convexo. Assim, este género de escudo incita a que associemos o murmillo
mais ao gladiador samnis do que ao gallus; se, por um lado, esta afirmação é verificável
através das numerosas representações plásticas posteriores aos reinados de Cláudio e
de Nero, por outro, já não o é com base numas quantas imagens datando do
Principado de Augusto e do tempo de Tibério e Calígula.

De facto, ao procurar entender a lógica evolutiva do escudo do murmillo, constata-se


que este gladiador passou por várias etapas evolutivas. Se o «confronto-espelho» dos
provocatores (armatura que desenvolveremos noutra alínea), directamente ligado à
tradição da gladiatura «étnica», se pode considerar como um arcaísmo sob o Império,
não resta a menor dúvida que a oposição entre contrários, composta pelo choque entre
os grandes e os pequenos escudos, foi típica da gladiatura «técnica» do século I d. C.
Torna-se difícil rastrear a cronologia desta evolução em pormenor, já que para o fazer
seria necessário dispor de informações literárias e iconográficas que ilustrassem
objectivamente a conjuntura ao longo de quase cem anos. Enquanto o thraex não suscita
grandes problemas, o mesmo não se passa com o murmillo.

Em 44 a. C., encontramos a primeira menção literária a este tipo de gladiador, por


meio do cálamo de Cícero, que o refere em várias ocasiões: nas suas Filípicas, o célebre
político e orador ataca violentamente Marco António e o seu irmão Lúcio, ao apodá-los
de «gladiadores». Embora esta injúria se manifeste frequentemente nos escritos
ciceronianos, o autor enfatiza, várias vezes, nas Filípicas, que Lúcio António merecia
efectivamente esse rótulo, ao aludir amiúde à armatura predilecta do último:

«Com efeito, ele lá tinha o seu irmão Lúcio, este gladiador da Ásia, que havia combatido em
Mylasa como murmillo; ele sentia sede do nosso sangue, e ele derramou abundantemente o seu
neste combate gladiatório. Porque é que [Lúcio António] exibiu tanta presunção por ter
degolado [iugulauit] um thraex, seu camarada [familiarem] em Mylasa? Como poderíamos
suportar este miserável, se lutou neste forum sob os vossos olhos? O poder dos Gracos parece-
vos ter sido tão grande, o que não será o deste gladiador [Lúcio António]? E esta designação de
gladiador, não a apliquei da mesma forma como, muitas vezes, se aplica a Marco António, mas
como o fazem os que falam correctamente o latim, dado que ele, na qualidade de myrmillo,
combateu na Ásia, após ter revestido com o equipamento de thraex [ornasset thraecidicis] um dos
seus companheiros e amigos, pondo em fuga o infortunado e degolando-o, não sem, contudo,
sofrer, ele próprio, um belo ferimento, como o mostra a sua cicatriz» (Philippicae, 6.13)605.

605 A obra Filípicas é uma das derradeiras de Cícero, escrita em 44 a. C., alguns meses antes da sua morte.
Se, por um lado, o autor menciona o murmillo e o thraex, por outro, nunca emprega os termos scutati e
parmati. Esta dicotomia fundamental no século I d. C. deve então ter sido estabelecida após o final da
República.

232
A denúncia de Lúcio António como gladiador é um autêntico leitmotiv nas Filípicas de
Cícero. Para além do carácter insultuoso e degradante do termo de «gladiador», o autor
chega ao ponto de explicitar a armatura do murmillo, aquando de um confronto contra
um thraex, que terá ocorrido a nível privado e acabou mal. Por esta altura, o thraex era
um gladiador que já existiria há já uns cinquenta anos. O murmillo, pelo contrário, seria
uma armatura recente no tempo de Cícero, porque este vocábulo não se encontra em
fontes anteriores à sua obra. Conquanto o murmillo tenha começado a aparecer desde o
final da primeira metade do século I a. C., é tarefa assaz delicada identificar as suas
características durante este período em que os testemunhos imagéticos gladiatórios são
raros.

Não obstante, podemos aventar duas hipóteses para a sua caracterização: a primeira
consiste em identificá-lo como o género de gladiador com pequeno escudo redondo,
duas grandes ocreae e gládio de lâmina recta, que se opõe ao thraex, nas mais antigas
representações conhecidas do último. Como tivemos o ensejo de referir, as oposições
entre combatentes deste tipo surgem claramente no século I a. C.; recorde-se, por
exemplo, o baixo-relevo do Museo alle Terme di Diocleziano (fig., p. 33) e um outro
pertencente ao mausoléu de Lucus Ferionae (fig, p. 43); talvez caiba ver neste gladiador
provido de escudo redondo o primeiro caso atestado do murmillo, que, segundo Cícero,
era o adversário do thraex. Quanto à outra hipótese, prende-se à procura, no corpus
iconográfico do fim da República, de um combatente que possa corresponder ao
murmillo, como ficou estabelecido sob o Alto-Império.

Este tipo de gladiador possuiria então um gládio de lâmina recta, um scutum e uma
ocrea de reduzido tamanho na tíbia esquerda, o qual apareceu desta maneira no tempo
de Cícero e sob o Principado de Augusto. Lamentavelmente, tal género de
combatentes, que talvez se possam assimiliar aos samnitis e aos galli, nunca aparecem
figurados a lutar contra thraeces. Como atrás vimos, os baixos-relevos de Lucus Feroniae
representam, por duas vezes, um thraex munido de grandes ocreae, a defrontar um
adversário que tem apenas uma pequena greva. O problema é que nestes dois casos, a
parte de cima do gladiador que se opõe ao thraex está em falta, não sendo possível
determinar o tamanho do seu escudo. No sentido inverso, um baixo-relevo do Museo di
Benevento (fig., p. 50) mostra-nos um gladiador indiscutivelmente equipado com gládio
de lâmina recta e scutum, mas aqui não se consegue apurar o tipo de oponente que
enfrenta.

Qual das duas alternativas se afirma mais correcta? Na impossibilidade de se chegar a


uma conclusão definitiva por causa da escassez das fontes disponíveis, parece, no
entanto, que devemos optar pela segunda hipótese. Com efeito, mesmo faltando a
parte superior dos referidos relevos de Lucus Feroniae, este monumento funerário
revela bem a coexistência de dois adversários distintos do thraex, no fim do período
ciceroniano: um, claramente, visível, surge com escudo pequeno e duas grandes ocreae,
enquanto o outro, invisível na sua parte de cima, possui a greva de reduzidas
dimensões típica dos scutati. O mais plausível é que o enfrentamento entre o thraex com
escudo pequeno e o murmillo com o escudo grande tenha feito a sua aparição perto do
fim da vida de Cícero ou imediatamente depois da sua morte. Por esta altura, os
lanistae buscaram, decerto, opor um gallus ou um samnis a um thraex.
Concomitantemente, o adversário tradicional do thraex, o gladiador dotado de pequeno
escudo redondo foi prosseguindo a sua evolução, até se distinguir inteiramente do
thraex através de uma denominação específica.

Aparentemente, observa-se este fenómeno nas peças de terra sigillata produzidas por
Chrysippus; representou-se explicitamente o combate entre dois gladiadores providos

233
de escudos de tamanho reduzido, respectivamente de configuração quadrangular e
redonda, mas, pela primeira vez que se saiba, o «trácio» com escudo redondo é
portador de uma lança. Esta novidade é o indício provável de uma evolução do
combatente com escudo redondo, que se diferenciou do thraex, ao tornar-se um
gladiador autónomo. Em contrapartida, Chrysippus jamais figurou nos seus vasos um
thraex opondo-se a um grande escudo, sinal de que o par thraex-murmillo ainda não se
achava totalmente «institucionalizado». Já sob a égide dos imperadores Júlio-Cláudios,
dispomos de outras fontes que permitem que observemos com mais nitidez a génese
dos murmillones: datando da primeira metade do século I d. C., os punções das
cerâmicas em terra sigillata e os medalhões decorados das lucernas representam em
numerosas ocasiões o par thraex-murmillo a combater. Depois das parcas fontes
iconográficas do tempo de Cícero, o período da primeira dinastia dos Césares sobressai
pela sua fértil quantidade de imagens.

Foi neste momento histórico que o murmillo conheceu uma estabilidade definitiva,
após diversas experiências e tacteamentos: numa primeira fase, certos buris de
Graufesenque (França) traem a origem gaulesa deste tipo de gladiador, uma vez que
várias representações do par thraex-murmillo exibem o último com um escudo de
inspiração céltica. Em tais imagens, estamos indiscutivelmente perante thraeces,
reconhecíveis pelas suas altas ocreae e pela utilização de um gládio que, consoante os
casos, tem uma lâmina mais ou menos curva. À sua frente está um oponente que
brande um gládio de lâmina direita e segura um escudo plano de formato hexagonal.
Este género de equipamento seria, aliás, característico do armamento militar gaulês, tal
como se vê exibido nos baixos-relevos do Arco do Triunfo de Orange (antiga cidade
romana de Arausio)606.

De acordo com o testemunho das peças em terra sigillata, o murmillo procederia do


gladiador «étnico» gallus, pela configuração específica do seu escudo. Graças a tais
fontes, podemos efectivamente admitir a sua origem gaulesa, o que corrobora a citada
asserção de Festo. Contudo, esta hipótese não corresponde às representações dos
adversários dos thraeces que se observam nos medalhões das lamparinas de azeite
deste período. Desde a primeira metade do século I d. C., estas peças ornamentadas
com motivos gladiatórios vieram a tornar-se cada vez mais numerosas. Na maior parte
dos casos, as representações moldadas nesta altura mostram thraeces ou murmillones,
isolados ou a lutarem uns contra os outros. Ora a frequência com que estes gladiadores
aparecem, muito maior do que as demais armaturae, atesta bem a popularidade que
nesse tempo gozavam os scutati e os parmati.

Ao contrário dos exemplos plásticos das peças de cerâmica, nas lucernas os escudos
dos murmillones não são planos nem hexagonais, mas abaulados e rectangulares: aqui
trata-se do scutum filiado no protótipo de origem samnita. Posto isto, este tipo de
gladiador assemelha-se muito ao gallus nas cerâmicas de Graufesenque, mas já nas
lamparinas coetâneas ou posteriores, ele aproxima-se mais dos samnitis. Importa frisar
que os múltiplos espécimes que existem de lamparinas de azeite representam sempre o
último género de equipamento. Não é fácil descortinar as origens desta armatura. A
diversidade dos adversários do thraex, durante a primeira metade do século I d. C.,
reflectiria diferenças que se tenham devido ao contexto local? Será que os ceramistas da
Gália Meridional utilizaram como fonte inspiradora as panóplias celtas, enquanto os
fabricantes de lucernas, estabelecidos em Itália, se mostraram mais sensíveis ao modelo
samnita? Estas diferenças na figuração dos equipamentos dos gladiadores terão
dependido do facto dos artífices residirem em Itália ou na Gália? Estas questões

606Datando do reinado de Nero, os referidos buris de Graufesenque são, aparentemente princípio,


posteriores em cerca de vinte a trinta anos em relação ao Arco de Orange.

234
revestem-se de pleno interesse, tanto mais que o repertório das peças de cerâmica
sigillata se inspirou nos protótipos greco-romanos. Neste sentido, o domínio da
iconografia gladiatória pode ter sido o único onde se manifestaram possivelmente
«criações» locais 607.

Conquanto as duas interpretações sejam plausíveis, note-se que, a partir do final da


dinastia Júlio-Cláudia, as representações do murmillo mostram-no sempre munido de
um scutum convexo. Parece-nos, então, que o murmillo foi objecto de várias
experiências e soluções antes de adoptar uma forma definitiva. Além disso, a escolha
do scutum não se afigura surpreendente: com efeito, o escudo plano dos Celtas
obrigava a uma posição estática e defensiva, o que impedia que o thraex pudesse atacar
energicamente. A necessidade de um combate mais dinâmico aliada à vontade de
melhor proteger os gladiadores constituem duas razões que certamente tiveram o seu
peso na adopção final desse equipamento. Assim como o tipo de escudo não foi
utilizado de imediato, também a escolha definitiva do thraex como adversário
privilegiado do murmillo não se tomou de repente. De acordo com as peças de terra
sigillata, o murmillo foi, igualmente, oponente do retiarius, nos primeiros tempos da
existência desta armatura.

Atrás vimos, quando nos centrámos nos motivos gladiatórios esculpidos nos vasos de
Chrysippus, que o primeiro adversário do retiarius posto em cena (sob o Principado de
Augusto) é um combatente armado com longo escudo. Afora as peças desta oficina de
Lyon, em certos exemplares de cerâmica, datando dos reinados de Cláudio e de Nero,
mostram-se vários confrontos entre retiarii e um tipo de gladiador que ainda não
corresponde ao secutor. Neste caso, a utilização do escudo plano gaulês significaria
uma desvantagem contra o retiarius, mais ainda do que face ao thraex: de facto, a
violência dos golpes vibrados pelo tridente e a própria mobilidade do retiarius
obrigavam a que o murmillo-gaulês permanecesse numa atitude estritamente defensiva,
facto que se comprova em alguns artefactos de terra sigillata, observando-se o murmillo
aparentemente resignado à sua sorte. Esta falta de iniciativa por parte de um gladiador
terá contribuído em larga medida para fazer evoluir o murmillo, sob pena de o ver
desaparecer. A adopção do escudo samnita, a fim de melhorar as possibilidades do
murmillo, bem como a introdução de máscaras protectoras nos cascos no mesmo
período, advieram certamente desta vontade de fazer os combatentes abandonarem
uma atitude excessivamente defensiva, que nada tinha de espectacular.

Conclui-se, portanto, que a oposição thraex-murmillo evoluiu manifestamente graças à


adopção do escudo samnita. Mais tarde, na segunda metade do século I d. C., o par
retiarius-murmillo metamorfoseou-se com a aparição do retiarius versus secutor.
Contudo, desde o começo do Principado, o murmillo parece haver conhecido um
terceiro tipo de adversário: com base no conteúdo de um relevo conservado no Museu
de Perugia, vê-se um murmillo a defrontar já um gladiador provido de duas altas ocreae
e de um grande escudo hemisférico. À semelhança dos gobelets de Chrysippus (fig., p.
58), o combatente situado à esquerda exibe um escudo redondo de tamanho bastante
imponente. As dimensões desta arma defensiva explicam-se pelo facto de de tais
gladiadores ainda não disporem de cascos com grelhas de protecção facial. O escudo
constituía a única defesa para o rosto do seu utilizador, o que se patenteia
perfeitamente através da posição em guarda de ambos os gladiadores representados na
escultura bidimensional de Perugia: o que se encontra à esquerda é manifestamente o
mesmo que o adversário que luta contra o thraex, que já realçámos em várias ocasiões.
Esta fonte iconográfica demonstra, portanto, que numa data relativamente recuada, o
murmillo se opôs aos dois tipos de thraeces que já descrevemos. Reencontra-se a mesma
607 E. Teyssier, La mort en face..., p. 105.

235
oposição na decoração dos artefactos em terra sigillata de Graufesenque, que datam do
reinado de Vespasiano, e que ilustra uma variante menos frequente do confronto
«clássico» thraex-murmillo. Nessas peças sigiladas, é possível verificar a diminuição do
tamanho da parma redonda; esta redução corresponde ao momento histórico é que
apareceram as protecções para o rosto, que podemos localizar em meados do século I
d. C. Contrariamente ao duelo entre o retiarius e o murmillo, que veio a desaparecer com
o advento do secutor, o par formado pelo murmillo e o thraex com escudo redondo iria
perdurar até ao século III d. C.

Tentemos resumir o complexo processo evolutivo do par thraex-murmillo, destacando


certos elementos fundamentais: inicialmente, o thraex, que surgiu sem dúvida no fim
do século II a. C., lutou inicialmente contra outro thraex e, a seguir, contra uma variante
desta armatura, caracterizada por uma parma redonda e por um gladius de lâmina recta;
a partir do tempo em que viveu Cícero, um gladiador derivado do gallus terá sido
possivelmente posto a combater com esses dois tipos de thraex e, desde tal altura,
passou a receber a denominação de murmillo; depois, o último foi igualmente colocado
como oponente do retiarius, utilizando um escudo de tipo gaulês ou, então, um scutum
samnita; em ambos os casos, o murmillo revelou ficar em desvantagem face a esse
temível adversário; terá sido no período situado entre Augusto e Tibério que o retiarius
poderia haver entoado, em jeito de afronta, a canção anotada por Vérrio Flaco, a qual
Festo, dois séculos mais tarde, voltou a citar, só que num contexto gladiatório
totalmente diferente.

Essencialmente, o murmillo opôs-se sobretudo, e de maneira duradoura, às duas


variantes de thraex. Após os tacteamentos e ensaios que tiveram lugar no início do
século I d.C., a definição dos pares de gladiadores fixou-se mais claramente desde o
reinado de Nero. A dupla oposição do murmillo com um oponente principal, o thraex, e
com uma variante secundária, o hoplomachus, veio a converter-se na base essencial das
pugnas gladiatórias no fim da dinastia Júlio-Cláudia e sob os Flávios. Quanto ao
retiarius, acabou por ganhar um adversário específico, distinto do murmillo, o secutor.

Quando ficou definitivamente estabelecido, o par thraex-murmillo conheceu uma


grande popularidade nos séculos I e II da nossa era. Na maior parte das lucernas
produzidas durante este espaço temporal, observamos figurações de thraeces,
murmillones ou, simplesmente, panóplias de armas simbolizando as duas armaturae.
Destas lamparinas conservaram-se numerosos espécimes, que, por seu turno, revelam
uma grande quantidade de modelos: nestes casos, os combatentes foram resumidos ao
conjunto ou somente a uma parte dos seus equipamentos. Analogamente, as
referências epigráficas a estes dois tipos de gladiadores ultrapassam, de longe, as
respeitantes aos demais géneros de combatentes coevos.

O murmillo (myrmillo, mirmillo, mormillo)

Desde o momento da sua «criação», isto é, ao mesmo tempo que os provocatores, o


murmillo pertenceu logo à gladiatura «técnica» 608. Embora, numa primeira fase, lhe
608 Para mais comentários e descrições sobre a armatura do murmillo (por vezes discordantes): M.
Junkelmann, Gladiatoren…, pp. 110-111; S. Shadrake, The World of the Gladiator…, pp. 164-170; R. Dunkle,
Gladiators…, pp. 104-107; É. Teyssier e B. Lopez, Gladiateurs: des sources à l’expérimentation, Paris, Editions
Errance, 2005, pp. 80-88; E. Teyssier, La mort en face…, pp. 107-112; K. Nossov, Gladiator…, pp. 58-60; A.

236
tenha sido atribuído o escudo gaulês, este rapidamente se viu abandonado em proveito
do scutum, que lhe permitia uma utilização muito mais dinâmica do que o anterior,
plano e de origem céltica. Foi, aparentemente também por esta razão que o gladiador
gallus desapareceu neste mesmo período. A origem etimológica mais vezes avançada
609
, associa esta armatura ao vocábulo grego (murmoros, «peixe») e à palavra latina
muraena/«moreia». Se bem que não devamos excluir por completo esta interpretação, o
certo é que ela assenta em fundamentos bastante escassos, dado que só a canção
referida por Festo a apoia indirectamente.

No entanto, se admitirmos que o termo murmillo provém de «moreia», pode haver


outra explicação para a assimilação do gladiador a um «peixe». Independentemente de
o seu adversário corresponder ao thraex ou ao hoplomachus ou, até, durante algum
tempo, ao retiarius, a recriação experimental veio a mostrar que este tipo de gladiador
se via constrangido a manter uma certa expectativa face ao oponente com muito maior
liberdade de movimentos. Do mesmo modo, Artemidoro de Daldis, escritor grego do
século II d. C., na sua obra sobre a interpretação de sonhos (Oneirokritika, cf. Apêndice)
definiu o murmillo como defensivo; de acordo com este autor, tal gladiador «guarda a
casa» e «cede terreno»; ora a moreia poderia efectivamente evocar este modo de
combater do murmillo: tal como a moreia, que permanece dissimulada por entre as
rochas, antes de aproveitar o momento mais favorável para atacar uma vítima, o
murmillo aguentava pacientemente as investidas do adversário por detrás do seu
escudo, antes de ripostar na altura mais oportuna. Por seu turno, M. Junkelmann
considerou que murmillo procederia de murex, que significa caracol-do-mar, e que o
elmo ou o grande escudo deste tipo de gladiador se assemelhariam a este molusco 610.

Avançou-se ainda com outra proposta etimológica, segundo a qual o nome murmillo
poderia vir de murus (muro, muralha). Esta conexão do grande scutum e a ideia de
«muro» encontra-se, igualmente, na obra de Festo; este definiu assim o escudo típico
dos murmillones: «Myrmillionianes, escudos com os quais se luta como se fosse do alto
das muralhas» (De Verborum Significatione, XI). Se observarmos de frente o scutum do
murmillo, a simile empregue por Festo parece traduzir-se numa realidade. Sob esta
óptica, o murmillo exibiria uma autêntica muralha, o que se deve à imponente
protecção que ele possuía comparativamente a uma parma. Como o escudo constituía
um elemento essencial na definição de uma armatura, tal hipótese afigura-se sedutora.
Tanto num caso como noutro, a designação de murmillo está, aparentemente,
relacionada com a sua forma de combater. Dito isto, o murmillo fez mesmo parte
integrante dos gladiadores da «idade clássica».

Ao contrário dos seus predecessores, os murmillones não tinham uma conotação


étnica, mas significavam, antes, uma realidade técnica, tal como o provocator e o
retiarius, que apareceram aproximadamente no mesmo momento histórico. Como
facilmente se depreende, estas duas hipóteses etimológicas não se auto-excluem, mas
nenhuma delas suplanta a outra de forma concludente. Por fim, de tudo isto ressalta o
facto de ser perigoso utilizar a etimologia como chave descodificadora para se
compreenderem os gladiadores, principalmente se a hipótese se escora num só
testemunho e não se baseia numa reflexão de ordem técnica.

Mañas Bastida, Gladiadores: El Gran Espectáculo de Roma…, pp. 72-73.

609Nas fontes epigráficas, a ortografia desta armatura não parece estabilizada. Existiam três grafias,
murmillo, myrmillo e mirmillo.

610 Gladiatoren…, p. 105, 116.

237
Devido às suas obscuras origens, o murmillo foi identificado de diferentes maneiras
consoante os estudiosos. Muitos destes encaram o murmillo como um gladiador
«pesado», enquanto outros o vêem dentro da categoria de um combatente «ligeiro».
Convém refutar estes dois adjectivos, uma vez que se revelam totalmente inoperantes e
anacrónicos no âmbito da gladiatura: em primeiro lugar, cumpre realçar que os
desportos de combate antigos não conheciam categorias de peso, fosse no pugilismo,
fosse na luta greco-romana, ou ainda no pancrácio. Além disso, se nos
fundamentarmos na panóplia do murmillo, tendo em conta o peso total do casco, do
scutum e de uma só ocrea, verificamos que é inferior ao do equipamento do thraex; com
efeito, se o scutum se afigura manifestamente maior e mais pesado que a parma do
thraex, as duas altas ocreae metálicas utilizadas pelos parmati pesam bem mais do que a
única greva do murmillo. Se nos ativermos aos equipamentos descobertos em Pompeia,
o peso de um par de ocreae oscila entre 4-5 kg, ao passo que a greva dos murmillones
não chega a ultrapassar 1,25 kg. Consequentemente, o peso acrescido das grevas do
thraex compensava, largamente, a relativa leveza da sua parma. Quanto ao gládio e à
sica do murmillo e do thraex, o peso de ambas as armas seria equivalente, o mesmo
sucedendo com os seus cascos e manicae.

No corpus iconográfico gladiatório, as representações do murmillo estão praticamente


à cabeça da lista, com 300 ocorrências 611. A confrontação deste importante acervo
documental permite que se apreenda melhor este tipo de combatente. Actualmente,
não há motivos para se alimentarem mais dúvidas acerca da identificação do murmillo;
à semelhança do que aconteceu com o testemunho do provocator Anicetus, uma estela,
contendo a figuração de um gladiador e a menção à sua armatura, resolveu
definitivamente a questão dos elementos identificativos do murmillo: esse monumento
funerário, talhado em calcário e descoberto durante as escavações arqueológicas
realizadas no Inverno de 1977-1978 em Aquileia, foi erigido em memória de «Q.
Sossi[us] Albi[nus] Myrmillonis» (fig. tey., p. 111)612, datando provavelmente do século II
d. C. A referência ao murmillo, ao mesmo tempo que a representação do gladiador em
causa, torna a estela numa fonte preciosa; o baixo-relevo da estela (onde se
contemplam os tria nomina do defunto) mostra o combatente de pé, equipado com o
scutum e um gládio claramente mais comprido que os dos provocatores ou de outros
murmillones já observados. O elmo é também mais aparatoso do que os do século I:
difere dos cascos de murmillo encontrados em Pompeia pela presença de uma protecção
do rosto mais saliente e mais estreita. Já aqui salientámos que esta tendência para
defender o rosto dos gladiadores, ao estreitar a viseira em torno da grelha é
nitidamente perceptível nos cascos de provocator do século II d. C., assim como nos dos
murmillones.

Além das menções de Festo, o murmillo aparece com relativa frequência na literatura
romana: Suetónio, em várias ocasiões, discorre sobre os murmillones sob o reinado de
Calígula, apresentando-os como adversários dos thraeces 613. Uma dessas alusões foi,

611Só o thraex, seu adversário, é um pouco mais representado, com 342 ocorrências. Todavia, o murmillo
encontra-se à frente do retiarius e do thraex no que respeita ao número de inscrições, possuindo 105
referências.

612 A estela conserva-se no Museo Archeologico Nazionale de Aquileia: Luisa Bertacchi, «Aquileia: Teatro,
anfiteatro e circo», in M. M. Roberti (ed.), Spettacoli in Aquileia e nella Cisalpina Romana = Antichità
Altoadriatiche 41 (1994), pp. 177ss, fig. 3. F. Coarelli, (cf. «L’armamento e le classi dei gladiatori», p. 156) e
M. Junkelmann (Gladiatoren, p. 207, fig. 347) entenderam que o último nome visível no epitáfio é Albus. No
entanto, a abreviatura Albi remete para Albinus.

613Segundo este autor, os murmillones opunham-se efectivamente aos thraeces, mas jamais aos retiarii, ao
passo que as imagens contidas em peças de cerâmica sigilada, da primeira metade do século I d. C.,

238
aliás, objecto de uma interpretação incorrecta: numa passagem, o genro de Agrícola
afirma que Calígula «myrmillonum armaturas recidit»; estas palavras viram-se amiúde
traduzidas como «diminuiu a armadura dos murmillones», deixando supor a vontade,
por parte do imperador, de despojar este tipo de gladiadores de parte do seu
equipamento, a fim de colocar os thraeces em vantagem, os quais Calígula muito
apreciava e favorecia. Esta tradução não pode estar correcta, porque dificilmente se
imagina que diminuição os murmillones poderiam sofrer na sua panóplia: não seria
possível fazê-lo, a menos que se tirasse todo o interesse aos combates, ao mandar que
os murmillones aparecessem na arena desprovidos do casco, da manica, do escudo, do
gládio ou, até, da sua ocrea única.

Além disso, nenhum dos numerosos murmillones representados nas lucernas do


século I d. C. mostra uma tal mudança. Na realidade, essa leitura deriva de uma
interpretação errada do vocábulo armatura, que se verteu por «armadura», como se
aqui estivesse em causa o «arnês branco» de um cavaleiro medieval. Ao tomarmos
como exemplo uma armadura europeia do século XV, seria efectivamente possível
retirar uma das múltiplas peças que a compunha sem, todavia, a privar de toda a sua
eficácia.

Nas armaturae gladiatórias, as peças do equipamento eram pouco numerosas e, por isso
mesmo, demasiado importantes para que se pudesse alterar fosse o que fosse sem subverter
por completo a «economia» do conjunto. Assim, parece-nos mais adequado pensar que
Suetónio evoca o termo armatura no sentido de «categoria de gladiador»: quando se refere à
diminuição desta armatura, o autor dos Doze Césares não aludiria ao equipamento, mas ao
prestígio ou, melhor ainda, ao número de murmillones em relação aos thraeces. Esta hipótese
afigura-se tanto mais plausível quanto o facto de o thraex não ser «obrigado» a ter um
murmillo como adversário. Com efeito, através do estudo do acervo iconográfico, conclui-se
que os thraeces podiam lutar por vezes contra oponentes da sua própria armatura.

Ao longo do século I d. C., os murmillones são amiúde representados a combater thraeces ou


hoplomachi, mas, posteriormente, estas cenas começaram a decrescer progressivamente em
proveito das imagens mostrando duelos entre secutores e retiarii. No entanto, ainda se
testemunha a sua existência na segunda metade do século IV, através de várias referências de
Amiano Marcelino: num episódio ocorrido em 357 d. C., o historiador afirma que os legionários
do imperador Juliano «retomaram o combate com um ímpeto acrescido; atentos a esquivar-se
de ferimentos, eles romperam de espada em riste, o flanco dos bárbaros que descobria a sua
fúria ardente».

Eis então o momento para lançar algumas achegas sobre as técnicas de combate dos
murmillones. A impenetrabilidade deste tipo de gladiador derivava dos quatro elementos da
sua panóplia. A peça principal era, indiscutivelmente, o seu grande scutum: habitualmente
colocado no braço esquerdo do murmillo, com uma altura de quase um metro e muito
convexo, ele cobria o gladiador desde o ombro até à tíbia. O escudo protegia assim perto de 70
cm do lado esquerdo do murmillo, das costas ao ombro. O seu tamanho requeria um processo
de fabrico através de camadas triplas, entrecruzadas, de ripas de madeira (aparentemente de
bétula). Para a feitura do scutum utilizavam-se dois métodos diferentes: o primeiro com uma
prensa de madeira, e o outro tendo como suporte uma armação de madeira, que se retirava no
fim da operação. Depois, revestia-se o escudo de tela e couro. Assim confeccionado, o seu peso
rondaria os 7 kg. O lado direito do torso do combatente estava naturalmente mais exposto,
porque se destinava a permitir a passagem do braço armado, o qual se achava guarnecido por

mostram o contrário. Isto deve-se ao facto de Suetónio escrever numa altura em que o murmillo só
defrontava o thraex ou o hoplomachus, enquanto o retiarius apenas porfiava contra o secutor.

239
uma manica de couro. Quanto à parte da perna avançada que ficava à mostra sob o escudo,
apresentava-se provida de uma ocrea metálica.

Por fim, o casco específico do murmillo possuía uma larga viseira horizontal a rodear a calote
614
. Este pormenor servia para que o murmillo, quando lutava contra o thraex, conseguisse
encaixar perfeitamente o seu casco na borda circular do escudo, obtendo o efeito de uma
«tampa sobre uma caçarola». Desta maneira, o murmillo poderia aguentar algum tempo, sem
reagir, face aos golpes desferidos pelo adversário, que muitas vezes embatiam nas suas
protecções. Nesta fase da pugna, o ele aguardaria pela altura mais oportuna para avançar com
o seu braço direito, armado com uma adaga curta, no intento de atacar os pontos mais
expostos e vulneráveis do oponente. Além disso, com o auxílio do seu scutum, também podia
repelir, violenta e poderosamente, o thraex, aquando das suas arremetidas saltitantes. Quanto
ao peso total do equipamento de um murmillo, segundo as pesquisas de M. Junkelmann,
oscilaria entre os 15 e os 18 kg 615.

Como enfatizou Luca Ventura, um dos elementos que mais relevância assumia numa pugna
radicava no equlíbrio das armaturae afrontadas. Tomando em consideração o equipamento,
tanto o murmillo como do thraex tinham armas com lâminas de reduzido comprimento, o
primeiro com a sica, o último empunhando um pugio. Isto leva-nos a deduzir que, por um lado,
devido às pequenas dimensões das armas, o combate travava-se num espaço muito exíguo e,
por outro, as protecções corporais estavam adaptadas a este género de luta corpo a corpo.
Ambos cingiam elmos bastante grandes, com amplas abas e uma significatica crista que
impediam que os golpes atingissem os ombros ou o pescoço, algo que faria terminar muito
rapidamente o enfrentamento e anularia, portanto, a regra do equilíbrio 616. Ademais, como
vimos, dispunham de manicae, componente comum em todos os tipos de gladiadores, que
protegiam o braço armado de possíveis contusões, caso se registasse um choque entre o
mesmo e o casco do adversário, e, de igual modo, servia para aparar eventuais ataques
dirigidos à parte direita do tronco; para defender o abdómen, estava o cinturão (balteus ou
panceria); por último, o murmillo era portador de um grande escudo rectangular idêntico ao
dos legionários e de uma pequena ocrea na perna avançada, a esquerda, enquanto o thraex
empregava uma parma e altas ocreae. Neste caso, o princípio do equlibrio respeitava-se
também através do tamanho das armas, já que ao servir-se de um scutum, que lhe cobria
quase todo o corpo, ao murmillo bastava ter um só greva metálica, ao passo que o thraex, por
causa do seu pequeno escudo, que deixava a descoberto completamente a parte inferior do
corpo, carecia de maior protecção, daí ver-se munido de duas grandes ocreae e, ainda, de
cossalia (coxotes ou perneiras) feitas de matéria orgânica.

A diferença nas dimensões do scutum e da parma conduzia a diferentes estilos de esgrima.


Mediante o exame da iconografia gladiatória e as recriações levadas a cabo no âmbito da
arqueologia experimental, torna-se possível reconstituir os gestos técnicos e compreender as
razões por que este par de combatentes utilizava estes géneros de armamento. Graças a uma
defesa «hermética», composta pelo binómio elmo grande-escudo grande, e com a ajuda da sua
adaga, o murmillo preferia o combate a muito curta distância, assestando com o pugio o ombro
esquerdo e a parte direita do corpo do oponente, servindo-se, ao mesmo tempo, do scutum
como arma ofensiva, arremetendo com força e desestabilizando o thraex. Este, em
614 Na cimeira angular do elmo, o murmillo exibia um penacho ou pêlos de crina de cavalo (o que era mais
habitual). Frequentemente, o casco também era adornado com duas plumas, uma de cada lado da calote, inserídas
em orifícios.

615 Gladiatoren…, p. 110.

616 L. Ventura, «Cuestión de método. Arqueología experimental y gladiatura», Desperta Ferro/Historia y


Arqueología, nº 14 (agosto-septiembre 2017), pp. 22-23.

240
contrapartida, condicionado pela sua parma e envergando altas ocreae, contava com a
necessária agilidade para se movimentar mais velozmente do que o adversário e arremetê-lo
inclusive por meio de saltos fulgurantes, sempre no fito de tirar partido da sua invulgar sica,
que, com a sua forma curva, podia golpear com facilidade as costas e a parte direita do corpo
do murmillo. Em virtude das dimensões das suas armas, para o murmillo seria impossível
mover-se tão celeremente como o thraex, ainda que tal não obstasse a que o conjunto das
técnicas de porfia garantisse espectacularidade e equilíbrio ao duelo.

Ao enfrentar o hoplomachus, o murmillo precisava de adoptar uma táctica distinta: avançava


rapidamente, encostando a viseira do seu casco ao cimo do escudo. Ao aplicar esta técnica,
seria necessário que o scutum ficasse absolutamente na posição de «quebra-vento». No
entanto, a dificuldade para o anti-hoplomachus radicava em manter tal posição, que exigia
muita força física ao nível da parte superior do corpo. O murmillo, caso a situação se lhe
oferecesse, poderia mesmo partir a lança do hoplomachus, mediante percussões sucessivas
efectuadas para baixo com o scutum, utilizando-o ao jeito de uma «guilhotina», por meio de
um movimento de vaivém. Ao agir deste modo, o ele buscaria diminuir a distância imposta pela
arma de haste do hoplomachus, para então seguir para o corpo a corpo. Contudo, importa
referir que o murmillo teria que executar o ataque quase «cego», obrigado como estava, pelas
lançadas do oponente, a baixar constantemente a cabeça ao abrigo do seu scutum.

O thraex

Embora a identificação do thraex (ou thrax) 617 não suscite problemas, uma vez mais é uma
estela permite correlacionar esta armatura com o armamento característico que lhe é
atribuído. Esse monumento funerário há muito que desapareceu, tendo sido descoberto em
Roma numa data desconhecida. Todavia, e felizmente para nós, um desenho do século XVI
reproduziu o aspecto deste importante testemunho; no baixo-relevo esculpido na estela
(possivelmente erigida no século II d. C.), é possível reencontrarmos todos os elementos já
pertencentes ao thraex no século I d. C.: na parte superior da composição, à direita,
representou-se um casco ornamentado por um grifo 618 acima do ombro do gladiador; à
esquerda, observa-se uma sica, como se estivesse pendurada numa parede através de rebites.
Mais abaixo, uma parma, ricamente decorada por palmas e por uma coroa de louros, parece
igualmente suspensa. Estes três elementos, assim expostos, servem para destacar a figura de
um gladiador barbudo, «em glória», portador de uma palma. Esta disposição das armas e o
palmarés evocado pela inscrição transmitem, pois, a imagem de um gladiador que recebeu a
rudis libertadora. Uma vez adquirida a sua liberdade, ele terá então consagrado as suas armas,
tornadas inúteis, a alguma divindade protectora. Do seu equipamento, esse homem, Marcus
Antonius Exochus (referido no capítulo II), apenas exibe no corpo as duas grandes ocreae,
igualmente típicas da sua armatura. Estas grevas surgem requintadamente adornadas por
figuras de Górgonas. Por último, a manica segmentada que cobre o seu braço direito completa
a panóplia. A identificação deste gladiador com a armatura dos thraeces confirma-se pela

617 Sobre a armatura do thraex: M. Junkelmann, Gladiatoren…, pp. 119-120; S. Shadrake, The World of the
Gladiator…, pp. 155-160; R. Dunkle, Gladiators…, pp. 101-104; É. Teyssier e B. Lopez, Gladiateurs…, pp. 67-75; E.
Teyssier, La mort en face…, pp. 112-115; K. Nossov, Gladiator…, pp. 68-69; A. Mañas Bastida, Gladiadores…, p. 70.

618O elmo do thraex, dotado de aba, tinha a cimeira em forma de crescente sobrepujada pelo emblemático grifo.
Este era o companheiro de Némesis, a deusa do Destino e da Vingança. A cimeira podia ser adornada por uma crista
com um penacho, e, de cada um dos lados da parte frontal da calote, fixavam-se também plumas.

241
abreviatura THR[aex] que aparece à cabeça da inscrição que acompanha o baixo-relevo (Fig.
619
). Eis a transcrição do conteúdo do epitáfio:

M(ARCVS) ANTONIVS EXOCHUS THR(AEX). M(ARCVS). ANTONIVS EXOCHVS. NAT(IONE) ALEXANDRINVS


ROM(AE). OB. TRIVMP(HUM). DIVI TRAIANI. DIE. II. T(IRO) CVM ARAXE. CAE(SARIS) ST(ANS). MISS(VS).
ROM(AE). MVN(ERIS). EIVSD(EM). DIE VIIII. FIMBRIAM LIB(ERVM). VIII. MIS(SVM). FE(CIT) ROM(AE).
MVN(ERIS). EIVSD(EM) […] (CIL VI.10194)».

Tradução:

«Marcus Antonius Exochus, thraex. Marcus Antonius Exochus, originário de Alexandria [lutou em] Roma
por ocasião do triunfo do divino Trajano, no segundo dia, como tiro, contra Araxe, do ludus caesaris,
obtendo o resultado de stans missus; [lutou de novo] em Roma, no dia 9 do mesmo munus, contra
Fimbria, livre, que contava com 9 combates, obtendo [Fimbria] a missio. Em Roma, no mesmo munus
[…]»

Assim, Exochus participou como tiro nos jogos oferecidos por Adriano no Anfiteatro Flávio,
aquando do triunfo póstumo em honra do seu predecessor, Trajano (respeitante às campanhas
contra os Partos), em 117 d. C 620. Este monumento funerário da primeira metade do século II
d. C., testemunha perfeitamente a popularidade que ainda gozava uma armatura que fora
concebida mais de duzentos anos atrás.

O thraex é o gladiador que mais vezes aparece no corpus iconográfico621: possuindo 340
ocorrências num total de 1524 representações inventariadas, este tipo de gladiador concentra
em si mesmo 23% do acervo imagético. No contexto epigráfico, o thraex situa-se na terceira
posição, atrás do murmillo e do retiarius, contando com 87 inscrições identificadas, atingindo
quase 20% desse corpus. Ora tal importância provém, decerto, da longevidade e da
especificidade desta armatura.

Festo escreveu que os thraeces deviam a sua denominação à semelhança dos seus escudos
com as parmae dos trácios (De Verb. Sign. 18 622). Através do cálamo de um autor do século II d.
C., esta definição resume bastante bem a singularidade deste gladiador. Com efeito, tal como o
samnis ou o gallus antes dele, o thraex consistiu originariamente numa armatura «étnica». Se
os seus dois predecessores evoluiram, tendo como resultados os provocatores e aos
murmillones, a designação do thraex manteve-se enquanto tal, a despeito da «revolução
técnica» que teve lugar no tempo de Augusto. O motivo desta excepção radica
inequivocamente na definição deste tipo de gladiador.

Como realçou Festo, o thraex não se caracterizava somente pelo carácter étnico do seu
equipamento em geral, mas igualmente, e sobretudo, pelo seu escudo peculiar, a parma. Esta
peça não significava só um elemento evocativo dos guerreiros orientais contra os quais Roma

619Há muito que se perdeu o relevo original: apenas chegou até nós um desenho anónimo feito em meados do
século XVI, inserido no denominado Codex Coburgensis, que actualmente se conserva nas Kunstsammlungen der
Vest Coburg (castelo em Coburgo, Alemanha): M. Junkelmann, Gladiatoren…, est. 93, p. 67.

620P. Sabbatini Tumolesi, EAOR I, nº 92. Lamentavelmente evocam-se apenas os dois primeiros combates de
Exochus, travados com o intervalo de uma semana, em 117 d. C. Desconhecemos o resto da inscrição, visto que falta
a sua parte inferior: talvez fizesse referência a mais um combate, nos mesmos jogos, no qual possivelmente morreu.
Verifica-se que o munus foi celebrado após a morte de Trajano pela expressão divi Traiani (já havia sido divinizado).
Como Trajano faleceu em 9 de Agosto de 117, o munus terá decorrido nas semanas seguintes, provavelmente
durante o resto de Agosto e Setembro.

621 L. Kratochvil, Gladiátor Trak…, pp. 40-54.

622Este laço entre a armatura do thraex e o seu escudo está, ao que parece, relacionado com a etimologia proposta
por Festo acerca do murmillo, que teria igualmente a sua origem a partir do seu escudo.

242
lutou largo tempo, mas igualmente uma arma fundamental característica deste gladiador. Ora
um armamento tão atípico como o do thraex conduziu a um modo de combate muito
particular. Assim, desde o início, o thraex distinguia-se dos seus adversários por uma técnica
que só a ele pertencia. Artemidoro de Daldis, que situou o thraex na primeira categoria das
armaturae na sua enumeração dos sonhos ligados a gladiadores, realçou esta forma de pelejar
nos Oneirokritika: «Se, por exemplo, um homem combate contra um thraex, irá desposar uma
mulher rica, pérfida e que gosta de dar nas vistas, rica porque ele está coberto de armas
pesadas, pérfida porque a sua adaga não tem a lâmina direita, que gosta de dar nas vistas
porque ataca».

Se, por um lado, Festo fundamentou a especificidade do thraex no seu escudo, por outro,
Artemidoro (escrevendo no mesmo período) sublinhou o facto de ele empregar um gládio
curvo. Num episódio narrado por Valério Máximo também se se enfatiza a invulgaridade da
arma dos thraeces. Aquando da guerra contra Aristónico, na Ásia Menor, P. Crasso caiu nas
mãos dos mercenários ao serviço desse rei. No intento de escapar a tal ignomínia, o romano
preferiu vazar o olho de um trácio, o qual de imediato o matou com a sua sica. Este pormenor
técnico no relato de Valério Máximo mostra claramente que, para os romanos, o trácio, fosse
guerreiro ou gladiador, estava muito conectado com o seu armamento «nacional» que se
traduzia na utilização de um pequeno escudo e de um gládio de lâmina curva. Esta identidade
extremamente forte, escorada em duas armas específicas, explica o facto de o thraex,
gladiador «étnico» que apareceu em finais do século II a. C., ter sido o único género de
combatente a conservar o seu nome primitivo até ao término da gladiatura, persistindo ao
longo de quase cinco séculos, o que constituiu uma notável excepção.

E que se oferece dizer sobre as técnicas de combate do thraex? O seu equipamento (que
pesaria 18-20 kg 623), bem como as suas tácticas, deviam permitir-lhe contornar a «muralha»
que era grande escudo utilizado pelo seu principal oponente, o murmillo. Este, através dos seus
ataques circulares visando o pescoço, as pernas e o lado direito do tronco, obrigava o thraex a
desenvolver movimentos amplos e fulgurantes à sua volta. Por esta razão, o pequeno escudo
quadrangular e convexo, a parma, muito manejável e relativamente leve, possibilitava ao
thraex, como acima dissemos, executar grandes saltos, assim como diversos passes muito
rápidos. Apoiando-se nas pernas e ao saltar em direcção ao adversário, o thraex abatia-se
sobre a «muralha» formada pelo murmillo, que devia aguentar os constantes assaltos sem
ceder. Porém, tal como sucedia com o hoplomachus, os movimentos que o thraex realizava
punham a descoberto as pernas, daí estarem munidas de duas altas ocreae, que chegavam
acima do joelho 624. Esta protecção era, muitas vezes, completada por uma espécie de calças
justas acolchoadas, feitas provavelmente de linho com forro de pele de carneiro, que tanto
serviam para defender a zona do peito do pé e as tíbias de contusões causadas pelas grevas
metálicas como o joelho e a coxa dos golpes assestados pelo adversário.

Tal como os demais gladiadores, o thraex usava uma manica no braço direito, mas no seu caso
em concreto este reforço destinava-se tanto a resguardar este lado do corpo como a amortecer
as frequentes colisões sofridas com o casco e o escudo do seu oponente. O thraex procurava
explorar ao máximo a vantagem técnica que lhe proporcionava a sua adaga de lâmina curva, a
sica. Esta contribuia para acentuar o torneamento do escudo adverso. As investidas do thraex
caracterizavam-se pela sua extrema rapidez e violência, com vista a abrir uma brecha no
«parapeito» do seu adversário. As suas grevas metálicas facilitavam, por seu lado, as mudanças
de apoio, revelando-se necessárias quando o combatente passava pelo lado do escudo. Ao

623 M. Junkelmann, Gladiatoren…, p. 120.

624 As ocreae possuíam também ilhós para receberem correias de couro, dispostas aos pares, que permitiam que
ficassem bem presas às pernas.

243
adoptar uma postura bastante baixa, com as pernas bem fincadas no solo, o thraex efectuava
pequenos movimentos rápidos e frequentes, deslocando-se em linha recta e desencadeando
ataques circulares.

O hoplomachus (ou oplomachus)

Para além do thraex, existia, provavelmente desde há muito, um tipo de gladiador provido de
escudo redondo e com as pernas protegidas por grandes ocreae625. Efectivamente, a partir do
século I a. C., este tipo de gladiador, armado de gládio, surgiu como oponente do thraex. No
período tardio da República, o thraex era essencialmente oposto ao seu alter ego provido de
escudo redondo, como aliás se verifica nos relevos de Lucus Ferionae. Por essa altura, esse
gladiador lutava ainda sem a lança, que viria a aparecer sob Augusto, assinalável nas peças de
cerâmica da oficina de Chrysippus. Neste caso, o seu oponente é, invariavelmente, um thraex,
equipado de uma parma excepcionalmente grande. Esta adaptação revela-se, aliás, lógica, já
que em face de um oponente dotado de uma comprida arma defensiva, a parma do thraex era
facilmente contornável. Além do mais, a necessidade de opor um gladiador armado com o
scutum a outro provido de uma arma comprida, constituiu sem dúvida uma resposta
«mecânica» à evolução da sua panóplia defensiva.

Se, por um lado, o processo evolutivo do hoplomachus626 (do grego hoplon, «escudo» ou
«couraça pesada» e machia», que significa «combate»627) pode ser bem rastreado graças ao
seu corpus iconográfico, por outro, o mesmo não acontece com a sua denominação: com
efeito, Cícero, a nossa melhor fonte literária para a gladiatura do fim da gladiatura,
testemunha, no seu tempo, a existência de thraeces, murmillones, provocatores, equites e
essedarii. Nos escritos deste célebre orador e político romano, as referências gladiatórias são
suficientemente numerosas para aventarmos a hipótese de que tal género de combatente com
escudo redondo ainda não se distinguia do thraex através de uma designação concreta.

Provavelmente até começos do Principado, o thraex com parma quadrangular e o seu


homólogo dotado de parma redonda terão lutado entre si sob a denominação comum de
thraeces. Foi apenas quando ambos passaram a combater contra um adversário munido de
scutum é que se tornou necessário diferenciá-los com vocábulos distintos. Se nos basearmos
num dos relevos de Lucus Ferionae, esta evolução talvez possa haver ocorrido no terceiro
quartel do século I d. C. Foi, possivelmente, neste período de inovação que se terá criado o
termo hoplomachus. A mais antiga menção epigráfica, procedente de uma inscrição de
Venusia, na Apúlia, data efectivamente do tempo augustano (CIL IX 4466). Neste epitáfio

625 À semelhança do thraex, utilizava protecções de linho acolchoado nas pernas: tal peça de equipamento
encontra-se representada em várias fontes iconográficas, designadamente num requintado afresco descoberto
numa villa em Mechern bei Merzig (século II, Saarland, Alemanha; M. Junkelmann, Gladiatoren, p. 105, fig. 145),
onde vemos um hoplomachus enfrentando um murmillo, ou noutro gladiador da mesma armatura, figurado numa
das cenas dos mosaicos de Zliten (A. Hönle e A. Henze, Römische Amphitheater und Stadien: Gladiatoren Kämpfe
und Circussspiele, Luzerna/Herrshing, 1981, est. 33 a-b).

626 Sobre esta armatura: M. Junkelmann, Gladiatoren…, pp. 120-123; S. Shadrake, The World of the Gladiator…,pp.
160-163; R. Dunkle, Gladiators…, p. 104; É. Teyssier e B. Lopez, Gladiateurs…, pp. 75-80; E. Teyssier, La mort en
face…, pp. 115-124; K. Nossov, Gladiator…, pp. 54-56.

627 Vários autores afirmam apenas que hoplomachus significa «combatente com escudo» (como, por exemplo, A.
Futrell, The Roman Games: A Sourcebook, p. 96) o que não está inteiramente correcto.

244
colectivo, destinado aos membros de uma mesma familia gladiatoria, lê-se o nome de Phaeder
Avilius, um hoplomachus que pereceu no seu primeiro combate. Em meados do século I, o
étimo designativo de hoplomachus já se havia tornado corrente, conforme se atesta através de
várias inscrições funerárias e de graffiti.

Em meados do século I da nossa era, à semelhança das demais armaturae, a panóplia do


hoplomachus já se encontraria definitivamente estabilizada, com as suas altas ocreae e um
pequeno escudo redondo com cerca de 50 cm de diâmetro (o seu equipamento pesaria, ao
todo, cerca de 18-20 kg 628). O último ganhou, então, a sua forma hemisférica assaz
característica, fazendo distinguir de imediato esta parma dos gladiadores a cavalo, os equites,
que também possuíam um escudo circular de dimensões idênticas, só que plano. Por seu
turno, certas afinidades que anteriormente haviam unido o hoplomachus ao thraex traduzem-
se, no século I d. C., na presença do grifo típico do último a sobrepujar a cimeira de vários
elmos de hoplomachi. Em meados do mesmo século, também, o casco do hoplomachus veio a
receber protecções para o rosto, ganhando ainda uma larga aba.

Se o seu equipamento defensivo era similar ao do thraex 629, este parmatus consistia numa
armatura muito específica pelas suas armas ofensivas, que eram a lança e uma adaga, o que
tende a aproximá-lo do retiarius, já que representavam os únicos gladiadores que utilizavam
uma arma de haste juntamente com um curto pugio. Esta característica conduziu a que certos
estudiosos modernos a chamarem aequimanus ao hoplomachus, baseando-se só na definição
facultada por Isidoro de Sevilha: este emprega efectivamente tal vocábulo, mas escrevendo
num período já muito tardio: «Aequimanus se diz daquele que empunha o gládio tanto numa
mão como na outra». Na realidade, este termo, que se pode perfeitamente verter por
«ambidextro», não está, de modo algum associado a um tipo particular de gladiador, mas seria,
em geral, aplicado em relação a um combatente hábil com ambas as mãos.

Contrariamente ao murmillo, ao provocator e ao thraex, não há fonte alguma que mostre


simultaneamente a referência textual à armatura e a representação imagética do
hoplomachus. Por esta razão, este, ainda hoje, é identificado tanto como scutatus por alguns
como parmatus por outros. Face a tal ambiguidade, clarifiquemos este aspecto: em Pompeia,
uma inscrição que reproduz o teor de um libellus munerarius (espécie de «panfleto» que se
distribuía aos espectadores antes de começar o espectáculo), ao qual se acrescentaram os
resultados das pugnas630, alude a vários pares diferentes; como se evocam os gladiadores da
escola «neroniana», esta fonte datar seguramente do reinado deste imperador, já que esse
ludus deixou de existir após o assassinato do último. Não obstante as lacunas deste
documento, os pares são reconhecíveis através das iniciais das armaturae (CIL IV 2508). Numa
das parcelas em melhor estado de conservação, lê-se:
T[hraex] M[urmillo]

V[icit]. PVGNAX. NER[onianus]. [pugnarum] III

P[erit]. MVRRANVS. NER[onianus]. [pugnarum] III

Tradução:

628 M. Junkelmann, Gladiatoren…, p. 123.

629L. Kratochvil, Gladiátor Trak…, pp. 14-15.

630Num dos capítulos consagrados às etapas do munus, transcrevemos e traduzimos esta fonte na íntegra.

245
«Combate entre um thraex e um murmillo. Venceu (vicit) Pugnax, gladiador da escola de Nero, com 3
combates (pugnarum), contra Murranus, gladiador da escola de Nero, com 3 combates, que pereceu
(perit)».

A oposição entre o thraex e o murmillo constituiu o par mais «clássico» da gladiatura ao longo
do século I d. C. De facto, as ocorrências epigráficas dos thraeces e dos murmillones são, de
longe, as mais numerosas do corpus gladiatório. Neste caso, então, o thraex, com o seu escudo
quadrangular (parma) defronta o murmillo, dotado do seu grande scutum rectangular. Assim, a
presença deste par, que também é o mais frequentemente representado nos medalhões das
lucernas e noutros artefactos do século I, não suscita qualquer problema. No mesmo anúncio
pompeiano, aparece outro par de combatentes:
[H]O[plomachus] T[hraex]

V[icit] CYCNVS IVL[ianus] [pugnarum] VIIII

M[issus] ATTICVS IUL[ianus] [pugnarum] XIV.

«Combate entre um hoplomachus e um thraex. Venceu Cycnus, gladiador juliano, com 9 combates,
contra Atticus, gladiador juliano, com 14 combates que recebeu a missio [isto é, viu a sua vida
poupada]».

Este exemplo confere credibilidade à identificação do hoplomachus com o gladiador munido


de escudo redondo hemisférico, adaga e de lança. Temos, então, aqui um duelo «fratricida»
entre dois tipos de parmati. A iconografia corrobora este facto: vários dos relevos atrás
referidos, bem como diversas lamparinas de azeite, mostram combates entre o thraex e o
hoplomachus. Por último, este trecho do anúncio de um munus confirma a associação do
hoplomachus ao gladiador com escudo redondo. Na parte direita do mesmo anúncio, alude-se
a um par de combatentes cujos nomes não são legíveis, mas, ainda assim, permite que se
vejam as iniciais das armaturae, O. e M.:
[H]O[plomachus] M[urmillo]

M[issus?] [3] p[1] eacius IVL[ianus] [3]

M[3] IVL[ianus] / [pugnarum] LV [3]».

«Combate entre um hoplomachus e um murmillo. [3]p[l]eacius, gladiador juliano, com ? combates, que
foi agraciado, contra [?], gladiador juliano, com 40 combates».

Apesar de haver consideráveis lacunas neste testemunho, o combate em questão só poderá


corresponder ao que opunha um gladiador com a pequena parma redonda a um murmillo,
com o seu grande scutum. Curiosamente, embora as fontes iconográficas apresentam vários
casos de confrontos entre parmati, o mesmo não sucede em relação à oposição entre dois
scutati, já que está ausente qualquer imagem ilustrando-os, durante o Alto-Império.

Hoplomachus seria, assim, o nome desta antiga variante de thraex, dotado de um escudo
redondo e armado com uma lança. Ele veio progressivamente a afastar-se do seu modelo,
adquirindo especificidades técnicas próprias, a tal ponto que os romanos tiveram de lhe
atribuir, em face dessas características peculiares, uma designação particular. Repare-se, a
propósito, que numa estela achada em Roma se menciona um hastarius chamado Pardus. Este
hapax designa, evidentemente, um gladiador que utilizava uma lança (hasta) nos seus
combates. Neste caso, o contexto gladiatório não oferece margem para dúvidas, já que na
inscrição da lápide se apresenta o número de duelos em que Pardus havia participado. Trata-
se, quiçá, de uma variante ou de outra denominação do hoplomachus 631.
631Trata-se de uma estela inédita pertencente à colecção Zeri: Pardus [h]astarius natione Aegyptus pugnarum VIIII.

246
Deixando de parte a documentação epigráfica, os testemunhos literários são mais raros e,
amiúde, mais tardios. Além de Suetónio, que o incluiu num episódio passado sob o reinado de
Calígula, observamos igualmente o hoplomachus nos escritos de Marcial, nos tempos flavianos.
Um dos epigramas de Marcial, intitulado «Contra um mau médico», constitui um argumento
suplementar, aqui com uma certa dose de humor, para a identificação do hoplomachus com o
gladiador que utilizava a lança durante os combates. Nesse epigrama, o autor escreveu um
pseudo-panegírico, em claro tom de mofa:

«Eis-te [h]oplomachus, tu que antes eras oftalmologista, fizeste como médico o que fazes enquanto
[h]oplomachus!»/Oplomachus nunc es, fueras, ophthalmicus aute. Fecisti medicus quod facis
oplomachus (Marcial, Epigrammata, 8.74)

Facilmente se entende este trecho: um médico oftalmologista que tinha tão pouco jeito para
tratar dos seus pacientes, resolveu tornar-se gladiador. De acordo com Marcial, agora, na
qualidade de combatente da arena, ele continuava a fazer o que fazia enquanto mau médico,
ou seja, a provocar a perda da visão de quem lhe passasse pelas mãos. Este comentário não é
anódino e merece que o descodifiquemos: ao admitirmos que o hoplomachus era o único
gladiador dotado de lança, só ele (pondo de parte o retiarius com o seu tridente) poderia, com
facilidade, assestar golpes muito violentos sobre o rosto dos seus adversários, ao visar em
especial os olhos dos últimos.

Isto comprova-se mediante duas fontes iconográficas de natureza muito distinta: num
medalhão de aplique, descoberto em Lyon (produzido provavelmente durante o século II d.C., e
conservado no Musée de la Civilisation gallo-romaine, Lyon fig. Tey, p. 119), e numa das cenas
dos bem mais conhecidos mosaicos de Zliten 632 (Líbia, finais do século I ou princípios do século
II d. C.); em ambos os casos, o hoplomachus acaba de vencer um oponente, que foi atingido no
rosto (Fig. ); no medalhão, o gladiador ferido agarra-se à face, enquanto é amparado e
conduzido pelos ministri; no mosaico de Zliten, um scutatus declara-se vencido e rende-se-se,
ao levantar o indicador da mão esquerda, enquanto o sangue escorre abundamentemente
através da grelha do seu elmo.

Deste modo, a aproximação do epigrama de Marcial com estas cenas muito precisas, serve
para reforçar a identificação do hoplomachus com o gladiador que lutava armado de lança e de
pequeno escudo circular. O período em que o hoplomachus parece ter gozado de popularidade
situa-se aproximadamente entre meados do século I d. C. e meados da subsequente centúria.
Em Pompeia, acharam-se diversas representações plásticas deste tipo de gladiador executadas
em diferentes géneros de suportes: um hoplomachus foi esculpido em vulto redondo, em tufo,
de tamanho quase natural, na companhia do deus Príapo ictifálico (Fig. Junkelm., p. 27. Esta
singular efígie ornamentava, outrora, a fachada da «Taberna do Gladiador» 633 (localizada perto

632 S. Aurigemma, I Mosaici di Zliten, Roma, 1926, pp. 150-154; L. Foucher, «Sur les mosaïques de Zliten», Libya
antica I (1964), pp. 9-20; G. Ville, «Essai de datation de la mosaïque des gladiateurs de Zliten», Colloques
internationaux de sciences humaines. La mosaïque gréco-romaine, Paris, 1965, pp. 147-155; K. M. D. Dunbabin, The
Mosaics of Roman North Africa, Oxford, 1978, p. 66 («Appendix I», pp. 235-237), est. 1.1 e 20.46-49; M.
Junkelmann, Gladiatoren, p. 103, fig. 142.

633 Amedeo Maiuri aventou a hipótese de que esta taberna seria frequentada sobretudo por gente que, vinda das
proximidades, afluía à cidade nos dias de jogos. Isto explicaria, segundo o mesmo autor, a presença da estátua do
gladiador, exercendo uma dupla função decorativa e apotropaica (cf. «All’insegna del gladiatore», in Pompei ed
Ercolano: Fra case ed abitanti, Florença, 1983, pp. 62-65. À direita do combatente encontra-se uma representação
do deus Príapo, com barba, mostrado na sua pose tradicional: o seu manto, carregado com frutos, aparece
levantado, revelando um falo de grandes dimensões. Príapo era, decerto, uma figura auspiciosa, um símbolo da
fertilidade, das colheitas e da abundância/riqueza, daí que a sua associação com o gladiador se deva entender como
mais um sinal da existência de protecção divina. A este respeito, consultem-se igualmente: O. Elia, «La scultura
pompeiana in tufo», Cronache Pompeiane I (1975), pp. 134-135; L. Jacobelli, Gladiators at Pompeii, p. 105. Ademais,
este conjunto em vulto redondo mostra-nos também a conexão entre a gladiatura e a sexualidade ou erotismo: M.

247
da Porta Nocera, bastante antes da erupção do Vesúvio). Em tal estátua pompeiana, o
hoplomachus aparece com um casco ainda despojado de protecção para a cara. Este elmo,
dotado de uma crista, próximo do modelo ático, possui afinidades com os visíveis nos baixos-
relevos de Lucus Ferionae, o que conduz a que se lhe atribua uma «datação alta»,
possivelmente anterior ao Principado 634. Sublinhemos, também, que na altura da sua
descoberta, em 1954, A. Maiuri teve a oportunidade de detectar na escultura mutilações
antigas, o que mostra que terá estado exposta durante largos anos.

Encontraram-se ainda duas estatuetas polícromas de terracota, uma recuperada na «Casa de


Marco Lucrécio [Marcus Lucretius]» e a outra no chamado «Túmulo do Vaso Azul», datando de
princípios do século I d. C 635. Em Pompeia, preservaram-se igualmente muitos grafitos
parietais636, alguns bastante elaborados, que atestam uma vez mais a popularidade desta
armatura entre os habitantes desta cidade da Itália Meridional.

Se bem que o hoplomachus apareça geralmente empunhando apenas o seu pugio de curta
lâmina recta, certas imagens mostram-no com a sua lança e a adaga presa na mão esquerda,
que simultaneamente segura o manipulus do seu escudo redondo: é o que se observa no caso
de canhoto/scaeva Asteropaeus, conhecido neronianus (gladiador do ludus de Nero),
acompanhado pela indicação do seu palmarés - 107 vitórias! Neste grafito de Pompeia, de
desenho muito preciso, um o seu autor anónimo teve o cuidado de representar o seu campeão
utilizando a lança com a mão direita e a adaga na esquerda [Fig. Jacobelli] 637. Estas múltiplas
representações, garatujadas em paredes, servem para identificarmos um tipo de gladiador com
características bem definidas.

Bastante correntes ao longo do século I, as imagens evocativas do hoplomachus foram


gradualmente rareando no decurso do século II. Durante este período, este tipo de combatente
começou a desaparecer aos poucos, tanto nas fontes escritas como nas iconográficas. É de
presumir que isto se terá devido ao desenvolvimento coevo do retiarius: este, equipado, tal
como o hoplomachus, de uma arma de haste comprida, e defrontando, também, um scutatus,
veio indubitavelmente a cativar o público, que devia apreciar sobremaneira a maior
flexibilidade e a originalidade deste gladiador «pescador». À medida que os gostos dos
espectadores evoluiram e mudaram, os hoplomachi acabaram por «sair de cena» antes das
restantes armaturae. A testemunharem este fenómeno estão as inscrições, que mencionam os
hoplomachi muito menos vezes, havendo apenas quinze casos recenseados. De novo, tais
referências procedem de grafitos pompeianos ou de inscrições datando do século I d. C.

Junkelmann, Gladiatoren…, p. 27, est. 29.

634 O gladiador surge equipado com altas grevas, um subligaculum, brandindo na mão esquerda uma adaga de
lâmina estreita e, na direita, segurando um reduzido escudo redondo.

635As duas peças estão no Museu Archeologico Nazionale de Nápoles (nº inv. 20341): L. Jacobelli, Gladiators at
Pompeii…, fig. 82, pp. 102-103.

636 Sobre esta matéria, consultem-se, entre outros estudos e colectâneas documentais: A. Mau, «Iscrizioni
gladiatorie di Pompei», RM 5 (1890), p. 38ss; W. Krenkel, Pompejanischen Inschriften, Heidelberg, 1963; H. Solin, «Le
iscrizioni parietali», in F. Zevi (ed.), Pompei 79. Raccolta di studi per il decimonono centenario dell’eruzione
vesuviana, Nápoles, 1979, pp. 279-288; F. P. Maolucci Vivolo, Pompei. I graffiti figurati, Foggia, 1993.

637 Grafito descoberto numa das colunas do peristilo da denominada «Casa do Labirinto», em Pompeia.O desenho
reporta-se à vitória do famoso Asteropaeus sobre Oceneanus [sic; Oceanus], com 6 vitórias, que, no final do
combate, foi poupado: m[issus]: M. Langner, Antike Graffitizeichnungen. Motive, Gestaltung und Bedeutung,
Wiesbaden, 2001, nº 1003.

248
Só se conhecem três epitáfios de homens pertencentes a esta armatura, dois deles localizados
nas regiões periféricas do Império: o primeiro foi dedicado a Rhodios e achou-se em Éfeso638, o
segundo em memória de Simplex, procedente de Gades (actual Cádis)639, e por fim, o terceiro,
em honra de Hermes, encontrado em Roma 640. A estes três hoplomachi, cabe também
acrescentar duas inscrições, ambas do século I d. C. e descobertas em Roma, respeitantes a
dois doctores [h]oplomachorum (CIL VI, 37842 e CIL VI,10181). A nível cronológico, a última
referência epigráfica a tal armatura radica numa inscrição associada a um collegium de
gladiadores e de ministri, datando de 171 d. C. (CIL, VI 631). Nesta fonte aparecem 23 nomes
de gladiadores pertencentes a oito armaturae diferentes, na qual denotamos um sinal da
rarefacção dos hoplomachi, figurando apenas um, o veteranus Clonius.

Esta manifesta indigência de menções epigráficas também se assinala nas fontes literárias,
visto que este tipo de combatente desaparece totalmente após Suetónio. Assim, Artemidoro,
na sua obra Oneirokritika não se reporta ao hoplomachus na enumeração que fez dos
gladiadores ao analisar o significado da presença dos mesmos em sonhos premonitórios. A
ausência desta armatura numa «lista» de oito tipos de gladiadores constitui uma prova
tangível do seu declínio a partir de meados do século II d.C. De facto, os dados fornecidos por
Artemidoro são bastante circunstanciados, uma vez que incluem tipos de combatentes raros,
como o dimachaerus ou o essedarius. Por outro lado, todavia, a falta do hoplomachus na
«lista» de Artemidoro não causa grande surpresa, uma vez que esta armatura praticamente
não se atesta no mundo grego. No seu exaustivo estudo epigráfico, L. Robert advertiu para o
facto de não haver descoberto qualquer menção explícita a este tipo de gladiador no Oriente
helenístico.

Praticamente o mesmo sucede quanto ao corpus iconográfico desta parte do império, que se
revela bastante pobre: só dois baixos-relevos e um grafito atestam a presença do hoplomachus
nestas paragens 641, daí depreendermos que ele não terá usufruido de sucesso no mundo
grego. É algo que não causa grande estranheza, se pensarmos que o hoplomachus
representaria uma ilustração estilizada do hóplita grego, evocação histórica que logicamente
não encontrou eco, nem captou interesse junto dos gregos durante a época imperial. É
possível, igualmente, que a gladiatura no Oriente mediterrânico viesse a conhecer um
verdadeiro êxito mediante um certo desfasamento relativamente à parte ocidental do império.
Com efeito, as fontes gladiatórias anteriores ao século II d.C. São bem menores do que as do
Ocidente. Isto pode, ao mesmo tempo, significar que o hoplomachus já estaria ultrapassado e
que se foi apagando em proveito do retiarius, precisamente na altura – a partir do século II –
em que o mundo helenístico começou a apreciar realmente os combates de gladiadores.

A difusão da gladiatura no Oriente grego, com características distintas às observáveis no


Ocidente, foi pioneiramente realçada por L. Robert 642, que, por exemplo, não conseguiu achar
quaisquer referências documentais aos samnitis e aos galli no mundo helenístico. Se pusermos
à margem os testemunhos literários referentes à apresentação dos munera pelos soberanos
helenísticos, a primeira fase da gladiatura não parece ter deixado vestígios concretos nesta
zona do Mediterrâneo. Por seu turno, sob o Império, o Oriente assimilou directamente a
638Inscrição publicada por L. Robert. Rhodios, oriundo de Alexandria, foi morto pelo murmillo Ermenios.

639Gladiador de condição livre, falecido aos 35 anos de idade, depois de participar em 20 combates (CIL II.1739)

640 Hermes, gladiador da «escola» imperial dos Iulianii, que pereceu na sua terceira pugna: a inscrição data da
primeira metade do século I d. C. (CIL VI 37842).

641Um relevo encontrou-se em Éfeso e o outro em Manissa. Quanto ao grafito, foi descoberto no teatro de
Aphrodisias.

642 Bem como por outros dois estudiosos, nomeadamente Michael Carter e Christian Mann.

249
gladiatura «técnica», tal como fora elaborada no Ocidente, adoptando-se as denominações
latinas das armaturae, transliteradas em grego643.

Do século II em diante, o declínio perceptível do hoplomachus explica, em larga medida, o


motivo pelo qual esta armatura aparece em sexto lugar no grupo dos gladiadores mais
frequentemente representados, tendo menos de cem ocorrências inventariadas. Basicamente
representado em lucernas e em relevos, este tipo de gladiador tornou-se cada vez menos
frequente nos suportes do século II, enquanto o retiarius passou a surgir figurado muito mais
vezes. No entanto, tal não impediu, excepcionalmente, que se tenham representado dois
hoplomachi juntamente com retiarii numa mesma imagem ilustrativa do mesmo munus, haja
em vista o famoso mosaico de Zliten, datável de princípios do século II d. C. Isto demonstra que
estas duas armaturae terão coexistido no século II, e que os dois tipos de combatentes, um
com lança e o outro munido de tridente lutaram nas mesmas ocasiões sob o olhar do público.

Saliente-se que um gladiador podia combater em ambas as armaturae, o que não admira
muito, por causa de determinadas características comuns havidas entre o hoplomachus e o
retiarius. Esta polivalência vê-se claramente expressa por Marcial, a propósito de um gladiador
célebre no tempo dos Flávios, Hermes (Epigrammata, 5.24):

«Sobre Hermes

Hermes, delícia do povo de Marte e do nosso século/Hermes Martia saeculi voluptas,

Hermes, versado em todas as armas/Hermes omnibus eruditus armis,

Hermes, gladiador e magister/Hermes et gladiator et magister,

Hermes, a inquietação, o terror dos ludi /Hermes turbo sui tremorque ludi,

Hermes, o único que Helius teme/Hermes, quem timet Helius, sed unum,

Hermes, o único que deita por terra Advolans/Hermes, cui cadit Advolans, sed uni,

Hermes, especialista em vencer sem ferir/Hermes vincere nec ferire doctus,

Hermes, só ele pode ser substituto de si próprio/Hermes suppositicius sibi ipse,

Hermes, fortuna das revendas/Hermes divitiae locatorium,

Hermes, preferido e tormento das esposas e amantes/Hermes cura laborque ludiarum,

Hermes, soberbo com a sua lança/Hermes belligera superbus hasta,

Hermes, igualmente ameaçador com o tridente marinho/Hermes aequoreo minax tridente,

Hermes, temível sob o penacho lânguido [do seu elmo]/Hermes casside languida timendus,

Hermes, a glória de Marte universal/Hermes gloria Martis universi,

Hermes, todas as coisas numa e três vezes único/Hermes omnia solus et ter unus»644.

643 No entanto, como veremos, a gladiatura no Oriente grego adquiriu características próprias, distintas das do
Ocidente romano.

644 M. Junkelmann, Gladiatoren…, p. 101; E. Teyssier, La mort en face…, p. 123; A. Mañas Bastida, Gladiadores…,
pp. 219-220. No derradeiro verso, Marcial diz que Hermes era três vezes único, referência que pode estar
relacionada com o facto de o gladiador ter o mesmo nome que o deus Hermes, que tinha por cognome Trimegistus,
«três vezes grande», mas, basicamente, significava uma maneira de realçar que Hermes era um gladiador muito
polivalente.

250
Neste panegírico em honra de um conhecido gladiador, Marcial fornece algumas informações
importantes. A primeira ideia que se extrai desta evocação é o autêntico estrelato que atingiam
os combatentes mais talentosos e corajosos. Neste ponto, Marcial sublinha o igual interesse
demonstrado em Roma pelos heróis do anfiteatro, tanto por parte dos homens («povo de
Marte») como pelas mulheres ([…] tormento das ludiarum»). Esta espécie de febril entusiasmo
conduzia a avultados lucros financeiros, como queda explícito pela menção aos locatorium
(sítios onde os chamados locarii revendiam bilhetes (obtidos directamente do editor ou de
gente que os recebera gratuitamente) e se faziam apostas; na realidade, embora muitos
munera fossem oferecidos pelos editores, outros espectáculos havia, sobre os quais poucos
dados sobreviveram, em que as entradas eram pagas). Para além destes dados sobre o
ambiente envolvente da gladiatura, Marcial também proporciona alguns pormenores técnicos
dignos de interesse: em primeiro lugar, confirmamos que os gladiadores podiam lutar em
várias armaturae sucessivas645.

Se nos ativermos a Marcial, que era um verdadeiro «aficionado», Hermes terá passado, pelo
menos, por duas armaturae. A alusão ao tridente remete indubitavelmente para o retiarius, o
único que utilizava tal arma. Do mesmo modo, o facto de Hermes ser apresentado como um
perito no manuseamento da lança evoca necessariamente o hoplomachus. Por último, é
plausível que a referência ao elmo guarde relação com a armatura do thraex ou a do
provocator; a frase final indica, aparentemente, que Hermes terá combatido em três
armaturae distintas, antes de se converter num extraordinário campeão da arena. Ademais,
Hermes, ao mesmo tempo que lutava na arena, terá sido igualmente treinador (magister) de
membros da sua familia gladiatoria. Esta especificidade deve equacionar-se com os dois
epitáfios de doctor [h]oplomachorum descobertos em Roma.

Pode-se interpretar o caso de Hermes como um testemunho da evolução de um


hoplomachus, tipo de gladiador já antigo, submetido à directa concorrência da armatura mais
espectacular do retiarius. Neste sentido, os hoplomachi e os seus doctores terão necessitado
forçosamente de se adaptarem, ao treinar-se nessas duas técnicas de combate. O facto de
ambos os tipos de gladiadores estarem providos de uma adaga e de uma arma de haste induzia
uma proximidade técnica que favoreceria a passagem de uma para a outra armatura sem
problemas de maior. Mas tal polivalência concorreu, decerto, para acelerar o declínio da lança
em proveito do tridente.

A última representação plástica conhecida de um hoplomachus encontra-se num dos famosos


mosaicos da villa de Bad Kreuznach (Sarre, Alemanha) 646, do século III d. C. e que é bastante
curioso: mostra um gladiador sem escudo mas equipado com as duas altas ocreae típicas dos
parmati; dotado de lança, ele destaca-se sobretudo pelo seu tamanho, bastante maior do que
o seu adversário (Fig. ); é possível que neste caso se tenha reproduzido um duelo invulgar,
onde pode ter participado uma espécie de gigante, para o qual se fornecesse uma antiga
armatura, recuperada no depósito gladiatório local?

Analisemos agora a maneira de combater do hoplomachus: salta à vista que era um gladiador
cujo equipamento traía grandes afinidades com o do thraex. Porém, a utilização em simultâneo
de uma adaga e de uma lança, assim como a forma do seu pequeno escudo, faziam dele um

645Há outras fontes antigas que se referem a este facto, como oportunamente veremos.

646 F. Melmoth, «La mosaïque des Gladiateurs: Villa palatiale de Bad Kreuznach (Rhénanie-Palatinat)»,
L’Archéologue/Dossier: Spectacles antiques, nº 127 (sept.-oct.-nov. 2013), p. 41 (pp. 34-43). Sobre estes mosaicos,
remetemos para o artigo, já muito antigo, de O. Kohlo, «Das Gladiatorenmosaïk von Kreuznach», Römisch-
Germanisches Korrespondenzblatt 8 (1915), pp. 44-47, e para uma obra bem mais recente, de S. Hornung, Luxus auf
dem Lande. Die römische Palastvilla von Bad Kreuznach, Römerhalle, Museen im Rittergut Bangert, Bad Kreuznach,
2001.

251
combatente com técnicas específicas. Contrariamente ao retiarius, que também era portador
de uma arma de haste e de uma adaga, as tácticas do hoplomachus não poderiam
corresponder à fuga. Com efeito, as suas duas grandes ocreae e os coxotes acolchoados
impediriam que ele fizesse longas corridas ou, mesmo, acelerações trepidantes. Não obstante
esta limitação, o hoplomachus não deixava de ser um gladiador veloz, que agia através de duas
distâncias de combate, nisto se assemelhando ao retiarius. Por meio dos testes efectuados por
especialistas da arqueologia experimental, verificou-se que a sua técnica de corpo a corpo
possuía afinidades com a do thraex. O hoplomachus situava-se, portanto, como uma espécie de
gladiador intermédio entre o thraex e o retiarius.

No início do combate, o hoplomachus tentava, como referimos, golpear o adversário no rosto,


atingindo, se possível, os olhos, através da grelha do elmo. Ocasionalmente, também podia
atacar com a lança a parte inferior do corpo do oponente, mas não lhe conviria enveredar por
este género de arremetida, já que se arriscava a perder a distância que a sua arma impunha e
sofrer um repentino contra-ataque. O hoplomachus seria praticamente o único gladiador a
poder vencer uma pugna sem entrar no corpo a corpo, na condição de que atingisse o seu alvo
principal, a face ou os olhos do adversário. Caso o hoplomachus se visse envolvido no corpo-a-
corpo, então o combate aproximar-se-ia do que opunha o thraex ao murmillo. De facto,
recorde-se que o thraex, tal como o hoplomachus, tinha um escudo de pequenas dimensões e
duas altas grevas metálicas. Consequentemente, tanto um como o outro adoptavam uma
posição bem firme em torno destes dois elementos, de molde a estarem bem protegidos.

Parmati e scutati: o confronto entre os «pequenos escudos» e os «grandes escudos»

Durante grande parte do século I d. C., o principal interesse do público radicava nestas
armaturae. A oposição entre o parmatus e o scutatus, com os seus respectivos adeptos,
aparece frequentemente na literatura romana como, por exemplo, nesta passagem de
Suetónio:

«Aesius Proculus, filho de um [centurião] primus pilus, notável pelo seu tamanho e pela sua beleza era
conhecido como Colosseros [deus do amor colossal]; Calígula, ao reparar nele num dos lugares do
anfiteatro, ordenou que o agarrassem de imediato e o fizessem descer até à arena, onde enfrentou
primeiramente um thraex e, a seguir, um hoplomachus. Proculus venceu os dois, mas o imperador
mandou que o amarrassem e lhe colocassem vestes esfarrapadas, passeando com ele dessa forma pelas
ruas e mostrando-o às mulheres e, depois, que o degolassem» (Divus Caligula, 30.3).

Esta passagem de Suetónio ilustra como os gladiadores se usavam para eliminar um homem
de quem Calígula sentia profunda inveja. Cabe salientar que o tópico de gladiadores sendo
empregues como «homens de mão» ou assassinos pelos grandes para consumarem os vis
propósitos dos últimos, é bastante habitual. No entanto, o facto de o assassinato ocorrer na
arena constitui uma particularidade anómala, derivada da loucura de Calígula e da sua vontade
de humilhar brutalmente um indivíduo respeitável e de elevada condição social. Com efeito,
Proculus não tinha a ver com a gladiatura. O seu pai, ao ser um primus pilus, possuía a
condição de membro da ordem equestre, o que explica que o filho estivesse sentado nas
primeiras filas, onde o imperador o viu. Se bem que alguns cavaleiros tenham combatido como
gladiadores, fizeram-no, todavia, voluntariamente, sem renunciar ao seu estatuto social.

Neste caso, nada disto aconteceu, já que Proculus foi selvaticamente obrigado a lutar a mando
de Calígula. Esta situação escandalosa levou assim um cidadão inocente e honrado a partilhar o
opróbrio dos gladiadores num espectáculo público. Este episódio não é único na literatura:

252
temos notícia de outros imperadores que forçaram membros da aristocracia romana a
rebaixar-se desta maneira. Mas é muito mais raro colher a referência a um cidadão romano
coagido a defrontar, inesperadamente, gladiadores profissionais. No momento em que estes se
preparavam para combater entre si, eis que o brusco capricho do príncipe veio a subverter
subitamente o programa. Depois de equipado com um armamento que Suetónio não precisa
mas que provavelmente seria o de um murmillo, Proculus teve de enfrentar um oponente que
não deveria estar à espera de uma presa tão fácil. O seu primeiro combate, contra um thraex
tinha a sua lógica; ao ser fã dos pequenos escudos, Calígula encarregou um dos seus
gladiadores favoritos de eliminar um homem cuja atracção junto das mulheres se afigurava
uma afronta para o imperador. Mas Proculus, filho de um centurião, devia estar certamente
habituado, desde a infância, a manejar armas. Além disso, a utilização do scutum, arma
defensiva emblemática dos legionários romanos, não lhe seria nada estranha. Ele conseguiu
então vencer de forma inesperada o campeão de Calígula. Tal reviravolta terá suscitado a
cólera do último e, no sentido inverso, o entusiasmo do público; logo a seguir, Proculus viu-se
obrigado a lutar contra um hoplomachus, ou seja, outro parmatus.

Estes dois confrontos, fruto do capricho de um maníaco foram, decerto, totalmente


improvisados. De novo Proculus venceu, para grande satisfação dos adeptos dos grandes
escudos (adversários do próprio imperador) que se encontravam entre os espectadores. É
muito possível que as razões destas vitórias inesperadas se tenham devido ao facto de esses
dois gladiadores terem ficado, talvez, desconcertados pela habilidade do «Amor colosso» e,
ainda, por este exibir algum género de técnica invulgar face a eles; ademais, importa não
esquecer, Proculus estava a combater movido pela energia do desespero. Perante este duplo
desaire, Calígula optou por não enfurecer uma multidão já escandalizada, caso ordenasse que
degolassem na arena um herói imprevisto. Em vez disso, preferiu reduzi-lo à impotência,
mandando que o amarrassem e conduzissem pelas ruas, fora do anfiteatro; aqui, foi vexado ao
aparecer coberto de andrajos diante das mulheres com que se cruzou no caminho, tratamento
degradante, certamente destinado a fazer olvidar o êxito que Proculus tivera contra dois
gladiadores de Calígula. Por fim, após este triste espectáculo, o infortunado Proculus foi
executado, não na arena, onde saíra vencedor contra todas as expectativas, mas noutro local,
ao abrigo do olhar do público.

De facto, os parmati e os scutati tiveram grande relevância e popularidade na gladiatura


durante o século I d. C. A presença dos mesmos nas fontes antigas é bem manifesta neste
período, momento histórico em que ficavam bem para trás as armaturae dos retiarii, equites,
essedarii ou provocatores. Por esta altura, estamos convencidos que estes últimos tipos de
gladiadores quase se limitariam a elementos menores, utilizados para preparar a entrada em
cena dos ídolos da arena. Seja nas lucernas, nos grafitos parietais ou nos edicta munerum de
Pompeia, o trio composto pelo murmillo-thraex-hoplomachus ocupa um lugar preponderante.
Esta popularidade constitui o testemunho tangível do interesse do público pelas exibições
técnicas de vedetas da arena, como o Hermes elogiado por Marcial ou Columbus, famoso no
tempo de Calígula. Embora tal configuração da gladiatura estivesse bem estabelecida no século
I da nossa era, o certo é que a situação evoluiu sob a dinastia dos Antoninos.

Abordemos a oposição parmati-scutatii sob outro prisma, enquanto factor de coesão social.
No século I d. C., como dissemos, o antagonismo entre os adeptos dos pequenos e dos grandes
escudos constituiu um elemento fundamental da gladiatura. Este fenómeno não existia no
tempo de Cícero, nem tão quanto apareceu sob a égide de Augusto e de Tibério. De acordo
com Suetónio, tal dicotomia terá surgido a partir do reinado de Calígula: por esta altura, o
público já se encontrava dividido em dois «partidos», compostos pelos apoiantes dos thraeces
e murmillones.

253
Devido aos escudos que uns e outros usavam, os seus «partidários» ficaram conhecidos,
respectivamente, como parmularii e scutarii. O primeiro vocábulo foi empregue por
Quintiliano: a propósito da retórica, o autor, contemporâneo dos Flávios, conta a anedota de
um indivíduo a quem perguntaram se pertencia à escola de Teodoro ou à de Apolodoro; o
homem respondeu simplesmente: «Sou parmularius». Quanto ao outro termo, scutarius,
aparece apenas na sua transposição para o grego (οχουταριος) nos escritos do imperador-
filósofo Marco Aurélio. Esta focalização no escudo demonstra, per se, a importância essencial
que ele tinha no equipamento. É provável que esta divisão marque o ponto culminante da
evolução técnica iniciada sob Júlio César e estabilizada no reinado de Tibério.

Parece não ter havido ligação directa entre os adeptos desta ou daquela armatura e as facções
das corridas de quadrigas circenses, aspecto, aliás, que G. Ville salientou. Como ilustração de
tal facto, podemos citar o exemplo de Calígula, que era, em simultâneo, um fervoroso apoiante
dos thraeces e um incondicional adepto da facção dos «Verdes» no circo. Por seu turno, no
epitáfio de um romano, observa-se que o defunto declara haver sido um parmularius e, ao
mesmo tempo, um partidário dos «Azuis» (CIL VI 9719).

Porém, estes dois casos são quase os únicos conhecidos que permitem estabelecer um vínculo
entre o «mundo» do anfiteatro e o do circo. Na falta de mais documentação, torna-se difícil
chegar a uma conclusão definitiva sobre este ponto 647, mas é de supor que estes dois domínios
dependessem de lógicas e, talvez, de públicos diferentes, um pouco à semelhança do que hoje
acontece com o futebol e o râguebi. Em contrapartida, não escasseiam referências literárias
descrevendo a adesão dos imperadores e dos seus súbditos aos pequenos e grandes escudos.
Se nos ativermos a Suetónio, Calígula era, como atrás afirmámos, um grande amator dos
thraeces. O autor da Vida dos Césares refere-se, em duas ocasiões, a esta predilecção do
imperador por tal armatura:

- «Ele [Calígula] favoreceu os gladiadores chamados thraeces, ao ponto de colocar alguns à cabeça da
sua guarda germânica e pôr em desvantagem a armatura dos murmillones. Um dos últimos, chamado
Columbus, havia saído vencedor de um combate mas ligeiramente ferido. Calígula introduziu na sua
chaga um veneno, que designou como columbiano, em mémoria deste facto. Foi sob este nome, pelo
menos, que foi encontrado escrito pelo seu próprio punho, entre outros venenos» (Divus Caligula, 54.2);

- «Ele [Calígula] desenvolveu outros talentos muito díspares e com um incrível ardor; sucessivamente
gladiador thraex, auriga, cantor e dançarino. Ele combateu na arena com armas verdadeiras; guiou
quadrigas em circos construídos em vários locais» (Ibidem, 54.1).

Este imperador foi muito para além do mero espírito partidário a favor dos thraeces e dos
hoplomachi: nutria tamanho ódio aos murmillones que chegou a mandar envenenar o
murmillo Columbus; noutra altura, no fim de um combate de treino, Calígula matou outro
murmillo, estando o primeiro equipado como um thraex. Como se vê, o imperador não se
contentava apenas em assistir aos espectáculos gladiatórios, sentindo ele uma necessidade
irrefreável de também ele experimentar directamente as sensações de uma pugna, ainda que
não arriscando a vida. Este gosto pelas armas demonstra manifestamente uma forte paixão
pelas técnicas próprias de cada tipo de gladiador. Estamos, pois, diante de um indivíduo que
não se satisfazia em ser apenas espectador, querendo também consumar a sua paixão. Esta
prática «amadora» da gladiatura por Calígula não foi certamente única, atestando um hábito
levado a cabo por mais gente.

Com efeito, tanto militares como certos romanos abastados pertencentes às classes sociais
mais privilegiadas aprendiam tais técnicas de combate como se tratasse de um verdadeiro
647 Marco Aurélio afirmou que nunca tomou o partido dos parmularii nem o dos scutarii, bem como não
dispensou apoio aos «Verdes» ou aos «Azuis» no circo. O imperador-filósofo reporta-se, portanto, aos adeptos
destes dois espectáculos de massas.

254
desporto. Foi o que sucedeu com L. António que, de acordo com Cícero, praticava a gladiatura
sob a armatura de murmillo. Foi igualmente o caso daqueles senadores e membros da classe
equestre aos quais Júlio César confiou, em dada ocasião, os seus gladiadores para os treinar.
Por fim, também, uma matrona romana que, de acordo com Juvenal, se exercitava no combate
enquanto provocatrix e thraex, para seu grande prazer e para desonra e vergonha do seu
marido (cf. infra; alínea sobre as mulheres e a gladiatura).

Para além destes exemplos mais conhecidos, é possível que certos notáveis romanos
frequentassem, com variável grau de assiduidade, os ludi a título «desportivo» e que, a assistir
aos treinos dos gladiatórios, houvesse um número ainda maior de pessoas, enquanto
aguardavam pela realização dos munera prometidos. O Ludus Magnus em Roma, com o seu
anfiteatro em miniatura, ter-se-á provavelmente destinado a tal objectivo. De maneira análoga,
os pórticos do ludus de Pompeia devem ter servido, amiúde, para abrigar do calor do sol uma
série de curiosos que vinha observar os exercícios dos gladiadores.

Contrariamente a Calígula, Nero não se terá dedicado à prática da gladiatura (embora tenha
criado um grupo de gladiadores imperiais designados colectivamente como Neroniani) mas,
em contrapartida, Suetónio sublinhou em várias passagens que o último participou
activamente em corridas de carros no Circo, facto que tende a confirmar que os combates
gladiatórios e os jogos circenses consistiam em paixões distintas. Todavia, Nero, o derradeiro
imperador da dinastia Júlio-Cláudia, apreciava os munera mas na qualidade de simples
espectador. Crê-se que Nero seria adepto dos murmillones: é o que se depreende das ofertas
extravagantes com que recompensou o murmillo Spiculus (de que nos dá conta Suetónio, Divus
Nero, 30.47). G. Ville demonstrou convincentemente que a decoração de um vaso de prata
significou uma homenagem à predilecção que Nero tinha pelos gladiadores scutarii. A dinastia
Flávia, ainda mais que a Júlio-Cláudia, partilhou com os seus súbditos a paixão pela gladiatura.
Afigura-se provável que, mediante as escolhas feitas pelos imperadores em Roma, e sem
dúvida também dos notáveis nas províncias, o povo mostrasse a sua adesão ou reprovação face
ao poder. Esta identificação podia conduzir até a uma espécie de cumplicidade com certos
imperadores, como, por exemplo, Cláudio:

«Ele multiplicou os espectáculos de gladiadores e ofereceu-os de vários géneros … Não havia


espectáculo em que ele não se manifestasse muito afável e alegre. Viam-no a contar pelos dedos da sua
mão esquerda, em voz alta, com o povo [cum vulgo], as peças [moedas] de ouro oferecidas aos
vencedores … ele próprio procurava que todos os espectadores ficassem alegres, ao chamá-los, de vez
em quando, ''senhores'' [dominos], e misturando nos seus propósitos ditos de bastante mau gosto, como
no dia em que, ao reclamar a assembleia perdão para o gladiador Palumbus, ele respondeu: ''dar-lhe-ei
se ele puder agarrá-lo''».

Nesta passagem, vê-se que o anfiteatro era um local onde existia comunicação directa entre o
princeps e a plebe. Mediante o gesto e a palavra, através dos cartazes (tabullae) que
transmitiam as respostas do imperador, instaurava-se uma familiaridade especial nesse espaço
consagrado ao prazer e à satisfação dos espectadores. Na dinastia seguinte, Tito revelou a
mesma benévola bonomia: ainda que fosse um parmularius, o segundo imperador flávio soube
evitar os excessos cometidos por Calígula:

«Além disso, ele [Tito] anunciou abertamente a sua preferência pela armatura dos thraeces e
apreciava-a muito, como um verdadeiro adepto, através da voz e do gesto juntamente com o povo, mas
sem que a sua dignidade nada sofresse e sem lesar a justiça.» (Suetónio, DivusTitus, 8)

Esta atitude lembra um pouco o comportamento de estadistas ou políticos actuais que não
hesitam em aparecer num estádio de futebol, exibindo no pescoço o cachecol do seu clube.
Não resta a menor dúvida que o adepto vulgar se identifica logo com outro homem que mostra
o mesmo entusiasmo que ele nas bancadas e vibra face às melhores jogadas, aos golos e à boa

255
técnica evidenciada pelos jogadores. A comunhão em torno de uma mesma paixão gerava
certamente uma certa coesão social. Ao tornar-se apoiante do grande escudo ou do pequeno,
cujas razões mais profundas para essas escolhas nos escapam, até o mais insignificante dos
Romanos se poderia sentir uma espécie de igual dos maiores aquando de um espectáculo. Tal
era o caso, sobretudo, quando um imperador, espontaneamente ou movido por objectivos
políticos, aceitava «entrar no jogo» plenamente, convencendo a multidão que era esta que
ditava a sorte dos gladiadores vencidos. Suetónio alude a este facto, de novo se reportando a
Tito:

«Ele mostrou para com o povo, em todas as ocasiões, muita deferência: certo dia, ao anunciar um
combate de gladiadores, ele declarou que “tudo nele se passaria de acordo com a vontade da
assembleia e não com a sua” e, de facto, longe de recusar o que os espectadores pediam, ele próprio os
exortava a reclamar o que pretendiam» (Divus Titus, 8).

Em contrapartida, quando se tratava de um imperador detestado, este mesmo meio de


comunicação podia servir, a coberto do anonimato de uma multidão rugidora, expressar uma
prudente contestação. O clamor que se gerava no anfiteatro durante um combate é
dificilmente imaginável nos tempos de hoje. Marcial dá-nos conta da força e intensidade
desses brados em uníssono, no seu epigrama contra um mestre-escola especialmente
barulhento: «Mais doces são os gritos furiosos do anfiteatro, quando a parma do vencedor é
aclamada pelos seus adeptos» (Epigrammata, 14.213). Este entusiasmo colectivo ocasionava
no indivíduo que nele participava uma espécie de embriaguez e um sentimento de segurança
que lhe conferiam a coragem de desafiar até mesmo um déspota sanguinário. O último, numa
tal situação, ficava, pelo menos aparentemente, desarmado e exposto face a uma mole
humana enfurecida e hostil. Foi o que, por exemplo, o que sucedeu com Calígula, em
determinado munus, que se sentiu impotente perante uma multidão ruidosa, que aplaudiu
estridentemente os scutatii, que o imperador abominava. Calígula lamentou que o povo
romano não tivesse «apenas uma só cabeça» (Suetónio, Divus Caligula, 30.6).

No entanto, quem se insurgisse enraivecida ou injuriosamente contra um imperador corria o


risco de sofrer terríveis consequências, principalmente se o último fosse um tirano cruel e se
este identificasse o contestário no meio do público, haja em vista o que sucedeu com um
paterfamilias que ousou criticar a parcialidade de Domiciano, que apenas apoiava os
murmillones:

«Quando um paterfamilias ao gritar, durante o espectáculo, “que um thraex podia rivalizar com um
murmillo mas jamais com o munerarius”, Domiciano ordenou que o arrancassem do seu lugar,
conduzindo-o até à arena, sendo atirado aos cães, com um cartaz onde se lia: “Parmularius, ímpio nas
suas palavras”» (Suetónio, Divus Domitianus, 10) 155 teyss 648.

O individuo em causa cometeu um erro fatal quando acusou, de viva voz e em público,
Domiciano de ser fervoroso adepto dos «grandes escudos» em detrimento dos thraeces.
Infelizmente para esse homem, nem a multidão que o rodeava o ajudou a que não o
reconhecem. Embora este fenómeno nos seja descrito por Suetónio, que por vezes deformou e

648Suetónio não esclarece o que aconteceu a tal indivíduo, mas provavelmente não sobreviveu. Com efeito, o autor
realça mais a humilhação do pate rfamilias em detrimento da sua morte. Este trecho suscita um problema, visto que
o termo munerarius foi preferido, desde o século XIX, ao retarius que se lê no manuscrito de Ursinus. Sem que isto
mude nada de essencial no sentido que nos interessa acerca dos pequenos e grandes escudos, a acepção de retarius
torna mais fácil a tradução da referida passagem. A introdução do retiarius neste contexto constituiria o indício
segundo o qual o gladiador com a rede significava uma alternativa aos parmati e scutati a partir do reinado de
Domiciano. A. Chabouillet, que defendeu a teoria do retiarius, apresentou a seguinte tradução do fragmento textual
em causa: Um cidadão, por haver dito que o trácio rivalizava com o mirmilão mas não igualava o retiário, foi
arrancado do seu lugar (por ordem do imperador) e atirado aos cães com esta inscrição: “Parmularius, por ter falado
com impiedade”»: cf. «Observations sur une statuette représentant un rétiaire ainsi que sur divers monuments
relatifs à cette classe de gladiateurs», Revue archéologique, VIII (1851), pp. 397-420.

256
imprimiu um tom caricatural na narração dos factos, não temos dúvidas que situações como
esta ocorreram certamente. O tipo de comportamento dos espectadores denota a existência
de uma forte cumplicidade entre o povo e os seus dirigentes aquando da realização dos
espectáculos, o que contribuía para a consolidação de um laço social em Roma no século I d. C.
Este vínculo parece ter sido particularmente evidente sob a autoridade complacente de Tito,
mas não o foi muito menos com Calígula ou Domiciano, ainda que ambos se tenham
caracterizado por atitudes extremamente cruéis, como atrás vimos. Nestes dois casos, o
diálogo entre o príncipe e o público podia assumir a forma de uma expressão rebelde (que
esporadicamente culminou de maneira trágica), tendo como cenário o munus, onde se
reuniam nas bancadas todos os estratos da sociedade.

No Panegyricum a Trajano, Plínio-o-Moço testemunha, à sua maneira, aquilo que considerava


ser uma excessiva osmose entre o imperador e os seus súbditos, bem como a evolução que se
registou deste fenómeno no início do século II d. C. Ao louvando a magnificência do Optimus
Princeps pelos combates que este ofereceu ao povo, Plínio aproveitou para realçar que o filho
de Nerva nunca se havia rebaixado ao impor as suas escolhas ao povo. Como tal passagem se
afigura importante para a compreensão da evolução da gladiatura a partir dos Antoninos,
citemo-la:

«Viu-se um espectáculo [de tipo] não efeminado nem frouxo, nem do que amolece e debilita os
ânimos valorosos, mas o que incita a [sofrer] gloriosas ferimentos e ao desprezo pela morte: porque
também nos corpos dos escravos e dos condenados se manifesta o amor pela glória e o desejo pela
vitória 649….E que liberdade nos sufrágios públicos! Que segurança nas preferências! Nenhuma pessoa
foi, como outrora, declarada ímpia por não haver aprovado um gladiador. Nenhum espectador, por sua
vez tornado em espectáculo, expiou pelos colmilhos ou pelas chamas de funestos prazeres. Oh, delírio!
Oh, ignorância da verdadeira honra! Um príncipe reunia na arena acusações de lesa-majestade e
considerava sentir-se desprezado, aviltado se os seus gladiadores não recebessem as nossas
homenagens; ele levava a mal o que se dizia deles e a sua divindade parecia-lhe violada nas suas
pessoas: tão insensato que, ao igualar-se aos deuses, se igualava até aos miseráveis escravos!»
(Panegyricum, 33.1).

Neste trecho, Plínio-o-Moço alude indirectamente aos episódios relatados por Suetónio. Os
espectadores, convertidos em objectos involuntários de espectáculo, constituem uma
referência explícita ao filho do centurião que Calígula arrojou para a arena e obrigou a
combater, bem como ao parmularius atirado aos cães por ordem expressa de Domiciano.
Trajano, pelo contrário, não se envolveu nestas querelas tão torpes e degradantes, e jamais
desceu à arena ou tomou partido pelos parmati ou pelos scutarii. Assim, o imperador situou-se
acima da multidão, não fazendo mais parte dela. Simulataneamente, registou-se uma evolução
notável em Roma: este príncipe-soldado continuou a oferecer combates gladiatórios cada vez
mais numerosos, no intuito de fortalecer ou endurecer os seus súbditos 650, como séculos anos
Aníbal fez com as suas tropas na véspera da batalha de Trébia. Trajano teve ainda o cuidado,
contrariamente aos seus predecessores, de não se imiscuir de modo algum nas oposições

649Visum ets spectaculum inde non enerve, nec fluxum, nec quod animos virorum molliret et franferet, sed quod ad
pulchra vulnera contemptumque mortis accenderet: quum in servorum etiam noxiorumque corporibus amor laudis
et cupido victoriae cerneretur. Cf. M. Wistrand, Entertainment and Violence in Ancient Rome, pp. 15-16.

650 O desejo pela vitória e a estima pelas virtudes militares eram importantes numa sociedade como a romana, em
que a guerra fazia parte integrante da vida quotidiana. Os espectáculos davam a oportunidade ao povo de
testemunharem as vitórias romanas que haviam sido obtidas em fronteiras distantes do império, como no Danúbio
ou na Judeia. Repare-se que certos académicos descreveram os anfiteatros como «campos de batalha artificiais»
urbanos, onde os Romanos recriavam contendas para diversão do público: a este respeito, consultem-se K. Hopkins,
Death and Renewal. Sociological Studies in Roman History 2, Cambridge, 1983, p. 2; F. Millar, The Emperor and the
Roman World, pp. 370-375. Para outros casos, durante as viagens do princeps pelo território imperial, veja-se H.
Haffmann, Itinera principum. Geschichte und Typologie der Kaiserreisen im römischen Reich, Estugarda, 1986, pp.
118-120.

257
«partidárias» que agitavam os amatores da gladiatura. Por detrás da aparente liberalidade que
Plínio-o-Moço sublinha - «E que liberdade nos sufrágios públicos!» - constata-se a evolução
bem significativa que então se estava a desenrolar: o imperador não buscava mais identificar-
se com a multidão, afastando-se desta publicamente, ao deixar os seus súbditos com a
impressão de uma liberdade, mas que reduzia apenas aos limites do anfiteatro.

Ainda hoje, diversos autores preconizam que o fenómeno gladiatório se caracterizou por uma
certa estaticidade ou estagnação: na realidade, bem pelo contrário, ele conheceu, à
semelhança da própria sociedade romana em geral, evoluções bastante significativas. No
âmbito fundamental das armaturae, a principal mutação ocorreu a partir do crescente sucesso
do par formado pelo retiarius e o secutor. Resultantes de uma longa evolução técnica, estes
dois tipos de combatentes não fizeram desaparecer o thraex nem o murmillo, mas estiveram
certamente na origem do gradual apagamento do hoplomachus. Assim, a incontestável
popularidade que o retiarius e o secutor vieram a ter, o que se comprova nas inscrições e nos
baixos-relevos, representa a marca evidente de uma mudança crucial no mundo da gladiatura,
ao longo do século II a. C.

Os provocatores

Durante largo tempo, este tipo de combatente foi considerado como uma espécie de
gladiador secundário, quase chegando a não merecer atenção por parte dos autores. Em 1890,
Anthony Rich definiu os provocatores como «Uma classe de gladiadores sobre a qual nada de
definido se sabe, salvo o facto de lutarem habitualmente contra os Samnitas» 651; é uma
caracterização de fraco conteúdo, baseada numa má leitura de Cícero, que muitas vezes os
estudiosos reutilizaram posteriormente. Assim, L. Robert, na sua conhecida monografia
publicada em 1940, reconhecia que não via ainda maneira de determinar, entre os gladiadores,
quais eram os secutores, os murmillones e quais, ainda, os provocatores 652. Mais tarde, G. Ville,
na sua obra de referência dada à estampa em 1981, alude aos provocatores em apenas três
ocasiões, mas sem nunca descrever precisamente esta armatura; contentou-se, simplesmente,
em afirmar, sem enunciar qualquer justificação, que o provocator era um gladiador «pesado».
Por seu lado, P. Sabbatini Tumolesi referiu que os provocatores não eram uma verdadeira
armatura, mas uma simples táctica de combate 653. Por último, F. Coarelli afirmou que «os
provocatores, os secutores e os contraretiarii [constituem] três categorias substancialmente
análogas, que se opõem ao retiarius, e que é impossível fazer distingui-las […] na ausência de
suficientes elementos caracterizadores»654.

No estado actual dos conhecimentos, é possível distinguir claramente o provocator dos outros
gladiadores e apurar o seu lugar no seio das principais armaturae 655. Se bem que o provocator
represente só 8% das inscrições (35 ocorrências) inventariadas, no corpus iconográfico, todavia,

651 A Dictionary of Roman and Greek Antiquities with nearly 2000 engravings on wood from Ancient Originals,
Londres, Longmans, 1890, p. 533.

652 Les gladiateurs dans l’Orient grec, pp. 65-68.

653 Epigrafia anfiteatrale dell’Occidente romano.I, Roma, 1988, p. 63.

654 «L’armamento e le classi di gladiatori», in A. La Regina (ed.), Sangue e arena, p. 155: «Provocatores,
secutores, contraretiarii. Si tratta di tre categorie sostanzialmente analoghe, che venivano opposite ai retiarii,
e che à impossibile distingure tra loro, in assenza di sufficienti elementi caratterizzanti».

258
ele representa pouco mais de 10%, possuindo 159 representações plásticas. Ele situa-se, por
conseguinte, no quinto lugar das dez armaturae claramente identificadas pelas fontes 656. Note-
se, igualmente, que essas figurações plásticas de provocatores manifestam em muitos casos
uma considerável qualidade na sua factura, destacando-se 96 relevos com grande riqueza
informativa. Apenas o secutor, com 102 ocorrências, aparece ligeiramente mais representado
neste tipo de suporte escultórico bidimensional.

Além disso, conservaram-se sete cascos de provocator, sendo deste tipo de gladiador que
sobreviveu maior número de peças de equipamento. Mas, apesar de tal corpus assaz
significativo, as ideias erróneas veículadas a propósito desta armatura são numerosos. Ainda
que ele fosse um dos raros gladiadores que combatia, quase excluivamente, com outro da
mesma categoria tipológica, em certas ocasiões terá defrontado outras armaturae. Em regra,
quando um autor da actualidade aplica a designação desta armatura, limita-se geralmente a
dizer que se trata «do gladiador que provoca»; esta afirmação bastante pouco elucidativa
mostra que é indispensável fazer uma clarificação objectiva sobre os gladiadores em geral e
sobre o provocator em particular.

Uma referência colhida numa fonte literária conduziu a que, frequentemente, se tenha
confundido o provocator com o samnis. Na realidade, esta assimilação repousa apenas
numa alusão feita por Cícero; ela é, amiúde, evocada mas sempre fora do seu contexto.
Em tal passagem, o ilustre político, orador e advogado refere-se ao editor657 Vatínio, que
«faz samnitis ou provocatores» (Pro Sestio, 64.134). O que acontece é que a partir desta
frase vários estudiosos depreenderam que provocator e samnis constituiriam a mesma
armatura, em vez de compreender, ipsis verbis, o que foi escrito, isto é, que o provocator
se distinguia dos samnitis, uma vez que que Vatínio «faz samnitis ou provocatores». Se
inserirmos a asserção no conjunto do texto, percebemos melhor o seu sentido geral. Na
sua crítica contra Vatínio, Cícero acusou-o de enganar o público quanto à qualidade da
«mercadoria» humana; afirma que ele não comprava verdadeiros gladiadores para os
apresentar aos romanos, mas que os retirava de entre indivíduos condenados «aos
trabalhos forçados, o refugo dos escravos mais vis, decorando-os com o rótulo de
gladiadores, para deles fazer, ao acaso, samnitis ou provocatores». Aqui, Cícero denuncia
a atitude fraudulenta de um editor que ludibriava o público ao apresentar nos
espectáculos, no lugar de gladiadores de crédito firmado, pobres diabos equipados de
acordo com esta ou aquela armatura.

Embora não englobe dados precisos sobre os provocatores, esta passagem não deixa de
proporcionar alguns ensinamentos. Dessa frase ressalta o facto de o provocator
constituir, em 56 a. C., uma armatura identificável, claramente distinta da do samnis.
Ademais, Cícero afirma também, mas implicitamente, que um escravo saído dos
trabalhos forçados não podia tornar-se, de repente, num gladiador samnis ou num
provocator. Tal passagem sugere que um escravo não poderia ser qualificado de
«gladiador», se antes não tivesse recebido uma formação apropriada. Com efeito,

655Conforme se observa nas seguintes abordagens: M. Junkelmann, Gladiatoren…, pp. 114-116; K.


Grossschimdt e F. Kanz, Gladiatoren in Ephesus, Tod am Nachmittag, Viena, Ephesus Museum Selçuk, 2002,
p. 81; E. Teyssier, La mort en face…, pp. 75-94; S. Shadrake, The World of the Gladiator…, pp. 147-151; K.
Nossov, Gladiator…, pp. 61-62.

656O provocator situa-se em quinto lugar, no conjunto das armaturae claramente identificadas pelas fontes.
Segundo a ordem da sua frequência nas representações até à data conhecidas, o thraex, o secutor, o retiarius
e o murmillo são as armaturae que mais vezes surgem, com pouquíssima distância entre elas. A seguir,
encontram-se, com frequência menor, o provocator, o hoplomachus e o eques. Por fim, o essedarius e o scissor,
sob as suas diferentes designações, podem considerar-se como armaturae raras.

657 Vatinio era um editor de munus e não um lanista, como muitas vezes aparece referido.

259
desde o tempo de Cícero, e possivelmente já alguns anos antes, não seria, pelo menos
em teoria, plausível oferecer um verdadeiro munus ao obrigar escravos, não importava
quais fossem, a combater na arena. Mas na prática isso sucedia, o que levou Cícero a
denunciar uma vigarice que já não tinha razão de existir. Como vimos no capítulo II,
parece que o momento histórico em que Cícero fez o discurso de defesa a favor de
Séstio terá sido muito importante, dado que a gladiatura sofreu uma metamorfose
fundamental. Como a ambição dos homens políticos de finais da República quase não
conhecia limites, eles lançaram-se numa rivalidade desenfreada, cada um tentando
ultrapassar os demais, através da exibição de um número maior de gladiadores nos
munera, para grande satisfação da multidão 658 e na mira da obtenção de votos para a
eleição para cargos públicos.

Esta abundância de combatentes talvez resultasse de uma vontade de diversificar as


técnicas empregues pelos mesmos. Cícero oferece um testemunho destas duas fortes
tendências que eram a profissionalização e a busca por um espectáculo provido de
qualidade por um lado, ele invectivou Vatinio, ao culpá-lo pela mediocridade dos seus
combatentes, que se resumiam a escravos obrigados a disfarçar-se de gladiadores. Se,
cerca de um século antes, este expediente poderia ser aceite e praticado, agora, no fim
da República, tal subterfúgio já não tinha motivos para continuar a aplicar-se. Outro
aspecto que queda subjacente às palavras de Cícero é que por essa altura se registava
um maior grau de tecnicismo nos combates gladiatórios.

Ao citar os samnites e os provocatores, o célebre orador estava a opor a mais antiga


armatura conhecida a um tipo de gladiador ainda, certamente, muito recente; a
primeira caracterizava-se, acima de tudo, por um equipamento «étnico», ao passo que
o último se identificava mediante um qualificativo que certos autores traduziram como
«assaltante» ou, simplesmente, «provocador». É possível, mas não garantido, que este
tipo de gladiador correspondesse a um criminoso ou um prisioneiro de guerra
condenado à pena capital, mas que poderia obter a misericórdia, caso ganhasse a
simpatia e o apoio dos espectadores e do editor. É o que parece sugerir o próprio termo
provocator, que deriva de um vocábulo jurídico romano do tempo da República:
estipulava-se que um cativo condenado tinha o direito de apelar ao povo (provocatio ad
populum)659; no entanto, a maneira de combater do provocator, que envolvia falsas
retiradas seguidas de contra-ataques fulminantes, veio a mudar o significado
etimológico original. Com efeito, este tipo de gladiador não estava associado a um
povo em concreto, mas a uma especificidade técnica. Esta mutação, contemporânea de
Cícero, constituiu o sinal inequívoco de uma metamorfose profunda da gladiatura, que
transportava o gérmen da gladiatura «clássica», estabelecida desde o começo do
Principado. Neste processo evolutivo, o provocator ocupou, inegavelmente, um lugar de
eleição, embora sejam raras as menções ao mesmo nas fontes literárias e epigráficas.

No entanto, descobriu-se uma estela em Roma que fornece informações assaz úteis:
este monumento funerário, dedicado pelo doctor Aelius Marcion ao seu instruendo
Anicetus 660 (fig. Junk, p. 114, nº 167), serve para melhor compreendermos e
identificarmos este tipo de gladiador; no relevo que acompanha a inscrição vemos um
gladiador armado; situa-se debaixo de uma arcada enquadrada por duas portas que
658A lex Tullia de ambitu, proposta pelo próprio Cícero em 63 a. C., interditava a organização de um munus
durante o espaço de dois anos aos indivíduos que se candidatassem a cargos da magistratura. Vatínio
infringiu alegremente esta disposição legal, como sublinhou Cícero na mesma passagem.

659 K. Nossov, Gladiator…, p. 61, 185.

660D. Facenna, «Rilievi gladiatorii», Bulletino della Commissione Archeologica Comunale di Roma 73 (1949-
1950), «Appendice» (1952), p. 5, est. 7.

260
parecem abrir-se para o deixar passar, como se fosse entrar na arena. Não obstante o
seu aspecto relativamente simples, a estela reveste-se de claro interesse e valor; para já,
constitui o único caso em que um epitáfio em latim apresenta uma referência explícita à
armatura do provocator (PROV.), provida de uma representação plástica integral deste
tipo de combatente 661. Este é figurado com uma só ocrea, sobre a perna esquerda; esta
protecção cobre o joelho mas não sobe até à altura da coxa.

Esta especificidade permite afiançar que não se trata de um thraex, já que este possuía
duas grandes ocreae, que protegiam as pernas até sensivelmente ao meio das coxas.
Também não pode tratar-se de um murmillo, que embora só dispusesse de uma ocrea,
esta apenas lhe cobria a tíbia. Outra particularidade detectável: o escudo rectangular é
convexo como o scutum dos murmillones, mas revela-se mais curto que o mesmo. Com
efeito, o escudo ostentado por Anicetus «parte» do pescoço e «detém-se» na parte
superior das pernas, ao passo que o scutum de um murmillo se prolongava para além do
joelho. Contudo, este escudo reduzido não corresponde ao de um thraex, já que a parma
ainda era mais pequena, protegendo, no máximo, o espaço entre o pescoço e o umbigo.
Assim, estamos perante uma armatura intermédia, entre os parmati e os scutati.

A relação ocrea-escudo obedecia a uma lógica interna: como o thraex (pequeno escudo e
ocreae grandes), o provocator estava munido de defesas proporcionadas (escudo e grevas
de tamanho médio), de molde a possibilitar adequada protecção do corpo quando este
gladiador estava em guarda. Ademais, existe outro elemento do equipamento
defensivo que parece ter sido «apontado» pelo escultor do relevo da estela em
memória de Anicetus: verifica-se um entalhe ao nível do ombro direito do gladiador,
enquanto, por seu turno, se descortinam dois anéis à altura do pescoço. Estes detalhes
podem indicar a presença de um protege-tórax (spongia pectoris) neste combatente. Se
bem que aqui tal peça de equipamento aparece quase apenas esboçada, noutras
representações figurativas surge bem mais nítida. Por último, o elmo de Anicetus não é
muito visível, mas parece estar desprovido de cimeira.

Quanto ao armamento ofensivo, Anicetus brande um gládio curto e pontiagudo ou,


então, o pugio, o tipo de adaga frequentemente utilizado pela maioria dos gladiadores.
Neste ponto, a inscrição gravada no monumento suscita um problema, uma vez que se
diz que este combatente é um «PROV. SPA»: esta abreviatura, tradicionalmente,
significa provocator spatharius. Literalmente, o termo spatharius quer dizer «o portador
de uma espada comprida (spatha)». Mas as 150 imagens de provocatores repertoriadas
até hoje mostram-nos providos, sistematicamente, de um gladius curto ou, até, de um
pugio, isto é, uma arma cuja lâmina mediria cerca de 20 cm. Assim, este vocábulo
spatharius revela-se de difícil interpretação, tanto mais que não constitui um hapax no
mundo da gladiatura.

Noutra inscrição, igualmente achada em Roma, se faz menção à existência de dois


provocatores, associados da mesma forma à abreviatura «SPAT» (CIL VI 7659).
Curiosamente, este qualificativo não se reservava usualmente para os provocatores;
numa outra fonte epigráfica, conectada com um collegium (espécie de «associação» ou
confraria) de gladiadores, alude-se a um murmillo chamado Iuvenius e a um thraex,
Zozimus, cujas armaturae são secundadas pelas duas letras «SP.» (CIL VI 631) 662. Neste

661Um baixo-relevo de Tomis evoca igualmente um provocator esquerdino chamado Agroicos. Um escudo
rectangular e um elmo redondo desprovido de cimeira são figurados a seus pés, mas a estela acha-se
quebrada ao nível das coxas do gladiador: cf. E. Teyssier, La mort en face…, nota 59, p. 491

662Os demais gladiadores pertencentes a esse colégio não receberam este qualificativo, sendo designados
como tirones, aqueles que nunca haviam combatido, ou veterani. Assim, spat dizia então respeito ao
palmarés do gladiador e não ao seu armamento, contrariamente ao que alguns estudiosos sustentaram

261
caso, é totalmente impossível que tais letras se reportem a spatharius; de facto, o thraex
empregava geralmente a característica sica, que, juntamente com a sua parma,
significavam os aspectos essenciais da sua armatura. Ora essa arma de lâmina curva
não se confunde, em situação alguma, com uma spatha. Ao aprofundar esta questão,
ficam-nos, portanto, sérias dúvidas quanto à atribuição de uma spatha ao provocator
Anicetus.

Acontece que, em latim, spatha também servia para designar um ramo de palmeira;
como a palma simbolizava a recompensa concedida a um gladiador que tivesse vencido
brilhantemente o seu adversário, não é de excluir que esta menção, declinada mediante
as abreviaturas «SPA.» ou «SPAT.», acompanhasse os nomes dos combatentes da arena
que recebessem tal distinção 663. Assim, a abreviatura corresponde, na mesma, a
spatharius, só que no sentido «daquele que recebeu a palma da vitória». Ainda que não
haja garantias absolutas, é muito provável que esta leitura se afirme mais correcta do
que a de um homem provido de uma longa espada. Além disso, nenhum gladiador da
época imperial foi representado brandindo uma spatha 664; em contrapartida, os
combatentes vitoriosos exibindo palmae cifram-se em dezenas, figurados em todos os
géneros de suportes.

Destaquemos, então, as quatro características essenciais que se extraem do epitáfio de


Anicetus: a) uma só ocrea, de tamanho mediano, mais alta que a dos scutati, mas mais
baixa que a dos parmati; b) um escudo que ficava a «meio-caminho» entre a pequena
parma dos thraeces e o grande scutum dos murmillones; c) um protege-tórax, elemento
que só terá sido utilizado pelo provocator, desde o desaparecimento dos samnitis; d) um
gládio de lâmina curta e recta.

Esta armatura surgiu incontestavelmente no fim da República, como se atesta pelo


trecho de Cícero. Tal referência significa a mais antiga fonte que evoca os provocatores,
situando-os no tempo em que ainda parecem haver coexistido com os samnitis; mais do
que uma assimilação de ambas as armaturae, devemos ver neste facto uma evolução da
armatura «étnica» arcaica do samnis, que culminaria numa versão mais técnica deste
tipo de combatente com o provocator. A partir da junção destes elementos-chave,
podemos relacionar com a armatura dos provocatores um considerável número de
representações imagéticas, que, muitas vezes, têm sido incorrectamente identificadas.

Entre estas fontes iconográficas, a mais recuada será o baixo-relevo que descreve um
combate de provocatores (que analisámos no Capítulo I). Nele, observamos dois homens
desprovidos das protecções faciais que, mais tarde (em meados do século I d. C.), se
colocariam nos cascos destes gladiadores. Este género de elmos procederam
directamente do equipamento militar e pertencem, sem dúvida, aos primeiros modelos
conhecidos do tipo «Weisenau», que as legiões romanas adoptaram após a Guerra das
Gálias; herdados da tradição céltica, eles caracterizam-se por um cobre-nuca, um
alteamento ao nível das orelhas, por largas paragnátides e por um reforço central. O
facto de o relevo de Roma apresentar os elementos tipológicos do modelo mais antigo

designadamente F. Coarelli.

663Conforme sugeriram E. Teyssier (La mort en face…, pp. 79-80) e F. Gilbert (Devenir Gladiateur. La vie
quotidienne à l’école de la mort, Lacapelle-Marival, 2013, p. 110.

664 F. Coarelli («L’armamento e le classi dei gladiatori»…, p. 155) opinou, incorrectamente, que existiriam
gladiadores spatharii, ou seja, que utilizariam «la spatha, lunga spada diversa dal gladium» e referiu-se a
menções epigráficas a murmillones spatharii e thraeces spatharii (P. Sabbatini Tumolesi, Epigrafia anfiteatrale
dell’Occidente Romano, p. 135); na realidade, essas referências correspondem a combatentes recompensados
com palmae, à semelhança dos provocatores acima referidos.

262
confirma a sua datação sob o reinado de Augusto (fig. p. 81). Isto permite, igualmente,
avaliar o aspecto claramente bélico do provocator. De facto, de todos os gladiadores do
Alto Império, o provocator foi o que mais se aproximou, pelo seu equipamento, dos
legionários romanos. Neste baixo-relevo, os critérios identificativos da armatura do
provocator estão bem evidentes, com um escudo de tamanho médio e uma ocrea que
guarnece a tíbia e chega à altura do joelho esquerdo. A ausência de cimeira no casco é
outro elemento típico que se assinala no conjunto do corpus icónico. A própria posição
dos combatentes também nos permite ver claramente o peitoral que só os provocatores
empregavam, marca tangível da filiação dos mesmos em relação aos samnitis.

Existe outro relevo representando gladiadores em combate, de meados do século I d.


C., conservado no Museo Archeologico Nazionale de Civitavecchia (fig. Tey, p. 82); alguns
autores consideraram que nesta obra escultórica (de um monumento funerário de
Castrum Novum, actual Santa Marinella, no Lácio) se ilustra dois samnitis a lutarem 665.
No entanto, certos indícios apontam noutra direcção, conduzindo-nos a identificar
estes combatentes como provocatores: para começar, os dois gladiadores estão providos,
como Anicetus, de uma ocrea, cobrindo o joelho, cujo tamanho corresponde
aproximadamente ao do escudo. A posição em guarda de ambos os indivíduos deste
relevo de Civitavecchia traduz perfeitamente a coerência destes dois elementos do
equipamento. Além do mais, num exame atento deste testemunho plástico, concluimos
que os elmos possuem uma protecção facial.

Se, por um lado, a spongia pectoris (protege-tórax) não aparece nitidamente na estela de
Anicetus, na escultura bidimensional de Civitavecchia, por outro, esta peça protectora,
bem como o modo de a prender ao tronco, surgem explicitamente indicados. O
provocator defronta um adversário com equipamento idêntico. Esta especificidade da
gladiatura «arcaica» veio, igualmente, a desaparecer, na sua quase totalidade, das
armaturae da época «clássica», onde prevaleceu a regra, acima de tudo, de opor
contrários. Tal particularidade do provocator pode, assim, considerar-se uma espécie de
arcaísmo, um resquício evocativo dos primórdios da gladiatura.

Embora não se possa dizer que o provocator fosse verdadeiramente um gladiador raro,
ele corresponderia a um género de combatente com limitado prestígio, pelo menos no
Ocidente: a sua completa ausência nos anúncios de munera em Pompeia corrobora tal
hipótese, isto apesar de se descobriram vários cascos desta armatura na caserna dos
gladiadores, durante as escavações efectuadas nessa cidade. Do mesmo modo, verifica-
se uma certa raridade nos testemunhos epigráficos referentes a provocatores, 7% de
casos face a 24% para os murmillones.

A despeito de escassearem imagens de provocatores nos baixos-relevos produzidos no


tempo dos imperadores Júlio-Cláudios, curiosamente foi neste momento histórico que
fizeram a sua aparição nas lucernas com medalhões mostrando cenas gladiatórias.
Porém, este género de artefactos, frequentemente neglicenciado, revela-se muito útil e
fértil em informes, nomeadamente para um tipo de combatente como o provocator: as
mais antigas lucernas historiadas figuram um gladiador que, pelas suas características,
se aproxima do provocator. Assinala-se o mesmo equipamento em três exemplares de
lamparinas, da primeira metade do século I a. C. Nestas representações surgem
combatentes em liça exibindo a mesma armatura, com elmos pertencentes ao modelo
gálico, por vezes, ornamentado com plumas (pinnae), mas sempre desprovidos de
cimeiras. Como se observa na cena de uma lucerna conservada no Ärcheologisches
Museum de Colónia (fig. Tey, p. 83; primeiro quartel do século I d. C.), um gladiador,

665S. Rinaldi Tufi, «Lastre di un rilievo gladiatorio nel museo di Civitavecchia», Bulletino della
Commissione archeologica communale di Roma, nº 82 (1975), pp. 137-142.

263
ao segurar o escudo com a mão esquerda através de um manipulus 666, situado no centro
do escudo, permitia que o utilizasse num processo de percussão horizontal, numa
atitude muito similar à que aparece no baixo-relevo de Roma. Em contrapartida, aqui
não está presente o protege-tórax, ao passo que o escudo figurado nas lamparinas é
mais alongado e ovóide.

É legítimo que nos interroguemos se são galli ou provocatores; a identificação destes


gladiadores como galli, ainda que não a excluamos inteiramente, suscita alguns
problemas; com efeito, os gladiadores gauleses, bem como os samnitis, aparentemente
não terão desaparecido de cena sob o reinado de Augusto. Seja como for, não se
conhece qualquer testemunho epigráfico ou literário após tal reinado. Ora estas
lamparinas do tempo júlio-claudiano são posteriores ao período augustano. Além
disso, estas peças terão certamente conhecido uma ampla difusão. Afora o modelo
exposto, existem muitos outros espécimes similares ou contendo variantes em relação
ao mesmo arquétipo. Caso os referidos gladiadores não consistam efectivamente em
galli, será possível identificá-los como um tipo específico de provocatores, fruto de uma
evolução do combatente gallus.

No exame do corpus iconográfico dos provocatores, constatamos que os escudos foram


representados sempre convexos mas indiferenciadamente rectangulares ou
arredondados nas suas extremidades, independentemente da altura em que tais
representações foram executadas ou dos locais onde se descobriram. A forma
arredondada pode corresponder a uma adaptação do escudo gaulês. Assim como o
scutum do samnis se reduziu de tamanho para se converter na protecção empregue por
um provocator, o escudo do gaulês foi tornado convexo de maneira a ganhar maior
manejabilidade. Nos gladiadores com escudo oval, o protege-tórax desapareceu, mas
este já aparece sistematicamente nos combatentes que usam um escudo rectangular.

Esta polivalência leva a pensar na existência de duas variantes de provocatores. Se,


desde a sua aparição, no tempo em que viveu Cícero e até às suas derradeiras
representações plásticas no século III d.C., os princípios essenciais da armatura dos
provocatores permaneceram extraordinariamente estáveis, cabe, todavia, advertir para a
presença constante de dois tipos de escudos, que coexistiram ao longo da época
imperial e em todas as partes do Império. Estas variantes estão, assim, ligadas, de
acordo com E. Teyssier667, a duas formas de provocatores que derivaram de duas
armaturae «étnicas» distintas, que lutavam de acordo com técnicas diferentes. Um
primeiro género de provocator, a que se pode designar como «tipo A», caracteriza-se
por utilizar um escudo rectangular e por uma ocrea de tamanho médio. A presença
sistemática do protege-tórax neste tipo de provocator indica-nos uma filiação muito
provável do gladiador samnita, a menos que ele não estivesse associado à técnica de
combate induzida por este escudo ligeiro. O outro provocator, o «tipo B», acha-se
dotado de um escudo mais pesado, com extremidades arredondadas e não enverga o
protege-tórax. Embora seja impossível afirmá-lo categoricamente, em princípio o
provocator «B» deve ter procedido do gallus, da mesma maneira que o «A» derivou do
samnis. Aparentemente, esta dicotomia surgiu ao mesmo tempo que a armatura do
provocator, num momento histórico em que, a custo, começou a diferenciar-se dos seus
estereótipos «étnicos».

666O manipulus consistia numa pega metálica que permitia segurar com a mão o escudo. Deste, feito
geralmente de madeira e couro, sobreviveu muitas vezes só esta peça enquanto testemunho da presença
de um escudo em certos túmulos.

667 La mort en face…, p. 84ss; F. Lillo Redonet, Gladiadores: mito y realidade…, pp. 25-26.

264
Em dois fragmentos de um relevo (que se perderam), descobertos em Durrës, na
Albânia 668 (antiga Dyrracheum fig. Junk, p. 116), observam-se perfeitamente estes dois
tipos de gladiadores: neste caso, o provocator «A» é esquerdino e o «B» munido de uma
arma com a ponta embotada, pormenor também assinalável noutras imagens de
provocatores. Ambos os tipos continuaram a existir, mesmo quando as armaturae
técnicas já se encontravam bem estabelecidas. Como testemunhos da perenização
destas variantes de provocatores, assim como da sua participação efectiva nos munera,
temos dois relevos de Pompeia, datando de meados do século I d. C.: um deles
corresponde a uma cena de uma composição escultórica do túmulo de Umbricius
Scaurus (fig.Tey, p. 86; situado na necrópole da «Porta Herculana», que não chegou até
hoje, apenas reproduzida em desenhos por F. Mazois e Morelli no século XIX, onde se
representaram provocatores do «tipo B» 669; o outro baixo-relevo pertenceu,
aparentemente, ao monumento funerário do duumvir Cn. ou N. Clovatius670,
proveniente da Porta Stabiana (fig. Junk. P. 115, nº 170, onde se observam provocatores
do «tipo A» (aparecendo, em segundo plano e com menores dimensões, dois retiarii;
Museo Archeologico de Nápoles, inv. nº 6704)

Como os demais gladiadores, estes dois géneros de provocatores dispunham de uma


protecção para o braço, a manica; originariamente sendo um elemento que quase só
cobria o pulso, nas representações imagéticas do fim da República e do início do
Principado, passou a proteger o antebraço direito. Para a confeccionar, utilizava-se o
couro, o material possivelmente mais apropriado, já que permitia um excelente
compromisso entre leveza e protecção. Além disso, a mobilidade dos segmentos entre
si era perfeita, mantendo-se a manica bem ajustada ao braço, como quedou confirmado
por testes realizados no âmbito da arqueologia experimental. No entanto, a manica
podia ser feita igualmente com segmentos de metal 671, só que não devia revelar-se tão
prática como a elaborada em couro. Uma manica de ferro é, efectivamente, menos

668 Apenas conhecidos graças à sua reprodução gráfica e comentários apresentados na antiga obra de L.
Heuzey e H. Daumet, Mission archéologique de Macédoine, vol. II, Paris, 1875, p. 383, est. XXX.

669 Em princípios do século XIX, na necrópole da Porta Herculana, descobriu-se um importante relevo
em estuque pintado, que, com base numa fonte epigráfica (CIL X, 1024), se considerou estar relacionado
com o túmulo do duumvir A. Umbricius Scaurus: cenas de venationes e de confrontos gladiatórios apareciam
em frisos, um acima do outro, decorando o alto podium do túmulo; encontravam-se representados oito
pares de gladiadores em várias fases de combate. Para mais dados: F. Mazois, Les ruines de Pompéi, Paris,
1824-38, pp. 46-51, est. 31; F. Coarelli, «Il rilievo com scene gladiatorie», Studi Miscellanei 10 (1966), p. 97,
est. 42; P. Sabbatini-Tumolesi, Gladiatorum paria…, p. 62ss; V. Kockel, Die Grabbauten vor dem Herkulaner Tor
in Pompeiji, Mainz am Rhein, 1983, p. 75ss. L. Jacobelli, salientando a dificuldade na identificação das
armaturae observáveis nestes frisos relevados, considerou, ainda assim, que a cena aqui em causa
representa uma pugna entre dois secutores, o que nos parece uma interpretação incorrecta: Gladiators at
Pompeii…, p. 92.

670 Em 1843, no exterior da Porta Stabiana, durante as escavações, exumou-se um monumento funerário
rectangular com uma inscrição referente ao duumvir Cn. ou N. Clovatius e um relevo em mármore com
representações gladiatórias (medindo 1,5 por 4,23 m e composto por duas parcelas que se encaixam uma
na outra; os episódios escultóricos foram dispostos em três níveis com alturas variáveis, correspondentes a
igual número de momentos distintos de um munus). No mesmo sítio, acharam-se os restos de uma
inscrição, actualmente perdida, que aludia aos espectáculos oferecidos no anfiteatro pelo magistrado A.
Clodius Flaccus (CIL X.1074). Alguns estudiosos sustentaram que a composição relevada pertenceria ao
túmulo de C. Flaccus, mas outros defenderam que a mesma estaria conectada com o sepulcro de Numerius
Festinus Ampliatus, o lanista mais conhecido de Pompeia. Cremos, todavia (apesar da falta de mais dados
informativos referentes à altura em que se efectuaram as prospecções arqueológicas) que esta peça
escultórica terá sido elaborada para Cn. ou N. Clovatius. Mais à frente analisaremos várias cenas deste
relevo. Consultem-se: B. Mauiri, «Rilievo gladiatorio di Pompei», RendicontiAccademia dei Lincei, ser. 8, vol.
2 (1947), números 11-12 (1948), pp. 491-510; H. Döl e P. Zanker, «La scultura», Pompei 79, Nápoles, pp. 188-
189; A. Varone, «I giochi e gli spettacoli», Bellezza e lusso. Imagini e documenti di piacere della vita, Roma,
1992, p. 180, n. 28; L. Jacobelli, Gladiators at Pompeii…, pp. 95-97, fig. 77.

265
flexível e mais pesada, o que prejudicaria consideravelmente a liberdade de
movimentos que se requeria para o braço armado.

A partir de meados do século I d. C., a manica desenvolveu-se mais, cobrindo o ombro


direito. Este prolongamento da protecção manteve-se no provocator, bem como nos
outros gladiadores até ao fim da gladiatura. Os exemplos assinaláveis na estela do
provocator Diodoros, proveniente de Amysos (Turquia) 672 e actualmente conservada no
Musée du Cinquantenaire, em Bruxelas (fig. Tey. p. 86), atestam cabalmente esse facto.
Ao estudarmos as diversas imagens de provocatores, verificamos que o casco constitui a
peça do equipamento que conheceu maior número de modelos diferentes ao longo do
tempo. Contudo, apesar de existirem estas variações morfológicas, o elmo do
provocator é sempre reconhecível por não possuir uma cimeira673.

Nas representações menos desgastadas pelo tempo, observamos variantes nos elmos,
tornando menos difícil a compreensão da evolução formal dos últimos. À semelhança
dos «pré-gladiadores», as mais antigas figurações de provocatores mostram cascos
desprovidos de protecções faciais. No entanto, desde meados do século I d. C., os
elmos passaram a ser reforçados por duas paragnátides, montadas nas charneiras
mediante dobradiças. Observa-se esta modificação numa cena do conjunto de baixos-
relevos pertencente ao monumento funerário de Lusius Storax. Os dois elmos de
provocator que aí se representam possuem protecções faciais completas, certamente
amovíveis e tendo dois orifícios para os olhos.Tal modelo, que remonta a meados do
século I d. C., evoluiu rapidamente, como se verifica através dos cascos de provocatores
achados no decurso das escavações realizadas em Pompeia. Para além deste primeiro
tipo de casco, fruto directo da evolução de um modelo militar, surgiu outro ao longo
do século I, o qual se conhece apenas pelas fontes iconográficas, apresentando uma
forma mais simplificada, a de uma espécie de «bola» metálica munida de dois orifícios.
Atesta-se a existência deste género de casco no famoso mosaico de Zliten (fig. Tey. p.
88 em baixo; Museu Arqueológico de Tripoli, Líbia), e num baixo-relevo encontrado
em Maastricht (conservado na Bibliothèque Municipale de Maastricht fig. Tey, p. 88 em
cima): em ambos os casos, o escudo pertence ao modelo do provocator B.

Por sua vez, durante o século II d. C., a partir destes primeiros tipos de elmos apareceu
um novo modelo, variante que consiste num casco formalmente próximo do modelo de
Pompeia, mas no qual os orifícios para os olhos se viram substituídos por uma grelha
protegendo todo o rosto do gladiador. Esta solução, que já havia sido adoptada para os
cascos do thraex e do murmillo exumados em Pompeia, permitia aumentar o campo de
visão do combatente; mas oferecia outra importante vantagem, a de melhorar a

671Aparentemente, em Pompeia, apenas se descobriu uma manica squamata composta de escamas feitas
em osso. Se, por um lado, a manica de escamas se atesta nas fontes iconográficas, a última, por outro, é
muito rara. A manica hamata, ou seja, a cota de malha, encontra-se também presente, mas apenas em duas
ocorrências relativamente ao par retiarius-secutor. Algumas representações polícromas, amiúde, tardias,
aparentam indicar queos artesãos que produziam as manicae podem ter recorrido ao metal para elaborar
certas protecções para o braço. De idêntico modo, também é possível, como sugeriu M. Junkelmann, que
se elaborassem manicae em tecido estofado, mas a verdade é que as mesmas deviam revelar-se incómodas
para os movimentos dos gladiadores, por se acharem demasiado acolchoadas. Vejam-se, a propósito, E.
Teyssier, La mort en face…, nota 63, p. 492, e M. Simkins, «The manica laminata», in ARMA, vol. 2, nº 2,
Dezembro de 1990.

672 M. Junkelmann, Gladiatoren…, est. 40, p. 31; F. Meijer, The Gladiators: History’s Most Deadly Sport, pp.
68-69. O teor da inscrição deste monumento funerário, que se reveste de especial interesse, é examinado
detidamente noutro capítulo, com mais bibliografia aduzida.

673Os equites partilhavam esta particularidade com os provocatores, mas distinguiam-se dos últimos por
envergarem túnicas.

266
ventilação do casco durante a pugna, já que o gladiador podia abrir a protecção facial
ao nível da boca e do nariz, o que servia para que ele respirasse melhor e recuperasse o
fôlego por uns instantes, o que não sucedia com os modelos anteriores, que eram
praticamente fechados. Neste casco, conservou-se a viseira herdada do modelo
castrense.

Especialmente a partir do século III d. C., as representações plásticas de elmos de


provocatores deixam entrever uma evolução mais significativa do seu formato; essas
imagens, amiúde achadas no Oriente grego, mostram cascos aparentemente mais
volumosos, lembrando os escafandristas de princípios do século XX, caracterizando-se
por uma mutação da viseira e pela substituição das paragnátides móveis por uma
grelha enquadrada por uma estreita protecção. O cobre-nuca, que nos espécimes
pompeianos se situa ao nível das orelhas, nos modelos mais tardios prolonga-se até ao
mento; além disso, é bastante protuberante na parte frontal, o que queda bem visível
nos provocatores do século III d. C.: veja-se, por exemplo, o relevo da estela funerária do
provocator Droseros (fig. Muğla Müze, Turquia, século III d. C.), 674 onde o gladiador
aparece quase de perfil, ou, igualmente, outra escultura bidimensional descoberta em
Izmir (Turquia), em que a posição do combatente em guarda, mostra, ao mesmo
tempo, a «optimização» do elmo do provocator, produto de vários desenvolvimentos.
Com efeito, nos modelos do século I d. C., o gladiador podia ser atingido no ombro ou
no pescoço, ao passo que os cascos ulteriores protegiam mais estas partes do corpo.
Ainda que não desaparecendo por completo, o protege-tórax tende a rarear nas fontes
iconográficas orientais dos séculos II e III. Ora o desaparecimento progressivo deste
elemento esteve muito provavelmente conectado com a evolução dos cascos, cuja
eficácia foi incessantemente reforçada.

No elmo preservado em Muğla, a viseira frontal é bem perceptível, dando a impressão


de se desenvolver ainda mais, praticamente enquadrando a grelha que protege o rosto
do gladiador; introduziu-se, então, um dispositivo defensivo que impedisse que os
golpes do gládio, da adaga ou do próprio escudo do adversário não atingissem a face.
Além disso, o processo evolutivo do cabeção do casco expandiu-se até ao peito, o que
era suficiente para que se pudesse deslizar a parte superior do escudo sob o mesmo.
Em várias estelas da Ásia Menor, os elmos dos provocatores exibem uma factura
requintada; veja-se o cuidado conferido pelos escultores na modelação desta peça de
equipamento tanto no mencionado relevo de Droseros como no da lápide de Chrysos675:
os cabeções dos cascos patenteiam caneluras ou estrias, enquanto as calotes apresentam
uma decoração provavelmente executada mediante a técnica do repuxado, evocando
tranças de cabelo.

Mas a atenção dispenasada aos elmos dos provocatores não se ficou por aí: vários
objectos676 espelham os melhoramentos introduzidos neste elemento defensivo deveras

674Veja-se Murat Aydaş, «Gladiatorial Inscriptions from Stratonikeia in Caria», Epigraphica Anatolica 39
(2006), p. 105, «1. Droseros». O autor afirma que este gladiador era um murmillo, o que não é verdade:
basta ver o cardiophilax que o defunto enverga na parte superior do tronco. A lápide foi descoberta,
juntamente com outras, na área correspondente à necrópole de Stratonikeia, na região de Börükçü, na
localidade de Yeşilbağcılar (Turquia).

675M. Aydaş, «Gladiatorial Inscriptions from Stratonikeia in Caria», p. 106 (descrição formal do
monumento, transcrição do epitáfio e fotografia). A estela do provocator Chrysos data igualmente do século
III, e a composição escultórica é muito semelhante à de Droseros.

676A província romana da Asia, pela riqueza das suas fontes iconográficas, representa, neste âmbito, um
extraordinário filão de elementos informativos respeitantes à gladiatura e à sua evolução. Neste ponto, E.
Teyssier, deixou duas questões em aberto: ao longo do século II d. C., esta região terá funcionado como um

267
elaborado: no conjunto escultórico formado por duas estatuetas de terracota
representando um combate entre provocatores, que se descobriu na Ásia Menor
(conservado no Muğla Müze, fig. Tey. p. 91), capta-se essa evolução e chega-se até a
compreender a sua lógica; estas duas estatuetas, que assentam numa só base, devem
datar do século II d. C.; na efígie do provocator «A», observa-se a manutenção do
protege-tórax. Este detalhe tende a confirmar a hipótese da presença sistemática deste
elemento em conjugação com o escudo rectangular. No entanto, tal defesa, mesmo que
bem concebida, era móvel e não servia para impedir que o seu utilizador sofresse um
golpe de gládio ou de adaga. Ainda assim, devido à sua flexibilidade, oferecia maior
segurança neste ponto fraco do casco 677. Afora a defesa proporcionada às têmporas,
estes elementos maleáveis cobriam a parte superior do peito e as clavículas, dado que
esta zona ficava efectivamente vulnerável, apesar de estar presente um protege-tórax.
Saliente-se que um tal cuidado de protecção não se reencontra em qualquer outra
armatura gladiatória.

Há quem possa suscitar objecções face a estas propostas interpretativas, alegando que
os elementos documentais que serviram de base para as mesmas significam apenas
obra do acaso ou, então, que apenas mostram variantes pontuais ou locais que podem
nem ter conhecido significativa difusão. Mas, em nosso entender, não parece ser este o
caso (temos sempre o cuidado de não apresentar afirmações taxativas, já que nos
limitamos, tão-só, a estabelecer hipóteses), porque o provocator constituiu um tipo de
gladiador muito elaborado, e as suas diversas representações plásticas correspondem
sempre a uma mesma lógica. Esta evolução ao longo do tempo de um elemento de
protecção sublinha a capacidade, por parte das escolas gladiatórias, de buscarem que o
armamento dos seus combatentes fosse acrescidamente eficaz. O objectivo que se
pretendia atingir não era o de fazer derramar sangue de modo gratuito e em
abundância, mas conferir aos gladiadores as melhores possibilidades graças a um
material acrescidamente adaptado.

A preocupação constante em aperfeiçoar as protecções revela igualmente o cuidado


invariavelmente maior que se reservava à preservação física dos homens da arena.
Cláudio Galeno, então médico ao serviço do ludus de Pérgamo, vangloriou-se, por seu
lado, que nenhum dos seus pacientes gladiadores havia morrido no seguimento de
ferimentos sofridos, durante o período em que ele trabalhou nesta cidade. Para além
do indubitável mérito de Galeno, esta drástica diminuição da taxa de mortalidade dos
combatentes da arena na província da Ásia pode ter-se devido, em larga medida, aos
melhoramentos que os armeiros foram introduzindo regularmente nos equipamentos
dos gladiadores das suas escolas.

Por outro lado, levanta-se a questão dos materiais empregues para confeccionar estes
cascos «tardios»: se os elmos descobertos em Pompeia e noutros locais são quase todos
de bronze, convém não descartar a existência de cascos fabricados com ferro: é
provavelmente o caso dos provocatores Margareites e Hellenikos, que surgem a combater
no mosaico polícromo de Kourion (Chipre; fig. Junkelmann)678. Do mesmo modo,
«laboratório da gladiatura», à semelhança do que sucedera, nos séculos precedentes, em Roma ou na
Campânia (La mort en face…, nota 66, p. 492), ou, pelo contrário, seremos nós tributários do acaso das
descobertas arqueológicas? Julgamos que, em princípio, será preferível optar pela derradeira hipótese.

677Ressalvemos que as escolas gladiatórias da Campânia tentaram igualmente reforçar este ponto fraco a
partir do século I d. C.

678Mosaico encontrado na chamada «Casa dos Gladiadores». D. Soren e J. James, Kourion: The Search for a
lost Roman City, Nova Iorque, 1988; M. Junkelmann, todavia, entendeu que estes gladiadores
correspondem a essedarii (Gladiatoren…, p. 213, fig. 359).

268
também, nada obsta a que tais cascos, pelo menos em parte, tenham sido produzidos
em couro. É algo que se comprova na estatueta da Colecção Axel Guttman (fig. tey. p.
92, bem como no relevo esculpido num fragmento de vaso de cerâmica proveniente de
Cnidos (Turquia)679, que se conserva no British Museum (fig. tey. p. 93): aqui, o
gladiador posicionado à direita ostenta um elmo cujo cabeção ainda desce mais sobre o
peito do que nos casos já observados. O mais curioso nesta representação radica no
aspecto muito flexível dos bordos do cabeção; acontece que esta maleabilidade só
poderia obter-se através da utilização de couro ou de uma tela espessa, no fabrico do
casco. Verifica-se igualmente que o rosto está protegido por uma grelha rodeada por
uma cercadura anelada, saliente, que serviria para aparar golpes assestados pelo gládio
ou pelo escudo do adversário. Embora esta grelha fosse certamente metálica, tal não
impedia que existissem cascos «mistos» (até talvez houvesse cascos totalmente de
couro): estes podiam ter uma cobertura de couro, ainda que conservando o emprego de
metal para certas partes «sensíveis», tornando-se, portanto, mais leves e menos
incómodos para os gladiadores.

Cumpre ainda ter em conta a vertente térmica, já que os combatentes lutavam por
vezes sob o efeito ofuscante do sol e de um intenso calor, com os elmos fechados. Se
admitirmos a plausibilidade desta hipótese, então a existência de cascos parcial ou
inteiramente feitos de couro ajudaria a explicar o reduzido número de elmos
gladiatórios que sobreviveu, em comparação com os dos legionários romanos. Com
efeito, descobriram-se capacetes de soldados em todas as províncias imperiais que
tiveram guarnições. Em contrapartida, à excepção dos cascos de Pompeia, noutras
partes do Império recuperaram-se parcos fragmentos de elmos gladiatórios.

Por fim, se, por um lado, o armamento defensivo do provocator se revela muito
completo (o seu equipamento pesaria, ao todo, entre 12 a 15 kg 680), por outro, o
ofensivo limita-se ao seu gládio curto. Num corpus iconográfico de 159 ocorrências
inventariadas para os provocatores, nenhuma delas os mostra brandindo uma arma de
lâmina longa do tipo spatha, pelo contrário, os provocatores «A» ou «B» aparecem a
manusear adagas particularmente pequenas, de tamanho inferior ao gladius e mais
próximas de um pugio. É muito provável que esta tendência para a diminuição do
comprimento da lâmina tenha obedecido à finalidade de compelir os gladiadores a
combater a menor distância entre si, envolvendo-se no corpo a corpo.

***
Antes de abordarmos o modo como os provocatores lutavam, importa ressalvar um
aspecto que julgamos importante: É. Teyssier formulou uma teoria, segundo a qual o
provocator constituiria «a base e o ponto de passagem obrigatório de todas as
armaturae», uma espécie de «propedêutica da gladiatura “técnica”» 681. Por outras
palavras, um aprendiz de gladiador começaria por lutar nesta armatura, devido à
polivalência das técnicas de combate da mesma; depois, em função das aptidões
individuais, viria a especializar-se nos «grandes escudos» ou nos «pequenos escudos»,
passando a porfiar como murmillo, hoplomachus ou thraex; finalmente, quando já tivesse

679 H. B. Walters, Catalogue of the Roman Pottery in the Departments of Antiquities, British Museum,
Londres, 1908, fig. 10. M. Junkelmann (Gladiatoren…, p. 118, fig. 179), à semelhança dos combatentes do
mosaico de Kourion, considerou que neste fragmento de cerâmica se representaram dois essedarii.

680 M. Junkelmann, Gladiatoren…, p. 115.

681 La mort en face…, p. 82.

269
bastante experiência e talento, podia tornar-se um retiarius ou um secutor, que, segundo
o referido autor, representariam as armaturae de topo. Discordamos em absoluto do
ideário de Teyssier, que carece de fundamentos documentados, apenas assentando
num frágil lastro conjectural. Noutro capítulo, na alínea «A escolha das armaturae»,
desenvolveremos este assunto, apresentando argumentos que, a nosso ver, deitam por
terra a opinião do historiador francês sobre a relevância do provocator e da existência de
um alegado «curso» formativo organizado em escalões progressivos.

***
Debrucemo-nos finalmente sobre as técnicas de combate dos provocatores: os gestos
atléticos efectuados por estes viam-se determinados por uma série de percussões
levadas a cabo com a borda do escudo, movimentos que causavam uma sensação de
extrema violência. O escudo do provocator, em geral rectangular, convexo e
arredondado nos cantos das suas extremidades superior e inferior, assentava sobre
todo o comprimento do braço do utilizador. Relativamente leve, pesaria cerca de 4 kg.
Com o seu escudo, o provocator devia golpear com o máximo de rapidez em todas as
direcções. Nesta armatura, a relação funcional escudo-casco era de natureza mecânica.

Os testes realizados por técnicos da «arqueologia experimental» serviram para pôr em


evidência o laço existente entre o casco, de superfície lisa e sem crista, e uma técnica
particular no uso do escudo 682. Ora isto permitia ao provocator poder passar sob o
escudo sem ficar, por assim dizer, «entravado», ou então de o manter em posição de
«quebra-vento», por cima da sua cabeça. Ao agir deste modo, ele tinha a possibilidade
de criar aberturas e de explorá-las em combate. Além do mais, a técnica empregue
obrigava a que o provocator possuísse uma protecção peitoral, rígida na parte de cima
mas flexível no contacto com o tronco, a fim de amortecer as fortes pancadas de escudo
assestadas pelo adversário sobre o seu torso. A uma distância mais curta, o provocator
elevava o escudo, que antes estivera «colado» ao seu ombro, para criar uma espécie de
barreira contra os ataques do gládio ou adaga do ponente, dirigidos ao pescoço e ao
ombro. Esta «verticalização» forçava o adversário a ataques altos, que, ao deslizarem
sobre a calote do elmo, acabavam por «morrer» no cobre-nuca. A ocrea, por seu turno,
cobria a tíbia e o joelho da perna esquerda. (protecção metálica, mais alta do que a
equivalente habitualmente empregue pelos scutati, isto é, gladiadores munidos de
grandes escudos) Esta, que representava o membro mais exposto às investidas da
lâmina adversa, encontrava-se avançada, posicionando-se o escudo sobre o braço
esquerdo. Por último, a arma propriamente dita do provocator, era mais uma adaga do
que um gládio de lâmina curta, medindo 30-35 cm de comprimento. Estas dimensões
significavam a condição sine qua non que garantia uma utilização adequada no combate
corpo a corpo. Como atrás referimos, o provocator não brandia um gládio igual ao dos

682 Os provocatores foram, possivelmente, os gladiadores que empregavam mais o escudo na sua função
ofensiva, devido às suas dimensões mais reduzidas do que as do grande scutum, o que explica, aliás, a
dotação de um plastron rígido para a protecção contra os golpes cortantes causados pelo escudo. Esta
técnica, adoptada principalmente pelos scutati, como se evidencia nos relevos de secutores do Museo alle
Terme di Diocleziano, aparece também nas imagens figurando combates de provocatores: consistia num
método para preparar um golpe e vibrar uma pancada na cabeça ou no torso do adversário, e não em
mantê-lo simplesmente à distância, já que seria fácil para o seu oponente realizar uma percussão, por sua
vez, sobre o escudo adverso que estava na horizontal, e ferir o gladiador mediante um violento recuo da
borda do escudo contra a sua cabeça e, sobretudo, o pescoço, menos bem protegido. Consequentemente,
não era uma técnica fácil de efectuar, dado que consumia muita energia, obrigando o combatente a manter
o seu escudo à custa de um grande esforço muscular do braço. Veja-se L. Ventura, «Cuestión de método.
Arqueología experimental y gladiatura…», p. 24.

270
legionários romanos (com 60-65 cm), uma vez que se revelaria ineficaz devido ao
estorvo que causava.

A posição-base adoptada pelos provocatores caracterizava-se, como acima dissemos,


pela perna esquerda avançada: esta suportava cerca de ¾ do peso do combatente, ao
passo que a anca, situada mais atrás, só vinha alinhar-se nos movimentos de ataque e
de defesa. Os apoios afirmavam-se bastante estáveis, devendo possibilitar aguentar os
potentes golpes desferidos com a parte cortante inferior do escudo pelo seu oponente.
Dito isto, pode-se considerar a técnica do provocator como uma verdadeira forma de
«esgrima de escudo», exercendo este não só a função defensiva, mas também para
ripostar com arremetidas em todas as direcções: assim, nos duelos de provocatores, os
escudos assumiam vivo protagonismo, havendo momentos em que os mesmos
passavam, rasantes, por cima da cabeça dos gladiadores, abaixando-se estes para não
serem atingidos. Isto explica, indubitavelmente, a ausência de crista no elmo do
provocator (se bem que exista uma excepção).

Contrariamente ao que vários estudiosos da gladiatura preconizaram, que viram nos


combates de provocatores oposições quase inofensivas e «desportivas», temos razões
para supor que os seus duelos eram simultaneamente espectaculares e perigosos, todos
os golpes consistindo em cutiladas, não sendo possível desferir estocadas por causa da
lâmina da espada, desprovida de ponta 683, apenas dispondo de dois gumes cortantes, o
que exigiria um treino específico distinto do das outras armaturae. Neste sentido, as
pugnas entre provocatores eram menos técnicas embora mais violentas 684. Quanto à
adaga, desempenhava o seu papel apenas nas fases do corpo a corpo e na finalização
do confronto.

Na reconstituição do modo de combater dos provocatores, L. Luca, membro do Istituto


Ars Dimicandi (dedicado à arqueologia experimental), entendeu a esgrima praticada
pelos gladiadores desta armatura da seguinte maneira: os provocatores empunhavam
adagas curtos e o amplo cobre-nuca dos seus elmos, que protegia o pescoço, denotam
uma porfia travada a uma distância muito próxima, servindo o escudo, de dimensões
medianas, como arma ofensiva de percussão, «ao jeito de uma guilhotina»; «A parte da
arma curta, é sobretudo o escudo que caracteriza o género de esgrima praticado pelo
provocator, uma esgrima rápida, ágil e assaz violenta» 685. A possibilidade de assestar
uma estocada com o pugio teria provocado a modificação do resto do armamento como
meio de adaptação: o elmo com a superfície lisa, para impedir que o golpe produzido
pelo escudo resultasse numa ameaça definitiva para a cabeça, ao passo que o cobre-
nuca permitia uma esgrima efectuada muito de perto; a spongia, por seu lado, servia
como elemento defensivo contra os golpes vibrados de alto para baixo, que podiam
resvalar e desviar-se em direcção ao peito. Subescrevemos a maioria dos aspectos
focados por L. Luca, salvo um, o relacionado com a utilização de adagas com lâmina
pequena e as estocadas, que não nos parece muito plausível. Se os provocatores lutassem
com armas deste tamanho, os seus duelos seriam, em princípio, marcados por ataques
esporádicos, quando surgia uma oportunidade de atingir o adversário, e cremos que o
espectáculo que se ofereceria ao público seria algo monótono. Neste sentido, como
atrás dissemos, os combates entre provocatores constituiriam exibições bem mais

683 Ou seja, uma ponta seccionada.

684 F. Gilbert, Devenir gladiateur…, p. 100.

685 D. Luca, «Cuestíon de método. Arqueología experimental y gladiatura», Desperta Ferro/Arqueología &
Historia, 14 (agosto-septiembre 2017), p. 24.

271
atractivas, se eles manuseassem espadas, concebidas para desferir cutiladas e não
golpes penetrantes de ponta.

Por último, se bem que os provocatores lutassem usualmente entre si, há referências, no
Oriente grego, a provocatores enfrentando murmillones: na epigrafia, a pugna entre estas
duas categorias de gladiadores somente se encontra em duas ocasiões – em
Plotinopolis686 e em Pérgamo687. A nível iconográfico, as imagens documentadas são
reduzidas e ambíguas688. No entanto, não há muito, encontrou-se um baixo-relevo
acompanhado de uma inscrição que nos mostra nitidamente o confronto entre um
provocator e um murmillo. Em 2000, a Christie’s apresentou para venda num catálogo 689
um relevo gladiatório provido de uma legenda em caracteres gregos. O valor apontado
pela leiloeira oscilava entre 40 000-60 000 dólares, mas o preço final atingiu os 94 000,
sendo a peça adquirida pelo renomado egiptólogo William Kelly Simpson; este, depois
de mandar restaurar a composição, doou-a à Yale University Art Gallery em 2009, onde a
mesma permanece exposta até hoje com o número de inventário 2009.193.3. Consiste
numa placa de mármore branco (122, 6 x 80,4 x 6,2 cm) em bom estado de conservação,
salvo uma ligeira deterioração do seu perímetro e uma mutilação no ângulo inferior
direito (Fig. ). O baixo-relevo, enquadrado por uma sóbria moldura, que comporta três
registos, descreve quatro etapas de uma mesma porfia entre duas categorias
gladiatórias que raramente se opuseram – um provocator e um murmillo. Por cima da
representação escultórica, encontra-se uma inscrição em grego denotando cuidada
factura:

Νυμθέρως άπό Καππαδοκίας Πα(λου) Α΄Παρθενοπαος από Καππαδοκίας Πά(λου) Α 690

Quanto à procedência da placa, atendendo à inscrição e ao estilo figurativo, a sua


origem situa-se provavelmente no Mediterrâneo Oriental. Recentemente, Pablo Molina
Ortiz 691 localizou no Kunsthistorisches Museum de Viena de Áustria um fragmento 692
cujas dimensões e características plásticas se encaixam bem no que faltava à peça

686 L. Robert, Les gladiateurs dans l’Orient grec…, p. 92ss, nº 30.

687 Idem, «Monuments de gladiateurs dans l’Orient grec», Hellenica, 8 (1950), n. 335.

688 Até ao momento, só existem dois exemplos: M. Junkelmann, Gladiatoren…, p. 116, fig. 172; A. Hönle e
A. Henze, Römische Amphitheater und Stadien, Zurique, Atlantis, 1981, p. 74, fig. 42 a. (neste caso sem
especificação das armaturae, embora a panóplia de cada um dos contendores sirva para os identificar como
um murmillo – à direita- e um provocator – à esquerda).

689 Christie’s Antiquities, Sale 9540 – Lot 637 (7 December 2000 – Rockefeller Plaza, New York), p. 175. Na
descrição sumária da peça que consta do catálogo, afirma-se, erradamente, que no relevo se figuram
combates entre «Samnites and Hoplomachi».

690O termo παλος/palos, derivando do latim palus, secundado de um adjectivo numeral classificava
hierarquicamente os gladiadores nas fontes epigráficas do Oriente grego (L. Robert, Les gladiateurs, p. 28ss;
G. Staab, «Zu den neuen Gladiatoren-monumenten aus Stratonikeia in Karien», ZPE 161, 2007, pp. 37-38).
No âmbito latino, o adjectivo numeral precedia o vocábulo palus (G. Ville, La gladiature…, p. 324; G. L.
Gregori, «Gladiatori e spettacoli anfiteatrali nell’epigrafia cisalpina», AAVV., Spettacolo in Aquileia e nella
Cisalpina romana, Udine, Edizioni AGF, 1994, pp. 60-61.

691 «Un nuevo emparejamiento gladiatorio procedente de Éfeso», Espacio, Tiempo y Forma, serie II, 27
(2014), p. 105.

692 Kunsthistorisches Museum Wien, nº de inv. I-935. M. Junkelmann, Gladiatoren…, p. 82, abb. 116 = K.
Grossschmidt e F. Kanz, Gladiatoren in Ephesos, Tod am Nachmittag, Viena, Ephesus Museum Selçuk, 2002,
p. 104, abb. 2. O fragmento foi achado, juntamente com outros materiais de temática afim, entre 1896 e
1906, nas proximidades do teatro de Éfeso, por uma equipa de arqueólogos austríacos.

272
leiloada pela Christie’s (Fig. ): consiste num suporte igualmente em mármore branco (31
x 37 x 5 x 7,5 cm), danificado nas suas extremidades superior e lateral esquerda e que
exibe, em relevo, a figura de um provocator vencido, facto indicado pela sua posição,
pela mão esquerda desprovida de escudo (que se encontra deposto ao seu lado) e pela
cabeça inclinada; o braço direito do combatente perdeu-se, mas o que restou da sua
arma esculpida sugere que se encontraria também no solo.

O referido historiador espanhol propôs uma reconstituição do conjunto (Fig. )693, a


qual não só permite verificar que a placa conservada na Yale University Art Gallery
proveio de Éfeso, como também ajuda no estabelecimento da datação – entre finais do
século II e princípios do III d. C. Sob uma perspectiva iconográfica, resulta plausível
que as cenas estejam ordenadas de acordo com uma concepção similar à actual, o que
permite identificar o provocator como tendo o nome de Nympheros (Νυμθέως)694 e o
murmillo chamando-se Parthenopaios (Πάρθενοπαίος)695. Esta hipótese vê-se reforçada
pelo facto de Nympheros ser um apodo especialmente frequente entre gladiadores, em
especial nos provocatores.

Na composição relevada, incluindo três registos com cenas do combate, observamos na


superfície do elmo do murmillo uma folha de palma, uma das recompensas simbólicas que,
juntamente com a corona, se concedia ao vencedor de uma pugna. Neste caso, a presença
deste elemento talvez fosse uma maneira de fazer notar ao observador qual dos dois
gladiadores saiu vitorioso, uma vez que está ausente a theta nigrum. Mas esta sugestão
resume-se somente a uma hipótese, não havendo paralelos que a confirmem, e também
porque as coronae, as palmae ou, alternativamente, a theta nigrum, costumavam apôr-se ao
pé dos nomes ou figuras dos combatentes, não se vendo inseridas em elementos das suas
693 P. Molina Ortiz, «Un nuevo emparejamiento gladiatorio…», p. 105, Fig. 3.

694Etimologicamente, Nympheros reporta-se ao carácter «amador» do seu portador (L. Robert, Les
gladiateurs…, p. 301). Os testemunhos documentais são poucos e atribuíveis exclusivamente aos séculos II
e III: Aphrodisias (C. Roueché, «Aphrodisias in Late Antiquity: the late Roman and Byzantine inscriptions»,
JRS Monograph 5, 1989, n. 218), Kyzikos (M. Barth e J. Stauber, Inschriften Mysia und Troas, Munique,
Leopolod Wenger-Institut, 1993, n. 1874), Tanaris (CIRB, n. 1287) e um outro cuja procedência é
desconhecida (IG II2, n. 2245, 209). A estas quatro inscrições cabe ainda acrescentar mais cinco,
directamente conectadas a provocatores: Cós (SEG 54: 791,4 = L. Robert, op. cit., n. 191 a), Beróia (SEG 36: 599
= L. Gournaropoulou e M. B. Hatzopoulos, Epigraphes Kato Makedonias. Teuchos A, Epigraphes Veroias, Paris,
De Boccard, 1998, n. 375) e duas de origem incerta (L.Robert, op. cit., n. 300 e 302; o quinto e derradeiro
testemunho preservado não só associa Numuteros a um provocator, como também corresponde a um dos
únicos exemplos conhecidos do combate entre as duas armaturae aqui em foco (fonte descoberta em
Pérgamo). Mais atestada é a forma latina Nympherotis: Edeta (J. Corell e X. Gómez, «Inscripciones inéditas
del país valenciano», FE 48, Supl. de Conimbriga, 1995, n. 218 = ae, 1995, 963), Sibrium (CIL V 5607), Roma
(CIL VI 18082; 18339; 20688 e 27891), Herculano (CIL X 01403 g III, 24 = AE 2004, 414), Surrentum (M. M.
Magalhaes, Storia, istituzioni e propografia di Surrentum romana. La collezione epigrafia del Museo Correale di
Terranova, Nápoles, Castellamare di Stabia, Nicola Longobardi Editore, 2003, n. 31) e Pompeia (CIL IV
3340, 81 e 1093, p. 202); encontramos este nome igualmente noutros pontos da Europa, como em Aquae (AE
1899, 192) e Aquae Sextiae (J. Gascou, Inscriptions Latines de Narbonnaise 3: Aix-en-Provence, Paris, CNRS,
1995, n. 127).

695 Parthenopaios é um pseudónimo de origem heróico-mitológica (L. Robert, Les gladiateurs…, pp. 298-
299) tradicionalmente associado à tragédia de Ésquilo, Os Sete contra Tebas. A sua forma helénica parece ter
conhecido um uso limitado e disperso ao longo da segunda metade do século II e em príncipios do III d.
C.: atesta-se em Icikler (SEG 29, 1196), Kyzikos (L. Robert, op. cit., n. 294 = IK 18, 400), Kabirion (IG VII, 2460),
Roma (IGUR I, 147), Anazarbos (IK 56, 613), Mileto (D. F. McCabe, Miletos Inscriptions. Texts and List,
Princeton, Institute for Advanced Study, 1984, n. 103) e em Histria (D. M. Pippidi e I. Stoian, Inscriptiones
Scythiae Minoris graecae et latinae vol. I: Inscriptiones Histriae et vicinia, Bucareste, Editura Academiei
Republici Socialiste Romanie, 1983, n. 197). Em contrapartida, a variante latina Parthenopaeus foi mais
popular, empregando-se sobretudo nas zonas centro-ocidentais do Império. Exemplos: Roma (CIL VI
26292; 27784; 28072), Óstia (CIL XIV 314; 4807; AE 1991, 370 a); Lugdunum (CIL XIII 1814) e Italica (CIL II,
1108).

273
panóplias. O certo é que os relevos mostram inequivocamente que o provocator foi derrotado.
No tocante aos equipamentos, tanto o murmillo como o provocator estão providos de
manicae, ocreae e peças acolchoadas de linho a protegerem as suas pernas; as armas ofensivas
que um e outro utilizam aparentam ser, pela pequenez das lâminas, adagas em vez de gládios.
Posto isto, esta fonte iconográfica atesta a realização de duelos entre provocatores e
murmillones, que, apesar de relativamente incomuns, não deveriam ser tão raros como até há
pouco se supôs.

O par retiarius-secutor: a pugna mais espectacular da gladiatura técnica a partir de


finais do século I d. C.
O retiarius: uma vulnerabilidade enganadora

O retiarius696, combatente armado com tridente, rede e adaga, é, indiscutivelmente, o


gladiador mais conhecido e o que se identifica com mais facilidade. O retiarius não constituiu
fruto da gladiatura «étnica» mas significou antes o tipo de gladiador técnico por excelência,
logo reconhecível pela sua forma de se bater. Como anteriormente se disse, o retiarius
apareceu no tempo de Augusto, numa altura em que se registou uma transformação nas
armaturae antigas. Esta datação, sugerida por uma peça de cerâmica decorada do oleiro
Chrysippus, que terá operado numa oficina em Lugdunum (Lyon), parece relativamente fiável.
O «protótipo» de retiarius que se assinala através do buril de Chrysippus apresenta-se ainda
pesadamente equipado: trata-se apenas de um esboço do futuro gladiador, assaz ligeiro e
móvel que ganharia notoriedade a partir do século I d. C. Em todo o caso, o retiarius surgiu
decerto após a morte de Cícero. De facto, este autor, que se revela uma fonte tão indispensável
para a compreensão dos gladiadores do final da República, jamais menciona o retiarius. Ora
Cícero não perderia a oportunidade de fazer referência a um tipo de combatente tão singular
como o retiarius se o tivesse contemplado a lutar na arena.

Contrariamente ao murmillo ou ao provocator, a identificação e a justificação do nome deste


gladiador nunca sucitou problemas, já que o termo retiarius provém de rete, a rede. No
entanto, este laço entre o retiarius e a sua arma emblemática nem sempre é visível no corpus
iconográfico: num repertório de 262 retiarii representados, isolados ou combatendo com um
adversário, apenas 10% de entre eles aparecem exibindo a sua rede 697. Na figuração do
retiarius, insistiu-se mais na representação do tridente, que está quase sempre presente.

Não há dúvida que estamos perante um gladiador muito invulgar, o único a lutar na arena sem
elmo e sem grevas metálicas (ocreae). Para compensar a ausência das últimas, ele utilizava
frequentemente faixas de couro a cobrir-lhe a barriga das pernas ou os joelhos (fasciae).
Embora, tal como os restantes gladiadores, o retiarius possuisse a manica como protecção,

696Sobre esta armatura: M. Junkelmann, Gladiatoren…, pp. 124-127; S. Shadrake, The World of the Gladiator…, pp.
173- 182; É. Teyssier e B. Lopez, Gladiateurs…, pp. 54-60; E. Teyssier, La mort en face…, pp. 126-138; K. Nossov,
Gladiator…, pp. 62-66. Para um estudo particularmente elucidativo sobre várias perspectivas - antigas e modernas -
do retiarius, veja-se M. J. Carter, «(Un)Dressed to Kill: Views of the Retiarius», in J. Edmondson e A. Keith (eds.),
Roman dress and the Fabric of Roman Society, Toronto, 2003, pp. 113-135.

697Para E. Teyssier, estas representações de retiarii desprovidos de rede não significam necessariamente que esta
tenha sido abandonada sob o Alto-Império, acrescentando o autor que a rete aparece tanto nas primeiras imagens
do retiarius como nos testemunhos mais tardios do século III (La mort en face…, nota 92, p. 494. No entanto, como
adiante pormenorizaremos, outro estudioso, Alfonso Mañas Bastida, defendeu que a rede acabou mesmo por
desaparecer.

274
envergava-a, todavia, sobre o braço esquerdo. De facto, o retiarius era igualmente o único
combatente sem escudo, mas o seu equipamento estava adaptado a essa particularidade. À
semelhança dos outros gladiadores, o retiarius apresentava em regra o ombro esquerdo ao
adversário. Ora, para não deixar este flanco desguarnecido, era neste braço que ele tinha
logicamente o galerus698. Além disso, ele deveria manejar simultaneamente o tridente (fuscina,
fascina ou, mais raramente, tridens), a rede e a adaga, pelo que teria todo o interesse em
dispor de total liberdade de movimentos com o braço direito. O galerus, que literalmente
significa «coifa/boné de couro», era provavelmente constituído na sua origem por uma peça de
couro que protegia o rosto, ao servir de prolongamento da manica. Aqui, de novo, este
elemento buscava fornecer uma defesa que compensasse a falta de protecções para a cabeça e
a cara. Quando chegava o momento do corpo a corpo, o retiarius podia precaver-se dos golpes
assestados em direcção ao rosto pelo seu oponente graças a tal peça metálica.

Assim, este gladiador caracterizava-se por um armamento original e diversificado (ao todo, o
equipamento pesaria cerca de 7-8 kg, incluindo a rede, também chamada iaculum, com 2-3 kg
699
) – a adaga, a rede e o tridente; os dois últimos instrumentos eram armas de carácter
excepcional, não estando ligadas a qualquer género de equipamento militar fosse de que povo
fosse. Estes elementos «originais» causam uma certa perplexidade. O tridente e a rede
representavam os seus atributos típicos; o retiarius estava, em termos simbólicos,
manifestamente associado com o mundo aquático. Confirma-se, aliás, tal facto pela presença
de um caranguejo, de uma âncora e de um leme esculpidos na superfície metálica de um
galerus descoberto em Pompeia (fig. Jacobel.) 700. Esta vertente marítima ainda mais se
acentuou, nessa mesma protecção, pela figuração de um golfinho enroscado em torno de um
tridente, pormenor que também se descortina num baixo-relevo do Coliseu. Para além destes
comentários genéricos, é muito difícil discorrer mais acerca do significado «simbólico» deste
combatente.

Hoje em dia, não obstante a data da sua aparição nos munera estar relativamente bem
estabelecida, o facto é que o retiarius demorou bastante tempo a impor-se como gladiador por
inteiro. Com efeito, embora a sua documentação iconográfica seja assaz rica, as representações
do retiarius só começaram a tornar-se frequentes a partir do século II d. C., ou seja, num
momento histórico em em que este tipo de combatente já pugnava na arena há mais de cem
anos. Na literatura colhemos escassos informes sobre os primeiros retiarii: o mais antigo
testemunho textual consiste numa passagem da autoria de Valério Máximo:

«Houve, porém, ainda menos tempo de intervalo entre o sonho que o cavaleiro Haterius Rufus tivera e
o evento que primeiro pressagiava com clareza. Como estavam a decorrer jogos gladiatórios em
Siracusa, ele viu-se, no seu sonho, trespassado por um golpe desferido por um retiarius e, no dia
seguinte, ele contou este sonho aos espectadores sentados ao seu lado. Eis, então, que pouco depois,

698Esta lógica surgiu apenas com os encenadores de vários filmes, que mostram frequentemente os gladiadores
com um braço esquerdo duplamente protegido pelo escudo e pela manica, ao passo que o braço direito fica sem
qualquer protecção: é o que se observa, por exemplo, no equipamento de Russell Crowe na película Gladiator
(2000).

699A rede tinha forma arredondada e malhas, com um diâmetro de aproximadamente três metros. Na sua borda,
em intervalos regulares, tinha pesos de chumbo.

700 Foi descoberta no interior da caserna gladiatória de Pompeia em 10 de Janeiro de 1767 (local onde, aliás, se
acharam outros dois espécimes; o galerus conserva-se no Museo Archeologico Nazionale de Nápoles, nº. inv. 5639:
R. Garruci, «Dell’arma gladiatoria detta ‘Galerus’», Bull. Arch. Nap., n.s. 1 (1953), n. 13, pp. 101-104, e n. 15, p. 113;
L. Jacobelli, Gladiators at Pompeii, fig. 10, p. 14. Os três galeri achados em Pompeia medem 30-35 cm de
comprimento e têm basicamente a mesma largura no ponto mais amplo. O peso de cada um varia entre 1,1-1,2 kg.
Esta protecção consistia numa peça feita em chapa de bronze, que cobria a zona da parte de cima do braço e do
ombro do lado esquerdo, estando presa ao cimo da manica. O galerus, virado para fora, elevava-se cerca de 12-13
cm acima do ombro do retiarius: M. Junkelmann, «Familia gladiatoria: The Heroes of the Amphitheatre», p. 59.

275
perto do cavaleiro, um retiarius entrou na arena com um murmillo. Ao observar o rosto do primeiro,
Rufus disse que era aquele retiarius que o havia assassinado no sonho e logo quis ir embora. Mas os seus
vizinhos na assistência, ao dissiparem o seu medo com as suas conversas, vieram a causar a perda deste
infortunado: pois que, a dado momento, o retiarius empurrou o murmillo para esse local e derrubou-o;
ao pretender atingi-lo após o adversário cair no solo, ele deu uma estocada com a sua adaga em
Haterius, matando-o» (Factorum et Dictorum Memorabilium, 1.8).

Valério Máximo redigiu esta colectânea de episódios e anedotas durante o reinado de Tibério;
consequentemente, é razoável situar, a minima, a aparição do retiarius no tempo de Augusto, o
que corrobora uma datação em finais do século I a. C. Esta breve história parece ter-se
desenrolado num forum; se a situação ocorresse num anfiteatro, Haterius teria ficado
protegido pelo muro do podium e não seria morto por um golpe assestado acidentalmente
pelo retiarius. No trecho acima citado, a palavra arena deve entender-se ao pé da letra, como
uma «pista coberta de areia», que não estava forçosamente ligada a um anfiteatro, já que
podia montar-se sob as lajes do forum. O adversário do retiarius é identificado como se
tratando de um murmillo, o que não admira, dado que o secutor surgiu mais tarde, enquanto
gladiador «especialista» na luta contra o retiarius.

Neste momento histórico, atesta-se a oposição retiarius-murmillo numa inscrição inventariada


por L. Robert, gravada na arquitrave de um edifício público da ágora de Aegae/Aigai (Aiolide)
701
: esta fonte, do tempo de Tibério, comemora um munus e discrimina os tipos de gladiadores
que nele combateram; há referência a um retiarius chamado Ocus que defrontou um murmillo,
Beitus. Esta inscrição reveste-se de grande importância, uma vez que é dos raros documentos
seguramente datados que ilustra o duelo entre o retiarius e o murmillo. Serve, igualmente,
para confirmar que o secutor só terá surgido como oponente do retiarius após o reinado de
Tibério.

Se, por um lado, a passagem de Valério Máximo é importante para balizarmos os primeiros
retiarii e os primeiros adversários que tiveram, em termos cronológicos, por outro, os autores
antigos não oferecem indicações precisas sobre a origem concreta do gladiador da rede, o que
não deixa de ser curioso, já que o retiarius corresponde, inegavelmente, ao mais original dos
combatentes da arena, possuindo um equipamento que não encontra qualquer paralelo na
esfera militar. No entanto, apesar de se perfilar enigmática a sua origem, há alguns
documentos literários de antanho que talvez nos permitam aventar certas hipóteses.

Uma coisa é garantida: o retiarius estava relacionado com o mar. Arnóbio comparou o deus
Neptuno, que tinha como atributo precisamente o tridente, a um retiarius (Adv. Nat. 6.12.2)
702
. Isidoro de Sevilha, por seu lado, ao aludir a elementos religiosos e simbólicos nas panóplias
do retiarius e do secutor, afirma, a respeito do primeiro: «Quae armatura pugnabat Neptuno
tridentis causa» (Origines, 18.55) 703. Além disso, um retiarius, pelo menos, era chamado
Aequoreus, um epíteto de Neptuno.

Além disso, dispomos de um fragmento textual de Festo (De Verb. Sign., 285 M) e outro de
Polieno (Polyaenus, Estratagemas, 1.25), ambos datando do século II a. C., nos quais se afirma
que a origem do retiarius se encontraria numa pugna singular que serviu para pôr fim a uma
disputa, ocorrida no século VIII a. C., o que, actualmente, vários pesquisadores consideram
tratar-se apenas de uma mera invenção.

701 Les gladiateurs…., nº 257.

702 R. Dunkle, Gladiators…, p. 105.

703 Quanto ao secutor, o enciclopedista antigo associou-o a Vulcano: Haec armatura sacrata erat Vulcano.

276
Festo (De Verb. Sign., 285 M) escreveu o seguinte:

«Quod genus pugnae institutum est, a Pittaco sapientibus, qui adversus Phrynonem dimicaturus
propter controversias tinium, quae erant inter Atticos et Mytilenaeos, rete oculte lato impedivit
Phrynonem».

A mesma história nos conta Polieno (Estr. 1.25):

«Pítaco e Frínon concordaram em resolver a disputa pela posse de Sigeia [Sigeium] através de um
combate singular. Aparentemente, os dois avançaram para a pugna com armas iguais; mas Pítaco
ocultara secretamente uma rede sob o seu escudo; lançou-a sobre Frínon e, então arrastou facilmente o
seu oponente, matando-o. Mais tarde, ele referiu, em jeito de gracejo, que havia conseguido capturar
Sigeia para os habitantes de Lesbos apenas com uma rede de linho. Este estratagema de Pítaco conduziu
à utilização de redes nos duelos gladiatórios».

Em 7 a. C., Estrabão (Geogr. 13.1.38)704 também relatou este episódio, bem como Diógenes de
Laércio (Vidas de Eminentes Filósofos, 1.74), ao evocarem a história e a geografia da Trôade.
Observemos o que disse Estrabão:

«É garantido, por exemplo, que foi de Ilión que Arqueanax de Mitilene retirou todas as pedras de que
necessitava para fortificar Sigeia, o que não impediu, todavia, que Sigeia tenha tombado mais tarde, sob
o poder de um exército ateniense, comandado por Frinon, o mesmo que ganhou os prémios [no
pancrácio] nos Jogos Olímpicos. Foi a época em que os Lesbianos reivindicaram a posse sobre quase
toda a Trôade, de que a maior parte das suas cidades, florescentes ou em ruínas, se confirma serem
efectivamente colónias lesbianas. Pítaco de Mitilene, um dos sete sábios, veio com toda a frota
combater Frinon, o general ateniense 705 e contra este guerreou algum tempo, alternando-se êxitos e
reveses. Para pôr fim a este estado de coisas, Frinon desafiou Pítaco para um combate singular, e aquele,
vindo ao seu encontro com o vestuário e os apetrechos de um pescador, enlaçou-o na sua rede,
perfurou-o com o seu tridente e despachou-o com uma punhalada» (Geog. 13.1.38).

Para E. Teyssier706, embora esta passagem não se inscreva num contexto gladiatório, a
presença, nas mãos de Frinon, da rede, do tridente e do punhal compele a que se faça uma
aproximação inevitável com o retiarius. Segundo o autor francês, o vínculo com o gladiador da
rede vê-se reforçado por dois detalhes: primeiro, Estrabão afirma que Frinon era praticante do
pancrácio; este desporto de combate, estranha mescla de luta e pugilismo, não tinha outra
regra afora a de obrigar o vencido a abandonar o confronto, especificidades que os
pancraciastas partilhavam com os gladiadores; segundo pormenor, a data deste escrito - autor
contemporâneo de Augusto, Estrabão redigiu a sua Geographia no período em que o retiarius
surgiu na decoração dos vasos de Chrysippus. Assim, talvez possa haver uma relação entre esta
história e a «invenção» do retiarius; consequentemente, não seria inverosímil imaginar que um
editor, ao conhecer tal narração, tivesse decidido recriar esse combate invulgar.

O carácter inovador deste equipamento surpreendeu indiscutivelmente os gladiadores


tradicionais.Teyssier707, opinou que, numa das primeiras tentativas, o combatente escolhido
para incarnar Frínon talvez aparecesse inicialmente com armamento pesado, à semelhança do
que se observa num dos vasos de Chrysippus. Lutar sem escudo contra um adversário que o
tinha seria algo perigoso para os combatentes ao tempo. É de acreditar que a própria

704 Obra que conheceu uma segunda edição em 23 d. C.

705 Frínon venceu a competição de pancrácio durante a XXXVIª Olimpíada.

706 La mort en face…, p. 129.

707Ibidem, p. 129. M. Junkelmann (Gladiatoren…, p. 125) alude igualmente a esta história, mas mantém uma
postura mais eclética quanto à génese do retiarius.

277
originalidade do retiarius deve ter fascinado o público. Ademais, neste período, o pretexto
pseudo-histórico ainda estava plenamente vigente. Embora as armaturae técnicas viessem,
gradualmente, a tomar o lugar dos gladiadores tradicionais, o retiarius augustano ainda era
coetâneo dos últimos galli e samnitis. Acresce que a sua aparição ocorreu alguns anos depois
dos essedarii, que evocavam os guerreiros bretões do tempo de Júlio César.

Teyssier sustentou, pois, que a história de Pítaco, mais especificamente a versão de Estrabão,
serviu de fonte inspiradora para a invenção do retiarius; contudo, na opinião de Alfonso Mañas
Bastida708, é tese que carece de fundamentos sólidos, porque a primeira edição da Geografia
de Estrabão teve lugar em 7 a. C., possivelmente mais de uma dezena de anos após a criação
efectiva do retiarius. Contrariamente ao que muitos advogaram, a invenção do retiarius pode
ter bebido inspiração num episódio bélico ocorrido no século IV a. C., o cerco de Tiro pelas
forças de Alexandre Magno, em 332 a. C. Com base em fontes antigas, nomeadamente a
Biblioteca histórica de Diodoro Sículo, os defensores de Tiro serviram-se de redes e tridentes
para repelir os sitiantes macedónios. Porém, Marcus Junkelmann e François Gilbert, que
propuseram esta alternativa, acrescentaram, cada qual à sua maneira, que o assédio de Tiro
guarda, quiçá, mais relação com a invenção da modalidade dos pontarii do que propriamente
com a do retiarius, armatura que, para ambos os estudiosos, teria sido criada antes dos
combates de pontarii (só que não especificam em quantos anos a invenção do retiarius
predatou a dos pontarii)709. Na realidade, ao abordar a origem do retiarius, Junkelmann
apresenta a versão de Festo da história de Pítaco e Frínon, até antes de aludir ao sítio de Tiro.

Contudo, segundo Mañas Bastida, é perfeitamente viável formular outra teoria: o assédio a
Tiro pode não ter constituído uma fonte inspiradora que exercesse influência indirecta ou
parcial na criação do retiarius, e que a mesma não seria anterior à dos pontarii, visto que há
indícios que levam a supor que tanto os pontarii como o retiarius foram criados na mesma
altura, o último significando uma consequência dos primeiros. Se tomarmos em consideração
as fontes antigas, a primeira atestação conhecida de um combate de pontarii (onde o retiarius
tomava sempre parte) remonta a cerca de 20 a. C. – uma inscrição de Pompeia, CIL X.1074 d.
Neste sentido, o documento epigráfico é, igualmente, o primeiro testemunho, apesar de
indirecto, da existência do retiarius710.

Imaginemosque um editor, depois de congeminar um novo género de espectáculo que ainda


cativasse mais o público e estivesse conforme ao gosto coetâneo (exibições aquáticas, que
estiveram em voga e se afirmavam como politicamente correctas depois das batalhas de
Naulochus, em 36 a. C., e Actium, em 31 a. C., nas quais saiu vencedor Augusto, o governante
de então), decidiu oferecer uma recriação do famoso cerco da cidade marítima de Tiro,
episódio bem conhecido dos Romanos ao tempo, uma vez que aparece incluído por Diodoro
Sículo na sua Biblioteca Histórica, publicada entre 36 e 30 a.C. O papel representando os

708Cf. «Was the Pontarii Fighting the Origin of the Gladiator-Type Retiarius?[...]», p. 2.

709M. Junkelmann, Gladiatoren…, p. 125: «[…]der Belagerung von Tyros […] Die Variante der pontarii, bei der
retiarius ein Schafott gegen zwei secutores zu verteidigen hatte […] könnte eine Reminiszenz dieser Vörgange
darstellen» - «o cerco de Tiro […]. A variante dos pontarii, em que o retiarius tinha de defender um andaime contra
dois secutores […] pode ser uma reminiscência de tais operações [bélicas]». De modo análogo, ainda que numa
linguagem menos clara, F. Gilbert (Gladiateurs, chasseurs et condamnés à mort…, pp. 140-141) escreveu: «Difficile
de dire pourquoi les “choréografes” romains ont choisi des retiarii et des secutores pour cette exhbition três
particulière. Rappelons à ce propôs l’une des hypothèses avancées sur la création du rétiaire, a savoir commemorer
le siège de Tyr par les troupes d’Alexandre le Grand, et dont les assiègés sElese seraient défendus avec des tridentes
et des filets. Il est vrai que l’exércise du pons suggère fortemente la defense d’une place forte. Il est à noter dans ce
cas que le rétiaire est dépourvu de filet…». Como se infere, Gilbert não explicita nitidamente o seu raciocínio,
mesclando a origem do retiarius com a dos combates de pontarii.

710[ «Was the Pontarii Fighting the Origin of the Gladiator-Type Retiarius? [...]», p. 2.

278
defensores de Tiro caberia ao gladiador munido de rede e tridente, nascendo desta maneira o
retiarius. A recriação deste cerco inscrever-se-ia perfeitamente na moda dos espectáculos
aquáticos, no decurso das décadas de 30 e 20 a. C., porque Tiro, cingida por altas muralhas, se
situava numa ilha, a cerca de 800 m da costa, e também porque os sitiadores se viram
obrigados a construir um grande molhe ou paredão para conectar a orla costeira, onde o
exército macedónio tinha o seu arraial, e a praça-forte.

Eis dois excertos da obra de Diodoro:

«[…] eles [os Tirenses] depositavam confiança na força da sua ilha […] O rei viu que a cidade
dificilmente seria conquistada a partir do mar, por causa dos engenhos montados ao longo do topo das
suas muralhas e também devido à frota que possuía, ao passo que por terá eraquase inexpugnável, ao
situar-se a [800 m] de distância da costa» (Bibl. Hist. 17.40.3-4);

«Eles produziram grandes tridentes dotados de rebarbas e com estes atacaram, a curta distância, os
assaltantes que estavam nas torres [de assédio]. Eles [os tridentes] batiam nos escudos, e como se
ataram cordas aos tridentes, podiam a seguir recuperá-los. As suas vítimas achavam-se perante a
alternativa de largarem as armas e ficarem os seus corpos expostos, sendo feridos pelos projectéis que
choviam sobre os mesmos, ou então agarrarem-se aos seus escudos, por vergonha, perecendo ao caírem
das altas torres» (Ibidem, 17.43.8-9).

A interpretação preconizada por A. Mañas Bastida, segundo a qual o combate dos pontarii
implicou a primeira aparição do retiarius em público, parece adequar-se ao facto de a primeira
representação plástica desta armatura ainda em gestação, o mencionado gobelet de Lyon
(onde o novo tipo de gladiador luta contra um adversário protegido por um grande escudo),
remontar a cerca de 20-15 a. C., ou seja, uma data similar à pugna de pontarii que ocorreu em
Pompeia ou, então, algo mais tarde 711. A cena gravada na peça de cerâmica não descreve o
cenário onde o par de gladiadores estão a porfiar, daí que se torne assaz difícil apurar se o
confronto se desenrola num pons. Porém, como adiante se verá numa das subsequentes
alíneas, destaca-se um pormenor que leva a crer que a imagem se reporta igualmente a uma
luta de pontarii.

Em jeito de balanço, consideramos quenada nos impede de congraçar a história lendária do


duelo entre Pítaco e Frínon e o episódio do cerco de Tiro, formando estes a base literária que
veio a propiciar a emergência do retiarius. Na falta de mais testemunhos concretos, é de
aceitar a influência de ambas as narrativas, uma por se tratar de um combate singular, e a
outra por envolver uma luta colectiva de gladiadores

***

O caso específico do surgimento do retiarius levanta uma importante questão de ordem geral:
quem é que decidiria a «forma» das pugnas e as inovações que nestas se introduziam? Num
«desporto» tão codificado, a mudança de regras não podia ser fruto do acaso ou do capricho
do seu autor. Mesmo não subsistindo texto algum que nos esclareça sobre este aspecto, é
muito provável que as alterações consistissem em tacteamentos e iniciativas levadas a cabo no
seio das próprias escolas gladiatórias. De facto, estas tinham de responder a uma procura que
se expressava ao nível do espectáculo.

Os gobelets de Chrysippus mostram combatentes muito raros, designadamente o sagittarius e


o andabata, que aparecem ao lado de murmillones e retiarii. Se os dois primeiros tipos
desapareceram rapidamente, os dois últimos conheceram um futuro promissor e gozaram de

711 Cf. «Was the Pontarii Fighting […]», p. 2.

279
grande sucesso junto do público. Terá sido, pois, neste período, em que se estabeleceu
verdadeiramente a gladiatura técnica, que os doctores e os seus instruendos ou alunos, em
associação com os lanistae, «testaram», certamente, novos géneros de combatentes nos ludi.
Uma vez regulamentadas, essas inovações puderam ser propostas aos editores, que
acalentavam sempre o interesse em apimentar os seus munera com atractivas novidades.
Assim, os novos tipos de gladiadores ver-se-iam acompanhados por pares mais tradicionais
como o gallus ou o thraex.

Se os espectadores acolhessem favoravelmente a exibição dos novos combatentes, o seu êxito


conduziria à sua difusão noutras escolas de gladiadores, que precisariam de se apressar em
treinar alguns dos seus homens nessas inovadoras formas de duelos espectaculares. O trabalho
desenvolvido na armatura nascente aqui em causa fez com que o «proto-retiarius» fosse
despojado de todas as suas protecções supérfluas, convertendo-o no gladiador veloz e
poderoso que viria a ser até ao fim da época imperial.

Conquanto o retiarius já existisse provavelmente desde o principado augustano, as ocorrências


literárias e iconográficas deste gladiador são bastante parcas até ao fim do século I. Com efeito,
embora o retiarius não esteja completamente ausente das representações esculpidas nas
lucernas do século I (dois exemplos: a imagem de um retiarius munido da fuscina e da rede,
numa lamparina de azeite do Musée de la Civilisation gallo-romaine de Lyon, fig. ; e de um
outro, investindo com o seu tridente, numa lucerna conservada no Palais du Roue, Avignon, fig.
tey, p. 131), o número de atestações revela-se reduzido. Os thraeces, por exemplo, aparecem
figurados em 91 lamparinas datadas do século I d. C., enquanto, no mesmo período, os retiarii
apenas se detectam em seis lamparinas diferentes. Além disso, os artefactos que exibem cenas
com thraeces conheceram quase sempre várias réplicas, ao passo que os que mostram retiarii
se limitam, habitualmente, a modelos únicos. As últimas lamparinas decoradas foram todas
descobertas em Itália e na Gália, mas já as que representam thraeces acharam-se dispersas por
numerosas províncias do império. Assim, no corpus iconológico, o retiarius constitui
efectivamente um gladiador bastante raro no século I, não dispondo ainda de ampla difusão
imagética.

Os objectos de terra sigillata, outro relavente manancial iconográfico da primeira metade do


século I d. C., metem igualmente em cena os retiarii. À semelhança das lucernas, as ocorrências
deste tipo de gladiador são mais parcas que as de thraeces e murmillones. Ademais, o mesmo
buril utilizado para representar um murmillo a defrontar um thraex servia, também, para
figurar o adversário do retiarius. Nestes documentos, os murmillones surgem com uma atitude
pouco combativa, avançando, encolhidos, por detrás do seu escudo plano. Como ficou dito, o
murmillo não fora concebido para lutar contra um oponente muito móvel e que dispusesse de
uma tremenda força através das suas investidas com o tridente. Na cena de um vaso de
Graufesenque, um retiarius enfrenta, sozinho, três murmillones, posicionados uns atrás dos
outros. Será de ver nesta imagem imperícia por parte do fabricante do molde ou, pelo
contrário, o testemunho de um gladiador que ainda não havia encontrado um adversário à sua
altura?

Apesar de se pautar por uma raridade global no século I d. C., o retiarius está presente no
corpus iconográfico de Pompeia: mas, também aqui, este gladiador foi nitidamente menos
representado quando cotejado com o thraex ou o murmillo, uma vez que só cinco fontes nos
oferecem imagens do retiarius. Nestas cinco ocorrências, apenas um grafito parietal mostra-o
em posição de combate face a um oponente cuja identificação suscita dúvidas. Nos outros
quatro casos, o retiarius jamais surge a lutar.

Entre as representações dos retiarii, sobressai um «par» numa pintura parietal que outrora
adornou o podium do anfiteatro de Pompeia (em 1815 ainda era bem visível, mas depressa se

280
deteriorou e desapareceu): esta dupla figuração parece surpreendente: para já porque os
combatentes correspondem a retiarii, dado que tanto um como o outro possuem a manica no
braço esquerdo, sobrepujada por um alto galerus: esta peça típica do equipamento do homem
da rede também foi descoberta em Pompeia, exumando-se três exemplares no sítio do ludus
(essas duas figuras de retiarii são-nos conhecidas por um desenho feito por Francesco Morelli,
no século XIX, de um afresco (fig. )712, entre vários outros que decoravam a superfície do
podium do anfiteatro: aparentemente, os dois combatentes encontravam-se de um lado e do
outro da Porta libitinensis713, em meados do século I d. C. No entanto, nos dois retiarii estão
ausentes as outras duas peças típicas desta armatura: a falta da rede não causa grande
estranheza, até porque 90% das imagens dos retiarii as não incluem; em contrapartida, a
substituição do tridente por uma lança é mais insólita; ter-se-á devido a um erro cometido pelo
artista, F. Morelli, que reproduziu tais afrescos em começos de Oitocentos? Trata-se de uma
forte probabilidade, porque, entre os 260 outros retiarii repertoriados até à data no corpus
icónico, nenhum deles surge provido de uma lança. Todavia, pode-se explicar a presença destas
lanças: estes dois homens talvez fossem, na realidade, caçadores (venatores), armados como
retiarii, para enfrentarem animais selvagens; mas os exemplos em que isto se observa datam
de tempos mais tardios – séculos II e III d. C.

Outra questão a termos em conta prende-se com o sítio onde estas duas imagens pictóricas se
encontraram; de facto, o conjunto do podium foi ornamentado com diversos afrescos; algumas
delas exibem cenas de caça ou de animais a lutarem entre si. Outra composição mostra um
murmillo e um hoplomachus a prepararem-se para a porfia. Ora, tomando em consideração
todas estas pinturas, as duas imagens dos retiarii estavam a ocupar um lugar de honra: a
arcada representada entre os dois personagens situava-se sob o pulvinar, isto é, a tribuna no
anfiteatro onde se sentava o magistrado que oferecia os jogos; era neste ponto do recinto que
todas as atenções se concentravam, principalmente no momento decisivo em que o editor
deveria anunciar o seu veredicto no fim de um combate.

Topamos com mais um par de retiarii no mencionado baixo-relevo do túmulo (fig. pormenor)
alegadamente pertencente a A. Umbricius Scaurus. Tal imagem, que só a conhecemos através
de um desenho de Morelli, visto que o original não resistiu à usura do tempo, merece vários
comentários e coloca muitas questões. Estes dois combatentes foram representados numa
escala bastante menor que a dos outros gladiadores. Este pormenor parece contraditório, se
nos lembrarmos do lugar que eles ocuparam nos afrescos do podium: neste caso, os retiarii
estavam num sítio importante, ao passo que no baixo-relevo, a redução das suas dimensões
sugere, pelo contrário, um estatuto inferior em relação aos outros combatentes da arena,
todos com as mesmas proporções.

Outro aspecto curioso é a postura dos dois retiarii: exibem o tridente sobre o ombro, atitude
que não se regista em nenhuma das outras ocorrências plásticas do corpus desta armatura; o
retiarius situado em segundo plano fundo estende a mão esquerda, aberta, com os dedos
esticados. Este gesto, assinalável noutros documentos, significa geralmente o fim do combate
ou, mesmo, a morte do vencido; de facto, o segundo retiarius assume um papel activo na
execução do provocator ferido que o seu adversário está a degolar; ele não só o segura
firmemente, por detrás do seu subligaculum, como também apoia o pé esquerdo na barriga da
perna direita do gladiador derrotado, como que para o imobilizar e impedir que se voltasse a
erguer. No presente caso, a questão que se coloca é se estes retiarii participariam
verdadeiramente em combates; note-se que as inscrições que se encontram por cima dos dois

712 O desenho encontra-se no Archivio Disegni della Soprintendenza Archeologica di Napoli, inv. nº 88. Veja-se L.
Jacobelli, Gladiators at Pompeii…, p. 13, 48, fig. 9, 48

713 A Porta de deusa Libitina, o mesmo que a «Porta dos Mortos».

281
homens não lhes dizem respeito; essas legendas, reconstituídas por Millin e confirmadas pelo
desenho elaborado por Mazois, reportam-se, no lado esquerdo, ao provocator vitorioso, e, no
direito, a um murmillo; nos seis gladiadores representados nesta cena, os dois retiarii são os
únicos que não aparecem nomeados. É, portanto, provável que eles não fossem combatentes,
mas antes exercessem as funções de ministri, afectados ao bom funcionamento do munus.

Os retiarii que surgem noutro documento talvez confiram credibilidade a essa interpretação:
trata-se de um grafito (localizado na «Casa do Labirinto», no peristilo 36, datável de meados do
século I d. C.) que atraiu a atenção dos estudiosos principalmente por causa do par formado
por um thraex e um murmillo que está ao centro (CIL 1421; fig. Tey. p. 134); esta cena mostra-
nos o fim do combate opondo o thraex Priscus, pertencente à escola gladiatória neroniana (à
esquerda) ao murmillo, homem de condição livre, chamado Herennius (à direita)714. O último,
apesar de contar com 18 vitórias no seu palmarés, não conseguiu derrotar o adversário, com
menos títulos no activo. Ao arrojar o seu escudo para o solo, Herennius atesta a superioridade
do oponente. Este, com a sica empunhada pela mão direita, está pronto a continuar a pugna,
bem protegido pela sua parma. Ao reconhecer a sua derrota face a Priscus, que até aí apenas
obtivera 6 vitórias, Herennius levanta a mão para pedir clemência. Ora, diante de um
adversário teoricamente inferior, a derrota do murmillo não terá agradado ao público. O P para
perit, gravado na parede a seguir às suas vitórias, demonstra que Herennius foi morto nesse dia
por Priscus, de que o V indica a sua vitória. Eis o teor da inscrição:

Neronianos ad amphitheatr[um]

Priscus N[eronianus] VI [pugnarum] V[icit] Herennius Faustus.

O interesse que esta cena (bem como a sua vertente dramática) despertou entre muitos
estudiosos levou a que não se prestasse atenção à parte esquerda do grafito, que também é
digno de análise: se observarmos mais de perto os três personagens representados, é possível
compreendermos o que está prestes a acontecer na altura em que Herennius ergue a mão e
solicita o perdão; nesta parcela da cena, o árbitro foi desenhado numa escala similar à dos
gladiadores. Este pormenor confirma que estamos a ver os últimos instantes do combate,
tendo Herennius cessado de lutar. Não oferece qualquer dúvida que o árbitro, que segura a
rudis (emblema da sua função) na mão direita, se vira em direcção ao editor, a fim de conhecer
a sua decisão. O último está instalado num podium esquemático, simbolizando decerto o
pulvinar. A partir deste sítio, o magistrado que oferecia o munus podia observar com nitidez os
combates, ao mesmo tempo que se achava visível para o conjunto dos espectadores. Este local
assumia extrema importância, sobretudo no momento em que o editor proferia o seu
veredicto quanto à sorte que iria reservar ao gladiador vencido.

O desenhador anónimo garatujou o editor em tamanho mais reduzido que os dos


combatentes e do árbitro,o que servia para indicar que o organizador do munus se situava no
pano de fundo em relação à cena do duelo: sentado no que se assemelha muito a uma sédia
curul (sella curule), o editor levanta a mão num gesto que deve significar a morte, como atesta
o P que acompanha o nome de Herennius. Entre os dois protagonistas incluiu-se mais um
indivíduo: apesar de visualmente descrito com traços muito sumários, conseguimos
descortinar um tridente, uma adaga e um galerus sobre o ombro esquerdo desse homem, que
é claramente um retiarius. Posicionando-se num dos primeiros degraus de uma escada que
conduz ao pulvinar, o retiarius parece pronto a intervir. Observamos, então, este gladiador a
exercer a mesma função que os dois retiarii armados de lanças pintados num afresco do
balteus anfiteatral de Pompeia. Assim, este grafito parece confirmar que os retiarii
desempenhariam o papel de protegerem o editor de uma eventual agressão por parte de um

714 M. Langner, Antike Graffitizeichnungen. Motive, Gestaltung und Bedeutung…., nº 1040.

282
combatente condenado à morte (note-se que Herennius ainda está armado) ou de assistirem o
vencedor na execução do seu adversário.

Se os retiarii não correspondiam a verdadeiros combatentes em Pompeia, então qual seria o


seu papel num munus? São muitos os grafitos pompeianos a figurarem combates metendo em
cena thraeces, hoplomachi ou murmillones; a grande raridade de imagens de retiarii suscita
problemas, ainda que se tenham descoberto três galeri na caserna dos gladiadores daquela
cidade. É provável que não estejamos longe da verdade se os encararmos como ministri
encarregados do «policiamento» na arena. De acordo com as três fontes atrás referidas, a
missão que caberia aos retiarii poderia até ser tripla; no caso do túmulo que supostamente
acolheu os restos mortais de Umbricius Scaurus, eles intervêm na arena para manifestar a
decisão do munerarius – é, sem dúvida, o que faz o retiarius localizado mais acima, que
apresenta a sua mão aberta, no gesto de pollice verso; quanto ao segundo, aparenta auxiliar o
vencedor na morte do seu oponente; aqui, o vencido reage como um autêntico profissional, ao
aceitar resignadamente o seu destino. Porém, noutras situações podiam registar-se actos de
hesitação ou revolta da vítima. Se tal sucedesse, o retiarius devia submeter o gladiador fazendo
uso do seu tridente.

Efectivamente, a posição em guarda do retiarius na cena do combate entre Priscus e


Herennius faz-nos supor que ele desempenharia tal papel. Bem apoiado nas suas pernas, com
o tridente à frente e a adaga na mão esquerda, o retiarius não tinha uma função meramente
ornamental. Ele podia impedir alguma atitude desesperada de um homem condenado à morte.
Embora, ao que se julga, isso só ocorresse muito excepcionalmente, não é difícil imaginarmos
que os editores se precavessem face a tais eventualidades. Não custa admitir, também, que o
retiarius assestasse um derradeiro golpe sobre um gladiador já executado ou que, pelo menos,
garantisse ao público que a sentença fora devidamente aplicada.

Num trecho atrás referido, Tertuliano alude a um auxiliar da arena (minister) disfarçado de
Mercúrio Psicopompus, ao qual competia verificar, através de de um ferro em brasa 715, se os
damnati ad bestias (condenados à morte pelos animais), estariam mesmo sem vida. No século
I d. C., talvez esse papel fosse desempenhado pelos retiarii em relação aos gladiadores
condenados a morrer. Isto explicaria, na cena escultórica do túmulo de Scaurus, a presença do
retiarius atrás do provocator que se prepara para receber a estocada fatal. Por último, o facto
de estar um ou dois retiarii perto do editor relacionar-se-ia possivelmente com o prestígio a
segurança do magistrado. Esta terceira função que os retiarii talvez exercessem afigura-se
coerente face às duas primeiras hipóteses aqui aventadas. Com efeito, os dois homens com
lanças representados em afrescos no podium do anfiteatro, foram pintados à frente da porta
que conduzia à tribuna oficial. A estar certo este raciocínio, não custa ver nestas imagens a
indicação do lugar que então se atribuiria aos retiarii durante os combates: posicionados sob a
tribuna, eles podiam actuar simultaneamente como guardiões da escada que dava acesso ao
pulvinar e como executores das decisões tomadas pelo munerarius, que se encontrava sentado
uns metros acima deles. O editor comunicaria, assim, sem qualquer tipo de ambiguidade, as
suas decisões, as quais os indivíduos munidos do tridente se encarregariam de fazer aplicar
junto do par de gladiadores em causa. Se, de facto, isto acontecia, resta saber se os retiarii
combateriam ou não em Pompeia e, em caso afirmativo, com que tipo de adversário eles
lutariam.

O corpus epigráfico não nos ajuda muito a responder a esta questão. Enquanto os thraeces, os
murmillones e os hoplomachi aparecem mencionados diversas vezes nos anúncios dos munera,
só existe um que alude a um retiarius (CIL 2508): neste edictum muneris, feito no tempo de

715Uma peça de cerâmica sigilada da Gália meridional apresenta igualmente um Mercúrio junto dos dois
gladiadores.

283
Nero, publicita-se o confronto entre um retiarius e um essedarius, gladiador, como atrás se viu,
que combatia sobre um carro puxado por cavalos. Este combate constitui um hapax muito
curioso, que atesta, em princípio, as dificuldades experimentadas pelos editores e lanistae em
descobrirem um oponente capaz de se opor ao retiarius.

Por fim, só um documento pompeiano (fig. tey, p. 137) ilustra uma pugna entre um retiarius e
um gladiador equipado com um scutum: neste grafito, bastante tosco, representaram-se dois
momentos distintos de um combate: na cena situada à esquerda, vemos um retiarius sobre
uma espécie de estrado, numa posição dominante em relação ao seu adversário; armado com
o tridente e a adaga (indicada só com um mero traço), o retiarius repele o oponente que tenta
subir uma rampa716. O único elemento determinativo deste tipo de combatente deveria ser o
seu elmo, simples, sem arestas salientes e sobrepujado por uma cimeira em forma de meia-lua.
A mediocridade do desenho, assaz esquemático, obsta a que se chegue a uma conclusão
definitiva, mas somos tentados a acreditar que pode corresponder à primeira representação
conhecida de um casco de secutor; à direita desta cena, um gladiador desce triunfalmente do
estrado através do mesmo plano inclinado – trata-se de um combatente peculiar, se cotejado
com o corpus iconográfico pompeiano, ainda que talvez se deva associar à armatura dos
provocatores: o tamanho do seu escudo, do ombro à anca, e a ausência de cimeira no seu elmo
militam a favor dessa identificação; por outro lado, porém, ele enverga um género de estranha
túnica (na realidade, pode até consistir numa espécie de couraça, protegendo o corpo até aos
joelhos).

É possível datar os grafitos graças à inscrição que acompanha a imagem do gladiador vitorioso:
ela dá conta, claramente, da hostilidade existente entre os habitantes da cidade de Nucéria e
os de Pompeia. É possível que este testemunho plástico seja pouco anterior aos conhecidos
tumultos que se registaram em 59 d. C., tão violentos que as autoridades centrais ordenaram
que o anfiteatro pompeiano ficasse encerrado durante vários anos. Consequentemente, estes
desenhos terão sido elaborados em começos do reinado de Nero. Não obstante o carácter
rudimentar e impreciso destes esquissos parietais, logramos obter uma impressão de conjunto.
Este testemunho parece evocar as tentativas de se opor um adversário ao retiarius. É muito
provável que se tenha ensaiado a experiência de colocar um retiarius frente a um provocator;
este, cujo casco não possuía cimeira nem asperezas, teria menos possibilidades de ficar preso
nas malhas da rede. Nesta ocasião, podem ter-se reforçado as defesas deste gladiador
«experimental», dotando-o de uma couraça segmentada de tipo militar, para equilibrar as suas
possibilidades em relação ao tridente do oponente 717. O próprio combate sobre um estrado
(pons) também pode ter consistido numa fantasia materializada na mesma altura, como aliás já
tivemos o ensejo de afirmar.

Além destas imagens de retiarii, a presença desta armatura em Pompeia encontra-se também
simbolizada pelas suas armas: em primeiro lugar, pelos três galeri descobertos no ludus da
cidade e, em segundo, por uma pintura mural que outrora existiu no mesmo – tal composição,
actualmente desaparecida, exibia, numa panóplia gladiatória muito completa, duas peças
caracteristicamente ligadas ao retiarius, o galerus e o tridente. Em suma, apesar de ter
aparecido a partir do Principado de Augusto, esta armatura muito peculiar não chegou a
emergir explicitamente no fim do período dos Júlio-Cláudios. Paradoxalmente, este fenómeno
deveu-se, na sua essência, à sua superioridade técnica e à falta de um adversário à sua altura.
Posto isto, os lanistae terão levado a cabo diversas tentativas, ao longo de décadas, sem
todavia resolver tal equação. Seria necessário esperar pela criação do secutor e o

716 M. Langner, Antike Graffitizeichnungen…., nº 927.

717 Recordemos que os primeiros retiarii estariam protegidos por uma cota de malha para compensar a falta do
escudo. Mais à frente, estudaremos um outro gladiador também provido de couraça, o scissor-arbelas.

284
estabelecimento desta armatura, uma das mais técnicas da história da gladiatura, para surgir
em cena o par de combatentes da arena mais elaborado de todos.

Por curioso que pareça, raramente se discutiu esta questão: por que é que o retiarius não
estava provido de mais protecções corporais e se apresentava quase desnudo frente ao seu
adversário? Dario Battaglia718 contribuiu para uma eventual resposta, ao demonstrar, de forma
bastante convincente, a importância assumida pela vertente táctica na escolha «instrumental»
do retiarius: a falta de peças protectoras no retiarius (salvo a manica e o galerus) representaria
uma espécie de engodo para o seu oponente, o secutor, levando-o a acreditar que o primeiro
estaria significativamente vulnerável.

Através das pesquisas efectuadas no âmbito da arqueologia experimental, provou-se que as


armas do retiarius eram formidavelmente complementares. Não resta a menor dúvida de que
o retiarius teria de estar sempre numa atitude extremamente vigilante, já que os poucos
elementos de defesa que tinha deixavam o seu corpo à mercê dos golpes desferidos pelo
adversário. Em contrapartida, em face dele, o secutor precisava, a todo o custo, evitar ficar
bloqueado pelo comprimento do tridente (aproximadamente 1,60 m), sob pena de tornar o
combate monótono e sem espectacularidade, o que poderia conduzir o contraretiarius a ser
punido no fim, por causa da sua reduzida combatitividade. Assim, cada gladiador necessitava
de explorar ao máximo as falhas do seu oponente. Em termos tácticos, o retiarius deveria
obrigar o secutor a descobrir-se, ao simular a fuga. Acto contínuo, ele aplicaria o método da
percussão contra o elmo e o escudo do secutor através do tridente, tentando causar uma forte
onda de choque sobre o oponente. Ora a frequência e a potência dos ataques com o tridente
levariam, inveitavelmente, o secutor a reagir e a avançar. Quanto ao retiarius, continuava a
afastar-se, para se manter à distância. Durante estes recuos feitos de rapidez e agilidade, ele
não poderia desistir de golpear o secutor, acelerando os seus movimentos. Se o retiarius
atraísse o adversário para uma corrida em sua perseguição, uma súbita mudança de direcção
poderia dar-lhe o tempo suficiente para entravar a investida do secutor, ao apanhá-lo com a
rede. Por último, os exames cardiovasculares, que se realizaram com a colaboração do Dr. Jean
Gauthier719, demonstraram cabalmente a facilidade com que o secutor ficaria com falta de
fôlego, devido à dificuldade de respirar adequadamente no interior do seu casco quase
hermético. Não é de estranhar, pois, que o secutor procurasse gerir os seus esforços da melhor
maneira, diante de um retiarius que podia oxigenar-se com muitíssima mais liberdade.

***

Recentemente alguns autores chamaram à atenção para a eventualidade de o retiarius utilizar


outra arma ofensiva, para além da fuscina e da adaga: consistiria num objecto composto por
uma empunhadura e provido de quatro pontas metálicas, o qual se observa numa lápide de
um retiarius chamado Skirtus, descoberta em Tomis (na Roménia), 720 que se conserva no
Museu Nacional de Bucareste; no baixo-relevo, o defunto exibe na mão direita tal objecto, e na
esquerda segura a tridente; na representação escultórica, no primeiro apenas se descortinam
três pontas, mas isto pode dever-se à dificuldade do do escultor em reproduzir a peça em três
dimensões. Diversos historiadores e arqueólogos tanto consideraram que esta peça se trataria
apenas de uma criação invulgar do artífice, como poderia corresponder a um símbolo religioso

718 D. Battaglia, Cosi combattevano i gladiatori, Retiarivs vs. Secvtor et Scissor. Ricostruzione empirica delle tecniche
di combattimento e degli armamenti, Collana Ars Dimicandi 1, Bérgamo, 2002.

719J. Gauthier, «Ainsi vivaient les gladiateurs», Sport et vie, nº 93 (2005), pp. 4-7.

720Ernst Pfuhl e Hans Möbius, Die ostergriechischen Grabreliefs. Bd. 2 (Text-und Tafelband), Mainz, 1979, nº 1258,
est. 187.

285
de significado desconhecido; outros, como S. Shadrake 721, defenderam ser realmente uma
arma.

Além disso, no seguimento da descoberta do «Cemitério dos Gladiadores» em 1993, na antiga


cidade de Éfeso, removeu-se uma série de ossadas para exames forenses: várias revelaram a
existência de vestígios deferimentos, alguns fatais e outros não. Um osso, em particular,
assumiu importância para aqueles que viram no referido misterioso objecto uma arma: ao
analisar um fémur pertencente a um homem com 25-40 anos de idade e 1,74 m de altura, K.
Grossschmidt, constatou que nele havia uma lesão com quatro estranhas marcas, formando
uma espécie de padrão quadrangular; este antropólogo supôs que as incisões resultaram de
um golpe sofrido em combate, numa parte do corpo que não se estava devidamente protegida.
Em face da configuração desse ferimento, que não causou a morte ao gladiador, o mesmo
poderia então ter sido infligido pela enigmática arma de quatro pontas (que recebeu o nome
em latim de quadrens).

Mas a hipótese de o retiarius ser o único a empregar um quadrens vê-se desmentida pela
presença do mesmo em relevos funerários de gladiadores de outras armaturae: assim, em
Kyzikos procede uma estela de um thraex que ostenta o mesmo objecto 722; assinalamo-lo
também no monumento do provocator Nympheros, de Tarabya723, bem como no do
arbelas/dimachaerus/scissor Nikephoros, de Beroia 724, ou na lápide do thraex Kapnos, de
Mileto725. Consequentemente será de ver no quadrens um género de emblema ou símbolo
apotropaico/religioso. Para um aprofundamento desta questão, remetemos o leitor para a
leitura dos comentários de M. Junkelmann 726.

***

Realcemos outro ponto, o da aparente vulnerabilidade do retiarius: em princípio, um


combatente menos protegido que enfrentava um adversário bem equipado mereceria maior
respeito pela sua coragem, mas entre os Romanos, o conjunto do elmo, escudo e outras peças
de uma panóplia conferiam ao seu utilizador uma aura superior de virilidade; neste sentido,
como o retiarius tinha um número reduzido de armas defensivas, a sua aparência sugeria um
carácter efeminado, como salientou Juvenal 727. O thraex, pelo contrário, simbolizaria a
masculinidade, o mesmo se passando, aparentemente, com o secutor. Todavia, nas fontes

721The World of the Gladiator, pp. 178-182, fig. 87-88; apenas com base na figuração do objecto observável na
estela de Skirtus, Tim Noyes, um especialista em lâminas e na reconstituição de armas brancas antigas, chegou
mesmo a elaborar um protótipo que alegadamente mostraria a aparência original do quadrens: cf. ibidem, p. 182,
fig. 90-93

722Actualmente no Museu do Louvre; cf. L. Robert, Les gladiateurs…, nº 296, est. 20; E. Pfuhl e H. Möbius, Die
ostergriechischen Grabreliefs…, nº 1258, est. 187.

723L. Robert, Les gladiateurs, nº 300, est. 5; E. Pfuhl e H. Möbius, Die ostergriechischen Grabreliefs…, nº 1259, est.
187.

724Victoria Allamani-Souri, «MONOMAΧIKA MNHMEIA ΣTOMOYΣEIO THS BEPOIAS», in Ametos. Essays in Honour
of M. Andronikos, vol. I, Tessalónica, 1987, p. 36, nº A4, est. 4/4.

725Wolfgang Günther, «Gladiatorendenkmäler aus Milet», Istambuler Mitteilungen 35 (1985), p. 133ss., est. 28, 3;
20, 2.3.

726 Gladiatoren…, pp. 200-201.

727Susanna Braund, Juvenal Satires: Book I, Cambridge, 1996, p. 159.

286
literárias romanas observam-se diversos paradoxos no modo de encarar a gladiatura e os seus
profissionais. Noutros documentos antigos, tanto epigráficos como iconográficos, constata-se
que os retiarii, a par das outras armaturae, gozavam de admiração do público, e os seus
combates contra os secutores galvanizaram multidões de finais do século I em diante.

A problemática em torno do retiarius tunicatus

Embora os retiarii envergassem habitualmente apenas o subligaculum, alguns deles vestiam


túnicas. As fontes antigas referem-se a este tipo como retiarius tunicatus728: por exemplo, num
dos conhecidos mosaicos do Museo Arqueológico Nacional de Madrid (que examinamos mais à
frente), o retiarius Kalendio surge com uma túnica que cobre parcialmente o seu braço
esquerdo e se estende desde o meio do tronco até acima dos joelhos (a túnica corrente,
todavia, chegava até ao pescoço, tapando os ombros e os antebraços). Qual era o significado
da túnica para o retiarius? Como não servia qualquer propósito de ordem prática, devia ter
certamente alguma conotação simbólica. Vários estudiosos viram na túnica empregue por um
retiarius uma clara indicação da sua homossexualidade 729, associando-o a uma determinada
parte do ludus gladiatório que albergava indivíduos com tal tendência 730; no entanto, esta
interpretação fundamentou-se apenas numa referência de Juvenal à «túnica vergonhosa», mas
trata-se provavelmente de uma má compreensão daquilo que o poeta terá querido dizer (Sat. 6
Ox. 9-10).

Não se torna claro por que motivo(s) se estabeleceria uma conexão entre a túnica e a
pederastia. Os equites, gladiadores a cavalo, usavam túnicas mas não se viram acusados de
desvios sexuais. Por seu turno, Suetónio (Divus Caligula, 30.3) menciona um retiarius tunicatus
numa passagem onde não se captam indícios de homossexualidade: o biógrafo relata um
confronto de grupo (gregatim)731 que teve lugar durante o reinado de Calígula, opondo cinco
retiarii a igual número de secutores; quatro dos primeiros foram derrotados sem oferecer
resistência; porém, inesperadamente, um retiarius voltou a pegar no tridente e aniquilou,
sucessivamente, todos os secutores. O acto traiçoeiro deste combatente constituiu uma
violação flagrante do procedimento normal, encolerizando de tal maneira Calígula que este
promulgou um édito qualificando o insólito episódio de «assassinato cruel» e amaldiçoando
todos os que assistiram ao mesmo.

O fragmento de Suetónio aparenta requerer outro significado para a túnica vestida por
determinados retiarii: no início do século XX, S. G. Owen argumentou persuasivamente que,
quando Juvenal chamou à túnica do retiarius «vergonhosa», o epíteto aplicar-se-ia a quem
envergou tal veste, e não à própria túnica, sugerindo que esta seria exibida pelos auctorati,
para assim se diferenciarem dos retiarii de condição servil 732. Juvenal alude a outro retiarius

728Juvenal descreve o retiarius vulgar como nudus, pelo simples facto de aparecer na arena praticamente despidos
(6, Ox.,12).

729 Como recentemente o fez, por exemplo, A. Mañas Bastida, Gladiadores…, pp. 83-84.

730 A. E. Houseman, «Tunica Retiarii», CR 18.8 (1904); do mesmo autor, veja-se a sua edição das Sátiras de Juvenal
(Cambridge, 1931, p. 50, n. 10-13); consulte-se, também, S. Cerutti e L. Richardson, «The Retiarius Tunicatus of
Suetonius, Juvenal and Petronius», AJP 110.4 (1989), pp. 589-591.

731Um munus incluía ocasionalmente lutas colectivas de pugilistas (pugiles catervarii): cf. Suetónio, Divus
Augustus, 45, 2; Divus Calígula, 18.4; CIL X 17074d.

287
tunicatus chamado Gracchus, um patrício homossexual733 que era sacerdote sálio e, como se
isto não bastasse, se tornou «noiva» de um músico, categoria das mais baixas a nível social; a
túnica, contudo, não tinha a ver com as suas preferências sexuais 734. Observemos o seguinte
excerto de Juvenal:

«Mas nada de surpreendente que o princeps seja tocador de cítara ou que um patrício seja momo. Que
haveria de pior para além do ludus [gladiatório]? É aqui que encontras a desonra de Roma, Gracchus,
que não combate com as armas do murmillo, nem com o escudo redondo ou a adaga curta (falce
supina): pois que ele condena semelhantes disfarces, sim, condena-os, detesta-os, não cultando o seu
rosto sob um elmo (galea); eis que ele maneja o tridente e, depois de a lançar sem êxito, ao balançar
com a mão a sua rede flutuante, ergue a sua face descoberta para os espectadores, e foge a seguir por
toda a arena, reconhecido por todos. É preciso acreditarmos nos nossos olhos: ele enverga uma túnica e,
junto do seu pescoço, está um cordão dourado que pende do seu galerus. No entanto, o secutor,
obrigado a lutar contra Gracchus, é mais sensível a esta vergonha do que ao mais cruel ferimento» (Sat.
8, 197-210).

Como se vê, a «performance» de Gracchus revelou-se típica de alguém que não era
profissional do combate: lançou a rede mas falhou o alvo; ao não conseguir apanhar o secutor,
começou numa louca correria pela pista, embora não deixando de olhar para o público. Tal
como outros auctorati pertencentes às camadas superiores da sociedade, Gracchus era um
amador sem jeito nem bravura, objecto de troça por parte dos retiarii e forçado a viver com
outros tunicati num sítio afastado dos demais gladiadores no ludus (Juvenal, Ox. 9-13).

Mas continuam a pairar dúvidas e incertezas sobre quem, de facto, vestiria a túnica: esta talvez
não fosse usada por todos os auctorati, mas apenas por indivíduos de alta condição que, a
troco de algum dinheiro, participariam pontualmente nos munera, não tendo a preparação
física e técnica dos gladiadores profissionais. Assim, cabe não englobar todos os auctorati no
labéu de tunicati, já que muitos que voluntariamente enveredavam pela gladiatura e cumpriam
contratos de certa duração se tornaram exímios combatentes. Além disso, diversas fontes
iconográficas atestam a existência de tunicati noutras armaturae: em 23 representações

732Cf. «On the Tunica Retiarii. Juvenal II. 143 ff; VIII. 199ff; VI. Bodleian Fragment 9 ff.)» CR (Oct. 1905), pp. 354-
356. S. G. Owen rejeitou a conexão entre a túnica e a homossexualidade. Esta peça de vestuário era habitualmente
utilizado na vida quotidiana, sem que houvesse qualquer vestígio de desonra. O autor sugeriu também («On the
Tunica Retiarii …», p. 357) que, no caso concreto de Gracchus, a túnica faria parte do seu traje enquanto sacerdote
sálio, opinião subscrita por S. Braund (Juvenal and Persius, Cambridge/MA, 2004, p. 341, n. 51). Por seu lado, J. Colin
(«Les Baladins et les rétiaires d’après le manuscrit d’Oxford», Atti della Accademia delle scienze di Torino, 87, 1952-
1953, p. 352) defendeu a teoria de que a vergonha da túnica derivaria do facto de os criminosos condenados a
envergarem. Assim, os retiarii que correspondessem a indivíduos sentenciados usariam a túnica, ao passo que os
retiarii voluntários não. O problema é não haver provas de que, entre os gladiadores, a indumentária servia para
distinguir os escravos dos auctorati.

733Na obra Sexe et pouvoir à Rome (Paris, Points, 2007), P. Veyne resumiu eloquentemente a problemática da
sexualidade dos Romanos, que podiam, sem incorrer na imoralidade, praticar o acto com outro homem, mas na
condição de manterem eles a iniciativa. Pelo contrário, aquele que se sujeitasse passivamente à dominação do seu
amante ou parceiro era visto como uma mulher, o que se afigurava inaceitável sob o ponto de vista da mentalidade
romana. Segundo Veyne, os princípios que regiam as relações sexuais e conjugais dos Romanos dependiam
claramente de uma moral viril e «falocêntrica», fundamentada no estatuto social. Consulte-se também o livro de
Thierry Éloy e Florence Dupont, L’erotisme masculin dans la Rome antique, Paris, Belin poche, 2009. Assim, o caso de
Gracchus era profundamente condenável: depois de se unir a um músico, levou, numa corbelha de casamento, um
dote de 400 000 sestércios; Gracchus pertencia à elite, o que Juvenal aliás confirma: «Gracchus de túnica, com o
tridente na mão, com a sua fuga, ele, mais nobre do que os Capitolinos e os Marcelos, que os descendentes de
Catulo e Paulo, que os Fábios, que todos os espectadores da tribuna, mais do que o próprio homem que ofereceu os
jogos [Nero]…» (Sat., 2.143-148). Mas o que parece ter chocado ainda mais o público era o facto de Gracchus
pertencer ao colégio dos sacerdotes sálios, o qual, diante dos deuses, exarava as declarações de guerra ou de paz
em Roma, exibindo ele na arena a coifa sacerdotal, que não podia tirar sem cometer um sacrilégio.

734 R. Dunkle, Gladiators…, p. 111.

288
plásticas de gladiadores tendo túnicas, seis mostram retiarii, quatro murmillones, duas
hoplomachi, duas secutores, mas nove correspondem a thraeces735.

O secutor, o contraretiarius por excelência

Há uma fonte que nos ajuda a identificar de imediato a armatura do secutor 736: trata-se de
uma estela do século II d. C, descoberta em Milão (antiga Mediolanum, conservada no
Antiquarium)737; nela se observa um gladiador, Urbicus, que é expressamente referido como
pertencente à categoria dos secutores; à primeira vista, este combatente equipado com um
scutum e de uma pequena ocrea pode ver-se confundido com um murmillo. O único elemento
que serve para distingui-lo de outro scutatus radica no seu elmo, que foi representado
colocado sobre um poste de madeira utilizado para treino. Contrariamente aos cascos dos
murmillones, o de Urbicus não possui viseira nem cobre-nuca; a sua superfície muito lisa
poderia levar a pensar num elmo de provocator, mas o de Urbicus está munido de uma
cimeira. Esta, ainda que representada de perfil, com a forma de meia-lua, diferencia-se bem
das dos cascos do thraex ou do murmillo. No Museo Archeologico Nazionale de Nápoles,
conservam-se três elmos com estas características (fig., p. 234): pautam-se pela ausência de
aba saliente ao nível dos olhos e das têmporas; a grelha que protege o rosto foi substituída por
dois orifícios circulares; a cimeira, muito fina, tem uma configuração de crescente. Estes
elementos observam-se claramente no elmo figurado na estela de Urbicus.

Assim, estas peças de equipamento campanianas correspondem perfeitamente à armatura do


secutor. Se bem que a identificação do secutor não levante problemas, graças à estela de
Urbicus e dos cascos recuperados em Pompeia, já o mesmo não se pode dizer quanto à génese
deste especialista contraretiarius que continua difícil de determinar. Enquanto armatura, o
secutor consiste numa denominação que surgiu na segunda metade do século I, ao passo que o
retiarius já existiria há mais de cinquenta anos. De facto, esta designação marca a aparição de
um adversário que o retiarius só veio a conhecer tardiamente. Nas fontes iconográficas,
manifestam-se as dificuldades experimentadas no processo da elaboração da armatura do
secutor. O murmillo foi, muito provavelmente, o primeiro oponente do combatente do
tridente. No entanto, durante a primeira metade do século I, a criação de um tipo de gladiador
específico não significou uma tarefa simples.

Até à adopção do termo secutor, designava-se o adversário do retiarius como murmillo


contrarete ou contraretiarius738, mais concretamente «contra-rede». Com efeito, numa
inscrição feita a mando de Longinas, para um dos seus colegas, o dedicador identifica-se

735 F. Gilbert, Devenir Gladiateur…, p. 34.

736M. Junkelmann, Gladiatoren…, p. 111; S. Shadrake, The World of the Gladiator…, pp. 171-172; E, Teyssier, La
mort en face…, p. 139ss.

737CIL V 5933 = ILS 5115 = G. L. Gregori, Epigrafia anfiteatrale dell’Occidente Romano II. Regiones Italiae VI-XI
(EAOR, II), Roma, 1989, nº. 50; M. Papini, Munera gladiatoria e venationes nel mondo delle immagini, Roma, 2004,
p. 189; F. Meijer, The Gladiators…, pp. 66-68.

738Estas referências concretas aos contraretiarii levaram a que Louis Robert identificasse este gladiador com o
combatente provido de uma peça tubular rematada por uma lâmina em forma de meia-lua, que, por vezes, surge a
porfiar contra o retiarius. Embora não seja de a refutar definitivamente, esta interpretação não parece estar
suficientemente fundamentada. Esse gladiador merecerá a nossa atenção na secção dedicada ao scissor-
dimacherus.

289
explicitamente como contrarete e não como contraretiarius 739. Vale a pena sublinhar a
diferença, dado que esta sugere o problema técnico suscitado pela rede para os oponentes do
retiarius. Estas referências a murmillones contrarete são, porém, bastante raras, uma vez que
só cinco inscrições se podem inserir nesta categoria. Além do mais, a identificação destes
contraretiarii nem sempre se estabelece com precisão, porque as abreviaturas utilizadas são,
ocasionalmente, difíceis de se interpretar. É o caso, por exemplo, das estelas funerárias em que
tal especificidade é simplesmente evocada pelas iniciais M.R., tradicionalmente desenvolvidas
por extenso nas palavras «murmillo [contra] retiarius». Se nos abstrairmos do seu casco, nada
distingue de relance um secutor de um murmillo: efectivamente, em ambos vemos a mesma
pequena ocrea na tíbia esquerda, o mesmo género de scutum, e até um idêntico tipo de gládio
curto, pelo que o secutor poderia assim constituir outro scutatus.Mas dois elementos o
destrinçavam do murmillo: em primeiro lugar, o secutor nunca defrontou um parmatus, daí que
não pareça possível integrá-lo, stricto sensu, na categoria dos scutati, já que estes se definiam
tanto em relação aos seus grandes escudos como em face dos seus adversários dotados de
uma parma. Ora o secutor lutou sistematicamente contra o retiarius, que estava desprovido de
escudo. Esta oposição consubstanciou-se mesmo na elaboração do secutor, que esteve
directamente ligado à concepção do seu elmo, que corresponde à segunda diferença que serve
para distinguir automaticamente um murmillo de um secutor.

Contrariamente ao verificável nos cascos dos parmati e dos scutati, o elmo do secutor não
comporta qualquer aba ou rebordo saliente na superfície do seu bojo. Além disso, a cimeira
possui uma meia-lua muito delgada e afilada, não guardando qualquer afinidade com a do
murmillo, larga e angulosa. Eram justamente estes elementos dos cascos dos murmillones o
ponto fraco deste tipo de gladiador, quando em confronto com um oponente provido de uma
rede. Por causa das diversas asperezas do elmo do murmillo, o retiarius não tinha grande
dificuldade em apanhá-lo nas malhas da rede. Este desequilíbrio entre a panóplia do murmillo
e a do retiarius explica o facto de se atestarem poucas imagens representando os combates
entre ambos durante o século I d. C. Em contrapartida, desde o início do século II, assiste-se a
uma multiplicação de cenas mostrando o retiarius a defrontar um ou vários secutores.

Não obstante a sua emergência tardia, ao examinarmos atentamente o corpus iconográfico,


constatamos que o retiarius e o seu novo tipo de adversário, o secutor, se juntaram às vedetas
da arena do século I da nossa era que foram os thraeces e os murmillones. Embora os últimos
tenham continuado a aparecer em diversos géneros de suportes até aos derradeiros tempos da
história da gladiatura, o par formado pelo retiarius e pelo secutor veio a atingir quase uma
equivalência entre o número de representações plásticas e o das ocorrências epigráficas,
mesmo principiando o seu desenvolvimento ulteriormente: se, por um lado, os murmillones e
os thraeces totalizam 192 ocorrências no corpus epigráfico, os secutores e os retiarii, por outro,
têm 167 inscrições. No que concerne às representações figurativas, o par thraex-murmillo
situa-se claramente à cabeça, com 636 ocorrências, mas os retiarii e os secutores seguem de
perto com 545 imagens ilustrando os seus duelos. Coloca-se, então, uma questão muito
pertinente, a de saber em que momento o murmillo se terá convertido no secutor; a este
respeito, uma inscrição talvez transmita um indício esclarecedor (CIL II 7361):
M

FAVSTVS NER

XII VERALEXAN XXXV H S E

739D(is) M(anibus) / Lyco lib(ero) mur(milloni)/scaev(a) pugna(rum) IIII / fec(it) Longinas / li(ber) contrarete / fratri
b(ene) m(erenti): CIL VI.10180. Foi, pois, o contrarete Longinas que arranjou o túmulo para o seu irmão, o murmillo
canhoto Lycus. Este pereceu no seu quarto combate.

290
APOLLONIA VXOR

ET HERMES TR DE

SVO POSVERVNT

Como Faustus apresenta o título de neronianus, isto signica que morreu antes de 69 d. C., uma
vez que a escola neroniana não sobreviveu ao assassinato do imperador Nero. A identificação
de Faustus como murmillo contraretiarius mostra que a designação de secutor ainda não fora
adoptada na altura em que a mulher deste combatente, a uxor Apollonia e o thraex Hermes
erigiram a lápide. No entanto, tanto ela como Hermes, os mais chegados do defunto, no
epitáfio consideraram necessário distinguir Faustus de um murmillo «normal», que combatia
tradicionalmente o thraex, o que tende a provar que o vocábulo secutor ainda não teria sido
criado para designar o oponente do retiarius sob o reinado de Nero. Esta explicitação quanto
ao adversário particular do retiarius demonstra que já havia uma especialização anti-retiarius
por parte de certos murmillones, em meados do século I d. C. A existência dessa especialização
tornou certamente necessária a elaboração de uma nova armatura específica. Nesta inscrição
colhe-se outra informação digna de interesse, a presença do thraex Hermes: talvez consistisse
no parceiro com quem Faustus se treinaria no ludus. Se a interpretação estiver correcta, então
o murmillo seria ainda polivalente no tempo de Nero, podendo bater-se tanto contra o
retiarius, como contra o thraex.

Porém, de todos os anúncios de Pompeia, apenas um deles alude a um retiarius, que enfrenta
curiosamente um essedarius. Consequentemente, os combates entre o retiarius e o secutor
terão sido raros até à catástrofe vulcânica que destruiu Pompeia. É muito possível que, ao
longo dos dez anos que separam o fim do reinado de Nero e a erupção do Vesúvio, é que terá
aparecido o secutor, na qualidade de único especialista da luta anti-retiarius. Atrás dissemos
que o secutor adquiriu a sua típica especificidade a partir, sobretudo, do seu elmo, do qual se
acharam três espécimes em Pompeia. Supomos que estes cascos se contem entre os primeiros
fabricados para esta especialidade, constituindo protótipos com futuro mais do que garantido.
Este género de capacete740 pode definir-se como uma perfeita protecção para a cabeça,
directamente adaptada às armas do adversário. Graças à ausência de asperezas ou rebordos e
a uma cimeira bastante peculiar, o secutor podia desembaraçar-se da rede lançada pelo seu
oponente. Para além disto, o reforço da protecção facial também permitia resistir face aos
terríveis golpes do tridente.

Apareceu, assim, um novo tipo de gladiador cujo nome, secutor, puramente técnico, significa,
como facilmente se infere, «perseguidor». O termo dado a esta nova armatura esteve
certamente ligado à adopção deste inovador género de casco. Com efeito, quando o oponente
do retiarius era um murmillo, este cingia-se a um sistema essencialmente defensivo, tendo que
sofrer os assaltos do seu adversário. Esta passividade, que se denota nas cenas observáveis em
algumas peças de cerâmica sigillata (fig. p. 106), provinha da inadaptação do seu escudo, mais
ainda do que do seu elmo. Este, por seu lado, oferecia um alvo quase ideal para a rede do
retiarius, afora proteger mal o seu utilizador dos ataques do tridente.

740A superfície lisa e arredondada, os pequenos orifícios para os olhos e a cimeira, assemelhando-se a uma
barbatana dorsal, tudo isto, na opinião de M. Junkelmann, confere ao elmo do secutor o aspecto de uma cabeça de
peixe, o que se adequaria ao papel do seu oponente, o retiarius, um «pescador» munido de uma rede e de um
tridente: «Familia Gladiatoria: The Heroes of the Amphitheatre», p. 61. No Musée d’Arles Antique (França),
preserva-se uma estatueta em bronze de um secutor (século II d. C.; FAN 92.00.1371), cujo casco tem uma viseira
móvel. A concepção estrutural da última seria demasiado complicada para se reproduzir minuciosamente numa
peça escultórica de pequeno tamanho; assim se percebe que o artífice tenha optado por colocar uma viseira que se
pudesse puxar para cima e para baixo, da mesma maneira que as dos elmos fechados europeus produzidos entre os
séculos XV e XVII.

291
Ora uma vez providos de um género de elmo especialmente concebido para fazer face a este
adversário particular, os contraretiarii podiam finalmente abandonar a atitude defensiva e
passarem a perseguir o seu oponente. Foi, sem dúvida, esta evolução completa no
comportamento dos secutores na arena que lhes valeu a sua própria designação, o que terá
acontecido no tempo dos primeiros Flávios. Esta datação do aparecimento do secutor,
cronologicamente posterior ao reinado de Nero, parece estar em contradição com uma
passagem de Suetónio amiúde citada. Com efeito, o autor relata o combate entre cinco retiarii
e igual número de secutores, num espectáculo sob a égide de Calígula.

No entanto, Suetónio escreveu cerca de duas gerações após o reinado de Calígula; é, portanto,
provável que no momento histórico em que Suetónio redigiu as Vidas dos Doze Césares, sob o
reinado de Trajano, a denominação de murmillo contraretiarius já não tivesse razão de ser,
dado que o secutor se havia convertido no adversário exclusivo do retiarius, consistindo, por
essa altura, numa armatura bem estabelecida.

Sob os Antoninos, o corpus iconográfico já engloba um número considerável de secutores,


prova evidente do seu sucesso no século II. Aproximadamente cem anos mais tarde, sob os
Severos, continua bem manifesto o êxito desta armatura. Entre os testemunhos plásticos,
avulta um significativo baixo-relevo erigido em honra de um gladiador chamado Batus (fig. )741:
foi esculpido numa estela funerária de dimensões excepcionais (185 cm x 120 cm), conservada
na Galleria Doria (Salone Aldobrandini, Neg. EA 2324); comparativamente à lápide do secutor
Urbicus (de Milão), é flagrante a semelhança da representação do casco, de novo colocado
num palus; contudo, a qualidade da escultura bidimensional e o tamanho bem maior desta
composição permite observar certos pormenores dificilmente discerníveis na estela de Urbicus:
o elmo que lá vemos pertence claramente ao modelo do de Urbicus, mas a precisão no
desenho do casco de Batus mostra que esta protecção é muito parecida aos capacetes
descobertos em Pompeia, ficando nós com a impressão que não terá conhecido uma grande
evolução formal desde o século I d. C.

Vemos outro detalhe interessante: a posição em que se figurou o gladiador, que nos permite
observar o interior do seu escudo: verificamos, então, que a pega do scutum do secutor diferia
da do murmillo; de facto, o manipulus do murmillo era simplesmente composto por uma pega
colocada no centro do escudo, em regra por detrás de um umbo ou de uma spina. Na presente
estela, Batusto segura o escudo através de duas presilhas distintas: a primeira, situada na parte
superior do scutum, é bastante larga, de modo a deixar passar o braço do secutor; a segunda
consiste num manipulus, posicionado mais em baixo do que noutros scuta de gladiadores,
servindo para agarrar bem o escudo com a mão 742.

O scutum e o elmo do secutor afastam-se da tradição militar, em proveito de peças defensivas


especificamente concebidas no contexto gladiatório. Os motivos explicativos para este sistema
específico estavam efectivamente relacionados com a técnica peculiar do secutor. Se, por um
lado, o murmillo se confinava a uma defesa quase constante, o secutor, por outro, como aliás o
seu nome indica, tinha de ser mais ofensivo. Graças ao tipo de pega e às presilhas do seu
escudo, o secutor podia, simultaneamente, movimentar-se e correr com mais facilidade, além
de utilizar o escudo para efectuar percussão contra o retiarius743. O que Artemidoro escreveu a
propósito do secutor e do retiarius na obra Oneirokritika corrobora esta ideia. De acordo com
esse autor grego, o secutor era sinónimo de riqueza, enquanto o murmillo significava um

741 M. Junkelmann, Gladiatoren…, est. 19, p. 20.

742Este sistema, através do qual o escudo era mantido ao mesmo tempo ao nível do bíceps e da mão esquerda,
parece retomar a estrutura interna dos escudos do hóplita que estavam munidos de um braçal e de um manípulo.

743 Consequentemente, o secutor podia utilizar o seu escudo à maneira do provocator A.

292
gladiador «moderadamente rico». O carácter ofensivo do primeiro vê-se bem sublinhado pela
aparente fragilidade do retiarius, que obrigava o seu oponente a dar-lhe caça. Em sentido
inverso, a quase total nudez do retiarius encontra-se indubitavelmente na origem do carácter
volúvel que Artemidoro lhe atribuiu.Face a um secutor bem protegido, o retiarius necessitava
de fazer uso, a todo o custo, da sua mobilidade. Consequentemente, o retiarius era um
gladiador inequivocamente ofensivo no século I d. C., que, depois, se metamorfoseou com a
aparição de um adversário especialmente projectado para o perseguir. No entanto, se em
teoria, o homem da rede e do tridente se tornava numa «presa», nem por isso ele deixava de
poder revelar-se muito perigoso devido à sua agilidade e às suas armas, que continuavam a ser
temíveis.

De acordo com P. Sabbatini Tumolesi, o referido baixo-relevo de Batus data do reinado de


Caracala, baseando-se a autora no facto de que, no tempo desse imperador, houve um célebre
gladiador com tal nome. De acordo Díon Cássio, Caracala teria mesmo honrado a memória
desse combatente, ao mandar erigir um monumento importante. O estilo desta escultura não
contradiz esta hipótese, além de que a própria estela, que significa um objecto comemorativo,
não se trata de uma peça funerária. Aqui, estamos, portanto, diante de um secutor triunfante,
símbolo de uma armatura que dominava todas as demais, juntamente com a do retiarius, nos
anfiteatros sob as dinastias antonina e severiana, popularidade, de resto, que igualmente se
fazia sentir tanto na parte ocidental como na oriental do império.

Deste tipo de gladiador preservaram-se cerca de uma centena de relevos, havendo 44 estelas
funerárias. Se a maior parte destes testemunhos é bastante simples e estereotipada, o certo é
que existem algumas mais elaboradas. Numa estela (séc. II-III d. C.), hoje pertencente ao
Museu de Istambul, um secutor chamado Tralles exibe orgulhosamente cinco coronae e uma
palma, que comemoram igual número de vitórias obtidas com todo o êxito: no relevo deste
monumento, o casco, representado num ângulo de ¾, mostra que os orifícios oculares do
século Id. C. vieram a ser substituídos por uma grelha, o que oferecia claramente uma melhor
visão ao combatente. Sendo assim, parece que o fabrico dos elmos de secutores terá
conhecido variantes formais no Oriente e no Ocidente. Em contrapartida, o reforço central do
casco está sempre presente. Quanto ao resto, a silhueta não sofreu mudanças. A cimeira,
muito fina e em meia-lua, não foi modificada, embora se denote uma certa tendência para o
seu alteamento. Estes testemunhos, bem como grande número de relevos mostrando cenas de
combates, demonstram que o par retiarius-secutor preponderou cada vez mais na gladiatura a
partir do século II d. C., e isto até à extinção da mesma, tanto no Ocidente como no Oriente.
Esta constatação assume importância, visto que serve para frisar a natureza viva e evolutiva do
fenómeno gladiatório ao longo dos séculos. O sucesso verdadeiramente excepcional do secutor
e do retiarius deveu-se, sem dúvida, ao facto de ambos os gladiadores se afigurarem
complementares e aparecerem como os produtos mais perfeitos das armaturae técnicas.

Elementos caracterizadores do duelo entre o retiarius e o secutor (séculos I- III d. C.)

A oposição retiarius-secutor era, indubitavelmente, o duelo mais espectacular da gladiatura.


Nele se assistia a um rico número de combinações e a reviravoltas muitas vezes fantásticas e
inesperadas, susceptíveis de inflamar o público. Extremamente raras antes de meados do
século I, as representações plásticas de combates entre retiarii e secutores tornaram-se muito
numerosas a partir do século II, acabando por ocupar um lugar preponderante no contexto
iconográfico. Este acervo documental possibilita, assim, melhor compreender as características

293
próprias deste duelo, que gerou um grande entusiasmo entre os espectadores a partir da
dinastia dos Antoninos.

Uma das singularidades mais atípicas nesta oposição radica na rede, que consiste numa arma
única, sem qualquer equivalente entre os gladiadores, nem entre os militares romanos.
Contudo, esta «arma», da qual o retiarius ganhou o seu nome, só se encontra representada em
10% do acervo icónico. A relativa escassez da rede pode levar-nos a depreender que esta peça
emblemática fosse utilizada raramente ou, até, que viesse a ser abandonada num curto espaço
de tempo. A última hipótese não parece corresponder à realidade. Com efeito, a frequência
das imagens (mesmo que poucas) onde se figura a rede permanece constante desde as
primeiras aparições do retiarius até às composições pictóricas e escultóricas do século III d. C.

Lembremos que a mais antiga representação conhecida de um retiarius se assinala numa cena
em que o último está munido da rede num vaso da oficina de Chrysippus. Volvidos três séculos,
há uma representação deste tipo de gladiador que é, até ao momento, a que melhor ilustra a
utilização desta arma particular: trata-se de um mosaico romano datado de finais do século III
ou até de princípios do IV (conservado no Museu Arqueológico Nacional de Madrid, fig. Junk.
p. 137), em que o artista descreveu dois momentos fortes do combate entre Astyanax e
Kalendio; no registo inferior, o retiarius Kalendio lançou a sua rede para cima da cabeça do
adversário, Astyanax, um secutor 744. Este, apesar de ficar momentaneamente em
desvantagem, acabou por vencer o retiarius, proeza que lhe valeu o facto de ser imortalizado
no mosaico. Se bem, como dissemos, as representações da rede sejam raras, não resta a
menor dúvida que a altura que mais interessava o público se situava no instante fatídico em
que a pugna anunciava o seu desfecho.

Aparentemente, a rede tinha relevância na fase inicial do combate, quando ambos os


gladiadores se observavam mutuamente e cada um buscava obter vantagem sobre o outro.
Deparamos com uma descrição gráfica assaz invulgar, esculpida num cântaro do século II
pertencente ao Historisches Museum der Pfalz (Speyer, Alemanha; fig. Nossov, p. 64), onde um
retiarius aparece prestes a lançar a rede sobre o adversário 745: a sua mão direita, agarrando a
rete, está pronta a efectuar o lançamento, enquanto a direita segura no tridente (com as
pontas viradas para baixo para evitar que interferissem no arremesso) e na adaga ao mesmo
tempo; esta representação, todavia, não serve para concluir que a rede fosse sempre utilizada
pela mão direita; o artista trocou, provavelmente, as armas nas mãos do retiarius, o que se vê
também noutras figurações gladiatórias;acontece que sabemos que o retiarius pegava em geral
na rede com a mão esquerda (a manica no braço esquerdo impedia que ele fosse ferido ao
atirar a rede.

O secutor estava suficientemente treinado para lidar com o seu oponente e, também podia
evitar a rede, sob o ponto de vista técnico, através do recurso oferecido pelo seu elmo,
especificamente concebido para este efeito. Todavia, com base nos testes efectuados no
âmbito da arqueologia experimental, ficou demonstrado que o secutor teria de evitar a todo o
custo a rede: se não estivesse atento, arriscava-se a ver-se preso entre as malhas da rede. A
etapa inicial de um confronto muito dificilmente conduzia a uma decisão rápida, mas nem por
isso deixava de desempenhar um papel relevante. Enquanto o retiarius lograsse manter a
distância, mediante o tridente e a ameaça da rede, o seu adversário encontrava-se numa
posição enfraquecida. Importa lembrar que o secutor tinha a cabeça protegida por um casco

744Antonio Blanco Frejeiro, «Mosaicos romanos con escenas de circo y anfiteatro en el Museu Arqueológico
Nacional», Archivo Español de Arqueologia 23, nº 79 (1950), pp. 133-134, fig. 8; M. Donderer, Mosaïque. Recueil
d’hommages à Henri Stern, Paris, 1983, p. 125ss; M. Junkelmann, Gladiatoren…, p. 137, est. 216.

745 K. Nossov, Gladiator…, p. 64.

294
bastante pesado e quase hermético. Se ele demorasse muito a atacar, o tempo só corria contra
o secutor.

Consequentemente, os primeiros momentos do duelo constituíam um perigoso jogo entre


«gato e rato», em que o secutor buscava não cair na armadilha montada pelo oponente.
Quando o retiarius atirava a rede e acertava no alvo, o secutor, ao tentar resistir, fatigava-se.
Mas 90% dos retiarii surgem representados sem a rede, o que nos faz presumir que, na maior
parte dos casos, o retiarius lançava a rede mas sem êxito. O secutor aproveitava naturalmente
para pressionar mais, estando o retiarius apenas provido do tridente. A pressão do secutor
podia traduzir-se no emprego dinâmico do seu scutum 746 contra um adversário que nunca
utilizava tal protecção. É precisamente o que observamos num baixo-relevo romano: este
monumento, do século III d. C., erigido na Via Appia, comemorava as façanhas de um secutor
certamente famoso no seu tempo mas cujo nome não chegou até nós (Museo Nazionale alle
Terme di Diocleziano). O gladiador foi representado várias vezes enfrentando retiarii, que nas
cenas surgem sempre vencidos, acompanhados dos seus respectivos nomes, bem como do
número de vitórias obtidas pelo secutor. Numa dessas cenas, o secutor mostra o seu escudo
mantido à frente, num movimento horizontal, prestes a golpear ou, pelo menos, exercer
pressão sobre o oponente (fig. tey. p. 306). Esta imagem bastante sugestiva permite, em certa
medida, avaliar o ímpeto da arremetida de um «perseguidor», que empregava o escudo ao
jeito de uma espécie de aríete.

Se já não tivesse a rede, ao retiarius quase só restaria como alternativa retroceder ou, mesmo,
fugir, diante de tal assalto. Ele precisava, impreterivelmente, de ganhar distância em relação ao
adversário, contra o qual pouco poderia fazer nesta situação. De facto, o escudo mantido na
extremidade do braço esquerdo do secutor (ou no direito se ele fosse canhoto) correspondia
aproximadamente ao tamanho do cabo de madeira do tridente. Ante um secutor em plena
arremetida, o retiarius não conseguia preparar-se convenientemente para contra-atacar com a
sua arma de haste e atingir o adversário de maneira contundente. No entanto, a investida do
secutor seria necessariamente breve: ao faltar-lhe oxigénio, ele dificilmente podia prosseguir
nessa atitude ofensiva para além de uns segundos. Por seu turno, o retiarius teria de
retroceder com agilidade, esquivando-se e efectuando fintas, conservando o seu tridente na
direcção do secutor e colocando-se de lado, apresentando-lhe o seu ombro direito protegido
pelo galerus.

Já assinalável nas peças de cerâmica de Chrysippus, o galerus do retiarius revestia-se,


aparentemente, de certa importância no combate. Com efeito, um golpe assestado no rosto
seria muito perigoso para o retiarius, já que não usava elmo. Numa lucerna da primeira metade
do século I d. C., capta-se perfeitamente a gravidade de uma tal situação: este artefacto
decorado, pertencente ao Museu de Salamina, em Chipre (fig. tey, p. 308), constitui um dos
mais antigos testemunhos, neste género de suportes, de uma porfia envolvendo um retiarius.
Note-se que o casco do oponente, que talvez não seja um secutor, não possui cimeira; se este
pormenor não se deve à imperícia do oleiro, então é possível que observemos uma tentativa
de adaptação do elmo do murmillo, despojado da sua cimeira, por consistir num elemento que
facilmente poderia ficar preso na rede. Na mesma composição, note-se igualmente como o
contraretiarius mantém o escudo numa posição elevada. Esta atitude, que não é habitual nos
secutores, indica, em princípio, que tal gladiador não estaria ainda munido de uma grelha de
protecção facial, daí o retiarius parecer querer atingir o rosto do adversário. Por outro lado, o
cabo do tridente termina numa ponta, como sucede também em certas representações mais
antigas deste gladiador, haja em vista o já aqui referido medalhão de uma lamparina, onde se
figura isoladamente um retiarius, em posição de ataque (fig. ; meados do século I, Palais du
Roue, Avignon, França).

746 A maneira específica de pegar no escudo do secutor facilitava essa utilização ofensiva do mesmo.

295
Apesar de possuir um equipamento que o obrigava a estar numa postura defensiva, o
oponente do retiarius aparece no medalhão da lucerna de Salamina a tentar atacar por cima,
com o braço direito arqueado. Em face disto, o retiarius vê-se obrigado a inclinar o corpo para
trás, de molde a assim evitar uma estocada vibrada pelo seu oponente. Ao fazê-lo, fica numa
posição assaz desfavorável, em desequilíbrio, aproveitando-se o adversário dessa situação.
Neste documento plástico, vê-se o galerus, mas aparenta ter reduzidas dimensões 747. Se nos
ativermos às fontes disponíveis, o galerus terá registado uma tendência de aumento
progressivo com o passar do tempo. Os galeri descobertos em Pompeia já exibem um tamanho
mais considerável do que a pequena protecção observável na lamparina de Salamina.

O desenvolvimento do galerus buscou proteger mais o rosto do retiarius: com um galerus


dotado de maior altura e largura, o secutor não podia arriscar-se a empreender facilmente esse
tipo de investida. Na lamparina de Salamina, vemos que o combatente provido do scutum se
encontra na fase final do seu ataque e está-se, tal como o seu adversário, em desequilíbrio, o
que implicava sempre riscos acrescidos em combate. Atente-se que este género de assalto
levado a cabo por cima nunca aparece no acervo iconográfico que reune cenas entre retiarii e
secutores executadas a partir do século II. Por seu lado, os retiarii aparecem invariavelmente
figurados com um galerus de maiores dimensões, peça que, com o decorrer do tempo,
começou a registar uma tendência de se encurvar para a frente. Esta evolução assinala-se
nitidamente numa estatueta de bronze do Musée de Autun (França: fig. ). A escultura mostra
um retiarius aparentemente já no fim de uma pugna, dado que não possui o tridente, nem a
rede, reduzindo-se o seu equipamento à adaga, a uma manica cobrindo o braço, a qual se vê
rematada por um imponente galerus. Nesta fonte, assim como noutras dos séculos II e III, o
galerus destaca-se pelo tamanho, quase o dobro do das protecções achadas em Pompeia
(actualmente no Museo Archeologico Nazionale de Nápoles). Graças a tal galerus, o rosto do
retiarius ficava quase inacessível ao secutor. Bastaria que o primeiro girasse o tronco para
apresentar-se de perfil face ao oponente, postura que foi frequentemente adoptada. Além
disso, como aliás se constata na referida estatueta, a presença do galerus não se afigurava um
empecilho ou estorvo para o seu utilizador quando este decidia atacar. Ora isto deita por terra
uma ideia que vingou durante largo tempo, segundo a qual o galerus significaria uma espécie
de refinamento cruel dos Romanos, no sentido em que serviria para colocar ainda mais em
desvantagem um gladiador já pouco favorecido por causa do seu equipamento ligeiro. Bem
pelo contrário, o galerus correspondeu antes a um elemento técnico resultante de uma lenta
evolução. O seu principal trunfo era o de aliar a ligeireza à sua eficácia protectora.

Nos gobelets em terra sigillata da oficina de Chrysippus, observam-se, como vimos, os


primeiros retiarii conhecidos, dotados de pesadas ocreae semelhantes às empregues pelos
thraeces. Estas grevas metálicas devem ter desaparecido rapidamente, uma vez que não as
reencontramos nas numerosas representações ulteriores dos retiarii. A explicação para tal
facto é simples: se, por um lado, o galerus permitia o equilíbrio entre a ligeireza das protecções
e o indispensável dinamismo do retiarius, por outro, já o mesmo não acontecia relativamente
às ocreae. Estas, como se verificou pelos testes de arqueologia experimental, impediam o
combatente de correr. Assim, as grevas metálicas eram uma desvantagem que podia revelar-se
letal para o retiarius face ao secutor. Consequentemente, a adopção do galerus evitava que o
secutor assestasse os ataques «altos», que dessa maneira não conseguiria superar
exitosamente essa barreira, contanto que o retiarius estivesse correctamente posicionado. Em
contrapartida, o desaparecimento das ocreae acarretava uma descompensação, abrindo
caminho para as investidas por baixo.Os ataques direccionados contra as pernas, amiúde
figurados no corpus iconográfico, efectuavam-se com os escudos. Este tipo de assalto
patenteia-se claramente numa lucerna do século II d. C. (Fig. tey, p. 311; procedente de

747É certo que o oleiro pode ter diminuído o tamanho do galerus, para melhor evidenciar a cabeça do retiarius.
Além disso, o próprio medalhão é, igualmente, de pequenas dimensões.

296
Corinto, actualmente na Bibliothèque Nationale de Paris 748): aqui, o retiarius perdeu a adaga e
tenta recuperá-la no solo; o secutor aproveita este instante, em que o adversário não está em
guarda, para o golpear com a parte inferior do seu scutum.

Noutros casos, o secutor podia realizar uma percussão baixa com o escudo para reagir a um
ataque feito com o tridente. Esta situação foi também amplamente representada e constituiria,
sem dúvida, um momento muito aguardado pelo público ao assistir ao duelo, opondo um
retiarius a um murmillo. Com efeito, com base nas experimentações efectuadas nos dias de
hoje, concluimos que o retiarius teria de enfrentar uma linha de protecções coerentes,
composta pela sobreposição da ocreae, do scutum e do elmo do secutor. Ao mesmo tempo
que buscava garantir a sua integridade física através da sua mobilidade, o retiarius precisava de
romper a linha de defesa do oponente: o elmo podia corresponder ao primeiro alvo visado. Se
nos fundamentarmos nas recriações experimentais dos combates, verificamos que as
percussões do tridente contra o casco conduziam a choques brutais, difíceis de «encaixar» por
parte do secutor. No entanto, os elmos descobertos em Pompeia não revelam quaisquer
vestígios de golpes. À primeira vista, isto parece surpreendente, mas tem uma explicação:
ainda que portentosos, os choques consecutivos de um tridente sobre um casco raramente
seriam decisivos numa porfia entre o retiarius e o secutor. De facto, como salientámos, o elmo
do secutor significava um verdadeiro «torreão blindado» 749, concebido para receber, sem
falhas, até as pancadas mais fortes ou violentas. Numa primeira fase, é até provável que estes
cascos tenham sido fabricados não em bronze, mas em ferro espesso, a fim de tornar
praticamente invulnerável a cabeça dos seus utilizadores. O peso destes primeiros modelos
pompeianos terá obrigado a renunciar a esse metal, preferindo-se, momentaneamente, o
emprego de chapa de bronze. Pouco mais tarde, de acordo com as fontes plásticas polícromas,
parece que certos elmos de secutores voltaram a ser confeccionados com ferro.

Contudo, os cascos mais tardios eram indubitavelmente mais leves do que os protótipos do
século I d. C., embora continuassem a destinar-se sempre à protecção eficaz da cabeça do
secutor. Ante os aperfeiçoamentos introduzidos nos elmos dos seus oponentes, os retiarii
teriam de concentrar os seus ataques com o tridente sobre as zonas mais expostas dos
secutores. De facto, afora a lamparina do museu cipriota, nenhum espécime do corpus
iconográfico que ilustra os duelos entre estes dois tipos de gladiadores nos mostra uma
investida do tridente direccionado à cabeça do secutor. Por outro lado, nas imagens são mais
frequentemente visados o scutum e as tíbias.

Assim, o retiarius podia exercer uma intensa percussão contra o escudo, de molde a restringir
as investidas do secutor. Este género de oposição observa-se em diversas fontes icónicas,
como, por exemplo, o fragmento de um relevo conservado no Museu de Pamukkale-Hierápolis
(Fig. tey p. 312; Turquia, século II ou III d. C.): nesta cena, um retiarius aplica toda a força ao
manter o tridente sobre a parte superior do escudo, tentando bloquear a progressão do
adversário. Quando não arremetia contra o scutum, o retiarius visava alternativamente as
tíbias ou a parte inferior do escudo do oponente. Se o secutor mantivesse correctamente a sua
guarda em cunha, ficava apenas com a sua tíbia esquerda exposta, mas protegida por uma
ocrea. Neste caso, um ataque por baixo não surtia um efeito determinante no secutor. O
retiarius talvez não visasse a perna mas procurasse, em vez disso, fazer deslizar o seu tridente
sob o escudo do adversário. O objectivo deste «passe» consistia em enganchar, com a parte
posterior do tridente, o scutum: se o tridente passasse por baixo do escudo, o retiarius poderia
a seguir trazê-lo de volta para si mesmo e, paralelamente, arrastar, neste mesmo gesto, o
scutum do secutor. Há algumas representações que nos elucidam sobre isto, como o muito

748 A. Bañas Bastida, Gladiadores…, fig. 57.

749 É. Teyssier, La mort en face…, p. 310.

297
conhecido mosaico de Nennig (Fig. junk. p. 88; Sarre, Alemanha, conservado in situ numa villa;
finais do século II d. C. 750): com efeito, essa parte do tridente aparece descrita por vezes
provida de ganchos, o que possibilitava ao retiarius agarrar melhor a protecção do oponente.
Através deste dispositivo, que funcionava como uma espécie de fateixa ou arpéu, o retiarius
podia controlar a parcela inferior do escudo do secutor.

Se o retiarius tivesse êxito ao assestar o golpe, o desenlace do combate penderia claramente a


seu favor. Tal «passe de arma» observa-se no fragmento de um baixo-relevo preservado no
Arkeolojisi Müze de Izmir 751 (Fig. tey, p. 314; Turquia, século II- III d. C.): nesta cena, à
semelhança do mosaico de Nennig, o escultor quis certamente reproduzir o instante em que o
tridente se posiciona debaixo do scutum do secutor (I). Este acha-se então numa situação
bastante desagradável: se ele tenta conservar o escudo, arrisca-se a ver-se puxado em direcção
ao retiarius752. De facto, o último opera uma tracção de baixo para cima e movimenta-se para
trás recorrendo à força de ambos os braços (II). Perante esta posição, o secutor teria de exercer
pressão no sentido contrário, fazendo uso, apenas, do seu braço esquerdo (III); ora, a menos
que possuísse muito mais força do que o oponente, seria praticamente impossível conseguir
resistir. Se o secutor cedesse a tal tracção, corria o sério perigo de ficar bem ao alcance do
retiarius, que, poderia aproveitar para se servir da adaga que segurava juntamente com o cabo
do tridente, empregando a mão esquerda (IV). Então, por meio do pugio753, o retiarius poderia
largar o cabo do tridente e ferir o secutor com uma estocada nas suas costas. Se não lograsse
efectuar esse ataque por baixo, o retiarius podia então levar a cabo uma investida do mesmo
género, mas desta feita com a finalidade de enganchar a parte superior do scutum do
adversário; é isto que se vê numa das faces decoradas do jarro de vidro procedente de Ismant
el-Kharab (antiga Kellis)754 (Fig. ; Egipto, século II d. C.): o tridente passa por cima do scutum;
uma vez enganchado, o retiarius puxa-o, ao mesmo tempo que recua; nesta pugna, o secutor
não quis largar o escudo e, ao revelar-se incapaz de contrariar a poderosa tracção do retiarius,
só com o braço esquerdo, ele acaba por meter um joelho em terra e, ao cair, leva à intervenção
do árbitro. Nesta imagem singular, observa-se bem como o árbitro se podia imiscuir no coração
da porfia. Muito possivelmente, essa manobra do retiarius dar-lhe-ia vantagem, mas o summa
rudis impedi-lo-ia de de continuar a lutar. Esta interrupção teria, decerto, por objectivo não
conduzir a uma derrota demasiado rápida do secutor. Além disso, a pausa servia igualmente
para os gladiadores recuperarem o fôlego durante uns instantes, para a seguir retomarem o
combate.

Quando o seu escudo era assim «agarrado» pelo tridente, e se ele pretendesse evitar ser
atirado de encontro ao retiarius, com as consequências que daí resultavam, o secutor podia

750 M. Junkelmann, Gladiatoren…, fig. 127, p. 88.

751 É. Teyssier, La mort en face…, pp. 313-314 (a imagem do relevo encontra-se na p. 314).

752 Recordemos que o thraex podia igualmente levar a cabo a mesma táctica.

753Esta adaga surge quase sistematicamente nas imagens do retiarius. Quando estava em posição de combate, a
daga era mantida a meio do cabo do tridente. Por esta razão é que ela pode, às vezes, escapar à atenção dos
observadores. O gladiador segurava, pois, em ambas as armas com a mão esquerda o pugio tendo uma
empunhadura de fraca espessura, o que implicava grande habilidade para as manusear. As equipas da arqueologia
experimental vieram a demonstrar que esta técnica era praticável, desde que fosse realizada por combatentes
veteranos.

754Jarro que foi descoberto em 2000 (cf. Valerie Hope, «The Excavations at Ismant el-Kharab in 2000: A Brief
Report», Bulletin of the Australian Center for Egyptology, 11, 2000, pp. 58-59). Para uma detalhada descrição deste
objecto e das suas cenas gladiatórias, veja-se Colin A. Hope e Helen V. Whitehouse, «The Gladiator Jug from Ismant
el-Kharab», in E. Gillian e Hope Bowen (eds.), The Oasis Papers 3: Proceedings of the Third International Conference
of the Dakhleh Oasis Project, Oxbow Books, 2004, pp. 296-300, est. 5-7.

298
optar por abandonar o escudo. Nesse caso, o retiarius era puxado para trás subitamente,
enquanto o secutor tinha a oportunidade de se aproximar mais do oponente. Em tal situação, o
retiarius também obtinha um «ponto» a seu favor, dado que conseguira privar o adversário do
seu escudo, uma peça essencial da sua armatura. Coloca-se a questão de sabermos se um
gladiador poderia recuperar uma peça de equipamento perdida ou voluntariamente deixada
de parte. Nesta circunstância, o papel do árbitro desempenharia um papel decisivo. Nenhum
texto antigo nos esclarece quanto ao aspecto bem importante da intervenção do summa rudis
e do seu auxiliar, o secunda rudis. No entanto, colhemos alguns dados num baixo-relevo 755 do
Museu de Éfeso-Selçuk (Fig. junkel. p. 195; Turquia, século II ou III d. C.): nele, identificamos
facilmente o árbitro pela sua túnica e a rudis ou vara, que segura na mão direita, que mantém
ostensivamente o escudo fora do alcance do secutor; esta atitude indicia que o escudo se
perdeu devido a uma manobra bem-sucedida efectuada pelo retiarius.

Subsequentemente, é provável que o árbitro tenha «confiscado» o scutum a fim de sancionar


a vantagem adquirida pelo retiarius. Devolver o escudo significaria a negação desse acto e uma
forma de beneficiar o secutor. Contudo, nada nos impede de pensar que o árbitro não o
pudesse fazer: no caso de um desequilíbrio entre os dois combatentes, ele talvez tivesse a
possibilidade de restituir uma arma perdida, de molde a relançar a expectativa quanto à
contenda. Nas bancadas do anfiteatro, os adeptos do retiarius manifestar-se-iam então
ruidosamente, encolerizando-se contra o árbitro, ao passo que os admiradores do secutor
agradeceriam, decerto, aos deuses esta boa fortuna e a clemência do árbitro. Seja como for, o
«presente» podia revelar-se perigoso. Se, apesar disso, o secutor viesse a dobrar o joelho em
terra, o público não deveria perdoar-lhe, pelo que este seria o seu derradeiro combate.

Voltemos a analisar a cena do relevo de Éfeso: a situação do secutor não é, de todo, favorável
e a pugna talvez já esteja perto de findar. Sem escudo, ele só pode contar com a protecção da
sua manica. Note-se, a propósito, que o secutor figurado é, aparentemente, esquerdino
(scaeva), já que a manica lhe cobre o braço esquerdo, quando normalmente protegeria o
direito. Repare-se igualmente que o secutor fez passar o pugio da mão esquerda para a direita
(que anteriormente segurava o escudo), no intuito de usufruir da protecção da manica756. Face
a uma arma de haste como o tridente, as suas hipóteses afigurar-se-iam muito frágeis. Com
efeito, o retiarius podia esquivar-se facilmente da manica e atingir o secutor na coxa ou na
anca. Se quisesse salvar a pele, ao secutor apenas restava defrontar o adversário com toda a
bravura e energia. Para tal, necessitava evitar os golpes mais graves desferidos pelo tridente e
tinha, forçosamente, de penetrar na esfera defensiva do retiarius, desviando-se do tridente.
Caso tivesse êxito neste propósito, o secutor poderia prosseguir no corpo a corpo, fase em
reequilibraria as suas hipóteses de vencer. Mesmo que não conseguisse fazê-lo com sucesso,
demonstraria, ainda assim, a sua vontade de resistir, comportando-se com um verdadeiro
profissional da arena. Se o secutor contasse com suficiente número de adeptos entre o público,
é muito provável que viesse a gozar da magnanimidade do editor.

A passagem do tridente sob o escudo era das manobras mais temíveis do retiarius. Para
escapar à mesma, o secutor dispunha de poucas possibilidades: estas foram, aliás, testadas em
numerosas experimentações; a primeira maneira de ripostar seria a de abaixar brutalmente o
scutum, a fim de quebrar o cabo do tridente. No entanto, por mais eficaz que fosse, tal contra-
medida revelava-se muito delicada para se pôr em prática, já que dependia mais de um acto
reflexo do que de uma reacção derivada da reflexão. Ao pretender ser exitoso, o secutor teria
755 M. Junkelmann, Gladiatoren…, fig. 330, pp. 194-195.

756Embora o facto de se ser esquerdino era algo encarado de maneira negativa no mundo antigo, o facto é que
vários gladiadores tendem a revelar esta particularidade nos seus epitáfios. Tal é o caso, entre outros, do thraex
Apollonius (CIL VI.10196) e do murmillo Lycus (CIL VI.10180). Cómodo gabava-se, também, de ser um secutor primus
palus canhoto.

299
de se antecipar ao movimento de recuo do tridente por parte do retiarius. A partir do
momento em que o último começava a atacá-lo com a arma de haste, o secutor não
conseguiria abaixar o seu escudo. Seria então preciso desferir o golpe no instante mais
oportuno (uma fracção de segundo) em que o tridente deslizasse sob o escudo. Este género de
«passe», que não se encontra ilustrado no corpus iconográfico gladiatório, só conheceu êxito
em pouquíssimas ocasiões no decurso dos testes realizados no âmbito da arqueologia
experimental.Neste caso, as coisas suceder-se-iam-se com tamanha rapidez que o secutor nem
se aperceberia do que estava a acontecer, por causa do campo de visão muito reduzido que lhe
proporcionava o seu elmo, e da própria brusquidão do movimento executado pelo seu
oponente. Poderia até ser o primeiro a supreender-se ao ver o retiarius a bater em retirada
com toda a celeridade, com um fragmento do cabo do tridente nas mãos. Este tipo de golpe de
teatro devia encarar-se como uma proeza técnica particularmente brilhante e desencadearia,
por certo, o entusiasmo do público, ao assistir à tremenda reviravolta dasituação que ela
ocasionava.

A outra «contra-medida» a esse ataque do retiarius seria a de não procurar resistir à atracção
do primeiro, mas, pelo contrário, acompanhá-lo. Todavia, esta reacção não seria natural,
afigurando-se bem mais normal tentar resistir à iniciativa do adversário, em vez de o
acompanhar. Além do mais, ao reagir dessa forma significava aproximar-se de um oponente
mais móvel e a oferecer-se aos seus golpes. Dito isto, só após um treino rigoroso e uma
familiarização relativamente a este procedimento é que um secutor podia manifestar uma tal
reacção. Para reunir o máximo de hipóteses de sucesso, o «acompanhamento» devia efectuar-
se juntamente com um verdadeiro confronto físico. Isto permitiria, assim, que o secutor
golpeasse o retiarius com o escudo, impedindo-o de reagir demasiado depressa. Se o
conseguisse fazer, o secutor podia envolver-se no corpo a corpo. Contrariamente à oposição
thraex-murmillo, esta fase final do combate aparece representada em considerável quantidade
de imagens antigas que nos mostram a cena envolvendo o par retiarius-secutor. É o que
observamos em estatuetas de osso, bronze ou barro, ou em certos mosaicos, que constituiram
suportes para a descrição visual destas porfias encarniçadas.

Uma dessas representações, que se conserva no Musée d'Avenches 757 (fig. Junk. p. 106; antiga
Aventicum, Suíça século II), ornamenta o cabo feito em marfim de um canivete: o escultor
figurou a altura em que o retiarius já lançou a sua rede e abandonou o tridente. Mas também
perdeu a sua adaga, daí que está totalmente desarmado frente a um secutor que conseguiu
manter todo o seu equipamento. Nesta situação, um gladiador pouco experiente poderia
pensar que nada mais restava, a não ser dobrar o joelho e solicitar a sua missio. Porém, neste
caso, isto não aconteceu e o retiarius dá o tudo por tudo; em vez de fugir, prefere romper
distância em relação ao adversário, ao precipitar-se sobre este. Com a mão esquerda, ele
resiste ao secutor que, com a sua adaga, tenta trespassar o flanco sem defesa do seu oponente.
Ao mesmo tempo que bloqueia a mão armada do secutor, o retiarius posiciona-se quase em
paralelo diante do adversário, agarrando com força a cimeira metálica do casco do secutor,
servindo-se da mão direita. A presença dessa parcela no topo do elmo do secutor podia
traduzir-se numa verdadeira desvantagem: se o retiarius puxasse violentamente a cimeira para
trás, era quase garantido que desequilibraria o adversário, fazendo-o cair. Foi precisamente

757Esta peça foi publicada pela primeira vez por J. Mayor, «Aventicensia 3, Couteau à manche d’ivoire sculpté
représentant deux gladiateurs», ASA 5 (1903-1904), pp. 117-136. Posteriormente, mereceu comentários de vários
autores: E. Mercklin, Römische Klappmessergriffe (Serta Hoffileriana), Zagreb, 1940, Anm. 64; R. Degen, «Eine
römische Kleinplastik: Der Schafhirt von Cham-Hagendorn», HelvA 15 (1984), p. 173, est. 6; Ch. Bron, «Les ivoires
sculptés d’Avenches», Bulletin de l’Association pro Aventico 29 (1985), pp. 33-34, figs. 4-5; M. Junkelmann,
Gladiatoren, fig. 146, p. 106. Mais recentemente, Dávid Bartus abordou com algum detalhe este cabo de marfim no
seu artigo «Les manches de couteau à représentation de gladiateur de l’époque romaine», in Studia Celtica Classica
et Romana Nicolae Szabó Septuagesimo Dedicata, Budapeste, 2010, pp. 40-42.

300
este instante concreto que o artista quis representar, o que mostra até que ponto o suspense
de um duelo permanecia intacto até ao derradeiro segundo.

A posição de combate do retiarius atesta, igualmente, a importância que deviam ter as


disciplinas agonísticas gregas, tais como o pale ou o pancrácio, no próprio treino dos
gladiadores. É provável que, no calor da porfia e em situações-limite, muitos homens da arena
recorressem a reflexos adquiridos após uma longa prática de técnicas muito antigas concebidas
pelos Gregos, as quais podiam traduzir-se na sua salvação em alturas críticas. Se a pugna
reproduzida no cabo de canivete de Avenches findasse com o referido gesto do retiarius,
logrando assim derrotar o oponente, não resta a menor dúvida de que o público demonstraria
severidade para com a sorte do secutor. Possivelmente, não lhe perdoaria o facto de se ter
deixado vencer por um adversário desarmado. No sentido inverso, uma tal proeza contribuiria
decerto para conferir popularidade ao retiarius, tendo sérias hipóteses de este se converter
numa vedeta, sobretudo se o infortunado adversário gozasse de alguma reputação. A
admitirmos a veracidade desta argumentação, parece mais fácil compreender-se a razão de ser
destes objectos decorados que exerceriam, decerto, uma função comemorativa relativamente
a determinados combates particularmente notáveis. Saliente-se também que o escultor teve o
cuidado de individualizar os traços fisionómicos do retiarius, ao realçar a origem africana
(feições negróides) de um gladiador indubitavelmente famoso 758.

Descobriram-se mais três cabos de faca, produzidos em bronze, reproduzindo um tipo de cena
muito similar: o que se achou em Épona 759, em 1833 (fig. ), mostra igualmente o fim do
combate entre um secutor e um retiarius: aqui, de novo, o último, sem armas, agarra com a
mão direita o elmo do secutor e, com a outra, prende o braço direito (munido de adaga) do
adversário; noutras duas peças idênticas, uma procedente de Moselles 760 (fig. ) e outra de Loir-
et-Cher761 (fig. ), observamos praticamente a mesma representação. No entanto, estes cabos de
faca de bronze denotam uma qualidade muito mais modesta, contendo menos requinte formal
e poucos detalhes, quando comparados com o de Aventicum. Estas figurações de pugnas
opondo retiarii a secutores terão sido manufacturadas com base num modelo comum,
provavelmente extraído de um «livro de motivos», segundo afirmou D. Bartus 762, mas não
bebendo inspiração em modelos de estatuária, como supôs J. Mayor 763.

Passemos a outro conjunto escultórico, executado em barro (talvez manufacturado no Sul de


Itália, no século II ou no III, Musée Archéologique de Amiens, fig. Tey, p. 319), onde vemos uma
cena bastante idêntica às precededentes do final de uma contenda opondo um retiarius a um
secutor. Se, por um lado, o anterior testemunho plástico constitui aparentemente uma obra
única ou, pelo menos, possuindo reduzido número de cópias, o grupo de estatuário de Amiens,
por outro, foi executado a partir de um molde bivalve, daí que pode haver gerado grande
quantidade de exemplares. À semelhança da peça de Avenches, representou-se um
encarniçado corpo a corpo entre dois gladiadores. A peça de Amiens revela-se um pouco

758No corpus iconográfico, existe um outro caso de um retiarius negro: trata-se de um mosaico polícromo
descoberto em Aix-en-Provence. Neste testemunho plástico, vemos um retiarius chamado Berylis.

759 J. Mayor, «Aventicensia 3. Couteau à manche…», fig. 47; D. Bartus, «Les manches de couteau à représentation
de gladiateur de l’époque romaine», p. 41, nº 10.

760 M. Feugère, «Découvertes récentes», Instrumentum 19 (2004), p. 34, nº 8.

761 Ibidem, p. 35, nº 9.

762 «Les manches de couteau à représentation de gladiateur de l’époque romaine», p. 42.

763 «Aventicensia 3. Couteau à manche…», pp. 134-135.

301
diferente, já que o secutor, que tem o escudo, parece já estar desprovido da sua adaga e,
então, procura agarrar o pescoço do seu adversário. Aqui, o antagonismo é puramente frontal.
Fica-se com a impressão de que o secutor e que teve a iniciativa de entrar no corpo a corpo,
aproveitando ao máximo a protecção do seu scutum.

Observa-se um pormenor curioso: o artista representou claramente o pé esquerdo do secutor


pisando o direito do oponente, a fim de travar a sua mobilidade no momento em que o
primeiro ataca. Embora não se veja a mão direita do secutor, dá ideia que não empunha
qualquer arma e que é com a mão nua que investe contra o retiarius, sem dúvida no intento de
lhe apanhar o pescoço e o estrangular. Face a esta arremetida, o retiarius reage com precisão:
com a mão esquerda segura a direita do adversário, de molde a diminuir a pressão exercida
sobre a sua garganta. Mas, no mesmo movimento, ele cruza o braço esquerdo de forma a
passar sob o braço do secutor, apoiando-se no escudo deste. Com um gesto específico,
certamente muitas vezes repetido nos treinos, ele acabou de espetar a adaga na axila direita
do secutor. Ora através desta atitude, o retiarius consegue deter de imediato a violenta carga
do secutor. Este, seriamente ferido por uma terrível estocada, será obrigado a abandonar de
imediato o combate e conceder a vitória ao retiarius. Com efeito, o golpe desferido, de baixo
para cima, ainda que não forçosamente mortal, conduz à perda instantânea do uso do braço
direito do secutor, ao seccionar os tendões do ombro. Independentemente da bravura até aí
evidenciada, ao secutor apenas restava a alternativa de solicitar a missio. Com toda a
probabilidade, o editor hesitaria em agraciar um gladiador que manifestamente não poderia
mais combater – isto se ele conseguisse sobreviver a um ferimento tão profundo. A menos que
o público quisesse, a todo o custo, salvar um campeão num momento de infortúnio, os
gladiadores que ficassem gravemente feridos eram, em geral, executados pouco depois. Aqui,
uma vez mais, e à semelhança da cena escultórica de Avenches, esta fase final da porfia
mostra-nos a importância que a luta corpo a corpo assumia nos confrontos gladiatórios.

Aparentemente, estes confrontos fundamentam-se nas técnicas agonísticas gregas às quais a


gladiatura acrescentou a utilização das armas. Para além do secutor de Amiens que sofre um
golpe perigoso na axila, o corpus iconográfico engloba também algumas representações
ilustrando gladiadores da mesma armatura feridos nas costas por estocadas de adaga
habilmente assestadas. Estas lesões nas costas são, de igual modo, sofridos na fase final do
combate, quando os dois contendores já perderam o essencial dos seus respectivos
equipamentos e apenas têm a adaga para continuar a porfia.

Num dos mosaicos gladiatórios de Augst (antiga Augusta Raurica)764, actualmente no


Römermuseum de Augst, Suíça, datando de c. 200 d. C. (fig. Junk, p. 97) 765, um retiarius já não
possui a rede, o que é usual nesta etapa do combate. Afora isso, perdeu também o tridente,
que se encontra tombado no solo. Possivelmente, o retiarius ficou sem a arma de haste devido
a uma investida do secutor, a menos que o primeiro a houvesse abandonado de livre vontade,
com opropósito de se aproximar muito do adversário e atacá-lo com a adaga. Seja como for, no
mosaico descreve-se os momentos finais da pugna, nos quais os gladiadores queriam marcar
um ponto decisivo. Na presente imagem, o secutor acomete a coxa esquerda do retiarius,
quando se acercou dele. Não estando protegido por um escudo, esta parte do corpo afigurava-
se muito vulnerável para o retiarius que, então, teria de medir bem os seus ataques no
contexto do corpo a corpo. Foi, todavia, a escolha que fez o retiarius de Augst, ao aproximar-se
bastante do secutor e cravar-lhe, na parte superior do ombro esquerdo do secutor, a sua
adaga. Torna-se difícil se ambos os golpes terão sido desferidos em simultâneo, mas parece

764 Este ciclo de cinco mosaicos foi descoberto em 1971. Para um estudo aprofundado destas imagens: L. Berger e
M. Joos, Das Augster Gladiatorenmosaik, Römermuseum, Augst, 1971.

765 M. Junkelmann, Gladiatoren…, est. 137, p. 97.

302
uma situação verosímil. Se os dois ataques foram suficientemente eficazes para impedirem
tanto o retiarius como o secutor de retomarem o combate, o desfecho mais lógico só poderia
ser um empate.

O editor podia proclamar um stantes missi (que significa «agraciados/soltos estando de pé»,
expressão aplicável a gladiadores que recebiam permissão para abandonar a arena com vida,
após um combate em que não existia um vencedor nem um derrotado), uma vez que os dois
gladiadores haviam dado mostras de coragem ao envolverem-se em contacto directo. Foi,
certamente, este instante muito técnico que se pretendeu comemorar no mosaico de Augst,
reproduzindo-se os gestos que levaram a «agraciar os protagonistas do prélio.

Se, por um lado, o desenlace do combate figurado na composição de Augst pode deixar-nos
certa margem para incertezas, por outro, há mais um mosaico, em princípio coetâneo,
proveniente de Verona, que mostra um desfecho dotado de maior nitidez quanto a um duelo
entre um retiarius e um secutor (fig. Museo Archeologico de Verona, século II ou III d. C.: nesta
representação deveras original, o retiarius, embora ferido na anca esquerda, como se vê pelo
sangue que escorre sobre o seu subligaculum, parece esboçar um sorriso de satisfação. De
facto, atrás dele, o adversário lança o seu escudo para o solo, o que significa indubitavelmente
que a pugna terminou. Embora o secutor ainda mantenha o pugio na mão direita, com a
esquerda está a retirar uma adaga, que só pode ser a do retiarius: a arma encontra-se
espetada, na vertical, na zona da omoplata. Este golpe, ainda que não mortal, provocou uma
ferida de onde sai um abundante jorro de sangue, pelo que o secutor não pode mais prosseguir
o combate; decerto enfraquecido, ele vê-se obrigado a reconhecer a sua derrota e a pedir a
missio, o que explica o sorriso aparente do retiarius.

Este desfecho resultou de um «passe» exitoso, em que o retiarius conseguiu atrair o oponente,
a ponto de este ficar ao seu alcance, infligindo-lhe um golpe determinante. Imediatamente
antes desta etapa final, os dois gladiadores deveriam achar-se numa posição bastante similar à
que se assinala no mosaico de Augst. Entre as duas acções, a única diferença reside no facto de
o secutor de Verona não haver assestado a estocada na coxa, mas na anca do adversário. Ao
«aceitarem» esses ferimentos graves mas não fatais, os dois retiarii de Augst e Verona lograram
aproximar-se dos secutores, atingindo-os com golpes que puseram termo aos combates e
saindo com vantagem. Ao representar as consequências desses «passes», os mosaicistas
resumiram todo um encadeamento de movimentos que os amatores da gladiatura conheciam
bem e podiam imaginar sem quaisquer dificuldades.

Os pontarii: modalidade de combate entre retiarii e vários grupos de adversários

Como tivemos o ensejo de afirmar, a existência de combates de equipas opondo vários


secutores a retiarii aparece claramente evocada por Suetónio na sua biografia de Calígula:

«Cinco retiarii, daqueles que vestem túnicas e combatem em grupo, foram derrubados sem oferecer
resistência por outros tantos secutores; pronunciava-se já a sentença de morte [dos primeiros], quando
um dos vencidos, ao voltar a pegar no tridente, matou os vencedores. Calígula, num édito, deplorou
como terrível este massacre inesperado e atacou com imprecações os que tinham organizado o
espectáculo» (Divus Caligula, 30).

Embora Suetónio não aluda a uma ponte na sua descrição, Apuleio, por seu lado,
refere-se à montagem de estruturas desse género nos preparativos para a apresentação
de um munus oferecido pelo rico Demócares:

303
«Aqui, gladiadores de forte reputação, bestiarii de agilidade consumada […], depois as estacas de um
andaime que se monta, torres formadas por pranchas de madeira que se ligam entre si, à semelhança de
uma casa portátil» (Metamorphoses, IV, 13).

Numa inscrição de Pompeia, lamentavelmente perdida, mas cujo teor se conhece, dizia-se que
Aulus Clodius havia oferecido um munus em que três pares de pontarii se apresentaram ao
público (CIL X 1074). Esta fonte epigráfica encontra-se associada ao primeiro duumvirato de A.
Clodius Flaccus, datando de 20 a. C., aproximadamente.

O acervo iconográfico compreende alguns exemplos de combates cujos protagonistas são


aparentemente pontarii. Tais testemunhos plásticos permitem que afirmemos que só os retiarii
e os secutores participavam nesta variante face aos confrontos mais comuns 766. Uma das
imagens mais antigas consiste num grafito de Pompeia anteriormente citado: representa um
combate em que um retiarius, figurado erguido sobre uma espécie de estrado, repele um
secutor que sobe por um plano inclinado (fig, p.137). Nestas plataformas, os retiarii podiam
buscar refúgio contra os assaltos empreendidos pelos secutores. Para impedirem os últimos de
galgarem as rampas e porem os pés no topo da estrutura de madeira, os retiarii serviam-se de
umas bolas (não se sabe se feitas de pedra ou de madeira), arremessando-as. Seja como for,
estes projécteis revelavam-se suficientemente eficazes para fazerem cair para trás um primeiro
secutor, enquanto outro tentava, por seu lado, assaltar a ponte.

Observa-se este género de cena num medalhão de aplique do Vale do Ródano 767, onde dois
secutores lutam contra um retiarius, do qual apenas restou a extremidade do seu tridente (fig.
Musée de la Civilisation Gallo-Romaine, Lyon, século II d. C., p. 323); descortinamos dois
personagens no pano de fundo da composição, de difícil interpretação, mas em princípio, trata-
se de um árbitro que obriga um gladiador menos afoito a retomar o combate.

Num vaso decorado de terra sigillata, proveniente de Langenhain, de factura mais grosseira
(Fig. Tey p. 324; Wetteraukreis, Alemanha), produzido no século II d. C., apresenta igualmente
um combate deste género, opondo os secutores Flamma e Fearuarius ao retiarius Scorpus 768;
esta imagem, proporciona uma visão mais ampla da cena; se nos abstrairmos dos animais e
dos músicos que se encontram em redor dos pontarii, é possível distinguirmos uma estrutura
ligeira, decerto de madeira, à qual se acedia através de dois planos inclinados, um em cada
extremidade. Para evitar que os assaltantes não escorregassem na sua subida, ao longo das
rampas havia ripas de madeira, esquematicamente assinaladas por meio de umas tantas
pontas. Como na composição precedente de Lyon, o retiarius, que parece estar só sobre o
estrado, dispõe, de cada um dos lados e junto dos seus pés, amontoados de bolas destinadas a
«bombardear» os adversários. Estes indivíduos não eram meros acrobatas, já que os seus três
nomes aparecem em legendas, o que manifesta o facto de gozarem de certa notoriedade.

O mesmo se observa na figuração de outros dois combatentes, cujos nomes, Kritos (ΚΡΙΤΟΣ) e
Mariskos (ΜΑΡΙΣΚΟΣ) se consignaram no baixo-relevo da estela funerária do primeiro,
procedente de Cós, que se conserva no Museo Civico di Storia ed Arte de Trieste 769 (fig. Itália,
século II d. C.; fig. M. Junkel, p. 112). Aqui, o retiarius mantém em respeito o secutor, que tenta

766 L. Bacchielli, «I pontarii: una definizione per via iconografica», in Atti del VII convegno di studio, 15-17
diciembre, 1989, pp. 769-772.

767 P. Wuilleumier e A. Audin, «Les médaillons d’applique gallo-romains de la vallée du Rhône», Annales de
l’Université de Lyon, 3ª série, fascículo XXII (Paris, 1952), p. 33, nº 19.

768H.-G. Simon, «Zwei außergewöhnliche reliefverzierte Gefäße aus Langenhain. Weteraukreis», Germania, 53
(1975), p. 130, est. 3.

769 M. Junkelmann, Gladiatoren…, est. 162, p. 112; A. Mañas Bastida, Gladiadores…, est. 55.

304
galgar a rampa para atingir a «ponte». Na imagem, capta-se também a presença de bolas no
estrado, situadas entre as pernas de Kritos. Assim, para além do seu tridente, o retiarius
recorria a tais projectéis como armas suplementares aquando dos combates de pontarii. No
entanto, a cena afigura-se mais apimentada, dado que o retiarius pode utilizar diferentes
métodos para repelir os ataques dos secutores. Se bem que este testemunho plástico esteja
incompleto (uma placa de mármore), dá vislumbrar uma pequena parcela da segunda rampa,
situada à esquerda.Tendo a estrutura tal configuração, os secutores podiam investir ao mesmo
tempo pelos dois lados opostos. Como nos casos anteriormente referidos, o estrado é
composto por pranchas de madeira ligadas entre si por cruzetas de segurança (?). Por vezes,
esta armação aparece representada de forma assaz simplificada, haja em vista as cenas
pertencentes a certos medalhões de aplique do Vale do Ródano, ao ponto de até passar
despercebida. Um desses exemplares, preservado no Musée Départemental d'Arles Antique,
comporta, aparentemente, uma cena sintética alusiva a um combate entre pontarii.

Ao contrário do que alguns opinaram, as cruzetas visíveis sob os pés dos gladiadores não
significam uma barreira para delimitar a área onde se travava a pugna. Aventou-se esta
hipótese, partindo do princípio de que, antes da construção dos anfiteatros, os combates
gladiatórios decorriam nos fora ou nos circos, em recintos provisoriamente demarcados para
esse efeito. No entanto, tal ideia dificilmente é admissível: mesmo que tomemos como
referências as datas mais recuadas, os primeiros medalhões de aplique foram eleborados no
começo do século II d. C.: por esta altura, a maior parte das cidades onde se apresentava
combates já dispunham de anfiteatros. De facto, o medalhão de Arles, bem como vários
outros, mostra construções feitas de madeira destinada aos pontarii; na cena, o secutor parece
estar em completo desequilíbrio. A sua posição, à primeira vista pouco realista, marca o
momento em que o gladiador acabou de colocar os pés na plataforma, após haver subido
rapidamente pela rampa. À sua frente, o retiarius apoia-se bem para bloquear a arreemetida
do oponente, mediante o seu tridente770.

Vê-se o mesmo momento na cena do «Medalhão de Cavillargues» 771 (fig. p. 360), onde a
estrutura de madeira foi reduzida ao mínimo essencial, de tal maneira que ao longo de décadas
se confundiu com a figuração de uma barreira. Se aceitarmos que essas cruzetas correspondem
às estruturas ligeiras observáveis noutras fontes iconográficas, então tudo leva a crer que os
pontarii seriam elementos muito frequentes em tal tipo de suportes, já que surgem em cerca
de metade dos medalhões de aplique do Vale do Ródano que ilustram confrontos entre retiarii
e secutores. Em resumo, estes «combates sobre uma ponte» constituíam uma alternativa aos
duelos «clássicos», mas só os retiarii e os secutores praticavam tal variante. De facto, nenhuma
fonte icónica apresenta este género de combates com outras armaturae envolvidas.

As cenas de pontarii são raras, cifrando-se em apenas dez ocorrências, as quais se descobriram
essencialmente na parte ocidental do Império romano. Contudo, um testemunho
recentemente descoberto demonstra que esta modalidade de combate entre retiarii e

770Tal como na figura precedente, estes dois gladiadores surgem identificados pelos seus nomes, Thelonicus, o
retiarius, com 11 vitórias e pertencente à escola imperial, e Sedulus, o secutor. À semelhança do «Medalhão de
Cavillargues», a pugna findou com um stantes missi, menção aqui contraída por missi.

771Trata-se de um disco de terracota que se descobriu em 1870, na comuna de Cavillargues (França), pertencente à
categoria tipológica dos chamados «medalhões de aplique», manufacturados por diferentes oficinas localizadas no
Vale do Ródano e comportando diversos temas decorativos (representações de divindades, corridas equestres,
cenas eróticas e combates gladiatórios). Produzidos em série a partir de moldes, estes medalhões chegavam a
possuir numerosas cópias, cujos motivos figurativos se aplicavam depois em vasos de cerâmica. O «Medalhão de
Cavillargues», com 167 mm de diâmetro, é, inegavelmente, um dos mais importantes que se conservaram até hoje,
constituindo um significativo testemunho da prática da gladiatura. Para uma descrição circunstanciada deste
artefacto: É. Teyssier, «Le médaillon de Cavillargues: arrêt sur image de la gladiature», Histoire Antique, nº 32 (juillet-
août, 2007), pp. 36-41.

305
secutores: trata-se de um baixo-relevo, procedente de Kibyra (fig. tey, p. 327; BurdurMüze,
Turquia, século II d. C.), no qual surge claramente representado o carácter ligeiro da estrutura
de madeira; parece composta por pranchas de madeira mal ajustadas ou encaixadas entre si e
mantendo-se de pé graças a um equilíbrio precário. Por outro lado, ilustra-se um momento
particularmente dramático do combate, como se tivesse sido captado em directo da realidade
pelo artista. O retiarius encontra-se numa posição delicada: um dos secutores optou por se
livrar do scutum e agarrar, com ambas as mãos, o tridente do oponente. Entretanto, um
segundo secutor aproveita a «marcação» exercida sobre o retiarius para subir rapidamente a
rampa. Note-se, de passagem, o tamanho bastante reduzido da lâmina pontiaguda do secutor,
que só poderia servir para o combate corpo a corpo. Escolheu-se bem o instante, uma vez que
o observador consegue imaginar o seguimento da pugna: ou o retiarius não se apercebe da
investida do secutor nas suas costas e, em segundos, pode ficar fora de combate; ou, então,
toma consciência da armadilha que está prestes a fechar-se sobre ele e larga o tridente, ao
mesmo tempo que salta da ponte. Se esta situação ocorresse, o retiarius apenas teria a sua
adaga contra dois adversários bem equipados772. A cena mostra, consequentemente, a
colaboração estreita entre os dois secutores e as táticas que levavam a cabo neste género de
combate. É igualmente possível que este relevo, comemorando um importante munus, se
destinasse a imortalizar na pedra as memoráveis prestações dos secutores, que por certo
causou grande entusiasmo entre os espectadores. Além disso, os gladiadores que participavam
neste tipo de confronto deveriam ser veteranos que gozavam de certa fama junto do público 773.
De facto, metade das representações do acervo iconográfico gladiatório contém os nomes
individuais dos combatentes que participaram nesse tipo de pugnas, sinal evidente da
reputação que tinham os mesmos. A outra conclusão que se extrai dessas fontes radica no
isolamento do retiarius, que aparece sistematicamente só face a dois secutores.

Mediante reconstituições e testes no contexto da arqueologia experimental, parece ter ficado


demonstrado que dois retiarii, para além de beneficiarem do facto de estarem sobre a
«ponte», situar-se-iam em clara vantagem em relação a igual número de secutores. Assim,
estas imagens facultam-nos um reflexo aparentemente exacto da realidade dos confrontos dos
pontarii, mas o corpus icónico é demasiado pequeno para que cheguemos a conclusões
definitivas a este respeito. Ademais, tais figurações plásticas não correspondem ao teor do
trecho de Suetónio que evoca esses prélios. Suetónio, efectivamente, alude a uma equipa de
cinco retiarii contra igual número de secutores. É muito possível que houvesse certa liberdade
na organização destes espectáculos bastante raros. Esta modalidade de contenda, palpitante e
inesperada, devia agradar indiscutivelmente ao público que podia, com os pontarii, usufruir de
uma variante quase sempre original, que se inscreveu numa tendência global rumo à
«espectacularização» dos munera, associada, por seu turno, ao sucesso que tinha o par
constituído pelo retiarius e pelo secutor.

A propósito dos elmos gladiatórios descobertos em Pompeia: objectos de parada ou


protecções realmente utilizados pelos combatentes na arena?

Não resta a menor dúvida que os achados arqueológicos assumem grande importância na
reconstrução do armamento antigo. Demonstram, de longe, ser mais fiáveis do que as fontes

772A menos que, por convenção, o secutor não pudesse mais recuperar o seu escudo, visto que o havia largado,
voluntariamente ou não. Tal parece ser a regra em matéria de combate.

773A reconstituição experimental deste género de pugna demonstrou inequivocamente a dificuldade técnica destes
confrontos, durante os quais um gladiador, formado normalmente no duelo, tinha de «gerir» vários oponentes.

306
textuais e as representações plásticas de antanho; mais: fornecem dados sobre os materiais
empregues para a confecção de armas e armaduras, bem como a respeito da tecnologia do seu
fabrico. Mais de 75 % do equipamento claramente gladiatório, acerca do qual já se publicaram
vários estudos, procede de um só local, a caserna (ludus) dos gladiadores de Pompeia,
conjunto de peças que se exumou aquando das escavações efectuadas em 1766/1767. No
entanto, como não é difícil depreender, os métodos postos em prática nesta prospecção
setecentista, sem parâmetros definidos, levaram a que as circunstâncias que presidiram à
descoberta não se vissem adequadamente registados mediante relatórios ou outros meios
afins. No meio de tudo isto, houve peças que se perderam, e as que sobreviveram (à excepção
dos objectos oferecidos ao então Primeiro Cônsul Napoleão Bonaparte em 1802, que estão no
Louvre) estão reunidas no Museo Archeologico Nazionale de Nápoles. Se incluirmos os
espécimes do Louvre, o conjunto compreende 15 elmos completos (num caso com a viseira em
falta), 6 grevas únicas do tipo mais pequeno, uma outra ocrea de tamanho médio, 5 pares de
ocreae de tipo mais comprido, 3 protecções para o ombro, um escudo de reduzidas dimensões
e diversos fragmentos.

Ora acontece que grande parte das peças pompeianas – 11 dos 15 cascos – apresenta-se
coberta por requintadas obras em alto-relevo na sua superfície, tanto ornamentais como
figurativas. Daqui resultou que muitos estudiosos tenham interpretado estas cascos como
elementos destinados a participar na parada (pompa), o cortejo que anunciava o início das
pugnas gladiatórias, e não nestas. Esporadicamente, alguns questionaram esta teoria, mas o
certo é que esta classificação dos elmos como armas de parada se mantém, grosso modo,
vigente até hoje. Vejamos, então, quais os argumentos carreados a favor e contra o uso destas
peças decoradas nas lutas travadas na arena.

A «teoria da parada» repousa essencialmente nas seguintes premissas: estas peças


esplendidamente gravadas com relevos ornamentais seriam demasiado dispendiosas para se
verem expostas a possíveis danos; também se afirmou que as superfícies metálicas contendo
relevos eram excessivamente vulneráveis para aguentar golpes muito fortes; o facto de o
equipamente não mostrar, aparentemente, vestígios de danos de lutas corpo a corpo é
encarado como mais uma prova de que se tratava de equipamento somente destinado para a
pompa. Por último, especialmente os elmos, foram considerados como demasiado pesados
para alguém os colocar na cabeça e conseguir suportá-los ao longo de um duelo. Keith Hopkins
e Mary Beard, dois renomados classicistas sustentaram precisamente estas ideias 774. Éric
Teyssier e Brice Lopez775 enveredaram pelo mesmo caminho, embora adoptando uma postura
menos categórica, quando escreveram que os elmos de Pompeia, devido ao seu peso 776 e à sua
decoração com refinados altos-relevos, provavelmente se utilizariam sobretudo na pompa e
não tanto nos combates que se desenrolavam na arena. Efectivamente, a primeira impressão
que estes elmos profusamente decorados causam é de nos encontrarmos perante de obras de
arte, incluindo figuras salientes esculpidas de bárbaros prestando homenagem à deusa Roma,
assim personagens ou episódios mitológicos. Citemos alguns exemplos:

-Um elmo de thraex, decorado na fronte da calote rosto de Medusa e nos lados por golfinhos,
sobrepujado pelo característico prótomo do grifo (Mus. Archeol. Nápoles, nº de inv. 5650 [Fig.
p. 193, Tey.];

774 The Colosseum, Londres, Profile Books Ltd, 3ª edição, 2011, pp.66-70.

775 Cf. Gladiateurs. Des sources à l’experimentation…, p. 45.

776 É. Teyssier e B. Lopez afirmam que a maioria dos elmos descobertos em Pompeia pesa mais de 11 kg, o que
não corresponde de modo algum à verdade. Cf. Gladiateurs. Des sources à l’expérimentation…, p. 45.

307
-Elmo de murmillo, ornamentado por uma Medusa (muito similar às assinaláveis nos cascos
de thraeces) no centro da calote e por bustos do deus Mercúrio nas paragnátides, na face
frontal da cimeira, destaca-se a figura em alto-relevo do deus Marte (Mus. Arch. Nápoles, nº de
inv. 5640/ Fig. Tey pp. 216-217);

-Elmo de murmillo, onde se esculpiu a figura central de um gladiador, com a cabeça


descoberta, exibindo a sua manica no braço direito e uma palma na mão direita; à sua
esquerda, uma Vitória traz-lhe outra palma e uma corona, e, à sua direita, outra Vitória alada,
que segura o scutum e o gládio do combatente. A peça frontal da cimeira contém o que parece
ser um busto de Hércules envergando a pele do leão de Nemeia; nas faces laterais da crista,
gravaram-se cenas campestres evocando um rito báquico; também se decoraram as
paragnátides com mulheres celebrando determinado ritual (Fig. Mus. Arch. Nº 5672, Tey, p.
219);

-Outro elmo de murmillo. O conjunto da calote foi preenchido por cenas ilustrando as Musas;
cinco delas encontram-se agrupadas na fronte do casco, por baixo de uma representação de
Apolo, que ocupa a parte dianteira da crista. Graças aos seus atributos, estas Musas podem
identificar-se como sendo Clio (a história), Terpsicore (a dança), Urânia (a astronomia), Euterpe
(a música) e Polimnia (o canto). As faces laterais da cimeira foram ornadas com máscaras de
teatro e instrumentos de música. Quanto às paragnátides, possuem uma decoração em
repuxado figurando os Amores alados (Fig. Mus. Archeol. Nápoles, nº de invent. 5671; Tey, pp.
224-5)777.

Contudo, outros estudiosos apresentaram contra-argumentos 778, entre eles avultando Marcus
Junkelmann, sustentando as suas ideias com base nas investigações conduzidas no âmbito da
arqueologia experimental: em primeiro lugar destaca-se a extravagância, que pertencia à
própria natureza dos espectáculos gladiatórios. Os munera eram eventos violentos e exibições
dramáticas mas, também, comportavam a vertente da demonstração ostentatória do
equipamento dos combatentes. Dos gladiadores se esperava que transmitissem uma imagem
impactante aos espectadores, cativando-os com a sua imponência e, a este respeito, a melhor
maneira de atingir tal propósito radicaria no armamento de metal resplandecente. Se uma
peça da panóplia ficasse ocasionalmente danificada, isto significaria a menor das despesas que
o editor teria de suportar. Ademais, o risco de estragos realmente sérios no equipamento não
era tão grande como pode parecer à primeira vista. Em face de materiais dotados da mesma
espessura, uma peça de metal gravada com relevos não é mais fraca mas, pelo contrário,
acrescidamente resistente do que outra idêntica com a superfície lisa. Com efeito, a gravação
em relevo engrossa o material e acresce que um perfil com tal estrutura curva afigura-se
particularmente estável.

As calotes dos elmos gladiatórios pompeianos, bem como de outros achados em Herculano,
cidade vizinha de Pompeia também soterrada pelas cinzas do Vesúvio, foram geralmente
manufacturados com chapa de bronze (apenas um se produziu em ferro), medindo 1-3 mm de
espessura, a média rondando 1,5 mm. Quanto à grelha das viseiras, possuem uma espessura

777 K. Hopkins e M. Beard aludem precisamente a este elmo: «It perhaps fits well with Martial’s emphasis on the
arena’s sophisticated play with stories from classical mythology that one of these helmets is decorated with figures
of the Muses. Is is also extremely heavy. The average weight of the helmets is about 4 kilos, which is twice that of a
standard Roman soldier’s helmet; the heaviest weighs in at almost 7 kilos […] It is hard to resist the suspicion that
these magnificent objects were not actually gladiatorial equipment in regular use» (cf. The Colosseum…, pp. 66-68,
il. 12)

778M. Junkelmann, «Familia gladiatoria: The Heroes of the Amphitheatre», in E. Köhne e C. Ewigleben (eds.),
Gladiators and Caesars…, pp. 40-41; IDEM, Gladiatoren…, pp. 70-73; 202-203; IDEM, «La recherche expérimentale
des soldats romains aux gladiateurs», Histoire Antique & Medievale/HS Les Gladiateurs (avril 2010), pp. 29-30.

308
com cerca de 1,8 mm. Todas as extremidades estão guarnecidas de metal três ou quatro vezes
mais densas que a calote do elmo. Comparativamente, as calotes dos cascos militares romanos
(do denominado tipo Weisenau) do mesmo período apresentam aproximadamente 1 mm de
espessura, logo são mais fracas do que as dos elmos dos homens da arena 779. Torna-se difícil
imaginar os Romanos fazerem capacetes mais maciços do que para os seus soldados, isto se os
primeiros não se empregassem realmente em combate. Aquando da pompa, bastaria exibir
elmos com uma fina chapa de metal.

Como tivemos oportunidade de referir, não se brandiam armas pesadas para cutiladas e
estocadas, e nem as lanças, de arremesso ou para contecto directo, se revelavam
particularmente poderosas. As espadas eram de lâmina curta e relativamente leves; quando
usadas para assestar golpes apenas logravam provocar ferimentos nas partes desprotegidas do
corpo. A estocada correspondia ao método mais habitual de golpear, especialmente com
espadas de tamanho reduzido e adagas.

As experiências efectuadas pela equipa de M. Junkelmann, que fabricaram réplicas dos elmos
pompeianos, providas da mesma espessura que os originais, demonstraram que as calotes
sofrem tão-só ligeiras e quase impereceptíveis amolgadelas, mesmo quando recendo um golpe
directo levado a cabo em ângulo recto. Todavia, há uma excepção, a do efeito causado por um
tridente manejado com ambas as mãos pelo retiarius, que podia gerar pancadas repletas de
uma força tremenda780. Não nos supreende, então, que o elmo do secutor fosse ainda mais
espesso do que os cascos das demais armaturae. Os três elmos de secutor provenientes de
Pompeia são todos lisos e sem protuberâncias, pelo que as pontas do tridente não ficariam
presas nas mesmas, antes resvalando ou deslizando pela superfície do metal. Além disso,
importa dizer que, desprovidos de saliências, os cascos de secutor mais dificilmente se veriam
apanhados pela rede do seu adversário.

Como as armas dos gladiadores não causavam sérios danos nos elmos maciçamente
construídos, os combatentes teriam o cuidado de não visar as cabeças dos oponentes ao
porfiarem – seria um mero desperdício de energia fazê-lo. Porém, as estocadas assestadas
sobre a grelha da viseira dos cascos deviam ser provavelmente mais correntes, dado que
através das aberturas, uma lâmina podia atingir um dos olhos do oponente. Se um elmo ficasse
amolgado certamente que não haveria grande dificuldade em repará-lo, daí não causar
admiração que os elmos e as grevas se terem conservado tão bem, não mostrando marcas
provocadas por armas, pelo menos numa observação sumária. Existem, ainda assim, três
elmos, pelo menos, que evidenciam vestígios de golpes na sua superfície e vários outros que
sofreram reparações antigas – como, por exemplo, um casco de provocator com uma peça em
forma de crescente de bronze rebitada na sua calote. Note-se, a propósito, que nos capacetes
militares romanos, que se preservaram em muito maior quantidade, só um número muito
escasso exibe marcas que sejam passíveis de se associar a armas.

779 M. Junkelmann, Gladiatoren…, p. 72: «Was die Materialstärke anbetriff, besitzen die pompeianischen Helme im
Kalottenbereich Bronzeblechstärken von 1-3 mm mit einem Durchschnitt um 1,5 mm. Die Visiergitter haben eine
durchschnittliche Stärke von 1,8 mm. Alle Ränder sind massiv eingebördelt und haben die drei- bis vierfache Stärke
des Kalottenblechs. Zie man die gleichzeitigen Infanteriehelme des Typus Weisenau zum Vergleich heran, so haben
diese durchschnittliche Blechstärken um 1 mm, sind also schächer gebaut als die Gladiatorenhelme. Natürlich ist es
schwer vorstellbar, daß die Römer Helme von massiverer Konstruktion als für ihre Soldaten gebaut hätten, wenn an
keinen ernsthaften Einsatz gedach gewesen wäre. Für reine Paradezwecke hätte eine Ausführung aus dünnem Blech
vollkommen ausgereicht, wodurch auch die Treibarbeit wesentlich erleichtert worden wäre, ohne der optischen
Attraktivität des Stückes Abbruch zu tun».

780Ibidem, p. 72: «Eine Ausnahme macht der mit beiden Händen geführte Dreizack des retiarius, der eine
fürchterliche Durchschlagskraft besitzt. Es ist daher nicht überraschend, daß der Helm des secutor, des Gegners des
retiarius, eine noch größere Blechstärke aufweist als die der meisten anderen Gladiatorengattungen».

309
Os elmos completos gladiatórios completos achados em Pompeia pesam entre 3,3 e 6,8 kg,
correspondendo a média a cerca de 4 kg. Significa aproximadamente o dobro do poeso de um
elmo normal de infantaria romano do século I d. C. No entanto, os cascos militares e
gladiatórios empregavam-se em circunstâncias muito diferentes. O miles não só tinha que o
colocar na cabeça quando combatia – num espaço temporal que podia arrastar-se por várias
horas -, mas também quando se encontrava em marcha, altura em que carregava ainda o resto
do seu equipamento. Quando estava a postos para a batalha, isto é, sem a «mochila» de
marcha, que pesaria, pelo menos, uns 20 kg, o legionário de começos da época imperial ainda
arcava com cerca de 25 kg de vestuário, equipamento e armas no seu corpo. Quanto ao
gladiador, um combatente treinado e profissional, entrava na arena, repousado e vigoroso:
punha o seu elmo imediatamente antes de travar a pugna e, depois, podia removê-lo findo o
duelo, que raramente durava mais que 10-15 minutos 781.

Segundo Junkelmann, os testes realizados com réplicas de elmos pesando entre 3,3 e 4,5 kg,
não se revelaram desconfortáveis para os membros da sua equipa que os experimentaram,
contrariamente ao que se poderia supor à partida, quando sopesaram os cascos nas mãos. De
facto, os elmos gladiatórios foram concebidos de uma maneira equilibrada e, quando cotejados
com outros dotados de viseira sobre a face, os primeiros pouco afectaram a visão e a
respiração dos seus utilizadores.

Mas sobressai novamente uma excepção, o casco utilizado pelo secutor, que cobria totalmente
o rosto, tendo na parte frontal só dois pequenos orifícios para os olhos, medindo 3 cm de
diâmetro. Isto afigurava-se necessário, na medida em que as finas e aguçadas pontas do
tridente, que era a principal arma do seu adversário, facilmente penetrariam na grelha de uma
viseira. Tratava-se de um elmo praticamente hermético, logo era deveras incómodo, limitando
bastante o campo de visão do secutor e dificultando a sua capacidade respiratória.

Em face do que ficou exposto, inclinamo-nos mais a aceitar a opinião de Junkelmann, mas não
descartamos por completo certos pontos de vista de outros autores. Julgamos que se pode
estabelecer uma espécie de fórmula que sirva para unir, em certa medida, as duas teorias
contrapostas: esses elmos com exuberante decoração e peso considerável talvez surgissem
tanto na pompa como nas porfias que se desenrolavam no anfiteatro. Embora não subsistam
provas concretas, não nos custa acreditar que tais cascos apenas se usassem nos espectáculos
de maior prestígio, envolvendo gladiadores de créditos já firmados, editores influentes e
visitantes de alto estatuto social. Nos munera de inferior valor, os combatentes possivelmente
cingiriam cascos menos elaborados e mais leves. Seja como for, tudo isto se restringe ao
domínio das suposições, não tendo nós maneira de confirmar ou rejeitar automaticamente
uma das duas teses aqui afloradas.

Outros tipos de gladiadores mais raros e/ou com inferior número de ocorrências epigráficas e
iconográficas

Sob o Alto-Império, a gladiatura, que se tornou «técnica», assentou em seis armaturae


fundamentais: foram elas as do provocator, thraex, hoplomachus, murmillo, retiarius e do
secutor. Estas armaturae correspondem a 90% do corpus epigráfico e a quase 94% do acervo
781Ibidem, p. 73: «Vor allem aber legte der Gladiator, ein trainierter Berufskämpfer, der ausgeruht und in
gesundheitlicher Besform die Arena betrat, erst zu einem genau fixierten Zeitpunkt kurz vor dem Einsatz die volle
Rüstung an und konnte sich ihrer gleich nach dem Kampf, der wohl selten langer als 10 Minuten dauerte, wieder
entledigen, zumindest was die schwersten und lästigen Teile wie Helme und Schild anbetraf».

310
iconográfico. O remanescente destes dois corpora compõe-se, todavia, por outros gladiadores
que, apesar de raros, nem por isso estiveram menos integrados nas familiae e nos ludi. Dito
isto, eles também devem ser apreendidos sob a perspectiva das suas especificidades técnicas.

O eques, gladiador montado um pouco à parte

Segundo Isidoro de Sevilha, eram estes gladiadores que normalmente abriam os combates,
logo no começo da tarde. De acordo com o autor, que escreveu bastante tempo depois do fim
da gladiatura, «Dois cavaleiros avançaram nas suas montadas brancas, um a partir do oriente, o
outro a partir do ocidente, com elmos dourados e brandindo armas ligeiras» (Origines, 18.53)
782
. Afora este fragmento textual, as referências literárias a este tipo de gladiador são poucas.
Cícero alude a este combatente, mas de maneira sumária: a propósito de Séstio, o célebre
advogado, orador e político escreveu que «...fosse qual fosse o momento em que se reparava
na sua presença, havia, de súbito, tamanhas assobiadelas que os gladiadores e até os seus
cavalos ficavam com medo». Cerca de dois séculos depois, o que Artemidoro de Daldis
escreveu sobre os equites é igualmente pouco lisongeiro (cf. Apêndice): segundo o autor grego,
o eques, ao qual se reportou utilizando o termo helénico de hippeus, caracterizava-se pela sua
riqueza e bom nascimento mas, também, pela falta de juízo. Este julgamento assaz severo
exposto por Artemidoro confirma a ideia de que tais gladiadores procederiam de famílias
privilegiadas, abraçando eles esta carreira perigosa mais pelo desafio que representava do que
por simples motivos de simples subsistência.

A principal especificidade dos equites consistia, pois, em combaterem a cavalo numa primeira
fase e depois desmontavam, terminando a porfia apeados 783. Se bem que menos frequentes
que as referidas seis grandes armaturae, os equites encontram-se relativamente bem atestados
nas fontes iconográficas: com 68 ocorrências, este tipo de combatente representa apenas
4,5%. do corpus icónico. Ao ficarem atrás dos hoplomachi (96 ocorrências), os equites situam-
se em sétima posição, no conjunto dos gladiadores mais figurados.

Apesar de haver poucas imagens evocando esta armatura, cumpre sublinhar que as suas
representações denotam, amiúde, elevada qualidade artística, aparecendo os equites, na maior
parte dos casos, em relevos e mosaicos. Nas peças de terra sigillata não se acharam imagens
deste tipo de gladiador e, nas lamparinas de azeite, o eques surge, isolado ou fazendo par com
outro, só numa dezena de modelos. Contrariamente à maior parte dos pares de gladiadores do
Alto-Império, que se traduziam na oposição entre dois tipos de combatentes totalmente
diferentes, o eques, tal como o provocator, lutava sempre contra outro eques. Ora este género
de combate-espelho trai uma antiga origem quanto à armatura do eques, que terá feito
aparecido provavelmente bastante cedo na história da gladiatura.

A primeira representação conque se conhece destes gladiadores incluiu-se num afresco que
ornamentava o vestíbulo da chamada «Casa do Sacerdos Amandus», em Pompeia, a que já nos
referimos. Nesta imagem, pertencente ao chamado «IIº estilo», estão dois combatentes a

782 No entanto, as fontes epigráficas não confirmam que isto acontecesse sempre num munus legitimum. Na
realidade, a documentação mostra-se amiúde omissa em relação a estes gladiadores montados: por exemplo, no CIL
IV.2508 (que faculta os resultados de um munus celebrado em Pompeia), não aparece qualquer referência a um
combate de equites.

783 F. Paolluci, Gladiatori. I dannati dello spettacolo, p. 37.

311
cavalo, equipados com escudos redondos e lanças (fig. ): o cavaleiro posicionado à esquerda
persegue o outro, ferindo-o com a sua longa lança, e por cima do primeiro está uma inscrição
em língua osca, onde aparentemente se lê «Phili [……] ans»; também a sobrepujar o cavaleiro à
direita, encontra-se outra inscrição, «Spartaks». A presença deste nome no afresco gerou, de
imediato, grande interesse por parte dos académicos. A. Maiuri 784 acreditou que a pintura fora
executada após a morte de Espártaco, o célebre herói da «Revolta dos Escravos», o qual
certamente exerceu bastante influência na região do Vesúvio, onde travou os seus primeiros
confrontos contra as tropas romanas. Outros estudiosos foram ainda mais longe, como K.
Lehmann-Hartleben785,que formulou uma teoria assaz sensacionalista, mas que acabou por
gozar de ampla aceitação: o arqueólogo alemão defendeu a ideia de que o afresco
representaria a morte de Espártaco, «exactamente como tinha acontecido»; o homem que lhe
tirou a vida corresponderia, supostamente, a um pompeiano chamado Felix (ao interpretar a
inscrição por cima do atacante como significando «Phili[ks pumpaii]ans». Lehmann-Hartleben
também sugeriu que a casa onde se descobriu a pintura teria pertencido ao próprio Felix.

Mais recentemente avançou-se com outra teoria que, embora menos apelativa nos parece
mais plausível786: o afresco antedaria a eclosão da revolta chefiada por Espártaco (73-71 a. C.),
podendo até ser anterior a 89 a.C., altura em que começou o processo de romanização de
Pompeia, que incluiu a substituição progressiva da língua e da cultura oscas. Neste sentido, a
composição pictórica alude a um espectáculo gladiatório, envolvendo um duelo de equites e
outro opondo samnitis (munidos de espada e escudo rectangular), o que se confirma, aliás,
pela existência de um tubicen mascarado. Assim, o Spartaks gravado no afesco não constitui
uma referência ao famoso líder da sublevação; na realidade, como apontou L. Jacobelli 787, este
nome seria muito comum na Trácia e o gladiador ferido podia trarar-se de um trácio que
tivesse gozado de certa fama ao lutar em Pompeia.

As primeiras representações dos equites em relevos datam precisamente do fim da República.


Curiosamente, os equites são às vezes figurados em combates contra animais. Cabe não
confundi-los com os bestiarii, já que as esculturas bidimensionais referidas nos mostram
simultaneamente outros gladiadores, como murmillones, thraeces ou hoplomachi a lutarem
também contra feras. Há, pois, que ver nessas imagens a marca de um período em que a
demarcação entre os bestiarii e os gladiadores propriamente ditos ainda não havia sido
definitivamente fixada.

O armamento do eques revelou-se notavelmente estável do século I a. C. até às suas


derradeiras representações plásticas, datadas do século III d. C. O primeiro elemento da sua
panóplia radicava num elmo sem cimeira (sobrepujado por duas plumas, uma de cada lado),
pelo que o eques partilhava esta característica com o provocator. Não obstante, é impossível
confundi-los, uma vez que o casco do eques se apresentava munido de uma larga viseira
idêntica à do hoplomachus. Quanto ao gládio, era geralmente mais comprido do que os
empregues pelos demais gladiadores, mas não chegava a atingir o tamanho da spatha utilizada
pelas unidades de cavalaria do exército romano. Contrastando os outros combatentes da época
imperial, o escudo do eques era plano, de formato redondo e com um diâmetro pouco maior

784 «Le pitture delle case di ‘M. Fabius Amandio’ del sacerdos Amandus, e di ‘P. Cornelius Teges’», Monumenti
della pittura antica scoperti in Italia. 3.Le pitture ellenistico romane. Pompei. 2 (1938), pp. 3-5; fig. 5 a.

785 «Ein historisches Gemälde in Pompeji», Forschungen und Fortschritte, 4, nº 3 (1928), p. 21ss.

786J. Kolendo, «Uno Spartaco sconosciuto nella Pompei osca: le pitture della casa di Amando», Index 9 (1980), pp.
33-40; A. Von Hoof, «Reading the Spartaks fresco without red eyes», in S. T. A. M. Mols e E. M. Moormann (eds.),
Omni pede stare: Saggi architettonici e circumvesuviani in memoriam Jos de Waele, Nápoles, 2005, pp. 251-256.

787 Gladiators at Pompeii…, p. 75, fig. 62.

312
do que os dos hoplomachi, recebendo a designação de parma equestris, típico dos gladiadores
montados. A estes elementos acrescentavam-se uma lança (spiculum) ou um dardo, isto
quando o eques se encontrava a cavalo. Este tipo de gladiador possuía ainda fasciae a proteger
as pernas e botins, sendo um dos poucos a combater calçado na arena (outro que o faria seria
o essedarius)788.

Em certas figurações dos tempos republicanos, este tipo de gladiador também surge provido
de uma cota de escamas metálicas, em latim chamada lorica squamata, mas que rapidamente
se viu substituída por uma túnica. A partir do começo do Alto Império, aproximadamente, a
última passou a ser colorida ou decorada por estreitas bandas laterais (clavi). Tal indumentária
peculiar pode, sem dúvida, explanar-se pela existência de uma diferença de estatuto. Nas
sociedades da Antiguidade, os que pelejavam a cavalo pertenciam, por norma, a uma elite
social. Assim, é provável que a presente armatura estivesse, de algum modo, reservada a uma
determinada «aristocracia» no seio dos auctorati. Todavia, mesmo admitindo que o eques
talvez significasse uma espécie de «aristocrata» no meio gladiatório, nem por isso deixava de
estar submetido às mesmas regras que os restantes colegas da arena. Efectivamente, várias
imagens mostram-nos a execução ou os instantes finais de pugnas especialmente violentas
entre equites.

A despeito de uma relativa frequência de ocorrências no corpus iconográfico – 68, como atrás
apontámos – importa frisar que as inscrições funerárias reportando-se a equites perfilam-se
entre as mais raras da gladiatura. Com efeito, a armatura do eques encontra-se apenas
ilustrada por dez fontes epigráficas. Este número deve ser cotejado com os dos retiarii,
thraeces ou murmillones, que se aproximam muito ou até ultrapassam as cem inscrições. Cabe
ver neste fenómeno uma certa relutância por parte das famílias dos defuntos em evocar o seu
passado gladiatório, que, por alguma razão, tenham acabado mal? Seja como for, parece mais
verosímil que a raridade dos equites nas lápides se tenha devido sobretudo a um sinal concreto
do carácter excepcional desta armatura nos munera. Afinal, as despesas com os equites eram
certamente superiores do que as tidas com os outros gladiadores, já que o facto de utilizarem
cavalos encarecia logo as suas prestações no anfiteatro. Por seu turno, a ausência de quaisquer
menções aos equites nos anúncios de combates gladiatórios observáveis em Pompeia
representa outro indício da raridade dos equites. Na realidade, descobriu-se só um grafito
pompeiano que pode seguramente identificar-se como descrevendo um confronto entre
equites. Posto isto, estes gladiadores montados constituíam atracções raras e custosas na
arena.

Ao não dispor de estribos, à semelhança de todos os demais combatentes montados da


Antiguidade, o eques não podia servir-se da sua lança como arma de choque, como mais tarde
fariam os cavaleiros medievais nas justas ou torneios. A fase do combate montado
propriamente dito devia, assim, resumir-se a uma troca de dardos arremessados entre os
oponentes, que raramente seria eficaz. Na maior parte das imagens, observa-se o eques a lutar
apeado com a sua spatha. Sobre este ponto, note-se que nenhuma cena exibe um combatente
de pé a enfrentar um adversário que permanece a cavalo. O duelo no solo, na etapa final do
combate, significaria, pois, um momento ritual desta oposição.

As técnicas de porfia destes cavaleiros desmontados eram muito particulares: em vez de


colocarem os seus escudos «no centro dos debates», como sucedia com os outros gladiadores,
que os utilizavam de maneira tanto defensiva como defensiva, os equites só podiam empregar
o escudo para a sua defesa. Isto explica-se pelo facto de todos os escudos dos gladiadores
serem convexos, o que permitia um manuseamento mais dinâmico do scutum ou da parma.
Pelo contrário, um combatente com escudo plano via-se obrigado a mantê-lo encostado ao

788 A. Mañas Bastida, Gladiadores…, pp. 79-80.

313
ombro, sem poder fazer movimentos de percussão sobre o oponente. Assim, diferentemente
dos outros tipos de gladiadores, que nas fontes icónicas aparecem sempre a lutar com o
escudo à frente e a adaga (ou o gládio) colocada mais atrás, o eques é quase o único a surgir
figurado nas imagens com o escudo junto do corpo e a brandir a espada numa posição elevada.
Este facto, verificável em praticamente todas as cenas antigas envolvendo equites, justifica-se
pela adaptação ao combate equestre deste género de protecção.

Lembremos, a propósito, que se, por um lado, os legionários romanos estavam munidos de
escudos convexos, por outro, os cavaleiros militares possuíam escudos planos. O único escudo
que se descobriu, em 1766, na caserna dos gladiadores de Pompeia corresponde precisamente
ao de um eques: este exemplar único foi ricamente decorado em metal, o que lhe permitiu
conservar-se até à actualidade. O facto de não se ter encontrado nenhum outro escudo
gladiatório parece confirmar a ideia de que a maior parte deles seria fabricada essencialmente
à base de madeira e couro.

Os essedarii, variante dos equites

Os essedarii correspondiam a uma categoria de combatentes que combatiam a partir de um


carro puxado por cavalos (em geral uma quadriga). Juntamente com o eques, o essedarius foi
objecto de desprezo nos comentários tecidos por Artemidoro: se o gladiador montado a cavalo
não tinha juízo, o essedarius recebeu o labéu mais forte de «tolo». Como se tal já não bastasse,
o último foi ainda qualificado de indolente, não havendo qualquer registo que este tipo de
gladiador nascesse em berço nobre ou pertencesse a uma família rica, ao contrário do que
sucedia com o eques. De acordo com vários autores, esta armatura apareceu no tempo de
Cláudio (41-54 d. C.), datação que estaria conectada com a conquistada Britânia sob esse
reinado. Não há qualquer dúvida que as legiões de Roma depararam, na velha Albion, com
guerreiros celtas combatendo em carros de guerra. Esta especificidade terá impressionado
suficientemente os Romanos, que eram grandes apreciadores de corridas de carros, ao ponto
de inscreverem tal técnica de porfia no programa dos jogos do anfiteatro. Contudo, se a origem
britânica deste gladiador é plausível, cabe recuar um bocado mais no tempo no que respeita ao
momento da sua aparição. Com efeito, numa inscrição de Venusia, alude-se a um essedarius,
mas igualmente a um gladiador gallus e a um samnis (CIL IX 00 466). Ora ao sabermos que as
duas últimas armaturae terão desaparecido sob a égide de Augusto, importa remontar o
essedarius ao início do Principado 789.

Mas os Romanos já estariam familiarizados com este tipo de combate a cavalo desde o tempo
de Júlio César: este atravessou com as suas tropas o Canal da Mancha em duas ocasiões, a fim
de invadir e ocupar a Britânia, pelo que viu os guerreiros insulares a servirem-se de carros de
combate. Esta maneira espantosa e bastante arcaica de lutar viu-se rapidamente transposta
para a gladiatura. A etimologia do vocábulo, que deriva de essedae (carros) não levanta dúvida
alguma. A datação cesariana da aparição dos essedarii queda também confirmada por Cícero,
que os evocou ao mesmo tempo que os andabatae. Embora a génese deste tipo de gladiador
seja bastante clara, o essedarius, ainda assim, constitui um enigma. Na literatura, ele é referido

789 No tempo de Augusto, com efeito, já se atestam essedarii a combater em Tasos (L. Robert, Les gladiateurs…, p.
265, n. 3) e, em datas ulteriores, captam-se menções a esta armatura por todo o império, desde o Ocidente
(Narbonensis, Venusia, Pompeia) até ao Oriente (Aegae, Thasos, Iasus, Smyrna, Philadelphia e Mylasa): ibidem, nºs
52, 145, 172, 177-178, 245, 257.Veja-se também G. Ville, La gladiature…, p. 254, n. 61; 313, n. 199.

314
nos escritos de Cícero, Suetónio e Petrónio. Ademais, no corpus epigráfico regista 31
ocorrências, colocando-o bem à frente dos equites e, igualmente, dos hoplomachi, situando-se
num nível próximo ao dos provocatores (com 36 testemunhos).

No entanto, não possuimos representações plásticas do essedarius, à excepção de uma


imagem que aparentemente o mostra, (mas até neste caso resta determinar se a figura que se
vê corresponde a este tipo de gladiador ou a um bestiarius): a dita composição pertence aos
motivos decorativos gravados num copo de vidro, conservado no Museu de Trier (fig.
Alemanha) 790; nela se vê o pretenso essedarius a enfrentar uma fera. O contexto anfiteatral
dessa composição poderia até ser objecto de sérias reservas, caso a outra face do objecto não
representasse um par de pugilistas e um combate opondo um retiarius a um secutor. Ao
basearmo-nos só neste documento, importa apurar se o essedarius seria um gladiador ou um
caçador. A partir do Principado de Augusto, estabeleceu-se uma distinção bem marcada entre
estes dois domínios. Assim, Séneca relatou o caso de um jovem patrício que hesitou entre
enveredar pela carreira de gladiador ou pela de bestiarius, ambas de igual modo infames aos
olhos do filósofo. Contudo, nem por isso o autor deixou de ter o cuidado de os distinguir.
Suetónio, por seu turno, afirmou categoricamente que o essedarius era mesmo um gladiador:

«Como Cláudio havia concedido a rudis a um essedarius, a pedido dos quatros filhos do último e sob a
pressão do público, ele ordenou de imediato que se pintasse um cartaz para lembrar ao povo quão útil
era educar bem as crianças, ao ver-se até que ponto os filhos de um gladiador lhe tinham dado
protecção e reconhecimento».

A epigrafia também confirma que o essedarius era uma armatura concreta. Em Roma
descobriu-se uma inscrição, escrita em grego, que se reporta a um essedarius primus palus e
doctor (CIG XIV 1832). Verificamos, assim, que esse indivíduo havia alcançado o grau mais
elevado da gladiatura, além de facultar instrução específica aos noviços, tal como acontecia
entre os retiarii, secutores ou murmillones. Depreende-se, portanto, que este género de
gladiador, que lutava sobre uma quadriga, não significava uma mera atracção secundária, mas
consistia numa verdadeira armatura técnica791. Com efeito, a existência de um doctor dos
essedarii prova que estes combatiam de acordo com um método tão peculiar quanto os
empregues pelos seus colegas da arena, nas demais armaturae. Numa lápide de Córdova792,
explicita-se que um essedarius fora enterrado pelo «conjunto da familia».

Segundo outras fontes associadas às familiae gladiatórias, jamais parece ter havido qualquer
confusão entre caçadores e gladiadores. Aliás, o vocábulo universa, bastante raro, que aparece
exarado em alguns documentos, realça, uma vez mais, o facto de o essedarius ser considerado
como um gladiador de pleno direito. Quanto à figura representada no copo de vidro de Trier,
cabe não identificá-la como um essedarius, mas com um bestiarius a actuar sobre um carro
movido por cavalos. Deste modo, a única imagem que se julgava mostrar tal tipo de
combatente traduz-se numa fonte sem valor.

Embora não restem dúvidas de que o essedarius era mesmo um gladiador, continua a ser
problemática a identificação do tipo de adversário contra o qual lutava. Admitiu-se,
geralmente, que ele lutaria, em princípio, contra outro essedarius. Mas, pondo de parte a
analogia que se pode fazer com o eques, o certo é que nenhuma composição plástica nem
790Cf. E. Krueger, «Ein gravierter Glasbecher mit Darstellung eines Wagen Kaempfers aus Trier», Bonn Jbb 118
(1909), pp. 353-369; M. Junkelmann, Gladiatoren…, p. 118, figs. 177 a e 177 b.

791Repare-se que não conhecemos, até ao momento, qualquer inscrição a atestar a existência de doctores afectos
aos equites.

792«Gallicianus, essedarius, homem livre, com 25 anos de idade, 12 palmas, da natio germânica, aqui repousa. O
conjunto dos seus companheiros mandou erigir o túmulo. Que a terra te seja leve!» (CIL II.7362).

315
documento literário serve para apoiar essa hipótese. Mas, felizmente há fontes epigráficas que
permitem corroborá-la, haja em vista, por exemplo, uma inscrição descoberta por L. Robert em
Aegae (Aiolide), no Oriente helenístico: na inscrição sobre uma arquitrave pertencente a um
edifício situado na ágora, faz-se menção a seis pares de gladiadores. Neste documento, do
tempo de Tibério, alude-se, em duas ocasiões, ao confronto entre dois essedarii. Em face disto,
podemos então afirmar que os essedarii, tal como os equites ou os provocatores, lutavam entre
eles, se bem que este tipo de oposição talvez não fosse sistemático.

No Ocidente, o anúncio de um munus evoca igualmente a pugna entre um par de ESS[edarii],


mas, na mesma fonte um essedarius surge como oponente de um gladiador identificado só
pela inicial R: neste caso, é indubitável que a última se reporta a um retiarius. Este par, que
certamente ofereceria um bom espectáculo para o público, não se regista em mais nenhuma
fonte, permanecendo como um hapax, em vista da documentação disponível. Ademais,
recorde-se que nesta fase anterior a 79 d. C., o retiarius constituía um gladiador cujo tipo de
adversário ainda se encontrava mal definido793.

Outra singularidade do essedarius: juntamente com o provocator e o thraex, era uma das
armaturae acessíveis às mulheres. No Satyricon, por exemplo, Equião anuncia como algo
importante a presença de uma essedaria no munus publicitado por Tito: «Há já alguns bravos
robustos e uma mulher essedaria». Caso interpretemos esta passagem ao pé da letra, a
essedaria poderia então lutar contra adversários masculinos, uma vez que Equião apenas se
refere a uma mulher, sendo o resto dos combatentes homens. Mas esta configuração «mista»
das pugnas afigura-se dificilmente admissível, a menos que a força do essedarius radicasse
mais na destreza, enquanto auriga, do que no seu poder físico.

Decididamente, este gladiador que combatia a partir de uma quadriga devia ser de facto
polivalente, dado que enfrentava feras, outros essedarii, mas também gladiadores a pé.
Embora captemos certos rasgos específicos do essedarius, o seu equipamento pemanece uma
questão envolta em bastante mistério. O referido copo de vidro de Trier deixa entrever apenas
um pequeno escudo circular e um dardo, o qual parece mais destinado à caça de animais do
que propriamente para lutar contra homens. Sobre este aspecto, há que tomar em
consideração uma inscrição que Charlotte Roueché publicou: descoberta em 1974, na cidade
cária de Aphrodysias, esta fonte é a única em que se associa a referência à armatura dos
essedarii a uma representação plástica deste tipo de gladiador. O baixo-relevo do monumento
em questão, à semelhança do que se verifica noutras estelas comparáveis com motivos
gladiatórios, foi esculpido num bloco de mármore branco com 42 cm de altura. Reveste-se de
especial interesse a inscrição que se conservou, ainda que fragmentária, na parte inferior da
estela, que apresenta a armatura deste combatente. No epitáfio, escrito em grego, pode lê-se:

«Trophime fez [este monumento] em memória de Eirenion, essedarius»794.

Trophime era a companheira ou esposa de um gladiador suficientemente afamado para se ver


imortalizado «em glória», exibindo uma palma. Se bem que a estela se encontre algo
danificada, é possível distinguir o equipamento do combatente. Para além da palma que ele
segura na mão direita, Eirenion apoia-se no seu escudo com a mão esquerda. O casco,
desprovido de cimeira, pousado sobre o escudo oval, poderia levar à identificação este
gladiador com um provocator. Mas o tipo de elmo que se observa poderia também pertencer a
um eques. Importa ainda salientar duas outras características da panóplia: para já, o escudo

793Essed(arius) r(etiarius?) / Crysantus[3] / (pugnarum) II / M(arcus) Artorius [3] (CIL IV.2508. «Pugna essedarius
contra retiarius, /Crysantus, com 2 combates no activo, contra Marcus Artorius.

794 A lápide conserva-se no Museu de Afrodísias, Turquia. Terá sido produzida entre o século II e o III d. C.

316
tem uma forma muito peculiar; mais oval do que a protecção defensiva de um eques e maior
do que a parma de um thraex, o escudo de Eirenion é comparável, em tamanho, aos dos
provocatores do tipo «A». Por outro lado, este essedarius não tem uma mas duas ocreae, que
correspondem, de igualmente, a um perfil intermédio. Ao ficarem-se pela altura do joelho, são
mais pequenas do que as grevas dos parmati e maiores do que as dos scutati. Assim, possuem,
grosso modo, as dimensões das ocreae dos provocatores, só que estes utilizavam uma única
greva deste género, a proteger a perna esquerda.Com base nesta lápide, outros relevos em
tempos identificados como figurando provocatores podem, hoje em dia, ser reconhecidos
como imagens de essedarii. É o que acontece com uma estela do Louvre 795, cuja armatura
representada corresponde provavelmente à mesma de Eirenion. O último monumento
funerário, também da Ásia Menor, foi erigido em memória de Etrodelos, cognominado
«Furacão»: o equipamento deste combatente é efectivamente muito similar ao de Eirenion,
bem como a sua atitude triunfante. O escudo tem a mesma configuração que o do seu colega.
É mesmo possível constatar um pequeno umbo central na estela do Louvre. O casco, sem
cimeira, e as duas ocreae são igualmente visíveis.

Se continuarmos a utilizar a lápide de Eirenion como referência, conseguimos identificar um


terceiro essedarius, num baixo-relevo do Oriente mediterrânico e também pertencente ao
espólio do Louvre796, que se descobriu em Kyzikos/Cyzicus, (fig. actual Erdek, na Anatólia,
Turquia): dedicou-se o monumento ao gladiador Dyonisos, que possuía seis vitórias no activo
aquando da sua morte num naufrágio. Numa observação superficial, poder-se-ia supor que se
trata de um thraex. De facto, Dyonisos tem duas ocreae e o seu escudo assemelha-se a uma
parma, em virtude do seu pequeno tamanho. Porém, numa análise mais atenta, reparamos
que o elmo não é sobrepujado por uma cimeira, como sempre acontecia no caso dos thraeces,
mas antes por um penacho, elemento singular no repertório iconográfico. Além disso, a arma
brandida por Dyonisos não pode, de maneira alguma, ser identificada como a sica emblemática
do thraex. Por último, as duas grevas não ultrapassam o nivel dos joelhos, ao passo que as
ocreae dos parmati chegavam até ao meio das coxas. Consequentemente, em face destes
elementos contraditórios, não é possível encarar Dyonisos como um thraex. Em contrapartida,
a aproximação desta lápide com a de Eirenion permite-nos ver em Dyonisos um essedarius.
Afora a mesma posição dos gladiadores nas duas estelas precedentes, a presença das duas
ocreae (cobrindo os joelhos) e de um escudo de tamanho médio constituem as caracteristicas
típicas das representações dos essedarii.

Por fim, acrescentemos uma quarta estela, integrável no número de representações figurativas
de essedarii: este baixo-relevo funerário, de Hierápolis, na Frígia (conservado no Museu de
Pamukale-Hierápolis, Turquia), comporta mais dados elucidativos sobre este tipo de
gladiador797. A lápide de Pardalas (fig. Junk, p.), descoberta em 1993, na via principal da
necrópole setentrional, estava situada defronte do sarcófago de outro combatente, chamado
Stephanos. Na superfície do primeiro monumento, representou-se um gladiador «em glória»
ladeado por seis coroas (coronae), que simbolizam igual número de importantes vitórias
obtidas ao longo da sua carreira. Ao seu lado aparece a mulher, Dorous, descrita visualmente
como uma matrona vestida com o kiton e o himation. No seu epitáfio, o defunto Pardalas
saúda a cidade de Hierápolis, qualificada de «estrela entre as estrelas que o acolhe, para

795Ernst Pfuhl e Hans Möbius, Die ostergriechischen Grabreliefs, Band II (Text und Tafelband), Mainz, 1979, p. 302,
nº 1243, est. 186

796 Ibidem, p. 302, nº 1244, est. 187.

797T. Ritti e S. Yilmaz, «Gladiatori e venationes a Hierapolis di Frigia», Accademia nazionale dei Lincei, ser. 9, vol. X,
fasc. 4 (Roma, 1998), p. 525, fig. 40.

317
sempre, agora que ele abandonou de vez a sagrada luz do sol». De acordo com a análise
epigráfica, a inscrição foi datada por Tullia Ritti da primeira metade do século III d.C.

As características observáveis no relevo funerário de Pardalas correspondem aos elementos já


mencionados nas anteriores três lápides. Entre o casal, avulta um escudo oval munido de
umbo e de spina, que se aproxima bastante daquele que se representou ao lado de Etrodelos.
Por cima do escudo vê-se um elmo sem cimeira posicionado da mesma maneira do que nas
demais estelas de essedarii. Pardalas exibe, ademais, as duas pequenas ocreae típicas da
armatura dos essedarii798. Neste baixo-relevo de Hierápolis, constata-se que Pardalas tem uma
manica no braço direito. Esta peça, indispensável para a protecção dos gladiadores, deveria
igualmente encontrar-se reproduzida nos outros relevos de essedarii, mas o mau estado de
conservação dos mesmos impede que se distinga a presença desse elemento defensivo.

Enquanto os demais essedarii aparecem de tronco nu, Pardalas, pelo contrário, ostenta uma
espécie de couraça (composta por duas bandas largas colocadas por cima do subligaculum e do
balteus), o que constitui fenómeno único nas figurações de gladiadores; nas imagens dos
aurigas circenses, pelo contrário, ela surge sistematicamente representada. Este género de
peça, destinada a reforçar os músculos das costas, não tinha uma função defensiva, estando
antes relacionada com a condução dos carros de corrida. A presença das bandas, certamente
feitas de couro, sobre o abdómen de Pardalas, confirma a identificação deste gladiador como
pertencente à armatura dos essedarii.

Posto isto, o essedarius tinha um equipamento híbrido, globalmente mais próximo do


empregue pelo provocator, com um escudo talvez mais pequeno e duas grevas de dimensões
reduzidas. Embora seja difícil extrair conclusões categóricas e definitivas a partir de dados
relativamente escassos, nada impede, todavia, que aventemos a hipótese de um gladiador que,
tal como o seu «primo» eques, poderia arremessar dardos contra o adversário no começo da
pugna. Efectivamente, não é fácil imaginar outra forma de combater, isto quando os dois
oponentes se encontravam cada um na sua quadriga, ou só um deles se achava no veículo,
lutando contra um gladiador apeado. Numa segunda fase, uma vez mais à semelhança do
eques, o essedarius desceria do seu carro para terminar o confronto no solo: se assim não
fosse, tornar-se-ia injustificada a existência das ocreae.

Uma quinta lápide confirma este aspecto, a qual Louis Robert descreveu sumariamente 799: no
relevo esculpido neste monumento funerário, procedente de Mylasa, contemplamos, «sob um
arco abobadado, um gladiador com casco e escudo avançando em direcção à esquerda». A
inscrição, em memória de Chrysopetasos essedarios (Χρυσοπέτασος έσσεδάριος)800, mostra
que os combatentes se defrontariam igualmente a pé. Esta característica contribuiria, decerto,
para fazer do essedarius um verdadeiro gladiador provido da sua própria técnica, o que se
atesta pela existência de doctores específicos. É muito provável que diversos estudiosos
contestem esta interpretação, já que não subsistiu representação alguma pondo em cena um
combate entre dois essedarii ou, mesmo, de um essedarius lutando contra outro tipo de
gladiador. Na realidade, ficaríamos aproximadamente na mesma situação em relação aos
equites, a despeito de muito mais frequentes no corpus iconográfico, se não tivéssemos uma
cena (a única) mostrando-os a combater a cavalo, pertencente à decoração do túmulo de U.
Scaurus, em Pompeia (fig. , p. 288).

798 Embora a perna esquerda de Pardalas esteja quebrada no relevo, a barriga da perna exibe ainda indícios de
faixas em que as ocreae se colocavam.

799 Les gladiateurs…, p. 177ss., nº 172.

800 Jutta e Frank Rumscheid, «Gladiatoren in Mylasa», Archäologischer Anzeiger 2001 (2001), p. 128, fig. 10.

318
Com os elementos que reunimos, a imagem do essedarius ganha contornos menos vagos. O
caso concreto deste tipo de gladiador, evocado assiduamente na literatura antiga mas
raramente representado, leva-nos a realçar a importância que se devemos atribuir às lápides
que figuram o combatente equipado, ao mesmo tempo que nelas se menciona a sua armatura.
Repare-se que o monumento funerário de Eirenion se afirma tão crucial para a identificação
dos essedarii quanto o de Anicetus relativamente aos provocatores. Este género de fontes
epigráficas também permite aferir, novamente, o carácter profundamente técnico e
normalizado das armaturae.

Efectivamente, se não dispuséssemos da estela de Eirenion, as demais representações


plásticas de essedarii pareceriam atípicas e poderiam conduzir à conclusão, o que em muitas
ocasiões se fez, da natureza aproximativa das imagens antigas de gladiadores. Através do
estudo da questão dos combatentes que porfiavam inicialmente sobre carros, verifica-se que
cada uma das armaturae, mesmo que secundárias, possuía critérios específicos, quais
obedeciam sempre a uma lógica conectada com as modalidades de combate que estes homens
deviam travar. Acresce que tais panóplias eram certamente reconhecíveis à primeira vista,
pelos homens e mulheres que viveram sob o Alto-Império. Assim, o público dos munera
distinguiria facilmente um essedarius de um provocator, de forma idêntica ao que acontece
actualmente connosco, que diferenciamos sem problemas um jogador de râguebi de um
esgrimista. Isto explica o facto de as suas representações, independentemente dos suportes
em que foram executadas, serem raramente acompanhadas pela menção à armatura em
causa.

Apesar de haver incertezas quanto à maneira de combater do essedarius, julgamos possível


tentar reconstituir uma pugna entre dois destes gladiadores. Para já, no carro (essedum) o
essedarius contava com o apoio imprescíndivel de um auriga, que funcionariam como uma
«equipa», pois que enquanto o essedarius tentava atingir com uma lança ou dardos o
adversário e o respectivo cocheiro da quadriga contrária, o auriga procurava esquivar-se dos
golpes do rival e conduzir da melhor forma o essedum, evitando colisões ou que este se
estatelasse. O duelo entre essedarii constituíria uma exibição cativante para o público, uma vez
que – além da espectacularidade e da velocidade que caracterizaria o enfrentamento – juntava
num só momento os dois «desportos» que mais cativavam os Romanos: os combates
gladiatórios e as corridas circenses. Lutar a partir de um essedum requeria, necessariamente,
grande destreza, o que os contemporâneos parecem ter reconhecido, a julgar por uma
metáfora de Petrónio no Satyricon (36.6), em que uma intrincada gravura num prato é
comparada com as evoluções do essedarius na arena, acompanhado pelos acordes do órgão
hidráulico (ut putares essedarium hydraule cantante pugnare).

Tal como sucedia com os equites, o confronto entre dois essedarii teria igualmente duas fases:
Eminus (de longe, à distância), com a luta inicial sobre o carro, em que se utilizava uma arma
adequada de médio alcance – lanças ou dardos; Comminus (de perto, a luta corpo a corpo), a
etapa final da porfia, travada a pé e no solo, empregando os gladiadores a espada, o elmo e o
escudo801.Há, todavia, perguntas que ficam por responder, na falta de mais informações
oferecidas por fontes antigas802: como poderia o essedarius segurar um escudo, quando tinha
uma mão agarrada ao veículo e a outra com armas? Como, desprovido de escudo, se
protegeria ele contra os dardos arremessados pelo oponente? Será que utilizaria uma
protecção segmentada de couro? É o que parece indicar a estela de Pardalas, mas os outros
801 A. Mañas Bastida, Gladiadores…, pp. 82-83

802 É. Teyssier, «Archéologie expérimentale de la gladiature», Histoire Antique & Medievale, Hors série, nº 26 (avril
2011), pp. 28-29. Refira-se que, em Abril de 2010, se realizaram os «Grandes Jogos Romanos» no anfiteatro de
Nîmes (antiga Nemausus) e, nesta ocasião, efectuou-se uma tentativa de reconstituição dos métodos de combate
dos essedarii.

319
documentos iconográficos mostram o tronco desguarnecido. Ademais, como proteger o auriga,
que também podia ser atingido pelos dardos e estava totalmente concentrado na condução da
quadriga? Será de imaginar que um dos dois combatentes permaneceria, apeado, na pista,
enquanto o carro do adversário andava à sua volta? Posto isto, se, por um lado, a finalização do
combate a pé não levanta problemas, por outro, as modalidades de combate a partir do carro
ainda suscitam dúvidas.

Em suma, os essedarii podem assimilar-se a uma variante dos equites, traduzindo-se numa
modalidade mais aparatosa e original para se apresentar nos grandes munera. Além do mais, à
semelhança dos equites, as elevadas despesas com as suas actuações nos espectáculos, que
requeriam a utilização de quatro cavalos, talvez justifiquem a raridade dos essedarii tanto a
nível iconográfico como, sem dúvida, na arena.

Velites, sagittarii e andabatae

Estes combatentes encontram-se no lote dos gladiadores menos representados. O veles era,
indiscutivelmente, um gladiador derivado do militar romano com o mesmo nome que existiu
durante a época republicana: o último, munido de um escudo ligeiro e dardos, desempenhava
basicamente o papel de escaramuçador, perturbando o inimigo através do arremesso das suas
armas, antes de intervir o grosso do exército romano. Só se achou uma imagem seguramente
atribuível a este «gladiador», o baixo-relevo de L’Aquila: esta cena, executada no século I d. C.,
mostra dois indivíduos a enfrentar-se lançando dardos um contra o outro, os quais lhes vão
sendo facultados por dois assistentes. No entanto, a parecença com os velites castrenses
ficava-se por aqui: o escudo que usam assemelha-se muito mais com o scutum do que com a
parma dos velites militares. Mais, estes homens da arena trajam luxuosas couraças e grevas
metálicas. Por último, o gládio, visível ao lado do gladiador situado à direita da composição
bidimensional, parece indicar que a porfia, iniciada com dardos, continuaria a seguir no corpo a
corpo. Mas realcemos que neste relevo há a forte probabilidade de se reproduzir um gladiador
samnis e não um veles.Devemos considerar estes combatentes como figuras de segundo plano,
ausentes das fontes iconográficas e muito raros na epigrafia (apenas se encontraram dois
casos, CIL IX.00465 e 00 466). O fraco sucesso desta armatura, se é que a podemos designar
assim, deveu-se inequivocamente ao facto de que os velites não se defrontavam como os
autênticos gladiadores, contentando-se, as mais das vezes, em efectuarem um duelo à
distância, onde só entraria em linha de conta a agilidade e a perícia no arremesso dos dardos
bem como a capacidade de os evitar.

Os mesmos comentários valem, de certo modo, para os sagittarii, aos quais já nos reportámos
(na alínea dedicada às peças de cerâmica da oficina de Chrysippus em Lyon). Este confronto
entre archeiros pouco mais conhecido é que os dos velites, significando, igualmente, uma
forma de «pseudo-gladiatura». Ainda que um sagittarius chamado Dorus apareça citado entre
os 29 gladiadores da familia de Caius Salvius de Venusia, na Apúlia (CIL IX 00465), este tipo de
combatente acha-se pouquíssimo documentado pela epigrafia.Na iconografia, a sua presença é
ainda mais discreta, havendo apenas várias peças de cerâmica de Lyon e o baixo-relevo de
L’Aquila (fig. ) a ilustrá-lo: no último caso, a ausência de um verdadeiro choque directo levanta
dúvidas quanto à integração plena dos sagittarii na gladiatura; tal como sucede em relação aos
velites, talvez caiba ver nestes arqueiros a evocação pontual de uma especialidade militar no
quadro do anfiteatro; repare-se que no relevo de Aquila, observam-se dois sagittarii munidos

320
de um casco ou de uma coifa cónica, que nos lembra o género de elmos que utilizavam os
archeiros ditos «sírios», importante componente das tropas auxiliares do exército romano 803.

Por último, um breve comentário sobre o andabata (a que nos reportámos a propósito das
peças de cerâmica de Chrysippus): já muito raro antes do reinado de Augusto, nada mais se
pode acrescentar sobre dele em tempos subsequentes, pela simples razão de que não
dispomos de quaisquer elementos informativos. Em princípio, esta armatura, juntamente com
a do sagittarius, terá desaparecido no início do século I d. C., paralelamente ao que aconteceu
com os samnitis e os galli.

Os cruppellarii: uma «especialidade» gaulesa?

É outro tipo de gladiador obscuro804. A existência do cruppellarius atesta-se apenas numa fonte
literária (Tácito, Ann. 3.43, 4.45, 4.46.6). Aquando da sublevação anti-romana de Sacróviro, em
21 d. C., os revoltosos gauleses apoderaram-se da Augustodonum (actual cidade de Autun,
França) então célebre por causa da sua escola gladiatória. Tácito conta-nos que esses
cruppellarii se apresentavam com o corpo totalmente protegido por pesadas armaduras, a tal
ponto que se caíssem dificilmente conseguiriam reerguer-se. Os legionários vieram a derrotá-
los na repressão subsequente, chegando servindo-se de machados e picaretas, abatendo-os
como se fossem árvores.

Nenhuma fonte icónica oferece uma ideia concreta de qual seria, ao certo, a aparência dos
cruppellarii. Só uma estatueta descoberta em Versigny, em L'Aisne (França, fig. junkel p. 83 fig.
118) foi associada a tal tipo de gladiador: a efígie mostra um homem com um casco que se
assemelha a um elmo europeu do século XIII, o qual não conhece equivalente algum no
repertório militar e gladiatório da Antiguidade. O corpo está inteiramente coberto por placas
de couro ou metal que não deixam de lembrar a conhecida lorica segmentata que os
legionários romanos utilizaram habitualmente durante a época imperial. Infelizmente, a
escultura em questão não nos elucida quanto à forma do escudo, nem sobre a arma que os
cruppellarii empregariam.

Por outro lado, a cena de uma lucerna do século II d. C., descoberta em Cnides e actualmente
no British Museum, talvez represente cruppellarii: no medalhão decorativo deste artefacto,
vemos dois gladiadores afrontados, com equipamento idêntico, mas não correspondem de
todo às armaturae tradicionais. Surgem com o corpo muito protegido, através de placas de
couro ou ferro, e armados com grandes escudos rectangulares e pequenos gládios.

Scissor, dimachaerus e arbelas: três armaturae diferentes ou três designações para um só


tipo de gladiador?

803 E. Teyssier e B. Lopez, Gladiateurs…., p. 94.

804 Gilbert-Charles Picard, s.v. «Crupellarii», in Mélanges de literature et d’épigraphie latine, d’histoire ancienne et
d’archéologie. Hommage à la mémoire de Pierre Wuilleumier, Collection d’Études Latines, Série scientifique 35,
Paris, 1980, pp. 277-280.

321
O scissor e o arbelas são gladiadores ainda mais desconhecidos e enigmáticos do que o
essedarius. Para além de magros testemunhos epigráficos e literários, a iconografia, também,
pouco auxílio fornece. Contrariamente ao provocator Anicetus, ao murmillo de Aquileia, Q.
Sossius Albinus, ao thraex M. Antonius Exochus, ao secutor Urbicus ou a Eirenion, essedarius de
Aphrodysias, nenhuma composição figurativa se encontra acompanhada da referência textual a
estas três armaturae problemáticas. No entanto, no seio de um corpus icónico que
compreende mais de 1 500 ocorrências, apenas um gladiador se mantém em suspenso, dado
que é visível em 1% das representações. Na realidade, estas três designações podem reportar-
se a uma única armatura específica, em relação à qual a denominação talvez tenha variado ao
longo do tempo e consoante os cenários geográficos. Este gladiador atípico apresenta-se
provido de um elmo semelhante ao do secutor e brande um pugio na mão direita. A diferença
fundamental radica na ausência do scutum, que se acha «substituído» por uma lorica
squamata805 e por uma espécie de tubo cilindrico rematado por uma lâmina em forma de
meia-lua.

Durante décadas, na esteira dos argumentos de L. Robert 806, este gladiador raríssimo foi
identificado como o contraretiarius que consta em algumas fontes epigráficas. O historiador
francês fundamentou a sua teoria na possível correlação entre esse termo compósito e um
baixo-relevo em que um gladiador munido do tubo com lâmina na ponta se opõe,
aparentemente, a um retiarius807. Contudo, actualmente, tal identificação já se descartou
definitivamente. Com efeito, as poucas menções a contrarete datam de fontes do século I d. C.,
numa altura em que o retiarius ainda não havia encontrado um adversário à sua altura 808, e
todos os casos mencionados por L. Robert correspondem a documentos do século II ou do III.
Por outro lado, em certos epitáfios explicita-se que os gladiadores defuntos eram murmillones
(contraretiarii), haja em vista o exemplo de Ursius, de Nemausus (Nîmes). Esta assimilação do
contraretiarius a uma variante do murmillo não encontra correspondência nos gladiadores
dotados de um tubo metálico. Os últimos parecem antes derivar do secutor, do qual possuíam
o elmo com uma cimeira característica, que em nada se aparentava ao do murmillo.

Recentemente propôs-se que este género de gladiador corresponderia ao scissor: esta nova
tese escorou-se não só nas representações figurativas, mas igualmente na etimologia e nos
testes no âmbito da arqueologia experimental efectuados por M. Junkelmann 809 e D.
Battaglia810. Ambos sustentaram a ideia de que esse tubo, tão peculiar e sem qualquer
equivalente conhecido no domínio militar, se destinaria, com a sua extremidade formada por
uma lâmina em meia-lua, a rasgar a rede do retiarius. O vocábulo scissor/«O que corta»
coaduna-se com a função da meia-lua desse gladiador altamente invulgar. Não resta a menor
dúvida de que esta forma estaria adaptada para apanhar a rede do retiarius e, depois, cortá-la
ou, pelo menos, arrancá-la das mãos do adversário. Além disso, o tubo metálico constituiria
805 Coraça que cobria o tronco e a bacia, composta de escamas de ferro, bronze ou de osso.

806 Les gladiateurs…, p. 106, nº 46, est. XIII; p. 235, nº 299, est. XIV.

807Afora este baixo-relevo achado na Roménia, identificaram-se duas lamparinas como representando a mesma
oposição.

808 Designadamente Longinas (CIL VI. 10180) e (Par)dus (CIL VI.33983).

809 Gladiatoren…, pp. 111-112 (reconstituição da aparência de um scissor, figs. 160-161), 209-211.

810 Retiarius vs. Secutor et scissor. Ricostruzione empirica delle tecniche di combattimento e degli armamenti, p.
10ss.

322
uma excelente protecção para o antebraço esquerdo: bem utilizada, tal protecção permitiria
resistir aos ataques realizados com o tridente, ao enfrentar eficazmente às investidas feitas
com a rede, factos plenamente demonstráveis mediante os testes experimentais.

Todavia, como sucede no caso do contraretiarius de L. Robert, o scissor proposto por M.


Junkelmann assenta em indícios epigráficos bastante frágeis. Só uma das duas listas de
gladiadores de Venusia811 inclui um tipo de combatente qualificado de scissor. Esta fonte data
do reinado de Augusto ou do de Tibério; na mesma, aparece também um retiarius, mas num
momento histórico em que este ainda era raro. A presença destes dois gladiadores, ainda
excepcionais nesse período, leva a supor que ambos, numa fase experimental, poderiam
eventualmente ser colocados frente-a-frente. Mas, note-se, o scissor significa um hapax que
surge numa data muito anterior às imagens do gladiador provido do tubo metálico. Mais: tal
designação não volta a aparecer nas fontes epigráficas e jamais se vê referida pelos autores
antigos. Caso o scissor tenha sido, em princípios do século I d. C., esse gladiador provido do
tubo, então torna-se muito provável que a sua denominação se viesse a alterar ulteriormente.

Outro tipo de gladiador igualmente difícil de identificar, o dimachaerus, apareceu em meados


do século I. Nas fontes epigráficas, ele é quase tão discreto quanto o scissor, uma vez que se
atesta só em três casos. A menção escrita mais recuada encontra-se no anúncio de um munus
em Pompeia812; a seguir, dispomos de uma inscrição descoberta em Lyon/Lugdunum (CIL XIII
1997), datando do século II ou III, e o citado trecho da obra de Artemidoro. Apesar de restarem
tão fracos dados informativos, o dimachareus alimentou a imaginação de alguns historiadores,
que até inventaram um tipo de gladiador particular. Na realidade, a sua «identificação» apenas
se estabeleceu pela via etimológica: o sufixo machaera remete para «adaga ou gládio»; com o
prefixo di, o dimachareus seria então «um combatente munido de um gládio em cada mão».
Esta antiga leitura do vocábulo, amiúde repetida até aos dias de hoje sem qualquer reflexão
crítica, não pode continuar a ser aceite. De facto, nenhuma fonte imagética (gladiatória ou
militar), tanto no mundo latino como no mundo grego, representa este tipo de combatente
dotado de dois gládios. Apenas um relevo de Amysos (Musée du Cinquantenaire, Bruxelas)
criou, durante algum tempo, uma ilusão. Neste relevo, pertencente à estela já referida de
Diodoros, certos estudiosos, como François Cumont 813, acreditaram tratar-se do enigmático
dimacherus, sugestão apoiada por L. Robert, na sua obra monumental publicada em 1940 814.

A «construção» intelectual do dimachareus por vários estudiosos modernos, além de assentar


em frágil lastro probatório, revela um fraco conhecimento dos princípios dos combates antigos.
Curiosamente, esses autores nem colocaram a questão sobre que género de adversário
enfrentaria o dimachareus. Ora todos os guerreiros da Antiguidade e, a fortiori, os próprios
gladiadores se apresentavam sistematicamente equipados com um escudo ou, se não fosse
este o caso, como acontecia com o retiarius, providos de uma arma comprida. Frente a um
adversário protegido por um escudo ou portador de uma arma de haste, o dimachareus, se, de
facto, utilizava dois gládios, não teria qualquer hipótese contra um gladiador treinado, fosse
qual fosse a sua armatura.Consequentemente, dimachaerus talvez significasse uma designação
genérica aplicável a vários tipos de gladiadores que tivessem de lutar, não com dois gládios,
mas antes através de duas maneiras diferentes. Ao aceitarmos esta interpretação, poderia

811M. Buonocore, Epigrafia anfiteatrale dell’Occidente Romano III. Regiones Italiae II-V, Sicilia, Sardinia et Corsica,
Roma, 1992, p. 99, nº 68.

812 La gladiature…, p. 41, n. 14.

813 Catalogue des sculptures et inscriptions antiques (monuments lapidaires) des Musées Royaux du
Cinquantenaire, Bruxelas,1913, p. 104

814 Les gladiateurs…, p. 72, 130.

323
constituir um termo alternativo para aludir tanto ao retiarius, que se servia do tridente e do
punhal, como ao hoplomachus, equipado de uma lança e de uma adaga. Perfila-se ainda outra
hipótese que não exclui a primeira: talvez o termo dimachaerus se entendesse como uma
referência ao combatente macedónio, que tanto se batia a cavalo como apeado. Neste sentido,
o étimo talvez englobasse o eques e, extensivamente, o essedarius, já que ambos lutavam
primeiro montados e depois terminavam o duelo apeados. É o que aparentemente se
depreende da mencionada inscrição funerária achada em Lyon:

«Aos manes e à memória eterna de Hylas, dimachaerus ou essedarius 815, que recebeu a rudis depois de
haver sido vencedor em sete combates. A sua mulher Ermais erigiu este monumento para o seu querido
esposo. E dedicou-o sob a ascia»816.

Este testemunho epigráfico é uma das raríssimas lápides que indica duas armaturae para um
só gladiador. O emprego da palavra sive, que significa «ou seja», «bem como» ou
simplesmente «ou», manifesta nitidamente a ambivalência e a proximidade existente entre
estas duas categorias. Também pode ter sucedido que as armaturae do essedarius e do
dimachaerus, por serem das menos correntes da nomenclatura gladiatória, conduzirem, devido
à sua raridade, este tipo de gladiadores específicos a assumirem uma certa polivalência. O
testemunho literário de Artemidoro apresenta o essedarius e o dimachareus como duas
armaturae claramente bem distintas. Com efeito, na obra Oneirokritika, o autor grego
diferencia ambos os tipos de gladiadores, ao atribuir-lhes dois significados muito diferentes.
Por fim, acresce que foram citados em último lugar no conjunto dos gladiadores, o que se trata
de mais um indício da fraca popularidade que deveriam usufruir junto do público.

Seja como for, houve mesmo um género de gladiador suficientemente raro para ter que ser
polivalente, que lutaria com uma arma em cada uma das mãos, não recorrendo a um escudo
ou a uma lança. O único combatente da arena conhecido que pode corresponder a esta
definição é, precisamente o que atrás descrevemos e foi rotulado de contraretiarius por L.
Robert e chamado scissor por M. Junkelmann e D. Battaglia 817. A fim de apoiar esta hipótese,
que parece a mais sedutora, citemos Artemidoro, que constitui a única referência literária ao
dimachaerus: «O dimachaerus e aquele que se chama arbelas indicam que a mulher é uma
feiticeira ou, então, perversa ou feia».

Ao termos em conta que o vocábulo scissor aparece somente numa fonte epigráfica, de
começos da dinastia Júlio-Cláudia, então a possibilidade de uma identificação do dimachaerus
como novo nome para o scissor, a partir do reinado de Nero, adquire acrescida verosimilhança
(CIL IV 2508) 818. Tal identificação do dimachareus revela-se conforme à etimologia geralmente
aceite de um gladiador que se batia com uma arma em cada mão. Ademais, a descrição de
Artemidoro aplica-se sem qualquer problema a este tipo de combatente excepcional. A
perversão e feiura que o autor grego lhe atribui talvez consistam nos dois elementos
caracterizadores do gladiador que utilizava o tubo metálico rematado por uma lâmina com a
forma de meia-lua. Com efeito, ao estar desprovido de escudo, o dimachareus, ao adoptar
como técnica de combate a postura de perfil, revelava-se de imediato muito diferente das

815 …dymachero sive assidario….

816 CIL XIII 1997 = ILS 5097 = EAOR V.62.

817Com efeito, este tipo de gladiador foi objecto de reconstituição experimental por parte da equipa liderada por
M. Junkelmann, bem como a de D. Battaglia (Ars Dimicandi), e a de B. Lopez e E. Teyssier.

818Neste «anúncio» de um munus em Pompeia, faz-se efectivamente menção a gladiadores «neronianos», que só
existiram durante o reinado deste imperador.

324
empregues pelos restantes gladiadores. Por sua vez, as escamas de metal da sua lorica e o
tubo819 conferiam-lhe uma aparência de réptil ou de alguma estranha espécie de criatura
monstruosa. Repare-se que o grafito (de tosca factura) que se descobriu num dos degraus do
teatro de Aphrodysias testemunha a impressão de feiura que transmitiria a silhueta deste
combatente tão peculiar.

Deslindemos também a questão do adversário do dimachaerus. A este respeito, recordemos


que a inscrição pompeiana que alude ao dimachaerus o opõe a um hoplomachus 820. Ao
admitirmos que o dimachaerus sucedeu ao scissor enquanto designação para o gladiador
dotado do tubo metálico, este seria, pois, um especialista no combate contra oponentes
equipados de uma arma de haste, fosse um retiarius (como parece ser o caso do adversário
que enfrentou o scissor na inscrição de Venusia), ou um hoplomachus, de acordo com o
documento pompeiano.

Ao contrário das armaturae até aqui estudadas, não dispomos de uma representação plástica
deste tipo de gladiador acompanhada da menção a uma armatura específica. Nos treze baixos-
relevos que nos mostram aparentemente este tipo de combatente, somente seis têm uma
inscrição, a qual se limita, em geral, ao nome do gladiador falecido.Por seu turno, frisemos que
apenas uma dessas inscrições foi exarada em latim, as demais escritas em grego. O único
testemunho em latim procede de Salona, na Ilíria (CIL III 2723), isto é, de uma região em
contacto simultâneo com os mundos romano e helenístico: uma lápide erguida em memória de
Honesimus, a qual, durante largo tempo, passou desapercebida aos estudiosos por nela não se
ter preservado a representação da cabeça do defunto (que provavelmente cingiria um elmo) e
por causa da ausência de uma evocação explicitamente gladiatória na inscrição. No entanto, a
presença do tubo metálico, ostensivamente colocado diante do busto do defunto mostra bem
a intenção deste de lembrar fielmente o seu passado de combatente do anfiteatro. A imagem
tem mais uma particularidade, já que se representou o tubo no braço direito, o que indica que
o gladiador devia ser esquerdino.

Todos os outros relevos alusivos a este tipo de gladiador foram recuperados, como dissemos,
no Oriente grego. Isto leva-nos a depreender que, embora tal género de gladiador tenha sido,
quiçá, «elaborado» em Itália (se aceitarmos a identificação proposta do scissor e do
dimachaerus), depois veio a conhecer uma popularidade relativamente significativa na pars
Orientalis do império. Estas estelas funerárias são, em regra, de factura medíocre e possuem
como inscrição simplesmente o nome do combatente. Tal é o caso da lápide muito modesta do
gladiador Rodon (ΡΟΔΩΝ), figurado «em glória», descoberta em Satala (Lídia) 821 e actualmente
no Museu de Manisa, na Turquia. A imagem que retrata o defunto é muito simples, limitando-
se o escultor a indicar sumariamente a silhueta da figura. Contudo, teve-se o cuidado de
representar o emblemático tubo metálico, assim como as duas ocreae que faziam parte desta
armatura. No relevo de Rodon, o carácter fruste da escultura bidimensional não nos ajuda a
identificar uma lorica squamata como a envergada por Myron no seu monumento. No entanto,
Rodon ostenta uma espécie de justa túnica na cintura que provavelmente seria acolchoada,
devendo ter o mesmo objectivo defensivo que a lorica, só deixando a descoberto a parte
inferior das coxas. Na presente estela, à semelhança das anteriormente observadas, o elmo
que acompanha o gladiador é similar aos que os secutores utilizavam. Este elemento conduz a

819Recorde-se que os equites utilizaram esta lorica em finais da República, mas, sob o Império, vieram a perdê-la,
conservando apenas uma túnica.

820 Di[macheri (?) / (h)oplomachi (?)].

821L. Robert, «Monuments de gladiateurs dans l’Orient grec», Hellenica 8 (1950), p. 67, nº 315, est. XII, 1.

325
que pensemos tratar-se o combatente em questão efectivamente noutro adversário do
retiarius.

Não há muito, descobriu-se outra lápide, também singela, em Patras 822, no Norte do
Peloponeso (fig. )823: o gladiador que nela é nomeado, Kallinikos, pertenceria decerto à
categoria dos combatentes munidos do tubo metálico. Nesta estela, porém, não se figurou o
falecido, nem tão quanto se indica qual era o nome da sua armatura. Em contrapartida, o
passado gladiatório de Kallinikus e a sua armatura são transmitidos de modo assaz sintético
mediante um gládio e um casco sem cimeira em meia-lua. Se o lapidário se tivesse confinado
só a estes dois elementos, então a estela de Kallinikos poderia atribuir-se a um secutor. Ora
para que não restassem equívocos, adicionou-se outra peça, que é, inequivocamente, um tubo
metálico rematado por uma lâmina com forma em meia-lua. Consequentemente, mesmo para
um testemunho tão modesto como este, o gladiador ou os membros da sua familia tiveram a
preocupação de sublinhar a armatura em causa. Depreende-se, portanto, que ela seria
reconhecida pelo público nos espectáculos, mesmo que aparentemente este tipo de
combatente não tenha gozado de grande difusão nem prestígio, isto se nos basearmos na
modéstia dos monumentos funerários de indivíduos que a representaram na arena.

Clarifiquemos outro ponto, o do termo grego para esta armatura. Para o efeito, há que voltar à
evocação deste gladiador «feio e maléfico» feita por Artemidoro. Tal tipo de combatente,
referido em último lugar na lista do autor, é o único designado por dois étimos distintos: «O
dimachaerus é aquele ao qual se chama arbelas». É muito possível que se trate de um único
gladiador. Este seria conhecido como dimachaerus na parte latina do Império. Efectivamente,
as três referências que possuímos deste gladiador foram todas encontradas na parte ocidental
do Império, mas só Artemidoro faculta a a transcrição em grego desse vocábulo (διμάχάιρος),
que jamais se vê empregue nas inscrições exaradas nas localidades do Oriente helenístico. O
arbelas (άρβέλας) seria, então, o nome pelo qual este gladiador se identificava no mundo
grego824.

O gladiador com o tubo metálico foi provavelmente «inventado» no princípio do século I d. C.,
numa altura em que os lanistae e os doctores procuravam um oponente tecnicamente apto
para enfrentar o retiarius. O termo scissor não terá gozado de grande sucesso pelo que, nas
décadas seguintes, a denominação dimachaerus acabou eventualmente por suplantá-lo. Mas o
certo é que no Ocidente, pelo menos, a palavra dimachaerus também não terá adquirido
significativo êxito, já que nessa parte do Império as ocorrências epigráfias são raríssimas e as
representações plásticas quase inexistentes. Foi, pois, no Oriente, sob a designação de arbelas
e a partir somente do século II d. C., que este gladiador anti-retiarius veio a apresentar-se em
público. Aqui, uma vez mais, as referências em fontes epigráficas primam pela sua total
ausência e apenas o testemunho literário de Artemidoro possibilita que conheçamos a

822 A. Rizakis, «Munera gladiatoria à Patras I», Bulletin de Correspondance Hellénique, 108 (1984), p. 537, nº 5.
Este autor, todavia, entendeu que a estela funerária pertenceria a um provocator.

823 M. Junkelmann, Gladiatoren…, fig. 353.

824M. Carter procurou definir o arbelas de acordo com critérios fiáveis, para o efeito começando por se
fundamentar em Artemidoro (cf. «Artemidorus and the Arbelas Gladiator», Zeitschrift für Papyrologie und
Epigraphik 134 2001, pp. 109-115). Mas as conclusões a que chegou revelam-se decepcionantes: não estabeleceu
qualquer conexão ou paralelismo entre os vocábulos dimachaerus e scissor (ao qual nem sequer alude); em relação
ao dimachaerus escreveu que «é um [tipo de] gladiador bem conhecido, que, como o seu nome sugere, estava
armado com duas adagas, uma em cada mão» (p. 110); além disso, referiu que o arbelas e o dimachaerus
correspondiam a duas armaturae distintas (p. 115), quando, na realidade, os dois termos designavam o mesmo
género de gladiador, o primeiro empregue no Oriente grego, e o último na parte ocidental do império romano.

326
existência desta armatura. Apesar de tudo, as poucas imagens esculpidas em relevo atestam o
relativo sucesso que este tipo de gladiador teve, com toda a sua atipicidade 825.

Resta demonstrar que o «incompreensível arbelas» (segundo a expressão de Maria Grazia


Mosci Sassi826) correspondeu de facto ao gladiador dotado do tubo metálico. A este respeito, é
esclarecedora a explicação dada por Roger Pack, num artigo publicado em 1957, que,
aparentemente resolve tal questão. De acordo com este filólogo, o arbelas deriva de um
utensílio, o trinchete de sapateiro827, cujo nome em grego é precisamente άρβέλας. A
aproximação que se pode efectuar entre essa peça cortante em forma de meia-lua e dotada de
empunhadora com o tubo cilindrico empregue pelo misterioso gladiador credibiliza esta
interpretação. Note-se que num vaso grego de figuras vermelhas datando do século V a. C., tal
ferramenta aparece na mão de um sapateiro. Ainda utilizado no século XX, o trinchete faz parte
daqueles objectos intemporais que atravessaram séculos.

Este utensílio seria, de facto, uma arma muito eficaz para rasgar as malhas da rede do
combatente armado do tridente, sobretudo se a parte côncava da lâmina fosse afiada. Uma vez
ficando a rede inoperante, esta arma também podia causar graves ferimentos no retiarius, com
as suas pontas e a sua parcela convexa. Para proteger a mão e o antebraço do combatente,
bastaria então que utilizasse um tubo cilindrico metálico para se tornar no gladiador que
provavelmente se chamou scissor numa primeira fase, simplesmente porque «cortava».
Depois, impôs-se o termo dimachaerus, dado que sabemos que o mesmo tinha ambas as mãos
armadas. Ao que se julga, este género de combatente não perdurou no mundo ocidental para
além do século I d. C., ao passo que no Oriente parece haver conhecido algum sucesso, sob a
designação de arbelas.

Os paegniarii e laquerarii, mais «bobos» da arena do que gladiadores

Sob o ponto de vista etimológico, o termo paegniarius estava relacionado com outro que
servia para designar os combatentes que lutavam sobre estrados: Suetónio, alude, assim, a
gladiadores pegmares. Embora nenhuma fonte associe esta denominação com uma imagem,
há bastante tempo que se identificou o paegniarius com um tipo de combatente figurado num
reduzidíssimo número de testemunhos. Embora o acervo iconográfico se limite às
representações de sete indivíduos (equivalendo a 0,5% do corpus global), elas são
suficientemente objectivas para que possamos determinar a natureza concreta do seu
equipamento. Nesses documentos figurativos, observamos quase sempre dois oponentes
munidos de protecções, bastante almofadadas, nos braços e nas pernas.Diferentemente dos
outros gladiadores, os paegniarii não dispunham de elmo nem escudo, estando igualmente
desprovidos de armas brancas. De facto, as suas únicas armas consistiam em bastões e látegos.

825 Os arbelai/arbelases também lutavam entre si, como o atestam um relevo da antiga Hierápolis (actual
Pamukkale, Turquia), datando do século III ou IV d. C.Os dois combatentes representados são nomeados: Kalydon e
Odysseus; T. Ritti e S. Yilmaz, «Gladiatori e venationes a Hierapolis di Frigia», pp. 469-472, nos 6 e 7.

826 Il linguaggio gladiatorio, Bolonha, 1992, p. 182, n. 102 («l’incomprensibile άρβήλας»). M. G. Mosci Sassi
refutou os argumentos de R. Pack, bem como o próprio vocábulo arbelas.

827«Textual Notes on Artemidorus Daldianus», Transactions and Proceedings of the American Philological
Association, 88 (1957), p. 190.

327
Situamo-nos, portanto, mais no quadro de actuações burlescas que ocasionalmente ocorriam
nos intervalos entre os verdadeiros combates. Determinados autores antigos reportam-se a
«confrontos» entre anões, possivelmente equipados através deste género de pseudo-
armatura. Sobreviveram apenas três ocorrências em fontes epigráficas, o que indicia a pouca
importância que se conferiria aos paegnarii.

No entanto, mesmo não sendo gladiadores na acepção estrita da palavra termo, não
deixavam, apesar de tudo, de se encontrarem inseridos no seu «mundo». Repare-se, a título de
exemplo que o paegniarius chamado Aprilis pertenceu a um collegium composto por
gladiadores combatentes (CIL VI.466). Contudo, na mesma inscrição, achada em Roma, que
menciona também os árbitros, os armeiros e os médicos, importa ressalvar que esse
paegniarius aparece citado na quarta e última decúria da corporação, o que evidencia
indiscutivelmente o seu estatuto muito inferior no seio da gladiatura. Noutro testemunho
epigráfico também descoberto na Urbs, vê-se referido outro paegniarius, que fazia parte do
pessoal do prestigioso Ludus Magnus (CIL VI.10168), cujo nome era Secundus, pegnario [sic] in
culice. Vale a pena destacar o caso deste homem por causa da sua grande longevidade: no seu
epitáfio está escrito que morreu com «98 anos, 8 meses e 18 dias». Secundus, quase
centenário, terá indubitavelmente constituído uma espécie de memória viva ao tempo e não
estaremos longe da verdade se imaginarmos que ele seria como que uma «mascote» do Ludus
Magnus. Foi certamente por tal motivo que esse paegniarius teve a honra de beneficiar de
uma lápide de mármore oferecida em sua memória pela familia Ludi Magni. Este mesmo nome
de Secundus surge consignado no único medalhão de aplique decorado com uma cena
formada por paegniarii. Não devemos descartar por inteiro a teoria de que os dois Secundus
possam corresponder à mesma pessoa, até porque ambas as fontes parecem datar do século II
d. C. Tanto na inscrição funerária como no medalhão, Secundus sobressai pela sua excepcional
reputação. No epitáfio, a expressão in culice foi acrescentada posteriormente, posicionando-se
entre duas linhas, manifestando uma grafia distinta do resto da inscrição: podemos vertê-la por
«provido de dardo», significando indiscutivelmente o seu cognome, ligado ao seu bastão ou
até à sua virilidade.

As representações de paegniarii que chegaram até nós mostram invariavelmente dois


«gladiadores» com elementos diferentes (como se vê, por exemplo, num dos conhecido
mosaicos da villa de Nennig (Sarre, Alemanha; fig. finais do século II d. C.). Aparentemente, o
seu equipamento obedecia a uma lógica específica. Se, por um lado, cada um dos indivíduos
tinha uma protecção acolchoada funcionando ao jeito de escudo sobre o braço esquerdo, por
outro, o paegnarius que aparece de tronco nu está sempre munido de dois bastões, enquanto
o seu adversário, com a parte superior do corpo guarnecida por uma túnica ou uma loriga, faz
uso de um látego e de um bastão na mão esquerda. Havia certamente uma razão para um
deles se encontrar com o torso despido: deste modo, ele ficaria mais sensível aos golpes
vibrados pelo látego do seu oponente.

Se admitirmos que nestes «duelos» burlescos se defrontavam dois pseudo-gladiadores


distintos, o que era portador do látego poderia muito bem tratar-se do laquerarius 828: evocado
uma só vez por Isidoro de Sevilha, mas totalmente ausente da epigrafia, este «gladiador»
estaria armado de um laço829: geralmente assimilado ao retiarius, sob o pretexto de que lutava
com o rosto à mostra, o laquerarius deveria antes corresponder ao adversário do paegniarius.
Se aceitarmos esta interpretação, então caberia dotar o laquerarius de um látego em vez de
um laço, o qual praticamente não se assinala na iconografia gladiatória. Em frente dele o
paegniarius seria o homem equipado com dois bastões e exibindo-se com o tronco nu.

828 Também conhecido pela designação alternativa de laqueator (plural, laqueatores).

829 Esta afirmação fundamenta-se no vocábulo laqueus, que significa corda de nós corrediços.

328
Os venatores e os bestiarii: gladiadores ou não?

Muitas vezes confundidos com os gladiadores, os venatores e os bestiarii constituíam grupos


de caçadores da arena, aparentemente sem qualquer relação com os primeiros 830, excepto no
facto de partilharem o mesmo palco de actuação, o anfiteatro. De facto, estes dois géneros de
combatentes lutavam contra feras, não contra outros homens. Contudo, é provável que os
Romanos não tenham distinguido logo os venatores e os bestiarii dos gladiadores
propriamente ditos: com efeito, as primeiras representações figurativas das venationes
mostram animais investindo contra homens utilizando equipamentos próprios de várias
armaturae gladiatórias.

Assim, por exemplo, num baixo-relevo do tempo de Augusto, na Villa Torlonia em Roma,
observam-se feras atacando dois thraeces, igual número de murmillones e um eques. Se bem
que existam outras imagens deste tipo, datadas do século Ia. C., tudo leva a crer que se
começou a estabelecer uma clara distinção a partir da época imperial. Doravante, os venatores
passaram a ser representados vestindo túnicas e armados com um venábulo, como se pode
constatar num afresco do anfiteatro de Mérida, em Espanha. No Capítulo VI desenvolvemos
mais detalhes tanto sobre os venatores, como os bestiarii.

As mulheres e a gladiatura

Os Romanos nutriam grande interesse por novidades que se introduzissem nos seus
entretenimentos; uma atracção que decerto os cativaria era um espectáculo que
compreendesse mulheres a lutar na arena como gladiadoras, sobretudo se elas pertencessem
à aristocracia. Mas estas combatentes representavam a contradição flagrante de um dos
valores tradicionais mais prezados por Roma: a associação do elemento feminino à casa e às
suas diversas tarefas domésticas. Ora quando uma mulher abandonava o seu papel «natural» e
invadia um domínio exclusivamente masculino, o da virtude marcial, caso porfiasse na
qualidade de profissional, ela, tal como o homem nascido livre, incorria no estigma da infamia.
O escândalo gerado por uma tal atitude seria possivelmente ainda maior na situação de uma
mulher. No entanto, à semelhança do que se passa actualmente, os comportamentos
escandalosos pareciam fascinar os Romanos, apesar de haver uma desaprovação social em
termos oficiais. Ao longo da República, não temos notícia da existência de gladiatrices, época
em que as mulheres tinham menos liberdade de acção. Não se podia pôr em causa o controlo
legal e moral que o paterfamilias exercia sobre o seu agregado, especialmente os membros
femininos. Assim, o poder do patriarca familiar parece ter significado um meio dissuasor
suficientemente forte para impedir que os elementos femininos da família se exibissem em
representações cénicas ou em munera.

Mas nos últimos tempos da República e, sobretudo, desde o início da época imperial, as
mulheres começaram a ganhar mais liberdade, pelo que não admira muito encontrarmos
referências a várias pretendendo actuar como gladiadoras. Aparentemente, a ameaça da

830 No entanto, nos primeiros tempos, não é de descartar a hipótese de ter havido gladiadores a actuarem como
venatores, apesar de não dispormos de provas documentais que tal o confirmem.

329
infamia já não bastava para desencorajar certas mulheres de participarem em ventos
gladiatórios. Nos primeiros tempos do século I d. C. fica-se com a impressão de que o número
de mulheres a aparecer na arena terá sido relativamente significativo, já que o Senado se viu
compelido a intervir: em 11 da nossa era, um senatus consultum impôs um limite de idade,
tanto para os homens nascidos livres (25 anos) como para as mulheres com a mesma condição
(20 anos) para enveredarem pela gladiatura ou entrarem em peças teatrais 831. Este decreto
visava contrariar as tendências reveladas por jovens patrícios, que se sentiam irrefreavelmente
seduzidos pela arena e pelo palco.

Oito anos mais tarde promulgou-se novo decreto, que lidava especificamente com o problema
de haver mulheres de famílias das ordens equestre e senatorial a actuarem como gladiatrices.
Depreende-se que, no espaço desses oito anos, mais mulheres terão surgido a participar em
representações teatrais e a lutar. O senatus consultum de 19 d. C. manifestou-se ainda mais
restritivo que o anterior, proibindo as mulheres de se exibirem no palco ou de se tornarem
gladiadoras (fossem filhas, netas ou bisnetas de membros das classes equestre e senatorial)
antes de atingirem os 20 anos de idade; interditava-se, de igual modo, que os lanistae as
contratassem. A razão maior para estas proibições relacionava-se com a infamia em que tais
mulheres incorriam, o que diminuía sobremaneira, a dignidade e o prestígio dos grupos sociais
de que faziam parte. No decreto acrescentou-se ainda uma sanção: as que desobedecessem à
disposição legal ficariam privadas de merecer cerimónias fúnebres e de gozar de um enterro
minimante condigno832.

O senatus consultum de 19 d. C. veio a ser esquecido ou ignorado durante o reinado do


excêntrico Nero. Tácito diz-nos que, por ocasião de magníficos espectáculos de gladiadores
oferecidos no tempo deste imperador, «muitas mulheres de alta condição e senadores se
degradaram ao ponto de descerem até à arena» 833. Aparentemente, estes confrontos entre
mulheres seriam organizados ao mesmo tempo que os dos homens e nunca em separado.
Segundo Dião Cássio, Nero resolveu apresentar uma variante étnica em relação a combates
femininos, quando ofereceu um munus em Puteoli em homenagem do rei da Arménia,
Tiridates, no qual lutaram mulheres etíopes (juntamente com homens e até crianças) 834. As
próprias cerimónias fúnebres em memória da mãe do princeps também serviram de cenário
para outros duelos de gladiatrices. Ainda no mesmo reinado, houve outras mulheres da alta
sociedade a envolver-se em actividades em público, surgindo a cantar e a dançar, a tocar
instrumentos musicais, em peças teatrais e mesmo conduzindo carros puxados por cavalos no
Circo Máximo835.

Suetónio evoca, igualmente, as pugnas gladiatórias oferecidas por Domiciano, apresentando-o


como o primeiro imperador a englobar gladiatrices e venatores num munus nocturno, no
anfiteatro, à luz de archotes836. O poeta Estácio refere-se a tais combatentes como mulheres
«sem treino nem conhecimento em armas»; na ocasião, logo a seguir entraram em cena

831 Vejam-se os parágrafos 17 e 18 do decreto (com a transcrição em latim e a tradução para inglês) no artigo de
Barbara Levick, «The Senatus Consultum from Larinum», JRS 73 (1983), pp. 98-99.

832 Jane Gardner, Women in Roman Law and Society, Bloomington/IN, 1986, p. 248.

833 Ann. 15.32.

834Dião Cássio, Hist. rom. 63.3.1. Noutra passagem, o autor, membro da ordem senatorial, demonstrou o seu
desgosto face a tais extravagâncias e comportamentos indecorosos. No entanto, ele salientou que, se por um lado,
houve pessoas de elevado estatuto social a intervir de livre vontade como gladiadores e venatores, por outro,
diversos indivíduos viram-se coagidos, assim cedendo aos caprichos de Nero.

835 Ibidem, 61.17.3.

330
gladiadores anões. Como os Romanos geralmente não demonstravam comiseração ante
pessoas com deformações físicas, confrontos opondo anões serviam para que o público se risse
às gargalhadas; Estácio descreveu Marte e a personificação da Cruenta virtus divertindo-se a
assistir os anões envolvidos no corpo a corpo, ferindo-se e ameaçando matar-se entre si, numa
paródia aos verdadeiros combates gladiatórios 837.Ter-se-á obtido similar efeito cómico, quando,
a certa altura, se assistiu a combates de mulheres combatendo aos pares com anões, uma
combinação bizarra, mas que certamente divertiu muito os espectadores 838.

Em finais do século II ou começos do III, Septímio Severo proclamou a proibição de gladiatrices


que pertencessem a famílias das classes privilegiadas, citando basicamente a mesma razão
consignada no decreto senatorial de 19 d. C.:

«As mulheres neste espectáculo combateram de maneira tão enérgica e selvática que conduziram a
que outras mulheres da elite se tornassem objecto de comentários trocistas e, consequentemente,
decretou-se que nenhuma mulher voltaria a lutar em duelos gladiatórios» 839.

Só encontramos outra menção a gladiatrices numa inscrição do porto romano de Óstia, em


que um magistrado local chamado Hostilianus se gaba de ter sido o primeiro editor a
apresentar mulheres a lutar num espectáculo na dita cidade (Qui primus omnium ab urbe
condita ludus cum […]or et mulieres [a]d ferrum dedit 840). M. Cebeillac-Gervasoni e F. Zevi
dataram esta inscrição da segunda metade do século II d. C., possivelmente antes da proibição
de Septímio Severo 841. Nesta fonte, Hostilianus aparece designado como curator lusus
iuvenalis, ou seja, «curador dos jogos juvenis» em Óstia. Os jovens que participavam neste tipo
de espectáculos eram membros de uma organização «paramilitar» denominada collegium
iuvenum, todos eles de famílias aristocráticas842. Havia este género de organizações em
diversos centros urbanos em todo o território imperial; nelas se treinavam rapazes, mas
ocasionalmente também moças, em artes marciais, incluindo técnicas de combate com gládio.

Numa inscrição de Carsulae (a norte de Roma, perto de San Gemini), menciona-se um


gladiador que exerceu a função de instrutor de jovens (pinnrapus iuvenum). Cebeillac-
Gervasoni e Zevi sugeriam que as gladiadoras que surgiram no espectáculo dado por
Hostilianus podem ter recebido treino no collegium iuvenum de Óstia (o porto marítimo de

836 Divus Domitianus, 4.1.

837Silvae, 16.57-64. Se a plausível leitura proposta por D. R. Shackleton Bailey de pumilos («anões) para pugiles
(«pugilistas») estiver correcta (cf. Silvae, Cambridge/MA, 2003, pp. 92-93), os gladiadores anões também lutariam
contra grous, seus inimigos tradicionais nos contos folclóricos (Homero, Ilíada, 3.3-7; Plínio-o-Velho, Nat. Hist. 7.26;
Juvenal, Sat. 13.168-173). Veja-se, a propósito, S. Brunet, «Female and Dwarf Gladiators», Mouseion 4 2004, pp.
145-151.Este peculiar género de confronto foi, aliás, um tema popular na arte romana (J. M. C. Toynbee, Animals in
Roman Life and Art, Ithaca/Nova Iorque, 1973, p. 244).

838 Díon Cássio, Hist. rom. 67.8.4. C. Newlands (Statius’s Silvae and the Poetics of Empire, Cambridge, 2002, p. 244)
sugeriu que os anões e as mulheres que lutavam na arena corresponderiam a criminosos condenados a matar-se
uns aos outros. No entanto, não há quaisquer testemunhos que confirmem tal suposição.

839 Díon Cássio, Hist. rom. 75.16.1. O senatus consultum de 19 d. C., que interditara as mulheres pertencentes às
classes altas de lutarem como gladiatrices, deve ter caído provavelmente em desuso.

840 CIL XIV.4616; 5381.

841 «Revisions et nouveautés pour trois inscriptions d’Ostie», MEFRA 88.2 (1976), p. 612, 614.

842 M. Cebeillac-Gervasoni e F. Zevi, «Revisions et nouveautés pour trois inscriptions d’Ostie», p. 615; Mark Vesley,
«Gladiatorial Training for Girls in the Collegia Iuvenum of the Roman Empire», Echos du Monde Classique/Classic
Views XLII NS 17 (1998), pp. 88-91.

331
Roma), talvez sob a sua supervisão. Os mesmos autores propuseram igualmente que essas
jovens participaram no contexto dos jogos iuvenalia, em que tanto rapazes como raparigas
demonstravam em público o seu talento, logo não corresponderia a um munus normal843. Tais
moças lutariam, quase garantidamente, com armas de madeira ou de metal mas embotadas 844.

Kathleen M. Coleman interpretou o documento de outra maneira: datou a inscrição de um


período posterior à interdição de Septímio Severo relativamente às mulheres oriundas de
famílias aristocráticas, argumentando que a utilização da palavra mulieres, em vez de feminae
(«senhoras»), indicaria que não estariam envolvidas nesta exibição as que tinham elevada
condição social, pelo que não se estava a infringir o estipulado no decreto de Severo. Coleman
afirmou também que muito provavelmente se realizaram outros espectáculos com gladiatrices
em várias cidades, mas dos quais não sobreviveram quaisquer vestígios 845. Contudo, esta
reputada romanóloga acabou por pisar o terreno de areias movediças que é o domínio das
especulações.

É indiscutível que houve mulheres na gladiatura 846, mas as informações que dispomos sobre
estas combatentes revelam-se simultaneamente vagas, desconexas e limitadas. Além disso, os
autores antigos nunca mencionam (salvo Petrónio, no Satyricon847, ao referir-se a uma
essedaria) a que armaturae pertenciam estas gladiatrices. Esta falta de precisão e as condições
excepcionais em que os duelos femininos ocorreram (mulheres etíopes, lutas à luz de tochas…)
levam a que se alimentem dúvidas quanto à realidade gladiatória de tudo isto. Na realidade,
deviam consistir em simples exibições, sem ligação directa com a verdadeira gladiatura
«regulamentada» das armaturae.

Esta escassez de fontes, aliada ao carácter muito específico destas combatentes da arena, não
deixou, todavia, de suscitar certos fantasmas. Em 1996, em Southpark (Londres), na margem
sul do Tamisa, no decurso de escavações arqueológicas, foi descoberta uma necrópole do
século I da nossa era; uma das sepulturas veio a atrair a atenção dos arqueólogos do British
Museum: continha os restos calcinados de uma mulher que faleceu aproximadamente com 20
anos, e um recheio funerário relativamente significativo quando comparado com os das outras
tumbas, muito modestas, desse cemitério. Mas em termos concretos, o achado nada teve de
excepcional, resumindo-se a cinco peças de cerâmica e oito lucernas; volvidos alguns anos, em
2000 (coincidindo estranhamente com a estreia do filme Gladiator de Ridley Scott), apenas
com base na presença de figuras de gladiadores em várias lucernas, o então director do
prestigiado museu londrino848 afirmou que os restos dessa mulher pertenciam a uma

843 «Revisions et nouveautés sur trois inscriptions d’Ostie», pp. 615-616.

844M. Vesley, «Gladiatorial training for girls in the collegia iuvenum of the Roman Empire», EMC 42 (1998), pp. 85-
93.

845«Missio at Halicarnassus» Harv. Stud. 100 (2000), p. 498, n. 34. Coleman rejeitou a datação que M. Cebeillac e F.
Zevi apresentaram para tal inscrição, isto é, antes de 200 d. C., pelo facto de terem ignorado os «critérios das formas
das letras e da fraseologia».

846D. Briquel, «Les femmes gladiateurs: examen du dossier», Ktèma 17 (1992), pp. 47-53; D. Schäfer, «Frauen in
der Arena», in H. Bellen e H. Heinen (eds.), Fünfzig Jahre Forschung zur antiken Sklaverei an der Mainzer Akademie
1950-2000, Estugarda, 2001, pp. 243-268. Acrescentemos, ainda, que não se descobriu epitáfio algum respeitante a
uma gladiatrix.

847 Satyr. 45.7.

848Thurley declarou, num artigo publicado no The Times, que a pecular combinação de objectos e o método de
inumação indicava que a mulher era uma gladiadora: cf. D. Alberge, «Woman Gladiator Found Buried in London»,
The Times (13th September 2000). Mais tarde, em 2 de Julho de 2010, a imprensa voltou a precipitar-se ao noticiar

332
gladiatrix!...Esta declaração arrojada e sensacionalista foi, de seguida, largamente mediatizada,
designadamente por meio de um documentário da BBC. Ora esta ausência da mais elementar
prudência na identificação de uma sepultura bastante vulgar como correspondendo à última
morada de uma gladiatrix mostra bem o fascínio exercido por estas misteriosas mulheres do
anfiteatro 849.

Em termos iconográficos, o baixo-relevo de Amazon (Άμαζων) e Achillia (Άχιλλία) 850 constitui


praticamente a única representação851 garantida de gladiatrices: proveniente de Halicarnasso
(actual Bodrum, Turquia) e conservada no British Museum, esta escultura bidimensional mostra
duas mulheres defrontando-se; o equipamento que exibem permite identificá-las como
provocatrices. À semelhança dos homens, o escudo protege-as desde o pescoço até à parte
superior das coxas, enquanto a ocrea cobre o espaço entre o tornozelo e o joelho da perna
esquerda.Uma delas (Amazon) tem o braço direito coberto por uma manica. Curiosamente,
elas não cingem elmos, estando estes figurados de um lado e do outro da inscrição do
monumento852. Este facto é atípico para gladiadores representados a combater; muito
provavelmente, esta particularidade deveu-se à vontade de oferecer, aos olhos de quem
observasse o relevo, a peculiar feminidade de Amazon e Achillia, tão perturbadora neste
contexto. Os peitos desnudos sugerem que estas gladiatrices procuravam mostrar-se iguais aos
seus homólogos masculinos e corajosas. A inscrição situada abaixo das suas figuras fornece os
nomes «artísticos» das duas mulheres: o de Amazon relaciona-se claramente com as míticas
guerreiras que lutavam com um dos seios descobertos, e o de Achillia é a forma feminina de
Aquiles, o maior de todos os lendários combatentes gregos. Os espectadores terão
reconhecido nestes nomes uma evocação à lenda segundo a qual Aquiles matou a rainha

outra descoberta, supostamente dos restos mortais de uma gladiadora, desta vez em Credenhill, Herefordshire
(Inglaterra): mas, neste caso, não havia qualquer evidência que apontasse para uma combatente da arena. Os
artigos que então se publicaram sublinharam apenas dois factos: que a defunta foi enterrada num ataúde especial, o
que denota que seria pessoa com certo estatuto social, e tinha uma ossatura invulgar, robusta e inserções
musculares assaz desenvolvidas. Isto apenas indica que era uma mulher extremamente forte e realizara muitos
esforços físicos durante a sua vida.

849O livro de Amy Zoll (Gladiatrix, Nova Iorque, 2002) baseia-se na premissa de que os restos mortais descobertos
em Southpark pertenceriam efectivamente a uma gladiatrix; na realidade, seria apenas uma mulher «vulgar», que
se viu inumada com alguns dos seus objectos predilectos, quando muito tratando-se de uma fã dos munera, mas
não de uma combatente da arena. Susanna Shadrake também dedica uma série de parágrafos às gladiatrices (The
World of the Gladiator, pp. 185-194).

850J. Carlsen, «Gladiators in ancient Halicarnassos», in L. Karlsson, S. Carlsson e J. B. Kullberg (eds.), ΛΑΒΡΥΣ.
Studies presented to Pontus Hellström, Acta Universitatis Upsaliensis, Boreas. Uppsala Studies in Ancient
Mediterranean and Near Eastern Civilizations 35, Uppsala, Uppsala Universiteit, 2014, pp. 442-444, fig. 2.

851 Recentemente, A. Mañas Bastida afirmou ter encontrado uma efígie representando uma gladiadora («New
Evidence of female gladiators: The bronze statuette at the Museum für Kunst und Gewerbe of Hamburg», The
International Journal of the History of Sport, 28, 18, 2011, pp. 2726-2752): trata-se de uma estatueta de bronze, de
factura romana e datando do século I d. C. que mostra uma mulher que veste apenas uma braga e tem o braço
esquerdo levantado, brandindo na mão uma sica. Este autor debruçou-se atentamente sobre as mulheres na
gladiatura e é, actualmente, um dos estudiosos que mais defende a ideia de que elas desempenharam um papel
significativo nos munera (cf. Gladiadores…, cap. 5 «Las mujeres gladiatoras», pp. 271-288).

852Embora figurados esquematicamente, a ausência da cimeira nos cascos é claramente perceptível, o que
contribui para «inserirmos» estas combatentes na armatura dos provocatores: É. Teyssier, La mort en face…, p. 492,
n. 68. L. Robert interpretou estas formas arredondadas que aparecem em cada uma das extremidades da base em
que se inscreveram os nomes das duas mulheres como representando cabeças, não elmos (cf. Les gladiateurs…, p.
188): as gladiatrices estariam a lutar sobre uma plataforma (ao jeito dos pontarii), sob a qual se reuniriam os
espectadores, fosse numa arena ou numa praça pública. Isto explicar-se-ia pela natureza excepcional do confronto e,
acima de tudo, pelo sexo das combatentes, já que o público, segundo L. Robert, «queria ver o rosto das gladiadoras,
bem como os seus peitos».

333
amazona Pentesileia, aliada dos Troianos, sem saber que se tratava de uma mulher, até retirar-
lhe a armadura853.

No texto gravado no suporte pétreo, lê-se igualmente o étimo grego apeluzēsan em


maiúsculas (ΑΠΕΛΥΘΗΣΑΝ, equivalente à expressão latina stantes missi), que significa que
ambas foram indultadas; segundo R. Dunkle 854, isto indica que as duas gladiatrices terão
lutado suficientemente bem ao ponto de impressionarem o editor e o público, pelo que o
primeiro decidiu que a porfia se saldaria num empate, permitindo que ambas abandonassem a
arena para, noutro dia, voltarem a lutar. Segundo Amy Zoll, as duas mulheres não pertenceriam
à aristocracia local, sendo de baixa condição social, e estariam a lutar pelas suas próprias
vidas855. Porém, os argumentos esgrimidos por esta autora afiguram-se demasiado frágeis para
conferir credibilidade à sua teoria. Há quem tenha escrito que o facto de a pugna opondo
Amazonia a Achillia ter merecido um monumento em mármore com um baixo-relevo e uma
inscrição mostraria até que medida estas gladiatrices foram levadas a sério856.

Esta laje terá sido colocada num local público da cidade de Halicarnasso, a mando do editor,
para lembrar aos seus concidadãos a grande exibição que as duas mulheres terão dado; mas
esta não era a forma mais usual que os munerarii se serviam para perpetuarem os
espectáculos por eles oferecidos: um editor celebrava o seu munus principalmente por meio de
afrescos expostos em locais públicos, de um baixo-relevo decorando o seu monumento
funerário, ou, ainda, mediante mosaicos no pavimento da sua residência, muitas vezes no átrio,
descrevendo os momentos mais marcantes do espectáculo, a fim de que todos os que lá
entrassem pudessem contemplar tais imagens857. K. Coleman aventou a hipótese de que este
monumento relevado teria sido colocado no ludus local onde as duas mulheres se treinavam,
enquanto exemplo do seu valor combativo 858. Na realidade, quanto a nós, trata-se de uma
conjectura que não assenta em lastro firme; parece-nos muito rebuscada a ideia de imaginar
tal composição bidimensional situada no seio de uma caserna gladiatória, um meio masculino
por excelência. A intenção do editor, quando encomendou este monumento, foi certamente a
de publicitar um evento de carácter excepcional e invulgar, nada mais do que isso. Para além
deste testemunho iconográfico e epigráfico, frequentemente reproduzido em obras recentes
versando a gladiatura, a questão das gladiatrices, e mais especialmente as provocatrices, vê-se
aclarada numa passagem de Juvenal (Saturae, 6.246-267):

«Quem não viu a capa Tiria e o unguento de cera e azeite que usam as damas? Quem não viu as marcas
no poste (palus), o qual ataca continuamente com a o gládio de madeira e o escudo [rudibus scutoque] e
realizando todos os movimentos 859 esta matrona, digníssima para [actuar nos jogos da] trombeta de

853 Veja-se K. M. Coleman, «Missio at Halicarnassus», p. 500.

854 Gladiators…, p. 122.

855 Gladiatrix, Nova Iorque, 2002, p. 37.

856 R. Dunkle, Gladiators…, p. 122.

857 A este respeito, consultem-se: Shelby Brown, «Death as Decoration: Scenes from the Arena on Roman
Domestic Mosaics», in A. Richlin (ed.), Pornography and Representation in Greece and Rome, Oxford, 1992, pp. 188,
207-208; Marilyn Skinner, Sexuality in Greek and Roman Culture, Malden/MA, 2005, pp. 187-188.

858 «Missio at Halicarnassus», pp. 495-496.

859 Juvenal emprega o termo numeros, que se reporta ao conjunto de posições de ataque e defesa que se
aprendiam sob a vigilância dos instrutores. Nas fontes antigas também se utiliza outra palavra, com idêntico sentido
e igualmente no plural, dictata («instruções»), quando se descrevem os treinos dos gladiadores. Mais à frente,
tecemos mais comentários sobre tais vocábulos.

334
Floralia, a não ser que alguma ambição mais elevada se agite no seu peito, destinando-se à verdadeira
arena, para a qual se está a treinar? Que pudor pode ter uma mulher que usa o elmo, que renega o seu
sexo? Ama [realizar] façanhas de homem, mas, no entanto, não deseja ser homem, sabedora do pouco
que dura o nosso prazer [isto é, o pouco que dura o prazer masculino comparativamente ao que dura na
mulher]. Que honra [para ti] se se leiloarem os objectos da tua esposa, o seu cinturão e a manica e a
crista do seu elmo e a protecção da tíbia esquerda [balteus et manicae et cristae crurisque sinistri]!»860.

Nesta passagem, Juvenal descreve um género concreto de armaturae, mediante a


enumeração dos elementos da panóplia desta gladiatrix: de entre as peças do equipamento, a
greva esquerda é característica: corresponde provavelmente à ocrea dos provocatores, que
tnumerosinha a particularidade de não subir para além do joelho esquerdo, ao passo que um
thraex possuía duas ocreae chegando até à parte de cima das pernas. O facto de se evocar a
pluma ou o penacho (crista) pode igualmente constituir uma referência ao provocator, que era
o único tipo de gladiador que tinha o casco desprovido de cimeira 861. Ademais, quando Juvenal
se reporta o scutum da gladiatrix, ao empregar tal termo fica, uma vez mais, posto de parte o
thraex, que se servia exclusivamente da parma. Os movimentos efectuados com o scutum862
remetem para a técnica de combate do provocator, que assestava golpes de percussão com o
seu escudo. Assim, o cruzamento entre as fontes literárias e as iconográficas demonstra que as
gladiatrices lutariam essencialmente na armatura dos provocatores, mas não só. Com efeito,
Juvenal, ao discorrer sobre a mesma matrona, faculta um indício de que as mulheres também
poderiam combater como thraeces: «…ou, se ela livra outra forma de combate, que feliz [serás]
ao assistir à venda das ocreae da tua moça» (vel si diversa movebit proelia, tu felix ocreas
vendente puella…). A menção às grevas no plural pode indicar que esta mulher muito atlética
porfiaria também como thraex.

Por seu turno, como dissemos, Petrónio alude no Satyricon a uma essedaria. Estas armaturae,
para as quais a flexibilidade e a rapidez eram tão importantes como a força física, conviriam
efectivamente tanto às mulheres como aos homens. Seja como for, a armatura dos
provocatores significaria, talvez, a mais habitual para as gladiatrices. Ignoramos em que altura,
num espectáculo, elas actuariam. No entanto, julgamos não andarmos longe da verdade se
dissermos que as suas exibições teriam lugar no contexto das lusiones, ou seja, dos confrontos
em que se utilizavam armas embotadas (arma lusoria). O excerto de Juvenal parece descrever
uma sessão de treino de uma mulher que praticava a gladiatura, quiçá como outras,
actualmente, se dedicam a jogar o squash. O facto de o autor se referir a uma «ambição mais
elevada» e «à verdadeira arena» sugere que esta actividade seria, sem dúvida, basicamente
desportiva. Consequentemente, se é certo que houve gladiatrices durante dois séculos, pelo
menos, não existem quaisquer provas de que elas tenham participado em combates até à
morte na arena.

Em resumo, julgamos que a participação de mulheres na gladiatura constituiu um fenómeno


de reduzida amplitude. Se, de facto, elas participaram em munera, o seu papel limitou-se
essencialmente ao de uma atracção exótica que gerava certa curiosidade no público, sempre

860 Endromidas Tyrias et femineum ceroma quis nescit, vel quis non vidit vulnera pali, quem cavat adsidius rudibus
scutoque lacessit atque omnis implet numeros dignissima prorsus Floralis matrona tuba, nisi si quid in illo pectore
plus agitat veraeque paratur harenae? Quem praestare potest mulier galeata pudorem, quae fugit a sexu? Vires
amat. Haec tamen ipsa vir nollet fieri; nam quantula nostra voluptas! Quale decus, rerum si coniugis auctio fiat,
balteus et manicae et cristae crurique sinistri dimidium tegimem!....

861 Para designar uma cimeira, Juvenal terá utilizado a palavra apex. O termo crista também aparece, empregue,
com um sentido atrevido, pelo mesmo autor. No mesmo livro (VI 422), Juvenal faz uso igualmente deste vocábulo
para se reportar a outros elementos femininos, designadamente o clitóris.

862 Assim, a evocação do scutum por Juvenal permite classificar os provocatores entre os gladiadores com escudo
grande, os scutati.

335
ávido por novidades. Além disso, a vertente erótica estaria bem presente, se tivermos em
conta que a maioria dos espectadores era composta por homens: mulheres a exibir-se com os
seios e grande parte do corpo à mostra estimulariam naturalmente a fantasia e a líbido. Mas, a
bem da verdade, inclinamo-nos a subscrever a opinião de K. Hopkins e M. Beard, quando
afirmam que «as gladiatrices significam mais uma característica de uma fantasia
excessivamente optimista dos nossos tempos do que um costume romano» 863. Pode-se até
dizer que os duelos entre mulheres eram, em certa medida, uma modalidade parodiada das
bem mais perigosas pugnas masculinas864.

APÊNDICE 1: Trecho da obra de Artemidoro, Oneirokritika, referente às armaturae


gladiatórias

Há um testemunho literário frequentemente negligenciado que se revela bastante precioso


na clarificação das armaturae gladiatórias: este fragmento textual, relativamente, extenso,
emana de Artemidoro de Éfeso (também chamado Artemidoro de Daldis 865), que nasceu na
primeira metade do século II da nossa era. Este especialista em oniromancia é,
indiscutivelmente, uma figura bem representativa do seu tempo: residindo em Éfeso, cidade
grega que, concomitantemente, constituía também o centro do culto imperial provincial e
capital da província da Asia. Significava, portanto, um centro urbano que contava com uma
presença romana mais acentuada do que no resto da província. Adivinho célebre sob os
reinados de Adriano e Antonino, os seus escritos sobre a interpretação dos sonhos situam-se
no momento do apogeu da gladiatura. Assinalam-se frequentes referências aos gladiadores na
obra de Artemidoro: estes combatentes vieram a conhecer um desenvolvimento acrescido, em
razão do seu sucesso no Oriente helenístico866.

De facto, todas as armaturae técnicas já tinham ocupado o seu respectivo lugar e o Império
dispunha então de várias centenas de anfiteatros. A presença dos gladiadores é bastante
importante nos Oneirokritika: sonhar que se é gladiador, evocar os diferentes combates e os
vários tipos de combatentes são situações abordadas várias vezes na sua obra (I 5, P 15, 15-16;
I 16, P 25, 9, I 35, P 43, 12; II 39, P 175, 27) Artemidoro logrou coligir 3 000 sonhos em torno da
bacia do Mediterrâneo (na Grécia, em Itália e na Ásia) e consagrou todo um capítulo aos
monomachoi 867. A passagem que a seguir citamos é amiúde evocada pelos autores modernos,
mas raramente mereceu uma análise rigorosa e atenta. Salientemos que, para além da
863 The Colosseum…, p. 75.

864 E. Gunderson, «The Ideology of the Arena», Classical Antiquity 15 (1996), p. 143.

865Foi como Artemidoro de Daldis que este autor publicou o seu tratado em homenagem à cidade de Lídia, onde
cresceu e foi educado. Oneirokritika, que significa em grego «Interpretação dos sonhos», apresenta uma espécie de
balanço de uma forma de adivinhação, que se atesta em tempos recuados na Hélade, contando com uma tradição
onde se destacam, entre outros, Antífone, o sofista da época clássica, ou Aristandro, o advinho de Alexandre-o-
Grande: veja-se D. Auger, «Artémidore d’Éphese» in J. Leclant (dir.), Dictionnaire de l’Antiquité, Paris, PUF, 2005, pp.
240-241.

866François Kirbihler, «Artémidore, témoin des sociétés éphésienne et romaine du IIe siècle» in C. Chandezon e J.
du Bouchet (eds.), Artémidore de Daldis et l’interprétation des Rêves. Quartoze Études, Paris, Les Belles Lettres,
2014, pp. 53-103

336
oniromancia, Artemidoro aborda a gladiatura sob um ângulo muito técnico, daí a importância
da transcrição integral desse trecho, que se encontra no capítulo 32 do livro II da obra 868:

«Combater como gladiador significa estar num pleito ou lutar em querela. Com efeito, o duelo
gladiatório é referido como combate mesmo que o gladiador não esteja guarnecido por armas
defensivas, que significam, os elementos escritos e os documentos jurídicos; além disso, as armas
daquele que recua designam o facto de se ver acusado, e as armas daquele que investe, o facto de
acusar. Observei muito frequentemente que este género de sonho se traduziu num casamento do
mesmo carácter que as armas que se têm na mão ou que o rival possui, contra o qual se está a combater,
num sonho, enquanto gladiador869. E como não poderia apresentar claramente as deduções sem
recorrer aos próprios termos técnicos, irei utilizá-los de seguida.

«Se, por exemplo, se luta contra um thraex, [quem sonha] irá casar com uma mulher rica, pérfida e que
gosta de dar nas vistas, rica porque ele [gladiador] está coberto de armas pesadas, pérfida, porque a sua
espada não tem a lâmina recta, que se compraz em sobressair porque ataca. Se combate um
[murmillo?], vai desposar uma mulher bela, moderadamente rica, fiel, que zela pela casa e obedece ao
marido, já que este combatente cede espaço, encontra-se protegido e a sua panóplia é mais bela do que
a anterior. Se luta contra um secutor, vai desposar uma mulher bela e rica, orgulhosa da sua fortuna e
que, por isso, despreza o marido e será a causa de grandes males, uma vez que o secutor persegue
sempre. Se porfia contra um retiarius, vai casar uma mulher sem recursos, muito dada ao amor, que
muda constantemente de lugar e se entrega facilmente ao primeiro que apareça.O hippeus [eques] diz
que a mulher é rica e bem-nascida, mas sem juízo. O essedarius significa que a mulher é indolente e tola.
O provocator, que se trata de uma mulher bonita e graciosa mas desavergonhada e muito dada ao amor.
O dimachaerus e o que se chama arbelas indicam que a mulher é uma feiticeira ou, então, perversa e
feia.

«Tudo isto escrevi, não por mera conjectura ou ao combinar as razões apenas segundo a
verosimilhança, mas por ter frequentemente observado a confirmação que, em cada uma das vezes,
resultava do sonho».

Esta parcela textual reveste-se de interesse por constituir o testemunho antigo mais completo
sobre o carácter técnico de cada tipo de gladiador 54 tey 870. A nível global, Artemidoro
estebelece, em primeiro lugar, uma conexão entre o combate gladiatório e os assuntos
jurídicos. Neste caso, ele distingue dois géneros básicos de gladiadores, os que arremetem e os
que retrocedem. A relação entre a técnica de combate e a arte da defesa ou da acusação no
âmbito da justiça lembra, aliás, a aproximação que um século antes Séneca fizera entre a
técnica combativa e a arte retórica. Salientemos que esta dicotomia se baseia na técnica de
combate e não na oposição entre contendores «pesados» e «ligeiros» ideia que, ainda hoje,
diversos estudiosos defendem ao abordar os gladiadores 55 tey 871.

867Consulte-se, a propósito, H. Langenfeld, «Artemidorus Traumbuch als sporthistorische Quelle», STADION 17


(1991), pp. 1-26.

868Seguimos a tradução de A. J. Festugière (La Clef des songes, Paris, Vrin, 1975), com algumas alterações da nossa
lavra..

869 Artemidoro delimita o seu campo de acção, ao fazer a distinção entre o enúpion, o sonho de desejo, evocando
apenas o estado presente do corpo ou da alma do indivíduo, e o óneiros, o qual tinha valor profético. O óneiros
tanto podia ser «teoremático», por outras palavras, mostrar o que vai acontecer tal como se sonhou, «alegórico» ou
«significar certas coisas por meio de outras coisas. O último era objecto de decifração por parte do intérprete. É esta
categoria de manifestação onírica que se observa neste excerto.

870

871

337
Artemidoro faculta outras informações profícuas, ao associar a pugna gladiatória à premonição
de um casamento. Nesta passagem, o autor entra em pormenores que ele próprio qualifica de
técnicos. Neste ponto, novamente, este trecho é decerto o único que chegou até nós, em que
cada armatura é citada ao realçar as suas características definidoras no seio de uma
enumeração quase exaustiva dos gladiadores do seu tempo. Julgamos ser proveitoso cotejar a
ordem de tal enumeração com o estudo estatístico levado a cabo por É. Teyssier a respeito das
fontes iconográficas e epigráficas. Ao retomarmos a ordem das armaturae evocadas por
Artemidoro, constatamos que corresponde bastante bem à frequência de cada tipo de
gladiador na avaliação estaística das fontes plásticas e das menções epigráficas. Isto aplica-se
especialmente ao «quarteto de topo» composto pelos gladiadores iconograficamente mais
atestados, apresentando uma classificação idêntica do thraex, murmillo, secutor e do retiarius.
Assim, a sequência enunciada por Artemidoro não obedeceu a critérios casuais ou aleatórios,
reflectindo, com toda a probabilidade, o grau de popularidade de cada um destes combatentes
no século II d. C.872 . Se é certo que se descrevem as características de cada combatente de uma
maneira alegórica, nem por isso deixam de encerrar grande valor. Na recapitulação que
expomos mais abaixo, encontram-se os elementos típicos das distintas armaturae
discriminadas por Artemidoro, acompanhadas dos seus qualificativos:

O thraex caracterizava-se por três elementos, o primeiro sendo a riqueza, associada à


importância do equipamento defensivo; as «armas pesadas» a que alude Artemidoro
compunham-se de duas grandes ocreae metálicas que o thraex usava para proteger as pernas,
ao passo que o seu adversário só tinhauma greva de pequeno tamanho; o segundo, a falsidade,
materializada pela arma de lâmina curva (sica) que brandia; o terceiro rasgo radicava no
comportamento ofensivo, partilhado com o secutor; o seu escudo de reduzidas dimensões
obrigava-o a tomar a iniciativa e a mantê-la;

Quanto ao murmillo, destacava-se pela sua moderada riqueza, isto é, uma menor relevância
do equipamento, que se reduzia a uma única ocrea de pequeno tamanho; pela beleza, por
outras palavras uma panóplia menos rica mas mais bela; será que se explica este paradoxo ao
relacioná-lo com o grande escudo mais decorado do que a pequena parma empregue pelo
thraex? Por fim, possuía um comportamento defensivo: o seu escudo de grandes proporções
incitava-o a adoptar uma atitude prudente e a atacar com menos facilidade;

O secutor englobava quatro atributos: a riqueza, materializada na importância do equipamento


defensivo, comparativamente com o retiarius; a beleza que, tal como para o murmillo, é algo
que é sublinhado, talvez se reportando ao carácter atlético dos grandes escudos; um gladiador
desdenhoso, que nutria desprezo ante a magra panóplia do seu oponente; era ofensivo,
aspecto que comungava com o thraex; o secutor via-se compelido a «perseguir» um adversário
em fuga e desprovido de significativas protecções corporais;

O retiarius via-se definido por Artemidoro pelas seguintes características: a pobreza: o retiarius
é o único assim rotulado pelo autor grego; era também o único gladiador que não cinge elmo,
não tinha escudo nem ocreae; sobressaía pela mobilidade, já que devido à sua ligeireza, ele
compensava as suas fracas defesas através de uma grande rapidez; entregava-se ao primeiro
que surja, uma vez que o retiarius, ao lutar com o rosto à mostra era, mais do que os restantes
combatentes da arena, assimilado à prostituição; esta percepção do «homem da rede» explica-

872Facto que se confirma pela comparação entre a ordem das armaturae nos Oneirokritika e as ocorrências de
cada uma delas nas fontes gladiatórias iconográficas e epigráficas. É. Teyssier explicitou este cotejo num quadro ( La
mort en face, «Table 2», p. 73): no corpus icónico, está à cabeça o thraex com 342 atestações, seguindo-se o
murmillo (294), o secutor (283), o retiarius (262), o provocator (159), o hoplomachus (96), o eques (68), o
scissor/dimachaerus/arbelas (16) e o essedarius (5); no acervo epigráfico, a situação é praticamente a mesma,
embora registando algumas alterações: murmillo (105 ocorrências), retiarius (99), thraex (87), secutor (68),
provocator (36), essedarius (31), hoplomachus (15), eques (10), scissor/dimachaerus/arbelas (8).

338
se indubitavelmente pelo facto de as classes mais abastadas preferirem o secutor ao primeiro;
não foi por acaso que Cómodo escolheu a armatura dos secutores para se exibir e actuar como
gladiador; «um carácter dado ao amor», o que significa que a faceta sexual do retiarius se
afirmava ainda mais pela sua «humanização», consistindo no único a combater com a cabeça
descoberta; esta particularidade também lhe devia valer mais êxito amoroso do que os demais
gladiadores;

O eques (que Artemidoro designa pelo étimo grego equivalente de hippeus): a riqueza. O
preço do seu equipamento e da sua montada constitui a explicação para este qualificativo;
«bom nascimento»: a gladiatura a cavalo era, sem dúvida, reservada a uma certa elite dos
auctorati; ademais, eram os únicos a envergarem sistematicamente uma túnica, ao passo que
os demais tipos de gladiadores lutavam com o tronco despido (excepto o caso dos tunicati);
sem juízo: aqui cabe ver um certo desdém por esta gladiatura a cavalo; o eques/hippeus
partilhava este julgamento somente com o essedarius, rotulado de «tolo».

O essedarius pautava-se pela indolência e pela tolice. A primeira talvez advenha do facto de o
essedarius entrar na arena numa biga. Relativamente à tolice: será de encarar como indicador
de um desprezo global pela gladiatura a cavalo? O essedarius é o único adjectivado de «tolo»,
para além do eques, a quem falta juízo;

O provocator: possuía beleza, menção partilhada com os secutores e murmillones. Trata-se,


posssivelmente, de uma alusão ao carácter atlético dos scutati. Tinhsa igualmente graça: se,
por um lado, o provocator não é o único a simbolizar a beleza, por outro, afirma-se como o
mais gracioso; contudo, era desavergonhado, o que se relaciona, talvez, com a sua
agressividade, expressa, aliás, na sua própria designação; Artemidoro considerava-o como
«dado ao amor»: o provocator partilha esta característica com o retiarius; provavelmente
captamos aqui a nuance com os retiarii, que se entregavam, também, ao primeiro que
aparecesse.

O dimachaerus/arbelas reunia dois atributos, nenhum deles sendo favorável: a perversão, que
estava associada, decerto, com a natureza invulgar da técnica de combate ou o equipamento
de um tipo gladiatório cuja identificação se revela bastante problemática; todavia, a mesma
está associada ao gladiador munido de um braçal rematado por uma lâmina em forma de
meia-lua; a feiura: aqui, também, este combatente é o único a surgir assim qualificado,
contrastando com todos os scutati, enaltecidos pela sua beleza; como o
dimachaerus/arbelas873 representa o último gladiador a ser citado na lista, depreende-se que
constuituiria uma armatura rara e atípica.

Consequentemente, Artemidoro, no capítulo 32 do livro II dos Oneirokritika, fornece elementos


que ultrapassam largamente o âmbito da simples interpretação dos sonhos. Esta espécie de
«catálogo» revela-se uma fonte preciosa para a compreensão de cada armatura, conseguindo
nós extrair diversos dados concretos. A visão que o autor grego proporciona para o século II d.
C. é confirmada pelas outras fontes – epigráficas, literárias e, principalmente, iconográficas. No
entanto, que o autor transmite uma imagem que se reporta ao conjunto das armaturae mais
populares no Oriente grego, durante os Antoninos 874, que não corresponde necessariamente à
visão da gladiatura na pars Occidentalis do Império romano. Os Oneirokritika encerram outras
passagens respeitantes ao tema aqui em foco: um indivíduo sonhou ter sido condenado à

873A este respeito, remetemos para o artigo de M. Carter, já aqui citado, «Artemidorus and the Gladiator Arbelas»,
Zeitschrift für Papyrologie und Epigraphik 134 2001, pp. 109-115.

874 M. Junkelmann, Gladiatoren…, p. 207: «In den Kommentaren des Artemidoros spieglen sich die populären
Einschätzungen der verschiedenen armaturae im griechisprachigen Osten zur Zeit der Antonine». A nossa tradução
difere, em certos pormenores, da apresentada por este autor (ibidem, pp. 207-209).

339
gladiatura875, enquanto outro, após sonhar que comia sangue humano coagulado, entrou
voluntariamente na profissão, travando pugnas durante longos anos; depois, viu-se libertado
de uma vida rude e, aparentemente criticável, antes do fim do contrato que havia firmado
graças às diligências de intermediários eficazes 876.

É certo que o vocabulário empregue parece testemunhar uma renitência pessoal de


Artemidoro em relação a estes espectáculos violentos, cuja origem, não esqueçamos, se
situava no Ocidente 877. As menções que se colhem na obra deste autor sobre os gladiadores
derivam de uma realidade que Artemidoro vivenciou e observou. O número de monumentos
funerários e de esqueletos descobertos no «Cemitério dos Gladiadores» em Efeso, aliado às
referências precisas das diversas armaturae gladiatórias em Artemidoro, as correspondências
entre a epigrafia e os Oneirokritika, por fim, o estatuto de cidade neócora, tornam plausível e
mesmo provável o facto de Éfeso oferecer exemplos mais do que suficientes para alimentar a
obra de sonhos envolvendo combatentes da arena 878.

APÊNDICE 2: Ensaio «genealógico» dos principais tipos de gladiadores

875 IV 65, P 288, 20-22.

876 V 58, P 314, 16-315, 5.

877Cf. L. Robert, Les gladiateurs…, pp. 249-250: a expressão τήν ατμίαν τού βίου aparece na passagem citada na
precedente nota de rodapé.

878 F. Kirbihler, «Artémidore, témoin des sociétés éphesienne et romaine…», p. 78.

340
Actualmente, a despeito de algumas divergências, a maioria dos estudiosos da gladiatura
aceita, grosso modo, o esquema que a seguir apresentamos da evolução das armaturae:

Gallus, séculos II-I a. C. Samnis (var. Samnes), séculos II-I a. C.

Desapareceu no reinado de Augusto Deu origem a duas armaturae no século I a. C.:

Murmillo Provocator

séc. I a. C. – séc. IV d. C. séc. I-II d. C.

Veio a transformar-se face ao Retiarius

Secutor (séc. I-IV d. C.)

Evoluiu para uma variante rara: Scissor/Arbelas

séc. I-IV d. C.

Thraex – fim do séc. II a. C. – IV d. C.

Afinidades com o Hoplomachus

(séc. I a. C.-III d. C.)

Retiarius – séc. I a. C.- IV d. C.

Não regista mutações evolutivas até ao séc. IV d. C.

341
CAPÍTULO V. A ambiguidade romana face aos gladiadores

Os munera gladiatórios atraíam tanto homens como mulheres. Na Roma antiga, o sexo e o
sangue estavam indissociavelmente misturados: os gladiadores fascinavam, aterrorizavam e
atraíam simultaneamente. Alguns testemunhos epigráficos, muitas vezes citados em obras
sobre a gladiatura, sugerem que essa atracção era, amiúde, de cariz sexual: apresentam-se
frequentemente como exemplos alguns grafitos descobertos nas paredes do ludus de Pompeia.
Dois gladiadores desta caserna, o thraex Celadus e o retiarius Crescens, partilhavam o mesmo
interesse pelas mulheres; o primeiro autoproclamou-se como «O [que causa] suspiros nas
raparigas» (suspirium puellarum; CIL IV 4342, 4397) e o «Preferido das moças» (puellarum
decus, CIL IV, 4345). Noutra inscrição, os dois combatentes aparecem juntos: «O thraex
Celadus; o retiarius Crescens, senhor das raparigas» (Thrax Celadus; retiarius Cresce[n]s
puparru domnus [sic] CIL IV, 4356); Crescens fez mais um grafito, descrevendo-se como
«Crescens, o retiarius, médico das raparigas da noite, das moças da manhã e de todas as
restantes» (Crescens retiarius puparrum [sic]nocturnarum mattinarum aliarum ser[.] medicus,
CIL IV, 4353). Estas palavras, escritas pelos próprios gladiadores nomeados, reflectem um misto
de gabarolice e de brincadeira de dois homens que rivalizavam na conquista de mulheres, mas
não ficamos certos do seu êxito alegadamente tão incomparável junto do sexo oposto 879.

Mas não há dúvida que os gladiadores estavam fortemente associados à sexualidade entre os
Romanos. Os thraeces, por exemplo, constituíam um símbolo predilecto de masculinidade por
excelência, já que grande parte do seu corpo era contemplada pelo público. Ora isto
representava um perigo potencial para o controlo exercido pelos Romanos sobre as suas
mulheres. Augusto chegou mesmo a obrigar o público feminino, salvo as seis Virgens Vestais, a
assistir aos combates de gladiadores a partir das bancadas superiores, mais distantes da arena
880
. Revelou-se tarefa impossível pôr termo aos boatos e às intrigas sobre a existência de
contactos carnais entre gladiadores e mulheres da elite romana: de acordo com Plutarco
(Galba, 9.2), o prefeito pretoriano Nymphidius teria sido fruto dos amores adúlteros da sua
mãe com Martianus, um homem da arena Nem as próprias imperatrizes escaparam a tais
comentários sórdidos: haja em vista os casos da famigerada Messalina, mulher de Cláudio, que
supostamente manteve uma ligação com um gladiador chamado Sabinus, e da esposa de
Marco Aurélio, Faustina, de quem se suspeitava que mantinha relacionamentos constantes
com combatentes da arena. De acordo com a História Augusta, só isto poderia explicar o
motivo por que Cómodo nutria um interesse tão desmedido e obsessivo pela gladiatura 881.

Esta preocupação ou temor dos homens romanos prepondera na literatura, produzida quase
exclusivamente por membros da elite romana, mais propriamente no domínio da ficção: surge
no Satyricon de Petrónio (126.5-6) e, nas Saturae de Juvenal, onde narrou a seguinte história, a
de uma mulher de elevada condição que abandonou tudo, partindo com um gladiador rumo ao
Egipto:

879 Para uma visão sintética mas fundamentada sobre estes graffiti de Pompeia, vejam-se: L. Jacobelli, Gladiators
at Pompeii, pp. 48-49; M. Junkelmann, Gladiatoren (§«Gladiatur und Eros»), pp. 26-27.

880 Suetónio, Div. Aug. 44.2: a maior parte dos regulamentos mencionados aplicava-se aos ludi. Sobre este assunto,
consulte-se E. Rawson, «Discrimina Ordinum: The Lex Julia Theatralis», in Roman Culture and Society, Oxford, 1991,
pp. 508-545.

881 História Augusta/SHA, Marco Aurélio, 19.7.

342
«Casada com um senador, Eppia acompanhou uma familia gladiatória até Faros, mesmo junto ao Nilo,
nas muralhas mal-afamadas de Lagus. O próprio Canopo condenaria a monstruosidade dos costumes
romanos. Quanto a ela, esquecendo-se do seu marido, da irmã, não tinha mais quaisquer preocupações
pela sua pátria; ela abandonou os filhos em lágrimas, a celerada, renunciando aos […] jogos do circo.
Desde a infância, ela havia dormido no meio da opulência paterna, num colchão de um berço
passamanado a ouro e, no entanto, ela enfrentou o mar assim como desafiara a honra, cujo sacrifício
nada custa a estas mulheres habituadas a macias poltronas. Com coração intrépido, enfrentou as vagas
do Tirreno, as ondas do Jónico, que ao longe ressoavam, mares que foi preciso atravessar
sucessivamente. Tivessem elas que se expor por uma causa justa e honesta, logo ficariam com medo,
sentir-se-iam geladas de pavor e com as pernas a tremerem. Elas só têm energia para a sua impudência.
Que é duro embarcar quando se trata do marido a tal ordenar! O odor da sentina fá-la enjoar, vê tudo a
andar à sua volta. Mas quando se segue um amante, o estômago aguenta-se bem. Na companhia do
marido, ela vomita, com o amante come no meio dos marinheiros, circula até à popa e encontra
diversão até ao manusear os rudes cordames. Quais são os encantos que inflamam Eppia desta maneira
tão portentosa? […] Que viu ela para suportar ser tratada como ludia? Eis o motivo: Sergiolus, que já
começara a fazer a barba, com um braço todo cheio de golpes que anunciavam já a sua aposentação; a
sua aparência achava-se desfeada por uma série de misérias, uma cicatriz e uma grande saliência no
meio do nariz, toda machucada pelo elmo, e um humor acre constantemente a ressumar de um dos
olhos. Mas era um gladiador! Isto basta para os transformar em Jacintos, ganhando eles precedência
sobre os filhos, a pátria, uma irmã e um marido. É o ferro que [elas] amam!/ Ferrum est quod amant»
(Saturae, 6.82-113).

Não obstante as figuras desta sátira serem fictícias, Juvenal pode ter-se baseado num episódio
verídico. Seja como for, parece-nos que o tópico da existência de tórridas paixões a unir damas
da elite dirigente a gladiadores significou, acima de tudo, um elemento literário e não uma
realidade tão generalizada. No entanto, certamente que se registaram algumas situações
destas, motivadas por outra razão que provocava o fascínio feminino pelos gladiadores, além
da mera atracção física: K. Hopkins e M. Beard referiram-se, por meio da expressão francesa
nostalgie de la boue (literalmente «nostalgia pela lama»), ao facto de diversas mulheres das
camadas superiores da sociedade romana, se sentirem atraídas pelo degradado estatuto social
dos homens da arena882.

Até a iconografia atesta a faceta erótica dos combatentes do anfiteatro: numa cena de um
medalhão de aplique do Ródano 883 (Arles; fig. ), foi representada uma mulher a «cavalgar»
sobre o seu parceiro, ao mesmo tempo que segura um escudo e brande um gládio; sob o efeito
dos «assaltos» da gladiatrix, o amante ergue a mão direita, esticando dois dedos. Este gesto
inspirou-se decerto naquele que se assinala em vários medalhões decorados de lucernas,
quando se ilustra um gladiador declarando-se vencido e se vira para o editor.Nesta, como
noutras imagens similares, combinou-se a cópula com a ideia da vitória. No presente caso, o
gesto é diferente, visto que o homem levanta o indicador e o dedo mindinho, como que
fazendo o sinal dos «cornos». A legenda que acompanha a imagem deste medalhão, Orte
scutus est («Fantástico! É o grande escudo!), representa, sem dúvida um jogo de palavras,
literalmente intraduzível, mas que se baseia na conhecida e já descrita oposição entre o scutus
e a parma. Noutro objecto do mesmo género, mas com uma frase diferente: VICISTI DOMINA
(«Venceste, senhora!»). Em mais um medalhão proveniente com teor sexual, descreve-se de
novo uma mulher montando o seu parceiro deitado num sofá, só que desta vez, ela está de
costas e não de frente para o homem 884; a cena encontra-se emoldurada por uma coroa.

882 The Colosseum…, p. 83.

883 Günther Thüry, «Die Palme für die “domina”: Masochismus in der römischen Antike», Antike Welt, 32/6 (2001),
p. 574, fig. 4.5.

884 J. R. Clarke, Looking at Lovemaking. Constructions of Sexuality in Roman Art, 100 BC-AD 250, Berkeley, 1998,
fig. 101; A. Varone, Eroticism in Pompeii, Roma, 2000, fig. 87.

343
Enquanto a mulher se mira num espelho, ele segura um ramo de palmeira, oferecendo-lhe
uma coroa de louros, ao mesmo tempo que afirma: «Só tu me derrotas!» (tu sola nica). Nos
três medalhões, a posição sexual de Venus Pendula (ou de Mulier Equitus/Equitans) expressa
bem a inversão das situações e o fantasma, aparentemente antigo, da mulher dominadora, em
claro contraste com o modelo conservador da íntegra matrona romana 885.

Uma das razões porque os Romanos se preocupavam tanto com a atracção sexual produzida
pelos gladiadores radicava no facto de estes se encontrarem classificados juntamente com as
meretrizes na legislação romana. Nos textos de gramática que chegaram até nós, é
relativamente corrente associar o vocábulo lanista, isto é o proprietário de gladiadores, com a
palavra que designava os proxenetas, leno. À semelhança destes e das prostitutas, os
indivíduos que actuavam em público – os actores de teatro e os gladiadores – também
vendiam, segundo a óptica moralista romana, os seus corpos para deleite de terceiros, ainda
que apenas fosse a nível visual 886.

Mas a ambivalência face aos gladiadores não se restringia só a uma preocupação de controlar
as preferências sexuais das mulheres: havia outro problema fundamental que se relacionava
com a imperiosa necessidade de exercer um estreito controlo sobre os próprios gladiadores. A
tradição romana não podia olvidar a amarga lembrança da rebelião servil de Espártaco, que
logrou enfrentar com êxito as tropas romanas durante três anos, tal se devendo, em larga
medida, ao facto de o comando dos rebeldes se concentrar nas mãos de um grupo de
gladiadores treinados para combater 887. Anos mais tarde, aquando da conspiração urdida por
Catilina, o Senado emitiu um decreto ordenando que os gladiadores deviam ser retirados de
Roma e levados para a Campânia, onde havia instalações adequadas para a vigilância dos
mesmos; no mesmo ano em que isto aconteceu, em 63 a. C., Caio Marcelo foi expulso de
Cápua por haver buscado obter o apoio dos gladiadores para uma insurreição.

Como pormenorizámos numa alínea do Capítulo II, quando, em 49 a. C., Júlio César regressou
a Itália, os seus opositores ficaram simultaneamente alarmados e apreensivos por saberem que
ele era proprietário de 5 000 gladiadores, os quais mantinha em Cápua e nas suas imediações.
Para se evitar que eles provocassem quaisquer problemas graves (a favor do próprio César ou,
então, a sua evasão), repartiram-se os gladiadores pela população da cidade, ficando dois ou
três em cada habitação particular. No entanto, o cônsul L. Cornélio Lêntulo chegou a prometer-
lhes a liberdade (em relação a Júlio César), caso optassem por combater do lado de Pompeio.

Mais tarde, como também referimos, Décimo Bruto foi persuadido a participar na conjura para
assassinar César em 44 a. C., sobretudo porque ele dispunha de um grupo de gladiadores em
Roma, que poderia servir para proteger os conspiradores. Importa, no entanto, realçar que
estas histórias foram narradas por fontes hostis, mas não se afigura de modo algum improvável
que, no decurso dos violentos conflitos políticos na última geração da República, as figuras
públicas quisessem ver-se acompanhadas ou protegidas por escravos que tivessem algum
treino e experiência em combate.

No começo da época imperial, os gladiadores ainda estiveram envolvidos em alguns tumultos,


mas apenas esporadicamente e sem grandes repercussões: em 21 d. C., a sublevação gaulesa

885 É. Teyssier, La mort en face…, pp. 430-431; Anna Pasqualini, «SVSPIRIVM PVELLARVM: Il gladiatori e le donne»,
ACTA BIMESTRA –POPVLI ROMANI, Bimestrale di informazione culturale del Gruppo Storico Romano, Anno III, nº XII
(2012), p. 3.

886 História Augusta/SHA, Adriano, 18.8; Cómodo, 2.9. Veja-se o artigo de C. H. Edwards, «Unspeakable
Professions: Public Performance and Prostitution in Ancient Rome»; Idem, The Politics of Immortality in Ancient
Rome, Cambridge, 1993, cap. 3: « Playing Romans».

887Veja-se K. Bradley, Slavery and Rebellion in the Roman Empire, Londres, 1989, cap. 5.

344
liderada por Sacróviro contou com o apoio de diversos gladiadores que haviam sido levados
para Augustudonum (Autun) para aí se treinarem; em 64 d. C., por seu turno, no solo itálico, as
autoridades tiveram de recorrer a muita força repressiva para impedir que um levantamento
iniciado em Praeneste (actual Palestrina) viesse a a ganhar maior amplitude, episódio que aliás
trouxe à tona as más recordações da revolta de Espártaco, conforme nos contou Tácito 888.
Poucos anos depois, no decurso das guerras civis de 69 d. C., colhem-se referências literárias à
participação de gladiadores imperiais nas contendas. Mas, uma vez mais, as fontes que relatam
tais eventos revelam-se, amiúde, parciais889.

Posto isto, havia razões concretas para os Romanos mostrarem atitudes ambivalentes em
relação aos gladiadores. Apesar de os munera gozarem de grande popularidade, chamar
lanista ou gladiator a alguém constituía uma expressão injuriosa relativamente habitual,
empregue em invectivas literárias para degradar um opositor:

«A partir da altura em que Rufino passou a envergar a toga virilis [de adulto], ele abusou da liberdade
ao assistir aos exercícios gladiatórios. Ele conhecia todos os gladiadores pelos seus nomes, além de
todos os pormenores quanto aos seus anteriores combates ou os ferimentos que haviam sofrido.
Chegou mesmo a ingressar num curso de treino, contando com a supervisão de um gladiador
profissional, embora ele pertencesse a uma boa família» 890.

O topos de homens ainda jovens se interessarem mais do que o devido pela gladiatura
afigurava-se um lugar-comum no âmbito literário. A maior desgraça era a de um cidadão livre
combater como gladiador: «A única coisa que os ricos cavaleiros (trossuli) pensam é se vão
lutar na arena como homens munidos de gládio ou enquanto retiarii. Que teria pensado Catão-
o-Velho!».

Cícero, por seu turno, fala dos gladiadores como parte integrante de um grupo fechado e
coerente, que englobava todos os segmentos humanos perigosos para a ordem dominante,
numa amálgama simbólica em que se associavam os combatentes da arena aos perditi
homines e aos bárbaros (Gladiatores aut perditi homines aut barbari, cf. Tusculanae
disputationes, 2, 17, 41). Desta frase ressalta a ideia de um grupo cuja destruição seria
necessária ao bem-estar e à segurança da ordem social. Neste contexto, remetemos para
alguns argumentos carreados por M. Clavel-Levêque sobre o papel desempenhado pelas
pugnas: estes «teatralizavam» o modelo do Império, representando a dominação sobre a vida
e o mundo. As caçadas de homens e animais no anfiteatro reflectiam uma sociedade que
conquistara o mundo e subjugara os homens, controlara a natureza e arrebatara enormes
quantidades de escravos 891.

Mas, como bem notou Helena P. Abreu de Carvalho, «a esta ideia junta-se outra: ao
reproduzir, aos olhos do público, a ordem imperial, os jogos gladiatórios habituavam a
população a práticas de depuração, de força e de ordem. Dando à sociedade romana o poder
de compreensão do Império, os gladiadores permitem a exclusão, a catarse. O seu papel é,

888 Ann., 3.43; 15.46.

889 Díon Cássio, Hist. rom. 44, 16.2; Nicolau de Damasco, Augusto, 25, 26a; Tácito, Hist. 2, 34-36.

890Apuleio, Apologia, 98.7. Consulte-se, igualmente, A. A. Imholz, «Gladiatorial Metaphors in Cicero's Pro Sex.
Roscio Amerino», Classical World 65 (1972), pp. 228-230; Marcial, 11, 66.

891 M. Clavel-Levêque, «Rituels de mort et consommation de gladiateurs: images de domination et pratiques


impérialistes de reproduction», in Mélanges Lerat, Paris, 1984, pp. 189-208; IDEM, «L’espace des jeux dans le monde
romain: hégémonie, symbolique et pratique sociale», in Aufstieg und Niedergang der Römischen Welt, II, 16/3
(1986), pp. 2405-2563.

345
pois, essencial aos mecanismos de poder, tão essencial quanto o sentimento de desprezo e
infâmia a que devem ser votados os instrumentos do exorcismo» 892.

Uma das maneiras mais curiosas e insólitas de consolar um pai pela morte prematura do seu
filho encontra-se num ensaio filosófico que Séneca escreveu, num tom bastante
grandiloquente, sob a forma de uma carta de condolências. Ao tentar confortá-lo, Séneca
chama-lhe à atenção quanto ao futuro incerto que o jovem poderia ter: talvez esbanjasse toda
a sua fortuna e acabasse por se ver obrigado a combater na arena como gladiador para ganhar
o sustento893. Os críticos da moral romana – desde poetas/escritores e satiristas até
historiadores clássicos pagãos ou cristãos, como Tertuliano e São Jerónimo – fizeram ponto de
honra em expressar a sua indignação face à ambiguidade ou, mesmo, à hipocrisia nas atitudes
que muitos demonstravam para com os gladiadores profissionais: estes situavam-se no nível
mais baixo da sociedade, eram perditi homines. No entanto, os senadores favoreciam-nos,
coleccionavam peças dos seus equipamentos e, por vezes, lutavam sigilosamente como
gladiadores; chegavam ao cúmulo da ignomínia, ao actuarem, eles próprios, em público. Em
face de tudo isto, Tertuliano escreveu: «Quanta perversitas894».

IV.1. Infamia

Tanto os gladiadores como os lanistae eram seres desclassificados e sobre eles recaíam os
nocivos efeitos da infamia, ou seja, a perda da identidade enquanto cidadãos respeitáveis. O
contraste entre a fama obtida pelos gladiadores enquanto individuos na arena e a infamia
através da qual os mesmos, enquanto grupo, se viam estigmatizados era assaz espantoso. A
infamia, na qualidade de conceito no Direito romano, não significava tanto um impedimento
imposto pela lei, mas, sobretudo, o reconhecimento, pelas autoridades judiciais (e mais ainda
pelos legisladores e juristas), de que certos indivíduos não eram considerados dignos de
confiança pela sociedade romana em geral: para isso, por exemplo, bastaria que tivessem
cometido um crime ou não conseguissem gerir os seus bens ao ponto de ficarem em
bancarrota e insolventes. Negava-se a tais pessoas o direito de poderem servir como
testemunhas em testamentos ou noutros actos legais e não podiam comparecer em tribunal
em nome de alguém.Originariamente, a infamia consistia numa condição que certos indivíduos
atingiam por causa de más acções ou delitos que tivessem perpetrado, ficando eles, doravante,
com os seus nomes exarados no registo dos cidadãos, à frente dos quais os censores colocavam
uma marca a negro.

Conservaram-se as disposições contidas na Lex de repetundis (122 a. C.), formulada no tempo


de Caio Graco, referentes à selecção de júris para se julgarem casos de extorsão por parte dos
governadores provinciais; é muito possível que nelas se repitam regulamentos anteriores. Os
nomes avançados para os jurados tinham de corresponder aos de equites; especificamente
excluídos estavam os que exercessem magistraturas menores, os senadores e «alguém que
combata ou tenha combatido enquanto contratado a troco de dinheiro» (queive mercede
conduttus depugnavit depugnaverit), assim como aqueles que tivessem sido condenados a
uma pena e, ainda, os que não possuíssem casa a menos de uma milha de distância da cidade

892 «Os Jogos de gladiadores…», pp. 18-19.

893 Séneca, Epistulae, 87.9;99.12ss; Tácito, Dialogus, 29.3s.

894 De spectaculis, 22.3.

346
de Roma895. A disposição aqui referida, impondo incapacidade legal aos gladiadores enquanto
grupo, também foi aplicada aos actores e às prostitutas na subsequente legislação romana.

Nos regulamentos municipais de Júlio César (Lex Iulia Municipalis) proibe-se explicitamente
que pertença aos conselhos locais «aquele que é ou foi um lanista ou um actor»896. Nas leis
vigentes na colónia de Heracleia (Tabula Heracleensis), estipulava-se que todos os que fossem
ou tivessem sido lanistae, gladiadores, actores e criminosos sentenciados ao cumprimento de
penas estavam proibidos de se verem eleitos como membros dos conselhos municipais. Por
seu turno, no já aqui mencionado senatus consultum de 19 d. C., do qual se descobriu uma
cópia em Larinum, na Itália Central 897, os lanistae e os gladiadores surgem novamente
associados aos actores e aos proxenetas nuns regulamentos assaz detalhados, nos quais se
especifica quem podia ou não actuar no palco e na arena.

Quanto às chamadas Leis Julianas/Papianas, respeitantes à manumissio (isto é, à manumissão,


alforria ou emancipação de escravos), nelas se estipulava que os libertos, caso tivessem dois
filhos, ficariam isentos de quaisquer obrigações em relação aos seus antigos donos: este
privilégio era, em contrapartida, negado aos actores e aqueles que se viam contratados para
lutar na arena. No texto legislativo não mencionam em concreto os gladiadores, provavelmente
porque essa referência deve ter sido suprimida aquando da compilação do Digesta, em 538 d.
C., altura em que os munera já haviam desaparecido, embora os espectáculos com animais
selvagens continuassem a persistir por mais algum tempo.

No chamado Aes Italicense, que encerra o texto de um senatus consultum promulgado no fim
do reinado de imperador Marco Aurélio, afirma-se que os gladiadores nem sequer eram dignos
de figurar entre os que tinham de pagar impostos: «o seu [deles] dinheiro está contaminado
pela mácula do sangue humano [pecunia] cruoris humani aspergine contaminata 898. Os
individuos privados compartilhavam a ideia veiculada na legislação pública, segundo a qual os
gladiadores não eram merecedores de confiança.

Numa inscrição republicana, alude-se à criação de um espaço para inumação destinado à


população da localidade de Sarsina, iniciativa que se deveu a um tal Horatius Balbus: nesta
fonte, o último associou os gladiadores, mesmos os auctorati às prostitutas e aos suicidas que
se enforcavam, ou seja, a todos aqueles que tinham uma morte desonrosa; nenhuma pessoa
pertencente a estas categorias poderia ser enterrada na referida zona: extra auctorateis et quei
sibei[la] queo manu attulissent et quei questum spurcum professi essent899.

A ideia de que um homem que escolhia combater na arena se equiparava a outro que se
matava encontra-se presente numa crítica literária feita pelo bispo de Cartago, Cipriano
(posteriormente santificado), em meados do século III d. C.: «Que loucura, a de se submeter
voluntariamente aos ataques de feras selvagens: tanto (é) assassinato como suicídio!».

895 Para o texto, cf. H. Warmington, Remains of Old Latin, IV, p. 316ss.; A. J. Greenidge, Infamia, Oxford, 1894, p.
69ss.

896 ILS 6085, 1 123: quive lanisturam artemve ludicram fecit fecerit.

897 B. Levick, «The Senatusconsultum from Larinum», JRS 73 (1983), p. 97ss.

898 Cf. Aes Italicensis, linha 7; ILS 5163 = CIL, II.6 278.

899 ILS 7846. Para uma abordagem sobre a vulgaridade da prática do suicídio mediante enforcamento, contraposta
à utilização de uma espada, veja-se Van Hoof, Autothanasia, Londres, 1991, p. 65ss, e, igualmente, J.-L. Voisin,
«Apicata, Antinous et quelques autres», Mélanges de l'École Française à Rome, 99.1 (1987), pp. 257-280.

347
Procuremos entender o que significaria a infamia em termos práticos: no melhor dos casos,
ela consistia num conceito incipiente e não se tratava, em absoluto, como vimos, de uma
fórmula legal. No entanto, utilizava-se este vocábulo de forma convencional para se definir
muitas condutas que, aparentemente, infringiam o contrato social básico. Por exemplo, a
condenação por um tribunal penal ou, em muitos casos, civil, suscitava a infamia. Atrás
dissemos que actos censuráveis, como a falência ou a bancarrota, de indivíduos que causavam
danos pessoais aos demais (iniuria) ou, ainda, a saída desonrosa das fileiras do exército (missio
ignominiosa) também produziam o mesmo resultado. Era o que acontecia, de igual modo, com
as ocupações de proxeneta e de prostituta ou as de lanista, uma espécie de «proxeneta» de
combatentes da arena, e de gladiador. Se nos cingirmos à literatura romana (cujos autores
pertenciam à elite), fica-se com a ideia de que a infamia dos gladiadores seria algo
verdadeiramente terrível. Tertuliano, ao expressar o sentimento cristão e igualmente o da elite,
escreveu:

«Os patrocinadores e os organizadores [membros da elite] dos espectáculos fazem sair os aurigas,
actores, atletas e os gladiadores, homens que despertam paixões e aos quais outros homens lhes
entregam a sua alma e as mulheres o seu corpo. Por causa desses homens, os organizadores entregam-
se às próprias coisas que criticam nos [salões] e às habilidades que enaltecem; e logo as utilizam para
denegrir e menosprezar os homens que as exibem. Mais, estes membros da elite condenam-nos
abertamente e estigmatizam-nos socialmente, limitando os seus direitos cívicos, vedando-lhes o acesso
ao Senado, à plataforma dos oradores, às ordens senatorial e equestre, assim como ao resto dos cargos
e certas honras. Quanta perversidade! Adoram aqueles que castigam, desprezam os que aprovam,
elevam às nuvens o talento, mas criticam duramente aqueles que o têm» (De spectaculis, 22).

Quanto aos gladiadores em concreto, eram condenados ao «farelhão [ilhota escarpada e


isolada] da infamia, despojados de qualquer vestígio de dignidade» (Ibidem, 23). Porém, tanto
sob o ponto de vista jurídico como prático, qualquer estigma compartilhado amplamente pela
mentalidade da elite, quase carecia de importância na vida da gente comum.

Na realidade, para o gladiador, as repercussões práticas de se ver qualificado de «infame»,


devido aos seus actos e à sua profissão, eram bastante poucas. Em primeiro lugar, não havia
uma condenação legal para a infamia: esta acompanhava uma acção condenada pela lei ou
censurada a nível social, mas ninguém era processado por causa disso 900. Contudo, uma vez
que se fosse objecto de infamia, havia repercussões jurídicas, atrás já referidas: lembremos,
por exemplo, que uma pessoa com tal labéu não podia representar legalmente outra, nem
servir como testemunha de acusação, nem ser representada por ninguém, logo tinha de se
defender a si mesma. Tão pouco podia ocupar cargos relacionados com a justiça, o que
também sucedia com os menores, as mulheres, aqueles que estivessem sob tutela, os libertos
(caso o seu dono estivesse implicado), ou as magistraturas.

Assim, como assinalou o apologista cristão Tertuliano, um gladiador não podia ser senador,
equestre, nem magistrado local, mas, bem vistas as coisas, quereria ele desempenhar tais
papéis? Seria algo que o preocupava seriamente? Pensaria ele alguma vez nisto? Para a gente
comum, tratava-se de factos que não assumiam relevância de maior. Afinal de contas, a
estrutura social estabelecia que, na prática, os elementos da plebe nem sequer podiam aspirar
à ocupação desses cargos, mesmo quando não fossem «infames».

A infâmia podia conduzir à exclusão de um gladiador, no sentido de não poder ser inumado
em cemitérios destinados aos cidadãos sem mácula nem desonra, mas isto dependia, por
vezes, dos sentimentos do proprietário e da sua opinião quanto à ideia se devia ou não inumar
indivíduos socialmente desclassificados em determinadas necrópoles. Se um gladiador fosse

900 A este respeito, vejam-se os judiciosos comentários de Robert C. Knapp, na sua recente obra Invisible Romans,
Londres, Profile Boooks, 2011, cap. 8: «Fame and Death: the Gladiators».

348
tão descuidado ou infortunado ao ponto de ser apanhado em flagrante com uma mulher
casada, o marido desonrado podia tratá-lo como a um escravo, ou seja, tinha a possibilidade de
o matar impunemente. Mas isto devia-se provavelmente ao juramento que o homem da arena
havia prestado, que equiparava a sua situação à escravidão.

Por último, recordemos que um gladiador não podia tornar-se legionário (os homens infames
não serviam no exército»901), mas note-se que os indivíduos optavam entre o alistamento no
exército ou em converter-se em gladiadores. Assim, o problema de incorporação no serviço
militar, depois de ser gladiador, não se afigurava habitual. Os escassos exemplos de que
dispomos consistem em exercícios retóricos feitos por membros da elite e, unicamente, para
chamar à atenção. Em resumo, as ramificações práticas que derivavam do ser-se declarado
infame, pelo facto de exercer o ofício de gladiador, não afectaria, em qualquer aspecto
importante, as vidas da maioria dos combatentes da arena e, sem dúvida, não fazia diminuir o
prazer do público, nem a sua entusiástica admiração pelas «estrelas» do anfiteatro.

Estas discrepâncias entre a suposta infamia e a pouca influência que ela tinha na gente
comum apreciam-se com bastante clareza nos epitáfios dos gladiadores. Conservou-se um
número relativamente significativo dessas lápides, que nos facultam diversos dados. No
entanto, o mais surpreendente é que estes monumentos funerários de gladiadores são quase
os únicos correspondentes a pessoas alegadamente infames – encarregados de pompas
fúnebres, prostitutas, proxenetas e agentes gladiatórios -cujo conteúdo quase não se distingue
dos das restantes pessoas correntes; só nos actores, outros artistas apreciados pela gente e
rotulados de infames pela elite romana, se dava a mesma circunstância. Por outras palavras, os
gladiadores não se esforçavam por ocultar a sua profissão, mas até a situavam em primeiro
plano. Ora isto só prova que eles sentiam orgulho pelo seu ofício e pela admiração que
usufruiam junto do público, o que suplantava qualquer mácula que, em teoria, podia recair
sobre os mesmos. Que o estigma era fundamentalmente uma invenção da elite, depreende-se
a partir de um revelador anúncio legal. O jurista Ulpiano afirmou que os combatentes da arena
que não cobravam dinheiro pelas suas actuações não eram objecto de infamia:

«[...] em relação aos que lutam na arena para demonstrar o seu valor viril [ virtus] e o fazem sem nada
cobrar, os homens da Antiguidade consideravam que não eram objecto de infamia»902.

A preocupação essencial não radicava na corrupção do sangue, mas na corrupção da


dependência económica: comprometer-se a fazer algo a troco de dinheiro. É praticamente
desnecessário salientar que não só os gladiadores, mas também a esmagadora maioria da
gente comum ou plebe trabalhava sempre por dinheiro, já que as suas vidas dele dependiam.
Não existe razão alguma para pensarmos que esta gente teria de compartilhar a estreiteza de
visão da elite romana em relação à estigmatização dos gladiadores por tal motivo.

Para um gladiador escravo que se via libertado por um cidadão romano durante o seu serviço,
havia um castigo mais severo e com mais implicações práticas do que a dita infamia: negar-se-
lhe a cidadania romana, que deveria acompanhar a sua manumissão. Neste caso, a elite podia
impor o cumprimento da sua sentença estigmatizadora, dado que a libertação de um escravo
traduzia-se, amiúde, num procedimento legal. Mas um escravo, ao contrário do auctoratus,
não exercia o seu ofício voluntariamente. Quanto ao auctoratus, por seu turno, qualquer
sanção oficial de que viesse a ser objecto por parte de pessoas que se deixavam levar pela
mentalidade da elite ou, então, realmente lhes repugnasse o derramamento de sangue,
afigurar-se-ia, certamente, bastante leve comparativamente à notoriedade e, até, à fama que

901 Embora Marco Aurélio tenha recrutado gladiadores para as suas campanhas danubianas.

902 Digesta, 3.1.16.

349
lograsse ganhar em consequência da profissão escolhida, desde que, obviamente, evidenciasse
talento e combatesse com valentia.

IV.2. A virtus e os gladiadores

Os gladiadores enfrentavam quase sempre a morte ao entrarem na arena, embora não


soubessem, ao certo, quando é que iriam perecer. Na realidade, até havia interesses a favor da
sua sobrevivência, principalmente quando se tratava de combatentes experientes e famosos
junto do público. Assim, em vez de encararmos um combate de gladiadores como uma exibição
pública que se saldaria invariavelmente numa morte violenta, talvez seja mais correcto vê-lo
como uma demonstração do poder para levar a melhor sobre a própria morte ou, até, em
certo sentido, vencê-la.

Com efeito, o gladiador «suplantava» a morte ao mostrar, perante o público, que era melhor
combatente do que o seu adversário. Mas o vencido também podia ganhar a sua vida «de
volta» se evidenciasse bravura e destreza; se tal não conseguisse fazer, então o seu oponente
(muitas vezes seu colega de treino no ludus) matá-lo-ia, depois do veredicto apresentado pelo
editor. Ele não sucumbiria lentamente, como sucedia com os criminosos, mas seria antes
executado com rapidez e o mínimo de sofrimento possível: mesmo sendo o gladiador um
infamis903, perderia a vida «pelo ferro», o tipo de morte considerada ideal e digna para um
cidadão romano nos campos de batalha.

Esperava-se que o derrotado aceitasse o golpe de misericórdia sem esboçar qualquer sinal de
hesitação, medo ou de protesto, e a forma ritualizada através da qual isto se levava a cabo
ajudaria, em certa medida, o gladiador vencido a satisfazer essa expectativa. Ora, sob esta
óptica, o combatente que perecia na arena havia «subjugado a morte» 904. É certo que o facto
de demonstrar destreza na pugna significaria um pequeno consolo para ele; a sua morte era
certamente uma consolação maior para todos os que assistiam ao munus, que se tinham
reunido com o propósito de prestar homenagem à memória de um romano ilustre falecido.

Cada par de gladiadores a combater levava os espectadores a experimentarem uma sensação


de estarem face-a-face com a morte. Através da sua capacidade reactiva aliada à habilidade
técnica, os combatentes podiam escapar à morte num sentido simbólico, à semelhança do
próprio defunto em cuja honra se oferecera o espectáculo, o qual, em vida, havia evidenciado
as qualidades que no seu conjunto se inseriam, na mentalidade romana, no conceito da virtus,
isto é, os atributos tradicionais da força e da coragem (fortitudo), da disciplina, da tenacidade
(constantia), da perseverança (patientia), do desprezo em relação à morte (contemptus mortis),
do desejo de obtenção de glória (amor gloriae) e da vontade de vencer (cupido victoriae).

No sistema dos valores romanos, admitia-se a existência de uma forte conexão entre a virtus e
o combate. Ao longo dos séculos III e II a. C., era principalmente na qualidade de comandantes
militares que os membros da elite romana podiam provar a si próprios e aos seus pares que
tinham sido bons homens, detentores da virtus. A virtus bélica não se restringia, porém, aos
comandantes, já que também os simples soldados tinham possibilidade de a demonstrar em

903J. Vogt, «Der sterbende Sklave.Vorbild menschlicher Vollendug», in Sklaverei und Humanität. Ergänzungsheft,
Wiesbaden, 1983, pp. 6-16.

904 T. Wiedemann, Emperors and Gladiators, pp. 34-35.

350
contenda (recebendo por tais manifestações de bravura recompensas de vários tipos),
conforme se verifica em episódios descritos em fontes literárias, como nas condecorações
militares romanas905.

A virtus é um conceito deveras complexo, que pode englobar uma série de componentes
referentes tanto às actividades privadas e pacíficas, como às atitudes adoptadas na vida pública
e na guerra. Tal noção, ao contrário do que se poderia supor, nada tinha a ver com a
abstinência sexual, nem com a fidelidade conjugal ou, mesmo, com a heterossexualidade: a
palavra virtus deriva de vir, «varão», daí que ser-se virtuoso equivalia a ser masculino e isto, na
mentalidade romana, significava dominar; em primeiro lugar, dominar os próprios impulsos,
mas também dominar os demais, desde a esposa, as amantes, os filhos e os escravos, além dos
estrangeiros. Consequentemente, a virtus era coisa própria de homens, ou melhor, de
cidadãos906. A gama de qualidades que a virtus abrangia aparece descrita na passagem de um
discurso fúnebre que Q. Metelo proferiu em 221 a. C., em homenagem ao seu pai, L. Cecílio
Metelo:

«Ele teve a seu favor dez dos maiores e melhores feitos que os sábios passam as suas vidas atentar
realizá-los. Nomeadamente, desejou ser um guerreiro de primeira categoria; um extraordinário orador
em público; um general extremamente corajoso; alguém que obteve grandes vitórias militares sob os
seus próprios auspícios; ser detentor dos cargos mais elevados; ter grande sabedoria; ser considerado
como o primeiro dos senadores; adquirir avultada quantidade de numerário de maneira honesta; deixar
ficar muitos filhos; e gozar de grande fama na comunidade» 907.

Primarium bellatorem, notabilizar-se como guerreiro, era algo que se diferenciava como até
precedia o facto de se ser um general cheio de bravura, alguém que averbara vitórias militares
através do seu próprio esforço e iniciativa, que lograra ver-se eleito para as magistraturas. A
cada um dos legionários romanos também se requeria coragem e engenho no combate corpo a
corpo.

Na guerra hoplítica, e presumivelmente na maneira de guerrear da Itália Arcaica, cada soldado


constituía um no meio de milhares a formarem falanges compactas, cuja eficácia dependia de
todos se movimentarem como um bloco sincronizado. Era vista com maus olhos e até
condenada a vontade de se exibir coragem a nível individual, isto se tal comportamento
pusesse em causa a manutenção da linha de batalha. Esta, nas legiões da República romana,
era muito mais aberta do que nos tempos subsequentes, daí cada soldado ter mais
oportunidades de utilizar as armas ofensivas, facto que os Macedónios descobriram, aterrados,
quando enfrentaram os legionários romanos no começo do século II a. C., como aconteceu na
batalha de Pidna, em que o general Emílio Paulo os derrotou. O êxito dos Romanos em
combate resultava da capacidade que os soldados tinham, individualmente, em sobreviver ao
corpo a corpo, mais do que o da maximização do impacto do peso da falange sobre as fileiras
inimigas. Como exemplo ilustrativo da virtus individual pode-se citar a história de um jovem
com apenas quinze anos, chamado Emílio Lépido, que «avançou para a batalha, matou um
inimigo e salvou um concidadão», o qual se viu recompensado com uma estátua erigida no
Capitólio908.

905 A este respeito, consultem-se as seguintes obras: V. Maxfield, Military Decorations of the Roman Army, Londres,
1981; K. Hopkins, Conquerors and Slaves, Cambridge, 1978; W. V. Harris, War and Imperialism in Republican Rome,
Oxford, 1979.

906 Relativamente às mulheres de elevada condição social, o que as enobrecia não era a virtus, mas a pudicitia,
«pudor».

907 Plínio-o-Velho, Naturalis Historia, 43/139.

351
O combate singular909 constituía, pois, o contexto em que um romano tinha de provar que
possuía um dos constituintes mais importantes da «virtude». Importa referir que o conceito da
virtus não era menos problemático para os romanos do que para outros povos, além de que
terá sempre havido alguma incerteza quanto à relação entre a coragem em combate corpo a
corpo e as demais qualidades.

O último século da República foi um período em que diferentes aspectos da virtus entraram
em conflito e durante o qual diferentes agrupamentos políticos reivindicaram a virtus suprema
ou exclusiva, por se considerarem possuidores de virtutes parciais: os escritos de Salústio
expressam esses choques entre, por exemplo, as pretensões à virtus não herdada e a virtus
pessoalmente adquirida, ou entre as qualidades morais e a virtus no sentido de um atributo
puramente técnico para se ter êxito. A descrição da morte em batalha de Catilina e dos seus
acólitos exemplifica a bravura na luta corpo-a-corpo, algo que se esperava de um romano
virtuoso, não importando quão decadente tivesse sido até aí a sua vida pessoal e política:
«Lembrando-se da sua ascendência e do alto cargo que ocupara, ele [Catilina] mergulhou na
mais densa concentração de soldados inimigos e foi morto enquanto combatia». 910

Era esta mesma qualidade, a coragem de defrontar um oponente, conjugada com a perícia
técnica para ferir ou matar, que se exigia aos participantes dos munera gladiatórios; os
confrontos eram travados por homens cuja única aspiração à virtus residia no próprio combate,
estando ela isoladas das demais virtutes. Caso os gladiadores fossem mulheres, a capacidade
combativa ficava separada da noção de masculinidade. Para os espectadores, a porfia era
análoga a uma experiência em que a capacidade ou o talento para lutar se via apartada de
outros factores. Mas isto, claro está, não tornava menos complexa a relação entre a destreza
em combate e outras vertentes da virtus. No rescaldo das guerras civis do século I a. C., para os
Romanos deve ter-se revelado problemático o conflito entre a virtus nos campos de batalha e
as outras virtutes. Tito Lívio tentou reintegrar tais virtutes na sua conhecida e já anteriormente
referida narração dos jogos gladiatórios (aos quais já aludimos) que Públio Cornélio Cipião
organizou em honra do seu pai e de seu tio (ambos morreram a combater os Cartagineses) no
ano 206 a. C., em Carthago Nova:

«Os jogos gladiatórios não consistiram na utilização do género de homens que os lanistae
habitualmente adquirem, isto é, escravos comprados a mercadores, ou homens livres que vendem o seu
próprio sangue; os talentos daqueles que combateram foram facultados voluntária e gratuitamente.
Alguns deles foram enviados pelos seus chefes para demonstrarem a virtus que era inata na sua tribo
[...]».

O historiador romano prossegue a récita afirmando que outros lutaram por respeito para com
Cipião, e outros ainda, a fim de resolverem litígios entre si (um dos quais é descrito), todos os

908 Na falange grega, pelo contrário, havia falta de liberdade para o desenvolvimento de actos individuais de
bravura: Aristódemo «agiu como um louco ao deixar a linha de batalha» (Heródoto, 9.71.3); cf. J. Lazenby, «The
Killing Zone», in V. D. Hanson (ed.).), Hoplites: The Classical Greek Battle Experience, Londres, 1991, p. 103; para a
natureza incluclusiva de provas quanto à existência de provas concretas da guerra de falange em Itália, veja-se Bruno
d'Agostino, «Military Organization and Social Structure in Archaic Etruria», in O. Murray e S. Price (eds.), The Greek
City, Oxford, 1990, p. 59ss. Quanto ao episódio de Emílio Lépido, cf. Valério Máximo, 3, 1.1; o seu feito de armas
também foi comemorado numa moeda: T. Mommsen, Geschichte des römischen Münzwesens, Munique, 1856, p.
634. Também,cf. J. Fries, Der Zweikampf bei T. Livius, Meisenheim, 1985.

909 T. Wiedemann, «Single Combat and Being Roman», Ancient Society 27 (1996), pp. 91-103.

910Salústio, Cat, 51: memor generis atquae pristinae suae dignitatis in confertissumos hostis incurrit ibique pugnans
confoditur.

352
intervenientes manifestando firme resolução em pelejar 911. Já tivemos a oportunidade de ver
que Tito Lívio demonstrou embaraço em conferir aos munera gladiatórios a mesma «estatura»
moral de outras manifestações mais «romanas» da virtus; esforçou-se por distinguir os jogos
apresentados por Cipião dos munera da Roma de Augusto, nos quais o público se centrava na
destreza combativa dos gladiadores, precisamente porque de outro modo estes não teriam
qualquer valor.

Os gladiadores não comportariam tanta ambiguidade se fossem, simplesmente, párias sociais.


O que os tornava peculiares era que a virtus específica que praticavam lhes proporcionava a
pretensão a serem romanos. As inscrições e os graffiti atestam o respeito popular que estes
combatentes da arena gozavam a nível individual, sendo mesmo conhecidos pelos seus nomes
pelo público em geral. A habilidade de certos gladiadores servia até, como referimos, de tema
de conversa entre gente culta912. A virtus destes homens da arena era reconhecida pelos
escritores romanos, embora, quando empregavam o vocábulo gladiator, faziam-no com um
sentido insultuoso ou depreciativo em relação a alguém por quem nutrissem grande antipatia
ou tremendo antagonismo. Cícero manifestou as suas reservas quanto aos munera mas,
curiosamente, elas situam-se no polo oposto do ideário expresso por Tito Lívio; por causa da
participação de homens livres nos combates é que estes se tornaram cruéis (nenhum
«tratamento» reservado a escravos podia ser cruel, à luz da mentalidade romana. Atentemos
ao que escreveu Cícero:

«Um espectáculo gladiatório tende a parecer cruel e brutal a alguns olhos, e eu inclino-me para pensar
que o é, tal como actualmente é levado a cabo. Mas nos tempos em que eram os escravos que cruzavam
o ferro numa pugna até à morte, não podia haver melhor aprendizagem face ao sofrimento e à
morte»913.

No Panegyricum dedicado a Trajano por Plínio-o-Moço, colhe-se um bom exemplo de


enaltecimento à bravura dos gladiadores. O escritor ataca certos espectáculos oferecidos por
Domiciano, ignominioso predecessor do Optimus Princeps, que se limitavam a simples
exibições de pantomima; mas quanto aos munera propriamente ditos, Plínio elogia-os. Na sua
opinião, os cidadãos romanos ganhavam mais coragem ao assistirem a indíviduos socialmente
inferiores dando mostras de valentia914.

Mais tarde, no século IV d. C., o orador pagão Libânio – que detestava os jogos espectaculares
porque nestes via uma séria ameaça para as suas próprias exibições de retórica em público –
teceu comentários encomiásticos à coragem evidenciada pelos gladiadores que combateram
nos jogos do seu tio, «os quais puderíeis jurar que eram discípulos dos Trezentos na batalha
das Termópilas»915.

Porém, o gladiador derrotado evidenciava uma aspiração mais fraca no tocante à sua
masculinidade: em vários relevos e mosaicos que mostram combatentes vevencidos na arena,
à espera da decisão final do editor e do público, eles surgem amiúde, figurados com os joelhos

911Tito Livio, Ab Urb. Cond., 28.21: Scipio Carthaginem ad vota solvenda dis munusque gladiatorum, quod mortis
causa patris patruique paraverat, edendum rediit. Gladiatorum spectaculum fuit non ex eo genere hominum ex quo
lanistis comparare mos est, servorum de catasta ac liberorum qui venalem sanguinem habent: voluntaria alii missi
ab regulis sunt ad specimen insitae genti virtutis ostendendum, alii ipsi professi se pugnaturus in gratiam ducis [...].

912 Horácio, Saturae, 2, 6.44.

913 Cícero, Tusculanae disputationes, 2, 17.41.

914 Plínio-o-Moço, Panegyricum, 33.1ss.

915 Orationes, 1.5.

353
mantidos unidos, numa postura que, desde o século V a. C., fora utilizada pelos escultores para
transmitirem a feminidade, aproveitando para realçarem os contornos das ancas (fig. 11): o
protótipo foi, aparentemente, a célebre Afrodite de Cnidos, famosa obra de Praxíteles.
Subsequentemente, essa posição veio a aplicar-se não só em imagens de mulheres, como
também nas representações plásticas de divindades masculinas hermafroditas ou
«efeminadas», como Apolo ou Dionísio 916. Tanto os escultores como os mosaicistas, além dos
que encomendavam as suas obras, encaravam os gladiadores vencidos como seres efeminados,
em certa medida, como 917. Diversas representações plásticas que evocam a execução de
gladiadores vencidos através de um golpe assestado nas costas (com a lámina mergulhando na
espinha dorsal ou, então, entre as costelas, depois atingindo o coração ou os pulmões), por
meio da justaposição de poses, sugerem o acto sexual da penetração. Na cena que decora um
frasco de óleo, o gladiador subjugado encontra-se estendido no solo, com o vencedor
ajoelhando-se por cima dele e espetando o pugio nas costas 918. A posição recumbente realça
as nádegas do combatente caído, e trata-se da maneira como se figurou o antebraço do
executor e a arma invulgarmente pequena, mais do que o ponto exacto de entrada da lâmina,
que se revelam sugestivas. Ademais, a atitude do homem tombado evoca a pose das estátuas
de Hermafrodite dormindo, que se conservaram até à actualidade, quando observadas por
uma pessoa a partir de trás, antes de se delindar o segredo da «composição» 919. No relevo do
Bonnefantenmuseum de Maastricht (Bélgica)920, o gladiador vencido representado de costas,
tendo o escultor acentuado os contornos das suas coxas roliças face ao seu conquistador,
enquanto o primeiro olha em direcção ao adversário por cima do ombro (Fig. / 18.3): algo
lembra certas figuras na arte romana sendo penetradas por detrás 921. Uma tal conexão
conformar-se-ia com muito do que se conhece da recepção sexual da profissão gladiatória na
sociedade romana alargada. A noção não implicaria que os gladiadores fossem homossexuais
per se, mas que o estatuto sexual comportava a dominação e a submissão na arena. Na guerra,
a violação, por exemplo, enquanto expressão de vitória, tinha um longo pedigree no mundo
greco-romano e, até, para além deste 922.

***

Datando dos séculos I a II d. C., múltiplas lápides de soldados romanos pertencentes a


unidades de cavalaria (as quais os especialistas modernos designam de Reitertyp), representam
a imagem esculpida de um militar montado cavalgando sobre um bárbaro. Na maioria dos

916 Veja-se M. Robertson, History of Greek Art, Oxford, 1975, p. 392, 551.

917 T. Wiedemann, Emperors and Gladiators…, p. 38.

918 J. Coulston, «Victory and Defeat in the Roma Arena…», p. 201, fig. 18.5.

919 C. Johns, Sex or Symbol? Erotic Images of Greece and Rome, Londres, 1982, fig. 85; R. R. R. Smith, Hellenistic
Sculpture, Londres, 1991, fig. 169; J. R. Clarke, Looking at Lovemaking…, , fig. 11-12.

920 M. Junkelmann, Gladiatoren…, fig. 178, p. 118.

921 Vejam-se: J. R. Clarke, Looking at Lovemaking…, fig. 94; A. Varone, Eroticism in Pompeii…, fig. 68.

922 D. Ogden, «Homosexuality and warfare in ancient Greece, in Lloyd (ed.), Battle in Antiquity, Londres, 1996, pp.
107-168; R. C. Trexler, Sex and Conquest. Gendered Violence, Political Order and the European Conquest of the
Americas, Ithaca, 1995, pp. 14-23; E. Scott, «The use and misuse of rape in prehistory», in L. Bevan (ed.), Indecent
Exposure. Sexuality, Society and the Archaeological Record, Glasgow, 2001, pp. 8-11

354
casos, o último aparece a cair de costas devido ao impacto da investida do corcel 923. No
entanto, nuns quantos relevos funerários, o inimigo jaz de barriga para cima, com a cabeça
orientada na direcção do movimento do equídeo, tanto estendido como figurado em posição
fetal 924. Um homem agachado nas estelas de Flavinus, em Hexham (Northumberland,
Inglaterra) empunha a espada, em riste, talvez consistindo numa alusão fálica 925, ao passo que
um germano, num monumento mortuário de Andes (Mainz, Alemanha), mostra coxas e
nádegas muito proeminentes 926. Também segura na sua espada, de lâmina recta, mas inclina-
se de uma maneira sem precedentes, quase como se mostrasse um pénis flácido. Noutra
estela, descoberta em Lancaster, descreve-se um bretão decapitado estando de gatas,
denotando-se uma ênfase invulgar na condição do cavalo do militar romano, enquanto um
autêntico garanhão 927. Aqui parece ter-se estabelecido uma conexão directa entre a vitória e o
estupro, e as posições muito vulneráveis em que se figuraram os bárbaros conhecem paralelos
muito estreitos com cenas de casais a copular, visíveis nas pinturas do lupanar, em Pompeia,
onde se vê, por exemplo, um homem penetrando a parceira por trás 928. O conceito de
bestialidade com equídeos, entre outros animais, não era de modo algum alheio ao humor
romano; no entanto, também pode ter havido uma percepção dos cavaleiros como nutrindo
apetência e predilecção por actividades sexuais dominantes 929.

***

Voltemos, após este breve parêntesis, à gladiatura: a vitória na arena estava associada ao
triunfo na guerra, mas mais imediata era a reputação dos gladiadores como indivíduos brutos e
inerentemente viris. Os satiristas não conseguiram resistir à imagem das damas das classes
altas envolvendo-se com infames, devido á atracção sentida por corpos atléticos e/ou robustos.
Em Pompeia, como vimos, encontraram-se grafitos exaltando os dotes sexuais dos
combatentes e Juvenal referiu-se à espada como um objecto fálico neste contexto (6.112; CIL
VI 4353, 14 356; ILS 5142). A imagética fálica, juntamente com o gladius e a vagina, era um
lugar-comum óbvio e, com efeito, as espadas representavam simplesmente os objectos mais
pontiagudos, entre os muitos referidos desta maneira com humor. O acto sexual expressava-se
em termos de combate, aniquilação, conquista militar, sujeição e submissão 930.

923 Cf. M. Schleiermacher, Römische Reitergrabsteine. Die kaiserzeitlichen Reliefs des triumphierenden Reiters,
Bona, 1984, nos. 6, 17, 21-22, 26-27, 38, 45-47, 79-80, 101, etc.

924 Ibidem, nos. 34, 73, 76-77, 80-81; S. Bull, The Lancaster Roman Cavalry Stone: Triumphant Rider, Lancaster,
2007, p. 38, 41, 48, 50.

925 E. J. Phillips, Corpus Signorum Imperii Romani, I.1. Corbridge. Hadrian’s Wall of the North Tyne, Oxford, 1977, nº
68; M. Schleiemacher, Römische Reitergrabsteine, nº 77.

926 M. Schleiemacher, Römische Reitergrabsteine, nº 20.

927B. C. Burnham, B. C. Hunter, F. Fitzpatrick et al., «Roman Britain in 2005», Britannia 37 (2006), pp. 468-472, fig.
2; S. Bull, The Lancaster Roman Cavalry Stone…, p. 15, 18.

928 J. R. Clarke, Looking at Lovemaking…, fig. 71, 78, 100, 104; A.Varone, Eroticism in Pompeii…, fig. 48, 50, 55; P. G.
Guzzo e V. Scarrano Ussani, Veneris Figurae. Immagini di prostituzione e sfruttamento a Pompei, Nápoles, 2000, p.
17, 35, 41, 49, 51.

929 M. P. Speidel, «A Marsacus as a Horseguard’s boy in Rome», Helinium 25 (1985), pp. 254-257; E. J. Phillips,
Corpus Signorum Imperii Romani…, nº 248.

930J. N. Adams, The Latin Sexual Vocabulary, Londres, 1982, pp. 20-21, 155-159, 196, 219. Cf. K. M. Coleman, M.
Valerii Martialis Liber Spectaculorum, Oxford, 2006, p. 232.

355
Um exemplo extremo da exibição da dicotomia falo-gladiatura radica no conhecido
tintinnabulum achado em Herculano (cidade vizinha de Pompeia e também ela vítima da
erupção vulcânica do Vesúvio), que representa um gladiador envolvido num prélio com o seu
pénis, que se virou contra o combatente e se metamorfoseou, assumindo a forma de uma
espécie de leopardo (FIG. ) 931. Ao tratar-se de uma peça móvel, que ficava suspensa,
ostentando a sua forte natureza ictifálica, ela tinha um claro poder apotropaico 932.Os
gladiadores preocupavam-se com a nefasta influência do mau-olhado, mas a peça mencionada
realça igualmente a força natural da luxúria bestial.

O jogo de dominação e submissão aplicava-se perfeitamente na iconografia gladiatória,


porque muito do que se pode qualificar de «humor sexual romano» se reportava ao estatuto
social, aos papéis de género e às actividades sexuais, com forte sentido do absurdo. Os actos
sexuais entre homens e mulheres viam-se definidos no vocabulário latino segundo o orifício
implicado, como «activos» ou «passivos». H. N. Parker colocou estes termos no seio de uma
«grelha teratogénica», onde as acções se podem perspectivar, sob o ponto de vista romano,
como «normais» ou «desviantes»933.

Um relevo fragmentário do monumento funerário de um gladiador, descoberto na Via Ápia,


em Roma 934 (FIG. ), que perpetuou na pedra os feitos de um retiarius, com a representação dos
seus catorze combates pode examinar-se mais atentamente, à luz dos aspectos que acabámos
de discutir. As figuras pertencentes a seis pares sobreviveram à voragem do tempo (fig. 18.2.
Numeradas 1 a 6, de cima para baixo e da esquerda para a direita); um secutor, na parte
superior esquerda (S 1), ajoelha-se diante do retiarius (R 1), deste apenas se conservando as
suas pernas; outro, no topo direito (S 2), também de joelhos em terra, à primeira vista parece
agarrar a canela do retiarius, à sua frente (R 1), suplicando de um modo abjecto. Isto
constituiria uma pose incomum, mas o canto quebrado superior da escultura bidimensional
sugere a presença de outro retiarius (RS), atrás desse secutor, que se encontra provavelmente
ajoelhado, aguardando a sua execução mediante uma estocada nas costas. Um terceiro secutor
arrojou o seu escudo e permanece de pé, com o braço direito erguido, apelando à concessão
da missio (S 3); quanto ao retiarius (R 3), a sua imagem está demasiado danificada para
determinarmos que arma ele brande. No par seguinte, o vencido (S 4) acha-se de gatas face ao
retiarius (R 4), que empunha o tridente e com a outra mão segura o adversário pela parte
posterior da cabeça. Em baixo, observa-se exactamente a mesma justaposição, com o retiarius
(R 5) empunhando uma adaga apontada à cabeça do secutor (S 5). Relativamente ao último
par, situado na zona inferior do relevo, assume posições similares, a julgar pela atitude do
retiarius (R 6) para com o secutor, cuja figura não se conservou (S 6)935.

931C. Johns, Sex or Symbol? Erotic Images…, est. 14; S. De Caro,The Secret Cabinet in the National Archaeological
Museum of Naples, Nápoles, 2000, p. 35: A. La Regina (ed.), Sangue e Arena…, (catálogo), nº 86; cf. ILS 5134; M.
Langner, Antike Graffitizeichnungen…, nº 1261

932C. Johns, Sex or Symbol? Erotic Images…, pp. 62-75; R. Ling, «Street plaques at Pompeii», in M. Henig (ed.),
Architecture and Architectural Sculpture in the Roman Empire, Oxford, 1990, pp. 51-66.

933 «The teratogenic grid», in J. P. Hallett e M. B. Skinner (eds.), Roman Sexualities, Princeton, 1997, pp. 47-65.

934 M. Junkelmann, Gladiatoren…, fig. 16, p. 17. O relevo conserva-se nos Museo Nuovo Capitolino, Roma e data
do século III d. C.

935Para a análise deste relevo, alicerçámo-nos na leitura proposta por J. Coulston, «Victory and Defeat in the
Roman Arena…», p. 205.

356
Esta extraordinária exibição de pares gladiatórios é passível de se interpretar como a vingança
do retiarius, assim se desforrando de uma vida marcada pela sobranceria e desdém dos
secutores. O nível de humilhação vê-se reforçado por meio do expediente visual da repetição,
mas igualmente pelas poses específicas. Um secutor (S 3) está de pé, numa maneira
convencional de submissão, e outro (S 2) prepara-se para receber o golpe fatal no dorso. O
tratamento plástico dos outros três (S 4-6) vai muito mais longe. Dada a associação existente
entre os gladiadores e as armas com lâmina e os actos sexuais no humor verbal e visual
romano, não é de excluir a hipótese de que se encarassem estas figurações enquanto
sugestões de fellatio forçado. Em particular, a mão posta sobre a parte traseira da cabeça é um
elemento típico das cenas envolvendo fellatio, como a imagem de uma conhecida lucerna 936 e
um dos afrescos das Terme Suburbane de Pompeia 937. Descrever qualquer homem como
agente passivo era ignominioso, fosse na qualidade de gladiador derrotado ou como parceiro
sexual submisso: ora a representação de ambas as coisas torna-se ainda mais aviltante.

Algumas vertentes da iconografia gladiatória aqui exploradas transmitem mensagens de


vitória e de derrota, e umas quantos também parecem incorporar elementos que sugeririam a
dominação sexual aos olhos dos Romanos. No entanto, não queremos com isto dizer, de forma
categórica, que a maioria ou, pelo menos, muitas das peças com motivos artísticos gladiatórios
ostentassem indicadores visuais de uma tal dominação ou humor. Efectivamente, o humor é
algo difícil de interpretar tal como, ainda mais, o seu conteúdo sexual. Numerosas obras de
arte romanas tradicionalmente vistas como «eróticas» desafiam uma categorização estrita,
mas pode revelar-se útil, como, aliás, fez J. Coulston, integrá-las num diagrama formado por
três círculos sobrepostos, simbolizando respectivamente a sexualidade, o humor e a
observância apotropaica 938. As placas fálicas podem ver-se colocadas no espaço apotropaico,
as figuras cómicas de Príapo ou dos Mercúrios ictifálicos ocuparem lugar na sobreposição entre
o apotropaico e o humor. As pinturas que ornamentavam os lupanares talvez fossem
puramente eróticas, mas já as cenas de comportamento «desviante» denotavam
principalmente humor. O vasto manancial das descrições plásticas dos gladiadores baseou-se,
aparentemente, no apetite do público pelos munera, funcionando na qualidade de
documentos e imagens comemorativas das exibições na arena, o que se corrobora mediante a
atenção dispensada aos pormenores das armaturae e da linguagem corporal que tão
vividamente representaram.

Todavia, as componentes dos três círculos do referido diagrama estão presentes em alguns
artefactos individuais, haja em vista o tintinnabulum do gladiador cujo pénis
desmesuradamente grande se transformou num leopardo teria, porventura, uma faceta
simultaneamente apotropaica e cómica. Quanto ao baixo-relevo de Maastricht, talvez
transmita humor de uma maneira sexualmente ambivalente. Neste sentido, o diagrama
aparece construído com três conjuntos sobrepostos inseridos num quadrado que representa o
acervo universal de toda a iconografia gladiatória 939.

É ponto assente que os munera representados nessas obras artísticas possuíam um significado
plurívoco, acumulando múltiplas camadas interpretativas para a sociedade romana. Os

936C. Johns, Sex or Symbol? Erotic Images…, fig. 115, L. Jacobelli, Le pitture erotiche delle terme suburbane di
Pompei, Roma, 1995, fig. 33; A. Varone, Eroticism in Pompeii, fig. 53.

937 L. Jacobelli, Le pitture erotiche…, est. IV; J. R. Clarke, Looking at Lovemaking…, est. 11; A. Varone, Eroticism in
Pompeii, fig. 27.

938 Cf. «Victory and Defeat in the Roman Arena…», fig. 18.16.

939 Ibidem, p. 206.

357
espectáculos constituíam o ponto mais elevado do entretenimento patrocinado pelos
imperadores; eram o apogeu da visão cultural que os Romanos tinham de si próprios:
audiências «civilizadas» podiam assistir com alguma complacência os criminosos sentenciados
a serem castigados, os bárbaros derrotados e as forças selvagens da natureza controladas no
seio de um contexto urbano. A romanitas anunciava-se e celebrava-se por meio da coragem,
do equipamento e da destreza dos gladiadores, de que os seus maiores expoentes se
aproximavam tremendamente do modelo idealizado da virtus militar tradicional 940. Não
admira, portanto, que os anfiteatros estivessem espalhados ao longo das fronteiras do império,
para entretenimento e instrução dos soldados romanos, sendo o treino e o equipamento dos
milites idênticos aos observáveis no ludus gladiatório941.

Estas considerações ajudam os estudiosos a lançar luz sobre esta área de exibição romana,
mas também devem ser admitidas como outra «onda» da recepção moderna relativamente
aos jogos gladiatórios, dominada agora, não tanto pela lubricidade «vitoriana, mas pelos
desportos de massas para entretenimento e filmes. Importa explicar e avaliar a fundo os
munera, mas não idealizá-los, porque é demasiado fácil pôr de parte ou omitir o seu lado mais
negro. A multidão romana comprazia-se em assistir às execuções habilmente levadas a cabo na
arena e, para os habitantes do demi-monde do entretenimento público romano, a vida era
efectivamente dura e incerta. Os gladiadores compensavam a sua baixa estima social ao
demonstrarem orgulho na sua profissão, facto que se patenteia nas suas estelas funerárias. Na
percepção dos espectadores de outrora, eles eram apreciados pelas suas qualidades
combativas e degradados pelo seu estatuto. Simultaneamente famosos e infames, os
gladiadores estavam intimamente associados às atitudes romanas para com o êxito e o
fracasso, a vitória e a derrota, à condição da elite intocável, ao fascinio erótico e ao
rebaixamento sexual.

***

Na Antiguidade Tardia, assumiu especial importância para os pagãos - que desejavam


preservar os jogos a todo o custo contra a hostilidade dos cristãos, enquanto elementos da
cultura herdada - enfatizar a bravura publicamente evidenciada pelos gladiadores. Alguns
autores defenderam a existência de um vínculo estreito a unir os combates gladiatórios à
instrução militar. A ideia tem fundamento, já que, ocasionalmente, certos comandantes
romanos recorreram aos serviços de lanistae e doctores (instrutores de gladiadores) para
treinarem os seus recrutas: tal aconteceu em períodos de crise ou momentos de extrema
urgência, em que se tinha de adestrar elevado número de homens para a guerra; o primeiro
exemplo desta prática ocorreu em 105 a. C., quando os cônsules P. Rutílio Rufo e C. Manilío
precisaram de reunir com a máxima rapidez um exército para enfrentar os invasores
setentrionais. Os autores da História Augusta tornaram este procedimento esporádico numa
prática generalizada, sendo um argumento a favor dos gladiadores: «Outros relatos – que

940 K. Hopkins, Death and Renewal…, , pp. 7-30; E. Gunderson, «The ideology of the arena», Classical Antiquity 15
(1996), pp. 637-658; K. M. Coleman, « “The contagion of the throng”: absorbing violence in the Roman world»…,
pp. 401-417; IDEM, Bonds of danger: communal life in the gladiatorial barracks of ancient Rome, Sydney, The
Fifteenth Todd Memorial Lecture, 2005; A. Futrell, The Roman Games. A Sourcebook…, pp. 11-42.

941 G. Ville, «La guerre et le munus», in J.-P. Brisson (ed.), Problèmes de la guerre à Rome, Paris, 1969, pp. 185-195;
J. Maurin, «Les barbares aux arènes», Ktèma 9 (1984), pp. 102-111; P. Le Roux, «L’amphithéâtre et le soldat sous
l’empire romain», in C. Domergue, C. Landes e J. -C. Pailleur (eds.),Spectacula I. Gladiateurs et amphithéâtres,
Lattes, 1990, pp. 203-215; J. Coulston, «Gladiators and soldiers. Personnel and equipement in ludus and castra»,
Journal of Roman Military Equipment Studies, 9 (1998), pp. 1-17, M. Junkelmann, «Gladiatorial and military
equipment and fighting technique: a comparison», Journal of Roman Military Equipment Studies, 11 (2000), pp.
113-117.

358
considero verosímeis – afirmam que os Romanos, antes de partirem para a guerra, tinham de
ver combates, ferimentos, armas e homens desprotegidos a atacarem-se mutuamente, para
que não temessem os inimigos armados ou não se assustassem com feridas e derramamento
de sangue». Bastante tempo depois de terem desaparecido os combates gladiatórios em Itália,
um orador romano ainda contava ao rei ostrogodo Teodorico como os Romanos de antanho
haviam utilizado gladiadores para a sua instrução militar 942.

Suscita objecções a teoria de que os espectáculos gladiatórios seriam apresentados e


promovidos pelos imperadores romanos como uma espécie de eventos de substituição para a
guerra. Em todo o caso, é uma variante da dúbia tese «hidráulica» da violência, em que os
seres humanos têm propensão a vivenciar uma certa dose de violência e que esta, se já não
encontra expressão contra inimigos externos, passa então, a ver-se consentida, ao deixar-se,
por exemplo, que hoje em dia, em praticamente todo o mundo, as pessoas a vejam em
programas televisivos ou em imagens chocantes difundidas através da internet.

O que tornou a exibição pública do talento em combate tão crucial para os Romanos não foi a
passagem de uma República beligerante para um regime imperial, mas, acima de tudo, a crise
de valores que adveio de uma nova sociedade italiana formada nos derradeiros tempos da
época republicana, sociedade esta étnica e culturalmente heteróclita e cuja única experiência
compartilhada radicava no facto de os seus elementos estarem integrados na máquina militar
romana.

As condições existentes no fim da República ameaçavam as certezas da cultura política


herdada. Atrás vimos como certas obras que chegaram até nós, como a de Catilina de Salústio
ou a Guerra de Jugurta, ilustram dúvidas quanto ao carácter da virtus. Neste momento
histórico, não era mais possível, para o punhado de ilustres famílias latinas – que haviam
governado na República ao longo de sucessivas gerações – legitimar as pretensões dos seus
membros ao exercício do poder, simplesmente porque a sua virtus fora legada pelos seus
antepassados. A partir do tempo dos Gracos em diante, as divergências acerca do que era ou
não legítimo na vida pública conduziram mesmo à violência aberta: alguns sustentavam que a
legitimidade era concedida pelo mos maiorum, ao passo que outros defendiam que ela residia
na vontade do povo, ou mais especificamente, dos seus líderes. Mesmo quando não eclodia
uma guerra civil, a semente da discórdia significava um fenómeno endémico no final da
República. A base para um entendimento não podia basear-se na cultura herdada, não só
porque foi desafiada por aristocratas de origem romana, como Catilina, mas também porque
muitos dos «italianos» que haviam passado a fazer parte da sociedade política romana, em
consequência da Guerra Social de 91-89 a. C., não tinham qualquer cultura em comum, fosse
com a cidade de Roma, fosse com os seus compatriotas da última.Perante estas circunstâncias,
só novos símbolos culturais, artificialmente criados, poderiam substituir a violência, na
qualidade de meios propiciadores de um consenso alargado. Mais tarde, os imperadores
romanos proporcionariam a suficiente estabilidade política que permitiu aos juristas
desenvolver o Direito romano como um sistema composto por determinadas regras, que tanto
facultaria aos romanos a possibilidade de saberem que tipo de comportamentos deles se
esperavam, como lhes conferia um símbolo através do qual se podia identificar a própria
cidadania romana. Antes de Augusto vir a ser bem-sucedido na monopolização do poder
político, no interior de Roma não havia uma fonte de autoridade que impusesse consenso.

942Valério Máximo, 2, 3.2; História Augusta/SHA, Maximino e Balbino, 8.7: alii hoc litteris tradunt, quod verisimilius
credo, ituros ad bellum Romanos debuisse pugnas videre et vulnera et ferrum et nudos inter se coeuntes, ne in bello
armatos hostes timerent aut vulnera et sanguinem perhorrescent; Enódio, Panegyricus Theodorico, 85. Cf. E.
Baltrusch, «Die Verstaatlichung der Gladiatorenspiele», Hermes, 116 (1988), p. 324ss.

359
IV.3. Os munera gladiatórios: manifestação do processo da «romanização»

Neste processo, muito ajudaria que os símbolos viessem do exterior, a fim de que não se
identificassem com alguma componente concreta da comunidade italiana. Certos líderes
políticos dotados de ampla visão e perspicácia, como Cícero, buscaram oferecer aos «italianos»
uma base para a sua moralidade prática, escorada na filosofia grega. Os demais «empréstimos»
culturais gregos, tanto literários como artísticos, também se podem entender como tentativas,
por parte daqueles que lograram atingir posições cimeiras em Roma, no sentido de
legitimarem o seu estatuto superior ao apelarem a um ponto de referência que se localizava
fora da Itália. Deve-se perspectivar esta fase, conhecida como a «helenização» da Itália, como a
criação de uma cultura comum, que já não era mais romana ou latina, isto numa acepção
restritiva de carácter geográfico ou étnico 943. Ora a disseminação dos espectáculos gladiatórios
por toda a Itália fez parte desse processo de integração: o facto de se encararem os gladiadores
como tendo uma origem não romana ajudou efectivamente na propagação desse fenómeno.
Era em Cápua, não em Roma, que se podiam encontrar os principais ludi gladiatórios, e as
referências literárias às diferentes armaturae de gladiadores mostram que algumas delas foram
inicialmente associadas a grupos étnicos específicos, como atrás vimos (samnitas, gauleses e
trácios).Durante o século I a. C., dois destes tipos de combatentes (os samnitas e, em todo o
caso, os gauleses que habitavam em Itália) participaram no processo da integração itálica.
Segundo alguns estudiosos modernos, no tempo de Augusto ter-se-ia tornado inapropriado
que tais categorias de gladiadores fossem percebidas como elementos externos, o que levaria
a que o samnis se transformasse num secutor e o gallus se convertesse num murmillo944.
Outros autores, porém, consideraram que o samnis deu origem às armaturae do murmillo e do
secutor945.

A respeito desta matéria subsistem dúvidas e incertezas, pelo que, na ausência de elementos
concludentes, diversos historiadores são compelidos a formular conjecturas, com maior ou
menor grau de plausibilidade. Se, de facto, o samnis e o gallus saíram de cena para não ferirem
as susceptibilidades desses dois povos, outrora inimigos de Roma e depois integrados em
províncias do Império, como se percebe que outro tipo de gladiador «étnico», o thraex tenha
continuado a participar nos munera até aos últimos tempos da gladiatura? Cremos que a
resposta radica na popularidade que esta armatura ganhou ao longo do século I da nossa era,
deixando simbolizar um povo e passando a ser um tipo de combatente estritamente integrado
na gladiatura «técnica». Anteriormente salientámos que Augusto foi, sem dúvida, o principal
responsável por ter atribuído um novo e importante papel aos espectáculos gladiatórios no
âmbito do calendário cerimonial romano (embora tenha continuado a haver mudanças de
tempos a tempos, designadamente no tocante aos dignitários incumbidos da organização e
apresentação dos espectáculos). Assim como ele impôs a sua própria solução para a questão
da identidade romana noutros aspectos, também se apropriou dos ludi e dos munera em

943Eloquentemente apresentada como uma função das naumachiae e das corridas de carros por Ausónio (Écloga
23, Dos Festivais Romanos: «Festa haec navigiis aut quae celebrata quadrigis / iungunt Romanos finitimosque
duces»).

944T. Wiedemann, Emperors and Gladiators, pp. 40-41; L. Jacobelli, Gladiators at Pompeii, p. 7; R. Dunkle,
Gladiators, p. 98.

945 Inter alii, M. Junkelmann, «Familia Gladiatoria: The Heroes of the Amphiteatre», p. 37; E. Teyssier e B. Lopez,
Gladiateurs: Des Sources à l'expérimentation, p. 90.

360
Roma, monopolizando a glória e legislando sobre quem devia assistir aos espectáculos, os
Romanos.

Essencialmente foi com o intuito de provarem que pertenciam à comunidade romana que as
cidades (primeiramente as de Itália, e depois as de todo o Império) rivalizaram entre si na
apresentação de jogos e na construção de anfiteatros. O interesse demonstrado pelos
imperadores Calígula, Cláudio e Nero pela realização de espectáculos de todo o género e feitio
terá, decerto, contribuído para criar uma ambiência em que o «ser-se romano» significava
estar disposto a tomar os jogos a sério. Assim, as visitas que Nero efectuou à sua nova colónia
de Puteoli (Pozzuoli), em 64-66 d. C., conduziram directamente à reconstrução e ampliação do
anfiteatro local por iniciativa de L. Cássio Cerealis.946

O envolvimento popular nos espectáculos podia levar à eclosão de violentos tumultos, como o
ocorrido no anfiteatro de Pompeia, em 59 d. C., em que habitantes da cidade entraram em
graves confrontos com os habitantes da localidade vizinha de Nucéria. O mau comportamento
não era tolerável, pelo que tinha de ser punido: representava uma atitude contrária à
moralidade romana947.

No decurso das guerras civis de 68-69 d. C., os imperadores rivais procuraram metamorfosear
a sua apropriação do poder numa governação legítima ao oferecerem munera dispendiosos ao
povo romano: talvez o mais extraordinário tenha sido o apresentado por ocasião do aniversário
de Vitélio, que compreendeu espectáculos em cada um dos 265 vici (distritos) de Roma 948. O
líder militar que, por fim, acabou por vencer os outros candidatos ao trono imperial,
Vespasiano, legitimou a sua autoridade ao mandar construir o Anfiteatro Flávio no local onde
antes se erguera o palácio do tirânico Nero (a célebre «Casa Dourada», Domus Aurea), pelo
que, de acordo com o Liber spectaculorum, «Roma foi restaurada para si mesma, e sob a tua
presidência, César, o que costumava ser uma fonte de prazer para um senhor, passou a sê-lo
para todo o povo»949

A arena constituía um espaço de legitimidade especificamente romana, algo que Vespasiano


se revelou bem ansioso por reivindicar, uma vez que a principal base do seu apoio fora, além
do próprio exército, vários monarcas helenísticos da metade oriental do Império, que não
respeitassem as obrigações inerentes na sua relação com clientes ou vassalos, estatuto que a
dinastia Júlio-Cláudia estabelecera, ao colocar esses soberanos à frente dos seus respectivos
reinos. Consequentemente, Vespasiano, assim como Tito, fizeram questão de sublinhar o
carácter genuíno da sua romanidade através de diversos meios, um dos quais foi a
apresentação de espectáculos gladiatórios na colónia romana de Berytus (actual Beirute) e
noutras cidades orientais 950. Se bem que a difusão dos espectáculos gladiatórios fora da Itália
tenha caminhado de mãos dadas com a «romanização» 951, temos notícia de referências
curiosas mais antigas a tais combates, a mais digna de interesse sendo o munus, já referido,
que Antíoco IV, rei selêucida, apresentou em Antioquia em 166 a. C. Houve quem tenha

946 J. D'Arms, The Ancient Historian and his Materials, Londres, 1975, pp. 155-165.

947 Tácito, Ann., 14, 17.

948 Plínio, Naturalis Historia, 3, 66; Tácito, Historiae, 2, 95.

949 Liber spectaculorum, 2.11ss. Para a inauguração do Coliseu por Tito, filho e sucessor de Vespasiano, cf. Díon
Cássio, 66, 25; Suetónio, Tito, 7.3.

950 T. Wiedemann, Cambridge Ancient History, vol. X, capítulo 8; também, Díon Cássio, 66, 103.

951 Vocábulo sobre o qual tecemos comentários adicionais no próximo capítulo.

361
sugerido que Antíoco teria organizado esse espectáculo numa tentativa tentar colocar em
segundo plano, ao desviar as atenções, os jogos apresentados pelo general romano Emílio
Paulo em Anfípolis celebrando a sua vitória sobre a Macedónia. No entanto, Tito Lívio dá a
entender que tais espectáculos gladiatórios passaram a ser realizados assiduamente na cidade
de Antioquia, mas subsistem dúvidas se isto de facto aconteceu 952.

Quanto a outras referências literárias a combates gladiatórios fora de Itália, não se devem
encarar necessariamente como tentativas de decalque ou implantação de costumes romanos:
segundo Diodoro Sículo, no funeral de Viriato, o conhecido caudilho lusitano, em 140 a. C.,
combateram «gladiadores», mas neste caso estamos perante uma prática de origem local,
talvez sem conexões directas com os munera romanos953. Em contrapartida, captam-se indícios
de que determinadas actividades desenroladas na arena derivaram de costumes célticos, como
o da execução de criminosos condenados à morte, modalidade na qual os últimos eram
forçados a lutar entre si naquilo a que se designava trinquii.

Tudo leva a crer que os combates gladiatórios foram instituídos na Gália por Augusto, no
contexto de uma exibição cerimonial de lealdade da mesma para com o último (a qual estava
associada a Lug, divindade celta da paz e da vida civilizada, correspondendo, grosso modo, ao
romano Mercúrio), que tinha lugar anualmente em Lugdunum (Lyon), no dia 1 de Agosto.
Durante a rebelião encabeçada por Sacróviro, em 21 d. C., temos notícia de existir um ludus em
Augustodonum, para o treino de gladiadores que se apresentavam equipados more gentico,
chamados (abordados no capítulo precedente) cruppelarii pelos Romanos. Em Saintes, o
vergobret consagrou o anfiteatro local sob a égide de Cláudio. Na Gália Meridional, os munera
terão sido introduzidos por colonos romanos; foi em Arelate (Arles), que se descobriu a
primeira referência garantida à realização de um espectáculo gladiatório, em 63 a. C. 954

Aparentemente, alguns imperadores procuraram limitar ou até evitar a apresentação destes


espectáculos nas províncias, talvez receando que os mesmos pusessem em causa a sua própria
popularidade enquanto editores dos jogos: em 57 d. C., Nero baniu os munera gladiatórios, as
venationes e os ludi de qualquer género nas províncias, provavelmente pelo espaço de um
ano955; curiosamente, nessa mesma data, erigiu o seu anfiteatro de madeira em Roma.

Há muitas décadas, L. Robert demonstrou, escorando-se em abundante documentação antiga,


que os jogos gladiatórios na metade oriental do Império, também se difundiram num processo
paralelo ao da identificação das suas elites, no lugar que estas teriam no território dominado
por Roma. As populações locais terão assistido aos primeiros combates de gladiadores em
espectáculos organizados por príncipes helenísticos como Antíoco IV ou, mais tarde, Herodes
Agripa, e ainda pelos próprios comandantes dos exércitos romanos, haja em vista o caso de
Lúculo, que apresentou um munus em Éfeso em 69 a.C.

952Políbio, 30, 26.1-3; Diodoro, 31, 16; Ateneu, 5, 194 Af.; Valério Máximo, 2, 7.13ss; Tito Lívio, 41, 20.11-13. Veja-
se, igualmente, L. M. Günther, «Gladiatoren beim Fest Antiochos' IV zu Daphne (166 v. Chr.)?», Hermes, 117
(1989),pp. 250-252.

953Diodoro Sículo, 33, frag. 21a. Para uma abordagem objectiva e rigorosa sobre a prática de combates rituais
fúnebres e a sua relação com a condição social dos defuntos e própria a política local na Hispânia, veja-se o artigo de
J. M. Blázquez e S. Montero, «Ritual funerario y status social: los combates gladiatórios prerromanos en la Peninsula
Ibérica», Veleia, 10 (1993), pp. 71-84.

954 Inscrição de Lyon: D. Fishwick, The Roman Imperial Cult, vol. I, Leiden, 1987, est. XX; Tácito, Anais, 3, 43; AE
1980.0624; CIL I.776a = XII.5695.1.

955No entanto, Tácito dá a entender que tal proibição talvez possuísse um carácter mais permanente: cf. Ann., 13,
31.

362
Em colónias romanas como Berytus (Beirute) e Corinto, os munera serviriam como símbolo de
que a sua população, independentemente da sua origem étnica, era genuinamente romana e
superior às comunidades helenísticas no resto da província. A adopção de gladiadores (gr.
monomachoi/μονομάχσι) por outras cidades significou, em larga medida, uma resposta a esse
desafio. Filóstrato afirmou explicitamente que os Atenienses haviam introduzido espectáculos
gladiatórios por causa da rivalidade que tinham face a Corinto: esta era a sede do governador
provincial romano, mas Atenas constituía o centro da cultura filosófica helénica 956. Para
aqueles que falavam grego, mesmo que fossem formalmente cidadãos romanos, o processo de
integração significava um fenómeno diferente da necessidade, por parte dos dominadores, de
manterem nas províncias a sua identidade «superior», na qualidade de autênticos romanos. As
pesquisas efectuadas nas últimas décadas têm demonstrado como foram poucos os ricos
proprietários de terras do Oriente helenístico que desejaram tornar-se senadores romanos
durante os dois primeiros séculos da era cristã, além de que esta parcela do Império jamais se
identificou com a cultura literária latina, ainda que muitos dos seus habitantes tenham
aprendido latim de molde a poderem praticar a lei romana que se aplicou ao Oriente depois da
concessão da cidadania por Caracala, em 212 d. C.

Embora muitos vocábulos técnicos fossem simplesmente transliterados em grego 957, os


testemunhos epigráficos coligidos e examinados por L. Robert, bem como outros divulgados
por M. Carter e C. Mann, mostram que os munera realizados em cidades onde se falava o
grego eram organizados de acordo com um processo cerimonial helénico. Os motivos que
conduziram tanto as cidades como os indivíduos a oferecer espectáculos foram distintos dos
assinaláveis em localidades onde a língua que se falava era o latim: terão resultado,
essencialmente, da competição entre cidades e pessoas no intuito de patentearem a sua
lealdade em relação ao Império, em geral, e, também, no interesse em ganharem o favor de
certos imperadores, em particular. No tempo de Augusto, construiram-se anfiteatros em Nisa
(Cária) e em Alexandria (Egipto). Numa inscrição do templo augustano de Ancyra (actual
Ancara, Turquia), na Galácia, alude-se aos trinta pares de gladiadores que foram exibidos num
espectáculo durante o reinado de Tibério. A epigrafia corrobora a existência de um anfiteatro
em Laodiceia, no Lico, em 79 d. C. 958.

Mas, globalmente, no mundo grego não havia necessidade de se construir estruturas


exclusivamente vocacionadas para os combates gladiatórios e as venationes, uma vez que já
dispunha, como anteriormente dissemos, de edifícios públicos, os teatros e os estádios, que
podiam servir perfeitamente de cenário para tais espectáculos. Através dos elementos
facultados pelas escavações arqueológicas, observa-se, ao longo dos séculos (e especialmente
durante a segunda metade do século II d. C.), como cada vez mais teatros foram convertidos
em recintos onde se podiam exibir animais selvagens sem que se registasse perigo para os
espectadores; o espaço originalmente ocupado pela orchestra era, amiúde, preenchido com
água e utilizado para as naumachiae e outros espectáculos aquáticos 959. No entanto, as
pesquisas recentes têm trazido à tona vestígios de anfiteatros, pelo que na pars orientalis
existiriam em maior número do que inicialmente se supôs. Reservamos o próximo capítulo ao
caso específico do Oriente helénico, reservámos o próximo capítulo para um estudo mais
atento e aprofundado, onde também incluimos diversos comentários sobre o próprio termo
«romanização».

956 Vida de Apolónio de Tyana, 4. 22.

957 Aspecto que pormenorizamos no capítulo seguinte.

958 Estrabão, 14, 639; 17, 795; OGIS 533; Boeckh CIG 3935.

959 A este respeito, veja-se J.-C. Golvin e C. Landes, Amphitéâtres et gladiateurs, 1990.

363
Para além da aculturação directa através da implantação de colónias, dois dos factores mais
relevantes na «romanização» das províncias foram o culto imperial e o exército. Em Roma, e
nas comunidades romanas em geral, fosse em Itália ou nas províncias, os munera começaram
por significar assuntos «privados». Augusto e os seus sucessores apoiaram-nos
expressavamente, a partir da altura em que a distinção entre a esfera pública e a privada
cessou de ter qualquer aplicabilidade real para os Césares. Fora da península itálica, os munera
passaram a ser oferecidos não apenas por indivíduos privados no seio de localidades
provinciais, como também ao nível de províncias inteiras, por sacerdotes do culto imperial.
Assim, os espectáculos tornaram-se, igualmente, uma responsabilidade e um encargo para os
governadores provinciais, os quais eram os únicos a ter o direito de condenar criminosos à
pena capital. O tema da associação entre jogos gladiatórios e o culto divinizante prestado aos
imperadores já foi circunstanciadamente estudado no âmbito de diversas províncias, tanto do
Ocidente como do Oriente 960.

As capitais provinciais do Ocidente em que se celebrava o culto imperial possuíam anfiteatros


cujo tamanho era substancialmente maior do que os das simples colónias ou municipalidades:
apresentavam como elementos típicos dimensões exteriores de cerca de 140 por 120 m, e uma
arena com 70 por 40 m. O tamanho do anfiteatro descoberto em prospecções arqueológicas
no Guildhall, em Londres, bem como a sua forma final associada ao período em que Londinium
foi residência de imperadores (Caráusio, Alecto e Constâncio), consistiria em aproximadamente
130 por 110 m, provido de uma arena que deveria ter 70 por 50 m, revelando-se este edifício
similar ao de Augusta Treverorum (actual Trier) e maior que os de Lugdunum (Lyon), Cartago
ou Thysdrus (El Djem)961

IV.4. O exército romano e a gladiatura

O papel desempenhado pelo exército na difusão dos combates gladiatórios, embora menos
fácil de determinar, foi assaz significativo. Por causa das antigas menções aos lanistae e
doctores que estiveram ligados, episodicamente, à instrução militar dos legionários romanos,
partiu-se da premissa de que existiriam invariavelmente arenas situadas nas proximidades de
bases militares que funcionassem como locais de treino para as tropas. Nas cidades de Itália, a
partir do século I a. C., e mais tarde nas províncias ocidentais do Império, havia, em regra, um
campus para o adestramento marcial de mancebos no seio das organizações iuventus, o qual
normalmente se localizava extramuros962. Se bem que em algumas cidades (como Pompeia,
Corfinum e Narbo) estes recintos para treino ficassem muito próximas dos respectivos
anfiteatros, e de que se acharam provas concretas do envolvimento de lanistae profissionais na
instrução de técnicas de combate com armas aos grupos iuventus, tratava-se de instituições
separadas e não há evidências de que as arenas exercessem qualquer função análoga quando
eram construídas perto de fortificações militares.

960 S. R. F. Price, Rituals and Power: The Roman Imperial Cult in Asia Minor, Oxford, 1984; D. Fishwick, The Roman
Imperial Cult, I, Leiden, 1987.

961Mais detalhes em J.-C. Golvin, L'Amphitéâtre romain…, I, p. 284ss. Quanto aos resultados das escavações
efectuadas no Guildhall, em Londres, consultem-se os relatórios publicados em Britannia 19 (1988), pp. 461-462, e
20 (1989), p. 305, bem como o artigo de N. Bateman, «The London Amphitheater», Current Archaeology 137 (1994),
pp. 164-171.

962Vitrúvio, De Arch., 1, 7.1: Marti extra urbem sed ad campum. Também, H. Devijver e F. van Wonterghem, «Neue
Belege zum Campus der römischen Städte in Italien und im Westen», ZPE 60 (1985), pp. 147-158.

364
Nas províncias, o que realmente sucedia era que os legionários constituíam um dos principais
veículos para a introdução dos munera, primeiro porque eram cidadãos romanos e, depois,
porque queriam geralmente exibir, para si próprios ou para os outros, a sua identificação com a
cultura romana. Caso pretendessem assistir a combates de gladiadores, então teriam que ser
os próprios soldados romanos a arranjá-los à sua própria custa; de facto, as corporações de
lanistae não levariam os seus gladiadores para as regiões mais remotas e menos romanizadas
do Império, onde certamente não haveria (ou então existiriam poucos) editores que lhes
pagassem os custos.

Assim se explica a existência de testemunhos epigráficos de unidades castrenses, sob o


Principado, algumas das quais eram especializadas em capturar ursos para as venationes e, por
vezes, teriam eram grupos de gladiadores para o seu entretenimento: quanto a militares
ligados à captura de plantígrados, dispomos de uma inscrição do Baixo Reno, em que se faz
referência a um «URSARIUS LEG[ionis] XXX UL[pia] V[ictricis] S[everianae] A[lexandrinae]», e de
outra, procedente da região do Danúbio, onde se alude a um centurião da Legio I Minervia,
qualificado de ursarius, nela se dizendo que ele conseguira apanhar cinquenta ursos no espaço
de seis meses963; por seu turno, numa taça descoberta em Colchester (antiga Camuludonum,
Inglaterra), ornamentada com imagens gladiatórias, Faz-se menção um retiarius, «VALENTINVS
LEGIONIS XXX». A legio XXX estava acantonada em Xanten, no Reno; consequentemente, das
duas uma, ou levou-se a taça para Colchester ou o próprio gladiador acima mencionado 964. Nas
zonas mais periféricas do Império Romano, os anfiteatros permitiam que os legionários
romanos, longe de casa, pensassem que continuavam a fazer parte da comunidade romana. Os
Romanos já tinham plena noção da máxima de «um soldado aborrecido é um soldado
perigoso», daí que não cause estranheza que os comandantes se certificassem que os seus
soldados estivessem quase sempre ocupados, mesmo em tempos de paz. Para além dos
deveres especificamente castrenses, as tropas trabalhavam na construção e manutenção de
estradas, pontes e edifícios públicos. Mas também usufruíam de um entretenimento bem
típico em relação ao qual os soldados das zonas romanizadas estavam bem familiarizados – os
espectáculos de gladiadores.

O exército romano foi um dos principais veículos que levou a vários dos elementos
institucionais e culturais típicos da Urbs para as províncias imperiais, logo a partir do momento
em que nelas se estabelecia. As termas, os anfiteatros e, claro, os munera eram elementos
tipicamente romanos, algo que todos os habitantes no império conseguiam identificar. Apesar
de existirem diferentes origens étnicas no seio das legiões, essas estruturas nas cidades, perto
das quais eles haviam crescido faziam com que se sentissem plenamente romanos, mesmo nos
limites do imperium. Além do mais, considerava-se didáctico que os soldados assistissem às
pugnas gladiatórias nos anfiteatros: ao observarem os gladiadores a lutarem com bravura e
destemor, os militares ver-se-iam encorajados (Plínio-o-Moço, Panegyricum, 33). Um gladiador
exibia qualidades morais que também exigíveis a um bom soldado, atributos tradicionalmente
englobados no termo abrangente da virtus: força, disciplina, persistência, desprezo face à
morte, desejo de glória e louvor e vontade de vencer. As prospecções arqueológicas
confirmaram que muitos fortins e fortalezas de legionários possuíam anfiteatros nas suas
imediações. Recentes achados provaram, também, a sua existência junto de fortes guarnecidos
por tropas auxiliares, especialmente ao longo do limes. Na maior parte dos casos, os militares
terão sido, com toda a probabilidade, os responsáveis pela construção desses edifícios, como
queda confirmado por uma inscrição descoberta no anfiteatro em Caerleon (antiga Isca

963 S. Shadrake, The World of the Gladiator, p. 85.

964 CIL XIII.8639; CIL,VII.1335.3. Veja-se, a este respeito, a obra editada por R. W. Davies, que apresenta fontes
literárias e epigráficas que documentam a existência de uma forte conexão entre o exército e a gladiatura: Service in
the Roman Army, Edimburgo, 1989, p. 81ss, 256, n. 60.

365
Silurum, Inglaterra), onde outrora esteve aboletada a legio II Augusta. Nesta fonte epigráfica,
declara-se, orgulhosamente, que a coorte participou activamente na erecção do muro em
torno da arena 965.

Em certos casos, chegou até a haver dois anfiteatros, um militar, destinado à guarnição de uma
fortaleza de legionários, e outro para o assentamento civil que se localizava nas cercanias. Com
efeito, perto das instalações castrenses, situavam-se localidades com certa densidade
populacional, consistindo, amiúde, em importantes centros cívicos com o estatuto legal de
coloniae ou municipia, como aconteceu, por exemplo, com Carnuntum (Petronell/Bad Deutsch-
Altenburg), na actual Áustria, ou Aquincum, perto de Budapeste (Hungria). É muito possível
que as capitais da Germânia Inferior, Claudia Colonia Ara Agrippinensis (Colónia, na Alemanha)
e da Germânia Superior, Moguntiacum (Mainz/Mogúncia, Alemanha), ambas igualmente
relevantes centros militares, tivessem, pelo menos um anfiteatro. No entanto, até ao
momento, não se acharam quaisquer vestígios materiais. Apesar de tudo, dispomos de alguns
testemunhos que atestam a sua existência: a colecção do Römisch-Germanisches Museum de
Colónia contém numerosas lucernas decoradas por motivos gladiatórios, assim como a lápide
de um tal Aquilos, que terá sido, em princípio, lanista de um grupo de gladiadores 966. Neste
monumento funerário, esculpiu-se em relevo um combate entre um thraex e um murmillo. Em
Mainz, por seu turno, encontrou-se uma inscrição referente a um gladiador chamado Messor.
Na sua qualidade de capitais provinciais, tanto Claudia Colonia como Mogontiacum albergavam
grandes guarnições, mas elas também eram os centros culturais dessas regiões, pelo que
tinham o dever de facultar entretenimentos tipicamente romanos aos seus habitantes.

No Noroeste de Inglaterra, em Chester (antiga Deva Victrix), deparamos com um bom exemplo
de um anfiteatro pertencente a uma fortificação de legionários. Após a partida da IIª legião
Adiutrix, que durante largo tempo vários estudiosos acreditaram haver sido a que construíra tal
edifício, lá se estabeleceu a Legio XX Valeria Victrix, a qual efectivamente erigiu o primeiro
anfiteatro por volta de 95-96 d. C., datação que se confirmou pelo recente achado de uma
moeda romana. A estrutura consistia numa construção de madeira destinada a suportar as
bancadas de lugares sentados, possuindo um muro exterior de pedra, feito à base de blocos de
arenito, cascalho, mantendo-se a alvenaria coesa mediante o emprego de argila vermelha. Este
anfiteatro terá permanecido em funções durante uns trinta anos, vendo-se a seguir
abandonado. Em finais do século III d. C., o edifício foi reconstruído, talvez no contexto da
reconquista da Britânia. Com tal remodelação, o seu estilo arquitectónico passou a trair
afinidades mais fortes com os anfiteatros imperiais, mormente o Coliseu, só que, obviamente,
numa escala muito mais reduzida. Infelizmente, não restaram grandes vestígios do anfiteatro,
além de que os arqueológos só puderam escavar metade da área, uma vez que a outra se
encontra ocupada por edifícios históricos igualmente protegidos.

***

Um dos elementos típicos da atitude ambivalente dos Romanos em relação aos munera radica
na frequência com que certos moralistas tanto enfatizaram como exprimiram a sua repulsa ou
aversão quanto à tendência, por parte de homens livres, às vezes de elevado estatuto social, de
seguirem uma carreira enquanto gladiadores profissionais. Devemos encarar com precaução

965 Svenja Grosser, «For training and entertainment: Gladiators and military amphitheatres», Ancient Warfare, III.2
(April/May 2009), p. 39.

966 Ibidem, p. 39.

366
tais comentários desaprovadores e cabe não presumirmos que essas situações eram tão
correntes como várias fontes literárias antigas levam a crer. Nas narrativas históricas, também
se captam exemplos de pessoas de condição livre (especialmente se fossem senadores ou
membros da ordem equestre) que optaram por enveredar pela gladiatura, as quais se viram
assaz sublinhadas pela simples razão de que se constituíam casos invulgares.

O lugar do gladiador, bem à margem do mundo social romano, significava que, se o último
estivesse devidamente ordenado, jamais restaria espaço para estes casos existirem. Um
indivíduo que gozasse de estatuto na comunidade que desejasse combater como gladiador,
não por necessidade mas por prazer, encontrava-se abertamente a pôr em causa e a ameaçar
as distinções hierárquicas em que a sociedade romana se baseava, e a mostrar que ele estava
para além do alcance das leis, através das quais sucessivos imperadores tentaram codificar tais
distinções. Paradoxalmente, os que exerciam o póprio magno ofício imperial foram os que mais
tentados se sentiram em demonstrar que se achavam acima das leis aplicáveis aos elementos
da elite romana, daí vários deles chegaram a participar em jogos gladiatórios. Poucos
imperadores foram tão longe como Nero, que decidiu infringir as leis que proibiam os
senadores de aparecerem no palco teatral como actores, ou como Cómodo, que se exibiu
muitas vezes na arena como gladiador.

Desconhecemos qual a proporção numérica de homens livres que ingressava na gladiatura,


mas o certo é que os mesmos se viam assimilados às demais «categorias» de pessoas que se
exerciam o ofício de gladiadores: inimigos estrangeiros feitos cativos e criminosos condenados
de condição servil. Embora muitos dos prisioneiros de guerra fossem simplesmente vendidos
como escravos, executados ou, então, forçados a matarem-se entre si, alguns deles recebiam
claramente um treino específico num ludus romano, antes de serem lançados para lutar na
arena. Tal foi o que aconteceu com Espártaco e os seus colegas que se evadiram do ludus
pertencente a Lentulo Batiato, em Cápua. Plutarco, escrevendo no fim do século I d. C.,
revelou-se chocado pelo facto de esses homens terem sido enviados para aquela escola
gladiatória sem que estivessem a cumprir um castigo devido a crimes cometidos, mas apenas
por causa da «malvadez do homem que os comprou» 967. Aparentemente, o que Plutarco queria
dizer era que no seu tempo muitos dos escravos que se conduziam para os ludi haviam sido
punidos pelos seus amos. Isto talvez mostre uma diferença entre o tempo de Plutarco e o fim
da República, período em que a guerra se desenrolava em larga escala ao longo do
Mediterrâneo e as subsequentes catervas de prisioneiros obtidos nas diversas campanhas e
regiões conquistadas por Roma fizeram desses cativos a principal componente humana na
gladiatura.Lembremos, a propósito, que Espártaco foi capturado e depois vendido
provavelmente em Roma968.

Cícero dá a entender que se compravam gladiadores no catasta, ou seja, na plataforma dos


mercadores de escravos, o mesmo fazendo Tito Lívio 969. No entanto, estas alusões podem
reportar-se a grupos de gladiadores já treinados que um lanista venderia ou alugaria a alguém
que pretendesse organizar um munus (editor). Sabe-se que Ático (Atticus), um amigo de Cícero,
adquiriu uma «companhia» de gladiadores já formados enquanto parte de um investimento
financeiro em 56 a. C. (os gastos na compra desses homens seriam recuperados depois se
realizarem apenas dois munera970). Embora se afigure provável que tais indivíduos

967 Plutarco, Vida de Crasso, 8.1.

968 Apiano, Civilia 1.14.116

969 Tusculuanae Disputationes, 2.41; Idem, Pro Sestio, 134; Tito Lívio, Ab Urb. Cond. 28, 21.2.

970 Cícero, Ad Att. 4, 4a.2;8.2.

367
correspondessem a inimigos feitos prisioneiros, não temos maneira de apurar quanto tempo o
foram antes de se tornarem gladiadores.

A posição marginal destes cativos aos olhos dos Romanos era bastante clara. Os antagonistas
militares haviam sido inimigos dos Romanos por se recusarem a aceitar os benefícios que a sua
sujeição à ordem romana comportava. Os Romanos convenceram-se a si mesmos que ninguém
se poderia opor legitimamente à sua dominação: combater contra Roma equivalia a um acto
de rebeldia. Assim, estes insurrectos tinham perdido o direito a ocuparem um lugar no seio da
sociedade romana, ao auto-excluírem-se da comunidade dos povos civilizados, daí que
merecessem a morte. Todavia, através da sua clemência, os Romanos podiam conceder-lhes
uma nova vida, ao «salvá-los» (servare) e convertê-los em escravos (servi): independentemente
da etimologia autêntica da palavra em latim para designar o escravo, não resta a menor
incerteza de que alguns escritores romanos afirmaram explicitamente que um escravo era
assim chamado por haver sido «salvo» da morte que ele merecia 971. Isto aplicava-se tanto a
povos inteiros como a guerreiros a nível individual. Na Res gestae, Augusto vangloria-se nos
seguintes termos: «Quanto às nações que puderam seguramente ser perdoadas, eu decidi
salvar em vez de erradicar»972.

Mas se o inimigo se comportasse com uma barbaridade atroz ou demonstrasse ser demasiado
perigoso ou indómito, os Romanos possuíam todo o direito de não exercerem clemência. Três
séculos mais tarde, ao derrotar os Bructeri germânicos, o imperador Constantino ordenou que
aqueles cuja «barbárie e traição os tornava inúteis como escravos» fossem executados na
arena, o que possivelmente teve lugar em Treverorum (Trier) 973. Os rebeldes mereciam a
execução: esta podia assumir a forma da crucificação/crucifixio, como sucedeu aos seguidores
vencidos de Espártaco, ou na arena, haja em vista o massacre de dezenas de milhares de
prisioneiros de guerra judeus, após a conquista de Jerusalém, em espectáculos organizados em
diversas províncias por Vespasiano 974. Ao obrigá-los a lutar como gladiadores, os Romanos
ofereciam a possibilidade de eles recuperaram as suas vidas, caso evidenciassem uma
excepcional bravura. Ocasionalmente, colhe-se notícia de prisioneiros de guerra que
impressionaram de tal maneira o público romano pelo seu espírito combativo que foram
poupados e, até, lhes devolverem a liberdade, como foi o caso de alguns Bretões capturados
por Cláudio, durante a sua invasão e ocupação da Britânia meridional, em 43 d. C. 975

Uma vez que a sobrevivência física de um escravo era vista como um favor dispensado
inicialmente por alguém que resolvera deixá-lo viver (fosse o legionário que o podia ter morto
em combate ou o proprietário da sua mãe que, quando ele nascesse, tinha o direito de o
abandonar) e, posteriormente, beneficiando da dádiva conferida pelo paterfamilias de uma
casa; o facto de a esta pertencer proporcionava ao escravo tecto, comida e roupa. Mas os
donos romanos, se quisessem, podiam anular tal favor em qualquer altura, caso o escravo não
manifestasse regularmente a sua gratidão e obediência. Não havia quaisquer escrúpulos
morais em castigar escravos cujo comportamento não correspondesse às expectativas dos seus
amos. Estes, mediante várias medidas, conseguiam garantir que tais escravos nunca viessem a

971 Veja-se, por exemplo, Florentino, Digesta, 1, 5.2.

972 Res gestae, 3.2.

973 Panegyrici Latini 6.12.3;12.23.3.

974 Flávio Josefo, De Bello Iudaico, 6, 418; 7, 24.38.

975 Díon Cássio, Hist. rom. 60, 30.3.

368
ganhar a manumissão (ou seja, a alforria), mesmo depois de os primeiros terem falecidos. A
este respeito, encontram-se declarações amiúde exaradas em testamentos romanos 976.

Como o direito de infligir o castigo derivava do princípio de que o escravo devia a sua vida ao
dono, não existia qualquer dúvida de que a punição podia incluir a execução. Em momentos de
grande agitação civil, como aconteceu na rebelião encabeçada por Espártaco, aos comandantes
militares romanos cabia-lhes a tarefa de crucificar escravos que tivessem fugido dos seus amos;
mas se fosse possível localizar os proprietários legais dos escravos, seriam eles a punir os
últimos. Augusto, após a sua campanha contra Sexto Pompeio em 36 a.C., declarou: «Capturei
cerca de 30 000 escravos que haviam fugido dos seus donos e pegaram em armas contra a
República e trouxe-os de volta aos seus amos para serem castigados» 977.

A condenação à morte pela crucificação (crucifixio) ou arrojando os damnati para o meio de


feras selvagens, entendia-se como a sentença apropriada para gente com estatuto servil que
rejeitara as regras impostas pelos civilizados Romanos. Os malvados e revoltosos tinham agido
de tal forma que ficavam fora da sociedade. Alguns cristãos, também, destacaram-se como não
pertencentes às cidades deste mundo (apenas alguns, mais extremistas, renegados pelos
próprios bispos). Pessoas como estas tinham optado por negar a sua existência social, e a
comunidade reagiu em conformidade com isso. Repare-se no que disse Eusébio sobre os
cristãos martirizados na arena: «Vós [as autoridades perseguidoras] tratais-nos como se não
existissemos»978.

Havia outra sentença que um juíz podia proferir, a damnatio ad ludus gladiatorum (ou
simplesmente ad ludos): comparativamente às diversas formas padronizadas de execução, a
condenação de um escravo a ter que ingressar numa escola de gladiadores, entregue pelo seu
proprietário ao lanista, representava um castigo relativamente brando. Existia uma significativa
diferença entre condenar um criminoso às feras (ad bestias) ou às chamas (ad flammae), e a
um ludus. Os indivíduos considerados culpados por crimes e que foram sentenciados com a
damnatio ad ludos estavam, «socialmente mortos», mas que, apesar de tudo, tinham a
possibilidade de regressar à «vida»979.

A tardia Collatio Mosaicarum et Romanorum Legum, ao citar Ulpiano, estipulava que um


criminoso condenado ao ludus teria a autorização de não ficar obrigado a combater mais na
arena depois de cumpridos três anos, podendo obter a liberdade após um período de cinco
anos980. Naturalmente que isto só sucederia caso o gladiador lograsse sobreviver. Repare-se,
também, que noutras modalidades de castigo, tais como os trabalhos forçados em obras
públicas ou em minas, as perspectivas de sobrevivência eram muito reduzidas. Plínio-o-Moço
associou os condenados a estas actividades duríssimas aos que eram obrigados a treinar como
gladiadores, ao relatar a Trajano que muitos desses homens haviam evitado cumprir a pena à
qual tinham sido sentenciados, presumivelmente pelos governadores da Bitínia 981.

976Por exemplo, Testamentum Dasumii, linhas 80ss; cf. Gardner e T. Wiedemann, The Roman Household, Londres,
Routledge, 1991, nº 158.

977 Res gestae, 25.1.

978 Historia Ecclesiastica, 8.10= PG 20.765.

979 Este assunto da «morte social» foi objecto de um estudo aprofundado de O. Patterson, Slavery and Social
Death: A Comparative Study, Cambridge, Mass., Harvard University Press, 1982.

980 11.7.4. T. Mommsen, Strafrecht, p. 953ss.Cinco anos também correspondiam, aparentemente, a uma medida-
padrão de tempo aplicável noutros aspectos do Direito romano (por exemplo, o lustrum para o caso do
postliminium).

369
Se um damnatus lutasse na arena com inegável bravura, a comunidade podia ficar
impressionada, ao ponto de se mostrar disposta a devolver-lhe a «vida». Neste sentido, pois,
um combatente valente tinha a oportunidade de emergir dos mortos e voltar a integrar a
sociedade dos vivos. Isto não consistia numa dádiva do editor do munus, do magistrado ou,
mesmo, do imperador, mas significava algo que a sociedade, enquanto um todo, oferecia:
referimo-nos, claro está, ao povo romano presente num anfiteatro.

A damnatio ad ludos não figurava, assim, entre as modalidades de execução. Ao que parece,
todos os proprietários de escravos tinham esse direito até ao século I d. C.. Repare-se que o
efémero imperador Vitélio, enfurecido com o seu escravo predilecto, decidiu enviá-lo para um
ludus para o punir dessa maneira 982. As medidas legais promulgadas sob a égide de Augusto a
respeito da manumissão (Lex Aelia Sentia) especificavam que se os escravos tivessem sido
condenados ad ludum gladiatorum ou ad bestias, jamais poderiam adquirir a cidadania
romana a partir da altura em que se vissem alforriados; ora isto mostra que se esperava que
alguns deles sobrevivessem983.

Tal como em relação a outras formas de punição pública, os imperadores impuseram um


controlo cada vez mais apertado à medida que os anos foram passando. Os Regulamentos
atribuídos a Adriano pela História Augusta interditavam os donos de escravos de os
executarem e insistiam na tónica de que os últimos deviam ser condenados por juízes estatais,
além de que «Escravos, tanto masculinos como femininos, não podem ser vendidos a
proxenetas ou a lanistae, excepto que se tenha provado a sua razão concreta», o que
implicitamente alude à resolução das situações em tribunal 984.

Infelizmente, os textos legais preservados no Digesto e noutras parcelas do Corpus Iuris de


Justiniano quase não contêm referências à damnatio ad ludos. Mas há uma razão para a
supressão dessas menções na compilação de Triboniano: a partir de finais do século IV d. C. em
diante, a condenação ad ludos, à semelhança da crucificação, deixou de ser uma sentença
imposta pelo Estado. Também não sobreviveram leis sobre os lanistae, salvo casos referentes
aos acordos versando a venda ou o aluguer de um gladiador: se este morresse, o proprietário
recebia uma compensação/indemnização de 1000 denarii, mas se sobrevivesse ao combate,
apenas obteria 20 985.

Ao basearmo-nos nos textos jurídicos romanos que chegaram até nós (em que foram apagadas
todas as referências à damnatio ad ludos), é difícil averiguarmos para quem se destinava a
condenação ad ludos nos tempos anteriores a Constantino. Os escritores antigos associaram-na
a crimes como o homicídio, fogo posto e a roubos sacrílegos perpetrados em templos - «Treinei
como gladiador: passei o meu tempo entre sacrílegos, incendiários e assassinos» 986 -, se bem
que certas fontes legais assim como o poema de Marcial sobre a execução do bandido
Laureolus sugiram que esses crimes justificavam a pena de morte 987. Independentemente de

981 Plínio-o-Moço, Ep. 10.31: in opus damnati vel in ludum.

982 Suetónio, Divus Vitelius, 12

983 Gaio, Inst. 1, 13: qui ut ferro aut cum bestiis depugnarent traditi sint, inve ludum custodiamre coniecti fuerint.

984 Historia Augusta, Adriano, 187.7ss.

985 Gaio, Insti. 3, 146: texto que data provavelmente do século II d. C.

986Quintiliano, Declamationes, 9.21: in ludo fui – morabar inter sacrileges, incendiarios et homicidas.

987 Liber spectaculorum 7, 7ss.

370
estes criminosos condenados constituírem ou não a grande maioria dos gladiadores, o que eles
possuíam em comum com os gladiadores nascidos livres era o facto de não deverem existir.

Entre os que treinavam como gladiadores, como vimos, havia homens de condição livre, os
auctorati, que escolheram enveredar por um modus vivendi extremamente duro e perigoso, tal
como os escravos condenados. Embora os testemunhos epigráficos nada nos informem quanto
aos motivos que conduziam alguém a tornar-se gladiador, temos a plena certeza que um
cidadão que decidisse seguir tal ofício necessitava de prestar um juramento (não sendo, de
modo algum, um topos de ficção literária). Nos grafitos descobertos nas paredes dos edifícios
de Pompeia, observamos referências a indivíduos chamados Lucius Sempronius, Quintus
Petillius ou Lucius Fabios que eram gladiadores; os seus nomes indicam que correspondiam a
romanos de condição livre. Por seu turno, numa lista fragmentária da familia gladiatoria de C.
Salvius Capito, procedente de Venusia, dos 28 nomes citados pelo menos nove seriam de
homens livres988. No mundo grego, igualmente, os cidadãos romanos encontram-se
epigraficamente atestados na qualidade de gladiadores: por exemplo, um homem sepultado
em Patras, no século II ou III d. C., havia combatido na arena como thraex e exibia os típicos
três nomes (tria nomina) de um cidadão romano989.

Nas fontes literárias, como vimos, enfatiza-se a ideia da completa degradação social do
gladiador profissional; este escolhera, de livre vontade, fazer parte de grupos que balizavam os
próprios limites da sociedade decente romana. Os moralistas e os satiristas antigos contam-nos
que ele tinha de proferir um juramento, através do qual declarava aceitar formas de castigo
que as leis, de outra forma, apenas permitiam que fossem infligidas a escravos. Séneca, por
exemplo, estabelece um paralelo entre o poder de compromisso da observância dos
ensinamentos morais estóicos e o do juramento prestado pelo gladiador:

«As palavras deste bem nobre juramento são as mesmas do mais desonroso dos mesmos: ser queimado
[marcado com ferro em brasa], acorrentado e morto pelo ferro. Impõe-se uma condição de
compromisso [auctoramentum/contrato] àqueles que alugam as suas mãos para a arena e que
consomem comida e bebida que depois terão de retribuir em sangue, devendo eles sofrer tais coisas
mesmo que não o desejem»990.

De facto, parece ter havido uma fórmula-padrão no conjunto de palavras ditas no juramento
pelos gladiadores991. No Satyricon (obra quase coeva das cartas de Séneca), Petrónio descreve
como os seus anti-heróis Encólpio e Giton esperavam passar despercebidos ao disfarçarem-se
de gladiadores: «Sendo assim – disse Eumolpo – porque não montar imediatamente a nossa
comédia? Fazei de mim o vosso senhor, se o negócio vos convier. Ninguém quis recusar um
estratagema que não nos custava nada. Por isso, para ter a certeza de que todos manteríamos
a ficção, jurámos verbalmente o sacramento de Eumolpo: suportaríamos o fogo, as grilhetas, a
morte pelo ferro e tudo o que Eumolpo ordenasse. Como gladiadores contratados [legitimi],
consagrámo-nos religiosamente de corpo e alma ao nosso senhor» 992.

988ILS 5083/5083a. Em contrapartida, os 32 nomes que figuram numa lista de membros de um collegium (uma
espécie de confraria) de gladiadores imperiais, que data de 177 d. C., todos correspondem a homens de condição
servil: ILS 5084.

989 AE 1985.777: P. Folius Potitus Thraex.

990 Séneca, Epistulae, 37.1ss.: eadem honestissimi huius et ilius turpissimi auctoramenti verba sunt: uri, vinciri,
ferroque necari. Ab illis qui manus harenae locant et deunt ac bibunt quae per sanguinem reddant cavetur ut ista vel
invit patiantur.

991 Mais à frente, abordamos o auctoramentum sob outra perspectiva.

371
Que os tribunos da plebe (que continuaram, no começo do Principado augustano, a ter a
função residual de proteger os cidadãos contra abusos cometidos pelo poder) exerceriam
algum tipo de controlo formal sobre a fraseologia do dito juramento ou contrato, é algo que
queda sugerido pelo comentário de Juvenal (no início do século II d. C.), segundo o qual «se
assentará por extenso as condições e as palavras imperiosas do lanista sem nenhum tribuno
colocar quaisquer objecções»993.

Os homens nascidos livres – em especial os que eram cidadãos romanos (ingenui) – que
decidissem tornar-se gladiadores abandonavam os privilégios e a protecção próprios do seu
estatuto social. Revelam-se obscuros os motivos por que tal acontecia. As fontes antigas
apresentam várias sugestões para esse facto, algumas mais retoricamente coloridas do que
outras. Plínio-o-Velho lamenta-se que os mancebos mais adequados para o serviço militar se
viam subtraídos a serem convocados pelo exército, passando a ficar submetidos ao treino
gladiatório, e não vez à instrução castrense. Por seu lado, Séneca, numa alusão a alguns jovens
que preferiam arriscar as suas vidas durante alguns anos como gladiadores, em vez de servirem
20 ou 25 anos enquanto legionários, aboletados em províncias distantes do império, pode não
se afigurar tão inverosímil como parece, mas importa lembrar que o escritor pretendia
sublinhar nessa passagem a seriedade da virtus militar, contrastando-a com a degradação
moral dos gladiadores994.

A pobreza é um dos motivos referidos por alguns autores. Uma vez mais, o contexto literário
assume frequentemente um carácter retórico, utilizando-se o caso concreto dos gladiadores
apenas porque estes transmitiam melhor a noção da degradação que a indigência podia levar
um homem livre a enveredar pelo ofício de combatente da arena. Num dos exercícios de
retórica atribuídos a Quintiliano, discorre sobre alguém que prestou o juramento de gladiador
com o objectivo de ganhar dinheiro para oferecer ao seu pai um funeral minimamente
apropriado995. Este tópico não aparece só no mundo latino: o satirista siro-grego Luciano conta
a história de um cita chamado Sisinnes que se voluntariou para lutar como gladiador em
Amástris, junto ao Mar Negro, a fim de conseguir obter os 10 000 dracmas exigidos para
resgatar um amigo que estava cativo996. Além disso, a ideia de que a pobreza obrigava os
homens livres a venderem-se aos ricos, ao combaterem como gladiadores, está bem presente
nas polémicas cristãs contra a cultura greco-romana. No século II d.C., Taciano reporta-se a
«homens forçados a venderem-se para serem mortos devido à sua falta de recursos; o pobre
vende-se e o rico compra-o para o converter em assassino; assim, o que tem fome mata para
ter alguma coisa, ao passo que o rico compra gladiadores de maneira a ter algumas mortes
[nos espectáculos]»997.

O principal motivo atribuído nas fontes literárias antigas àqueles homens livres, de condição
social elevada, para escolherem tornar-se gladiadores tende a ser mais de ordem moral do que

992 Satyricon, 117.5: in verba Eumolpi sacramentum iuravimus: uri vinciri verberari ferroque necari, et quidquid
aliud Eumolpus iussisset. Tanquam legitimi gladiatores domino corpora animosque religiossissime addicimus. Cerca
de oitenta anos antes, Horácio empregou praticamente as mesmas palavras: cf. Saturae, 2, 7.58: quid refert, uri
virgis, ferroque necari/ auctoratus eas […].

993 11,8: nec prohibente tribuno [em relação a cidadãos] scripturus leges et regia verba lanistae.

994 Séneca, Controversiae, 10, 4.18.

995 Quintilano, Declamationes, 302: auctoratus ob sepeliendum patrem.

996Luciano, Toxaris, 58. Plutarco (Moralia, 10996) também sugere que um gladiador gozaria de liberdade para se
casar e ser dono de escravos.

997 Taciano, Adversus Graecos, 23.

372
económica: tinham uma vontade tremenda de combater. No reinado de Tibério, quando ficou
claro que o expansionismo militar romano estava então a abeirar-se do fim, a ideia de que os
indivíduos que possuíssem um gosto inato pela porfia optavam por ser gladiadores, de forma a
poderem encontrar inimigos para lutar, mesmo em tempos de paz, passou a constituir um
tópico literário relativamente comum 34 wied 998. Bem mais tarde, os autores cristãos, que se
insurgiram e criticaram fortemente a cultura romana, repegaram nesse assunto: para
Tertuliano, o facto de um desejo irrefreável pelo combate conduzir os jovens ociosos a
converterem-se em gladiadores era, per se, um indicador da bancarrota moral da elite romana
35 wie999. No entanto, passagens moralizantes como essas não servem como provas de que a
gladiatura enquanto tal, funcionasse como uma espécie de substituição para os actos
agressivos nos campos de batalha.

Ressalvemos também que nem todos os homens livres que tivessem algum treino gladiatório
devem ser, logicamente, categorizados como combatentes profissionais da arena: alguns
pretendiam apenas adquirir certa destreza no manuseamento das armas, ao passo que outros,
pertencentes a famílias abastadas, se compraziam em exercitar-se ao jeito de um hobby. Em
ambos os grupos estiveram imperadores. Há inscrições testemunhando a presença de lanistae
nas organizações juvenis paramilitares chamadas iuventus. Aparentemente, os rapazes que as
compunham pertenciam, em regra, às famílias mais abastadas das cidades itálicas, e
participavam na festividade anual dos Iuvenalia, em duelos (mas providos de armas
embotadas/armae lusorii), a fim de exibirem a sua habilidade no uso das armas 36 wie 1000.

A associação de interesses gladiatórios aos imperadores levanta uma série de questões que
aqui não exploraremos. Importa-nos mais referir que nas ocasiões em que fontes hostis estão
simplesmente a qualificar negativamente um imperador que foi mal sucedido ou – aos olhos da
elite senatorial, que criou a tradição histórica – impopular, acusam-no de haver sido um
gladiador. A ilustrar este facto, está o caso de Macrino, que se viu rotulado não apenas de
gladiador, como também de prostituto (prostibulus) 37 wie 1001. Cerca de um quarto de século
antes, o acto de Cómodo tomar posse do ofício consular em 193 d.C., vestido como um
gladiador, foi encarado como tendo conduzido ao assassinato do imperador. 38 wied 1002.

A este respeito, salientemos um ponto relevante: os imperadores, à semelhança dos


gladiadores, representavam, em polos antitéticos, os limites da existência social. Tal como
Hércules, Cómodo desejava desempenhar o papel divino na Terra, de maneira a poder ocupar
um lugar entre os deuses. Como acontecera na narrativa mitológica com Hércules, ele foi
publicamente apodado de louco mas, naturalmente, já após a sua morte. Os motivos que
levaram Calígula a aparecer como gladiador (só em algumas alturas), aproximadamente século
e meio antes, podem ter sido os mesmos de outros membros da elite romana. Ele comprazia-
se em lutar como thraex, mas saliente-se que não lhe foi permitido receber qualquer tipo de
instrução militar sob a égide do seu antecessor, Tibério 39 wie 1003.

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De Tito conta-se que, ainda rapaz teria participado num combate simulado, equipado com
armamento pesado, por ocasião da Iuvenalia (na região de onde a família do pai, Vespasiano,
era oriunda), cabendo-lhe por adversário um indivíduo chamado Alieno. Se este corresponde a
Cecina Alieno, o cônsul de 69 d. C. e um dos dois principais generais de Vitélio, então esse
episódio, certamente forjado, serviria em jeito de premonição simbólica da guerra civil entre
Vespasiano e Vitélio. Quanto ao irmão de Tito, Domiciano, conta-se que durante o seu reinado
houve um senador que fez uma exibição idêntica 40 wie 1004.

Na tardia História Augusta, afirma-se que vários imperadores, «bons» e «maus» praticaram a
gladiatura, se bem que os autores dessa obra, enquanto proponentes das práticas tradicionais
(pagãs) romanas, tivessem fortes razões para apoiar e valorizar a natureza genuinamente
romana de tais jogos. Contudo, as fontes utilizadas para a narração dos reinados dos
imperadores do século II d. C., parecem dignas de crédito, pelo que pode existir algum fundo
de verdade na atribuição dessas práticas a homens que haviam tido oportunidade para
aprenderem a combater antes de se tornarem comandantes supremos do exército romano. De
entre eles, incluem Adriano e Lúcio Vero (quando este se encontrou em Antioquia na década
de 160 d. C., a preparar-se para chefiar tropas romanas contra os Partos) 41 wie 1005. A opinião
transmitida na História Augusta, de que esse tipo de treino era inteiramente apropriado para
um jovem imperador, embora já não válida para alguém que se tornasse imperador com uma
idade avançada, como Didio Juliano. Numa fonte independente, somos informados de que
jovens príncipes, como Caracala e Geta, receberam aprendizagem tanto para conduzir carros
como para pelejar 42 wie 1006.

Relembremos que convém distinguir os gladiadores profissionais e daqueles homens que só


queriam adquirir alguma formação em armas. As razões pelas quais um indivíduo de alta
condição resolvia abraçar esta profissão não difeririam com certeza muito das que levaram
muitos a alistar-se na Legião Estrangeira. Para além da vontade e do prazer de lutar, a
necessidade de obter uma nova identidade seria decerto um dos motivos principais, de forma
a escapar de circunstâncias insustentáveis ou desonrosas, tanto a nível pessoal como em
termos financeiros. Díon Cássio sugere, a propósito, que dos 26 elementos da ordem equestre
que haviam sido formalmente condenados pelo Senado a combaterem na arena sob a égide de
Calígula, «alguns tinham esbanjado os seus bens, e outros lutando como gladiadores» 43 wie
1007
.

Para aqueles que tinham sido criados e educados para serem homens ricos, pouco havia que
pudessem ou soubessem fazer para ganhar o seu sustento no mundo antigo, caso
experimentassem o infortúnio de perder os seus bens, eventualmente num processo legal mal
sucedido ou em resultado de extravagâncias ou desvarios que deitaram tudo a perder. Alguns
tornaram-se centuriões, outros mestres-escola. Alguns, durante o século III d. C., como o
famoso grammaticus de Berytus, Marco Probo ou o anterior Pertinax, conseguiram ascender
ao trono imperial. A profissão gladiatória era outra das vias que poderiam seguir. Além disto,
para um elemento da ordem equestre caído em desgraça, desclassificado, restava-lhe ainda de
enveredar pelo crime, à semelhança do que aconteceu muitos séculos mais tarde com os
salteadores de estradas da Europa Moderna, que passariam a ser objecto de idênticos
sentimentos de fascínio ou de repulsa aos nutridos pelos gladiadores. Estes, da mesma forma

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1005

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1007

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que os bandidos, simbolizavam a rejeição de um modus vivendi normal, dentro da lei e
civilizado. Se, por um lado, os salteadores operavam longe, em geral nas margens geográficas
da sociedade, os gladiadores, como os mestre-escola socialmente degradados), por outro,
apareciam bem à vista do público, forçados a subsistir graças à demonstração das suas proezas
nos combates e nas artes liberais, respectivamente: talentos que habitualmente em nada se
adequariam a um cidadão romano de elevado estatuto social.

375
CAPÍTULO VI - A gladiatura na pars Orientalis: exemplo de
«romanização»? Constantes e linhas de força sobre os espectáculos
gladiatórios no mundo grego e as suas diferenças face ao modelo
romano

Nos últimos anos, o desenvolvimento cultural do mundo grego sob a dominação romana
gerou um redobrado e vivo interesse entre arqueológos, historiadores e filólogos. Conferiu-se
muita atenção sobre as mudanças que se operaram na cultura material, a persistência da
identidade «grega» e as atitudes dos escritores helenos em relação ao Império romano. Os
académicos buscaram avaliar a amplitude e a intensidade da influência romana sobre a cultura
grega de maneiras diferentes, mas, quanto ao tema deste capítulo, parece haver um consenso
a dois níveis: primeiro, os estudiosos concordam que as províncias orientais foram menos
afectadas pelo Império romano do que as da pars Occidentalis - por exemplo, na Germânia e
na Britânia, a ocupação romana comportou novos padrões urbanos, aquedutos, teatros, etc.,
ao passo que a polis grega não sofreu uma metamorfose profunda desde os tempos
helenísticos até aos romanos; segundo, aceita-se unanimemente que os jogos gladiatórios
foram um dos poucos elementos da cultura romana que os Gregos adoptaram 1008.

Porém, a communis opinio nem sempre defendeu esta visão. Os eruditos de Oitocentos e de
princípios do século passado dificilmente admitiram o fenómeno da difusão dos munera
gladiatórios no mundo grego, haja em vista Ludwig Friedländer, que entendeu que tais
espectáculos não constituiram um aspecto comum da vida da polis grega nos tempos romanos,
já que se restringiam a cidades como Corinto («…pois Corinto era não grega no seu carácter e
um rico porto com uma população largamente corrompida») e a algumas regiões da Ásia
Menor, «com a sua população mista semi-asiática») 1009. Isto significou uma noção típica dos
académicos filo-helénicos, que não quiseram acreditar que os Gregos pudessem apreciar um
género de espectáculo tão cruel como os combates gladiatórios.

Mas com Louis Robert operou-se uma verdadeira reviravolta: na sua monografia Les
gladiateurs dans l’Orient grec e numa série de artigos subsequentes, este autor reuniu,
1008 De acordo com a opinião influente de G. W. Bowersock (Augustus and the Greek World, Oxford, Clarendon
Press, 1965, p. 72), o mundo grego não teria sido romanizado de forma alguma. No entanto, os estudos mais
recentes estimaram que o impacto cultural romano foi maior do que antes se supunha (M. C. Hoff e S. I. Rotroff
(eds.), The Romanization of Athens, Oxford, Oxbow Books, 1997). A respeito dos jogos gladiatórios, consultem-se: P.
A. Brunt, «The Romanization of the Local Ruling Elites in the Roman Empire», in D. M. Pippidi (ed.), Assimilation et
résistance à la culture gréco-romaine dans le monde ancien, Bucareste/Paris, Les Belles Lettres, 1976, p. 162: «…and
although their love of gladiatorial games and beast-hunts found too ready a reception among Greeks, in general
what was specifically Latin in the common civilization of the empire made little impact to the east»; F. Millar, The
Roman Near East. 31 BC-AD 337, Cambridge/MA, Harvard University Press, 1993, p. 116: «Gladiatorial combats and
wild-beast hunts represented some of the relatively few Roman imports into the popular culture of the Greek East»;
veja-se, ainda, G. Woolf, «Becoming Roman, Staying Greek: Culture, Identity and the Civilizing Process in the Roman
East», PCDPhS 40 (1994), pp. 116-143.

1009 Cf. Roman Life…, pp. 84-85.

376
examinou e comentou centenas de inscrições gladiatórias do Oriente grego; ademais, ele
provou, irrefutavelmente, que muitas representações plásticas de homens armados não
figuravam soldados, como até aí se pensara, mas gladiadores. Ora, perante o aparatoso corpus
de fontes epigráficas e iconográficas compilado e divulgado por L. Robert, ninguém podia mais
duvidar que as pugnas gladiatórias foram eventos populares em todas as províncias orientais,
especialmente nos centros da cultura da polis helenística, como Mileto, Esmirna e Pérgamo 1010.

Nos últimos decénios, aumentou em grande escala a descoberta de elementos arqueológicos


e epigráficos: géneros relativamente negligenciados por Robert, como mosaicos, lucernas,
peças de terra sigillata e moedas, forneceram mais testemunhos confirmando a popularidade
dos jogos gladiatórios entre os Gregos e, até o número de anfiteatros orientais (durante longo
tempo considerados uma raridade) também subiu consideravelmente; o mais recente achado
ocorreu em Sófia/Serdica, na Bulgária 1011. Além disso, a quantidade de inscrições quase
triplicou desde o período em que L. Robert efectuou as suas pesquisas, assistindo-se a um
ritmo frenético de compilação e publicação de uma série de dados epigráficos, tanto de
cidades como de regiões. Para esta matéria, o maior contributo foi o de Michael J. Carter, que,
na sua tese de doutoramento (1999) examinou a organização dos jogos e o estatuto social dos
gladiadores no Oriente, assim como também apresentou um catálogo actualizado das
inscrições 1012. Mais recentemente, Christian Mann publicou um estudo também muito rigoroso
e documentado, actualizando o catálogo de L. Robert, ao basear-se num corpus de 198
gladiadores conhecidos pelos seus monumentos funerários 1013.

1010 L. Robert, Les gladiateurs dans l’Orient grec; IDEM, «Monuments des gladiateurs dans l’Orient grec»,
Hellenica 3 (1946), 112-150; IDEM, «Monuments des gladiateurs dans l’Orient grec», Hellenica 5 (1948), pp. 77-99;
Idem, «Monuments des gladiateurs dans l’Orient grec», Hellenica 7 (1949), pp. 126-151; IDEM, «Monuments des
gladiateurs dans l’Orient grec», Hellenica 8 (1950), pp. 39-72. Mais tarde, Robert tencionou escrever uma nova
monografia sobre o tópico mas não arranjou tempo para se abalançar a tal tarefa. Cf. M. Carter, The Presentation of
Gladiatorial Spectacles in the Greek East: Roman Culture and Greek Identity, tese de doutoramento, McMaster
University (Canadá), 1999, pp. 2-3.

1011 S. Brown, «Death as Decoration: Scenes from the Arena on Roman Domestic Mosaics», in A. Richlin (ed.),
Pornography and Representation in Greece and Rome, Nova Iorque, Oxford University Press, 1991, pp. 180-211;
moedas – J. Nollé, «Kaiserliche Privilegien für Gladiatorenmunera und Tierhetzen. Unbekannte und ungedeutete
Zeugnisse auf städtischen Münzen des griechischen Ostens», ZNG 42/43 (1992/1993), pp. 49-82; jarro de vidro -

1012M. Carter, The Presentation of Gladiatorial Spectacles…; IDEM, «A Doctor Secutorum and the Retiarius
Draukos from Corinth», ZPE 126 (1999), pp. 262-268; IDEM, «The Roman Spectacles of Antiochus IV Epiphanes at
Daphne, 166 bc», Nikephoros 14 (2001), pp. 45-62; IDEM, «Artemidorus and the Arbelas Gladiator», ZPE 134 (2001),
pp. 109-115; IDEM, «Gladiatorial Ranking and the SC de pretiis gladiatorum minuendis», Phoenix 57 (2003), pp. 83-
114; IDEM, «Archiereis and Asiarchs: a Gladiatorial Perspective», GRBS 44 (2004), pp. 41-68; IDEM, «Gladiatorial
Combat with ‘Sharp’ Weapons», ZPE 155 (2006), pp. 161-175. Outros académicos publicaram colectâneas de
inscrições e monumentos gladiatórios respeitantes a Mileto (W. Günther, «Gladiatorendenkmäler aus Milet», MDAI
(I) 35, 1985, pp. 123-138), Hierápolis/Frígia (T. Ritti e S. Ylmaz, Gladiatori e ‘venationes’ a Hierapolis di Frigia…, pp.
439-542), Mylasa (J. e F. Rumscheid, «Gladiatoren in Mylasa…», pp. pp. 115-136), Éfeso, F. Grossschmit, Gladiatoren
in Ephesos: Tod am Nachmittag, Viena, 2002), Patras (A. Rizakis, «Munera gladiatoria à Patras», BCH 108, 1984, pp.
533-542; IDEM, «Munera gladiatoria à Patras II», ZPE 82, 1990, pp. 201-208; I. A. Papastolou, «Monuments de
gladiateurs à Patras», BCH 113, 1989, pp. 351-401), Egipto (F. KAISER, « La gladiature en Égypte», REA 3-4, 2000, pp.
459-478), Afrodísias (C. Roueché, Performers and Partisans at Aphrosisias in the Roman and Late Roman Periods: A
Study Based on Inscriptions from the Current Excavations at Aphrodisias in Caria, Londres, Society for the Promotion
of Roman Studies, 1993, pp. 61-80) e aos Balcãs (E. Bouley, Jeux romains dans les provinces balkano-danubiennes,
Besançon, Presses universitaires franc-comtoises, 2002). Sobre os gladiadores no Oriente, consulte-se também M.
Golden, Greek Sport and Social Status, Austin/TX, University of Texas Press (cf. «Chaper 3: Greek Games and
Gladiators»)

377
O étimo «romanização» veio a gerar múltiplos debates.Numerosos arqueólogos e historiadores
ingleses que estudaram o desenvolvimento da Britânia romana baniram por completo tal
termo. Alguns argumentaram que «romanização» significava um vocábulo contaminado por
ideias colonialistas, além de implicar uma noção inadequada de como efectivamente se
desenrolou a interacção entre os Romanos e os «outros». O conceito de «romanização»,
preconizado por T. Mommsen e Haverfield viu-se atacado em todas as suas vertentes,
rejeitando muitos estudiosos a imagem dos Romanos a propagarem deliberadamente as
bênçãos da civilização e a elevar os povos indígenas a um padrão de vida superior. Esta visão
não só banalizou a violência que os Romanos empregaram para estabelecerem o seu império,
como igualmente distorceu o processo em quatro pontos básicos; citemos C. Mann:

«(1) Reduziu processos complexos que ocorreram com a participação de muitos grupos a uma
mera polarização do Romano versus Auctótones, excluindo a interacção entre Gauleses,
Celtiberos, Belgas, etc; (2) sobrestimou a importância do sistema governativo romano e
subestimou o papel desempenhado pelos povos conquistados na transferência da cultura
romana; (3) simplificou excessivamente a interacção cultural, confinando-a a um processo
unidireccional, sem ter em conta que os próprios Romanos também foram influenciados pelas
culturas provinciais; (4) concentrou a sua atenção nas elites, não valorizando os estratos mais
baixos da população» 1014.

Na década de 1990, a maioria dos académicos compartilhou a ideia de que não havia maneira
de curar o termo «romanização» de todas estas deficiências, mas, volvido algum tempo, tanto
a palavra como o conceito regressaram: isto deveu-se parcialmente ao facto de os críticos da
«romanização» não terem logrado criar uma noção apropriada para descrever as mudanças
culturais nas províncias romanas; é certo que se propuseram várias sugestões («creolização»,
«bricolage», «identidade», «sincretismo», «resistência», «globalização»), mas nenhuma das
alternativas ganhou plena aceitação. Outra razão para o recrudescimento da popularidade da
palavra «romanização» teve a ver com o despojamento de muito do seu sentido imperialista,
passando a utilizar-se de um modo que já não reduzia a importância dos povos indígenas ou as
não elites. Importa ainda salientar que um elaborado artigo de Géza Alfödy e uma secção de
cem páginas nos Annales concorreram decisivamente para marcar o território para futuras
investigações sobre a «romanização» 1015.

1013 “Um Keinen Kranz, um das Leben Kämpfen wir!”. Gladiatoren im Osten des römischen Reiches und die Frage
der Romanisierung, Berlim, 2011: esta publicação destinou-se, senão a substituir a monografia «clássica» antiga (e,
em vários aspectos já datada) de L. Robert, pelo menos, a servir-lhe de complemento, em especial ao encerrar uma
discussão aprofundada do conceito de «romanização» e da sua relação com a difusão da gladiatura no Oriente
grego.

1014C. Mann, «Gladiators in the Greek East: A Case Study in Romanization», in Z. Papakonstantinou (ed.), Sport in
the Cultures of the Ancient World, Londres Nova Iorque, pp. 125-126. Para um aprofundamento da matéria, vejam-
se:-se R. Syme, «Rome and the Nations», in Roman Papers IV, Oxford, Clarendon Ptress, 1988, p. 64: «The term
‘Romanization’... is ugly and vulgar, worse than that, anachronistic and misleading. “Romanization” implies the
execution of a deliberate policy. That is to misconceive the behaviour of Rome, whether republican or imperial».
Também, J. Webster, «Creolizing the Roman Provinces», AJA 105 (2001), p. 209: «’Romanization is a simplistic ansd
outmoded model of provincial cultural change». Para uma crítica pormenorizada tanto do termo como do conceito,
cf. P. Freeman, «’Romanization? And the Roman Material Culture», JRA 6 (1993), pp. 438-445; R. Hingley, Globalizing
Roman Culture: Unity, Diversity and Empire, Londres/Nova Iorque, Routledge, 2005. Sobre as origens e
desenvolvimento do conceito «Romanização», consultem-se: R. Hingley, , «The’ Legacy’ Of Rome: The Rise, Decline
and Fall of the Theory of Romanization», in J. Webster e N. Cooper (eds.), Roman Imperialism: Post-Colonial
Perspectives, Leicester, School of Archaeological Studies, 1996, pp. 35-48; U. Rothe, «Die Anfänge der
Romanisierungsforschung», in G. Schörner (ed.), Romanisierung-Romanization: Theoretische Modelle und praktische
Fallbeispiele, Oxford, Archaeopress, 2005, pp. 1-14.

378
Consequentemente, o debate acerca da romanização (doravante sem aspas) acabou por
resultar em profícuos esclarecimentos, mas o foco na terminologia, como referiu S. E. Alcock,
frequentemente obstou a «outras maneiras mais frescas de se falar sobre o que acontece com
as pessoas quando estas se envolvem em várias formas de interacção imperial e a respeito das
repercussões do império»1016.

No presente capítulo, tentamos oferecer uma visão renovada, tanto quanto possível, sobre um
«produto» específico da cultura romana e a sua difusão entre os Gregos. Os espectáculos
gladiatórios são inequivocamente peculiares – não se detectou qualquer modalidade idêntica
de eventos públicos na cultura helénica ou noutras. A peculiariedade não se define pelo perigo
iminente da morte para os combatentes, uma vez que este facto se observa em muitos mais
géneros de «desportos» como, por exemplo, o duelo nos tempos modernos. O que tornou este
espectáculo tão específico foi a existência de uma decisão sobre a vida e a morte depois da
porfia. Na maior parte dos casos, um combate terminava porque um dos gladiadores era ferido
ou ficava exausto. A decisão em relação ao vencido estava nas mãos dos espectadores e,
obviamente do editor; se ele tivesse demonstrado bravura e talento, poupava-se a sua vida; se,
pelo contrário, revelasse fraca motivação e cobardia, o veredicto seria a morte. No entanto,
como dissemos, a morte dos gladiadores não se afirmou tão sistemática como outrora se
pensou; o fenómeno só veio a brutalizar-se aproximadamente a partir do século III da nossa
era.

Retomemos o tema principal. Se a cultura não se perspectivar como um conglomerado de


objectos e performances, mas enquanto um «tecido de significados», a simples asserção de
que os jogos gladiatórios se propagaram pelo mundo grego não se traduz num contributo para
o estudo da romanização: é, em vez disso, um ponto de partida para um conjunto de
questões1017:

- De que formas o público grego percepcionava os espectáculos gladiatórios? Sabemos que


estes eram um produto específico da cultura romana, mas os espectadores constatariam e
discutiriam a sua origem romana? Recentemente surgiu um debate em torno do carácter
simbólico do anfiteatro – este era ou não um marco da identidade romana? Procuraremos
responder a esta questão, numa perspectiva abrangente sobre os eventos que se
desenrolavam neste tipo de edifício 1018;

1015Para a «creolização», J. Webster, «Creolizing the Roman Provinces…», pp. 209-225: para «bricolage», cf. N.
Terrenato, «The Romanization of Italy: Global Acculturation or Cultural Bricolage?», in C. Forcey, J. Hawthorne e R.
Witcher (eds.), TRAC 97: Proceedings of the Seventh Annual Theoretical Roman Archaeology Conference, Oxford,
Oxbow Books, 1998, pp. 26-27: para «identidade», cf. D. J. Mattingly, «Being Roman: Expressing Identity in a
Provincial Setting», JRA 17 (2004), pp. 5-25; para «resistência», cf. M. Bénabou, La résistance africaine à la
romanisation, Paris, F. Maspero, 1976; R. Hingley, «Resistence and Domination: Social Change in Roman Britain», in
D. J. Mattingly (ed.), Dialogues in Roman Imperialism, Portsmouth, 1997, pp. 87-100. Para uma breve discussão do
desenvolvimento destas noções, bem como das suas vantagens e desvantagens, veja-se G. Schörner (ed.),
Romanisierung-Romanization…. Para a defesa da «Romanização», G. Alföldy, «Die Romanisation – Grundbegriff oder
Fehlbegriff? Überlegungen zum gegenwärtingen Stand der Erforschung von Integrationsprozessen im römischen
Weltreich», in Z. Visy (ed.), Limes XIX. Proceedings of the XIXth International Congress of Roman Frontier Studies,
Pécs, Universidade de Pécs, 2005, pp. 25-56; G. Schörner, «Einführung», in Romanisierung-Romanization…, pp. v-xvi;
consulte-se, igualmente, a secção dos Annales (Hss) 59 (2004), pp. 287-383, que encerra contributos de P. Le Roux, J-
B. Yon, I. Buchsenschutz e D. Rousset.

1016 Cf. «Vulgar Romanization and the Domination of Elites», in S. Keay e N. Terrenato (eds.), Italy and the West:
Comparative Issues in Romanization, Oxford, Oxbow Books, 2001, p. 227.

1017 Perguntas que foram sistematizadas por C. Mann, «Gladiators in the Greek East…», p. 126.

379
- Como foram, a nível organizativo, os jogos gladiatórios no Oriente? Os Gregos chegaram a
integrar os munera no seu conjunto de espectáculos, os agones?Entre os Helenos havia uma
antiga tradição de violentos desportos de combate, o pugilismo e o pankration, pelo que a
experiência de homens a arriscarem-se a sofrer ferimentos graves ou até a perecer não
constituiu um fenómeno inteiramente novo;

- Em Roma, os gladiadores possuíam um forte significado simbólico. Não obstante a


popularidade de algumas estrelas da arena, eles eram elementos marginais que permaneciam
na periferia da sociedade romana; eles enfrentavam a morte, mas se provassem ser detentores
da virtus aos olhos dos espectadores, podiam receber o indulto mesmo em caso de derrota; e,
se sobrevivessem a diversas pugnas, podiam ver-se libertados da actuação na arena (liberatio)
e ganharem até a cidadania romana. O significado dos munera apenas se etende tendo em
conta o seu contexto, incluindo, a par dos combates de gladiadores durante a tarde, as caçadas
de animais selvagens de manhã e, às vezes, a execução de criminosos no meridianum
spectaculum. O público experimentava uma sensação de vitória sobre a natureza feroz,
assistindo à aniquilação de homens que não podiam ser inseridos na sociedade romana e, por
último, contemplava indivíduos que lutavam na pista a fim de conseguirem integrar-se na
sociedade. A multidão, salientemos de novo, tinha influência sobre o destino reservado aos
gladiadores derrotados; o munerarius, que formalmente decidia e transmitia o veredicto,
reagia aos gritos e aos gestos dos espectadores. Seria importante saber se este significado
simbólico dos gladiadores se percepcionava juntamente com a própria instituição 1019.

Por causa da sua origem definitivamente não grega, a sua ampla difusão, bem como a
variedade e a quantidade de testemunhos, os jogos gladiatórios servem como um ilustrativo
case study para uma análise em profundidade da influência cultural romana no mundo grego.
O fulcro do interesse radica no próprio gladiador, que é justificado pela natureza das nossas
fontes. Ao contrário dos autores latinos, que recorreram aos jogos gladiatórios como tópico
muito corrente em múltiplos géneros, na literatura grega raramente se mencionam os
combatentes da arena. Por este motivo torna-se difícil de descortinar qual seria, ao certo, a
noção que as elites gregas teriam dessas porfias. Por outro lado, os documentos referentes à
«auto-apresentação» dos gladiadores do Oriente são bem mais ricas comparativamente com
os de Roma e das províncias ocidentais; em praticamente todas as regiões do império se

1018 Sobre as diferentes teorias sobre as origens dos jogos gladiatórios, remetemos para estudos já citados: G.
Ville, La gladiature…, p. 1-8; J. Mouratidis, «On the Origin of the Gladiatorial Games», Nikephoros 9 (1996), pp. 111-
134; K. Welch, The Roman Amphitheatre from its Origins to the Colosseum, Cambridge, Cambridge University Press,
2007, pp. 11-18. Não existem provas claras para jogos gladiatórios antes de principiarem em 264 a. C. em Roma, e os
Romanos viam nos munera o seu género peculiar de espectáculo. Quanto ao anfiteatro, consulte-se A. T. Fear
(«Status Symbol or Leisure Pursuit? Amphitheatres in the Roman World», Latomus 59, 2000, pp. 82-87), que
apresentou argumentos contra a ideia do carácter simbólico; na sua opinião, os anfiteatros foram construídos nas
províncias por motivos puramente práticos, dado que se tratava de edifícios que se adpatavam merlhor às
necessidades dos munera. Fear salientou que ninguém veria num estádio moderno de futebol um marco
emblemático da identidade britânica, e algo similar acontecia com os anfiteatros nas provincias. Pelo contrário, K.
Welch, no seu livro The Roman Amphitheatre, enfatizou o carácter romano do anfiteatro. Segundo esta autora, este
género de edifícios foram erigidos e entendidos enquanto homenagem à cultura romana, tanto para os próprios
Romanos, como para as populações provinciais.

1019 Sobre o carácter simbólico dos jogos gladiatórios, cf. E. Flaig, «An den Grenzen des Römerseins: Die Gladiatur
aus historisch-anthropologischer Sicht», in W. Eβbach (ed.), Wir/ihr/sie: Identität und Alterität in Theorie und
Methode, Würzburg, Ergon, 2000, pp. 215-230. T. Wiedemann formulou uma interpretação de cariz religioso (cf.
«Das Ende der römischen Gladiatorenspiele», Nikephoros 8, 1995, pp. 145-159), em que o gladiador representava
um símbolo da vitória sobre a morte; na época imperial, os jogos gladiatórios perderam a sua conexão com os
funerais. Para mais informes sobre as execuções: K. M. Coleman, «Fatal Charades: Roman Executions Staged as
Mythological Enactments», JRS 80 (1990), pp. 44-73.

380
preservaram lápides de gladiadores, mas se as inscrições funerárias dos gladiadores «latinos»
fornecem pouco mais do que informações técnicas, já as estelas dos seus colegas gregos não só
estão decoradas com representações dos combatentes, como também encerram elementos
escritos sobre os modos pelos quais os gladiadores viam a sua posição na sociedade e a sua
«profissão» heróica. Estes epitáfios assumem especial relevância, visto que derramam luz
sobre um grupo de inferior estatuto social.

No debate sobre a romanização, é um lugar-comum advertir para a necessidade de se conferir


acrescida atenção às não elites; mas se a intenção é o estudo da cultura e não apenas de
objectos, muitas pesquisas consagradas às não elites têm de lidar com a ausência de fontes
textuais. É questionável, por exemplo, que R. Hingley e J. Webster tenham buscado atingir os
seus objectivos científicos, extrapolando «actos de resistência» a partir da arquitectura das
habitações ou as crenças religiosas somente baseando-se em imagens de divindades 1020. Em
contrapartida, no que toca aos gladiadores, existe uma abundante acervo arqueológico e
epigráfico, o que oferece boas perspectivas para uma análise bem-sucedida do conjunto de
valores compartilhados por um grupo não pertencente à elite.

A difusão dos espectáculos gladiatórios no Oriente grego: a sua evolução cronológica,


variedades regionais e forças motrizes

No decurso da época republicana, os jogos gladiatórios raramente se realizaram no mundo


grego. Uma excepção foi o famoso espectáculo, já mencionado, de Antíoco IV em Daphne, em
166 a. C. Políbio, como mencionámos no capítulo I, num fragmento incluído na obra
Deipnosphistai de Ateneu, escreveu que os gladiadores fizeram parte das sumptuosas
festividades: 240 pares de monomachoi estiveram presentes numa grande procissão, e as
monomachiai e as caçadas sobressairam nos eventos oferecidos pelo monarca selêucida, que
assim buscou mostrar o seu poder, riqueza e generosidade. Tal passagem provocou bastantes
discussões: de acordo com L. M. Günther, os monomachoi não constavam do texto original
polibiano, sendo depois adicionados para acentuar a grandiosidade dos jogos de Antíoco, num
nível que os romanos pudessem compreender. P. F. Mittag, por seu turno, depositou mais
confiança no trecho de Ateneu, mas também não acreditou na inclusão de gladiadores: opinou
que os monomachoi que marcharam no cortejo não eram gladiadores mas soldados da elite.
Porém, isto deixa em aberto por que razão os primeiros surgem numerados aos pares. Outro
problema reside na conexão entre os monomachoi na procissão e as monomachiai: se os
combatentes correspondiam a «soldados da elite», que género de espectáculo seriam as
monomachiai? Quiçá seja preferível aceitarmos os monomachoi e monomachiai
respectivamente como gladiadores e jogos gladiatórios, sobretudo ao termos em conta que
Tito Lívio se reportou igualmente ao entusiasmo de Antíoco por gladiadores 1021.

Mas ainda subsistem pontos de vista divergentes quanto ao seu pano de fundo. J. Edmondson
sustentou que se tratava de «verdadeiros» gladiadores romanos importados de Itália; ao
verificar que Emílio Paulo imitou os jogos gregos durante os seus festejos em 167 a. C., Antíoco

1020R. Hingley, «Resistance and Domination…», pp. 93-96; J. Webster, «Creolizing the Roman Provinces…», pp.
219-223. Para uma argumentação contra a reificação do termo «cultura», veja-se E. Flaig, «Über die Grenzen der
Akkulturation: Wider die Verdinglichung des Kulturbegriffs», in G. Vogt-Spira e Rommel (eds.), Rezeption und
Identität: Die kulturelle Auseinandersetzung Roms mit den Griechen als kulturelles Paradigma, Estugardda, Steiner,
1999, pp. 81-112.

1021 C. Mann, «Gladiators in the Greek East…», p. 128.

381
decidiu fazer o mesmo mas no sentido inverso, ao introduzir os munera no seu reino. No
entanto, M. Carter colocou reservas relativamente a esta hipótese, chamando à atenção para o
número extraordinariamente grande de 240 pares, que excedeu, de longe, os que estiveram
presentes em todos os espectáculos gladiatórios celebrados em Roma antes do século I a. C.
Segundo o historiador canadiano, os gladiadores não foram importados da península itálica,
mas consistiam em membros da juventude greco-síria que, tal como o seu soberano, se
sentiam fascinados pelos jogos gladiatórios romanos, lutando eles à maneira dos gladiadores,
aproveitando para exibirem a sua coragem 1022.

Sobre esta matéria, a comunidade científica ainda não atingiu um consenso. Contudo,
independentemente do que as monomachiai de Antíoco tenham sido em concreto, elas não
representaram o ponto de partida para uma tradição dos munera no mundo grego. Durante o
século II antes da nossa era, é possível que tenham ocorrido jogos gladiatórios em Colophon e
Delos, mas as evidências suscitam dúvidas: uma reatauração de um decreto honorário num
caso, e a datação controversa de um grafito no outro. Para o século I a. C., dispomos de sólidas
provas da celebração de jogos gladiatórios no Oriente grego, mas os espectáculos mencionados
nas fontes não foram organizados pelos próprios Helenos, mas por generais romanos, como,
por exemplo, Lúculo 1023.

Foi só a partir de começos do século I d. C. que os munera se tornaram mais comuns no


mundo grego. Com efeito, inscrições provenientes de Thasos e Ancyra, datando de finais do
principado de Augusto ou já do de Tibério, mostram uma característica organizativa que veio a
constituir o padrão nos séculos seguintes: no Oriente, os munera eram organizados em estreita
conexão com o culto do imperador e as elites locais arcavam com as suas despesas 1024. A maior
parte das fontes que chegou até nós é dos séculos II e III, um período em que a produção
global de inscrições no império romano atingiu o seu zénite; mas não só abundam mais os
documentos epigráficos gladiatórios: observa-se igualmente um aumento das representações
dos combatentes da arena em mosaicos. Durante o século IV, os jogos gladiatórios começaram
a declinar e, por volta do fim do mesmo, deixaram mesmo de pertencer à cultura cívica, mas as
venationes ainda continuaram a realizar-se. Este desenvolvimento é muito semelhante com o

1022 L. M. Günther, «Gladiatoren beim Fest Antiochus ‘IV. Zu Daphne (166 v.Chr.)?», Hermes 117 (1989), pp. 250-
252; P. F. Mittag, Antiochus IV. Epiphanes. Eine politische Biographie, Berlim, Akademie Verlag, 2006, pp. 285-286; J.
Edmondson, «The Cultural Politics of Public Spectacle in Rome and the Greek East, 167-166 BCE», in B. Bergmann e
C. Kondoleon (eds.), The Art of the Ancient Spectacle, Washington DC, National Gallery of Art, 1999, pp. 84-87; M.
Carter, «The Roman Spectacles of Antiochus IV Epiphanes at Daphne, 166 BC», Nikephoros 14 (2001), pp. 45-62.

1023 Relativamente a Colophon, a respeito do decreto honorífico para Ptolemaios (L. Robert e J. Robert, Claros I:
Décrets hellénistiques, Paris, Editions Recherche sur les civilisations, 1989, pp. 11-62), F. Canali de Rossi sugeriu uma
restauração alternativa do texto, na col. V, l. 2 (recensão da obra acima referida de L. Robert e J. Robert, «Claros»,
Athenaeum 69, 1991, p. 647). A respeito de Delos, um grafito da «Ágora dos Italianos» mostra a imagem de um
gladiador e menciona o seu nome e o número de vitórias que obteve (Inscr. Delos, nº 1961 = L. Robert, Les
gladiateurs…, nº 62 = M. Carter, The Presentation of Gladiatorial Spectacles…, nº 127); este grafito foi datado do
século II a. C. (J. Hatzfeld e P. Roussel, BCH 34, 1910, p. 410; N. K. Rauh, «Was the Agora of the Italians an
‘établissement de sport’?», BCH 116, 1992, pp. 294-333), mas outros estudiosos fazem remontá-lo a tempos
posteriores, durante o Império (M. Carter, The Presentation of Gladiatorial Spectacles…, p. 323; veja-se, também,
Bruneau, «L’Agora des Italiens était-elle un établissement de sport?», BCH 119 (1995), pp. 45-54. Lúculo: Plutarco
(Vida de Lúculo, 23.1) alude aos jogos gladiatórios como parte integrante dos festejos triunfais do general romano
em Éfeso, em 71/70 a. C.

1024Sobre Thasos, cf. M. Carter, The Presentation of Gladiatorial Spectacles…, nos. 55.58-61; para Ancyra/Galatia,
ibidem, nº 448.

382
que se passou no Ocidente, mas as razões para o colapso dos jogos gladiatórios serão
estudadas noutro capítulo 1025.

Quanto à sua distribuição regional, os jogos gladiatórios gozaram de popularidade em todo o


mundo grego1026: combateram gladiadores em Atenas, Corinto, Tessalónica, Mitilene, Cós,
Beróia, Ancyra, Side, Jerusalém, Dura Europos e em muitas outras localidades. Especialmente
ricos são os testemunhos das abastadas cidades da Ásia Menor, como Éfeso ou Mileto, mas isto
reflecte essencialmente o poder económico e não indica uma popularidade específica ou maior
dos jogos nestas regiões. De entre todas as províncias orientais do império romano, apenas o
Egipto se pauta por uma flagrante escassez de espectáculos gladiatórios. De acordo com F.
Kayser, cabe explicar estas reduzidas evidências – relativamente a outras zonas- através do
carácter especial que assumiu a veneração do imperador no Egipto; além disso, o autor
salientou que o evergetismo municipal desempenhou um papel muito menor no país nilótico
do que noutras paragens 1027.

Neste contexto, os jogos gladiatórios foram também populares na Palestina: em 10/9 a. C., o
rei Herodes organizou espectáculos faustosos em Cesareia, incluindo combates envolvendo
«grande número de gladiadores» e, depois da sua morte, conta-se que o soberano Agripa terá
patrocinado munera englobando 1400 criminosos condenados. Temos igualmente
conhecimento de que Herodes mandou construir anfiteatros em Jerusalém, na Caesarea
Maritima e em Jericó, mas as escavações arqueológicas efectuadas nestas cidades não
descobriram vestígios materiais de tais edifícios; na realidade, a maioria dos arqueólogos
argumentou convincentemente que o emprego da palavra «anfiteatro» por Flávio Josefo pecou
pela imprecisão, querendo o historiador judeu reportar-se a hipódromos. Contudo, mais tarde,
erigiram-se anfiteatros na Palestina - em Cesareia, Eleutheropolis, Neapolis, Scythopolis e
Bostra; em publicações recentes, os estudiosos foram unânimes em declarar que nestas
regiões os munera não só tinham soldados e romanos (que viviam nas cidades palestinenses)
entre os espectadores, como também alguns segmentos da população judaica 1028.

Tudo isto nos remete para a questão das forças que impulsionaram a disseminação dos
munera no Oriente. Em primeiro lugar, está para além de qualquer dúvida de que o sucesso
dos jogos gladiatórios esteve associado ao êxito político-militar de Roma. É óbvio que, de uma
cultura para outra, há múltiplas formas para a transferência de produtos culturais; no caso dos
jogos gladiatórios, o Império desempenhou um papel fulcral. As fronteiras do poder romano

1025 Para várias abordagens desta questão: G. Ville, «Religion et politique: comment ont pris fin les combats de
gladiateurs», Annales (ESC), 34 (1979), pp. 651-671; T. Wiedemann, «Das Ende der römischen Gladiatorenspiele…»;
D. L. Bomgardner, The Story of the Roman Amphitheatre, Londres/Nova Iorque, Routledge, 2000, pp. 201-205.

1026 A popularidade das pugnas gladiatórias já havia sido salientada por L. Robert (Les gladiateurs dans le monde
grec…, pp. 195-202. Em 2011, C. Mann também confirma a mesma realidade (“Um Keinen Kranz, um das leben
kämpfen wir”. Gladiatoren im Osten…, pp. 54-87; catálogo – pp. 182-272).

1027 Sobre a difusão dos jogos gladiatórios, veja-se L. Robert, Les gladiateurs dans l’Orient grec…, pp. 239-266. O
carácter específico do Egipto foi discutido por F. Kaiser, «La gladiature en Égypte», REA 3-4 (2000), pp. 459-478.

1028 Para os jogos de Herodes, cf. F. Josefo, Ant. Jud. 16.136-139; para os jogos de Agripa, ibidem, 19.335-337.
Relativamente à popularidade dos espectáculos gladiatórios entre os Judeus, consulte-se Z. Weiss, «Adopting a
Novelty: The Jews and the Roman Games in Palestine», in J. H. Humphrey (ed.), The Roman and Byzantine Near East
2, Portsmouth, Journal of Roman Archaeology, 1999 (JRA Suppl. 31), pp. 40-48; M. Z. Breitler e M. B. Poliakoff,
«Rabbi Simeon ben Lakish at the Gladiator’s Banquet: Rabbinic Observations on the Roman Arena», HThR 83 (1990),
pp. 93-98; com o foco de atenção na literatura talmúdica, consulte-se H. H. Ben-Sasson, «Gladiator», Enyclopaedia
Judaica, 7, 2ª edição, 2007, p. 624.

383
correspondiam às dos jogos gladiatórios, apenas com pouquíssimas excepções, haja em vista
os espectáculos apresentados por Antíoco IV.

No entanto, a conexão entre o Império romano e os jogos gladiatórios não manifesta uma
difusão por meio da força: não subsistem provas de os imperadores ou os governadores
romanos promulgarem activamente os jogos. Pelo contrário, vários anos atrás, uma inscrição
demonstrou como um imperador até encorajou uma polis grega a gastar o seu dinheiro noutras
tarefas que não os munera: numa carta dirigida aos cidadãos de Aphrodysias, Adriano apoiou o
projecto da comunidade da construção de um aqueduto; sobre os gladiadores, o princeps
escreveu: «Dou o meu consentimento de que deveis obter dinheiro do sumo- sacerdote, em
vez de o gastar em espectáculos gladiatórios; não só concordo como louvo a vossa
proposta»1029; o capital que os sumos- sacerdotes tinham de gastar durante o ano em que
ocupavam o cargo devia ser canalizado para o aqueduto, em vez dos jogos gladiatórios. Nas
linhas seguintes da carta torna-se claro que a gente rica de Afrodísias tinha muito menos
vontade de fazer despesas quando o seu dinheiro se destinava à edificação de uma infra-
estrutura e não para a organização de combates de gladiadores. A asserção explícita e
surpreendente do imperador pode entender-se como um sinal para a classe rica de Afrodísias,
ou seja, que um dos seus membros devia exercer a função de sumo- sacerdote de acordo com
as novas circunstâncias, não menos do que anteriormente. Neste caso específico, pelo menos,
alguns gregos terão nutrido maior entusiasmo pelos jogos gladiatórios do que o próprio
imperador.

Na sua maioria, os académicos aceitam que os Gregos adoptaram os jogos gladiatórios


voluntariamente. Uma vez estabelecidos em algumas localidades, a emulação entre as cidades
gregas concorreu para uma difusão ainda maior do fenómeno. Segundo Dião de Prusa e
Luciano, os Atenienses introduziram os jogos gladiatórios na sua cidade por não desejarem
ficar atrás de Corinto. É difícil, senão mesmo impossível, apurar, ao certo, quais foram as vias
de disseminação deste género de espectáculo. Alguns autores defenderam que os munera
foram levados para as províncias orientais pelos Romanos que nelas se fixaram. Os primeiros
que tiveram lugar no mundo grego foram organizados por romanos e para um público romano
e, pouco a pouco, o entusiasmo propagou-se à população grega; de acordo com esta tese, as
coloniae romanas revestiram-se de especial importância como exemplos da cultura romana,
depois copiados pelos centros urbanos helénicos 1030. À primeira vista, esta explicação parece
plausível, mas não se vê confirmada pelas fontes. As primeiras cidades a celebrarem jogos
gladiatórios nas províncias orientais foram, como acima se disse, Thasos e Ancyra, nenhuma
delas consistia numa colonia. Além disso, não se colhem notícias de os jogos gladiatórios terem
começado mais cedo nas coloniae e possuirem maior frequência do que nas demais cidades.

Louis Robert foi o primeiro a realçar a ausência de relação entre a presença dos Romanos e a
popularidade dos jogos gladiatórios:

«Relevons aussi que, si des munera ont naturellement été donnés dans les colonies romaines, à
Corinthe, à Philippes, à Apri, à Antioche de Pisidie, à Parion, ces villes ne se sont pas distinguées, sous ce
rapport, des villes grecques; rien ne nous autorise à supposer que les colonies romaines ont servi, sur ce

1029 A inscrição foi publicada por J. Reynolds, «New Letters from Hadrian to Aphrodisias: Trials, Taxes, Gladiators
and na Aquaeduct», JRS 13 (2000), pp. 5-20. A redacção da carta situa-se entre Dezembro de 124 e Dezembro de
125 d. C.

1030Díon Crisóstomo, 31.121; Luciano, Demon. 57; B. Levick, Roman Colonies in Southern Asia Minor, Oxford,
Clarendon Press, 1967, p. 192. G. Woolf, «Becoming Roman, Staying Greek…», p. 117; F. Millar, «The Roman
Coloniae of the Near East: A Study of Cultural Relations», in H. Solin e M. Kajava (eds.), Roman Eastern Policy and
Other Studies in Roman History, Helsínquia, Finnish Society of Sciences and Letters, 1990, p. 13; M. Carter, The
Presentation of Gladiatorial Spectacles…, p. 171.

384
point, d’exemple et de modèle aux villes grecques, qu’elles ont été imitées peu à peu par les cités
grecques»1031.

Como afirmámos no capítulo precedente, o exército romano desempenhou um papel


relativamente significativo na difusão dos munera gladiatórios, já que alguns anfiteatros se
construiram perto de fortificações militares. No entanto, desconhecemos se os civis que viviam
nas imediações assistiriam aos espectáculos nesses edifícios.

Organização, cenário arquitectónico e proveniência dos gladiadores

Os espectáculos gladiatórios jamais se inseriram no sistema dos desportos agonísticos gregos.


De facto, os gladiadores jamais fizeram parte dos Jogos Olímpicos ou dos numerosos outros
agones. No que concerne à sua organização, os jogos gladiatórios permanecerem separados
das tradições helénicas e estiveram ligados ao Império romano. Muitas inscrições de todo o
mundo grego evidenciam a conexão com o culto imperial. Os sumos- sacerdotes eram
responsáveis por tais espectáculos, tanto a nível provincial como local. Havia, naturalmente,
uma diferença entre estes dois níveis – para além da variedade no tamanho e na magnificência
dos jogos – e aos sumos- sacerdotes de uma província, cabia, entre as suas obrigações, marcá-
la bem. Tinham de apresentar jogos gladiatórios ao longo do ano em que ocupavam o cargo, ao
passo que os sumos- sacerdotes das cidades podiam fazê-lo quando tal lhes aprouvesse. Mas,
pelo menos nos centros urbanos mais prósperos, esperava-se que eles custeassem
espectáculos uma vez por ano. À semelhança dos munera em Roma, no resto da Itália e nas
províncias ocidentais, os eventos gladiatórios realizavam-se juntamente com as venationes 1032.

Os sumos-sacerdotes das províncias e, provavelmente, os das principais cidades, tinham


grupos permanentes de gladiadores1033; depois de terminarem de exercer as suas funções, eles
vendiam os combatentes ao seu sucessor, que, por sua vez, teria de preencher os «vazios»
eventualmente existentes. As notas autobiográficas do célebre médico Cláudio Galeno, que
trabalhou quatro anos na caserna de Pérgamo, mostram que todo o conjunto de gladiadores
passava de um sumo- sacerdote para outro. As cidades mais pequenas não teriam, em
princípio, «companhias» de combatentes, pelo que os sumos- sacerdotes alugavam
habitualmente os gladiadores a um lanista. Se os combatentes perecessem numa porfia ou
sofressem graves ferimentos, as despesas eram muito mais altas para o editor: num trecho do

1031 Cf. Les gladiateurs dans l’Orient grec…, p. 240.

1032As questões relativas à organização foram objecto de tratamento circunstanciado por L. Robert ( Les
gladiateurs dans l’Orient grec, pp. 267-293) e M. Carter (The Presentation of Gladiatorial Spectacles…, pp. 104-120,
144-241). Para a interacção entre o editor dos jogos gladiatórios e o imperador, vejam-se os comentários de L. M.
Günther, «Gladiatorendenkmäler aus Milet», MDAI (I), 35 (1985), p. 129. Este autor sugeriu ser necessária a
aprovação do princeps quando o programa dos espectáculos excedia as dimensões «normais», fosse no número de
dias ou no número de gladiadores. Nos espectáculos, segundo C. Mann (“Um Keinen Kranz, um das Leben kämpfen
wir”. Gladiatoren im Osten…, pp. 64-67), o programa dos combates e das caçadas não completaria os concursos de
matriz helénica, mas antes estaria claramente dissociado. Todavia, cabe não descartar a possibilidade de os duelos
se travarem no mesmo tempo que um concurso, em razão do local de reunião do koinon e das competências do
sumo sacerdote, responsável ocasionalmente pelos combates e pelo concurso ao mesmo tempo.

1033 Com efeito, em Éfeso, por exemplo, os monomachoi dos asiarcas aparecem mencionados sob o termo global
de familia (IvEphesos, V, 1620-1621). A este respeito, consulte-se F. Kirbihler, «Les grands-prêtres d’Éphèse: aspects
institutionnels et sociaux de l’asiarchie», in A. Rizakis e A. Camia (eds.), Pathways to Power. Civic Elites in the Eastern
Part of the Roman Empire, Atenas, 2008, pp. 141-145.

385
jurista Gaio (comentado no capítulo dedicado à análise e à interpretação do senatusconsultum
da «Tábua de Italica», promulgado por Marco Aurélio e Cómodo, o seu filho, associado ao
trono imperial), menciona-se um preço de 20 denarii para os gladiadores sobreviventes e 1000
para os que morressem ou abandonassem a arena estropiados e inválidos 1034.

Tal como no Ocidente, os gladiadores de uma familia (φαμλία μονομάχωυ) estavam


organizados de acordo com as armaturae a que pertenciam. No seio de cada tipo de
gladiadores havia uma classificação por graus, que estabelecia a hierarquia necessária numa
instituição «repleta de homens armados, bem treinados e talvez desesperados» 1035. Uma
familia incluía, afora os homens da arena, pessoal de enquadramento como instrutores,
massagistas, médicos e cozinheiros; afinal, os gladiadores eram «atletas» altamente
especializados e valiosos, daí que os seus proprietários se preocupassem com a sua saúde,
treino e alimentação.

Os jogos gladiatórios inseriam-se no padrão da evergésia, que desempenhava um papel


importante nas cidades do império romano. As pessoas mais abastadas desembolsavam
avultadas quantias de dinheiro na oferta de exibições públicas; em troca, viam-se honrados
pela comunidade. Este sistema de troca ajudou a estabilizar a sociedade: o principal objectivo
daquele que dava dinheiro era o de ganhar prestígio para si próprio e conseguir suplantar, pela
qualidade e novidade, os espectáculos organizados por outros aristocratas. Porém, ao mesmo
tempo, ele demonstrava a vontade, por parte da elite dirigente, de gastar dinheiro para
benefício do povo, assim fortalecendo a aceitação da ordem estabelecida.

Com o propósito de preservarem a memória dos espectáculos, os sumos- sacerdotes do


Oriente grego erigiram monumentos no espaço público. Em Hierapolis, na Frígia, descobriu-se
um exemplo típico e bem conservado desta espécie de monumentos comemorativos
(hypomnemata): uma estela inscrita contém informações relevantes sobre os espectáculos e os
editores; Gnaeus Arrius Apuleius, sumo- sacerdote, e a sua esposa Aurelia Melitine Atticiana,
suma sacerdotisa, deram jogos gladiatórios a par de caçadas e de uma taurokathapsion
(espécie de corrida de touros); ao pé da inscrição vários relevos descrevem os eventos
referidos no texto, mostrando ursos e javalis, cenas de um homem lutando contra um touro e
diferentes pares de gladiadores em combate. Houve o claro cuidado de oferecer um relato
visual e textual detalhado dos jogos: as inscrições informam-nos dos nomes dos gladiadores e
os relevos representam diferentes fases de cada pugna, além de constarem os resultados dos
duelos, por meio de figurações e legendas 1036.

Se bem que a dimensão evergética dos jogos gladiatórios tenha sido bastante similar nas
provincias ocidentais e orientais, o cenário arquitectónico era diferente: no Ocidente, um
anfiteatro era parte constitutiva da paisagem das principais cidades, no Oriente não. Contudo,
os anfiteatros não foram tão raros no mundo grego (matéria que exploramos no próximo
capítulo) como se supôs, embora cidades grandes e florescentes como Éfeso, Mileto, Perga ou
Side não tiveram este género de edifício; em vez de erguerem anfiteatros, muitos centros

1034Galeno, De compositione medicamentorum, 599-600; Gaio, Inst. 3.146ss: … ut in singulos, qui integri exierint
pro sudore denarii xx mihi darentur, in eos uero singulos, qui occisi aut debilitati fuerint, denarii mille. T. Ritti e S.
Yilmaz (cf. «Gladiatori e ‘venationes’ a Hierapolis di Frigia…», p. 537) sugeriram a presença de um grupo permanente
de gladiadores também na relativamente pequena Hierápolis.

1035 M. Carter, The Presentation of Gladiatorial Spectacles…, p. 106.

1036Sobre o evergetismo: M. Wörrle, «Vom tugendsamen Jüngling zum ‘gestreβen’ Euergeten: Überlegungen zum
Bürgerbild hellenistischer Ehrendeckrete», in M. Wörrle e P. Zanker (eds.), Stadtbild und Bürgerbild im Hellenismus,
Munique, Beck, 1995, pp. 241-250; M. Domingo Gygax, «Euergetismus und Gabentausch», Metis N. S. 1 (2003), pp.
181-200.

386
urbanos optaram por modificar os teatros e os stadia pré-existentes. Um exemplo famoso é o
Teatro de Dionísio em Atenas, onde a orchaestra se transformou num espaço para acolher
combates gladiatórios e caçadas de animais. Os Atenienses construíram um muro a rodear a
orquestra, para proteger os espectadores1037.

O estatuto social dos gladiadores mereceu minuciosas análises por parte de L. Robert e M. J.
Carter. O exame das fontes epigráficas revelou uma substancial similariedade entre as
províncias orientais e ocidentais. Os gladiadores procediam dos estratos mais baixos da
sociedade, consistindo em escravos, criminosos condenados, indigentes e provavelmente
também (mas raramente atestados nos tempos imperiais) prisioneiros de guerra. Nas
inscrições, a condição servil é normalmente indicada pelo nome do dono no genitivo. Por
exemplo, os gladiadores Narkissos e Kerasos, em Thasos, eram propriedade de Hekataia.
Filóstrato alude a criminosos nas suas polémicas contra os Atenienses, acusando-os de
comprar «adúlteros, fornicadores e sequestradores…» para os ver a lutar em combates
gladiatórios. Quanto aos voluntários, atestam-se igualmente no mundo grego, tanto nas fontes
literárias como nas epigráficas. Como se viu, para ingressarem numa familia gladiatoria,
tinham, impreterivelmente, de assinar antes um contrato confirmando que aceitavam sujeitar-
se ao tratamento dado aos gladiadores que eram escravos 1038.

Apesar de gozarem de baixo estatuto, os gladiadores podiam acalentar a esperança de


melhorar a sua condição social, caso conseguissem vencer combates e cativar o público.
Numerosas fontes documentam o entusiasmo da multidão – e igualmente dos homens e
mulheres das camadas da elite – face aos melhores combatentes da arena. Mas não obstante
gozarem de popularidade, os gladiadores permaneciam marginais a nível social. Mesmo
quando se viam libertos, continuavam infames, ou seja, possuíam limitados direitos cívicos.
Ninguém expressou melhor do que Tertuliano a tensão entre a popularidade e o reduzido
status legal:
«Veja-se até os que oferecem e os que administram os espectáculos; reparai na sua atitude para com os aurigas,
actores, atletas, gladiadores … aos quais os homens rendem as suas almas e as mulheres também os seus corpos,
por quem cometem os pecados que eles culpam; ao mesmo tempo, glorificam-nos e degradam-nos … sim, mais
ainda, condenam-os abertamente à desgraça e à degradação cívica» 1039.

1037 Vários estudiosos subestimaram a existência dos anfiteatros no Oriente, como, por exemplo, J. Bergemann,
Die römische Kolonie von Butrint und die Romanisierung Griechenlands, Munique, Pfeil, 1998, p. 119. J.-C. Golvin
(L’Amphithéâtre romain. Essai…) apresentou, na sua lista de anfiteatros nas províncias orientais, catorze.
Actualmente, podem acrescentar-se mais edifícios deste tipo em Serdica (AW 37, nº 5, 2006, p. 6), Cesareia,
Eleutheropolis, Neapolis, Scythopolis e Bostra (cf. A. Kloner e A. Hübsch, «The Roman Amphitheater of Beth Guvrin:
A Preliminary Report on the 1992, 1993 and 1994 seasons», Atiqot 30 (1996), pp. 85-106; Z. Weiss, «Adopting a
Novelty….», pp. 39-41, 24, fig. 1), Patras, (I. A. Papastolou, «Monuments de gladiateurs…», pp. 351-401) e Cnossos
(S. Hood e D. Smyth, Archaeological Survey of the Knossos Area, 2ª edição, Londres, British School at Athens, 1981).
Quanto à conversão de teatros e stadia, consulte-se K. Welch, The Roman Amphitheatre…, pp. 164-178, com
bibliografia aduzida. Welch datou o muro do parapeito do Teatro de Dionísio do reinado de Nero, enquanto outros
especialistas preferem situá-lo no século II d. C.

1038L. Robert, Les gladiateurs dans l’Orient grec, pp. 283-295. M. Carter, The Presentation of Gladiatorial
Spectacles…, pp. 78-83, 136-143. Para Narkissos e Kerasos, cf. IG XII 8, 548 (também, Robert, Les gladiateurs…, nº
50; M. Carter, The Presentation of Gladiatorial Spectacles…, nº 58; Filóstrato, VA 4.22). Sobre os voluntários, veja-se
Artemidoro, Oneirokritika, 5.58, cf. L. Robert, Les gladiateurs…, nº 25; M. Carter, The Presentation of Gladiatorial
Spectacles…, nº 98.

1039Tertuliano, De spect. 22: Etenim ipsi auctores et administratores spectaculorum quadrigarios scaenicos
xysticos arenarios illos amantissimos, quibus viri animas, feminae autem illis etiam corpora sua substernunt, propter
quos se in ea committunt quae reprehendunt, ex eadem arte, qua magnifaciunt, deponunt et deminuunt, immo
manifeste damnant ignominia et capitis deminutione.

387
Se os gladiadores sobrevivessem a vários duelos e ganhassem prestígio – não havia um
número fixo predefinido – recebiam como recompensa a liberatio. De entre os combatentes
documentados por lápides encontram-se muitos homens livres, mas isto não nos deve afastar
do facto de que a maioria o não era; as fontes são melhores para os mais afortunados do que
para os que perderam a vida logo na primeira porfia. Os gladiadores retirados continuavam
frequentemente ligados ao espectáculo, fosse como instrutores nos ludi, ou como árbitros.
Destes, alguns podiam mesmo tornar-se em membros honrados da comunidade, no Oriente
bem como no Ocidente, haja em vista o caso de P. Aelius, um summa rudis que faleceu em
Ancyra, na Galácia, que ganhou a cidadania em várias cidades da Ásia Menor 1040.

Graças à documentação recolhida por M. J. Carter, conhecemos a cidade-natal de 33


gladiadores do Oriente grego. O número é muito mais alto do que no Ocidente, além de que
existe outra diferença: diversas inscrições mencionam gladiadores gregos a actuarem em Itália
e nas províncias ocidentais, ao passo que não colhemos qualquer referência de gladiadores
ocidentais a combater na pars Orientalis. Isto resulta bastante surpreendente, ao tomarmos
em consideração a tradição mais longa dos jogos gladiatórios na península itálica.
Determinados gladiadores gregos tiveram a oportunidade de conhecer muitas localidades
durante as suas carreiras – o secutor Phoebus, por exemplo, nasceu em Kyzicos e travou
combates na Ásia, na Trácia, Macedónia e em Larissa – mas a maioria deles parece ter morrido
perto da sua cidade de origem1041.

Éfeso: um caso concreto

Centremos a atenção sobre Éfeso, uma cidade grega que foi, em simultâneo, centro do culto
imperial provincial e capital da província da Ásia. Tratava-se de uma localidade que usufruiu de
uma presença romana mais afirmada do que no resto da província. O périodo em que
Artemidoro de Daldis viveu, o século II (o autor dos Oneirokritika), correspondeu a uma fase de
desnvolvimento do culto imperial, que conheceu o seu augue sob os Antoninos e os Severos.
As cidades com uma certa importância buscavam obter o direito de erguer um templo do culto
imperial provincial, isto é, um templo neócoro 1042. Depois de conseguir uma primeira neocoria
sob Domiciano, Éfeso veio a obter uma segunda por volta de 130 d. C., durante o reinado de
Adriano.

1040IGR III, nº 215 (também Robert, Les gladiateurs…, nº 90; M. Carter, The Presentation of Gladiatorial
Spectacles…, nº 450, datando do reinado de Adriano). Como já se disse, os termos técnicos para os árbitros são
summa rudis (σουμμαροΰδης) e secunda rudis (σεκουδαροΰδης): cf. M. Carter, The Presentation of Gladiatorial…,
pp. 112-115.

1041 Para as cidades-natais dos gladiadores: M. Carter, The Presentation of Gladiatorial…, pp. 82-83; L. Robert, Les
gladiateurs…, pp. 295-296. No Ocidente, as inscrições que sobreviveram, mencionando gladiadores gregos são:
EAOR, I, 62, 93, 97; II, 69, 70. Uma inscrição de Beróia (SEG 35.717 = M. Carter, The Presentation of Gladiatorial…, nº
80) identifica o combatente da arena Publius como Άρπεινος, o que sugere, aparentemente, que seria oriundo da
cidade de Arpinum, na Itália Central; mas Allamani-Soury (»Μονομαχίκά», in Ametos: Essays in Honour of M.
Andronikos, Tessalónica, Aristoteleion Panespistemion Thessalonikes, 1987, pp. 45-46) argumentou
convincentemente que o dito gladiador terá nascido na localidade de Apri, na Trácia. As viagens de Phoebus surgem
referidas numa inscrição de Larissa (SEG 32.605): cf. M. Carter, The Presentation of Gladiatorial…, nº 104.

1042 No meio de uma bibliografia extremamente abundante, contentamo-nos em remeter apenas para duas obras
importantes sobre a Ásia Menor e Éfeso, respectivamente: S. R. F. Price, Rituals and Power. The Roman Imperial Cult
in Asia Minor, Cambridge,1984; B. Burrell, Neokoroi. Greek Cities and Roman Emperors, Leiden/Boston, 2004.

388
Como atrás referimos, por essa altura, assiste-se ao aumento da frequência e do êxito dos
combates gladiatórios no mundo grego. Ora, os sumos- sacerdotes do culto imperial provincial
ofereciam pugnas de gladiadores nas cidades neócoras. Eles deixaram-nos uma documentação
muito vasta: em Éfeso, conhecemos uma proporção significativa, perto de metade dos sumos-
sacerdotes em funções, a tal ponto que se elaborou uma lista com mais de 85 titulares
cobrindo perto de 90 anos, no âmbito temporal mais alargado de quase 175 anos, entre 88-89
d. C. e 262 d. C1043.

Enquanto elemento do culto imperial provincial, a crescente presença da gladiatura e dos seus
rituais de porfia atesta a transferência ou uma adaptação de uma componente cultural
ocidental para o Oriente, logo um certo grau de aculturação, mas igualmente, da parte dos
Gregos, um sentimento de identificação cada vez maior relativamente ao Império, pelo menos
pelas suas elites, que financiavam esses combates sobretudo no contexto das festividades do
culto imperial1044.

1043 Sobre este assunto, consulte-se F. Kirbihler, ( «Les grands-prêtres d’Éphèse: aspects institutionnels et sociaux
de l’asiarchie», in A. Rizakis e F. Camia [eds.], Pathways to Power. Civic Elites in the Eastern Part of the Roman
Empire, Atenas, 2008, pp. 107-149, em especial os efectivos conhecidos e a própria lista, pp. 119-133). Esta lista,
englobando 85 entradas, onde se constata que certos indivíduos exerceram as mesmas funções em duas ocasiões,
mais alguns anónimos, pode ver-se completada por um a quatro nomes, atestados pela epigrafia exterior: H.
Engelmann (cf. «Neue ephesische Inschriften», ZPE, 84 [1990], pp. 89-92) comentou o teor de uma inscrição
efesiana que permitiu conhecer um asiarca, chamado Ti (berius) Claudius Demostratus Caelianus, nome que se
encontra na lista de Kirbihler, sob o número 29. No entanto, vários membros da família aparecem num texto
ateniense, que menciona sobretudo a parentela efesiana da honrada Menandra (IG, II2, 4071 B = I. Eleusis, 463); na
linha 16, faz-se alusão a um sumo sacerdote da Ásia anónimo. Se o sumo sacerdócio não visava Caelianus,
eventualmente desaparecido na lacuna, poder-se-ia ligar o cargo a Mindius Amynus, que surge na linha 15, isto se
uma ou duas funções municipais foram citadas no espaço danificado intermédio: tratar-se-ia, então, de um sumo
sacerdote suplementar durante a primeira metade do século II (segundo a datação das gerações proposta por K.
Clinton (Eleusis. The Inscriptions on Stone. Documents of the Sanctuary of the two Goddesses and Public of the
Deme, Atenas, II, 2005, p. 355), caso isto tenha acontecido em Éfeso após a concessão da primeira neocoria por
Domiciano, o que parece plausível em face das actividades do grupo familiar em apreço. Contudo para C. Settipani
(Les prétentions généalogiques à Athènes sous l’Empire romain, tese inédita, Université de Lorraine, Metz, 2013, pp.
406-413), que procedeu a uma reconstituição dessa rede familiar, Mindius Amynus teria nascido c. 105-110, o que
faria dele um sumo- sacerdote da Ásia mais precisamente em 135-150, aparentemente. A epigrafia exterior de
Euméneia revelou também Claudius Valerianus Terentullianus, filho da Ásia e sumo- sacerdote da Ásia, o que situa o
seu mandato a seguir à segunda neocoria obtida ao redor de 130 (Nouvelles inscriptions de Phrygie, pp. 67-70, nos.
2-3); por fim, o seu pai M. Claudius Valerianus exerceu o cargo de sumo- sacerdote sob a égide de Domiciano (RPC,
II, 1386-1387), mas em que cidade neócora? Se foi em Éfeso, tal só poderia hever ocorrido no intervalo de 92 a 95/6,
visto que para os anos entre 88/) e 91/2 já dispomos de titulares. Transitemos agora para outro aspecto – o
programa das caçadas de animais selvagens e de duelos gladiatórios não completavam, ao que parece, os concursos
de matriz helénica, encontrando-se, pelo contrário, claramenter dissociados – cf. C. Mann, “Um Keinen Kranz, um
das Leben Kämpfen wir! Gladiatoren im Osten…, pp. 64-67. Seja como for, cabe não excluir a hipótese de os
combates se terem desenrolado por vezes no mesmo momento que um concurso, devido ao local de reunião do
koinon e às competências do sumo- sacerdote, responsável, por vezes ao mesmo tempo pelos dois géneros de
eventos.

1044 Esta vertente foi, em parte, o objecto maior da obra de C. Mann (“Um Keinen Kranz, um das Leben Kämpfen
wir!”. Gladiatoren im Osten…, esp. pp. 24-29, 80-87, 125-134), autor que renovou as problemáticas, além de
completar as perspectivas contidas na célebre monografia de L. Robert (Les gladiateurs dans l’Orient grec…). Quanto
às noções de transferências humanas, culturais e materiais do Ocidente para o Oriente grego, consulte-se um
conjunto de contributos, essencialmente de carácter arqueológico em M. Meyer (ed.), Neue Zeiten-neue Sitte. Zu
Rezeption und Integration römischen und italischen kulturguts in Kleinasien,Viena, 2007.

389
Estas menções encontram a sua correspondência na documentação coeva. A epigrafia dá-nos
a conhecer uma série de inscrições relacionadas com os monomachoi1045: a maioria situa-se no
quadro profissional, com alusões às «trupes» de combatentes dos asiarcas, outras tratando-se
de inscrições funerárias. Conforme anteriormente referimos, uma equipa de arqueólogos
austríacos descobriu, por acaso, em 1993, um cemitério de gladiadores em Éfeso, que cedo se
tornou num manancial informativo para interessantes estudos antropológicos e outros afins 1046.
O Museu de Selçuk possui estelas de gladiadores em número bem abundante, pelo que,
associadas aos achados anteriores, se organizou uma exposição em 2002, evocando diversos
aspectos da vida dos combatentes da arena ou os estádios adpatados para os munera1047.

A expressão apotomos pigmé (ou zygos apotomos), ou seja, o combate sine missio, sem
perdão, que implicava a morte de um dos protagonistas, mencionada por Artemidoro 1048
atesta-se em uma ou duas inscrições efesianas, posteriores em uma ou duas gerações, que se
reportam aos zygoi apotomoi. A segunda fonte epigráfica restitui a expressão com um forte
grau de probabilidade, a propósito de um notável asiarca que ofereceu treze dias de combates
envolvendo 39 pares de gladiadores, na razão de três pugnas por cada dia 1049.

Artemidoro, aparentemente, reprovava este tipo de combates, à semelhança de alguns raros


intelectuais coetâneos, cujo número foi, durante largo tempo, inflacionado em pesquisas
modernas (assunto que retomaremos na próxima alínea) 1050, mas o autor dos Oneirokritika, na
1045 Os gladiadores aparecem referidos em F. Kirbihler, «Les grands-prêtres d’Éphèse…», pp. 141-143, juntamente
com a lista em forma de quadro, pp. 142-143; a título de exemplo, é perfeitamente possível inserir os monomachoi
dos asiarcas mencionados no termo genérico de familia (IvEphesos V, 1620-1621), ou ainda as claques formadas
pelas associações dos admiradores/espectadores dos gladiadores, os philobedioi philoploi (para o sentido desta
expressão, veja-se L. Robert, Les gladiateurs…, pp. 24-27), talvez criadas no tempo em que viveu Artemidoro; ainda
se atestam numa época ulterior, durante o segundo quartel ou meados do século III, quando os ( Flavii) Vedii,
doravante «clarissimos» residiam em Roma (IvEphesos VI 2226; VII,1, 3055; 3070).

1046Há diversos artigos e publicações sobre esta necrópole dos gladiadores em Éfeso: W. Pietsch, «Gladiatoren.
Stars oder Geächtete?», in P. Scherrer, H. Taeuber e H. Thür (eds.), Steine und Wege. Festschrift für Dieter Knibbe
zum 65. Geburtstag, Viena, 1999, pp. 373-378 (com bibliografia aduzida conectada com o contexto da descoberta);
F. Kanz e K. Grossschmidt, «Stand der anthropologischen Forschungen zum Gladiatorenfriedhof in Ephesos», Öjh, 74
(2005), pp. 103-123 (artigo em jeito de balanço sobre as investigações realizadas no local, englobando uma
elucidativa síntese provisória dos dados de natureza antropológica). Para um cotejo com Pompeia, consulte-se R. S.
Garraffoni, «Gladiator’s Daily Lives and Epigraphy: A Social Archaeological Approach to the Roman munera during
the Early Principate», Nikhephoros, 21 (2008), pp. 223-241.

1047 S. Erdemgil e F. Krinzinger (eds.), Gladiatoren in Ephesos. Tod am Nachmittag, Viena, 2002. Para um resumo
sobre a difusão e o impacto dos combates gladiatórios no Oriente, cf. ibidem, pp. 9-13.

1048 Oneirokritika, V 58, P 314, 16-315,3.

1049 Cf. IvEphesos, VII, 1, 3070 (texto intacto); 3071 (restituído). Estas fontes epigráficas datam do século III. Veja-
se, também, L. Robert, Les gladiateurs…, p. 17, 250, n. 1; pp. 259-262 (onde o autor lembra o significado dos
combates apotomoi), 349. Ao saber que um sumo-sacerdote revendia a familia de gladiadores ao titular seguinte,
coloca-se uma questão: poderiam os combatentes ser alugados para participarem em espectáculos noutras
localidades, durante os intervalos sem munera nas suas próprias cidades? Torna-se difícil responder à pergunta
conclusivamente, mas parece, ainda assim, pouco provável que os gladiadores estivessem envolvidos neste género
de processo itinerante.

1050 Todavia, os indícios são bastante ténues e limitados nos Oneirokritika, cingindo-se à passagem V 58, P 314,
16-315, 5. A este respeito, L. Robert (Les gladiateurs…, pp. 249-263) contrapôs as reservas de determinados
intelectuais antigos às frases encomiásticas contidas nas fontes epigráficas; Robert não encarou os intelectuais
gregos como um grupo hostil, no seu todo, à gladiatura. C. Mann (“Um Keinen Kranz, um das Leben Kämpfen wir!”.

390
realidade, criticou e desprezou principalmente o nível social dos protagonistas da gladiatura.
Não era, de modo algum, o caso das massas populares efesianas, que nutriam grande
entusiasmo por esta instituição vinda do Ocidente. É possível que o teatro local tenha servido,
por vezes, como cenário para os munera; o estádio de Éfeso, monumento tipicamente grego,
foi, talvez, também adaptado para acolher combates, ainda que a data da modificação da pista
para a delimitação de um provável recinto destinado às porfias não se afigure clara: seja como
for, isto testemunha um sucesso garantido destes espectáculos junto de uma proporção muito
substancial da população efesiana1051. Porém, a ausência de prospecções arqueológicas
aprofundadas no stadion impede-nos de poder usar de muita precisão nesta matéria.

Também no âmbito privado se acharam muitos grafitos e desenhos (aproximadamente 500) 1052
em habitações providas de terraços, representando cenas gladiatórias, o mesmo se
assinalando nos motivos decorativos das lucernas, objectos da vida quotidiana, recuperadas
tanto nas casas referidas como na ágora civil, ou no território do centro urbano, perto da actual
cidade turca de Kuşhadası1053.

A percepção dos munera no mundo grego

Um dos aspectos primaciais da romanização, e da aculturação em geral, é a percepção dos


processos pelos grupos envolvidos. Questões tais como onde e quando se adoptaram
artefactos ou rituais por uma cultura de outra lançam luz apenas sobre parte do fenómeno.
Para se avaliar o impacto cultural assume plena relevância saber se e como os grupos
interactuantes (tanto as culturas dadoras como as receptoras) encararam o processo. Quando
as pessoas, por todo o mundo, jogam ou assistem a uma partida de futebol, a origem britânica
deste desporto não desempenha papel algum; por outro lado, o cricket ainda é visto como uma
típica manifestação da cultura britânica. No entanto, devido à escassez de documentação, é
tarefa difícil apurar a percepção de produtos culturais na antiguidade. Ainda assim, centremo-
nos em duas vertentes: (1) a terminologia dos jogos gladiatórios no Oriente grego; (2) os
testemunhos explícitos dos escritores helenos.
Gladiatoren im Osten, pp. 110-134, especialmente as pp. 113-114, onde resumiu os pontos de vista dos
investigadores) minimizou a oposição entre uma elite hostil e as massas populares favoráveis aos espectáculos
gladiatórios. Relativamente aos gladiadores mortos em Éfeso e reencontrados nas escavações na necrópole de
Éfeso, foram, ao que parece, inumados sem grandes cuidados (F. Kanz e K. Grossschmidt, «Stand der
anthropologischen Forschungen zum Gladiatorenfriedhof in Ephesos»…, p. 103: «eher lieblose Deponierung der
Leichen»). É certo que na maioria dos cerca dos 70 casos, se podem tratar de combatentes vencidos, e as estelas
encontradas indicam que outros homens da arena gozavam de maior consideração ou dispuseram, pelo menos, de
suficientes recursos financeiros para custear os seus monumentos funerários. No entanto, na mesma zona, também
se recuperaram três estelas em memória de gladiadores defuntos (W. Pietch, «Gladiatoren. Stars oder
Geächtete?»…, p. 376, o que denota igualmente um certo respeito. Repare-se que Pietsch defendeu a ideia que,
durante o Alto-Império, o desprezo social terá diminuido parcialmente (ibidem, p. 378)

1051 Estado da questão e bibliografiia acerca do estádio: P. Scherrer et al., Ephesus. The New Guide, 2000, pp. 166-
167 (datação situada preferencialmente já na Antiguidade Tardia).

1052 H. Taeuber, «Graffiti und Dipinti aus den Hanghäusern in Ephesos», in H. Friesinger e F. Krinzinger (eds.), 100
Jahre österreichische Forschungen in Ephesos, Viena, 1999, pp. 527-529.

1053 Consultem-se: S. Ladstätter, «Objekte: Lampen mit Gladiatorendarstellungen aus den Hanghäusern in
Ephesos», in S. Erdemgil e F. Krinzinger (eds.), Gladiatoren in Ephesos…, pp. 97-102; P. Büyükkolancı, «Objekte:
Kleinfunde mit Gladiatorendarstellungen im Ephesos Museum», ibidem, pp. 93-95.

391
Os Gregos não criaram uma terminologia gladiatória própria, o que se patenteia claramente
nas inscrições e nas fontes literárias. Só os vocábulos gladiator (μονομάχος) e munus
(φιλοτιμία/philotimia) foram traduzidos para grego, pois que as restantes palavras se tomaram
de empréstimo do latim e simplesmente se transliteraram. De entre os étimos «importados»
figuram as designações para as «escolas» gladiatórias – familia (φαμιλία), ludus (λούδου), no
genitivo -, o termo para o poste de treino, bem também utilizado para a indicação da categoria
hierárquica, palus (πάλος), e as denominações das armaturae: nos textos gregos, o secutor
aparece como σεκούτωρ, retiarius como ρητιάριος ou ρητιάρις, o murmillo mediante as
formas μυρμιλλωυ, μουρμίλλωυ ou μορμίλλωυ, thraex como δρας, o provocator como
προβοκάτωρ, e daí por diante 1054. Até a palavra em caracteres gregos para um combatente
esquerdino consistia numa corruptela latina, σκενάς, derivada de scaeva 1055. Quanto aos
Romanos, é sabido que se apropriaram da etimologia grega em certos domínios; mas a
situação inversa é incomum. Mesmo no campo da política, a parte mais romanizada da vida
nas províncias gregas, os termos principais foram vertidos para se utilizarem em inscrições
gregas, designando-se o praetor romano como στατηγος, e o consul como ϋπατος 1056.

Se é certo que, para os jogos gladiatórios, os Gregos não criaram o seu próprio léxico, eles
podiam facilmente criar palavras, ao empregar os verbos e os substantivos da sua língua. Os
munera permaneceram isolados dos restantes espectáculos celebrados nas cidades gregas, não
só quanto aos seus moldes organizativos, mas também a nível linguístico. A percepção dos
jogos gladiatórios como não gregos vê-se igualmente sublinhada em diversas passagens de
obras literárias: Artemidoro de Daldis discrimina os vários tipos de gladiadores, mas pede
desculpa aos seus leitores gregos por usar termos em latim; Dião Cássio, por seu turno,
acrescenta «chamado» ao vocábulo secutor, deste modo marcando o seu distanciamento em
relação ao termo 1057.

Quanto à visão preponderante entre os intelectuais, eruditos e académicos do século XIX e de


princípios do XX, foi a de uma rejeição unânime: nas cidades gregas, só a massa dos habitantes
mais ignorantes teria apreciado os jogos, pois que a classe culta não aceitou a cruel novidade
importada de Roma 1058. Com efeito, os comentários sobre os jogos gladiatórios na literatura
grega são profundamente negativos, constituindo objecto de fortes críticas por se tratar de
espectáculos sangrentos e cruéis que satisfaziam a multidão mas causavam danos às cidades.
No entanto, ao examinarmos mais atentamente tais fontes, reparamos que as invectivas contra

1054 No entanto, o eques aparece nas fontes gregas geralmente designado como hippeus.

1055 L. Robert, Les gladiateurs…, pp. 64-65; M. Carter, The Presentation of Gladiatorial…, pp. 72-77; sobre os
gladiadores esquerdinos, K. M. Coleman, «A Left-Handed Gladiator…».

1056 Para o uso da língua e da terminologia latinas nas províncias orientais, consultem-se: L. Hahn, Rom und
Romanismus im griechisch-römischen Osten: Mit besonderer Berücksichtigung der Sprache: Bis auf die Zeit Hadrians,
Leipzig, Dietrich, 1906; A. Cameron, «Latin Words in the Greek Inscriptions of Asia Minor», AJPh 52 (1931), pp. 232-
262; M. G. Mosci Sassi, Il linguaggio gladiatorio, Bolonha, 1992; B. Rochette, Le Latin dans le monde grec:
Recherches sur la diffusion de la langue et des lettres latines dans les provinces hellénophones de l’Empire romain,
Bruxelas, Latomus, 1997; W. Eck, «Latein als Sprache politischer Kommunikation in Städten der Östlichen
Provinzen», Chiron, 30 (2000), pp. 641-660; R. A. Kearsley (ed.), Greeks and Romans in Imperial Asia: Mixed
Language Inscriptions and Linguistic Evidence for Cultural Interaction until the End of AD III, Bona, Habelt, 2001.

1057 Artemidoro, Oneirokritika, 2.33; Dião Cássio, 72.19.2.

1058 H. Fuchs, Der geistige Widerstand gegen das Römertum in der antiken Welt, Berlim, de Gruyter, 1938, p. 49:
«Insbesondere verurteilte und mied man die widerwärtigen Tier- und Menschenabschlachtungen in den
Amphitheatern» /«Os indivíduos cultos condenavam especialmente a abominável matança de animais e de seres
humanos nos anfiteatros»).

392
os gladiadores não são específicas, mas insertas em polémicas mais abrangentes no contexto
dos espectáculos públicos em geral. Eis um bom exemplo no ensaio de Plutarco Sobre a arte da
governação:

«Assim, todos os géneros de amor que se engendram nos estados e povos por um indivíduo por causa
da sua virtude são, de imediato, os mais fortes e mais divinos; mas aquelas honras falsamente atestadas
que derivam da oferta de peças teatrais, procedendo-se à distribuição de dinheiro, ou a apresentação de
espectáculos gladiatórios assemelham-se a adulações de meretrizes, uma vez que as massas sorriem
sempre para quem lhos dá e faz favores, concedendo uma reputação efémera e incerta» 1059.

Neste excerto, Plutarco critica os editores dos jogos gladiatórios por buscarem os aplausos
fúteis do público, mas também se insurge contra os espectáculos nos teatros e o hábito de se
distribuir dinheiro. Consequentemente, estamos perante ataques genéricos ao evergetismo
(com indivíduos pagando com numerário para obterem honra), não se detectando uma
aversão especial em relação aos munera a favor das tradições gregas.

Outros trechos da literatura grega que denunciam a natureza sanguinária e horrenda dos
eventos gladiatórios aparentam significar diatribes contra os espectáculos romanos importados
de uma maneira mais específica. Dião de Prusa louva os habitantes de Rodes por não
celebrarem jogos gladiatórios. Esta decisão salvou a ilha das matanças públicas, contrastando
com Atenas, onde «frequentemente um combatente é massacrado nos próprios lugares em
que Hierofante e outros sacerdotes se devem sentar». Algo idêntico expressou o Demonax de
Luciano, que aconselha os Atenienses a deitar abaixo o altar da Misericórdia antes de
introduzirem os combates de gladiadores 1060.

Porém, as críticas contra a brutalidade observável nos espectáculos públicos não se


restringiram aos combatentes da arena: desde o tempo da formação das escolas filosóficas
helenísticas que os desportos gregos como o pugilismo e o pankration se viram condenados
por meio de asserções acerbas. Estas lutas conduziam à mutilação do corpo e do rosto dos
atletas e, por vezes, até à sua morte, o que não impedia o facto de os espectadores terem
prazer em assistir a tudo isto. Consequentemente, não só os munera incorriam na pena da
brutalidade, como as críticas aos gladiadores se podem referir igualmente aos desportos
agonísticos helénicos1061.

A imagética dos jogos gladiatórios

As reflexões sobre os munera nas províncias orientais e ocidentais revelam mais afinidades do
que diferenças. A popularidade dos jogos – aferida pelas inscrições que chegaram até nós –
parece comparável, o padrão organizativo (o evergetismo, a celebração dos combates
gladiatórios em conjunção com as venationes) é idêntico no Oriente e no Ocidente, assim como
a origem social dos homens da arena. Contudo, no que toca à faceta da «auto-apresentação»
dos gladiadores, assinalam-se aspectos distintos fundamentais: as muitas centenas de lápides

1059 Cf. Fowler, Plutarch’s Moralia.

1060 Díon Crisóstomo, 31.121; Luciano, Demon. 57.

1061Para as críticas gregas em relação aos desportos de combate, veja-se: S. Müller, Das Volk der Athleten:
Untersuchungen zur Ideologie und Kritik des Sports in der griechischen-römischen Antike, Trier, Wissenschaftlicher
Verlag, 1995, pp. 298-316. Quanto às fontes ambivalentes interpretadas por L. Robert (Les gladiateurs…, p. 249), cf.
Plutarco, Moralia, 882b-c; [Plutarco] de esu carnium, 2 997 b-c.

393
preservadas na pars Orientalis e na pars Occidentalis mostram nítidas discrepâncias na
decoração e no texto gravado no monumento funerário 1062. Evidenciam-se imediatamente as
diferenças ao nível da decoração: a maior parte das estelas do Oriente possui um relevo
descrevendo o gladiador falecido; em alguns casos, este foi representado a combater, mas, em
geral, surge de pé diante do observador; as armas indicam a sua armatura, as palmas e as
coroas as suas vitórias, o número das últimas muitas vezes correspondendo à cifra das porfias
ganhas apontada na inscrição1063. Em contrapartida, em Itália e nas províncias ocidentais, só
umas quantas lápides gladiatórias estão providas de relevos 1064.

As diferenças quanto ao epitáfio não são menos manifestas: no Ocidente, o texto gravado no
suporte pétreo limita-se, em regra, ao nome, idade, armatura, categoria hierárquica e o
palmarés do defunto; traduz-se numa simples enumeração sem verdadeiro carácter individual.
Pelo contrário, as inscrições funerárias dos gladiadores orientais comportam muitas mais
informações para além dos dados «técnicos» do falecido. Acresce que os textos são, amiúde,
métricos. Não consiste apenas numa diferença formal: patenteia igualmente uma diferença no
conteúdo, o que se pode demonstrar através de vários exemplos. O primeiro foi descoberto em
Alabanda, na Cária:

«[Aqui repouso], o temerário Polyneikes, tendo ganho glória com as minhas armas,/Dominei, sem
sofrer derrotas, toda a província nos stadia, a combater/Vinte vezes sem perder. E não fui conquistado
por um talento [superior],/Mas um jovem suplantou um velho corpo» 1065.

Este é um dos epitáfios que descreve as circunstâncias específicas dos combates, as quais
serviam para tornar uma vitória mais gloriosa ou para ajudar a explicar uma derrota. Neste
caso, o autor da inscrição oferece uma explicação do motivo que levou Polyneikes a perder o
seu derradeiro duelo: não se deveu à maior mestria do seu oponente; ele foi vencido por lutar
simplesmente contra um homem mais novo, e Polyneikes não logrou reunir as forças
suficientes para o enfrentar, devido à sua idade.

Outro modelo de referência ao último (e mortal) confronto do gladiador inumado radica na


alusão à vitória. Num epitáfio de Cós lê-se: «Ele morreu enquanto obteve uma vitória e matou
o seu adversário»; encontramos similar fraseologia nas inscrições de outras localidades. De
acordo com mais um epitáfio, somos informados que o antagonista cometeu perjúrio ao
eliminar o defunto, mas depois sucumbiu às mãos de um amigo do falecido. Torna-se pouco
claro que tipo de perjúrio foi cometido, mas o padrão da vingança entre combatentes
talentosos é uma evocação às batalhas homéricas, em que os guerreiros aniquilavam os
inimigos responsáveis pela morte dos seus amigos e companheiros de armas 1066.

1062Consultem-se os catálogos de L. Robert (Les gladiateurs…, pp. 75-237 (bem como as adendas publicadas na
revista académica Hellenica) e de M. Carter (The Presentation of Gladiatorial…, pp. 298-390). O carácter que presidiu
a estes dois inventários é diferente: Robert incluiu lápides anepígrafas (sem inscrições) nas ocasiões em que a
decoração indica um contexto gladiatório, ao passo que Carter apresentou apenas monumentos funerários inscritos.

1063 Actualmente, conhecem-se para cima de 200 monumentos funerários gladiatórios procedentes do Oriente
grego: cf. C. Mann, “Um Keinen Kranz, um das Leben Käpfen wir!”. Gladiatoren im Osten…, p. 10.

1064 Um dos exemplos é a estela decorada bem conhecida de Urbicus, conservada no Castello Sforzesco, em
Florença (EAOR, II, nº 50), que se assemelha às lápides do Oriente grego, não só no género de baixo-relevo, como
também em relação à composição do texto gravado no suporte pétreo. Data de finais do século II ou princípios do III
d. C. e, provavelmente, sofreu influências dos desenvolvimentos registados na parte oriental do império.

1065 L. Robert, Les gladiateurs…, nº 169; M. Carter, The Presentation of Gladiatorial…, n. 387.

394
Este aspecto revela mais uma peculiaridade dos epitáfios do Oriente grego: a associação entre
a arena e o mundo dos heróis. Uma maneira bastante simples de «heroificação» consistia na
utilização da palavra heros e das suas derivações: «nomes de espectáculo», como Achilleus,
Odysseus, Polyneikes, também assimilavam os gladiadores aos heróis 1067. Mas certos exemplos
são mais elaborados, como este, de Attaleia/Panfília:

«Estais a olhar para o bem-parecido, o combatente que foi oito vezes vitorioso nos stadia, o belo
Meiletos, tão belo como outrora foi o filho de Cinyras, o belo Adonis, enquanto caçava, ou o belo rapaz
Hyacinthus, que se viu atingido por um disco…»1068.

Em primeiro lugar, menciona-se o palmarés de Meiletos – venceu 8 combates. Mas no epitáfio


o resultado apenas desempenha um papel menor, já que o tópico principal consiste na beleza
do defunto – empregou-se o adjectivo kalos («belo») quatro vezes. Nas inscrições gladiatórias
do Ocidente romano não se faz referência à beleza dos combatentes, nem estes são
equiparados a personagens da mitologia. No epitáfio acima transcrito encontramos ambas as
coisas: nomeiam-se Adonis e Hyacinthus, dois jovens proverbialmente belos, e também se
menciona o seu campo de acção. Juntamente com o gladiador Meiletos, as duas figuras
mitológicas formam uma tripla estrela: Adonis era o jovem com melhor aparência física que
participou numa caçada onde veio a morrer; Hyacinthus, o mais belo a actuar no stadion, que
se viu fatalmente atingido pelo disco de Apolo; quanto a Meiletos, era o mais belo jovem nos
prélios gladiatórios, e também perdeu a vida.

Por fim, sobressai outro importante motivo nos epitáfios em memória dos gladiadores, o de
trazerem a fama à polis. Num texto sepulcral de Tessalónica, adoptou-se a seguinte fórmula:
«Ao vencer seis vezes ganhei a honra para a minha terra-natal». Nada de semelhante
observamos em textos funerários gladiatórios do Ocidente, nos quais raramente consta a
cidade de origem dos homens da arena.

Conquanto os munera fossem um fenómeno importado do Ocidente, a apresentação que os


gladiadores gregos deram de si mesmos não tinha raíz nas tradições romanas. Tão pouco se
filiou nas tradições helénicas dos duelos armados, uma vez que a partir de certa altura, o
combate singular na guerra praticada pelos Gregos desempenhava um papel relativamente
secundário. M. Carter supôs existirem afinidades entre os treinos nos gymnasia gregos e os
jogos gladiatórios, mas a analogia que estabeleceu não se afigura convincente. É certo que,
desde o século IV a. C., os exercícios militares foram incluídos na educação dos jovens
cidadãos, só que estes treinavam-se mais no arremesso de dardos do que nos combates
singulares 1069.

1066 Para Cós: L. Robert, Les gladiateurs…, nº 191; M. Carter, The Presentation of Gladiatorial…, nº 159. Para uma
estela de Larissa, cf. M. Carter, The Presentation of Gladiatorial…, nº 104; IG XII, 2644 (L. Robert, Les gladiateurs…,
nº 285; M. Carter, The Presentation of Gladiatorial…, nº 150 – monumento descoberto em Tenedos); L. Robert, Les
gladiateurs…, nº 34; M. Carter, The Presentation of Gladiatorial…, nº 39 (de Philippopolis). Observe-se ainda um
epitáfio gladiatório de Éfeso (M. Carter, The Presentation of Gladiatorial…, nº 278 = SgO 03/02/54), que contém uma
citação homérica da Ilíada (18.309).

1067 Por exemplo, «perecer nos combates dos heróis» (cf. M. Carter, The Presentation of Gladiatorial…, nº 16, de
Tomis). Para mais dados sobre os nomes, L. Robert, Les gladiateurs…, pp. 297-302; M. Carter, The Presentation of
Gladiatorial…, pp. 120-124, com exemplos aduzidos.

1068 IG X, 2, 1, nº 1019; L. Robert, Les gladiateurs…, nº 13; M. Carter, The Presentation of Gladiatorial…, nº 88.

1069 M. Carter, The Presentation of Gladiatorial…, pp. 52-57. Para o treino militar no gymnasion, D. Kah,
«Militärische Ausbildung im hellenistischen Gymnasion», in D. Kah e P. Scholz (eds.), Das hellenistische Gymnasion,
Berlim, Akademie Verlag, 2004, pp. 47-90.

395
Porém, existiu uma tradição grega de combate singular que exerceu influência nos jogos
gladiatórios, ainda que indirectamente. Nas inscrições funerárias dos combatentes da arena,
captamos a ética dos heróis homéricos, a qual emanou dos desportos atléticos. Foi a maneira
caracteristicamente grega dos desportos que forneceu a base para a «auto-apresentação» dos
gladiadores do Oriente. Todos os padrões acima enunciados estão presentes nas fontes
literárias e epigráficas respeitantes a atletas: primeiro) A participação da polis na fama de um
atleta vitorioso consiste num motivo corrente nos epigramas atléticos; muito parecido com a
mencionada inscrição de Tessalónica é o epitáfio de Dandes - «Aqui jaz Dandes de Argos, o
corredor do stadion, que ganhou honra pelas suas vitórias para a sua terra pátria, rica em
pastagens para cavalos»; segundo) A integração dos atletas na esfera do mito representa um
tópico frequente na literatura helénica. Os exemplos mais «artísticos» são os cânticos de vitória
de Píndaro e Bakchlydes, mas também subsistem numerosos testemunhos epigráficos;
terceiro). As inscrições das vitórias dos atletas exaltam não só a sua força e destreza, como
também a sua beleza; quarto. Vencer e morrer ao mesmo tempo considerava-se como a prova
suprema do espírito combativo de um atleta. Ficou célebre o caso do pancraciasta Arrachion de
Phigalia, que exalou o último suspiro na final olímpica, no preciso momento em que o seu
adversário havia desistido; Arrachion foi declarado vencedor 1070.

Ademais, nas estelas funerárias gladiatórias, verifica-se o recurso a uma linguagem atlética em
larga escala: por exemplo, o combate gladiatório, que nos registos dos sumos- sacerdotes se
designa monomachia, surge referido alternativamente como pyx – a palavra grega para o boxe
– nos epitáfios dos homens da arena, também ocorrendo as variantes pyktes e pykteuein. L.
Robert sustentou que estes vocábulos entraram na linguagem gladiatória para servirem de
substitutos do substantivo pugna e do verbo pugnare em latim; contudo, mais recentemente,
C. Mann opinou que os mesmos seriam, mais provavelmente, adopções extraídas da
terminologia atlética 1071. Mais: a palavra habitualmente usada para definir o local dos
combates era o stadion, o que, strictu sensu, não se afigura correcto. Esporadicamente
adaptaram-se os stadia para os munera, como aconteceu em Perga, mas em geral os eles
desenrolavam-se nos teatros (se a cidade não dispusesse de anfiteatro).

À semelhança do stadion ou do pyx, o étimo agon evoca também um contexto atlético.


Poderíamos acrescentar muitos outros empréstimos retirados da linguagem atlética. No
entanto, nesta breve passagem em revista optámos por terminar com a referência ao termo
aleiptos, exarado no epitáfio de Polyneikes, que os atletas empregavam amiúde como modo
para enfatizar o seu palmarés irrepreensível1072.

Não é possível explicar as características distintas das lápides gladiatórias nas províncias
orientais e ocidentais do império só pelas diferenças gerais assinaláveis entre as inscrições
gregas e latinas. Os textos funerários métricos não se confinaram ao mundo grego: há
1070Anth. Pal. 13.14 [Simonides]. Veja-se J. Ebert, Griechische Epigramme auf Sieger an gymnischen und
hippischen Agonen, Berlim, Akademie Verlag, 1972, nº 15; empregava-se uma fórmula idêntica para os guerreiros
tombados em batalha – IG I 3 1162. Para outros exemplos sobre a participação da cidade-natal na fama do atleta, cf.
J. Ebert, Griechische Epigramme…, nos. 35-36, 41, 46, 57, 71-74. Sobre a relação entre a fama individual e a polis
nas canções de Píndaro, cf. L. Kurke, The Traffic in Praise. Pindar and the Poetics of Social Economy, Ithaca/Nova
Iorque, Cornell University Press, 1991. Para a heroificação, consulte-se novamente J. Ebert, Griechische
Epigramme…, nos. 12, 61 (Anthol. Pal. 16.24), 76. Em relação a Arrachion, cf. Pausânias, 8.40; Filóstrato, Im 2.6;
IDEM, Gym. 21.

1071 «Gladiators in the Greek East …», p. 137.

1072 Pyx: L. Robert, Les gladiateurs…, p. 20; M. Carter, The Presentation of Gladiatorial…, pp. 73-74; para os stadia,
K. Welch, «Greek Stadia and Roman Spectacles: Asia, Athens and the Tomb of Herodes Atticus», JRS 11 (1998), pp.
121-131. A inscrição para Aleiptos é muito similar à dedicada a Polyneikes: J. Ebert, Griechische Epigramme…, nº 78.

396
numerosos exemplos latinos e, entre estes, igualmente epitáfios em memória de gente
desclassificada, até mesmo escravos. Além disso, destaca-se uma instituição comparável, o
exército romano: a «auto-apresentação» dos soldados é muito idêntica no Oriente e no
Ocidente; os elementos característicos não são, pelo menos, tão diferentes como sucede entre
os gladiadores. Assim, as diferenças entre os epitáfios gladiatórios orientais e ocidentais não
representam apenas uma simples faceta de afastamento a nível epigráfico 1073.

É mais plausível explanar as diferenças como a reflexão de um significado divergente dos jogos
gladiatórios, baseada no papel dos participantes nos espectáculos públicos. Em Roma, como
vimos, uma pessoa que tomasse parte activa em espectáculos públicos via-se discriminada,
tendo em conta a sua posição social e legal. Em muitos casos, actores e aurigae/agitatores,
bem como gladiadores, eram escravos ou, quando muito, libertos ou estrangeiros; os poucos
cidadãos romanos que se encontravam entre eles eram estigmatizados como infames, o que se
materializava na exclusão de poderem ocupar uma posição ou um cargo honrosos (embora, na
prática, parece ter havido certas excepções). Nos tempos finais da República, alguns equites e
senadores começaram a actuar como gladiadores, actores ou a conduzir carros nas corridas
circenses e, posteriormente, também imperadores, como é sabido, mas a maioria dos
membros do Senado abominavam tal transgressão das linhas divisórias hierárquicas da
sociedade, daí que decidiram pressionar no sentido de se criar legislação mais rigorosa e
impeditiva desses comportamentos desviantes. O senatus consultum de Larinum estabeleceu
sanções para os equites, senadores e respectivas famílias na eventualidade de participarem no
circo, no anfiteatro ou no teatro: o decreto visava, explicitamente, garantir a protecção da
dignitas ordinis.

No Oriente grego, havia igualmente barreiras respeitantes aos grupos de indivíduos que
efectuavam prestações nos espectáculos públicos; no entanto, a exclusão social dos
participantes assumiu uma forma completamente oposta; entendia-se como honroso competir
nos jogos olímpicos e noutros afins; a participação não estava só aberta à aristocracia, já que
chegou a ser dominada pela mesma, pelo menos na época arcaica e no começo do período
clássico. Com o passar dos séculos, os desportos atléticos foram perdendo o seu carácter
exclusivo, mas a actuação nos agones continuou limitada aos homens livres 1074.

Consequentemente, ao termos em conta o pano de fundo da diferente sociologia dos


participantes gregos e romanos, não causa estranheza a existência de características distintas
da «auto-apresentação» gladiatória. Os combatentes gregos desenvolveram uma percepção de
si próprios que pouco tinha em comum com a dos seus colegas em Itália e nas províncias
ocidentais, a qual assentava na ideia da elevada categoria dos atletas no mundo helénico. Os
monumentos erigidos para os gladiadores defuntos transmitem imagens de porfias heróicas,
de vitória e fama. L. Robert, acerca do tipo de relevo escultórico mais vulgar, representando o
gladiador a segurar um ramo de palmeira e ladeado por coroas, classificou-o como «le
gladiateur dans sa gloire». As inscrições, como acima vimos, transmitem a mesma mensagem.

1073 Sobre os epigramas funerários em latim, veja-se F. Bücheler, Carmina latina epigraphica, 2 vols, Leipzig, 1895-
97; epigrama para escravos: CIL XIII 8355.

1074 A respeito da posição social dos actores e aurigas romanos: H. Leppin, Histrionen: Untersuchungen zur
sozialen Stellung von Bühnenkünstlern im Westen des Römischen Reiches zur Zeit der Republik und des Prinzipats,
Bona, Habelt, 1992; G. Horsmann, Die Wagenlenker der römischen Kaiserzeit, Estugarda, Steiner, 1998. Sobre a
Tabula Larinas, consulte-se o citado artigo de B. Levick, «The senatus consultum from Larinum»…, pp. 97-115, e W.
Lebek, «Standes würde und Berufsverbot unter Tiberius: das SC der Tabula Larinas», ZPE 81 (1990), pp. 37-96.
Quanto à posição social dos atletas gregos: H. W. Pleket, «Zur Soziologie des antiken Sports», Nikephoros 14 (2001),
pp. 157-212; em relação aos músicos: S. Aneziri, Die Vereine der Dionysischen Techniten im Kontext der
hellenistischen Gesellschaft, Estugarda, Steiner, 2003.

397
Num caso, um gladiador até se atreveu a situar o seu ofício acima dos atletas; no seu epitáfio,
de Gortyna, lê-se:

«Não é a coroa a recompensa – combatemos pelas nossas vidas» 1075.

O que se pretendia dizer é que os atletas competiam por prémios fúteis (e correndo poucos
riscos), pelo que não se devia hipervalorizar as suas lutas. O gladiador, esse sim, era o que mais
se aproximava dos herois mitológicos, ao enfrentarem o perigo da morte.

Os gladiadores e a romanização

A difusão dos munera no mundo grego foi um processo complexo em que aceitação, a
apropriação e a reinterpretação tiveram, cada uma, a sua parte activa. O fenómeno esteve
inequivocamente ligado à expansão territorial do Império romano; o êxito das armas e da
política dos Romanos foi uma condição essencial para a disseminação dos jogos gladiatórios. É
importante enfatizar este ponto: conceitos como «globalização» ou «creolização» tendem a
subestimar o impacto do poder político nos processos culturais; neste caso, pelo menos, ele
revelou-se crucial. Associado à política romana esteve igualmente o elemento organizacional:
os jogos gladiatórios eram organizados e custeados pelos sumos- sacerdotes, isto é, os
magistrados que estabeleciam a conexão da polis ou da província ao imperador. Mas os
Romanos nunca terão definido como objectivo espalharem os munera por todo o seu império.
A apresentação deste entretenimento público especicamente romano pelos Gregos não
resultou de um processo intencional ou controlado por um polo centralizador, antes se
devendo à aceitação pela população helénica.

Se, por um lado, os jogos gladiatórios ganharam popularidade entre as massas, por outro, os
membros da elite serviram-se destes eventos basicamente para demonstrarem a sua
generosidade. A documentação não faculta suficiente quantidade de informações que
permitam aferir, exactamente, o impacto destes factores; assim, torna-se difícil apurar qual das
duas seria mais forte, se a pressão da multidão, se o próprio impulso das elites 1076. A
competição entre as poleis e entre as figuras das camadas sociais proeminentes também
desempenhou um significativo papel. Não se conservaram testemunhos que sugiram que o
facto de patrocinar, ver ou participar nos espectáculos gladiatórios se perspectivava como um
acto de identidade romana. Seja como for, alguns elementos indicam uma percepção dos
mesmos como um entretenimento importado.

Voltemos a frisar que os Gregos não incorporaram os munera nos agones, assim como
também não engendraram uma terminologia para tais espectáculos, em vez disso tomando de
empréstimo os vocábulos latinos para as diversas armaturae, as «escolas» gladiatórias, etc. Os
escritores da Hélade estavam bem cientes de que palavras como σεούτωρ ou ρητιάιος eram

1075 L. Robert, Les gladiateurs…, nº 66; M. Carter, The Presentation of Gladiatorial…, nº 131.

1076A presença crescente da gladiatura e dos seus ritos de combate atesta a transferência ou uma adpatação de
uma componente cultural do Ocidente para o Oriente, logo um certo grau de aculturação, mas também, da parte
dos Gregos, um sentime nto de identificação cada vez maior com o Império, pelo menos pelas elites que
financiavam as pugnas geralmente no contexto das festividades do culto imperial: a este rerspeito, veja-se C. Mann,
“Um Keinen Kranz um das Leben kämpfen wir”. Gladiatoren im Osten…, pp. 24-29, 80-87, 125-134. Para as noções de
«transferências» humanas, culturais e materiais do Ocidente para o Oriente, cf. M. Meyer (ed.), Neue Zeiten-neue
Sitten. Zu Rezeption und Integration römischen und italischen Kulturguts in Kleinasien, Viena, 2007 (um conjunto de
artigos de carácter essencialmente arqueológico).

398
de origem estrangeira. Fica em aberto a questão se o espectador grego que assistia aos jogos
gladiatórios teria a noção das suas origens romanas. Para a própria Roma, a visão dos
espectadores encontra-se ilustrada em múltiplas fontes literárias, mas a escassez de escritos
gregos sobre os gladiadores frusta qualquer intento de empreender uma abordagem análoga
em relação ao mundo grego 1077.

Como sublinhámos, os jogos gladiatórios no Oriente eram idênticos ao seu protótipo romano
em diversos sentidos: faziam parte do evergetismo municipal, importante tanto nas províncias
ocidentais como nas orientais; os monumentos comemoraticos com inscrições mandados fazer
por membros da elite mostram características similares, designadamente a associação entre os
gladiadores e as caçadas de animais selvagens. Ademais, as origens sociais dos combatentes da
arena eram basicamente as mesmas, dado que não subsistem provas de haver diferenças
drásticas entre o Oriente e o Ocidente. As condições existenciais e a esperança de vida também
parecem ter sido semelhantes.

No entanto, sobressai uma diferença radical concernente à imagética dos gladiadores: não se
conservaram testemunhos de que os últimos fossem encarados como marginais lutando pela
sua integração na sociedade romana; não resta a menor dúvida que os combates e os seus
protagonistas conheceram o desenvolvimento de uma imagética peculiar no Oriente:os
combatentes da arena buscaram comparar-se com os heróis da mitologia grega. Nos epitáfios,
eles apresentam-se como gloriosos vencedores de confrontos épicos; a ênfase na vitória é
simultaneamente invulgar e paradoxal, já que na maior parte dos casos o defunto honrado pela
lápide perdeu e sucumbiu no seu derradeiro prélio. Este género de «auto-apresentação»
significa uma reinterpretação de um produto da cultura romana, tendo como pano de fundo as
tradições helénicas. Os gladiadores acercavam-se dos atletas de maneiras bem flagrantes,
recorrendo a idênticos símbolos visuais para evocar a vitória, termos e frases parecidos, bem
como formas de «heroicização» assentando em fontes de inspiração literárias.

Posto isto, o gladiador grego aparece, não tanto como um simples combatentes, mas acima de
tudo na qualidade de vencedor glorioso 1078. Este impacto das tradições gregas sobre os munera
faz-nos recordar o paradigma de Greg Woolf de «tornar-se romano, permanecer grego»,
aplicável não apenas às elites do Oriente mas igualmente aos estratos sociais inferiores.
Podemos então afirmar, sem hesitações, que os jogos gladiatórios se espalharam pelo Oriente,
mas foram transformados e adaptados à realidade grega.

CAPÍTULO VII – Os anfiteatros da época imperial

A aparição do anfiteatro de carácter monumental

1077 Acerca da visão que tinham os espectadores dos jogos, assumem especial relevância os epigramas de Marcial,
pelo que aconselhamos a leitura da edição mais recente do Liber Spectaculorum: K. M. Coleman, Valerii Martialiis:
Liber Spectaculorum, Cambridge, Cambridge University Press, 2006.

1078 C. Mann, «Gladiators in the Greek East…», p. 140.

399
O primeiro anfiteatro autêntico de Roma foi erigido fora do Forum pelo riquíssimo Estatílio
Tauro, em 30 a. C., no quadro da política de encorajamento das iniciativas privadas que
Óctávio, o futuro Augusto, conduziu. Este incitou, então, muitos homens abastados a
construirem monumentos importantes no contexto das obras edilitárias sem precedentes que
decidira promover: sob o seu principado, ocorreu uma verdeira revolução arquitectónica, que
acompanhou a profunda modificação das estruturas do Estado e o estabelecimento de uma
nova ideologia. Eis o que nos diz Suetónio (Augusto, 29):

«[…] ele construiu um número muito grande de monumentos, os principais sendo: um forum com um
templo de Marte Vingador, um templo de Apolo no Palatino, outro de Júpiter Trovejante no Capitólio.
Edificou um forum porque, dada a afluência da multidão e o número de processos, os dois antigos não
eram suficientes […]»; mandou erguer ainda ceros monumentos «[…] em nome de outras pessoas, a
saber, dos seus netos, da sua esposa e da sua irmã, como o pórtico e a basílica de Gaio e Lúcio, os
pórticos de Lívia e de Octávio e o teatro de Marcelo. Além disso, ele exortou amiúde os outros cidadãos
a embelezar a cidade, cada qual consoante os seus rendimentos, fosse criando novos monumentos,
fosse restaurando ou enriquecendo os antigos. Construíu-se, então, uma multidão de edifícios […]:
assim, Márcio Filipo levantou o templo de Hércules das Musas, L. Cornificino, o de Diana, Asínio Polião, o
adro do templo da Liberdade, Munácio Planco, o templo de Saturno, Cornélio Balbo, um teatro, Estatílio
Tauro, um anfiteatro, e M. Agripa, vários esplêndidos monumentos».

Através de Dião Cássio (51.23.1), sabe-se que o anfiteatro ficou localizado numa zona do
Campo de Marte, quando César estava no seu quarto consulado.

«E. Tauro erigiu-se às suas próprias expensas e inaugurou-o com pugnas gladiatórias. Ao edificar este
“teatro de caça” em pedra no Campo de Marte, foi autorizado por tal proeza a escolher anualmente um
dos pretores».

A construção do anfiteatro efectuou-se a um ritmo muito rápido, uma vez que já estaria
acabado aquando do triplo triunfo (13 de Agosto de 29 d. C.), que celebrou as guerras da
Dalmácia e a vitória naval de Actium, na qual Tauro assumiu um papel de primeiro plano. Esta
pressa explica certamente o facto de boa parte do edifício ter sido feita com madeira. Dião
precisa que o monumento era, pelo menos parcialmente, de pedra, e que a sua construção
valeu a Tauro uma honra excepcional, o que nos leva a presumir que o monumento seria de
facto notável. O autor não proporciona mais detalhes sobre a localização exacta do anfiteatro,
nem a respeito das suas dimensões ou da sua forma. No entanto, devia ser uma estrutura
significativa, na medida em que Augusto se vangloriou de ter apresentado venationes em
simultâneo no forum e no anfiteatro de Tauro, nas quais se chacinaram 3 000 animais
(Suetónio, Divus Tiberius, 7.1)

Na realidade, o Forum Romanum continuou a servir de palco para combates até aos incêndios
que deflagraram em 14 e 9 a. C. Como o anfiteatro de Tauro foi objecto de desprezo por
Calígula, pensou-se, durante largo tempo, que o edifício teria uma importância secundária e
reduzida influência no âmbito arquitectónico, mas nada disto corresponde à verdade, como
recentemente K. Welch demonstrou. Os vestígios de vários espaços entre vigas de um edifício
de espectáculo que surgem reproduzidos em plantas antigas de Roma, como a de Lanciano em
1893, ou uma gravura de Piranese (de 1767), não se reportam, como alguns supuseram, ao
teatro de Balbo: é mais que garantido, já que o último se descobriu posteriormente. Tais
vestígios materiais e os referidos dois documentos correspondem ao anfiteatro de E. Tauro.
Com base nos mesmos, conseguiu-se determinar a localização concreta e certas características
arquitectónicas. O monumento foi implantado no monte de Censi, na extremidade ocidental
do Circo Flamínio, o que não se deveu ao acaso. F. Coarelli provou que o espaço chamado Circo
Flamínio nunca consistiu num edifício estruturado, mas numa vasta zona ao ar livre, estreita e
alongada, que podia ser utilizaa para diversos fins – serviu, designadamente, como ponto de
reunião do cortejo dos triunfos. Era a partir daí que os desfiles começavam o seu périplo,

400
atravessando toda a Urbs, passando pelo Circo Máximo, percorrendo a Via Sacra e o Forum
Romanum, até atingirem o Capitólio. Havia, pelo caminho, uma série de edifícios relacionados
com as pugnas gladiatórias e as venationes. O sítio onde se construiu o anfiteatro de Tauro
encontrava-se associado a este conjunto. Consequentemente, o monumento beneficiava da
presença da grande área livre adjacente que constituía o Circo Flamínio, de onde partiu
seguramente a procissão triunfal de 29 a. C.

A gravura de Piranese evoca o aspecto da fachada e da estrutura do edifício: mostra que este
não estava adossado a um talude, como sucedeu no anfiteatro de Pompeia, mas inteiramente
erigido por cima do solo. Em vez de ser plena e maciça, a sua estrutura caracterizava-se pela
sua concavidade, no sentido em que se podia circular entre os muros radiais que a compunham
e dispôr, nos vazios, as galerias e as escadas para a entrada e a saída do público. A fachada, em
pedra aparelhada, traduzia-se numa série de arcadas cujos pés-direitos estavam decorados
com pilastras toscanas. A conexão entre arcos sucessivos e uma ordem arquitectónica não era
inédita, bvisto que se empregou, por exemplo, na frontaria do tabularium (o edíficio onde se
conservavam os arquivos), no tempo republicano. Contudo, foi a primeira vez que tal
combinação se aplicou num anfiteatro.

Presume-se que o tamanho do anfiteatro se afigurasse bastante significativa e que a sua forma
fosse elíptica. Em contrapartida, não restam dúvidas que, se por um lado, a parcela periférica
do monumento era de pedra, a sua parte inferior (e as bancadas), por outro, fez-se em
madeira, que desapareceu no incêndio de 64 d. C. 1079 Nesta altura, Dião Cássio (62.2) relata que
«Toda a Colina do Palatino, o teatro de Tauro, bem como perto de dois terços do resto da
cidade, foram consumidos pelas chamas, e um número incalculável de pessoas morreu». Os
danos terão sido de tal modo grandes na própria estrutura de pedra e na fachada que o edifício
não chegou a ser reconstruído.

No que toca à estrutura concâva do anfiteatro de Tauro, também não significou uma inovação:
ela apareceu bastante antes, na arquitectura dos teatros (desde finais do século II a. C. na
Campânia, mais especificamente em Teanum) e viu-se mais tarde adoptada no teatro de
Pompeio, inaugurado em 53 a. C., uma construção magnífica, situada não longe do anfiteatro
de Tauro: tratou-se do maior e mais prestigioso dos teatros, cuja implantação havia
estruturado todo o coração do Campo de Marte e encetou verdadeiramente a sua urbanização.
É mais do que certo que esta obra grandiosa proporcionou o modelo para o arquitecto que
concebeu a primeira fachada com arcadas de um anfiteatro.

A ordem decorativa escolhida para o anfiteatro foi a toscana, o que igualmente não resultou
do mero acaso, como, aliás, sublinhou K. Welch. Esta ordem, maciça e poderosa, adequava-se
perfeitamente a um tipo de edifício onde se desenrolavam espectáculos violentos, os quais,
por sua vez, revelavam estreitas afinidades com a vertente militar. Esta arquitectura civil, de
estilo menos severo que a do anfiteatro de Pompeia, exibia, porém, certa elegância, embora
Estatílio Tauro tivesse uma forte ligação com o exército: recordemos que ele foi o general das
forças terrestres de Octávio na batalha de Actium (31 a. C.); anos antes, participara nas refregas
contra Sexto Pompeio (36 a. C.) e na guerra da Dalmácia (34-33 a. C.). Tauro financiou a
construção do edifício com o produto dos seus despojos de guerra e o fruto das suas
espoliações no seguimento da sua campanha de África, em 34 a. C. A carreira castrense deste
personagem era bem conhecida, daí que não admire que, na lista dos edifícios a construir, lhe
coubesse o anfiteatro e que o Campo de Marte lhe fosse a zona escolhida, dado que
representava o cenário tradicional para o treino do exército romano.

1079 K. Welch, The Roman Amphitheatre: From its Origins to the Colosseum, Cambridge, 2007, p. 116.

401
Quanto à ordem toscana (ou «etrusca»), era também a nascida na península, pelo que a sua
adopção se coadunava bem com a conjuntura que então se vivia, em que se buscava fundar
uma nova era, assente em tradições de origem itálica, e conferir acrescida importância aos
valores tradicionais. Seleccionou-se deliberadamente a ordem toscana para o anfiteatro, tanto
mais que as demais ordens arquitectónicas (dórica e coríntia) eram, por outro lado, utilizadas
em paralelo na construção de templos e basílicas.

Conquanto nada se saiba acerca da cavea deste anfiteatro, não é difícil imaginar a sua
aparência, se tomarmos em consideração a regulamentação extremamente rígida que se
impôs a partir deste momento histórico. Doravante, o anfiteatro passou a encarar-se em Roma
como um edifício bem digno de interesse. O anfiteatro de Tauro avulta como o primeiro
monumento do ambicioso programa edilitário iniciado após a vitória de Actium, no começo do
Principado, o que evidencia cabalmente a sua relevância. Ele serviu indiscutivelmente de
estereótipo para os grandes anfiteatros dos Júlios-Cláudios, uma vez que as características
arquitectónicas dos últimos se assemelham às do edifício de Tauro. Sabemos alguns
pormenores acerca do pessoal de manutenção do edifício: uma inscrição no túmulo dos Statilii
anuncia que Charito, um dos curadores do anfiteatro, aí recebera sepultura (ILS 5157.); noutra
inscrição da mesma tumba, declara-se a presença de Menandrus, um porteiro do anfiteatro
(ILS 5157). É muito provável que estes dois homens fossem libertos (ex-escravos) de origem
grega (era usual, entre as famílias mais importantes romanas, reservar algum espaço nos seus
monumentos funerários para os seus libertos.

Contudo, o anfiteatro de Tauro não se tornou no local preferido para a celebração de munera.
Os munera imperiais só ocasionalmente nele ocorreram 1080. Dião Cássio conta que Calígula não
apreciava este edifício, embora não nos explique porquê 1081. K. Welch sugeriu que o grande
anfiteatro em Verona (que ainda se mantém de pé), edificado talvez durante o reinado de
Cláudio, deve ter feito com que a estrutura de Tauro em Roma parecesse «pequeno e fora de
moda»1082. Calígula, por seu turno, iniciou a construção de um novo anfiteatro, perto do
Saepta, mas, quando o imperador foi assassinado, ficou inacabado. O seu sucessor, Cláudio,
abandonou o projecto 1083.

Desde o tempo de Augusto e até à inauguração do Coliseu, em 80 d. C., um edifício no Campo


de Marte, designado como Saepta, funcionou como palco para os munera. O Saepta, mais
popularmente conhecido por Ovile (curral de ovelhas) consistia num recinto desprovido de
telhado, onde os Romanos votavam ao longo da República. Em 54 a. C., Júlio César terá
planeado a sua reconstrução, mas não há garantias que ele alguma vez possa haver encetado
essas obras (Cícero, Pro Att. 4.16.8). De qualquer modo, tal espaço veio a ser remodelado
(incluindo a adição de pórticos em seu redor) pelo triúmviro M. Emílio Lépido e posteriormente
inaugurado por Mecenas (26 a. C.), que o decorou com «lajes de mármore e pinturas» (Dião
Cássio, 53.23.1-3). O seu novo título oficial passou a ser Saepta Iulia, em honra de Augusto. Até
antes de as eleições populares se verem transferidas para o Senado, o Saepta começou a
utilizar-se para espectáculos, especialmente pugnas gladiatórias e venationes. Com efeito, foi
empregue com esta finalidade regularmente, no decurso dos reinados de Augusto, Calígula e
Cláudio. O seu enorme tamanho (cobrindo cerca de 8 acres) tornava-o adequado para albergar

1080 Cf. P. Zanker, The Power of Images in the Age of Augustus, Ann Arbor, MI, 1990, p. 70; D. Favro, The Urban
Image of Augustan Rome, Cambridge, 1996, p. 164; J. Edmondson, «Dynamic Arenas…», p. 78.

1081 56.10.5.

1082 Cf. The Roman Amphitheatre…, p. 113.

1083 Suetónio, Div. Calig., 21.1.

402
grandes multidões 1084. Possivelmente, o Saepta Iulia viu-se dotado de mais bancadas, mas
nada restou do edifício. O Saepta continuou a ser o principal sítio para se apresentarem os
munera até à construção de um anfiteatro de madeira, com grandes proporções, sob a égide
de Nero, que mais à frente abordaremos.

Os anfiteatros júlio-claudianos

A partir dos Júlio-Cláudios, fundaram-se muitas colónias de veteranos por todo o território
imperial, enquanto as cidades mais antigas se viram modificadas e outras, novas, tornaram-se
capitais de província (Cartago1085, Augusta Emerita, Tarraco…). As cidades passaram a albergar
monumentos prestigiosos e, em algumas, erigiram-se anfiteatros importantes, que atestam os
progressos da concepção arquitectónica deste tipo de edifício. Analisemos vários exemplos.

Augusta Emerita (Mérida, Espanha) e Carmo (Carmona, Espanha)

P. Carísio, legado de Augusto, fundou a cidade de Augusta Emerita em 25 a. C., para aí


estabelecer os veteranos das guerras cantábricas, pertencentes a diferentes legiões (V Alaudae,
X Gemina, IV Victrix e VII Gemina). Dotada de uma muralha guarnecida por torres e com uma
ponte sobre o Guadiana, tendo um comprimento excepcional, esta cidade foi das mais
importantes da Península Ibérica e capital da província da Lusitânia (Hispania Lusitania). Tal
como outras capitais provinciais, ela cedo se viu provida de uma «panóplia» completa de
grandes edifícios para espectáculos ao estilo romano, compreendendo um teatro, um
anfiteatro e um circo.

O anfiteatro, de consideráveis dimensões, data, segundo as inscrições-dedicatórias, de 8 a. C.


Construído a expensas de Agripa e do princeps Augusto, parece que o objectivo consistia em
incentivar os colonos a fixar-se na cidade. Os eixos do edifício foram alinhados de acordo com
os do teatro adjacente, construído oito anos antes, e os arquitectos optaram novamente por
uma estrutura plena, decerto obedecendo a razões de carácter económico. Actualmente, é
possível observar quase todos os pormenores arquitectónicos deste monumento em razoável
estado de conservação. A arena foi cavada no solo e as bancadas da cavea apoiaram-se nos
escombros de entulho mantidos no interior de compartimentos com muros de alvenaria
irregulares e angulosos. Os últimos, por seu turno, ficaram escorados por uma espessa fachada
composta por blocos de granito local, funcionando assim como poderoso meio de contenção.

1084 Veja-se Amanda Claridge, Rome: An Oxford Archaeological Guide, Oxford, 1998, p. 207. Séneca cita o Saepta,
juntamente com o Forum e o Circo Máximo, como os locais que podiam acolher elevado número de pessoas (Dial.
4.8.1).

1085 O anfiteatro de Cartago, a segunda cidade do mundo latino, sobressai enquanto amostra do esforço
empreendido pelas elites locais na s actividades edificatórias. As dimensões exteriores do monumento eram, em
princípio, de 156 x 128 m, com uma arena medindo 64, 7 x 36,7 m. Talvez comportasse cerca de 35 000
espectadores: cf. J.-C. Golvin, L’Amphithéâtre romain. Essai…, p. 284, n. 174; J.-C. Lachaux (Théâtres et
Amphithéâtres d’Afrique Proconsulaire, Aix, 1979, p. 56) apresenta uma estimativa diferente das dimensões, 178 x
150 m. Veja-se, também, P. J. Wilkins, «Amphitheatres and Private Munificence in Roman Africa», ZPE 75 (1988), p.
216ss.

403
O edifício revela ainda o aspecto pesado e severo dos monumentos típicos das colónias
fundadas para os veteranos do exército romano 1086.

Por ser o anfiteatro da capital da Lusitânia, ele serviu certamente como modelo para vários
dos seus homólogos da província. Em termos globais, o edifício mede 126,3 no eixo maior e
102,6 m no menor. Quanto à arena, tem 64, 5 m no eixo maior por 41,2 m no menor. A
estrutura podia acolher cerca de 15 000 pessoas, localizando-se a sudeste da antiga cidade
romana, implantado numa colina com o eixo maior orientado aproximadamente a norte-sul.
Na metade nascente, construiu-se o anfiteatro aproveitando a rocha aí existente, funcionando
como embasamento para a ima cavea. Na metade poente, o edifício apoiou-se num grande
sistema de muros em opus caementicium, que configuram, no sector correspondente à ima
cavea, dois compartimentos de consideráveis proporções em forma de quarto de elipse,
divididos a meio pelo túnel, onde se situavam os vomitoria de acesso ao anel inferior, do eixo
menor a poente. Este compartimentos foram erguidos através de um muro de betão, que
delimita a superfície da arena, por um lado, e por trás segundo um passadiço/corredor de
circulação (praecintio), que separava a ima cavea da media cavea1087. Salientemos, ainda que,
graças à descoberta de duas inscrições, o anfiteatro continha duas «capelas» dedicadas a
Némesis e Dea Caelestis, assunto que exploraremos numa alínea do capítulo seguinte.

Na sua planimetria, a arena (escavada na colina) mostra uma forma elíptica lembrando a do
anfiteatro augustano de Luceria (Apúlia), outro exemplo bem datado, 2 a. C., pela sua
inscrição-dedicatória e a primeira, note-se, a conter o vocábulo amphitheatrum exarado. Estas
arenas augustanas parecem haver preservado um remoto parentesco com a forma arcaica do
spectacula das origens. Em Augusta Emerita, a arena era servida por duas rampas
descendentes, situadas nas extremidades do grande eixo; davam também acesso, sob a
plataforma da arena, a quatro espaços abobadados (carceres), onde se colocavam as jaulas das
feras, constituindo o hypogeum ou fossa bestiaria1088 que se abriam directamente para a arena
por uma outra porta. Quanto ao podium, com reboco e pintado na sua parte de cima, tinha um
plinto de mármore. Acresce que sobreviveram parcelas de afrescos que ornamentavam a
superfície do muro, ilustrando venationes, as quais actualmente estão expostas no Museo
Nacional de Arte Romano de Mérida.

Sabe-se que, em várias ocasiões, a arena do anfiteatro se viu transformada numa espécie de
«piscina» para a realização de jogos aquáticos», através de um sistema de afluxo de água para
o recinto e, depois do espectáculo, de drenagem da mesma, mas tais eventos terão sido de
carácter excepcional1089.

Apesar de se caracterizar pela austeridade, a fachada não deixa de evidenciar certo encanto,
ao encontrar-se ritmada por saliências decorativas pertencentes à ordem toscana: o seu estilo
é sóbrio e poderoso. Estes muros estavam originariamente cobertos por reboco e as parcelas

1086 Vejam-se: M. Bendala e R. M. Durán, «El anfiteatro de Augusta Emerita: rasgos arquitectónicos y
problemática urbanística y cronológica», in Bimilenario del anfiteatro romano de Mérida: el anfiteatro en la
Hispania romana, Badajoz, Junta de Extremadura, 1995, pp. 247-268; J.-C. Golvin, L’Amphithéâtre et les jeux du
cirque…, pp. 43-49.

1087 Ibidem, p. 249.

1088Actualmente, os visitantes podem observar um fosso rectangular com prolongamentos em forma de cruz no
centro da arena, espaço que correspondia, como dissemos, à fossa bestiaria (ibidem, p. 250), à semelhança do que
também se verifica no anfiteatro de Italica.

1089T. Nogales Basarrate, Espectáculos en Augusta Emerita, Monografías emeritenses 5, Madrid, Fundación de
Estudios Romanos, 2000.

404
construídas com pedras grandes apresentavam bossagens ou ressaltos grandes. O interior da
cavea (que raramente se conservou bem noutros monumentos) ilustra perfeitamente que se
pretendia estabelecer uma separação muito nítida entre os diferentes maeniana, o que mostra
a aplicação estrita das regras de repartição do público por várias categorias, conforme desejava
Augusto. O acesso à ima cavea, do lado oriental, pela cota mais alta, fazia-se desde as
entradas, a nível, por vomitoria, que ligavam a parte mais alta deste anel inferior. No lado
oposto, as entradas permitiam conduzir os espectadores até ao praecintio no topo da ima
cavea mediante escadas. No lado leste do monumento, a media cavea escorava-se
directamente no terreno e, em relação à summa cavea, esta separava-se da precedente por
um praecintio e, contrariamente às anteriores, ao não encontrar-se escavada na rocha ou
assente directamente no terreno, via-se suportada por um conjunto estrutural oco de arcos.
Desta maneira, permitia que se colocassem escadas que acediam ao anel superior 1090.

Passemos a outro caso, mais modesto, mas apesar de tudo digno de referência, o anfiteatro de
Carmona (antiga Carmo), na actual província de Sevilha, que, em princípio (embora haja
discordâncias quanto à datação), foi construído em finais do século I a. C. O seu achado deveu-
se ao mérito de Jorge Bonsor e Juan Fernández López no século XIX. A atenta observação do
terreno fez com que os arqueólogos carmonenses suspeitassem que o lugar mais provável
onde se deveria situar o monumento fosse no chamado «Campo de la Plata». Com esta
premissa, iniciaram as escavações em 1885, durando cinco meses, o que permitiu conhecer a
estrutura do anfiteatro e estimar as dimensões e cronologia, que se publicaram nas Memorias
de la Sociedad Arqueológica de Carmona, em 18871091, se bem que antes Bonsor já houvesse
enviado o estudo à Real Academia de la Historia. Nesta única escavação, escavou-se o sector
oriental do que restava do anfiteatro. Verificou-se que tinha uma orientação Este-Oeste ficou a
descoberto a maior parte da estrutura, ou seja, o imum maenianum e o medium maenianum,
apoiados na encosta. Quanto ao summum maenianum, artificialmente construído,
desaparecera por completo1092. O imum maenianum, assente sobre o podium, o que se
encontrava mais bem conservado, ainda exibia seis degraus, o mesmo não acontecendo com o
medium maenianum, em piores condições. Foi possível ver também, os corredores de
separação nas bancadas (praecinctio), cujos muros ainda se mantinham de pé. Destes, o
superior apresentava, a cada 5, 50 m, vários nichos. Ao ter em conta as filas do imum
maenianum, Bonsor calculou que o edifício possuiria 30 degraus. Veio igualmente à tona uma
das entradas do anfiteatro: em forma de rampa, talhada na rocha, e atravessando, de este a
oeste, toda a parte da cavea: «é uma espécie de passagem, de 4 metros largura por 37 de
comprimento, com uma inclinação do solo entre 6 e 9º, e comunicando directamente o
exterior da cavea com o centro da arena»1093. Estimaram-se, ainda, os eixos da arena, 53,60 m
o maior e 35, 60 m o menor. O anfiteatro de Carmo terá sido um dos primeiros erguidos na
Hispânia, talvez pouco depois do de Augusta Emerita, mas não teve a sorte nem a atenção que
merecia. A seguir à conclusão das escavações, os arqueólogos viram-se obrigados a tapar tudo
o que haviam descoberto por imposição do proprietário onde se localizava o edifício, o Conde
de Rodezno. Henry Thys, em finais de Oitocentos, fez duas propostas de compra da área (a
última em 1898) mas mbas rejeitadas. Só em 1973 é que os proprietários desta estrutura

1090 Ibidem, pp. 251-252.

1091 Descubrimiento de un anfiteatro en Carmona», Memorias de la Sociedad Arqueológica de Carmona, I (1887),


pp. 135-138.

1092J. Maier, «Imagen historiográfica de la Carmo romana», in A. Caballos Rufinos (ed.), Carmona romana,
Carmona, Universidad de Sevilla, 2001, pp. 68-69.

1093 J. Bonsor, «Descubrimiento de un anfiteatro en Carmona…», p. 143.

405
decidiram doá-la ao Estado. A partir de então, puderam retomar-se, finalmente na íntegra, as
prospecções arqueológicas1094.

***

Façamos aqui apenas uma breve referência aos anfiteatros de Mediolanum Santonum (Saintes,
França, edifício começado sob Tibério e acabado no tempo de Cláudio), Vesunna
Petrucoriorum (Périgueux, França) e Limonum Pictonum (Poitiers, França), os últimos dois com
características que os aproximam do primeiro, possivelmente datando do período júlio-
claudiano.Todavia, não vamos aqui discorrer sobre estes três monumentos, preferindo antes
incidir no anfiteatro do santuário das Três Gálias em Lugdunum (Lyon, França). A primeira
etapa construtiva deste monumento remonta ao ano 19 a. C., o que se corrobora mediante a
descoberta da maior parte da sua inscrição-dedicatória: este texto, onde aparece escrita a
palavra amphitheatrum, informa que o edifício foi erguido «em honra e para a salvaguarda» do
imperador Tibério por um tal Gaius Iulius Rufus, oriundo de Mediolanum Santonum (Saintes),
associado a outros membros da sua família; ele exercia as funções de sumo sacerdote das Três
Gálias (Lugdunensis, Belgica e Aquitania). A escolha do local para o anfiteatro não se deveu ao
acaso, visto que tinha uma íntima ligação com o santuário federal onde o doador ocupava o
seu cargo religioso. Houve que realizar grandes obras para lograr implantar o edifício nesse
sítio: fizeram-se escavações na colina da Croix-Rousse, a norte, e enormes terraplanagens a sul,
a fim de lhe proporcionar a estabilidade adequada. O santuário de Roma e de Augusto,
fundado em 12 a. C. por Druso, constituía o lugar onde os delegados dos 60 povos gauleses se
reuniam anualmente, a partir do primeiro dia de Agosto, demonstrando assim a sua lealdade
para com o Império. Em tais reuniões, participavam as mais altas figuras das Gálias e, por vezes
até, o imperador em pessoa. O altar a céu aberto, que ocupava o centro de uma vasta
esplanada, encontrava-se enquadrado, em cada um dos seus quatro ângulos, por altas colunas
sobrepujadas por Vitórias aladas.

Foi no anfiteatro de Lugdunum que Calígula mandou assassinar, motivado pela inveja,
Ptolemeu da Mauritânia (filho de Juba II), seu próprio primo. Este monumento tinha uma
função particular: a de acolher os delegados que vinham participar nas cerimónias e assistir
aos jogos associados, o que explica as dimensões serem bastante modestas inicialmente. A sua
cavea só possuía um maenianum com 12,5 m de largura e uma arena medindo 67,80 por 41,45
m.

Os maiores anfiteatros júlio-claudianos


Verona, Pola (Pula) e Corduba

Apesar de não se descobrirem as suas inscrições, a construção destes dois grandes anfiteatros
situa-se muito provavelmente no período dos Júlio-Cláudios, se nos ativermos ao estudo
atento da sua decoração, detalhes arquitectónicos e do seu contexto arqueológico.
Efectivamente, em ambos os monumentos, há características que correspondem às dos
edifícios desta dinastia imperial, como, por exemplo, a presença de bossagens ou ressaltos no

1094 Antonio Blanco Freijeiro, «El anfiteatro romano de Carmona, Sevilla», Boletin de la Real Academia de Bellas
Artes de San Fernando, 37 (1973), pp. 103-104; Concepción Fernández Chicarro, «Informe sobre las exacavaciones
del anfiteatro romano de Carmona», in XIII Congreso Nacional de Arqueología, Huelva 1973, Saragoça, 1975, pp.
855-860.

406
meio dos blocos de pedra grande, ou o emprego de arcos de «arquivolta simples» (ou arcos
cujos intradorso e extradorso são semicirculares e concêntricos).

Pela amplitude e qualidade de concepção, os dois anfiteatros ultrapassam, de longe, os


exemplos precedentes. Cada um deles possui uma fachada em pedra de cantaria com 62 vãos
de uma altura impressionante, compreendendo dois níveis de arcadas sobrepostas e um andar
de ático. Ao que parece, estes edifícios terão sido os primeiros a dispor de uma galeria de
distribuição periférica no rés-do-chão. Os registos da fachada, com altura decrescente, viram-
se decorados por pilastras de ordem toscana embebidas na caixa murária 1095.

Em Verona1096, o ático, isto é, o registo do topo, rasga-se para o exterior por meio de aberturas
bastante largas e encimadas por um arco, ao passo que em Pola (Pula, Croácia), apenas
comporta janelas quadrangulares, dispostas no centro de cada vão. O esforço de
embelezamento relacionou-se principalmente com o melhoramento da aparência exterior dos
edifícios, uma vez que os processos edificatórios utilizados para a estrutura interna nada têm
de excepcional. No anfiteatro de Verona, todos os muros interiores se construiram com seixos
do Adige (o material local mais corrente) unidos por argamassa de cal e dispostos em camadas
regulares separadas por fiadas de tijolos de regularização. No meio da arena existia uma
grande bacia (que permitia que aí se desenrolassem naumachiae), cuja concepção é mais
sofisticada que a de Augusta Emerita, estando ligada ao sistema de drenagem das águas
pluviais da cavea.

No anfiteatro de Pola, a magnífica fachada que chegou até nós quase completa, foi construída
com calcário local de boa qualidade, exercendo no observador um encanto pouco frequente
neste tipo de edifício. Com efeito, foi possível erigir bases de arcadas muito finas, já que a
estrutura interna era em madeira e, portanto, bastante leve. Subsistiram no reverso da fachada
os orifícios de consolidação das vigas do imenso madeiramento (que desapareceu por
completo), o que nos ajuda a reconstituir a estrutura de madeira. Esta elegante fachada
corresponde, com toda a probabilidade, á fase de extensão de um monumento mais antigo do
principado augustano, e a adição desta parcela periférica explana que se tenham rejeitado as
escadas para o exterior que davam acesso à parte superior 1097.

O monumento de Pola apresenta a originalidade de dispor de quatro grandes caixas de


escadas com forte saliência em relação à fachada. Cada uma corresponde à largura de um vão
de uma arcada e serve ¼ da cavea. No topo desta espécie de «torres», havia cisternas
alimentadas por águas pluviais provenientes da galeria que coroava a cavea. Estes
reservatórios forneceriam a água usada para as aspersões de perfume que suavizavam o odor
durante os espectáculos (sparsiones). Ao compulsarmos os textos antigos (de Vitrúvio e Herão
de Alexandria) que descrevem o mecanismo das bombas hidráulicas, conseguimos reconstituir
com certo rigor o seu aspecto e modo de funcionamento. Um sistema de pistões animados por
uma barra oscilante, movido manualmente, permitia que se bombeasse e pulverizasse o
líquido sob forte pressão. Provavelmente, o anfiteatro de Pola comportava inicialmente uma
espécie de «piscina» no centro da arena, mas, depois, foi transformada num subsolo
(hypogeum), à semelhança do que aconteceu no edifício de Augusta Emerita. O bom estado de
1095 J.-C. Golvin, L’Amphithéâtre et les jeux du cirque…, p. 57.

1096 F. Coarelli e L. Franzoni, Arena di Verona: venti secoli di storia, Verona, Enteautonomo Arena di Verona, 1972,
pp. 23-32. B. Giuliari, Topografia dell’anfiteatro di Verona, Ferrara, Spazio libri editori, 1992; Margherita Bolla,
«L’edificio e la sua storia», in Silvia Corbetta (ed.), 1913-2013: Arena di Verona, Verona, Fondazione Arena di Verona,
2013, pp. 9-18.

1097Para mais detalhes sobre este monumento, consulte-se Stefan Mlakar, The Amphitheare in Pula, Pula, The
Archaeological Museum of Istra, (1ª edição 1957), 2003, pp. 17-29, 45-53.

407
conservação da fachada possibilita, igualmente, que contemplemos, na sua parte superior,
todos os pormenores do encaixe dos mastros de madeira destinados a suportar o velum, que,
em caso de necessidade, como vimos, se estendia por cima da cavea, protegendo os
espectadores do sol ou da chuva. A majestade destas duas fachadas mostra que, no fim do
período júlio-claudiano, a arquitectura alcançara um grau de refinamento que não seria
ultrapassado pelos maiores monumentos da dinastia Flávia.

Por fim, urge discorrer sobre outro anfiteatro do mesmo período, erigido em Colonia Patricia-
Corbuba (Córdova). Em duas sistemáticas campanhas arqueológicas (2002-2004, 2006-2008)
realizadas no terreno que rodeia o edifício do Rectorado de la Universidad de Córdoba (antiga
Faculdad de Veterinaria), examinaram-se os vestígios materiais do que até aí se presumia tratar
do segundo circo da capital da Bética 1098. No entanto, devido à sua planta elíptica e à
descoberta de uma série de monumentos funerários gladiatórios (cf. infra), acabou por se
determinar que o objecto de investigação eram os restos do anfiteatro romano, cuja existência
se conhecia mas não se sabia exactamente onde estava localizado. O anfiteatro cordovês foi
erigido a pouco mais de 300 m a oeste da muralha da cidade, com uma orientação NO-SE,
muito próximo do ramal setentrional da calçada que rumava a Hispalis pela margem direita do
Baetis. Tal via entrava na capital da Bética através do acesso que hoje se denomina Puerta de
Gallegos, dando origem ao Decumanus Maximus ocidental daquela.

Por outras palavras, a estrutura de espectáculos ficou implantada extramuros, embora não
muito afastado do núcleo urbano, adjacente a uma via de comunicação principal e defronte de
um dos mais importantes acessos para o recinto amuralhado da cidade; uma localização,
acrescentamos, que, com base em informes procedentes de Itália e das antigas províncias
ocidentais romanos, não se pode, de maneira alguma, considerar anómala para os anfiteatros.
Com efeito, quando se tratou de localizar os últimos das cidades romanas, os académicos
debateram-se fundamentalmente em torno de duas opções: construí-los intramuros, se bem
que praticamente sempre perto da muralha (ou de outro limite físico, caso existisse) e de uma
porta úrbica; ou então na periferia urbana mais imediata, mas também ao pé de caminhos e
acessos principais. Esta segunda possibilidade foi, aparentemente, a mais preferida (ainda que
talvez não com tanta frequência como tradicionalmente se sustentou) 1099, o que se deveria a
várias razões. Uma das aduzidas durante anos a fio por historiadores e arqueólogos, embora
hoje em dia bastante questionada, foi a religiosa. Ao vincular-se tão directamente os
anfiteatros com a morte (e mais ainda com mortes violentas de indivíduos situados nas
margens da sociedade), a implantação destes edifícios para lá dos limites sagrados da cidade
teria sido recomendável, para evitar a «poluição» física e espiritual dos seus habitantes. Mas a
celebração de combates gladiatórios em espaços forenses – tal como se observa, por exemplo,
na Lex Coloniae Genetivae ou Lex Ursonensis para a Hispânia, ou em fontes literárias da época
republicana e do período augustano referentes a Roma 1100 – e a constatação arqueológica de
que bom número de anfiteatros, começando pelo mais notável de todos, o Coliseu, se situou,

1098Para muitos mais pormenores sobre a descoberta do anfiteatro, bem como acerca de elementos de cariz
arqueológico, consulte-se o estudo colectivo assaz meticuloso de J. F. Murillo Redondo, M. I. Gutierrez, M. C.
Rodríguez e D. Ruíz Lara, «El área suburbana occidental de Córdoba a través de las excavaciones en el anfiteatro.
Una visión diacrónica», in D. Vaquerizo e J. Murillo Redondo (eds.), El Anfiteatro Romano de Córdoba y su entorno
urbano, Monografías de arqueología cordobesa, nº 19 (vol. I), pp. 99-310

1099 A instalação intramuros de alguns anfiteatros foi, certamente, decidida e planeada desde o primeiro
momento. Contudo, muitos outros, edificados no tempo alto-imperial, no exterior das suas respectivas cidades,
acabaram, no período tardo-imperial, por se situar dentro ou fazendo parte de novos recintos defensivos urbanos.

1100G. Tosi, Gli edifici per spettacoli nell’Italia romana, Roma, Qasar, 2003, p. 709; K. Welch, The Roman
Amphitheatre…, p. 30ss.

408
desde a própria altura da sua planificação, no interior dos limites sagrados das suas respectivas
cidades, parecem conferir bastante força à dita proposta.

Assim, há que recorrer, globalmente, a argumentos de carácter mais «prático» para explicar o
porquê de muitas comunidades urbanas decidirem levantar os seus anfiteatros extramuros.
Neste sentido, e dada a grande superfície que eles usualmente ocupavam, o motivo com maior
peso parece ter sido a falta de espaço intra moenia. Cabe igualmente ter em conta que a
localização do anfiteatro fora da cidade facilitaria a afluência aos ludi, tanto aos habitantes
locais como à população estabelecida no território ou pessoas que estivessem de passagem
pelo mesmo, contribuindo ao mesmo tempo para evitar, ou, pelo menos, controlar mais
eficazmente, congestionamentos da multidão ou eventuais tumultos no centro urbano. Tão-
pouco se deve negligenciar o interesse dos seus promotores em proporcionar aos edifícios
óptimas condições de visibilidade a partir de distintos ângulos e distâncias, bem como uma
esmerada cenografia, qualidades que apenas se obteriam melhor ao implantar os anfiteatros
fora dos recintos amuralhados.

Todos estes motivos foram certamente tomados em consideração no momento em que se


começou a construir o anfiteatro patriciense (além de outros de ordem simbólica). De facto, o
seu enorme tamanho e capacidade de acolhimento de espectadores suscitariam graves
problemas urbanísticos e de segurança para a colónia se o edifício se tivesse erguido no
interior da cidade. Ao localizar o edifício numa área suburbana resolviam-se, pois, estas
questões, além de que permitia que tanto desde a cidade como do campo se contemplasse o
anfiteatro em todo o seu tamanho e com suficiente perspectiva, já que com os seus 540 m de
perímetro de fachada e os seus mais de 17 m de altura mínima (talvez chegando a atingir 20), o
anfiteatro de Corduba destacar-se-ia sobremaneira em relação às edificações circundantes.
Entre estas, confinantes ao monumento, existiriam várias estruturas ligadas à organização dos
espectáculos e, talvez, as próprias dependências da única «escola» gladiatória da Hispânia, o
ludus Hispanus. A presença do anfiteatro numa área suburbana não só fez surgir novos espaços
de habitat, a que caberia somar outros relacionados com o comércio e o artesanato. Também
levou à criação de uma zona de inumação colectiva destinada, muito provavelmente e de
forma exclusiva, aos gladiadores tombados na arena patriciense, assim como outros
personagens ligados ao mundo da gladiatura. Isto inferiu-se pelo achado, em redor do Camino
Viejo de Almodóvar (ramal meridional da citada via Corduba-Hispalis, a cerca de 100 m a sul do
anfiteatro, das lápides funerárias de combatentes, datadas entre os séculos I e III d. C.,
ascendendo, pelo menos, a 16 exemplares garantidos. Este corpus de estelas constitui o
conjunto mais numeroso de epigrafia gladiatória descoberto em solo ibérico e um dos mais
significativos de todo o império1101.

As epígrafes cordovesas mostram numerosas e interessantes concomitâncias, tanto na forma


dos suportes como nos textos gravados, com outro grupo substancial de tituli sepulcrales de
gladiadores (14 ao todo) procedentes de Nîmes (antiga Nemausus), onde se confirmou, de
igual modo, haver um cemitério reservado para aqueles que estavam conectados com o
anfiteatro local1102. Também em Salona (Croácia), os arqueólogos depararam com uma
necrópole gladiatória perto do anfiteatro da cidade 1103: trata-se, em concreto, de doze
enterramentos de cremação em urnas (com os nomes dos seus proprietários), encontrados

1101 CIL II2 7/359-369; A. Marcos Pous, «Aportación al estudio de las inscripciones funerarias gladiatorias de
Córdoba», Corduba 1 (1976), pp. 9-53; A. Ceballos Hornero, Los espectáculos en Hispania romana. La
documentación epigráfica, Mérida, 2004, pp. 492-510; 517, 567, nos. 99-111, 118; J. L. Gómez-Pantoja, Epigrafia
anfiteatrale dell’Occidente romano, VII: Hispania… [= EAOR VII], Roma, Qasar, 2009, pp. 91-103, 109-115; cat. 18-
26,31-37, 217. Citemos, por último, o estudo mais recente, extremamente rigoroso e esclarecedor, de S. Sánchez e
D. Vaquerizo, «Epigrafía gladiatoria cordubense», in D. Vaquerizo e J. F. Murillo Redondo (eds.), El Anfiteatro romano
de Córdoba… Monografías de arqueología cordobesa, nº 19 (vol. II), pp. 480-500.

409
num sector da necrópole ocidental; o anfiteatro, a reduzida distância, ficou incluído no ângulo
noroeste do recinto amuralhado sob o reinado de Marco Aurélio. Em Éfeso (Turquia), em 1993,
uma missão arqueológica austríaca achou, quase por acaso, mais um cemitério dos homens da
arena (mas, contrariamente aos demais, não junto de um anfiteatro, pela simples razão de que
esta cidade, capital da província da Ásia, não dispunha de um anfiteatro; os combates
travavam-se no stadion local), acerca do qual nos pronunciaremos mais detidamente noutro
capítulo.

Regressemos ao anfiteatro de Colonia Patricia-Corduba: apresenta uma estrutura de


planimetria elíptica, como dissemos, cujo eixo maior mede cerca de 178 m e o menor uns 140,
o que o torna no maior de Hispânia e o terceiro maior do Império (na momento histórico em
que foi construído, antes do Coliseu, talvez mesmo o de maiores dimensões). A superfície da
arena é de 5, 576 m2 (o podium devia ter uma altura de 2,90m, contando com a cornija e o
balteus), a da cavea 15 875 m2, e o perímetro da fachada 540 m. Com base no método de
cálculo formulado por J.-C. Golvin, ao aplicá-lo no anfiteatro patriciense conseguiria albergar 39
688 espectadores1104. Quanto às bancadas, dividiam-se, de acordo com a hieraquização
imposta por Augusto, em três níveis – ima cavea, media cavea e summa cavea. Contudo, resta
muito a fazer em termos de trabalho de campo, porque as prospecções arqueológicas ainda
estão longe de se encontrar terminadas1105. Conquanto não existam provas até à data, é de
supor que o anfiteatro comportaria um hypogeum (ou uma fossa bestiaria) à semelhança de
outros casos aqui mencionados.

Através das informações estratigráficas que se lograram reunir nas campanhas de escavações
e, sobretudo, das que nos fornecem os conjuntos de peças de cerâmica associados aos seus
níveis de fundação, pode afirmar-se que o anfiteatro foi erguido no período Cláudio-
Neroniano1106. As ditas evidências, aliadas à cronologia (semelhante) do complexo oriental do
culto imperial, assim como ao nexo urbanístico que houve entre o último e o primeiro – e ao
mesmo tempo com o forum novum de Corduba – e às similariedades que ambos mostram
entre si quanto a materiais e técnicas edilícias, levam-nos à seguinte conclusão: longe de
corresponderem a elementos independentes, o anfiteatro e o conjunto monumental sito na
actual Rua Claudio Marcelo Orive faziam parte de um só projecto urbanístico, concebido em
finais da dinastia Júlio-Cláudia e executado de maneira quase simultânea. As consequências
que este facto tem para o conhecimento arqueológico e histórico da Corduba alto-imperial são
múltiplas e variegadas, pelo que só podem analisar-se com pormenor e profundidade através
de outros (futuros) estudos.

Aqui, cingimo-nos só àquelas consequências mais directamente relacionadas com a imagem


urbana desenvolvida pela Colonia Patricia no terceiro quartel do século I d. C. Nesta altura, a
capital da Bética pôs em marcha um ambicioso plano construtivo destinado, acima de tudo, a

1102 V. Hope, «The gladiators of Roman Nîmes», in R. Laurence e J. Berry (eds.), Cultural Identity in the Roman
Empire, Londres, 1998, p. 182ss.; J. L. Gómez-Pantoja, «Entre Italia e Hispania: los gladiadores», in A. Sartori e A.
Valvo (eds.), Hiberia-Italia. Convegno Internazionale di Epigrafia e Storia Antica di Gargnano-Brescia (28-30 aprile
2005), Milão, 2006, pp. 171-172.

1103 V. Hope, «The gladiators of Roman Nîmes»…, p. 183.

1104 J. F. Murillo Redondo, M. I. Gutierrez, M. C. Rodríguez e D. Ruíz Lara, «El área suburbana occidental de
Córdoba a través de las excavaciones en el anfiteatro…», p. 276.

1105 Cf. J. F. Murillo Redondo, «El anfiteatro cordubense», in Córdoba, reflejo de Roma, Córdova, 2011, pp. 236-
239.

1106 Idem, «El descubrimiento del anfiteatro de Corduba», AAA 2004.1 (2009), p. 668, 672.

410
dotar as suas fachadas oriental e ocidental e suas cercanias de um aspecto mais conforme com
o que o núcleo urbano intramuros já contava desde o período augustano e o início do júlio-
claudiano (graças à remodelação do forum colonial e à construção do teatro e do forum
novum); tal plano também estava conectado com o peso político e económico então exibido
pela cidade, não apenas no âmbito da provîncia, mas no conjunto do império. Ademais, para
transformar ambas as fachadas em «cartões-de-visita» da colónia, perfeitamente visíveis ao
longe, os «desenhadores» do referido plano resolveram projectá-las em direcção aos espaços
suburbanos adjacentes, por meio da erecção concomitante de diversos pontos de referência
arquitectónicos: um recinto religioso ligado a uma praça e a um grande circo a levante, bem
como um anfiteatro aparentemente enorme (em princípio, o maior, como dissemos, de todo o
império até à edificação do Coliseu), a poente. Estamos perante estruturas diferentes no que
respeita a componentes e à linguagem formal, mas não tanto na magnitude e no que tem a ver
com as suas conotações ideológicas ou aos dos ritos e ludi que nelas se celebravam.Tanto em
circos como em anfiteatros exaltavam-se, mediante os seus respectivos jogos, o poder, a vitória
e o domínio univeral de Roma.Por conseguinte, os notáveis edifícios construídos na fase tardia
dos Júlio-Cláudios, juntamente com as fachadas leste e oeste da Colonia Patricia devem
entender-se, segundo J. A. Garriguet, «não como “competidores” em grandiosidade mas
enquanto elementos complementares, partes distintas de uma mesma mensagem oficial que
cantava aos quatro ventos a glória de Roma» 1107 (e também a da sua orgulhosa emulação
bética). Sob esta perspectiva, e não obstante as suas inegáveis diferenças, é evidente que uma
não poderia perceber-se correctamente sem a outra, como tão-pouco sem a mútua conexão de
ambas com o centro cívico da colónia, nem, desde logo, considerar-se «superior» ou mais
importante em razão da sua suposta monumentalidade.

Fora da Urbs e de Itália, nos quase cem anos decorridos entre a ascensão ao poder de Augusto
e a morte de Nero, construiu-se um apreciável número de anfiteatros permanentes. A maioria
deles maciços e de modestas dimensões, uns quantos, em contrapartida, de estrutura mais
complexa e tamanho considerável. Algo de semelhante se pode dizer sobre o Ocidente
provincial1108. Causa, então, surpresa que estudiosos como Gros e Bouet aludam nos seus
trabalhos de síntese a tais anfiteatros júlio-cláudios em pedra e à sua relevância para a difusão
e evolução deste tipo de edifício; os dois autores passam, praticamente sem solução de
continuidade, da etapa augustana (o anfiteatro de Estatílio Tauro) à flávia (o Coliseu).

Por volta dos anos 50-60 do século I da nossa era, quando os anfiteatros já haviam começado
a impor-se claramente aos teatros na qualidade de principais edifícios de espectáculos em
Itália e nas províncias ocidentais, não espanta que a cidade de Corduba se lançasse (sozinha ou
com apoios da províncias ou da própria capital, através da família imperial, não sabemos) na
construção da sua estrutura para os munera. Mas o que chama à atenção e nos deixa um tanto
desconcertados é o facto de o amphitheatrum patriciense se afigurar tão descomunal e,
presumivelmente, muito oneroso, o que, por outro lado, se coadunava com o preço dos
spectacula que nele se realizariam; provavelmente, afirmamos, uma vez mais, o maior que o
mundo romano terá conhecido até esse momento, talvez apenas ultrapassado pelo ulterior
Coliseu. Urge perguntar, desde logo, acerca das razões que motivaram este feito (que não se
pode desvincular das demais operações urbanísticas empreendidas em Corduba de maneira
quase coetânea), assim como as repercussões que o mesmo implicou, afora a sua
transcendência no que concerne à imagem urbana da Colonia Patricia. Terá sido um gosto
desmedido pelos espectáculos sangrentos dos habitantes de Corduba e seu território o que
incitou, ante uma suposta grande procura de tais ludi por aqueles, à edificação de um

1107Cf. «El anfiteatro de Colonia Patricia-Corduba en el marco de la ideología imperial», in D. Vaquerizo e J. F.


Murillo Redondo (eds.), El Anfiteatro Romano de Córdoba y su entorno urbano…., nº 19 (vol. II) p. 475.

1108 K. Welch, The Roman Amphitheatre…, pp. 126-128.

411
anfiteatro com tamanha amplitude? Ou a própria instalação da escola» de gladiadores da
Hispânia (a única em solo ibérico) na capital da Bética? Por muito peso que possam haver
assumido os dois factores ou algum deles, resulta certamente muito difícil aceitar que uma
afición desmesurada pelos munera ou a simples presença em Corduba do ludus Hispanus
constituíssem os principais catalisadores para levantar um edifício tão impressionante.

É necessário buscar argumentos muito mais sólidos para explicar este fenómeno. No intento
de os encontrar, talvez caiba pensar em várias questões: por um lado, na ideia do anfiteatro
como emblema de romanização e na identificação total e absoluta da Colonia Patricia com
Roma e o Ocidente romano; por outro, pensar igualmente na realão urbanística do anfiteatro
cordovés com o complexo oriental coevo do culto imperial, ao qual teria dado justa réplica no
flanco ocidental, e com o forum novum.

Aludamos, por fim, a outro aspecto, ainda que de maneira sucinta (dado que merece, per se,
um estudo específico e detalhado), o do papel que o anfiteatro de Corduba eventualmente até
pode haver desempenhado no contexto da popularidade crescente alcançada por este tipo de
edifício nas cidades romanas ao longo do século I d. C. É indiscutível que o modelo
arquitectónico reproduzido na estrutura patriciense não se revelou, de modo algum, moderno
nem inovador, nem tão pouco veio a conhecer continuidade após a construção do
Amphitheatrum Flavium, com desenho muito mais diáfano e avançado. Em contrapartida, J. A.
Garriguet sugeriu que o anfiteatro de Corduba pode ter representado, para o próprio Coliseu
ou outros edifícios posteriores, um bom exemplo, pelo menos, «de como a colossalidade,
combinada com uma localização adequada, serviria para incrementar substancialmente o valor
propagandístico, enquanto espaço transmissor de ideias»1109.

Dois projectos originais no tempo de Nero

O anfiteatro de Leptis Magna (a maior cidade da Tripolitania) é, inequivocamente, o que


melhor se conservou no mundo, dado que ainda contém a maior parte das suas bancadas. O
edifício foi inteiramente escavado numa zona rochosa costeira, e a sua forma de origem,
intacta, apresenta a espantosa peculiariedade de não consistir numa elipse. A arena e a cavea,
com as suas extremidades semicirculares unidas por uma curta parte rectilínea, recordam
estranhamente a configuração arcaica do spectacula construído no Forum Romanum, ou o do
embasamento do anfiteatro de Pompeia.

Assume pertinência perguntar o que terá incitado os arquitectos a adoptar tal fórmula numa
data tão avançada, e não a da elipse, que já se empregava correntemente há algum tempo. O
anfiteatro de Leptis Magna data de 56 d. C., facto confirmado pelo texto da dedicatória que se
encontrou colocada por cima de uma das entradas do grande eixo da arena. Há uma explicação
para se tenha adoptado tal configuração incomum: urge situar a criação deste edifício na
conjuntura histórica muito específica do reinado de Nero, no que concerne aos espectáculos.
Sabe-se que este imperador iniciou novos jogos (os neroniana) que, aos combates gladiatórios
e às venationes, adicionou naumachiae, representações cénicas e competições desportivas
englobando modalidade de origem grega. As últimas eram principalmente apreciadas no
mundo helénico, e a sua introdução em Roma mostra, acima de tudo, os gostos pessoais do
princeps, que esteve frequentemente na Grécia. É, pois, compreensível que os edifícios
destinados a oferecer um género de espectáculo tão inédito tivessem, de igual modo, uma

1109 Cf. «El anfiteatro de Colonia Patricia-Corduba en el marco de la ideología imperial»…, p. 479.

412
forma peculiar, apatada à sua função. A estrutura de Leptis Magna devia servir, ao mesmo
tempo, como estádio, teatro e anfiteatro.

Em 57 d. C., menos de um ano após a inauguração do anfiteatro acima descrito, Nero mandou
construir no Campo de Marte um monumento de madeira, atrás referido, obedecendo às
mesmas finalidades do primeiro. Nem o Saepta, nem o anfiteatro de Tauro, demasiado
pequeno, serviam adequadamente como cenários para os combates de gladiadores. Ignoramos
se o anfiteatro de Nero, apesar de construído em madeira, se destinaria a ser um edifício
permanente ou, tão-só, uma solução provisória. Porém, a sua magnificência talvez aponte para
a primeira hipótese. O monumento neroniano revelou-se de tal modo impressionante que
inspirou um poeta coetâneo, Calpúrnio Sículo a dedicar-lhe uma série de linhas nas suas
Bucólicas: nestas, inseriu um relato de uma venatio patrocinada por Nero aquando da
inauguração da estrutura, o que serviu de pretexto para discorrer sobre a mesma. Observamos
este anfiteatro através de uma personagem fictícia, um rústico chamado Corydon que, depois
de regressar a casa, conta a um amigo como o anfiteatro de Nero era a coisa mais espantosa
que ele jamais havia visto na Urbs. Corydon também menciona uma conversa entabulada com
um ancião que estivera sentado ao seu lado durante o espectáculo, e a comparação que o
idoso fizera relativamente a antigos locais para munera e venationes: «Tudo o que vimos nos
anos precedentes era barato e com mau aspecto» (Ecl. 7. 45-46).

Tácito, por seu lado, enalteceu brevemente o anfiteatro neroniano, reportando-se à sua
massividade:

«[Neste tempo] poucas coisas aconteceram dignas de registo, a não ser que se goste deelogiar o
preenchimento de volumes das fundações e vigas de madeira, com as quais Nero mandou construir o
seu grande anfiteatro no Campo de Marte» (Ann. 13.31).

Corydon ficou siderado face à grande altura do anfiteatro, dizendo que «praticamente fica
sobranceiro ao cume Tarpeiano [o ponto mais alto da Colina Capitolina]» (Ecl. 7.23-24). É claro
que se trata de uma hipérbole poética, mas, ainda assim, a sua sua altura seria efectivamente
considerável. O ponto mais elevado da Colina Capitolina situa-se aproximadamente a 165 m
acima do Forum; quanto ao futuro Coliseu, atingiria 15,5 pés 1110. Consequentemente, mesmo
que o monumento neroniano fosse mais baixo do que o pico da Colina Capitolina, não custa
admitirmos que se aproximasse da altura do ulterior Anfiteatro Flávio. No entanto, há mais a
realçar sobre o edifício de Nero, afora o seu tamanho maciço. O velho sentado junto de
Corydon chama-lhe a atenção para os luxuosos ornamentos do anfiteatro:
«Repara como as gemas que decoram o muro [balteus] e os pórticos adornados com ouro competem entre si, ao
refulgir com a luz do sol»1111.

Ao alicerçarmo-nos noutra fonte, obtemos mais informes sobre as ditas «gemas»: Plínio-o-
Velho escreveu que um tal Juliano, o homem a cargo das pugnas gladiatórias (curator) enviou
um cavaleiro romano em busca de âmbar à Panónia (que corresponde, grosso modo, ao Oeste
da Hungria actual) e à costa báltica da Germânia. O indivíduo teve êxito na sua missão e
retornou a Roma com abundante quantidade de âmbar, que se utilizou para ornamentar os nós
das redes (que protegiam a multidão dos animais selvagens durante os espectáculos), armas e
padiolas para transporte de mortos e feridos, etc. Aparentemente, capta-se uma pequena
discrepância quando o ancião alude aos nós das redes decoradas com ouro, mas Plínio

1110 A. Claridge, Rome…, p. 276.

1111 Ecl. 7.47-48. Num anfiteatro, recordemos que o balteus («cinturão») era uma das balaustradas que existiam à
volta de todo o edifício, que dividiam, nas bancadas, os lugares sentados em diferentes níveis (maeniana).

413
também afirma que o âmbar se empregou só num dia; os demais adornos valiosos usaram-se
nos restantes dias de espectáculos1112.

Corydon aponta para outras características do anfiteatro neroniano: consistiam em dois


dispositivos para proteger o público dos predadores de grande porte, que podiam saltar e
transpor o podium. As caçadas de animais selvagens encenadas podiam tornar-se perigosas
para os espectadores, como queda demonstrado numa venatio oferecida por Pompeio Magno
no Circo Máximo (55 a. C.), quando vários elefantes enfurecidos e desorientados quase
conseguiram derrubar uma vedação de ferro que protegia a multidão. Este episódio levou a
que Júlio César, em 46 a. C., mandou cavar um fosso circular (euripus) cheio de água no Circo
Máximo, por forma a manter à distância as feras da asssistência (Suetónio, Divus Iulius, 39.2).

O elemento mais inovador da segurança no monumento neroniano era um grande cilindro de


marfim (rotulus), que se encontrava preso na horizontal ao podium. Tratava-se de uma maneira
que frustraria quaisquer tentativas ensaiadas por felinos para alcançarem os espectadores
sentados mais perto da arena (Ecl. 7. 48-53). Corydon refere-se igualmente a redes estendidas
sobre a arena, fixas a presas de elefante, que se projectavam a partir do muro em redor da
pista (ibidem, 7. 53-55). Se, como parece, as redes também se destinavam a reforçar a
segurança, o emprego dos vocábulos rotulus, no singular, e retia/«redes», no plural, talvez
sugira uma explicação da redundância. Como, em princípio, só havia um rotulus, seria lógico
que o clindro estivesso preso ao podium, imediatamente defronte do camarote do imperador,
como medida de protecção adicional. Assim, depreende-se que as redes estendidas à volta do
resto do muro da arena funcionavam como meios protectores para os demais espectadores.
Na realidade, existiriam decerto, também, redes para salvaguardar a integridade física de Nero,
além do rotulus1113.

Mas as redes também obedeciam a outro propósito: evitar que os animais, ofuscados pela
luminosidade e atordoados pelo clamor da multidão se abrigassem junto ao podium, em zonas
onde alguns espectadores os não conseguiam ver 1114. A. Scobie advertiu para a presença de
suportes pétreos para postes de vedação na arena do Coliseu, a 4 m do podium e a 4,3 m de
distância entre eles, muito provavelmente para oferecer acrescida segurança ao público 1115. O
mesmo autor sublinhou igualmente que, embora alguns estudiosos presumam que esse
género de vedação possuía um rotulus e redes suspensas a partir de dentes de elefante, não há
motivos para supor que estes elementos do anfiteatro neroniano tenham sido adoptados no
Coliseu1116.

Porém, durante os jogos inaugurais no anfiteatro neroniano, o maior perigo para o imperador
não teve a ver com os animais selvagens. Um dos eventos foi a recriação de episódios
mitológicos, como o de Pasifeia (lendária rainha de Creta, casada com Minos e geradora do
Minotauro) e o de Ícaro, mas não enquanto meio de execução de criminosos. Suetónio
qualifica estas encenações como pyrrhicae. O termo pyrrhica, tomado de empréstimo do
grego, é habitualmente traduzido como «dança pírrica», ou seja, uma dança de guerra com
armadura, em conformidade com o seu significado original. Aqui, todavia, a sua aplicação
indica que o étimo ganhou uma nova conotação mais alargada na época imperial, incluindo
1112 Ecl. 7. 53-54; Plínio-o-Velho, Hist. Nat. 37.45.

1113 G. B. Townend, «Calpurnius Siculus and the Munus Neronis», JRS 70 (1980), pp. 171-173.

1114 D. Bomgardner, The Story of the Roman Amphitheatre…, pp. 20-21.

1115 «Spectator Security and Comfort at Gladiator Games…», p. 210.

1116 Ibidem, p. 210, 238, n. 113.

414
performances dramáticas1117. Nero contratou jovens gregos para desempenharem os papéis de
Pasifeia e Ícaro, prometendo-lhes a cidadania romana em troca da sua actuação no
espectáculo. Após a representação da penetração de Pasifeia por um touro, seguiu-se a
recriação do destino de Ícaro (que perdeu, no meio do voo, as asas artificiais feitas por Dédalo,
seu pai, caindo ao mar). Quando o actor que fazia de Ícaro deixou de estar preso ao
mecanismo que o mantinha no ar (talvez suspenso de um cabo a partir de uma grua), estaria
certamente previsto que cairia sobre uma rede ou um tanque com água. Mas acontece que se
viu liberto na altura errada, aterrando directamente na arena, suficientemente perto do
princeps para o salpicar de sangue. Suetónio dá a entender que este acidente conduziu Nero a
raramente presidir os espectáculos e, quando o fez, assistia aos eventos através de pequenos
orifícios, dentro de um camarote completamente fechado. Só mais tarde, talvez quando
reganhou coragem, é que voltou a aparecer aos olhos do público. No entanto, Suetónio não
indica claramente que o objectivo do camarote quase hermético consistisse numa medida de
segurança1118.

O anfiteatro neroniano tinha uma área de armazenamento subterrânea, o hypogeum, que


permitia que os animais fossem soltos das suas jaulas para a arena através de alçapões,
aspecto característico, como vimos, associado aos combates gladiatórios e à venationes desde
finais do século I a. C. Corydon diz-nos que se utilizavam alçapões mediante os quais emergiam
árvores no meio da arena, envoltas numa nuvem de vaporização de açafrão, a fim de criar um
cenário apropriadamente rural para a caçada das feras 1119.

Outros casos particulares

Em algumas situações, em que determinados contextos culturais e políticos exerceram


influência, os munera e as venationes desenrolaram-se em edifícios cuja forma não era elíptica.
O melhor exemplo encontra-se na Judeia, onde o rei Herodes-o-Grande construiu na sua nova
capital, Caesarea Maritima (baptizada em honra de Marco António; cf. infra), um monumento
polivalente que funcionava concomitantemente como estádio, circo e anfiteatro 1120. Sublinhe-
se que se erigiram vários edifícios do mesmo género em cidades como Neapolis (Naplus),
Jericó e, provavelmente, Jerusalém 1121, cuja forma geral e dimensões se equiparavam mais às
de um estádio do que de um circo ou um anfiteatro. Herodes quis introduzir no seu reino o
espectáculo de pugnas tão apreciado em Roma e no Oriente grego, sem todavia suprimir as
competições atléticas. A construção de um espaço polivalente permitia satisfazer todas as

1117 K. M. Coleman, «Fatal Charades: Roman Executions Staged as Mythological Enactments», JRS 80 (1990), p. 68,
n. 200.

1118 G. B. Townend («Calpurnius Siculus…», p. 173) argumantou que a caixa fechada estava montada no primeiro
dia do munus, porque Nero tinha medo de ser atacado por feras, mas depois a primeira removeu-se quando o
imperador se certificou que as redes se afiguravam eficazes. Por seu lado, David Woods («Pliny, Nero, and the
‘Emerald’», NH 37, 67», Arctos 40 (2006), p. 195) afirmou que o objectivo de tal caixa era o de permitir que o
princeps espiasse os espectadores sem ser visto.

1119 Q. Nat. 2.9.2.

1120Y. Porath, «Herod’s ‘Amphitheatre’ at Caesarea: A Multipurpose Entertainment Building», in J. Humphrey (ed.),
The Roman and Byzantine Near East: Some Recent Archaeological Research, Ann Arbor/MI, 1995, pp. 15-27.

1121 No entanto, por enquanto, o edifício citado em textos antigos ainda não foi localizado com exactidão.

415
exigências. Mas se, por um lado, possuía as características apropriadas para um estádio, o
edifício não constituía um bom anfiteatro, nem um circo digno de nota.

Situação comparável parece ter sucedido noutro reino «amigo do povo romano», a
Mauritânia. Os monarcas mauri e númidas sofreram muita influência da cultura helenística. O
anfiteatro de Iol Caesarea (Cherchel, Argélia), com a sua forma «arcaica» assaz alongada, evoca
mais um edifício multi-usos do tipo herodiano do que um verdadeiro anfiteatro romano. Mas
esse monumento diferia num ponto: apresenta duas extremidades semicirculares, pelo que
está desprovido de estalas de partida para carros e cavalos, o que mostra que não podia
exercer a função de circo. O rei Juba II, que viveu durante a sua infância em Roma, pretendeu,
também ele, oferecer munera e venationes. A configuração particular do seu edifício sugere
que este também servia como estádio para competições atléticas, à semelhança do que
acontecia correntemente na pars Orientalis do mundo romano.

Estes casos raros inseriram-se em contextos precisos, os de reinos independentes mas que já
viviam fortemente na órbita de Roma. Depois da anexação destes territórios ao império, não se
construiria mais nenhum monumento deste género. Por toda a parte, viria a impor-se o
anfiteatro elíptico: observa-se isto em Cesareia da Judeia, onde um anfiteatro autêntico e um
grande circo, independentes do edifício mais antigo polivalente, se levantaram após a dinastia
dos Júlio-Cláudios, bem como nos monumentos das cidades da Mauritânia, Númídia e da
província de Africa.

Ainda assim, os anfiteatros elípticos da Judeia, como os de Beth Guvrin 1122 e Beth- she’an
(Scythopolis) continuaram a patentear características especiais: estavam dotados de uma arena
elíptica muito ampla, rodeada por uma cavea espantosamente estreita, o que indicia que os
espectáculos neles apresentados divergiam, em certas vertentes, daqueles oferecidos em
Roma e no resto do império 1123, mas na verdade não podemos usar de mais precisão em fase
do estado actual das investigações consagradas a este respeito. Na última alínea do presente
capítulo exploraremos em detalhe a questão dos anfiteatros e de outras estruturas adaptadas
nas províncias do Oriente romano.

O insuperável Anfiteatro Flávio, a oitava maravilha do mundo

O Anfiteatro Flávio, habitualmente conhecido como Coliseu, merece perfeitamente o


qualificativo de colossal em razão das suas excepcionais dimensões (187,50 x 155,60 m).
Albergava a maior arena alguma vez construída (79,35 x 47,20 m) e uma cavea de 54,20 m de
largura. Podendo acolher uns 45-50 000 espectadores, ele ultrapassava indubitavelmente, pela
sua amplitude, todos os demais anfiteatros erguidos antes ou mesmo depois.

Antes de se proceder a uma análise relativamente circunstanciada do Coliseu, importa abordar


a questão dos limites absolutos das possibilidades de extensão dos anfiteatros romanos 1124.

1122 A. Kloner e A. Hübsch, «The Roman Amphitheater of Beth Guvrin …», pp. 85-106.

1123 J. C. Golvin, L’Amphithéâtre romain et les jeux du cirque…, p. 76.

1124 Para dados pertinentes e esclarecedores sobre o desenho dos anfiteatros, veja-se Mark Wilson Jones,
«Designing Amphitheatres», Mitteilungen des Deutschen Archäologischen Instituts römische Abteilung (1993), pp.
391-442.

416
Não era possível aumentar incessantemente todas as dimensões da arena elíptica, já que isto
tinha por consequência afastar o espectador dos combates que se travavam na arena. Para lá
de um certo limite, o observador não se apercebia em detalhe as técnicas empregues pelos
gladiadores, aspecto de suma importância porque o público deleitava-se em assistir à arte do
ataque, da esquiva ou da defesa. A forte diferenciação das panóplias, as formas específicas dos
elmos e dos escudos, o facto de não se ver o rosto da maioria dos combatentes, à excepção do
retiarius, não obrigava a que se contemplasse os duelos muito perto. O outro meio de
amplificação do efeito do espectáculo era o aumento do número de gladiadores, mas esta
solução, adequada para o circo, não se aplicava no anfiteatro, onde apenas tinha lugar uma ou
duas porfias de cada vez.

Os próprios constrangimentos técnicos também impuseram uma limitação da largura da


cavea. Sabe-se que, para garantir boas condições de observação, através de um ângulo de
visão favorável sobre a arena a partir de cada um dos lugares, as bancadas eram inclinadas.
Assim, a altura da cavea (e a da fachada) aumentava inevitavelmente em função do
recrudescimento da sua largura, o que levaria então a construir um monumento cada vez mais
elevado para obter, com grandes custos, lugares cada vez piores para a assistência.

A inclinação das bancadas era acentuada em cada maenianum para manter sempre um ângulo
de visão favorável, em função do aumento da altura (por exemplo, no alçado do anfiteatro de
Thysdrus, actual El-Djen, a inclinação passa progressivamente de 38 para 40º). Quanto mais
abrupta se revelasse a inclinação, menos confortáveis se tornavam os lugares situadaos na
parte superior, na medida em que a superfície facultada aos espectadores sentados se
afigurava acrescidamente reduzida.

Nesta matéria, houve ainda outros motivos, de ordem fisiológica, a desempenhar o seu papel:
a percepção do relevo, fundamentada na visão binocular humana era tanto maior quanto o
combate fosse observado mais perto; consequentemente, quanto mais longe se desenrolasse o
prélio, menos força e impacto este assumiria. Ademais, o esforço que os nossos olhos fazem
para se adaptarem (isto é, regular a concavidade do cristalino e oferecer sempre uma visão
clara em função da distância) confere à nossa percepção um carácter activo e eficaz.
Ultrapassado um limite de cerca de 60 m, tal adaptação não se produz e a percepção do
espectáculo torna-se neutra e morna. É um dado adquirido que não se excedeu o limite de 60
m entre os espectadores situados mais afastados e o espectáculo na arena no Coliseu, embora
este monumento signifique, como dissemos, o maior anfiteatro que seria possível construir.

Assim como as dimensões do teatro romano eram limitadas pelas condições da percepção
acústica humana, as possibilidades de extensão do anfiteatro correspondiam aos limites da
percepção visual humana de um par de gladiadores a lutar. Neste sentido, o Anfiteatro Flávio
mostra-se também insuperável. Estreitamente ligado às condições da percepção visual
humana, o anfiteatro romano merece plenamente a designação spectacula que originalmente
lhe foi atribuída.

Cabe também aludir a outra questão, os dois modos através dos quais se construíam os
anfiteatros: um consistia em aproveitar as características topográficas do terreno, implantando-
se em terraplenos ou encostas – aquilo que J.C. Golvin denominou «estrutura plena» -, e o
outro, que se erigia mediante um forum artificial, estando os anfiteatros rodeados por muros
ornamentados com arcadas, que aligeiravam a visão da fachada, o que Golvin chamou de
«estrutura».

Nos seus epigramas apresentados por ocasião da inauguração do Coliseu, o poeta Marcial
(Liber spectaculorum, 1.33), após aludir às outras maravilhas do mundo (as pirâmides do
Egipto, os Jardins Suspensos de Babilónia, o templo de Artemisa/Diana em Éfeso, o

417
monumento funerário de Mausólo de Halicarnasso…), proclamou: «Toda a obra humana cede
perante o anfiteatro de César: a reputação apenas se celebrará a uma em lugar de todas as
demais». Não sem bajulação, Marcial fez do Coliseu a oitava e mais espantosa das maravilhas
do mundo. Com os seus oitenta arcos, os seus três níveis de galerias com arcadas sobrepostas
e a sua fachada com mais de 50 m de altura (actualmente com 48 m), o Anfiteatro Flávio
impressionava pela sua imponência e massividade. Erigido no centro da Cidade, era bem visível
a partir do Forum Romanum, a praça venerável onde tiveram lugar os primeiros combates
gladiatórios na Urbs. Acresce que o Coliseu ficava igualmente no percurso dos cortejos triunfais
e ocupava um espaço privilegiado no meio urbano.

Conquanto Marcial tenha adoptado uma linguagem hiperbólica acerca do Coliseu, o seu
entusiasmo relativamente a este é, de todo, justificado. A estrutura era, efectivamente, uma
maravilha para todos os que o contemplaram no seu estado original. Muito mais tarde, em 358
d. C., quando o imperador do Oriente, Constâncio II (filho de Constantino I) visitou Roma pela
primeira vez, também ficou impressionado pelo tamanho monumental do edifício erguido
pelos Flávios. Ele referiu-se à «sólida massividade do anfiteatro, construído com travertino de
Tibur, cujo topo os olhos humanos tinham de se esforçar para ver» 1125. O exagero poético
representa bem o impacto emocional que o Coliseu exercia sobre aqueles que o observaram
pela primeira vez. Note-se que Marcial se reporta a este monumento como o «anfiteatro de
César [isto é, o imperador]» e não como «Coliseu», designação desconhecida até ao início da
Idade Média. O seu nome oficial era Amphitheatrum Flavium, pelo simples facto de haver sido
construído pelos imperadores Flávios (Vespasiano e os seus dois filhos, Tito e Domiciano), mas
na prática chamava-se-lhe «o anfiteatro», devido ao seu carácter único e inexcedível em todo o
império.

O nome ulterior de Coliseu (Colosseum) teve duas origens possíveis: o tamanho colossal da
própria estrutura edificatória ou, então, uma estátua de bronze colossal (colossus) de Nero,
que se calculou medir cerca de 30-35 m de altura, obra em do escultor grego Zenodoros, que
representava o imperador acompanhado por elementos próprios da iconografia de Hélios (o
deus sol). Tal efígie encontrava-se inicialmente no átrio da Domus Aurea de Nero 1126. A seguir
ao grande incêndio de 64 d. C., Nero apropriou-se do terreno sobre o qual fez construir o seu
palácio, instalando um vasto lago artificial que, mais tarde, se tornaria no sítio onde se erigiu o
Coliseu (Suetónio, Nero, 31.1-2). Depois da demolição da Domus Aurea e da drenagem do lago,
a estátua neroniana permaneceu in loco, mas, no reinado de Adriano, foi transladada, sob a
direcção do arquitecto Decriano (utilizando-se, para o efeito, a força motriz de 24 elefantes)
para muito próximo do novo anfiteatro. Alguns afirmaram que um famoso poema atribuído,
erradamente, ao monge bretão Beda-o-Venerável, que data do século VIII, se reporta ao
Amphitheatrum Flavium sob a designação Coliseus, no sentido de «edifício colossal»:
Quandiu stabit Coliseus, stabit et Roma/ «Enquanto estiver de pé o Coliseu, estará em pé Roma

Quando cadet Coliseus, cadet et Roma;/«Quando cair o Coiseu, cairá também Roma»

Quando cadet Roma, cadet et mundus/ «Quando cair Roma, cairá também o mundo» (Patrologia Latina, 94, 543)

É, todavia, provável que Coliseus se refira à estátua e não ao edifício. A palavra colosseus é, na
origem, um adjectivo que ajusta a sua forma para colosseum, quando modifica um substantivo

1125 Amiano Marcelino, 16.10.14.

1126 Cf. A. Claridge, Rome…, p. 271. Vejam-se ainda: Plínio-oVelho, Hist. Nat., 34.45; Suetónio, Nero, 31.1; Dião
Cássio, 66.15.1. Nero tinha, de facto, tendências megalómanas: mandou executar uma pintura retratando-o em tela
com 120 pés romanos de altura. Pouco após ser exibida em público, incendiou-se e viu-se reduzida a cinzas quando
um raio a atingiu (Plínio-o-Velho, Hist. Nat. 35.51)

418
neutro como amphitheatrum. O substantivo masculino Coliseus do referido poema parece,
assim, interpretar-se melhor como uma variante medieval de colossus, que significa em latim
clássico «uma grande estátua»1127. Há, aliás, uma corrente de opinião mais recente que
favorece essa interpretação1128. Rossella Rea, por seu turno, esgrimiu argumentos persuasivos
no sentido de que o vocábulo Colosseum não se terá aplicado ao Anfiteatro Flávio até ao século
X1129.

Debrucemo-nos sobre as origens do Coliseu. Cabe interrogarmo-nos acerca das razões que
levaram a implantar um anfiteatro em pleno centro de Roma, e não fora do pomerium, no
Campo de Marte, como sucedeu com os anfiteatros anteriores. De acordo com Suetónio
(Vespasiano, 9), Vespasiano tencionou concretizar um projecto que Augusto, imperador de
imenso prestígio, teria planeado levar a cabo mas que só se traduziu numa congeminação:
talvez porque o anfiteatro de Tauro bastasse ou, então, devido às consequências que
acarretaria a construção de tamanha magnitude, designadamente obrigando a elevado
número de expropriações significativas.

Contudo, para Vespasiano, o problema não se pôs, dado que a maior parte do centro urbano,
anexado por Nero, já era propriedade imperial. Mas a escolha do local assumiu principalmente
um forte valor simbólico em termos políticos 1130: ao substituir grande parte da Domus Aurea
pelo novo edifício, os Flávios satisfariam o povo, ao apagarem a memória de Nero mediante
um gesto de poderosíssimo significado que Marcial, aliás, não deixou de realçar. O poeta
lembra que no sítio onde se ergueu a «augusta massa» do anfiteatro, existira antes «o odioso
palácio de um déspota feroz». Sempre num tom laudatório, prossegue, dizendo:

«Roma voltou a si mesma e, sob a tua presidência, César, o povo faz as suas delícias no local onde
outrora apenas encantava o seu senhor [Nero]»1131.

O grande anfiteatro e as termas adjacentes (que Tito, filho e sucessor imediato de Vespasiano,
rapidamente fez construir) eram, com efeito, exclusivamente destinados ao prazer da multidão.
Mesmo que a Domus Aurea não tivesse sido inacessível à última e que Nero houvesse gozado
de popularidade aos seus olhos pela organização de espectáculos, Marcial como bom cortesão,
parcial, pragmático e adulador que era, servia somente uma causa: denegrir e apagar a
memória de Nero para melhor glorificar os Flávios.

1127 Cf. H. V. Canter, «The Venerable Bede and the Colosseum», TAPA 61 (1930), pp. 162-165.

1128 K. Hopkins e M. Beard, The Colosseum, p. 35; A. Claridge, Rome…, p. 271.

1129 «Signs of Continued Use after Antiquity», in Ada Gabucci (ed.), The Colosseum, Los Angeles, 2001, p. 197

1130 Ao construir o anfiteatro em tal sítio, Vespasiano, com este acto, simbolizou a sua própria legitimidade, na
qualidade de um imperador que clamou haver restaurado, para o povo romano, o direito de decidir sobre a vida e a
morte. Na inauguração do Amphitheatrum Flavium, já no reinado do seu filho Tito, revelou-se apropriado que se
celebrasse o novo nascimento da liberdade romana, não só através da matança tradicional de animais (a destruição
do mal presente na natureza selvagem e hostil), mas também pela presença de uma porca prenha, que foi morta,
dando à luz as suas crias na arena, à vista do povo romano (Marcial, Liber spect. 12-14). Sempre que porfiavam, os
gladiadores eram protagonistas de um espectáculo de vida e renascimento, e actuavam na presença do povo
romano, permitindo aos indivíduos aceitar a sua mortalidade, ao reflectirem sobre o poder e continuidade, sem
precedentes, da dominação universal de Roma: cf. T. Wiedemann, Emperors and Gladiators…, p. 180.

1131 Liber spectaculorum, 2, 11: …reddita Roma sibi est et sunt praeside, Caesar,/ deliciae populi, quae furant
domini. Ainda a propósito da estátua de Nero, K. M. Coleman (M. Valerii Martialis Liber Spectaculorum, Oxford,
2006, p. 20) sustenta que Vespasiano terá mandado apagar as feições do tirano do rosto da efígie, mas isto, na
realidade, foi sucedeu por iniciativa do posterior imperador Adriano(Historia Augusta/SHA, Adriano, 19.13.

419
A construção de um anfiteatro de grande tamanho impunha-se, até porque os edifícios
anteriores não conseguiram escapar à voracidade das chamas do incêndio de 64 d. C., o que
justifica o facto de Vespasiano ter oferecido, em 69, (Dião Cássio, 65.4.3; Tácito, Hist. 2.95.1)
espectáculos «em todos os bairros da cidade». Não restam dúvidas quanto à premência da
necessidade de uma tal construção monumental, sendo esta empreendida sem mais delongas
por Vespasiano, um imperador, curiosamente, que não nutria interesse pelos munera. A
reconstituição do texto da breve dedicatória do anfiteatro mostra também que o monumento
se ergueu para suprema glória dos Flávios:

IMP CAES VESPASIANUS AVG

AMPHITHEATRUM NOVVUM

EX MANVBIS FIERI IVSSIT

«O imperador César Vespasiano Augusto ordenou que se construísse um novo anfiteatro com os
despojos [da Guerra Judaica]».

Isto lembra claramente que este edifício foi obra de militares. Vespasiano, que se encontrava
no Oriente no momento em que foi proclamado imperador, e o seu filho Tito, que assediou,
conquistou e saqueou Jerusalém. O Coliseu, edificado com o produto dos espólios da Guerra
da Judeia, tinha um significado particular e este contexto explica como os referidos dois
imperadores dispunham de meios financeiros excepcionais para tornar o projecto numa
realidade. De facto, Vespasiano e Tito trouxeram elevada quantidade de riquezas. Num relevo
do interior do arco triunfal de Tito, observam-se numerosos objectos valiosos arrebatados ao
Templo de Jerusalém (vê-se, por exemplo, a grande menorah). Vespasiano dedicou parte do
produto do saque à deusa da Paz e depositou-a no seu novo templo, que mandou erguer.
Havia, porém, muitos outros despojos de guerra entregues pessoalmente a Vespasiano,
cabendo-lhe o direito de os vender para obter lucro. A expressão ex manubis na inscrição
acima citada e reconstituída refere-se a tais despojos que ele poderia ter utilizado para
enriquecer, mas, em vez disso, serviu-se dos mesmos para custear a construção do Coliseu,
preferindo a glória e a gratidão do povo romano 1132. A par do novo anfiteatro, construiu-se um
arco de Tito no Circo Máximo 1133 (que não sobreviveu), mas cuja inscrição-dedicatória original
se conhece por uma cópia inserta no codex Einsiedeln (CIL IV 944 = ILS 264), tudo monumentos
que serviram para exibir as proezas mavórticas da dinastia Flávia, assim proporcionando
legitimidade para o seu regime 1134.

As letras de bronze da inscrição fixaram-se originalmente num bloco de mármore descoberto


no anfiteatro. Posteriormente, removeram-se as letras e, no século V, foram substituídas por
outra inscrição gravada no mármore. Os pregos que fixaram as ditas letras bronzeas iniciais
deixaram orifícios que, pela sua disposição, forneceram pistas quanto às palavras que
constavam do texto epigráfico original 1135. De acordo com a reconstituição desses buracos feita
por Geza Alföldy, um «T», abreviatura para Tito, foi encaixada num exíguo espaço, na primeira

1132 O emprego do capital adquirido a partir da venda dos manubiae para dádivas ao povo romano era uma
prática regular levada a cabo pelos generais vitoriosos. Por exemplo, Augusto financiava presentes amiúde aos
habitantes da Urbs (incluindo edifícios públicos), servindo-se dos seus manubiae (RG 15; 21). Consulte-se K. M.
Coleman, «The Contagion of the Throng: Absorbing Violence in the Roman World», Hermathena 164 (1998), p. 67.

1133 J. H. Humphrey, Roman Circuses Arenas for Chariot-Racing, Londres, 1986, pp. 96-100.

1134 F. G. B. Millar, «Last Year in Jerusalem: Monuments of the Jewish War in Rome», in J. Edmondson, S. Mason e
J. Rives (eds.), Flavius Josephus and Flavian Rome, Oxford, 2005, pp. 101-128.

420
linha da inscrição, entre as abreviaturas significando «o imperador César» (IMPTCAES
VESPASIANUS AVG), após o falecimento do fundador da dinastia Flávia, de forma a conferir ao
seu filho Tito o crédito pelo acabamento e inauguração do Coliseu 1136.

Aproximadamente aquando da construção do Amphitheatrum Flavium, erigiu-se outro, de


escala significativamente menor, na pequena cidade de Urbs Salvia (hodierna Urbisaglia), por
iniciativa de L. Flávio Silva Basso, sem dúvida também, recorrendo a despojos da Guerra
Judaica para os gastos nas obras do edifício. Atente-se que Silva, durante a sua governação da
Judeia, foi o comandante do exército romano que assediou e tomou a fortaleza de Massada
(cujos defensores acabaram por se suicidar todos). Uma inscrição pormenoriza a sua carreira,
terminando com o consulado e o seu serviço como pontifex, um dos principais dignitários
religiosos em Roma, e atribui-lhe a erecção do anfiteatro daquele centro urbano às suas
próprias expensas1137. A estrutura para os espectáculos devia ser bastante pequena: só 650
lugares se destinavam à gente comum da cidade, que seria consideravelmente mais numerosa
do que a elite1138. Apesar disso, o anfiteatro foi certamente acolhido entusiasticamente em
Urbs Salva: constituía um sinal da «Romanidade», assim como um gymnasion era essencial
para a identidade de uma polis grega. K. Coleman chamou à atenção para uma fonte epigráfica
em que se louva uma rica patrona por mandar edificar um anfiteatro e um templo:

«Ummidia Quartilla, filha de Gaius, construiu um anfiteatro e um templo para os cidadãos de Casinum
[perto da actual Cassino] à sua própria custa» 1139.

Desconhecemos como se chamava o arquitecto que projectou o Anfiteatro Flávio, cuja


construção terá começado em 71 ou 72 d. C., isté é, no início do reinado de Vespasiano. No
fundo do lago da Domus Aurea, não foi difícil estabelecer, sem cavar, as enormes fundações do
anfiteatro, sob a forma de um grande anel de betão elíptico com 9 m de altura. O edifício foi
construído com argamassa e tufa cobertas por travertino (rocha calcária; calcula-se que se
tenham empregue 100 000 m 3 de blocos de travertino). Em seu redor, efectuou-se uma
terraplenagem de uma vasta área (platea), medindo 17,50 m de largura, pavimentada com
travertino, mas à data do falecimento de Vespasiano, só estavam concluídos os dois primeiros
registos da fachada.

Tito prosseguiu com as obras, imprimindo um ritmo muito intenso: ergueu o terceiro nível das
arcadas e as bancadas que, na sua maior parte, eram de madeira, o que fez com que o edifício
se pudesse utilizar, sendo inaugurado em 80 d. C., menos de dez anos após o início da
construção.

1135 K. Hopkins e M. Beard (The Colosseum, p. 34) expressaram dúvidas acerca desta reconstituição: «A skeptical
reader is likely to feel (as we do) that there is na uncomfortably long distance between the scatter of holes and the
suspiciously appropriate solution to ‘joining the dots’». No entanto, os dois eminentes historiadores não cehegam
ao ponto de negar o rigor, em termos globais, da reconstituição.

1136 G. Alföldy, «Eine Bauinschrift aus dem Colosseum», ZPE 109 (1995), pp. 195-226; Silvia Orlandi, «The Bronze-
Lettered Inscription of Vespasian and Titus», in A. Gabucci (ed.), The Colosseum, p. 165.

1137Ramsay MacMullen («Some Pictures in Ammianus Marcellinus», The Art Bulletin 46.4 [1964], p. 443) salientou
que, para os Romanos, quando se tratava de anfiteatros, o dinheiro não era um problema. É certo que convém
matizar esta asserção, na medida em que, consoante a conjuntura histórica e a região, os recursos financeiros para
tais obras podiam ou não existir. Veja-se, também, Richard Duncan-Jones, The Economy of the Roman Empire:
Quantitative Studies, Cambridge, 1974, p. 75.

1138 AE 1961, 140; 1969-70, 183.

1139 Cf. «The Contagion of the Throng…», p. 76 (CIL X, 5183)

421
A monumentalidade da fachada do Anfiteatro Flávio eclipsou a de todos os edifícios
anteriormente construídos, materializando uma aliança de graciosa beleza e simetria exterior
com um rigoroso ordenamento e eficiente funcionalidade interna. A fachada consistia em três
registos de arcadas sobrepostas (os dois primeiros compreendendo galerias duplas em razão
da grande afluência de gente), tendo cada andar oitenta arcos, e um quarto, no topo, com
janelas em vez de arcos. As colunas adossadas (pilastras), dotadas de capitéis de três diferentes
ordens arquitectónicas, dividiam os arcos uns dos outros. No nível térreo, as colunas possuíam
capíteis toscanos (uma versão itálica da ordem dórica grega); no segundo, capitéis jónicos e no
terceiro, capitéis coríntios.

Os arcos no segundo e terceiro registos serviam como enquadramento para estátuas que há
muito desapareceram, removidas por saqueadores ao longo de séculos. Ao todo, deveria haver
umas 160: num baixo-relevo do túmulo dos Haterii (de finais do século I d. C., conservado no
Museo Gregoriano Profano, no Vaticano), reconhece-se a presença de Esculápio, Apolo e
Hércules, graças aos seus atributos definidores, o que nos indica que as estátuas
representavam numerosas divindades da mitologia clássica, sendo elas produzidas em bronze
dourado e atingindo perto de cinco metros de altura 1140. No quarto registo (o ático, remate da
fachada sobre o entablamento), as janelas encontravam-se ladeadas por pilastras da ordem
coríntia, posicionadas por cima de todos os demais arcos do terceiro nível (Dunkle, fig. 27). No
ático, ainda, como elementos decorativos (num arco em cada dois), existiam grandes
escudos/clipei, outra alusão inquestionável à res militaris.

Quando foi inaugurado em 80 d. C., o Coliseu não dispunha ainda do quarto piso, que
constituiu uma adição posterior, muito provavelmente sob o reinado de Domiciano 1141. É certo
que se vislumbra um quarto andar numa moeda de Tito, mas isto talvez pretendesse mostrar
como ficaria o anfiteatro quando terminado. Os oitenta arcos do piso térreo serviam como
entradas, e 76 deles tinham números inscritos em cima, o que era essencial para ajudar os
espectadores a encontrarem os seus lugares 1142. Quanto às quatro entradas desprovidas de
numerais, correspondiam a pontos de acesso especiais, cada um situado nas extremidades do
eixo maior este-oeste e do eixo menor norte-sul. Os lugares sentados nas duas extremidades
do eixo menor proporcionavam sítios com melhor visão para a arena 1143.

No citado relevo tumular dos Haterii, o Coliseu foi representado de maneira assaz
esquematizada, mostrando só três registos; o último nível ainda não fora erguido. No primeiro
plano, vemos uma grande grua cilíndrica decorada por palmas, símbolo do êxito dos trabalhos,
o que nos leva a datar esta imagem escultórica bidimensional no momento da inauguração do
anfiteatro em 80 d. C. Na cena esculpida, observamos, no nível térreo, uma entrada
monumental obscurecida por um pórtico com um frontão sobrepujado por um carro com um
agitator (não visível). Esta imagem não mostra em que extremidade do eixo norte-sul se
localizava tal entrada, mas numa moeda do tempo de Gordiano III, vê-se o pórtico de entrada
(à direita) e oferece dois pontos de referência, a Meta Sudans de Domiciano, uma fonte de
grandes proporções, e a estátua colossal de Nero. Sabemos que estes dois monumentos se
situavam na extremidade ocidental do Coliseu 1144. Como, na moeda mencionada, a fonte e o

1140 J.-C. Golvin, L’Amphithéatre romain et les jeux de cirque dans le monde antique…, pp. 82-83.

1141 D. Bomgardner, The Story of the Roman Amphitheatre, p. 30. Uma crónica do século IV d. C. (354) atribui o
acabamento do ático, ao tempo decorado com escudos, a Domiciano.

1142 Destes arcos, somente os números 31 a 54 (no lado norte) sobreviveram até hoje.

1143 A. Scobie, «Security and Comfort…», p. 204.

422
colosso estão à esquerda do pórtico de entrada, então este devia localizar-se na extremidade
sul do eixo menor do anfiteatro.

A presença de um túnel subterrâneo perto da entrada meridional, que conduzia os


espectadores aos lugares inferiores do Coliseu, confirma que era este o lado pelo qual o
imperador entrava no edifício, inicialmente mediante o acesso acima do solo, depois (talvez
desde o reinado de Domiciano) por meio do túnel 1145. O seu destino era a sua tribuna
(pulvinar, pulpitum) no podium, do qual nada restou. Essa passagem subterrânea
provavelmente terá sido o sítio em que Cómodo esteve quase a ser assassinado, quando se
encaminhava para o anfiteatro, daí o túnel receber a designação popular de «corredor de
Cómodo» (cryptoporticus)1146.

A entrada norte do Coliseu estaria reservada para outras personagens importantes, como os
pretores e, mais tarde, questores, que patrocinavam o munus anual. Suetónio conta que
Augusto atribuiu lugares sentados exclusivamente para as Virgens Vestais, no outro lado da
arena da tribuna do pretor» Este devia consistir no sítio onde se sentava o editor que presidia
aos eventos, bem como os cônsules1147. A questão que se coloca é: onde ficaria esta tribuna
(suggestum) em relação à imperial? Localizar-se-ia no outro lado ou no mesmo que o
imperador? Lamentavelmente, não subsistem provas que nos facultem respostas concludentes.
No entanto, cabe supor que a tribuna se situaria em frente do pulvinar imperial, o que
posicionaria as Vestais no lado sul do anfiteatro, algures perto do princeps, como aliás se
observa no Pollice verso, a célebre pintura oitocentista de J.-L. Gérôme (embora contenha
vários anacronismos). É provável que Augusto tenha desejado dar, pelo menos, a aparência de
independência dos pretores, ao situá-los no outro lado da pista, defronte do princeps.
Contudo, «a intuição não é um argumento muito forte» 1148.

Se bem que não haja provas concretas, presume-se que as entradas no eixo maior este-oeste
servissem de acessos para os gladiadores, venatores e animais selvagens, isto até à altura em
que o Coliseu passou a estar ligado ao Ludus Magnus por meio de um corredor subterrâneo
1149
. R. Rea e S. Orlandi 1150 opinaram que os participantes da pompa, que marcava o início do
espectáculo gladiatório, acediam através da entrada da extremidade ocidental do eixo principal
do anfiteatro. Embora lógica, não há maneira de corroborar ou rejeitar esta hipótese.

1144 A. Claridge, Rome…, pp. 266,271-72, fig. 128.

1145 K. Hopkins e M. Beard, The Colosseum, pp. 133-134; Rosella Rea e Silvia Orlandi, «The Interior», in A. Gabucci
(ed.), The Colosseum, pp. 132-134; 138-139; P. Connolly, The Colosseum: Rome’s Arena of Death, Londres, 2003, pp.
59-60.

1146 Díon Cássio, Hist. rom. 72.4.4. I. Iacopi, «Il passaggio soterraneo cosidetto di Commodo», in A. La Regina (ed.),
Sangue e Arena, pp. 79-87. Estranhamente, D. Bomgardner (The Story of the Roman Amphitheatre…, p. 9) situou o
«corredor de Cómodo» e o camarote do imperador no lado norte, possivelmente equivocado por um esquema de J.-
C. Golvin, L’Amphithéâtre romain. Essai…, est. XXXVII), reproduzido pelo primeiro autor (op. cit., p. 10), que parece
ter as setas direccionais ao contrário.

1147 Suetónio, Augiv. Aug., 44.3.

1148 R. Dunkle, Gladiators…, p. 262.

1149 P. Connolly e H. Dodge, The Ancient City: Life in Classical Athens and Rome, Oxford, 1998, p. 194.

1150 Cf. «The Interior», in A. Gabucci (ed.), The Colosseum, pp. 132-134.

423
A atribuição dos lugares sentados no anfiteatro

A atribuição de lugares sentados para os membros das classes elevadas no Coliseu, ou em


qualquer outro anfiteatro ou teatro em Roma, no resto de Itália ou nas províncias imperiais,
constituiu o resultado de um costume que começou a ser adoptado no início do século II a. C.
Não causa estranheza que os senadores, os cidadãos mais prestigiosos na Urbs, tenham sido os
primeiros a quem se conferiu prioridade quanto aos lugares nos espectáculos. P. Cipião
Africano, o célebre vencedor de Aníbal, estabeleceu o precedente nos ludi que patrocinou em
194 a. C., durante o seu segundo mandato como cônsul 1151. A partir de então, os senadores
dispuseram dos melhores lugares, mais próximos da acção, na orchestra do teatro ou na parte
mais baixa do anfiteatro. Em 67 a. C., uma lei de Róscio Otão, um tribuno da plebe, confirmou
o direito de os equestres, a outra ordem da elite em Roma, de se sentarem nas primeiras
catorze filas acima da orchestra do teatro ou imediatamente atrás dos senadores no anfiteatro
1152
. Porém, este privilégio concedido aos membros do equester ordo já fosse usual antes da
medida legal promulgada por Róscio; seja como for, ela viu-se revogada a partir da ascensão ao
poder de Sula (no final dos anos 80 a. C.), que era um inimigo declarado da classe equestre 1153.

Mas não havia garantia de lugares para todos os cavaleiros em todos os espectáculos. Afinal,
eles eram muito mais numerosos do que os senadores. Séneca, um equestre, salienta numa
passagem que se todos os lugares sentados estivessem ocupados, então não tinha sorte. Ele
possuía o direito de se sentar na secção da sua ordem, mas desde que restasse espaço
disponível1154. Um episódio conhecido confirma o problema da sobrelotação na secção da
classe equestre: Augusto, incomodado pelo facto de estar um cavaleiro a beber no seu lugar,
enviou-lhe uma mensagem: «Se eu quiser almoçar vou a casa»; o outro prontamente lhe
respondeu: «Vós não tendes receio de perder o vosso lugar» 1155. O problema de gente a mais
na secção equestre via-se ocasionalmente agravado por pessoas que, sem autorização, se
sentavam nessa parcela. Ora isto não acontecia na secção reservada para os senadores:
certamente que um intruso depressa era impedido até de entrar na zona dos assentos
senatoriais por «porteiros» ou «arrumadores» que sabiam como reconhecer os senadores. É
mais do que garantido quer muitos romanos invejavam os lugares dos senadores, mas também
tinham a noção que sentarem-se na sua secção significava um sonho irrealizável 1156.

Deparamos só com um exemplo textual daquilo que seria um acto não autorizado de alguém
se sentar na secção dos senadores: no começo da década de 20 d. C., ocorreu um incidente
desagradável num munus, em que um jovem patrício chamado L. Sula se recusou a ceder o seu

1151 Cícero, Harp. Resp. 24. Vejam-se, também: Valério Máximo, 2.4.3; Lívio, 34.44.5.

1152Cícero, Pro Mur. 40; Veleio Patérculo, 2.32.3; A. Pociña Pérez, «Les espectadores, la lex Roscia theatralis y la
organización de la cavea en los teatros romanos», Zephyrus, 26-27 (1976), pp. 435-442; S. Demougin, L’ordre
équestre sous les julio-claudiens, Roma, 1988, pp. 796-802.

1153 Elizabeth Rawson, «Discrimina Ordinum: The Lex Julia Theatralis», PBSR 55 (1987), p. 102, n. 110.

1154 Séneca, Ben. 7. 124. Séneca também nos diz que não tinha direito a vender ou alugar o seu lugar. Isto foi
possivelmente fruto, não de uma proibição legal, mas das próprias convenções. Obviamente que se consideraria
déclassé alienar o privilégio de um lugar sentado para quem o ganhara devido ao seu estatuto social enquanto
membro da elite.

1155 Quintiliano, Inst. 6.3.63.

1156 Epicteto, Dissertationes, 1.25.26-29.

424
lugar a um tal Domício Corbulão, um ex-pretor e, portanto, um senador de alto coturno 1157.
Como, aliás, Elizabeth Rawson realçou, não fica claro que status teria o referido Sula 1158. Se
este ainda não havia sido eleito para o questorado, que representava o requisito para se
ingressar no Senado, ele seria, de facto, um intruso. Todavia, como o questorado era exercido
relativamente cedo na carreira política/cursus honorum de um homem, tendo este trinta e
poucos anos de idade, Sula talvez ocupassse tal cargo e, consequentemente, gozaria do direito
ao seu lugar sentado. Neste caso, o que estava em causa era principalmente a falta de respeito
e deferência de um indivíduo para com outro, mais velho e distinguido. Outra possibilidade
explicativa seria a de que as normas referentes aos lugares não estivessem vigentes, por
alguma razão, nesse munus.

Mesmo quando a lex rosciana, relativa às catorze filas, foi imposta, para os intrusos parece que
se afigurava mais fácil acederem à secção reservada para os equestres. Em 41 a. C., Octávio,
que havia pouco saíra vitorioso (no ano anterior) contra Bruto e Cássio na batalha de Filipos
(Philippi), ordenou em determinada ocasião que se retirasse um soldado que tomara assento
numa das filas da ordem equestre; pouco depois, circulou o rumor que Octávio tinha mandado
torturar e matar o miles, o que cedo gerou forte contestação entre os militares que assistiam
ao espectáculo; chegaram até ameaçar a vida de Octávio, mas, quase no último instante, eis
que o soldado apareceu, não exibindo quaisquer sinais de agressão física 1159.

A dada altura, entre a morte de Augusto (14 d. C.) e o reinado de Domiciano (81-96 d. C.), a lei
rosciana deixou de se aplicar e então passou a ser cada um por si, com os elementos da classe
equestre disputando lugares com a plebe. Enquanto parte da sua política de melhoramento
das maneiras em público, Domiciano resolveu reinstaurar a lei de Róscio, proibindo a gente
comum de se sentar entre os cavaleiros1160. Um dos topoi predilectos de Marcial radicava na
descrição das tentativas, por indivíduos das camadas sociais inferiores, de contornar o decreto
de Domiciano. O autor evidencia certo gozo ao relatar os intentos obstinados de um tal Naneio
(Nanneius), que se tinha acostumado a sentar na primeira fila da secção dos equestres, quando
a lei fora temporariamente suspensa. Depois de haver sido expulso do seu lugar duas vezes por
um arrumador do anfiteatro, ele escondeu-se por detrás de dois espectadores e, coberto por
um capuz, tencionou assistir ao espectáculo, encolhido no espaço entre duas filas. O
arrumador depressa o descobriu de novo e foi conduzido até à coxia, onde procurou sentar-se,
ao mesmo tempo que buscou convencer os equestres indignados de que merecia estar
naquele lugar1161. Marcial narra o caso de outro arrumador que removeu o arrogante Névolo
(Naevolus) de um lugar situado imediatamente atrás da zona exclusiva dos equestres, onde o
autor tinha o direito de se sentar, na qualidade da sua posição enquanto «tribuno» 1162. Aqui,
«tribuno» deve ter o sentido da função de viator tribunicius (mensageiro tribunício), cuja
principal tarefa era convocar pessoas para aparecerem diante do magistrado. O viator
tribunicius era um dos servidores públicos, que, tal como os escribas e os lictores, assistiam os
magistrados ou exerciam outras actividades públicas.

1157 Tácito, Ann. 3.31.

1158 «Discriminum Ordinum…», p. 102, n. 112.

1159 Suetónio, Auiv. Aug., 14.1.

1160 Suetónio, Div. Dom., 8.3.

1161 Liber spect. 5.14. Marcial oferece o nome deste arrumador, Leitus.

1162 Ibidem, 3.95.9-10. Tácito, Ann. 16.12. E. Rawson («Discrimina Ordinum…», p. 100). Aparentemente, Marcial
antipatizava com Névolo nunca o comprimentava, a não ser que ele lhe falasse primeiro.

425
Os arrumadores (apparitores) no anfiteatro seriam, por certo, escravos, mas esperava-se que
os cidadãos obedecessem às suas instruções, podendo receber penalizações por ocuparem
lugares não autorizados, talvez através de multas 1163.

Um incidente registado fora de Roma conduziu a que Augusto impusesse claramente a


vigência da ordem dos lugares, que se adoptaria em todos os teatros e anfiteatros 1164: num
munus em Puteoli, um senador não conseguiu arranjar um lugar, e ninguém demonstrou
vontade de ceder o seu assente a esse ilustre visitante. Em face desta situação, Augusto decidiu
restaurar os privilégios do estatuto social no teatro e no anfiteatro, que haviam cessado de ser
observados nos últimos tempos da República.

«Reinava nos espectáculos imensa confusão entre os espectadores, mas Augusto introduziu a ordem e
a disciplina, movido pela injúria recebida por um senador […] nuns jogos muito concorridos a quem
ninguém quis dar assento, encontrando-se cheio o teatro. Mandou então, por decreto do Senado, que
sempre que se dessem espectáculos públicos, a primeira fila de assentos fosse reservada aos senadores.
Proibiu que em Roma os embaixadores das nações livres ou aliadas se sentassem na orchestra, pois
advertiu que muitos deles eram libertos. Separou do povo os soldados e assinalou locais especiais para
os plebeus casados» (Suetónio, De vita Caesarum. Divus Augustus, 44)

Em finais dos anos 20 a. C., o princeps promulgou a sua famosa Lex Iulia Theatralis, através da
qual se assegurava a existência de lugares prioritários para os senadores em qualquer ponto do
território imperial, bem como a atribuição de assentos para outros grupos 1165. Curiosamente,
Suetónio, a nossa principal fonte quanto à lex, não faz menção a lugares reservados para os
membros da classe equestre, mas o autor provavelmente não tencionaria elaborar uma
descrição exaustiva da disposição legal, já que sabemos de outras atribuições de lugares não
referidas pelo biógrafo romano (cf. infra). As divisões dos lugares estabelecidas por Augusto
destinavam-se a reflectir os vários segmentos sociais do povo romano, articulados numa ordem
hierárquica. Deste modo, Augusto reformou e regulamentou a maneira desordenada e fortuita
dos Romanos ao assistirem aos espectáculos.

O remanescente das reformas enumeradas por Suetónio teve a ver com os lugares para os
soldados, maridos plebeus, rapazes e os seus pedagogos ou tutores e para as mulheres de
todas as condições sociais1166. O poeta Estácio sintetizou, numa passagem, a hierarquia dos
lugares augustana, da parte mais alta do teatro ou anfiteatro à mais baixa: «crianças
[mulheres], plebeus, equestres, senadores»/parvi, plebs, eques, senatus1167. Com toda a
probabilidade, as crianças e as mulheres estariam juntas no mesmo nível (o mais elevado nas
bancadas), partilhando-o com os cidadãos mais pobres. Como adiante veremos, os plebeus
abastados sentavam-se no nível do meio, os cavaleiros na secção inferior do anfiteatro, logo
acima dos senadores, que tinham os seus loca junto ao podium.

Com Augusto, passou a vigorar uma ordem «integrista, que condicionaria definitivamente a
própria concepção da cavea. As diferentes categorias de lugares seriam claramente separadas,
a nível horizontal, por circuitos, rupturas de inclinação (praecintiones) e, por vezes mesmo, por
parapeitos. As praecintiones dividiam a cavea em quatro níveis, os maeniana, recortados por
1163 E. Rawson, «Discrimina Ordinum…», p. 102, n. 112.

1164 E. Rawson (Ibidem, p. 86) salientou que as atribuições e distribuição dos lugares sentados no Coliseu seguiam
as normas estipuladas na Lex Iulia Theatralis.

1165 Suetónio, ADiv. Aug., 44.1; J. Edmondson, «Dynamic Arenas…», pp. 102-103.

1166 Ibidem, 44.2.

1167 Silvae, 1.6.44.

426
scalaria e transformados por sectores de forma côncava, os cunei/«cunhas», blocos de
assentos (formando 400-500 lugares) bordejados na vertical por lanços de escadas (vomitoria;
sing. vomitorium) e, horizontalmente, por corredores 1168. Por exemplo, um cuneus era para os
maridos plebeus. Homens solteiros (e mulheres) talvez tenham sido interditados de assistir aos
espectáculos, pelo menos sob Augusto 1169. Outro cuneus consistia em rapazes envergando a
toga praetexta, branca, com uma larga faixa púrpura, que também correspondia ao traje oficial
da ordem senatorial 1170. Imediatamente adjacente a esta secção dos rapazes havia outro
cuneus preenchido pelos seus paedagogi, escravos, geralmente de origem grega, que tomavam
conta dos jovens, servindo como escolta protectora no exterior e como professores em casa.
Os paedagogi eram os únicos indivíduos de condição servil que, por causa das funções que
exerciam, dispunham de lugares especiais1171. O facto de os pais dos referidos rapazes
possuirem meios financeiros para provê-los de escravos pessoais indica que se tratava de filhos
de familias pertencentes à elite e de plebeus desafogados. Os pais plebeus destes jovens
sentavam-se no mesmo nível que o dos filhos em cunei diferentes, trajando a toga virilis (toga
do homem adulto), branca, mas despojada de faixas). Quanto aos filhos dos cidadãos mais
pobres, sentavam-se com os pais, os quais Augusto excluiu do nível mediano, uma vez que
tinham como indumentária um manto ou túnica de tonalidade escura, acastanhada ou
cinzenta, dos indigentes (sendo designados pullati) 1172.

De baixo para cima, a cavea compreendia o podium e as tribunas, bem apartados do resto das
bancadas por balaustradas (baltei), seguindo-se a ima cavea, a media cavea, a summa cavea e,
frequentemente, uma galeria superior contendo bancos de madeira (summa cavea in ligneis).
Nas bancadas, nem na concepção do funcionamento do edifício havia espaço para fantasias. A
cavea constituía um espelho da sociedade estratificada, tal como queria o poder central. No
anfiteatro, recinto propício ao desencadear de paixões, tudo passava a estar devidamente
enquadrado. Os notáveis locais beneficiavam mesmo de lugares com inscrições com os seus
nomes, fosse nos na face anterior das bancadas, fosse nos parapeitos. Acharam-se inscrições
destas em determinados anfiteatros, como em Lugdunum (Lyon), Aventicum (Avenches, Suíça),
Siracusa (Sicília) e Uthina (Tunísia)1173.

Marcas profundas na paisagem urbana, os anfiteatros constituem uma das imagens


emblemáticas da «romanidade». No entanto, a imitatio do modelo da Urbs não se esgotava na
paisagem das cidades. Tal como na capital imperial, a cavea destes edifícios, fosse na Gália, na
Península Ibérica ou no Norte de África, reflectiria igualmente a estrutura social das

1168 E. Rawson, «Discrimina Ordinum…», p. 84.

1169 Augusto considerava que os homens que permaneciam solteiros e não engendravam filhos não estavam a
exercer o seu dever como cidadãos romanos (Díon Cássio, Hist. rom. 56.5.7). O princeps reforçou esta convicção com
legislação que encorajava os casamentos: cf. E. Rawson, «Discrimina Ordinum…», pp. 98-99.

1170 Florence Dupont (Daily Life in Ancient Rome, Cambridge/MA, 1993, p. 223) sugueriu que a toga praetexta era
um símbolo de inviolabilidade, que se aplicava aos magistrados, rapazes e raparigas que a vestiam até se
matrimoniarem.

1171 Nas fontes não se descortinam quaisquer menções a outra área de assentos para escravos. Talvez os Romanos
ainda seguissem a política que esteve em vigor durante a República. O orador do prólogo da obra de Plauto,
Poenulus, adverte os escravos para ficarem de pé no teatro, a fim de não privar os cidadãos romanos (livres) dos
lugares sentados, embora os primeiros pudessem comprar um se tivessem recursos para tal (23-24). No Coliseu, é
possível que os escravos encontrassem lugares vazios nas secções superiores das bancadas.

1172 Suetónio, Div. Aug., 44.2-3.

1173 J.-C. Golvin, L’Amphithéâtre romain et les jeux du cirque…, p. 42.

427
comunidades que os tinham erigido. Salientemos o exemplo da Lex Ursonensis/Lex Genetivae
Iuliae, conjunto de medidas gravadas em tábuas de bronze, que reproduzem um texto legal
exarado em Roma, descobertas em Osuna (Espanha), outrora a cidade romana de Urso
(Colonia Genetiva Iulia) 1174. Entre outros assuntos, nas tábuas estipulam-se as normas que
deviam presidir à reserva de lugares nos espectáculos a dar nessa cidade provincial: os
melhores loca reservar-se-iam aos decuriões da colónia; o ordo decurionum poderia, por
decreto, honrar outras personagens, atribuindo-lhes lugares notáveis; o organizador do
espectáculo tinha o poder de atribuir lugares, mas, para o efeito, precisava de obter um
decreto favorável do conselho dos decuriões. No caso dos ludi scaenici, a orchestra destinava-
se aos magistrados de Roma e aos filhos de senadores, residentes ou apenas de passagem pela
cidade. Só depois da atribuição destes lugares se poderiam conceder os restantes aos
decuriões da cidade.

Além destas normas, a Lex Coloniae Genetivae Iuliae estabelece a hierarquia que se impunha
na atribuição dos lugares da restante cavea. Os melhores eram reservados aos coloni, os
cidadãos. A seguir, e por ordem decrescente, vinham os incolae (habitantes sem cidadania
plena), os hospites (beneficiários da tessera hospitalis) e, por fim, os atventores, habitantes das
cidades vizinhas e forasteiros. A vontade de ganhar prestígio, de ostentação e de
reconhecimento social explanam a precocupação quanto à repartição dos lugares nos recintos
dos espectáculos. Como é óbvio, as medidas normativas adpatavam-se a diversas situações;
consequentemente, os locais para os munera espalhados pelas cidades do território imperial
vieram a reflectir a realidade sócio-jurídica de cada centro urbano.

Centremo-nos na Urbspropriamente dita. O conjunto do podium, onde os senadores se


sentavam, exibindo togas brancas com uma larga faixa púrpura, do primeiro nível de lugares
reservado para os equestres (com togas igualmente brancas, só que providas de uma esteita
faixa púrpura, e do nível imediatamente superior, onde se encontravam os plebeus com a toga
virilis, também alva, assemelhava-se a um mar coberto por Romanos todos de branco. Foi
exactamente o que testemunhou o já citado Corydon, personagem criada por Calpúrnio Sículo,
na sua primeira visita ao anfiteatro de madeira de Nero, à medida que foi passando pelas
secções destinadas aos equestres e à plebs, até chegar ao nível mais alto das bancadas 1175. Esta
visão deve ter agradado imensamente a Augusto, sobretudo se tomarmos em consideração a
sarcástica referência do princeps, numa reunião política, aos cidadãos romanos vestidos com
mantos escuros, utilizando a expressão «raça togada» (uma citação de Virgílio) 1176. Augusto
acreditava que a vestimenta apropriada para um cidadão romano com funções públicas era a
toga. Nem todos os sucessores do primeiro imperador de Roma concordaram com esta ideia:
Cláudio autorizou os senadores a vestirem-se como cidadãos vulgares e a sentar-se onde lhes
aprouvesse, se bem que o podium ainda permanecesse como a zona exclusiva dos mesmos 1177.

Por volta do início do século II d. C., os Romanos abandonaram, aparentemente, a toga.


Juvenal queixa-se que «em grande parte de Itália, caso admitamos a verdade, ninguém enverga

1174 A. d’Ors, Epigrafía Jurídica de la España Romana, Madrid, 1953, pp. 259-265.

1175 Ecl. 7.29. Filiámo-nos na leitura proposta por van Berchen e Bollinger no que respeita ao termo tribules, na
linha 29, como significando «cidadãos pertencentes a tribos», «gente comum», em vez de tribuni. Tribules, isto se a
interpretação estiver correcta, seria uma menção à plebs dividida nas suas tribos (divisões políticas do povo
romano). Cf. E. Rawson, «Discrimina Ordinum…», p. 95. Supomos que nivei /«branco-neve» se reporta aos
equites/equestres.

1176 Aen. 1.282.

1177 Dião Cássio, Hist. rom. 60.7.4.

428
a toga, à excepção de um cadáver»1178. O munus anual que se celebrava em Dezembro suscitava
problemas para os espectadores que não tivessem condições para usar uma toga. Esta, uma
veste não muito substancial, revelava-se bastante adequada para o tempo quente, mas em
Dezembro era necessário mais roupa para aquecer o corpo, já que por essa altura fazia frio na
península itálica e até podia nevar. Nesta ocasião, os membros da ordem equestre trajavam
amiúde um manto escarlate ou de cor púrpura, mas, ao fazê-lo, violavam a regra introduzida
por Augusto de «todos de branco». Assim, Marcial aconselhava que o melhor seria, a nível
cívico, vestir um manto ou túnica branca 1179. Numa determinada situação, um tal Horácio
apareceu no anfiteatro com um manto negro, ao passo que todos os plebeus, cavaleiros,
senadores e o próprio imperador (Domiciano) estavam de branco. Marcial conta que, no
decurso do espectáculo, a indumentária de Horácio se tornou alvacenta quando, entretanto,
começou a nevar1180.

Durante a República e o início do reinado de Augusto, a possibilidade de as mulheres se


sentarem onde quisessem, no meio dos espectadores masculinos, oferecia um exemplo
daquilo que o princeps chamava «maneira desordenada e fortuita» em relação ao
comportamento evidenciado pelos romanos nos espectáculos. Então, Augusto restringiu os
lugares nos munera para as mulheres (provavelmente pertencentes às classes altas),
relegando-as para um «sítio mais alto», sem dúvida os assentos que existiam no nível superior
do anfiteatro, onde se sentavam em cadeiras ou bancos munidos de espaldares (cathedrae),
quiçá uma compensação para o facto de elas se acharem tão afastadas da arena 1181. A figura
fictícia de Corydon, enquanto homem pobre (possivelmente escravo) e residente fora da Urbs,
era obrigado a subir até à parte situada mais acima no edifício, onde arranjaria um lugar perto
da secção destinada às mulheres 1182.

Antes da reforma augustana, a presença de mulheres entre os homens encorajaria, decerto,


galanteios e namoriscos, o que deixava Augusto apreensivo, dado que se mostrou assaz atento
ao comportamento sexual dos seus súbditos, ao ponto de promulgar leis contra o adultério em
18 a. C. Repare-se que ele mandou exilar tanto a sua filha como a neta (ambas chamadas Júlia),
por causa das suas práticas adúlteras, e o próprio poeta Ovídio, possivelmente pela sua
indulgência face aos comportamentos sexuais que se assinala nos seus escritos 1183.

Plutarco incluiu uma anedota sobre Sula na sua biografia deste dictator, ilustrando quão
grande foi o seu interesse em flirtear com uma mulher sentada ao pé dele num munus. O
nome dela era Valéria, uma bela divorciada, cujos pai e irmão pertenciam ao ordo senatorial.
Ela decidiu tomar a iniciativa, deslocando-se ao longo de uma fila para chegar até Sula: pôs a
sua mão no ombro dele e, «inocentemente», pegou numa parte da sua túnica; a seguir, disse-
lhe: «Não é nada de especial, dictator, mas eu queria partilhar o seu sucesso». Sula ficou mudo
de espanto, mas de modo algum ofendido pela atitude daquela vistosa criatura feminina.

1178171-172.

117914.135

1180 4.2.

1181 Suetónio, Div. Aug. 44.2-3. As esposas, independentemente do seu estatuto, não tinham permissão para se
sentar junto dos maridos. Cf. E. Rawson, «Discrimina Ordinum…», p. 91.

1182 Calpúrnio Sículo, Ecl. 7.25-27.

1183 R. Dunkle, Gladiators…, p. 267.

429
Depois de investigar o seu passado e carácter, ele veio a desposar Valéria 1184. Naturalmente que
os jovens adultos aproveitavam a oportunidade proporcionada pela presença de mulheres no
mesmo sítio para tentarem a sua sorte.

Ovídio, num conselho aos seus leitores masculinos sobre como travar conhecimento com
moças, sugere que eles pedissem educadamente a uma jovem para que lhes emprestasse o
programa dos eventos e, acto contínuo, tocarem nas suas mãos no instante em que ele o
entregasse1185. Ovídio revela a atmosfera romântica que se vivia no anfiteatro, recorrendo para
o efeito a figuras de estilo poéticas1186.

Quando Augusto estipulou que as mulheres ficassem na parte de cima do anfiteatro, tal não
impediu, contudo, que se desenvolvessem actos de sedução e conquistas amorosas. Os
homens, na parcela inferior do auditório, podiam ainda contactar visualmente com as
mulheres no topo. As namoradas sentadas na secção feminina mantinham um olhar vigilante
em relação aos seus homens mais abaixo e tinham, por vezes, ataques de ciúmes quando os
surpreendiam a mirar outra mulher. A amada Cintía de Propércio, ante a infidelidade deste,
exigiu-lhe que parasse de olhar para trás, para a zona mais alta do anfiteatro 1187. Ovídio, por
seu lado, lamentava-se que estava tão farto das acusações ciumentas da sua namorada que,
para a irritar mais, virou a cabeça em silêncio e fitando, de forma provocadora, outra mulher na
parte mais alta do edifício 1188. Talvez Ovídio e Propércio, nessas duas ocasiões, estivessem
sentados no anfiteatro de E. Tauro,onde seria possível, para alguém localizado mais em baixo,
contemplar sem dificuldade as mulheres nos níveis mais altos. No enorme Coliseu, porém,
seriam bem mais difíceis, senão até impossíveis, as trocas de olhares entre homens e mulheres
à distância.

Nem todas as mulheres ficavam sentadas nessa zona superior do anfiteatro. Como
anteriormente vimos, Augusto reservou lugares especiais para as Virgens Vestais,
provavelmente no podium. Após o reinado augustano, houve outras mulheres, de elevado
status, a tomar assento junto das Vestais. Tibério autorizou, por exemplo, que Lívia, sua mãe,
portadora do título de Augusta, se sentasse ao pé das Vestais, sempre que pretendesse assistir
a um espectáculo1189. Calígula concedeu semelhante privilégio à sua avó Antónia (a irmã mais

1184 Plutarco, Sula, 35.3-5.

1185 Ars am. 1.167-168. Como este poema foi composto depois da promulgação da Lex Iulia Theatralis, é caso para
perguntar por que razão Ovídio coloca em cena homens e mulheres sentados juntos no anfiteatro. E. Rawson
(«Discrimina Ordinum…», p. 98) propôs que a Lex Iulia Theatralis foi promulgada algures no espaço temporal entre
26 e 17 a. C. Acerca do assunto, há muitas opiniões distintas, tantas quantos os académicos. J. Edmondson
(«Dynamic Arenas…», pp. 88-90) sugeriu um retardamento na aplicação imediata das normas quanto aos lugares
sentados no anfiteatro, comparativamente, mas na realidade foram adoptadas de igual modo em ambas as
estruturas. E. Rawson («Discrimina Ordinum…», p. 108) nota que no começo do Principado houve certas ocasiões
em que as regras impostas por Augusto sobre os lugares não chegaram a ser observadas. G. Ville, por seu turno ( La
Gladiature…, p. 436, n. 157) argumentou que todas estas normas não terão sido estabelecidas na prática ao mesmo
tempo, mas de maneira gradual. Dião Cássio afirma que as regras de assentos separados para os senadores e os
equestres só passaram a vigorar no Circo Máximo a partir de 5 d. C. (55.22.4).

1186 Ars am. 1.165-166; 169-170.

1187 4.8.76-77.

1188 Ars am. 2.7.1-6.

1189 Tácito, Ann. 4.16.

430
nova de Marco António e sobrinha de Augusto) e às irmãs, ao passo que Cláudio o mesmo fez
relativamente a Messalina, sua esposa1190.

As Vestais não eram os únicos membros religiosos a usufruir de lugares reservados. Este
privilégio também se estendia a um colégio de doze sacerdotes chamados Fratres
Arvales/«Irmãos do campo», os quais oficiavam o culto de Dea Dia, deusa que presidia à
fertilidade das terras. Conservou-se uma inscrição titulada Acta Fratrum Arvalium/ «Actas
Públicas dos Irmãos Arvales», datando de 80 d. C., isto é, do próprio ano da inauguração do
Coliseu: encerra esclarecedores informes sobre o espaço destinado a esta elitista irmandade
sacerdotal (formada por doze senadores), nos três registos de lugares do anfiteatro, logo acima
do podium1191. Na fonte epigráfica em apreço, mencionam-se os três níveis de assentos que
Arvales podiam ocupar, cada um deles acompanhado de uma denominação: o maenianum
primum/«primeiro nível», o maenianum summum secundum/« parte superior do segundo
nível» e o maenianum summum in ligneis/«o nível mais alto, em madeira». O maenianum
summum secundum leva-nos a presumir existir também um maenianum imum secundum/a
parte mais baixa do segundo nível», que não consta do referido documento, porque nele os
Arvales não dispunham de lugares atribuídos 1192. Mais à frente, tecemos mais comentários
sobre estes quatro níveis.

No nível mais baixo (maenianum primum) do anfiteatro, os Arvales sentavam-se junto dos
membros da ordem equestre, mesmo por detrás do podium, totalizando um comprimento de
42,5 pés romanos (aproximadamente 41,8 pés modernos) em oito filas contíguas.
Provavelmente, o espaço reservado neste nível para os Arvales se destinasse aos que
pertencessem ao ordo equestre.

Os vestígios descobertos noutros anfiteatros, onde os lugares sentados individuais se


apresentavam marcados por linhas gravadas na pedra, permitem que calculemos quantas
pessoas ficariam acomodadas ao longo de 42,5 pés romanos. Em média, o espaço atribuído a
cada indivíduo em tais anfiteatros mediria 15,7 polegadas, o que significa que 42,5 pés
comportariam cerca de 32 espectadores, apertados como se estivessem numa «lata de
sardinhas». Se a estimativa de 15,7 polegadas parece demasiado pequena, cabe lembrar que a
altura média de um homem adulto na antiga Roma se cifrava em apenas 5,5 pés. Nos dias de
hoje, como é óbvio, o maior tamanho médio tanto de homens como de mulheres requer
assentos mais largos1193.

Outros lugares reservados em nome dos Irmãos Arvales situavam-se no maenianum summum
secundum, ocupando 22,5 pés romanos (21,12 pés modernos) numa fila de um cuneus, e no
maenianum summum in ligneis 63,5 pés romanos, em quatro filas de um cuneus. Em todo este
espaço, torna-se evidente que nos lugares atribuídos tinham assento outras pessoas além dos
Arvales. Claro que os melhores lugares no maenianum primum eram ocupados pelos próprios
sacerdotes, na companhia de vários membros (masculinos) das suas respectivas famílias 1194. Os
seus auxiliares (servidores, escribas, etc.) sentavam-se certamente no maenianum summum

1190 Díon Cássio, Hist. rom. 59.3.4; 60.22.2.

1191 ILS 5049. Cf. Silvia Orlandi, «Seating Inscriptions for the Fratres Arvales», in A. Gabucci (ed.), The Colosseum,
p. 126; Joaquín Ruíz de Arbulo, «Amphi-theatrum…», p. 36.

1192 J. Edmondson, «Dynamic Arenas…», p. 91, n. 93.

1193 K. Hopkins e M. Beard, The Colosseum…, p. 109.

1194Os Fratres Arvales sentavam-se indubitavelmente no podium, ao pé dos seus colegas, gozando do melhor
ângulo de visão para assistir aos espectáculos.

431
secundum, enquanto uma vasta porção de espaço, no maenianum summum in ligneis, nas
zonas mais altas do Coliseu, acomodava os escravos e as esposas dos membros do colégio
sacerdotal1195, ao todo, julga-se que os Arvales dispunham de lugares em quase todos os
sectores do anfiteatro, com assentos para cerca de 80 pessoas. Note-se, também, que além
dos Arvales, todos os demais colégios religiosos possuíam lugares reservados no maenianum
primum1196. Acresce que no interior do Coliseu, na parte frontal das filas, se encontraram
inscrições de lugares reservados para outros grupos, como os cidadãos de Gades (Cádis,
Espanha) e já no Baixo-Império, até para determinados senadores e seus agregados
familiares1197.

O acesso ao Amphitheatrum Flavium e outros recintos de entretenimento de massas não se


limitava apenas aos cidadãos romanos. Na realidade, os Romanos queriam impressionar os
dignitários estrangeiros em missões diplomáticas na Urbs com os seus diversos espectáculos,
especialmente os combates gladiatórios. Augusto não permitia que os embaixadores
estrangeiros de nações independentes e aliadas se sentassem entre os senadores, na medida
em que os primeiros eram, por vezes, libertos, pelo que possivelmente ficariam acomodados
nas zonas superiores da cavea 1198. No entanto, após a morte do primeiro imperador de Roma,
tal prática sofreu alterações. Quando, em 58 d. C., dois líderes frísios (Verritus e Maiorix)
visitaram a capital do império durante o reinado de Nero, para tentar persuadir,
aparentemente em vão, o princeps a revogar uma ordem emitida pelo governador romano da
Germânia Superior, segundo a qual tal povo teria de abandonar o espaço que haviam ocupado
no território imperial, na margem esquerda do Reno 1199, as autoridades, ao tencionarem
maravilhá-los e, em simultâneo, intimidá-los «com a grandeza do povo romano», convidaram-
nos a assistir a um espectáculo no teatro de Pompeio 1200. Quando os frísios comentaram que
havia homens com trajes estrangeiros sentados na secção dos senadores, os seus anfitriões
explicaram que só os embaixadores das nações conhecidas pela sua bravura e amizade para
com Roma é que usufruíam de tal honra. Os ingénuos frísios declararam de rompante que
nenhuma nação os suplantava na guerra ou na lealdade face aos Romanos, e entraram na área
dos senadores, sentando-se. Os espectadores ficaram encantados ante o comportamento
impulsivo e não sofisticado dos frísios 1201.

No seu Liber spectaculorum, Marcial enumera toda uma série de representantes estrangeiros
que estiveram presentes na abertura solene do Coliseu, exibindo o seu vestuário nativo e
falando línguas com estranhos sons: Trácios, os nómadas Sármatas, famosos por beberem o
sangue dos seus cavalos (das regiões do Norte do mar Negro e do Danúbio), Egípcios, Bretões,
1195 Consulte-se, a propósito, Jerzy Kolendo, «La répartition des places aux spectacles et la stratification social
dans l’empire romain», Ktema: civilisations de l’Orient, de la Grèce et de Rome antiques 6 (1981), pp. 304-305. Este
autor, todavia, ao ignorar a regra augustana de que as mulheres se sentariam nas secções mais elevadas do
anfiteatro, parece incluí-las, na sua referência aos membros das famílias, ao pé dos Arvales, no maenianum primum.

1196 Arnóbio, Ad. Nat. 4.35.4.

1197 J. Kolendo, «La répartition des places aux spectacles…», p. 304.

1198 E. Rawson, «Discrimina Ordinum…», p. 92.

1199 J. Edmondson, «Public Spectacles and Roman Social Relations», in Ludi Romani: Espectáculos en Hispania
Romana…, p.41.

1200 Os Frísios eram uma tribo germânica que, tal como os Batavos, correspondem aos ancestrais dos actuais
holandeses.

1201 Tácito, Ann. 13.54.

432
Árabes, Sabeus (do actual Iémene), Cilicios (hodierna Turquia meridional), Sicambros (povo
germânico) e Etíopes, os dois últimos grupos com penteados invulgares e muito constrastantes
1202
. O poeta não oferece pistas sobre o estatuto destes estrangeiros: tanto podiam ser
emissários que se sentavam junto dos senadores, como simples visitantes que ocupavam
lugares na parte superior das bancadas do anfiteatro. De qualquer modo, Marcial utilizou os
nomes étnicos e os costumes destes visitantes do Coliseu, o novo símbolo da Urbs, para
realçar, sugestivamente a vastidão do império romano 1203. À lista de Marcial, Díon Cássio
acrescentou os Macedónios, Gregos, Sicilianos, Epirotas, Asiáticos, Iberos e os Cartagineses 1204.

Romanos que, a título individual, fossem agraciados com a corona civica/«coroa cívica», viam-
se honrados através de lugares especiais, tanto no teatro como no anfiteatro: tratava-se de
heróis de guerra que tinham salvado a vida de um concidadão romano, ao aniquilar um
inimigo1205. Quando eles entravam nesses edifícios, os senadores levantavam-se em sinal de
deferência (verecundia) e os primeiros tomavam assento atrás dos membros de tal ordem 1206.

***

Para se entrar no Coliseu era preciso ter «bilhetes»: estes consistiam em pequenas peças de
chumbo, madeira ou osso, que se designavam tesserae, que se distribuíam gratuitamente,
provavelmente através do sistema de patrono-cliente 1207. Descobriu-se um considerável
número desta espécie de «tabuinhas. Em cada «ingresso» estava gravado um número, de I a
LXXVI, correspondendo a um dos 76 arcos de entrada disponíveis para o público; na tessera
também se especificava o nível (maenianum), a secção (cuneus) e fila onde ficava o locus do
espectador: alguns espécimes indicam as seguintes informações: Cun VI In[feriori] [gradu
decimo] VIII, que significa «Secção 6, fila 10, lugar 8»; outros apenas referem o tipo de
espectáculo para o qual o «bilhete» era válido, como, por exemplo, LUD(I)/«Jogos (I)», ou DIES
VENAT[ionis]/«dias de venatio» 1208. Não causa estranheza que os munerarii (incluindo
naturalmente o imperador) fossem grandes distribuidores de blocos de lugares aos seus
amigos e apoiantes. Estes, por sua vez, partilhavam esse direito com amigos, acólitos e
dependentes, daí resultando um efeito «dominó» para os indivíduos pertencentes às camadas

1202 Liber spect. 3.

1203 Cf. Catherine Edwards e Greg Woolf, «Cosmopolis: Rome as World City», in C. Edwards e G. Woolf (eds.), The
Cosmopolis, Cambridge, 2003, p. 1.

1204 Díon Cássio, Hist. rom. 61.17.5.

1205 A atribuição desta coroa só podia ocorrer se a pessoa salva prestasse o seu testemunho.

1206 Plínio-o-Velho, Nat. Hist. 16.12-13; E. Rawson, «Discrimina Ordinum…», p. 106.

1207K. Hopkins e M. Beard, The Colosseum…, p. 109. O patronato romano envolvia assistência, tanto financeira
como legal, prestada por um patrono abastado, de estatuto superior, a outro socialmente inferior, com quem
mantivera um relacionamento durante largo tempo, podendo corresponder, por exemplo, a um escravo alforriado
pelo seu dono. Alguns patronos tinham muitos destes clientes. Em troca, o cliente apoiava o seu patrono de várias
maneiras e demonstrava-lhe respeito, saudando-o diariamente, de manhã cedo, na casa do último.

1208 S. Orlandi, «I loca del Colosseo», in Adriano La Regina (ed.), Sangue e Arena, Roma, 2001, pp. 89-103; R.
Auguet, Cruatè et civilisation…, p. 41. Curiosamente, R. Dunkle afirma que «None of these tesserae have survived»,
o que está incorrecto: Gladiators…, p. 272

433
mais baixas da sociedade 1209. E. Rawson demonstrou inequivocamente que uma das fontes
mais importantes desses «bilhetes», durante a República, radicava nos magistrados e membros
dos colégios sacerdotais 1210

Cícero narrou uma conversa com Clódio sobre a entrega de tesserae a clientes. O primeiro não
costumava distribuir «bilhetes» mesmo aos Sicilianos, seus clientes, a favor dos quais acusou o
seu infame governador, Verres, pela prática da extorsão. Clódio que, à semelhança de Cícero,
serviu como questor na Sicília, anunciou, como seu novo patrono, de o fazer. Mas o único
problema era que a sua fonte de «bilhetes», a sua irmã Clódia, não abriu mão dos mesmos,
embora ela tenha obtido um amplo espaço de lugares do seu marido, o cônsul Metelo Céler.
Clódio queixou-se que ela lhe deu «apenas um pé de espaço» 1211.

Na sua Defesa de Murena (Pro Murena), Cícero refere que um seu cliente havia recebido um
locus de uma das Virgens Vestais, que era sua parente 1212. E. Rawson carreou argumentos
convincentes sobre o locus dispensado pela Vestal ao cliente de Cícero (tal como o locus
almejado por Clódio): correspondia, na realidade, a um bloco de assentos, o qual ele, por seu
turno, distribuiria igualmente a outros 1213. Cumpre também reportarmo-nos aos locarii, que
desempenhavam um papel específico na distribuição de «bilhetes», mas envolvendo gastos:
possivelmente compravam lugares directamente ao editor e àqueles que os tinham recebido
sem custo algum, depois revendendo-os 1214. Marcial, no citado poema em louvor do famoso
gladiador Hermes (cf. Capítulo IV), afirma que este era «a fortuna do locatorium», o que
significa, por outras palavras que havia gente disposta a pagar aos locarii avultadas somas de
dinheiro para arranjar lugares e contemplar esse combatente na arena (Liber spect. 5.24.9).

Um cidadão comum não dispunha da possibilidade de assistir a eventos no Coliseu


regularmente. Sem um vínculo a alguém importante e influente, seria bem difícil adquirir
«bilhetes». Ademais, deviam ser relativamente poucos, caso tomemos em consideração a
quantidade de espaço nas bancadas do anfiteatro reservada para as classes altas e a disputa
pelo remanescente dos lugares no seio de uma população, em Roma, com aproximadamente
um milhão de individuos1215. Um cidadão vulgar teria muitas mais hipóteses de aceder ao Circo
Máximo, que lograva acolher 25 % dos habitantes da Urbs, ao passo que o Coliseu acolhia
somente uns 5% 1216.

***

1209 D. Bomgardner, The Story of the Roman Amphitheatre…, p. 6; P. J. J. Vanderbroeck, Popular Leadership…, pp.
79-80; A. Futrell, Blood in the Arena…, p. 164.

1210 Cf. «Discrimina Ordinum…», p. 97.

1211 Cícero, Ad Att. 2.1.5.

1212 73.

1213 «Discrimina Ordinum…», p. 97.

1214 A. Futrell, Blood in the Arena…, p. 164.

1215 E. Gunderson, «The Ideology of the Arena», Cl. Ant. 15 (1996), p. 123

1216 J. P. V. D. Balsdon, Life and Leisure in Ancient Rome…, p. 91.

434
Avancemos para outro tópico, o da entrada e saída do Coliseu. O mais importante na
construção de um recinto vocacionado para espectáculos, seja antigo ou moderno, relaciona-
se com os meios estabelecidos para permitirem aos espectadores chegarem aos seus lugares e,
depois, saírem, o mais fácil e rapidamente possível. Não é difícil imaginar quão crucial seria
este problema num edifício como o Coliseu, que tinha capacidade para cerca de 50 000
pessoas 1217. Isto resolveu-se por meio de um sistema de corredores atravessados por galerias
debaixo da zona das bancadas, a cavea. Havia corredores concêntricos que faziam o circuito à
volta de toda a arena (que aparecem referenciados pelas letras A, B, C e D Fig. 30 Dunkle) e
conduziam os espectadores aos seus respectivos lugares. Como os assentos das bancadas já
desapareceram, as reconstituições propostas para a cavea em diversas obras modernas são, na
realidade, apenas hipóteses mais ou menos convincentes e plausíveis.

Os senadores ocupavam, como dissemos, os melhores lugares, ficando muito perto da pista,
sentados num podium, uma plataforma interrompida nos lados opostos do eixo menor pela
tribuna do imperador e a do editor1218. Suetónio (Divus Nero, 12.2) identifica o podium como o
sítio onde se encontrava o camarote de Nero, no seu anfiteatro de madeira/amphitheatrum in
ligneis. O Coliseu, na qualidade de sucessor à estrutura neroniana, teria, indiscutivelmente, um
também. Juvenal alude igualmente a um podium de um anfiteatro não identificado, mas que
aparenta corresponder ao Coliseu.Os membros da ordem senatorial e outras individualidades,
em virtude da sua elevada condição social, conseguiam aceder facilmente aos seus assentos no
podium: deslocavam-se, a partir da entrada que lhes estava atribuída, através de um corredor
radial até a outro (A), situado mesmo no âmago do edifício, e depois subirem alguns degraus
por um vomitorium que desembocava no podium. Os lugares para os senadores consistiam em
bancos de madeira amovíveis (desprovidos de braços ou espaldares) chamados subsellia 1219. A
fim de oferecer mais conforto, colocavam-se almofadas sobre os bancos 1220. O nível seguinte,
imediatamente acima, estava atribuído, como vimos, aos membros da classe equestre, que
entravam no anfiteatro por um acesso próprio, mediante uma galeria que levava até ao
corredor de circuito B, servindo-se depois das escadas para se instalarem na sua zona da cavea
1221
. Para atingirem o próximo nível, atribuído aos plebeus que envergavam togas (maenianum
imum secundum), os espectadores tinham de se dirigir ao segundo piso, através de escadas
ligadas aos corredores de circuito B e C, no rés-do-chão.

O maenianum summum secundum era a zona que possivelrmente se destinava aos cidadãos
de condição inferior que trajavam, como se disse, uma túnica ou manto de cor escura (pullus).
A secção subsequente, no sentido vertical (maenianum summum in ligneis), estava separada da
parte inferior da cavea por um muro com 16, 5 pés de altura, mediante o qual os espectadores

1217 R. Rea, «L’anfiteatro di Roma: note strutturali e di funzionamento», in A. La Regina (ed.), Sangue e Arena, pp.
69-77.

1218 J. Edmondson, «Dynamic Arenas…», p. 91.

1219 Suetónio, Div. Aug. 44.1.

1220 Díon Cássio, Hist. rom. 59.7.8.

1221 J. Edmondson («Dynamic Arenas…», p. 91, n. 97) afirmou não haver provas convincentes de que os membros
da ordem equestre se sentavam no maenianum primum. O autor sugeriu que os seus lugares ficariam
imediatamente por detrás do podium sem um praecintio a separá-los. A interpretação mais comum é que havia três
corredores marcados por uma balaustrada (balteus), que dividia a cavea nas quatro principais secções, como se
observa em R. Dunkle, Gladiators…, Fig. 30. O corredor situado mais em baixo corresponderia ao que se encontrava
mesmo atrás do podium; o mais alto estava imediatamente a seguir ao maenianum imum secundum.

435
se mantinham, literal e figuradamente, nos seus lugares 1222, segundo os parâmetros da
estratificação social reflectida no interior do anfiteatro. Só era possível ter acesso a estes dois
maeniana a partir dos corredores exteriores do segundo andar do edifício 1223.

As quatro entradas situadas nas extremidades dos eixos do Coliseu eram as únicas que não
estavam numeradas, o que sublinha a função particular das mesmas, ao contrário dos arcos
marcados com um número crescente em sentido retrógrado (gravado na chave dos arcos e que
servia para os identificar). Noutros anfiteatros (Cápua e Cartago, por exemplo), as chaves dos
arcos estavam ornamentadas com bustos de divindades, todas diferentes, para assim
diferenciar as entradas. Como vimos, o percurso a efectuar entre a entrada e o lugar sentado
era o mais curto e lógico possível. A multidão, consideravelmente significativa – cerca de 50
000 pessoas no Coliseu – via-se repartida em cunei de 400 loca em média. Cada cuneus
dispunha do seu próprio vomitorium. Assim, encher e esvaziar a enorme cavea equivalia a
permitir o acesso e a saída de 400 espectadores, o número de indivíduos que ocupava cada
unidade de capacidade correspondente a um cuneus. O sistema de distribuição que servia os
cunei justapostos consistia num dispositivo de caixas de escadas que funcionava em paralelo,
permitindo repartir o público de baixo para cima e, depois, de cima para baixo, de uma
maneira espantosamente rápida.Tudo fora projectado para que os espectadores não se
cruzassem ou entrechocassem inutilmente, evitando desta forma que houvesse confusão e
congestionamento de gente no interior das galerias.Como exclamou J.-C. Golvin, «Que
extraordinário formigueiro!». Com efeito, não é preciso muito para imaginar estes milhares de
pessoas dentro do edifício e os múltiplos agentes (escravos, ofícios menores) que se
afadigavam a atender e instalar o público1224.

Ocupemo-nos de outros aspectos pouco focados. Nenhum anfiteatro, que saibamos, possuía
verdadeiras latrinas, mas torna-se difícil pensar que nada estivesse previsto para satisfazer as
necessidades fisiológicas de dezenas de milhares de espectadores. Podemos supor que, para
além de se utilizarem como «urinóis» os sulcos ainda hoje visíveis nas escadas de certos
monumentos (em particular o de Puteoli), se empregassem uma espécie de «bacios» nas
bancadas, tarefa que elevado número de serviçais levaria a cabo. Analogamente, é de presumir
que pelas bancadas circulassem pequenos vendedores ambulantes, transportando bebidas e
alimentos. É certo que existiam tendas nos vãos dos arcos que davam para a galeria periférica
do rés-do-chão de certos anfiteatros (especialmente em Puteoli, como se atesta pelos grafitos
aqui encontrados). Na já referida pintura parietal que descreve os sangrentos tumultos
ocorridos no anfiteatro de Pompeia, em 59 d. C., à volta do edifício representaram-se tendas
de comerciantes de comes e bebes, bem como de vendedores de «lembranças». Quanto às
prostitutas, sabemos que exerceram a sua actividade sob as arcadas do Circo Máximo, pelo que
não há que excluir que também o fizessem nas vizinhanças dos anfiteatros.

Os espectáculos, que duravam desde a manhã e, por vezes, se prolongavam até ao começo da
noite, ao longo de vários dias de enfiada, impunham que tudo estivesse acautelado para
assegurar a subsistência, o conforto e o prazer dos espectadores. Ao meio-dia, grande parte da
cavea esvaziava-se e o público aproveitava para almoçar e comprar objectos relacionados com
a gladiatura, num ambiente de promiscuidade e de multidão em movimento, comparável ao
bulício que se assiste nas grandes feiras dos dias de hoje. Ninguém tinha interesse em afastar-
se por demasiado tempo da sua entrada, antes do recomeço do munus. A boa repartição do
público que o sistema de acesso fornecia evitava engarrafamentos, encontrões e desordens.

1222 J. Edmondson, «Dynamic Arenas…», p. 92.

1223 P. Connolly, The Colosseum…, p. 61.

1224 L’Amphithéâtre romain et les jeux du cirque…, p. 103.

436
Afora o triste episódio de Fidenae, que ceifou milhares de vidas, jamais se colhem menções a
casos de pânico que tenham sucedido num anfiteatro. Em suma, e em face do que ficou
exposto, o Coliseu era um edifício grandioso e, acima de tudo, funcional.

***

Actualmente, ainda persiste uma questão que urge esclarecer: quem ficava sentado no
maenianum summum in ligneis? Na falta de elementos concretos, os estudiosos viram-se
compelidos a efectuar especulações. Peter Connolly, Rosella Rea e Silvia Orlandi, por exemplo,
atribuiram essa parcela aos indivíduos das camadas mais baixas da sociedade romana, uma
sugestão verosímil 1225. Este grupo de espectadores incluiria libertos e escravos, mas visitantes
estrangeiros provavelmente também se sentavam em tal zona. David Bomgardner, por outro
lado, entendeu que a secção se reservaria para as mulheres, dizendo que «as esposas e filhas
dos cidadãos romanos respeitáveis» tinham os seus lugares neste nível, protegidas, por um
pórtico, dos comentários sarcásticos das mulheres que pertenciam à classe trabalhadora 1226. Se
bem que não se tenha preservado qualquer pórtico, há indícios que apontam para a sua
existência: vêmo-lo numa moeda que descreve o Coliseu e Dião Cássio diz-nos vagamente que
a «parte superior da circunferência [isto é, o pórtico]» do anfiteatro foi atingido por um raio e
incendiou-se. Parece, pois, razoável situar as mulheres na zona mais alta do Coliseu, já que
Augusto ordenara que elas se sentassem «local mais elevado» 1227. Por outro lado,
possivelmente não precisariam de um pórtico para evitar o efeito ofuscante e quente do sol,
uma vez que o toldo gigante as manteria bem à sombra.

No entanto, o outro argumento preconizado por D. Bomgardner é mais persuasivo: o autor


reporta-se à segregação mais eficaz das «mulheres de qualidade» na colunata. De facto, se a
principal preocupação de Augusto em colocar as mulheres nas parcelas mais altas do anfiteatro
consistia (segundo Bomgardner) numa purdah 1228, a colunata seria a melhor maneira de
concretizar tal propósito. A colunata oferecia um sítio mais privado e, talvez, com cadeiras
especiais (cathedrae), que as damas tanto apreciavam quando assistiam aos espectáculos 1229.
Ademais, a colunata afigurava-se uma estrutura demasiado imponente para a gente comum,
escravos e estrangeiros que alguns estudiosos entenderam aí estarem sentados. Seria lógico
identificar essa colunata com o maenianum summum in ligneis, apenas mencionado na
inscrição dos Fratres Arvales atrás discutida, que data do momento da inauguração do Coliseu
em 80 d. C. Todavia, se a Cronografia de 354 estiver correcta, segundo a qual a dita estrutura
foi construída sob a égide de Domiciano (81-96 d. C), então, a colunata terá sido erigida após
80 d. C. Então o que significaria o maenianum summum in ligneis no ano da abertura solene do
Coliseu? Podemos avançar com uma resposta: desprovida de colunata, o original maenianum
summum in ligneis constituiria a zona com lugares mais alta na cavea do edifício, feita em
madeira, contrastando com os assentos de mármore dos níveis situados mais abaixo
(maenianum primum, maenianum imum secundum, maenianum summum secundum), mais
próximos da arena. Os membros do sexo feminino de alto estatuto, de acordo com a estrita
observância das normas de Augusto, sentar-se-iam em tal zona, entre as suas inferiores sociais.

1225 Ibidem, p. 56; R. Rea e S. Orlandi, «The Interior», in A. Gabucci (ed.), The Colosseum, p. 29.

1226 The History of the Roman Amphitheatre…, p. 12.

1227 Suetónio, Div. Aug.44.3.

1228 Sistema indiano de forçar a uma vida retirada as mulheres de alta condição social.

1229 Calpúrnio Sículo, Ecl. 7.21. J.-C. Golvin (L’Amphithéâtre romain. Essai…, p. 36, n. 85) sugeriu que as cathedrae
eram camarotes. Consulte-se, também, J. Edmondson, «Dynamic Arenas…», p. 93.

437
Quando Domiciano adicionou mais um elemento no topo do Coliseu, ele assumiu a forma de
uma colunata de madeira, reservada para as mulheres e partilhando a mesma designação com
o local, tal como era antes deste imperador. Enquanto as damas desfrutavam do pórtico
coberto, as suas anteriores companheiras de assentos passaram a ficar na secção não
protegida imediatamente em baixo 1230.

***

Centremo-nos agora no toldo (velum, velarium)1231. Uma das características importantes do


Coliseu, bem como de todos os anfiteatros romanos (incluindo teatros) radicava na utilização
de toldos (vela) para protegerem os espectadores do sol forte e quente italiano durante o fim
da Primavera e ao longo do Verão. Quando Calígula estava de muito mau-humor e o sol
brilhava com especial intensidade, ele ordenava caprichosamente que se puxasse para trás o
toldo, não permitindo que o público saísse do anfiteatro (talvez o de E. Tauro) 1232. O facto de
Calígula escolher este género específico de castigo mostra quão relevantes eram os toldos para
a plena usufruição dos espectáculos. Como atrás se viu, a promessa da utilização do velum
constituía um dos elementos que constavam nos edicta munerum (anúncios dos munera). Que
saibamos, a primeira ocasião em que se empregaram toldos foi por iniciativa de Q. Lutácio
Catulo, na sua inauguração do Capitólio 1233, em 69 a. C. Júlio César, por sua vez, recorreu ao
uso dos vela de uma maneira espectacular, aquando de um munus celebrados no âmbito dos
seus jogos triunfais no Forum, em 46 a.C. Com efeito, César terá mandado cobrir por completo,
com um imenso conjunto de toldos de seda, a praça a céu aberto do Forum e a Via Sacra,
desde a sua residência até à Colina Capitolina 1234. Plínio-o-Velho escreveu que a multidão
chegou até a apreciar mais os vela do que o espectáculo gladiatório propriamente dito 1235.

Quanto a Augusto, seguiu o exemplo do seu pai adoptivo, ao fazer estender sobre todo o
Forum toldos para um munus oferecido pelo seu sobrinho Marcelo, na sua qualidade de edil.
Estes vela mantiveram-se in situ durante o Verão inteiro 1236. O poeta Lucrécio (do século I a. C.)
descreveu o impacto pitoresco causado pelos toldos:

«[…] toldos amarelos, vermelhos e purpúreos [projectam cores]; quando estendidos sobre grandes
teatros, eles ondulam e adejam ao vento, suspensos a partir de mastros e vigas. Pois eles cobrem o
público nas bancadas em baixo com sombras coloridas […] e fazem com que pareçam vibrar, ao serem
banhados em cores»1237.

1230 R. Dunkle, Gladiators…, p. 276.

1231 Para quem pretenda aprofundar conhecimentos sobre o velum, remetemos para a monografia de R. Graefe,
Vela erunt, die Zeltdächer der römischen Theater und änhlichen Anlagen, Mainz, P. von Zabern, 1979. Veja-se
igualmente a abordagem mais sucinta mas rigorosa de Philippe Fleury, «Les moyens techniques au service du
spectacle. L’exemple du vélum», Les Gladiateurs, Histoire Antique & Medievale, HS (Avril 2010), pp. 68-79

1232 Suetónio, Div. Cal., 26.5.

1233 Plínio-o-Velho, Nat. Hist. 19.23.

1234 Ibidem.

1235 Ibidem.

1236 Díon Cássio, Hist. rom. 53.31.3.

1237 4.75-80. A tradução aqui apresentada baseia-se na de Cyril Bailey, com algumas alterações por nós feitas: cf.
Titi Lvcreti Cari De Rerum Natura: Edited with Prolegomena, Critical Apparatus, Translation and Commentary, I,
Oxford, 1947, p. 367.

438
Estes efeitos cromáticos contribuíram enormemente para a atmosfera festiva dos eventos.
Nero tinha o hábito de usar toldos cuja cor imitava a de um céu azul-escuro repleto de estrelas.
Estes vela foram todos decorados com astros sobressaindo do pano de fundo azul 1238. A
megalomanía neroniana evidenciou-se na ornamentação dos toldos destinados à coroação de
Tiridates como rei da Arménia; no centro dos vela, ordenou que se elaborasse uma
representação sua a conduzir um carro puxado por cavalos, assim o identificando com o deus
Sol, que, de acordo com o mito, percorria o firmamento durante o dia. Tal identificação servia
como forma para lembrar a Tiridates e ao povo romano o poder esmagador de Nero. O mesmo
tema iconográfico também parece ter-se visto materializado na colossal estátua de Nero, em
cuja cabeça cingia uma coroa radiada do deus solar 1239.

No muro exterior do quarto registo do Amphitheatrum Flavium, por detrás dos lugares
sentados para as mulheres, estavam os postes que suportavam um enorme velum. Esses
mastros mantinham-se no sítio através de orifícios localizados nos espaços entre as janelas na
cornija sobrepujando o ático do edifício. Há vestígios da presença de escadas no interior do
muro exterior noroeste, que permitiam ter-se acesso ao topo do anfiteatro. O velum era
manobrado por marinheiros pertencentes à frote imperial sediada em Misenum, na Baía de
Nápoles, que estavam encarregados de montar e remover esse grande toldo. Eles
encontravam-se aboletados perto do Coliseu, no Castra Misenatium/«Acampamento dos
Misenatos»). A experiência que estes matelotes tinham a lidar com as velas dos navios
qualificava-os naturalmente para tais tarefas 1240. Calculou-se que seriam necessários cerca de
1000 homens para desfraldar e recolher o velum da maneira mais adequada. Mas isto não seria
fácil, exigindo grande esforço e cooperação a nível colectivo. Em certos momentos, era
impossível montar devidamente o velum: o vento, a neve e, provavelmente, a chuva consistiam
em factores que podiam levar os marinheiros a deixar o toldo ferrado. Mesmo depois de se
estender o velum, era preciso, em algumas alturas, removê-lo com rapidez quando,
subitamente, se levantasse vento ou começasse a chover ou nevar 1241. Tinha de se efectuar isto
com celeridade, antes de sobreviessem danos no velum. Norma Goldman salientou que a
«rápida manobrabilidade» do toldo ajudava a salvar o dia de espectáculo em tais circunstâncias
1242
.

Certa vez, Cómodo atribuiu outra tarefa para os marinheiros levarem a cabo, mas que,
felizmente, jamais se efectuou: Cómodo, que estava acostumado a aplausos aduladores pelas
suas exibições na arena como gladiador, de repente teve um ataque de paranóia que o levou a
acreditar que a reacção morna da multidão indicava o seu desprezo pelo imperador; este
mandou, então, que de imediato os marinheiros matassem os espectadores, além de ordenar
que se incendiasse a Urbs. Mas Cómodo acabou por se ver persuadido pelo seu prefeito
pretoriano a anular tais ordens 1243.

1238 Plínio-o-Velho, Nat. Hist. 19.24; Dião Cássio, Hist. rom. 63.6.2.

1239 A. Claridge, Rome…, p. 271; K. Coleman, Liber Spectaculorum…, p. 21. Cf. Historia Augusta/SHA, Adriano, 9.13.

1240 Historia Augusta/SHA, Cómodo, 15.6. Consultem-se: P. Connolly e H. Dodge, The Ancient City…, p. 198; A.
Claridge, Rome…, p. 269; G. Ville, La Gladiature…, p. 282. Misenum, sublinhe-se, era a base naval mais importante
de Roma.

1241 Marcial, 4.2.5; 11.21.6. Os marinheiros podem ter-se servido de um dispositivo chamado anemoscópio, a fim
de determinarem a direcção do vento. Achou-se um destes indicadores eólicos na Colina Esquilina, não longe do
Coliseu: cf. S. Orlandi, «The Anemoscope», in A. Gabucci (ed.), The Colosseum, p. 119.

1242 Cf. «Reconstructing the Roman Colosseum Awning», Archaeology 35.2 (1982), p. 62.

439
Na falta de toldos, Marcial aconselhava os espectadores a recorrerem aos guarda-sóis para se
protegerem 1244. Mesmo quando os vela estavam desfraldados, por volta do meio-dia eles só
facultavam cobertura aos lugares situados nas zonas superiores, enquanto os senadores,
sentados no podium, se encontravam expostos a um sol abrasador que impossibilitava
desfrutarem dos «prazeres» do espectáculo 1245. Talvez por causa deste problema é que a
maioria dos senadores abandonava o anfiteatro ao meio-dia para ir almoçar. Para os que
optavam por ficar e assistir ao meridianum spectaculum, colocavam frequentemente na cabeça
chapéus de abas largas, o que servia para observarem relativamente bem aquilo que se
desenrolava na arena1246.

Com toda a probabilidade, o velum do Coliseu era suportado por cabos radiais presos aos 240
mastros verticais que coroavam o anfiteatro. Tais cabos estavam amarrados a uma corda
elíptica situada bem alto, sobre o centro da arena, formando uma abertura circular (a que se
chamava oculus/«olhos»), por meio do qual entravam os raios solares 1247. Plínio-o-Velho refere
que os toldos de Nero se mantinham firmes através de cordas 1248. Por seu turno, no anfiteatro
de Pompeia empregou-se outro método de cordame: o velum era escorado por postes que se
projectavam na horizontal a partir do arco do edifício 1249.

***

Dediquemos as linhas subsequentes ao hypogeum, que formava uma oval de 75 por 44 m. O


Anfiteatro Flávio foi o primeiro para o qual se criou, sob a égide de Domiciano (sucessor de
Tito, também filho de Vespasiano), um vasto subsolo, estendendo-se sob toda a superfície da
arena, uma plataforma coberta de areia, o que representou um aperfeiçoamento último deste
género de edifício. A sua construção interrompeu o funcionamento da grande bacia (inundável)
empregue por Tito em 80 d, que recebia água a partir dos reservatórios mais próximos na
Colina Célia. C. o muro periférico do grande fosso em que se instalou o hypogeum fez-se com
tijolaria (opus latericium) e viu-se reforçado por toros ligados mediante arcos, delimitando
espaços onde estavam dispostos 64 carceres em dois níveis 1250. As feras eram postas em jaulas
móveis, que se deslocavam facilmente e em segurança para os monta-cargas, existindo um por
cada carcer. O «elevador» era içado por meio de cabos, puxados por cabrestantes, até ao nível
da arena. Ao chegar à superfície, a jaula era então aberta por assistentes e o animal saía. Nos
mosaicos de El-Djem (Thysdrus, Tunísia), repara-se que, para proteger as saídas dos animais
dos alçapões, se montavam paliçadas ornadas com tecidos e troféus de armas.

1243 História Augusta/SHA, Cómodo, 15.5-8.

1244 Liber spect. 14.28.

1245 A. Scobie, «Security and Comfort…», p. 222; K. Hopkins e M. Beard, The Colosseum, pp. 110-111.

1246 Díon Cássio, Hist. rom. 59.7.8.

1247 P. Connolly, The Colosseum…, p. 64.

1248 Nat. Hist. 19.24.

1249 P. Connolly e H. Dodge, The Ancient City…, p. 199. Para uma reconstituição, veja-se R. Graefe, Vela erunt; die
Zeltdächer…, fig. 186, p. 162.

1250 Para mais detalhes, veja-se H.-J. Beste, «I sotterranei del Colosseo: impianto, transformazioni e
funzionamento», in A. La Regina (ed.), Sangue e Arena…, pp. 277-299.

440
O «corredor B» do Amphitheatrum Flavium tinha 28 elevadores que transportavam para a
superfície jaulas medindo 1,60 x 1,40 x 1, 10 m (comprimento, largura e altura). Devido ao
tamanho relativamente pequeno das jaulas, estes ascensores destinavam-se provavelmente
para colocar na pista animais (lobos, javalis, felinos de porte médio, etc.) e não gente. Um
monta-cargas era accionado, como dissemos, utilizando-se cabrestantes em dois registos, com
quatro homens em vada um. Consequentemente seriam necessários 224 indivíduos para pôr
em funcionamente todos os elevadores do corredor. A base dos mesmos não podia ser elevada
ao nível da arena, por causa das dimensões das jaulas. Então, como solução, parte da
plataforma da arena estava deslocada para baixo. Quanto a porta da jaula se abria, os animais
subiam por um plano inclinado rumo à pista.

No decurso de uma reconstrução, provavelmente ocorrida em meados do século II d. C., os


elevadores no «corredor B» foram removidos. Em vez destes, instalaram-se outros, novos, nos
corredores «E» e «G». Tratava-se de plataformas medindo 0,90 x 1,30-1,40 m que se moviam
para cima, ficando praticamente ao nível da arena. Ao mesmo tempo, retirou-se uma secção da
arena propriamente dita a fim de que os animais pudessem aceder logo à pista. Havia 60
ascensores deste género no Coliseu: 20 no «corredor E» (10 no lado norte e igual número no
lado sul) e 40 no «corredor G» (20 no lado norte e outros tantos no lado sul). Quanto aos
corredores «H» e «F», possuíam uma construção distinta: Neles, havia 20 grandes plataformas
móveis, cada uma com 4 x 5 m. Quando fechadas, faziam parte da plataforma da arena;
quando se abriam, elas deslizavam para baixo, ao longo de elementos especiais inclinados num
ângulo de 30º. Eram activadas para cima através de um sistema de cabrestantes 1251.

Alçavam-se também até à arena peças de cenário volumosas e acessórios diversos. Para o
devido funcionamento da infra-estrutura estava adstrito um pessoal de serviço imprescindível,
incumbido de encaminhar e manter os animais, limpar os locais, preparar cenários e jaulas e
reparar as máquinas. Estes corredores assemelhar-se-iam, em certa medida, aos bastidores de
uma ópera, onde trabalhava um grande número de auxiliares coordenados por chefes que iam
seguindo o desenrolar do espectáculo. Existiam escadas de serviço a unir os diferentes níveis
do subsolo e o rés-do-chão do monumento. Podemos fazer um esforço e imaginar o peculiar
ambiente do hypogeum, sombrio, apesar de dispor de archotes e lucernas para iluminar o
espaço, e mal arejado, onde se ouvia o rugido das feras, o chiar das polés/roldanas, o gemer do
cordame e, provavelmente, também, as ordens transmitidas em voz alta, com gritos e
palavarões de permeio. Igualmente nos assoma à mente o fétido odor dos animais e dos seus
excrementos. Os animais selvagens mantinham-se no hypogeum o menor tempo possível, em
geral pouco antes de se levarem para os sítios certos, para logo serem despachados para a
arena. O «ventre» do Coliseu devia parecer-se com uma espécie de labirinto que prefigurava o
inferno, já que não restam dúvidas de que tudo funcionava de maneira eficazmente
implacável1252.

No eixo maior do anfiteatro, uma grande galeria dava acesso a 72 jaulas, havendo outras em
cada um dos lados. Estas centenas de carceres oferecem uma ideia da importância assumida
pelas venationes e tornam credíveis os números avançados pelos autores antigos. No eixo
menor, duas galerias abobadadas subterrâneas permitiam comunicar com o exterior por meio
de rampas. Todos os anexos necessários para as venationes se encontravam no subsolo, ao
passo que os gladiadores e o pessoal que lhes dizia respeito operavam ao nível da arena.

À volta do podium situava-se um corredor de serviço onde se rasgavam 24 nichos


rectangulares tendo a altura de 2 m e a profundidade de 1, sítios onde permaneciam os

1251 K. Nossov, Gladiator…, pp. 124-125.

1252 J.-C. Golvin, L’Amphithéâtre romain et les jeux du cirque…, p. 97.

441
gladiadores antes de entrar em cena. Tal corredor dava para a cavea mediante pequenas
portas regularmente repartidas. À frente do muro do podium, encontrava-se um espaço de
circulação, como o solo coberto de cimento estanque, que estava protegido por uma grelha (ou
uma rede), sistema mantido por postes de madeira verticais encaixados em consolas de pedra.
A partir deste espaço, era possível aos venatores atirarem ao arco ou arremessar dardos sobre
as feras na arena, uma «modalidade desportiva» muito do agrado do imperador Cómodo.

***

Bastante depois do Coliseu, construiu-se outro anfiteatro em Roma, conhecido como


Amphitheatrus Castrense: construído por volta de começos do século III d. C., foi utilizado por
Elagábulo (Heliogábalo) para assistir a porfias gladiatórias e venationes, acompanhado pelo seu
círculo mais íntimo de servidores e amigos; este imperador tinha uma especial predilecção
contemplar um espectáculo antes de tomar as refeições. O edifício era comparativamente
pequeno, com uma arena de 38 x 25 m e, supostamente, não podia acolher mais do que 3 500
espectadores. O sucessor de Elagábalo, Alexandre Severo (222-235) não apreciava esse
anfiteatro e ignorou-o; sob Aureliano (270-275), o monumento viu-se incluído nas fortificações
da capital. As ruínas deste anfiteatro, parcialmente absorvidas pela Muralha Aureliana, ainda
hoje podem ver-se. Depois do assassinato de Elagábalo, o anfiteatro parece ter funcionado
apenas como vivarium, um sítio onde os animais destinados às venationes eram mantidos. Em
tempos, acreditou-se erradamente que o edifício tinha sido erigido e usado para o treino dos
pretorianos e, determinados estudiosos chegaram a rotulá-lo de «acampamento» ou
«anfiteatro militar»1253.

Outros anfiteatros do Império

O Anfiteatro Flávio representou, doravante, o poderoso modelo em que se inspirariam os


outros anfiteatros construídos no território imperial. Só as cidades mais prósperas reuniam
meios financeiros para disporem de um monumento capaz de emular um pouco com o
emblemático Coliseu. Nos centros urbanos mais pequenos e na vizinhança dos campos,
levantaram-se anfiteatros muito modestos. Adoptou-se uma grande variedade de soluções
para construir estas estruturas, desde o modo como foram implantados (no flanco de uma
colina, autónomo e num terreno plano) até aos seus métodos edificatórios. Os últimos
mostram que, frequentemente e para economizar nas despesas, se optou pelo uso dos
materiais locais mais comuns.

Anfiteatros de carácter monumental

O anfiteatro contava-se entre os monumentos públicos mais prestigiosos erigidos nas grandes
cidades do Império Romano. Consagraram-se meios bem consideráveis para a construção do
edifício, que era financiado por particulares (em regra um sumo sacerdote do culto imperial),
bem como, ocasionalmente, por corporações de mercadores que faziam a fortuna da cidade.
Elas (integrando os scabillarii e os navicularii) aparecem referidas no anfiteatro de Pozzuoli 1254
(Puteoli) em seis sítios que conduziam à galeria periférica do rés-do-chão. A riqueza da cidade

1253 Para mais dados, cf. M. Barbera, «Un anfiteatro di corte: il Castrense», in A. La Regina (ed.), Sangue e Arena…,
pp. 127-147; K. Nossov, Gladiator…, p. pp. 125-126.

442
provinha da sua actividade portuária e os navicularii podiam dar-se ao luxo de oferecer
avultadas somas de dinheiro para restaurar o monumento. Julga-se que as bases das estátuas
colocadas nesses seis compartimentos figuravam as efígies dos generosos doadores, e não
divindades, pois nenhum dos monumentos conhecidos possuiu alguma vez «capelas» ou
espaços de culto em tal local. Note-se, a propósito, que nos mosaicos de Thysdrus (El-Djem,
Tunísia) se vêem siglas das ricas corporações dos comerciantes de azeite e trigo, que
participaram com capital no embelezamento do centro urbano.

O segundo anfiteatro, pela sua amplitude, imediatamente abaixo do Coliseu, é o de Cápua 1255,
o único, juntamente com o seu modelo da Urbs, a comportar uma dupla galeria periférica no
rés-do-chão, em razão do elevado número de espectadores que aí se reunia. De facto, as suas
dimensões são impressionantes (165 x 135 m), e a sua cavea tinha capacidade para cerca de 37
000 pessoas. Esta cidade da Campânia, a região da Itália mais associada com a génese do
fenómeno gladiatório, dispôs, desde a época republicana, de um primeiro anfiteatro, cujos
vestígios subsistem ao lado de outro, maior e posterior. Não olvidemos que foi no ludus de L.
Batiato, em Cápua, que deflagrou a célebre revolta de Espártaco, em 73 a. C.

O considerável desenvolvimento de Cápua levou a que (como no caso de Puteoli) se


acrescentasse um segundo anfiteatro. Este era muito mais vasto e prestigioso do que o antigo.
A fachada do grande anfiteatro acha-se deteriorada, mas como sobreviveram numerosos
blocos dispersos nas proximidades, é possível reconstituir com alguma exactidão o seu
esplendor. Este edifício faculta, a par do de Puteoli, um dos melhores exemplos de um grande
hypogeum integralmente conservado 1256. Com efeito, observamos os alçapões de saída das
jaulas, os cubículos onde se guaradavam as feras (posticae) e todos os pormenores do
funcionamento das galerias de serviço e dos monta-cargas. Também vemos, com nitidez, a
poderosa rede de recuperação das águas pluviais que eram canalizadas para grandes cisternas.

No Sul de Itália, como em todas as províncias com clima quente, o imenso tanque constituído
pela forma côncava da cavea servia para recuperar um significativo volume de água
consumível. Esta recuperação sistemática traduz uma vontade de economizar ao máximo a
água, conectada com o formidável desenvolvimento urbano. As necessidades de água das
cidades podem igualmente explicar o facto de a modalidade das naumaquias apresentado na
arena (extremamente dispendiosas em recursos hídricos) vir a ser abandonada no período dos
Flávios.

Não sobreviveu qualquer invenção sob o ponto de vista conceptual nos anfiteatros a partir
desse período, tão-só variantes de pormenor, que relacionaram mais com critérios estéticos e
modas passageiras, daí não se poder falar verdadeiramente em inovações. Neste sentido,
avulta a ideia que se traduziu em festoar ou agrinaldar profusamente as fachadas, cujos
melhores exemplos se topam nos edifícios de Arelate (Arles, França) e Nemausus (Nîmes,
França). Nestas fachadas, as pilastras exibem acentuadas saliências, o que obrigava que todo o
entablamento (arquitrave, friso e cornija) a desprender-se de forma muito pronunciada, logo

1254 Sobre este edifício, consultem-se dois estudos, já antigos mas ainda assim úteis, de Amedeo Maiuri:
«L’anfiteatro flavio puteolano», in Memorie dell’Academia di Lettere, Archeologia e Belle Arti, Nápoles, G.
Macchiaroli, 1955; Studi e ricerche sull’Anfiteatro Flavio Puteolano, Nápoles, G. Macchiaroli, 1955.

1255 Luigi Spina, Gianfranco Arciero e Valeria Sampaolo, L’anfiteatro campano di Capua, Nápoles, Electa, 1999;
Alberto Perconte Licateses, L’Anfiteatro campano e gli spettacoli dell’arena, 2ª edição, Santa Maria Capua Vetere, Ed.
Spartaco, 2002.

1256 Para o hypogeum de Puteoli, vejam-se os comentários detalhados na obra de Thomas Hufschmid,
Amphitheatrum in Provincia et Italia. Architektur und Nutzung römischer Amphitheater von Augusta Raurica bis
Puteoli, Augst, 2009, pp. 228-233 (onde também se fornecem dados sobre o funcionamento dos monta-cargas).

443
acima das mesmas. Daqui resultou um efeito de recorte das linhas horizontais da fachada e um
jogo de luz e sombra, que animava, à luz do dia, o exterior da estrutura monumental.

Este género de composição também se terá aplicado à fachada de traquite de cor escura do
grande anfiteatro de Puteoli, segundo a reconstituição efectuada com base na junção dos
blocos dispersos que se descobriram. A sua inscrição-dedicatória, de significativo tamanho, é o
mais bem datado dos três exemplos atrás citados. No texto gravado, menciona-se a Colonia
Flavia Augusta Puteolana, o que nos leva a situar igualmente a construção dos outros dois
casos no período dos Flávios.

Defronte do grande anfiteatro de Pozzuoli (Puteoli), cuja massa domina a cidade, distinguem-
se as ruínas do primeiro edifício de espectáculos da época republicana. O anfiteatro mais novo
albergava mais de 37 000 lugares. Para implantar este edifício (149 x 116 m) num solo
inclinado, teve de se escavar uma ampla plataforma na rocha (da mesma maneira que em
Lugdunum ou Arelate). A possibilidade de um adossamento à colina oferecia poucas e fracas
vantagens aos olhos dos construtores, comparativamente à hipótese de conferir ao edifício a
máxima monumentalidade.

Os dois monumentos que beberam inspiração directa no Anfiteatro Flávio foram


indubitavelmente os de Arelate e Nemausus, na Gália1257. O primeiro, construído ao redor de 80
d. C., é ligeiramente anterior ao da cidade vizinha de Nemausus. Para instalar este edifício, foi
necessário nivelar parte do recinto augustano e inserir o anfiteatro numa depressão natural.
Daqui resultou uma mudança radical de eixo da estrutura, relativamente à planta do resto do
centro urbano. O anfiteatro de Arelate, o vigésimo do mundo romano pelo seu tamanho, cobre
uma superfície elíptica com mais de 11 500 m 2, medindo 136 m de comprimento por 107 de
largura, ou seja, um pouco mais do que o seu homólogo de Nemausus. Foi erigido com blocos de
calcário aparelhados e unidos sem argamassa. O seu perímetro exterior compunha-se de dois
níveis com sessenta arcadas de volta inteira e aberturas irregulares, atingindo 21 m de altura.
As arcadas eram flanqueadas no primeiro registo por pilastras dóricas e um entablamento liso;
no segundo piso, por meias-colunas corintias, de que só um capitel desafiou a voragem do
tempo. O topo do monumento devia estar sobrepujado por um ático (como vimos, um muro
ornamental que coroava o conjunto), que há muito desapareceu.

Uma abertura mais larga situa-se nas extremidades dos dois eixos, perfazendo quatro ao todo.
A entrada principal localizava-se no lado oeste, onde ainda hoje se pode ver os degraus de uma
escadaria ligando o edifício à cidade antiga. Uma vasta galeria circular, coberta por lajes
monolíticas no primeiro registo, e por abóbadas de volta inteira no segundo, envolvia o
anfiteatro: ela servia para aceder às bancadas e aos corredores perpendiculares, oferecendo
também um espaço ao abrigo das intempéries. Havia 188 corredores que conduziam perto os
espectadores aos seus respectivos lugares com rapidez, o mesmo sucedendo quando depois
abandonavam o edifício (que teria a capacidade para acolher 23 350 lugares).

Hoje em dia, a cavea acha-se destruída até à altura do segundo nível e as bancadas apenas
alcançam o topo das arcadas. Crê-se que haveria 34 bancadas divididas nas tradicionais quatro
partes. No podium, encontra-se uma inscrição ainda parcialmente legível, que evoca o facto de
C. Iunius Priscus, candidato a uma magistratura municipal, ter oferecido este podium, bem
como uma estátua de Neptuno de prata e quatro outras efígies em bronze para ornamentarem
o anfiteatro, além de organizar um grande banquete e dois dias de jogos e uma venatio. Estas
dispendiosas liberalidades mostram o prestígio que um editor podia obter a partir dos jogos no
mundo romano; a fervilhante actividade municipal também auferia de lucro com a afluência de
visitantes de localidades vizinhas no século I d. C. Em Roma, pela mesma altura, os munera

1257D. Bomgardner, The History of the Roman Amphitheatre…, pp. 106-120.

444
traduziam-se em despesas extravagantes, ruinosas e vãs para alguém que não pertencesse à
família imperial, nas províncias, pelo contrário, o papel eminentemente político dos
espectáculos manteve-se activo.

Nos eixos do edifício, quatro portas davam acesso à arena, vasta elipse com 69 m de
comprimento por 39 de largura. As duas mais pequenas, a norte e a sul, serviam para os peões,
e as duas maiores, a leste e a oeste, destinadas aos carros e cavaleiros. A rena ficava dois
metros mais alta do que o solo actual, visto que possuía um estrado apertado no podium,
coberto de areia. Sob a arena, muros e suportes garantiam a estabilidade do pavimento da
superfície e permitiam ao pessoal que operava nas galerias subterrâneas, fazer surgir, por meio
de monta-cargas e alçapões, aos olhos do público, as jaulas com animais ou peças para a
montagem de cenários.

Com o ocaso do fenómeno gladiatório e a crescente insegurança no Império, a partir do século


V d. C., o anfiteatro perdeu o seu papel e viu-se gradualmente invadido por habitações de
gente comum que aí encontrava um local protegido. Não tardou que as suas arcadas fossem
muradas e o edifício adquirisse as características de uma fortaleza. Na Idade Médio, reforçou-
se o conjunto arquitectónico através da adição de quatro torres encimando as antigas portas.
Em 1826-1830, quando se procedeu à prospecção da área do anfiteatro, constatou-se que o
mesmo se transformara numa espécie de bairro, o «bairro da arena», com uma praça pública
ao centro, uma capela contendo as relíquias de São Genésio, outra dedicada a São Miguel,
junto à torre ocidental, e 212 casas!...

Passemos ao anfiteatro de Nemausus 1258: embora não sendo o maior do mundo romano,
trata-se de um dos que se acha em melhor estado de conservação. Construído por volta de 100
d. C., é apenas posterior numa vintena de anos em relação ao Coliseu. A prosperidade dos
notáveis da província da Narbonensis, o tremendo êxito das pugnas gladiatórias no conjunto do
território imperial e, em particular, na Gália, explicam a edificação deste grande monumento
de pedra. Com efeito, apesar de não dispormos de provas arqueológicas tangíveis, é muito
provável que Nemausus já tivesse uma estrutura pré-existente, mas de madeira, para os
munera. Como se viu, em 80 d. C. aproximadamente, Arelate, a cidade vizinha e rival ficou
dotada de um anfiteatro monumental que mimetizava o modelo do Coliseu. As figuras
importantes locais não hesitaram em gastar enormes somas para levantar monumentos
prestigiosos para satisfazerem os seus concidadãos.

Em Nemausus, o anfiteatro que praticamente igualou o do centro urbano vizinho, conta-se


entre os vintes mais importantes, entre os perto de 400 conhecidos no mundo romano. Erigido
com blocos líticos procedentes das pedreiras de Roquemaillère e Baruthel (nas imediações da
cidade), o edifício mede 133 m de comprimento por 101 de largura, com uma pista de 68 x 38
m. A sua fachada exterior, com 21 m de altura, tem dois registos com 60 arcadas. No ático,
topo da orla exterior, ainda podemos contemplar as 120 consolas salientes com orifícios que se
destinavam a receber os mastros de suporte do velum, na razão de dois por cada arco. A
parcela mediana dos mesmos atravessava a cornija de coroamento da fachada e estavam
solidamente presos por grampos e imobilizados com firmeza através de cunhas de madeira nos
orifícios de fixação. O facto de a última bancada tocar na fachada indica também que não havia
um espaço particular reservado para o pessoal de serviço encarregado de manejar o cordame
do velum. Estes homens estariam posicionados na cornija e operavam sem protecção a céu
aberto, como o fariam nos mastros de um navio no mar alto. O velum geralmente era
manufacturado com linho ligeiro, daí que a força para o estender, quando estivesse bom
tempo, fosse pouco significativa; no entanto, existia o risco de se rasgar o velum, caso

1258 Para uma visão sucinta sobre este monumento, veja-se É. Teyssier, «L’amphithéâtre de Nîmes et les combats
de gladiateurs», Histoire Antique, 32 (Juillet-Août 2007), pp. 30-35

445
sobreviessem fortes rajadas de vento; nestas ocasiões, tinha então que se desfraldar o enorme
toldo. As polés e os dispositivos de activação do cordame assemelhavam-se aos de um barco, e
o pessoal actuava de acordo com instruções transmitidas por sinais ópticos. O efeito de
conforto propiorcionado por esta cobertura leve e translúcida, que se desdobrava de forma
espantosa por cima do público, não deixava de ser considerável 1259.

Ignoramos o nome do abastado personagem que ofereceu o anfiteatro à comunidade às suas


próprias expensas. Em contrapartida, uma inscrição descoberta no subsolo da arena menciona
um tal T. CRISPIVS REBVRRVS FECIT – Titus Crispius Reburrus fez». Para diversos estudiosos,
esta fonte epigráfica seria uma espécie de «assinatura» do arquitecto que concebeu o
monumento, mas em nosso entender não parece tratar-se disso: para já, a palavra latina
architectus não surge mencionada, além de que desconhecemos se a inscrição, discreta e
pouco monumental, se reportava a todo o anfiteatro, e, quando cotejada com as dedicatórios
de outros edifícios do género, leva a crer que estaria antes relacionada com a construção do
próprio hypogeum. O anfiteatro tinha capaciadade para 21350 espectadores, dispostos em 34
filas de lugares, repartidos pelas típicas e tradicionais quatro «zonas» chamadas maeniana.
Cada «zona» estava provida de galerias e escadas (vomitoria), o que permitia, como já
reálçamos, encher e esvaziar o edifício em tempo recorde ordeiramente. Como no Anfiteatro
Flávio ou em Cápua e Puteoli, o de Nemausus também comportava galerias subterrâneas: para
trazer à tona da pista as feras e, ocasionalmente, os próprios combatentes, accionavam-se
alçapões por meio de contrapesos: destes, acharam-se dois, em chumbo, inscritos – R(ES)
P(UBLICA) N(EMAUSENSIS) – durante as escavações efectuadas em 1866. As fortes afinidades
estruturais entre os anfiteatros de Arles e Nîmes talvez apontem para a eventualidade de
terem sido projectados pelo mesmo arquitecto, mas por enquanto não há provas que tal o
confirmem. Um dos pontos comuns entre ambos radica no facto de serem os únicos a
englobarem galerias não abobadadas. Outro tem a ver com a localização dos edifícios, os dois
implantados na perfieria das respectivas cidades, ainda que no interior da contura amuralhada
das mesmas. Partilham igualmente dimensões próximas (embora o anfiteatro de Arles seja
ligeiramente maior), o número de arcos é similar e o número de registos da fachada igual 1260.

A variedade de anfiteatros no território imperial

Por todo o império, foi-se criando uma rede ou constelação de outros anfiteatros de carácter
monumental. De entre os principais, podemos citar, igualmente na Gália, os de Fréjus, Metz e
Autun (Augustodonum). No entanto, pela sua importância, resolvemos dedicar maior espaço
ao anfiteatro de Italica (Santiponce, Sevilha; FIG. planta1261), o segundo maior da Hispânia, após
o de Corduba. A norte, extramuros da antiga urbe, construíu-se o o edifício paralelo à linha da
muralha, disposição comum, em geral, dos anfiteatros do império, assim oferecendo a imagem
mais monumental da cidade a todo aquele que à mesma acedesse a partir da sua porta
setentrional1262. Foi implantado entre duas colinas, estando o seu eixo menor orientado com

1259 J.-C. Golvin, L’Amphithéâtre romain et les jeux de cirque…, p. 121.

1260 Ibidem, p.121.

1261 P. León Alonso, Arte romano de la Bética I. Arquitectura y Urbanismo, Sevilha, 2008, p. 224.

1262 Cf. S. F. Ramallo Asensio, «La arquitectura del espectáculo en Hispania: teatros, anfiteatros y circos», in Ludi
Romani. Espectáculos en Hispania, Mérida, 2002, p. 100.

446
um desvio de 25º para leste, em relação ao norte geográfico.O edifício tem 152,5 m no seu eixo
maior e 131,6 m no menor. Quanto à arena, mede 71 m no eixo maior e 47,3 m no menor 1263.

Sobre o momento histórico da edificação do anfiteatro de Italica, verifica-se uma


homogeneidade de opiniões que advoga por uma criação datando do reinado de Adriano, o
que não surpreende, já que o imperador havia nascido nesta cidade. O seu aspecto originário
correspondia ao de uma grande estrutura de opus caementicium revestida por placas
marmóreas e pedra de Tarifa; o conjunto das suas bancadas consistia num podium e três níveis
na cavea (ima, media e summa). Por baixo da arena, encontrava-se a fossa bestiaria1264,
coberta na origem por uma plataforma de madeira sustentada por oito pilares de ladrillo, que
ainda se preservam1265. Na Hispânia, aconstrução das bancadas costumava levar-se a cabo ao
aproveitar as características dos cerros rochosos. Em resultado da sua implantação entre
colinas, a fachada do monumento não se afigurava uniforme em todo o seu perímetro. As
portas a nascentes e a poente do eixo maior são as únicas com a mesma cota da arena. Já nas
frentes norte e sul, o terreno atinge uma cota mais elevada, cobrindo as colunas e todos os
constituintes da ordem. A fachada poente compunha-se de arcadas apoiadas em pilares
rectangulares, encontrando-se adossadas na face externa meias colunas com base cúbica, fuste
liso e capitéis coríntios. A distribuição da decoração da fachada seria regular, com uma medida
entre colunas de 6, 7 m de comprimento e 3,5 m de largura nos vãos dos arcos. O arco da
entrada principal a poente teria maior altura relativamente aos arcos adjacentes, que seriam os
mais baixos de toda a fachada1266.

É possível que houvesse um volume superior no anfiteatro constituído por uma colunata
aberta, o que enriqueceria sem dúvida a composição arquitectónica 1267. Nos extremos das
fachadas existem duas entradas cúbicas. Destas partem galerias rectas, com cerca de 10 m de
comprimento, secundadas por rampas de acesso à fossa bestiaria. Era mediante esta entrada
que se estabelecia a comunicação com a crypta (corredor subterrâneo) de acesso à arena 1268.
Esta, por seu turno, acha-se delimitada por um podium com aproximadamente 2,5 m de altura,
possuíndo, na sua base, dez portas de acesso à pista 1269. A parcela coberta da planta, à cota da
arena, estava formada por dois grandes conjuntos de salas e galerias ao longo do eixo maior e
por cryptaes por trás do muro da arena. Pelas portas principais (Porta Triumphalis e Porta
Libitinaria) acedia-se às galerias principais, as de maiores dimensões, sobre o túnel abobadado
da fossa bestiaria, onde há duas grandes salas adjacentes1270.

1263 R. Corzo Sánchez, «El anfiteatro de Itálica», in El Anfiteatro en la Hispania…, pp. 189-190. A orientação do eixo
principal do anfiteatro é paralela a vários tramos da muralha, o que denota a intenção de inserir a estrutura no
desenho urbano da cidade ampliada pelo imperador Adriano (ibidem, p. 205)

1264 Trata-se do criptopórtico, por baixo da arena, onde se guardavam os animais selvagens. Como vimos, este
espaço também existe no anfiteatro de Augusta Emerita, bem como no de Sagunto.

1265 Tania Bellido Márquez, «Panorama historiográfico del anfiteatro de Itálica», ROMVLA, Universidad Pablo
Olavide, Sevilha, 8 (2009), p.34.

1266 R. Corzo Sánchez, «El anfiteatro de Itálica»…, pp. 194-195.

1267 Ibidem, p. 195.

1268 Ibidem, p. 196.

1269 Ibidem, p. 196.

1270 Ibidem, p. 199.

447
Porém, o edifício localizava-se num sítio que veio a provocar graves complicações técnicas,
suscitadas, na sua maior parte, pelo curso de um arroio que ficava precisamente onde se
incorporou a arena; não admira, portanto, que isto tenha obrigado a montar um complexo
sistema de desaguamento. O caudal de água via-se repartido por várias cloacas que confluíam
na principal, que se prolongava por 170 m, desde a fachada oriental, estando em uso uns
escassos trinta anos1271. O problema surgiu com o abandono do edifício, deixando de funcionar
o sistema de controlo hidráulico, quando sobrevieram fortes chuvas causando frequentes
inundações em quase toda a estrutura1272.

No que respeita à capacidade deste anfiteatro, J. J. Fernández Caro, J. L. Ravé Prieto e P. J.


Respaldiza Lama1273 estimaram que acolhesse uns 25 000 espectadores, ao passo que J.-C.
Golvin entendeu que receberia ainda mais gente, 34 000, o que nos parece uma cifra
exagerada.Optamos pela primeira hipótese, que, mesmo assim, excedia enormemente a
população de Italica, que teria cerca de 8 000 habitantes. Sugeriu-se plausivelmente que o
edifício não se projectara apenas para o desfrute dos italicenses, mas também para uma
guarnição militar que estaria aboletada na cidade, além de gente proveniente de localidades
vizinhas1274. O anfiteatro apenas se via ultrapassado pelo Coliseu, que albergaria umas 50 000
pessoas, pelos anfiteatros de Puteoli, Cápua (na fase edificatória sob a égide de Adriano), onde
haveria lugar, nos dois, para aproximadamente 37 000 espectadores, e eventualmente
Corduba/Córdova,que, aparentemente, albergaria 30 000-50 000 espectadores, embora isto
não seja um facto plenamente garantido. Italica tinha uma capacidade equivalente ao edifício
de Cartago, na sua última fase construtiva1275.

Quanto ao uso que teve o anfiteatro, sabemos que os edifícios de espectáculos das cidades
mais proeminentes de Hispânia estiveram em funcionamento durante todo o século IV d. C. 1276.
Com efeito, várias inscrições recuperadas no podium os contêm os nomes gravados de
personagens que tinham lugares reservados na cavea e que datam, segundo Hübner, do século
IV e V1277. No que concerne ao estado de conservação, pode-se admitir que é relativamente
aceitável, mesmo apesar de ter sofrido danos de vulto ao longo da história 1278. Estes infortúnios
foram causados por motivos muito díspares: desde as inclemências do tempo, passando pela
inadequada manutenção do edifício no decurso de séculos, até à subtracção de muitos dos
seus materiais, uma vez que serviu como núcleo da pedreira principal para obras efectuadas
nas suas imediações. Ainda assim, mantém-se de pé uma parte substancial deste magnífico
exemplar, que nos oferece a possibilidade de proceder a uma restituição de quase todo o
anfiteatro, assim ficando nós com uma ideia muito sugestiva da sua grandiosidade de outrora.
1271 Ibidem, «El anfiteatro de Italica»…, p. 192.

1272 T. Bellido Márquez, «Panorama historiográfico del anfiteatro de Itálica»…, p. 35.

1273 Italica. Cuaderno del Profesorado, Sevilha, 2000, p. 33.

1274 J. M. Luzón Nogué, La Italica de Adriano, Sevilha, 1982, p. 66.

1275 J.-C. Golvin, L’Amphithéâtre romain. Essai…, pp. 283-289.

1276 A. Ceballos e D. Cevallos, «Los espectáculos del anfiteatro en Hispania», Iberia, 6 (2003), p. 69.

1277 CIL II, 5108-5365; CILA 3, nº 512.

1278De acordo com Demetrio de los Ríos (Anfiteatro de Italica, Sevilha, 1988, p. 65), um dos mais destacados
arqueológos que pesquisou escrupulosa e meticulosamente o anfiteatro de Italica e assentou as bases para futuros
estudos científicos, a estrutura encontrava-se quase intacta no século XVI, afirmando o autor que tanto os árabes
como os cristãos a respeitaram, e que os grandes estragos só ocorreram mais tarde.

448
Aludamos também ao anfiteatro de Aventicum (Avenches, Suíça),1279 que foi objecto de estudo
circunstanciado numa monografia recente. Muitos outros existiram em solo itálico (vários
encontram-se soterrados, debaixo das cidades modernas, como acontece em Lucca, na
Toscana, e só a custo são discerníveis as suas ruínas) e nas provincias romanas, como na
Britânia. Por vezes, e mesmo tendo dimensões respeitáveis, edificaram-se anfiteatros com
meios relativamente modestos, haja em vista o de Trier (Augusta Treverorum), na Alemanha.
Noutros sítios, como Leptis Magna, Sabratha, Siracusa (Sicília), Cagliari ou Sutri (Sutrium, Itália),
os monumentos foram escavados em solo rochoso, explorado como pedreira. No Norte de
África, destaca-se o edifício de espectáculas de Uthina (Udhna, Tunísia), que nos últimos anos
tem sido objecto de investigações arqueológicas e revelou muitos detalhes dignos de interesse
sobre a sua decoração pintada e a organização do seu subsolo, e o de Thysdrus (El Djem/El
Djem).

No último caso, o primeiro anfiteatro que lá se construiu remonta provavelmente a meados do


século I a. C., erguido por imigrantes provenientes da Campânia ou da Etrúria, no tempo de
Júlio César. Tratava-se de uma estrutura rudimentar, escavada a partir das encostas de uma
colina, não havendo vestígios do uso de pedra. No século I da nossa era, levantou-se outro
anfiteatro, de igual modo, aproveitando o declive de um montículo, mas desta vez os lugares
para os espectadores, repartidos por diferentes seccções, eram de pedra. Em finais do século II
ou começos do seguinte, registaram-se, novamente, obras edificatórias noutro monumento
mais imponente, que traía grandes similaridades com o Coliseu. De acordo com a crença
popular, o terceiro em Thysdrus deveu o seu nascimento a Gordiano III. Em 238, uma
insurreição na província de Africa resultou na proclamação de Gordiano de Thysdrus enquanto
imperador de Roma; todavia, foi assassinado antes de completar um mês da sua governação.
Depois de ascender ao trono, o seu neto Gordiano III presenteou a sua cidade-natal com um
esplêndido anfiteatro: media 148 m de comprimento por 122 de largura; o edifício, com três
níveis dotados de arcadas, tinha 39 m de altura. A arena estendia-se ao longo de 64 e existia
um hypogeum, consistindo em duas galerias com cubículos para animais selvagens. Estima-se
que a estrutura acolheria 27 000 pessoas1280. Importa ressalvar que nesta província romana se
concentraram diversos anfiteatros, sobretudo na área que corresponde actualmente à Tunísia:
afora o de El Djem, sabe-se haveria uns trinta, ainda que nem todos tenham sido localizados e
escavados no âmbito de campanhas arqueológicas 1281. Na Mauritânia, por seu turno, na antiga
Iol Cesarea, construiu-se um anfiteatro cuja arena excede o tamanho da do Coliseu, com 140 x
60 m 1282. Mencionemos ainda a construção de anfiteatros em Gortyna e Hieraptyna, em Creta;
em Corinto, no Peloponeso; em Aphrodisias, Comana, Kyzikos/Cyzicus e Pérgamo, na Ásia
Menor; Alexandria, no Egipto; Dura Europos, na Síria. Mais à frente, desenvolvemos mais
dados sobre estas estruturas do Oriente romano.

Anfiteatros militares

1279 Ph. Bridel, L’amphithéâtre d’Avenches, Aventicum XIII, Cahiers d’archéologie romaine, Lausanne, 2004.

1280 A. Mahjoubi, Villes et structures urbaines de la province romaine d’Afrique, Tunes, 2000, pp. 167-173.

1281 Ibidem, p. 164.

1282 M. Grant, Gladiators…, pp. 86-88; K. Nossov, Gladiators – Rome’s Bloody Spectacle…, p. 130.

449
Em certos anfiteatros construídos pelo exército romano utilizou-se como material apenas
madeira, como os que se observam em cenas dos relevos da Coluna de Trajano, em Roma 1283.
O anfiteatro de Vindonissa (Windisch, Suíça), edificado pela Legio XIII Gemina durante a
dinastia dos Júlio-Cláudios, ou o de Vetera (na Alemanha) realizado pela Legio X Alaudae (de 14
a 62 d. C.) e pela XV Primigenia, a partir do reinado de Trajano oferecem exemplos de
estruturas montadas com materiais perecíveis. Eram monumentos de modestas dimensões,
como foi, também, o anfiteatro de Augusta Raurica (Augst, perto da Basileia1284), erguido pela
Legio I Adiutrix e pela VII Gemina Felix, em 73-74 d. C.

Numa segunda fase, quase todos terão sido reconstruídos em pedra, como sucedeu, pouco
depois de 100 d. C., no edifício de Deva Victrix (Chester, País de Gales), que estava conectado
com o castra da Legio II Adiutrix. A construção de anfiteatros perto de fortalezas militares
obedecia basicamente a duas razões: servir de entretenimento e, ao mesmo tempo, ajudar nas
necessidades da instrução das tropas. Com efeito, estes recintos, juntamente com o campus
adjacente, afiguravam-se lugares ideais para a aprendizagem das técnicas de combate 1285.

Os casos de Carnuntum e Aquincum, no limes do Danúbio1286, revestem-se de especial


interesse, já que a um anfiteatro militar se acrescentou outro, civil, perto da cidade que se
desenvolvera nas imediações. Em Carnuntum (Petronell/Bad Deutsch-Altenburg, Áustria), a
Legio XV Apollinaris e a Legio XIV Gemina, ergueram, na segunda metade do século I, um
anfiteatro que, inicialmente, era de madeira; mais tarde, sofreu uma remodelação e tornou-se
um edifício de pedra graças ao veterano C. Domitius Zmaragdus, oriundo de Antioquia 1287 (no
tempo dos Antoninos). Perto da sua entrada sul, instalou-se um Nemeseum, santuário
consagrado a Némesis, particularmente venerada pelos gladiadores na parte ocidental do
império: era a deusa da vingança, qualificada de invidia (que punha termo a situações injustas),
que personificava a justiça e ritmava o destino. Ela era igualmente invocada pelos generais
vitoriosos. Não admira que, pelas suas qualidades, a divindade estivesse presente em
«capelas» no interior dos anfiteatros. Ademais, uma inscrição mostra-nos que no anfiteatro de
Carnuntum certos lugares ocupados pelas autoridades civis ficavam defronte da tribuna do
legado da legião, prova de que o monumento não se destinava única e exclusivamente aos
militares. Carnuntum, que se converteu na capital da Panónia Superior desde 103 d. C., veio a

1283Para a conexão entre anfiteatros e legiões: J.-C. Golvin, L’Amphithéâtre romain. Essai…, pp. 154-156; J.-C.
Golvin e C. Landes, Amphithéâtres et gladiateurs, Paris, Éditions du CNRS, 1990, pp. 203-216; A. Futrell, Blood in the
Arena…, pp. 147-152.

1284Cf. T. Hufschmid, Amphitheatrum in Provincia et Italia. Architektur und Nutzung römischer Amphitheater von
Augusta Raurica bis Puteoli, pp. 57-196.

1285 Das dezanove estruturas anfiteatrais na Britânia, a maior parte esteve ligada às bases legionárias romanas (cf.
A. Futrell, Blood in the Arena…, p. 61): além do caso de Deva, avultam o anfiteatro de Isca Silurum (Caerleon; G. de
la Bédoyère, The Buildings of Roman Britain, Londres, B. T. Batsford, 1991, fig. 79) e de Eburacum (York). Quanto ao
anfiteatro de Londinium (Londres), foi erigido adjacente à fortaleza aí estabelecida sob a dinastia Flávia. Mesmo
entre os sítios não militares, a localização dos anfiteatros esteve ligada a motivos para além da simples urbanização.
Os edifícios de Canterbury (Durovernum Cantiacorum), Frilford, Verulamium (G. de la Bédoyère, The Buildings of
Roman Britain…, fig. 79) e, possivelmente, Woodcuts, são todos uma combinação de teatros-anfiteatros, à
semelhança do que também aconteceu na Gália.

1286 Para mais detalhes sobre estes dois anfiteatros, veja-se J.-C. Golvin, L’Amphithéâtre romain. Essai, I, pp. 135-
138.

1287 CIL II, 14359.

450
albergar um anfiteatro civil por volta de 124 d. C. Os dois monumentos, que doravante
funcionariam em paralelo, possuíam características muito similares 1288.

Na verdade, não se detectam diferenças de vulto entre a arquitectura de um anfiteatro civil e


o construído pelos legionários. O caso de Aquincum (Budapeste, Hungria) confirma
modelarmente este facto: aqui, o anfiteatro militar remonta, talvez, ao principado de Tibério
(período em que se instalou o castra legionário); depois, viu-se reconstruído em pedra sob
Antonino Pio, sendo então que a cidade passou a dispor de um segundo anfiteatro, a todos os
títulos comparável ao primeiro.

Em Lambaesis (Lambèse, Argélia), muito perto do grande acampamento da Legio II Augusta,


construiu-se (pouco depois de 128 d. C.), um anfiteatro dotado de uma arena de 68 x 55 m.
Mais tarde, e em várias ocasiões, viu-se engrandecido e restaurado, sobretudo a partir de 169,
certamente para melhor responder às necessidades da cidade vizinha, uma vez que o efectivo
de legionários não aumentou. Este monumento, bastante bem conservado, fornece um bom
exemplo de um tipo de arquitectura muito difundido no que respeita aos pequenos anfiteatros
provinciais, tanto civis como militares. A arena foi cavada no solo e a parte superior da cavea
adossada a uma zona inclinada.A parcela superior mantinha-se coesa através da presença de
compartimentos repletos de entulho. A arena compreendia um hypogeum que originariamente
se encontrava coberto por um estrado.Quanto à relativa irregularidade formal dos
compartimentos da cavea, ela traduz bem o espírito de uma construção utilitária, feita com
recursos locais e certa falta de engenho.

Na maioria das cidades, os evergetas locais careciam de meios financeiros para mandar erigir
um monumento de grande tamanho. O carácter monumental ou não do anfiteatro reflectia,
assim, a opulência de um centro urbano e a importância das suas necessidades. Um
determinado número destas pequenas estruturas foi criado inicialmente num contexto
castrense, como sucedeu nos anfiteatros de Cemenelum (Cimiez) e de Augusta Praetoria
(Aosta, Itália), mas a maior parte surgiu num contexto civil.

***

Nos confins do império romano, os anfiteatros ajudavam a reforçar o sentimento, nos soldados
longe de casa, de que faziam parte da comunidade romana. Mas a arena não servia apenas
para uma integração na sociedade romana; ela também, a nível simbólico, dividia o que era
Romano do que o não era. Era o limite da civilização numa série de acepções. A arena
constituía o local onde a civilização confrontava a natureza, sob a forma de feras que
representavam um perigo para a humanidade; onde a justiça social lidava contra as
malfeitorias e delitos através dos criminosos que lá eram executados; e onde o império romano
enfrentava os seus inimigos, nas pessoas dos prisioneiros de guerra capturados, que se viam
aniquilados ou obrigados a lutar entre si. Os anfiteatros podiam significar a linha divisória entre
a cultura e o mundo selvagem mais directamente. Salta à vista quantos anfiteatros se
encontram implantados na orla das respectivas cidades, ainda que no seu interior (por
exemplo, o caso de Pompeia), ou então no exterior, como se verifica em numerosas estruturas
anfiteatrais associadas às bases militares romanas. Claro que havia razões de ordem prática
para isto: quando se construiram as Muralhas de Aureliano em torno de Roma, na década de
70 do século III d. C., afigurou-se eficaz utilizar elementos pré-existentes, como o anfiteatro
conectado com o Castra Pretoria, enquanto parte das novas defesas.

1288 Saliente-se que, na fronteira nordeste do império se edificaram 28 anfiteatros. Destes, dois terços foram
primariamente obra de militares, daí que certos autores os encarem os mesmos como proporcionando uma «linha
da frente» para o processo da romanização.

451
Nem todos os anfiteatros se encontravam situados em sítios «marginais», como o Coliseu o
demonstra: a sua localização é explanável mediante uma situação histórica específica, a
disponibilidade de terra no espaço antes ocupado pela Domus Aurea de Nero. Mas a
frequência com que os anfiteatros foram associados à periferia das cidades requer uma
explicação: a teoria de A. Henze1289, de que se destinava a minimizar a poluição sonora causada
pelas multidões que assistiam aos espectáculos dificilmente é convincente: pelo seu próprio
carácter, tais edifícios exerciam a função de atrair as populações das comunidades. Nem tão
quanto nos parece credível a ideia, sustentada por alguns, de que tais edifícios se implantavam
nas cercanias dos centros urbanos por razões de segurança, na eventualidade de ocorrerem
fugas de animais selvagens. A resposta radica na natureza simbólica das actividades que se
desenrolavam nos anfiteatros. A arena era, visivelmente, o local onde a civilização e a barbárie
se encontravam e colidiam, a primeira suplantando a última. Acresce dizer que, para os
Romanos, «civilização» era sinónimo de cidade 1290.

***

Os anfiteatros foram concebidos especificamente para para os munera. Contudo, se tivermos


em conta as obrigações dos magistrados, estes edifícios de consideráveis dimensões, providos
de uma organização complexa e racional, funcionariam como cenários, aparentemente, de
espectáculos apenas uma ou duas vezes por ano. Com efeito, através das fontes, constatámos
que a frequência dos munera era reduzida, vendo-se um ou dois magistrados incumbidos
anualmente, de oferecer combates de gladiadores aos seus concidadãos. Além disso, longe da
imagem das orgias gladiatórias que, ainda hoje, muitos imaginam ter ocorrido nesses recintos,
com dezenas de vítimas, o número de pares de combatentes apresentados ao público era
bastante pequeno e o número de gladiadores que pereciam ainda mais. A impressão com que
se fica a partir desta constatação, comparativamente à imponência destes edifícios poderá ser
então, como se questionou É. Teyssier, «Tudo isto [só] para isto?» 1291.

Se bem que os Romanos tivessem vários defeitos, como, aliás, todos os povos, o seu
pragmatismo não era um deles. A construção de centenas de anfiteatros de pedra, distribuídos
por quase todo o território imperial, representou um enorme investimento, desproporcionado
relativamente a uma utilização tão diminuta dos mesmos. Mas é bem possível que uma
significativa parte da realidade dos munera nos escape. De facto, os únicos testemunhos que
dispomos sobre estes jogos, os seus custos e a sua frequência procedem da generosidade
ostentatória dos magistrados, que desejavam associar os seus nomes aos espectáculos que
eles eram mais ou menos obrigados a oferecer às comunidades onde ocupavam os cargos.
Estas representações oficiais, ou mesmo «legais», constituem, decerto, um mínimo acerca do
qual estamos «sobre-informados» em relação ao resto. Podemos igualmente presumir que tais
monumentos conheceriam outros usos, sem dúvida habituais para os contemporâneos, mas
das quais poucas notícias sobreviveram. Uma dessas utilizações plausíveis seria os
organizadores de espectáculos apresentarem os jogos, não sob a forma de uma generosa
evergésia (actos que até mereceram frases encomiásticas, pintadas ou gravadas, nas paredes),
mas obedecendo a um espírito puramente lucrativo. Sobre este pinto, Tácito faculta-nos uma

1289 A. Hönle e A. Henze, Römische Amphitheater und Stadien, Lucerna, 1981, p. 157.

1290T. Wiedemann, Emperors and Gladiators…, pp. 45-46; D. L. Bomgardner, «Amphitheatres on the Fringe», JNR 4
(1991), p. 282ss.

1291 La mort en face…, p. 422.

452
pista digna de interesse, a respeito de um episódio a que várias vezes nos referimos nos
capítulos precedentes:

«Sob o consulado de M. Licínio e de L. Calpúrnio 1292, um infortúnio imprevisto igualou as calamidades


das maiores guerras. O mesmo instante viu-o começar e acabar. Pretendendo apresentar em Fidennae
um espectáculo de gladiadores, um tal Atílio, liberto de origem, construira um anfiteatro sem se
certificar das suas fundações em solo firme, nem em consolidar, através de meios suficientemente
fortes, a estrutura de madeira. Afinal, não fora a super-abundância de riquezas nem a ambição de se
popularizar na sua cidade, mas um interesse sórdido que lhe sugeriu esta empresa. Para aí afluiu, ávida
por tais espectáculos e privada de prazeres sob a égide de um princeps como Tibério, uma multidão sem
distinção de sexo e idade, e a proximidade de Roma ainda aumentou mais a afluência. A catástrofe foi
terrível. Com o edifício totalmente cheio, os seus flancos despedaçaram-se; desabou no seu interior e
desmoronou-se para o exterior, arrastando na sua queda e cobrindo com os escombros a inumerável
multidão que assistia aos jogos ou que se amontoava em seu redor. E os que, pelo menos, morreram
logo no início do colapso partilharam a sorte comum, mas escaparam ao sofrimento!... Cinquenta mil
pessoas ficaram estropiadas ou esmagadas neste acidente! Para evitar que algo de semelhante voltasse
a suceder, um senatusconsultum defendeu que alguém só poderia oferecer espectáculos gladiatórios
contanto que tivesse, no mínimo, 400 000 sestércios de rendimento, e não decidir erguer um anfiteatro
sem que antes verificasse a solidez do terreno»1293.

Tácito dedicou dois capítulos inteiros a este trágico acontecimento, que tanto marcou os
espíritos. Uma tal catástrofe evoca, por em exemplo, as imagens do drama vivido no estádio de
Furiani, onde, em condições idênticas, toda uma tribuna ruiu. Em Fidennae, além da tragédia
humana que conduziu a um verdadeiro ímpeto de solidariedade entre os romanos, sobressai
uma frase neste trecho que se afigura muito esclarecedora. Os motivos do liberto Atílio na
construção do anfiteatro não radicaram na «super-abundância das riquezas, nem a ambição de
se popularizar na sua cidade». Estas duas razões, «clássicas», seriam, aparentemente, as únicas
providas de autêntica legitimidade aos olhos de Tácito: a evergésia, pura e simples, do cidadão
muito rico; a do político ambicioso, menos inocente. Para Atílio, cuja prévia condição servil foi
bem sublinhada, o objectivo almejado era, pelo contrário, «um sórdido interesse». A
acreditarmos em Tácito, o esquema ideado só reunia possibilidades de ser rentável por causa
da proximidade da Urbs, então sob a égide do avaro Tibério.

Em poucas palavras, Tácito conseguiu descrever eloquentemente um quadro tão vívido quanto
evocador. Tudo é dito, ou quase, sobre a gladiatura: a avidez de todo um povo, sem barreiras
de idade, sexo ou estatuto social; a busca do prazer do entretenimento e do espectáculo para
uns, mas também a sede de proveito para os organizadores. Segundo o autor romano, o
acidente provocou 50 000 mortos e feridos. Admitamos que este número, certamente
excessivo para as vítimas, corresponde, apesar de tudo, ao dos espectadores. É uma cifra
perfeitamente realista para uma cidade como Roma e consistia na quantidade de espectadores
que o futuro Coliseu tinha capacidade para acolher. Se, tecnicamente, é difícil imaginar um tal
anfiteatro, totalmente construído com pranchas, traves e vigas de madeira, revela-se, todavia,
provável que este monumento provisório se apoiasse, na sua base, num montículo de terra ou
nos flancos de uma colina. O desmoronamento das parcelas superiores em madeira terá assim
esmagado o conjunto dos espectadores.

Supunhamos, igualmente, que estaria previsto que o espectáculo se prolongaria pelo espaço
de cinco dias. Esta duração corresponde à média para um município como Pompeia e constitui
um mínimo para o caso de Roma. Durante o período em apreço, podiam registar-se 250 000
ingressos. Aqui, uma vez mais, o número pode atingir-se facilmente com uma população de
Roma quatro vezes superior. Resta saber como é que o organizador do espectáculo recuperava

1292 Em 27 d. C.

1293 Tácito, Ann. 4.62-63.

453
o capital investido e obtinha lucro: o meio mais simples radicava, decerto, na tarifação da
entrada aos espectadores. Esta questão relacionada com o pagamento de uma quantia para
assitir ao espectáculo reveste-se de importância, mas em regra não é abordada pelos
estudiosos, partindo do princípio de que os lugares seriam quase sempre gratuitos. É certo que
a documentação antiga faculta poucos informes sobre o assunto, mas determinados indícios
levam a pensar que a gratuidade não significava um fenómeno generalizado. Suetónio, por
exemplo, conta-nos o episódio em que Calígula, assaz incomodado a meio da noite pelo
barulho da gente que se instalara no circo – onde, nesta altura, se apresentavam as pugnas
gladiatórias – para usufruir de «lugares gratuitos». Ao despertar abruptamente do seu sono, o
irascível tirano ordenou então que se açoitassem tais romanos por terem a desfaçatez de
mostrar tanta falta de respeito. Na confusão que se seguiu, vinte membros da ordem equestre
e outras tantas matronas viram-se espezinhados, isto sem contar com «muitos da arraia-
miúda».

Esta situação tende a demonstrar que, até em Roma, nem todos os lugares eram gratuitos e
era preciso dar encontrões ou cotoveladas, mesmo que se fosse um cavaleiro da elite, para os
conseguir adquirir. Do mesmo modo, como vimos, Marcial, a propósito do gladiador-vedeta
Hermes, alude à fortuna que ele proporcionava aos que revendiam «bilhetes». Esta menção
aos locatariae representa outro sinal de que parte, pelo menos, dos lugares seriam pagos
aquando de certos combates de gladiadores. No caso de Fidenae, que não se inscrevia no
âmbito de uma evergésia, mas antes se resumia a uma mera operação especulativa, não
restam dúvidas de que se pagava o conjunto dos lugares no recinto.

Consequentemente, se avançarmos com a hipótese de um valor médio de 2 sestércios por


cada «bilhete», em cinco dias o organizador podia reunir um montante ascendendo a 500 000
sestércios 1294. Mas o preço dos lugares não constituía a totalidade das receitas. Com efeito,
afora os ingressos, cabe acrescentarmos os «extras» da venda de vinho e alimentos. Mesmo
que os pobres diabos que ficassem na parte superior das bancadas trouxessem com eles algo
para comer, os que ocupavam os lugares do meio ou, mais ainda, os melhores lugares, junto à
arena, não hesitariam em gastar mais algum numerário. Se imaginarmos um «cabaz» de
apenas 1 sestércio, em média, por dia e per capita, o negócio poderia ver-se aumentado em
mais 250 000 sestércios num conjunto de cinco dias. Neste sentido, um cálculo de lucro líquido
na ordem de 150 000 sestércios parece ser verosímil. Mas os ganhos não paravam por aqui: é
muito possível que as apostas gerassem avultados recursos complementares. Basta pensarmos
no bulício febril das apostas clandestinas que acompanham, na actualidade, o boxe ou as lutas
de galos ou cães, e logo percebemos a importância que tais actividades teriam igualmente na
Antiguidade. Ainda que encarados como indignos de figurarem nos anais dos historiadores
greco-romanos ou nas fontes epigráficas, esses ganhos encontram-se envoltos na penumbra,
mas importa tomá-los em consideração para uma melhor compreensão da relevância dos
factores económicos associados à gladiatura.

Por último, além daqueles que vendiam comes e bebes, havia toda uma caterva de
comerciantes ambulantes que se concentrava à volta do anfiteatro 1295: vendedores de lucernas
e outros objectos contendo evocações gladiatórias, magos das mais diversas espécies e
revendedores de «lembranças» bizarras directamente ligadas aos cadáveres e armas dos
combatentes, músicos, pantomimos de rua, prostitutas ao pé das arcadas. Havia outros tantos
negociantes atraídos por uma multidão inquieta e sôfrega, disposta a gastar neste ambiente de
quermesse. Ressalvemos que também eles entregavam uma percentagem dos seus lucros ao

1294 Seguimos os cálculos de É. Teyssier (La mort en face…, p. 424).

1295 Repare-se que a famosa pintura parietal de Pompeia, que descreve os violentos tumultos que tiveram lugar
no anfiteatro da cidade, em 59 d. C., mostra bem tendas instaladas à volta do edifício.

454
organizador do evento. Contudo, nenhum historiador antigo se rebaixou ao ponto de descrever
tais pormenores sobre actividades tidas como desprezíveis. Tácito diz isto sem peias: «…os
madeiramentos do anfiteatro de Nero não são dignos da história do povo romano» 1296.

Porém, os jogos de gladiadores não teriam existido sem este pano de fundo económico, que
ultrapassava o simples quadro de uma generosa evergésia. Assim, um espectáculo de cinco
dias acolhendo 50 000 espectadores podia muito bem fornecer um lucro próximo de 1 milhão
de sestércios ou talvez mais. Naturalmente que para atraír um número tão grande de
espectadores, o organizador necessitava de contratar gladiadores de qualidade e reputação.
Para se conseguir fazer afluir uma multidão, o anúncio de uns 50 pares de gladiadores devia
revelar-se suficientemente aliciante para um público «privado de prazeres». Com um gasto
médio de 2000 sestércios por cada combatente, Atílio poderia contar com algumas estrelas da
arena e uma maioria de gladiadores de valor mediano. Mesmo que a qualidade destes homens
não fosse irrepreensível, este investidor não tinha as mesmas preocupações que um sumo
sacerdote ou um magistrado municipal. Neste espectáculo, Atílio não procurava ganhar
popularidade: 2000 000 sestércios por 100 gladiadores significariam um investimento de
capital largamente suficiente. A isto convirá adicionar alguns divertimentos e entreactos
variados destinados a fazer aumentar a tensão, a expectativa do público, bem como para o
distrair. Torna-se difícil estimarmos os custos destes complementos ao espectáculo principal,
mas não deviam exceder ¼ das despesas com os gladiadores propriamente ditos, podendo
atingir, no máximo, cerca de 50 000 sestércios 1297. Por fim, restavam as bancadas do anfiteatro
e foi aqui que Atílio, para mal dos seus pecados, mais quis poupar nos seus gastos.

Com a aplicação de um capital na ordem de uns 300 000 ou 350 000 sestércios, um investidor
avisado lograva, então, em Roma, obter receitas manifestamente lucrativas, somente cobrando
«bilhetes» aos espectadores. Podia, também, recolher proveitos muito consideráveis graças
aos rendimentos «anexos», cujo montante ignoramos mas que seria significativo. Em face de
tudo o que expusemos, compreende-se que uma operação financeira deste género pudesse
ser altamente rentável e atrair organizadores de espectáculos com pouquíssimos escrúpulos
em relação à vida dos espectadores.

Por outro lado, se o senatusconsultum referido por Tácito impôs como condição um
rendimento de 400 000 sestércios para alguém que pretendesse organizar um espectáculo,
este número é, claramente, um indício de que indivíduos como Atílio investiriam ainda menos.
Este valor tem, ademais, um significado político nada anódino, já que corresponde ao censo da
ordem dos equestres. Ao legislarem desta maneira, os senadores desejavam afastar os
especuladores de baixa condição social, tentando reservar o monopólio deste tipo de evento às
camadas superiores da sociedade romana.

Se pusermos à margem a citada passagem de Tácito, as menções que se colhem sobre estes
organizadores de espectáculos com objectivos estritamente lucrativos são raras, salvo uma
alusão de Suetónio, a respeito de um escravo de Vitélio:

«Este liberto [Asiaticus] havia estado ligado desde a juventude a Vitélio por um comércio de prostituição
mútua, mas depois fugiu de desgosto. O seu amo, ao reencontrá-lo em Puteoli, onde vendia aguapé,
mandou arrojá-lo aos ferros, mas retirou-o quase logo a seguir e fê-lo servir novamente os seus prazeres.
Mas, cansado com o seu áspero e insubmisso humor, vendeu-o a um lanista de gladiadores ambulantes.
Ele voltou a levá-lo consigo, quando [Asiaticus] descia para a arena, no fim de um espectáculo e,
nomeado mais tarde governador de uma província, ele [Vitélio] libertou-o» (Div. Vit., 12).

1296 Ann. 13.31.

1297 É. Teyssier, La mort en face…, p. 425.

455
O termo que Suetónio empregou para esses gladiadores itinerantes foi circumforanea. Por
causa do próprio vocábulo e de acordo com o contexto do episódio relatado, tais combatentes
seriam bastante medíocres, pelo que os seus lanistae não ofereciam ao público espectáculos
de categoria 1298. A Tábua de Itálica/Aes Italicense, do tempo do reinado conjunto de Marco
Aurélio e de Cómodo, seu filho, evoca também os munera assiforana, que geralmente se
traduz como «munera não oficiais». Talvez se deva entender tal expressão como designando os
munera «de 1 asse», assim como existiam, baseando-nos em Petrónio, gladiadores «de 1
sestércio». Esta hipótese vê-se reforçada pelo facto de o decreto mencionado pela Tábua de
Itálica apresentar 30 000 sestércios como o montante máximo estipulado para este tipo de
munera, isto é, a quantia mais baixa dos munera oficiais. É provável que os munera assiforana
do Aes Italicense correspondam a sinónimos dos circumforanea de Suetónio. Em ambos os
casos, os termos reportam-se a munera de sofrível qualidade, envolvendo grupos ambulantes
de gladiadores. É certo que a escassez de referências a estes espectáculos suscita problemas e
incertezas. Mas este silêncio na documentação tem a sua lógica: quem se poderia vangloriar de
organizar espectáculos com tais desgraçados? Além disso, estes indivíduos cobravam o próprio
preço dos «bilhetes», como saltimbancos da gladiatura. Ademais, que conhecimentos
possuiríamos sobre os demais munera se os seus organizadores não fossem personagens
oficiais movidos pela forte necessidade social de recordar para a posteridade, a sua
generosidade?

Os munera oficiais formariam possivelmente só a «ponta do icebergue» da gladiatura. Estes


combates, oficiosos e pagos, eram muito mais frequentes do que os munera gratuitos, mas
deixaram vestígios muito parcos. Mesmo com menor qualidade, tais pugnas revelavam-se
importantes para uma multidão «ávida de prazeres». A sua existência permitia rentabilizar a
actividade dos gladiadores em geral. Aliás, não custa a crer que as «escolas» fixas
participassem também nestes espectáculos privados e pagos, uma vez que eram ocasiões para
utilizar mais assiduamente os seus combatentes. Em princípio, na sua maioria, estes prélios
travar-se-iam com armas embotadas. Se, por um lado, o interesse destes duelos era menor, por
outro correspondia a uma modalidade que permitia igualmente preservar o capital humano
das familiae gladiatórias. Tratava-se, ao mesmo tempo, de alturas que permitiam amortizar os
custos da manutenção dos próprios anfiteatros, ao pagar-se, provavelmente, uma renda de
aluguer à cidade para a sua utilização. No entanto, mesmo com as prestações pontuais dos
gladiadores ambulantes, ou a organização de munera pagos pelos espectadores para assistirem
às exibições de membros das «escolas» de créditos mais firmados, os anfiteatros deviam
permanecer, amiúde, inactivos, sem actividades desenrolando-se no seu interior.

Suspeitamos que ainda devia haver outro uso para os anfiteatros. Se pusermos de parte os
exemplos de Pompeia, Roma e Carnuntum (Petronell/Bad-Deutsch-Altenburg, Áustria), que
noutro capítulo exploraremos, não existem ludi identificados pelas escavações arqueológicas.
Assim, afora estes três casos particulares, não conhecemos qualquer local de treino específico
para os gladiadores. Mais: se exceptuarmos o Ludus Magnus, que comportava um verdadeiro
anfiteatro e o de Carnuntum, o ludus de Pompeia não consistiu numa estrutura projectada para
o treino gladiatório. Com efeito, o quadripórtico da «escola» gladiatória pompeiana destinou-
se inicialmente ao Teatro da cidade. Só após o terramoto de 62 d. C. é que os gladiadores
vieram a ocupar tal espaço, praticando os seus exercícios. Mesmo que este género de edifício
anexo do anfiteatro tenha estado presente noutras localidades afora Pompeia, a Urbs e
Carnuntum (a epigrafia parece mostrar um, pelo menos, em Praeneste, Itália: CIL XIV 3014), é
bem provável que cada cidade que dispusesse de um anfiteatro possuísse uma «escola»
gladiatória. Se tal era o caso, os treinos podiam ocorrer no seio do próprio anfiteatro. Em face
do longo período de inactividade destes monumentos durante o ano, este tipo de utilização

1298 Encontramos em Cícero uma expressão semelhante, pharmacopola circumforaneus, para se reportar aos
boticários ambulantes charlatães.

456
revestia-se de interesse e gerava uma animação quase permanente. De facto, além dos
munera, os ludi podiam manter a atenção do público. Pontualmente poderiam realizar-se
combates com armas embotadas e gente a assistir, pagando «bilhetes» a um preço módico,
que desta forma acompanhava os progressos dos futuros campeões ou das futuras vítmas na
arena. Sem este género de uso, torna-se efectivamente difícil imaginar que os
amatores/aficionados pudessem descobrir, seguir e apreciar o percurso de um gladiador
ilustre, isto se este combatesse apenas três ou quatro vezes por ano e 20 ou 25, se fosse
bafejado pela sorte, ao longo da sua carreira.

Uma vez mais, esta alternativa de funcionamento que propusemos assenta em fracos indícios
tangíveis e muitas suposições, mas não deixa de ter a sua lógica. Por fim, dada a importância
dos treinos nas «escolas», é possível que estas estivessem abertas a indivíduos atraídos por
estes exercícios físicos. A mulher gladiatrix que nos descreve Marcial parece mais praticar esta
actividade como um desporto e não como ofício. Cícero, para além mesmo do caso de L.
Antonius, alude também a pessoas ricas que partilhavam os exercícios dos gladiadores (Q.
Velocius e C. Marcellus). Imaginemos, como escreveu É. Teyssier, que um tenista bem
classificado no ranking propõe a um indivíduo desafogado que se treine com ele em Roland-
Garros. Não resta a menor dúvida que não faltariam candidatos e os felizes eleitos estariam,
por certo, prontos a desembolsar avultadas maquias de dinheiro para efectuar alguns jogos 1299.
Ora parece perfeitamente plausível um esquema similar aplicável à gladiatura.
Independentemente do tamanho do anfiteatro ou do palmarés do gladiador, os recursos que
adviessem de tais treinos desportivos podiam ser indiscutivelmente importantes. Todavia,
nenhuma fonte directa nos confirma isto, mas, na verdade, qual seria o membro de uma
família respeitável que se gabaria, no seu epitáfio gravado em mármore, de haver frequentado,
na sua juventude, uma «escola» gladiatória?

A reflexão sobre os preços dos munera deixa entrever um mundo mais complexo do que o
transmitido pelos textos antigos que chegaram até nós. Tal como o estudo dos combates, a
organização e o funcionamento dos munera merecem uma abordagem sob um ângulo prático,
não se cingindo a uma mera visão teórica. No âmbito dessa nova aproximação à gladiatura, são
discerníveis certas vertentes económicas, financeiras e, até, «desportivas» do fenómeno, que
ultrapassam, de longe, a simples expressão das evergésias municipais que se atestam
habitualmente nas fontes epigráficas. Em paralelo a estes aspectos financeiros, assume
igualmente importância descortinar as ramificações destes espectáculos que envolveram
directamente, no decurso de séculos, a vida de centenas de milhares de homens.

A problemática dos anfiteatros no Oriente romano

No meio académico internacional, durante uma série de décadas, era tradicional considerar os
anfiteatros e as formas associadas de espectáculo como elementos raros nas províncias do
Oriente. Isto vai, aliás, de mão dada com a percepção, existente desde o século XIX até finais do
século passado, de que, em certa medida, as províncias gregas do império eram mais
«civilizadas» do que as suas congéneres ocidentais, pelo que não alimentariam prazer por
«desportos» sangrentos como os munera gladiatórios. No entanto, como atrás vimos, há uma
abundante quantidade de provas – fontes epigráficas, relevos, mosaicos e referências literárias,
como também a descoberta do «Cemitério dos Gladiadores» em Éfeso – procedentes das
províncias orientais, respeitantes às exibições gladiatórias e outros eventos que se
desenrolavam na arena. A referida visão «civilizada» manteve-se por bastante tempo, até
1299 É. Teyssier, La mort en face…, p. 428.

457
depois da publicação do volumoso corpus de material iconográfico e epigráfico (entre 1940 e
1950) por L. Robert, que, mais recentemente se viu reforçado pelos trabalhos meritórios de M.
Carter e M. Mann.

Quanto ao número de anfiteatros construídos especificamente para os munera e as


venationes no Oriente, ele oscilou consoante os estudiosos: desde 6, para John Ward-Perkins
1300
, passando para 8, segundo E. Frézouls 1301, até 16, na opinião de J-C. Golvin 1302. Outras listas,
designadamente as apresentadas por Friedländer e G. Forni 1303, podem revelar-se muito
enganadoras, no sentido em que englobam não só os aniteatros propriamente ditos no
Oriente, como igualmente indicam todas as cidades onde se descobriram evidências de
combates gladiatórios e venationes; embora profícuos, estes testemunhos documentais não
implicam necessariamente a presença de um anfiteatro. Nesta alínea, procederemos, então, a
uma reavaliação das provas concretas para a existência de anfiteatros e exibições na arena no
Oriente romano, à luz das pesquisas e escavações arqueológicas mais recentes 1304.
Realçaremos vários dos problemas que suscitam as evidências, a sua interpretação pelos
especialistas modernos e, também, chamaremos à atenção para o emprego de terminologia
inexacta nas tentativas ensaiadas para a descrição dos edifícios com base no seu desenho e
função.

As provas respeitantes aos anfiteatros e espectáculos de arena no Oriente romano provêm de


um manancial de fontes diferentes, a saber:

- Estruturas construídas especificamente para os espectáculos de matriz romana, que se


conformam com a forma canónica do anfiteatro conhecida e identificada noutros pontos do
império (Figs. 4.1 e 4.2). Como acima dissemos, Golvin aponta 16 anfiteatros nas províncias
orientais: cinco nos Balcãs (Micia, Porolissium, Ulpia Traiana, Dyrrachium, Marcianopolis), dois
na Grécia (Corinto e Hierapytna, em Creta), 1 em Chipre (Salamis), quatro na actual Turquia
(Antioquia-sobre-o-Orontes, Kyzikos, Pergamon, Comana), um na Síria (Dura Europos), um na
Palestina/Judeia (Caesarea Maritima) e dois na Líbia oriental (Ptolemais, Cyrene). Todavia, esta
lista, como salientou Hazel Dodge1305, é altamente problemática, porque nem todas as
estruturas se identificaram definitivamente como anfiteatros concebidos de propósito para os
eventos gladiatórios e caçadas de animais;

- Edifícios que não se assemelham à forma-padrão anfiteatral, mas que resultam da


modificação de estruturas pré-existentes para entretenimento, correspondendo, em particular
mas não exclusivamente, a teatros, haja em vista os de Éfeso, Pergamon e Xanthos1306;

1300 Roman Imperial Architecture, Londres, 1981, p. 258: Corinto, p. 290; Kyzikos, Pergamon e Anazarbos, p. 325;
Antioquía-sobre-o-Orontes, p. 352; Dura Europos (cf. infra).

1301«Recherches sur les théâtres de l’Orient Syrien», Syria 38 (1961), p. 64, n. 2: Dura Europos, Antioquía, Berytos,
Canatha, Caesarea Maritima, Samaria (desconhecemos ao certo a que cidade se reportou o autor), Jericó e
Jerusalém.

1302 L’Amphithéâtre romain. Essai…, pp. 96-97.

1303 «Anfiteatro», in Enciclopedia dell’Arte Antica, I, Roma, Istituto della Enciclopedia italiana,1958, pp. 380-390.

1304 K. Welch, The Roman Amphitheatre from its origins to the Colosseum…, pp. 163-185.

1305Cf. «4. Amphitheatres in the Roman East», in T. Wilmot (ed.), Roman Amphitheatres and Spectacula…, p. 29.

1306 F. Sear, Roman Theatres. An Architectural Study, Oxford, Clarendon Press, 2006, pp. 43-45.

458
-Estruturas que não eram não parecidas com o modelo canónico do anfiteatro, mas que se
projectaram e erigiram, logo desde o começo, para servirem de cenário de uma série de
distintos géneros de entretenimentos, incluindo as exibições desenroladas na arena. Como
exemplos temos os estádios em Aphrodisias e em Laodiceia, na Ásia Menor 1307;

-Representações plásticas, como relevos gravados em lápides gladiatórias, mosaicos


descrevendo pugnas de gladiadores e venationes, procedentes de todas as províncias
orientais1308;

-Testemunhos epigráficos atestando a construção de verdadeiros anfiteatros e/ou exibições


ou actores na arena1309;

-Fontes literárias, que frequentemente proporcionam informes sobre a provisão deste edifício
arquetípico romano e os seus espectáculos associados, no seio de um contexto culturalmente
grego, e uma última categoria que se torna mais complicada devido a questões de datação;

-Estruturas próximas da planimetria e traçado do anfiteatro canónico, que constituem


inserções secundárias numa parte de um edifício pré-existente, como se verifica no stadion de
Aphrodisias 1310, no stadion Panatenaico em Atenas1311, e noutro, recentemente escavado em
Messene, no Sul do Peloponeso.

Além do número de anfiteatros conhecidos no Oriente (Fig. 4.2 para uma lista actualizada), é
possível adicionar mais uma dúzia que surge em documentos literários e epigráficos (Fig. 4.3).
No entanto, levantam-se problemas, não só por causa da terminologia usada pelos autores
antigos e académicos modernos, como igualmente devido às subsequentes interpretações
formuladas pelos estudiosos actuais 1312.

Um dos deafios mais particulares para o estudo dos anfiteatros no Oriente grego tem a ver
com a terminologia específica empregue para descrever as estruturas em causa. Tal é
especialmente o caso do uso do termo άμφιθέατρου/«anfiteatro» por escritores antigos e
modernos, que se revela problemático. Encontramos o vocábulo «anfiteatro» aplicado
frequentemente em sentido lato, para designar qualquer género de recinto de entretenimento,
independentemente do seu desenho arquitectónico. Ora isto pode ser falacioso e está, na
realidade, incorrecto. Philippopolis (actual Plovdiv, na Bulgária) fornece uma boa ilustração
deste facto. Em obras de cariz genérico ou divulgativo, o teatro romano aparece amiúde
rotulado de «anfiteatro», quando se trata claramente de um teatro com traçado romano e
dotado de uma impressionante scaenae frons 1313. As ruínas do stadion do século II d. C., perto
das encostas de Sahat Tepe e Maxim Tepe, aparentam corresponder ao que muitos já
1307 K. Welch, «The Stadium at Aphrodisias», American Journal of Archaeology 102 (1998), pp. 547-569.

1308 Afora os notáveis estudos de L. Robert, desde a monografia Les gladiateurs dans l’Orient grec, até às adendas
contidas nos artigos publicados na revista Hellenica em 1946, 1948, 1949 e 1950, consulte-se I. A. Papapostolou,
«Monuments des combats de gladiateurs à Patras», Bulletin de Correspondance Hellénique, 113 (1989), pp. 351-401.

1309 Friedländer, 1913, pp. 242-253.

1310 K. Welch, «The Stadium at Aphrodisias»…, pp. 565-569.

1311 J. Travlos, A Pictorial Dictionary of Ancient Athens, Londres, Thames and Hudson, 1971, p. 498.

1312 H. Dodge, «Circuses in the Roman East: A Reappraisal», in Actes du Colloque Le cirque et son image, Bordéus,
Ausonius, 2008, pp. 133-146.

1313 F. Sear, Roman Theatres…, pp. 423-424.

459
sugeriram – um anfiteatro 1314 -, não obstante a forma e comprimento de 250 m definirem o
edifício como um estádio1315. Dispomos de documentação epigráfica alusiva a espectáculos de
gladiadores e de animais selvagens que tiveram lugar na dita cidade 1316; contudo, não se
especificam os sítios onde se desenrolaram, o que é usual, mas os dois tipos de exibições
podiam ver-se acomodados noutros géneros de instalações para entretenimento no Oriente.
Ademais, L. Robert1317 enfatizou que muitas vezes, até em inscrições orientais, um simples
teatro surge mencionado com a palavra grega «anfiteatro». A não ser que haja vestígios
arqueológicos, torna-se incerto a que tipo de edifício se fez referência nas fontes escritas.
Obviamente que estes termos não se aplicavam de modo tão rígido na Antiguidade como os
estudiosos modernos gostariam, nem as funções dos edifícios descritas eram rigorosamente
percepcionadas.

O anfiteatro permanente era uma estrutura exclusivamente associada aos Romanos,


reconhecível pela sua planta elíptica, uma arena oval e completamente rodeada por bancadas:
este é o sentido literal do vocábulo grego amphitheatron, que, desde o tempo de Augusto,
passou a adoptar-se para designar este tipo de edifício (Vitrúvio, De archit. 1.7.1; Res Gestae,
24; Dião Cássio, 43.22). Ovídio (Metamorfoses, 9.25) escreveu a frase «no teatro construído em
ambos os lados»/structoque utrimque theatro. O anfiteatro difere, a nível formal, do teatro, do
estádio e do circo, os quais todos podem classificar-se sob o ponto de vista arquitectónico
como entidades muito diferentes, e tendo funções aparentemente bem definidas. O teatro
para a dramaturgia, o estádio para competições atléticas e o circo para corridas de carros e
cavalos. Estas classes de edifícios romanos possuem, assim, uma forma identificável e definível,
uma função primária, algo consensualmente admitido no meio académico actual.

No entanto, os problemas emergem por causa da compulsão moderna de definir um edifício


usando um étimo, de acordo não só com a sua função, mas também em relação às exibições
que nele ocorriam. Infelizmente, a antiga função nem sempre se conforma com essas
categorias físicas. Além disso, a terminologia assinalável nas fontes de antanho a respeito dos
edifícios para entretenimento presta-se, pela sua ambiguidade, a diversas interpretações hoje
em dia. Por estas razões é que o tema dos anfiteatros e eventos associados no Mediterrâneo
oriental continua a causar dúvidas aos académicos actuais, tanto na descrição como na
interpretação dos mesmos.

Na realidade, os monumentos de espectáculos romanos eram, pela sua natureza,


multifuncionais, como de facto acontecia com numerosos edifícios gregos e romanos. Por
exemplo, as exibições de animais selvagens faziam parte dos espectáculos realizados no circo e
na arena em Roma, desde o século II a. C. 1318, sendo habitual que se desenrolassem no Circo
Máximo (Dião Cássio, 76.1.3-5) 1319, assim como posteriormente no Coliseu (Marcial. Lib. Spect.
26). Dionísio de Halicarnasso reportou-se ao Circo Máximo como um αμФιθέατρος
1314 J.-C. Golvin, L’Amphithéâtre romain. Essai…, p. 263.

1315D. Tsontchev, Contributions à l’histoire du stade antique de Philippopolis, Sófia, Édition de la Municipalité de
Plovdiv, 1947.

1316 L. Robert, Les gladiateurs…, nos. 35-37.

1317 Ibidem, p. 33, n. 6.

1318 Ibidem, pp. 61-65.

1319 G. Jennison, Animals for Show and Pleasure…, pp. 42-59; J.-C. Golvin, L’Amphithéâtre romain. Essai…, pp. 61-
65; K. Coleman, «Entertaining Rome«, in J. Coulston e H. Dodge (eds.), Ancient Rome: The Archaeology of the Eternal
City, Oxford, 2000, pp. 216-217.

460
ίπποδρομος («anfiteatro-hipódromo»; Ant. Rom. 4.44), uma clara indicação à natureza dos
lugares para os espectadores e à função primária, mais do que a quaisquer outros tipos de
exibições que aí pudessem decorrer.

Consequentemente, sobretudo em relação às fontes antigas escritas em grego, importa não


partir do princípio de que o uso do termo amphitheatron (ou amphitheatros) implicaria alguma
coisa concreta acerca da função do edifício descrito ou que designasse necessariamente uma
estrutura anfiteatral na sua forma canónica. Pr exemplo, em Nysa, no Vale Meandro (Oeste da
Turquia), Estrabão descreveu um edifício situado num desfiladeiro, a sul do teatro, com um
túnel dissimulado por baixo, a fim de servir para a passagem das águas torrenciais, ao qual
chamou amphitheatros (14.1.43). A estrutura nunca chegou a ser escavada e os dados
arqueológicos que sobreviveram resumem-se a pouco mais do que algumas filas fragmentárias
de assentos. Porém, a sua forma correspondia aparentemente a uma oval alongada, cujo
comprimento, de 192 m, lembra o de um estádio 1320. Para a construção do edifício,
aproveitaram-se os lados alcantilados do desfiladeiro para assim suportar as bancadas e a área
de performance1321. Não sabemos ao certo se a estrutura se apresentava arredondada em
ambas as extremidades, mas talvez caiba compará-lo com o anfiteatro de finais do século I a.
C., possivelmente erigido por Juba II em Iol Caesarea, na Mauretania (actual Cherchel,
Argélia)1322. O emprego do vocábulo «anfiteatro» nas fontes antigas para descrever edifícios
que não se coadunavam estritamente com a visão moderna de um anfiteatro tornou-se
novamente centro de atenção há uns anos, com a descoberta de uma instalação de
entretenimento associada ao palácio de Herodes em Caesarea Maritima1323.

Esta potencial confusão e falta de clareza mais aumentaram pelo facto de numerosas
inscrições do Oriente, referentes a exibições gladiatórias e outras afins, as identificarem como
ocorrendo «no estádio» (έν το σταδίον)1324. Devido à sua conexão com os eventos da arena,
presume-se habitualmente que significa «no anfiteatro», mas isto é incorrecto de
desnecessário. O estádio de Esmirna (Smyrna, actual Izmir, Turquia), na Ásia Menor, foi
utilizado para os munera1325. Terá sido igualmente aqui, segundo Eusébio (4.15.16: έν το
σταδίον) o palco do martírio de Policarpo, bispo da cidade, em meados do século II d. C.,
embora Jerónimo afirme que a sua execução ocorreu in amphitheatro (De Viris Illustribus,
XVII). L. Robert1326 notou que era importante distinguir, nas fontes epigráficas, os textos que
empregaram o vocábulo «anfiteatro» na descrição da sua planimetria, quando na realidade se
reportavam a um simples teatro.

1320 K. Welch, «Greek stadia and Roman spectacles: Asia, Athens and the tomb of Herodes Atticus», Journal of
Roman Archaeology, 11 (1998), pp. 117-119.

1321 J.-C. Golvin, L’Amphithéâtre romain. Essai…, p. 243; K. Welch, «The Stadium at Aphrodisias», p. 555, n. 2.

1322 J.-C. Golvin, L’Amphithéâtre romain. Essai…, pp. 112-114, 243.

1323 Y. Porath, «”Herod’s Amphiheatre” at Caesarea: a Multipurpose Entertainment Building», in J. Humphrey


(ed.), The Roman and Byzantine Near East: Some Recent Archaeological Research, vol. 2, JRA Supplementary Series
14, Ann Arbor/Michigan, 1995, pp. 15-27; IDEM, «Why Did Josephus Name the Chariot-Racing Facility at Caesarea
‘Amphitheater’?», Scripta Classica Israelica 23 (2004), pp. 63-67.

1324 L. Robert, Les gladiateurs…, p. 35; K. Welch, «Greek stadia and Roman spectacles…», pp.122-127.

1325 L. Robert, Les gladiateurs…, p. 37, nos. 225-250.

1326 Ibidem, p. 33, n. 6.

461
O caso mais recuado de que há notícia de combates de gladiadores no Mediterrâneo foi num
contexto régio helenístico, quando o monarca selêucida Antíoco IV Epifanes organizou um
conjunto de espectáculos em Daphne, perto da capital Antioquia, em 166 a. C., ao qual já
fizemos menção por várias vezes (Políbio, 30.25-26; Tito Lívio, 41.20.10-13). Queda explícito
pelos relatos que tal evento se caracterizou pela sua invulgaridade ao tempo. Políbio diz-nos
que Antíoco tentava emular Emílio Paulo, o general vitorioso romano na batalha de Pidna,
poucos anos antes. Os espectáculos, que incluiram tanto exibições de gladiadores como de
animais selvagens (os primeiros, ao que parece, propositadamente vindos de Roma), duraram
trinta dias e, pela sua envergadura e sumptuosidade, equivaleram aos apresentados na mesma
altura na Urbs1327, embora, segundo Lívio, eles causaram mais alarme do que outra coisa entre
a população local.

No entanto, como atrás vimos, estes eventos depressa ganharam aceitação. Em 70 a. C., Lúcio
Licínio Lúculo patrocinou jogos de vitória para celebrar o facto de haver logrado libertar as
cidades da Ásia das depredeações perpetradas por Mitridates VI; estes jogos tiveram lugar em
Éfeso, a capital provincial, englobando pugnas gladiatórias (Plutarco, Vida de Lúculo, 23.1). Em
50 a. C., quando ocupava o cargo de governador na Cilícia, Cícero escreveu ao seu amigo Ático
acerca do comportamento vergonhoso do filho de Hortênsio, seu rival, num espectáculo
gladiatório dado em Laodiceia (Ad Att. 6.3.9), mas sem fornecer mais detalhes específicos
sobre o episódio. Quanto a Marco António, manteve à sua custa uma «companhia» de
gladiadores que estavam a treinar-se em Kyzikos, nos anos 30 a. C., numa precipitada
antecipação do seu triunfo sobre Octaviano e subsequentes celebrações (Dião Cássio, 51.7).
Ora importa salientar que em nenhum destes casos se sabe que tipo de estrutura albergou tais
jogos.

O mais antigo verdadeiro anfiteatro no Oriente foi edificado em Antioquia-sobre-o-Orontes,


onde ficava a sede do governador romano da Síria; se nos ativermos às fontes literárias, Júlio
César é que tratou da sua construção (Malalas, 216.21-217.4; Libânio, Orat. 2.2191328). A forma
singela do edifício, parcialmente cavado na rocha, sem infra-estruturas para a arena, seria, em
princípio, similar à de outros anfiteatros republicanos do mesmo período conhecidos em Itália
e na Hispânia, como, respectivamente, os casos de Paestum e Carmona1329.

Alguns dos testemunhos documentais mais recuados dentro do contexto romano de


espectáculos gladiatórios e venationes estão intimamente ligados ao culto imperial, o que não
causa estranheza1330. Em Ancara, antiga Ancyra, achou-se parte de uma lista de sacerdotes do
culto de Augusto Deificado e Roma, datando do reinado de Tibério (OGIS 533)1331. O texto,
gravado numa parede do átrio do Templo de Augusto e Roma, elenca os detentores do ofício
de sacerdote do culto imperial. Mediante um exame dos seus nomes, constata-se que eles
eram Gálatas, ou seja, de ascendência local, e os seus actos debeneficência foram exarados
integralmente. Os jogos de gladiadores eram o género mais proeminente de entretenimento
oferecido à população, se bem que também apareçam amiúde referidas «corridas de touros».

1327 R. C. Beacham, Spectacle Entertainment of Early Imperial Rome…, pp. 1-41.

1328 J.-C. Golvin, L’Amphithéâtre romain. Essai…, p. 42.

1329 Ibidem, pp. 41-44; K. Welch, «The Roman arena in late-Republican Italy….», pp. 66-67.

1330 Por exemplo, em Éfeso: cf. L. Robert, Les gladiateurs…, nos. 198-200; M. Carter, «Archiereis and Asiarchs…»,
pp. 41-68.

1331 S. Mitchell, Anatolia. Land, Men and Gods in Asia Minor, Volume I The Celts in Anatolia and the Impact of the
Roman Rule, Oxford, Clarendon Press, 1993, pp. 107-113.

462
Nem sempre se indica onde ocorreram tais espectáculos e desconhecemos que estruturas se
utilizavam para o efeito. Pessinus, a 120 milhas a sudoeste de Ancara, é o único sítio citado na
dita lista, afora Ancyra; subistiram muitas evidências das duas cidades respeitantes aos munera
gladiatórios e venationes desde o século I d. C., embora as instalações que os acomodavam
ainda não tenham sido seguramente identificadas 1332. Em Pessinus, defronte e por baixo do
templo hexastilo (pórtico de seis colunas) dedicado ao culto imperial, está uma estrutura do
género de um teatro, idêntica a uma série de santuários tardo-republicanos em Itália, eles
próprios fortemente influenciados pelo Oriente helenístico 1333. A presença de familiae
gladiatórias também estava certamente conectada com tais cidades, onde se celebravam as
festividades provinciais, haja em vista Pergamon, Smyrna e Kyzikos (CIG 3123; Galeno, VI.529;
XIII, 654, XIV, 599-600)1334.

Uma inscrição de Ancyra (CIL III, 249), que remonta ao século II ou III d. C., nomeia um tal
Lucius Didius Marinus, que aparentemente fez carreira como procurator das familiae
gladiatórias imperiais em todo o império, incluindo a Asia, Galácia, Capadócia, Panfília, Lícia,
Chipre, Ponto e Paflagónia. Existe igualmente abundante documentação de Afrodísias sobre o
investimento em gladiadores 1335. Note-se, em particular, a familia que pertenceu a Tiberius
Claudius Paulinus 1336, sumo sacerdote do culto imperial no século I da nossa era: ele era dono
de uma «trupe» de combatentes da arena (μονομάχοι/monomachoi) e de criminosos
condenados (κατδικοι/katadikoi). Uma fonte epigráfica, algo ulterior 1337, reporta-se à familia
de Zaeno Hypsicles: ela compreendia não só gladiadores e condenados, como também
indivíduos treinados a actuar com touros (ταυροκάθαππαι)1338.

No seu conhecido livro versando a arquitectura romana na época imperial (publicado em


1981), J. Ward-Perkins apontou para a existência de 6 anfiteatros nas províncias orientais
(Kyzikos, Pergamon, Anazarbus e Antioquia-sobre-o-Orontes, na actual Turquia, Corinto na
Grécia e Dura Europos na Síria), o autor menciona-os a todos de passagem, não fornecendo
detalhes sobre os mesmos1339. Porém, em resultado das escavações e investigações realizadas
nas duas décadas e meia desde o ano em que deu à estampa a obra de Ward-Perkins, hoje em
dia o número de anfiteatros especialmente concebidos para os munera e venationes talvez
ascenda a uns 21, todos identificados a partir de elementos facultados pela arqueologia.
Conhecem-se mais exemplos referidos nas fontes literárias e epigráficas, mas nenhum destes
anfiteatros, que sobreviveram ou não, se revelam simples ou lineares na sua interpretação.

1332 L. Robert, Les gladiateurs…, pp. 135-139.

1333 K. Mitens, «Theatre Architecture in Central Italy: Reception and Resistance», in P. G. Bilde e M. Nielsen (eds.),
Aspects of Hellenism in Italy, Acta Hyperborea 5, Copenhaga, 1993, pp. 91-106; H. Dodge, «Amusing the masses:
buildings for entertainment and leisure in the Roman world», in D. Potter e D. J. Mattingly (eds.), Life, Death and
Entertainment in the Roman Empire, Ann Arbor, University of Michigan Press, 1999, pp. 215-219.

1334 L. Robert, Les gladiateurs…, pp. 283-295; J.-C. Golvin, L’Amphithéâtre romain. Essai…, pp. 151-152.

1335 C. Roueché, Performers and Partisans at Aphrodisias…, pp. 61-73.

1336 Ibidem, nº 13.

1337 Ibidem, nº 14.

1338 G. Jennison, Animals for Show and Pleasure…, pp. 26-27.

1339 Roman Imperial Architecture…, p. 258 (Corinto), 290 (Kyzikos, Pergamon e Anazarbus), 325 (Antioquia-sobre-
o-Orontes), 352 (Dura Europos).

463
Os locais de todos os anfiteatros nas províncias onde se descobriram vestígios físicos que se
podem identificar, ainda que com graus variáveis de certeza, estão listados na Fig. 4.2. Comana,
na Capadócia, corresponde ao anfiteatro mais tenuemente reconhecido, na medida em que
não restaram elementos materiais. A identificação fundamenta-se em descrições elaboradas
nos começos do século XX, as quais, na melhor das hipóteses, são ambíguas. A identificação de
um anfiteatro em Hierapytna, no Leste de Creta, também citado em relatos de antigos
viajantes, parece igualmente suspeita, se bem que L. Robert estivesse plenamente convencido
da sua existência1340. J.-C. Golvin, por seu turno, incluiu Cyrene1341, na parte leste da hodierna
Líbia, na sua lista de 16 anfiteatros orientais. Ora isto chama-nos à atenção para outro
problema terminológico, mostrando quão necessário é usar de maior clareza pelos académicos
actuais. A estrutura em Cyrene não corresponde, a bem da verdade, a um anfiteatro
projectado especificamente para espectáculos gladiatórios e venationes, representanto antes o
produto de uma modificação significativa, no século II d. C., de um teatro grego do período
arciaco, pelo que o edifício possui uma história e um desenvolvimento arqueológico bastante
diferentes. Mais adiante, discutiremos a questão da mutação de outras estruturas de
entretenimento, mas, por ora, vale a pena realçar que a ampla gama de distintos vocábulos
empregues pelos estudiosos, por vezes tendo como foco a mesma edificação, que era
multifuncional deste o começo ou então alterada, não só se afigura confusa como também um
pouco inexacta.

E. Dyggve1342, há uma série de décadas, alertou para os problemas de classicação suscitados


por estes edifícios, mas, ainda assim, o autor utilizou duas expressões diferentes, «édifice
mixte» e «demi-amphithéâtre» na sua abordagem. Quanto a J.-C. Golvin 1343, recorreu a quatro
designações distintas - «édifice mixte», «semi-amphithéâtre», «théâtre-amphithéâtre» e
«théâtre mixte», mas não avançando com uma explicação para as diferenças no tocante à
forma e à modificação de tais estruturas. K. Welch 1344, na sua discussão sobre o carácter
polivalente do stadion em Afrodísias, aplicou duas expressões diferentes, «stadium-
amphitheatre» e «amphitheatral stadium», a última, indiscutivelmente, uma tradução de uma
fonte epigráfica que descreve o estádio em Laodiceia como stadion amphitheatron (IGR 4.845 e
861). Analogamente, F. Sear1345 empregou tanto a expressão «pseudo-amphitheatre» como
«semi-amphitheatre» na sua abordagem respeitante à modificação operada nos teatros, dando
a entender que estas alterações seguiram um padrão idêntico.

A nível arqueológico, atestam-se mais de 200 anfiteatros permanentes e concebidos


especialmente para os espectáculos no mundo romano 1346 e, nas províncias orientais, uns 21,
incluindo a região balcânica. Trata-se de um número relativamente modesto se tivermos em
conta o tamanho da área geográfica em causa. Ademais, repare-se que, à excepção daqueles
situados nos Balcãs (que mantemos à parte por diversas razões), só dois edifícios se viram

1340 Cf. «Monuments de gladiateurs dans l’Orient grec», Hellenica, 3 (1946), p. 116.

1341 L’Amphithéâtre romain. Essai…, pp. 96-97.

1342 «Le théâtre mixte du Bas-Empire d’après le théâtre de Stobi et les diptyques consulaires», Revue
Archéologique, 1 (1958), p. 141.

1343 L’Amphitéâtre romain. Essai…, p. 237, 245.

1344 «The Stadium at Aphrodisias»…, p. 563.

1345 Roman Theatres.., pp. 43-44.

1346 J. C. Golvin enumerou 190 anfiteatros.

464
submetidos a escavações ou a algo mais do que uma sondagem rudimentar. São eles o de
Eleutheropolis, em Israel, e Dura Europos, na Síria1347.

Perante a invulgaridade deste género de estrutura nas províncias do Oriente, facto amiúde
constatado pelos académicos modernos, esta situação afigura-se deveras surpreendente. Em
geral, exceptuando Marcianopolis, Dyrrachium e Ulpia Traiana, ao quais possivelmente se deve
acrescentar agora o anfiteatro não há muito achado em Serdica (na Bulgária), nenhum dos
edifícios evidenciam uma configuração sofisticada e apoiaram-se na topografia local;
encontraram-se escassas provas de infra-estruturas da arena em grande escala ou suportes
abobadados para as bancadas, componentes que são tão familiares nos anfiteatros de maiores
dimensões no Ocidente do império romano. Todavia, houve investigadores que sugeriram, para
os anfiteatros de Kyzikos e Pergamon, ambos construídos sobre as encostas alcantiladas de um
vale para assim escorar substancialmente a cavea, que a arena podia encher-se de água, caso
se recorressse à corrente fluvial do subsolo 1348. Mas a verdade é que nenhum estudioso
apresentou ideias concretas de como isto se conseguiria levar a cabo.

Mais: ante a indigência de vestígios materiais, as datas, detalhes, formas e edificação dos
anfiteatros orientais são extremamente difíceis de apurar com algum grau de rigor. Afora os
edifícios em Antioquia-sobre-o-Orontes e, talvez, Corinto, nenhum outro pôde ser datado antes
de finais do século I d. C.; Salamis, em Chipre, corresponde ao mais antigo, remontando aos
últimos tempos do século I 1349. No que concerne à documentação epigráfica, dispomos de uma
profusão de testemunhos a partir do século I d. C., aumentando em quantidade nos
subsequentes dois séculos, atestando gladiadores, jogos gladiatórios e exibições de animais
selvagens apresentados em numerosas cidades em torno do Mediterrâneo oriental. Porém,
incorreríamos em erro se considerássemos que a organização e a realização destes
espectáculos pressuporiam a provisão de anfiteatros criados especificamente para estes
eventos.

Pouco se sabe do contexto da edificação de muitos dos anfiteatros do Oriente; os de Micia e


Porolissium, na Roménia, estavam associados a bases militares romanas, daí que a sua
implantação se viu determinada por outros factores 1350. Esta área, enquanto zona fronteiriça,
estava mais fortemente militarizada, e as cidades de Marcianopolis, rebaptizada por Trajano
em honra da sua irmã, e Ulpia Trajana, uma colónia criada neste reinado, possuía estreitos
laços com Roma. O único anfiteatro com conexões castrenses localizado no Oriente foi o
erguido em Dura Europos, onde se construiu uma pequena estrutura no interior de um edifício
para banhos, na altura em que a sua metade norte se converteu num recinto para alojar os
soldados da cohors XX Palmyrenorum e das vexillationes legionárias aí aboletadas. O anfiteatro
que recentemente se descobriu em Bostra, a capital provincial da Arábia, também se destinou
provavelmente à guarnição da legio III Cyrenaica (al-Mougdad)1351.

1347 A. Kloner, «The Roman Amphitheatre at Beth Guvrin. Preliminary Report«, Israel Exploration Journal 38
(1988), pp. 15-24; M. I. Rostovzeff, A. R. Bellinger, C. Hopkins e C. B. Welles, The Excavations at Dura-Europos.
Preliminary Report of the Sixth Season of Work, October 1932-March 1933, New Haven, Yale University Press, 1936,
pp. 72-77; J.-C. Golvin, L’Amphithéãtre romain. Essai…, p. 139.

1348 R. de Rutafjaell, «Cyzicus», Journal of Hellenic Studies, 22 (1902), pp. 186-187; J.-C. Golvin, L’Amphithéâtre
romain. Essai…, pp. 202-203.

1349 V. Karageorghis, «Excavations at Salamis», Reports of the Department of Antiquities of Cyprus 1963, Nicósia,
Department of Antiquities of Cyprus, 1963, pp. 54-55; J.-C. Golvin, L’Amphithéâtre romain. Essai…, p. 256.

1350 J.-C. Golvin, L’Amphithéâtre romain. Essai…, pp. 148-151, 154-156; P. Le Roux, «L’amphithéâtre et le soldat
sous l’Empire romain»…, pp. 203-215; A. Futrell, Blood in the Arena…, pp. 147-152.

465
Os anfiteatros de Diocletianopolis e Serdica são relativamente tardios, mas devemos
perspectivá-los no âmbito da reorganização provincial desta região sob a égide de Diocleciano,
tornando-se Serdica a capital da Dacia Mediterraneana.

Apenas temos conhecimento de um anfiteatro que foi edificado na qualidade de acto de


munificência cívica, o de Salamina, no Norte do Chipre, construído ou restaurado por iniciativa
de um abastado cidadão da elite local, Servius Sulpicius Pancles Veranianus, durante a dinastia
dos Flávios1352. Veranianus encarregou-se igualmente de mandar efectuar reparações no teatro
e no gymnasion da mesma cidade.

Assumiu especial interesse a descoberta de um «anfiteatro» em Gortyna, capital da província


de Creta e Cyrene. Há abundantes fontes alusivas a jogos gladiatórios 1353. Nos anos 80 do século
passado, identificou-se o edifício, de proporções consideráveis, mas o sítio, num planalto a
sudeste do centro urbano (perto das termas de Megalis Porta) não foi escavado; do
monumento ficaram relatos descritivos, como os de Belli e outros viajantes oitocentistas, que
nele viram semelhanças com o famoso Coliseu de Roma. Na realidade, veio a confirmar-se que
se trata de um teatro1354. Em relação ao anfiteatro propriamente dito, uma missão de
arqueólogos italianos identificou-o na localidade de Aghia Deka 1355. As pesquisas in situ
trouxeram à tona restos de substanciais infra-estruturas de pedra, e uma investigação posterior
demonstrou que a Igreja dos Dez Santos (que deu o nome à referida vila), se situa
precisamente dentro do espaço da antiga arena. Capta-se o mesmo fenómeno noutras
paragens do mundo romano, como em Tarragona (a latina Tarraco, Espanha), onde se
construiu na área da pista uma igreja originalmente visigótica para evocar e homenagear o
martírio de três santos (Frutuoso, Eulógio e Augúrio) em 257 d. C. e, mais tarde, no século XI,
viu-se substituída pela Igreja de Santa María del Milagro 1356. Em Cartago, por seu lado, ergueu-
se uma capela para as Santas Perpétua e Felicidade na zona correspondente à arena da cidade,
por se acreditar, erradamente, que elas conheceram o seu martírio aí 1357. Acresce ainda, a
propósito do anfiteatro de Gortyna, que os arqueólogos o dataram do período Antonino, num
momento histórico em que a cidade se tornou objecto de uma grande reconstrução.

No Egipto, não sobreviveram ruínas de anfiteatros, embora as fontes textuais antigas aludam à
sua existência 1358. Plínio-o-Velho (Nat. Hist. 13.23), ao discorrer sobre os diferentes tipos de
papel produzido a partir do papiro, menciona uma qualidade de papel que rotulou de charta
amphitheatrica, presumivelmente porque seria manufacturado nas vizinhanças do anfiteatro
localizado em Alexandria. Uma inscrição anepígrafa 1359, procedente de Nápoles, refere-se a

1351 Blanc e Dentzer, 1990.

1352 V. Karageorghis «Excavations at Salamis»…, pp. 403-404.

1353 L. Robert, Les gladiateurs…, nos. 63-66; I.C. IV, 305, 306, 373-375.

1354 F. Sear, Roman Theatres…, p. 296.

1355 A. Di Vita, «L’anfiteatro ed il grande teatro romano di Gortina», Annuario della Scuola Archeologica di Atene
(1986-1987), pp. 64-65, 327-347.

1356 J.-C. Golvin, L’Amphithéâtre romain. Essai…, pp. 164-165.

1357 Ibidem, pp. 122-123; D. L. Bomgardner, The Story of the Roman Amphitheatre…, pp. 128-129, n. 53.

1358 J.-C. Golvin, L’Amphithéâtre romain. Essai…, p. 363.

1359 L. Robert, Les gladiateurs…, pp. 124-125, nº 70; CIL X, 1685.

466
Lucius Bovius, procurator de uma «escola» gladiatória imperial em Alexandria (procurator ludi
familiae gladiatoriae Caesaris Alexandriae ad Aegyptum). Contudo, a presença de um ludus
não implica necessariamente que o centro urbano estivesse dotado de um anfiteatro: assim
aconteceu tanto em Pérgamo 1360 (Galeno, 6.529; 13, 654), como em Kyzikos 1361(Flávio Josefo,
Ant. Jud. 15.6.7; Bell. Iud. 1.20.2; Dião Cássio, 51.7).

Examinemos a seguir dois casos, Corinto, na Grécia, e Cesareia Marítima, em Israel, uma vez
que ilustram em larga medida a complexidade da situação nas províncias orientais do império
romano, assim como ajudam a derramar luz sobre dterminados problemas, alguns acima
referidos, que se desenvolveram a partir do raciocínio e metodologia dos académicos
modernos.

Corinto, recorde-se, foi saqueada em 146 a. C. pelos Romanos e subsequentemente refundada


em 44 a. C. enquanto colónia romana e capital da província da Acaia (Colonia Laus Iulia
Corinthiensis). Desde princípios do século XVIII que surgem notícias de um anfiteatro, mas que
nunca mereceu escavações arqueológicas 1362: fica a leste da cidade, construído numa ravina
natural, ainda bem discernível no terreno e mediante prospecção aérea 1363. Datou-se esta
estrutura relativamente pequena do século III da nossa era 1364. Porém, tal datação repousa
sobretudo em testemunhos literários 1365: Pausânias, escritor e viajante grego, ao escrever no
século II, não menciona o anfiteatro na sua descrição da cidade (Livro, 2). No entanto, outro
autor antigo, Dião Crisóstomo, na passagem de um texto redigido nos últimos tempos do
século I d. C., reporta-se claramente a este edifício, na sua discussão sobre os jogos gladiatórios
em Atenas:

«Da maneira como as coisas estão, não há prática corrente em Atenas que cause que algum homem se
sinta envergonhado. Por exemplo, em relação aos espectáculos gladiatórios, os Atenienses emularam
tão zelosamente os Coríntios ou, até, os excederam, e a todos os outros, na sua louca paixão, que,
enquanto os Coríntios assistem a estes combates fora da cidade numa ravina, local que pode acolher
uma multidão, mas de tal modo imundo que ninguém aí inumaria um cidadão livre, os Atenienses
contemplam este belo espectáculo no seu teatro, sob as próprias muralhas da Acrópole, no sítio onde
trazem o seu Dionísio para a orquestra […], de forma que os próprios assentos em que o hierophant e
outros sacerdotes se devem sentar ficam salpicados de sangue» (Dião Crisóstomo, 31.121).

A veemente desaprovação de Dião Crisóstomo não suscita quaisquer dúvidas, como se infere
pela sua descrição do recinto para os jogos de gladiadores em Corinto. Porém, na sua opinião,

1360 Ibidem, p. 32, 285.

1361 Ibidem, nº 290.

1362Para a planta da autoria de Grimani, datada de 1701, cf. S. P. Lampros, «Über das korintische Amphitheater»,
Mitteilungen des Deutsches Archäologisches Instituts (Athenische Abteilung)», 2 (1877), pp. 282-288.

1363 D. Gilman Romano, «Post-146 BC land use in Corinth, and planning of the Roman colony of 44 BC», in T. E.
Gregory (ed.), The Corinthia in the Roman Period, JRA Supplementary Series 8, Ann Arbor/Michigan, 1993, pp. 13-15;
K. Welch, «Negotiating Roman Spectacle Architecture in the Greek World: Athens and Corinth», in B. Bergmann e C.
Condoleon (eds.), The Art of Ancient Spectacle,Londres, Routledge,1999, pp. 133-138; IDEM, The Roman
Amphitheatre from its origins…, , 255-259.

1364Cf. H. N. Fowler e R. Stillwell, Corinth I. Introduction, Topography, Architecture, Cambridge/Massachussets,


Harvard University Press, 1932, pp. 89-91; J.-C. Golvin,L’Amphithéâtre romain. Essai…, p. 138; J. Ward-Perkins,
Roman Imperial Architecture…, p. 258.

1365 K. Welch, «Negotiating Spectacle Architecture…», p. 136; IDEM, The Roman Amphitheatre from its origins…,
p. 180.

467
o que os Atenienses fizeram ainda foi pior, ao celebrarem espectáculos no Teatro de Dionísio,
provido de um parapeito com lajes de mármore à volta da orquestra, onde abriram diversos
orifícios no pavimento para montar redes protectoras para o público. Frequentemente, isto
considerou-se uma característica romana tardia, com base na infundada premissa de que uma
tal componente não poderia haver surgido antes do período da decadência romana, mas é
muito provável que ela remonte a meados do século I, por ocasião das modificações globais
que se levaram a cabo durante o reinado de Nero, para conferir aos monumentos da cidade
uma aparência mais romanizada1366. Ademais, há uma fonte epigráfica que atesta o facto de
tais exibições ocorrerem no teatro1367; A Vida de Apolónio, de Filóstrato (4.22) refere-se
igualmente à utilização do espaço do Teatro de Dionísio para jogos gladiatórios (um «massacre
humano»).

Um projecto digital, chamado Corynth Computer Project, dirigido por David Gilman Romano,
demonstrou que o anfiteatro de Corinto se encaixa perfeitamente na disposição urbanística
local, em finais do século I a. C 1368. A forma geral do edifício e a maçonaria que se conservou
até hoje estão conformes com uma data situada nos últimos tempos do século I antes da nossa
era, podendo-se cotejar tais elementos com os de outros anfiteatros permanentes dos
derradeiros anos da República, por exemplo, Pompeia, Sutrium e Paestum em Itália, Carmona
na Espanha e Antioquia sobre-o-Orontes no Sudeste da Turquia 1369. Todos eles compartilham
uma série de características: uma planta ovoide simples, o máximo uso do terreno natural para
suportar as bancadas e a ausência de infra-estruturas na arena.

A implantação de um anfiteatro nos primeiros anos da vida da colónia romana em Corinto


adequa-se ao modelo para a construção anfiteatral formulado por K. Welch para a Itália e o
resto do Ocidente do império, o qual colheu muita receptividade entre os membros da
comunidade científica internacional. A autora sugeriu que se erigiam estas estruturas como
símbolo da Romanitas, em cidades com vínculos especiais com Roma, em particular colónias e
capitais provinciais 1370.

Assim, na descrição que Pausânias fez das instalações para entretenimento em Corinto,
detecta-se, aparentemente, um dos primeiros exemplos de censura cultural, ainda que a sua
omissão se possa explanar pelo mero facto de ele não visitar aquela parte da cidade. Embora
não aluda ao anfiteatro, menciona o teatro e o odeion locais. O teatro de finais do século V a.
C. sofreu uma reconstrução no período e, tal como a maioria dos teatros helénicos nas
províncias orientais, viu-se remodelado com um traçado mais romano em começos do século I
d. C. Adicionou-se um palco mais refinado no início do século II 1371. Mais tarde, houve mais
modificações, possivelmente nos primeiros tempos do século III, para um objectivo ainda

1366 J.-C. Golvin, L’Amphithéâtre romain. Essai…, pp. 237-238; K. Welch, «Negotiating Roman Spectacle
Architecture in the Greek world…», pp. 127-130; IDEM, The Roman Amphitheatre from its origins…, pp. 170-178.

1367 L. Robert, Les gladiateurs…, nº 58, pp. 246-247.

1368 Cf. «A Tale of Two Cities: Roman Colonies at Corinth», in E. Fentress (ed.), Romanization and the City:
Transformations and Failures, JRA Supplementary Series 35, Portsmouth/RI, 2000, pp. 83-104; K. Welch, The Roman
Amphitheatre from its origins…, pp. 255-258.

1369 J.-C. Golvin, L’Amphithéâtre romain. Essai…, pp. 32-42; K. Welch, The Roman Amphitheatre from its origins…,
pp. 189-263.

1370 K. Welch, «The Roman arena in late-Republican Italy…», pp. 59-79.

1371 R. Stillwell, Corinth II: The Theatre, Princeton, American School of Classics Studies at Athens, 1952; F. Sear,
Roman Theatres. An Architectural Study…, pp. 292-293.

468
romano, quando se removeram as 10 fiadas inferiores das bancadas e se construiu um podium
com 3, 50 m de altura, em torno da arena. Na superfície deste muro, pintaram-se sobre
estuque cenas de caçadas de animais, incluindo leões, touros, um leopardo e, quiçá, pugnas
gladiatórias. Assim, o teatro converteu-se efectivamente numa arena 1372. Este género de
ornamentação diversificada e realçada por cores garridas não era incomum nos anfiteatros: o
de Ptolemais, na Cyrenaica, tinha pinturas representando um venator e uma fera mitológica na
parede do ambulacrum 1373; produziram-se similares composições pictóricas no Ocidente
imperial, designadamente em Pompeia e Augusta Emerita 1374. Aproximadamente na mesma
altura, o odeion, um pequrno teatro coberto localizado a sul do grande teatro de Corinto,
também foi submetido a idênticas mutações 1375: retirou-se o palco e procedeu-se ao
alargamento da orchestra, que passou a medir quase 13 m de diâmetro, a fim de permitir um
uso mais funcional da arena; em torno desta área expandida, abrirarm-se orifícios para se
montarem redes de protecção, o que indica que se realizaram exibições com animais
selvagens. Consequentemente, em Corinto parece que no início do século III, haveria três
edifícios para entretenimento todos equipados para eventos desenrolados numa arena
romana. Julga-se que isto se terá devido a uma visita do imperador Caracala 1376. Ora estas
alterações apontam indiscutivelmente para um aumento generalizado, a nível regional, da
popularidade destes espectáculos1377.

Centremos a atenção mais para Oriente, no Levante. Segundo Flávio Josefo, Herodes-o-Grande
foi o primeiro a mandar construir anfiteatros na Palestina, em Jerusalém, Jericó e em Cesareia
Marítima (Caesarea Maritima)1378, mas a verdade é que têm escasseado provas arqueológicas
ou, então, experimentam-se dificuldades na interpretação dos elementos achados 1379.Afora um
anfiteatro, Herodes aparentemente também edificou um teatro e um hipódromo em Jerusalém
(F. Josefo, Ant. Jud. 15.268; 17.255; Chronicon Pascuale, 1.474), mas a localização e a forma
destes edifícios revelaram-se sempre problemáticas 1380. Independemente da natureza destas

1372 E. Capps, «Observations on the Painted Venatio of the Theatre at Corinth and on the Arrangements of the
Arena», Commemorative Studies in Honor of Theodore Leslie Shear, Hesperia Suppl. 8 (1949), pp. 64-70; R. Stillwell,
Corinth II: The Theatre…, pp. 87-94.

1373 C. H. Kraeling (ed.), Ptolemais. City of the Libyan Pentapolis, Chicago, University of Chicago Press, 1962, p. 95.

1374 A. Mau e F. Kelsey, Pompeii im Leben und Kunst, Leipzig, 1908, p. 208; J.-C. Golvin, L’Amphithéâtre romain.
Essai…, p. 37; J. M. Álvarez Martínez e T. Nogales Basarrate, «Las pinturas del anfiteatro de Merida», in J. M. Álvarez
Martínez e J. J. Enríquez Navascués (eds.), El Anfiteatro en la Hispania Romana…, pp.265-283.

1375 O. Broneer, «Excavations in the odeum at Corinth, 1928», American Journal of Archaeology 32 (1928), pp.
447-473; IDEM, Corinth X: The Odeum, Cambridge/Mass, Harvard University Press, 1932.

1376 R. Stillwell, Corinth II…, pp. 58-98.

1377 H. Dodge, «4. Amphitheatres in the Roman East», in T. Wilmott (ed.), Roman Amphitheatres and Spectacula…,
p. 38

1378 Ant. Jud. 15.268-273; 14.194; 15.341. Veja-se, igualmente, E. Netzer, Hasmonean and Herodean palaces at
Jericho, Berlim, Philipp von Zabern, 2001, pp. 64-67.

1379 Z. Weiss, «Adopting a novelty: the Jews and the Roman games in Palestine», in J. Humphrey (ed.), The Roman
and Byzantine Near East: Some Recent Archaeological Research Vol. 2, JRA Supplementary Series 31, Portsmouth/RI,
JRA, 1999, p. 39

1380 J. Patrich, «Herod’s Theatre in Jerusalem: a New Proposal», Israel Exploration Journal 52 (2002), pp. 235-237.

469
estruturas, não resta a menor dúvida que Herodes organizou jogos elaborados que englobaram
espectáculos com animais selvagens, corridas de carros e competições atléticas.

As escavações efectuadas em Cesareia Marítima ajudaram a clarificar esta imagem bastante


confusa facultada por Flávio Josefo1381, embora, ao mesmo tempo, mais complicações tenham
sido introduzidas, sem querer, pelos académicos modernos. A cidade de Cesareia Marítima foi
refundada por Herodes em honra do imperador Augusto, daí o seu nome, e traduziu-se numa
afirmação da relação estreita e muito complexa existente entre o rei e Roma. De acordo com
Josefo (Ant. Jud. 15.341), Herodes erigiu um teatro de pedra e um anfiteatro na cidade:
«Herodes também construiu um teatro [de pedra] na cidade e, no lado sul do porto […] um
anfiteatro que era suficientemente grande para acolher muita gente e convenientemente
situado com vista para o mar». Ora isto não corresponde à localização do anfiteatro,
primeiramente identificada por A. Reifenberg 1382, e visível a nordeste da cidade, ficando a 750
m da actual faixa costeira e fora da linha das muralhas herodianas. Comentadores mais
recentes, como D. Roller, sugeriram que Josefo incorrera numa confusão e que, na realidade, se
referia ao teatro1383, curiosamente, numa publicação anterior, o mesmo estudioso avançou com
a proposta de que a descrição de Josefo estava pura e simplesmente errada, e que o anfiteatro
de Herodes corresponderia a essa estrutura situada quase a 1 km de distância da costa 1384. O
autor afirmou ainda que o edifício consistia num dos anfiteatros mais antigos conhecidos,
asserção que hoje se sabe estar incorrecta. A prospecção de Reifenberg e outras sondagens
levadas a cabo no começo da década de 1980 resultaram inconclusivas em termos de
datação1385. Se bem que a configuração relativamente simples do anfiteatro não exclua a
hipótese de uma construção cronologicamente anterior, a maioria dos investigadores datou-o
do século II ou III d. C.1386, mas a verdade é que só com campanhas arqueológicas se
conseguirá, em princípio, obter algum tipo de solução para o problema.

As escavações empreendidas no início dos anos 90 do século passado, ao longo da costa, a sul
do porto e no coração da cidade, trouxeram à tona o que actualmente se presume ser o
edifício mencionado por Josefo e cunhado de «anfiteatro». Trata-se de uma estrutura de uns
290 m de comprimento e cerca de 50 de largura, associada ao complexo palatino de Herodes,
localizado mesmo junto ao mar1387. A construção ocorreu entre 22/21 e 10/9 a. C. e apresenta

1381Y. Porath, «Herod’s ‘Amphitheatre’ at Caesarea: a Multipurpose Entertaining Building», in J. Humphrey


(ed.)The Roman and Bizantine Near East: Some Recent Archaeological Research, JRA Supplementary Series 14, Ann
Arbor/MI, JRA, 1995, pp. 15-27

1382 «Caesarea: A Study in the Decline of a Town», Israel Exploration Journal, 1 (1950-1951), p. 25

1383 Cf. The Building Program of Herod the Great, Berkeley, University of California Press, 1998, pp. 140-141

1384 D. Roller, «The Wilfrid Laurier University Survey of Northeastern Caesarea Maritima», Levant 14 (1982), pp.
101-102.

1385 Ibidem, pp. 100-102.

1386 J.-C. Golvin, L’Amphithéâtre romain. Essai…, p. 252.

1387 Y. Porath, «Herod’s ‘Amphitheatre’ at Caesarea…», pp. 15-27; J. Humphrey, «Amphitheatrical Hippo-Stadia»,
in A. Raban e K. G. Holum (eds.), Caesarea Maritima: a retrospective after two millennia, Leiden, E. J. Brill, 1996, pp.
121-129, Z. Weiss, «The Jews and the Games in Roman Caesarea»…, pp. 34-35; J. Patrich, «Herod’s Hippodrome-
Stadium at Caesarea and the Games conducted therein», in L. V. Rutgers (ed.), What Athens has to do with
Jerusalem: essays on classical, Jewish, and early Christian art and archaeology in honor of Gideon Foerster, Lovaina,
Peeters,2002, pp. 29-68; Y. Porath, «Why did Josephus Name the Chariot-Racing Facility at Caesarea
‘Amphitheatre’», Scripta Classica Israelica 23 (2004), pp. 63-67.

470
uma curvatura na extremidade sul, o que aparenta corresponder a um tipo de edifício de um
stadion clássico, tanto no tamanho como na forma, ainda que ligeiramente mais alongado do
que o usual; o estádio típico dos mundos grego e romano media em geral 180-200 m de
comprimento1388. No lado leste, havia uma elevada parcela com 12 filas de assentos, ao passo
que no lado oeste as fiadas eram muito mais baixas, lembrando a descrição de Josefo atrás
citada, de que as bancadas da parte oriental, do lado da terra, tinham vista para o mar. A arena
encontrava-se rodeada por um podium, um muro com 1,70 m de altura, decorado com
imagens pintadas sobre estuque, mostrando cenas de venationes, parecidas às que existiram
nos anfiteatros de Pompeia e Augusta Emerita, o que sublinha a ideia de que estes edifícios
acomodavam exibições de variegado género. Porém, salientemos que a datação destas
pinturas em Cesareia levanta dúvidas, com alguns especialistas sustentando que foram
executadas no século III d. C.1389.

O muro em redor da arena proporcionava uma posição a partir da qual os espectadores


podiam observar nas melhores condições as performances que nela se desenrolavam: oferecia
alguma protecção por ocasião dos espectáculos que envolviam animais selvagens. Quando
apareciam na pista criaturas de maior porte, era necessária uma protecção acrescida, uma vez
que alguns dos maiores felinos logravam saltar até a uma altura de 4 m 1390. No topo do podium
estava montado um dispositivo de segurança composto por postes de madeira fixos no muro,
aos quais se prendiam redes, o que aumentava a altura da barreira, que subia para 2-2,50 m,
sem todavia obstruir a capacidade de visão do público 1391. Como atrás vimos, Calpúrnio Sículo
(Éclogas, 7.50-56) descreve um sistema idêntico no anfiteatro temporário de Nero no Campo
de Marte, em Roma (erigido em 57 d. C.), compreendendo uma vedação e redes sobrepujadas
por um tipo de dispositivo com cilindros metálicos horizontalmente montados, que obstariam a
que um animal conseguisse investir directamente contra a assistência 1392.

Hoje em dia, os estudiosos chegaram a um consenso generalizado de que esta estrutura ao pé


do mar em Cesareia é precisamente aquela referida por Josefo, que a qualifica como
amphitheatron, mas o facto de a sua planimetria não se conformar com a forma canónica de
um anfiteatro gerou muitos debates. No entanto, torna-se claro que o escritor judeu aplicou tal
termo para descrever a forma do edifício e a disposição dos lugares sentados, isto é, que
possuía assentos em todos os seus lados, o significado primário da palavra. Muitas das fontes
de Josefo eram de finais do século I a. C. e começos do século I da nossa era, datando de um
período em que a terminologia ligada à arena ainda se estava a definir 1393. Na realidade, esta
estrutura tem elementos de uma série de edifícios para entretenimento: possui as dimensões
de um amplo estádio, podendo albergar corridas de atletismo; comportava os carceres e a
barreira (spina) central de um circo, mais o podium de um anfiteatro.

Josefo apontou que, em 11 a. C., Herodes organizou jogos em Cesareia para comemorar a
fundação da cidade. Estes eventos compreenderam certames musicais, competições atléticas,
1388 K. Welch, «Greek stadia and Roman spectacles…», pp. 117-120.

1389 J. Patrich, «Herod’s Hippodrome-Stadium at Caesarea…», pp. 45-54.

1390 G. Jennison, Animals for Show and Pleasure…, pp. 155-156.

1391E. R. Gebhard, «Protective Devices in Roman Theatres», in J. Wiseman (ed.), Studies in the Antiquities of Stobi
III, Austin, University of Texas Press, 1975, pp. 13-27.

1392 G. Jennison, Animals for Show and Pleasure…, pp. 157-159.

1393 R. Étienne, «La naissance de l’Amphithéâtre : le mot et la chose»…,pp. 213-220; J. Patrich, «Herod’s
Hippodrome-Stadium at Caesarea…», pp. 54-67.

471
duelos gladiatórios, exibições de animais selvagens e outras modalidades para entretenimento
do público, tão faustosos como os que se viam em Roma (Ant. Jud. 16.136-138; Bell. Jud.
1.415). Tudo isto podia facilmente levar-se a cabo no recinto que temos vindo a descrever 1394.
Assim, este complexo em Cesareia era, desde o início, um edifício verdadeiramente
multifuncional que incorporava as funções tradicionais do circo, do anfiteatro e do stadion. Em
várias fontes antigas talmúdicas colhem-se menções a venationes e a duelos de gladiadores
tendo lugar no estádio e no hipódromo. Esta documentação, conjugada com os testemunhos
epigráficos publicados por L. Robert, aludindo a gladiadores a lutarem no estádio (έν το
σταδίον) enfatiza ainda mais a multifuncionalidade das estruturas de entretenimento romanas,
não só na própria realidade, mas igualmente na percepção antiga 1395.

***

Afloremos alguns aspectos sobre os estádios e os eventos da arena. A estrutura de Cesareia


Marítima não é única, no Mediterrâneo oriental romano, enquanto recinto de entretenimento
multifuncional. O stadion em Aphrodisias é uma das edificações antigas deste género que
melhor se conservou, datando do fim do século I d. C., com uma arena medindo 270 m de
comprimento por 59 de largura no seu ponto mais dilatado 1396.Contrariamente ao traçado
usual do estádio, ele termina nas duas extremidades em curva, assim rodeando toda a arena e
dotado de bancadas para os espectadores. Os registos epigráficos de Aphrodisias são vastos e
atestam um amplo leque de entretenimentos e espectáculos 1397. Há múltiplas evidências
referentes a competições atléticas, mas as fontes também mostram que o estádio acolhia tipos
de espectáculos mais romanos, como as exibições de animais selvagens e, provavelmente,
combates de gladiadores1398. Quanto ao podium em torno da área de actuação, tinha 1, 60 m
de altura e no muro de maçonaria abrirarm-se orifícios para inserir os postes de madeira
destinados a suportar redes, tal como sucedia em Cesareia e noutros locais; existia também um
local protegido no podium, idêntico ao observável nos anfiteatros do Ocidente 1399. Estas duas
características foram introduzidas na altura da sua construção, daí que o edifício se
concebesse, desde o seu começo, como uma estrutura multifuncional.

Encontraram-se elementos similares no Estádio Panatenaico em Atenas, erigido originalmente


por volta de 330 a. C., mas reconstruído com novas instalações em meados do século II d. C.
por iniciativa de Herodes Ático (Atticus)1400. Ainda antes destas obras de remodelação, o estádio
serviu para cenário de uma venatio oferecida pelo imperador Adriano, que incluiu 1000
animais (Hist. Aug./SHA, Hadr. 19.13).

1394 Y. Porath, «Herod’s ‘Amphitheatre’ at Caesarea…», pp. 15-27.

1395 L. Robert, Les gladiateurs…, p. 35; Z. Weiss, «Adopting a novelty: the Jews and the Roman Games in
Palestine», in J. Humphrey (ed.), The Roman and Byzantine Near East…., 1999, pp. 34-45.

1396 K. Welch, «The Stadium at Aphrodisias»…, pp. 547-569.

1397 C. Roueché, Performers and Partisans at Aphrodisias…, pp. 1-11; 116-221.

1398 Ibidem, pp. 61-80; nos. 14, 15, 40, 41, 44).

1399 K. Welch, «The Stadium at Aphrodisias …», pp. 558-559.

1400 IDEM, «Greek stadia and Roman spectacles…», pp. 133-138.

472
O stadion em Laodiceia ad Lycum, erguido em 79 d. C., em honra de Vespasiano, revela a
mesma planimetria que o de Aphrodisias e, aproximadamente, o mesmo tamanho1401. O
edifício é descrito nas inscrições como um σταδίον αμφıθέατρον λενκόλıθόγ (IGR, 4.845 e
861), muitas vezes vertendo-se para inglês como «amphitheatral stadium» 1402, mas a expressão
significa literalmente um «estádio de madeira branca com bancadas em todos os lados». Além
das provas atléticas, a estrutura funcionou igualmente como palco para pugnas gladiatórias 1403.
K. Welch sugeriu que o desenho destes estádios, com ambas as estremidades curvas, foi
concebido e projectado em Roma, empregando a investigadora os termos «estádio-anfiteatro»
e «estádio anfiteatral» na sua discussão sobre tais estruturas 1404. Porém, como já notámos, o
vocábulo amphitheatron aparece frequentemente aplicado por Estrabão para designar
edifícios que tinham bancadas de assentos em todos os lados (como por exemplo o fez a
respeito de Nysa; Estrabão, 14.1.43). A documentação arqueológica e epigráfica demonstra
que eles não eram, arquitectónica nem funcionalmente, anfiteatros, ainda que tenham
passado a acomodar jogos da arena com o passar do tempo.

***

Transitemos para outro tópico, o da modificação de teatros para exibições na arena. O teatro
do período de Adriano em Stobi, na actual Macedónia, constitui outro exemplo de um edifício
para entretenimento multifuncional, havendo sido projectado para servir como teatro e arena,
logo no início da sua construção 1405. No entanto, aqui situamo-nos perante um caso incomum;
o mais habitual era os teatros do Oriente se verem secundariamente modificados para se
tornarem multifuncionais. Uma tal remodelação para espectáculos na arena corresponde a um
fenómeno amplamente reconhecido 1406, embora a natureza exacta e as datas dessas alterações
variem consideravelmente. Na Grécia continental, há relativamente poucos exemplos,
sobressaindo o teatro em Corinto1407 e o Teatro de Dionísio em Atenas1408 como casos mais
notáveis. O estádio foi, ao que parece, o recinto preferido 1409, se bem que isto se possa
simplesmente dever ao facto de as evidências não se verem reconhecidas pelo que elas
significam ao certo.

1401 J.-C. Golvin, L’Amphithéâtre romain. Essai…, p. 243 (que indica que o estádio media 370 m de comprimento
total); J. Humphrey, «Amphitheatrical Hippo-Stadia«, in A. Raban e K. G. Holum (eds.), Caesarea Maritima…, p. 123;
K. Welch, «The Stadium at Aphrodisias…», pp. 555-556.

1402 K. Welch, «The Stadium at Aphrodisias»…, p. 563.

1403 L. Robert, Les gladiateurs…, nos. 116-120.

1404 «The Stadium at Aphrodisias»…, p. 564.

1405 E. R. Gebhard, «The Theatre at Stobi: a summary», in B. Aleksova e J. Wiseman (eds.), Studies in the
Antiquities of Stobi III, Austin, University of Texas Press, 1981, pp. 13-27; F. Sear, Roman Theatres…, p. 419.

1406 P. Collart, «Le théãtre de Philippes», Bulletin de Correspondance Hellènique, 52 (1928), pp. 114-124, J.-C.
Golvin, L’Amphithéâtre romain. Essai…, pp. 237-249.

1407 J.-C. Golvin, L’Amphitéâtre romain. Essai…, p. 238; F. Sear, Roman Theatres…, pp. 292-294

1408 K. Welch, «Negotiating Roman Spectacle Architecture in the Greek World: Athens and Corinth», in B.
Bergmann e C. Kondoleon (eds.) The Art of Ancient Spectacle…, pp. 127-130.

1409 IDEM, «Greek stadia and Roman spectacles…», p. 131.

473
Na Ásia Menor e mais a leste, praticamente todos os teatros receberam alguma espécie de
remodelação ou instalações adicionais para servirem para acolher uma maior gama de
espectáculos. É importante frisar que raramente essas alterações implicaram que os edifícios
deixassem de exercer a sua função como teatros. A restruturação variava, desde o ascrescento
de um muro, geralmente com pouco mais de 1 m de altura, à volta da orchestra, conforme se
assinala no «Teatro do Sul», em Jerash (Jordânia), e no de Bostra (Síria) 1410, até algo mais
substancial, envolvendo a remoção das filas de assentos situadas na parcela mais inferior, para
poder construir um podium muito mais alto. Em Éfeso, na Ásia Menor, o teatro helenístico
sofreu restruturações a fim de adquirir um traçado mais romano ao longo do século I e começo
do II d. C. Num período ulterior, as grades originais de ferro em redor da orchestra foram
substituídas por um podium elevando-se até 2, 40 m 1411. As fontes epigráficas desta cidade,
capital da província da Ásia, atestam, como atrás referimos, a existência de «companhias» de
gladiadores, incluindo uma possivelmente pertencente à abastada e importante família
efesiana dos Vedii1412. Em Xantus, na Lícia, o teatro do século II d. C. tornou-se objecto de
modificações não muito depois da sua construção, com as filas de lugares mais baixas retiradas
para erguer um muro com cerca de 2 m de altura 1413. Uma inscrição alude a uma tauromachia
em Xantos, embora esta pode não ter ocorrido necessariamente no teatro local.

Em Philippi, na Grécia setentrional, o teatro de estilo helénico passou por uma remodelação
secundária, introduzindo-se aberturas no muro do podium e em redor da orchestra1414. Em
Cyrene (Cyrenaica), o magnífico teatro grego localizado na extremidade ocidental do Santuário
de Apolo, sofreu transformações no século II, através da eliminação do palco e do
aprofundamento da pequena orchestra, com o propósito de formar a arena de um anfiteatro
de reduzidas dimensões. Na parte norte, do lado do mar, as bancadas assentavam em arcos. A
arena, por sua vez, escorava-se numa base em rocha sólida, razão pela qual foi necessário abrir
um túnel para permitir o movimento das jaulas com animais em torno da pista 1415. A datação
destas modificações afigura-se amiúde problemática. J.-C. Golvin 1416 sugeriu que elas remontam
ao século II. Com efeito, em regra, tais alterações tiveram lugar em finais do século II ou em
começos do III, ainda que o Teatro de Dionísio em Atenas se viu convertido em meados do
século I da nossa era. Muito provavelmente, o exemplo mais antigo é o teatro no Santuário de
Zeus, em Dodona, onde se removeram o palco e as quatro filas dos lugares sentados mais
inferiores para arranjar espaço para criar um podium com 2, 80 m de altura; por seu lado,
transformou-se a orchestra numa arena oval; dataram-se estas mutações do período
augustano1417.

1410 J.-C. Golvin, L’Amphithéâtre romain. Essai…, p. 246.

1411 Ibidem, p. 239.

1412 L. Robert, Les gladiateurs…, pp. 25-27, nº 202.

1413 J.-C. Golvin, L’Amphithéâtre romain. Essai…, p. 240; F. Sear, Roman Theatres…, p. 380

1414P. Collart «Le théâtre de Philippes»…., pp. 103-112; L. Robert, Les gladiateurs…, p. 86; J.-C. Golvin,
L’Amphithéâtre romain. Essai…, p. 237, n. 25; F. Sear, Roman Theatres…, p. 423.

1415 F. Sear, Roman Theatres…, pp. 291-292.

1416 Cf. L’Amphithéâtre romain. Essai…, pp. 238-247.

1417 F. Sear, Roman Theatres…, pp. 411-412.

474
***

Para complicar mais esta imagem das estruturas multifuncionais para entretenimento, o
edifício herodiano de Cesareia Marítima foi modificado algum tempo antes do século III d. C.,
com a adição de um muro curvo, que truncou a arena na extremidade sul, criando uma área
elíptica que os estudiosos confiantemente identificaram como um anfiteatro 1418. Não se trata
de um caso isolado: observamos o mesmofenómeno nos hipódromos de Jerash, Neapolis
(Nablus) e Scythopolis (Bethshe’an), bem como no stadion de Aphrodisias e no Estádio de
Herodes Ático, em Atenas1419. Normalmente entende-se a datação desta característica em
termos vagos, muitas vezes apenas como «tardia». K. Welch 1420 fixou um terminus ante quem
para a modificação operada em Aphrodisias (onde a sequência cronológica se percebe
bastante melhor do que noutros sítios), do final do século V ou começo do IV d. C. Localizaram-
se outros estádios que sofreram remodelações similares, nomeadamente em Éfeso e Perga, na
Turquia, e Messene, no Sul do Peloponeso grego, no último a situação acontecendo no século
IV. Aqui, a contradição digna de interesse é que se partiu da premissa de que o acrescento
destes muros elípticos indicaria um aumento da popularidade dos jogos gladiatórios, enquanto
as fontes epigráficas sugerem que o ponto álgido dos munera no Oriente se situou nos séculos
II e III, várias centúrias antes da inserção dessas arenas 1421. K. Welch1422 defendeu a ideia que
este género de modificações se terá destinado a albergar espectáculos com animais, mais do
que combates gladiatórios, e que a redução no tamanho resultaria de considerações de ordem
económica relacionadas com o leque de eventos apresentados e o número de participantes. Os
cortes na maçonaria do muro para formar a arena no interior do stadion de Aphrodisias
indiciam que nesta estrutura também haveria postes de madeira para suportar redes.

Até em Roma, nos derradeiros tempos do século III d. C., os jogos gladiatórios já não eram tão
comuns, em parte por causa das despesas que acarretavam, mas igualmente porque os
incentivos sócio-políticos não eram mais óbvios. Seja como for, os munera continuaram a
realizar-se na Urbs até ao século V1423, mas torna-se claro que a sua frequência declinou 1424. A
visão tradicional, segundo a qual os jogos gladiatórios foram proibidos por Constantino,
fundamenta-se, na realidade, numa má interpretação dos testemunhos coetâneos 1425. As
modificações assinaladas nas províncias orientais representam, talvez, a «manifestação física

1418 Z. Weiss, «Adopting a novelty: the Jews and the Roman Games in Palestine»…, pp. 34-35; J. Patrich, «Herod’s
Hippodrome-Stadium at Ceasarea…», pp. 61-65.

1419 A. A. Ostrasz, «The Hippodrome of Gerasa: a report of the excavations and research 1982-1987», Jerash
Archaeological Project 1984-1988 II (Paris, 1989), p. 73; Z. Weiss, «Adopting a novelty. The Jews…», pp. 34-41; K.
Welch, «The Stadium at Aphrodisias»…, pp. 565-569.

1420 «The Stadium at Aphrodisias…», p. 568.

1421 J.-C. Golvin, L’Amphithéâtre romain. Essai…, pp. 237-249.

1422 «The Stadium at Aphrodisias…», pp. 568-569.

1423 G. Ville, «Les jeux de gladiateurs dans l’empire Chrétien», Mélanges de l’École française de Rome: Antiquité,
72 (1960), pp. 317-318.

1424 R. F. Devoe, Christianity and the Roman Games, Filadélfia, Xlibris, 2002, pp. 140-141.

1425 P. Veyne, «Païens et chrétiens devant la gladiature», Mélanges de l’École française de Rome: Antiquité, 111
(1999), pp. 910-911.

475
das mudanças políticas, económicas e culturais na organização de uma gama de diferentes
tipos de exibições»1426.

As fontes documentais deixam entrever que os jogos de gladiadores se tornaram raros no


Oriente após meados-finais do século IV 1427, e não surgem mencionados a seguir ao reinado de
Arcádio1428. De facto, não se colhem quaisquer referências aos mesmos em Constantinopla 1429.
Não obstante as venationes continuarem a gozar de popularidade, os gastos também,
entraram numa espiral, não sendo mais possível os organizadores darem-se ao luxo de eliminar
grandes quantidades de animais de uma assentada. Captamos indicadores de uma mudança na
natureza destas exibições sob Anastásio, no fim do século V d. C. Embora as fontes sejam
dificilmente interpretáveis, parece não haver grandes dúvidas de que o imperador terá
interditado a condenação de indivíduos ad bestias, ou seja, dos sentenciados à pena capital
que se viam arrojados às feras 1430. As venationes ainda persistiram, tendo popularidade e sendo
organizadas frequentemente, mas acabaram por se ver oficialmente abolidas a partir do
Concílio de Trullo, em 692 1431. Em vez de espectáculo envolvendo a matança de animais em
larga escala, com as vantagens bem mais a favor dos venatores e dos bestiarii, a ênfase mudou,
ganhando os animais hipóteses mais equilibradas. Isto englobava não só as caçadas mas
também algumas actuações mais espectaculares, em que se registava um elevado risco para a
integridade física dos participantes humanos, fosse sofrendo ferimentos ou, mesmo, perdendo
a vida. Podemos contemplar as variegadas modalidades exibicionais que tiveram lugar nestas
arenas tardias em vários dípticos consulares de princípios do século VI 1432. Estes painéis
esculpidos em marfim representam os jogos patrocinados por um dignitário aquando da
ocupação do seu cargo. Mostram-se diversos tipos de espectáculos com animais, onde se
empregavam mecanismos concebidos para fazer os animais reagir violentamente, como, por
exemplo, a cochlea, um género de porta giratória que rodava sobre um eixo central, o ericius,
uma jaula feita de canas ou um boneco de palha (palea) que servia de chamariz para atrair as
feras. Estes dispositivos, como se vê noutra parte desta obra, foram descritos por Cassiodoro
(Variae, 5.42.6-10), no ambiente da Roma ostrogoda de começos do século VI, mas fica claro a
partir de dípticos como os produzidos para Aerobindo (Aerobindus), quando se tornou cônsul
em 506, e para Anastásio, em 517, que semelhantes exibições também se realizaram em
Constantinopla1433.

1426H. Dodge, «4. Amphitheatres in the Roman East»…, p. 41. Consulte-se, também, C. Roueché, Performers and
Partisans at Aphrodisias…, pp. 78-79.

1427 G. Ville, «Les jeux de gladiateurs dans l’empire Chrétien»…, p. 318.

1428 C. Roueché, Performers and Partisans at Aphrodisias…, p. 77.

1429 P. Veyne, «Païens et chrétiens devant la gladiature»…, p. 911.

1430 B. Schrodt, «Sports of the Byzantine Empire», Journal of Sports History, 8 (1981), p. 50; C. Rouché, Performers
and Partisans at Aphrodisias…, pp. 78-79.

1431 R. F. Devoe, Christianity and the Roman Games…, p. 142.

1432 G. Jennison, Animals for Show and Pleasure…, pp. 179-180; E. Dyggie, «Le théâtre mixte du Bas-Empire
d’après le theatre de Stobi et les diptyques consulaires», Revue Archéologique, 1 (1958), pp. 20-39.

1433 E. Dyggie, «Le théâtre mixte du Bas-Empire d’après le théãtre de Stobi et les diptyques consulaires»…pp. 36-
38.

476
***

Concluamos esta alínea. Apesar de não restarem dúvidas que os combates gladiatórios e
outros eventos na arena fizeram inequivocamente parte integrante da cultura do
entretenimento do Oriente, importa não generalizar o seu contexto, provisão e assiduidade. De
igual modo, não é possível nem aconselhável aceitar literalmente o teor das fontes epigráficas
e literárias. Os espectáculos gladiatórios, originariamente, organizaram-se na qualidade de
eventos especiais, mas depressa se viram ligados aos festivais gregos e, amiúde, associados a
competições atléticas. Isto ajuda a explicar a documentação epigráfica que situa as
performances gladiatórias nos estádios. Edificaram-se anfiteatros destinados aos munera, mas
em número bem menor do que no Norte de África e no Ocidente do império, e geralmente
com reduzida sofisticação arquitectónica. Ficou demonstrado por K. Welch 1434 que a
implantação de anfiteatros em Itália e nas províncias ocidentais, em finais da República e no
período inicial do Império esteve conectada com o treino do próprio exército e o
entretenimento dos veteranos, tratando-se, portanto, de uma ostentação do poder e da
cultura de Roma. Consequentemente, tais edifícios encontram-se frequentemente associados
às colónias e às capitais provinciais.

Os centros urbanos do Oriente romano já estavam bem providos de «amenidades» cívicas,


pelo que a estrutura do anfiteatro talvez não tenha causado o mesmo impacto arquitectónico
enquanto símbolo da Romanitas, como os construídos mais a oeste. A este respeito, a
localização dos anfiteatros orientais é um ponto digno de interesse: eles nem sempre se
situavam nos principais centros, como, por exemplo, o anfiteatro de Eleutheropolis. Paphos,
Corinto, Gortyna e Bostra eram capitais provinciais e dispunham de anfiteatros, mas nem todas
as colónias e capitais de província os tinham. Éfeso, a capital provincial da Ásia, não possui
nenhum, tanto quanto sabemos (quem sabe um dia ocorra uma descoberta). A ênfase parece
incidir mais nas próprias exibições (que estavam disseminadas), um cenário que permitia tanto
a provisão de recintos multifuncionais como a modificação das estruturas pré-existentes para
acolher tais espectáculos. Este facto conduziu diversos investigadores a formularem novos
modos de referência (muitas vezes sem sentido), numa tentativa de conciliar definições
arquitectónicas bem concretas com funções que não se coadunam com as mesmas, haja em
vista as designações «amphitheatrical hippo-stadium» 1435 e «multipurpose entertainment
building»1436.

O fenómeno das modificações, especialmente nos teatros para cenários da arena, é conhecido
no Ocidente, mas até à data só em alguns sítios específicos: por exemplo, vários dos teatros na
Sicília, como Taormina e Tindari 1437 e o de Cherchel, na Argélia 1438. A maneira como eles foram
alterados assume importância, já que a organização de combates gladiatórios exigia, de longe,

1434 Cf. «The Roman arena in late-Republican Italy: a new interpretation», Journal of Roman Archaeology, 7
(1994), pp. 59-79.

1435 J. Humphrey, «Amphitheatrical Hippo-Stadia»…, pp. 121-129.

1436 Y. Porath, «Herod’s ‘Amphitheatre’ at Caesarea: a Multipurpose Entertainment Building»…., pp. 1995.

1437R. J. A. Wilson, Sicily under the Roman Empire: the archaeology of a Roman province, 36 BC-AD 535, Warminster, Aris and
Phillips, 1990, pp. 58-60, 76-77; F. Sear, Roman Theatres…, pp. 192-194.

477
menos medidas de segurança para o público do que as venationes. Nestes edifícios
modificados, não se trata de um tipo de entretenimentos que suplantava outro, mas o de
tornar possível que a estrutura pudesse ser utilizada de diferentes maneiras e para toda uma
diversidade de exibições distintas, conforme a ocasião o exigisse. Para termos uma ideia até
que ponto estes antigos edifícios de entretenimentos serviam para múltiplas funções, basta
sublinhar o uso que hoje em dia se faz do teatro de Aspendus, onde têm lugar lutas na lama, e
do estádio de Éfeso, que acolhe combates entre camelos.

Assim, os elementos aqui reunidos chocam contra a visão tradicional de que os jogos
gladiatórios e outros eventos sangrentos não cativaram os habitantes do Oriente sob
dominação romana, e cabe não subestimar a amplitude da popularidade desses espectáculos.
Nas províncias orientais, os processos por detrás das alterações dos edifícios e da provisão de
anfiteatros projectados para os munera revestiram-se de certa complexidade. As tentativas
para se dentificarem os factores primordiais atribuiram fraco valor à variedade cultural desta
região, bem como as suas reacções e interacções em relação ao importante aspecto da cultura
romana representado pelos munera e pelas venationes. A presença de recintos para os jogos
não se pode entender simplesmente no contexto de uma demonstração de Romanitas. Em
começos do século III, Corinto dispunha de três edifícios para entretenimento – um anfiteatro,
um teatro e um odeion adaptados, todos reunindo condições para exibições na arena. Como
vimos, o estádio de Aphrodisias foi projectado desde o início para acomodar uma série de
eventos, desde combates de gladiadores e venationes, até às competições atléticas mais
tradicionais. No entanto, no século II, o teatro sofreu uma remodelação para funcionar como
cenário para outros tipos de espectáculos: reduziram-se as fiadas inferiores de assentos, a fim
de levantar um alto podium, e aumentou-se o palco em profundidade para se juntar à
cavea1439. Sob o estrado, havia um sistema de galerias e corredores para as jaulas dos animais
e, presumivelmente, também, para os gladiadores, com portas que davam acesso à orchestra.
Contudo, o edifício continuou a a servir para apresentar peças de teatro 1440.

1438 F. Sear, Roman Theatres…, pp. 271-272.

1439 K. T. Erim, «Recent Work at Aphrodisias 1986-1988», in C. Roueché e K. T. Erim (eds.), Aphrodisias Papers. Recent Work on
architecture and sculpture, JRA Supplementary Series 1, Ann Arbor/MI, 1990, pp. 9-35, esp. 32.

1440 C. Roueché, «Inscriptions and the later history of the theatre», in R. R. R. Smith e K. T. Erim (eds.), Aphrodisias Papers 2. The
theatre, a sculptor’s shop, the philosophers and coin types, JRS Supplementary Series 2, Ann Arbor/MI, 1991, pp. 99-107.

478
ANEXO.Breves apreciações sobre os anfiteatros na Península Ibérica

Apesar de já termos abordado três anfiteatros da Hispânia (Augusta Emerita, Corduba e


Italica), parece-nos importante discorrer um pouco sobre vários outros, incluindo os
construídos em Portugal. Será quase uma redundância afirmar que os anfiteatros, entre outros
edifícios genuinamente romanos, se implantaram nas cidades hispânicas de acordo com o
desenvolvimento alcançado pelas próprias comunidades, o que traduz uma clara manifestação
da aceitação dos gostos e modos de vida romanos (que se conjugou igualmente com antigas
práticas auctótones referentes aos combates singulares), ao mesmo tempo que tais estruturas
se converteram num dos símbolos mais expressivos da romanidade nos centros urbanos
ibéricos. Um considerável número de anfiteatros sobreviveram à voragem e usura do tempo e
ainda são visíveis as suas ruínas, ao passo que outros se volatilizaram, ao ver-se transformados,
ao longo de séculos, em pedreiras para edificações de épocas bem mais tardias. Na Hispânia,
os edifícios com esta tipologia que preservaram parcelas estruturais remontam a partir dos
Júlio-Cláudios (Emporiae/Ampúrias e Segobriga), correspondendo a maioria ao período Flávio
(Carthago Nova/Cartagena, Carmo/Carmona, Bobadela, Conimbriga, Capetra) e ao século II
(Tarraco, Italica, o último sob o reinado de Adriano). No entanto, tem-se discutido se os
anfiteatros de Carthago Nova e de Carmo não serão anteriores à altura que se lhes atribuiu,
eventualmente podendo pertencer ao tempo da construção de Augusta Emerita. No primeiro
edifício, exumeram-se restos do que aparenta ser um recinto de madeira pré-augustano 1441.

1441 R. Corzo Sánchez, «Notas sobre el Anfiteatro de Carmona y otros anfiteatros de la Bética», in AAVV, El
Anfiteatro en la Hispania Romana, Mérida, 1994, pp. 239-246.

479
Identificaram-se, a nível arqueológico, entre 17 e 19 anfiteatros (embora o número talvez
chegue aos 20), vários dos quais analisaremos oportunamente, mas também há o testemunho
de uma fonte epigráfica que alude a anfiteatros em Cástulo («…uma vez dados no anfiteatro,
por duas vezes, uns jogos gladiatórios com … dias de duração», CILA 6, 84), Los Villares (CIL II2
5,31) e em Siarum: «Marcus Quintus Rufus ofereceu como presente e dedicou o primeiro com
assentos construídos desde o solo com silhares» (CILA 4, 946). Este género de monumentos
está presente em toda a geografia peninsular. Inicialmente, supôs-se que o quadrante norte-
ocidental constituiria uma excepção pela falta de notícias que deles se tem, mas afigura-se
impossível que não se celebrassem os munera, visto que, como vimos, também havia outros
espaços em que os espectáculos se podiam desenrolar, como o forum e o circo, ou ainda
recintos provisórios montados em madeira. Importa igualmente ter em conta a importante
presença militar romana nesta zona, pelo que parece pouco plausível que localidades como
Pisoraca ou Asturica Augusta não usufruíssem dos seus ludi.

Assim, em Aquae Flaviae (Chaves, Portugal)1442, ainda que nada se tenha descoberto do
anfiteatro que outrora aí existiu, foi recuperou-se uma inscrição que nos informa sobre a
edição de um munus gladiatorum no século II: «Ao deus Marte vencedor por causa do bom
resultado do combate de gladiadores. Caius Cexaecus Fuscus, [dedicou] um ex-voto» (CIL II,
2473). Ademais, devido a todo um frenesim de escavações relacionadas com o sector
imobiliário, foram aparecendo nos últimos anos vestígios de anfiteatros nesta zona geográfica.

Em geral, consistem em edifícios situados extramuros (e.g. Emporiae, Segobriga, Conimbriga);


outros, por seu lado, encontram-se mais afastados do centro urbano ou, então, surgem junto
das principais vias de acesso às cidades, como sucede em relação aos anfiteatros da Bética,
alinhados ao longo da Via Augusta. Contudo, também os descobrimos construídos, haja em
vista Tarraco e Emporiae, arrimados ao tramo meridional da muralha ou ao pé da porta
principal da mesma, que dava naturalmente acesso ao centro urbano e transmitia, em
simultâneo, uma imagem de monumentalidade aos forasteiros. Além disso, erigiram-se outros
em lugares com a topografia adequada que facilitava as obras da infra-estrutura. No interior
das urbes, só deparamos com os exemplos de Augusta Emerita e Ebora. Curiosamente, onde
outrora havia alguns anfiteatros, estes acham-se actualmente sobrepostos por praças de
touros, como acontece em Carthago Nova e Astigi/Écija1443.

Para a sua construção, escolhia-se habitualmente um sítio no fundo de um vale ou com uma
colina servindo de apoio, para assim ajudar na tarefa edificatória e minorar os avultados gastos
que estas obras comportavam. Na Hispânia, ergueram-se anfiteatros através do recurso a um
sistema misto de «estrutura oca» e «estrutura maciça», de acordo com a tipologia referida
preconizada por J-C. Golvin. Assim, montaram-se as estruturas, apoiando parte das bancadas
na ladeira de uma pendente, completando-se o resto mediante uma componente artificial ou
«oca». Um dos casos mais ilustrativos é, precisamente, o anfiteatro de Italica, sobre o qual já
nos debruçámos: edificou-se uma parcela do mesmo entre duas colinas situadas a norte da
cidade, assentando as bancadas nas duas encostas opostas e encaixando o eixo longitudinal da
arena no fundo do vale intermédio. Em Tarraco, por seu turno, a cavea instalou-se
parcialmente na rocha de uma pendente natural e em conjuntos artificiais de alvenaria. Em
Segobriga, a arena e o sector norte da cavea escoraram-se no cerro em que se levantou a
cidade, ficando a outra metade sobre uma estrutura artificial composta por três muros
anelares unidos a outros transversais, formando desta forma grandes «caixotões» de

1442A este respeito, consulte-se A. Rodríguez Colmenero, Aquae Flaviae I. Fontes epigráficas da Gallaecia
meridional interior, Chaves, Câmara Municipal de Chaves 1997.

1443 A. García Bellido, «La Astigi (Écija) romana», Archivo Español de Arqueología, 25/86 (1952), pp. 392-399.

480
cimentação preenchidos até ao nível da arena; na parte superior, adoptou-se um sistema de
muros radiais e abóbadas repletas com cinza1444.

No anfiteatro de Emporiae, a maior parte das bancadas terá sido feita em madeira, possuindo
a arena uma forma elipsoidal de tendência muito alongada, limitada por um muro anelar, com
uma série de outros radiais que funcionaria como suporte para a cavea. Para assentar a
estrutura, criaram-se caboucos na rocha-base e, posteriormente, eles viram-se preenchidos
com pedra e cal para manter a cimentação. Nos sítios onde a rocha mãe estava a maior
profundidade, cimentaram-se os muros sobre elementos pré-existentes, através de uma base
de opus caementicium1445.

Por norma, a arena costumava possuir uma forma ovalada ou elíptica, que é o que mais
caracteriza o anfiteatro, mas, às vezes, devido à reduzida proporção entre comprimento e
largura, revela-se quase circular (conforme se observa em Segobriga), aspecto típico nos
edifícios de menor tamanho. Esta zona ficava rodeada pelo podium, como se constata em
Augusta Emerita ou Tarraco, com opus caementicium revestido de opus quadratum, ou, então,
aproveitando a rocha natural no traçado, como sucedeu em Segobriga.

O podium e o balteus tinham inscrições e ornamentação sobre estuque e pinturas, como as


que apareceram no anfiteatro de Augusta Emerita, incluindo representações de venationes, ou
também no monumento de Tarraco (Tarragona, Catalunha): aqui, por volta de começos do
século III d. C., a parede de estuque viu-se substituída por placas de mármore. No anfiteatro de
Carthago Nova encontraram-se igualmente vestígios de composições pictóricas. Na
proximidade do podium estava a tribuna para o editor que presidia aos jogos, de que se
preservaram alguns restos em Augusta Emerita. Em Segobriga, a seguir do podium, em sentido
ascendente, encontra-se um corredor de circulação coberto e que servia para unir as duas
entradas axiais somente pelo lado setentrional. Em Tarraco e Italica, esse tipo de corredor
apenas se via interrompido quando coincidia com as duas entradas axiais; ademais, em Italica,
acedia-se a tal galeria por meio de um conjunto de câmaras laterais que flanqueavam as
entradas para a arena. Em cada lado da arena havia duas portas monumentais: em Italica,
como vimos, sobreviveram ambas, sendo, voltamos a referir, um dos poucos edifícios cuja
fossa bestiaria resistiu à usura do tempo1446. O hypogeum também se atesta em Tarraco e
Augusta Emerita.

Quanto ao aspecto exterior destes anfiteatros, em Segobriga, por exemplo, o grosso do muro
exterior servia de fachada perimetral, reforçado por grandes pilastras de silhares que
robusteciam o paramento, oferecendo uma imagem de maior solidez; na fachada, observa-se,
através das arcadas sobrepostas enquadradas por meias colunas, as abóbadas radiais e a
estrutura interna. No topo do edifício, vê-se uma cornija com orifícios para montar o velum,
encimando as galerias superiores.

Relativamente a Carthago Nova, mostra, na sua frente sudeste e no extremo dos muros radiais
de sustentação das bancadas, os embasamentos de pilastras de silhares, determinando uma
galeria perimetral junto ao muro da fachada, que continuava no interior e facilitava a circulação

1444 Para mais informes sobre este anfiteatro, veja-se M. Almagro-Gorbea e J. M. Abascal, Segóbriga y su conjunto
arqueológico, Madrid, Real Academia de la Historia, 1999.

1445 E. Sanmartí et al., «El anfiteatro de Emporiae», in Bimilenario de l’anfiteatro romano…, 1995, pp. 119-135.

1446 Em Italica, a fossa bestiaria tinha 8 pilares, colocados aos pares, acedendo-se, a partir do exterior por meio de
dois longos corredores subterrâneos abobadados, que se encontram parcialmente sob as passagens axiais que
davam para a arena.

481
do público1447. Em Emporiae, as entradas principais situavam-se no eixo longitudinal da cavea e
comunicavam directamente com a arena. Além destes acessos, existia um terceiro localizado
num dos lados do eixo menor, o que também se verifica em Tarraco, onde esta abertura
estabelecia contacto directo entre a arena e a praia (o anfiteatro ocupava uma posição
privilegiada, com vista para o mar, na parte baixa da cidade) mediante uma cripta. Em
Carthago Nova, esta terceira entrada ficava no eixo menor, sob o qual havia duas cloacas
sobrepostas que ajudavam a evacuar a água do interior do edifício.

Nos anfiteatros ibéricos, à semelhança dos outros nas provincias do Ocidente imperial
romano, as bancadas estavam organizadas de acordo com um critério hierárquico, a cavea mais
simples correspondendo à de Segobriga, dividida apenas em dois sectores (e não três como
era usual), a ima e a summa cavea, com sete ou oito degraus ou filas, havendo corredores que
funcionavam como barreiras de separação entre uma e outra. A ima cavea, naturalmente,
reservava-se aos cidadãos com elevado estatuto social. Tarraco, em contrapartida, possuía três
níveis distintos (maeniana), separados por praecinctiones e balaustradas (balteus),
comportando, respectivamente, três, dez e onze filas de assentos, o mesmo sistema também
aplicado em Augusta Emerita.

Lamentavelmente, são poucos os anfiteatros que chegaram até nós mais ou menos
preservados, à excepção dos de Augusta Emerita, Italica e Tarraco. O último, implantado na
capital da Hispania Citerior Tarraconensis, construído por influente sacerdote do culto imperial
no século II numa área que antes havia sido um cemitério, possui dimensões menores (com
planta elíptica, medindo 109, 5 m de comprimento por 86 de largura, e a arena 61,6 x 38,5 m)
que os de Corduba ou Italica, acolhendo aproximadamente 15 000 espectadores. O edifício
ocupava uma posição privilegiada, com vista para o mar, na parte baixa da cidade 1448. Temos
conhecimento que o anfiteatro de Tarraco se monumentalizou em finais do século II d. C.
Durante o reinado do controverso Heliogábalo (var. Elagábalo), no século seguinte, efectuaram-
se diversas reformas no edifício. Para comemomorar estas obras, o podium viu-se coroado por
uma grande inscrição, de que se preservaram numerosos fragmentos. Em 21 de Janeiro de 259,
no contexto das perseguições contra os cristãos no tempo de Valeriano, o bispo da cidade,
Frutuoso e os seus dois diáconos foram queimados vivos na arena. Na realidade, a boa
conservação do anfiteatro deve-se, sobretudo, à utilização da zona central para a construção
de uma basílica martirial, em honra do referido bispo São Frutuoso e dos seus diáconos Santo
Augúrio e São Eulógio. Algumas das peças que foram recuperadas do anfiteatro conservam-se
no Museo Nacional Arqueológico de Tarragona.

Outro anfiteatro de uma capital provincial hispânica é o já mencionado de Carthago Nova, na


hodierna Cartagena. Calculou-se que teria capacidade para acomodar 10 000-11 000
espectadores, mas a estrutura jaz debaixo da actual praça de touros, que se apoia parcialmente
nas bancadas do antigo edifício, no alto do cerro da Concepción. Os principais restos materiais
correspondem à reforma, no período Flávio, do conjunto anterior que remontava a finais dos
tempos republicanos, possivelmente um dos mais vetustos anfiteatros da Península Ibérica.
Actualmente, as autoridades locais estão a implementar um programa para o tornar visitável.
Diversas das peças exumadas nas escavações encontram-se no Museo Arqueológico Municipal
de Cartagena.

1447J. Pérez Ballester et al., «El anfiteatro romano de Cartagena (1967-1992)», in Bimilenario del anfiteatro
romano…, pp. 91-118.

1448J. Ruíz de Arbulo, L’amfiteatre de Tarraco: els espectacles de Gladiators al món Romà, Tarragona, Fundació
Liber, 2006.

482
Dediquemos breves comentários aos anfiteatros de inferior envergadura e em variável estado
de conservação, que estão repartidos por diversos pontos da geografia ibérica.O mais
completo, e com razoável acessibilidade para a sua visita e compreensão, é o caso de
Segobriga (Saelices, Cuenca), no interior mesetenho. A sua edificação resultou da promoção e
monumentalização inauguradas por Augusto e continuadas pelos Júlio-Cláudios; o anfiteatro
foi construído, em parte, escavando-se na rocha da encosta setentrional do cerro de Cabeza del
Griego. Mede 75 m de comprimento e a arena 40 x 35 m, o que faz dele um recinto modesto,
mas, ainda assim, parece que tinha a capacidade máxima de acolher 5 500 espectadores 1449.
Mencionemos igualmente o edifício de Bobadela (Oliveira do Hospital): em 1983, levou-se a
cabo uma campanha arqueológica que confirmou «as previsões da possível existência de um
anfiteatro romano (…) não havendo lugar para dúvidas tanto a curvatura ovalóide [ou elíptica],
assim como a presença das estruturas quadrangulares (…) apontam para isso no seu
conjunto»1450. As prospecções terminaram em 1989 e trouxeram à luz do dia o conjunto das
ruínas do anfiteatro de Bobadela. É «… um anfiteatro simples (com uma arena com 49, 50 m de
eixo maior – N/S e 39, 50 de eixo menor O/E», consistindo num «…anfiteatro de estrutura
cheia, segundo a tabela classificativa de Golvin, tendo paralelismos arquitecturais com o de
Carmona»1451. O pavimento era em areão grosso e o podium atingiria cerca de 3 m de altura.
Este muro era marcado por duas entradas no seu eixo maior e composto com fiadas de blocos
de granito e rematadosd por uma cornija de duas peças. O enchimento das celas subterrâneas,
com aproximadamente de 15 m de largura, aproveitou, sempre que possível, o afloramento
rochoso e, sobre este assentavam as bancadas que, ao que tudo indica, seriam de madeira. Foi
edificado no derradeiro quartel do século I, deixando de ser utilizado antes da sua destruição
por um incêndio, no fim do século IV1452.

Vestígios materiais corroboram a existência de anfiteatros mas que ainda aguardam pelo
aprofundamento das suas investigações. Tais são os casos de Legio/León, Conimbriga ou Gades
(Cádiz). No primeiro caso, podemos observar várias parcelas detectadas na cripta da Rua
Cascalerías, anfiteatro que se estimou ter um tamanho de uns 3 000 m 2, com 15 níveis de
bancadas e uma capacidade para 5 000-6 000 espectadores. Quanto ao anfiteatro de
Conimbriga, a norte das ruínas situadas em Condeixa-a-Velha (não visitável porque o edifício se
encontra parcialmente coberto), verificou-se que comportava seis entradas, com umas
dimensões de 98 x 86 m. Finalmente, da estrutura para espectáculos de Gades (actual Cádiz),
só dispomos de dados indirectos extraídos de fontes literárias e de lápides de gladiadores
famosos, como a de um de origem grega, Iulianus, cognominado Germanus, que obteve 14
vitórias e faleceu com 30 anos, assim como mapas antigos que permitiram identificar a
localização do anfiteatro na chamada «Huerta del Hoyo».

Diversas prospecções arqueológicas identificaram a presença de outros anfiteatros,


principalmente através do recurso das fotografias aéreas, todos ainda por examinar no terreno,
haja em vista os exemplos béticos de Hispalis (Sevilha), Castulo (Linares), Ilipla (Niebla), Obulco
(Osuna), Astigi (Écija/Baena-Torreparedones).Pertencentes à Tarraconensis, encontram-se em
estudo o anfiteatro de Caesar Augusta, o possível de Calagurris, na rua semicircular de Santo

1449 Mais uma vez, remetemos o leitor para a obra de M. Almagro-Gorbea e J. M. Abascal, Segóbriga y su
conjunto arqueológico….

1450 Maria Clara Portas, «Escavações arqueológicas de 1983», Munda, 8 (1984), p. 44.

1451Helena Frade e Maria Clara Portas, «A Arquitectura do Anfiteatro Romano de Bobadela», in Bimilenario del
Anfiteatro Romano de Mérida. Colóquio Internacional: El Anfiteatro en la Hispania Romana, Mérida, 1992, p. 350.

1452 Helena Frade, «Os Fora de Bobadela (Oliveira do Hospital) e da Civitas de Cobelcorum (Figueira de Castelo
Rodrigo)», Ciudad y Foro en la Lusitania Romana/Revista Studia Lusitana, nº 4 (2010), p. 232.

483
Antón, vinculado à primitiva igreja dos Santos Mártires e, com menos notícias, o de Barcino.
Em relação ao anfiteatro de Bracara Augusta (Braga), no Noroeste galaico, quase nada se sabe
porque o mesmo jaz sob uma das zonas mais movimentadas da cidade, o que dificulta
sobremaneira a realização de escavações na área.

Igualmente na Hispânia, outros tantos anfiteatros se propuseram, com base em interpretações


aéreas amadoras ou notícias antigas, ainda por confirmar. São os de cidades como Lucus
Augusti (Lugo), o conquense de Ercavica (Cañaveruelas), os extremenhos de Nertobriga
(Fregenal de la Sierra) e Mirobriga (Santiago do Cacém), Illici (Elche), ou o de Iulia Ucubi (o
cordovês Espejo).

Que anfiteatros se podem verdadeiramente contemplar na antiga Hispânia? Qual, ao certo, é a


classificação em termos de tamanho e capacidade para albergar o público? Haverá ainda vários
por descobrir? Na Península Ibérica, existem cerca de uma vintena de anfiteatros
monumentais, todos construídos entre a segunda metade do século I a. C. e a primeira metade
do século II d. C. Poucos se mantiveram em funcionamento depois do século IV, a maioria
entrando num paulatino desuso desde o século anterior. Estes edifícios de espectáculos para o
ócio monumentalizaram-se nos centros urabnos, fosse pela sua importância estratégica, fosse
pela pujança económica dos seus patrocinadores locais, ou ainda mediante a conjunção de
ambos os factores. Porém, importa lembrar que a forma mais comunmente empregue seria a
construção de estruturas por meio de materiais perecíveis, como a madeira ou o adobe, pelo
que terá havido recintos destes, temporários e itinerantes, disseminados por muitos mais sítios
do que aqueles a que aludimos. De entre os anfiteatros que abordámos, somente 11 são
visitáveis, enquanto os restantes ainda aguardam por escavações mais sistemáticas;
salientemos também os mencionados na documentação antiga, mas cuja localização exacta
nos escapa, ou outros supostamente captados por fotografias aéreas, que carecem de
confirmação no terreno.

484
CAPÍTULO VIII: Familiae gladiatoriae e ludi. Recrutamento, treino e
existência quotidiana dos homens da arena, condições de vida e carreiras

Muito raramente terá havido profissionais independentes na gladiatura, que gerissem eles
próprios as suas carreiras. Voluntários ou forçados, os novos combatentes ingressavam numa
«empresa» especializada chamada familia, que os tomava a seu cargo e se ocupava de os
formar e de lhes arranjar contratos. É extremamente difícil datar a aparição das familiae
gladiatoria. No entanto, cabe lembrar, a este respeito, o costume bem romano (que remonta
aos primórdios da própria história de Roma) de homens influentes se rodearem de autênticos
«exércitos» pessoais, armando os seus parentes, clientes e escravos, cujo número
testemunhava o seu poder. O episódio dos 306 Fabii 1453 ilustra exemplarmente este facto: uma

1453 A única prova documentada, na história romana, de uma gens travando uma contenda à sua própria custa é a
derrota que sofreram os Fabii; de acordo com as fontes textuais, em 479 a. C., durante a primeira guerra da
República contra a cidade etrusca de Veios, os 306 Fabii estariam a guarnecer uma espécie de reduto junto do
Cremera, afluente do Tibre, acompanhados por cerca de 4 000-5 000 dependentes; em 477, foram apanhados numa
emboscada e nem um só Fabius sobreviveu. Embora esta história tenha sido objecto de embelezamento literário,
parece mais ou menos garantido que a mesma derivou de um facto autêntico, marcado pelo desastre dos Fabii.
Vários académicos consideraram que os Fabii foram provavelmente vencidos no contexto de uma guerra privada, o
que significaria um resquício tardio dos actos bélicos independentes e gentilícios. No entanto, inclinamo-nos para
outra corrente de opinião, segundo a qual este episódio ocorreu numa guerra «pública». Os Fabii, que nesse
momento histórico eram politicamente proeminentes, talvez ocupassem um lugar a partir do qual efectuariam
incursões contra o inimigo, mas tal posição não se conseguiria manter com apenas uma leva normal de homens
destinada a uma operação de curta-duração; neste caso, isto representaria uma inversão excepcional relativamente
à mais antiga forma de recrutamento gentilício. Resta outra alternativa: que os Fabii tenham sofrido pesadas baixas
numa batalha convencional, o que, aliás, corresponde à versão mais recuada que chegou até nós (Diodoro Sículo,
Bibliot. Historica, 11.53.6; Tito Lívio, Ab Urb. Cond. 2.48-50). A este respeito, consultem-se: J.-C. Richard,
«Historiographie et histoire: l’expédition des Fabii à la Cremère», Latomus 47 (1988), pp. 526-553; J. Rich, «Warfare
and the Army in Early Rome», in P. Erdkamp (ed.), A Companion to the Roman Army, Malden, MA/Oxford, Wiley
Blackwell, 2011, p. 16.

485
família que, segundo a tradição romana, decidiu suportar, sozinha, o peso de uma guerra
contra uma cidade vizinha, a etrusca Veios. Ora, captam-se afinidades entre tais milícias
familiares e a gladiatura. Talvez até o próprio juramento prestado pelos recrutas voluntários
para a arena constitua uma reminiscência de uma vetusta prática.

As familiae gladiatoriae nasceram certamente no período em que a gladiatura se


profissionalizou, ou seja, entre o fim do século III e meados do século II a. C. Nesta fase inicial,
as familiae seriam ainda pouco numerosas e com reduzidos efectivos. Basta, aliás, atentar para
os poucos pares de gladiadores apresentados nos primeiros munera romanos documentados.
Com o declínio progressivo da gladiatura religiosa confinada ao contexto dos funerais de
figuras ilustres, o número e os efectivos destas «escolas» aumentou durante o último século da
República1454. A concorrência tornou-se forte neste sector, já que entre os Romanos, muitos
dedicaram-se a uma actividade que era simultaneamente onerosa e lucrativa, além de agradar
muito ao povo. Os problemas sociais e políticos que atormentaram Roma na primeira metade
do século II a. C., fomentados por indivíduos poderosos e influentes, como Catilina, que não
hesitaram em fazer-se acompanhar de gladiadores, obrigaram o Senado a decretar o desterro
das «companhias» de gladiadores da capital para Cápua e para as cidades municipais mais
importantes (Dião Cássio, 37.54).

A primeira familia que se atesta a nível literário é a de Cn. Aurelius Scaurus, em finais do
século II a.C. (Valério Máximo, Factorum et Dictorum Memorabilium, II.2.3.2): não sabemos se
o ludus desta familia se localizava em Cápua ou Roma; no entanto, a julgar pelas notícias mais
antigas sobre este tipo de casernas, que indicam a proeminência da cidade campaniana, a
primeira eventualidade parece mais provável 1455. Mais tarde, Júlio César foi dos homens mais
empreendedores e metódicos na organização da sua familia, que compreendia gladiadores e
venatores. Com os olhos postos na sua edilidade, o seu partidário Clódio, um notório agitador,
formou também uma familia no começo do ano 57 a. C., tomada de empréstimo ao seu irmão,
que nessa altura estava a preparar um munus (Cícero, Pro Sestio, 35; Díon Cássio, 39.7.2)1456.
Citemos igualmente os gladiadores de Metellus ou os de Gabinius, mencionados por Cícero (Ad
Atticus, 2.1, 4).

Como assinalámos no capítulo II, para designar os homens que integravam estes grupos,
tornou-se usual acrescentar ao cognomen dos seus proprietários, ou ao nome da província em
que se localizava o ludus, o sufixo –anus, fenómeno que múltiplas inscrições testemunham: em
30 epitáfios observa-se a adscrição do defunto a uma escola gladiatória dessa maneira
(Cethegianus, Gallicanus, Hispanianus, Iulianus, Neronianus, Paullianus, Serenianus,
Trebonianus) 1457. Alternativamente gravava-se nas inscrições o nome do patrão ou do ludus no
genitivo (Caesaris, Germanici, Imperatoris, ludi Magni, Arianillae, C. et M. Versulatium, C.
Pompeii Martialis, Valerii, Proculi)1458.

1454 F. Gilbert, Devenir Gladiateur …., p. 5.

1455 F. Coarelli, «Ludus Gladiatorius», in A. La Regina (ed.), Sangue e Arena…, p. 147.

1456 Realcemos que os proprietários de ludi apontados para a época republicana foram, quase todos, personagens
pertencentes à ordem senatorial: Aurelii, Scaurii, Aemili Lepidii ou Cornelii Lentuli.

1457 P. Sabbatini Tumolesi, Epigrafia anfiteatrale dell’Occidente Romano I. Roma (= EAOR I), Roma, 1988, nos. 68,
78 e87; M. Buonocore, Epigrafia anfiteatrale dell’Occidente Romano II. Regiones Italiae VI-XI (=EAOR III) Roma, 1992,
nº. 71; C. Vismara e M. L. Caldelli, Epigrafia Anfiteatrale dell’Occidente Romano V. Alpes Maritimae, Gallia
Narbonensis, Tres Galliae, Germaniae, Britannia (=EAOR V), Roma, 2000, nos. 20 e 23; P. Piernavieja, Corpus de las
Inscripciones Deportivas de la España Romana (=CIDER), Madrid, 1977, nº. 56; CIL II 2 7, 355, 358, 359, 361, 362, 363,
365.

486
Os mais conhecidos foram indubitavelmente os gladiadores das «escolas» imperiais: os Iuliani
pertenceram a Júlio César 1459 e, depois, a Augusto 1460 (por ser filho adoptivo do primeiro), os
Neroniani a Nero 1461. Entre os dois últimos reinados, verifica-se que Tibério pouco ou nada fez
nesta matéria, dado que não nutria interesse pela gladiatura. O facto é mais surpreendente em
relação a Calígula que, embora grande apreciador dos munera, contentou-se em possuir um
pequeno ludus para seu próprio prazer, não dando o seu nome a uma família específica. O
mesmo aconteceu com Cláudio1462, seu sucessor, também um amator da gladiatura. Os
Neroniani da casa pessoal de Nero, que não sobreviveram à morte do imperador 1463,
coexistiram por algum tempo com os Iuliani, denominação que acabou por ser aplicável a
todos os gladiadores imperiais e aos empregados da família. Mas não tardou que viessem a
surgir designações diferentes, no genitivo: Augusti ou Caesaris e, no século II da nossa era,
Imperatoris. Porém, estes designativos só se utilizavam para os escravos, não para os auctorati.
Por fim, no século III, os gladiadores imperiais passaram a receber o termo genérico de Fiscalis.

A principal razão que levaria um homem a criar uma familia gladiatoria (qualificada também
como familia lanistica por Petrónio) relacionava-se com a possibilidade de ele próprio
organizar os seus próprios espectáculos e com estes obter lucro. Podemos comparar estes
indivíduos a certas figuras mediáticas do mundo actual que se comprazem em ter e treinar
cavalos para corridas e deles extrair proveito. Os proprietários dos ludi não desperdiçavam as
oportunidades para alugar os seus gladiadores a editores, a fim de assim rentabilizarem o seu
negócio. Esta vertente puramente mercantil, por vezes sem motivações políticas, animou, ao
que parece, alguns romanos, como Ático, e igualmente Cícero, seu amigo e correspondente
epistolar (Ad Atticus, 4.4a, 2; 8.2).

1458 EAOR I, nos. 64-66; 79, 83, 85, 86 e 100; G.L. Gregori, Epigrafia anfiteatrale dell’Occidente Romano II.
Regiones Italiae VI-XI (=EAOR III), Roma, 1989 nos. 19 e 49; EAOR III, nº 69; EAOR V, nos. 9, 11, 28 e 65; CIDER, nº 54.

1459 Júlio César foi proprietário de vários ludi e familiae gladiatoriae em Cápua, facto atestado por numerosos
documentos: G. Ville, La gladiature, p. 277, 296. As informações mais extensas são relativas a 49 a. C., altura em que
Cícero recorda que Pompeio dispersou um grande número de gladiadores (5 000) que César possuía em Cápua, os
quais estavam concentrados num ludus que teria enormes dimensões (Ad Atticus, 7.2.7, Janeiro de 49 a. C.). Depois
de Pompeio abandonar Itália, César restabeleceu a situação precedente. Além disso, sabe-se que o conquistador das
Gálias, antes de eclodir a guerra contra Pompeio, estava a construir um outro ludus em Ravena, do qual mandou
desenhar uma planta (Suetónio, Júlio César, 31.1; Plutarco, Vida de César). Estrabão (5.1.7) evoca um ludus em
Ravena, cujos proprietários sucessivos (definidos como hegemones) não poderiam ser outros para além de Júlio
César e Augusto.

1460 Pseudo-Cícero, Ad Octavianus, 9. Horácio (Ars poetica, 32) afirma que, sob Augusto, havia em Roma um
Ludus Aemilius, que, de acordo com os comentadores do poeta, parece ter sido o triúnviro Marcus Aemilius Lepidus
ou o seu primogénito homónimo; aventou-se também a hipótese de o construtor desse ludus corresponder a
Marcus Aemilius Scaurus, que, durante a sua edilidade curul, em 58 a. C., organizou memoráveis venationes e
munera. Não sabemos exão certo onde se localizava a caserna, mas talvez ficasse no Campo de Marte, perto do
anfiteatro de Estatílio Tauro; provavelmente perdeu a sua importãncia quando deflagrou grande incêndio em Roma
no ano 64 d.C. em Roma, altura em que o edifício de Estatílio também se viu consumido pelas chamas. Por outro
lado, temos notícia de que no século IV o ludus se converteu num recinto de banhos privado (balneum), passando a
chamar-se balineum Polycleti (Pompónio Porfírio, Comentarii in Q. Horatium Flaccum: Aemili Laepidi ludus
gladiatorius fuit, quod nunc Polycleti balineum est).

1461Do tempo augustano ao fim do reinado de Cláudio, os gladiadores iuliani foram os que mais se destacaram e,
muito possivelmente, os melhores, utilizados nos munera de grande categoria: G. Ville, La gladiature, p. 277-278.

1462No seu reinado, atesta-se um ludi procurator: Tácito, Anais, 11.35.8. No tempo de Cláudio ou no de Nero,
colhem-se referências a um Ludus Matutinus (CIL IV 10171-10172), destinado, naturalmente, à formação de
venatores e bestiarii, correspondendo ao ludus bestiariorum citado por Séneca (Ad Lucilius, 8.70.20; 22). Mais tarde,
Domiciano adoptou o mesmo nome para uma das casernas que mandou erigir na área a leste do Anfiteatro Flávio

1463 G. Ville, La gladiature…, p. 279.

487
Mas, por trás de um homem de negócios podia ocultar-se um político ambicioso, movido pelo
sentimento de segurança e de poder, bem como pela intimidação que lhe conferia essa
«guarda» pronta a actuar. Catilina ou César souberam tirar partido deste facto, ainda que com
êxito desigual, obrigando o Senado a reagir para limitar o perigo potencial que representavam
tais familiae nas mãos de arrivistas sem escrúpulos. Já aqui evocámos a decisão do Senado de
banir as «companhias» gladiatórias para fora de Roma, depois da conjura maquinada por
Catilina, em 63 a. C. Quanto a Júlio César, o seu caso afigura-se sintomático sobre este
problema:

«Ele ofereceu jogos e venationes, tanto com o seu colega [edil], como em seu próprio nome; isto fez
com que a popularidade apenas se lhe associasse quanto às despesas feitas em comum. … o seu colega,
Marco Bíbulo [Marcus Bibullus], dizia, comparando-se a Pólux, “que como havia o costume de se chamar
só com o nome de Cástor o templo erigido no Forum dos dois irmãos, chamava-se magnificência de
César às prodigalidades de César e Bíbulo”. César acrescentou a tais prodigalidades combates de
gladiadores; mas houve menos do que os que ele queria, já que mandara vir de toda a parte uma tão
grande multidão que os seus inimigos, aterrados, fizeram restringir, expressamente por uma lei, o
número de gladiadores que doravante poderiam entrar em Roma» (Suetónio, Divus Iulius, 10).

A quantidade de ocorrências respeitantes a gladiadores nos escritos de Cícero é


impressionante, mas em larga medida o vocábulo foi empregue em sentido pejorativo, quase
sempre no contexto de problemas relacionados com a ordem pública. Nesta República
findante, era, com efeito, moeda corrente assistir-se a confrontos nas ruas ou no Forum,
opondo bandos rivais a soldo dos políticos. Um dos casos mais tristemente célebres foi o das
familiae de duas facções, a violenta querela entre Clódio e Milão, aspecto que desenvolvemos
no capítulo II.

***

Prisioneiros de guerra, escravos adquiridos em mercados ou retirados directamente os


ergástulos, homens livres e voluntários, cidadãos ou peregrini, mas também verdadeiros
gladiadores, comprados, alugados ou herdados, obtidos junto de magistrados que já haviam
cumprido as suas obrigações enquanto munerarii – os canais de aprovisionamento para
preencher uma escola eram numerosos. Ademais, tudo era questão de dinheiro. O pequeno
proprietário ocupava-se geralmente de todas as tarefas sozinho, o que limitava as suas
possibilidades. No outro extremo da escala, os lanistae mais poderosos e abastados
empregavam agentes recrutadores que percorriam as cidades e os campos, sobretudo na
Campânia, região tradicionalmente associada à gladiatura e por muitos até considerada como
o seu berço, onde terão aparecido os primeiros ludi, que gozaram sempre de elevada
reputação. Esses agentes estavam também atentos à chegada de novas fornadas de escravos,
antes mesmo de estes serem conduzidos aos mercados, aproveitando para observar os
candidatos que mereciam ser leiloados.

A qualidade dos «pensionistas» dava reputação ao ludus, daí que conviesse ter olhos
habituados e selectivos. Por vezes, era o próprio munerarius que se deslocava, não deixando a
algum dos seus auxiliares a tarefa de negociar a compra da sua família. O negócio acarretava
consequências, já que do sucesso do espectáculo oferecido ao público dependia,
frequentemente, o futuro da carreira política do interessado. Assim se percebe que o último
receasse a eventual negligência dos seus subordinados em tal processo. Nada se devia deixar

488
ao acaso. Apuleio fala de um editor de Corinto que viajou até Tessália para arranjar a sua
«companhia» de gladiadores (X, 18, 1-2).

Nas cidades municipais mais pequenas, os magistrados e os editores privados não tinham, em
geral, meios suficientes para adquirirem as suas próprias familiae, pelo que recorriam ao
aluguer de gladiadores, uma solução que implicava menores despesas. Quanto aos sacerdotes
do culto imperial, que estavam incumbidos de apresentar regularmente espectáculos, vendiam
a sua familia, sempre que o seu cargo passasse para outro oficiante.

A importância da familia gladiatoria variava conforme a fortuna e as ambições do seu


proprietário. A familia em que esteve Espártaco, pertencente a Lentulo Batiato, compreendia
uns 200 membros, o que representava indubitavelmente um número alto no começo do século
I a. C. Mas este homem era apenas um lanista provincial, que não possuía a envergadura nem
as apetências de um Júlio César. Este, efectivamente, reuniu cerca de 5 000 combatentes no
seu ludus em Cápua, entre os quais havia muitos venatores (Cícero, Ad Atticus, 7.14.2). Apesar
de tudo, ele evitava, sempre que possível, perder os bons elementos, não hesitando em
subtraí-los à força» da arena, quando se encontrassem em apuros (Suetónio, Divus Iul. 26).
Note-se que César, então editor de um munus fúnebre oferecido em memória da sua filha Júlia
(que já havia morrido anos atrás), antecipou o julgamento do público, ao ter uma «claque»
que, no momento mais oportuno, gritava e gesticulava, com o intento de manipular a opinião
dos espectadores em relação ao destino do combatente vencido. Parece-nos assaz improvável,
ao contrário do que certos estudiosos sustentam, que César ordenasse aos seus «esbirros» que
raptassem os seus campeões no meio da pista, sob o olhar da multidão, já que desta forma
corria o sério risco de se tornar muito impopular, o que naturalmente não desejava. De
qualquer modo, se César era o editor, só ele tinha o direito de vida e de morte sobre os
gladiadores, o que dispensava o emprego da força.

Era indiscutivelmente nas casernas imperiais que se albergavam as maiores familiae. Tácito
conta-nos que o imperador Otão, durante a guerra civil de 69 d. C., levou consigo de Roma
2000 gladiadores (Hist. 2.11.5). Em 248, Filipe-o-Árabe o mesmo fez aquando dos jogos
seculares (História Augusta/SHA, Gord Tres, 33.1). Quando Díon Cássio escreveu que, sob
Trajano, se defrontaram 10 000 gladiadores por ocasião do regresso triunfal do imperador da
Dácia, tal cifra não englobava certamente os efectivos apenas das escolas imperiais da capital:
com efeito, o Optimo Princeps terá convocado para se deslocarem até à Urbs um considerável
número de combatentes procedentes dos ludi imperiales das diferentes províncias e, até, de
escolas privadas (68.15).

Se os efectivos de um ludus fossem numerosos, podiam subdividir-se em vários grupos


(laciniae), mais fáceis de gerir. De uma maneira geral, um lanista consciencioso previa sempre
uma margem de manobra, uma espécie de «fundo de maneio», uma vez que num grupo nem
todos os indivíduos estariam prontos ao mesmo tempo ou em condições de participar num
munus. De facto, alguns podiam estar feridos, doentes ou terem sido mortos no espectáculo
anterior, pelo que havia que os substituir. Além disso, o empresário podia também propor
gladiadores substitutos ao editor com quem negociasse, prevendo que algum dos combatentes
se fosse abaixo antes do tempo ou um duelo que terminasse demasiado rápido, o que
comprometia a duração prevista para o programa do munus.

O lanista

489
Se, por um lado, conhecemos relativamente bem os gladiadores e os diferentes casos de
editores de espectáculos, por outro, os lanistae deixaram escassos testemunhos e suscitaram
pouco interesse à maioria dos historiadores. Contudo, é impossível não reconhecer a
importância destes indivíduos, que constituíram actores importantes na história da gladiatura
e, mesmo que a sua condição de intermediários não pareça à primeira vista indispensável para
o funcionamento da «máquina», cabe salientar que a sua profissão depressa se a estruturou,
tornando-se símbolo da sociedade do ócio e do entretenimento, muitas vezes evocada nos
contos populares. O lanista, com efeito, era o proprietário de uma escola de gladiadores –
alugava, comprava ou recrutava temporariamente combatentes, aprendizes ou já de créditos
firmados, para os treinar e lançar de seguida na arena, estabelecendo um contrato prévio com
um munerarius desejoso de captar as boas graças dos seus concidadãos. Importa distinguir
bem os dois personagens, cujas funções, embora diferentes, eram complementares, se bem
que certos indivíduos exercessem ambas. O munerarius era aquele que financiava e organizava
o munus, e o lanista um empresário contratado e, ao mesmo tempo, por assim dizer, um
«agente artístico». Os Romanos, principalmente as camadas dirigentes da elite, viam-no como
um vendedor de «carne fresca», se possível bem musculada. Daí a designação de lanista, cuja
etimologia (anteriormente referida) não se afigura clara.

Como vimos, Isidoro de Sevilha (Origines, 10.247) afirma que o vocábulo significa «algoz» em
língua etrusca. Em todo o caso, os Romanos associaram a palavra, com ou sem razão, à de
lanius, isto é, «carniceiro/talhante» ou mesmo «verdugo», que deriva do verbo lanio,
«despedaçar». A actividade do lanista tinha, pois, uma forte conotação negativa, partilhando o
mesmo opróbrio que recaía sobre o proxeneta (leno). Os lanistae encontravam-se maculados
pela mesma infâmia que atingia os seus gladiadores e, por extensão, estavam proibidos de se
tornarem decuriões, o que se estipulou na lex Iulia municipalis.

É claro que esta imagem degradante incomodava alguns dos interessados, os quais talvez se
considerassem como comerciantes honestos e providos de dignidade. A este respeito, reveste-
se de interesse uma estela conservada no Musée d’Arles antique (fig. ): o dedicador, um lanista
chamado Marcus Iulius Olympus, preferiu apresentar-se por meio de uma fórmula mais
lisonjeira e elegante, que não carece de tradução: negotiator familiae gladiatoriae. Como os
lanistae buscavam também suscitar vocações entre os ingenui, ou seja, jovens nascidos livres, a
opinião pública acusava-os de subtraírem ao exército os homens mais aptos a servirem como
soldados (Séneca-o-Pai, Controv. 5.33).

Antes de se definirem os contornos desta actividade, ainda não estavam em causa gladiadores,
escolas ou lanistae. Os primeiros combatentes, ilustres e voluntários, foram substituídos por
escravos ou prisioneiros de guerra destinados a morrer. Para tal intento, eram comprados por
um particular que se tornava, por definição, no seu amo. Este alojava-os e alimentava-os e,
talvez, os pusesse em condições para se baterem. No entanto, é impossível dizer se esta
preparação se equipararia a uma espécie de treino militar. Neste momento histórico, recorde-
se, o objectivo não seria o de fazer desses homens vedetas, representando apenas oferendas
mortais apresentadas aos manes de um defunto. Gradualmente, o público foi ganhando gosto
ao assistir a tais exibições violentas; então, alguns espíritos visionários e mais oportunistas não
tardaram a imaginar os benefícios que se poderiam obter de um comércio centrado nos
bustuarii.

Desta maneira apareceram os primeiros ludi, e, com estes, a profissão de lanista. Ela
englobava indivíduos muito diferentes: antes de tudo, havia gente rica que, por interesse no
lucro mas também por diversão, adquiriam e treinavam alguns gladiadores por prazer pessoal,
se bem que os pudessem alugar ou vender para espectáculos. Para eles, era apenas uma
actividade entre várias outras: possuíam gladiadores assim como cozinheiros, portadores de
liteiras, obreiros, cabeças de gado ou embarcações mercantis. Contudo, certas «cabeças de

490
gado» eram muito importantes e constituíam apanágio de homens assaz afortunados, como
Júlio César, para citarmos o caso mais conhecido. Estes homens pertenciam frequentemente às
classes dirigentes da sociedade romana que, por causa do seu estatuto, ficavam no topo do
«edifício», e não sofriam da infâmia associada ao ofício de lanista. Mas, ainda assim, tais
membros da elite precisavam de ter o cuidado de evitar intervir directamente nesse negócio,
pelo que, para a gestão quotidiana do mesmo, utilizavam os serviços de subordinados
competentes. O mesmo sucederia mais tarde com os próprios imperadores, que dispunham de
procuradores para os representar e substituir, bem como talvez igualmente de lanistae Augusti.

Além de lanistae (ou exercerem esta actividade, apesar de não ostentarem tal nome), vários
grandes proprietários de familiae gladiatoriae podiam, ocasionalmente, actuar na qualidade de
munerarii, oferecendo em seu nome espectáculos com os seus próprios homens: munera
fúnebres em honra de um parente desaparecido, ou munera apresentados no âmbito das
magistraturas, isto se ocupassem algum cargo público.

No começo do século I antes da nossa era, num período em que a profissão já se encontrava
bem organizada, ainda que em determinados aspectos persistisse uma gladiatura com rasgos
arcaicos, a figura de Lêntulo Batiato oferece, para um espaço temporal pouco documentado, o
perfil de um lanista que não pertenceria necessariamente a uma categoria social superior mas,
apesar de tudo, podia gozar de poder e recursos. Situado na Campânia, o seu ludus tinha certa
importância, albergando várias centenas de gladiadores. Mesmo neste nível, Batiato não
estaria em pé de igualdade com os personagens procedentes da nobreza. Como sempre, na
sociedade romana a condição social implicava uma série de cambiantes, e a maneira como se
encaravam estas duas categorias de empresários não podia ser, de modo algum, igual.

E quanto aos outros? Afora os grandes e médios «senhores da gladiatura», havia, com efeito,
uma multidão de pequenos lanistae: para estes, os riscos financeiros revelavam-se bem
maiores, e se a ascensão poderia ser longa e árdua, a queda afigurar-se-ia rápida e brutal. A
gestão de um ludus era onerosa, principalmente se o lanista só contasse com as receitas
incertas obtidas mediante alguns combates por ano; a despeito de várias contrariedades, ele
tinha de alimentar diariamente os seus «pensionistas» e de lidar com as numerosas despesas
que acarretava o funcionamento da sua «empresa». É. Teyssier estimou, por exemplo, que a
subsistência de uma escola com umas 60 pessoas, incluindo não só gladiadores mas também
não combatentes, podia custar uns 20 000 sestércios por ano 1464.

A tarefa não era certamente fácil, uma vez que a concorrência veio a desenvolver-se bastante
entre o século I a. C. e o I da nossa era. Entrevemos tal fenómeno graças à epigrafia, que
mostra um elevado número de proprietários de familiae em Pompeia. De entre os que
possuíam menores recursos aparecem indivíduos como Arrius, Avilius, Donatus, Offilius, Piso,
Pompeius ou Rabirius. Esporadicamente, vários associados eram a proprietários dos mesmos
combatentes da arena (CIG 2511). Debrucemo-nos agora sobre os principais lanistae dessa
cidade campaniana: ao examinarem-se os edicta pompeianos, identificam-se sobretudo três.
Verdade se diga que nem sempre é fácil termos a certeza de estarmos diante de nomes de
lanistae nestas inscrições, visto que o termo jamais se vê empregue 1465.

Ainda assim, o agente com mais fama em Pompeia parece ter sido Numerius Festinus
Ampliatus, que esteve activo entre os reinados de Cláudio e de Nero. O seu nome surge em
dois edicta e numa inscrição pintada num túmulo, na necrópole situada junto da Porta
Herculana, o qual, como anteriormente dissemos, correspondeu à última morada de A.

1464 La mort en face…, p. 439.

1465 L. Jacobelli, Gladiators at Pompeii…, pp. 45-47.

491
Umbricius Scaurus. Recentemente, a tumba foi atribuída a outro dono, o próprio Ampliatus,
mas parece-nos mais plausível a teoria anterior. O anúncio (CIL IV1183) achado no muro
exterior da basílica declara que a família gladiatória de Numerius Festinus Ampliatus voltaria a
actuar nos dias 15 e 16 de Maio. Depreende-se que, algum tempo antes, terá havido um
espectáculo que cativara tanto o público que este terá pedido um encore. O outro edictum (CIL
IV 1184), pintado numa parede do ludus local, anuncia que o grupo de combatentes de
Ampliatus iria participar num munus em Formia: para além de informar os pompeianos que
pudessem querer viajar para assistirem à actuação dos seus gladiadores favoritos, esta
inscrição funcionava igualmente como slogan publicitário da familia, ao evidenciar que já era
conhecida noutra cidade da região.

Durante o principado de Nero, captamos uma referência a outro lanista, M. Mesonius, através
de um grafito (CIL IV 2508) que reproduz o programa de um espectáculo gladiatório (um
libellus, panfleto que se distribuía aos espectadores pouco antes de entrarem no anfiteatro):
neste testemunho, vemos o nome do lanista, a data em que se realizaria o munus, bem como
uma lista dos pares (paria) de gladiadores e os resultados das pugnas. Ressalta ainda outro
pormenor digno de interesse – neste espectáculo estariam presentes gladiadores com elevada
reputação, pertencentes ao imperador, os Iuliani e os Neroniani. A participação destes homens
atesta a capacidade de Mesonius, a par da gestão da sua familia gladiatoria, de conseguir obter
outros combatentes, com mais prestígio, o que decerto aumentava a qualidade dos munera.

Por último, citemos o caso do lanista Pomponius Faustinus, que é evocado num grafito inciso
numa das colunas do ludus de Pompeia, datando entre 62 e 79 d. C. Os seus gladiadores
apareciam designados pela expressão colectiva de familia gladiatória Pomponi Faustini (CIL IV
2476). O ofício de um lanista implicava uma série de contrariedades e incertezas. O número de
gladiadores que participava em geral em cada munus fora de Roma – habitualmente 20 pares,
isto é 40 gladiadores – requeria um grande esforço no recrutamento dos combatentes. Além
disso, um lanista que almejasse ganhar notoriedade e dinheiro tinha forçosamente de adquirir
gladiadores talentosos e afamados, o que exigia um vivo sentido empresarial, assim como fazer
investimentos que lhe proporcionassem lucro. Os lanistae estavam sempre em busca de novos
talentos que substituíssem os gladiadores que tinham morrido ou deixado de lutar na arena.
Eles também precisavam de entabular contactos com os magistrados e as prisões, quando
queriam ter acesso a indivíduos condenados à morte. Toda esta intensa actividade
desenrolava-se numa espécie de «agência», pelo menos nas cidades do Sul da península
itálica: a este respeito, Rosaria Angelone sugeriu que ela talvez se localizasse na Regio VII.5.15
de Pompeia, mas, lamentavelmente, ela viu-se completamente destruída pelos
bombardeamentos anglo-americanos durante a Segunda Guerra Mundial.

***

Com as leis de Augusto e a crescente (e esmagadora) proeminência das escolas imperiais, o


fosso só veio a alargar-se, tendo os pequenos lanistae que se esforçar imenso para
encontrarem o seu lugar no sistema e conseguir persistir. Alguns sentiram a tentação de
poupar em vários aspectos, começando por reduzir o número dos seus «pensionistas», mas,
por outro lado, seria uma péssima ideia economizar nos custos com o treino dos homens, já
que a sua maior esperança radicava precisamente na descoberta de um campeão que
proporcionasse muito numerário e constituísse objecto de grande procura. No entanto, certos
lanistae optaram por fazê-lo ou nem sequer hesitaram em recrutar indivíduos desprovidos de
qualidades para se tornarem bons gladiadores.

492
Depois, era a «caça» aos contratos, talvez baixando os preços. Apresentavam-se exibições em
residências particulares, organizavam-se pequenos espectáculos nas províncias, para os quais
havia que realizar digressões. Estes lanistae ambulantes eram designados como circunforanei
(literalmente, «à volta do forum»). Nenhum destes empresários estava ao abrigo de
vicissitudes causadas por circunstâncias excepcionais. Assim, sob o principado de Augusto, uma
má conjuntura económica provocou a fome em Roma, numa altura em que o nível de vida da
plebe caiu em razão do aumento de certos impostos e de diminuição das distribuições de
víveres e de dinheiro.

Com o objectivo de limitar a quantidade de bocas julgadas inúteis, Augusto decidiu «expulsar
de Roma os escravos que ainda estavam à venda e as escolas de gladiadores, ao mesmo tempo
que os estrangeiros, salvo os médicos e preceptores» (Suetónio, Div. Aug., 42; Díon Cássio, Hist.
rom. 55.26). Não restam dúvidas que diversos lanistae não conseguiram sobreviver face a esta
medida; no entanto, ela não afectou a familia imperial, que doravante ficou em posição de
nítida vantagem em relação aos grupos de gladiadores privados. Posto isto, se, por um lado,
alguns lanistae conheceram o êxito nos seus negócios, por outro, quantos não terão
experimentado o fracasso, terminando os seus dias na miséria.

Na Hispânia, com base nas fontes epigráficas, a maioria dos gladiadores parece ter recebido a
sua formação nos ludi imperiales, tanto no ludus de Cápua (Iulianus, Neronianus)1466 como na
«escola» provincial (Hispanus, Gallicianus). Em contrapartida, na Itália e nas Gálias abundaram
familiae privadas 1467. A este respeito, salientemos que nem só homens eram donos de
gladiadores, pois que se atesta, num epitáfio de Verona, uma mulher lanista, chamada
Arianilla 1468; no Oriente grego, uma inscrição alude a outra proprietária de uma familia
gladiatoria, Flavia Lycia 1469: lamentavelmente, desconhecemos mais dados sobre a vida e
actividade profissional destas agentes de combatentes da arena. Seja como for, a participação
feminina nos negócios da gladiatura deve ter constituído um fenómeno pontual e bastante
raro.

O ludus 1470

Quase todos os turistas que deambulam em Roma visitam o incontornável Coliseu, mas são
relativamente poucos os que contemplam, a quase dois passos de distância, as ruínas da

1466Para Georges Ville, ambas as denominações referiam-se ao mesmo centro formador, mas o apelativo Iulianius
continuaria a ser utilizado ao longo da primeira metade do século I da nossa era, ao passo que o de Neronianus se
cingiu ao reinado de Nero. Posteriormente, estas designações viram-se substituídas pelos genitivos Caesaris e
Imperatoris: cf. La gladiature en Occident, pp. 277-281; P. Sabbatini Tumolesi, Gladiatorum paria. Annunci di
spettacoli gladiatori, 148.

1467 A. Ceballos Hornero, «Epitafios latinos de gladiadores en el Occidente romano», p. 321.

1468 EAOR II, nº 49.

1469 AE 1998, 1375.

1470 Para uma visão genérica sobre as «escolas gladiatórias: F. Coarelli, «Ludus Gladiatorius», in A. La Regina (ed.),
Sangue e Arena, pp. 147-151; D. Darde, «École de gladiateurs», L’Archéologue, nº 81 (déc. 2005), pp. 21-24; G. Tosti,
«Il LVDVS GLADIATORIVS», ACTA BIMESTRIA. Bimestrale di informazione culturale a cura del Gruppo Storico Romano,
I.V (gennaio-febbraio 2011), pp. xxiv-xxxvi.

493
caserna dos gladiadores, que em latim se chamava Ludus Magnus. Se deste edifício, que
significou o maior centro de treino para gladiadores de Roma e do seu império, quase só
restaram as suas fundações, outros ludi houve na Urbs e por todo o território imperial. No
entanto, nem sempre assim foi, uma vez que nos primeiros tempos da gladiatura «étnica»
romana (e antes desta a campaniana e a etrusca), os combatentes, compostos por
condenados, prisioneiros de guerra e escravos, ainda pouco numerosos, não justificavam ainda
a construção de uma estrutura destinada ao seu treino. É provável que ficassem alojados
nalgum tipo de ergástulo ou prisão. Na realidade, não se afigurava útil submetê-los a exercícios
específicos para fortalecerem o corpo e aprenderem ou melhorarem as técnicas de combate, já
que a finalidade do «jogo» não consistia em fazer deles campeões mas simplesmente pô-los a
lutar, perecendo um determinado número deles por ocasião dos munera. Pouco a pouco, como
vimos, os combates foram ganhando popularidade, o que conduziu ao aumento do número de
gladiadores, a tal ponto que veio então a nascer a gladiatura profissional, o que exigia o
enquadramento dos homens da arena em espaços adequados.

Os lanistae mais oportunistas e empreendedores erigiram as primeiras casernas, cerca das


quais lamentavelmente pouquíssimo se sabe, mas não resta qualquer dúvida de que não
teriam nada de extraordinário, resumindo-se a habitáculos para alojar algumas dezenas ou
centenas de «pensionistas» ou mesmo, por vezes, vários milhares, como aconteceu no ludus
de Cápua pertencente a Júlio César, onde aparentemente existiam 5 000 homens. O dictator
planeou igualmente erigir outro em Ravena (como atrás referimos), em razão do seu clima
ameno, projecto que possivelmente terá sido concretizado por Augusto anos mais tarde
(Estrabão, Geogr. 5.1.7). O mais importante era dispor de um sítio com os acessos bem
controlados por grades e postos de guarda, o que requeria a presença de uma milícia privada
para assegurar a vigilância, impedir evasões e reprimir, se necessário, os elementos mais
insubmisso e, até, revoltas colectivas (Tácito, Ann. 15.46, 1).

Conhecemos uma dessas casernas através da literatura greco-romana, a de Lêntulo Batiato em


Cápua, o lanista de Espártaco. A reconstituição efectuada pelos cenógrafos ao serviço do
realizador Stanley Kubrick no seu conhecido filme Spartacus (1960, protagonizado por Kirk
Douglas) quanto à aparência do edifício revela-se interessante, ao mostrar-nos uma faceta
primitiva e rural dotada de certo realismo, pelo menos para uma grande «escola» gladiatória.
Pelo contrário, os ludi mais pequenos e pobres deviam oferecer uma imagem deplorável,
tratando-se de tugúrios localizados em bairros populares, possuindo como pista de treino
apenas a praça pública ou um pátio nas traseiras.

O fim da República representou um período próspero para os ludi privados, sobretudo nas
regiões em que a tradição dos jogos era significativa, como a Campânia. Júlio César, além de ter
uma ou várias casernas, solicitava a ajuda de amigos e certas figuras influentes – que ele
considerava competentes e dignos – para ministrarem, nos seus próprios domicílios, os treinos
dos gladiadores do conquistador das Gálias (Suetónio, Divus Iul. 26), o que sugere que o
enquadramento das escolas gladiatórias seria ainda incipiente e desigualmente estruturado.

O fenómeno dos munera ganhou crescente amplitude, bem como a importância de algumas
familiae gladiatoriae em Roma, o que inquietou sobremaneira o Senado, que via nestes
bandos armados e dedicados a poderosos demagogos um perigo para a ordem pública. Como
anteriormente referimos, o Senado tomou a decisão de excluir tais escolas da capital em 63 a.
C. Mas não há maneira de determinar que esta medida tenha sido unanimemente aplicada:
muito possivelmente, algumas continuaram a existir na Urbs, talvez toleradas em face dos seus
reduzidos efectivos. Em todo o caso, é de supor que houvesse um ludus, em 44 a. C., nas
proximidades do Pórtico de Pompeio (Dião Cássio, 44.16), a poucos passos da Curia Pompeia,
onde César foi assassinado: vários autores afirmaram que os Cesaricidas pensavam servir-se
(para se defenderem de possíveis reacções dos senadores) dos gladiadores que se exercitavam

494
nesse local para um munus organizado por Bruto, na sua qualidade de pretor; talvez o pórtico
mencionado, ou um edifício adjacente ao mesmo, fosse utilizado como ludus 1471.

A par dos ludi privados, floresceram também os ludi municipais (ludi publici), de que o de
Pompeia representa o melhor exemplo. Temos registo de outro em Praeneste, financiado e
decorado por um dos magistrados desta cidade. Como aliás o atestam os grafitos deixados
pelos seus ocupantes, tais casernas municipais albergavam grupos pertencentes a diferentes
lanistae locais e, esporadicamente, outras familiae exteriores sob contrato, que estivessem de
passagem pelas localidades, para participarem em espectáculos. Muitas cidades deviam ter o
seu ludus, a começar por aquelas que também dispusessem de um anfiteatro. A escola podia
ser propriedade do lanista ou então este apenas usufruía da possibilidade de contra-alugar os
combatentes, como parece haver sido inicialmente o caso de Pompeia. Seja como for, as
situações diferiam consoante os locais.

Com a instauração do regime imperial, as «escolas» privadas declinaram em proveito dos ludi
imperiales, arrogando-se o imperador exercer um monopólio quase exclusivo da gladiatura na
Urbs, pelo menos. Ele era simultaneamente editor, ao organizar e apresentar espectáculos
grandiosos, e lanistae, visto que detinha a propriedade de numerosos gladiadores, as quais,
ocasionalmente, não hesitava em alugar e a levá-los consigo nos seus périplos pelas províncias,
como o fez Calígula, aquando da sua viagem a Lugdunum (Lyon). Sabe-se que no seu reinado
havia em Roma uma caserna imperial (Plínio-o-Velho, Nat. Hist. 11.54; 43.254; Suetónio,
Calígula, 33.5 144), mas esta talvez remontasse ao tempo de Augusto: com efeito, em 29 a. C.,
construiu-se o primeiro anfiteatro de pedra em Roma, pelo que parece lógico que se pensasse
edificar, igualmente nesta altura, uma estrutura para acolher os gladiadores. Em princípio,
tratar-se-ia do Ludus Aemilius citado por Horácio (Ars poetica, 32) 1472. Calígula teve também o
seu ludus, alojando uma vintena de pares de combatentes, só destinados para o seu próprio
prazer.

O célebre Ludus Magnus, ao qual já aludimos, só foi fundado no fim do século I por
Domiciano, após a construção do Anfiteatro Flávio, e acabado sob a égide de Adriano. Além
desta «Grande Escola», construíram-se outras três casernas imperiais em Roma (que duraram
até ao século IV)1473, havendo ainda, quiçá, alguns ludi privados dos quais não restaram
quaisquer vestígios. Situado nas imediações do Coliseu, o Ludus Matutinus (CIL IV 10.171),
mais raramente chamado Ludus Bestiariorum ou Ludus Bestiarius, foi criado na primeira
metade do século I d. C ., reservado para a formação dos venatores e bestiarii (como as
venationes ocorriam pela manhã, designava-se este homens de matutini). Os prisioneiros
dácios, capturados durantes as campanhas conduzidas por Domiciano e, depois, pelas de
Trajano, na Dácia, foram enviados para o Ludus Dacicus, mas ignoramos por que razão a quarta
caserna de Roma se denominou Ludus Gallicus, uma vez que a Gália havia muito que não
estava em guerra, a não ser provavelmente no decurso da guerra civil de 69-70 e nas revoltas
que se seguiram nas regiões do Norte europeu, implicando Batavos, Germanos e Gauleses. É
possível que os efectivos do Ludus Gallicus não consistissem em prisioneiros de guerra, mas
simplesmente em indivíduos recrutados nesta província 1474. Pode-se também imaginar que,
originalmente, houvesse uma justificação étnica para a designação desta caserna, mas
posteriormente não foi esse o caso. Ele ficou, assim, nomeado por força do hábito, um pouco à

1471 G. Ville, La gladiature…, pp. 297-300; J.-C. Golvin, L’Amphithéâtre romain. Essai…, p. 149.

1472Aemilium circa ludum faber imus et unguis exprimet et mollis imitabitur arere capillos, infelix operis summa,
quia ponere totum nesciet.

1473Com efeito, no Chronographus referente ao ano 354 d.C., lê-se: Domitianus imp. ann. XVII m. d. V. congiarum
dedit ter XLXXV. hoc imp. multae operae publicae fabricatae sunt: … amphitheatrum usque ad clypea, templum
Vespasiani et Titi, Capitolium, senatum, ludos IIII, etc.

495
semelhança do facto de se continuarem a chamar «mamelucos» aos cavaleiros das unidades
de Napoleão, que no fim eram recrutados não no Egipto mas na própria região parisiense, por
uma mera questão de exotismo.

A administração imperial estabeleceu uma extensa rede para o recrutamento e a formação de


gladiadores. Por todo o império se implantaram ludi imperiales, assim permitindo aos
habitantes das províncias desfrutarem das «alegrias» e dos entretenimentos da romanização.
As fontes epigráficas mostram a existência de vários destes ludi em Itália, nomeadamente em
Cápua, Ravena, Aquileia e Praeneste (CIL XIV 3014)1475; na Gália, os de Nemausus (CIL XII 3330),
Lugdunum, Augustodonum, Narbo, Dea (Dié) e Draguignan; na Hispânia, os de Gades e
Corduba; também os havia na Britânia, na Germânia e na Récia (CIL II 4519/III 249). As
províncias danubianas também estiveram providas de casernas gladiatórias. Neste processo, a
parte oriental do Império também não se viu olvidada, dispondo de ludi em Pérgamo (desde o
século II), Ancyra ou ainda em Tessalónica, além do Egipto, com um estabelecido em
Alexandria a partir do século I. Uma mesma direcção estava à frente dos diferentes ludi
imperiales em cada província, mas era a «casa-mãe», em Roma, que provia à maior parte das
necessidades das suas «filiais» provinciais. De facto, um papiro do tempo de Domiciano
testemunha o envio de vestuário para o ludus de Alexandria (CIL X 10.1685)1476.

Antes de surgir o Ludus Magnus, vários dos imperadores que precederam Vespasiano tiveram,
como referimos, os seus ludi: Cláudio colocou à cabeça do seu um membro da ordem equestre,
coadjuvado por um numeroso pessoal subalterno. Quanto ao Ludus Magnus, a
responsabilidade pelo seu bom funcionamento e pela sua rentabilidade foi confiada por
Domiciano a um procurator, igualmente da classe equestre, que auferia um salário de 200 000
sestércios por ano1477, o que era muito face aos 60 000 auferidos pelo «director» do Ludus
Matutinus 1478. Esta diferença de salários testemunha também a ordem de preferência dos
Romanos face à gladiatura e à venatio, a última encarada como menos prestigiosa. No resto da
península itálica e nas províncias, outros procuratores administravam um ou vários ludi
imperiais. Estavam incumbidos de recrutar e formar gladiadores, procedendo ao seu aluguer a
fim de rentabilizar a «empresa», o que não constituía um problema per se, já que estes augusti
eram solicitados para espectáculos nas mais diversas partes do império.

1474Além do Chronographus, que nos informa que Domiciano mandou construir quatro ludi, podemos reconstituir
os seus nomes e respectiva localização através dos chamados «Catálogos Regionais», fonte que também data do
século IV (Nordh, 1949, p. 75ss): o Ludus Matutinus e o Ludus Gallicus ficavam na IIª Região de Roma –
Caelimontium – enquanto o Ludus Magnus e o Ludus Dacicus se situavam na IIIª. O Ludus Dacicus localizava-se a
norte do L. Magnus, entre a Via Labicana e as Termas de Trajano. Quanto ao Ludus Matutinus, é provável que se
deva identificar com alguns restos descobertos em 1938 a sul do L. Magnus, ao longo do antigo Vicus Capitis Africae
(C. Pavolini, «Caput Africae», in E. M. Steinby (ed.), Lexicon topographicum urbis Romae (= LTUR), I, Roma, Quasar,
1993, p. 235). Nas suas imediações estaria o Ludus Gallicus, isto se os vestígios exumados atribuídos ao Matutinus
não pertencerem ao primeiro.

1475Tácito, Ann., 15.46.1. G. Ville, La gladiature, p. 284, n. 135. No ludus de Praeneste havia um pequeno
anfiteatro (possivelmente para o treino dos gladiadores), ainda hoje visível ao longo da Via Prenestina: Quilici, 1977,
p. 25.

1476EAOR I, nos 21-43; EAOR III, nos. 2-7; EAOR III, nos. 3-4; EAOR IV nos. 3-6; CIDER, nº 82; AE 1996, 1603; F.
Kaiser, «La gladiature en Égypte», REA 102 (2000), pp. 473-476.

1477Por receber um stipendium de 200 000 sestércios por ano, o responsável pelo Ludus Magnus era qualificado
como procurator duecenarius. Numa inscrição (CIL VI 41286), este cargo surge especificado através da sigla CC
(duecenarius): D(is) M(anibus)/IULIO ACHILLEO V(iro) P(erfectissimo) EX PROX(imis) MEM(oriae)/CC LUDI MAGNI
QUI/ VIXIT ANNIS XLVII/M(ensibus) X AURELIA Maxi/ma co(n)IUX EIUS/MARITO DULCISSIMO.

1478 Chamado procurator sexagenarius.

496
Nas «escolas» imperiais estariam representadas todas as armaturae, incluindo os paegniarii,
de estatuto algo ambíguo (CIL VI 10168). Tais gladiadores tanto podiam ser livres ou escravos,
recrutas voluntários ou damnati ad ludum. Uma referência de Tácito (Ann. 15.46), relativa à
escola gladiatória de Praeneste reveste-se de interesse, uma vez que sugere que essas casernas
se encontravam reservadas a determinado tipo de «pensionistas». Os nomes dos quatro ludi
de Roma reforçam precisamente esta ideia. Mas, se, por um lado, os ludi imperiales se podiam
dar ao luxo de serem diferenciados, por outro, as escolas municipais, ao disporem de meios
muito mais limitados, reuniam num mesmo sítio condenados e homens livres. Isto, porém, não
significa que uns e outros estivessem misturados, como adiante veremos.

Em geral, convinha que um ludus se situasse ou fosse construído num local salutar (Estrabão,
Geog. 5.1.7), da mesma maneira que os prefeitos das legiões escolhiam cuidadosamente o sítio
para os acampamentos militares, evitando a todo o custo que os soldados não fossem vítimas
de enfermidades causadas por zonas insalubres. Nos dois casos, tratava-se de erigir uma
caserna para alojar os homens, assim como para os alimentar, treinar, cuidar da sua saúde e, se
necessário, os punir. Importava também arranjar dependências onde se pudessem fabricar,
reparar e armazenar os equipamentos precisos para a sua formação e para o exercício dos seus
ofícios. Com base no exemplo do Ludus Magnus, que se conhece a partir dos fragmentos da
planta marmórea severiana de Roma chamada Forma Urbis 1479 (fig. ), é provável que a maior
parte das casernas imperiais funcionasse segundo o mesmo esquema operatório. Além disso,
assinalamos semelhanças com os aboletamentos militares, como o aquartelamento dos vigiles
em Óstia. Nos ludi municipais e, sobretudo, privados, foram esporadicamente reutilizadas e
adaptadas estruturas pré-existentes concebidas para outras funções, como aconteceu em
Pompeia.

Em Roma

Objecto de escavações arqueológicas pela primeira vez em 1937 (que mais tarde
prosseguiram entre 1959 e 1961), na colina do Célio (Caelius), o Ludus Magnus1480 revelou um
conjunto edificatório com três pisos, servindo principalmente para alojar os gladiadores 1481 e o
pessoal de enquadramento (instrutores, médicos, administradores, amanuenses, escravos,
etc.)1482. Estas construções estavam dispostas em torno de um pátio porticado (provido de

1479 Que se descobriu em 1562. E. Rodríguez-Almeida, «Forma Urbis marmorea. Nuovi elementi di analisi e nuove
ipotese di lavoro», Mélanges de l’École Française de Rome 89 (1977), pp. 219-256; idem, Forma Urbis Marmorea.
Aggiornamento Generale 1980, 2 volumes, Roma, Quasar, 1981, pp. 70-73, est. IV.

1480 O Ludus Magnus, como se disse, localizava-se na IIIª Região da Urbs (Isis et Serapis), imediatamente a leste
do Anfiteatro Flávio, actualmente entre Via Santi Quattro Coronati e a Via Labicana (onde as escavações trouxeram à
tona apenas a sua metade setentrional).

1481 Segundo F. Coarelli («Ludus Gladiatorius», p. 149), as celas destinadas aos gladiadores poderiam albergar,
pelo menos, mil homens: «Le celle destinate ai gladiatori, che occupavano gli altri lati (14 sui lati lunghi, forse 12 sui
lati brevi), potevano ospitare almeno um migliaio di persone». Na realidade, suspeitamos que as 70 células lá
existentes alojariam um número menor de combatentes, talvez uns 600.

1482 Para as campanhas arqueológicas e os seus resultados: A. M. Colini e L. Cozza (eds.), Ludus Magnus, Roma,
1962; F. Coarelli, Guide archéologique de Rome: Le Ludus Magnus, Paris, Hachette, 1994 (versão francesa do original
em italiano). Para abordagens mais sintéticas: J.C. Golvin, L’Amphithéâtre romain et les jeux de cirque, pp. 104-106;
R. A. Staccioli, «Il Ludus Magnus e un museo per i gladiatori», ACTA BIMESTRA-POPVLI ROMANI. Bimestrale di
informazione culturale del Gruppo Storico Romano, III.XII (2012), pp. 5-7. As ruínas que actualmente se observam do

497
colunas toscanas de travertino e com quatro fontes triangulares nos seus ângulos), que dava
acesso às diferentes divisões existentes no rés-do-chão. Na ala leste, os arqueólogos
descobriram uma divisão maior do que as demais, a qual se abria para o pórtico através de
cinco acessos, sem se conseguir precisar a sua utilização. A sua superfície deixa entrever, talvez,
uma sala de armas coberta ou então um refeitório. Na esplanada assim enquadrada, sobressaía
um anfiteatro elíptico de 63 m de comprimento por 42 de largura, rodeado por nove filas de
bancadas e duas tribunas, cuja cavea podia acolher cerca de 1200 pessoas, que por
curiosidade, viessem assistir aos treinos e outros exercícios dos gladiadores 1483. No entanto, é
de supor que o público corresponderia a gente da elite dirigente romana ou a plenipotenciários
estrangeiros, pelo que agente comum dificilmente teria acesso a este anfiteatro miniatural.
Aquando dos munera no Anfiteatro Flávio, a partir das três da tarde, os gladiadores acediam
directamente a partir do Ludus Magnus ao edifício dos espectáculos, seguindo por um
corredor subterrâneo que ligava os dois edifícios.

Embora as casernas estivessem obrigatoriamente dotadas de materiais de treino para os


exercícios quotidianos (na sua maior parte consistindo em armas embotadas), não temos a
certeza se os ludi possuíam uma armaria para os equipamentos empregues nos munera. É
certo que se colhe menção a um armamentarium na IIª região da Urbs 1484: talvez ele
fornecesse o material necessário a todos os ludi da capital 1485. Depois da revolta de Espártaco e
dos traumas que a mesma ocasionou durante largo tempo na memória dos Romanos, faria
todo o sentido não deixar depósitos com armas ao alcance dos gladiadores, a fim de evitar a
eclosão de motins. Contudo, um comentário tecido por Herodiano (VII, 11, 2) deixa a entender
que existiriam armas em diferentes casernas gladiatórias; confiados a um praepositus,
normalmente um liberto imperial, estes equipamentos só podiam sair das instalações nos dias
em que se realizassem espectáculos, distribuindo-se aqueles aos gladiatores somente quando
já estavam no anfiteatro. Seria, talvez, para essa armaria que regressariam os elmos, adagas e
escudos e outras peças danificadas, onde constituiriam objecto de reparação, ou então para o
Samiarum, dependência exterior dos ludi imperiais, que se situava também perto do Coliseu.

Cada ludus dispunha, por certo, de uma «enfermaria» intramuros, onde se prestavam
cuidados de saúde para tratar de problemas benignos, mas os gladiadores doentes e feridos
seriam transportados para o Saniarum 1486 (Sanitium), uma espécie de hospital igualmente
localizado na IIª região de Roma. Quanto aos mortos (gladiadores mas também venatores e
pessoal da arena), viam-se depostos numa morgue instalada nas proximidades das casernas: o

Ludus Magnus não correspondem ao edifício construído no tempo de Domiciano, mas, em grande parte, a uma
remodelação efectuada sob a égide de Trajano, que levou a que a estrutura ficasse com mais 1,50 m. A entrada
principal situava-se no centro do lado Norte, onde havia uma ampla escadaria: F. Coarelli, « Ludus Gladiatorius», p.
148. Sabemos que esta «escola» era gerida por um procurator da ordem equestre, de grau mais elevado do que o
seu homólogo que administrava o Ludus Matutinus. No pessoal de enquadramento do Ludus Magnus, destacavam-
se os medici e os doctores: cf. P. Sabbatini Tumolesi, Epigrafia anfiteatrale dell’Occidente Romano I – Roma, Roma,
1988, p. 55ss.

1483 Duas entradas, dispostas em correspondência com o eixo maior, davam acesso à arena. No centro do lado
oriental existia um santuário consagrado ao culto imperial. Para uma visão muito recente do Ludus Magnus e da sua
reconstituição a partir da arqueologia, consulte-se Simonetta Serra e Alessandra Tem, «Ludus Magnus: Dati per una
nuova lettura», Scienze dell’Antichità 19.1 (2013), Roma, Edizioni Quazar, pp. 203-218.

1484 E. Rodrigues-Almeida, «Armamentarium», LTUR, I, 1993, p. 126.

1485 Em Roma descobriu-se uma estela funerária (CIL VI 10164) de um praepositus armamentario, Marcus Ulpius
Callistus, um liberto.

1486 D. Palombi, «Saniarium», LTUR, IV, 1999, p. 233.

498
Spoliarium1487. No que respeita aos cenários, máquinas e acessórios que se utilizavam nos
diferentes jogos (tanto do anfiteatro como do teatro), eram guardados num edifício situado
também perto do Coliseu, o Summum Choragium1488. Todas estas estruturas deviam encontrar-
se na área situada entre o Ludus Magnus e a Basílica de S. Clemente1489.

Ao findarmos esta breve visita pelos anexos do Anfiteatro Flávio 1490, citemos ainda os Castra
Misenatium1491, o aquartelamento dos marinheiros da frota de Misenum, os quais estavam
especialmente incumbidos para manobrarem os pesados cabos e cordame para desfraldar ou
recolher o enorme velum (toldo) que protegia os espectadores no anfiteatro do sol, do calor e
da chuva. Acresce que, neste dispositivo, não existiriam termas, algo tão apreciado pelos
Romanos. Mas não restam grandes dúvidas de que os gladiadores se serviriam de instalações
termais no exterior, possivelmente numa estrutura adjudicada e reservada, em determinados
horários, a fim de não haver contacto com os restantes banhistas.

Em Pompeia

Conhecemos ainda melhor as duas casernas que existiram em Pompeia: a primeira,


identificada em 1890 graças aos numerosos grafitos parietais alusivos à vida gladiatória, data
da época republicana e situava-se na Vª região desta cidade campaniana, correspondendo à
antiga habitação de Lucretius Fronto, que se viu transformada em ludus 1492. Quando,
aparentemente, sofreu consideráveis danos estruturais, provocados pelo terramoto que
ocorreu em 62 d. C., foi abandonada e reencontrou a seguir a sua vocação inicial, já que é
assim que tal habitação reaparece aquando da grande erupção do Vesúvio em 79 d. C. Disposto
em redor de um pórtico, o edifício compunha-se de um rés-do-chão onde havia treze divisões,
e sobre o mesmo erguia-se um piso, do qual nada parece ter restado.

Após o sismo de 62, a caserna gladiatória mudou de instalações, ficando num local atrás do
«Grande Teatro» de Pompeia, onde existia um grande quadriporticus, concebido
originariamente para abrigar os habitantes da cidade quando ocorressem intempéries, o que
estava conforme a um dos preceitos evocados por Vitrúvio (De architectura, 5.9.1). Este
conjunto edificatório, descoberto em 1766, na parte direita do forum triangular, e objecto de
escavações arqueológicas entre 1767 e 1794, não de imediato identificado como um centro
gladiatório: alguns autores acreditaram tratar-se de um mercado, ao passo que outros nele
viram a caserna da guarnição municipal, devido à sua peculiar planimetria e por causa das
armas e elmos aí encontrados que, numa primeira fase, se pensou que pertencessem a
militares, daí ter sido conhecido por algum tempo como «Bairro dos soldados».

1487 D. Palombi, «Spoliarium», LTUR, IV, 1999, p. 338ss.

1488 K. Welch, «Summum Choragium», LTUR, IV, 1999, p. 386ss.

1489 F. Coarelli, «Ludus Gladiatorius», p. 149.

1490 J-C. Golvin, «Les bâtiments annexes d’un grand amphitéâtre», Histoire Antique & Medievale, Les Gladiateurs,
HS 23 (avril 2010), pp. 60-67; idem,

1491 D. Palombi, «Castra Misenatium», LTUR, I, 1993, p. 248ss.

1492 A. Sogliano, «Il primitivo ludo gladiatorio di Pompei», Rendiconti dell’Accademia dei Lincei, ser. 5, 30 (1921),
pp. 17-29; L. Jacobelli, Gladiators at Pompeii, pp. 65; M. Beard, Pompeia: o dia-a-dia da mítica cidade, pp. 338-339.

499
Se no caso do Ludus Magnus, há que fazer um esforço para recriar mentalmente a sua
aparência a partir das ruínas que sobreviveram, o mesmo não acontece em Pompeia, uma vez
que o seu ludus gladiatorius se conservou estruturalmente intacto até 2010 - em começos de
Novembro deste ano, altura em que o complexo sofreu danos irreversíveis provocados pela
chuva e por inundações; seja como for, mediante os diversos relatórios das campanhas
arqueológicos e múltiplas fotografias, é possível realizarmos uma viagem virtual pelas
diferentes parcelas edificatórias desta caserna com 2000 anos de idade 1493. Deixemos de parte
a pequena porta situada no ângulo nordeste da caserna, que dava acesso (a partir de um pátio
contíguo) ao teatro, e façamos antes um percurso pela porta principal do ludus, a alguns passos
de distância mais abaixo, que se abre para um pórtico de três colunas jónicas, no postscaenium
do Odeão, e avançar por outra entrada (H), onde ainda se observam os vestígios dos gonzos
que sustentavam os batentes da porta principal na soleira. Ao seguirmos para o interior,
deparamos primeiramente com uma espécie de «posto de guarda» (K). Ao descermos pelo
lado esquerdo, sob a galeria oriental do grande pórtico inteiramente decorado, avançamos ao
longo de um vasto vestíbulo escorado por quatro pilares de secção quadrangular, espaço que
talvez funcionasse como refeitório (D); logo atrás, vislumbramos o que parece corresponder a
uma cozinha (F), cujas paredes laterais estão providas de lareiras, onde certamente se
preparariam as refeições dos gladiadores e de outras pessoas que lá viviam. Lembremos, a
propósito, que estes sítios não existiam nos acampamentos, fortes e fortalezas militares, já que
eram os próprios soldados que confeccionavam os alimentos nos seus respectivos aposentos
(organizados em secções de oito homens, formando, cada uma, um contubernium).

As divisões adjacentes (E) seriam depósitos para víveres e diversos utensílios. Para lá deste
espaço, uma escada conduz-nos a um compartimento mais amplo, provavelmente o
«apartamento» do lanista. Foi precisamente aqui que se refugiaram e morreram dezoito
pessoas durante a fatídica erupção do Vesúvio, incluindo crianças e uma mulher portadora de
joias. Além disso, nesta sala acharam-se peças de equipamentos, algumas prateadas, e arcas de
madeira contendo vestes preciosas. Ao lado, outra divisão, que serviria de cárcere (B), onde se
descobriram quatro esqueletos em 1766 (num total de 63 corpos no conjunto da caserna):
estes homens não estavam acorrentados, pelo que talvez não consistissem em gladiadores
presos, mas simples pompeianos que ali buscaram um efémero abrigo no decurso do
cataclismo de 79 d. C.

Ao terminarmos de dar a volta completa pelo pórtico, passamos por uma série de cubículos
cellae), quase todos iguais e grosseiramente decorados. No lado oeste, este alinhamento vê-se
interrompido por um terrapleno que sustentava o primeiro piso. No entanto, na planta
destaca-se uma divisão maior do que as demais (P), em cujas paredes se pintaram frisos com
armas gladiatórias, aqui também se encontrando elementos de panóplias, simplesmente
depositados ou colocados obedecendo a uma finalidade decorativa. Ignoramos qual seria, ao
certo, a função deste espaço: talvez fosse o «gabinete» do lanista; um compartimento vizinho
albergaria acessórios indispensáveis para as várias etapas de um munus, onde se recuperaram
alguns instrumentos musicais. No canto sudeste, uma escada permitia subir para o primeiro
andar, no qual haveria uma sucessão de aposentos, aos quais se acedia por um longo balcão de
madeira.

Para lá do pórtico, medindo 4, 30 m de largura, havia uma vasta área onde se realizavam os
treinos, com 47 m de comprimento por 35 de largura, enquadrada por 74 colunas caneladas

1493 R. Garrucci, «Il ludus gladiatorius, ovvero Convito dei gladiatori in Pompei», Bulletino archeologico
napolitano, nº 13 (Janeiro 1853), pp. 98-104; L. Jacobelli, Gladiators at Pompeii, pp. 66-67. E. E. Poehler e S. J. R.
Ellis, «The 2010 Season of the Pompeii Quadriporticus Project: The Western Side», The Journal of Fasti
Online/Associazione Internazionale di Archeologia Classica (2011), pp. 1-10. Esta prospecção arqueológica teve lugar
no Verão de 2010; em 6 de Novembro de 2010, em sequência de fortes períodos de chuva e inundações, o complexo
estrutural do ludus ficou irremediavelmente danificado.

500
dóricas (atingindo 3, 6 m de altura): o terço inferior dos fustes é liso e pintado de vermelho,
salvo a coluna do meio de cada um dos lados, revestida por cor azul, o que possivelmente
constituiria uma referência visual e, ao mesmo tempo, dividiria a esplanada em quatro secções,
eventualmente reservadas a grupos ou exercícios diferentes 1494. Estas colunas exibem ainda
desenhos e inscrições gravados pelos ocupantes do ludus, sobretudo toscas silhuetas de
combatentes da arena.

Entre as fiadas de colunas, a presença de pedestais levam a supor que existiriam estátuas a
ornamentar o local. A norte, um pequeno lanço de degraus (R) conduz a uma escada maior que
permitia aceder, a partir do pátio do Grande Teatro, ao pórtico do forum triangular. Por último,
resta-nos discorrer um pouco sobre o sistema hidráulico implantado no ludus: à volta do pátio
central, um rego recolhia as águas pluviais e escoava-as até às cisternas existentes sob a
«escola». Esse sulco possuía, em intervalos regulares, orifícios, pelos quais se precipitavam as
eventuais impurezas trazidas pelas águas. Assim, filtrada, a água podia ser tirada através de
uma abertura localizada na parte oriental do pórtico.

Em Carnuntum

Há pouco tempo, uma prospecção aérea detectou os vestígios de uma caserna gladiatória em
Carnuntum (perto de Petronell e de Bad Deutsch-Altenburg, junto ao Danúbio), na Baixa-
Áustria, não longe de Viena: fundada sob a égide de Tibério, no decurso de uma campanha
militar em 6 d. C., Carnuntum significou, inicialmente, um aquartelamento de soldados que,
aos poucos, se foi desenvolvendo até se transformar numa cidade que, no seu auge, acolheu
cerca de 50 000 habitantes e veio a tornar-se na capital da província da Panónia, com uma
superfície superior a 10 km2. Devido à sua importância, a cidade erigiu um anfiteatro com
capacidade para 13 000 lugares: este foi localizado e escavado em finais da década de 20 do
século passado, mas o ludus adjacente só se descobriu em 2011. As sondagens efectuadas no
solo permitiram reconstituir com elevada precisão a planta da caserna de Carnuntum, situada
apenas a poucas centenas de metros de distância a oeste do anfiteatro 1495.

O complexo edificatório estende-se ao longo de mais de 10 000 metros quadrados,


traduzindo-se num recinto fechado com jardins, alojamentos para os «pensionistas» e pessoal
de enquadramento, instalações administrativas (abrangendo 300 m 2), termas, uma «sala de
reunião», outra para treinos, coberta (100 m 2), um espaço para exercício ao ar livre, e um
cemitério nas proximidades. Os exames que aqui se fizeram serviram igualmente para
constatar a existência de um elaborado sistema de aquecimento no solo, de uma rede de
canalizações de água e esgotos. O conjunto abrange uma superfície de 2800 m 2, estabelecido
segundo um esquema organizativo que então seria usual no Império para este género de

1494 G. Tosti, «LVDVS GLADIATORVM», p. xxviii.

1495 Wolfgang Neubauer e Sirriu Seren, «Die Entdeckung der Gladiatorenschule in Carnuntum», Acta Carnuntina
2/1 (2012), Gesellschaft der Freunde Carnuntum, Niederösterreich; Franz Humer, «Einblicke in das Leben römischer
Gladiatoren», Acta Carnuntum, 2/2 (2012); W. Neubauer, «Blut und Sand – Das Leben und sterben der Gladiatoren
im Römischen Österreich. Gladiatorenschule in Carnuntum Entdeckt», Ludwig Boltzmann Institut/Archäologische
Prospektion und Virtuelle Archäologie, s. d., pp. 1-3; Françoise Melmoth, «Une école de gladiateurs sur le Danube»,
L’Archéologue, nº 127 (set-oct.-nov. 2013), pp. 50-52; W. Neubauer, C. Gugl, M. Scholz, G. Verhoeven, I. Trinks, K.
Löcker, M. Doneus, T. Saey e M. Meirvenne, «The discovery of the school of gladiators at Carnuntum, Austria»,
Antiquity 88 (2014), pp. 173-190.

501
instalações, lembrando o Ludus Magnus de Roma e, em menor grau, a caserna de Pompeia: a
estrutura articula-se em torno de um vasto espaço central, provido de uma larga pista circular
no ângulo nordeste e, também, de um anfiteatro miniatural, feito com maçonaria e tendo 19 m
de diâmetro.

O auctoramentum

Os escravos e os damnati não tinham palavra alguma a dizer quando eram enviados para um
ludus e se viam submetidos à preparação para se converterem em gladiadores. Mas, como
atrás referimos, o caso revelava-se bem diferente para os homens de condição livre que se
apresentavam à porta da «escola» para nesta ingressarem. A cidadania romana era um
privilégio que implicava direitos, mas também deveres, como o de ser digno da mesma.
Consequentemente, uma degradação voluntária era mal vista.

Para refrear veleidades no recrutamento de homens no contexto gladiatório, Roma


estabeleceu e aprimorou um conjunto estrito de medidas, cuja origem talvez remontasse à alta
época republicana, quando as poderosas famílias da Urbs dispunham de milícias armadas.
Sendo a sociedade romana muito religiosa e fundamentada no clientelismo, compreende-se
por que é que os homens mais influentes quiseram, mediante um juramento, sacralizar os
laços contraídos pelos seus dependentes, a fim de os manter mais seguramente vinculados ao
compromisso definido, e tornar qualquer renegação um acto criminoso aos olhos das
divindades.

Entre os gladiadores, um juramento apenas tinha valor quando livremente proferido, o que
excluía evidentemente os condenados e os indivíduos de condição servil, apenas dizendo
respeito aos que desejassem subscrever um contrato. Lamentavelmente, desconhecemos em
que consistia tal juramento quando estavam envolvidos peregrini, isto é, homens livres mas
não cidadãos.

O auctoramentum não era fenómeno exclusivo da gladiatura 1496. Este vocábulo também
servia para designar um género de contrato de aluguer de mão-de-obra, por exemplo, para
certos trabalhos que comportassem elevado risco. A propósito da contratação de um gladiador,
o Pseudo-Higino usa a expressão de locatio conductio (Decl. min. 382), mas não se trata dos
termos exarados numa acta jurídica. Os textos antigos jamais mencionam o auctoramentum
em relação aos venatores, pela simples razão de que estes se encontravam associados ao
locatio operarum. Assim, cabe distinguir dois tipos de procedimentos distintos para os
gladiadores e os venatores. O facto de o gladiador ser contratado para matar outros homens
tornava a sua posição muito peculiar e justificava, per se, a obrigação do juramento.

1496Sobre o auctoramentum e os auctorati, consultem-se: A. Biscardi, «Nozione classica ed origini


dell’auctoramentum», Studi P. de Francisci 4 (Milão, 1956), p. 112; W. Kunkel, «Auctoratus», EOS 48/3 (1953), pp.
207-226; M. Lemosse, «La condition ancienne des auctorati», Revue historique de droit français et étranger, nº 2
(avril-juin, 1983); O. Diliberto, Richerce sull’auctoramentum e sulla condizione degli auctorati, Milão, 1981;C.
Sanfilippo, «Gli auctorati», in Studi in onore di Antonio Biscardi, I, Milão, Giuffré, 1982, pp. 181-192; A. Guarino, «I
gladiatores et l’auctoramentum», Labeo, nº29 (1983), pp. 7-24; IDEM, «Il leasing dei gladiatori», Index 13 (1985), pp.
461-465; Carla Ricci, Gladiatori e Attori nella Roma Giulio-Claudia. Studi sul Senatoconsulto di Larino, Roma, 2006,
pp. 88-94 (cf. «3.1.3. Modalità di reclutamento dei gladiatori»); M. Malavolta, «Avctoramentvm: L’attrazione
irresistibile del modello proibito», ACTA BIMESTRA- POPVLI ROMANI. Bimestrale di informazione culturale del
Gruppo Storico Romano, Anno III, nº XII (2012), pp. 16-21; F. J. Catillo Sanz, «El auctoratus: controversia entre
liberdade e infamia», Antesteria, nº 1 (2012), pp 155-168.

502
Depois de encontrar um lanista ou um editor que aceitasse contratá-lo, o postulante
apresentava-se diante de um tribuno da plebe em Roma, ou de um governador, se fosse numa
província, para declarar (profiteri ad dimicandum), na presença do seu futuro «amo», a
vontade em abraçar o ofício de gladiador. O magistrado era livre de recusar a oficialização de
um contrato se considerasse o candidato demasiado fraco ou fisicamente inapto (inabilior),
velho (senior) ou excessivamente jovem (iunior). Sabemos que, no exército romano, se
registaram alguns casos fraudulentos de arrolamento de rapazes com 13 ou 14 anos, mas este
género de embuste seria pouco provável na gladiatura, uma vez que o público rapidamente se
aperceberia que não estava a ver combatentes adultos na arena. Não restam grandes dúvidas
que o magistrado tentaria mesmo desencorajar os indivíduos cuja dignidade estaria em
flagrante contradição com tal escolha. De facto, embora um homem que sobrevivesse até ao
fim do seu contrato conseguisse recuperar a sua liberdade e condição social, não deixava, por
isso, de ficar maculado na sua honra para toda a vida. Igualmente para evitar que a
imaturidade conduzisse a certas candidaturas, promulgou-se, em 11 d. C, um senatus
consultum que proibia às mulheres nascidas livres de aparecerem na arena antes de terem 20
anos e, no caso dos homens, antes dos 25. Atentemos, agora a um trecho de Juvenal (Sat. 11.5-
8):

«Por todo o lado, nas termas, na praça pública, no teatro, só se fala de Rutilius. Como é vigoroso o seu
corpo, próprio de um jovem varão, ele pode cingir o elmo, tem o sangue quente e eis, diz-se, que vai,
sem que o tribuno o dissuada, nem se oponha, assinar um contrato que o irá submeter ao jugo de um
instrutor de gladiadores».

Aparentemente, para alguém que se arrependesse da decisão tomada (por motivos pessoais
ou por causa da sua família, que não suportaria tamanha ignomínia), era possível anular o
contrato, ao resgatar a pessoa em questão (se redimere).

No contrato, além da indicação do nome e da idade do voluntário, também se exarava a


duração do auctoramentum, por um determinado espaço de tempo ou por um certo número
de combates, aspecto definido entre as partes em presença, havendo certamente diferenças
de um caso para outro; sobre esta matéria, deveriam existir grandes disparidades consoante os
locais e os períodos históricos. O último ponto estipulado era o montante do aluguer (pretium
gladiatorium) que ligava o auctoratus ao lanista ou ao munerarius. Numa comparação irónica,
Tito Lívio (Ab Urb. Cond. 44.31.15) alude à entrega desse salário: «o infortunado rei recebeu a
custo de Perseu o que se dá a um gladiador, dez talentos».

Na realidade, a soma de dinheiro variava em função das aptidões físicas e técnicas do


gladiador. Os auctorati que tivessem fraca aparência receberiam uma miséria, sendo
designados popularmente como gladiadores de 2 asses. Petrónio descreve alguns deles no
Satyricon: um parecia quase morto, porque tinha os nervos cortados, o segundo, tão pesado,
que não conseguia mover-se e outro, por fim, que tinha os pés tortos; infligiram entre si
ferimentos ligeiros para, pouco depois, suspenderem a sua exibição grotesca. Efectivamente,
certos lanistae com parcos recursos preocupavam-se menos com a qualidade dos seus homens
e, por vezes, não experimentavam quaisquer escrúpulos ao explorá-los - Fadius, por exemplo,
antigo soldado de Pompeio, não recebeu quantia alguma pelos dois combates que travou.
Perto de finais do século II d. C., na Tábua de Itálica (fonte que examinaremos oportunamente),
indica-se que um editor teria de desembolsar 2 000 sestércios na aquisição de um actoratus,
mas este montante ia para os bolsos do lanista, não sabendo nós que parte realmente ficaria
nas mãos do gladiador. A mesma disposição legal precisa, logo a seguir, que se o auctoratus
pretendesse voltar a combater tinha a possibilidade de renegociar o seu preço, desde que não
excedesse os 12 000 sestércios.

503
Para as autoridades, o dinheiro não devia ser a motivação principal do contrato. No fim da
República, as primeiras permitiram aos homens fazerem-se caçadores se dessem mostras da
sua coragem e não da sua ganância (Ulpiano, Digesto, III, 1, 1, 6). No entanto, para Tertuliano,
tudo isto não passava de uma grande hipocrisia, afirmando que «eles vendem a sua própria
violência a troco de dinheiro».

Depois de redigido e oficializado o contrato, o candidato proferia um juramento (professio),


através do qual aceitava vender-se, como se de um escravo se tratasse: tal é, aliás, o sentido
original do verbo auctorare. Ele reconhecia, pois, os riscos inerentes ao seu novo estatuto e ao
laço de submissão livremente consentido, ao pronunciar uma fórmula que, como vimos, nos foi
transmitida pela literatura antiga (Horácio, Sat. 2.7.58-59), pela qual aceitava ser «queimado,
acorrentado, golpeado e morto pelo «ferro» – (flammis) uri, vinciri, (virgis) verberari, ferro
necari – agressões que consistiam nos castigos usualmente reservados aos escravos (Petrónio,
como anteriormente referimos, também cita esta fórmula no Satyricon).

Numa carta para Lucílio, já citada, Séneca estabelece um paralelismo entre a coragem que a
filosofia requer e a dos gladiadores:

«Vós estais ligados à virtude pelo mais solene dos compromissos que haveis prometido a um homem
de bem. Fostes arrolados sob juramento. Dizer que o serviço é doce e fácil equivaleria a escarnecer de
vós; não desejo que incorrais em erro. Tão glorioso quanto o do gladiador é infame, o vosso contrato é
concebido nos mesmos termos: perecer sob o látego, pelo ferro ou pelo fogo [uri, vinciri ferroque
necari]. Mas o desgraçado que se deixa alugar para os combates na arena, que bebe e come para ter
sangue para derramar, é forçado a suportar a dor mesmo contra a sua vontade; vós, pelo contrário,
deveis aguentá-la voluntariamente e com alegria. A ele [gladiador] se permite que largue as armas e
implore a misericórdia do povo; vós não deveis depor as vossas, nem suplicar pela vida; morrei de pé e
sem fraqueza. Eh! De que vos serviria ganhar alguns dias, alguns anos? Vir ao mundo é ingressar numa
milícia em que não se conhece dispensa» (Ep. 4.37).

A partir desse momento, o lanista tinha, sobre os seus recrutas, um direito de vida e de
morte. Por fim, os auctorati eram publicamente açoitados na arena, aquando do espectáculo
que se seguia à prestação do juramento (Séneca, Apocolocyntosis, 9.3). Tal acto era mais
simbólico do que verdadeiramente doloroso, mas bastava para que todos os indivíduos
compreendessem que, ao aceitarem sujeitar-se a esta humilhação, renunciavam à sua honra.
Todavia, muitos estavam dispostos a este sacrifício para conhecerem um momento de glória e
celebridade, frequentemente assaz efémero. Outros alimentavam apenas a ambição de se
verem distinguidos pelo imperador e obterem o seu favor: era o que esporadicamente
acontecia com alguns membros das ordens equestre e senatorial que, num munus durante a
tarde, se tornavam gladiadores apenas por um dia.

Para concluir, não temos a certeza se os recrutas passavam por uma espécie de exame médico
antes de prestarem o juramento, ou se este serviria essencialmente para marcar o fim do
processo de admissão.

504
A «junta de inspecção médica»

Num trecho, Séneca mete em cena um jovem patrício que hesita entre enveredar pela
carreira de gladiador ou pela de bestiarius. Resolvido este dilema e depois de cumpridas as
últimas formalidades do seu «recrutamento», como todos os seus camaradas (voluntários ou
não), ele teria de se sujeitar ao olhar inquisidor do seu proprietário para, depois, ser
encaminhado para uma ou várias «especialidades». Se fosse integrado numa «escola» de
caçadores, tornar-se-ia venator ou bestiarius. Pelo que sabemos, talvez houvesse a
possibilidade de escolher os animais a caçar na arena, mas o instruendo aprenderia
certamente todas as técnicas cinegéticas. Se, por outro lado, ele entrasse num ludus
gladiatório, a gama de possibilidades era manifestamente maior. Temos conhecimento de
existirem perto de uma quinzena de armaturae diferentes. Uma espécie de «junta médica»,
constituída pelo lanista, por instrutores (doctores e magistri) e, talvez, por um médico adstrito
à «escola», determinava o nível dos candidatos. Seria inútil tentar apurar se o recruta tinha
uma sólida moral, aspecto que nas legiões assumia importância, mas no ludus o que se
examinavam eram as suas aptidões físicas. À semelhança do que ocorria no exército romano, é
provável que a estatura dos homens representasse um critério subjectivo na selecção. Com
base nas ossadas exumadas no «Cemitério dos Gladiadores» de Éfeso, os especialistas forenses
chegaram à conclusão que os indivíduos mediriam em média 1,68 m 1497.

Nesta ocasião, Marcial diz-nos que o lanista inspeccionava os homens como se fossem
mercadorias (Epigr. 6.82). Mas se o primeiro seria capaz de avaliar a compleição física de um
recruta, a ajuda de um médico qualificado revelar-se-ia certamente necessária para garantir
que, por detrás de uma boa musculatura, não se dissimulava alguma deficiência ou patologia.
Era sem dúvida preferível que esse médico exercesse os seus serviços em regime de
exclusividade no ludus, uma vez que, como sublinha Galeno, «A gravidade de uma doença é
proporcional à alteração do estado normal; ora, o grau desta alteração só é observável por
alguém que tenha um conhecimento perfeito do estado normal do paciente». De acordo com
um preceito de Rufo de Éfeso, convinha colocar um certo número de questões ao postulante e,
talvez, aos seus parentes ou donos, para melhor se conhecer o seu estado de saúde. Em
princípio, havia que usar de certa cordialidade, para que o candidato não se visse compelido a
ocultar alguma enfermidade ou qualquer outro problema, como recomendou Celso:

«Um médico experiente deve, mal chegue, não se apropriar do braço do doente, mas antes sentar-se
junto dele, com o rosto sorridente, informar-se sobre o seu estado e, caso existam alguns aspectos que
causem temor, acalmá-lo; depois, avançar a mão para explorar o pulso» (Med. III, 6).

Com boa luz, o médico observaria também o rosto do paciente, em busca de sinais ou
sintomas. Seguia-se um exame físico, incluindo a palpação, a auscultação do tórax, bem como
uma observação atenta dos membros e dos diferentes órgãos. Não dispomos de testemunhos
directos deste tipo de atitudes médicas em relação a gladiadores, mas é quase certo que elas
se levariam a cabo de acordo com os hábitos da época por práticos, pelo menos,
conscienciosos.

Não é difícil imaginar os treinadores a submeterem os candidatos a diversos testes de força,


resistência, rapidez e flexibilidade, munindo-os de panóplias diversas, para assim
determinarem quais seriam as mais apropriadas ao perfil de cada um. O tamanho, como atrás

1497 F. Kanz e K. Grossschmidt, «Head injuries of Roman Gladiators», Forensic Science International, 160 (2006), p.
209; M. Junkelmann, Gladiatoren, p. 176. Mais adiante tecemos mais comentários sobre este cemitério, descoberto
por uma equipa de arqueólogos austríacos em 1993.

505
referimos, constituiria decerto um critério levado em linha de conta, uma vez que um homem
leve e ágil não apresentaria aos olhos dos membros da «junta» os mesmos atributos de um
indivíduo robusto, capaz de suportar um equipamento pesado, mas que, em contrapartida,
tinha menor mobilidade. Os que evidenciassem qualidades julgadas excepcionais, poderiam
ser encaminhados para várias categorias gladiatórias. No Museu de Trier (Alemanha), uma
cena de um copo de vidro (descrita no capítulo IV), parece mostrar um mesmo combatente a
lutar numa pugna gladiatória e a intervir numa venatio. Sabemos que por vezes existiram
gladiadores a defrontar animais, mas no caso do mencionado receptáculo, julgamos que se
trataria de um homem que poderia perfeitamente estar «inscrito» nas duas modalidades. Seria
uma prática habitual nas províncias fronteiriças do Império? A decoração de tal vaso exibe um
duelo entre um retiarius e um secutor chamado Auriga (ou seja, condutor de um carro);
mesmo ao lado, outra imagem ilustra um caçador, empoleirado numa biga, a lutar contra um
leopardo; é possível, portanto, que nos encontremos na presença do mesmo indivíduo.

No processo de «triagem» realizado no ludus, prestava-se igualmente muita atenção aos


esquerdinos (scaevae), dado que a sua esgrima invertida teria a vantagem de desconcertar
geralmente os seus adversários, o que apimentaria mais os combates. Com efeito, em várias
lápides observamos gladiadores a vangloriar-se por serem canhotos, fazendo ponto de honra
de ostentar tal característica nas inscrições gravadas nos seus monumentos funerários, logo a
seguir à indicação das suas armaturae. Ademais, diversos relevos mostram gladiadores
esquerdinos. O próprio imperador Cómodo, tão obcecado pela gladiatura se autoproclamava
como secutor scaeva (Díon Cássio, Hist. rom. 72, 19, 4). Naturalmente que um homem que
fosse ambidextro (aequimanus) também significaria um trunfo potencial para os recrutadores.

Plínio-o-Velho, na sua obra Naturalis Historia, descreve as particularidades físicas


identificáveis em alguns gladiadores, as quais, em regra, explicariam a sua superioridade face
aos oponentes e o seu interesse:

«O imperador Calígula tinha 20 pares de gladiadores: nestes, somente dois […] não piscavam os olhos
diante de qualquer gesto ameaçador que lhes fosse feito; eles eram também invencíveis. A maioria deles
pestaneja sempre, o que se considera um sinal de timidez»;

XX (milia) gladiatorum in Gai principis ludo fuere, in iis duo omnino qui contra comminationem aliquam
non coniverent, et ob id invicti. Tantae hoc diificultatis est homini. Plerisque vero naturale ut nictari non
cessent, quos pavidiores accepimus (Nat. Hist. 11.54);

«De entre os gladiadores que o imperador Calígula mantinha, sabe-se que o thraex Studiosus tinha o braço direito
mais comprido» (Nat. Hist. 11.99).

Mas o físico e o tamanho não eram tudo: um certo Tarautas ganhou fama, não obstante a sua
baixa altura e pela sua feiura, mas também pelo seu carácter audacioso e sanguinário (Díon
Cássio, 78, 9).

A idade do recruta constituía outro factor determinante. De facto, preferiam-se homens


jovens já que, para além de possuírem as qualidades físicas requeridas, submetiam-se mais à
estrita disciplina imposta na caserna, e aprendiam com acrescida facilidade. É provável que os
auctorati tivessem algo a dizer no que respeita à escolha da sua especialidade e, se realmente
isto aconteceu, então significaria mais uma cláusula estipulada no contrato que os ligava ao
lanista. Contudo, certos proprietários de familiae gladiatoriae não cuidaram de uma adequada
afectação dos seus recrutas, resolvendo, pura e simplesmente, tirar à sorte a armatura em que
ficariam, como atestou Cícero: «Talvez um amor desmedido pela glória o tenha levado a
comprar um brilhante e magnífico grupo de gladiadores. Ele conhecia os gostos do povo, ouvia
antecipadamente as suas aclamações e via-o afluir de toda a parte […]. No entanto, quando foi
visto, não a escolher campeões nos mercados, mas a comprar homens nos ergástulos, o pior

506
refugo dos escravos, para a seguir lhes dar o nome de gladiadores, e fazer, por sorteio, samnitis
ou provocatores, não cabe recear as consequências de uma licença tão culpável e de um tal
desprezo pelas leis?» (Pro Sestio, 64.134).

Este trecho permite entrever a mutação que já se havia operado em meados do século I a. C.
Cícero denuncia a sobrevivência de uma prática obsoleta, através da qual a moda do local e do
momento, bem como a preferência de um lanista ou de um editor por esta ou aquela categoria
ou, mais simplesmente ainda, o desinteresse dos mesmos ou a sua falta de profissionalismo, a
qual decidia a afectação dos «alunos» a uma armatura que gozasse de mais popularidade do
que as outras. Parece, então, que no tempo de Cícero, os gladiadores não se resumiriam mais a
meros combatentes coagidos a lutar e a morrer, mas tornando-se, cada vez mais, em «actores»
que tinham uma palavra a dizer.

A escolha das armaturae

Porém, a ideia de uma selecção das armaturae durante ou após a «junta de inspecção
médica» é rejeitada por vários estudiosos. Estes, escorando-se na arqueologia experimental,
concluíram que existiria até um cursus para todos os gladiadores, progressivo e composto por
escalões, em função da complexidade crescente das técnicas de combate empregues nas
diferentes armaturae. Segundo E. Teyssier, um gladiador principiaria a sua carreira como
provocator, visto que a aprendizagem das suas técnicas de porfia seria a mais polivalente,
permitindo, numa segunda fase e, consoante as aptidões manifestadas, que o combatente se
especializasse nas categorias dos «grandes escudos» (scutati) e dos «pequenos escudos»
(parmati), tornando-se, assim, em murmillones ou em hoplomachi e thraeces. Só numa terceira
etapa, depois de o instruendo se ter aperfeiçoado nestas técnicas sucessivas, é que alcançaria
às armaturae que, supostamente, exigiriam o máximo de talento e destreza, as de retiarius e
de secutor (o primeiro descendendo do ramo dos hoplomachi, devido ao emprego de uma
arma de haste, e o último procedendo do ramo dos murmillones).

Em resumo, o provocator seria o tipo de gladiador menos experiente, e o retiarius e o secutor


os mais «batidos». É admissível que as reconstituições efectuadas no âmbito da arqueologia
experimental conduzam a que se fique com uma clara sensação da existência de uma
complexidade desigual nas diferentes hoplomaquias, mas tal não quer dizer, necessariamente,
que todas as armaturae se encontrassem hierarquizadas com base em critérios técnicos. Na
realidade, a teoria de É. Teyssier suscita fortes objecções 1498.

Eis alguns argumentos que põem em causa a visão defendida por este historiador francês: o
trecho atrás citado de Cícero alude a um proprietário de uma familia que repartiu os seus
recrutas pelas diversas armaturae por meio de um sorteio, o que não faria sentido se
realmente houvesse um cursus técnico; quanto às distintas categorias de gladiadores, se de
facto correspondiam a uma hierarquia, a designação de provocator bastaria, per se, para
indicar o nível mais baixo da gladiatura. Mas, sendo assim, porquê adicionar, de maneira
inutilmente redundante, um sistema de graus (os pali) no seio de cada categoria? Veja-se o
conhecido caso do provocator Anicetus, que na sua estela funerária se anuncia como primus,
ou seja, primus palus, o topo da hierarquia gladiatória, ainda, ostenta o título de instrutor
(doctor), o que nos confirma tratar-se de um especialista de créditos firmados. De imediato se
1498 Aqui seguimos em larga medida os pontos de vista de M. Junkelmann (Gladiatoren…, p. 187) e de F. Gilbert
(Devenir Gladiateur…, pp. 31-33).

507
infere que este gladiador não fez a sua carreira numa armatura para principiantes, nem tão
quanto terá prosseguido o tal pseudo-cursus;

Centremo-nos nos retiarii e secutores. Para combaterem sob estas panóplias, Teyssier
sustentou que os indivíduos teriam de subir progressivamente os escalões, acumulando pugnas
e vitórias, para assim ganharem o direito a ingressar nestas duas armaturae. Uma simples
leitura dos palmarés ou do estatuto de gladiadores atestados nas fontes epigráficas é mais do
que suficiente para provar o contrário. Se a condição de veteranus nada demonstra, já que um
gladiador passaria a designar-se deste modo desde que sobrevivesse ao seu primeiro combate,
antes de atingir o topo da hierarquia, o título de tiro, por outro lado, afigura-se isento de
equívocos. Ora acontece que conhecemos dois aprendizes retiarii, Felicianus e Servandus, e de
outros, na armatura dos secutores, como Ripanus, Silvanus, Barosus, Proshodus, todos
mencionados na inscrição de um collegium de Roma. Como fazer destas duas armaturae as
categorias mais elevadas da arena, mesmo quando nelas estiveram presentes tirones, homens
que ainda nem sequer haviam lutado pela primeira vez? Um veterano calejado, depois de
superar todos os escalões, com sangue, suor e lágrimas, suportaria alguma vez a ideia de ser
apresentado novamente como «recruta»?

Temos conhecimento dos preços impostos aos lanistae pelo Aes Italicense (fonte que merece
comentários desenvolvidos noutro capítulo), assim como sabemos que havia óbvias diferenças
entre gladiadores experientes e novatos. Em contrapartida, não se encontrou qualquer
testemunho indicando que uma armatura foi alugada por um valor mais alto do que outra, o
que teria toda a lógica se existisse uma hierarquia entre elas;

Por que razão os munerarii, que celebravam mediante pinturas ou mosaicos os espectáculos
que ofereceram, se reportaram a gladiadores de categorias alegadamente «inferiores», assim
correndo o sério risco de passarem por sovinas? Se nos ativéssemos ao raciocínio de E.
Teyssier, seria, então, mais lógico que eles imortalizassem o seu evergetismo fazendo somente
referência aos retiarii e aos secutores;

Por último, como se explica que um mesmo gladiador lutasse em várias armaturae, numa
«superior» e noutra «inferior», o que levaria à sua degradação? O famoso Hermes foi retiarius
mas igualmente hoplomachus (CIL VI 37842 a), e combateu ainda numa terceira armatura.
Nada garante que tenha transitado por três armaturae, como se fossem etapas a transpor
obrigatoriamente. Se tal fosse o caso, como entender que um gladiador chamado Smaragdus
(AE 1908, 0222) tenha lutado simultaneamente como murmillo e hoplomachus, isto é, em duas
armaturae contraditórias, as dos parmati e dos scutati? E que dizer do gladiador Marcianos
Polyneikes, cujo epitáfio nos informa que começou como secutor para, depois, se tornar um
murmillo? Caso seguíssemos literalmente a teoria proposta por Teyssier, este homem teria feito
o seu cursus completamente ao contrário! Num grafito descoberto na primeira caserna
gladiatória que se estabeleceu em Pompeia (situada na Regio V.5.3), o Samus afirma que era
simultaneamente murmillo e eques, tendo ali vivido 1499 (CIL IV 4420); um tal Antigonus, em
Ravenna, além de ter o grau de secundus palus, combateu nas armaturae de murmillo e
provocator (AE 1990, 00355).

A escolha de um «nome de espectáculo» ou de «guerra»

1499 Samus…m(urmillo) idem eq(ues) hic habitat. Veja-se L. Jacobelli, Gladiators at Pompeii…, p. 65.

508
Alguns autores modernos compararam os gladiadores com os soldados da Legião Estrangeira
devido ao facto de que, tanto uns como os outros, mudavam de nome aquando da sua
incorporação. No entanto, as duas situações são bem diferentes, já que, se por um lado, se
tratava de dar ao legionário uma nova identidade, assim como uma nova nacionalidade (Legio
patria nostra), para fazer tábua rasa do passado individual e forjar um esprit de corps, por
outro, no caso dos gladiadores, significava, basicamente, adoptar um «nome artístico».

Estes nomes, que podemos cunhar de «publicitários», de fácil memorização para o público,
tinham por objectivo revelar a personalidade dos combatentes e, também, torna-los mais
intrigantes e populares.Alternativamente, permitiam a certos indivíduos ocultar as suas
verdadeiras identidades, por vezes, para ocultar o opróbrio que os seus familiares sentiriam ao
saber que um dos seus membros se desclassificara voluntariamente no seu estatuto social.
Esconder o rosto debaixo de um elmo ajudava, de igual forma, a não se ser reconhecido. Uma
passagem de Juvenal refere-se a tal facto, a propósito do patrício Gracchus, que nem sequer
tivera a decência de se disfarçar, uma vez que combatia na arena com a cara descoberta, como
retiarius.

Contudo, nem todos os gladiadores adoptavam um nome de «guerra». Estes eram indivíduos
que pretendiam realmente fazer carreira. Atesta-se este costume no Ocidente desde o século I
d. C., e no Oriente nos séculos II e III. Muitos auctorati resolviam manter o nome inscrito no
seu estado civil. Para atenuarem a sua degradação, supostamente passageira, os cidadãos
preferiam conservar os seus tria nomina (praenomen, nomen e cognomen) que mostravam o
seu estatuto. Quanto aos escravos, acrescentavam ao seu nome o do seu dono, como, por
exemplo, Faustus Itaci (CIL, IV 1421), «Faustus pertencente a Itacus»1500.

Podemos classificar os nomes de gladiadores, mencionados em elevado número de textos


literários e inscrições, em diferentes categorias. Para começar, havia os que remetiam para uma
particularidade física ou moral, transmitindo a pretensa superioridade do combatente: Pugnax,
Ferox, Callimorphus, Callidromos, Cursor ou Velox 1501. Havia nomes verdadeiramente
metafóricos, expressando o mesmo género de qualidades guerreiras, designadamente a
coragem e a força, materializadas num animal ou num elemento simbólico: Leo, Tigris, Ursius
ou Fulgur («Raio»), Etrodelos («Furacão») e Flamma («Chama»). Quanto a Capreolus («cabrito-
montês»), talvez fosse um nome empregue para transmitir a ideia de que o combatente se
movimentava com agilidade e destreza.

Quanto aos nomes de deuses ou de guerreiros lendários, realçavam a invencibilidade dos


gladiadores: Aias/Ajax, Patrocles/Pátroclo, Cástor, Diomedes, Hector, Achilles ou
Herakles/Herculis (Hércules). O imperador Cómodo, por exemplo, auto-intitulou-se de
«Hércules Romano», porque, à semelhança do herói, o princeps tinha o hábito de se dedicar à
caça de animais (Dião Cássio, LXXII, 15, 5; Historia Augusta/SHA, Cómodo, 8.5). De acordo com
a Historia Augusta/SHA (XI, 8-10), na mesma ocasião, Cómodo quis igualmente chamar-se
Amazonius, para assim descer à arena vestido como uma amazona, não hesitando em servir-se
dos nomes de outros gladiadores com enorme prazer:

«Chegou até a dar os seus nomes a todos os meses do ano, que eram estes: Amazonius, Invictus, Felix,
Pius, Lucius, Aelius, Aurelius, Commodus, Augustus, Heracleus, Romanus, Exsuperatorius. Com efeito, ele
utilizava tanto um como qualquer outro destes nomes; quanto aos de Amazonius e de Exsuperatorius,
1500 Sobre os nomes dos gladiadores, observem-se os judiciosos comentários de Gian Luca Gregori, Ludi e
munera: 25 anni di ricerche sugli spettacoli d’Età Romana, Milão, 2011, pp. 41-42.

1501Respectivamente: «Combativo», «Feroz», «Bem-proporcionado [de formas]», «Rápido», «Corredor» e


«Veloz».

509
atribuía-os a si próprio invariavelmente, como se fosse, simplesmente, vencedor de todos os homens,
tamanho era o excesso que o monstro conduzia a sua loucura».

Dentro da mesma série de ápodos, existiram até dois irmãos gladiadores que adoptaram os
nomes de Eteokles e Polyneikes, em clara referência a dois lendários irmãos inimigos que se
mataram um ao outro sob as muralhas de Tebas. Certos homens da arena não foram tão longe,
optando por escolher nomes de antigas estrelas da gladiatura, como Myrinus ou Columbus
(que foi assassinado a mando de Calígula). Outros preferiam ser mais directos: Triumphus,
Invictus, Exsuperator («Grande Vencedor»),Victor ou Nikephoros/Nicephoros
(«Vitorioso»).Determinados gladiadores insistiam na tónica de serem bafejados pela sorte,
adoptando nomes como Faustus («Afortunado») ou Felix («Felizardo»). Utilizavam-se
igualmente nomes extraídos da mitologia não guerreira: Hermes, Perseu, Astyanax, etc. Outros
remetiam para vertentes eróticas e sexuais, certamente empregues por combatentes atraentes
e que usufruíam de êxito entre as mulheres: Narcissos, Cupido, Eros, Bellerefons. A
necessidade que cada gladiador sentia de se distinguir dos demais levou, por vezes, à escolha
de nomes de pedras ou metais preciosos, como Amestystus1502, Beryllus, Smaragdus 1503 ou
Aureolus1504.

Quem escolheria tais nomes? Não restam grandes dúvidas que seria o lanista, cuja
«sensibilidade comercial» o ajudava a perceber, quase de imediato, as características mais
peculiares dos seus recrutas, transformando-as em argumentos publicitários. No entanto,
pontualmente, talvez o próprio gladiador tivesse voto na matéria, sobretudo se fosse um
auctoratus.

A gestão e o enquadramento profissional dos ludi

O Estado romano revelou-se extremamente atento em relação aos ludi imperiales. A direcção
e a gestão administrativa destas escolas confiavam-se aos chamados procuratores ad fam(ilias)
glad(iatorias), procedentes da ordem equestre 1505 (CIL VI 1645, 1647; CIL VIII 8328; CIL XIV
2922) e escolhidos entre os administradores financeiros, os intendentes provinciais e, até,
entre os tribunos das legiões. Um procurator era um agente do imperador a vários níveis. A
maioria deles possuía experiência administrativa, alguns chegando mesmo a governar
províncias enquanto representantes do princeps. Eis alguns exemplos: P. Bassilius Crescens
serviu como procurator do Ludus Matutinus, cargo que acumulou com o de supervisor do
fornecimento de cereais do porto de Óstia 1506; P. Cominius Clemens, que havia sido prefeito
das frotas pretorianas de Misenum e de Ravenna, bem como procurador da província da Dácia
Apulensis (Roménia), também geriu um ludus imperial no Norte de Itália1507; em finais do

1502 «Ametista».

1503 «Esmeralda».

1504 «Dourado».

1505H. G. Pflaum, Les procurateurs équestres sous le Haut-Empire romain, Paris, 1950, pp. 76-77. A maioria dos
procuradores encontrava-se ainda no começo da estrutura do cursus honorum equestre.

1506 ILS 1428; G. Ville, La gladiature…, p. 281.

1507 ILS 1412.

510
século II d. C, T. Flavius Germanus exerceu, em diversos momentos, o cargo de procurator do
Ludus Matutinus e do Ludus Magnus da Urbs; foi, ainda, o curator responsável pela
organização do grande triunfo de Cómodo, em 180 d. C. 1508.

A nomeação destes indivíduos para a gestão das «escolas» constituiu um grande passo rumo à
profissionalização do sistema gladiatório. Os procuratores geralmente administravam os ludi
imperiales de uma determinada região, a qual, ocasionalmente, atravessava as fronteiras das
províncias 1509: (a) Itália, incluindo a Transpadana e a Ligúria, por vezes englobando igualmente
a Panónia e a Dalmácia 1510; (b) as Gálias, as Hispânias e a Britânia, em certas situações
abrangendo as Germânias e a Récia 1511; c) a Ásia e as províncias vizinhas 1512.

No Ocidente, conhece-se o caso de um procurator que esteve à frente dos ludi imperiales da
Itália Setentrional, da Panónia e da Dalmácia, correspondendo aos actuais territórios da
Áustria, Hungria e da ex-Jugoslávia. Outro procurator, L. Didius Marinus, foi um autêntico
especialista na gestão e supervisão de «escolas» imperiais, tanto na pars Occidentalis, como na
pars Orientalis: (no Oeste) nas Gálias, Britânia, nas Hispânias, Germânias e na Récia (Suíça e
Baviera); (no Leste), Ásia, Bitínia, Galácia, Capadócia, Lícia, Panfília, Cilícia, Ponto, Paflagónia (as
nove províncias cobrindo quase toda a área da moderna Turquia) e Chipre 1513. Estes
procuratores afirmavam-se, acima de tudo, como homens de negócios que, em nome do
princeps, supervisionavam a aquisição, o treino, a manutenção e o aluguer dos gladiadores
imperiais1514.

Quando um procurator tinha a seu cargo vários ludi na sua circunscrição, dispunha de
subprocuratores a coadjuvá-lo (CIL II 1085). Em conjunto, dirigiam equipas especializadas
(liciniae) no seio de cada estabelecimento, que estavam sob as ordens directas de um liberto,
que, por sua vez, se encontrava secundado por officiales. Nestas equipas, havia despenseiros
(dispensatores ou ecónomos) (CIL VI 10166) e secretários (tabularii), todos, em regra, escravos
imperiais, além de um cursor, que talvez acumulasse as funções de porteiro e mensageiro (CIL
VI 10165), possivelmente também de condição servil. Os procuratores velavam pelo
recrutamento, pagamento e manutenção dos gladiadores, tendo igualmente a seu cargo os
contactos com os governadores de províncias, designadamente para o controlo das
deslocações dos combatentes e dos seus equipamentos com vista à sua participação em
munera.

Noutros ludi importantes, como os geridos por colégios sacerdotais, ou nos grandes ludi
municipais, existiria um pessoal administrativo mais reduzido, mas, em termos organizativos,

1508 ILS 1420.

1509 G. Ville, La gladiature…, pp. 284-287; T. Wiedemann, Emperors and Gladiators…, pp. 170-171.

1510 EAOR I, 21, II, 2-4, III 3, VII, 4, VIII, 1.

1511 AE 1996, 1603; CIL III 6753 = ILS 1396.

1512 CIL III 6994, 6753. Contudo, nenhum dos procuratores que consta nas fontes epigráficas teve, sob a sua
gestão, províncias no Norte de África, as quais, por outro lado, fornecem epitáfios de venatores e sodalites do
anfiteatro, e muito raramente de gladiadores. Apenas um hipotético proc(urator) totius l[an]ista[turae d(omini)]
n(ostri) M(arci) Aureli, caso aceitemos a antiga proposta de restituição de T. Mommsen para uma inscrição da
Byzacena (CIL VIII 11163), poderá servir para dizer que existiu similar estrutura organizativa da gladiatura nas
províncias africanas.

1513 ILS 9014; 1396.

1514 R. Dunkle, Gladiators…, p. 53.

511
decalcado a partir do sistema implantado nas «escolas» imperiais. Afora estes grupos de
considerável envergadura, havia os ludi privados e as pequenas cidades, que teriam de agir de
acordo com os seus recursos e competências.

Um procurator ou um lanista não empregavam apenas gladiadores: era necessário de dispor


de um pessoal qualificado que pusesse em funcionamento o ludus em questão, cuidassem dos
seus «alunos», alimentando-os, treinando-os e equipando-os, etc. Nos ludi imperiales, devia
haver centenas destes profissionais, de condição livre ou servil. Nas familiae itinerantes, pelo
contrário, tais auxiliares contar-se-iam pelos dedos de uma mão (logicamente para minimizar
as despesas) e, frequentemente, um só homem exerceria várias funções ao mesmo tempo. Isto
corresponderia, possivelmente, ao caso dos massagistas, que podiam ser, ao mesmo tempo,
médicos, farmacêuticos e nutricionistas, competências também explicitadas, sobretudo nos
grandes ludi.

A inscrição de um collegium de gladiadores de Roma alude a um massagista (unctor) chamado


Pirata (CIL VI 631), que segundo reza a história, terá sido o homem que assassinou, por
estrangulamento, o imperador Cómodo. O massagista estava encarregado de untar os corpos
dos gladiadores com unguentos e perfumes, visando relaxar os músculos e os tendões antes e,
principalmente, depois de intensos esforços físicos. A sua função equivalia à de um verdadeiro
cinesioterapeuta, que, em princípio, conhecia os pontos de pressão para «tirar os nós» de
certas zonas do corpo em tensão e aliviar lesões. Os mais competentes neste domínio eram os
iatraliptas, que praticavam a iatraléptica, ciência criada no século V a. C. por um mestre de
Hipócrates, especializada na ginástica médica. No século I da nossa era, tornou-se um ramo
reconhecido da medicina, sendo os seus métodos terapêuticos aplicados nos ginásios e nas
casernas gladiatórias1515. Recomendava-se muito a prática de fricções, várias vezes por dia: pela
manhã, para preservar o corpo do frio, antes e a seguir aos exercícios, mas igualmente ao cair
da tarde. Ela entendia-se mesmo como parte integrante dos treinos, servindo para libertar o
corpo, aliviando-o da tensão e da fadiga.

A mais relevante era conhecida como «fricção apoterapêutica», que requeria uma grande
quantidade de mãos para se massajar energicamente o desportista, ungindo o seu corpo com
muito óleo. Ora isto suscita um problema, o do número de massagistas que seria necessário,
quando estes tivessem de se ocupar de dezenas ou até centenas de gladiadores no fim dos
períodos de exercícios. Se calcularmos três ou quatro massagistas para proceder às fricções
num só homem, constatamos que seria preciso dispor de uma quantidade dificilmente
imaginável destes técnicos. Os gladiadores deviam exercitar-se, sucessivamente, repartidos por
grupos, na área de treino, enquanto outros descansavam ou efectuavam tarefas fisicamente
menos extenuantes. Será até lícito imaginar que os próprios combatentes se entregassem
também à aplicação das fricções uns nos outros, o que, sob o ponto de vista económico, se
afiguraria mais rentável para um lanista, em vez de empregar centenas de massagistas.

***

Certos gladiadores tiveram escravos (principalmente no Oriente grego) e, mesmo, um


massagista exclusivo: sabemos de um tal Porius que libertou precisamente um, após a sua
vitória num duelo. Em abono da verdade, já vemos representados cuidados médicos prestados
a atletas em fontes iconográficas etruscas, bem como músicos e árbitros, figuras que também
se tornariam incontornáveis na arena, susceptíveis de serem fornecidos aos editores dos

1515 A este respeito, consulte-se S. Perea Yébenes, «Algunas consideraciones sobre la iatraléptica antigua y la
constitución de Vespasiano a favor de los médicos de Pérgamo», Florentia Iliberritana. Revista de Estudios de
Antigüidade Clasica, 20 (2009), pp. 201-225.

512
espectáculos, à semelhança dos combatentes. Nos munera, cabe ainda acrescentar a presença
de um pregoeiro ou arauto (praeco), que anunciava, em voz alta, os nomes e o historial dos
gladiadores que iriam porfiar, assim como os veredictos do editor. Num anfiteatro, para que
tudo corresse bem, também se requeria a participação de uma série de auxiliares (ministri):
maqueiros (que transportavam em padiolas os gladiadores mortos e feridos), indivíduos que
carregavam as armas ou fossem portadores de cartazes, serviçais que tratavam da limpeza da
arena, que montassem cenários ou, ainda, açoitadores (lorarii, cabendo-lhes a tarefa de
chicotear os combatentes mais relutantes a lutar).

No entanto, estes agentes, imprescindíveis para que todas as etapas de um munus se


desenrolassem da melhor maneira, estariam, em princípio, mais afectos aos anfiteatros do que
aos ludi. Mas, para formação dos gladiadores, era importante que estes se familiarizassem com
a presença e a intervenção desse pessoal e que o mesmo, por vezes surgisse nas casernas. Se
as pugnas no anfiteatro se travavam ao som da música, incutindo-lhes ritmo e maior
intensidade dramática, é lógico pensar que as próprias fases de treino também fossem
acompanhadas pelo toque de instrumentos.

Atrás abordámos a questão das armarias nas escolas gladiatórias e a razão da sua
descentralização, embora não possamos tornar esta realidade extensiva a todos os ludi do
mundo romano, em virtude da escassez de elementos informativos. Em Roma, a armaria estava
sob a guarda de um praepositus armamentario: este consistiria apenas num simples ecónomo
ou no responsável pelos vários grupos de artífices que fabricavam e reparavam os
equipamentos? Uma inscrição descoberta na capital alude a um manicarius, Demosthenes (CIL
VI 631), isto é, um artesão que confeccionava braçais (manicae). Se nos basearmos na epigrafia
concernente ao exército romano, deparamos com outros especialistas, que talvez tenham
existido no mundo gladiatório: fabricante de gládios (gladiarius) ou de escudos (scutarius). Para
os cavalos e carros, deveria haver certamente artífices competentes que tratassem dos
veículos, dos arreios e das selas (marceneiros, carpinteiros, correeiros, seleiros, cordoeiros).

Nos ludi, a presença de condenados (que não tinham muito a perder) e de escravos exigia
também a permanência de um posto de guarda, sobre o qual se descortina uma alusão numa
passagem de Tácito (Ann. 15.46.1), quando este relata uma tentativa de evasão abortada em
Praeneste.

Por último, não podemos olvidar os indivíduos que, nas escolas, efectuavam as tarefas
domésticas, incluindo lavagem de roupa e preparação das refeições; seriam, com toda a
probabilidade, escravos ou, então, membros dos próprios agregados familiares dos
combatentes. Com efeito, concubinas, esposas e filhos de gladiadores dedicar-se-iam a tais
actividades, recebendo em troca «cama e mesa» na caserna. Aparentemente, grande parte
desse pessoal conservaria a sua honorabilidade (à excepção dos escravos), contrariamente aos
combatentes, fossem coagidos ou voluntários.

Por vezes, desenvolviam-se laços de amizade entre eles, como a epigrafia no-lo mostra:
observam-se casos em que um desses auxiliares erigiu uma estela em memória de um
gladiador, ou de um combatente que se ocupou do monumento funerário de um médico ou de
um instrutor. Em Nemausus, por exemplo, o doctor Lucius Sestius Latinus consagrou uma estela
para o seu amigo defunto, um thraex chamado Quintus Vettius Gracilis; noutra região do
império, um médico (medicus), Agathocles, levantou um monumento funerário em honra de
um retiarius (CIL VI 10164).

Os instrutores

513
Como vimos, as necessidades de um ludus eram numerosas e variegadas, mas, em primeiro
lugar, diziam respeito à preparação física e técnica dos gladiadores, confiada a instrutores
(doctores gladiatorum e magistri), aos quais se alude, pela primeira vez, nos escritos de Valério
Máximo, na descrição de factos passados em 105 a. C. No entanto, estes treinadores terão
aparecido quase ao mesmo tempo que a instituição gladiatória. Os instrutores mencionados
nesse ano seriam, sem dúvida, antigos gladiadores e, talvez, quem sabe, ex-militares. O que de
concreto sabemos é que quando o cônsul Rutílio decidiu conferir uma melhor formação às suas
legiões, solicitou instrutores aos lanistae e não ao exército, o que deixa entrever o seu elevado
grau de perícia na prática da esgrima, ou, em sentido inverso, a fraca credibilidade que então
se daria às técnicas militares, que, havia pouco, demonstraram a sua obsolescência frente às
hordas dos Teutones e dos Cimbri, tribos germânicas. No período final da República, em
meados do século I a. C., esses «doctores» podiam também corresponder a personagens de
alta condição social, que, pela sua proficiência na matéria, fossem escolhidos para ministrarem
instrução a combatentes da arena. Tal foi o caso de Júlio César, que aos mesmos confiou a
preparação da sua familia:

«Quanto aos alunos, não foi no recinto de um ludus, nem pelos instrutores que habitualmente os
formavam, mas em residências particulares e treinados por cavaleiros romanos ou, até, senadores
hábeis no manejamento das armas, aos quais [César] suplicou (as suas cartas provam-no) que
instruíssem cada um dos seus gladiadores e que presidissem, eles próprios, como mestres aos seus
exercícios» (Suetónio, Divus Iul. 26)1516.

Isto não causa estranheza, já que, ao tempo, o ofício das armas era sempre ensinado aos
rapazes das classes dirigentes, tanto na sua vertente teórica como na prática, já que eles viriam
a constituir a elite do exército romano e a comandar as legiões. O seu estatuto social
condicionava-os a pagar o «imposto do sangue» durante um certo número de anos, e o serviço
militar representava um ponto de passagem obrigatório para todos os que aspirassem a singrar
na carreira política durante a República. Com base em Suetónio, tais patrícios romanos
procuraram agradar a Júlio César ao satisfazerem ao seu pedido, fosse por amizade, fosse
porque esperariam, em troca, muitas benesses de um homem que se encontrava em plena
ascensão.

É óbvio que se um lanista fosse bater à porta da villa de um desses nobres, não teria
quaisquer possibilidades de obter deles o mesmo tipo de serviços. Assim, o primeiro teria de se
contentar com o talento e a capacidade didáctica de gladiadores veteranos já retirados ou de
outros que ainda estivessem no activo, como, mais tarde, aconteceu ao célebre Hermes, que
na arena combatia em diferentes armaturae e era, ao mesmo tempo, magister no seu ludus.
Citemos, também, um doctor de essedarii que, ao mesmo tempo, era um gladiador primus
palus (CIL XIV 1832). O corpus epigráfico fornece um apreciável número de inscrições onde
surgem doctores, mostrando que estes homens eram especializados em diversas técnicas de
combate gladiatório e até tinham, em alguns casos, escravos ao seu serviço. Threption, por
exemplo, ostentava os títulos de doctor thraecorum e de caesaris nostri servus (CIL VI 10192),
enquanto o cidadão C. Fufius Hyancintus se ocupou da formação de hoplomachi (doctor
[h]oplomachorum; CIL VI 37842), como outros dois (CIL VI 37842; CIL VI 10181: C[aius]
Cassius/Gemellus/doctor/oplomacor[um]).

Em Itália, sobreviveram as lápides de três doctores murmillonum (CIL V 01907; CIL VI 10174
Gratus/doctor murm[illonum]/v[ixit] a[nnis] XXVII; CIL VI 10175: A[ulus]

1516Tirones neque in ludo neque per lanistas sed in domibus per equites Romanos atque etiam per senatores
armorum peritos erudiebat.

514
Postumius/Acoemetus/doctor/ myrmillon[um]), e, em Espanha, na cidade de Córdova (antiga
Corduba), encontra-se a menção a um doctor de retiarii, que mandou erguer uma estela em
honra a um dos seus instruendos, Cursor (CIL II-VII 00360). Quanto a exemplos de doctor
secutorum, citemos Q. Fabi Viatoris1517, e outro, em Corinto, que enterrou e erigiu uma lápide
em memória do retiarius Draukos1518. O último instrutor referido, cujo nome não consta da
lápide, aparece designado como épistatés (έπιστάτης), palavra equivalente em grego a doctor
ou magister, a qual foi tomada de empréstimo do vocabulário dos desportos atléticos da
Hélade1519.

Nos ludi privados mais modestos, que englobavam poucos «pensionistas», os quais
provavelmente lutariam como representantes das principais armaturae (e, extensivamente, as
mais lucrativas), é possível que existisse só um homem a superintender a instrução e os
exercícios de todos, por motivos económicos: talvez tenha sido o caso de Germanius Victor,
que na sua lápide aparece qualificado genericamente como doctor gladiatorum, não se
precisando a sua especialidade (AE 1962, 00108).

No denominado «Cemitério dos Gladiadores» de Éfeso, descoberto em 1993 por uma missão
arqueológica austríaca, recuperaram-se diversas lápides, designadamente uma em memória do
instrutor Euxenius, erigida por dois jovens gladiadores. É tentador associar este nome a um dos
esqueletos achados na necrópole, que, segundo o exame forense, se trataria de um homem
que faleceu com cerca de 50 anos, apresentando vestígios de dois ferimentos no crânio,
perfeitamente sarados. O indivíduo terá morrido de causas naturais.

Para concluir, julgamos que deve ter havido uma distinção entre os étimos doctor e magister: o
primeiro aplicar-se-ia a um veterano, já retirado da arena, que, em função da sua experiência e
eventual prestígio, seria o principal instrutor, ao passo que magister se reportaria a gladiadores
recentemente retirados ou ainda no activo, mas com provas dadas, que serviriam de
assistentes dos doctores, sobretudo nos aspectos mais práticos e fisicamente intensos do
treino dos instruendos. Conquanto não disponhamos de sólidos elementos probatórios que
confirmem tal hipótese, julgamos que ela encerra bastante plausibilidade.

Os médicos

Um gladiador exigia um investimento consequente, para que estivesse sempre nas melhores
condições para combater. Assim, era do máximo interesse para o lanista mantê-lo com boa
saúde e dispor de meios para o tratar o mais rapidamente possível na sua recuperação, se
necessário. Para o efeito, ele recorria aos serviços de um médico (medicus). Nos ludi mais
importantes, era habitual que dispusessem de oficiantes próprios e, mesmo, de enfermarias

1517 CIL VI 4333= ILS 5116 = EAOR I, n.º 60: Diis Manibus sacr[um]/Q[uinti] Fabi Viatoris doctori [sic]/secutorum
fecit Q[uintus] Fabius Castus bene merenti.

1518 M. J. Carter, «A Doctor Secutorum and the Retiarius Draukos from Corinth», Zeitschrift für Papyrologie und
Epigraphik 126 (1999), pp. 265-268.

1519 A este respeito, L. Robert («Un citoyen de Téos à Bouthrôtos d’Épire», CRAI, 1974, p. 520) escreveu:
«L’’épistatès’ est un maître de gymnastique, un soigneur, un entraîneur…».

515
exclusivas. Pelo contrário, um empresário pouco afortunado via-se compelido de procurar tal
competência fora do seu ludus, já que possivelmente não teria suficiente dinheiro para
contratar um médico a tempo inteiro; neste caso, o lanista contactaria então com um médico
«ambulante» (circulator) ou transportaria os seus homens feridos ou doentes até ao
dispensário (medicina, taberna medicina) do bairro ou localidade onde se encontrasse. Para as
situações mais graves, havia também «hospitais públicos» (valetudinaria), desde
aproximadamente o século II d. C.

Mas era preciso escolher um médico efectivamente bom, existindo, na época imperial,
profissionais especializados em diversas áreas. De facto, todas as partes do corpo tinham os
seus práticos. Esta segmentação, da qual Marcial escarneceu, via-se ainda mais acrescida pelo
facto de muitas «escolas» reclamarem médicos, principalmente a partir da introdução de
correntes médicas estrangeiras, como a egípcia. No entanto, subsistiam muitas dúvidas em
relação à competência e à qualidade dos tratamentos dispensados por muitos desses
indivíduos, pois que a par de verdadeiros profissionais, havia igualmente fornadas de
charlatães.

De acordo com Cláudio Galeno, um dos mais famosos médicos da Antiguidade, a única
diferença entre a maioria dos seus confrades e os salteadores radicava, simplesmente, no facto
de que os primeiros matavam nos centros urbanos e os últimos nos meios rurais. Na realidade,
porém, alguns médicos terão sido objecto de sanções muito severas, incluindo a pena de
morte, caso se provasse que tivessem provocados graves problemas a um homem livre, norma,
aliás, estipulada numa lei proposta por Sila, em 81 a. C. Em contrapartida, se o paciente fosse
um homem de condição servil, o mau médico via-se obrigado a pagar uma coima, a título de
indemnização, ao seu dono.

Desde o começo que os médicos eram, tradicionalmente, de origem grega, embora muitos
Romanos se mostraram suspicazes face às manifestações do helenismo em solo itálico. Ainda
assim, o seu número não cessou de aumentar, e os romanos que nutrissem vontade em
abraçar a carreira médica precisariam de aprender grego e, amiúde, de se fazerem passar como
helenos. A maioria dos medici compunha-se de libertos ou escravos, mais raramente de
homens livres. Júlio César concedeu-lhes a cidadania romana, desde que exercessem o seu
ofício em Roma (Suetónio, Divus Iul. 42). Não tardou que a sua ciência ganhasse importância,
paralelamente aos seus honorários, que subiram em flecha e, para alguns, quase não
conheceriam limites.

O Poder Central romano cedo criou um serviço de saúde para os seus funcionários e, também,
para os ludi imperiais. Estes médicos do Estado tinham, entre outras incumbências, a de
prestarem assistência aos actores dos espectáculos, nos quais teriam de intervir, muitas vezes,
com toda a celeridade, mesmo junto do público, poer exemplo, em casos de desmaios,
indisposições ou de ferimentos ligeiros. Alguns práticos estavam afectos a um local ou a um
género de espectáculo, como sucedia com o medicus ludi matutini, que trabalhava no Ludus
Matutinus de Roma, tratando dos venatores e dos bestiarii: conhecemos um deles, liberto
imperial, que prestou cuidados de saúde igualmente na escola gladiatória de Nero (CIL VI
101071; VI 10172).

Para terminarmos, não poderíamos deixar de evocar a vida de um homem cujo nome se
encontra indissociavelmente ligado à gladiatura: trata-se do já citado médico e fisiologista
grego Cláudio Galeno, cujo saber e obrar viriam a inspirar gerações de médicos até ao século
XVI. Actualmente é considerado como o maior vulto da medicina antiga, logo a seguir a
Hipócrates. Galeno nasceu em Pérgamo/actual Bergama (129 d. C.), a maior cidade da
província da Asia e um dos primeiros centros urbanos que teve o culto imperial. Filho de um
arquitecto e construtor chamado Aelius Nico, ele começou os seus estudos em medicina na sua

516
cidade-natal (altura em que conheceu Aélio Aristídes), mas depois,aos 18 anos, para adquirir
mais conhecimentos e formação, partiu para Smyrna, Corinto e Alexandria, regressando a
Pérgamo cerca de dez anos depois. No Outono de 157 (com 28 anos), foi nomeado médico do
ludus 1520 da cidade pelo asiarca, sumo sacerdote do culto imperial, onde ficou até 161 d. C. 1521.
Aí o seu trabalho consistia tanto em limpar e coser feridas dos gladiadores- que eram mais
frequentes nas pernas e nos braços (as partes do corpo mais expostas e fáceis de atingir pela
arma do oponente) - como em supervisionar constantemente todos os aspectos que podiam
afectar a saúde dos combatentes, como a alimentação.

Mais tarde, Galeno vangloriou-se que durante o seu serviço no ludus apenas faleceram dois
gladiadores, o que significou um progresso comparativamente aos sessenta que morreram
durante o tempo em que lá esteve o seu predecessor. A sua competência levou a a que o
seguinte sumo sacerdote o mantivesse no cargo, o mesmo fazendo, aliás, os subsequentes três
asiarcas1522. Ao todo, Galeno esteve como médico no ludus ao longo de quatro anos, e foi aqui
que, ao lidar diariamente com gladiadores, que obteve quase todos os seus conhecimentos
práticos. Especializou-se no tratamento de fracturas, hemorragias e traumas severos, bem
como na criação de dietas alimentares, planos de treino e medidas de higiene e prevenção
(pode-se mesmo falar em «medicina preventiva»). Ele próprio tinha consciência de que os
ferimentos dos gladiadores lhe permitiram a conhecer bem o corpo humano, costumando
chamar às chagas «janelas para o corpo».

Depois desses quatro anos, com a experiência que acumulou e a fama que ganhou enquanto
excelente cirurgião e traumatologista, seguiu para Roma, com o objectivo de chegar ao ponto
mais alto enquanto médico, o que conseguiu: foi médico pessoal dos imperadores Lúcio Vero,
Marco Aurélio, Cómodo e Septímio Severo. Na Urbs, deram-lhe liberdade e autorização para
efectuar exibições públicas da sua proficiência em anatomia, ganhando também amizades
junto de senadores e sofistas influentes, o que, aliado ao facto de ser médico da corte imperial,
lhe conferiu enorme prestígio1523. Galeno aproveitou ainda para se dedicar à escrita, tornando-
se um autor prolífico. As suas primeiras obras versaram temas filosóficos (conhecia
profundamente Platão e Aristóteles) mas as restantes foram todas consagradas à medicina. E,
nas últimas, Galeno exarou muito daquilo que aprendeu aquando da sua estadia no ludus de
Pérgamo; em vários dos seus tratados ele já enunciava os princípios da medicina desportiva
hodierna, tais como a necessidade de uma adequada assistência médica para se atingir o
máximo rendimento desportivo; com efeito, só os homens com as melhores condições de
saúde podiam oferecer os melhores combates (Peri Trophon Dynameos, 1.8).

Destacou-se igualmente como nutricionista, defendendo a importância de um bom regime


alimentar, advertindo os leitores para o facto de muitas vezes se negligenciar este aspecto tão
relevante (os ludi mais modestos ou situados em zonas remotas lidavam esporadicamente com
o problema de arranjar bons alimentos). Galeno criticou especialmente a tendência de

1520 Cuja familia gladiatoria era propriedade do asiarca. Refira-se que Pérgamo tinha um magnífico anfiteatro.

1521 Vivian Nutton, «The Chronology of Galen’s Early Career», CQ 23.1 (1973), p. 164. A Asia romana não era o
continente, mas uma grande província que ocupava aproximadamente a metade ocidental da actual Turquia. Para
uma visão mais aprofundada da vida de Galeno, remetemos o leitor para a biografia de P. Moraux, Galien de
Pergame. Souvenirs d’un médecin, Paris, Les Belles Lettres, 1985.

1522 Galeno, De compositione medicamentorum, 13.600 (de acordo com a edição de C. G. Kuhn, Galeni Opera
omnia, 20 volumes, Leipzig, 1821-1833). Vejam-se John Scarborough, «Galen and the Gladiators», pp. 107-111 V.
Nutton, «The Chronology of Galen’s Early Career», p. 163.

1523 Contudo, a sua personalidade dotada extravasava uma imodéstia desmesurada, o que também lhe valeu
invejas e inimizades.

517
oferecer aos gladiadores uma dieta quase só à base de papas de cevada 1524, costume muito
enraízado entre os lanistae que pretendiam gastar o menos possível em comida. O célebre
médico atacava este hábito porque, ao alimentarem-se essencialmente de cevada para saciar o
seu apetite, os gladiadores dessas casernas de fraca categoria desenvolviam uma camada de
gordura excessiva, embora Galeno reconhecesse que tal adiposidade lhes proporcionava a
vantagem de uma espécie de «capa protectora» em relação às feridas superficiais (Peri
Trophon Dynameos, 1.19).

O minudente exame de Galeno das lesões e sintomatologias dos gladiadores permitiu-lhe


definir comportamentos e tratamentos que comprovou evitarem consequências nocivas;
embora os Romanos não soubessem da existência de bactérias, não deixavam obviamento por
isso de sofrer as suas consequências, pelo que para impedi-las se adoptaram certas práticas
que ajudavam a não ocorrer tais fenómenos infeccciosos. Assim, Galeno foi um dos primeiros a
converter em procedimento habitual pôr em água a ferver os instrumentos cirúrgicos sempre
que estes se utilizavam, além de lavar as feridas com vinagre (acetum, que era muito eficaz,
uma vez que o vinagre constitui um melhor anti-séptico do que o ácido carbólico, vulgarmente
chamado fenol, que Joseph Lister empregou na década de 60 do século XIX).

A maior parte dos ferimentos com que os gladiadores chegavam ao saniarium, como referiu
Galeno, afectava o sistema circulatório (hemorragias causadas pelo corte de veias ou artérias) e
foi por tratar frequentemente estas lesões que Galeno identificou o sangue venoso (vermelho
escuro) e o sangue arterial (vermelho vivo e menos espesso) e logrou demonstrar que os dois
deles tinham função diferentes e separadas. Consequentemente, este importante marco na
história do conhecimento circulatório deveu-se à relação de Galeno com a gladiatura 1525.
Ademais, em Pérgamo era permitido realizar autópsias (o que não acontecia em Roma), daí
que Galeno tenha estudado e dissecado os cadáveres não reclamados dos combatentes da
arena, fazendo várias descobertas. Concluiu também que as válvulas do coração, mas não
conseguiu perceber bem a função das mesmas, já que, após a morte, elas ficam fechadas e o
sangue acumula-se nas veias, deixando as artérias vazias.

Em suma, Galeno, com os seus tratados 1526, muito contribuiu para o avanço da medicina, nelas
encerrando uma vasta série de informações sobre o diagnóstico, o prognóstico, o ensino da
anatomia, a fisiologia1527, o sistema sanguíneo, bem como profícuos dados a respeito de
tratamentos implicando dietas alimentares e medicamentos. Foi um dos médicos mais célebres
da Antiguidade e, provavelmente, de toda a história, não surpreendendo que, na actualidade,
ainda se empregue o étimo «galeno» para se designar coloquialmente um médico.

1524 Galeno, De alimentorum facultatibus, 6.529-30 (Kuhn); veja-se, também, J. Scarborough, «Galen and the
Gladiators», p. 102-103.

1525 Os conhecimentos de Galeno sobre o sistema circulatório só vieram a ser superados a partir de 1242, quando
o médico árabe Ibn al-Nafis foi a primeira pessoa a descrever correctamente o processo da circulação sanguínea no
corpo humano, especialmente a circulação pulmonar (que Galeno não chegou a compreender).

1526 A sua produção literária é verdadeiramente inacreditável: cerca de quinhentas obras sobre medicina, filosofia
e ética; no entanto, muitas delas ficaram reduzidas a cinzas em 192, quando deflagrou um grande incêndio no
Templo da Paz. Quanto à data da morte de Galeno, há divergências entre os estudiosos, mas em princípio teve lugar
em 199 d. C. Para além dos tomos publicados por Kuhn, cumpre ainda referir a edição de Ch. Daremberg, Oeuvres
anatomiques, physiologiques et médicales de Galien, 2 volumes, Paris, 1854-1856, bem como a Exhortation à l’étude
de la médecine, Art médical, texto grego e tradução de V. Boudon, Paris, Les Belles Lettres, 2000.

1527 A. Debru, Le corps respirant. La pensée de la physiologie chez Galien, Leiden, Brill, 1996.

518
Formação e treino dos gladiadores

Ainda hoje se diz que «a ociosidade é mãe de todos os vícios». Catão-o-Velho lembra este
aforismo ao aconselhar nunca deixar os escravos desocupados, visto que se tornavam
preguiçosos e, nas suas mentes, começavam a germinar planos de evasão. Quanto aos
gladiadores, tinham muito com que se ocupar, dado que todos os dias se dedicavam a
esforçadas sessões de treino. Segundo Hipócrates (De off. Med. 20), «O movimento fortalece e
o repouso amolece», o que Galeno confirma:

«… os indivíduos que se entregam a trabalhos penosos e múltiplos, aos quais estão já acostumados,
suportam-nos durante muito tempo sem se fatigarem, ao passos que os que se ocupam de trabalhos
mais leves e pouco numerosos experimentam a sensação de cansaço».

Actualmente, isto é uma evidência: qualquer desportista tem de se submeter a um treino


rigoroso e puxado para dominar a sua modalidade, sobretudo se a mais ínfima falha o pode
conduzir à morte. A preparação do gladiador não se cingia exclusivamente à parte física, já que
necessitava de comportar também as vertentes técnicas e mentais. Se fosse ensinado a vencer,
ele aprendia igualmente a fazê-lo dentro de um quadro concreto: durante o duelo, devia evitar
matar o seu adversário ou causar-lhe lesões muito graves (os ferimentos leves ou moderados
que infligisse já eram outra coisa), e cabia que ele actuasse com garbo, a fim de agradar ao
público e criar, assim, uma reputação de excelência, que, em última instância até podia salvar-
lhe a vida num combate que corresse mal. Vejamos o que nos diz Cícero (De Oratore, 1.68):

«Vede o atleta, ou mesmo o gladiador, que, até na impetuosidade do ataque ou nas precauções
defensivas, desenvolve todos os movimentos seguindo certas regras de ginástica. Todas as suas posições,
admiravelmente calculadas para as probabilidades do combate, não deixam, todavia, de ter o seu
encanto».

Com efeito, os gladiadores aprendiam como ganhar mas também, o que não era de modo
algum fácil, a saber perder com dignidade. Paradoxalmente, esta profissão marcial, baseada, à
viva força, num treino intensivo, «enobrecia» estes homens manchados pela infâmia, ao
aceitarem a morte sem pestanejar, o que constituía o seu «código de honra». Os intelectuais
romanos que, por um lado, criticavam o vil prazer popular da gladiatura, reconheciam, por
outro, o destemor dos homens da arena, não hesitando em utilizá-los como exemplos de
verdadeira bravura, dando provas das «qualidades romanas» nas suas pugnas, o que Cícero
explica da seguinte forma:

«Quanto aos gladiadores, sejam homens arruinados ou bárbaros, que golpes não se mostram eles
capazes de suportar! Vede de que maneira os que são bem treinados preferem receber um golpe em vez
deste se esquivarem cobardemente! A que ponto eles buscam, acima de tudo, satisfazer o seu amo ou o
público! Não é uma frequente evidência? Quando já estão repletos de feridas, eles perguntam aos seus
donos se devem continuar o combate; se os últimos acham que tal é suficiente, [os gladiadores] estão
prontos a admitirem a sua derrota, deixando-se tombar no solo. Que gladiador, mesmo dos de menor
categoria, alguma vez gemeu? Qual, de entre eles, mudou de semblante? Qual, já se achando por terra,
em alguma ocasião desviou o seu pescoço, ao receber a ordem de receber o golpe fatal? Tal é o poder
do treino, da prática, do hábito» (Tusculanae disputationes, 2.41)1528.

1528 Gladiatores, aut perditi homines aut barbari, quas plagas perferunt? Quo modo illi, qui bene instituti sunt,
accipere plagam malunt quam turpiter vitare! Quam saepe apparet nihil eos malle quam vel domino satis facere vel
populo! Mittunt etiam vulneribus confecti ad dominos, qui quarent quid velint: si satis iis factum sit, se velle
decumbere. Qui mediocris gladiator ingemuit, quis vultum mutavit umquam? Quis non modo stetit, verum etiam
decubuit turpiter? Quis cum decubuisset, ferrum recipere iussus collum contraxit? Tantum exercitatio, meditatio,
consuetudo valet». Sublinhe-se que Cícero não criticava os jogos gladiatórios, vendo-os como cruéis e desumanos.

519
No entanto, perto do fim do Império romano no Ocidente, quando as panóplias se tornaram
mais pesadas e a beleza técnica foi abandonada em proveito da sangrenta brutalidade do
espectáculo, essa «elegância» na atitude e nos movimentos do gladiador foi praticamente
descartada.

Antes de abordarmos a formação e os treinos dos gladiadores, parece-nos útil tecer alguns
comentários globais sobre o exercício praticado em locais públicos. Desde sempre que os
Romanos se entregaram às actividades físicas, tanto para prazer pessoal como também para se
prepararem para a guerra. Neste povo belicoso e pragmático, todos os cidadãos deviam servir
a sua pátria de armas na mão. Virgílio mostra o lendário Rómulo, segundo a tradição o primeiro
rei de Roma, a treinar-se com os seus companheiros numa planície. Posteriormente, as cidades
passaram a dispor de campos para exercício (campi), com base no modelo do célebre Campus
Martius da capital, que serviu, como se infere pelo seu próprio nome, de palco para a instrução
militar; inicialmente propriedade do rei Tarquínio Soberbo, converteu-se num recinto público
quando o último foi destronado e expulso de Roma, no século V a. C. (Estrabão, 5.3.8). Com o
decorrer do tempo, ia-se ao campus para se praticar modalidades desportivas mas, igualmente,
para se observar os gladiadores a esgrimir, uma vez que nos primeiros tempos, nem todas as
«escolas» possuiriam, intramuros, o espaço requerido para os exercícios, pelo que o Campo de
Marte se perfilava um sítio ideal.

Os jovens das famílias pertencentes às elites locais, agrupados em associações de natureza


«paramilitar» (iuvenes), também foram encorajados por Augusto a frequentar assiduamente os
campi, onde, por certo, tinham a oportunidade de contemplar os treinos dos gladiadores, por
estes nutrindo alguma admiração. Esta «juventude dourada» participava episodicamente numa
espécie de concursos (iuvenalia), que englobavam peças teatrais, provas de equitação e, por
vezes, combates gladiatórios. No entanto, estas justas realizavam-se com armas embotadas.
Conta-se que, precisamente num desse combates em Reate, o futuro imperador Tito se
notabilizou, ainda muito jovem; nestes certames, cada rapaz procurava distinguir-se dos
demais, ao provar o seu valor. Estes espaços para exercícios, por vezes vedados, situavam-se
frequentemente extramuros, como aliás o recomendava Vitrúvio, nas proximidades do
anfiteatro. Aí se poderia encontrar um pórtico, e até uma piscina, como o revela a magnífica
palaestra de Pompeia, que se estendia sobre uma área com 15 000 metros quadrados,
localizada defronte da entrada para o anfiteatro da cidade. Sabe-se que nos campi apareciam
igualmente aurigas com os seus carros puxados por corcéis, bem como cavaleiros, para se
treinarem; de facto, as pistas existentes nas «escolas» seriam amiúde pouco espaçosas para se
levarem a cabo as adequadas evoluções hípicas. Em Roma, é possível que o Trigarium, o circo
para o treino dos cavalos e dos carros de corrida (originariamente trigas, veículos introduzidos
aparentemente pelos Etruscos), talvez acolhesse de igual modo os equites e os essedarii.

Relativamente aos ludi imperiales, não lhes faltaria espaço para os exercícios dos seus
gladiadores. Com atrás referimos, o Ludus Magnus possuía uma esplanada elipsoidal, à
semelhança de um anfiteatro, que ajudaria a que os instruendos se familiarizassem com a
autêntica atmosfera do Coliseu; à sua volta, havia um conjunto de bancadas, que albergariam
cerca de um milhar de espectadores. O público podia assistir aos treinos, por simples
curiosidade aliada a uma atracção mórbida, ou por interesse técnico, oportunidades em que os
Ele estabeleceu o contraste dos bons velhos tempos, em que os criminosos lutavam com armas até à morte, com os
combates do seu tempo, que envolviam auctorati; M. Wistrand salientou acertadamente que Cícero apenas se
limitou a criticar os espectáculos gladiatórios onde porfiassem outros que não os chamados sontes ou criminosos
como protagonistas. Com efeito, Cícero apreciava os combates na arena pelos seus valores simbólicos, afora outros
autores romanos que louvaram as qualidades morais das pugnas de gladiadores, mas, por outro lado, condenavam
as peças no teatro e os desportos atléticos no stadium (Entertainment and Violence in Ancient Rome, p. 56).
Consulte-se também J. Carlsen, «Exemplary Deaths in the Arena: Gladiatorial Fights and the Execution of Criminals»,
in J. Enberg, U. Holmsgaard Eriksen e A. Klostergaar Petersen (eds.) Contextualising Early Christian Martyrdom, pp.
82-83.

520
espectadores ficavam com uma ideia da forma em que se encontrava o seu campeão
predilecto antes de combater num munus, o que provavelmente teria influência nas apostas
que mais tarde se fariam. Analogamente, como antes se disse, não era raro vários homens, de
elevada condição social, deslocarem-se às escolas gladiatórias, com vista a aperfeiçoarem a sua
esgrima; em determinados casos, obtinham permissão para dispor de instrutores particulares,
em aulas dadas nos seus domicílios (Horácio, Ep. 2.11; Tito Lívio, Ab Urb. Cond. 9.40). Já no seu
tempo, Cícero testemunhou este facto. Aos olhos de Lucílio, este hábito era mesmo
aconselhado para os jovens varões, desde que não negligenciassem os seus estudos.

Centremo-nos no treino dos gladiadores: se, a nível físico, um combatente tinha de reunir
condições satisfatórias, ele também se via submetido a uma formação mental, a fim de
defrontar o adversário e vencê-lo, assim como inculcar-lhe a ideia de que também podia ser
ferido com gravidade ou, até, morto. Em todo este processo formativo, um gladiador tinha de
aprender a canalizar a energia e a agressividade (gladiatoria iracundia). Cícero elucida-nos um
pouco sobre o modo de actuação dos gladiadores:

«Mas é preciso admitir que um homem corajoso o não seja quando não começou a aquecer-se? Tal é o
caso dos gladiadores, nos quais observamos um certo sangue-frio: falam entre si, aproximam-se uns dos
outros, fazem perguntas, atitudes que fazem com que pareçam mais calmos do que agressivos
(Tusculanae disputationes, 4, 21).

Os combatentes da arena continham a sua energia, só «explodindo» ao sinal feito pelo


árbitro. A propósito do gladiador Pacideanus, considerado como o melhor do seu tempo,
Cícero, fundamentando-se em Lucílio (Saturae, 4), evoca a intensidade desse
acondicionamento psicológico, caracterizada pela fúria (Tusculane disputationes, 4, 21)1529.

Vejamos em que consistia a preparação física, escorando-nos nas fontes antigas que, todavia,
dedicam mais comentários aos atletas das palestras e aos militares. De facto, sabemos pouco
sobre o treino específico dos gladiadores, mas havia, indubitavelmente, afinidades evidentes
entre estes três «universos». Embora se colham alguns elementos dos historiadores, satiristas
ou filósofos, é sobretudo na literatura médica que se encontram as informações mais
completas, nas obras de Galeno, mas também nos escritos de Oribásio, um médico grego que,
no século IV, elaborou, a mando do imperador Juliano-o-Apóstata, uma espécie de
enciclopédia médica (Corpus Medicorum Graecorum), onde compilou fragmentos textuais de
tratados mais antigos, incluindo excertos de manuais de Galeno que não sobreviveram até nós.
Assinalam-se, igualmente, parcelas tomadas de empréstimo a Hipócrates, Heródoto ou, ainda,
a Antilo. O sexto livro de Oribásio é, precisamente, consagrado ao acondicionamento e aos
exercícios dos atletas, ao qual nos reportaremos com certa frequência nas linhas que se
seguem.

Galeno defendia a necessidade do exercício para manter um homem com boa saúde e em
adequada forma física, encontrando-se as duas noções sempre interligadas. O exercício,
segundo ele, conduzia a um endurecimento dos órgãos, a um aquecimento do corpo e ao
desenvolvimento do pneuma, ou seja, do fôlego/respiração. Segundo uma concepção grega, o
ar inspirado era enviado para o coração, onde sofria uma combustão, antes de se distribuir
pelo sangue, que o fazia circular por todo o organismo. Consequentemente, o treino era
reflectido, racionalizado e teorizado. Ele não podia iniciar-se em qualquer altura: o melhor
momento situava-se antes de uma refeição, quando a do dia anterior já tivesse sido bem
digerida, o que a cor da urina podia mostrar, «depois de todas as superfluidades contidas na
bexiga e na parte inferior dos intestinos» já terem saído (Oribásio, Corp. Med. VI, 12).

1529Transcrevemos este trecho, em que Pacideanus discursa, inflamada e furiosamente, contra o seu oponente, na
alínea dedicada ao prolusio, etapa que tinha lugar num munus imediatamente antes de se travar um combate.

521
Ao começar, convinha proceder a fricções com panos, para aquecer o corpo e dilatar os poros
e, só a seguir, quando a pele ficava avermelhada, é que a mesma se massajava com mãos nuas,
empregando-se óleos, primeiro suavemente, depois de modo mais enérgico mas breve. O local
onde o indivíduo começava os exercícios era importante, uma vez que devia permitir conservar
o calor do corpo adquirido durante a massagem preparatória, o que deixa entrever a utilização
de salas de treino cobertas no decurso dos meses mais frios do ano.

Os textos revelam-se mudos sobre eventuais exercícios de musculação que fizessem os


gladiadores, mas não resta a menor dúvida que se entregariam a várias modalidades típicas da
palaestra, que foram meticulosamente descritas nas fontes. Considerados tipicamente gregos,
o que os tornava desaconselháveis e perniciosos aos olhos dos Romanos mais conservadores,
que preferiam disciplinas mais marciais, apropriadas para forjar bons guerreiros (como a
equitação ou a caça), tais exercícios, ainda assim, não deixaram de ser praticados pelos atletas.
Eles consistiam em três géneros de actividades, variando em função da natureza dos esforços
físicos: o primeiro tipo de exercícios requeria força, traduzindo-se num conjunto de
movimentos lentos que robusteciam os músculos e as «partes fibrosas»; o segundo exigia
rapidez, mas não implicando grande intensidade nem violência; o último tipo englobava os
movimentos mais violentos, nos quais se aliava a força à rapidez. Entre os exercícios
pertencentes ao primeiro tipo estavam:

«…caminhar por um terreno ascendente, trepar uma corda, manter os punhos cerrados ao estender
ou erguer os braços, permanecendo nesta posição durante bastante tempo, resistir aos esforços de
alguém que se arranjou para vos fazer baixar os braços estendidos, sobretudo segurando nas mãos
alguns pesos, como os halteres, mantendo-os imóveis ao esticar ou a levantar os braços … Na palestra,
há milhares de outros exercícios análogos que também exigem força …» (Oribásio, VI, 14).

Empregavam-se halteres em muitos outros exercícios, como, por exemplo, o salto em


comprimento, servindo os primeiros para conferir maior impulso. Noutras situações, o atleta
também podia agarrar nos halteres tendo os braços estendidos, fazendo apenas movimentos
ligeiros, enquanto andava. O Museu Arqueológico de Istambul conserva um haltere de
mármore1530, em cuja superfície se gravou em relevo uma cena alusiva a um duelo opondo um
retiarius a um secutor: é provável que se tratasse de um acessório de ginástica que os
gladiadores utilizassem nas suas sessões de treino; os homens da arena deviam levantar pesos,
designadamente com a mão esquerda (quando não eram canhotos), a fim de habituá-la a
aguentar um escudo pesado, o que se afigurava necessário em armaturae como a dos
murmillones. Repare-se que no ludus de Pompeia se descobriram vários blocos líticos (providos
de um orifício em cada lado, para se meterem os dedos), assim como outros pedras maiores e
redondas, algumas pesando para cima de 100 kg, o que indicia que os combatentes as
utilizavam para se exercitarem.

Ademais, o exame dos esqueletos do cemitério de Éfeso mostrou que alguns dos indivíduos
tinham, nos braços, tendões mais compridos do que o normal, como sucede nos desportistas
modernas (por exemplo, os tenistas), o que supõe que esses gladiadores realizavam treinos
intensivos mas calculados, de molde a evitar lesões ou traumatismos.

Na segunda categoria acima mencionada, inscreviam-se os seguintes exercícios:

«…a este género pertencem as corridas, os combates simulados, a gesticulação, a prática do corycos e o
da pequena bola. Aqueles a que se chama ecleptrizar e pitilizar são, igualmente, da mesma espécie:
ecleptrizar consiste em correr diversas vezes, alternadamente, para a frente e para trás, cingindo-se a um
espaço de 100 pés, não se diminuindo, em cada corrida, o comprimento do circuito percorrido, até que,
no fim, se pára num ponto fixo; pitilizar é andar sobre a ponta dos pés, erguer os braços e movê-los

1530 É. Teyssier, La mort en face…, p. 270; Alfonso Mañas Bastida, Gladiadores…, pp. 179-180.

522
muito rapidamente, um para trás, o outro para a frente. Outros exercícios rápidos, mas que não
requerem o uso da força são os que se fazem na palestra […]» (Oribásio, VI, 14).

Efectivamente, havia diferentes modalidades de corrida, mais ou menos longas e rudes, tanto
para a frente como para trás, a última designada como anatrocasma, ou em círculo,
peritrocasma. Quanto à prática do corycos, impõe-se que façamos alguns comentários
elucidativos: tratava-se de um grande saco cheio de areia, suspenso em cima por uma corda,
que ficava à altura do ventre: os atletas empurravam-no com as mãos, para aumentar o
balanço, depois correndo quando o saco se afastava, evitando-o quando regressava.
Comparável a um saco de boxe moderno, o corycos também se podia balançar a fim de bater
fortemente no corpo, atingindo os braços, o peito e as costas, a fim de se endurecerem os
músculos.

Mais curioso para nós é imaginar o jogo da bola como um excelente exercício aos olhos dos
Romanos, para desenvolver todas as partes do corpo. Em todo o caso, é o que Galeno afirma
no seu tratado da «pequena péla». Jogava-se individualmente, lançando-a contra uma parede,
fazendo com que a bola ressaltasse. Seria isto que um tal Spurrina praticava diariamente, o
segredo que o conservava com uma forma extraordinária aos 78 anos de idade (Plínio-o-Moço,
Cartas, 3.1). Também existia um jogo colectivo, o harpastum, e que se praticava de preferência
com as mãos, utilizando-se vários tipos de bolas, desde odres cheios de ar (follis) – destinadas
mais para crianças e pessoas idosas -, passando por outras forradas com penas (paganica), até
às mais duras (pila), com cabelos. Em algumas imagens antigas, elas assemelham-se bastante
às nossas bolas de futebol. Contudo, sejamos prudentes: embora este exercício fosse
recomendado e apreciado, não sabemos se os gladiadores o praticariam para desenvolver a
destreza e a capacidade de reacção.

Entre os exercícios mais violentos, contavam-se:

«…cavar, lançar discos, saltar constantemente sem repousar, lançar um projéctil pesado, seja este qual
for, reunindo todas as forças, ou efectuar movimentos rápidos estando-se coberto por uma armadura
pesada» (Oribásio, VI, 14).

A corrida com armas, disciplina olímpica por excelência, correspondia ao último tipo de
exercícios que se recomendava, em que o atleta cingia um elmo tão envolvente como os dos
gladiadores (sobretudo o dos secutores, o mais hermético de todos) e transportava um escudo
na mão esquerda; Ora esta actividade afigurar-se-ia indispensável para o desenvolvimento da
capacidade respiratória, bem como para familiarização de um indivíduo com vista a combates
envolvendo armas:

«Mas os Romanos inventaram o género de combate com armas que aqui se trata; inicialmente,
serviram-se deste exercício para se prepararem para a guerra; agora, recorre-se ao mesmo para pôr o
corpo em acção, pelo menos para os soldados, uma vez que se batem armados à maneira dos
gladiadores, seja contra adversários, seja contra um poste [o palus], como se este fosse um oponente.
Este exercício pode facilitar a libertar os movimentos corporais e a gerar robustez, mas a carne quer daí
resulta fica repleta de humidade; é nocivo para o crânio, visto que este se encontra coberto por feltro e
pelo casco, sofrendo com os efeitos deste peso. O que mais se enaltece quanto a tal exercício é que ele
reforça o corpo e aumenta a capacidade da respiração, razão pela qual os que estão acostumados a fazê-
lo são capazes de suportar qualquer perda momentânea do fôlego» (Oribásio, VI, 36).

Ignoramos se, para aprimorarem a sua pugnacidade, os gladiadores se treinavam noutros


desportos de combate, como a luta greco-romana (que diferia da sua homóloga dos tempos de
hoje), o pancrácio ou, ainda, o pugilatus, no qual, contrariamente às duas primeiras disciplinas,
se empregavam uma espécie de luvas de couro, por vezes lastradas com metal ( caesti), o que
causava, frequentemente, lesões graves e a desfiguração dos lutadores. Recentemente, no
âmbito da arqueologia experimental, realizaram-se várias experiências, que vieram a mostrar

523
haver grandes afinidades entre os golpes desferidos no boxe ou no pancrácio com os ataques
armados dos gladiadores, pelo que estes, com muita probabilidade, praticaram estas formas
alternativas de luta. A gladiatura parece ter reutilizado, à sua maneira, o vocabulário do
pugilismo antigo.

Vegécio, por seu lado, ao descrever o treino dos soldados romanos, fornece algumas pistas:

«Exercitam-nos, incessantemente e por muito tempo, até à exaustão, a atirar flechas, a arremessar
dardos, a lançar pedras à mão ou com uma funda, a esgrimir contra o poste, golpeando-o com estocadas
e cutiladas assestadas pelo gládio de madeira (rudes), a correr, a saltar, a transpor valas; se o seu
acampamento se localiza junto do mar ou de um rio, fazem com que eles aprendam a nadar durante o
Verão; levam-nos, frequentemente, até sítios escarpados ou densamente arborizados; obrigam-nos a
abater árvores, a desbastá-las, a escavar fossos; mete-se um grupo [de soldados] a defender uma
posição, contra outro composto por camaradas, que se esforçam por desaloja-los, ao empurrar, escudos
contra escudos, a fim de se ensinar a uns e a outros a modo de utilização e a força desta arma» ( Epitoma
de rei militaris, III.4).

Desta «lista» de exercícios sem conexão com a gladiatura, podemos pôr de parte o
lançamento de pedras e a natação, mas já o tiro ao arco ou o arremesso de dardos foram
próprios de certas armaturae, como os sagittarii e os velites (que tiveram uma reduzida
longevidade e parecem não ter cativado muito os espectadores), que se treinariam tanto sobre
alvos fixos como móveis. No trecho acima transcrito, não se faz menção a exercícios de
musculação, embora estes se vissem em certa medida substituídos pelo esforço físico
implicado no abate de árvores e na escavação de fossos.

Aprendizagem dos métodos de combate

A par de vários dos exercícios acima referidos, que se utilizariam para conferir aos
instruendos força, rapidez, flexibilidade e resistência, no ludus prestava-se a máxima atenção à
formação dos novici e tirones no manuseamento das armas (ofensivas e defensivas) e nas
técnicas de porfia características de cada tipo de gladiador. Para evitar que os homens fizessem
mau uso das armas verdadeiras, contra eles ou contra os seus «guardiões», só lhes eram
entregues réplicas de madeira para as sessões de treino (Apiano, Bell. Civ. 1.116; Veleio
Patérculo, 2.05; Floro, 3.20; Plutarco, Vida de Crasso, 8). Além disso, ao minimizarem os riscos
de sofrerem ferimentos, os gladiadores podiam entregar-se ao exercício sem grande receio,
dado que sabiam que algum erro que cometessem não teria consequências dramáticas, ao
contrário do que sucederia na arena. Ao porem de parte a sua natural reserva face ao perigo,
eles tornavam-se mais temerários, progredindo melhor e mais rapidamente. Eis uma passagem
de Lucílio:

«O samnis pode ser bom por natureza [mas] torna-se bastante feroz, seja contra quem for, no treino
com armas embotadas» (Sat. 4.9).

O termo latino para designar o gládio de madeira emprega-se sempre no plural, rudes. Cabe
não confundi-lo com a forma no singular, rudis, que se reporta ao bastão usado pelos árbitros
aquando dos duelos gladiatórios. A confusão generalizada do significado das duas palavras
conduziu muitos estudiosos modernos a pensar que a rudis correspondia à máxima

524
recompensa atribuída aos gladiadores que ficavam livres, aspecto que discutimos em
pormenor noutro capítulo. Nas prospecções arqueológicas do forte militar romano de
Oberaden1531 (Alemanha), descobriu-se uma arma de madeira que serviria para o treino de
gladiadores thraeces (fig. ): talhada num só bloco, esta sica apresenta uma guarda e um pomo
bastante largos, com o propósito de impedir que o combatente sofresse demasiados golpes
nos dedos. Tal como o seu modelo metálico, ela tem uma «lâmina» afilada com secção
adiamantada. Em Inglaterra, acharam-se outras espadas de madeira, designadamente no forte
flaviano de Carlisle 1532.

Desde tempos recuados que o exército romano utilizou tais simulacros para os treinos das
tropas. Políbio testemunha esta prática no século II a. C. (X, 20, 1-3), precisando que as peças
empregues eram cobertas de couro e embotadas. Bem mais tarde, Vegécio atesta igualmente a
sua utilização numa época anterior à sua, o que nos leva a supor que nem os militares nem os
gladiadores do seu tempo já não o faziam, o que, em certa medida, parece reforçar a ideia de
que a gladiatura no século IV d. C. já nada tinha de técnica, resumindo-se a uma brutal
carnificina:

«Os Antigos, de acordo com o testemunho dos livros, adestravam os conscritos no seguinte género de
exercício: metiam-lhes nas mãos cofos de vime, arredondados e com a forma de escudos, mas com um
peso que era o dobro do escudo vulgar, e depois, em lugar de um gládio verdadeiro, um bastão duas
vezes mais pesado […] isto era que o recruta, ao pegar nas armas autênticas, muito mais leves, se
sentisse como que desembaraçado de uma carga pesada, marchando assim para o combate, lesto e
confiante» (Epitoma de rei militaris, I, 12).

Havia espécies de madeiras espessas e compactas, mas para se duplicar o peso dessas
armas factícias, podia-se também adicionar-lhes uma massa de chumbo. Registam-se
menções textuais a gládios chumbados para as sessões de treino, mas é possível,
igualmente, que toda a lâmina fosse em chumbo, metal mole e quase inofensivo.
Observemos outro trecho de Vegécio:

«Assim equipados, exercitavam-nos, desde a manhã até à noite, no palus. A prática do palus reveste-se
de grande utilidade para o soldado e para o gladiador: de todos os que, na arena ou em campo raso,
ganharam renome, não houve um só que não se entregasse a este exercício. Cada recruta cravava no
solo o seu poste, para que este se mantivesse firme, medindo seis pés de altura [perto de 2 m). Contra
este poste, como se estivesse a enfrentar um adversário, ele esgrimia com o bastão e o cofo de vime, ao
jeito do gládio e do escudo. Simulava golpes sobre a cabeça e sobre o rosto; ameaçava os seus flancos;
por vezes, decidia partir as pernas e os joelhos, avançando e recuando sucessivamente; voltando à carga
com saltos vigorosos, ele manifestava à frente deste poste toda a sua impetuosidade, toda a sua
potência combativa. Durante estas provas, ordenava-se ao conscrito que tivesse sempre cuidado, ao
assestar os golpes, de se colocar de lado, a fim de não ser atingido» (Epitoma de rei militaris, I, 11).

Este fragmento textual lembra a sátira de Juvenal em que este escarnece de uma matrona
gladiatrix, que também se treinava ad palus, talhando o poste com o seu gládio de madeira e
batendo-lhe com o escudo, seguindo as ordens de um doctor. Com efeito, os ataques contra o
palus não se faziam de maneira aleatória, já que obedeciam às injunções dos instrutores.
Juvenal chamou a estas directivas «números» (numeri), ao passo que noutras fontes são
designadas como «instruções» (dictata) 1533. Embora não haja provas concretas de quantos
«números» ou dictata seriam, mas, em geral, deviam constituir uma série predeterminada de

1531S. von Schnurbein, «Eine hölzerne Sica aus dem römerlager Oberaden», Germania 57 (1979), pp. 117-134.

1532 Ian Caruana, «A wooden training sword and the so-called practice post from Carlisle», ARMA, vol. 3, nº 1 (June 1991), pp.
11-12, fig. 1.

1533 Saturae, 6.247-249

525
movimentos ofensivos e defensivos. Havia também expressões que um aprendiz de gladiador
ouviria incessantemente, tais como contendere poplitem (atacar, literalmente «estender o
joelho») e poplitibus sedere (adoptar a posição de guarda, «sentar o joelho»), entre muitas
outras. No Satyricon, um personagem queixa-se de um gladiador que combatia somente de
acordo com os «números», isto é, mecanicamente 1534.

Gladiadores que cumprissem literalmente tais regras podiam, eventualmente, até tornar os
combates entediantes, mas os dictata, ainda assim, eram uma faceta crucial da arte gladiatória,
razão pela qual não podem ser ignorados. O seguinte comentário de Tertuliano mostra que os
fãs estavam familiarizados com os dictata e, às vezes, tentavam ajudar o seu gladiador
preferido que não os estivesse a aplicar, alertando-o, ao gritarem a partir dos seus lugares no
anfiteatro. Em algumas situações, estas iniciativas dos espectadores auxiliavam mesmo o
combatente:

«Não só os instrutores ordenam aos melhores gladiadores [para que prestem atenção aos dictata],
como também os … amadores [entre o público] o fazem de longe [a partir dos seus lugares], daí
resultando que, frequentemente, os dictata sugeridos pela própria multidão são proveitosos [para os
gladiadores]» 1535.

As referidas escavações arqueológicas em Carlisle também trouxeram à tona uma peça de


madeira que, em princípio, poderia corresponder a uma quintana (um manequim) 1536,
destinada à instrução dos soldados: parcialmente quebrada na sua parte inferior, ela, ainda
assim, mede 160 cm de altura, 37 de largura e 8,5 de espessura; a sua configuração evoca,
toscamente, a figura de um homem, já que por cima dos «ombros» e do «pescoço» esculpidos
na madeira, emerge uma cabeça arredondada, cuja invulgar grossura parece indicar de que se
trataria de um «alvo», sendo uma das partes do corpo que os instrutores aconselhavam a visar
com o gládio, através de estocadas; num dos lados deste espécie de boneco, tal como
aconteceria com os seus ulteriores «parentes» medievais, verificou-se a existência de um sítio
para fixar, com cavilhas, um «braço» na perpendicular. Aqui estamos longe do simples palus
descrito pelos autores antigos.

Terá sido a quintana concebida para exercícios específicos que nos escapam, ou, pelo
contrário, não teria nada a ver com a finalidade que lhe atribuímos? No entanto, a ideia de
materializar a cabeça de um oponente imaginário também queda sugerida por algumas
imagens gladiatórias: com efeito, vários grafitos de Pompeia, assim como as estelas dos
secutores Urbicus e Bato, mostram um palus sobrepujado por um elmo de gladiador: à
primeira vista, ficamos com a impressão de representarem os cascos desses homens. Mas, à
semelhança da presumível quintana de Carlisle, estes pali encimados por elmos deviam servir
perfeitamente para os treinos dos seus adversários típicos, os retiarii, já que lhes permitia
lançarem as suas redes e verem como estas se prendiam ou não aos cascos, além de
determinarem em seguida que fases ofensivas ou defensivas daí resultariam.

Recentemente, É. Teyssier chamou à atenção para um elmo de secutor, que tem uma
concepção estrutural demasiado pesada e rígida (6 kg) para poder haver sido empregue na
arena, visto que não se encontra uma charneira que facilite a sua abertura para nele colocar a
cabeça. Este exercício e esta maneira de cobrir o palus com um elmo apenas se justificariam, a
priori, no âmbito do duelo secutor-retiarius, embora não restem grandes dúvidas que os

1534 Petrónio, Satyricon, 45.12.

1535 Tertuliano, Ad martyres, 1.2.

1536 R. W. Davies, Service in the Roman Army, Edimburgo, 1989, p. 78, est. 3.7; I. Caruana, «A wooden training sword and the so-
called pratice post from Carlisle», pp. 12-13, fig. 2.

526
combatentes das outras armaturae algo de similar fariam, no intento de criarem a imagem do
seu adversário. Ressalvemos que se descobriram grafitos, tanto em Roma como em Pompeia,
figurando provocatores defronte de postes rematados por cascos.

Sob a estrita direcção dos doctores e dos seus adjuntos, os magistri, os aspirantes a
gladiadores assimilavam todo um rol de técnicas de porfia, aprendendo a escolher os
momentos oportunos para espetar o seu gládio, a exercerem percussão através de fortes
pancadas vibradas com o umbo ou as bordas do escudo, como desferirem os golpes da maneira
mais eficaz, não se olvidando de se manter em guarda, curvando o corpo e firmando-o bem
através de um adequado posicionamento das pernas, a efectuarem fintas. Todos estes gestos,
constantemente repetidos, acabariam por se tornar em actos reflexos nos combatentes. Esta
forma de se treinarem, que então se chamava battualia (do verbo battuere, que deu origem
aos verbos reflexivos «bater-se» em português e se battre em francês), foi igualmente descrita
pelo Pseudo-César:

«César, para formar as suas tropas em combater contra esta nova espécie de inimigos, viu-se obrigado
a cuidar disso pessoalmente, não enquanto um general que comanda um exército aguerrido e vitorioso,
mas como um mestre de esgrima que prepara os seus gladiadores noviços. Ensinou-lhes como se deviam
defender do inimigo, como se apresentarem diante dele e resistir-lhe, de acordo com a extensão de
terreno, como elas deviam avançar, retroceder, bem como simular um ataque» (Bell. Afr. 71).

Observam-se representações de exercícios de esgrima (batuale) contra o palus em várias


fontes iconográficas, como, por exemplo, num mosaico de Flacé-les-Mâcon (França), onde
aparece um murmillo (ou um secutor) a treinar-se junto de um poste (fig., p. 87). Não é de
estranhar que tanto soldados como gladiadores se aplicassem num mesmo género de
exercício, até porque, nos primeiros tempos, as suas armas tinham elementos em comum e
implicavam um tipo de esgrima similar (até ao começo do século I a. C., em todo o caso).
Ademais, segundo defendem ainda vários historiadores, a hoplomaquia (combate com armas)
que se desenvolveu no exército romano, baseou-se na metodologia gladiatória. Como
anteriormente referimos, com o intento de que os seus soldados aprendessem um género de
esgrima mais flexível e racional, um cônsul decidiu, em 105 a. C., recorrer aos serviços de
instrutores de um ludus para assim melhorarem a eficácia e a combatividade das suas tropas.
Este ano corresponde, aliás, ao momento em que os munera passaram a estar inseridos no
conjunto dos espectáculos públicos, prova do entusiasmo particular que a gladiatura terá
suscitado nesse período:

«A teoria do manejamento das armas foi ensinada aos soldados a partir do consulado de P. Rutílio
[Rutilius], colega de Cn. Málio [Mallius]. Sem que general algum antes dele lhe tivesse dado o exemplo,
ele mandou vir instrutores de gladiadores do ludus de Cn. Aurélio Escauro [Scaurus], e introduziu nas
legiões um método mais preciso para aparar e desferir golpes. Ele combinou, assim, a bravura e a arte
militar, a fim de fortalecer os soldados com uma e outra, a primeira acrescentando o seu ímpeto à
segunda, e desta aprendendo a saber como se proteger» (Valério Máximo, Factorum et Dictorum
Memorabilium, II, 2.3.2);

Armorum tractandorum meditatio a P. Rutilio consule Cn. Malli collega militibus est tradita: is enim
nullius ante se imperatoris exemplum secutus ex ludo C. Aureli Scauri doctoribus gladiatorum arcessitis
vitandi atque inferendi ictus subtiliorem rationem legionibus ingeneravit virtutemque arti et rursus artem
virtuti miscuit, ut illa impetu huius fortior, haec illius scientia cautior fieret.

Vegécio, por seu lado, explica por que motivos o escudo deveria ser a fingir, em razão do peso.
Contudo, pode-se avançar com outra explicação: mediante as pesquisas empreendidas pelos
técnicos da arqueologia experimental, tornou-se claro que os escudos, que requeriam horas no
seu fabrico e decoração, tinham uma «esperança de vida» muito limitada em combate, pelo
que o emprego de «substitutos constituiria também uma maneira de os preservar. Os escudos
de vime utilizados nos treinos possuiriam, decerto, revestimentos em couro, a fim de os

527
reforçar. Por último, as armas de madeira não eram totalmente inofensivas: com efeito,
durante as sessões de treino, era relativamente corrente que os gladiadores sofressem vários
tipos de lesões: desde simples hematomas e cortes até costelas fracturadas. Na História
Augusta, especifica-se que o Cómodo se treinava com serviçais, os quais não se atreviam a
resistir-lhe, como o teriam feito verdadeiros adversários. Enquanto o imperador se servia de
armas genuínas, os seus «oponentes» apenas podiam usar meras rudes (Hist. Aug./SHA,
Commodus, 5.5). Porém, a situação não se revelou tão agradável para Cómodo, quando, certo
dia, encontrou pela frente um gladiador sem medo:

«Ele [Cómodo] tinha um carácter verdadeiramente selvagem e cruel: a tal ponto que, frequentemente,
matava gladiadores, dando a falsa impressão de que lutava contra os mesmos, já que ele empregava
uma arma verdadeira ao passo que os seus adversários estavam munidos de gládios chumbados
[mucronibus plumbeis]. [Cómodo] aniquilou um certo número deles assim, quando, por acaso, um dos
gladiadores, chamado Scaeva [«esquerdino», tal como o imperador], em todo o esplendor da sua
audácia, do seu vigor físico e destreza no combate, lhe fez deixar de gostar deste género de exercício: ao
rejeitar o seu gládio, que o entendeu como inútil, declarou que a única arma que restava [a não
chumbada e cortante] batava perfeitamente para os dois. Cómodo, que temia ver-lhe arrebatada a sua
adaga [pugio] e perecer durante o duelo […], resolveu elogiar Scaeva e, com medo dos outros
gladiadores, extravasou a sua fúria contra as feras e os elefantes» (Aurélio Victor, XVII, Cómodo).

Como sublinhou Políbio, o conceito da hoplomaquia romana era simples:

«É preciso, caso se queira vencer, observar como se pode atingir o adversário e, para o efeito, saber
reparar nas partes do seu corpo que estão nuas ou que o escudo não cobre» (3.81.2)

Para adestrarem o melhor possível os seus instruendos, os Romanos redigiram tratados sobre
esgrima (tanto militares como gladiatórios), mas infelizmente nenhum sobreviveu até hoje. Em
todo o caso, uma coisa é garantida: neles, em primeiro lugar, os autores deviam fazer a
apologia da estocada em detrimento da cutilada, isto é, do golpe de ponta sobre o golpe
cortante, isto pelo menos na utilização do gládio, antes da adopção da longa spatha na
infantaria romana aproximadamente a partir da segunda metade do século II d. C. Por volta do
início do século I, o gládio do legionário também foi utilizado pelo gladiador, só que numa
versão bastante mais curta, que praticamente consistia numa adaga, o mais justificaria ainda a
estocada1537. A este respeito, atentemos, uma vez mais, ao que diz Vegécio:

«Aprendia-se também a golpear, não em cutilada, mas com a ponta. Os defensores da utilização da
cutilada ofereceram aos Romanos uma fácil conquista, ao mesmo tempo que se tornaram objecto de
mofa. A cutilada, independentemente da força que se lhe imprima, raramente mata; os órgãos
essenciais encontram-se protegidos pelas armas e pela estrutura óssea. [A estocada], pelo contrário, ao
penetrar duas polegadas no corpo [cerca de 4 cm], é mortífera: tudo o que mergulhe no interior atinge
necessariamente as partes vitais. Quando se emprega a cutilada, o braço direito e o flanco ficam
expostos; a estocada, por outro lado, ao permitir manter o corpo protegido, fere o adversário sem que
este se aperceba. Por isto é que os Romanos adoptaram preferencialmente este género de esgrima»
(Epitoma de rei militaris, I, 12).

Porém, diferentemente dos legionários, os gladiadores deviam evitar matar os seus


oponentes em pleno duelo. De facto, a vida ou a morte dos combatentes da arena constituíam
a principal prerrogativa do editor. Ele tentaria, acima de tudo, forçar o adversário a reconhecer
a sua derrota, fosse em sequência de um ferimento, fosse por causa da fadiga ou do desânimo.
Parafraseando G. Ville, «era este momento de espera pela sentença que excitava o público; a
qualidade da esgrima representava, aos olhos dos espectadores, um aspecto secundário,
porque o veredicto não era motivado pela qualidade da prestação técnica do vencido» 1538. Pese
embora o inestimável contributo deste historiador para uma compreensão muito mais
1537 Num dos painéis do conhecido ciclo de mosaicos de Verona, ilustra-se a supremacia da estocada sobre a cutilada: vemos
um retiarius que atinge o secutor no ombro, enquanto o último lhe espeta o seu pugio na perna esquerda.

528
circunstanciada do fenómeno gladiatório, matizemos o ideário por ele expresso na frase citada:
o munerarius e a multidão mostrar-se-iam indiscutivelmente favoráveis em relação aos
gladiadores que os tivessem cativado, o que só poderia suceder se eles se destacassem pelas
suas proezas e forma de lutar.

Numa sequência do filme Spartacus de Stanley Kubrick, vê-se um doctor a pintar várias partes
do corpo do protagonista trácio, encarnado por Kirk Douglas, com diferentes cores, indicando-
se, assim, as zonas a atingir para deixar o adversário na arena em clara desvantagem, além dos
pontos que serviriam para o ferir gravemente ou matá-lo. Se bem que hipotética, esta cena
merece alguma credibilidade, já que lições destas, de carácter «médico-legal», seriam
certamente ministradas aos recrutas pouco depois de entrarem no ludus.

Certos textos (embora mais relacionados com o exército do que com a gladiatura), referem
que se visavam prioritariamente determinadas partes do corpo: os jarretes (a curva da perna),
através de cutiladas ou estocadas, o abdómen (estocadas), e também o rosto (estocadas). A
última injunção (Tácito, Ann. 2.14) tinha igualmente como objectivo assustar o oponente e
desestabilizá-lo a nível psicológico, visto que uma arma acerada apontada mesmo à frente dos
olhos causava uma impressão insuportável. Percebe-se, portanto, por que razão os elmos
gladiatórios passaram a estar providos de uma máscara protectora, a partir do começo do
século I d. C. Nas fontes iconográficas observam-se abundantes exemplos da utilização da
estocada (por exemplo, num dos célebres mosaicos de Zliten, vê-se um murmillo ferido no
rosto pela lança de um hoplomachus, mesmo dispondo o primeiro de uma viseira).

A presença de árbitros intervindo no desenrolar dos combates no anfiteatro mostra, per se,
que existiam regras a cumprir e a respeitar, daí alguns golpes serem autorizados e outros
proibidos. Entre os últimos, alguns estudiosos presumiram, talvez um pouco precipitadamente,
que os ataques dirigidos à cabeça seriam «ilegais», o que não se coaduna com a «profecia» do
gladiador Pacideianus, referida por Lucílio e, depois, por Cícero. Se, de facto, havia tal
interdição, como explicar o desenvolvimento dos elmos, que vieram a adquirir uma grelha
protectora bastante ampla por volta de meados do século I d. C.? Até aproximadamente ao
reinado de Augusto, os cascos não defendiam o rosto, estando providos simplesmente de
paragnátides; pouco depois, passaram a ter uma máscara com dois orifícios para os olhos, que,
depressa se viram reforçados por duas «lentes» gradeadas. Por último, um golpe assestado na
cabeça, mesmo estando o combatente coberto pelo elmo, provocaria inevitavelmente o seu
desequilíbrio ou atordoamento, o que poderia levá-lo a abrir a sua guarda, arriscando-se assim
a revelar falhas na sua defesa, suceptíveis de serem fatais.

Paradoxalmente, a peça de equipamento mais importante do gladiador era o seu escudo,


facto que aliás se corroborou por meio da arqueologia experimental. Com efeito, ele não era
um mero «guarda-vento», mas, também, uma arma ofensiva, empregue, sucessivas vezes,
mediante movimentos de percussão, com o intuito de desequilibrar o adversário ou forçá-lo a
abrir a sua guarda. Como anteriormente referimos, a maioria dos gladiadores repartia-se por
dois grupos distintos, os scutati e os parmati, o que muito nos diz acerca da importância
assumida pelo escudo.

Estas peças, de tamanhos e pesos diferentes consoante os modelos, utilizavam-se de


variegadas maneiras, impondo posições específicas. Os portadores do grande scutum
adoptavam preferencialmente uma postura mais vertical, com o segurando o escudo de um
modo que permitisse cobrir a maior parte do corpo, existindo, se possível, três pontos de
contacto: o contorno da barriga da perna, em baixo, a mão e o antebraço do lado direito no
meio, e, em cima, o ombro. Quando um gladiador colocava o escudo à frente, afastado do

1538 La gladiature en Occident…, p. 423.

529
corpo, que implicava uma considerável dose de esforço, ele ficava inevitavelmente sujeito a
uma portentosa arremetida do oponente ou a um violento golpe, o que podia causar grandes
contusões ao portador, à altura do joelho e, sobretudo, da tíbia, atingidos pelo choque da
borda inferior do próprio escudo (os murmillones e os secutores tinham só uma greva
protegendo metade da canela).

Em contrapartida, os parmati desenvolviam posturas menos rígidas e precisavam de encolher


mais os seus corpos: como a parma só os cobria parcialmente, eles viam-se compelidos a
manter-se curvados, o que nos leva a compreender uma alusão de Séneca, quando compara
um indivíduo de pequena estatura a um thraex em acção (Quest. Nat. 4.1). Esta atitude
predispunha-os a saltar sobre os adversários, tentando atingi-los por cima do scutum, nas
costas, na nuca ou nos ombros. O braço direito armado de um murmillo ou de um secutor
ficava, geralmente, numa posição elevada, em ângulo recto, com a lâmina à frente pronta a
perfurar; alternativamente, os scutati empunhavam a espada (ou adaga) mais recuada,
ocultada pelo escudo, para surgir apenas no último momento e surpreender o oponente.

Este género de técnicas prevaleceu na gladiatura até ao século IV, numa altura em que os
legionários romanos já não se batiam desta forma há mais de dois séculos. Combater não se
resumia a saber desferir golpes, mas significava também provocar o adversário, levando-o a
cometer erros que o viessem a prejudicar. Para tal objectivo, o gladiador recorria a fintas, que
lhe eram igualmente inculcadas pelos instrutores no ludus:

«Na esgrima dos gladiadores, os ataques a que se chama de “segunda mão” [manus quae secundae
vocantur] tornam-se em “terceira mão” [fiunt tertiae] se a primeira investida foi mais apenas uma finta
destinada a atrair o adversário [si prima ad evocandum adversarii ictum prolata erat]; e até uma
“quarta», caso a finta se repita duas vezes, daí que se teve de desviar duas vezes assim como se atacou
outras duas [ut bis cavere, bis repetere oportuerit» (Quintiliano, Institutio oratoriae, 5.13.54).

Neste trecho, Quintiliano comparou o processo da argumentação formal com a troca de


golpes entre gladiadores, em termos que sugerem que cada um dos tipos de golpes assestados
pelos combatentes era designado por um número, de modo que cada movimento ofensivo
(«um») se via defendido por um contra-ataque específico (um «dois»), um pouco à maneira do
que se faz na esgrima actual.

É muito possível que um gladiador pertencente a uma armatura aprendesse a lutar sob a
panóplia adversa, para melhor estudar e aprender as suas técnicas ofensivas e defensivas,
ganhando assim conhecimentos que servissem para frustrar mais facilmente os botes do
oponente. É muito provável que isto se fizesse. Os gladiadores com melhor formação e mais
talento eram qualificados de «distinguidos», ornati (Festo, De Verborum Significatione). Mais:
como dissemos, nas fontes epigráficas observamos gladiadores especializados em diferentes
armaturae, o que prova que não devia haver uma compartimentação rígida a separar os vários
tipos de combatentes da arena.

Conquanto não possamos falar de uma pedagogia na verdadeira acepção do termo, não resta
a menor dúvida de que o treinador de gladiadores devia possuir, em regra, uma certa
capacidade didáctica, a fim de conseguir rentabilizar os investimentos que eram os homens da
arena. Com efeito, para se fazer da gladiatura um verdadeiro espectáculo, compreendendo as
formas de combate descritas nos textos e figuradas em imagens antigas, era necessário que
houvesse, acima de tudo, professores-instrutores eficazes na formação dos seus alunos.

Na etapa inicial da sua formação, não bastava que o novicius tivesse qualidades para se ser
um bom combatente: afinal, a aquisição das competências para a apropriada utilização do
armamento constituía um processo algo longo e complexo. Durante a sua aprendizagem, o
aspirante a gladiador tinha de obter uma série de conhecimentos práticos em diferentes

530
«sectores», desde os técnicos e de ordem física até aos de natureza mental, vertentes que
seriam assimiladas por ele através da ciência ministrada pelo seu doctor, que poderia torná-lo
numa «estrela» do anfiteatro ou, então, num profissional de qualidade média. Se, por um lado,
o doctor tinha de se aplicar na instrução técnica dos gladiadores, ele não podia negligenciar,
por outro um aspecto fundamental da gladiatura: o espectáculo. Este era tão importante que o
próprio local onde tinha lugar, o anfiteatro ou a arena, se designava habitualmente como
spectaculum até ao século I d. C.1539.

De facto, o público apaixonado pelo fenómeno ia assistir para vibrar com bons combates. Tal
como no futebol actual, havia adeptos que apoiavam as «estrelas» da arena.
Consequentemente, o treinador tomava em consideração o elemento da espectacularidade na
fase da aprendizagem do instruendo. O doctor não podia deixar de parte esta faceta, uma vez
que sabemos até que ponto o público teria a possibilidade concreta de influir no decurso dos
munera, fazendo pender a decisão final em cada pugna para um ou outro lado. Os grafitos
parietais e os episódios narrados nas fontes literárias atestam o fervor dos espectadores da
Antiguidade. Assim, compreende-se melhor porque é que a táctica mas também a escolha de
uma técnica «espectacular» assumiam grande importância na gladiatura. Tudo isto mostra a
complexidade desta prática antiga, que estava longe de ser tão simplista como as películas de
Hollywood e as séries televisivas fazem supor.

A noção de «espectáculo» obrigava o doctor e os seus adjuntos, os magistri, a opções


pedagógicas no conjunto de movimentos de ataque e defesa que se ensinavam aos aprendizes
de gladiadores. Era preciso que aprendessem técnicas simultaneamente «estéticas» e eficazes
e que soubessem qual era o momento oportuno para arriscarem, no intento de satisfazer o
público. No método pedagógico do doctor estava, portanto, presente essa noção, incluindo
técnicas «acrobáticas» ou visualmente espectaculares, que não deixavam por isso de ser
eficazes. Os tirones aprendiam a realizar os passes e fintas com elegância, quase como se
consistissem em movimentos coreografados, evitando gestos ou posturas inúteis ou
supérfluos, com o objectivo de pouparem ao máximo a sua energia e resistência, caso o
combate se prolongasse. O doctor não devia perder de vista que o gladiador constituía a vítima
útil para o público da arena. A vida do combatente não dependia unicamente da sua vitória ou
da sua submissão, mas igualmente do prazer que suscitasse ou não aos espectadores: o público
desempenhava um papel determinante antes, durante e depois dos combates, podendo
influenciar, a este título, o comportamento dos gladiadores, dos árbitros e, mesmo, do editor.

Naturalmente que o gladiador necessitava de adquirir o conjunto dos pârametros essenciais


da arte e da técnica de combate no mínimo tempo possível, a fim de cedo se tornar rentável
para a sua escola. A sua formação realizava-se por etapas, todas perseguindo o objectivo de
que o noviço ou o tiro ficassem operacionais com bastante rapidez, ou seja, aptos a enfrentar
adversários, servindo assim para restituir dinheiro gasto pelo lanista pela sua instrução e
manutenção no ludus (não nos esqueçamos que um gladiador representava um investimento)
e proporcionar lucro.

Em face das características físicas e de outros atributos dos instruendos, o doctor orientaria
alguns deles para os pequenos ou os grandes escudos (scutum). Para os que enveredassem
pela parma, começaria a aprendizagem das atitudes extremas com o escudo do thraex e do
hoplomachus: movimentos de simulação de ataque, posturas muito baixas, uma grande dose
de trabalho rotativo no corpo a corpo e, claro está, a necessidade constante de arriscar no
confronto com o adversário. Os thraeces e os hoplomachi aprenderiam a saber conduzir a
«dança», já que seriam eles a tomar a iniciativa e a tentar comandar o combate. No caso
inverso, os murmillones e os anti-hoplomachi necessitavam de fazer uso de uma estabilidade

1539 R. Etienne, «La naissance de l'amphithéâtre, le mot et la chose», REL, 43 (1963), pp. 213-220.

531
perfeita, da linha direita, da paciência e da execução de investidas fulgurantes, dado que se
viam obrigados a suportarem os ataques do oponente até ao momento propício para
ripostarem. Durante esta fase de treino, os gladiadores scutati iam aprendendo a explorar as
diferentes utilizações da sua panóplia em função dos objectivos e dos adversários, enquanto os
parmati se familiarizavam com um armamento bastante particular.

Os murmillones que se opunham aos thraeces ou aos hoplomachi utilizavam o mesmo


equipamento mas a técnica diferia, porque se tratava de duas armaturae radicalmente
distintas e exigiam a um murmillo maneiras de combater nada semelhantes. O thraex, como
vimos, possuía a sua típica sica curva, medindo cerca de 30 cm, enquanto o hoplomachus se
servia de uma lança e de uma adaga de lâmina recta. Por um lado, os thraeces e os hoplomachi
constituíam «arsenais» peculiares e, por outro, os murmillones tinham de assimilar os gestos
adequados que permitissem eliminar o poder das armas empunhadas por tais adversários. O
doctor teria de aplicar toda a sua arte e experiência para formar o murmillo e levá-lo a adoptar
as posições mais correctas, para além de uma hábil rotação do busto, que o salvaria das
repetidas investidas do thraex: virando-se como uma torre de um carro de assalto e ao
efectuar a percussão com a crista sobre o punho do oponente, ele conseguiria proteger-se,
criando também uma oportunidade para contra-atacar.

No caso do hoplomachus, teria de agir de modo tão tão preciso como um «cirurgião»
(lembremos a anedota do hoplomachus equiparado a um oftalmologista), de forma a conter,
graças à sua lança, a pressão exercida pelo adversário. Grande parte da aprendizagem de
alguém que se especializasse nesta armatura fazia-se contra o palus de madeira, repetindo
centenas de vezes o género de ataque que podia conduzi-lo a perfurar a grelha do elmo,
atingindo assim um dos olhos ou parte do rosto do oponente, embora sem o matar. No
entanto, se o último ficasse ferido, o hoplomachus tinha elevadas possibilidades de sair
vitorioso do combate. Contudo, por seu turno, o gladiador que lutasse contra ele articulava
toda a sua preparação e defesa em cargas calculadas, a fim de evitar a lança a todo o custo e,
ao mesmo tempo, levar a cabo movimentos de percussão sobre o hoplomachus, tentando,
sempre que possível, acometê-lo tanto por baixo como por cima da sua arma de haste.

Quanto aos aprendizes de retiarius (possivelmente os indivíduos com maior agilidade e


flexibilidade), teriam de assimilar uma série de componentes inerentes à própria singularidade
desta armatura (o seu armamento não comportava nada de tipicamente militar, pelo que a sua
hoplomaquia se pautava por uma indiscutível originalidade). Como vimos no capítulo IV, o
retiarius teria de saber lutar com três armas ao mesmo tempo, praticamente não tendo
qualquer protecção corporal significativa. Contudo, esta fragilidade aparente era compensada
por uma grande liberdade de movimentos e por um savoir-faire caracterizado por técnicas
espectaculares. O treino de um retiarius centrava-se em tácticas em que se fazia uso da
velocidade, por meio de corridas, e de uma utilização perfeita e simultânea do tridente e da
rede. Embora os testes experimentais tenham demonstrado que, uma vez apanhado nas
malhas da rede, o secutor não reuniria mais possibilidades de vencer, através dos mesmos
testes verificou-se que se o retiarius não adoptasse os gestos adequados, desde o seu primeiro
combate, a armadilha da rede poderia muito bem virar-se contra ele. É indiscutível que o
lançamento da rede, sob a pressão exercida pelo adversário, exigia muita técnica e consistia
numa arte assaz difícil. Com efeito, um retiarius novato ou inábil podia ficar prisioneiro da
própria rede ou ver-se obrigado a abandoná-la durante a sua corrida, perdendo assim esta sua
arma.

Para a iniciação nos métodos de arremesso da rede, o instrutor colocaria certamente à


disposição do instruendo um palus sobrepujado por um elmo. A seguir, seriam precisas horas e
horas de corrida e de deslocações com a rede sendo lançada e a seguir recuperada, tudo de

532
maneira a que o tiro se familiarizasse com a rede e se convertesse num mestre no seu
manuseamento. Cabe não olvidar que o retiarius devia o seu nome a rede (rete, retis).

A disciplina

Era normal que nas casernas imperasse uma disciplina severa, já que muitos dos indivíduos lá
se encontravam confinados contra a sua vontade e forçados a preparar-se para aprender a
matar ou morrer. O seu estatuto social tornava-os potencialmente perigosos, risco que se via
acrescido pela presença, em diversos ludi, de um depósito onde se guardavam as armas, o que
podia motivar uma eventual revolta. Principalmente por esta razão é que se lhes davam apenas
armas de madeira para se exercitar. De facto, ocorreram alguns problemas deste género ao
longo da história romana, mas na realidade, até foram relativamente poucos em face do
grande número de ludi e de gladiadores existente por todo o império. Para além do episódio
mais célebre, encabeçado por Espártaco e os seus companheiros, registou-se uma tentativa de
evasão de gladiadores do ludus de Praeneste, em 64 d. C., abortada e violentamente sufocada
pelos guardas da «escola» (Tácito, Ann. 15.46.1). Citemos também a fuga que teve lugar
durante o triunfo do imperador Probo, em 281: dos seiscentos gladiadores conduzidos para o
Anfiteatro Flávio, oitenta fugiram e espalharam-se pela Urbs, o que momentaneamente
provocou o pânico entre os habitantes; no entanto, depressa foram capturados e executados. É
certo que no século III da nossa era, ao contrário do que sucedeu noutros períodos mais
recuados, a esperança de um combatente da arena sair vivo de um combate se revelava assaz
diminuta, não supreendendo, pois, que vários deles procurassem escapar a todo o custo.

Com o objectivo expresso de que tudo funcionasse adequadamente, ou seja, que os


«pensionistas» de um ludus acatassem as ordens e não se mostrassem insubordinados, foi
necessário implantar uma série de regras e castigos. O fragmento de uma estela de mármore
(descoberto em Alexandreia Troas, na actual Turquia) estudado por investigadores da
Universidade de Münster em 2003, contém uma lista de medidas disciplinares respeitantes aos
gladiadores e aos atletas: nesta fonte, que data do reinado de Adriano, prevê-se que os
gladiadores que se entregassem à embriaguez ou à libertinagem fossem punidos com
chicotadas.

Sabemos que eles podiam ficar encerrados na prisão do ludus (carcer). Juvenal (Sat. 6,
Fragmento de Oxford, 13) alude a um destes sítios, mas importa lembrar que esta prática não
era exclusiva dos ludi: uma familia rustica de grande envergadura também dispunha de
instalações similares para os seus escravos domésticos e agrícolas. Atrás vimos que na caserna
de Pompeia se identificou um cárcere: consistia num simples cubículo, idêntico às células onde
ficavam alojados os gladiadores, de pequenas dimensões (1,50 x 1,50 m). Neste espaço exíguo,
medindo 10 m de comprimento por 5 de largura, um indivíduo não conseguia estar nem
completamente de pé nem deitado (se ficasse enclausurado por muito tempo seria um
verdadeiro suplício), achou-se uma comprida tábua de madeira, fixa no solo, na qual havia
vários cepos1540 para, em cada um, prender o tornozelo de uma pessoa. Durante as escavações
pioneiras realizadas no século XVIII, aí se descobriram quatro esqueletos, mas nenhum deles
estava acorrentado: provavelmente não seriam gladiadores nem damnati, mas simples
habitantes de Pompeia que, na altura da fatídica erupção do Vesúvio, em 79 d. C., se

1540 Os cepos, dispostos na perpendicular dessa prancha, eram constituídos por 22 peças de ferro (com 15 cm de altura)
dotadas de rebites. No topo da estrutura, em cada um dos cepos, uma abertura permitia que uma barra metálica deslizasse na
corrediça, assim agrilhoando os artelhos dos prisioneiros, obrigando-os a manter-se sentados ou deitados. Este dispositivo não se
conservou, pelo que apenas o conhecemos através de um desenho de Piranesi, realizado em 1770, ano em que se efectuaram as
primeiras prospecções arqueológicas no local: cf. A. Mañas Bastida, Gladiadores…, fig. 78.

533
refugiaram neste sítio, julgando-o como o mais hermético da caserna e, em termos
psicológicos, o mais apto para os proteger da catástrofe.

À excepção dos equites ou dos senatores que esporadicamente se exibiam na arena, por
vontade ou com a cumplicidade do imperador, recordemos que o próprio auctoratus aceitava,
sob juramento, os tratamentos que se infligiam aos escravos: as correntes, o látego e o ferro
em brasa (Cícero, Ad Fam. 10.32). O último utilizava-se sobretudo nos fugitivos, que desta
forma se viam estigmatizados, não podendo mais esperar por uma mitigação da sua condição,
nem, muito menos ainda, a alforria. Os arquéologos encontraram numerosas coleiras de ferro
para os servi, idênticas às dos cães, nas quais estava escrito o nome do proprietário, bem como
a sua morada, a fim de que, se alguém apanhasse o escravo em fuga, o pudesse reconduzir à
«sua» casa, onde sofreria um castigo, mais ou menos drástico consoante os casos: a marca
infamante do ferro ou ficar com a cabeça e as sobrancelhas rapadas. Desconhecemos se os
gladiadores de estatuto servil terão usado tais coleiras.

Logicamente que o lanista ou os seus doctores e magistri não podiam controlar ou policiar,
sozinhos, um grande número de combatentes da arena. Assim, precisavam de dispor de uma
guarda privada e armada, principalmente durante a República, época em que a gladiatura
apenas envolvia prisioneiros de guerra. Bem enquadrados e constantemente vigiados, os
gladiadores teriam poucas possibilidades de infringirem as regras, a tal ponto que Séneca (Ad
Luc. 8.70.20) afirmou que essa vigilância demasiado apertada e omnipresente até impedia o
suicídio daqueles que, em desespero, não conseguiam aguentar este tipo de vida que lhes fora
imposta, tão dura quanto miserável. Neste sentido, até para pôr termo à existência havia que
usar a imaginação, haja em vista o caso de um condenado que se matou ao atirar-se para
debaixo das rodas da carroça que o conduzia ao anfiteatro.

Em geral, um lanista evitava aplicar castigos muito duros ou penosos, preferindo disciplinar os
seus homens muitas vezes a golpes de bastão. Foi esta disciplina que faltou aos exércitos
romanos derrotados pelos Cimbros e Teutões no início do século II a. C. Pouco depois, o cônsul
Rutílio recorreu aos doctores gladiatorum do ludus de Cn. Aurelius Scaurus, os quais não
ensinaram só aos legionários a manejar melhor o gládio, mas igualmente a obedecerem às
ordens, sem resmungar e sem hesitações. Assimilou-se bem a lição: quando teve de escolher
um exército para desencadear uma contra-ofensiva contra os Germanos, o cônsul Mário optou
por recorrer às tropas de Rutílio, não obstante os seus menores efectivos, uma vez que
depositava maior confiança no seu nível de disciplina (Frontino, Estratagemas, 4.2)

A hierarquia gladiatória

As vitórias, bem como o número de coroas (coronae)1541 obtidas nos munera, eram tidas em
conta para a determinação do nível que ocupariam os gladiadores na sua estrutura hierárquica.
Tal como sucedia no exército, na gladiatura havia efectivamente um conjunto de escalões que
cada combatente da arena teria de subir laboriosamente ao longo da sua carreira. Não
sabemos a quando remonta a instauração desta hierarquia gladiatória. No entanto, é provável
que tivesse a sua raíz em tempos remotos, fundamentando-se na notoriedade dos prisioneiros
e dos condenados na sua capacidade ou talento no manejamento das armas. Além disso, os
militares romanos, na época arcaica e no começo da República, parecem haver tido o costume

1541 As coronae eram uma das recompensas simbólicas que se concediam aos gladiadores vitoriosos.

534
de marcarem a categoria dos soldados mediante o porte de insígnias distintivas, cujo sentido
em larga medida nos escapa, mas o certo é que a atribuição de penachos e plumas (pinnae),
que se fixariam em orifícios no topo dos elmos faria certamente parte desse hábito (Tito Lívio,
Ab Urb. Cond. 10.44).

É igualmente possível que estes elementos decorativos e simbólicos se concedessem aos


melhores gladiadores, evidenciando assim o seu valor, o que talvez correspondesse a uma
prática que se estendeu até ao início da época imperial: a estandardização progressiva dos
cascos de acordo com as armaturae conduziria, por fim, à desaparição desse costume, porque
julgado inconveniente ou despropositado. O conhecido historiador M. Rostovtseff supôs que o
termo de gíria pinnirapus serviria para designar um gladiador que ocupasse o topo da
hierarquia dos homens já desobrigados de porfiarem mais na arena, e que talvez exercesse a
função de instrutor. De facto, o vocábulo reporta-se a um combatente que tenta arrebatar a
pluma ao seu adversário. Seria isto uma simples brincadeira ou, mais verosimilmente, uma
forma de aludir à sua vitória sobre o oponente, ao despojá-lo, no fim, dos seus ornamentos,
um pouco como se fosse um «escalpe»?

Carecemos de dados que confirmem cabalmente esta hipótese, mas em algumas fontes
iconográficas observam-se gladiadores exibindo uma pluma inserida numa faixa colocada à
volta da cabeça ou no cimo do elmo: é o que verificamos num dos duelistas do atrás citado
baixo-relevo de Aquileia (que aparentemente representa dois gauleses) e quiçá, também, num
dos sagittarii assinaláveis no fragmento de uma peça de cerâmica produzida na oficina de
Chrysippus, o qual ostenta duas penas na parte frontal da cabeça. A este respeito, ressaltemos
que no senatus consultum de Larinum (19 d. C.) se proíbe os membros das ordens equestre e
senatorial de se tornarem gladiadores, empregando para o efeito a expressão «tomar as
plumas dos gladiadores». Esta metáfora afigura-se inesperada, uma vez que, à primeira vista,
as plumas não surgem como o elemento mais marcante das suas panóplias. No entanto, fica
claro que nas antigas imagens de gladiadores, uns aparecem providos de plumas e outros não.
No exército, pelo menos em tempos mais remotos, esta distinção jamais era anódina.
Aconteceria o mesmo na gladiatura? Conquanto não possamos responder de maneira
categórica, tal código visual serviria, pelo menos, para os espectadores identificarem de
imediato o grau de mestria dos homens que entravam na arena.

Em contrapartida, não há grandes dúvidas quanto aos graus que, sob o Império, eram
atribuídos aos gladiadores, tanto na pars Occidentalis como no Oriente do império, de acordo
com a sua experiência e mérito. Existem motivos para acreditar que este sistema foi
provavelmente introduzido após a abertura dos ludi aos homens de condição livre (auctorati),
embora os primeiros testemunhos datem do período dos Flávios. Numa inscrição do Ludus
Magnus de Roma (CIL V 632), alude-se ao ordo potestatum, «ordem dos poderosos», que
agrupava todos os graduados pertencentes a esta grande caserna imperial. No ponto mais
elevado da escala situavam-se os gladiadores primi pali (sing. primus palus1542), significando a
última palavra desta expressão o poste (palus) de treino contra o qual os combatentes
assestavam os seus golpes. Isto lembra a terminologia do próprio sistema militar romano, em
que se estabeleciam distinções similares: assim, os centuriões de «primeira classe» eram
designados como primi pili (sing. primus pilus, literalmente «primeira lança de arremesso», o
pilum).

Por ordem descrescente, depois dos primi pali seguiam-se os secundi pali, os tertii e os quarti
pali. Durante décadas, os estudiosos pensavam que seria este, basicamente, o número de
categorias, só que, não há muito, encontrou-se-se uma fonte epigráfica aludindo a um «sétimo

1542 Nas fontes do Oriente grego, primus palus aparece transliterado como πρώτος πάλος.

535
poste» (no epitáfio de um thraex descoberto em Éfeso1543). Por seu turno, C. Roueché publicou
duas inscrições de Afrodísias que provam a existência de um sextus palus e, em princípio, de
um «oitavo»1544; em 2006, Murat Aydaş divulgou uma estela procedente da necrópole de
Stratonikeia, em memória de um gladiador chamado Chrysos, em cujo epitáfio (em grego) se
explicita que ele tinha a categoria de oitavo palus 1545. Ora isto mostra que a hierarquização dos
gladiadores terá sido bem mais complexa do que até há pouco se imaginava 1546. A referência ao
palus deixa supor que o critério fundamental para subir de grau se relacionava com a perícia no
manuseamento das armas e no número de combates efectuados e ganhos, este cursus era
válido para todas as armaturae. Cómodo intitulou-se primus palus secutorum (não pelo mérito,
claro está, mas pelo simples facto de ser imperador), e sabe-se que no Ludus Magnus dispunha
do aposento maior no conjunto das cellae dos seus colegas secutores.

Um grau superior possibilitaria ao seu detentor gozar de privilégios no que respeita ao


alojamento, à alimentação e, mesmo, melhores prémios. A epigrafia dá-nos a conhecer um
certo número de graduados. Alguns primi pali pereceram na flor da vida, aos 22 anos num
caso, e aos 27 noutro, o que deixa entrever que ambos terão começado as suas carreiras
gladiatórias muito jovens, no fim da adolescência, conseguindo atingir o nível mais elevado da
hierarquia com aquelas idades. O secutor T. Flavius Incitatus ascendeu a primus palus tendo 16
vitórias no seu activo.

Ao termos em conta a existência de oito graus sucessivos (pelo menos), é caso para
perguntar: sempre que um gladiador vencia duas pugnas (ou duas coroas), ele subiria mais um
«furo»? É uma hipótese inverificável, que, ademais, partiria da premissa de que os tirones
principiariam como octavus palus. Neste sentido, reconhecemos a nossa incapacidade para
perceber bem esse sistema, na falta de mais dados concretos. Mas uma coisa é garantida: o
último grau devia constituir objecto de estrito controlo, na medida em que os lugares
hierárquicos ocupados pelos gladiadores na hierarquia tinham uma incidência directa nos
preços de cada um e nas despesas envolvidas na organização dos espectáculos. Quanto maior
fosse o seu nível, mais dinheiro um editor teria de gastar para alugá-los ou comprá-los ao
lanista.

Se a definição do nível técnico dos gladiadores dependesse dos proprietários dos ludi, era
praticamente garantido que muitos deles inflacionariam a categoria dos seus homens, com
vista a extrair negociações mais vantajosas e lucrativas. Terá sido precisamente isto que
aconteceu ao longo dos séculos I e II d. C., fenómeno, que ao atingir proporções alarmantes,
compeliu o imperador Marco Aurélio a regulamentar uma vez mais a gladiatura, a fim de evitar
falcatruas. Assim, parece mais crível que fossem os agentes do poder central a assegurar a
existência de uma espécie de «exames» nas escolas imperiais e nos ludi municipais ou
privados, ao mesmo tempo que reuniriam ficheiros precisos, contendo os dados pessoais de
cada combatente da arena (discriminando-se escrupulosamente por escrito o número de
combates travados, de vitórias, palmae e coronae, além das derrotas, indultos e empates).
Estes elementos estatísticos, em princípio, não poderiam «mentir», ao passo que as opiniões

1543 Ayşe Zülka Diroğlu e Cengiz Içten, «Gladiatorenreliefs in der Ausstelung», in Grossschmidt e F. Kanz (eds.), Gladiatoren in
Ephesos. Tod am Nachmittag, Katalog der Ausstelung in Ephesos Museum Selçuk, Viena, 2002, pp. 75-82.

1544 C. Roueché, Performers and Partisans at Aphrodisias…, pp. 64-65, 67, nº 23, 67-68. Na primeira inscrição, a autora afirma
que a leitura πάλου F’ é absolutamente garantida, mas já o πά(λου) H’ pode interpretar-se como um Γ, ou seja, um terceiro palus.
Roueché sugeriu que o sistema do palus talvez não traduzisse uma hierarquia, mas um meio organizativo utilizado entre os
gladiadores.

1545A lápide conserva-se no Muğla Müze (Turquia, século III d. C.): Χρύσς π(άλος) η ´/ «Chrysos, oitavo palos»: M. Aydaş,
«Gladiatorial Inscritions from Stratonikeia in Caria», Epigraphica Anatolica 39 (2006), p. 106

1546 Sobre o sistema do palus, veja-se M. Junkelmann, Gladiatoren… («Ränge und Gagen»), pp. 186-189.

536
subjectivas dos inspectores estariam quase sempre sujeitas a uma certa prudência, ocultando
amiúde conivências e rivalidades.

Muito provavelmente, só os combatentes mais graduados conseguiriam chegar à posição de


doctores e ensinar a sua arte aos instruendos num ludus, mas isto não significaria uma meta
em si mesma, embora um salário maior acompanhasse decerto tal promoção. Com efeito, um
homem não enveredaria pela gladiatura apenas perseguindo o objectivo de se tornar instrutor.
Para se chegar a esta função havia muitos riscos pelo caminho. As motivações eram outras.

Anteriormente, aventámos uma hipótese interpretativa sobre as abreviaturas SPA ou SPAT,


assinaláveis em várias estelas funerárias gladiatórias. Contudo, noutras fontes epigráficas
deparamos com as letras SP. À primeira vista, seria de presumir que se trata do mesmo
vocábulo, mas alguns documentos apontam noutra direcção: de facto, os arqueólogos
descobriram numerosas placas de pequenas dimensões, com quatro faces e feitas de madeira
ou de osso, destinadas a ficarem suspensas através de um cordão ou laço enfiado em ambas as
extremidades; num lado figura um nome, no outro uma data, discriminando-se o dia, o mês e o
ano, e por último num terceiro lado, a palavra SPECTAVIT gravada tanto por extenso como
abreviada (SPECTAT, SPECT, SP). Alguns estudiosos consideraram que estas peças
correspondiam a uma espécie de placas de identidade (tesserae gladiatoriae) que os
gladiadores usariam penduradas à volta do pescoço, onde se mencionava os seus nomes e
respectivos níveis, assim como a data das suas promoções hierárquicas 1547. Neste sentido, o
vocábulo em questão designaria os gladiadores spectatii, isto é, os que haviam travado o seu
primeiro combate em público, diferenciando-se então dos tirones, que não se tinham estreado
na arena, e dos veterani com diversas provas dadas. O nome que aparece escrito nesses
suportes não alude ao de um «inspector», contrariamente ao que alguns sustentaram, uma vez
que não estava em causa um exame de «admissão», só uma alusão à primeira pugna que
propulsionaria o tiro automaticamente para a categoria seguinte.

Assim, tais placas não atestam uma classificação paralela ao sistema dos pali, mas apenas um
meio prático para determinar o estatuto dos indivíduos pertencentes a um ludus. Esta
interpretação vê-se corroborada, aos olhos de outros eruditos, por uma lista de gladiadores
descoberta em Roma e elaborada em 177 d. C. (CIL VI 00631), em que a seguir aos nomes
aparecem as letras T (para tiro), VET (para veteranus), bem como SP. Se, por um lado, a
ausência de placas com a sigla referente aos recrutas inexperiente assume toda a
plausibilidade, visto que as tesserae dos últimos permaneceriam em branco até à sua primeira
exibição num anfiteatro (e só se sobrevivessem se gravariam as letras SP acompanhadas de
uma data), por outro, a falta de artefactos alusivos aos veterani revela-se, no mínimo, curiosa,
o que mostra que este assunto ainda não está devidamente esclarecido.

Na lista, bem como em diversas placas, os nomes de gladiadores são secundados pela
enigmática letra N, que alguns entenderam significar novicius, mas, na realidade, tal indicação
seria redundante ao existir a menção a tiro. Posto isto, haveria quatro níveis: VET(eranus),
SP(ectatus), T(iro) e N(ovicius), que se fundamentariam apenas no critério da antiguidade, não
no plamarés dos combatentes. Por seu turno, a lista elaborada em 177 d. C. (à qual
regressaremos mais adiante, quando abordarmos os collegia gladiatórios) apresenta os 34
gladiadores repartidos da seguinte maneira:

-Primeira decuria: 10 veterani;

-Segunda decuria: 1 veteranus + 6 tirones + 1 SP + 1 manicarius + 1 unctor;

1547 Sobre estas peças, consulte-se o estudo pioneiro de Friedrich Ritschl, Die Tesserae gladiatoriae der Römer. Mit drei
lithographirten Tafeln, Munique, Verlag der Akademie, 1864, pp. 19-28.

537
-Terceira decuria: 2 tirones + 1 N + 2 pagani (termo que se deve verter por «civis»);

-Quarta decuria: 1 paegnarius (cujo estatuto não se explicita) + 1 SP.

O problema ganha contornos mais intrigantes ao constatarmos que, noutra fonte do mesmo
período, o Aes Italicense, se distinguem cinco categorias de gladiadores, classificados segundo
a sua experiência, com designações diferentes, que para certos historiadores talvez
correspondam aos cinco primeiros graus de pali (mas porque não diferenciar oito categorias, se
existiriam oito graus de pali, pelo menos?). Em face destes dados, não é difícil perceber que há
muitos aspectos cuja compreensão ainda nos escapa no mundo gladiatório.

Duração das carreiras e frequência dos combates

Os graus hierárquicos dos gladiadores estavam estreitamente associados à duração das suas
carreiras, que nunca tinham a garantia de chegarem ao seu término. Antes de mais, precisemos
que a gladiatura jamais conheceu uma situação igual desde o início e até ao fim da sua história.
É possível que nos primórdios, no contexto dos combates fúnebres, o vencedor talvez fosse
libertado. Ulteriormente, e até ao final do século I antes da nossa era, o destino dos criminosos
e prisioneiros de guerra que participavam nas pugnas era, simplesmente, a morte na arena, e
os duelos livravam-se «até que a morte se desse», o que fatalmente acontecia, com maior ou
menor rapidez. No entanto, conhecemos muito mal este período da gladiatura e ignoramos se
era concedido o favor da missio. Além disso, parece que os combatentes não teriam qualquer
esperança de ganharem a liberdade: suspeitamos que estas duras condições de vida,
combinadas com a referida ausência de outra perspectiva que não a morte, é que melhor
explicam o facto de Espártaco e os seus colegas resolverem fugir do ludus campaniano de
Lêntulo Batiato.

A nova gladiatura que despontou com o Principado oferece uma documentação substancial
que permite esboçar respostas para questões relativas à esperança de vida dos combatentes,
graças, sobretudo, aos epitáfios dos mesmos. Mas será tal amostra verdadeiramente
representativa dos gladiadores em geral? Na realidade, as fontes de que dispomos dizem
respeito apenas aos gladiadores que tiveram meios para beneficiarem de uma estela em sua
memória, o que oculta a massa anónima de todos aqueles que acabaram, esquecidos,
inumados numa vala comum. Ademais, lidamos com testemunhos que, na sua maior parte, se
reportam a homens que viram a sua carreira bruscamente encurtada, perecendo ainda no
activo, uma vez desconhecemos quantos gladiadores escaparam à morte e foram libertados ou
que lograram atingir o fim do seu contrato.

Nunca se predefiniu um limite específico para as carreiras gladiatórias: o número de combates


para lá do qual os gladiadores se veriam isentos ou desobrigados do seu ofício. O talento e a
sorte decidiam geralmente a longevidade, mas o lanista avaliaria igualmente a aptidão dos
seus homens para lutarem, que, durante algum tempo, iria aumentando com a experiência,
depois declinando com o avançar da idade. Sob o ponto de vista humano, não se afigura de
todo razoável que eles fossem obrigados a porfiar em demasia, mas a vertente moral não entra
aqui em linha de conta. Um gladiador que deixasse de ser «rentável» não tinha futuro algum.
Sucumbir na arena significava o derradeiro serviço que um gladiador realizava para o seu
proprietário, embolsando este uma considerável maquia de dinheiro, pela última vez (não
esqueçamos que o editor teria de pagar pelos cadáveres). Numa óptica meramente

538
materialista, para o lanista era menos um homem a alojar, manter e alimentar no ludus,
exceptuando o caso de se tratar de um gladiador lucrativo e famoso.

Sobre o número de combates e a esperança de vida dos gladiadores, peguemos


primeiramente em alguns exemplos: o retiarius Marcus Ulpius Aracinthus morreu com 34 anos
de idade, depois de 11 pugnas; o secutor Urbicus combateu em 13 duelos, antes de perecer
com 22 anos (isto se o lapidário não se enganou cinzelando esse numeral na estela em vez de
XXXII, como alguns estudiosos sugeriram); o seu colega Titus Flavius Incitatus viveu 27 anos,
com um palmarés de 16 combates (CIL VI 10189), e o thraex Marcus Antonius Niger bateu-se
18 vezes, morrendo aos 38 anos (CIL VI 10195 = ILS 5090)1548; outro thraex, Lucius Lucretius,
também venceu 18 combates (AE 1988, nº. 28 = Sabbatini Tumolesi, EAOR I, nº 92)1549;quanto
ao essedarius Maximus, faleceu aos 36 anos, depois de 40 confrontos, dos quais 36 foram
vitórias, e o sírio Flamma, pertencente à armatura dos secutores, efectuou 34 prestações,
incluindo 21 vitórias e 4 stans missus, perdendo a vida aos 30 anos (CIL X 07297 = Buonocore,
EAOR III, nº 70)1550.

Estes casos mostram uma certa diversidade, o que não ajuda a apurar a duração das carreiras
gladiatórias, visto desconhecermos a idade que estes homens tinham quando lutaram pela
primeira vez, informação que só excepcionalmente aparece exarada. Os mais jovens seriam
recrutados aos 17 anos: uma inscrição do século III d. C., descoberta em Éfeso, apresenta,
assim, um gladiador falecido com 21 anos (CIL V 2884); durante quatro anos que esteve no
ludus, ele combateu apenas 5 vezes, ou seja, menos de uma pugna por ano. Este fenómeno
também se assinala entre gladiadores consagrados: o contraretiarius Pardus, homem livre,
travou 25 combates nos seus 25 anos de carreira, antes de receber a rudis e morrer aos 48
anos; a epigrafia faculta a idade de Pardus, aquando da sua incorporação, 23 anos, e precisa
que venceu 19 duelos (CIL VI 33983 = Sabbatini Tumolesi, EAOR I, nº 64)1551.

Esta frequência parece muito reduzida, mas é possivel explaná-la de várias maneiras:
primeiramente, porque o início da carreira era a fase mais arriscada, devido à óbvia
inexperiência dos tirones, e um lanista previdente teria todo o interesse em poupâ-los (embora
os noviços fossem os mais facilmente sacrificáveis); depois, os munera eram espectáculos de
carácter excepcional. Como antes dissemos, certos imperadores, pouco apreciadores da
gladiatura, evitavam mesmo dar munera, como Tibério, a tal ponto que um gladiador,
Triumphus, se lamentou de não combater tão frequentemente e de ficar inactivo (Séneca, De
Prov. 4.4). Também, para rentabilizar o seu negócio, o lanista devia tentar firmar contratos fora
da sua cidade, o que se confirma nesta inscrição de Pompeia: «Em 28 de Julho, em Nuceria,
Florus saiu vencedor; em 15 de Agosto, vitorioso igualmente em Herculaneum» (CIL IV 4299).

Florus participou em dois combates com duas semanas de intervalo, o que é um curto espaço
de tempo. Quanto ao thraex Exochus, conforme vimos, também lutou duas vezes praticamente
numa só semana (CIL VI 10194); por seu turno, Díon Cássio conta-nos que Caracala forçou o
gladiador Bato a travar três pugnas num só dia, o que se lhe revelou fatal (77.6). Com efeito, o
esforço físico e a concentração que requeria um confronto contra um homem na arena

1548Veja-se, igualmente, P. Sabbatini Tumolesi, EAOR I, nº 97. Eis o teor do epitáfio: D(is) M(anibus) M(arco) Antonio
Nigro/veterano thraeci/qui vix(it) ann(is) XXXVIII/pugnavit XVIII/Flavia Diogenis/coniugi suo bene/merenti/de suo fecit.

1549L(ucius) Lucretius tr(aex)/ vict(oriam) XIIX.

1550Flamma s[e]cutor vix(it) an(nis) XXX/ pugna[vi]t XXXIIII vicit XXI/ stans VIIII mis(sus) III nat(ione) Syrus/ hui[c] Delicatus
coarmio merenti fecit.

1551 Diis Manibus/ (contra) Re(tiarius)/ [Par]dus l(ibertus)/vi(ixit) a(nnis) XLVIII/ [In ludo] Caesaris/ […vixit] annis XX pugnavit/
[XXX vel XX]V, vicit XIX, st(ans) exit/ [XVI vel VI libera?]tus sua morte obit/ […pat[rono suo b(ene) m(erenti) fecit. J. Carlsen afirma,
erradamente, que Pardus era um retiarius: cf. «Exemplary Deaths in the Arena Gladiatorial Fights…», p. 89.

539
pautavam-se por uma extraordinária intensidade, o que muito dificilmente permitiria que um
gladiador ainda tivesse a energia necessária para livrar um segundo duelo. O capricho de
Caracala foi manifestamente premeditado, com o intento de eliminar um rival, em termos de
popularidade, o que dissimilou hipocritamente ao oferecer um grandioso funeral em honra de
Bato. No entanto, estes casos são atípicos.

Ao analisarmos a documentação antiga, verificamos que havia poucos combates e eram


bastante espaçados no tempo. Ao basear-se em cerca de 150 inscrições funerárias, É.
Teyssier1552 calculou que a média de confrontos travados por cada indivíduo rondaria os 11.
Todavia, o autor sublinhou que os tirones que pereciam na sua primeira exibição devem ter
sido mais numerosos do que nos fazem supor as fontes, os quais, em regra, não teriam
possibilidades de usufruirem de uma lápide 1553. A título de exemplo, Teyssier apoia-se na
inscrição de Venusia (CIL IX 465-466) pertencente ao monumento funerário erigido pela familia
de Caius Salvius: dos 26 gladiadores mencionados, mais de ¼ eram tirones, sete morrendo na
sua primeira contenda; ¾ dos homens do ludus de Venusia não ultrapassaram o seu quinto
duelo. Na fonte em apreço, a média do número de combates é de apenas 4.

Mas os dados estatísticos reunidos pelo referido historiador francês assentam numa amostra
documental relativamente pequena. Assim, alicerçando-nos num acervo epigráfico mais vasto,
observamos que nos epitáfios da pars Occidentis do império a média do número de pugnas
disputadas ou vitórias obtidas pelos defuntos se situa entre os 10 e os 15 1554. Quase 90% dos
gladiadores combateram menos de 25 vezes ao longo das suas carreiras. Só dois homens da
arena superaram os 40 combates, 53 e 99 respectivamente, embora a leitura de 99 pugnae
seja discutível. Surpreendentemente, ambos os laureados actuaram a nível provincial – Gália e
Hispânia – não em Roma 1555. As baixas cifras também se corroboram nos graffiti pompeianos,
nos medalhões de aplique do Vale do Ródano 1556 e na citada relação dos gladiadores da familia
Cai Salvi Capitonis de Venusia.

Quando um tiro vencia um adversário mais experiente e prestigiado, tinha claros motivos para
se regozijar. Dois graffiti de Pompeia atestam tal facto: na sua estreia na arena, o neronianus
Spiculus executou o liberto Aptonetus, que já efectuara 16 combates (CIL IV 1474), e Marcus
Attilius obteve a vitória (ganhando uma coroa como recompensa) sobre o neronianus Hilarus,
com 14 combates (CIL IV 10238a). O último foi poupado, pois que normalmente se considerava
despropositado um editor ordenar a morte de um gladiador que ainda podia dar lucro ao seu
lanista. Por isso é que, uma vez transposta a «fasquia» de uma dezena ou quinzena de duelos,
os gladiadores viam-se mais facilmente agraciados quando conheciam uma derrota. Mais
tarde, Attilius lutou contra o thraex Lucius Raecius Felix (que participara em 12 combates) e
venceu-o igualmente. Felix, à semelhança de Hilarus, foi indultado. Por seu lado, o thraex
Marcus Antonius Exochus, que travou dois duelos com nove dias de intervalo, era ainda

1552 La mort en face…, pp. 444-449.

1553 Existem, porém, alguns raros testemunhos de tirones que não foram parar à simples vala comum, como Macedonius,
aparentemente oriundo de Alexandria, que pereceu na sua primeira pugna, com 20 anos de idade. Apesar de ser um tiro, foi
devidamente sepultado em Roma pelos seus colegas de armatura (thraeces), que lhe erigiram uma lápide, onde se lê o seguinte
epitáfio: D(is) M(anibus)/Macedoni thr(aeci)/tiro(ni) Alexandrin(o)/bene mer(enti) fec(it)/armatura Thraecum/universa vix(it)
ann(is) XX/ men(sibus) VIII die(bus) XII. Cf. CIL VI 10194 = P. Sabbatini Tumolesi, EAOR I, n 97.

1554 A. Ceballos Hornero, «Epitafios latinos de gladiadores en el Occidente romano», Veleia 20 (2003), pp. 324-325.

1555C. Vismara e M. L. Caldelli, Epigrafia Anfiteatrale dell’Occidente Romano V. Alpes Maritimae, Gallia Narbonensis, Tres
Galliae, Germaniae, Britannia (= EAOR V), nº. 18; CIL II 2 7, 363.

1556 Respectivamente, P. Sabbatini Tumolesi, Gladiatorum paria, nos 29 e 32; EAOR V pp. 67-79; EAOR III nos 67-68.

540
inexperiente: mesmo assim, no primeiro derrotou o gladiador imperial Araxes, e no segundo
bateu Fimbria, um auctoratus que tinha 9 vitórias.

Nos epitáfios da pars Orientalis, L. Robert concluiu que a maioria dos combatentes não
alcançaria 10 vitórias e só uns quantos ultrapassariam 25 porfias 1557. No entanto, no
«Cemitério dos Gladiadores» de Éfeso, descobriram-se inscrições alusivas a gladiadores que
sobreviveram a mais de 100 combates 1558. Porém, estes epitáfios não devem entender-se
como representativos da realidade gladiatória no mundo grego: se bem que noutros textos
funerários encontrados tanto na Hélade como na Ásia Menor haja referências a gladiadores
que combateram (ou venceram) em 50 duelos ou mais, com base nos investigações mais
recentes, a maioria dos homens da arena sobre os quais dispomos de informes documentados
estiveram longe de lutar tantas vezes, situando-se numa média de 10 ou 15 porfias, segundo
estimou M. J. Carter1559. Não sabemos ao certo qual seria a duração típica da carreira de um
gladiador, mas o combatente mais velho no activo atestado no Oriente é Narkisos, um thraex
que faleceu com 35 anos 1560; só sabemos a idade de outros três gladiadores: P. Spedios, com 16
anos, Melanippos, 18 e Alexandros, 20 1561, o qual, não epitáfio se gabava de ter 8 vitórias.
Logicamente que havia vários perigos a ameaçar alguém que combatesse durante demasiado
tempo, como Polyneikes de Alabanda o testemunha (ao qual já fizemos menção) 1562, afirmando
o defunto que não fora morto pela destreza superior do seu adversário, mas por um corpo
jovem que vencem um velho. É provável que a carreira de um gladiador se cifrasse entre os
cinco e os quinze anos, o que, com somente 10 a 15 combates no decurso da mesma, não
sugere, como vimos, a participação em muitas pugnas num ano. No entanto, as evidências são
escassas, pelo que convém não incorrermos em conjecturas.

Na pars Occidentalis, mais especificamente em Pompeia, num grafito faz-se a um dos


palmarés mais prestigiosos da gladiatura, o do neronianus Asteropaeus, que livrou 107 pugnas
(CIL IV 1422). Colombus e Incitatus lutaram, respectivamente, em 88 e 80 confrontos (CIL IV
2387; 4870); Nasica em 60 (CIL IV 5275), Severus em 55 (CIL IV 4870) e Auctus em 50 (CIL IV
5306). Torna-se evidente que nestes casos, o número de prestações anuais era muito maior.
Porém, é de perguntar se estes palmarés não incluiriam, afora os combates ad digitum ou sine
missione, todos os restantes duelos, com armas embotadas (arma lusoria), que, em princípio,
seriam os mais habituais. De facto, como imaginar que um lanista, que desembolsava muito
dinheiro com o treino e, principalmente, a manutenção dos seus «pensionistas», aceitasse pô-
los a combater só uma ou duas vezes por ano? Os ganhos não cobririam seguramente as
despesas globais.

1557L. Robert, Les gladiateurs…, pp. 293-294.

1558 Estas cifras tão elevados de combates no historial dos gladiadores defuntos talvez reflictam o facto de muitas vezes eles não
participarem em porfias com armas afiadas nos munera apresentados no Oriente grego, utilizando antes armas embotadas.

1559 The Presentation of Gladiatorial Spectacles in the Greek East: Roman Culture and Greek Identity, p. 220, n. 238.Cf. nos. 6 (12
combates); 13 (7 combates); 21 (20 combates); 46 (11 combates); 71 (20 combates); 100 (5 combates); 101 (12 combates); 105 (2
combates); 119 (11 combates); 121 (22 combates); 163 (9 combates); 179 (5 combates); 197 (18 combates); 204 (9 combates); 309
(5 combates); 315 (8 combates); 320 (13 combates); 387 (20 combates); 417 (5 combates); e 461 (9 combates). Estes vinte
epitáfios apontam para uma média de 11 combates numa carreira. Muitas vezes os gladiadores preferiam enumerar as suas
vitórias, mas os números são geralmente comparáveis: vejam-se os números 14 (6 vitórias); 28 (20 vitórias); 31 (17? vitórias); 49
(20 vitórias); 88 (6 vitórias); 119 (11 vitórias); 127 (8 vitórias); 158 (15 vitórias); 163 (8 vitórias); 203 (15 vitórias); 206 (12 vitórias);
207 (6 vitórias); 224 (48 vitórias); 307 (11 vitórias); 320 (12 vitórias); 345 (10 vitórias); 435 (16 vitórias); e 466 (11 vitórias).

1560 Ibidem, nº 7.

1561 Ibidem: respectivamente, nos. 64, 72-73.

1562 Ibidem, nº 387.

541
Em termos globais, os gladiadores não interviriam em muitos espectáculos por ano. Com base
nos epitáfios, os defuntos qualificados de veterani ou rudiarii disputaram entre 7 e 18 pugnas
no conjunto das suas carreiras, os primi pali entre 11 e 16, e os invicti 23 e 27,
respectivamente. Ressalta, como vimos, o caso invulgar do thraex Exochus, que lutou em duas
ocasiões no espaço de uma semana, durante os festejos do triunfo de Trajano sobre os Dácios
na Urbs, mas normalmente as participações dos gladiadores em munera ao longo de um ano
eram escassas. Neste sentido, Epicteto alude a combatentes da arena que se queixavam de
aparecer poucas vezes em espectáculos (I.29.37). P. Sabbatini Tumolesi 1563 e G. L. Gregori1564
estimaram que, em média, um gladiador conseguia uma vitória por ano; M. Junkelmann 1565,
por seu lado, sugeriu que a actuação em três munera por cada temporada. Esta situação
contrasta com a dos aurigas, no âmbito dos jogos circenses, em cujos epitáfios se repara que
muitos chegaram a entrar em mais de 100 corridas por ano 1566.

Centremo-nos na idade de defunção, um elemento próprio das inscrições funerárias.


Contudo, ela aparece em menos de metade das lápides gladiatórias, pelo que se depreende
não ser uma informação valorizada pelo público 1567. Valerie Hope argumenta razões de
patetismo no caso dos jovens, ou de êxito no caso daqueles que atingiram maior longevidade
para a sua inclusão1568. Em Roma e na regiões do Sul de Itália, contrariamente ao resto dos
epitáfios, a idade coloca-se antes da indicação do número de combates ou vitórias, embora
sempre depois do nome, da armatura e do ludus do falecido. A fórmula empregue para referir
a idade também difere em função da distribuição espacial: em Roma e no resto de Itália utiliza-
se exclusivamente a expressão vixit annis; em contrapartida, em todas as inscrições funerárias
de gladiadores da Hispânia e da Gália observa-se o genitivo annorum; na Dalmácia coexistem
as duas modalidades. A idade média de óbito dos gladiadores acerca-se dos 30 anos 1569: 90%
dos dados estão compreendidos entre os 20 e os 35 anos; só cinco combatentes da arena,
quase todos de Roma, ultrapassam tal idade, morrendo aos 38, 45, 58 e 70 1570.Por outro lado,
ao termos em conta a idade dos primi pali, os gladiadores podiam ascender a este grau após 5
a 10 anos na arena.

As condições de vida no ludus gladiatorius eram sem dúvida duras (aspecto que exploramos
numa das subsequentes alíneas), tanto ou mais do que a vida dos militares nos castra. Porém,
importa atenuar a visão particularmente fatídica que os apologistas cristãos como os autores
românticos do século XIX transmitiram sobre a existência dos combatentes da arena.

Nas inscrições funerárias, é bastante invulgar a inclusão das derrotas sofridas. Com efeito,
apenas um epitáfio nos indica explicitamente o número de vitórias, empates e derrotas que o

1563 EAOR I, p. 139.

1564 EAOR II, p. 133.

1565 «Familia Gladiatoria […]», p. 70.

1566 A. Balil, «Su gli spettacoli di anfiteatro», in Mélanges d’Archéologie et d’Histoire offerts à André Piganiol I, Paris, 1966, pp.
362-363.

1567 No Oriente grego, conhecemos quatro epitáfios (cf. supra) em que se inclui a idade do defunto. Em 1940, quando publicou
a sua monumental monografia, L. Robert apontou apenas duas inscrições contendo a menção etária: Les gladiateurs, p. 293.

1568 «Fighting for identity: the funerary commemoration of Italian gladiators»…, pp. 102-103.

1569 Observam-se divergências nesta matéria, o que muitas vezes se relaciona com a quantidade de fontes consultadas: K.
Hopkins e M. Beard estimaram uma média de idade situada em 22,5 anos: cf. The Colosseum, pp. 87-88.

1570 EAOR I, nos. 64, 73 e 79; CIL III 2127.

542
defunto teve na sua carreira: 21 victoriae, 9 stantes missi e 4 missi. Assim, pelo menos os
gladiadores que gozavam de maior prestígio (que correspondem à maioria dos que
beneficiaram de uma lápide em sua memória), terão falecido mais por causa da reiteração dos
ferimentos sofridos durante os prélios do que devido à aplicação da condenação capital depois
de lhes ser negada a missio. No entanto, V. Hope sustentou que os gladiadores recordados nos
epitáfios (cingindo-se aos achados na península itálica) terão, em geral, perecido em
combate1571. Se bem que não possamos generalizar a asserção desta autora, foi o que sucedeu
com três gladiadores, dois enterrados em Verona e outro em Benevento; o primeiro perdeu a
vida na sua oitava pugna, enquanto os últimos sucumbiram no seu 11º combate 1572. Em
contrapartida, em três epitáfios da Dalmácia atribuiram-se outras causas para a morte: o
destino (fato deceptus), maus cuidados médicos (medecina decessit) ou um «ladrão» (deceptus
a latrone)1573.

No epitáfio de Iuvenis, lê-se que entrou no ludus aos 17 anos; ademais, o gladiador mais
jovem que se conhece faleceu com 18 anos; e o único tiro cuja idade vem mencionada viveu 20
anos1574. No extremo oposto, os combatentes que pereceram aos 38 e 45 anos em Roma
surgem qualificados como veterani. Por conseguinte, podemos calcular que um indivíduo
ingressaria numa familia gladiatoria com 15-20 anos e, depois de uns 20 anos de serviço, ao
sobreviver, retirar-se-ia. Assim, apresentam, em diversos aspectos, uma vida profissional
similar à dos legionários do exército romano, compartilhando o mesmo género de treinos, a
disciplina e afición pelo anfiteatro1575.

Se bem que a taxa de esperança de vida fosse muito menor na Antiguidade 1576 do que
actualmente, capta-se um exemplo notável de longevidade, um paegniarius que faleceu aos 98
anos, 8 meses e 18 dias (CIL VI 10168): saliente-se, todavia, que os combates travados pelos
paegnarii não eram mortais.

Mediante todos estes epitáfios devidamente datados, bem como as informações dos
resultados dos combates nos munera (nomeadamente as garatujadas nas paredes e muros de
Pompeia), é possível rastrear, grosso modo, a evolução da taxa da mortalidade na gladiatura.
Aparentemente, ficamos com a impressão de que as carreiras no fim da República (Pseudo-
Cícero, Ad Oct. 9) e no início do Império seriam relativamente longas; em todo o caso, mais do
que viriam a ser nos séculos III e IV. G. Ville estimou que um gladiador augustano teria uma

1571 «Fighting for identity…», p. 98.

1572 EAOR II, nos. 47 e 52; EAOR III, nº 69.

1573 Respectivamente CIL III 14644, 12925 e 8830. Encontram-se estas mesmas causas de morte no Oriente grego: L. Robert, Les
gladiateurs, nos. 55, 69 e 77 (mais adiante desenvolvemos tal aspecto).

1574 EAOR II nº. 43; EAOR I nos. 83 e 97. Idades idênticas se assinalam no Oriente grego (L. Robert, Les gladiateurs, nos. 16 e 19)

1575Patrick Le Roux, «L’amphithéâtre et le soldat sous l’Empire romain», Spectacula I. Gladiateurs et Amphithéâtres, Lattes,
1990, pp. 203-215; E. Pitillas Salañer, «Milites y edad de fallecimiento. Un intento de apçroximación», MHA 19-20 (1998-1999), pp.
321-341.

1576Não obstante a impossibilidade de dispormos de informes exactos sobre a esperança de vida nos diversos grupos ou
camadas sociais do Império romano, o certo é que não restam dúvidas de que se tratava de um mundo onde, em média, três em
cinco pessoas morriam antes de atingir os 20 anos. A este respeito, consultem-se: R. Duncan-Jones, Structure and Scale in the
Roman Economy, 1990, cap. 6; B. Frier, «Roman Life Expectancy: Ulpian’s Evidence», HSCPh 86 (1982), pp. 213-251.

543
esperança de vida de uma dezena de porfias 1577. Em Pompeia, as fontes epigráficas aponta
para uma morte em cada oito combates, e em Thasos, uma em cada sete.

De acordo com G. Ville, no século II, passou a haver uma maior frequência na execução dos
vencidos. Sob a égide de Marco Aurélio, um gladiador perecia geralmente na sua terceira ou
quarta pugna. A morte ter-se-á tornado ainda mais sistemática no século seguinte, com uma
esperança de vida que diminuiu talvez para metade 1578. Porém, o acervo documental afirma-se
demasiado escasso para extrair conclusões tão categóricas como as propostas pelo historiador
francês. Além disso, este não estabeleceu uma distinção entre os gladiadores que porfiavam
em Roma e os das cidades provinciais, onde os palmarés consignados em epitáfios mostram
que diversos combatentes perderam duelos mas, ainda assim, sobreviveram 1579.

É certo que uma inscrição de 249 d. C. parece atestar uma mutação drástica, no sentido de
ocorrerem, com muito maior frequência, mortes na arena: num espectáculo organizado pelo
duumvir P. Baebius Iustus, em Minturnae (Itália): no munus tiveram lugar 11 combates,
gabando-se o editor de ter mandado executar igual número de gladiadores derrotados 1580, a
fim de mostrar a sua «generosidade» para com o público, visto que uma decisão como esta
comportava elevados gastos. Também visualizamos esta radicalização da gladiatura no mosaico
da Villa Borghese, onde todos os combatentes perdedores são executados. Esta matéria é
objecto de análise no último capítulo desta obra.

Alimentação dos gladiadores

Uma das principais responsabilidades do médico de um ludus relacionava-se com a adequada


alimentação dos gladiadores1581. Sobre este assunto, Galeno oferece-nos uma descrição valiosa,
que inclui também comentários sobre o treino e hábitos de vida próprios de uma «escola»
gladiatória (Exhortatio ad Artes Addiscendas, 4):

«… no meio da grande quantidade de carne e sangue que possuem, a sua mente [dos gladiadores] está
perdida num imenso lodaçal; ela, sem receber estímulo algum para se desenvolver, permanece tão
estúpida como a dos brutos … afadigam-se a si mesmos até ao limite das suas forças e depois
empanturram-se [de comida] em excesso, prolongando-se as suas ceias frequentemente até à meia-
noite. Quanto ao seu sono, também o norteiam por regras idênticas às que regem os seus exercícios e a
sua alimentação (= o excesso»). À hora em que as pessoas, que vivem de acordo com as leis da natureza,
deixam o trabalho para almoçarem, é quando eles se levantam … Enquanto se encontram em actividade,
os seus corpos ficam num perigoso estado [de hipertrofia]. Quando se retiram [da gladiatura], caem
todos num estado ainda mais perigoso. Muitos morrem pouco depois, outros vivem alguns anos mais,
mas nunca chegam à velhice … [estando] os seus corpos debilitados pelos golpes que receberam, acham-

1577La gladiature…, p. 318. Segundo os cálculos de Ville, com vista a rastrear a taxa de sobrevivência, 100 combates resultariam
na morte de 19 gladiadores, mas não fica claro se estes 19 morriam efectivamente na arena ou perdiam a vida pouco depois de
travarem as pugnas.

1578 Ibidem, p. 319.

1579 J. Carlsen, «Exemplary Deaths in the Arena: Gladiatorial Fights…», p. 87.

1580O espectáculo incluiu ainda venationes, em que morreram 10 «ursos cruéis»: cf. CIL X 6012 = ILS 5062 = M. Fora, I munera
gladiatoria in Italia…, nº 34.

1581 A. Curry, «The Gladiator Diet», Archaeology 61 (6, 2008), pp. 28-30.

544
se predispostos para a enfermidade … Os seus olhos costumam estar afectados, neles facilmente
surgindo fluxões [acumulação mórbida de humores – vítreo e aquoso]. Os seus dentes, tão danificados
[pelos golpes], que lhes caem. Com os músculos e os tendões padecendo de roturas, as suas articulações
são incapazes de resistir ao esforço e deslocam-se facilmente. Sob o ponto de vista sanitário, nenhuma
condição é mais desgraçada … muitos dos que, antes, eram perfeitamente proporcionados, caem nas
mãos de instrutores que os desenvolvem bem para além de toda a mesura, sobrecarregando-os com
carne e sangue e transformando-os no oposto [da proporção] … [estes homens] ficam com rostos
desfigurados, repugnantes à vista. Membros com roturas ou deslocados, e vesgos, tal é o tipo de beleza
resultante. São estes os frutos que colhem. Depois de se reformarem, os seus membros deslocam-se
amiúde e, como se disse, tornam-se completamente disformes».

Galeno também salientou que estes males não assolavam apenas os gladiadores; os atletas
que praticavam a luta, o pugilismo e o pancrácio sofriam dos mesmos em igual medida.
Consequentemente, a nível da saúde, ele considerava que as modalidades agonísticas do
desporto grego eram tão nocivas como a gladiatura. Se bem que o retrato que Galeno fez dos
gladiadores nos leve a pensar que a maioria deles cedo adquiriria uma aparência desagradável,
outros havia que conseguiam preservar uma certa beleza, aquilo que Cipriano, no século III,
definiu como honesta satis forma, dado que o atractivo físico ajudava os combatentes da
arena, por vezes até ganhando o favor do público mesmo quando derrotado, sendo-lhe
concedida a missio. O próprio lanista tinha plena consciência de que uma estrela do anfiteatro
devia ser agradável à vista da multidão (pelos benefícios que daí o primeiro obtinha), pelo que
sem dúvida não desdenhava de tentar cuidar da estética da sua «mercadoria».

Encarava-se a dieta como elemento essencial para preservar a saúde e garantir o máximo
rendimento «desportivo». Neste sentido, uma das tarefas do médico num ludus seria a de
introduzir um regime alimentar que ajudasse os gladiadores a mostrarem todas as suas
possibilidades combativas. No entanto, se nos ativermos ao trecho citado de Galeno, o tipo de
dieta adoptado nos ludi continha claras deficiências, consumindo os gladiadores enormes
quantidades de comida para satisfazerem o seu apetite pantagruélico.

Na realidade, grande parte da comida consumida nas escolas gladiatórias, feita à base de
papas de cevada e feijão e designada genericamente como sagina (cujo significado literal é
«enchimento»), pode ter merecido má reputação por ser pouco apetitosa, mas cabe recordar
que esses comentários depreciativos na literatura romana consistem, acima de tudo, em
asserções de natureza moral e não indicações objectivas sobre o valor calórico da alimentação
dada aos homens da arena. Num exercício de retórica do Pseudo-Quintiliano (espelhando os
preconceitos da elite da sociedade romana), um gladiador fictício descreve a sagina que lhe
serviam no ludus como «pior do que a fome» 1582, e o poeta Propércio adjectivou de
«abominável» a sagina com que se cevavam os gladiadores como; no entanto, este autor
pretendia, acima de tudo, expressar a sua desaprovação pelos rapazes de condição livre que se
vendiam por contrato aos lanistae (qui dabit immundae venalia fata saginae)1583.

No entanto, a alimentação típica dos gladiadores, que Juvenal rotulou de miscellanea ludi,
implicando uma conotação moral, era indiscutivelmente rica em hidratos de carbono 1584.
Desde tempos recuados que a cevada constituía o principal elemento da dieta gladiatória. De
facto, chamava-se frequentemente aos gladiadores hordearii, «os da cevada», mas em regra
com um sentido pejorativo, subentendendo-se que comiam géneros fornecidos aos animais 1585.
1582 Pseudo-Quintiliano, Decl. Mai., 9.5.19.

1583 T. Wiedemann, Emperors and Gladiators…, p. 116.

1584 Sat. 11.20.

1585 Plínio-o-Velho, Nat. Hist, 18.72

545
Um dos motivos por que se escolhia a sagina prendia-se ao facto de estas papas servirem para
aumentar o índice de gordura corporal, de maneira a que os combatentes tivessem uma
protecção adicional contra golpes superficiais feitos por lâmina na pele e, ao mesmo tempo,
ganhassem o máximo peso possível aquando da sua participação nos munera, aspecto que,
aliás, Cipriano referiu, seguindo na esteira de Galeno:

«… impletur in sucum cibis fortioribus corpus, ut arvinae toris membrorum moles robusta pinguescat,
ut saginatus in poenam carius pereat»1586.

Além disso, a sagina, para indivíduos que se exercitavam muito, como os gladiadores,
também permitia aumentar o volume da massa muscular e a própria força. Havia ainda uma
razão ditada pelo espectáculo: convinha aos lanistae, como aos editores, que os combatentes
revelassem um aspecto robusto e aparentemente saudável, o que mais cativaria os
espectadores. Quanto à cevada em si mesma, o seu baixo preço fez com que os proprietários
dos ludi pudessem adquirir grandes quantidades deste cereal sem terem despesas demasiado
avultadas. Nos exames das ossadas do «Cemitério dos Gladiadores» em Éfeso, verificou-se que
a cevada era um elemento predominante na alimentação dos homens da arena 1587.

Afora a cevada, a dieta gladiatória incluía leguminosas (ervilhas, favas e lentilhas 1588), bem
como verduras e determinados suplementos, como azeite e sal. E o que bebiam habitualmente
os gladiadores? Antes de mais, água, que os refrescava e evitava a desidratação. No entanto, a
água fria era vivamente desaconselhada, devido às perturbações estomacais que ela podia
causar depois de certos esforços físicos. Varrão conta-nos que os gladiadores ingeriam uma
beberagem feita à base de cinzas, certamente acompanhada por água ou posca (água
avinagrada, também utilizada pelos soldados romanos). Estas cinzas, de madeira e de osso,
continham cálcio 1589, potássio e igualmente magnésio, um elemento natural anti-stress. Assim,
tal género de «poção» pode ser vista como a antecessora das bebidas energéticas consumidas
pelos desportistas actuais. Atentemos a um trecho de Plínio-o-Velho (Nat. Hist. 36.69):

«O fogo alivia as convulsões ou as contusões das vísceras, de acordo com Varrão; cito-o textualmente:
“A limpeza - afirma ele - é a cinza da lareira. Ora, ao pegar-se nesta cinza, esta remedeia interiormente os
maus golpes; vemo-lo entre os gladiadores que, uma vez terminados os jogos, se reconfortam com tal
beberagem».

Embora se dirigindo a indivíduos cultos e não a trabalhadores braçais, Plutarco, nos seus
Preceitos da higiene (19), discorre longamente sobre aquilo que acredita ser uma boa
alimentação e aborda a questão da bebida: recomenda o leite, por se tratar de um alimento
consistente e bem substancial; quanto ao vinho, «é de todas as bebidas a mais útil e, de todos

1586 Ad Donat. 7.

1587 Assim como o trigo. Depois de se examinarem de 53 esqueletos, concluiu-se que a alimentação dos gladiadores de Éfeso
era essencialmente vegetariana, diferenciando-se, em certos aspectos, do resto da população da cidade. A este respeito, consulte-
se S. Lösch, N. Moghaddam, K. Grossschmidt, D. U. Risser e F. Kanz, «Stable Isotope and Trace Element Studies on Gladiators and
Contemporary Romans from Ephesus (Turquey, 2 nd and 3 rd Ct. AD) – Implications for Differences in Diet», PLOS ONE, vol. 9, issue
10 (October, 2014), pp. 9-10 (1-17). Também se detectaram indícios de consumo de produtos marinhos (como peixe,
designadamente o garum, ou mariscos). Os combatentes da arena alimentavam-se muito raramente de proteínas animais em geral
e de carne em particular.

1588 Frequentemente condimentadas ou temperadas com água salgada, vinagre, garum ou azeite, cuja virtude primeira era a de
fortificar o estômago. Estes condimentos e adjuvantes ajudavam a dar um melhor paladar e a tornar os alimentos mais facilmente
consumíveis.

1589Uma vez mais, nas ossadas do cemitério de Éfeso constatou-se a presença de elevados níveis de cálcio. Este servia para
fortalecer a ossatura dos gladiadores, ao mesmo tempo que diminuía o risco de fracturas e acelerava o processo de recuperação
de lesões: cf. S. Lösch, N. Moghaddam, K. Grossschmidt, D. Risser e F. Kanz, «Stable Isotope …», p. 13.

546
os remédios, o mais agradável …. Mas cabe ser comedido no seu uso, não tanto por meio da
água que nele se mistura, mas pelo cuidado em não ingeri-lo despropositadamente».

Catão, por seu turno, aconselhava que os trabalhadores agrícolas deviam receber meio-litro
de vinho por dia no Verão e só ¼ durante o Inverno. Não resta a monor dúvida que, pelo
menos em teoria, seria proibido o consumo de vinho na cantina de um ludus (à semelhança do
que sucedia nas bases militares), já que causava a embriaguez e toldava os sentidos. Os
gladiadores só tinham a oportunidade de beber alcool em circunstâncias excepcionais – na
celebração de vitórias e de aniversários, ou nas cenae liberae e outras comemorações. Fora da
caserna, para aqueles que gozavam da permissão para sair (os auctorati), deveria ser habitual
uma passagem por uma taberna. Conhece-se, aliás, uma disposição imperial estipulando o
castigo para gladiadores que se embebedassem.

Contrariamente à imagem estereotipada que muitas vezes ainda se tem sobre a alimentação
frugal dos legionários romanos, nos depósitos de detritos situados nos acampamentos ou
fortalezas, os arqueólogos descobriram que a sua dieta podia ser bastante mais diversificada,
consoante a localização geográfica das guarnições e as fontes de aprovisionamento que
existissem nas proximidades. Verificou-se, com efeito, que os militares, a par do trigo
consumiam todo o género de animais, tanto domésticos como selvagens (de pequeno e grande
porte) e, até, peixe e marisco, no caso dos aquartelamentos situados à beira-mar. Quanto ao
consumo de carne nos ludi, importa matizar a ideia de que os gladiadores raramente a
comiam. Efectivamente, é difícil imaginar que estes homens, que se submetiam a tão grandes
esforços físicos, não se alimentassem de carne, que tanto podia ser cozida, assada e
confeccionada de várias outras maneiras.

Embora as investigações das ossadas humanas do cemitério efesiano tenham revelado a


existência de um regime alimentar basicamente vegetariano, cabe não generalizar este facto.
Na Antiguidade, não existiam obviamente frigoríficos, pelo que conservar por muito tempo
carne fresca e pronta para consumo era impossível. Assim, era comida amiúde já decomposta e
muito condimentada. Para a gente comum, a carne consumia-se sob a forma de produtos
salgados (salsichas, presunto), que se compravam nas muitas tabernae ou thermopolia que
havia nas ruas, ou então junto de vendedores ambulantes (aquarius). Existiam ainda açougues
nas localidades, mas naturalmente desprovidos de arcas frigoríficas, assim como os seus
clientes. Ademais, a maioria dos habitantes pobres nos centros urbanos não dispunha de
instalações apropriadas para cozinharem nas suas habitações, salvo, por vezes, pequenos
fogões, os quais frequentemente constituíram a causa de incêndios nos imóveis, velhos,
degradados e insalubres. Seria preciso viver no campo para beneficiar de uma capoeira ou de
peças de caça. Nas cidades, o número de pessoas que podia comer carne era muito reduzido,
significando um luxo só acessível aos abastados membros das classes privilegiadas.

Posto isto, numa «empresa» como um ludus, onde se capitalizava a força humana, o lanista
não podia ficar num impasse em relação a este alimento tão rico em proteínas, cujo valor
nutritivo já era, então, bem reconhecido. Em tempos mais recuados, sabemos que os Gregos
costumavam fornecer carne aos seus atletas, a qual foi, pela primeira vez, prescrita por
Pitágoras. Pausânias, por seu lado, também alude a um regime onde preponderava a carne (VI,
7, 10). A titulo de mera curiosidade, note-se, por exemplo, que o célebre campeão de luta
olímpica, Milão de Crótona (cidade fundada por colonos helenos em Itália, situada na Magna
Graecia) consumia diariamente mais de sete litros de vinho, nove quilos de pão e outro tanto
de carne. Noutro testemunho documental bem mais tardio, ainda que se trate de um caso
bastante particular (Papyrus Oxyrhincus. P. 2013/Ibidem, 2014), observamos que um soldado
romano, outro profissional do combate, consumia, em média, uma libra romana de carne por
dia, ou seja, 0,33 Kg.

547
Galeno não desaconselhava o consumo de carne, embora censurasse os atletas do seu tempo
pelo facto de preferirem comê-la crua (Exhortatio ad Artes Addiscendas, 9), ou que, em sua
opinião, tinha por efeito engrossar o corpo. Ele recomendava antes um regime personalizado,
estabelecido por um médico higienista (Higiene, VI, 164-166): para indivíduos que estavam na
força da vida e se exercitassem muito, Galeno recomendava a carne de porco. De acordo com
as concepções da época, as outras carnes ocasionavam mais facilmente o cansaço. A de bovino
também era muito nutritiva, mas podia acarretar a aparição de doenças. A carne de veado ou
de cabra digeria-se com menos dificuldade que a anterior. Os Romanos comiam igualmente
queijo (o fresco mais fácil de digerir) e frutos que, quando secos, se revelavam mais
energéticos.

Para uma parte dos «pensionistas», principalmente dos ludi com menores recursos, a
alimentação devia cingir-se realmente a um regime vegetariano, em que a cevada se destacava.
Não existia aqui uma questão de gosto. Embora simples, a comida era consistente, ao passo
que fora da caserna, muita gente indigente, mergulhada na mais profunda miséria, subsistiam
a muito custo de esmolas, fosse do próprio Estado, ou de um patrono. Assim, não seria raro
que alguns homens ingressassem na gladiatura apenas por causa da «marmita». A única
excepção neste regime encontrava-se na cena libera, o banquete oferecido pelo editor aos
gladiadores na véspera de um munus. Fica claro que satisfazer as papilas gustativas e o
estômago do gladiador ou do venator não constituía um objectivo prioritário.

A atenção dispensada à alimentação relacionava-se com uma lógica sanitária que obedecia a
parâmetros puramente utilitários, nos quais o prazer não entrava em linha de conta. Os
diversos ingredientes só muito raramente se entendiam como «bons» ou «maus»; em
contrapartida, deles se dizia que eram «quentes» ou «frios», «secos» ou «húmidos», isto com
base na teoria de Hipócrates sobre as qualidades contrárias e o equilíbrio dos humores. Estes é
que determinavam o ponto mais importante a vigiar: a digestão, como se lê nas obras de
Galeno.

A vida na caserna

No final da República, as «companhias» de gladiadores ficavam geralmente alojadas nas


residências dos seus proprietários ou, então, nas moradias de mestres competentes para lhes
ministrarem a instrução. No entanto, certos lanistae, já profissionalizados, dispunham de locais
especificamente concebidos para albergar e treinar os combatentes da arena. Tal foi, entre
outros, o caso de Lêntulo Batiato em Cápua, que se tornou célebre para a posteridade por
haver sido o lanista de Espártaco. Embora a sua caserna tivesse um apertado dispositivo de
segurança, tal não impediu, porém, a fuga do trácio e dos seus camaradas. Ao ingressar num
ludus, o recruta era encaminhado, numa primeira etapa, para uma cella. Quanto aos tunicati e
aos homossexuais (cf. infra), ficavam num espaço especial, à parte, para que as suas tendências
não constituíssem fonte de conflito com os restantes «pensionistas». Além disso, os homens
que tivessem sido sentenciados à gladiatura (damnati ad ludum) também deveriam encontrar-
se alojados separados dos auctorati. Por seu turno, aparentemente, o Ludus Matutinus de
Roma albergou, ainda, os damnati ad bestias.

Normalmente, uma «escola» gladiatória comportava a familia de um lanista, mas captam-se


indícios de que também poderia acolher temporariamente outros grupos de combatentes (de
outra localidade e que estivessem de passagem) ou até gladiadores alugados ocasionalmente.
Contudo, é possível que os gladiadores imperiais, aquando das suas digressões fora de Roma,

548
beneficiassem de um tratamento distinto, vendo-se instalados na própria cidade onde iriam
actuar, num albergue ou noutra instalação afim, em vez de pernoitarem numa austera caserna.
Um dos indícios que nos conduz a supor tal prática radica no escasso número de grafitos
deixados pelos augusti nas paredes e colunas da «escola» de Pompeia. Certos estudiosos
imaginaram que estes combatentes seriam enviados para o ludus imperial de Cápua, situado a
uns 140 km de distância. Com efeito, seria sensato manter afastados gladiadores de duas
escolas diferentes, a fim de assim evitar distúrbios, como o ilustram, na sua pior forma, os
tumultos violentos e mortíferos que degeneraram numa autêntica batalha campal entre os
tiffosi de Pompeia e de Nuceria, que ocorreu durante um espectáculo que se desenrolou no
anfiteatro da primeira, episódio tão dramático que, durante vários anos, se proibiu a
apresentação de munera nesse centro urbano. Mas neste caso tratava-se de espectadores, não
dos próprios combatentes, aos quais se inculcava severamente um grande auto-controlo.

Os três ludi mais bem conhecidos oferecem uma imagem de conjunto bastante precisa quanto
à sua configuração e funcionamento: o de Pompeia não revela a existência de qualquer
dormitório, mas antes 66 cubículos com 10-12 metros quadrados, previstos para alojar, cada
um, duas pessoas, perfazendo, assim, um total de aproximadamente 130 homens. A este
respeito, reveste-se de interesse uma passagem de Juvenal (Sat. 6, Fragmento de Oxford, 10).
Quanto ao Pseudo-Quintiliano (Decl. Mai. 9.23), preferiu utilizar o termo cellula, talvez se
reportando a um espaço mais pequeno ocupado por um só homem, como os do ludus de
Carnuntum, que só mediriam cerca de 5 metros quadrados.

No Ludus Magnus de Roma, os aposentos eram maiores que os de Pompeia, com uma
superfície na ordem de 20 metros quadrados, individuais ou duplos. Segundo Díon Cássio
(72.22), Cómodo passava longas temporadas neste complexo, ocupando a «primeira cellula».
Isto talvez queira dizer que os melhores gladiadores (o imperador considerava-se como o maior
de todos!) teriam ao seu dispor condições de alojamento privilegiadas, ou que os membros da
cada armatura (a dos secutores, no caso de Cómodo) estariam agrupados por alas, situando-se
os campeões nos extremos da cada fiada de quartos. Assim, a disposição ou o tamanho dos
habitáculos reflectiria a hierarquia dos vários tipos de combatentes.No Ludus Magnus, os
cubículos estavam repartidos por vários registos. Avançou-se com a hipótese de que existiriam
três andares, o que, a ser verdade, albergaria cerca de 200 «pensionistas» em cada um deles,
englobando um total aproximado de 600 gladiadores. No que toca aos outros dois ludi da
capital, ao sabermos que possuíam dimensões mais modestas do que a «Grande Escola», é
possível calcularmos que existiriam pouco mais de 1000 gladiadores na Urbs. Noutras regiões
do Império, tais alojamentos deveriam ter uma configuração baseada, grosso modo, na
planimetria do Ludus Magnus, o que se constatou, por exemplo, com a recente descoberta da
caserna gladiatória da antiga Carnuntum (Áustria).

Tanto em Pompeia como no Ludus Magnus não se encontraram vestígios de camas.


Consequentemente, os homens dormiriam sobre enxergas colocadas no solo. O conforto era,
portanto, muito rudimentar, a tal ponto que o Pseudo-Quintliano (Decl. Mai. 9.21) se referisse
a estes espaços como células imundas comparáveis aos ergástulos dos escravos. Em vários dos
cubículos do ludus pompeiano encontraram-se várias peças de equipamento: face a isto,
alguns depreenderam que os gladiadores as guardavam junto deles. Mas não seria algo que se
aplicasse a todos, mas somente aos auctorati. No entanto, o facto de estarem agrupadas,
compreendendo três ou quatro panóplias diferentes, afigura-se suspeito, sobretudo se
tivermos em conta que os gladiadores coabitavam geralmente cada célula aos pares. Ademais,
este «amontoado» de elmos e grevas de armaturae distintas talvez indique que nesta caserna
não existiriam sítios específicos onde se reunissem as armas para cada tipo de combatente, à
excepção, em princípio, para a armatura dos provocatores, uma vez que os cascos desta
categoria foram descobertos no mesmo local. Porém, a estrutura arquitectónica que servia

549
como ludus não fora concebida para ser uma caserna e que, por definição, não se teria previsto
inicialmente a necessidade de uma armaria (armamentarium), daí se reutilizarem
improvisadamente, os espaços disponíveis. Mas, note-se, não se recuperou qualquer arma
ofensiva nas células, o que faz todo o sentido, já que elas podiam circular livremente na
«escola», por óbvias razões de segurança. Se, neste aspecto, um auctoratus podia ser
minimamente fiável, o mesmo já não sucedia com um condenado que estivesse a cumprir a
sua pena no ludus: não lhe seria difícil roubar as armas caso estas se achassem depositadas nos
aposentos de determinados gladiadores. Por este motivo, as armas letais ficariam guardadas
no alojamento do lanista, ao pé de outros objectos de valor.

Para ilustrarmos este assunto, recuemos 150 anos antes da destruição de Pompeia pelo
Vesúvio, ao início da revolta de Espártaco: os amotinados, ao não poderem deitar a mão às
armas, recorreram a utensílios existentes na cozinha (facas e espetos). Só mais tarde, após
assaltarem e pilharem uma carroça com material destinado a um munus em Cápua, é que os
revoltosos se armaram e equiparam de maneira mais adequada. Coloca-se então uma questão
pertinente: estariam os auctorati «misturados» com os escravos?

Os auctorati tinham igualmente a possibilidade de se alojarem fora da caserna, com as suas


próprias famílias (se as tivessem), numa habitação alugada, e aparecerem só no ludus para a
realização dos treinos, o que provavelmente seria também o caso dos instrutores e dos
médicos. Contudo, alguns dos últimos talvez considerassem mais prático e económico
permanecer na escola, onde beneficiariam de tecto e comida, além de que os gladiadores
poderiam sofrer algum género de discriminação se habitassem juntamente com a população
civil de uma localidade. Ignoramos se os auctorati se mantinham afastados dos damnati
mesmo em espaços que, teoricamente, todos utilizavam, como o refeitório ou o próprio recinto
para o exercício. Em todo o caso, uns e outros exigiam um grau de vigilância totalmente
diferente. Determinados indivíduos possuiriam sítios reservados, interditos aos restantes,
situação que apenas acontecia com os melhores gladiadores do ludus.

Salientemos mais um ponto: os antecedentes criminais de considerável número de homens


num ludus. Eram indivíduos rudes, cujo carácter violento se adequava à profissão de gladiador.
Muitos deles tinham sido julgados e sentenciados pela prática de diversos géneros de crimes:
roubo e profanação de templos, fogo posto e homicidio 1590. Eles, muito provavelmente,
tornariam assaz dura a existência dos recém-chegados inexperientes à «escola», submetendo-
os tanto a agressões verbais como físicas, como se as mesmas fossem uma espécie de ritual
iniciático 1591. Contudo, para um lanista, os crimes cometidos por estes seus «pensionistas»
afiguravam-se quase irrelevantes, contanto que eles não causassem sérios danos a colegas seus
e não se mostrassem desobedientes.

Por fim, havia vários tipos de segregação num ludus; Juvenal diz-nos que gladiadores como os
retiarii eram mantidos separados das restantes armaturae. Mas a asserção deste autor deve
ser perspectivada num âmbito mais específico; é possível que se assistisse a uma certa
discriminação no seio de uma mesma armatura; alguns retiarii voluntários, que só
pontualmente lutariam na arena, por se reduzirem à condição de amadores ineptos, poderiam
ver-se confinados a um sítio concreto da «escola» (Juvenal, Sat. 6, Fragmento de Oxford, 12-
13); a diferença entre estes homens e os retiarii verdadeiramente profissionais taLvez se
marcasse através do uso de túnicas pelos voluntários, apresentando-se os outros o torso
desnudo (assunto estudado no Capítulo IV) 1592. Sabe-se, também, que havia homossexuais (em
latim chamados effeminati ou cinaedi) entre os gladiadores, os quais, segundo Séneca, eram

1590 Pseudo-Quintiliano, Decl. Mai., 9. 21.

1591 Ibidem, 9.5.

550
banidos para a parte obscoenam do ludus, onde poderiam dar largas à sua «doença» (Q. Nat.
7.313)1593.

Vida familiar

Era relativamente comum um gladiador arranjar uma companheira e viver com ela na própria
caserna, na mesma célula. No entanto, desconhecemos se os dois lugares de um
compartimento se destinariam ao casal ou se acrescentava apenas um terceira pessoa no
cubículo. Contrariamente aos legionários, pelo menos até ao reinado de Septímio Severo, os
gladiadores e os venatores podiam casar-se (salvo os que fossem escravos), mas o regime de
concubinato era mais corrente. Na documentação epigráfica, a mulher de um homem da arena
aparece designada como uxor ou coniux (termo com o sentido jurídico de esposa) 1594, e mais
raramente como contubernalis (que implica a noção de partilha de um mesmo, vocábulo que
amiúde foi empregue no exército romano para indicar uma secção de oito homens que
ocupavam uma tenda ou um compartimento num acampamento ou num forte) 1595. Mas a
generalidade dos Romanos rotulava estas mulheres através do termo de ludiae («moças dos
ludi), mais depreciativo 1596. Elas tinham, em geral, uma condição social muito modesta, sendo,
amiúde, escravas ou libertas, raramente livres. As inscrições testemunham abundantemente a
sua existência, já que eram elas, muitas vezes, que erguiam uma lápide funerária 1597 e tratavam
do sepultamento dos seus companheiros ou, noutras situações, recebiam a mesma atenção
dos gladiadores com quem haviam mantido um relacionamento (CIL XII 5836, 5837, CIL VI
10167, 10176) 1598. Assim, conhecemos Ermais, mulher de Hylas, em Lugdunum, Cornelia
Severa em Corduba, Munatia Prima em Roma, Hateria Potita em Arausio, ou ainda Aurelia
Aphrodita, esposa de um retiarius chamado Filematio, que morreu com 30 anos de idade.
Vejamos o conteúdo da estela referente ao último casal:
DIS MANIBVS. FILEMATIO, NATIONE/AGRIPPINENSIS,/QVI VIXIT ANNOS XXX, RETIARIO, PVGNARVM/XV, AURELIA
APHRODITA BENE MERENTI FECIT/CONIVGI DVLCISSIMO,/AD LVDVM MAGNVUM CAESARIS

Tradução:

1592 R. Dunkle, Gladiators…, pp. 47-48; M. D. Reeve, «Gladiators in Juvenal’s Sixth Satire», CR NS, 23.2 (1973), p. 125.

1593S. Ceruti e L. Richardson, «The Retiarius Tunicatus of Suetonius, Juvenal, and Petronius», p. 590; S. Braund, Juvenal Satires,
p. 159.

1594Com efeito, na parte ocidental do império, em 21 inscrições funerárias, as mulheres aparecem referidas como coniux, e, em
outras oito (quatro delas descobertas na Hispânia) são qualificadas de uxor.Coniux: EAOR I nos. 69, 73 e 93; EAOR II nos. 41, 43, 45,
48 e 52; EAOR III no. 69; EAOR V nos. 15, 16, 18, 20, 21, 24, 24 e 62; CIL II 2 7, 359 e 363; CIL III 8830; CIL X, 1926 e 1927. Uxor:
EAOR II nos. 19 e 50; EAOR V nº 22; AE 1991, 851; CIL II 2 7, 355, 361 e 365; P. Piernavieja, Corpus de las Inscripciones Deportivas de
la España Romana (= CIDER), Madrid, 1977, nº 54.

1595 Contubernalis: EAOR V, nos. 9 e 27 (em dois epitáfios de Nîmes, antiga Nemausus).

1596Sobre as ludiae: P. Piernavieja, «Ludia: un terme sportif latin chez Juvenal et Martial», Latomus 31 (1972), pp. 1037-1040; M.
G. Sassi, «Ludia: la donna e I gladiatori», in Vicende e figure femminili in Grecia e a Roma, Ancona, 1995, pp. 389-395.

1597 Em quase metade dos epitáfios no Ocidente romano (36) menciona-se que foram as mulheres dos gladiadores a tratarar
das despesas com o funeral e a lápide: cf. A. Ceballos Hornero, «Epitafios latinos de gladiadores en el Occidente romano», p. 327.

1598Observe-se o epitáfio do monumento funerário que o gladiador Publius Aelius ergueu para a sua mulher (CIL IV 10193: «D.
M. Mariae Thesidi P(ublius) Ae(lius) Troadesis thraex veteranus coniugi santissim(ae) pientissi(mae) b. m. f./«Aos deuses manes.
Maria Thesidi [esposa] de Publius Aelius, oriundo da Troâde [região onde se situava Tróia]. Este thraex veterano fez isto para a sua
santíssima e fidelíssima mulher que bem o merece».

551
«Aos deuses manes. A Filematio, originário de Colonia Agrippinensis [actual Colónia, Alemanha], que
viveu 30 anos, retiarius, 15 pugnas. Aurelia Aphrodita fez [o monumento] para o seu esposo, que bem o
mereceu, tão terno. No Ludus Magnus de César» (AE 1960, 0140).

A incerteza quanto ao futuro e a adversidade do quotidiano explicam, talvez, o género de laço


peculiar que unia estes casais, bem como a sua longevidade relativa: o retiarius Lantinus
usufruiu, durante cinco anos, da companhia da sua mulher, perecendo ele aos 24 anos (CIL V
45061); o já mencionado Urbicus, que morreu aparentemente com 22 anos 1599, totalizou sete
anos de união com Lauricia. Outro caso, só atestado por fontes literárias, foi o do próprio
Espártaco que, durante a sua estadia no ludus de Batiato, terá vivido com a sua companheira,
supostamente profetisa de Dionísio e trácia como ele.

Geralmente, os gladiadores tinham a preocupação de resguardar as infortunadas


companheiras das consequências das suas mortes, não hesitando em escolher um dos seus
colegas para se tornarem protectores das mesmas, caso perdessem a vida. Várias estelas
funerárias mostram que este costume seria habitual, como se observa numa fonte de
Nemausus, em que Optata passou a ser mulher de um retiarius, depois de o seu primeiro
companheiro, um thraex, sucumbir na arena. Citemos outro epitáfio que também revela a
mesma prática:

«Satur, myrmillo, iulianus, 13 vitórias, Bassus, escravo liberto, myrmillo, 1 coroa, 1 vitória. Eles aqui
repousam. Que a terra vos seja leve! A sua [deles] esposa, Cornelia Severa, erigiu este túmulo à sua
própria custa» (CIL VII 365).

Numa lápide de Roma, a inscrição alude à esposa e ao filho de um gladiador (CIL IV 10177):

Dis Manibus. M. Ulpi Felicis mirmillonis vetrani vixit XXXXV natione Tunger. Ulpia Syntyche liberta
coniugi suo dulcissimo bene merenti et Iustus filius fecerunt.

Tradução:

«Aos deuses manes. Marcus Ulpius Felix, murmillo veterano, viveu 45 [anos], da nação Tunger [a tribo
germânica dos Tungrianos]. Ulpia Syntyche, liberta, [juntamente] com o seu filho Iustus, fizeram [isto]
para o seu cônjuge dulcíssimo que bem o merece».

Destas uniões resultavam filhos, embora muitos gladiadores evitassem procriar, dada a
perigosidade da sua profissão. Na caserna de Pompeia descobriu-se um cadáver de um
nascituro, mas desconhecemos se seria filho de uma ludia ou de outra mulher que tenha
buscado refúgio no local aquando da erupção do Vesúvio. Evoquemos um epitáfio
relativamente controverso na sua interpretação, que parece referir-se a uma família composta
por um gladiador, a sua esposa e um filho; de acordo com A. Futrell, a criança terá sido a
primeira a morrer e, em sua memória, elaborou-se a inscrição que se vê no lado 1 do
monumento funerário; os pais, que ficaram muito afectados com a perda, decidiram,
aparentemente, que seriam enterrados no mesmo sepulcro; a esposa faleceu antes do
murmillo Gaesus e este cumpriu a promessa – inumou-a junto do filho de ambos, mandando
gravar então o epitáfio do lado 2. Não existem mais inscrições na lápide, o que leva a supor que
o gladiador, quando partiu deste mundo, já sem ninguém que soubesse do local onde estavam
sepultados os seus entes queridos, foi enterrado pela última familia gladiatoria a que
pertenceu:

CIL VI 10176

1599 É estranho que, apesar da sua juventude, Urbicus tenha estado casado durante sete anos. Não admira, então, que certos
autores modernos sustentem que o lapidário possa haver cometido um erro, ao cinzelar o numeral respeitante à idade do
gladiador, ficando gravado XXII em vez de XXXII: Veja-se F. Meijer, The Gladiators…, p. 68.

552
[Lado 1]: «A Alcibiades, filho muito amado, que viveu 2 anos, 11 meses, 17 dias, 11 horas. Os seus
muito afectuosos pais ordenaram que se fizesse isto»;

[Lado 2]: «A Iulia Procula [esposa de] Gaesus, murmillo veterano, que fez isto para a sua mulher que
bem o merece».

A controvérsia radica em aceitar ou não que as duas inscrições (em lados opostos da lápide)
estão interrelacionadas. A. Futrell acreditou que sim 1600, mas já G. L. Gregori 1601 entendeu não
haver qualquer conexão entre os dois epitáfios.

Prosseguindo com a relação marido-mulher, alertemos também para a última frase inscrita no
epitáfio do secutor Decoratus, bastante comovente, na qual se diz que o último pereceu no seu
oitavo combate, sendo esta a primeira vez que causou dor à sua mulher Valeria (CIL V 563):

Constantius munerarius gladiatoribus suis propter favorem muneris munus sepulcrum dedit. Decorato
retiarium qui permit Careuleum et peremptus decidit; ambos extincxit rudis; utrosque protegit rogus.
Decoratus secutor pugnarum VIIII, Valerae uxsori dolore(m) primum reliquit.

«O munerarius Constantius deu aos seus gladiadores este sepulcro, em agradecimento pelo facto de o
munus que ofereceu ter sido recebido favoravelmente [pelo público]. A Decoratus, que aniquilou o
retiarius Caerulaeus, e a seguir tombou morto. O árbitro pôs termo às vidas de ambos 1602, os quais este
túmulo cobre. Decoratus, secutor, 9 combates, pela primeira vez causou dor à sua esposa Valeria».

Não resta a menor dúvida de que, para um gladiador, a família própria era algo que muito
prezava. Confirma-se este facto no relevo da estela do thraex secundus palus Danaos1603,
natural de Kyzikos/Cyzicus (área de influência grega, actual Erdek, Turquia): contemplamos um
retrato familiar idílico, um documento plástico verdadeiramente excepcional: Danaos foi
representado de pé, ligeiramente atrás do seu filho ainda imberbe, Asklepiades, que aparece
recostado num triclinium, e, no lado direito, sentada numa cadeira, como convinha a uma
respeitável matrona, está a esposa, Eorte. O orgulho de Danaos pelo filho transparece, ao
abraçá-lo com a mão direita.

As uniões sinceras e estáveis dos gladiadores com diversas mulheres 1604 não devem, todavia,
ocultar outra realidade, mais crua e possivelmente mais vulgar: a dos amores puramente
interesseiros, amiúde motivados pelo dinheiro. A fonte de lucro que os gladiadores mais
talentosos e sortudos representava pode efectivamente ter atraído algumas mulheres. Em
muitos filmes que versam a gladiatura, verifica-se a tendência recorrente de mostrar também
encontros arranjados com prostitutas, o que, em si mesmo, nada tem de impossível. Algumas
até estariam empregadas nos ludi, realizando tarefas diversas. Nas cidades, não era raro haver
tabernas ou outros estabelecimentos comerciais afins em cujas paredes se afixassem anúncios,
informando os clientes ou os visitantes que aí poderiam encontrar meretrizes. Para os

1600 The Roman Games: A Sourcebook…, 2006, p. 150.

1601Opinião recolhida numa conversa informal entabulada entre A. Mañas Bastida e o historiador italiano: cf. Gladiadores…, p.
416, n. 18.

1602Trata-se do único caso conhecido de um árbitro matar (ou mandar que outros o fizessem) gladiadores, o que em certa
medida mostra que os summae rudes e os secundae rudes, antes de exercerem tais funções, seriam antigos combatentes da arena.

1603 L. Robert, Les gladiateurs…, nº 293. A lápide conserva-se no Kunsthistorisches Museum de Viena.

1604G. Ville sustentou que os relacionamentos entre as ludiae e os gladiadores eram instáveis (La gladiature…, pp. 329-331),
mas as fontes epigráficas revelam que havia uniões que duravam vários anos. Há indícios de que algumas destas uniões até terão
começado antes de o indivíduo ingressar na gladiatura. Encontramos testemunhos do afecto entre estes casais em várias lápides
do tempo dos Antoninos, em que o defunto é adjectivado de dulcissimus, karissimus, desiderantissimus e pius: EAOR I, nº 73; EAOR
II nos. 45 e 52; EAOR III nº 89; EAOR V nº 67; CIL II 2 7, 363; CIL III 8830.

553
Romanos, esta situação não era, de modo algum, escandalosa ou imoral; apenas viam neste
facto um meio, para os proprietários, de ganharem mais, e para os clientes uma necessidade
para acalmarem os seus ardores. Ora, não espantaria muito que um lanista pensasse da
mesma maneira, a fim de que os seus «pensionistas» pudessem extravasar as suas pulsões
sexuais e, ao mesmo tempo, obter algum dinheiro extra. Atentemos ao que escreveu Catão:

«Persuadido de que as grandes malfeitorias dos escravos têm por causa o instinto sexual, ele estipulou
que os escravos se uniriam às serviçais, pagando um preço fixo, mas que jamais se aproximariam de uma
outra mulher» (Plutarco, Catão-o-Velho, 21.1-4).

Havia, por último, outra categoria de mulheres, pertencentes à alta sociedade, o que, aos
olhos da opinião pública oficial, a tornava a mais abominável de todas: elas estariam dispostas
a quase tudo para viverem as suas paixões contra natura, ao ponto de caírem em total
desgraça, fugindo com amante maculado pelo ferrete da infâmia.

***

Os membros da família biológica do gladiador (pais, irmãos) também podiam desempenhar o


seu papel na trajectória profissional do primeiro, especialmente quando se opunham ao seu
ofício. Neste sentido, Quintiliano conta o caso de um combatente da arena que
constantemente reingressava na gladiatura, hábito que desesperava tanto a sua irmã que,
temendo que acabasse por morrer em combate, decidiu, certa noite, cortar-lhe o polegar da
mão direita enquanto ele dormia. O homem, furioso, queixou-se à irmã pela mutilação que lhe
infligira, ao que ela retorquiu (vendo que ele não compreendia que dessa forma lhe salvava a
vida): «Merecias ter a mão completa», querendo com isto dizer «Merecias continuar a ser
gladiador, e morrer como tal, desagradecido» (Inst. Or. 8.5.12).

***

Frequentemente, uma familia gladiatoria era multi-étnica1605: os combatentes provinham de


diversos pontos do território imperial, desde a Hispânia até regiões do Próximo e do Médio
Oriente1606. Frequentemente, os gladiadores de origem oriental deslocavam-se para o
Ocidente, mas o contrário raramente, se atesta 1607. Este carácter heterogéneo conduz-nos a
outro tópico interrelacionado, o do desenraizamento social que acompanhava a condição dos
1605 T. Wiedemann, Emperors and Gladiators…, p. 114.

1606ILS 5085; 5087; 5088; 5089; 5095; 5101, 5115; 5118; 5120. Metade das «nações» mencionadas nos epitáfios inventariados
no Ocidente romano corresponde a províncias da pars Orientalis. Destaca-se sobretudo Alexandria, sede de um reconhecido ludus
gladiatorius, havendo seis combatentes dessa cidade, cujas lápides se encontraram distribuídas por todas as províncias ocidentais;
tais homens receberam provavelmente a sua formação no dito ludus, embora o verna Alexandrinus, que pereceu em Corduba,
pertencesse ao ludus Neronianus (F. Kaiser, «La gladiature en Égypte», REA 102, 2000, pp. 459-478). As outras nationes registadas
em inscrições no Ocidente são: 4 gregos (Graecus) – três falecidos na Hispânia -, 2 frígios (Phryx), 2 sírios (Syrus), 1 trácio (traex), 1
dácio (Dacus), 1 besso (Bessus), 1 da província da Asia (Asiaticus), 1 egípcio (Aegyptus) e 1 da Arábia (Arabus): EAOR I, nos. 63, 88,
92 e 97; EAOR II, nos. 44 e 45; EAOR III nos. 69 e 70; EAOR V nos. 9, 15, 18 e 24; CIDER, nos. 54 e 56; CIL II 2 7, 356, 358, 359 e 361;
CIL III 14644; AE 1989, 395. Nas cidades da metade setentrional de Itália, nas lápides predominam os gladiadores oriundos de
outras localidades e regiões da mesma península: de Tortona (Dertonensis), Módena (Mutinensis), Florença (Florentinus) e
Campânia (Campanus); a estes somam-se um gladiador de Piacenza (Placentinus), que morreu em Corbuba/Córdova, e um de
Aquileia (Aquileiensis), falecido em Salona (EAOR II nos. 42, 47, 50 e 52; CIL II 2 7, 355; CIL III 12925. Quanto às origines das
províncias ocidentais, no conjunto da área em foco, acham-se 3 hispanos (um Palantinus e dois Hispani), 3 germanos (um
Agrippinensis, isto é, da actual Colónia, e dois Germani), 2 da Gallia Belgica (um Batavus e um Tunger), 2 da Gallia Lugdunensis
(um Lugdunensis e um Aedus), um da Gallia Narbonensis (Viannensis, que corresponde à moderna Vienne) e um africano (Afer) –
EAOR I, nos 73 e 85; EAOR II nº 46; EAOR III nº 69; EAOR V nos. 13, 14, 20 e 21; CIL II 2 7, 362-364; CIL III 8825. A distribuição
geográfica das distintas origines confirma que existia «uma unidade de trânsito e uma interrelação profissional das escolas
gladiatórias, bem como dos circuitos dos munera gladiatoria no Ocidente romano»: cf. A. Ceballos Hornero, «Epitafios latinos de
gladiadores …», p. 327.

554
homens da arena. Lembremos, a propósito, que entre os camaradas de Espártaco no ludus
havia indivíduos de origem céltica, germânica e trácia: tal como poderia suceder numa grande
villa rural de um abastado proprietário romano que comportasse elevado número de escravos,
no caso da escola de Lêntulo Batiato, houve a preocupação intencional em proceder a uma
«mistura» étnica no conjunto dos seus gladiadores, o que obedeceria ao intuito de minimizar o
perigo de eles criarem entre si algum género de sentimento de coesão social ou de unidade
étnica que os conduzisse à quebra da sua dependência absoluta relativamente ao seu
proprietário, o lanista.

Um dos aspectos mais curiosos dos ludi relaciona-se com o estatuto social de cada indivíduo
ser assimilado à característica dependência de um escravo. Um homem livre que se tornasse
gladiador abjurava, como vimos, de todos os direitos que havia tido enquanto cidadão a partir
do momento em que celebrasse o contrato com o lanista e prestasse o juramento. Tal como o
gladiador escravo, o próprio auctoratus também enfatizava a ideia de se tratar de alguém à
margem da sociedade. As lápides de gladiadores mencionam, amiúde, a origem étnica
(«natione...») dos defuntos, mesmo quando vários deles tivessem sido cidadãos romanos e a
sua «etnicidade» se traduzisse, apenas, na municipalidade de origem.

Entre os cidadãos romanos cuja natio aparece mencionada em fontes epigráficas reunidas na
colectânea documental de H. Dassau (Inscriptiones Latinae Selectae, ILS), encontramos o já
referido o thraex M. Antonius Exochus, de Alexandria, que combateu no Coliseu em Roma,
aquando dos jogos triunfais em honra de Trajano (5088); na cidade de Nemausus, descobriram-
se inscrições relativas a um hispano e a um árabe (5087, 5096), bem como a um grego que não
era cidadão romano mas tinha presumivelmente condição livre, já que a mulher que lhe erigiu
o monumento tumular se qualifique como sua coniunx (5095). Entre os não cidadãos,
encontramos os seguintes casos: o de um secutor sírio inumado em Alicubi, na Sicília (5113),
um besso em Gades (5098) e um trácio em Roma, que lutou sob a armatura samnis e não,
como seria de esperar, a de thraex (5085): no último caso, estamos diante de um
desenraizamento duplo!...

Por vezes, a vontade seria tão forte na proclamação de uma origem étnica distinta que se
registam casos, como o do epitáfio achado em Bérgamo (Itália), do thraex Pinnesis (que viveu
no tempo do imperador Gordiano), em que se explicita o facto de ele ser oriundo da Récia, que
embora ficando próxima de Bérgamo, não fazia dele um itálico. Noutra inscrição funerária
descoberta em Nemausus, um murmillo aparece identificado como eduano, isto é, pertencente
a uma tribo gaulesa que vivia numa zona não longe daquela cidade hoje situada em França.

As fontes literárias corroboram a ideia de algumas «companhias» gladiatórias não terem uma
base fixa, movimentando-se de um lugar para outro dentro de Itália 1608. Na Urbs, em períodos
assolados pela fome ou escassez de víveres, os gladiadores estavam entre as categorias de não
residentes que se viam expulsos, como aconteceu sob a égide de Augusto, durante a crise dos
cereais de 6-7 d. C. 1609. Mas o desenraizamento não era apenas imposto aos gladiadores pelas
autoridades: eles por vezes gabavam-se de tal facto, haja em vista um anúncio de Pompeia que
enfatiza a natureza peripatética da familia de N. Festus Ampliatus, «famosa em todo o
mundo»1610.

1607G. Ville, La Gladiature…, pp. 266-267. De facto, com base nos epitáfios do Oriente grego, entre os gladiadores cuja origo se
conhece, a maioria procedia da Ásia e da Grécia; aparentemente, os anfiteatros, teatros e estádios não necessitariam da presença
de profissionais ocidentais: L. Robert, Les gladiateurs…, p. 296.

1608 Suetónio, Div. Vit. 12: circumforano lanistae.

1609 Suetónio, Div. Aug. 42, 3.

555
Não obstante as diferenças etnoculturais e linguísticas, às vezes criavam-se laços afectivos e
sentimentos de amizade entre gladiadores 1611. Com efeito, deparamos com exemplos de
camaradas que custeavam o enterro e um monumento funerário para os seus colegas de
cela1612. Noutros casos, igualmente documentados, todos os membros de uma familia reuniam-
se para oferecer um sepultamento condigno a um dos camaradas 1613. L. Robert deu o exemplo
de uma lápide erguida por um tal Paitraeites (variante do nome corrente gladiatório de
Petraites) e outros colegas do ludus para o seu estimado camarada Hermes (não se confunda
com o famoso homónimo enaltecido por Marcial) 1614. Em Nemausus, um gladiador tratou do
enterro de um seu colega essedarius, deixando o primeiro bem claro no epitáfio que fora ele
sozinho a suportar todas as despesas (de suo)1615. Na Sicília, o sírio Flamma foi inumado pelo
seu coarmio Delicatus 1616.

Como anteriormente dissemos, há um elucidativo testemunho do espírito de lealdade e


fraternidade colectiva num epitáfio, em que membros de um grupo de paegniarii
(qualificando-se de amici) pagaram o enterro de um colega, que tinha a provecta idade de 98
anos. Também se geravam laços de amizade nos ludi entre doctores e instruendos: um deles,
pertencente ao ludus de Brixia (actual Brescia), tratou da inumação de um provocator chamado
Antigonus, enquanto em Roma, outro doctor, Marcion de seu nome, o mesmo fez a mais um
provocator, Anicetus, ao qual fizemos menção no Capítulo IV 1617.

Neste contexto mortuário, a generosidade também se assinala em gestos de outras pessoas:


um conjunto de amigos, não gladiadores, encarregou-se do enterro de um thraex chamado
Volusenus; colhe-se igualmente registo de fãs do gladiador Glaucus, em Verona, terem ajudado
a sua mulher nas despesas com o funeral e a respectiva lápide 1618. Até um munerarius prestou
homenagem a três gladiadores (que, verdade seja dita, contribuíram com as próprias vidas
para o sucesso do seu munus), mandando construir um túmulo para os mesmos 1619. Deparamos
também com casos em que parentes chegados do defunto lhe proporcionaram um
sepultamento condigno, haja em vista um gladiador do Ludus Magnus, chamado Tigris, que se
viu inumado pelo seu irmão, Theonas. Em Óstia, por seu turno, o retiarius Firmus foi enterrado
pelos seus «irmãos» (frateres): aqui, porém, subsiste a dúvida quanto ao parentesco efectivo,

1610 CIL IV 1182-1184.

1611Os gladiadores de um mesmo ludus costumavam chamar-se a si próprios familia, constituindo um grupo social com
estreitos laços em comum, mas assumindo considerável complexidade. Em muitos casos, a familia gladiatoria era «o suporte social
e emocional» desses homens: A. Mañas Bastida, Gladiadores…, p. 175. Para uma visão ponderada sobre a vida nas casernas e os
relacionamentos entre os gladiadores, veja-se K. M. Coleman, Bonds of Danger: communal life in the gladiatorial barracks of
ancient Rome, The Fifteenth Todd Memorial Lecture, Department of Classics and Ancient History, University of Sydney, Sydney,
2005, pp. 3-15.

1612 ILS 5113; 5118; 5124.

1613 ILS 5108; L. Robert, Les gladiateurs, nº 241: «A familia ergueu isto em memória de Satornilos».

1614 Les gladiateurs…, p. 147, nº 109: «A Hermes. Paitraeites, juntamente com os seus companheiros de cella, erigiram isto em
sua memória».

1615 ILS 5096

1616 ILS 5128.

1617 Respectivamente ILS 5108 a, e 5110.

1618 ILS 5086; 5121.

1619 ILS 5123.

556
podendo tratar-se de colegas da mesma familia gladiatoria, e, neste caso, o substantivo
assumiria um sentido metafórico 1620.

Não admira, pois, que existisse uma espécie de esprit de corps entre gladiadores de uma
mesma armatura, mas, por vezes, também se registava igual fenómeno entre combatentes de
«especialidades» diferentes. Consequentemente, como os elementos de uma familia lutavam
uns contra os outros, não era invulgar que amigos se vissem obrigados a combater entre si em
espectáculos1621. Séneca, num trecho, reporta-se a tal facto, dizendo que os homens do ludus
«vivem uns com os outros e combatem uns com os outros» 1622. É o que nos indica a seguinte
anúncio descoberto em Pompeia, referente a um espectáculo que iria ter lugar numa cidade
vizinha:

«Quarenta e nove pares! A familia Capiniana lutará em Puteoli nos jogos de Augusto, nos dias 12, 14,
16 e 17 de Maio. Haverá toldos!»1623.

Cícero, por seu lado, conta que um murmillo matou um thraex que era seu amigo 1624. Terá
sido decerto um fenómeno relativamente comum, o facto de os pares formados para se
defrontarem num munus envolverem dois colegas de cela: numa inscrição achada em Roma,
menciona-se um retiarius do Ludus Magnus que foi enterrado por um murmillo, Iuvenis, seu
companheiro de cela e amigo, que, o matou num combate (facto que nos é revelado pelo
vocábulo convictor).

Alguns epitáfios transmitem fortes conflitos interiores, a nível da consciência de certos


gladiadores, os quais surgiam principalmente quando membros de uma familia se viam
obrigados a combater entre si. L. Robert citou como exemplos o gladiador Olympos, em cuja
inscrição funerária se lê que salvou [a vida de] muitos no estádio» 1625, e Aias de Thasos:

«Não sou o locriano Aias que vedes, nem o filho de Telamon, mas aquele que causava satisfação nos
estádios em competições marciais, que salvou poderosamente muitas almas sem ser necessário,
esperando que alguém o mesmo fizesse por mim. Nenhum adversário me matou, mas morri por mim
mesmo, e a minha reverenciada mulher aqui me enterrou, na planície sagrada de Thasos. Kalligenia
[erigiu isto] para Aias, seu esposo, em sua memória»1626.

Tais palavras mostram que estes homens, e possivelmente outros do mundo da gladiatura,
lutavam com seriedade, não movidos por uma fúria irrefreável e sedentos pelo derramamento
de sangue: participavam nas pugnas para vencerem, não para matar, caso pudessem evitá-
lo1627.

1620 AE 1985.197.

1621 Quintiliano, Inst. 2.17.33.

1622 Dial. 4.8.2.

1623 CIL 47 994.

1624 Phil. 6.13.

1625 L. Robert, Les gladiateurs…, pp. 115-116, nº 56.

1626 Ibidem, pp. 113-115, nº 55.

1627 Abordaremos este assunto específico mais adiante, ilustrando-a com mais exemplos de epitáfios, no propósito de averiguar
se existiria efectivamente uma espécie de «código de conduta» entre os gladiadores.

557
Mesmo supondo que as regras de combate se cumprissem estrita e profissionalmente,
proporcionando os contendores um bom espectáculo aos espectadores e um deles fazer o
possível para que o vencido sobrevivesse, havia sempre a possibilidade de ocorrer um erro. E,
assim, o simples facto de se pertencer à mesma familia não servia de garantia automática para
que se entabulassem relações amistosas com todos os camaradas do ludus. De facto, a
rivalidade, o orgulho, a inveja e outros tantos sentimentos ou emoções podiam gerar
antagonismo entre colegas, aspecto que aprofundaremos devidamente noutro capítulo. Isto
pode ter sucedido com maior acuidade nas «escolas» gladiatórias mais prestigiadas e com
maior número de membros, designadamente os ludi imperiales.

A convivência entre os gladiadores, pautada simultaneamente pela amizade e pela emulação,


devia assumir uma grande complexidade. Por vezes, o melhor amigo e confidente de um
homem da arena podia ser um cão. Com efeito, L. Robert identificou a figuração de cães em
mais de seis relevos pertencentes às lápides gladiatórias no Oriente grego. Era, efectivamente,
a combater na arena que um gladiador ganhava e mantinha a sua cativante fama. Mas ele tinha
plena consciência que precisava de dar o seu máximo para vencer e sobreviver. Numa lápide de
Creta, atrás citada, lê-se:

«O prémio não era a palma, já que lutávamos pela nossa vida»1628.

Mas a morte estava inexoravelmente sempre à espreita:

«Eu, que extravasava confiança no estádio, agora sou um cadáver, ó caminhante, um retiarius de Tarso,
membro da segunda equipa [chamado] Melanippos. Já não ouço mais o som da trombeta de bronze
batido, nem provoco o toque das flautas num combate desigual. Dizem que Heraklés [o nome grego de
Hércules] completou doze trabalhos mas eu, depois de perfazer o mesmo [número], cheguei ao meu fim
no décimo terceiro. Thallos e Zoe erigiram à sua custa este monumento em memória de Melanippos»1629.

***

Nas linhas precedentes, recorremos amiúde ao teor dos monumentos mortuários erguidos
para os gladiadores. Parece-nos conveniente tecer alguns comentários sobre este tipo de
fontes. O acervo de estelas funerárias de combatentes da arena com imagens do género das
stelai clássicas áticas (cerca de 2361 1630) e as suas hómologas em memória de militares
romanos (aproximadamente 620) revelam-se instrutivas 1631. Dá a impressão de haver algo na
ordem das 95 lápides figurativas pessoais de gladiadores inventariadas nos principais catálogos
escultóricos, incluindo achados relativamente recentes em Éfeso 1632. Os últimos são invulgares
entre qualquer espécie de estelas romanas coevas, algumas lápides foram escavadas num
cemitério e associadas com os seus locais de inumação. A maioria das estelas foi separada do

1628 L. Robert, Les gladiateurs ..., nº 66.

1629 Ibidem, nº 298.

1630 R. Osborne, «Law, the democratic citizen and the representation of women in Classical Athens», Past and Present 155
(1997), pp. 38-60.

1631 J. Coulston, «Art, culture and service: the depiction of soldiers on funerary monuments of the 3rd century AD», in L. De
Blois e E. Lo Cascio (eds.), The Impact of the Roman Army (200 BC-AD 476). Economic, Social, Political and Cultural Aspects, Leiden,
2007 a, pp. 541-544.

1632 K. Grosschmidt e F. Kanz, Gladiatoren in Ephesos. Tod am Nachmittag, Viena, 2002, pp. 75-82.

558
seu contexto original para ulterior reutilização, tanto em tempos ainda antigos como
modernos, e ainda por se afigurarem coleccionáveis enquanto «obras de arte».

Mas o que faz com que as estelas gladiatórias assumam mais interesse é o facto de honrarem
muitos indivíduos com um estatuto social muito baixo. É axiomático que gladiadores, lanistae,
atletas, actores, agitatores e aurigas, prostitutas e proxenetas se caracterizarem pela infâmia,
obtendo-a por causa das suas profissões, que os expunham aos olhos públicos. Ao fazê-lo,
tornavam-se vulneráveis à fascinatio do mau-olhado 1633. Contudo, os gladiadores bem-
sucedidos eram também idolatrados pela multidão, numa deliciosa dicotomia na forma de se
mesclar o superior e o inferior que os satiristas e moralistas tanto apreciavam sublinhar. De
facto, o hostil Tertuliano desenvolveu esta ideia de modo eloquente, ao escrever que os
gladiadores eram infames, mas em relação a estes os homens rendiam as suas almas e as
mulheres os seus corpos;

«Quanta perversitas! Amant quos multant, depretiant quos probont, artem magnificant, artificem
notant (De Spectaculis, 22).

Colhem-se numerosas menções literárias que se referem aos gladiadores como seres
debochados e corruptores da sociedade, em especial das mulheres (e.g. Petrónio, Satyr. 9;
Juvenal, 6.103-112; Santo Agostinho, Confessiones, 6.8)1634.

Os monumentos funerários gladiatórios destacam-se enquanto grupo, exibidos de um modo


partilhado por poucas outras profissões, afora os soldados romanos. As estelas militares
contendo imagens relevadas evocando os defuntos constituíam uma prática funerária que se
desenvolveu nas comunidades de veteranos de Itália durante o processo evolutivo do exército,
que passou de uma milícia de cidadãos para uma força permanente dotada de continuidade de
serviço e formações castrenses. O orgulho e a lealdade desempenharam o seu papel no facto
de os cidadãos se identificarem, acima de tudo, como soldados de carreira, contrapondo-se aos
guerreiros que participavam em campanhas sazonais, no fim das quais regressavam a casa
periodicamente1635.

Inicialmente, durante a República, era ilegal que indivíduos de baixa condição social
encomendassem a feitura de imagines de si próprias, daí que tal costume era ainda mais
notável e revelador1636. O fenómeno começou a difundir-se ao longo das fronteiras, com as
movimentações das tropas, passando a fazer parte da asserção do estatuto profissional dos
milites. No corpus iconográfico militar, torna-se claro que, ainda que se tratando de um
fenómeno regional e temporal, o costume de erigir estelas não correspondia a uma
comemoração do falecido promulgada por herdeiros e parentes biológicos, já que de outra

1633G. Ville, La Gladiature…, pp. 257-259, 262, 339-344, 462-464; K. Hopkins, Death and Renewal…, , pp. 20-23; A. Richlin, The
Garden of Priapus. Sexuality and Aggression in Roman Humor, New Haven, 1983, p. 99, 205; C. A. Barton, The Sorrows of the
Ancient Romans. The Gladiator and the Monster…, pp. 12-15, 25-31; C. Edwards, The Politics of Immorality in Ancient Rome,
Cambridge, 1993, pp. 123-125; IDEM,«Unspeakable professions. Public perfomance and prostitution in ancient Rome»…; P. Plass,
The Game of Death in Ancient Rome…, pp. 65, 72-77, 254; J. Edmonson,«Dynamic Arenas: gladiatorial presentations…», pp. 107-
108; D. Kyle, Spectacles of Death in Ancient Rome…., pp. 79-95.

1634G. Ville, La gladiature…, pp. 330-331; K. Hopkins, 1983, pp. 21-23; C. Edwards, The Politics of Immorality…, pp. 129, 179-180;
S. Shadrake, The World of the Gladiator…, pp. 217-219.

1635 L. Keppie, The Making of the Roman Army from Republic to Empire, Londres, 1984, pp. 61-63, 76-78; J. Coulston, «Military
identity and personal self-identity», in L. de Licht, E. A. Hemelrijk e H. W. Singor (eds.), Roman Rule and Civic Life: Local and
Regional Perspectives, Amesterdão, 2004, p. 135.

1636 J. R. Clarke, Art in the Lives of Ordinary People. Visual Representations and Non-Elite Viewers in Italy, 100 BC-AD 315,
Berkeley, 2003, pp. 252-254.

559
forma estas lápides com inscrições e representações plásticas se encontrariam presentes em
todos os cemitérios militares. Ademais, se bem que em tal acervo abundante se denote certa
preponderância face a elementos do exército com patentes mais elevadas e remunerações
superiores (centuriones, signiferi e os equites da cavalaria auxiliar e os «regimentos» de
infantaria), havia, por vezes, grupos de homens de estatuto e salário inferiores que se
salientaram, como, por exemplo, os efectivos das cohortes III (IV) Delmatarum e I sagittariorum
em Bad Kreuznach (Alemanha), ao emular a prática empreendida pelos cidadãos e mandando
produzir alguns relevos requintadamente detalhados 1637.

No século III d. C., pelo contrário, a proliferação na erecção de estelas funerárias com imagens
escultóricas de militares em diversas regiões do império pode ter-se sido causada pelo facto de
o exército adoptar costumes locais, com uma preocupação adicional, por parte dos legionários,
de enfatizar o seu status, num período em que as distinções entre cidadãos e não cidadãos
haviam sido suprimidas1638.

Os libertos constituíam outro grupo social que tinha alguns recursos económicos mas fraca
condição social, vendo-se eles impedidos, em larga medida, de exercer funções públicas e
confinados a sacerdócios específicos. Em Roma, onde a riqueza dos libertos era
particularmente manifesta, o túmulo do fornecedor de pão Eurysaces, incorporado na Porta
Praenestina, e as esculturas bidimensionais do mausoléu dos Haterii, na aVias Casilina,
sobreviveram até hoje como amostras elucidativas de auto-afirmação dos liberti 1639, bem como
os monumentos de Naevoleia Tyche, em Pompeia, e de C. Lusius Storax em Chieti 1640. Tal como
os últimos, os planos expressos no Satyricon pelo liberto Trimalquião (Satyr. 71), para o seu
túmulo, incluíam representações gladiatórias 1641. O patrocínio financeiro para reparações no
Iseum, em Pompeia, do libertus Numerius Popidius Ampliatus, monumentalizado numa
inscrição executada num mosaico (CIL X 846), visou facilitar o ingresso do seu filho na curia
local, podendo entender-se como outro exemplo da «consciência de classe» dos libertos.

Consequentemente, havia precedentes para as duas profissões específicas e de pessoas


pertencentes a uma posição social particular, transmitindo estatuto e êxito mediante
monumentos mortuários com figurações. As estelas gladiatórias tinham algo em comum com
exibições feitas pelos liberti e muito a cotejar com as stelae militares. As lápides dos homens da
arena comemoravam a carreira profissional, por vezes, representando-se as coronae de louros
e os ramos de palmeira (palmae) recebidos quando saíam vitoriosos dos combates, à

1637E. Éspérandieu, Recueil général des bas-reliefs, statues et bustes de la Gaule romaine, Paris, 1907-1966, nos. 6 125, 6136-
37; V. Hope, «Inscriptions and sculpture: the construction of identity in the military tombstones of Roman Mainz», in G. J. Olivier
(ed.), The Epigraphy of Death. Studies in the History and Society of Greece and Rome, Liverpool, 2000, pp. 155-185.

1638J. Coulston, «Military identity and personal self-identity», pp. 148-152; IDEM, «Art, culture and service: the depiction of
soldiers on funerary monuments of the 3 rd century AD», in L. De Blois e E. Lo Cascio (eds.), The Impact of the Roman Army…, pp.
529-557.

1639P. Ciancio Rossetto, Il sepolcro del fornaio Marco Virgilio Eurisace a Porta Maggiore, Monumenti Romani 5, Roma, 1973, E.
W. Leach, «Freedmen and immortality in the Tomb of the Haterii», in E. D’Ambra e G. P. R. Métraux (eds.), The Art of Citizens,
Soldiers and Freedmen in the Roman World, BAR International Series 1526, Oxford, 2006, pp. 1-18; M. George, «Social identity and
the dignity of work in freedmen’s reliefs», in E. D’Ambra e G. P. R. Métraux (eds.), The Art of Citizens, Soldiers and Freedmen …, pp.
19-29.

1640 M. Junkelmann, Gladiatoren…, figs. 48-50; A. La Regina (ed.), Sangue e Arena…, nº 72; J. R. Clarke, Art in the Lives of
Ordinary People…, , pp. 145-152, 184-185.

1641J. Bodel, «The ‘cena Trimalchionis’», in H. Hofmann (ed.), Latin Fiction. The Latin Novel in Context, Londres, 1999, pp. 42-43;
J. R. Clarke, Art in the Lives of Ordinary People…, pp. 185-187, fig. 101.

560
semelhança das condecorações (dona militaria) que surgem nos monumentos militares 1642. As
peças específicas do equipamento da panóplia individual do gladiador falecido eram
ostensivamente expostas, tal como as armaduras e armas se empregavam para distinguir os
legionários dos auxiliares nas estelas militares dos séculos I e II d. C 1643. Efectivamente, as
figuras com os respectivos epitáfios, sublinhando a armatura e o cursus tornaram-se num
importante meio de prova para a identificação dos principais tipos de gladiadores.

A apresentação do equipamento, ao lado ou por cima da imagem do defunto, tanto nas


lápides militares como gladiatórias nas províncias orientais sofreu nítida influência das
esculturas funerárias helenísticas coetâneas 1644. Um dos elementos que distingue a
representação de um combatente da arena é a presença de um poste de treino, o palus, que
aparece num pequeno número de estelas gladiatórias 1645, objecto que está totalmente ausente
na iconografia castrense, não obstante o palus, como vimos, ser universalmente usado
enquanto componente central da instrução da esgrima com espada para os soldados e os
gladiadores1646. Acresce ainda que as imagens esculpidas de combatentes da arena em lápides
se pautam por uma extrema raridade em áreas dominadas por soldados, à excepção da
Urbs1647.

Embora fossem presumivelmente menos numerosas do que nas cidades do império, as


«companhias» itinerantes de gladiadores estiveram certamente presentes em algumas zonas
fronteiriças militares, como, aliás, o testemunham referências literárias, fontes iconográficas e
a recuperação, em prospecções arqueológicas, de equipamento gladiatório 1648.

As estelas gladiatórias não tinham lugar disponível nos cemitérios das bases militares, mas,
longe dos castra, o baixo estatuto dos gladiadores, conjugado com a aclamação do público (o
equivalente à riqueza adquirida pelos libertos), conduzia a que eles imortalizassem as suas
proezas através de uma «monumentalização pessoal» 1649. Ademais, a sua comunidade
profissional ganhou certa continuidade através da comemoração de gladiadores pelos seus
colegas de ludus e herdeiros, muito à semelahança dos commilitones, liberti e mulheres
associados a membros do exército romano1650.

1642 M. Junkelmann, Gladiatoren…, fig. 32-33, 36, 70, 93, 96, 115, 168; V. Maxfield, The Military Decorations of the Roman Army,
Londres, 1981, fig. 7, 10, 13, est. 2 c, 5-14)

1643M. C. Bishop e J. C. N. Coulston, Roman Military Equipment from the Punic Wars to the Fall of Rome…, pp. 254-259.

1644E. Pfuhl e H. Mobius, Die ostgriechischen Grabreliefs…, nos. 305-308, 314-315, 1222, 1226-1227, 1230-1234, 1242-44.

1645P. Sabbatini Tumolesi, Epigrafia Anfiteatrale dell’Occidente Romano. I, Roma, 1988, nº 106; G. L. Gregori, Epigrafia
Anfiteatrale dell’Occidente Romano, II. Regiones Italiae VI-XI, Roma, 1989, nº 50; M. Langner, Antike Grafittizeichnungen…, nº 785.

1646G. Horsmann, Untersuchungen zur militärischen Ausbildung in republikanischen und kaiserzeitlichen Rom, Boppard, 1991,
pp. 142-148, J. Coulston, «Gladiators and soldiers: personnel and equipment in ludus and castra»…., p. 3; IDEM, «By the sword
united: Roman fighting styles on the battlefield and in the arena», in B. Molloy (ed.), The Cutting Edge. Studies in Ancient and
Medieval Combat, Stroud, Oxford, 2007, p. 40.

1647J. Coulston,«“Armed and belted men”: the soldiery in imperial Rome», in J. Coulston e H. Dodge (eds.), Ancient Rome. The
Archaeology of the Eternal City, Oxford, 2000, pp. 76-118; A. W. Busch, «Militia in urbe. The military presence in Rome», in L. De
Blois e F. Lo Cascio (eds.), The Impact of the Roman Army …, pp. 315-341.

1648J. Wahl «Gladiatorhelm-Beschläge vom Limes», Germania 55 (1977), pp. 108-132; J. Coulston, «Gladiators and soldiers:
personnel and equipment in ludus and castra», pp. 7-8.

1649 J. Coulston, «Victory and Defeat in the Roman Arena…», p. 199.

561
A religiosidade dos gladiadores

Como todos os homens da Antiguidade, particularmente os que tinham a sua vida


frequentemente ameaçada, os gladiadores deram mostras de grande religiosidade 1651 e
superstição. Para eles, mais valia contar com a benevolência das divindades para conseguir o
seu auxílio e protecção, do que arriscar-se a enfurecê-las. Acreditava-se verdadeiramente que
os deuses e as deusas intervinham nos negócios humanos; o carácter das entidades divinas,
pautado pela inveja e omnipotência, podia torná-los em inimigos terríveis, pelo que convinha
manter a melhor relação possível com as mesmas. Apesar de não podermos atribuir esta
necessidade à devoção, o certo é que nas peças de equipamento dos gladiadores
representavam-se muitas vezes figuras ou símbolos divinos.

Omnipresentes na vida dos Romanos, as efígies das divindades eram transportadas nas
paradas ou cortejos que precediam os munera. Encontram-se representadas, por exemplo, na
pompa figurada num relevo do século I d. C. do Museu de Chieti: Júpiter e Juno
(originariamente estariam todos os elementos da tríade capitolina; a composição escultórica
não se encontra completa). Júpiter, rei dos deuses, o mais poderoso, era, logicamente, o
destinatário de muitas preces. Conhecemos uma oração que um árbitro dirigiu a Zeus. Em
Lugdunum, uma inscrição (CIL XIII 1749) menciona o voto feito por outro árbitro, desta vez para
Marte, o deus da guerra e das batalhas. O último, muito venerado por tal razão pelos militares,
também o foi pelos gladiadores. Era a este deus que principalmente se consagravam os
anfiteatros e ao qual os editores dos espectáculos dedicavam acções de graças quanto tinham a
sorte de agradar ao público. Na poesia, a arena era, metaforicamente, o domínio de Marte,
mas de igual modo de Artemisa (Diana), a qual presidia às venationes matinais. As próprias
iuventutes, embora não se compondo de verdadeiros caçadores, eram esporadicamente
colocadas sob a protecção da deusa da caça. É esta que se observa no mosaico de Smirat, na
Tunísia, numa cena descrevendo uma venatio, vestindo uma túnica curta (mais cómoda para
correr e se entregar à actividade cinegética) e exibindo um talo de milho; ao seu lado
representou-se Baco (Dionísio) que, no caso em apreço, correspondia à divindade padroeira da
familia venatoria dos Telegenii.

De facto, cada grupo de combatentes estava sob a protecção de um deus ou de uma deusa.
Baco era comum a várias confrarias, mas conhecemos também Deméter ou Vénus. Desta
afirma Tertuliano que, juntamente com Marte, patrocinava os exércícios no anfiteatro (De
spectaculis, 12.7). Foi a Vénus que o provocator Mansuetos (CIL IV 2483) prometeu oferecer o
seu escudo se vencesse o próximo combate. Nos afrescos que outrora decoravam o podium do
anfiteatro de Pompeia, reproduziram-se várias vezes estas oferendas de escudos, quiçá
também substituídas por armas votivas em miniatura, de que se descobriram exemplares em
Pompeia e Mérida (antiga Augusta Emerita). Num trecho, Tertuliano evocas as divindades dos

1650ILS 5086, 5090, 5096-97, 5101-2, 5104, 5112, 5120, 5122-3, 5126; cf. V. Hope, «The gladiators of Roman Nîmes», in R.
Laurence e J. Berry (eds.), Cultural Identity in the Roman Empire, Londres, 1998, pp. 179-195, IDEM, «Fighting for identity: the
funerary commemoration of Italian gladiators», in A. Cooley (ed.), The Epigraphic Lanscape of Roman Italy, Londres, 2000, pp. 93-
113; D. Noy, Foreigners at Rome. Citizens and Strangers, Londres, 2000, pp. 118-119; A. Futrell,The Roman Games…, pp. 148-153;
K. M. Coleman, Bonds of danger. Communal life in the gladiatorial barracks…, pp. 10-11; S. Panciera, «Soldati e civili a Roma nei
primi tre secoli dell’impero», in W. Eck (ed.), Prosopographie und Socialgeschichte, Colónia, 1993, pp. 261-276; A. W. Busch,
«’Militia in urbe’. The military presence in Rome»…, pp. 332-334.

1651 Sobre as práticas religiosas, veja-se A. Bernet, Les Gladiateurs…, pp. 159-161.

562
jogos do circo e do teatro, algumas das quais seriam igualmente veneradas pelos homens da
arena:

«…do mesmo modo que no Circo ou no teatro se agitam grupos de flautistas consagrados a Minerva,
Apolo e às Musas, os grupos consagrados a Marte animam, ao fazerem ressoar as trombetas, os
combatentes do estádio que é o templo, o próprio templo do ídolo para o qual se celebram as
solenidades. Não se sabe que os Cástores, os Hércules e os Mercúrios são os inventores da luta?» ( De
spect. 11).

Hércules vitorioso (victor) ou invicto (invictus) era também muito apreciado tanto pelos
gladiadores como pelos soldados, enquanto incarnação da força viril e da coragem por
excelência, e sobretudo como o deus do êxito e da vitória, o que fazia dele um precioso aliado.
Os combatentes do anfiteatro, depois de obterem a sua liberatio, costumavam pendurar as
suas armas como ex-votos num pilar de um templo, como Veianus, citado por Horácio (Ep.
1.1.4-5). Em Itália, Hércules via-se aparentado a Silvanus, padroeiro de um collegium de
gladiadores (CIL VI 0631-632). Em honra de Minerva, os Romanos ofereceram também
combates durante os Quinquatrii (festividade da deusa que se desenrolava cinco dias depois de
19 a 23 de Março). Ora, tendo em conta os seus atributos guerreiros, é muito possível que ela
fosse igualmente cultuada pelos gladiadores.

Por seu turno, antes de se livrar a batalha de Philippi (contra os Cesaricidas), os edis da plebe
ofereceram pugnas gladiatórias em honra de Ceres (deusa da agricultura, das colheitas e da
fertilidade), em substituição dos tradicionais jogos circenses (Dião Cássio, 47.40).

Havia outras divindades a gravitar em torno dos anfiteatros: citemos a deusa Belona ou
Fortuna, à qual o gladiador Messor, em Moguntiacum (actual Mainz, Alemanha) apresentou
uma oferenda1652 e os questores ofereciam amiúde jogos sangrentos; ou, ainda, Victoria,
geralmente representada com as asas abertas, segurando uma palma ou uma coroa de louros
nas mãos para o vencedor. As divindades infernais eram naturalmente invocadas, porque
associadas ao culto dos mortos, o que esteve na génese da própria gladiatura.

Após desaparecerem os jogos fúnebres, o sangue continuou a derramar-se e as preces dos


gladiadores passaram a destinar-se a Nemésis, deusa da Vingança e do Destino, instrumento da
justiça de Júpiter, que castigava implacavelmente os criminosos e as pessoas demasiado felizes.
Ela representava o Destino sem tomar partido. Nemésis tornou-se a divindade reinante na
arena 1653. Antes de porfiarem, os gladiadores 1654 honravam-na em pequenas capelas (nemesea
1655
), das quais se recuperaram vestígios em alguns anfiteatros, como os de Aquincum
(Budapeste), Carnuntum (actual Bad Deutsch-Altenburg/Petronell, no Sul da Áustria) 1656,
Augusta Emerita (Mérida), Italica (Santiponce, perto de Sevilha), Tarraco (Tarragona) e de
Cartago 1657; também se achou outra capela no anfiteatro de Deva Victrix (Chester, no Norte de

1652F. Gilbert, Devenir gladiateur…, p. 66.

1653Vitrúvio, De architectura, 1.7.1; Marcial, Lib. Spect. 26.3.

1654Os legionários também veneraram Némesis, o que não causa estranheza: o soldado, tal como o gladiador, cuja profissão
implicava um elevado risco de morte, confiava o seu destino a esta deusa. Cf. ILS 2088; 2096; 3739.

1655No singular nemeseum.

1656Consulte-se Elisabeth Bouley, «Le culte de Némesis et les jeux de l’amphithéâtre dans les provinces balkaniques et
danubiennes», in Spectacula I, Lattes, 1990, pp. 359-364.

1657 ILS 3742; 3743; D. Bomgardner, The Story of the Roman Amphitheatre…, p. 137.

563
Inglaterra), contendo um altar consagrado a Nemésis 1658. Eles suplicavam-lhe que concentrasse
a sua vingança devastadora sobre os seus oponentes, saciando-se com o sangue dos últimos.
No entanto, a deusa nem sempre ouvia os seus rogos, como aconteceu, por exemplo, com o
retiarius Glaucus que pereceu no seu oitavo combate: no epitáfio da sua estela de Verona, o
defunto acusa-a de o ter enganado (por não haver evitado a sua morte na arena) e aconselha
os seus colegas a não confiarem nela 1659; pelo contrário, em Halicarnasso, Leotes depositava
bem mais confiança na ajuda providencial de Nemésis, ofertando-lhe peças de vestuário e, até,
jóias.

A profunda reverência que o grande poder de Némesis incutia nos seus devotos evidencia-se
claramente numa inscrição descoberta em Roma, na qual a deusa aparece qualificada, tanto
em grego como em latim, como «a grande Nemésis, rainha do universo [e] a grande rainha
vingadora da cidade»1660. Não obstante ela se caracterizar pela sua fúria, não deixava de ouvir
as preces humanas: numa inscrição de Apuli, na Dácia (actual Roménia), Némesis recebeu o
epíteto de «a mais receptiva às orações» 1661. O seu culto era popular em todo o império; numa
fonte epigráfica encontrada no santuário de Nemésis (Nemeseion) em Halicarnasso (actual
Bodrum, no Sudoeste da Turquia), alude-se ao retiarius Stephanos, que sacrificou um porco em
honra da deusa: desconhecemos se o fez para acompanhar uma prece para ganhar um
combate ou como oferenda de agradecimento pelo auxílio prestado ao obter uma vitória 1662.

Némesis estava intimamente associada às outras três deusas ligadas ao anfiteatro, atrás
mencionadas: Fortuna, Victoria (equivalente à grega Niké) e Diana, a divindade padroeira dos
venatores. Na Macedónia, mais propriamente no teatro de Philippi (que foi adaptado para
acolher venationes e pugnas gladiatórias), M. Velleius Zosimus, sacerdote da «inexpugnável
Némesis», mandou realizar um baixo-relevo com as imagens de Némesis, Victoria e Ares (o
homólogo helénico de Marte); Némesis surge figurada com uma roda da fortuna junto aos seus
pés, assim revelando a sua identificação virtual com a deusa Fortuna 1663. Em inscrições de
Aquincum e de Carnuntum observa-se a existência de sincretismo (Diana/Némesis e
Juno/Némesis). Na sua análise do culto de Némesis, A. Futrell escreveu que a deusa
representava «a potência que muda o destino» e «uma distribuidora do bem e do mal … O
anfiteatro, tal como o próprio Império, era um instrumento do destino,que, personificado em
Némesis, supervisionava os espectáculos de Roma» 1664.

Na Antiguidade, a fronteira entre a religião propriamente dita e a magia era muito ténue. As
orações podiam não se revelar suficientes para garantir a salvação, pelo que, à semelhança de
quase todos os seus contemporâneos supersticiosos, os gladiadores recorreram, decerto, a
amuletos apotropaicos para afastar o mau-olhado. Embora não disponhamos de testemunhos
referentes a combatentes da arena, temos notícia de que o grande atleta Milão de Crótona
utilizava uma dessas peças protectoras sempre que participava em competições de luta (uma

1658 N. Bateman, Gladiators at the Guildhall: The Story of London’s Roman Amphitheatre and Medieval Guildhall, Londres, 2000,
p. 34.

1659 ILS 5121.

1660 ILS 3628.

1661 ILS 3744.

1662 L. Robert, Les gladiateurs…, 182-3.179.

1663 Ibidem, 87-90.24.

1664 Blood in the Arena…, pp. 110-119.

564
«alectória, pedra encontrada na moela de um galináceo, com a aparência de um cristal e a
grossura de uma fava (Plínio-o-Velho, Nat. Hist. 37.54). E, para colocar todas as vantagens do
seu lado, muitos não hesitavam igualmente em lançar feitiços ou sortilégios contra os seus
rivais1665, inscrevendo maldições em lamelas de chumbo (defixiones), que depois eram
enterradas. Sobre esta prática, apenas chegaram até nós exemplos de textos de execração
feitos por espectadores (sobre os quais desenvolveremos comentários adicionais noutro
capítulo), tendo como alvos venatores e gladiadores.

A crença popular atribuía virtudes mágicas ao sangue dos gladiadores que morressem na
arena: com efeito, parece que no subsolo dos anfiteatros ocorria frequentemente um tráfico
bizarro muito cobiçado. Apuleio diz-nos que a feiticeira Panfília utilizava esse sangue para
preparar as suas poções (Metamorfoses, 3.17.5); por seu lado, Plínio-o-Velho ao mesmo alude,
como um remédio para certas patologias e enfermidades:

«Os epilépticos bebem o sangue dos gladiadores, uma espécie de taças vivas. O quê? Não se pode
assistir, sem horror, os animais ferozes a fazerem o mesmo na própria arena; e estes doentes consideram
muito eficaz recolhê-lo do próprio homem, e da chaga aberta o sangue ainda quente, fumegante e, por
assim dizer, a própria vida, ao passo que se encararia como uma monstruosidade aproximar uma boca
humana da ferida em sangue de uma fera? Outros buscam a medula dos fémures e os miolos de
crianças» (Nat. Hist. 28.2.1).

Os collegia gladiatórios

Os gladiadores também se reuniam em collegia, como faziam os membros de muitas outras


corporações profissionais, designadamente os militares. O principal objectivo subjacente à
criação destas associações relacionava-se com a necessidade de existir um espírito de
entreajuda; os seus membros, em iniciativas colectivas, tratavam do funeral de um coarmio/
«companheiro de armas». Cada um pagava uma quota destinada à caixa de poupanças do
collegium, o que permitia, assim, fazer vários tipos de despesas quando era preciso: por
exemplo, para se erigir um monumento funerário, cujo preço dificilmente poderia ser assumido
por uma só pessoa.

Numa inscrição de Roma, datando de finais do século II, faz-se menção a uma destas
«confrarias», que tinha como padroeiro o deus Silvanus: os Silvani Aureliani; este collegium
englobava 34 «pensionistas» de um ludus imperial (CIL VI.00631), distribuídos por quatro
decúrias (decuriae), sob a responsabilidade de dois curatores; a primeira decúria compreendia
apenas gladiadores veterani, mas nas restantes mesclavam-se os níveis e até incluíam não
combatentes, como um manicarius (fabricante de braçais) ou um unctor (massagista). Entre as
quatro decuriae, é possível que a distinção se estabelecesse com base no valor da quota que os
membros pagavam. Um collegium tanto podia compreender todos os individuos de uma
familia gladiatoria como apenas uma parte, nele se confundindo as diversas especialidades ou
unicamente os combatentes de uma só armatura.

Encontraram-se outros collegia deste género: numa inscrição procedente de Ancyra (Ancara),
onde se alude ao χολλήγιον ξν 'Рώμη τών σουμαρούδων, isto é, a uma corporação de
«gladiadores retirados» que tinham o grau equivalente ao termo de summa rudis em latim 1666.
Os bestiarii estavam organizados em moldes similares: atesta-se a existência de um collegium

1665 A. Bernet, Les Gladiateurs…, pp. 161-166.

565
em Roma e na cidade de Dea (Dié, no Sul da Gália) havia outro composto por venatores 1667.
Estas subdivisões formais no seio dos gladiadores e dos combatentes de animais selvagens
serviam para criar uma espécie de orgulho corporativo que não deixava de ser efectivo, apesar
de se tratar de um processo artificial, um pouco à semelhança do que hoje vemos na
identificação emocional, nas competições entre remadores rivais das universidades de
Cambridge e de Oxford.

Os suicídios

Importa advertir ainda para aqueles gladiadores, possivelmente a maioria, que não tinham
conseguido ganhar fama ou glória nos anfiteatros ou nos estádios: como se já não bastasse o
degradado estatuto associado à profissão, ficariam numa situação periclitante, até nos ludi
onde residiam, e acrescidamente marginalizados. Embora tenham sobrevivido poucos
testemunhos literários sobre isto, talvez fosse relativamente comum vários homens não
aguentarem a estrita disciplina e as condições de vida no ludus, a tal ponto que tentavam fugir,
mas a evasão revelava-se quase impossível, porque os gladiadores eram objecto de apertada
vigilância. Os que ofereciam mais risco de tentarem escapar, especialmente cativos
estrangeiros e sentenciados a penas capitais, como os damnati ad gladium ou ad arenam,
viam-se muitas vezes encerrados e com os tornozelos agrilhoados numa prisão improvisada na
caserna. Os gladiadores de medíocre valor não se encontrariam numa situação muito melhor: é
certo que desfrutariam de alguma liberdade de movimentos, mas não tinham direito aos
praemia que os seus colegas mais exitosos recebiam, ao sairem vencedores de pugnas muito
apreciadas pelo público e pelos editores. Consequentemente, os primeiros viveriam num
grande estado de ansiedade, sempre na expectativa face ao seu próximo combate, neles
crescendo, decerto, o pavor de conhecerem uma morte ignominiosa na arena. Não admira,
então, que alguns decidissem matar-se.

Atrás facultámos dois exemplos, um descrito por Séneca e outro por Símaco (século IV), o
último caso ainda mais insólito porque envolveu o suicídio colectivo de vinte gladiadores
saxões, ocorrido pouco antes de o munus começar.

***

No universo da gladiatura, seriam poucos os combatentes que teriam a possibilidade de


acumular capitais em larga escala. A maioria dos ex-gladiadores necessitaria de uma fonte de
rendimento regular e vários poderiam até conseguir um determinado trabalho porque a sua
«aposentação» tinha provado cabalmente as suas capacidades combativas. No entanto, os
impedimentos legais existentes contra os que se haviam vendido para combater excluíam-nos
do ofício mais óbvio onde o seu talento no uso das armas seria bem empregue, o de soldado.

Ainda assim, viam-se muitas vezes empregues em funções em que a sua força e a destreza no
uso de armas teria plena aplicação prática: servirem de guarda-costas para influentes e
abastados patrícios (função que os gladiadores também exerceriam ainda no activo, e até para

1666 Aqui, ao contrário do que se poderia supor, não se trata de um collegium de árbitros dos combates da arena, que eram
designados pelos mesmos vocábulos.

1667 ILS, 7559, harenariororum; 5148.

566
cometerem assassinatos, constituindo outras fontes de receitas dos lanistae que os alugavam
para tal serviço) e, mesmo, para protegerem imperadores; numa situação até aí sem
precedentes, Calígula ofereceu a gladiadores thraeces (armatura da qual era um fervoroso
apoiante) postos como oficiais da sua guarda pessoal batava 1668; estes homens, naturalmente,
não eram cidadãos, mas indivíduos totalmente dependentes do favor dos Césares. Um dos
combatentes que esteve ao serviço de Calígula, Sabinus1669, regressou mais tarde à arena,
presumivelmente dispensado por Cláudio, vendo-se forçado a lutar até à morte; no entanto, a
imperatriz Messalina intercedeu a favor de Sabinus, conseguindo salvá-lo, atitude que depressa
conduziu a acusações de que ele havia sido seu amante.

O mais usual era esses gladiadores retirados verem-se empregues, como já se disse, por gente
poderosa enquanto guarda-costas: temos notícia de governadores provinciais que recorreram
a esta prática, como Iunius Blaesus, na Panónia, em 14 d. C. Outro imperador, Nero, fez uso de
gladiadores para as ocasiões em que saía à noite em Roma, acompanhado por um grupo deles;
nessas alturas, ao sentir-se bem protegido, aproveitava para provocar diversos distúrbios com
toda a impunidade 1670. Também sabemos de mulheres que beneficiaram destes guarda-costas:
numa inscrição de Cós, alude-se aos Φαμιλία μουομάχωυ χαί ύπόμνημα χυνηγέσιων, um
grupo de gladiadores que escoltava regularmente a esposa de um asiarca. 1671

Já na Antiguidade Tardia, importantes latifundiários, em diversas zonas do Império, faziam-se


acompanhar frequentemente de bandos de servidores armados, que já não se designavam
como gladiadores mas desempenhavam basicamente o mesmo papel, afigurando-se para o
governo bastante difícil controlá-los. Numa inscrição do século VI, descoberta em Bonçuklar, na
Turquia, relata-se como o scribon do palácio sagrado em Constantinopla foi avisado, num
sonho, para que pedisse ao bispo local para suprimir esses grupos de homens armados, e exigir
que se prestasse um juramento, através do qual, cada proprietário fundiário se comprometesse
a ter, no máximo, «apenas» cinco guarda-costas1672.

Urge descartar, em definitivo, por um lado, a «lenda negra» segundo a qual a vida dos
gladiadores era repleta de enormes adversidades e de uma morte automaticamente garantida
em combate, e, por outro, a imagem cor-de-rosa, pintada por autores dotados de uma
imaginação ingénua, do gladiador retirado da arena, envelhecendo ao serviço de um poderoso
empregador e morrendo na companhia da mulher e filhos, já que ela corresponde à nossa
necessidade hodierna de nos conformarmos com a morte, num mundo em que mais de 20%
da população não tardará a ultrapassar a idade da reforma. Trata-se de uma visão que em nada
teria ajudado a maioria dos romanos a lidar com o medo e a ansiedade em relação a esse
fenómeno inexorável.

Na realidade, seriam relativamente poucos os que atingiam a velhice, além de que a falta de
medicamentos eficazes e de cuidados médicos apropriados significava, mesmo para os que
gozavam do apoio das suas famílias, que o envelhecimento era triste e duro. A morte podia
aparecer a qualquer instante, sendo, amiúde, dolorosa ou, mesmo, violenta. Os romanos
experimentavam uma necessidade irrefreável de contemplar os gladiadores a enfrentarem a
1668 Suetónio, Divus Calígula, 55; Díon Cássio, 60, 28.2.

1669 Cf. Flávio Josefo, Antiguidades Judaicas, 19, 212.

1670 Tácito, Ann. 1.22; 13.25.

1671 T. Mommsen, Gesammelte Schriften, VIII, 517.6; cf. IG XII.8, nº 547ss, de Hekataea, em Thasos.

1672AE 1985, 816: Bonçuklar, Turquia (a inscrição conserva-se no Cankiri Müze. Consulte-se também Novellae Iustiniani 30 (536
d. C.); R. Macmullen (Corruption and the Decline of Rome, Yale, 1988, p. 96), argumentou, surpreendentemente, que não se
registou «qualquer sinal» destes possessores independentes na época clássica.

567
morte nos anfiteatros, mas já não quando, agonizantes nos seus leitos, estavam prestes a
exalar o derradeiro suspiro.

CAPÍTULO VIII - A organização do munus. A publicitação do evento. A cena libera. As


primeiras etapas: pompa, venatio e meridianum spectaculum

568
Um munus, de pequena ou grande envergadura, requeria uma elaborada preparação e
organização anterior ao evento. O editor tinha de dispor do tempo suficiente para arranjar um
grupo de gladiadores de qualidade e tratar de todo o necessário aparato que implicava a
realização do espectáculo. A maquinaria e os acessórios ou adereços de «palco» faziam parte
da tradição dos munera, principalmente se estes tivessem lugar em anfiteatros providos de
recintos subterrâneos. Se o editor fosse adiando os preparativos, daí podia resultar, pura e
simplesmente, o cancelamento do munus.

Segundo Vitrúvio (De architectura, 10, par. 3), a capacidade organizativa constituía uma das
qualidades essenciais do patrocinador de um munus. Com efeito, os magistrados não se
podiam dar ao luxo de permitir que houvesse atrasos ou adiamentos, já que precisavam de
resolver todos os diferentes aspectos logísticos dos jogos num limitado espaço de tempo. Tinha
que se prover à existência de bancadas e assentos para o público, a colocação de toldos e toda
uma série de outros elementos para que o evento se conformasse aos usos e costumes do
negócio do espectáculo.

Augusto instaurou o chamado munus legitimum, ou seja, a forma legítima (tal como a lei
estipulava) de oferecer um espectáculo de anfiteatro. O evento compreenderia três partes
distintas mas complementares – a venatio, que se desenrolava de manhã, o meridianum
spectaculum, que ocorria a partir do meio-dia, e, por fim, o munus propriamente dito, no qual,
ao longo da tarde, tinham lugar os combates gladiatórios. Um munus legitimum tanto durava
um só dia como três, quatro ou muitos mais (como acontecia habitualmente nos espectáculos
oferecidos pelos imperadores; por exemplo, 123 dias seguidos no caso do munus de Trajano
em 107 d. C.). Os organizadores esforçavam-se o mais possível para conferir variedade a tais
espectáculos, a fim de surpreender, deleitar ou, até, comover o público. O último dia do munus
(extremus dies) costumava caracterizar-se por uma excepcional grandiosidade, havendo duelos
opondo os melhores gladiadores, ou enfrentamentos colossais (e. g. batalhas com elefantes).
Como se depreende, a organização de um evento com estas proporções implicava vários
preparativos, de maior ou menor complexidade, variando conforme a categoria do munus.
Essencialmente, um editor teria de dar os seguintes passos:

Primeiramente necessitava de arranjar os gladiadores. Se não possuísse um ludus (os editores,


na sua maioria, não eram proprietários de «escolas» gladiatórias) ele precisava de entrar em
contacto com um lanista. Este levava-o ao seu ludus e o munerarius aí escolheria os
combatentes que pretendia para o seu espectáculo. O lanista apresentava-lhe o preço total e,
depois de negociarem, estabeleceriam um acordo que resultasse satisfatório para ambos. Se o
editor residisse ou estivesse em Roma ou alguma outra importante cidade do império, ele
podia recorrer também aos ludi imperiales, que ofereciam a vantagem de albergarem mais
gladiadores e da melhor qualidade. Os ludi imperiales tinham ainda outra vantagem em relação
aos lanistae privados, já que estes mostravam geralmente um desejo excessivo em obter
grandes lucros, além de serem conhecidos por «darem gato por lebre» e inflacionarem os
preços dos gladiadores, atingindo níveis quase astronómicos.

A publicitação do munus

569
Em segundo lugar, depois da aquisição dos gladiadores mediante aluguer ou compra, uma das
primeiras preocupações do editor consistia na publicitação do espectáculo que iria ser
apresentado dentro em breve. Para o efeito, ele tinha de dispor de pintores profissionais
(chamados scriptores) para elaborarem os anúncios (edicta munerum) em sítios em que
houvesse muito movimento de pessoas, nos muros de vivendas de ruas populosas, nas paredes
de edifícios públicos e até em túmulos 1673. Na realidade, tratava-se praticamente dos mesmos
locais em que, hoje em dia, se afixam cartazes para se publicitar eleições, concertos musicais,
corridas de touros, etc. Estes anúncios pintados chamavam-se, em geral, edicta, mas também
se podiam designar como indicere, caso a data da celebração do munus ainda estivesse
relativamente longe (edicere se já se encontrasse próxima).

Como vimos no Capítulo II, dispomos de abundantes dados informativos sobre estes anúncios
graças aos edicta que se descobriram na cidade de Pompeia 1674 e nas suas imediações. Ao
contrário dos graffiti, que eram expressões espontâneas e populares de gente corrente, os
edicta munerum constituíam obra de artesãos/artistas profissionais especializados, nos quais
se adoptava um estilo típico que seguia cânones predeterminados, como, por exemplo, a
utilização do vermelho (associado ao sangue e, em termos práticos, mais chamativa para os
observadores) e do negro para pintar grandes letras. A disposição do texto obedecia
igualmente a uma ordem hierárquica mais ou menos bem estabelecida, com o propósito de
fornecer as informações principais de forma objectiva para atrair os espectadores. A ordem
costumava ser esta:

a)Motivo pelo qual se celebrava o espectáculo (causa muneris); podia relacionar-se com uma
vitória militar, uma festividade religiosa, ou com um voto pela saúde do imperador 1675 (munus
pro salute imperatoris); b)o nome do editor. Era, obviamente um dos elementos mais
destacados; afinal de contas, um edictus consistia num meio para que as pessoas se
lembrassem do munerarius; a sua função só se via precisada a seguir, se correspondesse a uma
editio ab honorem; c) exposição das etapas do espectáculo; os edicta munerum mais completos
pormenorizavam os pontos mais fortes do evento; uma venatio pela manhã (que se tornou
norma num munus de qualidade), um meridianum spectaculum (que não encontramos
mencionados em Pompeia, mas só num anúncio em Cumae) e, principalmente, os combates
gladiatórios, apontando-se o número de pares de combatentes (e, ocasionalmente, referências
a «substitutos» ou «suplentes»), os seus nomes e palmarés, se fossem estrelas da arena ou
pertencessem aos ludi imperiales, bem como a indicação das respectivas armaturae;d) a
cidade onde se celebrava o munus; e) se iam ocorrer outros entrenimentos (por exemplo,
acrobatas, pugilistas, músicos), certas comodidades para o público e condições respeitantes à
data do munus;

Esta ordem-padrão, através da qual se transmitiam as informações, podia sofrer alterações,


caso se desejasse enfatizar o editor (pondo o seu nome à frente de tudo e com letras garrafais)
ou não (nomeando-o, no fim do texto, com letras pequenas ou mesmo omitindo-o). Seja como
for, em geral era o nome do editor que mais ressaltava, prova clara da publicidade pessoal que
os munerarii buscavam. O nome do editor também era para os potenciais espectadores um

1673 De facto, encontraram-se numerosos anúncios de combates gladiatórios em monumentos funerários, especialmente nos
situados fora da Porta Nocera. Esta, note-se, ficava junto de uma estrada importante que ligava os centros urbanos costeiros
(Puteoli/Pozzuoli, Neapoli/Nápoles e Herculanum/Herculano) do Sul às zonas férteis e rurais do interior. Muitos dos edicta aludem
a espectáculos que se ofereceriam nessas importantes cidades da Campânia.

1674 Não resta a menor dúvida de que Pompeia é um «observatório» único que permite conhecer uma série de elementos sobre
a gladiatura e a própria organização dos munera: L. Jacobelli, Gladiators at Pompeii, p. 39.

1675 Assunto anteriormente abordado.

570
indício ou garantia da qualidade do espectáculo anunciado. Assim, a menção ao editor no início
do texto era uma maneira de mostrar o nível do munus.

Conforme referimos na alínea c, se no espectáculo participassem vedetas da gladiatura, os


seus nomes apareciam nos edicta, já que, por serem famosos, asseguravam um espectáculo de
alto nível, ao mesmo tempo que conferiam prestígio ao munus; eis dois exemplos: CIL IV 1179
(Ellius); CIL IV 9975 (Sabinianus).

Por fim, o artista assinava a sua obra. Em certos casos, indica-se o nome daquele que caiou a
parede ou muro (o dealbator), antes de a superfície ser pintada. Supõe-se que o preço a pagar
aos scriptores era calculado em função do número de letras, devendo o texto comunicar o
essencial1676. Se bem que informativos, os edicta jamais são muito circunstanciados. Nos
anúncios achados em Pompeia, não se observam ilustrações figurativas a acompanhá-los; no
entanto, sabe-se que em Antium (actual Anzio), um liberto ao serviço do imperador Nero
mandou pintar de maneira realista os retratos de todos os participantes de um munus (Plínio-
o-Velho, Nat. Hist. 35.34).

Na publicitação de um espectáculo gladiatório, que se realizaria em finais de Fevereiro ou


começos de Março (o texto danificado da inscrição não se afigura claro a este respeito), um
editor informava o futuro público que o munus seria oferecido só «se o tempo o permitir» (qua
dies patientur)1677. Na realidade, tratava-se de uma prudente advertência para um evento que
se realizasse nesses meses do fim do Inverno. Em contrapartida, outro munerarius, ao anunciar
o espectáculo, que teria lugar em Julho, mais confiante nas boas condições metereológicas,
declarava que o espectáculo aconteceria na data aprazada, «faça chuva ou faça sol» 1678. Neste
caso, o espectáculo celebrar-se-ia sem qualquer dilação (sine ulla dilatione)

Um dos elementos mais correntemente adicionados aos edicta era a presença do toldo
(velum, velarium), que se utilizava preferencialmente durante a Primavera e o Verão, quando
os espectadores beneficiavam da possibilidade de ter sombra e ficar ao abrigo do quente sol
mediterrânico1679. A maior parte dos munera realizava-se na Primavera, mas nem todos os
editores garantiam a existência de toldos, mesmo nas alturas mais quentes do ano 1680. Em
regra, não se colocavam toldos sobre os anfiteatros em finais do Outono ou ao longo do
Inverno, embora se captem algumas excepções 1681. Outra informação menos comum nos
anúncios era o sparsio («aspersão», que significava qualquer coisa «borrifada» ou «salpicada»
sobre o público, no plural sparsiones), que se traduzia na distribuição de presentes, vales e na
aspersão de água perfumada (geralmente com açafrão) pela multidão 1682.

A parada ou desfile (pompa, igualmente realizada em funerais, triunfos e jogos circenses,


como vimos) dos gladiadores, que marcava o início do espectáculo e era conduzida pelo editor,
está usualmente omissa nos anúncios, talvez porque significasse uma característica tão típica
do munus que nem valeria a pena publicitá-la. Descobriu-se, porém, um edictus menciona a
1676 F. Gilbert, Gladiateurs, chasseurs et condamnés à mort…, p. 23.

1677 CIL IV 1181.

1678 CIL IV 1180.

1679 CIL IV 1180; 1183; 1184; 1186; 1189; 7993; 7994.

1680 CIL IV 1989; 3881; 3882.

1681 CIL IV 1181; 9980.

1682 Por exemplo, CIL IV 1177, 1180; 1181; 1181; 1184; 3883. No próximo capítulo fornecemos mais detalhes acerca da sparsio.

571
pompa, mas no anúncio falta o espectáculo gladiatório, pelo que o evento se resumiria a uma
venatio, a exibições de desportos gregos e sparsiones1683. Assim, esta referência terá sido
incluída porque o editor quereria simplesmente informar os potenciais espectadores de que, a
despeito de estarem ausentes os combates gladiatórios, havia a pompa, só que composta por
caçadores da arena e os demais participantes1684.

Reveste-se de particular interesse um edictus muneris anunciando um espectáculo que iria


ocorrer em Pompeia, patrocinado por Decimus Lucretius Satrius Valens. Atentemos ao teor da
inscrição (fig. 3)1685:
D(ecimi) Lucreti

Satri Valentis flaminis Neronis Caesaris Aug(usti) fili perpetui gladiatorum paria XX et D(ecimi) Lucreti{o} Valentis fili
glad(iatorum) paria X pug(nabunt) Pompeis VI VIV III pr(idie) Idus Apr(iles) venatio legitima

(vac) et vela erunt

Tradução:
«Decimus Lucretius Satrius Valens, sacerdote permanente [flamen perpetuus] do Caesar Nero, filho [adoptivo] de
Augustus [= o imperador Cláudio], apresenta vinte paria [pares] de gladiadores, e D. Lucretius Valens, seu filho,
apresenta dez paria de gladiadores. Eles lutarão em Pompeia a 8, 9, 10, 11, 12 de Abril 1686. Haverá também uma
venatio legitima de animais selvagens e toldos, de acordo com as regras habituais» 1687.

Lucretius especificou o número de pares que ele e seu filho iriam apresentar. Não há dúvida
que transmitiu esta informação porque trinta pares de gladiadores significava uma grande
quantidade de combatentes para um munus realizado fora de Roma, e este facto era uma
característica assaz importante para o valor e o prestígio do espectáculo. Imaginando que estes
duelos tenham sido distribuídos uniformemente, então travaram-se seis por dia, ao longo dos
cinco programados. Frequentemente não se observam números específicos nos edicta, o que
certamente indica que a quantidade de pares seria modesta, pois que de outro modo se
proclamaria orgulhosamente a cifra. Quando não se explicitavam números concretos, a
fórmula habitual num edictus seria a de que uma «familia gladiatoria de X e Y irá lutar em
Pompeia…1688».

A menção ao cargo religioso exercido por Lucretius, de flamen do imperador Nero revela que
ele, na qualidade de sumo sacerdote do culto imperial, pertencia ao topo da elite da sociedade
pompeiana 1689. Chama-se legitima à venatio pela mesma razão que é referido o número de

1683 CIL IV 7993.

1684 G. Ville, La Gladiature, p. 401.

1685 CIL IV 3884 = ILS 5154 = P. Sabbatini Tumolesi, Gladiatorum paria, 5.

1686 As datas apresentadas como 8 a 12 de Abril constituem uma modernização. O que em latim se diz é o dia antes e o terceiro,
quarto, quinto e sexto dias antes dos Idos de Abril (13 de Abril). O sistema romano de expor datas implicava retroceder aos três
dias-chave num mês: as Calendas (primeiro dia), as Nonas (quinto ou sétimo, dependendo do mês) e os Idos (13º ou 15º, também
variando consoante o mês). Para os Romanos, 11 de Abril era o terceiro dia antes dos Idos e daí por diante. O pr visível na inscrição
representa a abreviatura para pridie/ «o dia anterior».

1687M. Beard, Pompeia: O dia-a-dia da mítica cidade romana, Lisboa, A Esfera dos Livros, 2010, p. 331.

1688 CIL IV 1189.

1689Consegue-se datar este edictum graças à referência de Lucretius ser flamen de Nero César, situando-se depois de Cláudio
adoptar Nero em 50 d. C. mas antes de o último ascender ao trono imperial em 54, altura em que se tornou Nero Claudius Caesar
Augustus. Cf. AE 1994, 398 = 2004, 405; G. Camodeca, I ceti dirigenti di rango senatorio, equestre e decurionale della Campania
romana, Nápoles, 2008, pp. 295-322. Em Itália e nas provincias os sacerdotes (a nível municipal e provincial) eram obrigados a

572
pares (paria) de gladiadores: para destacar este munus de outros espectáculos menores. Uma
venatio legitima englobava todos os animais que os espectadores estariam à espera: felinos de
grande porte, touros, veados e javalis1690.

É notório que Lucretius manifestou grande generosidade nos gastos que teve com este
munus. Na inscrição do anúncio, o seu praenomen abreviado (tal como o nosso primeiro nome)
e o seu apelido aparecem em maiúsculas garrafais, quase dez vezes maiores do que o resto das
palavras, o que patenteia o orgulho que Lucretius sentiu ao publicitar o seu espectáculo. Estas
grandes letras também se destinavam a captar a atenção daqueles que passassem pelo sítio
onde se encontrava o edictus. Neste, somos igualmente informados que se utilizariam toldos,
mesmo em meados de Abril.

Este anúncio também sobressai em relação a outros por causa de acréscimos feitos pelo
pintor, no interior e à direita do edictus: SCR CELER («Celer pintou isto»), letras rodeadas pela
curva do C de Lucretius e, à direita das letras maiores, SCR AEMILIUS CELER SING AD LUNA /
«Aemilius Celer pintou isto sozinho à luz da lua»1691. O facto de o anúncio ser pintado a meio da
noite devia perseguir o objectivo de oferecer aos habitantes da cidade uma agradável surpresa,
quando, já de manhã, reparassem no edictus. Acresce que Celer, ao indicar por duas vezes que
fora ele o pintor do anúncio, afora aludir à dificuldade da sua tarefa, conseguiu conferir ao
edictus muneris a função adicional de painel publicitário dos seus próprios serviços.

Num edictus encomendado por outro famoso notável de Pompeia, Nigidius Maius (como
atrás referimos, apodado de «príncipe dos munera»), este anuncia um munus em que se
vangloria explicitamente de todas as despesas com o espectáculo terem saído do próprio
bolso, sem beneficiar da contribuição financeira da cidade:

«Vinte pares de gladiadores e substitutos [suppositicii], apresentados pelo quinquennalis Gn. Alleius
Nigidius Maius, sem quaisquer custos para os cidadãos, irão combater em Pompeia» 1692.

É estranho que nesta inscrição não haja referência alguma à data em que o munus seria
oferecido à população, e não há, efectivamente, uma explicação satisfatória para esta omissão.
No entanto, talvez este anúncio constituísse um primeiro aviso, de carácter mais vago, o qual
depois se visse secundado por outro, posterior e contendo mais detalhes. A menção aos
«substitutos» (suppositicii) foi interpretada de várias maneiras: certos estudiosos sustentaram
que isto quereria dizer que os vencedores de cada um dos vinte combates organizados por
Nigídio teriam de lutar contra outros gladiadores. O problema é que, a ser assim, o número de
combates teria de duplicar e o editor precisaria de alugar sessenta gladiadores em vez de
apenas quarenta, além de que o próprio espectáculo duraria o dobro do tempo 1693.O mais

apresentarem espectáculos como parte integrante dos seus deveres. Em Beroia, os espectáculos que Q. Popilius Pytho patrocinou
na qualidade de archiereus, isto é, sumo sacerdote do culto imperial provincial na Macedónia, foram enumerados na inscrição da
base de uma estátua honorífica (I. Beroia 117 = SEG 17, 315): tanto certames musicais e competições atléticas de matriz helénica,
inspirados no modelo dos Jogos Actianos em Nicopolis (Actium), como combates gladiatórios e venationes ao estilo romano. No
Oriente grego, os festivais do culto imperial eram particularmente importantes para a apresentação de espectáculos de carácter
romano: L. Robert, Les gladiateurs, pp. 269-273; M. Carter, «Archiereis and Asiarchs: A Gladiatorial Perspective», GRBS 44 (2004),
pp. 41-68; M. Mann, “Un keinen Kranz, um das Leben kämpfen wir!”. Gladiatoren im Osten des römischen Reiches und die Frage
der Romanisierung, Berlim, 2011, pp. 60-64. Augustales na Itália e nas províncias ocidentais: G. Ville, La gladiature, pp. 188-193.

1690Assinala-se também outro termo nos edicta, plena, provavelmente sinónimo de legitima neste contexto. G. Ville, La
Gladiature…, p. 399.

1691 SCR é uma abreviatura para scribit («escrito», «pintado»), SING para singulus («sozinho»), ao passo que Ad LUNA[M]quer
dizer «à luz da lua».

1692 CIL IV 1179.

1693 G. Ville, La gladiature…, p. 396.

573
provável é que os suppositicii correspondessem a substitutos que o editor poderia empregar,
sob determinadas circunstâncias, para captar a boa vontade dos espectadores. Por exemplo,
um suppositicius substituiria um gladiador que tivesse combatido mal e fosse rapidamente
vencido ou, alternativamente, que ficasse de algum modo incapacitado antes de começar uma
pugna. Podia até dar-se o caso de um suppositicius ser chamado para testar a endurance e o
talento de um gladiador vitorioso, que houvesse captivado o público no combate anterior.

Existiam outros motivos, bem menos dignos: numa ocasião, o imperador Caracala forçou o
gladiador Bato a combater sucessivamente dois suppositicii depois de vencer o seu primeiro
duelo. No terceiro confronto, Bato veio a perecer, o que não causa grande estranheza, e, em
jeito de reconhecimento pelo seu desempenho, ele foi homenageado pelo imperador com um
esplêndido funeral. Díon Cássio, neste episódio, atribuiu a utilização de suppositicii por
Caracala, ao facto de este desejar ver o máximo de derramamento de sangue possível na
arena1694.

Nigidius forneceu provavelmente um número indeterminado de suppositicii, mas de certeza


de que não foi na razão de um por cada combate. A sua promessa de substitutos
proporcionava garantias acrescidas aos espectadores de que assistiriam a vinte boas porfias.
Sabemos que ele recorreu a este expediente dos supposicticii em mais outro munus, pelo
menos 1695. Marcial, por seu lado, aplicou o vocábulo suppositicius no seu panegírico, atrás
citado, dedicado ao famoso gladiador Hermes: «Hermes, só ele é um substituto para ele
próprio»1696. O que o autor pretendia dizer era que não havia combatente que substituisse
Hermes, já que um suppositicius seria desnecessário quando ele lutava na arena 1697.

Havia outro termo, tertiarius (literalmente «terceiro») que, à primeira vista, parece um
sinónimo de suppositicius, mas não é. A palavra tertiarius aparece numa passagem do
Satyricon de Petrónio, na qual uma personagem critica um editor pela sua excessiva
parcimónia:
«Ele apresentou cavaleiros [equites] tão pequenos como os que se observam nas decorações das lamparinas. Tu
pensarias que se tratava de dois galos de uma quinta, um tão magro como um cabide, o outro com pernas tortas,
um tertiarius, que era um morto que substituiu um homem morto, o qual tinha os tendões rasgados. Outro ainda
era um thraex de alguma qualidade, mas combatia de forma mecânica» (Saty. 45.11).

Assim, o tertiarius diferia do suppositicius, que só combatia quando necessário. Estaria


previsto, desde o começo, que o tertiarius lutaria provavelmente contra o vencedor de um
determinado combate. Não deixa de se revelar também sintomático que o tertiarius surja
neste excerto onde se faz queixas de um editor sovina. O recurso ao tertiarius permitia ao
editor exibir mais combates com menores gastos, isto é, duas pugnas pelo preço de três (e não
de quatro) gladiadores. Na passagem do Satyricon, o tertiarius, bem como os demais
combatentes no espectáculo, não tinha qualquer valor, pouco se distinguindo do gladiador que
ele viera substituir, que morrera. Por outro lado, o tertiarius beneficiaria de certa vantagem,
dado que o vencedor de um primeiro combate não estava nas melhores condições físicas para
lutar contra um adversário indiscutivelmente mais «fresco»1698. Em qualquer dos casos, a

1694 77.6.2.

1695 CIL IV. 1179.

1696 5.24.8.

1697 G. Ville, La gladiature…, p. 397.

1698 Ibidem, p. 397.

574
participação de um tertiarius geralmente apresentava ao público um combate de reduzida
qualidade, mas o editor poupava capital ao levar a cabo tal prática.

Outro editor pompeiano, Nonius Bassus, fornece mais um exemplo de parcimónia: na


comemoração honorífica de um munus que ele ofereceu, qualificam-se os 40 gladiadores
previstos para o espectáculo de ordinarii, o que significa que somente os combatentes
anunciados é que combateriam 1699. Nonius Bassus não seguiu o modelo da munificência
generosa, que permitia à multidão pedir ao editor para que acrescentasse combates não
previstos no fim do munus. Os gladiadores que lutavam nesses duelos-extra designavam-se
postulaticii, ou seja, gladiadores «pedidos»1700.

Salientemos mais um pormenor no edictum de Nigidius Maius, relativo a uma parcela que não
consta do excerto atrás citado: embora não faça grande sentido, mostra um encómio dirigido a
um tal Telephus, identificado como summa rudis (frequentemente, nas fontes epigráficas, os
dois vocábulos fundem-se num só, summarudis), o qual se vê apodado de «ornamento do
munus». A este respeito, esclareçamos que a rudis consistia num bastão de madeira que se
atribuía como recompensa a um gladiador por um munerarius, o qual simbolizava a sua
libertação definitiva do seu ofício como gladiador.

Como já ressalvámos, em obras recentes vários autores chamam erradamente rudis a um


gládio de madeira. A confusão advém da utilização do étimo rudis para ambos os instrumentos,
mas a espada de madeira, que se empregava como arma de treino, aparece sempre no plural
em latim, rudes, se bem com o sentido no singular, enquanto a férula surge invariavelmente no
singular, rudis 1701. Aquele que recebia a rudis passava a ser conhecido como rudiarius. Este tipo
de recompensa simbólica era geralmente concedida por um editor, a pedido do público no
anfiteatro, durante um munus1702. O título de summa rudis, que livremente traduzido quer dizer
um gladiador de «primeira classe» retirado, atribuía-se apenas aos mais notáveis desses
rudiarii: estes exerciam as funções de instrutores nas escolas gladiatórias e/ou de árbitros nos
espectáculos1703.

A expectativa antes da celebração de um munus

1699AE 1961, 140; 1969-1970, 183.

1700 Séneca, Ep. 7.4.

1701G. Ville, La Gladiature, p. 326. Vejam-se: Juvenal, Sat. 6.248; Ovídio, Ars am. 3.515; Tácito, Dial., 34.5; Tito Lívio, Ab Urb.
Cond. 40.6.6 (leia-se rudibus em vez de sudibus, «estacas»). Consulte-se igualmente Livy The Dawn of the Roman Empire: Books 31-
40, tradução da autoria de J. C. Yardley, Oxford, 2000, p. 583, nota acerca dos «espeques de madeira».

1702Suetónio, Cláudio, 21.5; Calpúrnio Flaco, 52; Quintiliano, Decl. Min. 302. Quando um auctoratus recebia a rudis, ficava
desobrigado da sua obrigação (voluntariamente aceite) de combater na arena, passando a gozar do estatuto de homem livre. Pelo
contrário, quando um escravo recebia a mesma «libertação» permanecia na mesma na condição servil: G. Ville, La Gladiature, p.
328; Tertuliano, De spect. 21.4.

1703Existia também um secunda rudis, que desempenhava o papel de árbitro-adjunto.

575
Um munus em Roma, ou noutra cidade do Império, era, obviamente, um espectáculo muito
ansiado. Ainda hoje, vários autores, irreflectidamente e sem bases de conhecimento na
matéria, partem do princípio errado de que os jogos gladiatórios significavam praticamente um
evento diário em Roma, o que está bem longe da verdade. Durante a República e a época
imperial, os munera eram relativamente raros, mesmo sob a égide de imperadores que se
destacaram como activos editores de espectáculos, pelo que tal raridade representou um
importante factor na popularidade dos jogos1704.

Quando Augusto delegou o controlo da apresentação dos munera patrocinados pelo Estado
aos pretores, ele, ainda assim, proibiu-os de organizar os espectáculos mais de duas vezes por
ano. Posteriormente, no século I da nossa era, quando a organização dos jogos gladiatórios
passou a estar nas mãos da comissão dos questores, estes ofereciam anualmente um munus,
que tinha lugar em Dezembro. Mas, ocasionalmente, até o mesmo se via suspenso,
dependendo da vontade ou do mero capricho de certos imperadores.

Quanto aos restantes munera, consistiam em eventos que ocorriam apenas em alturas
especiais, sendo oferecidos pelo imperador ou por patrocinadores favorecidos e aceites pelo
primeiro, embora, por volta do fim do século I d. C., os munera se traduzissem em espectáculos
apresentados quase só a mando do imperador ou de um membro privilegiado da sua família.
Mesmo os munera oferecidos pelos imperadores eram por vezes suspensos por longos
períodos, como aconteceu, por exemplo, sob Tibério, que experimentava versão pelos jogos
gladiatórios ou, alternativamente, os últimos convertiam-se em combates sem derramamento
de sangue, como aconteceu no tempo de Marco Aurélio.

Nas cidades da península itálica, a pressão exercida pelo povo, já bem enraízada, era
frequentemente um factor que induzia os membros das elites locais, sobretudo as que
ocupassem cargos públicos, a oferecerem um munus, juntamente com outros
entretenimentos. A fórmula «a pedido do povo» (postulante populo) assinala-se
correntemente nas inscrições em que se louvam esses patronos que obsequiaram bons
espectáculos aos seus concidadãos 1705. Nestas fontes epigráficas, sublinha-se, por vezes, a
rapidez e a receptividade imediata que tais patronos evidenciaram em relação à vontade do
povo1706.

No entanto, havia elementos da elite que estavam prontos a tomar a iniciativa, a troco da
gratidão e favor dos seus concidadãos. Um notável local da cidade de Circeii, actual San Felice
Circeo, aparentemente sem sofrer qualquer pressão da população, resolveu construir um
anfiteatro à sua própria custa e, a seguir, inaugurou-o com combates gladiatórios e uma
venatio1707. Quando um dos generais de Vespasiano, L. Flavius Silva Nonius (um flaviano),
mandou erigir um anfiteatro para os seus concidadãos em Urbs Salvia (hodierna Urbisaglia) e o
consagrou com um munus, ele foi certamente inspirado pela construção do monumental
Anfiteatro Flávio por Vespasiano e pelo espectáculo da sua inauguração oferecido por Tito, mas
do que por insistência dos habitantes da cidade 1708.

1704 Observe-se a citação feita por M. Winkler de uma passagem de Lewis Mumford (The City in History: Its Origins, Its
Transformations and its Prospects, Nova Iorque, 1964, pp. 229-230) no seu artigo «Gladiator and the Colosseum: Ambiguities of
Spectacle», in M. Winkler (ed.), Gladiator: Film and History, p. 96.

1705 CIL X 4643; 6090X; AE 1927, 124; 1975, 255; FIRA, 2.557.

1706 CIL X.4643.

1707 CIL X 6429.

1708 AE 1969-70, 183.

576
O envolvimento emocional da multidão em relação a um munus principiava quando o
espectáculo era primeiramente anunciado, e ia aumentando até que o munus se viesse a
realizar. Esta expectativa pode ser comparada, em certa medida, com a impaciência relevada
por uma criança de hoje em dia, à espera que o Natal chegue o mais depressa possível para,
então, desembrulhar as prendas. Séneca serviu-se do exemplo de um munus que estava
prestes a ocorrer para ilustrar as condições psicológicas da populaça, que almejava um prazer
que em breve poderia desfrutar:

«A partir da altura em que se anuncia o dia de um munus gladiatório […], eles desejam que os dias que
ainda faltam passem a correr. Cada atraso de um evento muito aguardado é impossivelmente longo» 1709.

A excitação quase febril causada por um munus prestes a acontecer também pode observar-
se num excerto das Metamorfoses de Apuleio, reportando-se a um espectáculo que, dentro em
breve, iria ser apresentado numa cidade grega:
«Lá [em Platea], ouvimos frequentes rumores de que um tal Demócares estaria para oferecer um munus gladiatório. Ele era um
homem de uma das famílias mais nobres e extremamente rico, além de conhecido pela sua extraordinária generosidade. Ele iria
proporcionar prazeres ao povo com um esplendor digno da sua riqueza. Quem terá suficiente eloquência para ser capaz de
descrever cada um dos aspectos da variegada magnificência [deste espectáculo]?»1710.

Num trecho do Satyricon, Petrónio descreve com certo pormenor o que causava tal estado de
ansiedade num homem vulgar: uma das personagens desta obra, ao ver um anúncio de um
munus, não conseguiu refrear o seu tremendo entusiasmo. Para além de existir a garantia de
derramamento de sangue e de várias mortes na arena, as atracções centrais, o editor prometia
a exibição de gladiadores anões e de uma mulher combatendo num carro puxado por cavalos
(uma essedaria) como elementos adicionais. Mais tentador seria, uma vez mais de acordo com
um excerto dessa obra, a execução que estava prevista de um escravo, condenado à morte por
haver mantido relações sexuais com a esposa do seu dono: o indivíduo, que apareceria durante
a venatio, seria lançado às feras (ad bestias), mas, neste caso, com uma estranha
particularidade – a sua execução iria gerar uma forte disputa entre duas facções ( factiones) no
meio da multidão: uma, composta por maridos ciumentos expressando satisfação pela morte
de um escravo apanhado em flagrante adultério com a mulher do seu amo, e a outra,
constituída por «amantes», que apoiaria o homem de condição servil, desculpando o seu
comportamento, ao alegar que a esposa do proprietário era uma «cabra», que provavelmente
o teria obrigado a fazer sexo com ela. Praticamente não restam dúvidas que muitas das
execuções públicas seriam rotineiras e não tão terrivelmente insólitas e «interessantes» para
os espectadores, mas neste caso o facto de a multidão estar ao corrente da ofensa cometida
pelo escravo e de existir dois grupos com opiniões contrárias a respeito do destino do
sentenciado, tornaria o evento ainda mais invulgar e excitante 1711.

Também se colhem referências ao grande entusiasmo dos habitantes da Urbs, na iminência da


celebração dos jogos triunfais patrocinados por Júlio César em 46 a.C.: nenhum
constrangimento ou obstáculo foram suficientes para desencorajar as pessoas de assistirem a
estes ludi, especialmente o munus. Afluiu gente de várias cidades de Itália até Roma, com o
expresso propósito de verem o espectáculo. Muitos tiveram que ficar em tendas montadas nas
ruas e ao longo das estradas. A multidão era tão imensa que, aquando do espectáculo,
chegaram a registar-se mortes (incluindo dois senadores) por asfixia e esmagamento 1712.

1709 Dial. 10.16.3.

1710 4.13.

1711 Saty. 45.7-8; M. Wistrand, Entertainment and violence in Ancient Rome…, p. 24.

1712 Suetónio, Div. Caesar, 39.4.

577
A compositio

A poucos dias da celebração do munus, o editor teria de proceder à formação dos pares dos
gladiadores e, neste momento, o lanista e o doctor certamente aconselhariam as melhores
escolhas a fazer a bem do espectáculo: em regra punham-se a combater entre si gladiatores de
nível e destreza equivalentes, o que tornava as porfias mais atractivas e imprevisíveis para os
expectadores; no entanto, como já vimos, esporadicamente opunha-se um tiro a um combate
experiente. Conhecemos situações em que a compositio se efectuou no final da pompa, tendo
o público uma palavra a dizer quanto ao emparceiramento dos combatentes; isto aconteceu
em alguns munera imperiais, durante os reinados de Cláudio e Tito.

O libellus munerarius

Igualmente na véspera e no próprio dia do munus, o editor mandava distribuir uma espécie de
«panfleto volante» (libellus munerarius ou libellus gladiatorum; Cícero, Phillipicae, 2.38.97),
sob a forma de folhas de pergaminho ou papiro, contendo quase todos os detalhes do
programa do espectáculo (que no edictus faltavam), para assim acabar por convencer os
indecisos. Neste libellus constavam os nomes dos gladiadores, a sua procedência, o cômputo
dos combates que cada um deles travara, além de outros pormenores. Este material
informativo facilitaria a realização de apostas e aumentava o interesse em assistir ao evento
(Horácio, Sat. 2.4.41; Cícero, Ad Att. 2.8.1), fazendo os amatores prognósticos sobre o desfecho
das porfias anunciadas.

Embora nenhum destes libelli tenha sobrevivido até hoje no seu formato original, conhecemos
a sua natureza e modo de apresentação dos dados que encerrava mediante a existência da
cópia do teor de um deles numa parede de Pompeia (CIL IV 2508); mas neste caso, já depois do
espectáculo, alguém adicionou os resultados das diversas pugnas (correspondendo à aposição
das letras M, V ou P, que surgem a anteceder cada nome), o que certamente devia ser uma
prática comum, servindo para informar pessoas que, apesar de interessadas no munus, não
tiveram a possibilidade de assistir ao mesmo (pensemos, por exemplo, em gente que fez
apostas mas que por qualquer razão estiveram ausentes). Observemos o teor do libellus:

Munus… IV III prid. Idus idib. Mais «Munus [a celebrar nos dias] 4º, 3º e no dia anterior aos Idos de Maio [=15 de
Maio]»;

Di(machaerus)-o(plomachus) «Dimachaerus [contra] hoplomachus»

M(issus)….ciens Ner(onianus) XX «Indultado….ciens, do ludus neroniano, 20[ combates»]

V(ictor) Nobilior Iul(ianus) II «Vencedor, Nobilior, do ludus juliano, 2 [combates]»

578
T(hraex)-m(urmillo) «Thraex [contra] murmillo»

M L. Sempronius…. «Indultado L(ucius) Sempronius….»

V Platanus Iul…. «Vencedor, Platanus, do ludus juliano….»

T(hraex)-m(urmillo) «Thraex [contra] murmillo»

V Pugnax Ner(onianus) III «Vencedor, Pugnax, do ludus neroniano, 3 [combates]»

P(eriit) Murranus Ner(onianus) «Pereceu Murranus, do ludus neroniano, 3 [combates]»

O(plomachus)-t(hraex) «(H)oplomachus [contra] thraex»

V Cycnus Iul(ianus) VIIII «Vencedor, Cycnus, do ludus juliano, 9 [combates]»

M Atticus Iul(ianus) XIV «Indultado Atticus, do ludus juliano, 14 [combates]»

T(hraex)-m(urmillo) «Thraex [contra] murmillo»

V Herma Iul(ianus) IV «Vencedor, Herma, do ludus juliano, 4 [combates]»

M Q. Petilius…. «Indultado, Q(uintus) Petilius….»

ess(edarii) «Essedarii [um essedarius contra outro]»

M P. Ostorius LI «Indultado, P(ublius) Ostorius, 51 [combates]»

V Scylax Iul(ianus) XXVI «Vencedor, Scylax, do ludus juliano, 26 [combates]»

Tr(aex)-m(urmillo) «Thraex [contra] murmillo»

V Nodu…. Iul(lianus) VII «Vencedor, Nodu…. do ludus juliano, 7 [combates]»

P L. Petronius X «Pereceu L(ucius) Petronius, 10 [combates]

T(hraex)-m(urmillo) «Thraex [contra] murmillo»

P L. Fabius VIIII «Pereceu L(ucius) Fabius, 9 [combates]»

V Astus Iul(ianus) XIV «Vencedor, Astus, do ludus juliano, 14 [combates]»1713.

Como anteriormente referimos, ao adicionar o resultado de uma pugna, indicava-se apenas a


letra inicial da palavra – V (victor), M (missus) ou P (periit). Atrás também referimos que se
podia aludir à morte por meio do signo Ø ou da letra grega theta (θ). Noutros casos, a vitória
era por vezes chamada corona ou palma, já que o gladiador vencedor recebia uma coroa de
louros ou um ramo de palmeira, entre outros prémios (sobre estas recompensas simbólicas, cf.
capítulo seguinte). Através do conteúdo deste libellus, verificamos que também se especificava

1713 P. Sabbatini Tumolesi, Gladiatorum paria…, pp. 71-72.

579
a armatura e a familia gladiatoria a que pertenciam os combatentes (no presente caso, todos
de «escolas» imperiais) e o curriculum de cada um. Por último, constatamos que as mortes nos
combates não eram a norma mas antes a excepção.

***

À semelhança dos ludi circenses, é provável que pregoeiros públicos (praecones) fossem
encarregados de anunciar o espectáculo no forum e até nas ruas da cidade, fazendo uso dos
seus dotes vocais e dos gestos (elementos ainda característicos entre os latinos). Depois, a
notícia corria, célere, de boca em boca. O comerciante, o viajante, o camponês que vinha
vender os seus legumes no centro urbano, todos regressavam a casa e propagavam a iminência
da apresentação de um munus. Na cidade e suas imediações, por todo o lado se falava do
evento, tanto na praça pública como nas tabernas, termas, habitações e banquetes. A
população discutia acerca dos gladiadores mais apreciados e das suas técnicas de combate, as
crianças brincavam, imitando as estrelas da arena e as mulheres, também, ficariam
expectantes, algumas mesmo sonhando com outras coisas…

Cena libera

Outra etapa dos preparativos para o munus radicava na chamada «ceia livre», que era
oferecida pelo editor e tinha lugar na véspera do espectáculo. O vocábulo «livre», aplicado à
cena, sugere a ideia de uma refeição que não teria de ser paga. Liber, porém, não se
empregava neste sentido em latim, significando antes algo como «sem limites», «livre de
restrições»1714. Tal étimo, quando associado a cena, deveria ter possivelmente uma dupla
conotação: uma ceia, ilimitada a nível de quantidade, na qual cada um poderia saciar o seu
apetite ao máximo. Os convidados eram, na sua esmagadora maioria, todos os participantes no
munus que teria lugar no dia seguinte: gladiadores, combatentes de animais selvagens e
criminosos condenados (damnati), os últimos estando sentenciados à pena capital na arena.

Este costume da cena libera parece inserir-se na tradição de oferecer uma derradeira refeição
a um homem condenado à morte1715. Nesta ocasião, os gladiadores, bem como os venatores e
os bestiarii desfrutariam decerto melhor da comida e da bebida, já que, embora sempre
pairasse o espectro da morte sobre eles, ela não se encontrava de modo algum garantida. O
«menu» era bem tentador, consistindo em caros de fartos manjares, convidando-se todos os
presentes a satisfazer a sua gula. Plutarco refere-se a esta comida como «agradável ao
estômago»1716. Uma das finalidades desta ceia era a do editor expressar o seu reconhecimento
e gratidão a todos os participantes no espectáculo, os quais, com o seu sofrimento e morte,
proporcionariam ao patrocinador um grande favor público 1717.

1714 R. Dunkle, Gladiators…, p. 74.

1715 Paul Plass (The Game of Death in Ancient Rome: Arena Sport and Political Suicide, Madison, WI, 1995, p. 52) viu na cena
libera uma mediação entre os vivos e os mortos; o seu ambiente festivo e hospitaleiro constrastava dramaticamente com a
violência que iria ocorrer no dia seguinte.

1716 Mor. 1099B.

580
Num dos conhecidos mosaicos da antiga Thysdrus (El Djen, actual Tunísia), vê-se uma cena que
parece representar uma ruidosa e animada festa acompanhada de bebidas, que decorre no
anfiteatro local, a seguir a uma cena libera. Representaram-se cinco homens reclinados sobre
uma mesa, provavelmente venatores profissionais que no dia seguinte iriam lutar contra
touros, os quais, note-se, aparecem figurados na parte inferior da composição a dormir. Os
cinco indivíduos estão, presumivelmente, a partilhar o vinho contido numa grande taça e em
dois jarros que se encontram à frente da mesa, estando um serviçal, à direita, a servir-los. Por
cima da cabeça de cada um dos venatores lê-se uma breve legenda: «Vamos todos tirar as
roupas! Viemos para beber! Estais a falar demais! Vamos divertir-nos!». A quinta inscrição -
«Estamos a segurar três!» - possui um significado que nos escapa. Como os farristas deviam
estar a fazer muito barulho, depreende-se que uma pessoa, situada à esquerda, os avisa,
dizendo: «Silêncio! Deixai os touros descansar!» 1718.

Geralmente, a cena libera desenrolava-se num local público, como o forum da cidade,
reunindo-se mesas ao ar livre para esse efeito 1719. O repasto principiaria ao fim da tarde. O
público também era convidado a observar de perto os indivíduos que iriam combater no dia
seguinte, tendo a possibilidade de falar com eles. A presença e o envolvimento de
espectadores sugerem outros dos objectivos da cena: a publicidade. Este evento constituía
como que uma antecipação do espectáculo. Se o público alimentasse dúvidas em ir assistir ao
mesmo, a cena podia servir para que mudasse de opinião.

A cena libera não se limitava apenas ao consumo de comida e de bebidas. Numa passagem,
Plutarco alude a gladiadores gregos que ignoravam a refeição propriamente dita e
aproveitavam o tempo para tomarem medidas em relação às suas mulheres, confiando-as a
parentes e amigos e declarando, caso perecessem na arena, libertariam os seus escravos 1720.
No entanto, tal trecho deve ser encarado com precaução, dado que se inscreve num conjunto
de argumentos que o autor utilizou para defender a superioridade dos helenos em relação aos
«bárbaros».

Além disso, Plutarco dá a entender que os gladiadores teriam geralmente escravos, o que de
facto aconteceu com diversos homens da arena de condição livre que haviam adquirido fama e
alguma prosperidade. Este fenómeno, embora longe de ser sistemático, parece ter sido mais
habitual no Oriente helenístico do que na parte ocidental do império romano. Não restam

1717 Para o tópico da cena libera enquanto compensação: G. Ville, La Gladiature, p. 366. No entanto, M. Z. Brettler e M. Poliakoff
(cf. «Rabbi Simeon bem Lakish at the Gladiator’s Banquet: Rabbinic Observations on the Roman Arena», The Harvard Theological
Review, 83.1, 1990, pp. 93-98) questionaram o ideário de Ville, considerando ser impossível explicar por que razão os editores se
sentiriam obrigados a dar uma compensação, especialmente aos damnati; os dois académicos debateram a cena libera à luz da
tese do sacrifício humano na origem dos combates gladiatórios, argumentando que prisioneiros e cativos não constituíam vítimas
adequadas para um rito funerário; ao citarem Karl Meuli (Der griechische Agon: Kampf und Kampfspiele in Totenbrauch, Totentanz,
Totenlage, und Totenlob, Colónia, 1968, p. 49), os autores sustentaram que a cena libera era uma cerimónia de purificação, através
da qual as vítimas se tornavam mais dignas ao ficarem com um estatuto social temporariamente mais elevado.

1718 Na realidade, os cinco farristas representam cinco associações (sodalites) de venatores no Norte de África, entre as quais
estavam os famosos Telegenii, os Pentasi e, talvez, os Leontii. Consulte-se Katherine Dunbabin, The Mosaics of Roman North Africa,
Oxford, 1978, pp. 78-83, est. xxvii.69.

1719 Tertuliano, Apol. 42.5; M. Junkelmann, «Familia Gladiatoria: The Heroes of the Amphitheatre», p. 64.

1720Plutarco, Mor. 1099B. Um gladiador que tivesse escravos corresponderia normalmente a um auctoratus, mas o facto é que
alguns combatentes da arena de condição servil tinham posses suficientes para se darem ao luxo de possuirem os seus próprios
escravos. Colhe-se o exemplo de um essedarius, chamado Porius, que celebrou uma vitória ao alforriar um escravo. Quando a
multidão aplaudiu vigorosamente a generosidade de Porius, Calígula sentiu inveja ao ver os espectadores dispensarem mais
atenção e respeito ao gladiador do que a próprio imperador. Este episódio terminou de forma cómica, com Calígula tropeçando na
borda da sua toga quando desceu apressadamente os degraus (Suetónio, Calígula, 35.3). O nome Porius é grego, o que indica que
que o essedarius seria um escravo ou um liberto. Para escravos como proprietários de outros escravos, consultem-se: Plauto, Asin.
433-434; Horácio, Sat. 2.7.79; Marcial, 2.18.7; Paulo, Digesta 9.4.19.2; Ulpiano, 15.1.17, par. Ao escravo que fosse propriedade de
outro escravo chamava-se vicarius. Beryl Rawson, «Family Life among the Lower Classes at Rome in the First Two Centuries of the
Empire», CPh, 61.2 (1966), p. 75.

581
grandes dúvidas, porém, que no decurso da cena libera, certos gladiadores tomariam várias
providências, em jeito de testamentos, preocupando-se com o bem-estar material das suas
companheiras e, até, filhos, caso perdessem a vida no munus.

A narrativa anónima do martírio de Santa Perpétua e dos seus correligionários faculta alguns
dados sobre o comportamento dos damnati cristãos numa cena libera. O autor desse relato
descreve a ceia como uma expressão de amor espiritual (ágape) entre os cristãos, em vez de se
tratar de uma típica cena libera. Esse amor, porém, não se estendia aos observadores pagãos
que lá se encontrassem, cuja curiosidade mórbida incomodava obviamente os cristãos. Estes
reagiram prontamente à atitude inquisitiva dos visitantes que afluíram à cena. Ao referirem-se
à felicidade que viriam a achar no próprio sofrimento que os esperava na arena no dia
seguinte, aproveitavam para proferir ameaças aos mirones, alertando-os para o julgamento de
Deus1721. Aparentemente, estes damnati cristãos demonstravam maior tolerância à dor e ao
suplício do que face as tentativas que se fizessem para os humilhar.

***
Quando os munera se transformaram em eventos populares, e não mais privados, muitos
deles cessaram, sem dúvida, de ser gratuitos. Só em 122 a. C. é que o demagogo Caio Graco
impôs a gratuidade dos espectáculos (Plutarco, Caio Graco, 12.3-4). Sabe-se, contudo, que
muitos dos munera no fim da República e sob o Império eram pagos, os quais se conheciam
pela expressão munera assiforana. Pagar o «bilhete» de entrada, mesmo que fosse por baixo-
preço, permitia cobrir as despesas tidas com a construção de spectacula de madeira e, de uma
forma geral, com a manutenção dos espaços reservados aos espectáculos, como o anfiteatro e
o circo. Os jogos eram financiados e oferecidos pelos munerarii: porém, é difícil descortinarmos
as razões que conduziam a que um munus fosse pago ou não; talvez se relacionasse com a
própria vontade do editor. Alguns apenas buscavam o lucro, como sucedeu com Attilius, aquele
liberto que em Fidenae (nos arredores de Roma), construiu um anfiteatro de madeira que veio
a desmoronar, causando milhares de vítimas mortais. O preço dos lugares devia ser
relativamente significativo, para que o organizador pudesse ressarcir-se dos gastos.

Os espectáculos apresentados pelos magistrados na Urbs talvez fossem gratuitos, uma vez
que se viam financiados em larga medida pelo erário público, mas, paradoxalmente, não os de
todos os imperadores: efectivamente, se nos ativermos a Dião Cássio (59.13), Calígula, a título
excepcional, deu um munus gratuito por ocasião do aniversário de Drusila, sua irmã; Adriano
também agiu assim em relação ao munus oferecido no seu dia de anos (Ibidem, 69.8). Em
determinadas ocasiões tratava-se de espectáculos mistos, em que só os melhores lugares eram
pagos; os bilhetes eram confiados a «agências» especializadas, os denominados locatoria; em
troca de alguns asses (moedas de bronze), os agentes (locarii) distribuíam tesserae, que se
teriam de apresentar no dia do evento (Petrónio, Satyr. 116.7).

Os romanos mais influentes e poderosos (senadores, magistrados, sacerdotes), que


beneficiavam possivelmente de lugares reservados, não hesitavam em obter uma série de loca
para a seguir os entregar a familiares e amigos, o que, durante a República, se encarava como
uma forma de corrupção em altura de eleições. Como salientámos anteriormente, em 67 a. C.,
Cícero promulgou uma lei que interditava tal prática, a lex Calpurnia de ambitu (Cícero, Pro
Mur. 32. 67). No entanto, este costume continuou a ser comum entre particulares. Quanto à
gente corrente, apressava-se a ocupar os loca gratuita.

1721 Paixão das Santas Perpétua e Felicidade, 17.1-2.

582
O dia do munus

Chegava, então, o dia mais aguardado: a cidade praticamente se esvaziava, afluindo os


habitantes, em magote, ainda de madrugada, até ao anfiteatro. Como muitas ruas e habitações
ficavam desertas, o ambiente era propício aos roubos. Em Roma, o imperador colocava as suas
coortes pretorianas e os vigiles para garantirem a segurança e a ordem pública. Já no anfiteatro
onde se celebraria o evento, os citadinos davam de caras com a multidão proveniente das
proximidades, à qual só lhe restava a alternativa de entrar na cidade no dia anterior ou até
antes, para ter, em princípio, mais garantias de arranjar lugares. Os que não dispunham de
recursos para pernoitar num quarto ou se alojarem em casa de familiares, não tinham outra
solução para além a de dormir nas ruas, debaixo de alpendres ou pátios. As arcadas de um
anfiteatro podiam revelar-se ideais para o efeito e, ao longo dos dias festivos, todo um mundo
paralelo se instalava em torno do edífico: comerciantes ambulantes, jogadores, revendedores
ou traficantes de lugares, vendedores de almofadas e prostitutas, que exerciam a sua
actividade atrás de cortinas postas entre dois pilares.

A pompa, cerimónia do começo do espectáculo

A pompa, genericamente, significava uma reunião de pessoas sob a forma de um cortejo.


Conhecemos com algum pormenor os desfiles que tinham lugar aquando do regresso de
exércitos e de generais vitoriosos, aos quais o Senado atribuía a honra do triunfo. Este género
de cortejo ocorria, como vimos, também no começo dos ludi circenses e de um munus. Se nos
basearmos no número de referências observáveis nos edicta pompeianos (somente uma vez a
pompa aparece nos anúncios conhecidos), pode-se ficar com a impressão de que este desfile
inaugural talvez não fosse um elemento obrigatório, mas não restam dúvidas que era um
momento importante e solene no munus. Para termos uma ideia mais ou menos concreta de
tal cerimónia de abertura, é necessário cruzarmos os dados dos testemunhos relativos tanto ao
circo como ao anfiteatro. A pompa tradicional do circo encontra-se bem atestada nas fontes
textuais e iconográficas. Por outro lado, a documentação é mais escassa no que respeita à
cerimónia que se efectuava no anfiteatro, mas os «ingredientes afiguravam-se idênticos. Em
Roma, o cortejo formava-se no Capitólio e depois atravessava o Forum, o Vicus Tuscus, o Forum
Boarium e o Velabrum, fazendo, por fim, a sua entrada pela grande porta do circo, a que se
seguia um sacrifício ritual. Neste momento, o público estava de pé, aplaudindo e extravasando
a sua satisfação com brados (Ovídio, Ars Amatoria, I.148). Fora da Urbs e, sobretudo, nas
províncias em que a pompa inaugural também ocorria, a importância do desfile e a sua
composição podiam conhecer variantes; como sempre, estamos mais bem informados sobre o
que se passava em Roma.

No entanto, o melhor testemunho plástico evoca um espectáculo ocorrido em Pompeia: trata-


se do baixo-relevo do monumento funerário do duumvir Cn ou N. Clovatius: na Fig. observa-se
o painel superior de um conjunto de três desta composição escultórica, onde se representou
simplificadamente uma pompa (Porta Stabiana, actualmente no Museo Archeologico
Nazionale de Nápoles) com um reduzido número de personagens; as outras duas composições

583
escultóricas mostram os dois principais momentos de um munus: a venatio e os combates
gladiatórios1722.

O cortejo figurado, que deve «ler-se» da direita para a esquerda, principia no extremo direito
do segmento do topo: a primeira pessoa da procissão está prestes a entrar na arena, esta
vendo-se descrita por um objecto triangular no canto superior direito, provavelmente um
escorço esquemático do toldo (vela), uma cobertura que se desfraldava no topo do anfiteatro,
frequentemente referida nos anúncios dos munera As duas primeiras personagens que
envergam togas, à cabeça do desfile, correspondem a lictores, que em regra acompanhavam os
magistrados com poderes executivos 1723. No entanto, os lictores também podem ter servido
para escoltar os editores dos espectáculos, mesmo que os últimos não ocupassem cargos da
magistratura. Atrás dos lictores posicionam-se três tocadores de trombetas (tubicines), que
proporcionam o acompanhamento musical para a procissão 1724. Mais atrás, transportada por
quatro ministri, avança uma liteira (ferculum), sobre a qual parecem estar duas estatuetas cuja
identificação se revela difícil: tanto podem simbolizar os ferreiros de Vulcano martelando
armas, como, corresponder a um conjunto escultórico alusivo a uma corporação profissional
(argentários, ourives ou armeiros) que tivesse contribuído para a organização do
espectáculo1725.Esta inclusão dos artífices por parte do escultor constitui, talvez, uma referência
à cerimónia do exame das armas (probatio armorum) levada a cabo pelo editor, que se
efectuava na arena depois da pompa. Nessa altura, o organizador do espectáculo verificava
todo o armamento dos gladiadores, em especial os gládios e as adagas, de forma a certificar-se
de que estavam suficientemente aguçados para causar danos físicos reais 1726.

As duas seguintes figuras consistem em auxiliares da arena (ministri ou harenarii), uma


segurando num cartaz, que se utilizaria decerto para transmitir informações ao público no
anfiteatro, e a outra pegando numa palma, uma das características recompensas simbólicas
que se davam aos gladiadores vitoriosos. O homem togado que surge logo depois desses
auxiliares é, sem dúvida, o próprio editor, que olha para trás em direcção a seis ministri (dois
no extremo esquerdo do segmento superior e quatro no extremo direito em baixo), cada um
trazendo o elmo e o escudo de um gladiador, surgindo em primeiro lugar as peças da panóplia
do eques, que tradicionalmente iniciavam os combates a partir da tarde. É quase garantido
qualquer que os próprios gladiadores participavam igualmente no cortejo, mas foram omitidos
devido à falta de espaço disponível na superfície marmórea (de qualquer modo, eles aparecem
a combater no painel do meio)1727.
1722 L. Jacobelli, Gladiators at Pompeii, pp. 95-96, fig. 77; M. Junkelmann, Gladiatoren, pp. 130-131, est. 204-209; F. Gilbert,
Gladiateurs, chasseurs et condamnés à mort, p. 44.

1723 A toga só era envergada pelos cidadãos romanos em ocasiões oficiais. Note-se que os músicos, que provavelmente seriam
escravos, vestem túnicas. Os lictores transportam os fasces, os simbólicos feixes de varas e machados que representavam o poder
do magistrado para punir com chicotadas ou com a morte.

1724Em termos cinematográficos, a melhor descrição de uma pompa encontra-se no filme Demetrius and the Gladiators
(realizado por Daves, 1954).

1725Segundo Bianca Maiuri, tal liteira com representações de artífices significaria uma boa publicidade para os fabricantes de
armamento: «Rilievo gladiatorio di Pompei», Rendiconti Accademia dei Lincei, serv. 8, vol. 2 (1947), números 11-12 (1948), pp. 491-
510.

1726Suetónio, Div. Tit., 9.2. Díon Cássio conta praticamente a mesma história, mas protagonizada por um imperador posterior,
Nerva (68.3.2)

1727 Os imperadores do século III utilizaram gladiadores em outros géneros de procissões, talvez por causa da sua aparência
imponente, com armas profusamente decoradas e douradas e exibindo plumas nos seus elmos: Galieno (259-268) comemorou o
seu décimo aniversário de governação com uma parada incluindo 1 200 gladiadores, ao passo que Aureliano (270-275) celebrou
um triunfo com um cortejo compreendendo 1 600 gladiadores (História Augusta/SHA, Galieno (Trebélio Pólio), 8.3, e Aureliano
(Flávio Vopisco Siracusio), 33.4. Sobre a participação de gladiadores na pompa: Pseudo-Quintilano, Decl. Mai. 9.6; L. Robert, Les
gladiateurs, 174-6.171.9.

584
O editor deste munus perpetuado em mármore terá sido provavelmente o duumvir Clovatius,
um dos funcionários executivos de Pompeia. Embora um munerarius fosse normalmente um
homem que gozava de elevado estatuto social e político na sua comunidade, há referências a
libertos que, ao tornarem-se ricos, ofereceram por vezes munera nas suas cidades-natais. A
este respeito, o poeta Marcial não deixou de expressar o seu irónico desdém por esses
munerarii de baixa origem: «Um sapateiro ofereceu-te um munus, culta Bononia [Bolonha]; um
pisoeiro apresentou outro para ti, Mutina [Módena]: o que se irá seguir, um estalajadeiro?» 1728.

Finalizemos a descrição do relevo pompeiano: depois dos portadores dos escudos e dos
cascos, vemos outro indivíduo pegando num objecto não identificado com a mão esquerda.
Atrás dele, está um músico, fazendo ressoar um pequena trombeta curva (lituus). A procissão é
rematada por dois ministri segurando e conduzindo cavalos, certamente destinados para os
gladiadores montados, os equites, os quais, por tradição eram os primeiros a aparecer no
espéctaculo que se desenrolava à tarde.

Na obra Toxaris, Luciano relata outro género de parada de gladiadores, que em grego se
chamava propompē (significando uma «procissão anterior [ao evento]»), tendo lugar três dias
antes da celebração de um munus na cidade de Amastris, na costa meridional do Mar Negro.
Esse desfile foi composto por jovens adultos (que iriam combater no dito espectáculo) que
passou pelo forum local, começando bem cedo, de manhã, a anunciar o munus1729.

Em solo itálico, não subsistiram testemunhos documentais que provem ter havido desfiles de
gladiadores antes do dia do munus, com o objectivo declarado de o publicitar. Sugeriu-se,
porém, que os gladiadores pertencentes a D. Bruto, um dos assassinos de Júlio César, talvez se
tivessem reunido no teatro de Pompeio no dia do magnicídio, sob o pretexto de estarem a
anunciar um munus, que supostamente se apresentaria dentro em breve 1730. Se isto realmente
sucedeu assim, importa salientar que o verdadeiro propósito da presença dos homens da
arena naquele edifício era o de protegerem os conspiradores logo após Júlio César morrer.

A venatio 1731

Até ao início da época imperial, os combates gladiatórios e as venationes constituíram, na


maior parte das vezes, eventos autónomos, mas uma espécie de atracção natural acabou por
reuni-los, pelo que, por fim, a venatio passou a integrar o espectáculo no mesmo dia em que se
realizava o munus 1732. Na realidade, a venatio possuía pontos em comum com os combates

1728 3.59.

1729 Toxaris, 58.

1730 Díon Cássio, Hist. rom. 44.16.2; Apiano, B. Civ. 2.17.118; Veleio Patérculo, 2.58.

1731 Para mais dados sobre o fenómeno cinegético em geral no mundo greco-romano e as caçadas que se desenrolavam na
arena em particular, consultem-se: J. Aymard, Essai sur les Chasses romaines, des origines à la fin du siècle des Antonins, Paris,
1951; Monique Jallet-Huant, La chasse dans l’Antiquité romaine, Paris, 2008; J. Trinquier e C. Vendries (eds.), Chasses antiques:
pratiques et représentations dans le monde gréco-romain (IIIe s. av. – IVe s. apr. J. C.). Actes du colloque internationale de Rennes,
Rennes, 2009.

1732 Mesmo depois de se tornar um elemento regular no munus, a venatio também era apresentada ocasionalmente no Circo
Máximo, em conexão com as corridas de carros. Calígula, por exemplo, gostava de combinar as corridas com a caça de animais, daí
que mandasse organizar venationes nos intervalos das corridas (Suetónio, Divus Caligula, 18.3). Díon Cássio diz-nos, por seu lado,
que Cláudio adoptou esta prática pelo menos uma vez, apresentando caçadas envolvendo ursos, competições atléticas e danças
pírricas entre as corridas (60.23.5). Suetónio acrescenta que Cláudio utilizava amiúde este formato híbrido nos ludi circenses na

585
gladiatórios: ambos englobavam violentas lutas que podiam culminar na morte de cada um dos
oponentes. O munerarius podia poupar a vida dos gladiadores, venatores e, até dos animais
que eram adversários dos últimos, caso todos agissem com bravura e resolução. Todos estes
actores da arena tinham possibilidades de ganhar fama e glória se fizessem actuações
brilhantes, embora os gladiadores fossem os que tinham maior prestígio.

O significado primeiro do vocábulo venatio é o de uma «caçada no meio selvagem, em plena


natureza», mas quando se aplicava a um espectáculo, queria dizer uma «caçada posta em cena
na arena»1733. A venatio consistia em caçadores humanos que tinham por tarefa aniquilar
animais de todas as espécies e tamanhos, mas sobretudo predadores de grande porte, como
leões, tigres, leopardos, ursos, para além de elefantes. Havia, essencialmente, dois tipos de
combatentes, o venator/«caçador» e o bestiarius/«homem das bestas». Os dois termos foram
interpretados de várias maneiras: no entanto, é possível que, pelo menos durante a República,
a diferença entre ambos radicasse no equipamento e indumentária que utilizavam 1734.

Há já muito tempo, G. Lafaye escreveu: «Tudo o que se pode reter até aqui como provável é
que [a palavra] venator, não obstante apresentar exactamente o mesmo sentido que
bestiarius, era mais genérica e menos degradante» 1735. Este autor fundamentou-se nas
numerosas inscrições que mencionam o primeiro vocábulo. Mais tarde, na sua conhecida obra
publicada em 1981, G. Ville chamou à atenção para a existência de vedetas entre certos
bestiarii, apoiando-se nos comentários encomiásticos tecidos por Marcial sobre o célebre
Carpophorus 1736.Diversos estudiosos engendraram uma espécie de amálgama entre o
gladiator e o bestiarius, ou então conferiram ao último as características do venator, sem
estabelecer verdadeiramente as particularidades de um e outro.

No entanto, alguns textos elucidam-nos quanto a este ponto. Juvenal (Sátiras, 4.99-100) alude
a um venator combatendo sem armadura na arena de Alba; Marcial (Liber spectaculorum, 11),
que empregou o termo venator ao descrever o confronto entre um urso e um caçador, fornece
também um interessante retrato do venator e do seu armamento: afirma que ele se servia de
venábulos (venabula) e de lanças (lancea). Apuleio (Metamorphoses, IV, 3) refere-se à
comprovada agilidade dos venatores. Estas informações permitem concluir que os venatores
possuíam uma reduzida (e fraca) panóplia, enquanto os bestiarii se caracterizariam por se
apresentar pesadamente equipados, conforme se observa no baixo-relevo da Villa Torlonia
(Fig. )1737: nesta composição, vários caçadores bem equipados talvez correspondam a bestiarii
lutando contra feras, munidos de gládios, escudos e, até, cota de malha.

Marcial (Liber spect. 14; Apophoreta, 30) explica-nos a utilização de venábulos de múltiplas
formas: «Eles receberão o choque do javali, aguardarão pela arremetida do leão, trespassarão
os ursos: basta que a tua mão seja sólida». Ademais, fornece uma ideia bastante precisa das
espécies de animais que tal arma permitia enfrentar. Por outro lado, graças à etimologia, é
possível criar um laço concreto entre o vocábulo venator e o venábulo. O venator, que
participava activamente numa venatio, empregaria como arma principal o venabulum,

colina do Vaticano, inserindo uma venatio em cada cinco corridas (Divus Claudius, 21.2).

1733 Na realidade, o étimo venatio englobava originariamente a noção de carne de um animal caçado.

1734 R. Dunkle, Gladiators…, p. 78; Juvenal, 4.100-101.

1735 Cf. «uenator», in Daremberg e E. Saglio (eds.), Dictionnaire des Antiquités grecques et romaines, vol. IX, Paris, 1910, p. 710.

1736 La gladiature…, p. 336.

1737 G. Lafaye, «uenatio», in Daremberg e Saglio (eds.), Dictionnaire des Antiquités grecques et romaines, IX, p. 702, fig. 7371.

586
instrumento de base das caçadas que se efectuavam no meio natural. Marcial salientou
também a conexão entre os termos venator e venabula (Liber spect. 11). Apuleio faz o mesmo
género de aproximação entre as duas palavras (Metamorfoses, 11.8): «Outro, com a sua curta
clâmide, crépides e venábulos, transformou-se em caçador». Parece-nos então plausível
reservar as armas pesadas somente aos bestiarii.

Assim, o venator não possuía armamento defensivo e servia-se do venabulum (lança de haste
relativamente longa, para assestar estocadas) e da lancea (um leve dardo de arremesso), ao
passo que o bestiarius se assemelhava a um gladiador, estando provido de elmo, escudo e
gládio. O venator que actuava na arena envergava uma túnica similar ao seu homólogo que
caçava presas no meio natural, correndo atrás dos seus cães (fig. 5) 1738.

Embora os habitantes da península itálica caçassem animais, em geral de pequenas dimensões


mas, por vezes, de maior porte, como os javalis, eles não tinham experiência em lidarem com
os grandes e perigosos predadores que eram do Norte de África e de outras partes do Império.
Consequentemente, não causa estranheza que ao longo do primeiro século de existência da
venatio se tivessem importado, juntamente com as feras, caçadores oriundos das regiões de
onde elas procediam. Estes indivíduos estrangeiros achavam-se, com efeito, familiarizados com
a caça de grandes animais, designadamente leões, leopardos e elefantes. Em 93 a. C., por
exemplo, Sula apresentou uma venatio em que apareceram pela primeira vez na arena cem
leões oferecidos pelo rei Boco (Bocchus) da Mauritânia (correspondendo ao território do actual
Marrocos) 1739. Este soberano do Norte de África também enviou lançadores de dardos
auctótones, certamente por causa da sua perícia na caça destes animais na Mauritânia.

Por esta altura, na Itália, não existiriam caçadores que pudessem revelar-se hábeis ao
enfrentar animais tão poderosos. Lúcio Domício Aenobarbo, em 61 a. C., resolveu, por seu
turno, importar cem caçadores etíopes para lutarem com igual número de ursos da
Numídia1740. De idêntico modo agiu Pompeio, quando põs em cena uma venatio que envolvia
um grupo de vinte elefantes, recorrendo a experientes caçadores getulianos, vindos do Sul do
território da actual Argélia1741, para defrontar os paquidermes. Igualmente, quando se exibiram
pela primeira vez crocodilos em Roma, por volta do final do século I a. C. ou do início da
primeira centúria da era cristã, os répteis foram escoltados por caçadores oriundos da cidade
egípcia de Tentira (moderna Dendera), os quais supervisionavam a exposição dessas criaturas
na arena1742.

No entanto, esses caçadores, que tinham grande familiaridade com as suas presas, seriam
adquiridos também provavelmente para outra finalidade: o tratamento e alimentação dos
animais antes do espectáculo. No decurso do século I d. C., tornaram-se menos necessários
venatores estrangeiros, já que entretanto começou-se a desenvolver um grupo de caçadores
profissionais em solo itálico, os quais se obtinham nos mesmos «viveiros» que os destinados à
gladiatura e recebiam treino numa escola especializada para a luta contra grandes
predadores1743.

1738 Apuleio, Metamorphoses, IV.13. A importância do factor da rapidez para um caçador também explica que vestisse uma
túnica curta. Qualquer outra peça de roupa mais comprida obstaria à liberdade dos seus movimentos, ao correr pela floresta
adentro. Quando a presa já estivesse encurralada pelos cães, o caçador matava-a com uma das suas duas lanças.

1739 Séneca, Dial. 10.13.6. Até esta ocasião, os leões tinham-se apresentado na arena sempre acorrentados.

1740 Plínio-o-Velho, Naturalis Historia, 8.131.

1741 Ibidem, 8.20.

1742 Estrabão, Geog. 17.1.44.

587
Embora não haja elementos probatórios que tal o garantam, inicialmente os bestiarii podem
ter sido gladiadores que depois se vissem transferidos para participar nas venationes,
utilizando o mesmo género de protecções defensivas e um gládio (fig. 6). Aos olhos dos
Romanos, os gladiadores e os bestiarii estariam interligados. Certa vez, um político acusado de
apresentar ilegalmente um munus, defendeu-se alegando que os participantes no seu
espectáculo não eram gladiadores, mas bestiarii1744. Embora esse argumento se visse
nitidamente enfraquecido pela diferença óbvia que havia entre os jogos de gladiadores e uma
venatio, ele só teria algum sentido se existisse certas afinidades entre estes dois tipos de
combatentes da arena 1745. Cícero, ao reportar-se aos homens armados que escoltavam o seu
amigo Milão, alude em simultâneo a gladiadores e a bestiarii 1746. Numa passagem do Satyricon,
critica-se uns gladiadores ineptos que lutaram num espectáculo recente, sendo comparados
desfavoravelmente aos bestiarii, que se consideravam combatentes de categoria inferior,
menos hábeis na utilização do gládio1747. O bestiarius e o venator podiam aparecer juntos na
mesma venatio, como, aliás, se assinala na Fig. 6 (cena mostrando um bestiarius e um venator
a actuarem no Circo Máximo, Museo Nazionale Romano [inv. 62660], Roma).

M. Junkelmann entendeu que os bestiarii observáveis nas representações artísticas alusivas a


venationes, embora patenteando algumas afinidades com os gladiadores na sua panóplia,
corresponderiam apenas a um diferente tipo de venator, salientando ao mesmo tempo que o
caçador com forte equipamento defensivo desapareceu progressivamente das figurações
plásticas, ficando apenas o venator ligeiramente armado como o principal actor humano nos
eventos cinegéticos. Tal como a maioria dos estudiosos, o referido historiador alemão
identificou o bestiarius como um assistente do venator, estando o primeiro encarregado da
guarda e da manutenção dos animais no cativeiro, para além de os atiçar para lutar na
arena1748. No entanto, a visão que Junkelmann transmite peca, julgamos nós, por uma
simplificação excessiva.

Recentemente, Kevin Kazek 1749 colocou a seguinte questão: por que motivo o venator se
servia do venábulo ao passo que o bestiarius dispunha de armas pesadas? Talvez se tratasse,
simplesmente, de variar as modalidades de luta praticadas por um e outro, de especializar o
combate dos caçadores da arena. Seria, também, uma maneira de distinguir o venator,
«ligeiro», do bestiarius, «pesado», como se diferenciava o retiarius do secutor ou do
dimachaerus. A posição venator-bestiarius estabeleceu-se decerto a partir desta distinção, que
levou a adaptações «pan-hoplíticas». Efectivamente, para o corpo a corpo contra um animal
feroz, era claramente mais razoável que o caçador beneficiasse de um equipamento que o
protegesse adequadamente. Pelo contrário, o caçador munido do venabulum, com a haste
muito comprida, servia como meio de segurança que o colocava fora do alcance de cornadas,
dos ferimentos causados pelas garras das feras ou de mordeduras. Posto isto, o termo

1743Ulpiano, Digesto, 48.19.8.11.

1744 Cícero, Pro Sest. 135.

1745 R. Dunkle, Gladiators…, pp. 80-81.

1746 Q Fr. 2.5.3.

1747 45.11. Veja-se também Cícero, Vat. 40; Tertuliano, De anim. 57.5.

1748 «Familia Gladiatoria…», in E. Köhne e C. Ewigleben (eds.), The Power of Spectacle, p. 71.

1749«La Venatio – un univers méconnu de l’amphithéâtre», Les Gladiateurs/Histoire Antique & medievale, HS, nº 23 (avril 2010),
pp. 52-53 (48-55). Igualmente do mesmo autor, consulte-se: «Les chasseurs dans l’amphitéâtre les vrais héros de l’arène»,
L’Archéologue, nº 17 (sept.-oct.-nov. 2013), pp. 24-33

588
bestiarius aplicar-se-ia ao caçador que lutava com um forte aparato de armas defensivas e
ofensivas (gládio, escudo, elmo, couraça, machado).

O caçador com o venábulo, tal como o vemos numa peça de cerâmica em terra sigillata da
oficina de Luxeuil (fig. 6; c. 80-135 d. C. Musées de Metz) era, portanto, um venator: este
evitava o contacto directo, combatendo à distância o animal que tinha à sua frente. Uma
distância que podia ser de dois níveis - «terrestre», com a utilização do venabulum (neste caso,
homem e animal ficavam separados por apenas alguns centímetros de distância) ou «aérea»,
caso o venator arremessasse dardos. Esta diferenciação entre o bestiarius e o venator assenta,
evidentemente, no equipamento, mas as técnicas de combate são igualmente fundamentais
para se compreender esta oposição entre ambos os protagonistas da caça no anfiteatro. A
utilização destes dois vocábulos explica-se por uma originalidade que permitia dissociá-los, e
não mediante uma mera oposição social, como pensou G. Lafaye.

No entanto, ao longo do século II d. C., diluiram-se as diferenças na aparência entre os


venatores e os bestiarii, passando uns e outros a envergar uma espécie de «calções» até aos
joelhos e cinturões, afora faixas de couro a proteger as pernas e, por vezes, até utilizaram
pequenos peitorais decorados. Na centúria seguinte, o traje dos caçadores da arena viu-se
novamente reduzido à túnica.

Dispomos de muito menos menções às familiae de caçadores do que às gladiatórias, o que


não facilita o seu estudo. A iconografia é a nossa melhor documentação para captar o universo
dos venatores e dos bestiarii. Dois mosaicos da Tunísia dão-nos, assim, a conhecer várias
familiae venatoriae: o primeiro procede da villa de Magerius, em Smirat, a qual, como adiante
veremos, alude aos Telegenii, confraria que aparece igualmente referida noutras inscrições do
Norte de África, uma delas reportando-se a Cn. Lucius Abascantianus, apresentado como
venator telegionorum; em peças de terra sigillata do mesmo período encontra-se a expressão
Telegenii Nika (vitória dos Telegenii)1750, a qual por vezes surge encimada por um símbolo
composto por um crescente no topo de uma haste; noutras peças, observam-se três barras
horizontais situadas entre os dois cornos do crescente, ou duas barras verticais enquadrando a
haste, que assim forma o terceiro elemento. Presente, ainda, numa estela funerária de Timgad
(antiga Thamugadi), na Argélia, tal símbolo deve entender-se como a insígnia da familia dos
Telegenii, constituindo as três barras o seu número sagrado e apotropaico. No mosaico de
Smirat, figuraram-se duas divindades no meio dos caçadores: Diana e Liber Pater (Dionísio), o
qual arvora a insígnia dos Telegenii, pelo que se perfila como o deus tutelar desta familia
venatoria.

O segundo mosaico, citado na alínea dedicada à cena libera, conservado no Museu do Bardo,
ilustra a reunião festiva dos membros de cinco sodalites de caçadores da arena; cada um deles
é portador do símbolo da sua familia; reencontramos a haste com o crescente dos Telegenii,
exibida pelo homem posicionado na extremidade direita, que parece presidir ao banquete,
uma vez que todos estão virados para ele; serviçais dão-lhes de beber, mas um, com a mão na
boca, diz para que se faça menos barulho, para não acordar os touros que estão a dormir na
parte inferior da composição: o animal da direita tem uma marca bem visível na garupa,
representando um caçador ou um gladiador (o que leva a supor que os animais das arenas
seriam marcados com um ferro em brasa, como as cabeças de gado hoje em dia). Alicerçando-
nos em diversas fontes, é possível identificarmos as insígnias e entidades protectoras de sete
familiae venatoriae africanas1751:

1750 F. Gilbert, Devenir gladiateur…, pp. 11-12.

1751 Ao todo, crê-se que nesta região terão existido umas trinta sodalites de venatores.

589
Nome de familia Emblema Número Divindade tutelar

Taurisci folhas de hera II Dionísio (?)

Telegenii crescente sobre uma haste III Dionísio

Sinematii S III Demeter (?)

Leontii talo de milho IIII Vénus

Pentasii coroa de quatro pontas IIIII Dominae

Decasii ? X ?

Egregii crescente sobre uma haste XIII Dionísio

É provável que estes emblemas (talvez oficializadas numa data tardia) se arvorassem nas
procissões inaugurais dos jogos. Não conhecemos insígnias equivalentes género para as
corporações gladiatórias, mas, como vimos, tinham igualmente divindades padroeiras, como
Marte, Hércules, Némesis, etc.

De entre os numerosos testemunhos plásticos que sobreviveram das caçadas na arena,


detenhamo-nos um pouco sobre o referido grande mosaico da residência de Magerius, em
Smirat (Tunísia), elaborado em meados do século III da nossa era e que se conserva no Museu
de Sousse 1752. Esta composição, de elevada qualidade e rara originalidade, apresenta a
vantagem de possuir legendas escritas que nos ajudam a seguir e compreender o desenrolar
do espectáculo. As imagens que despertam logo a nossa atenção são os quatro venatores
(cujos nomes se evocam: Spittara, Bullarius, Hilarinus e Mamertinus) que, trajando túnicas
curtas ornamentadas e usando faixas de couro nas pernas, desferem lançadas contra igual
número de leopardos (também individualmente nomeados). Aos confrontos assistem duas
divindades, Diana e Baco, como atrás dissemos. O último foi representado com a aparência de
um jovem adulto, que pega na haste sobrepujada pelo crescente 1753 que consiste na insígnia da
corporação dos Telegenii, uma familia venatoria de grande reputação e prestígio no Norte de
África. As lutas encontram-se já na sua fase final, estando os felinos (todos igualmente
nomeados) já feridos e a perderem sangue. No centro do mosaico está um minister segurando
uma bandeja com quatro sacos de dinheiro, cada um marcado com o signo ∞, que
corresponde a 1000 denarii. As inscrições que ladeiam esta figura fazem com que o mosaico
«fale» e ganhe vida:

(a) À esquerda do homem com a bandeja lê-se:


Mageri, Mageri / Per curionem/ dictum ‘domi/ni mei ut / Telegeni(i) /pro leopardo/meritum ha/beant
vestri/favoris dona/te eis denarios/quingentos’

Tradução:
«Proclamado pelo arauto (curio): ‘Meus senhores, dado que os Telegenii ganharam o vosso favor, dai-lhes 500
denários por cada leopardo»;

1752 M. A. Beschaouch, «La mosaïque de chasse à l’amphithéâtre découvert à Smirat en Tunisie», CRAI (1966), pp. 134-157; K.
M. D. Dunbabin, The Mosaics of Roman North Africa, pp. 67-69, est. 52-53; G. G. Fagan, The Lure of the Arena: Social Psychology
and the Crowd at the Roman Games, Cambridge, 2011, pp. 128-132.

1753 Embora aqui se trate de um símbolo, esta haste era um instrumento utilizado para apanhar animais pelo pescoço.

590
(b) À direita do mesmo homem:
adclamatum est / ‘exemplo tuo, um/nus sic discant / futuri audiant /praeterit unde / tale quando tale/
exemplo quaesto/rum munus edes / e de re tua mu/nus edes/ (i)sta dies’ / Magerius do/nat ‘hoc est habe/re
hoc est posse / hoc est ia(m) nox est / ia(m) munere tuo / saccis missos’.

Tradução:
«[Como resposta deu-se a aclamação: ‘Que as gerações futuras saibam do teu munus, porque és um exemplo para
elas! Que as gerações passadas [também] ouçam falar disso. Quem [ofereceu] tais [jogos]? Quanto [se
apresentaram] semelhantes [jogos]? Através do exemplo dos pretores dás o munus. Do teu dinheiro darás o munus
neste dia’. Magerius dá. ‘Isto é ter [riqueza]!; isto é poder!’ Tudo acabou, já é noite. Do teu munus eles partem com
estes sacos [com dinheiro]».

Estas inscrições revelam-se preciosas, uma vez que mostram o relevante papel que o público
desempenhava nos espectáculos. Os espectadores aclamaram um tal Magerius para que
financiasse um munus, apresentando-o como editor, que ainda não era. Por antecipação, o
último é qualificado de inigualado e inigualável, e único, ou seja, o único a seguir o exemplo
dos questores em Roma. Assim, Magerius viu-se pomposamente comparado a um magistrado
da Urbs. Ao tempo, este género de adulação seria corrente nos anfiteatros, como o indicam
outras fontes epigráficas, designadamente o mosaico de El-Djem, no qual se louva um
munerarius: «Eis o que só vós podeis [fazer]!» (Haec vos soli). Noutro testemunho, procedente
de Cartago, lemos mel(ior) quaestura, o que significa que o munus em questão se encara como
superior ao oferecido pelo questor na capital do império.

Tornemos a Magerius. Inicialmente, o seu título de munerarius consistia apenas numa


bajulação do público, mas o indivíduo acaba por ceder e desembolsa o dobro da soma pedida,
desempenhando perfeitamente a sua esperada função enquanto evergeta municipal: no
mosaico vemos quatro sacos, cada um com 1000 denarii, postos numa bandeja exibida por um
personagem vestindo uma comprida túnica provida de duas faixas verticais; pela posição que
ocupa, este homem simboliza, na realidade, a munificência do editor, o verdadeiro tema da
composição. Num mosaico de Antioquía, esta generosidade representou-se sob a forma de
uma mulher que lança moedas de ouro, figurada no medalhão central. Só após distribuir o
dinheiro é que Magerius gratificou o favor populi.

***

Séneca refere-se por duas vezes a um ludus bestiariorum (centro de formação para os
caçadores de feras), o que parece indicar que em meados do século I d. C. os bestiarii ainda
seriam treinados como combatentes profissionais de animais, mas é possível que se trate de
uma designação popular, reflectindo velhos hábitos, para o nome oficial da escola – Ludus
Matutinus1754. A denominação empregue no Digesta de Justiniano traduz, provavelmente de
maneira mais rigorosa, o carácter da escola dos combatentes de animais ao longo da época
imperial – ludus venatorius (escola para venatores)1755. Por esta altura, o vocábulo bestiarius
reportava-se primariamente a alguém condenado às feras, ad bestias1756.

Com efeito, o termo adequava-se aos indivíduos sentenciados a essa modalidade de pena
capital, já que ocasionalmente lhes forneciam armas (mas não armamento defensivo) para
lutarem contra os animais ou, então, teriam de enfrentá-los desarmados. Sabemos que, em 65
1754 Ep. 70.20; 22.

1755 Ulpiano, Digesto, 48.19.8.11.

1756R. Auguet, Cruaté et civilisation…, pp. 87-91.

591
a. C., Júlio César ordenou que se distribuíssem armas revestidas de prata por condenados
arrojados às feras 1757. Se bem que essa folha de prata conferisse um aspecto mais vistoso e
reluzente às armas, de nada servia para lhes imprimir maior eficácia. Refira-se, aliás, que as
armas habitualmente entregues aos noxii nem sequer tinham suficiente valor enquanto
instrumentos de combate. Um dos objectivos pretendidos com este tipo de condenação era o
de converter a execução num fenómeno mais divertido para os espectadores, mas sem jamais
se alterar o seu inexorável desfecho, a morte do noxius.

Ao discorrer sobre o interesse doentio que o imperador Cláudio nutria pelos eventos da
arena, Suetónio relacionou estreitamente os bestiarii aos meridiani, «os do meio-dia»,
deixando entrever que os bestiarii seriam as vítimas lançadas às feras durante a venatio,
enquanto os meridiani corresponderiam aos noxii que seriam supliciados de outras formas no
espectáculo do meio-dia, que se seguia imediatamente à venatio, que se desenrolava ao longo
da manhã 1758. Num excerto de Séneca, mostra-se mais explicitamente o bestiarius como um
homem que se atirava aos animais selvagens: certo dia, na arena, um leão reconheceu o seu
antigo domador entre diversos bestiarii e terá chegado a salvá-lo dos outros felinos que se
encontravam igualmente na pista1759. Se nos ativermos a este caso pontual, ficamos com a
impressão de que os bestiarii se resumiam praticamente a vítimas indefesas, não sendo
combatentes profissionais de animais. Segundo um testemunho mais tardio, Tertuliano refere-
se ao bestiarius como sendo um «homem mau», isto é, um noxius condenado à morte na
arena1760.

Conquanto que o termo venatio se relacionasse basicamente com as lutas entre homens e
animais, a palavra abrangia, na realidade, uma série de outros eventos associados: animais
lutando entre si, exibição de criaturas exóticas (vistas pela primeira vez em Roma) e a
apresentação de malabarices feitas por animais amestrados, para além, obviamente, das
execuções dos noxii. Várias das cenas dos famosos mosaicos de Zliten proporcionam evidências
plásticas sobre estes eventos que se desenrolavam durante as venationes. Em certas ocasiões,
os condenados às feras viam-se amarrados a um poste fincado no solo, numa plataforma ou,
mesmo, num carro equestre em miniatura provido de rodas (fig. 7); as vítimas não tinham
escapatória possível, já que atrás delas encontravam-se diversos ministri (fig. 8). Outra maneira
de forçar os damnati a enfrentarem os animais era chicoteando-os nas costas, técnica por
vezes também usada contra gladiadores que se mostrassem relutantes em combater 1761.

As lutas entre grandes animais eram uma das principais atracções da venatio. Séneca conta-
nos que frequentemente se prendiam aos pares touros e ursos e, quando um deles saía
vencedor, o outro, caso não estivesse morto, era despachado por um confector («O que
acaba»), cuja tarefa consistia precisamente em matar os animais que já se encontrassem
gravamente feridos 1762. Refira-se que o animal vencedor poderia ainda voltar a lutar noutro
dia, dependendo da sua condição física.

1757 Plínio-o-Velho, Nat. Hist. 33.53.

1758 Cláudius, 34.2.

1759 Ben. 2.19.1.

1760 Apol. 9.5; 42.5.

1761 Com efeito, também se utilizavam látegos e archotes para forçar os gladiadores mais relutantes a lutarem, embora
provavelmente consistiriam em combatentes de segunda categoria.

1762 Dial. 5.43.2.

592
Na fig. 9 vemos um urso e um touro presos um ao outro e, também, no canto inferior
esquerdo da composição, um onagro ferido. Neste caso, duas correntes atadas a uma argola
metálica ligavam ambos os animais, acabando estes por se enfurecerem devido à sua
incapacidade para se libertarem. Na cena está um noxius, a quem lhe cabe a tarefa nada
invejável de separar, servindo-se para o efeito de um bastão com a extremidade superior curva,
as duas criaturas no calor da contenda. Muito possivelmente, um ou mesmo os dois animais
acabariam por se ver provocados pela proximidade desse homem. Na imagem, capta-se bem o
medo que o noxius sente ao tentar exercer a sua função: coloca-se com as pernas bem abertas
e o corpo inclinado, de maneira a manter-se à maior distância possível dos animais, ao mesmo
tempo que procura apartá-los1763.

Na realidade, os animais selvagens na arena tinham de ser muitas vezes atiçados a lutarem
uns contra os outros ou, alternativamente, contra oponentes humanos. Com efeito, as feras
revelavam-se amiúde passivas e confusas quando eram subitamente lançadas de um
compartimento subterrâneo, na penumbra, para a arena, banhada pelo sol e rodeada por
milhares de espectadores ruidosos. Um dos métodos empregues para conduzir os animais a
reagirem era o de lhes atirarem bonecos feitos de palha. No entanto, outros animais não
precisavam de grande incentivo para ter comportamentos agressivos. O poeta Marcial relata
que certa vez um rinoceronte com «mau génio» arrumou um touro como se fosse uma criatura
insignificante, além de um tigre-fêmea que despedaçou um leão, um elefante que aniquilou
um touro com as suas presas ou, ainda, de outro rinoceronte que arrojou um touro pelo ar 1764.

Outra modalidade na venatio traduzia-se na perseguição e subsequente morte de veados ou


javalis por matilhas de cães (fig. 10). Ovídio refere-se a esta modalidade, através de uma símile,
deixando implícito que se tratavasse de uma característica corrente da venatio: «...tal como o
veado, prestes a morrer na areia da manhã, é presa de cães» 1765. Facilmente se intui que «areia
da manhã» constituiu uma clara menção à venatio, que se desenrolava antes do meio-dia. Os
cães agiam em concerto com um homem, caçador, à semelhança do que se faria numa
actividade cinegética no meio natural. Note-se que alguns destes canídeos ganharam fama
pelas suas proezas na arena. No século IV d. C., sete cães da Caledónia (actual Escócia), que
participaram numa venatio oferecida pelo filho de Símaco, o prefeito de Roma, gozaram de
especial predilecção por parte da multidão da Urbs1766. Num epitáfio composto em honra de
uma cadela da arena, o poeta Marcial coloca na boca do animal um discurso sobre o treino que
recebera dos seus donos e tratadores do anfiteatro e da sua nobre morte ao enfrentar um
grande javali1767.

Na fig. 10, vemos um animal amestrado a efectuar malabarices: um javali, que se senta sobre
os quartos traseiros, enquanto o seu domador, talvez um anão, está prestes a atirar-lhe uma
maçã (na dobra da sua túnica, o indivíduo tem mais frutos de reserva). A propósito desta cena,
Salvatore Aurigemma viu nos movimentos desajeitados deste ungulado uma nota cómica no
meio da sangrenta tragédia que habitualmente tinha lugar no anfiteatro 1768.
1763 Salvatore Aurigemma, I Mosaici di Zliten, Roma, 1926, p. 188.

1764Sat. 14.53; Liber Spect. 11; 21; 22. A numeração aqui apresentada dos poemas no Liber Spectaculorum obedece à que D. R.
Shackleton Bailey estabeleceu no primeiro volume da sua tradução dos escritos de Marcial publicado na conhecida colecção da
Loeb Classical Library (Cambridge, MA, 1993).

1765Ovídio, Met. 11.25-27.

1766 Símaco, Ep. 2.77.

1767 11.69.

1768 I Mosaici…, p. 186, 188.

593
Mencionemos também a arriscada «disciplina» dos taurocentae, que participavam numa
espécie de rodeos, consistindo na perseguição de touros a cavalo. Suetónio deixou-nos um
testemunho a este respeito, ao reportar-se aos jogos oferecidos pelo imperador Cláudio,
precisando o biógrafo que os cavaleiros eram da Tessália (Cláudio, 21); Dião Cássio, por seu
lado, comentou um espectáculo dado por Nero (61.9). Suetónio acrescentou que os cavaleiros
saltavam para o dorso dos touros quando estes já se encontravam fatigados e, de seguida,
agarravam-nos pelos cornos para os fazer cair por terra. Esta modalidade, que ao tempo se
designava pela palavra grega taurokathapsia, era já muito conhecida e praticada desde a mais
alta Antiguidade no Mediterrâneo Oriental, nomeadamente na Creta minóica e na Grécia
continental. Assim, a referência suetoniana à origem tessálica dos participantes não significa
um detalhe anódino, já que se tratava de verdadeiros especialistas de uma tradição local, facto
confirmado por Plínio-o-Velho: «São os Tessálios que encontraram a maneira de matar os
touros, ao aproximarem-se deles a partir de um cavalo a galope e depois torcendo-lhes os
cornos. O dictator César foi o primeiro a apresentar este tipo de espectáculo em Roma»
(Naturalis Historia, 8.70).Como atrás vimos em relação aos venatores gétulos e etíopes, os
Romanos não hesitavam em fazer vir, dos quatro cantos do seu império, caçadores ou atletas
especializados para introduzirem nos seus jogos novas e agradáveis distracções. Sobreviveram
diversas fontes iconográficas que nos descrevem estas tauromaquias peculiares, que
terminavam com a execução do animal: um baixo-relevo conservado no Ashmolean Museum
de Oxford (fig. gilbert, p. 90), talvez procedente da antiga cidade de Smyrna, ilustra esta
«disciplina», com cinco cavaleiros representados em diferentes momentos da sua actuação.

Noutra escultura bidimensional, da antiga Hierápolis (actual Pamukkale, Turquia), observa-se


também uma taurokathapsia figurada em dois painéis – no primeiro, um cavaleiro galopa ao
lado do touro e, inclinado a partir da sua montada, agarra a cabeça do animal; no segundo
painel vê-se o touro já derrubado com as patas para cima, estando o homem a segurá-lo
vigorosamente pelos cornos, enquanto o seu cavalo fica à espera, situado no pano de fundo.
Outro relevo ainda, de Malkara, pertencente ao espólio do Museu de Istambul, mostra-nos
uma etapa intermediária entre as duas cenas acima referidas: o cavaleiro, já desmontado,
agarrou os cornos do touro, mas não conseguiu controlá-lo, já que o animal continua a
movimentar-se1769.

Além da usufruição da violência, neste género de espectáculo os Romanos sentiam


igualmente um misto de curiosidade e fascínio pelos espécimes que contemplavam na arena.
Até à aparição da venatio em Roma, a população urbana tinha poucas oportunidades para
observar animais selvagens, mesmo no resto do território itálico. Na cidade de Roma não
existiam instalações destinadas a manter animais ferozes em jaulas, como os modernos jardins
ou parques zoológicos. Nos derradeiros tempos da República, ricos patrícios, como o famoso
erudito M. Terêncio Varrão ou o grande orador Q. Hortêncio Hórtalo criaram vivaria privados,
onde reuniam lebres, veados, ovelhas, javalis, cabras e outros quadrúpedes. Mantinham-se
estes animais em cativeiro com um duplo propósito: para exibi-los e entretê-los junto de
convidados e, naturalmente, para o consumo da sua carne 1770.

O vivarium de Nero, instalado no jardim da grandiosa Domus Aurea consistiu, aparentemente,


numa versão em muito maior escala desses vivaria particulares em finais da época republicana.
Suetónio diz-nos, sem entrar em grandes detalhes, que esse vivarium compreendia «um

1769 F. Gilbert, Gladiateurs, chasseurs et condamnés à mort…, pp. 90-91.

1770 Varrão, Rust. 3.13.1-3. Os convidados que iam jantar à residência de Hortênsio podiam desfrutar da visão do parque
zoológico privado do seu anfitrião e deleitavam-se a obser um serviçal, que desempenhava o papel de Orfeu, a chamar os animais
ao fazer ressoar o seu cornu. Os membros da elite romana também gostavam de possuir tanques ou lagos artificiais com peixes e
aviários.

594
elevado número de rebanhos e manadas, e de feras selvagens» 1771. No entanto, o único
«viveiro» que talvez se tenha aproximado efectivamente do tamanho e diversidade de espécies
de fauna assinaláveis nos jardins zoológicos actuais foi, ao que julgamos, o mantido pelo
imperador Gordiano III (238-244 d. C.). Os animais aí guardados serviam para divertir o público,
mas não se tratava de um zoo: Gordiano tencionava apresentar tais animais na arena, aquando
da comemoração de uma vitória sobre a Pérsia; no entanto, o imperador veio a morrer antes
desse espectáculo projectado, pelo que o seu vivarium passou para as mãos do seu sucessor,
Filipe-o-Árabe, que utilizou os espécimes numa venatio que celebrou o milénio de Roma em
248 d. C. Embora alguns dos animais tenham sido simplesmente exibidos ao público no
anfiteatro, a maioria deles veio a perecer na arena, em sequência de várias caçadas
encenadas1772.

As venationes proporcionavam aos Romanos uma ideia mais ou menos concreta e sugestiva
das dimensões do seu território imperial, do qual provinham grandes feras para a arena,
transmitindo-lhes uma sensação de dominação sobre a natureza 1773. Manifesta-se a última
vertente num comentário tecido pelo geógrafo Estrabão, reportando-se à gratidão das
populações nómadas do Norte de África para com os caçadores romanos, que capturaram
numerosos animais selvagens nessa ampla região para as venationes. Ora este fenómeno
permitia aos auctótones ganhar mais controlo da área e dedicarem-se à vida mais sedentária
enquanto agricultores1774. Os Romanos mostraram-se tão eficazes na captura e escoamento de
animais que, em algumas zonas, houve espécies que, pura e simplesmente, se extinguiram. Um
orador do século IV d. C., expressou, aliás, o seu lamento pelo facto de terem desaparecido os
elefantes da Líbia, os leões da Tessália e os hipopótamos das margens do Nilo 1775.

Os Romanos não resistiram à tentativa de aplicar métodos artificiais para domesticar os


animais, uma vez capturados e transportados para solo itálico. Séneca, todavia, comentou
quão deplorável era ver o aspecto de um leão amestrado, preferindo contemplá-lo com todo o
seu espírito inquebrantável e selvagem1776. Numa venatio oferecida por Gordiano I aquando da
sua edilidade (antes, naturalmente, de se tornar imperador), apresentaram-se ao público numa
só ocasião trezentas avestruzes da Mauritânia pintadas com vermelhão 1777.Os espectadores
também sentiam grande fascínio perante o comportamento evidenciado pelos animais
selvagens, tanto a lutarem como a fazerem habilidades. Algumas criaturas demonstravam
praticamente serem dotadas de inteligência, o que impressionava o público, por revelarem
atitudes que muito se aproximavam às dos seres humanos 1778. A venatio, sublinhe-se,

1771 Nero, 31.1.

1772 História Augusta/SHA, Os Três Gordianos (Júlio Capitolino), 33.1. Procópio menciona a existência de um vivarium em Roma,
situado mesmo no exterior da Porta Prenestina (De bell 5.22.10). Os animais eram mantidos nesta zona, tratados e treinados por
magistri (treinadores) até, por fim, se verem transportados para o anfiteatro (CIL VI.130).

1773 T. Wiedemann (Emperors and Gladiators, p. 64) afirmou que «num mundo pré-industrial qualquer sinal de controlo sobre a
natureza é reconfortante para a sociedade em geral».

1774Geogr. 2.5.33. Um poema na Anthologia Palatina (7.626) diz-nos praticamente o mesmo. Veja-se J. C. Edmondson, «Dynamic
Arenas…», p. 72-73.

1775 Temist., De pace, 140.2-4.

1776 Ep. 41.6.

1777 Historia Augusta/SHA, Os Três Gordianos, 3.7.

1778 O naturalista Plínio-o-Velho sustentou entusiasticamente esta ideia relativamente aos elefantes, considerando que a
capacidade intelectual e emocional destes paquidermes era a mais próxima que estava dos seres humanos. Contudo, para suportar
a sua teoria, Plínio incorreu em manifesto antropomorfismo ao aludir às tendências religiosas dos elefantes (Nat. Hist. 8.1).

595
manifesta mais outro dos paradoxos do carácter romano: o facto de os «filhos de Marte»
apreciarem a beleza, a força e algo de semelhante à inteligência nos animais selvagens,
contrasta com a opinião dos mesmíssimos romanos de que era normal e admirável massacrá-
los por simples prazer e entretenimento1779.

Os organizadores das venationes orgulhavam-se da grande quantidade de animais que


reuniam e mandavam chacinar nos seus espectáculos, isto com o claro intento de satisfazerem
o público. Na sua Res gestae, Augusto vangloria-se de haver oferecido ao longo do seu reinado
26 venationes sumptuosas, nas quais 3 500 animais foram mortos. Realçou ainda que todos
eram animais africanos, querendo com isto dizer que tivera de gastar avultadas quantias de
dinheiro para obter grandes predadores exóticos como leões ou leopardos, e não animais
locais, tais como javalis, lebres ou veados 1780. Mais tarde, Tito, nos espectáculos da inauguração
oficial do Anfiteatro Flávio e das suas Termas em 80 d. C., conseguiu ultrapassar o «recorde» de
Augusto, morrendo 9 000 animais sob a sua égide; em começos do século II d. C., Trajano ainda
foi mais longe, ao celebrar a sua vitória sobre os Dácios, apresentando magnificentes
espectáculos durante 123 dias, em que foram massacrados 11 000 animais 1781.

Preservou-se um relato circunstanciado de uma venatio que se desenrolou já no Império


Tardio, que se encontra exarado na carta do soberano ostrogodo de Itália, Teodorico (493-526
d. C.), endereçada ao cônsul Máximo, escrita pelo punho do secretário do primeiro, Cassiodoro
1782
. Na falta de descrições similares mais antigas, essa narração assume acrescido valor
enquanto prova representativa de como era a venatio no último estádio da sua história. Na
venatio em questão, não se discorre sobre o massacre de animais. Ainda assim, numa parcela
anterior da missiva, menciona-se o terrível destino que os caçadores da arena poderiam ter
quando confrontados com feras selvagens:

«E se o [caçador] não é suficientemente hábil a escapar de um animal selvagem, ele não terá
possibilidade de um sepultamento adequado; com o homem ainda vivo, o seu corpo vai perecendo e,
antes que se possa dispor do seu corpo, ele é selvaticmente devorado. Cativo, torna-se em comida para
o seu antagonista e sacia o apetite daquele que ele desejaria ser capaz de matar […]. O espectáculo […],
à medida que decorre, é horrível, num grau verdadeiramente inimaginável» 1783.

Aparentemente, as venationes dos derradeiros tempos do Império valorizavam bastante as


acrobacias. A referida carta centra-se, efectivamente, nas perigosas atitudes acrobáticas
levadas a cabo por venatores na arena. Traduziam-se em manobras que os caçadores faziam
para enganarem ou desviarem-se dos animais de maneira airosa e atraente aos olhos do
público, o que frequentemente deixava as feras enraivecidas. Com efeito, se os animais se
mostrassem demasiado alheados ou letárgicos proporcionavam uma venatio monótona. Eis o
relato de Cassiodoro:

«Primeiro, fiando-se numa frágil haste de madeira, um caçador corre para enfrentar as feras e, na
realidade, ele pretende escapar a esse choque; ele parece buscar uma grande arremetida e, tanto o
predador como a presa agem num ritmo igual, de outra forma [o venator] não pode achar-se em

1779 J. M. C. Toynbee, Animals in Roman Life and Art, Ithaca/Nova Iorque, 1973, p. 21.

1780 Cf. 4.40.

1781 Díon Cássio, Hist. rom. 66.25.1; 68.15.1.

1782 Teodorico contou com a ajuda de Cassiodoro para escrever as suas cartas num latim refinado. É impossível saber onde
«termina» Teodorico e «começa» Cassiodoro nestes comentários sobre a venatio, mas, em princípio, como ambos eram cristãos,
deveriam estar de acordo sobre este assunto. Consulte-se J. O’Donnel, Cassiodorus, Berkeley/CA, 1979, p. 96.

1783 Cassiodoro, Variae, 5.42.2. Teodorico expressa desagrado face à venatio mas jamais põe em causa o valor político deste tipo
de espectáculo.

596
segurança, a não ser que invista contra aquilo que deseja evitar. Depois, com um grande salto no ar, os
seus membros dobrados em supinação, veêm-se lançados como a mais leve peça de tecido, e o animal
passa rapidamente por baixo, antes de o corpo [do caçador] descer. Acontece então que o animal assim
enganado pode aparentar mais mansidão. Outro caçador, aproveitando-se dos quatro painéis que giram
à volta de um poste central, ao ficar perto do seu oponente, escapa-se, não fugindo a correr, nem tão
quanto se colocando a uma determinada distância, mas segue antes o seu perseguidor, pondo-se
próximo deste numa corrida, a fim de evitar as bocas dos ursos. Outro homem estica-se sobre o seu
estômago numa barra a baixa altura, ao mesmo tempo que provoca uma fera mortífera, e, caso não
assuma riscos, irá sobreviver. Outro indivíduo, opondo-se a um animal muito bravio, protege-se com
uma espécie de muro portátil de junco, à maneira de um ouriço-cacheiro que, de súbito, indo para a
parte traseira […] se esconde e embora não tenha desaparecido, o seu pequeno corpo torna-se invisível.
Pois que tal como o ouriço-cacheiro, quando sente que o perigo se aproxima, se enrola numa bola que é
defendida por espinhos naturais, o homem, protegido por essa defesa de vime bem atado, vê-se mais
fortalecido pelo frágil junco. Na arena, outros homens, situados, por assim dizer, atrás de três pequenas
portas, atrevem-se a atiçar animais selvagens que estão à sua espera, escondendo-se no interior destas
portas gradeadas, ora mostrando os seus rostos, ora exibindo as suas costas, pelo que é quase um
milagre que eles, que vós vedes assim a correr velozmente por entre as mandíbulas e os dentes de leões,
consigam escapar. Outro homem, ainda, acerca-se de feras selvagens numa roda giratória: outro coloca-
se no cimo da roda, de forma a ficar fora de perigo. Assim, esta roda, assemelhando-se a um mundo
traiçoeiro, refresca um com esperança, ao passo que tortura outro com medo; no entanto, esta roda
sorri a todos, mas na medida em que possa enganá-los»1784.

Um dos dispositivos citados neste trecho merece comentários adicionais: os quatro painéis
que giravam em torno de um poste central lembram a cochlea (var. coclia, coclea), que, no
século I d. C., Varrão afirmou ser empregue na arena quando touros lutavam contra homens ou
outros grandes animais1785. Foi descrita como correspondendo a uma jaula circular, aberta num
dos seus lados, que servia para largar animais na arena. O mecanismo rodava num eixo, daí
que, ao girar, soltava apenas uma criatura de cada vez para o recinto 1786.

No tempo de Teodorico, contudo, a cochlea parece ter sido utilizada pelos venatores com um
objectivo diferente, o de espicaçar os animais, encontrando-se os homens protegidos das suas
acometidas. Este género de «aparelho» seria,um pouco, como as actuais portas giratórias,
provido de quatro painéis ligados a um poste central, mas não fechado. O caçador podia
desconcertar o animal que o perseguia ao posicionar-se entre dois painéis e empurrando o que
estava à sua frente, o que fazia logo que o dispositivo girasse. Isto explica o emprego de um
oxímoro (combinação de palavras de significado contraditório) na dita carta, traduzindo a ideia
do venator seguindo o seu perseguidor 1787. Cassiodoro afirma que tal mecanismo se usava para
ursos, mas que também se mostrava útil em relação a outros grandes predadores, como os
leões,por exemplo, facto, aliás, que se confirma numa cena representada na secção inferior do
díptico de Anastásio, que foi cônsul em 517 d. C1788.

Quanto à prática de saltos à vara, não carece de grandes esclarecimentos, embora caiba
acrescentar que esta técnica também era popular na Grécia e no Oriente helenístico, como
queda demonstrado através do seguinte poema incluído na Antologia Grega:

1784 Variae, 5.42.6-10. A frase «quatro painéis que giram em torno de um poste central» é uma simplificação nossa da vaga
descrição feita por Cassiodoro deste dispositivo. S. J. B. Barnish (The Variae of Magnus Aurelius Cassiodorus Senator, Liverpool,
1992, p. 92) apresenta uma tradução mais literal: «angled screens, fitted in a rotating four part apparatus».

1785 Rust. 3.5.

1786 «Cochlea» in W. Smith, A Dictionary of Greek and Roman Antiquities, Londres, 1875 (consultável na internet:
http://penelope.uchicago.edu/Thayer/E/Roman/Texts/secondary/SMIGRA/home.html.)

1787 R. Dunkle, Gladiators, p. 89.

1788 Variae, 9.533.

597
«Um homem colocou uma vara no solo e lançou o seu corpo pelo ar […]. Ao haver provocado o animal
em baixo com o seu salto, ele aterrou com pés ligeiros. [O animal] não o apanhou. A multidão soltou um
enorme brado e o homem escapou»1789.

No que respeita ao dispositivo do «ouriço-cacheiro», devia consistir, grosso modo, numa


esfera de vime suficientemente grande para albergar um homem no seu interior, a qual possuía
espinhos salientes para desencorajar os animais de a despedaçarem e depois conseguirem
apanhar os adversários humanos. Os espectadores apreciavam, sem dúvida, assistir à cena de
criaturas de grande porte empurrarem furiosamente esta «bola» na arena 1790. Quanto aos dois
homens e à roda giratória, tratava-se de um processo através do qual ficava exposto aquele
que estivesse mais perto do solo, ao mesmo tempo que permitia que o outro indivíduo ficasse
fora do alcance das feras.

Em relação ao homem estendido de barriga para baixo sobre uma barra a baixa altura, devia
consistir decerto num acrobata especializada a manter-se habilmente inatingível face aos
ataques das feras. Como a descrição de Cassiodoro sugere, as três portas gradeadas, quando os
homens se postavam junto às mesmas, abertas, serviria para provocar os animais e, quando
eles fugiam das bestiae, fechavam-se, permanecendo num abrigo relativamente seguro. Lemos
que as portas gradeadas se localizavam numa «área a céu aberto», o que pode significar que se
encontrariam situadas no muro em redor da arena, ou então numa estrutura autónoma feita
de madeira, mesmo defronte do podium1791.

Em mosaicos do Norte de África, observam-se homens ao pé de portas, agitando panos ou


lenços ou a gesticular com as mãos para atrair a atenção das feras e atiçá-las 1792. Houve quem
tenha sustentado que tais acrobacias se traduziriam somente em combates simulados, talvez
para evitar causar danos em animais que tinham sido muito dispendiosos na sua aquisição,
embora, em paralelo, se punha em risco a vida dos participantes humanos 1793.

No entanto, o díptico de marfim de Areobindus (506 d. C.) parece indicar que a matança de
animais seria ainda a principal característica da venatio no início do século VI 1794. Se bem que a
venatio funcionasse como prelúdio aos combates gladiatórios durante grande parte da sua
história, ela veio a durar mais tempo do que os munera propriamente ditos, cerca de três
quartos de século.

Meridianum spectaculum: o espectáculo do meio-dia

1789 G. Jennison, Animals for Show and Pleasure in Ancient Rome, Manchester, 1937, p. 180.

1790 Ibidem.

1791Isto lembra-nos, quase de imediato, as duas barreiras de madeira, os burladeros, situados nas extremidades opostas da
arena nas modernas corridas de touros, onde os toureiros momentaneamente se resguardam. Veja-se Terin Tashi Miller, «On
Bullfighting»: http://www.lostgeneration.com/article 6.htm)

1792 K. Dunbabin, Mosaics…, p. 76, est. XXVI.65 (Khanguet el-Hadjaj), em que um homem, saindo de uma porta, parece tentar
captar a atenção dos animais, os quais são depois apanhados com o laço por outro indivíduo que se encontra por perto. Outro
género de «atiçador» de animais na arena era o arborarius, que primeiro provocava e depois se refugiava numa árvore: L. Robert
sugeriu que estes indivíduos actuariam juntamente com ursos, para assim a exibição comportar mais risco, uma vez que os
plantígrados, como é sabido, também sobem às árvores (cf. Les gladiateurs, p. 327).

1793 A. Chastagnol, Le Sénat romain sous le règne d’Odoacre: recherches sur l’epigraphie du Colisée au Ve siècle, Bona, 1966, pp.
20-22.

1794 P. Brown, The World of Late Antiquity AD 150-750, Londres, 1973, fig. 98; A. Cameron, Porphirius the Charioteer, Oxford,
1973, pp. 228-229; B. Ward-Perkins, From Classical Antiquity to the Middle Ages, p. 114.

598
Ao longo do primeiro século e meio de munera gladiatórios, o espectáculo principiava de
manhã cedo e continuava pelo dia fora sem interrupções. A partir de 61 a. C., introduziu-se um
intervalo para o almoço, altura em que a maioria dos espectadores abandonava
provisoriamente o anfiteatro, costume que vigorou até, pelo menos, ao século III d. C 1795.
Afinal, o estar sentado uma série de horas seguidas (sete ou oito horas) significava um teste ao
limite da resistência humana, fosse qual fosse a popularidade do entretenimento em causa.
Ainda assim, havia pessoas que preferiam manter-se nos seus lugares no decurso desse
intervalo por vários motivos (talvez pelo simples receio de os perderem caso se ausentassem).

Em dada altura, no reinado de Calígula ou no do seu sucessor, Cláudio, começou a ter lugar
uma «diversão», inspirada pela popularidade das execuções ad bestias que ocorriam na
venatio matinal, criada com a intenção de preencher o vazio entre a venatio e as pugnas
gladiatórias da tarde. Tal evento tornou-se conhecido como o «espectáculo do meio-dia»
(meridianum spectaculum), e nele se procedia à execução de criminosos condenados que o
editor comprava às autoridades 1796. À semelhança das que tinham lugar durante a venatio, o
número de execuções ao meio-dia dependia da quantidade disponível de condenados em
determinada ocasião. Assim, sabe-se que alguns munera não incluiram este evento devido à
falta de vítimas ou por causa de dificuldades conectadas ao orçamento do editor1797.

É óbvio que as despesas não significavam um problema se o editor fosse o imperador. Neste
caso, o número de execuções, embora dependendo da disponibilidade de condenados, era
habitualmente grande. Seja como for, afora Roma, no resto da Itália, onde os munera tinham
uma escala mais reduzida quando comparados com os organizados na Urbs, o número de
execuções era bem mais limitado: por exemplo, no epitáfio de um editor da cidade de
Peltuinum (Itália Central), evoca-se a execução de quatro noxii num munus com a duração de
três dias que o defunto oferecera aos seus concidadãos, ao passo que noutra inscrição
funerária, se diz que um indivíduo que patrocinou um munus em Beneventum (actual
Benevento, Sul de Itália), no qual morreram quatro noxii durante os quatro dias do
espectáculo1798.

Antes da introdução das execuções do meio-dia, esse intervalo no munus seria aproveitado
para apresentar exibições que causassem gargalhadas nos espectadores público,
provavelmente entrando em cena paegniarii e laquerarii, que lutavam uns contra os outros aos
pares, servindo-se de bastões e látegos, imitando desta forma, em jeito de paródia, os
combates bem mais sérios e mortíferos que se realizavam à tarde, opondo gladiadores
profissionais.

Certo dia, Séneca decidiu permanecer no seu lugar, no anfiteatro, à espera de um momento de
pausa a seguir à venatio, que ocupara a manhã. Ele pensava que se distrairia com um género
de diversão como a que acima se descreveu. No entanto, o que o conhecido filósofo viu foi
provavelmente uma série de homens quase nus, acorrentados uns aos outros, a entrarem na
arena, que anunciavam, desde logo, a sua funesta sorte 1799. O castigo que lhes fora reservado

1795 Dião Cássio, 37.46.4.

1796 Séneca, Ep. 7.3-4.

1797 K. Hopkins e M. Beard, The Colosseum, p. 73.

1798 CIL IX.3437 (Peltuinum) e ILS 5063a (Beneventum).

1799 Luciano, Toxaris, 59.

599
consistia em lutarem entre si até à morte. Séneca criticou veementemente a forma como esses
damnati se viam forçados a combater: embora dispusessem de gládios, não tinham elmos nem
escudos, pelo que os seus corpos ficariam sujeitos a sofrerem todo o tipo de golpes.
Facilmente se infere que em tais confrontos não se requeria aos condenados talento ou
habilidade, ao contrário do que sucedia com os gladiadores. Séneca definiu estas lutas
simplesmente como «puros homicidios». Aquele que tivesse morto o seu adversário era, logo a
seguir, coagido a enfrentar o sobrevivente de outra pugna, e daí por diante. No fim, todos eles
pereceriam, executando mutuamente as suas sentenças capitais 1800.

Mas Séneca não se insurgia contra a pena de morte dos damnati: o que mais lhe repugnava
era a tremenda selvajaria desses combates, que muito se apartavam da arte e das regras dos
duelos travados entre verdadeiros gladiadores, e, também, o efeito negativo que os mesmos
surtiam sobre os espectadores Os adeptos do meridianum spectaculum compraziam-se em
assistir a confrontos em que se derramava sangue e sucumbiam homens com bastante rapidez.
Deleitavam-se com um espectáculo primário, sem qualidade nem requinte. Ao mostrar a sua
repulsa pelo comportamento sanguinário da multidão, Séneca reporta-se às palavras de ordem
que a mesma bradava, dirigindo-se aos auxiliares da arena (ministri ou harenarii) encarregados
de obrigar os damnati mais relutantes a lutarem:

«Mata-o, açoita-o, queima-o! Porque é que enfrenta ele o gládio do adversário com tanto medo?
Porque é que ele se mostra tão renitente em morrer? Obriga-o, à pncada, para que se arrisque a ser
ferido! Faz com que eles troquem golpes com o tronco à mostra!» 1801.

O que Séneca considerava faltar neste morticínio era, acima de tudo, significado moral.
Contrariamente aos combates entre gladiadores, com os damnati a trucidarem-se não havia
oportunidade para admirar a sua coragem, dado que eram forçados a lutar, o que tornava
impossível que se contemplasse uma morte nobre, heróica 1802.

Cláudio ficou tristemente conhecido pela sua mórbida obsessão por estes confrontos entre
damnati. Enquanto a maioria dos espectadores abandonava o recinto ao meio-dia para
almoçar, o imperador continuava sentado, comprazendo-se em assistir ao triste espectáculo,
contribuindo até para ocasionalmente aumentar o número de condenados: caso ele estivesse
irritado por algum erro cometido por membros do pessoal auxiliar da arena, Cláudio não
hesitava em condená-los a lutar nessa altura 1803. Contudo, no seu íntimo, ele devia ficar de
algum modo embaraçado com o prazer doentio que sentia ao observar as execuções públicas,
já que lidou com tal vergonha de uma maneira insólita: mandou remover uma estátua de
Augusto, que se localizava junto à arena, a fim de poupar o seu ilustre antecessor à visão
dessas matanças generalizadas. Mas, quando tomou esta medida, muitos riram-se dele nas
suas costas1804.

Esta modalidade de execução, inspirada no modelo gladiatório, não era o único género de
castigo capital levado a cabo no meridianum spectaculum. De facto, havia diversos outros

1800Os Atenienses também armavam criminosos tais como adúlteros, prostitutos, ladrões e raptores, forçando-os a lutar como
gladiadores (Filóstrato V A 4.22).

1801 Ep. 7.3-4. Noutra passagem, Séneca condena estes combates: «Um ser humano…. é conduzido [para a arena] nu e indefeso
e o espectáculo resume-se a um homem sendo morto». Alguns académicos, como Otto Kiefer (Sexual Life in Ancient Rome, Nova
Iorque, 1993, pp. 102-103) viu, erradamente, neste trecho uma referência a gladiadores treinados; embora estes possam ser
vagamente descritos como despidos, na realidade dispunham de peças defensivas para o corpo.

1802Joyce Salibury, Perpetua’s Passion: The Death and Memory of a Young Roman Woman, Nova Iorque, 1997, p. 130.

1803 Suetónio, Claudius, 34.2; Díon Cássio, 60.13.4.

1804 Díon Cássio, 13.3. G. Ville, La Gladiature, pp. 134-135.

600
suplícios ainda mais hediondos: o eculeus (um cavalo de madeira sobre o qual se colocava a
vítima, à qual se lhe aplicavam polés e pesos de metal), uma estaca espetada na parte detrás
da cabeça do condenado e que depois saía pela boca, a tunica molesta, feita de linho
besuntado por substâncias combustíveis (como pez), em que o sentenciado ia morrendo
queimado, a «frigideira» ou o «assento de ferro» (onde a vítima se sentava até a sua pele ficar
literalmente assada) e o desmembramento por meio de veículos puxados por cavalos que
avançavam em direcções opostas 1805.

Por mais hediondos e medonhos que estes castigos fossem, sublinhe-se que não se viam
motivados propriamente pelo sadismo, mas, acima de tudo, para promoverem da maneira
mais acutilante possível, a manutenção da ordem pública em Roma, que, tal como outros
estados pré-industriais, não possuía uma verdadeira força policial, nem um sistema prisional
devidamente estabelecido. As terríveis execuções públicas serviam para transmitir uma
mensagem muito directa aos cidadãos cumpridores da lei, a de que o Estado actuava
agressivamente com o propósito de os proteger. Mas existia também uma dimensão
psicológica: as punições em público eram, pela sua própria natureza, humilhantes, já que as
pessoas que as sofriam se convertiam em objecto de entretenimento para a comunidade. À
humilhação das vítimas juntava-se o escárnio ou a zombaria que permeava todo o processo das
execuções. A seguir, vejamos três exemplos que ilustram o tom trocista que preponderava
entre a multidão que assistia às execuções. O primeiro trata-se da execução do imperador
deposto Vitélio, a qual, embora não ocorrendo na arena, tem muito a ver com as práticas que
nela se realizavam:

«...com as mãos atadas atrás das costas e uma corda à volta do pescoço, semi-nu e com a roupa
esfarrapada, ele [Vitélio] foi arrastado até ao Forum, sofrendo o escárnio, consistindo em palavras e
actos ao longo da Via Sacra. A sua cabeça foi mantida puxada para trás através do cabelo, como acontece
aos criminosos condenados [na arena] e põs-se a ponta de um gládio sob o seu queixo, obrigando-o a
erguer o rosto para assim ser visto […]». Alguns atiraram-lhe excrementos e lama, outros chamaram-no
'incendiário' e 'glutão' e, ainda, houve gente a gozar com os seus defeitos físicos: «a sua altura
desmesurada, a sua face avermelhada devido ao excesso de consumo de vinho, a sua barriga volumosa,
e uma das suas pernas estropeada por causa de um acidente que ele tivera de carro […] Por fim, nas
Escadas Cermonianas, foi torturado e morto lentamente, e depois arrastado por um gancho em direcção
ao Tibre»1806.

Os delatores caídos em desgraça, ainda que não fossem condenados à pena de morte,
também se viam obrigados a encarar a multidão na arena, com as suas cabeças puxadas para
trás, convertendo-se então em objecto de zombaria por parte dos espectadores 1807.

Numa fonte epigráfica da cidade de Grumentum (Sul de Itália), lê-se que num munus, cada um
dos noxii que foram executados se apresentava «elegantemente vestido»: isto talvez
significasse uma maneira de troçar dos condenados por alguma pretensão que tivessem em
gostar de usar roupa luxuosa ou cara1808.

A vertente da humilhação sobressaiu igualmente na Paixão de Jesus Cristo: foi escarnecido


pela sua alegada reivindicação de ser rei dos Judeus, ao envolvê-lo com um manto «régio» e ao

1805 Séneca, Ep. 14.5. Veja-se também Juvenal, Sat. 1.155-157. Tertuliano relata o caso de um homem que, em troca de uma
quantia de dinheiro, se ofereceu para vestir a tunica molesta, a fim de mostrar o seu destemor em relação ao fogo (Ad nat.
1.18.10). Aparentemente seria um predecessor dos modernos engolidores de fogo.

1806 Suetónio, Vitélio, 17.1-2.

1807 Plínio-o-Moço, Paneg. 34.3.

1808 AE 1975, 255.

601
cingir-lhe uma coroa de espinhos na cabeça. Ademais, na própria cruz afixou-se uma tabuleta a
identificá-lo como «rei dos Judeus»1809.

No fim do espectáculo do meio-dia, com a arena já repleta de cadáveres, dois ministri do


anfiteatro faziam a sua aparição, um representando Dis Pater, o deus do mundo subterrâneo, e
o outro Mercúrio, na qualidade de Psicopompus, que acompanhava as almas dos mortos até ao
mundo inferior. De acordo com Tertuliano, Dis, portador de um martelo, retirava os corpos com
a ajuda de outros auxiliares, arrastando-os por meio de ganchos para fora da arena. O
indivíduo que personificava Mercúrio era facilmente reconhecível pelo caduceu (a insígnia
deste deus, um bastão de loureiro ou de oliveira enlaçado por duas serpentes e com duas asas
na extremidade superior, simbolizando a paz e o comércio), feito parcialmente de metal, para
que pudesse ser aquecido como um ferro em brasa, para verificar se ainda havia damnati
vivos, e por cingir uma coifa alada. O papel destes «deuses» no evento do meio-dia
caracterizava-se, aparentemente, por uma actuação parodiada, cómica 1810. Tertuliano
escreveu:

«Nós rimo-nos também, durante os horrores dos jogos do meio-dia, de Mercúrio examinando os
mortos com o seu cautério [ferro em brasa]. Vimos igualmente o irmão de Júpiter [=Plutão=Dis] retirar
[da arena] os cadáveres dos gladiadores com um martelo» 1811.

No caso de Dis, o riso podia dever-se à incongruência de se contemplar o rei divino dos
mortos a exercer a tarefa servil de limpeza da arena 1812.

Estes comentários de Tertuliano conduziram a interpretações e teorias dúbias, segundo as


quais os ministri que exibiam o martelo, disfarçados como o deus etrusco dos espíritos mortos,
Charun, tiravam a vida dos gladiadores que fingiam ter perecido 1813. Essas ideias derivaram do
facto de Tertuliano se reportar aos damnati, na passagem atrás citada, designando-os de
gladiatores1814. O autor, todavia, empregou o vocábulo com um sentido totalmente diferente,
uma vez que se afigura claro que ele estava a discorrer sobre o meridianum spectaculum, e não
acerca de combates gladiatórios. Pode-se também entender esta confusão porque, como
vimos, os condenados lutavam frequentemente entre si munidos de gládios. Outra fonte que
contribuiu de igual maneira para a distorção da realidade foi a imagem de Charun segurando o
martelo no famoso afresco do Túmulo François, em Vulci (século IV a. C.): ela levou à sua
identificação com o Dis, que ostentava o mesmo utensílio, descrito por Tertuliano. No entanto,

1809 T. Wiedemann, Emperors and Gladiators, p. 71. Utilizou-se igualmente um cartaz para humilhar Átalo (Attalus) no anfiteatro
de Lugdunum (Lyon), em 177 d. C. Átalo, ao ser o mais conhecido dos damnati, viu-se obrigado a andar à volta da arena precedido
por um dístico onde se lia: «Este é Átalo, o Cristão» (Eusébio de Cesareia, Hist. Ecl. 5.1.44).

1810 G. Ville, La gladiature…, p. 425.

1811 Tertuliano, Ad nationes, 1.10.47. Este trecho foi objecto de diferentes interpretações, como, por exemplo, o ensaio de Jean
Peyras, «Um procès en réhabilitation: Hermès-Mercure dans l’amphithéâtre de Carthague», Dialogues d’histoire ancienne, 22-2
(1996, Besançon, Presses universitaires de Franche-Comté), pp. 127-141.Veja-se, também, Tertuliano, Apologeticum, 15.5.

1812 A imagem de Tertuliano e dos seus amigos a divertirem-se num meridianum spectaculum oferece um flagrante contraste
com sua veemente postura cristã, tão manifesta nos seus escritos; no entanto, quando ele assistiu a espectáculos no anfiteatro de
Cartago, foi certamente antes de se converter ao Cristianismo. Note-se, porém, que Tertuliano evidencia uma fixação, juntamente
com Séneca e vários escritores cristãos, relativamente a este evento na arena. Segundo C. Barton («Scandal of the Arena»,
Representations, 27, 1989, p. 29, n. 49), Tertuliano mostra-se «fascinado e obcecado com a violência que ele amiúde tanto critica
[negativamente]».

1813 D. Bomgardner, The Story of the Roman Amphitheatre…, p. 137.

1814 Ad nat. 1.10.46. Veja-se igualmente Apol. 15.5. G. Ville (La gladiature…, p. 378) sustentou que também se empregavam
estes dois «deuses» nas execuções ad bestias.

602
o grande fosso temporal que separa as duas divindades infernais confere pouca plausibilidade
a esta identificação 1815.

Esclareçamos ainda o problema da função do martelo: o homem que personificava Dis pode
tê-lo utilizado para despachar damnati moribundos, mas não, em princípio, gladiadores, como
certos autores defenderam 1816. M. Junkelmann afirmou que o martelo traz à mente a ideia de
uma execução, o que se coaduna em absoluto com o meridianum spectaculum1817. Mas, como
Tertuliano explicita a função do bastão de Mercúrio e o mesmo não faz em relação ao martelo
de Dis, é de presumir que o martelo tivesse um valor meramente simbólico. G. Ville sugeriu
que Dis ou Caronte podem haver acompanhado os auxiliares que retiravam os cadáveres dos
gladiadores da arena, mas só em determinadas alturas e locais durante a época imperial. O
historiador francês discordou do papel significativo que se atribuiu a Mercúrio (como, por
exemplo, ser ele a dar o sinal para principiarem os combates), afirmando que assumia
basicamente a função de «arauto divino» na arena 1818.

1815 M. Junkelmann, Gladiatoren…, p. 141.

1816Fabian Kanz e Karl Grossschmidt, na sua valiosa investigação forense sobre os ferimentos infligidos nas cabeças dos
gladiadores («Head Injuries of Roman Gladiators», Forensic Science International, 160, 2006, p. 214), ao examinarem as marcas
visíveis em alguns crânios, com forma arredondada ou quadrangular, atribuiram-nas a golpes assestados pelo martelo de Dis Pater.
Mais recentemente, A. Mañas Bastida (Gladiadores, p. 131) apresenta este ritual levado a cabo por Dis Pater e Mercúrio como
aplicável aos gladiadores, o que não parece adequado, visto não assentar em sólidos fundamentos documentados.

1817 Gladiatoren…, p. 141; R. Dunkle, Gladiators…, p. 94.

1818 La gladiature…, p. 377.

603
CAPÍTULO IX: O grande evento vespertino: os combates gladiatórios

O ambiente em que tinham lugar os combates estava repleto de tensão e adrenalina, tanto
entre os espectadores como, obviamente, entre os gladiadores, cuja vida estava em jogo na
arena, além de expectativa e excitação entre o público. Num excerto de um exercício de
retórica, imagina-se a reacção de um tiro, aquando do seu primeiro confronto oficial. As
palavras que se puseram na boca do gladiador principiante traduzem os terrores que
assolavam os participantes e, até, a multidão. A excitação provocada pelo medo que os
espectadores sentiam, indirectamente, ao identificar-se de algum modo com os combatentes,
fazia parte da própria noção de entretenimento 1819. Os Romanos, que nunca se cansavam com
o peso do entretenimento (à semelhança do que acontece actualmente, em que temos a
possibilidade de assistir pela televisão a uma catadupa de filmes, documentários e outras
programas), revelavam-se especialmente permeáveis face às imagens e sons brutais que viam
e ouviam na arena:

«Chegara então o dia e o povo tinha-se reunido para o espectáculo do nosso [do tiro e dos seus
camaradas gladiadores] sofrimento e, agora, os que estavam prestes a perecer, foram postos em
exibição na arena, conduzindo uma procissão da sua própria morte. O munerarius tomou o seu lugar,
não lhe faltando muito para que ganhasse o favor do público à custa do nosso sangue […] uma coisa me
fez sentir um miserável, a de que me achava muito mal preparado; mas eu estava certamente destinado
a tornar-me uma vítima da arena […] Todo o recinto bradava com o aparato da morte. Um homem afiava
o gládio, outro aquecia barras no fogo, alguns gladiadores recebiam bastonadas, outros eram
chicoteados [métodos empregues para forçar os combatentes mais relutantes a lutar] 1820. Vós
pensaríeis, certamente, que estes homens eram piratas 1821. As trombetas ressoavam com seu som
funéreo [de facto, este tipo de instrumento estava associado aos funerais]; depois de se trazerem
padiolas da Libitina, assistiu-se a um cortejo funerário para aqueles que se levaram para fora [da arena]
já mortos. Por toda a parte havia ferimentos, gemidos, sangue derramado: todos os perigos possíveis
estavam ali bem à vista».1822

1819 P. Plass, The Game of Death in Ancient Rome…., p. 10, 22.

1820 Tertuliano, De spect. 21.4.

1821Com efeito, os piratas eram, por assim dizer, os «terroristas» do mundo antigo, conhecidos por raptarem as suas vítimas no
alto mar. Ainda jovem, Júlio César foi sequestrado por um grupo de piratas, mas logrou pagar o seu próprio resgate. Depois da sua
libertação, ele acabou por capturá-los e, enfurecido e impaciente perante a demora do governador provincial na aplicação da
pena, César resolveu mandá-los crucificar (Plutarco, César, 2).

604
Num munus de grandes proporções, os espectadores poderiam esperar assistir a doze ou
treze combates (às vezes mais ainda) ao longo de uma tarde, os quais demorariam cerca de
três horas até terminarem 1823. Este cálculo, ainda que meramente conjuntural, tem por base
uma presumível duração média de uma pugna – entre dez e quinze minutos (embora não
houvesse, aparentemente, um limite rigidamente estipulado). No entanto, cabe acrescentar
mais tempo para aqueles confrontos em que o editor tomaria a decisão de poupar a vida ou
mandar executar os gladiadores vencidos. Nestas situações, o pessoal da arena, os harenarii,
aproveitariam para limpar a arena cheia de sangue, lançando água ao solo e utilizando
ancinhos 1824.

Como eram verdadeiramente os combates gladiatórios? A este respeito a iconografia antiga


(afrescos, mosaicos, baixos-relevos) oferece descrições imagéticas relativamente sugestivas,
mas as reacções hodiernas e alguns filmes proporcionam, por vezes, uma ideia mais concreta
desses duelos. Contudo, muitas películas, mormente as produzidas em Hollywood, e séries
televisivas mostram diversos anacronismos em cenas que distorcem muito a realidade
histórica.

Existiam diferentes níveis de confrontos: para começar, simples exibições desportivas e


técnicas, praticadas com armas embotadas, quase como acontece na esgrima moderna; o
segundo nível consistia em pugnas ad digitum, que só terminavam quando um dos gladiadores
reconhecesse a sua derrota ao levantar um dedo. Compreendido por todos (adversário, árbitro,
público e editor), este gesto significava um meio codificado para implorar pela concessão da
missio, isto é, para que o derrotado visse a sua vida poupada. Podia ser indultado se tivesse
demonstrado espírito batalhador e bravura, caso contrário não lhe atribuiriam a missio,
veredicto que o combatente deveria aceitar resignadamente. Um duelo ad digitum oferecia,
portanto, uma oportunidade para sobreviver, mas desde que o gladiador a merecesse. Por fim,
o último nível da gladiatura eram os combates sine missione (sem missio), por outras palavras,
sem remissão. Neste caso, de nada servia erguer o dedo, já que, independentemente do
talento ou do mérito do perdedor, este teria impreterivelmente de perecer.

Embora os Romanos apreciassem boas porfias, o que os motivava a ir em massa e sentar-se


nos degraus do anfiteatro era, sobretudo, no instante final de cada duelo, quando o vencido
colocava o seu destino nas mãos do público e do munerarius. O espectador, fosse cidadão ou
estrangeiro, desde há muito não desempenhando qualquer verdadeiro papel político, vivendo,
em diversos aspectos, da assistência do Estado, sentia-se poderoso nestes dias de espectáculo:
alimentava a ilusão de ser detentor do poder sobre a vida e a morte, sensação que não
experimentava no seu quotidiano. Também se sentia de novo existir quando interpelava o
editor e lhe impunha a sua vontade. O gladiador devia viver ou morrer? Pouco importava,
porque na altura era o espectador que acreditava decidir o destino do combatente.

Por outro lado, os gladiadores não se encontravam na arena para provarem que eram os mais
fortes; o seu objectivo primacial consistia em levar o oponente a render-se, a fim que o público
saciasse as suas pulsões. P. Veyne1825 comparou o público no anfiteatro ao dos tribunais actuais,
afirmando que ele gosta de assistir aos confrontos oratórios dos advogados, mas o momento
1822 Pseudo-Quintiliano, Decl. Mai. 9.6.1-14. Libitina era uma deusa da morte e o seu «leito» (torus) consistia numa espécie de
padiola, que na arena se utilizava para retirar os gladiadores gravemente feridos ou mortos: observamos a representação de uma
destas «macas» num dos mosaicos de Zliten, na cena em que um eques está à espera do veredicto do editor para matar o seu
oponente, já prostado no solo (cf. R. Dunkle, Gladiators, p. 96, fig. 11).

1823 M. Junkelmann, «Familia Gladiatoria…», p. 64.

1824 Petrónio, Satyr. 34.4; Marcial, Liber spect. 2.75.5-6; Suetónio, Divus Nero, 12.1.

1825 Sexe et pouvoir à Rome, p. 21.

605
mais aguardado é o do anúncio da sentença, para observar, no semblante do arguido ou réu,
sinais de angúistia ou de alívio. O mesmo sucedia na antiguidade, como se verifica através de
Suetónio, ao enfatizar o prazer que tinha o imperador Cláudio em contemplar o rosto dos
retiarii quando eram mortos, uma vez que os mesmos não dispunham de elmos para o
ocultarem. Devemos julgar os Romanos sádicos? Talvez, na justa medida em que, ainda hoje,
todo o humano, por mais bem formado que seja, encerra uma certa dose de sadismo e de
curiosidade mórbida: de facto, quantos de nós não abrandamos na auto-estrada para vermos
automobilistas mortos num sinistro? Quantos de nós, igualmente, não observam cenas
violentas na televisão, no cinema ou na internet?1826

O prolusio

Na realidade, não se sabe verdadeiramente como principiaria o evento vespertino, após o


meridianum spectaculum. Os poucos elementos colhidos na literatura antiga mostram-se
difíceis de encaixar, no sentido de nos ajudar a reconstituir o puzzle. Alguns colocam mesmo o
problema de apurarmos qual a realidade que se esconde por detrás de certas palavras, como
acontece com o misterioso prolusio.

Findo o «intervalo» do meio-dia, podemos imaginar os harenarii, num grande frenesim, a


correrem pela pista, recolhendo o que restava de cenários, armas e, claro, cadáveres. Lançava-
se nova areia para o recinto, sobre as múltiplas manchas de sangue, vertia-se água a fim de que
não se levantassem nuvens de poeira. Este pessoal saía de cena, enquanto, por outro lado, se
preparavam as padiolas e os médicos, tomando posição os libitinarii. Seria possivelmente nesta
altura que tinha lugar uma espécie de cerimónia iniciática, na qual diversos auctorati recebiam
bastonadas dos seus colegas veteranos, ao passarem por entre duas filas. Estes homens, de
condição livre (ingenui), que haviam assinado um contrato voluntariamente, sofriam este
castigo próprio de escravos, manifestavam desta forma o abandono da sua honra e a
degradação do seu estatuto social. Aproximadamente na mesma ocasião, nas bancadas, os
espectadores, depois de almoçarem, descontraíam ruidosamente, como o fazem, hoje em dia,
as pessoas no cinema ou no teatro, antes de começar a sessão. A seguir, é de supor que os
músicos, na arena, tocassem um hino para anunciar a terceira e última parte do programa, ou
fizessem ressoar os seus instrumentos de sopro, numa sonoridade cacofónica, para alertar o
público e impor o silêncio nas bancadas.

O que se passava depois? Nada garante que os gladiadores voltassem, todos, a realizar uma
nova parada, visto que já ocorrera a pompa durante a manhã. Havia, contudo, uma etapa a
preceder os combates, conhecida pela designação de prolusio (que significa «prelúdio»),
tradicionalmente associada a um treino em público feito com armas de madeira ou de metal,
mas embotadas (arma lusoria), no decurso do qual os gladiadores efectuavam um
aquecimento e os espectadores podiam apreciar a boa forma física dos seus campeões 1827.

Mas a verdade é que raramente aparece escrito o termo prolusio: o primeiro autor antigo a
utilizá-lo foi Cícero, a propósito de um samnis que se exercita durante o prolusio, antes de

1826 F. Meijer, The Gladiators: History’s Most Deadly Sport…, pp. 5-9.

1827 Segundo Ovídio (Ars am. 3.515), os gladiadores efectuavam exercícios preliminares, usando gládios de madeira e simulando
lutar contra adversários imaginários.

606
enfrentar o seu adversário1828. Por sua vez, Ovídio alude a tal etapa, ao reportar-se aos velites:
«[…] mas como o veles, antes de ficar aquecido pela carnificina, mergulha a sua lança no solo
arenoso, assim eu não assestarei ainda contra ti os meus golpes mais acerados» 1829.Quanto a
Séneca, estabelece o contraste entre o prolusio e o verdadeiro combate gladiatório: «Quão
estúpido é agitares o teu gládio no ar quando ouviste o sinal para a porfia. Livra-te dessas
armas de treino. Agora é tempo de usar as verdadeiras armas» 1830.

O prolusio significaria mais uma fase de observação do que uma «sessão» de aquecimento 1831:
os gladiadores fitavam-se e mediam-se entre si, dando voltas em redor dos respectivos
adversários, podendo simular um ataque com gládio ou arremessar um dardo (os que o
tinham, como acontecia com os samnitis e os velites), assim aproveitando para testar os
reflexos dos oponentes. Cícero salienta que alguns dos exercícios se destinavam mais a
exibições para o público do que qualquer outra coisa 1832. O prolusio era acompanhado por
músicos tocando trombetas e o hydraulis (órgão de água), os quais continuavam a actuar na
arena durante os duelos, até que findassem com o perdão concedido ao vencido ou a sua
morte, servindo eles, com os seus acordes, para conferir maior solenidade e intensidade
dramática a tais momentos cruciais1833.

A preparação física não se fazia na arena, dado que requeria uma grande dose de
concentração e diversos cuidados, contando com a ajuda de massagistas, pelo que todo este
ritual teria lugar discretamente, numa divisão subterrânea do anfiteatro. Como os combates
não se travavam simultaneamente, os gladiadores não se preparariam em conjunto ou, pelo
menos, em pequenos grupos, em função da sua ordem de entrada na pista: assim, é de excluir
a existência de uma sessão colectiva na arena, à vista de todos. À semelhança dos pugilistas
nos dias de hoje, os gladiadores preparavam-se, física e mentalmente, para darem o seu
melhor durante os curtos minutos que geralmente duravam as pugnas. Depois, eles
experimentavam as peças dos seus equipamentos, ao mesmo tempo que contunuavam o
aquecimento, efectuando movimentos para se certificarem de que cada elemento da panóplia
estava no seu devido lugar e bem ajustado. De facto, uma correia mal apertada, ou que se
rompesse em plena porfia, podia acarretar consequências mortais.

1828 De Or. 2.325.

1829 Ibis, 47-49: nesta passagem lemos velitis em vez de militis («soldado»), contrariamente ao que fizeram outros autores.
Ovídio utiliza o verbo calefacere, aplicável a um combatente no prolusio, que tanto pode significar literalmente «aquecer» como, a
nível figurado, «excitar as emoções»; é provável que ele desejasse transmitir ambos os sentidos.

1830 Ep. 117.25.

1831Para uma visão do prolusio como um conjunto de combates de «aquecimento» que os gladiadores efectuavam utilizando
armas embotadas, antes das pugnas a sério, vejam-se G. Lafaye, «Gladiator», in C. Daremberg e E. Saglio (eds.), Dictionnaire des
antiquités grecques et romaines…, II, Paris, 1896, p. 1594; M. G. Mosci Sassi, Il linguaggio gladiatorio, Bolonha, 1992, s. v.
«proludere, prolusio, -onis»; M. Junkelmann, Gladiatoren…, pp. 133, 147-148.

1832De Or. 2.317. Talvez por causa das escassas evidências sobre a natureza (ou existência?) do prolusio, G. Ville não prestou
grande importância ao mesmo: se, efectivamente, ele tinha lugar, resumir-se-ia a uma démonstration élégante, cujo carácter se
pautaria por atitudes exibicionistas. Ademais, Ville situou o prolusio após a probatio armorum, ao contrário do que sustenta a
maioria dos estudiosos. O prestigiado historiador francês partiu do princípio de que o prolusio consistiria num elemento que tinha
lugar imediatamente antes de começarem os verdadeiros combates (ante pugnam), momento em que os gladiadores realizariam
uma série de movimentos para impressionar o público, em vez de se tratar de uma fase de aquecimento ( La Gladiature, pp. 407-
408). M. J. Carter também salientou não existirem provas textuais que indiquem explicitamente quando ocorria o prolusio,
considerando que seria uma etapa em que os combatentes mostravam algumas das suas técnicas, acompanhados ao som de
música: cf. «Livy, Titus Manlius Torquatus and the Gladiatorial Prolusio», Rheinisches Museum für Philologie (2008), pp. 316-320.

1833Pseudo-Quintliano, Decl. Mai. 9.6; Petrónio, Satyr. 36.6. G. Ville, La gladiature…, p. 408.

607
Por último, no prolusio havia outra componente que era de ordem psicológica. Cícero refere-se
à mesma como «aquela rotina gladiatória», que se traduzia no despertar da fúria ou do
enraivecimento como acicate emocional para a coragem. Lembra-nos, aliás, as «conversas de
provocação» entabuladas entre os pugilistas modernos. Cícero transcreve o discurso de um
famoso gladiador chamado Pacideianus, dirigindo-se ameaçadoramente ao seu adversário:
«Sou eu que o vou matar e sairei vitorioso, se quereis saber – disse ele. – Eis o que irá acontecer: primeiro,
receberei um golpe no rosto, [mas] depois mergulharei o meu gládio no estômago e nos pulmões desse miserável.
Abomino o meu adversário; bater-me-ei com raiva, e será preciso apenas o tempo para que cada um dos dois
empunhe o gládio com a mão direita. Vede até onde me levam a paixão, o ódio pelo oponente e a fúria!» 1834.

Probatio armorum

Entretanto, o editor do munus procedia à inspecção das armas que seriam utilizadas
(ferramenta, probatio armorum) 1835. Elas, na realidade, eram-lhe levadas até à sua tribuna, não
sabemos se antes de cada duelo ou numa só vez, no começo do espectáculo, para que
verificasse se estavam adequadamente afiadas ou não, a fim de evitar que houvesse qualquer
falcatrua em relação ao programa anunciado, pois que se em alguns munera se lutava com
armas «chumbadas», noutros os combates eram até à morte.

Druso, filho de Tibério, entregava-se meticulosamente a esta tarefa, velando para que os
gládios e as adagas estivessem bem afiados. Nos jogos, Domiciano impôs, ao que parece,
«armas menos perigosas» (Epigr. 8.80), o mesmo que fez, mais tarde, Marco Aurélio, que
apenas mandou fornecer armas embotadas, tanta era a aversão que este imperador tinha pelo
derramamento de sangue 1836, o que decerto gerou frustrações no público.

Alternativamente, o munerarius podia confiar este exame a um ou vários dos seus convidados
de honra, demonstrando assim para com estes a sua estima ou consideração: ao pretender
mostrar que não temia os rumores que circulavam de conjuras ou atentados contra a sua vida,
o Tito decidiu convidar dois dos conjurados a sentar-se ao seu lado, e ordenou que lhes fossem
entregues as armas gladiatórias para o exame, oferecendo-lhes uma ocasião única para o
assassinar, o que obviamente não fizeram, desconcertados e assustados com a atitude revelada
pelo imperador 1837. Díon Cássio conta-nos um episódio em tudo igual, só que tendo como
protagonista Nerva:
«Mandou que se sentassem ao seu lado durante um espectáculo, e entregou-lhes os gládios, aparentemente para
examinarem se elas estavam pontiagudas, como era costume, mas, na realidade, para mostrar que pouco lhe
[Nerva] importava morrer nesse local» (68.3).

A priori, a fórmula dos combates seria previamente anunciada nos edicta, já que este assunto
ficava decidido antecipadamente entre o editor e os indivíduos que contratava, aspecto que

1834 Tusc. Disp. 4.48. Aqui, Cícero cita Lucílio (Saturae, IV), do século II a. C.

1835 Na realidade, a expressão probatio armorum constitui uma invenção dos académicos modernos (cf. G. Lafaye, «Gladiator»,
p. 1594), além de que não há a certeza de que esta cerimónia ocorresse sempre nos espectáculos. G. Ville aceitou a sua existência
(La gladiature, p. 407), bem como Mosci Sassi (Il linguaggio gladiatorio, p. 57) e M. Junkelmann (Gladiatoren, p. 130). Veja-se
também M. J. Carter, «Gladiatorial Combat with ‘Sharp’ Weapons (ТΟΙΣ ΟΞΕΣΙ ΣΙΔΗΡΟΙΣ)», Zeitschrift für Papyrologie und
Epigraphik, 155 (2006), p. 161.

1836 História Augusta/SHA, Marco Aurélio, 11.

1837 Suetónio, Divus Titus, 9.3.

608
tinha clara incidência sobre os custos do espectáculo; de seguida, o munerarius deveria pagar
ou não um montante por todos os gladiadores que perecessem na arena. Mas resta saber se,
por vezes, o desfecho de cada pugna não seria decidido no último momento, e isto, sem
dúvida, no sentido único de um combate ad digitum abandonada a favor de um que fosse sine
missione. O inverso apresentaria o editor como o último dos sovinas, como alguém que não
cumpria as suas promessas. Além disso, a sua notoriedade sofria um rude golpe com tal
atitude. Viu-se como indício deste facto o teor de uma inscrição feita num mosaico do Museu
Arqueológico de Madrid, que alude aos aplausos calorosos da multidão para um editor que
distribuiu armas não embotadas aos gladiadores, o que parece ter sido uma surpresa
inesperada. Um asiarca chamado Julius Menecles Diophantus foi mesmo objecto de
agradecimento por parte da comunidade cívica de Esmirna (Smyrna), numa inscrição gravada
na base de uma estátua, por mandar empregar armas letais num munus 1838:

«…o asiarca que apresentou um munus durante cinco dias consecutivos, com gladiadores lutando
com armas afiadas [τοίς όξέσιν]1839»

Enquanto decorria a probatio armorum, os primeiros gladiadores aproximavam-se da porta de


entrada, a «dos vivos»1840, para a arena. É provável que os árbitros, que os precediam, lhes
dessem as derradeiras instruções sobre as eventuais regras a respeitar, lembrando-lhes
também, decerto, os sinais visuais ou sonoros que se estabeleciam para o bom funcionamento
do espectáculo, designadamente todo o conjunto de gestos codificados com as mãos que,
ocasionalmente, podia variar de um munus para outro.

Então, os combatentes vestiam o subligaculum e talvez envergassem um manto. Se nos


ativermos ao já descrito baixo-relevo da Porta Stabiana (Pompeia), seriam os ministri que lhes
traziam os seus equipamentos – grevas e braçais, elmos e escudos e, naturalmente, as armas
ofensivas. Dois a três auxiliares ocupar-se-iam de cada protagonista, ajudando a colocar e a
ajustar as peças da sua panóplia. Este momento foi igualmente ilustrado num afresco
pompeiano, hoje em dia perdido, com um murmillo e um hoplomachus aos quais vários
assistentes lhes estendem os elmos e as espadas, fase que demoraria algum tempo, o que
explica por que razão não poderia haver mais do que uma quinzena de gladiadores a defrontar-
se ao longo da tarde. Nas proximidades, outros ministri erguem bem alto, na extremidade de
varas ou sobre os ombros, os cartazes onde se mencionavam os nomes dos combatentes, das
suas familiae (sobretudo se fossem a do imperador) e os seus palmarés. Certas fontes
iconográficas revelam como eram verdadeiramente esses painéis, que conheciam diversas
formas: rectangulares na cena do «Medalhão de Cavillargues», anunciando o retiarius Xantus e
o secutor Eros, noutros casos tendo a configuração de tabula ansata.

Depois de se equiparem, os gladiadores saudariam realmente o editor, os magistrados em


exercício, o cônsul ou o imperador, caso estivesse presente? Os filmes habituaram-nos a ouvir
estes homens a proclamarem, em uníssono: «Ave Caesar, morituri te salutant»/«Avé César, os
que vão morrer te saúdam!». Aqui, estamos perante uma das muitas ideias preconcebidas que
ainda hoje persistem sobre os jogos romanos. Na realidade, esta frase só terá sido proferida
uma única vez1841, aquando de uma grande naumachia organizada por Cláudio no lago Fucino,

1838L. Robert, «Monuments de gladiateurs dans l’Orient grec», Hellenica 5 (1948), pp. 81-82, nº 318.7-12; M. Carter, «Archiereis
and Asiarchs. A Gladiatorial Perspective», Greek, Roman, and Byzantine Studies 44 (2004), pp. 53-54; É. Teyssier, por lapso, chamou
a este asiarca «Diophanes» (La mort en face…, pp. 402-403).

1839 A expressão completa em grego, referente às armas aguçadas era, transliterada, tois oxedi siderois.

1840A chamada Porta Sanavivaria. No entanto, não há provas concretas que os Romanos, ao tempo, utilizassem esta expressão,
que, na realidade, foi empregue pelos historiadores modernos

1841 Suetónio, Divus Claudius, 21.13.

609
na qual participaram 19 000 combatentes, prisioneiros e condenados; depois de ouvir tais
palavras, o imperador respondeu aut non/«Ou não!», dando a entender que a morte não seria
forçosamente oo destino dos envolvidos nesse espectáculo. Aliviados por pensarem que
seriam agraciados, os combatentes recusaram lutar e foi preciso que Cláudio lhes suplicasse,
ao mesmo tempo que ameaçava, para que eles aceitassem pegar de novo nas armas 1842. Afora
esta referência, não subsiste vestígio algum de uma saudação que se fizesse ao editor:
possivelmente ela far-se-ia mais por gestos do que palavras, através, por exemplo, de um
simples aceno respeitoso com a cabeça.

Eis então que o primeiro par de gladiadores se achava já a postos no meio da arena; os dois
árbitros posicionavam-se de cada um dos lados, ao passo que os ministri evacuavam a pista. O
combate podia começar: a partir da sua tribuna, o editor fazia o sinal (signum pugnae). Por
meio da voz do praeco ou por um cartaz que um assistente exibisse aos olhos de toda a gente,
no qual aparecia escrita o verbo PUGNATE («Combatei!»), os gladiadores adoptavam as
posturas típicas das suas armaturae e iniciavam o prolusio, a que se seguia a porfia, com o
«ferro aguçado» (ferra acuta) 1843. Cómodo, certo dia, decidiu mandar instalar uma tribuna na
própria arena para assim o imperador se acercar mais dos combates, tendo sido daí que fez o
sinal para principiarem os confrontos (Díon Cássio, 73.19.4).

As pugnas

Segundo Isidoro de Sevilha, o evento vespertino começava com um duelo de equites


(Origines, 18, 53). De facto, os gladiadores a cavalo são sempre representados na parte inicial
dos frisos de combatentes, tanto nos baixos-relevos como nos mosaicos, cenas que não
mostram porfias a desenrolar-se simultaneamente, mas antes duelos que se realizavam um
após outro. A razão prender-se-ia certamente ao facto de as exibições dos equites serem as
mais longas, suportando as montadas grande esforço e permitindo aos cavaleiros não se
fatigarem tão rapidamente como os gladiadores apeados.

Não havia uma ordem-padrão para a entrada em cena dos combatentes das outras
armaturae, até porque ela seria frequentemente alterada consoante o munus; porém, é muito
possível que se guardassem para o fim do espectáculo os prélios que mais galvanizavam os
espectadores (opondo estrelas consagradas da arena), como os duelos entre thraeces e
murmillones ou entre retiarii e secutores (que se tornaram populares a partir de finais do
século I).

Os combatentes, bem treinados, exibiam um vasto repertório de movimentos técnicos –


arremetidas, botes, estocadas, e esquivas: podiam ver-se ataques designados secundae manus
(segunda mão), quando a primeira investida se resumisse apenas a uma finta para despistar o
adversário, e atingi-lo através desta segunda acometida; também se assistia a ataques de
tertiae manus (se o segundo fosse uma nova finta) e até de quartae manus, estes só podendo
realizá-los os mais hábeis com o gládio ou a lança, capazes de encadear três fintas seguidas e
ferir o oponente na quarta arremetida 1844. Buscava-se igualmente aturdir o oponente mediante
impactos direccionados contra o seu elmo, prática que usualmente os retiarii levariam a cabo

1842 Dião Cássio, 60.33, 3;Tácito, Ann. 12.54, 7.

1843Veja-se, a propósito, M. J. Carter, «Gladiatorial Combat with “Sharp” Weapons…», pp. 161-175.

1844 M. Junkelmann, Gladiatoren…, §«Kampftechnik», pp. 145-155.

610
(Prudêncio escreveu, a propósito, que os tridentes golpeavam repetidamente «a cara de
bronze»).

As técnicas de esgrima diferiam das praticadas na Europa quinhentista, setecentista e


oitocentista ou da modalidade desportiva actual, uma vez que as armas se afiguravam
completamente diferentes: as espadas eram tão curtas que as lâminas só se cruzavam em
casos excepcionais. Um gladiador podia atacar e defender-se principalmente com o seu
escudo, impedindo o rival de avançar, forçando-o a retroceder, aliciando-o a arremeter,
simulando uma acometida para provocar uma reacção errada, ou golpeando o adversário
horizontalmente com a borda inferior do escudo. O combatente mantinha o gládio recuado, ao
abrigo do escudo, pronto a assestar uma estocada no alvo num movimento brusco, na altura
que considerasse mais apropriada. Atrás referimos que ascutiladas eram bastante menos
comuns do que as estocadas. Frequentemente, na fase final de um duelo, os gladiadores
pelejavam a curtíssima distância um do outro, chegando mesmo, como vimos, a lutar no solo.

Normalmente, os gladiadores batiam-se apenas aos pares, mas, às vezes, nas fontes literárias
relatam-se confrontos entre um retiarius e dois secutores (pontarii) ou entre grupos mais
numerosos de combatentes (gregatim), mas estes só terão ocorrido nos munera mais
sumptuosos: tratava-se de uma modalidade que visava recriar batalhas mitológicas ou
históricas, à semelhança das navais (naumachiae) encenadas na água, mas nela só
participariam gladiadores secundários ou homens condenados à pena de morte. Aqui, os
participantes costumavam adoptar métodos de extraídos da guerra real travada pelos exércitos
romanos (como a formação dos escudos em testudo ou a distribuição dos gladiadores em
várias linhas de combate, etc.). Embora o nível dos que lutavam como gregarii fosse inferior
aos que se enfrentavam nas monomaquias, a espectacularidade de todas essas técnicas
bélicas, juntamente com o grande número de combatentes e os ricos adornos que exibiam,
tornavam estas batalhas num evento bastante atractivo. Cláudio, por exemplo, apresentou no
Campo de Marte, com toda uma luxuosa profusão de detalhes, a recriação do assalto e saque
de uma praça-forte bretã, assim evocando situações ocorridas durante a conquista e ocupação
da Britânia.

Na composição (compositio) dos pares, que se estabelecia geralmente dias antes da


apresentação do munus pelo editor (coadjuvado pelo lanista e pelos doctores para lhe darem o
seu parecer quanto às escolhas), havia normalmente o cuidado de pôr a combater entre si
gladiadores de nível equivalente. Raramente se colocavam os mais experientes (veterani) a
defrontar principiantes (tirones), mas registaram-se excepções. Um gladiador que se estreava
na arena podia, ocasionalmente, revelar-se talentoso e até perigoso face a um veterano, o que
se atesta em várias inscrições: por exemplo, num grafito encontrado na necrópole da Porta
Nocera, em Pompeia, representou-se a pugna entre o murmillo Marcus Attilius, um tiro, e o
thraex Hilarus1845, que pertencia à «escola» gladiatória de Nero e já tinha no seu palmarés 14
vitórias (fig. Junk. p. 146); Attilius venceu o duelo e o derrotado Hilarus saiu do anfiteatro com
vida (missus); não fica a menor dúvida de que o tiro evidenciou clara destreza. A alguns
centímetros de distância, na mesma parede, outro grafito mostra o subsequente combate de
Attilius, contra o thraex Lucius Raecius Felix1846, que travara 12 confrontos e ganhara coroas de
louros (uma das recompensas concedidas aos vencedores) em todos eles; também Raecius
Felix foi derrotado e autorizado a abandonar a arena com vida 1847.

1845 M. Langner, Antike Graffitizeichnungen…, nº 1008.

1846 Ibidem, nº 1032.

1847M. Junkelmann, «Familia Gladiatoria: The Heroes of the Amphitheatre», p. 66; IDEM, Gladiatoren…, p. 146.

611
Não havia um limite predefinido para a duração dos combates mas, em média, como
dissemos, rondariam entre 10 e 15 minutos: alguns podiam acabar ao fim de dois minutos ao
passo que outros se prolongariam por bastante mais tempo. Durante a liça, não restava espaço
para hesitações ou para qualquer tipo de desconcentração, que podia revelar-se fatal.
Ademais, tendo a cabeça debaixo de elmos integrais, que se generalizaram no fim do reinado
de Augusto ou sob a égide de Tibério, para os gladiadores era muito difícil respirarem
livremente, pelo que se afigurava imperativo eles saberem gerir bem o fôlego, para evitarem
sufocarem com rapidez. Um combatente não podia lutar estando em apneia.

Alguns anos atrás, o grupo de praticantes de arqueologia experimental de Brice Lopez


submeteu-se a um teste relativamente esclarecedor realizado pelo Dr. Jean Gauthier,
cardiologista e médico desportivo, com o objectivo de apurar os constrangimentos que se
faziam sentir sobre os gladiadores; munidos de holters (electrocardiogramas) que registavam
os batimentos cardíacos trinta minutos antes dos combates e outros trinta depois, os
«gladiadores» evidenciaram os seus limites, mais de ordem respiratória do que cardíaca. Com
os elmos impedindo uma boa oxigenação, a intensidade das pugnas conduzia a uma hipoxia
(diminuição da quantidade do oxigénio distribuído pelo sangue aos tecidos) 1848.

Consequentemente, no treino dos gladiadores, embora se apostasse no fortalecimento do


poder físico, não se descurava a endurance, a fim de que os combatentes tivessem suficiente
resistência para aguentar os seus equipamentos e empreender ataques fulminantes. Refira-se,
a propósito, que, para além dos gravemente feridos que se viam forçados a interromper a luta,
a maioria dos gladiadores reconhecia a derrota mais devido à exaustão. Não admira, portanto,
que fosse importante e necessário haver pausas no decurso das contendas, tal como acontece
actualmente em diversos desportos de combate. Voltar a colocar uma ocrea no sítio, remover,
por instantes, o casco para melhor respirar ou beber um pouco de água, cada gladiador fazia o
possível para evitar a asfixia e a desidratação, no que eram ajudados pelos árbitros, que
procuravam certamente obstar a que um combatente se aproveitasse da ocasião para assestar
um golpe no adversário que esteja numa posição desvantajosa. Num duelo que se tornou
célebre (sobre o qual nos centraremos mais à frente), que opôs Priscus a Verus, sob o reinado
de Domiciano, Marcial afirma que durante a pugna o imperador ordenou, a certa altura, que
fornecessem víveres e recompensas aos dois gladiadores, precisando o autor que tal era
permitido (Epigr. 29).

Num intervalo (diluvium) entre duas fases da porfia, os gladiadores podiam mesmo dirigir-se à
multidão ou ao editor. Séneca relata o episódio de um gladiador ferido pelo qual o público
manifestou ruidosamente a sua simpatia, exigindo que recebesse a sua missio; o combatente
fez então um gesto com um dos braços para indicar que nada pedia, pois que não agira de
maneira a que tal merecesse. Aqui vemos um testemunho assaz elucidativo da psicologia
destes atletas profissionais. No hiato entre duas etapas, os protagonistas também tinham a
possibilidade de enviar um minister com um cartaz, ou comunicar com o árbitro, para
perguntar ao munerarius se estava satisfeito com a sua prestação, e se ele permitia que se
pusesse termo ao combate. A este respeito, observe-se a seguinte passagem de Cícero, já
citada noutro capítulo (Tusculanae Disputationes, 2.17.41):

«Cobertos de feridas, os gladiadores mandaram perguntar ao seu senhor o que desejava. Se eles não
haviam feito o suficiente, estavam prontos a deixar-se degolar a uma ordem sua. O que eles querem,
acima de tudo, é satisfazer o público».

O editor aceitava o pedido ou dava ordens para que o combate prosseguisse, caso entendesse
que fora demasiado curto ou desprovido de brilho. A sentença transmitia-se ao conjunto dos

1848 J. Gauthier, «Ainsi vivaient les gladiateurs, Sport & Vie, nº 93 (2005), pp. 4-7.

612
espectadores através de uma tabella de grandes dimensões aos ombros de dois ministrii, com
uma inscrição onde se lia a palavra PERSEVERATE («Continuai!»).

Usualmente, um gladiador tudo fazia para impressionar e cativar o público, já que da sua
temeridade ou talento dependia, por vezes, a sua sobrevivência. Acontecia, porém,que alguns
davam mostras de fraca motivação ou reduzida pugnacidade, o ocasionalmente sucederia com
alguns tirones e, amiúde, com condenados ad ludum. Nestas situações intervinham os
chamados incitatores, que os chicoteavam no fim do combate (Petrónio, Satyr. 45. 12), depois
de a multidão gritar «Desanca-os!». Isto não era chocante ao tempo, visto que até os actores
de teatro, ao oferecerem uma prestação medíocre, podiam ver-se flagelados após a peça.

Caso sobreviessem problemas com determinado gladiador ou se um duelo tivesse acabado


demasiado depressa, o que causava a insatisfação dos espectadores, o editor recorria a um
«substituto», prática a que Petrónio alude no Satyricon. A presença de uma «reserva» de
gladiadores era objecto de uma cláusula no contrato com o lanista, o que acarretava,
logicamente, mais despesas. Este bónus no programa do espectáculo aparecia também
anunciado nos edicta munerum. Os suplentes (postulaticii, suppositici ou tertiarii) podiam,
esporadicamente, ocupar o lugar deixado vago por um gladiador entretanto libertado. Neste
sentido, um gladiador poderia participar em duas pugnas na mesma tarde, o que implicava
elevado perigo, mas tal não era habitual. Díon Cássio narra um destes casos invulgares (77.6),
em que, obrigado por Caracala, um reputado gladiador teve de participar em três combates
num só dia, vindo a sucumbir no último, o que o público considerou uma clara amostra de
crueldade do imperador.

Aventemos outra hipótese quanto aos gladiadores «substitutos: talvez interviessem apenas se
o espectáculo vespertino terminasse mais cedo do que o previsto, restando ainda tempo para
apresentar um ou vários outros duelos. Conservaram-se listas de participantes nos munera
com números ímpares, o que não se coaduna com a necessidade de propor novos confrontos,
mas com a exigência de determinados gladiadores pelejarem na arena várias vezes.

***

Actualmente, tal como outrora, os gladiadores ainda exercem um estranho fascínio devido à
relação teatralizada que mantinham com a morte. Este aspecto é tão importante que, amiúde,
a gladiatura se viu reduzida por diversos historiadores modernos a isto mesmo, um facto
chocante para a nossa civilização norteada por valores judaico-cristãos. A sobrevalorização
desta vertente esteve na origem de muitos erros de apreciação, já que ao tomar-se em
consideração apenas o elemento final de um fenómeno muito mais complexo, a gladiatura
tornou-se objecto de análises ou interpretações deveras parciais. Este género de abordagem
conduziu frequentemente diversos estudiosos a encararem a gladiatura sob uma perspectiva
simplista, redutora e anacrónica. No entanto, nos últimos anos tem-se verificado um esforço
meritório, por parte de certos autores, de empreender uma aproximação inovadora em relação
às formas e ao sentido da morte dos gladiadores.

Mais do que um assassinato ou uma execução a sangue-frio, a morte de um gladiador


resultava de um veredicto, transmitido pelo editor do munus a partir da sua tribuna no
anfiteatro, à qual se chamava editoris tribunalis. Díon Cássio não se enganou quando se
reportou à vertente jurídica em associação aos gladiadores, uma vez que estes combatiam aos
pares seguindo um conjunto de regras bem definidas. Com base nas fontes de que dispomos, a
morte ocorria quase sempre após um processo concreto que envolvia todos os participantes
no espectáculo, desde os gladiadores até ao editor, incluindo também os árbitros, os músicos,

613
os ministri e, naturalmente, o público, que não deixava de intervir ruidosamente. Para o efeito,
havia normas mais ou menos precisas que regiam o desenrolar das pugnas 1849: regras, todavia,
não escritas ou, pelo menos, das quais praticamente nada sobreviveu a nível textual até à
actualidade, mas que, em larga medida, se podem descodificar mediante um exame atento e
sistemático do corpus das fontes iconográficas. As normas seriam basicamente as seguintes:

- Se um dos combatentes perdia uma arma inadvertidamente, e não por causa de uma
iniciativa do adversário, concedia-se uma pausa para que pudesse recuperar (é o que parece
ver-se numa lucerna de Corinto, anteriormente analisada, em que um retiarius deixou cair a
sua adaga (século II d. C. Bibliothèque Nationale de France, Paris);

-Não havia assaltos, tal como não existia este conceito nas modalidades desportivas gregas;

-A submissão/rendição (decumbere, succumbere, petere missionem, «pedir a missio»)


indicava-se quando o vencido atirava o escudo para o solo e estendia o indicador da mão que
antes tinha segurado o mesmo1850;

-Quando um gladiador capitulava, o summa rudis e o secunda rudis suspendiam logo a pugna,
um dos árbitros interpondo a férula entre os dois contendores, de modo similar ao que faziam
os hellanodikai gregos para pôr termo aos combates de luta, pugilismo e pancrácio. O outro
gladiador, já vencedor, tinha de se deter; por vezes, os árbitros viam-se obrigados a agarrar-lhe
a mão armada para impedir que ele golpeasse o vencido;

-No decurso da porfia, se um gladiador ficava gravemente ferido, podendo mesmo perecer se
não parasse o confronto, devia render-se. Caso não o fizesse, os árbitros terminavam o
combate e pediam a decisão do munerarius, isto porque este era dono da vida dos
combatentes que havia alugado ou comprado, razão pela qual um gladiador não podia deixar-
se morrer (recusando-se a claudicar), nem tão quanto o vencedor assestar um golpe mortal no
vencido até que o editor decidisse condená-lo à iugula, o que teria de se levar a cabo de acordo
com a maneira estabelecida. A única circunstância em que se aceitaria que um gladiador
matasse outro sem autorização do editor era quando tal resultasse de um lance desafortunado
em pleno combate, o que não agradaria muito aos espectadores e ao organizador do munus
1851
.

1849M. Carter, «Gladiator Combat: The Rules of Engagement», CJ 102 (2006), pp. 97-113, A. Mañas Bastida, Gladiadores…, pp.
121-122.

1850De acordo com Marcial (Liber spect. 29.5: «Lex erat, ad digitum posita concurrere parma»/«a lei era combater até levantar o
dedo, tendo deposto o escudo [parma]». Sobreviveram numerosos testemunhos iconográficos mostrando que era o indicador da
mão esquerda que se estendia, como vemos num afresco de Colchester (onde o vencido, um thraex, ergue tal dedo depois de
haver arrojado para terra o escudo, empunhando na mão direita uma sica; a pintura conserva-se no Colchester Archaeological
Trust, datando da segunda metade do século I). No grafito de Pompeia em que se representou, com factura muito tosca, o
combate entre o scaeva Albanus e Severus (CIL IV.8056): observa-se o escudo do último, o vencido, no solo, enquando ainda
empunha a espada na mão direita, o que sugere que foi com a esquerda (figurada já em baixo e sem mostrar os dedos) que pediu
a missio. Sobre este grafito, consultem-se Kathleen M. Coleman, «A left-handed Gladiator at Pompeii», Zeitschrift für Papyrologie
und Epigraphik 4 (1996), pp. 194-196 (imagem na p. 194), e M. Langner, Antike Graffitizeichnungen…, nº 1024. A este gesto pode-
se adicionar outro, o de pôr a mão direita atrás das costas (depois do combatente lançar a arma para o solo), como se verifica
numa estatueta de bronze que mostra um gladiador estendendo o indicador da mão esquerda, com o braço levantado, e a mão
direita colocada atrás das costas (Museo Arqueológico de Palencia; A. Mañas Bastida, Gladiadores…, foto 58). Refira-se que a
imagem do perdedor com uma ou ambas as mãos atrás das costas, estando o seu escudo já no solo, aparece em muitas fontes
plásticas: por exemplo, num relevo do século I (Museo Civico di Sepino), figurou-se o gladiador vencido com as mãos atrás das
costas; nesse cena, o vencedor é um thraex; no medalhão de uma lucerna conservado em Subiaco (Roma) esculpiu-se igualmente
um combatente vencido com as mãos atrás das costas. Além de se livrar do escudo, seria normal que o gladiador depusesse
também a sua arma ofensiva no momento da rendição, pois que de outra forma o vencedor não se fiaria muito no capitulante. A
este respeito, reveste-se de interesse um pormenor de uma das cenas do relevo de Lucus Feroniae, em que o gladiador vitorioso
pisa a mão direita, ainda armada do vencido.

1851Se um gladiador fosse morto durante a pugna ficava registado oficialmente que perecera de pé (stans periit).

614
Salientemos ainda que vencer um combate ou obter a missio (ou a stans missio) não era, em
absoluto, garantia de que o gladiador sobrevivesse, já que ele poderia vir a falecer em
consequência dos ferimentos infligidos dias depois. O que perecia após reber o indulto era
chamado missus obiit. Colhem-se referências a vencedores que morreram a seguir à pugna (em
resultado de feridas graves); o epitáfio do gladiador Zeusei, (Ζεύξει) de Cós, é um bom exemplo
deste facto:

«Ele venceu e matou o seu oponente, mas morreu como um herói valente. Nenhum adversário me
matou, apenas morri por mim mesmo, e a minha gentil esposa aqui me colocou» 1852.

Citemos igualmente Danaos (Δανάφ) que perdeu a vida depois da sua nona vitória:

«Sua esposa Eorte e seu filho Asklepiades mandaram erigir isto em memória de Danaos, secundus
palus, thraex. Após nove combates, partiu para o Hades»1853.

Observamos um caso bem mais extremo na inscrição CIL V.563: o secutor Decoratus, depois
de derrubar o adversário, tombou logo a seguir no solo, ficando a agonizar na arena, até que o
árbitro pôs termo à vida dos dois os gladiadores 1854.

O papel do árbitro

A figura do árbitro viu-se muitas vezes negligenciada ou confundida pelos estudiosos com
outros personagens: nos comentários que alguns fizeram a certas imagens, o summa rudis, ou
o secunda rudis, aparecem referidos como correspondendo ao munerarius ou ao lanista. No
entanto, sob o ponto vista lógico, não faz qualquer sentido a presença dos mesmos na arena,
no meio dos combates. Mediante o estudo estatístico da documentação iconográfica
inventariada, conclui-se que o lugar do árbitro assume algum destaque nas representações
plásticas: contando com oitenta ocorrências, a frequência com que aparecem os árbitros é
relativamente significativa 1855. Se bem que eles se atestem em menos casos do que os
hoplomachi, ultrapassam ainda assim os equites. Além do mais, quando se observam as suas
figurações, estas geralmente encontram-se produzidas em suportes de qualidade: muito
raramente assinaláveis nos motivos decorativos das peças de cerâmica e das lucernas, eles
surgem principalmente em cenas de duelos ou de munera pertencentes a mosaicos e a baixos-
relevos que ornamentavam as villae e os túmulos de indivíduos abastados e ilustres.

O papel dos árbitros, apesar de ignorado ou subestimado, afirma-se crucial nessas


representações – não só eles se posicionam no centro da acção, como também as túnicas que
envergam servem para os distinguir claramente dos combatentes e lhes conferem uma

1852 L. Robert, Les gladiateurs…, nº 191.

1853Ibidem, nº 293. Como no relevo (descrito no Capítulo VII) da estela funerária aparecem 9 coroas, depreende-se que todas as
suas pugnas foram vitórias; assim, Danaos terá falecido por causa de ferimentos sofridos no derradeiro combate; no canto inferior
direito do monumento representaram-se o elmo e o escudo. A lápide foi descoberta em Kyzikos/Cyzicus, mas conserva-se no
Kunsthistorisches Museum de Viena.

1854 No Capítulo VII transcrevemos este epitáfio.

1855 Os árbitros não foram directamente integrados no acervo iconográfico dos gladiadores, pelo simples motivos de que não
faziam parte das armaturae. O corpus das últimas engloba 1621 gladiadores, e os 80 árbitros repertoriados representam 5% do
total. Com apenas 18 inscrições inventariadas concernentes aos árbitros, num conjunto epigráfico de 501 menções a gladiadores,
os testemunhos são menos frequentes.

615
autoridade específica. Tal distinção vê-se realçada pel presença de duas faixas verticais,
vermelhas ou azuis, nas suas indumentárias. Estas cores não permitem diferenciar o summa do
secunda rudis, dado que quando ambos surgem um ao pé do outro exibem a mesma cor. O
outro atributo caracterizador do árbitro é a sua vara (rudis) epónima. Este objecto, medindo
pouco mais de um metro de comprimento, era afilado e flexível.

No senatus consultum de Larinum (19 d. C.) alude-se implicitamente à importância do papel


que os árbitros desempenhavam 1856. Quando, na linha 10, se proibe aos membros das ordines
senatorial e equestre de aut rudem tolleret, estamos perante uma alusão ao papel do árbitro,
já que neste contexto a expressão em latim significa manter a vara arbitral levantada. Esta
interdição recaía, pois, sobre os senadores ou os cavaleiros que se sentissem tentados em
aparecer na arena, juntamente com os gladiadores. O texto legal mostra bem o relevante papel
atribuído à rudis e ao seu detentor. A proibição revela, igualmente que os árbitros partilhavam,
pelo menos em parte, o opróbrio de que eram vítimas os gladiadores, mas não propriamente a
infamia.

Porém, a rudis emblemática do poder do árbitro não era uma «matraca» ou um «cacete» que
servisse para castigar constantemente um gladiador que infrigisse as regras (dictata, leges
pugnandi). A vara era suficientemente flexível para se poder vergar sem a quebrar. A sua finura
constituía uma prova da legitimidade do árbitro aos olhos dos combatentes, que, em certas
imagens parecem por vezes estacar ao mínimo contacto tido com a rudis. A referida garrafa
descoberta em Ismant el-Kharab (fig. p. 315) testemunha perfeitamente essa autoridade: na
imagem que a adorna vemos um retiarius que dá ideia de querer prosseguir com um ataque
particularmente bem-sucedido, mas o árbitro, ao ao apoiar a sua vara no torso do primeiro, faz
interromper o seu ímpeto. Face à injunção, o gladiador cessa de imediato a sua arremetida.

Possivelmente, só homens que gozassem de certo estatuto reuniriam condições para exercer
tal função. Além disso, teriam de possuir a necessária experiência e um «olho clínico» para pôr
cobro a dissimulações ou atitudes combinadas observáveis entre os combatentes. A este
respeito, citemos um trecho de Santo Agostinho, que escreveu já nos tempos finais dos
espectáculos gladiatórios: «Se o povo se apercebe que os combatentes estão combinados, ele
persegue-os com a sua ira, grita para que apanhem pauladas por causa do conluio». Além
disso, um árbitro observador e calejado conseguiria muitas vezes determinar se convinha ou
não interromper um ataque ou dar vantagem a um ou outro dos contendores.

As imagens antigas mostram igualmente um número considerável de árbitros a levantar a sua


vara na altura em que terminava uma pugna. Este gesto devia ser especialmente aguardado
pelos espectadores, já que ele precedia o instante fatídico em que a própria multidão e,
depois, o editor, proferiam o veredicto. Não é, pois estranho que na linha 10 das tábuas do
referido senatusconsultum se empregue a perífrase de rudem tollere para assim resumir o
papel público do árbitro: tal é o caso do summa rudis representado num grafito de Pompeia (a
que anteriormente nos reportámos), que se vira para o editor no momento em que o murmillo
Herennius acaba de levantar a mão para fazer parar o combate (fig. p. 134). Nessa altura, para
imprimir maior dramatismo e solenidade, os músicos faziam ressoar os seus metais.

No entanto, impelidos pelo calor da acção e pela violência das emoções, os gladiadores talvez
nem sempre obedeceriam de imediato às ordens do árbitro. Veja-se, a propósito, um dos
árbitros figurados no conhecido mosaico de Zliten (fig. ), que ele revela extrema dificuldade
em reter o braço de um eques, que pretende manifestamente acabar com o seu adversário, o

1856 B. Levick, «The Senatus Consultum from Larinum», JRS (1983), pp. 97-115; P. Moreau, «À propôs du sénatus-consulte
épigraphique de Larinum, gladiateurs, arbitres et valets d’arène de condition sénatoriale ou équestre», Revue des études latines,
vol. 61 (1983), pp. 36-48; C. Ricci, Gladiatori e Attori nella Roma Giulio-Claudia. Studi sul Senatoconsulto di Larino, Roma, 2006, p.
85ss.

616
qual já está tombado no solo; o árbitro, que entretanto largou a sua rudis, parece pedir ajuda
aos músicos, situados atrás dele, a fim de trazer à razão o irascível vencedor. Este género de
intervenção física de um árbitro num combate afigurava-se muito importante no âmbito global
dos munera gladiatórios. O objectivo não seria, pelo menos entre o fim do século I d. C. e o
início do II, matar rapidamente um oponente, mas de colocar o último em condições de
remeter a sua vida nas mãos do público e do editor. Se, no caso evocado no mosaico, o árbitro
não interviesse atempadamente, o vencedor, movido pela cólera, poderia privar os
espectadores de uma parte essencial do seu prazer.

Havia outra situação com que o árbitro inevitavelmente teria de lidar: quando um gladiador
vencido se recusava admitir a sua derrota, o que aconteceria mais vezes do que as fontes
antigas deixam supor. Esta eventualidade justificava plenamente a presença do secunda rudis
ou de outros ministri, a fim de restabelecer a ordem e submeter o combatente. É o que se
observa num relevo proveniente da necrópole marítima de Pompeia (fig. c. 20-30 d. C.,
Museo Nazionale Archeologico de Nápoles, foto 147 Bastida), onde um summa rudis está junto
de um murmillo vitorioso. Este empunha, ostensivamente, um pugio de lâmina afilada, numa
atitude que parece anunciar a iminência da execução do seu adversário: este tipo específico de
arma não corresponde às descobertas no ludus de Pompeia; é muito possível que se destinasse
exclusivamente para desferir o golpe fatal. Esta hipótese coaduna-se, aliás, com o facto de o
vencedor exibir o pugio, como que para a apresentar solenemente ao público. O gladiador faria
tal gesto certamente ao som dos instrumentos tocados pelos músicos que estavam na arena,
fornecendo deste modo uma maior dramatização do momento em que estava prestes a ser
morto um combatente. Diante do murmillo vencedor e do árbitro, vemos quatro ministri que,
aparentemente, tentam dominar um thraex ajoelhado, que segura ainda na sua sica com a
mão direita. A figura que se posiciona à frente do último, vestido com uma túnica, deve tratar-
se do secunda rudis: este já recuperou a parma do thraex, enquanto os ministri procuram
imobilizar o vencido que, ao que tudo indica, recusa a sua funesta sorte.

Deparamos com mais uma fonte iconográfica que mostra outro gladiador a ter uma atitude
«desonrosa» (por norma, a grande maioria dos combatentes da arena condenados à iugula
aceitava o veredicto com resignação e passividade): no baixo-relevo do monumento funerário
de Lusius Storax (fig. ; c. 30-50 d. C., Museo Nazionale de Chieti)1857: vemos um gladiador
derrotado a fugir, empunhando ainda na mão direita o gládio, mas o seu escudo está no solo (o
semicírculo assinalável no centro da imagem), o que indica que antes pedira a missio; esta não
lhe foi concedida, recebendo, pelo contrário, a condenação à morte; o combatente, então, em
desespero, deu meia volta e pôs-se a correr pela pista; na mesma cena, o vencedor mostra-se
perplexo ante tão atípico comportamento, pelo que vira a cabeça em direcção ao summa rudis
para que lhe diga o que fazer; a resposta do árbitro terá sido a de que perseguisse o vencido,
dado que o secunda rudis olha para o vencedor e aponta com a mão direita para o prófugo,
confirmando assim a ordem do summa rudis. Por que razão o último decidiu, aparentemente,
que o vencedor se lançasse no encalço do seu adversário, em lugar de mandar os harenarii
apanharem o fugitivo, ou que este fosse detido por uma flecha atingindo uma das suas pernas
(disparada por um dos archeiros que costumavam posicionar-se em nichos do podium)? Talvez
o summa rudis tenha pensado que uma perseguição resultasse num espectáculo mais
palpitante para o público. Estas tentativas de evasão não levavam a lugar algum, uma vez que
era impossível escapar da arena (onde havia os referidos arqueiros e, também, soldados).
Assim tudo acabava inevitavelmente com os harenarii apanhando e reduzindo pela força o
prófugo, que depois era conduzido de rastos até ficar defronte do vencedor, mantendo-o de
joelhos, na posição mais adequada para a sua execução 1858.

1857 Para uma descrição deste baixo-relevo: F. Coarelli, «Il monumento di Lusis Storax: il relievo com scene gladiatorie», ST-Mic
10 (1966), pp. 85-102.

617
Como acima dissemos, o árbitro podia esporadicamente atribuir uma vantagem a um
gladiador, ao privar o seu oponente do escudo. Então, quando ele tomasse esta decisão, o
secunda rudis encarregar-se-ia de recolher o escudo. Ao fazê-lo, impedia o combatente em
dificuldades de recuperar a sua arma defensiva, ao mesmo tempo que mostrava sem margem
para dúvidas a decisão do summa rudis ao público. Este género de intervenções, que jamais
são descritas na literatura antiga bem como no cinema, ocorreriam provavelmente com maior
frequência do que à partida se poderia supor, constituindo elementos estruturantes
fundamentais da natureza muito regulamentada das pugnas gladiatórias.

Durante os combates, os árbitros também podiam interpelar os gladiadores, ao darem ordens


inegavelmente codificadas: num grafito1859 procedente do Palatino (fig. ), contemplamos um
árbitro durante uma porfia opondo um retiarius a um secutor; o retiarius, chamado Antigonus,
foi representado mais detalhadamente do que o seu adversário, o que se deve ao facto de ele
possuir um palmarés com 20 combates no seu activo – dos quais seis premiados com coroas.
Em contrapartida, o secutor, Superbus 1860, igualmente um auctoratus, não possuiria um
curriculum digno de realce, ou, então, talvez o artista descurasse voluntariamente os dados
informativos sobre este gladiador por não gozar da sua preferência. Este grafito romano
destaca-se de outros sobretudo devido à presença de um ábitro, que, a título excepcional,
aparece acompanhado por uma legenda onde está escrito o seu nome, Casuntius, no interior
de uma espécie de cartela. Esta exerce neste caso, o que é igualmente muito raro, a função de
um autêntico «balão» ao jeito dos que se apresentam nos livros de banda desenhada, isto
porque nos mostra as palavras proferidas pelo summa rudis, através da fórmula «Casuntius
dicet accede». Ao dar esta ordem, Casuntius incita os dois gladiadores a combaterem.

Este testemunho é importante, na medida em que prova que a intervenção directa dos
árbitros durante as pugnas constituía uma das suas principais prerrogativas, invectivando os
combatentes que tivessem a tendência de se observarem demasiado de forma a recuperar o
fõlego e, assim, demorarem a entrar em acção. Faz-se menção a uma ordem idêntica em cenas
gravadas num pequeno vaso de bronze procedente de Reims, peça actualmente conservada no
Musée du Petit Palais, (Paris; fig. )1861: neste objecto, representaram-se dois duelos entre
retiarii e secutores. Numa das imagens, o retiarius Audax acabou de agarrar a cimeira do elmo
do secutor Hieron, tendo-o conduzido até ao solo, onde o mantém à sua mercê 1862. Ora
precisamente nesse momento, o árbitro coloca a rudis sobre o peito do retiarius, no claro
intento de o travar na sua acção, gesto bastante similar ao visível na composição que
ornamenta a garrafa de Isman el-Kharab. Ao intervir desta forma, o árbitro impedia que o
retiarius aproveitasse até ao fim a sua vantagem. A seguir, retomar-se-ia o combate, mas não
sem antes o summa rudis atribuir vantagem ao retiarius, privando o secutor, por exemplo, do
escudo ou do casco 1863. A ordem para prosseguir era então retransmitida pelos ministri, que
mostravam uma tabella onde estava escrito «Perseverate!», isto é, «Continuai!».

1858 A. Mañas Bastida, Gladiadores…, p. 128, foto 146.

1859AE, 1989, 00064; M. Langner, Antike Graffitizeichnungen…, nº 1021; M. Junkelmann, Gladiatoren…, est. 302, p. 169; F.
Gilbert, Gladiateurs, chasseurs et condamnés à mort…, p. 143.

1860Este brande um gládio de lâmina curta na mão esquerda. À sua direita, o «desenhador» parece ter desejado figurar um
scutum, mas denota hesitações ao representá-lo.

1861 F. Gilbert, Gladiateurs, chasseurs…, p. 138.

1862Trata-se da continuação lógica do gesto que faz o retiarius esculpido no cabo de um canivete, peça que se conserva no
Musée d’Avenches, Suíça.

1863 O elmo aparece representado já no solo, na segunda cena observável no outro lado do vaso.

618
Mas quem eram verdadeiramente os árbitros? A resposta não é simples nem linear. A maioria
dos académicos (como L. Robert 1864, e mais recentemente R. Dunkle 1865 ou M. J. Carter 1866)
defende que seriam antigos gladiadores, já retirados, que assim faziam lucrar o sistema dos
espectáculos graças à sua experiência enquanto combatentes. No entanto, G. Ville expressou
sérias dúvidas a este respeito, salientando ser estranho que que nas estelas funerárias de
árbitros jamais se mencione o passado gladiatório dos mesmos 1867.

Existia, como se infere, uma hierarquia arbitral que distinguia os summae rudes («varas
superiores») dos secundae rudes («varas secundárias»), clara referência à férula de que se
serviam nas suas intervenções durante as pugnas. Estas designações são interessantes, já que
se simbolizava a função do árbitro pelo seu acessório característico e não através da pessoa
que a exercia, exactamente como actualmente se fala em cinturões para diferenciar os
diferentes níveis em artes marciais como o judo, o karatê. Como anteriormente apontámos,
havia uma hierarquia análoga para os gladiadores - primus palus, secundus palus, tertius palus,
etc. - ou seja, «primeiro poste», «segundo» ou «terceiro», constituindo o vocábulo palus uma
menção ao poste de madeira que os gladiadores utilizavam para se treinar.

Porém, segundo F. Gilbert, «não temos maneira de apurar se os dois árbitros que
enquadravam um duelo seriam, necessariamente, um summa rudis e um secunda rudis, por
outras palavras, um árbitro principal e o seu assistente» 1868. Talvez os dois homens
pertencessem à mesma classe e fossem iguais ou idênticos ao nível de grau. De acordo com o
mesmo autor, ao contrário dos gladiadores, os árbitros não estariam tão sujeitos a receber o
labéu degradante de infames. Com efeito, conhecemos o caso de Publius Aelius, célebre árbitro
de Pérgamo, a quem uma série de cidades do Oriente helenístico atribuiu a cidadania 1869.
Vejamos o seu epitáfio:
«Aelia [a esposa] para Publius Aelius, o ilustre summa rudis de Pérgamo, membro do collegium de summae rudes
de Roma. Para o meu esposo, felizmente unido a mim em vida, tendo ele vivido 37 anos. Aelia erigiu isto em sua
memória. E ele foi cidadão das seguintes cidades: Tessalónica, Nicomédia, Larissa, Philippopolis, Apros, Berga, Tasos
e Byza».

Esta honra recompensaria, decerto, uma reputação que o homem só poderia ter ganho ao
viajar de cidade em cidade e ao participar em diversos munera. F. Gilbert considera que esta
«itinerância» mostra que os árbitros não estariam adstritos a uma localidade específica, nem a
um determinado edifício para espectáculos 1870. Neste sentido, gozariam de certa autonomia,

1864 «Une vision de Perpétue martyre à Carthage en 203», CRAI, 1982, pp. 262-263: Robert demonstrou que estes indivíduos
actuavam na qualidade de especialistas que garantiam que os gladiadores lutassem com bravura e segundo as regras; um summa
rudis era «un arbitre technique»; R. Dunkle, Gladiators…, pp. 71-72.

1865 Gladiators…, pp. 71-72.

1866 «Gladiatorial Combat: The Rules of Engagement», p. 102.

1867 Contudo, É. Teyssier considerou que este facto tem a sua lógica: ao tornar-se árbitro, o summa rudis transitava para outra
categoria profissional e, talvez, social; ele teria então de abandonar os seus vínculos com o ludus gladiatório para participar no
enquadramento do mundo do anfiteatro. Segundo o mesmo autor, não se afigura «possível que se confiasse esta tarefa, pelo
menos no caso do summa rudis, a alguém que não tivesse sólidas e reconhecidas competências em matéria de combate»: La mort
en face…, p. 499.

1868 Gladiateurs, chasseurs et condamnés à mort…, p. 55.

1869 O epitáfio de Aelius foi inscrito num altar em Ancyra (actual Ancara, Turquia). Transcrição do texto: L. Robert, Les
gladiateurs…, nº 90. A inscrição é acompanhada por uma representação de Aelius trajando uma túnica e segurando uma vara na
mão direita, como se estivesse a arbitrar um combate.

1870 Gladiateurs, chasseurs et condamnés à mort…, p. 55.

619
firmando contratos com os editores, da mesma maneira como faziam os lanistae. Se quisermos
estabelecer uma analogia, podemos compará-los aos árbitros actuais, integrados em
federações (locais, regionais, nacionais e intenacionais). Estas, ao tempo, eram os collegia, de
que atestamos a sua existência em Roma no começo do século II d. C. Os que tivessem fama
eram objecto de maior procura, actuando em grandes eventos.

O nome do mencionado árbitro de Pérgamo sugere que se trataria de um liberto do


imperador Adriano. Outros seriam escravos, havendo também indivíduos de condição livre. G.
Ville 1871 supôs que os secundae rudes teriam estatuto servil, mas que depois se viam
alforriados ao ascenderem à categoria dos summa rudis. Nas representações plásticas que
chegaram até nós, eles usam um tipo de calçado associado à «classe média», e não as botinas
das ordens dominantes, o que nos leva a rejeitar a hipótese de que pudessem pertencer à elite
da sociedade romana ou então a relativizá-la. O senatusconsultum de Larinum renovou,
efectivamente, a proibição de que membros da elite actuassem como árbitros em combates
gladiatórios, uma vez que, embora não maculada pela infamia, tal profissão não era digna de
acordo com o ponto de vista da consciência colectiva da «casta» dirigente.

Mas, à semelhança do que acontecia com os gladiadores auctorati, certos nobres passaram
por cima das interdições e exerceram esta actividade esporadicamente, fosse por paixão ou por
mero entretenimento. Uma inscrição de Paestum, de 24 d. C. alude à oferenda de uma estátua
pelos iuvenes ao seu summa rudis, M. Tullius Primigenius, um liberto que também foi
sacerdote do culto imperial (augustalis)1872. À primeira vista, seria muito difícil que este homem
conseguisse obter tal sacerdócio se antes tivesse sido gladiador.

Ao examinar as lápides fragmentárias de árbitros descobertas em Aphrodisias, É. Teyssier


notou que as erigidas em memória dos secundae rudes manifestam superior factura e
acabamento do que as destinadas aos summae rudes. Este historiador concluiu que os últimos
seriam antigos gladiadores recompensados pela rudis dos combatentes libertos, e os «árbitros-
adjuntos» (secundae rudes) notáveis locais que representavam o munerarius no meio da arena
1873
. Mas a última sugestão vê-se em contradição com a mencionada inscrição de Paestum.
Ademais, seria inimaginável que cidadãos respeitáveis optassem por deixar como derradeiro
testemunho a sua imagem no papel muito ocasional e não isento de opróbrio, em lugar de
aparecerem na qualidade de figuras importantes das suas comunidades, em pose condizente e
trajando a toga. Na realidade, a condição dos árbitros seria geralmente modesta: numa estela
em memória do árbitro Publius (representado em posição frontal com uma túnica, esboçando
o gesto de erguer a mão direita que segura a rudis), achada na Macedónia, referem-se as
profissões da maioria dos dedicantes, dois outros árbitros (um summa rudis e um secunda), um
praeco e um músico, assim como aparecem mais dez nomes de indivíduos cujas ocupações não
foram discriminadas.

Em resumo, tomando em consideração o teor das fontes antigas e a própria lógica, julgamos
que os árbitros seriam, em princípio, indivíduos que antes lutaram na arena como gladiadores,
o que lhes conferiria certo peso e autoridade no exercício das suas funções.

Nas imagens antigas, reconhecem-se facilmente os árbitros pelas suas amplas túnicas brancas
providas de duas finas bandas vermelhas ou negras: não se tratava propriamente de um

1871 La gladiature…, p. 371.

1872AE 1935, nº 27 = M. Buonocore, EAOR III, nº 64. Noutra inscrição, de Lucus Feroniae, alude-se também a um summaruda
[sic] iuvenum: G. L. Gregori, EAOR III, nº 36; Gregori sugeriu que um summa rudis envolvido nas actividades dos iuvenes era um
árbitro, embora como o treino com armas desses jovens englobava tanto a instrução como a competição, a diferença entre um
árbitro e um instrutor deveria ser mínima.

1873 La mort en face…, p. 341.

620
«uniforme» profissional, dado que os ministri que serviam como auxiliares no espectáculo
vestiam roupas idênticas. Apreciando tanto os Romanos os códigos cromáticos, é de
perguntarmos se tal diferença de cores nos clavi não funcionava como meio de distinção entre
os summae rudes e os secundae rudes. No entanto, não parece ter sido o caso, já que nos
mosaicos do Museo Arqueológico de Madrid e de Nennig as faixas são azuis (a menos que
tenha havido um terceiro grau de árbitros). O que singularizava principalmente a função era,
como referimos, o porte da rudis, uma vara com cerca de 120 cm de comprimento, já
assinalável na iconografia grega e etrusca. A análise de algumas cenas em que os dois árbitros
surgem ao mesmo tempo leva a pensar que só um deles ostenta uma rudis e que o outro não a
tem.

À primeira vista, a conclusão impõe-se por si mesma: o porte da rudis indicaria qual era o mais
graduado de ambos os árbitros. Seja como for, importa não nos precipitarmos, pela simples
razão de que nas fontes plásticas o secunda rudis figura muitas vezes parcialmente dissimulado,
daí não podermos verificar se ele possui alguma coisa na mão; no baixo-relevo do monumento
funerário de Lusius Storax (fig. gilbert, detalhe, p. 142), não se vê a rudis em nenhum dos
árbitros1874.

Em certas representações, mais insólito ainda é todos os árbitros manusearem a rudis, como
se assinala no vaso de vidro de Vindolanda (fig. gilbert, p. 57, em cima); para complicar ainda
mais a nossa compreensão, há ainda vários documentos figurativos em que um só árbitro pega
em duas rudes em simultâneo: assim, no medalhão de uma lucerna (fig. ), um árbitro
interpõe-se entre o thraex Sabinus (certamente o protegido do imperador Calígula que depois
caiu em desgraça no reinado de Cláudio) e o murmillo Popillius; em cada mão o árbitro segura
uma rudis com o mesmo tamanho, se bem que uma delas pareça mais flexível do que a
outra1875. No mosaico de Reims, bem como noutro de Cós, num grafito de Pompeia, no jarro de
vidro de Ismant el-Kharab (fig. detalhe, gilbert, p. 57) e, talvez até, no conhecido baixo-relevo
da Porta Stabiana, apercebemo-nos da presença de duas férulas com formas e, por vezes,
cores, distintas. Uma é mais curta, medindo uns 80 cm e pintada de negro, e a outra mais
longa, direita e beige. Se no medalhão da lamparina vemos duas rudes similares, nos demais
casos é de presumir que consistem em dois objectos com diferentes funções. G. Ville opinou
que um dos últimos não seria uma vara mas uma espécie de cacete ou bastão 1876.

No entanto, dificilmente se percebe a sua utilidade, devido à sua redundância, pois que os
árbitros empregavam a férula também para golpear os gladiadores em determinados
momentos. Provavelmente cabe aí ver um outro tipo de rudis, não a vara de comando dos
ásrbitros mas o bastão concedido aos gladiadores vitoriosos que, desta maneira simbólica se
viam libertos da obrigação de combater na arena, depois de efectuarem uma prestação
memorável ou no fim de uma carreira brilhante. Nos mosaicos tardios da Villa Borghese, véem-
se diversos gladiadores rudiarii, brandindo, cada um deles, o símbolo da sua liberatio, parecida
às rudes figuradas nas fontes icónicas acima mencionadas. Ao reproduzirem este bastão
particular nas suas obras, os artistas esclarecem o observador sobre o desfecho dos combates,
método expositivo largamente difundido nesse período. Em todo o caso, seria o árbitro que
entregava directamente a rudis libertadora ao combatente assim recompensado.

Embora as fontes literárias sejam quase omissas sobre o árbitro, o acervo iconográfico prova
que ele desempenhava um papel central e muito concreto, designadamente aquando da
finalização das porfias. Este papel, assim como os seus gestos, faziam deste personagem um
1874 F. Coarelli, «Il monumento di Lusius Storax: il relievo com scene gladiatorie», pp. 85-102.

1875 Fotografia da cena do vaso de Vindolanda: F. Gilbert, Gladiateurs, chasseurs et condamnés à mort…, p. 56.

1876 La gladiature…, p. 369.

621
actor importante mas muito subestimado ou esquecido numa considerável série de
abordagens sobre os munera. Não subsiste a menor dúvida que o árbitro era um elemento
fundamental e participativo na «cenografia» gladiatória, para além de um intermediário activo
entre a arena e as bancadas do anfiteatro. Para que este «diálogo» funcionasse, depressa se
tornou necessário que houvesse uma linguagem codificada entre os diferentes protagonistas
do espectáculo.

A missio: gesto do reconhecimento da derrota e do pedido de indulto à luz das fontes


iconográficas. O pollice verso: duas fontes literárias antigas e teorias modernas1877

Ainda que a gladiatura do Alto-Império não tenha sido aquela carnificina selvática e
desordenada que actualmente muitos ainda imaginam, o certo é que esta actividade
significava efectivamente um ofício de elevado risco, em que a possibilidade de um desfecho
fatal era manifestamente reconhecida. Todavia, sublinhemos que a taxa de mortalidade na
gladiatura variou consideravelmente ao longo do tempo. A «proto-gladiatura étnica» não se
revelou parcimoniosa no derramamento de sangue dos combatentes; ela fundamentava-se na
utilização de prisioneiros de guerra considerados «bárbaros», não passando estes de indivíduos
para os quais a morte se afigurava inevitável. A sua execução na arena correspondia, portanto,
ao desenlace normal reservado aos inimigos vencidos que se opuseram, em diversos
momentos históricos, aos exércitos de Roma. Mas quando os gladiadores se converteram em
profissionais amiúde voluntários, praticando técnicas de combate cada vez mais elaboradas, a
sorte dos mesmos conheceu, forçosamente, uma evolução.

A partir do Principado, Augusto parece ter proibido as execuções sistemáticas, como, aliás,
realçou Suetónio: «Ele [Augusto] proibiu de fazer combater os gladiadores até à morte».
Atentemos às palavras escritas em latim pelo historiador – «gladiatores, sine missione edi
prohibuit» (Divus Augustus, 45). É possível interpretar esta frase de duas maneiras: a primeira é
pensar que Augusto interditou determinado género de combates 1878, nos quais já estaria
previsto que o vencido seria morto no final do confronto, «sem possibilidade de missio». Para
os restantes combates, a morte poderia ser, apesar de tudo, um facto consumado, desde que o
público e o editor proferissem tal sentença; a outra hipótese interpretativa radica em
compreender sine missione como a proibição da execução em todos os casos, pelo que o editor
se veria constrangido a conceder a missio.

Com efeito, embora o vocábulo missio, no sentido de «perdão/indulto/graça» ou de


«remissão com vida» seja bem conhecido, não parece ter existido um termo concreto para
qualificar o acto de condenar o gladiador derrotado. Neste sentido, a expressão sine missione
reporta-se, decerto, à execução do vencido, mas sem que este acto possua um carácter
sistemático. Esta segunda interpretação afigura-se mais credível por várias razões: primeiro, os
combates em que a morte fosse obrigatória para o vencido estariam em flagrante contradição
com o próprio princípio da gladiatura. Claro que o facto de se saber antecipadamente que o
derrotado iria perder a vida podia servir como um significativo estímulo para os combatentes.
No entanto, esta perspectiva pouco mudaria em relação a uma morte quase garantida em caso
1877 Sobre esta matéria: M. Junkelmann, Gladiatoren…, pp. 136-142; É. Teyssier, La mort en face…, pp. 341-362; K. Nossov,
Gladiator…, pp. 159-163R. Dunkle, Gladiators…, pp. 130-138; F. Gilbert, Gladiateurs, chasseurs et condamnés à mort…, pp. 146-
149.

1878Para além de proibir que se travassem combates sem direito à missio, Augusto criticou publicamente os espectáculos cruéis
apresentados pelo avô do futuro imperador Nero, L. Domício Aenobarbo (Domitio Ahenobarbus), em 16 a. C.: Suetónio, Nero, 4; J.
Carlsen, The Rise and Fall of a Roman Noble Family: The Domitii Ahenobarbi 196 BC-AD 68, Odense, 2006, pp. 80-81.

622
de uma má prestação. Além disso, os espectadores no anfiteatro sentir-se-iam frustados por
lhes ser roubado grande parte do seu prazer, ou seja, de «optar» por salvar ou não o gladiador
vencido. Acrescer que tais pugnas sine missio, particularmente cruéis, em que o funesto
destino do derrotado já se encontrava determinado, não se mostram muito verosímeis,
sobretudo sob o Alto-Império.

Por último, precisamente na fase em que a gladiatura técnica estava a terminar a sua
mutação, no tempo de Augusto, seria estranho que se organizassem espectáculos em que os
gladiadores derrotados não tinham quaisquer possibilidades de sobreviver,
independentemente da qualidade da exibição que fizessem durante os combates. Também
cabe recordar que Augusto, grande apreciador do pugilismo e do pancrácio, deve ter
privilegiado a faceta «desportiva» na gladiatura. Assim, durante o seu reinado, nas pugnas só
podiam registar-se mortes por acidente ou, então, na sequência de ferimentos muito graves.
No entanto, desde o tempo do seu sucessor filho adoptivo Tibério, voltou a haver execuções:
«Druso [filho de Tibério] ofereceu, em nome de Germânico, seu irmão, e do seu, um munus gladiatório, ao qual
presidiu e assistiu ao derramamento de sangue […] com uma alegria de masiado manifesta. O povo alarmou-se com
isto e o seu pai, diz-se, repreendeu-o».

Depreende-se que o público estaria à espera de uma certa moderação por parte do editor,
uma vez que era filho do imperador. Embora se encarasse como «vil» o sangue vertido pelos
gladiadores, caso um munerarius evidenciasse um excessivo prazer em fazê-lo derramar, os
espectadores ficariam negativamente impressionados ao observarem num Princeps um rasgo
de carácter bastante inquietante. Parece, pois, que a morte sistemática dos vencidos não seria
o objectivo buscado nessa pugnas, pelo menos no começo do Alto-Império. A frequência das
execuções de gladiadores devia variar consoante as tendências ou intenções do editor, se bem
que seja difícil dizer até que ponto. Cláudio, por exemplo, apesar de culto, aparece descrito
como um imperador sanguinário. Suetónio não deixou de salientar, em várias ocasiões, a
natureza bizarra da personalidade deste imperador:
«O seu carácter cruel e sanguinário evidenciava-se tanto nas pequenas como nas grandes coisas […] Nos combates
de gladiadores, organizados por ele ou por outros, mandava degolar os que haviam caído, mesmo que
acidentalmente, sobretudo os retiarii, porque nestes se via bem o seu rosto quando entregavam a alma […] Ele
adorava os espéctaculos com animais e os combates do meio-dia. Ao alvorecer, dirigia-se para a arena, onde
permanecia durante o meridianum spectaculum. Enquanto o público saía para comer, ele ordenava que se
defrontassem não só os combatentes previstos no programa, mas também, sob determinado pretexto, outras
pessoas que escolhia entre os obreiros ou os auxiliares da arena, quando algum mecanismo não tivesse funcionado
bem» (Claudius, 34).

Nos reinados subsequentes, a possibilidade de um gladiador derrotado perecer permaneceu


uma constante, como se atesta pelos numerosos grafitos parietais de Pompeia. Vários deles
exibem o P de perit, indicando os combatentes que foram mortos na arena. Perit, todavia, não
queria dizer necessariamente que o gladiador vencido sucumbisse a seguir ao combate. Com
efeito, algumas inscrições aludem a casos de MP. As duas letras querem dizer que o
combatente fora agraciado (missos) mas que não sobrevivera à gravidade dos ferimentos
sofridos. Quanto aos que fossem simplesmente executados têm apenas a inicial P a
acompanhar os seus nomes ou imagens.

Bastante mais tarde, só Marco Aurélio tentou regressar às leis de Augusto, mas apenas se
aplicando em espectáculos em que estivesse presente, sinal claro de que a gladiatura não
podia mais ficar desprovida da possibilidade cada vez mais garantida da morte dos gladiadores.
Normalmente, à excepção de algum acidente, um combatente não estava autorizado a
aniquilar o seu adversário sem antes receber a ordem do editor.

623
Apenas uma cena em relevo, pertencente ao monumento funerário do duumvir Cn. ou N.
Clovatius, mostra um gladiador a assestar um golpe mortal em pleno combate. Neste caso, a
estocada, tal como foi representada, mataria forçosamente o oponente (fig. ): tendo enterrado
a sua lâmina pelo menos uns dez centímetros no corpo da vítima, através do fígado, o
hoplomachus atingiria indubitavelmente um dos pulmões do murmillo. Este golpe, desferido de
baixo para cima em pleno combate seria letal num curto espaço de tempo.É curioso que num
corpus iconográfico gladiatório que comporta várias centenas de cenas de porfia, só haja uma
composição a ilustrar um homem sendo atingido mortalmente no calor do prélio. Nessa
representação, o acto explica-se pelo facto de o murmillo ter desejado prosseguir o combate
sem o seu escudo, o que naturalmente acarretava riscos acrescidos 1879.Seja como for, este tipo
de desfecho não deveria agradar ao público. De facto, a morte de um gladiador constituía o
ponto culminante de todo um espectáculo, pelo que devia ser um momento fortemente
ritualizado e os espectadores tinham sempre enorme interesse em participar no destino a dar
aos combatentes que eram derrotados.

Por outro lado, a morte dos gladiadores e o gesto codificado que a pedia foram
frequentemente representados, só que já nos tempos modernos. Assim, o famoso gesto do
polegar virado para baixo simboliza, per se, o suposto sadismo característico dos Romanos.
Verdade se diga que um considerável número de filmes contribuiu para celebrizar tal imagem:
desde Lawrence Olivier, no papel do insensível e calculista cônsul Crasso em Spartacus, até à
mais recente película Gladiator, na qual Joaquin Phoenix encarna o imperador Cómodo,
maníaco e sanguinário, passando ainda de permeio pelo afamado Quo Vadis, em que Peter
Ustinov faz de um Nero debochado, todos eles abaixaram o polegar fatal. Na realidade, porém,
nenhuma fonte icónica romana figura este gesto que, paradoxalmente, se tornou praticamente
lendário. Mas, cabe referir, não foi a indústria cinematográfica dos Estados Unidos da América
que esteve na origem deste estereótipo: a responsabilidade coube ao pintor e escultor francês,
Jean-Léon Gérôme, que criou e figurou tal gesto no seu conhecido quadro intitulado Pollice
verso (ultimado em 1872 e actualmente pertencente no Phoenix Art Museum, Arizona, E. U.
A.). Esta composição pictórica aparece reproduzida na maior parte das obras dedicadas ao
estudo dos gladiadores (muitas vezes na própria capa), com tão reduzido espírito crítico que,
aos olhos de alguns, ela até pode encarar-se como uma fonte autêntica. Para a representação
dos gladiadores, o artista procedeu a uma acumulação de referências com base nos
conhecimentos obtidos ao longo dos séculos XVIII e XIX. A partir dos elmos descobertos em
Pompeia e da canção citada por Festo, alusiva ao murmillo, Gérôme «forjou» o casco do
combatente vencedor que se perfila no centro da pintura.

Desde então, esta imagem pictórica converteu-se numa referência quase incontornável em
muitas descrições sobre o fenómeno gladiatório. Além disso, ao escorar-se num conhecimento
real das fontes mas ao fazer destas uma má interpretação, Gérôme criou igualmente o gesto do
polegar virado para baixo, o qual não tardou a ser reutilizado, porque considerado
suficientemente espectacular, no filme mudo italiano Quo Vadis, produzido em 1912: nesta
película, o realizador, Enrico Guazzoni chegou mesmo a reproduzir a própria cena pintada por
Gérôme no Pollice Verso. A partir daí, os filmes norte-americanos repegaram no gesto,
assegurando deste modo a sua popularidade 1880.

O que nos dizem, em concreto, as fontes antigas sobre este famoso gesto? Só duas obras
literárias o evocam: Juvenal constitui a primeira ocorrência do verso pollice (e não do pollice

1879O hoplomachus, ao bloquear o braço direito do murmillo, entre o seu elmo e a sua parma, mergulha metade da sua adaga
na zona do fígado do adversário. Este, que perdeu o escudo, não pôde esquivar-se a este golpe mortal.

1880O quadro de Gérôme continua a surtir um poderoso efeito nos observadores. Foi, aliás, ao mostrarem esta obra pictórica
que os produtores da empresa cinematográfica Dreamworks convenceram o britânico Ridley Scott a realizar o famoso Gladiator,
que estreou em 2000.

624
verso, o título do quadro de Gérôme). Eis o teor do trecho contido numa das sátiras, onde
ataca os novos-ricos das províncias, que buscavam fazer olvidar a duvidosa origem das suas
fortunas, ao oferecerem espectáculos para captar as boas graças da plebe:
«Não há muito, os cornicines [músicos que tocavam o cornu] das arenas das cidades provinciais, eram apenas
conhecidos, com as suas bochechas inchadas, nas aldeolas; agora, eles financiam os munera e, quando o povo tal
ordena, ao virar o polegar (verso pollice), mandam matar para ficarem bem vistos; e, depois, ao abandonarem a
arena, eles propôem-se fazer obras para as latrinas públicas [...]» (Saturae, III, 36).

A segunda menção ao verso pollice encontra-se num texto muito mais tardio, o Contra
Symmachum, de Prudêncio. Na seguinte passagem, o autor pretende denunciar as pulsões
sanguinárias das sacerdotisas pagãs que eram as Vestais:
«E ao peito daquele que está por terra, a honesta virgem, ao revirar o polegar (converso pollice), ordena que se
trespasse» (XI, 1098-1099).

Estes dois testemunhos não lidam directamente com os gladiadores, mas obedecem antes ao
propósito de criticar, através do recurso ao instante crucial da morte do combatente vencido,
os contemporãneos que a reclamavam. Contudo, o excerto de Prudêncio suscita dúvidas
quanto à sua veracidade, isto basicamente por um motivo: ele, enquanto cristão, não poderia
assistir a este género de espectáculo, proibido que estava por todos os Doutores da Igreja. Do
mesmo modo, a ideia de que as Vestais reclamavam, a todo o custo, a morte dos gladiadores
não se coaduna com certas realidades romanas. Com efeito, as Vestais possuíam, entre outras,
a prerrogativa de conduzir ao perdão os que fossem condenados à morte. Seria, pois,
espantoso que elas exigissem, enfurecidas, no anfiteatro a morte dos combatentes.

Importa insistir na data do testemunho de Prudêncio – o Contra Symmachum foi redigido em


princípios do século V d. C., num momento em que a gladiatura já quase havia desaparecido.
Por último, este texto consiste num virulento ataque contra as derradeiras manifestações do
reduto pagão que ainda existia em Milão, numa altura em que o cristianismo já havia triunfado.
Ao descrever as virgens pagãs, que eram as Vestais, plenamente envolvidas num acto
criminoso e hediondo, Prudêncio desejava valorizar, mediante um contraste, a doçura e a
inocência das virgens cristãs. Ora, num tal contexto, a realidade gladiatório pouco importaria
ao autor, servindo apenas como pretexto para o desenvolvimento do seu ideário. Ainda assim,
alicerçou-se em fontes literárias antigas, mais concretamente Juvenal, só que apresentando os
combates à sua maneira.

Posto isto, a natureza exacta do conhecido gesto fatal fundamentou-se numa só referência
literária, que, como bem demonstrou Michel Dubuisson num artigo, foi mal compreendida: «O
vertere de Juvenal, que Prudêncio considerou útil precisá-lo como convertere, está longe de ter
sido sempre interpretado dessa maneira. Para os comentadores do início do antepenúltimo
século … pollice verso, pelo contrário, significava ”'o polegar estendido em direcção a um
objecto (no caso em questão o próprio peito daquele que faz o gesto) …. A intuição dos
mesmos pode, aliás, verificar-se rapidamente … o complemento de vertere, quando existe, é
constantemente introduzido por in ou ad, seguidos pelo acusativo (“para” ou em “direcção de
alguém/ou de qualquer coisa”, representando um objectivo a atingir); assim, não há qualquer
razão para se supor que este mesmo verbo … servisse, de repente, para designar uma direcção
de cima para baixo. Pollice verso apenas poderia significar “polegar virado para” ou “polegar
estendido”»1881.

Consequentemente, o gesto da morte, tão importante na imagética da gladiatura, assenta em


frágeis indícios. Ora se o sinal fatal habitualmente aceite pode, legitimamente, ser posto em

1881«Pouce! Les vertus du retour au texte», Journée de rencontres organisée par le Service de didactique des langues classiques
de l’Université de Liège, Liège, 2004, pp. 53-60.

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dúvida, o mesmo se aplica também ao gesto indicando o contrário: de facto, o polegar virado
para cima, entendido como a concessão do perdão ao vencido, limita-se somente a uma
especulação dos tempos hodiernos, não se encontrando atestada por alguma fonte antiga, seja
literária, seja iconográfica.

Anthony Corbeill, por seu lado, salientou que, à luz da mentalidade romana, o polegar
simbolizaria o pénis e, extensivamente, o gesto do polegar virado para baixo seria o
equivalente de dar ao gladiador vencido «o dedo». O mesmo autor realçou também que o sinal
moderno do «polegar para cima» não possuía um significado positivo até ao século XIX (na
altura em que Gérôme pintou o Pollice Verso, o sinal do polegar para baixo já adquirira um
sentido negativo). Corbeill descreveu assim a evolução deste gesto: «Paralelamente à
representação do falo na Antiguidade romana, os significados originariamente apotropaicos do
polegar passaram a ser percebidos como hostis e ameaçadores» 1882.

Houve, indubitavelmente, diferentes formas de se manifestar a vontade de conceder a missio,


podendo até efectuar-se um sinal parecido ao pollice verso, só que com o sentido
diametralmente oposto. Num contexto não ligado à gladiatura, Plínio-o-Velho designa a
aprovação através da expressão pollicem premere (Nat. Hist. 28, 25): traduzida como
«premir/comprimir o polegar», ele corresponderia ao acto de se meter o polegar no interior da
mão, ou melhor, de acordo com uma interpretação mais corrente, «apoiar o polegar no
indicador, em jeito de aprovação». Estes gestos, indicando a vida e a morte, tinham a sua
lógica: se partirmos do princípio que a palma da mão aberta simbolizava um homem, o polegar
representaria a sua arma; se um indivíduo esticasse o polegar em direcção ao gladiador
derrotado ou apontando com o dedo para si próprio, o sinal traduziria claramente a intenção
de mandar eliminar o combatente.

Note-se, a propósito, que actualmente, para ameaçar alguém de morte, ainda se faz o gesto
da degolação com o punho fechado e o polegar esticado passando pelo pescoço. Pelo
contrário, estando o polegar dentro do punho ou comprimido pelo indicador, isto significaria
que os espectadores e o editor expressavam a vontade de a arma retornar à sua bainha, isto é,
que se poupasse o gladiador. Seja como for, desde Oitocentos, tais gestos passaram a ocupar
um lugar fundamental no imaginário colectivo.

Por vezes, quase parece que os conhecimentos sobre a gladiatura se limitam praticamente a
este facto. Contudo, voltamos a afirmar que nenhuma das numerosas fontes associadas à
gladiatura permite que vislumbremos tais gestos. A única imagem que nos mostra um
munerarius a fazer um gesto encontra-se na parte direita de um grafito que, na realidade,
pouca ajuda nos dá sobre tal questão (fig. p. 134). Para o anónimo pompeiano que garatujou
essa cena, o essencial não se cingia ao gesto do editor, que reproduziu de modo muito
esquemático, apenas se vendo o seu antebraço esquerdo erguido: em contrapartida, a posição
do árbitro virado para o patocinador do munus mostra explicitamente o vínculo que existia
entre os dois personagens no momento imediatamente anterior à morte do gladiador vencido.
No grafito, refere-se que o murmillo Herennius foi degolado. Se nos basearmos neste singular
testemunho plástico, presumimos que o editor transmite a sentença fatal ao levantar,
simplesmente, a mão esquerda (sinistra), enquanto o summa rudis também estende a mesma
mão, como se estivesse a repetir o sinal aos combatentes.

Talvez divisemos outra pista num baixo-relevo fragmentário da Glyptotek de Munique


(datando de finais do século I d. C.): nele se representa o fim de uma pugna entre dois equites:

1882Nature Embodied: Gesture in Ancient Rome, Princeton/NJ, 2004, pp. 49-50. De acordo com o raciocínio de Corbeill, a
ambígua expressão de Juvenal do «polegar virado», enquanto sinal de condenação por parte do público, corresponderia ao
polegar virado para cima. Do mesmo autor, consulte-se igualmente o artigo intitulado «Thumbs in Ancient Rome: Pollex and
Index», Memoirs of the American Academy in Rome, 42 (1997), pp. 1-21.

626
ao som dos instrumentos de sopro, o vencedor está prestes a golpear o adversário, que se acha
a seus pés. Por entre os dois tubicines, aparece uma mão esquerda na cena. Como a parte
esquerda desta composição não se conservou, é impossível apurar ao certo a quem ele
pertenceria: mas não seria certamente a do munerarius, parecendo-nos mais plausível que se
trate da mão do árbitro, que se posicionaria atrás dos músicos. Não resta a menor dúvida que
esta mão desempenha um papel concreto na imagem. Ao tomarmos em consideração o
instante que se figurou na superfície pétrea, pode perfeitamente tratar-se da transmissão da
decisão fatal tomada pelo editor ao gladiador que vencera o combate. Então, esses três dedos
estendidos em direcção ao vencido corresponderiam ao «polegar dirigido para» mencionado
por Juvenal. Afora este caso, não temos notícia de qualquer imperador ou editor provincial que
tenha sido representado a efectuar este gesto que tanto cativou os Modernos.

Assume pleno interesse sublinhar a distorção existente entre a «nossa» visão da gladiatura e
as representações que os Antigos nos deixaram: ela demonstra que o que é mais importante
para nós não o era para os Romanos. No fundo, quase se poderá dizer que talvez estejamos
mais sedentos pelo derramamento do sangue do que o povo de Lácio.

Embora os gestos indicando a vida ou a morte nunca apareçam plasmados nas


representações de gladiadores, afigura-se indubitável que se aplicava toda uma linguagem
gestual durante os munera. Em muitas imagens, observamos os combatentes derrotados a
voltarem-se para o editor ou para o seu oponente, na expectativa de saberem que sorte lhes
estaria reservada. Independentemente de quais seriam tais gestos, o certo é que se afirmariam
bem claros. A multidão, por seu lado, manifestava-se no anfiteatro sobretudo através de gritos,
assunto que merecerá mais comentários na alínea dedicada ao público neste capítulo.

Os gestos eram principalmente importantes para o summa rudis e para o editor: o primeiro
manifestava o seu ponto de vista quanto à realidade do combate e dava uma «opinião
profissional» que deveria caracterizar-se pela sua isenção; o último tinha a palavra final e
tomava a decisão, anunciando o veredicto, ao apoiar-se, em regra, na vontade do público. O
gesto teria de ser suficientemente preciso e inteligível tanto para os espectadores como para o
árbitro. Este transmitiria, por seu turno, a decisão ao gladiador vencedor, a fim de que
executasse a sentença ou, alternativamente, de que deixasse o seu adversário sair vivo da
arena. Para a sentença, a opinião dos espectadores teria, necessariamente, que ser tida em
conta. No entanto, a contagem dos votos expressos por milhares de mãos, traduzindo opiniões
diversas, num anfiteatro, não nos parece muito verosímil. Importa frisar que o único
testemunho de que dispomos sobre o sinal feito com a mão, proporcionado por Juvenal, diz
apenas respeito ao editor. Quanto ao público, nenhum texto ou imagem o ilustra nessa atitude.

A manifestação de uma escolha, para além dos brados e da gritaria, teria de assumir uma
forma mais visível, a fim de que se obtivesse uma melhor visão do conjunto. Sobre este ponto,
Marcial, que seria um frequentador assíduo dos espectáculos gladiatórios, oferece-nos uma
indicação preciosa:
«Há pouco tempo, quando se pedia o perdão de Myrino, que estava ferido [Myrino peteretur missio laeso],
Hermógenes conseguiu roupar quatro lenços [mappas]».

A única maneira para se entender este excerto de um epigrama é presumir que um


espectador, Hermógenes surripiara os lenços ou pedaços de tecido que os seus vizinhos de
bancada utilizariam para expressar a sua vontade de agraciar o gladiador Mirino. Este, apesar
de ferido, merecia ser poupado, mas as pessoas que se encontravam sentadas perto do
inveterado cleptomaníaco não tiveram forma de solicitar a missio. Com efeito, mais do que se
mostrar o polegar para cima ou para baixo ou noutra posição qualquer, o acto de se agitarem
lenços brancos permitiria ao conjunto dos espectadores transmitir a sua vontade, a qual se

627
tornava, assim, mais clara para o editor, quando avaliava a principal tendência do público em
cada pedido de perdão por parte de um gladiador. Embora o munerarius fosse o senhor da
decisão final, esta deveria estar em conformidade com a vontade do povo: se o editor ordenava
a morte de um gladiador que a multidão desejava salvar, ele seria decerto taxado de cruel; se,
pelo contrário, ele concedesse a missio a um homem que os espectadores haviam condenado à
execução, poderia ver-se acusado de avareza, ao pretender poupar nas despesas. Em ambas as
situações, o seu veredicto seria encarado como uma grave injustiça aos olhos do público, que
desta forma se achava privado do poder que estava plenamente convencido de possuir no
anfiteatro.

Imaginemos, actualmente, que um apresentador de um programa televisivo solicita a opinião


da audiência sobre determinado assunto e, a seguir, toma uma decisão abertamente oposta à
escolha que a maioria dos telespectadores fez. Ao agir assim, o primeiro pode correr o risco de
não mais participar no programa. Ora, em certa medida, algo de semelhante aconteceria ao
futuro ou às ambições políticas de um editor que não respeitasse a vontade do público. Na
realidade, pouco importava que um gladiador perecesse de imediato ou fosse morto no dia
seguinte: era, isso sim, importante e essencial que cada pessoa que asistisse ao espectáculo, tal
como um telespectador actual, ficasse com a ideia de ter contribuído para a decisão final. Daí a
relevância da existência de um modo de expressão que servisse para transmitir a opinião do
público sem qualquer margem de erro. Os lenços referidos por Marcial constituiriam, a este
respeito, uma solução prática, os quais ainda são utilizados no mundo da tauromaquia 1883.

O corpus iconográfico gladiatório revela que esse instante crucial comportava variantes
bastante significativas. Quando um dos combatentes reconhecia a sua derrota e pedia o fim da
porfia, o gesto que faria seria, sem dúvida, o de apresentar a palma da mão direita aberta ou,
então, apontar com o indicador em direcção ao firmamento ou, mais concretamente, para o
editor 1884. Este sinal com um dedo erguido lembra outro, muito parecido, que se empregava na
luta greco-romana e no pancrácio, que significava a suspensão da competição e o
reconhecimento da derrota por um dos adversários 1885. Consequentemente, este gesto
constituía mais um elemento de convergência entre os desportos de combate helénicos e os
gladiadores. Observamos tal momento nos motivos decorativos de várias lucernas, mas o gesto
diferiu provavelmente consoante os períodos históricos ou as regras que estivessem vigentes a
nível local. Também podemos supor que nem sequer houvesse outra regra para além da de
exprimir cabalmente que a pugna terminara. Afora o gesto per se, a própria atitude revelada
pelo combatente determinava o fim da pugna: neste sentido, pois, o facto de um gladiador
arrojar ostensivamente as suas armas para o solo devia também conduzir à pronta intervenção
do árbitro e ao anúncio explícito do vencedor.

Encontram-se cenas deste género em diversos relevos e mosaicos, como o de Zliten (fig. p.
336). Em cada um dos exemplos os gestos figurados exibem variantes: pode-se ver o indicador
estendido ou a palma da mão esquerda aberta, conforme se assinala nas composições
escultóricas do monumento funerário de Umbricius Scaurus (Pompeia), onde aparecem sete
pares de gladiadores: dois estão a lutar (fig. p. 292), outro é representado no instante da morte
do vencido (fig. p. 86 em cima) e nos restantes quatro pares observa-se o momento em que o
vencido se vira para o editor, fazendo-lhe o sinal de que admite a sua derrota. A importância
que o encomendador destas cenas atribuiu a essa fase mostra bem que se tratava de um

1883Quando um toureiro acabou de realizar uma série de passes brilhantes durante uma faena, o presidente da corrida faz sinal,
ao agitar um lenço, à orquestra para que comece a tocar.

1884 É este o gesto que Marcial evoca com a expressão ad digitum.

1885 Com efeito, a ideia da rendição através do erguer de um dedo teve origem nos desportos de combate gregos
(αγρεινvδάκτυλον): El deporte en los proverbios griegos antiguos, Hildesheim, 2001, pp. 31-32.

628
aspecto fundamental na gladiatura. Nesses quatro pares, dois dos gladiadores apontam com o
indicador para cima, ao passo que os outros dois abrem a palma da mão esquerda. A utilização
da última explica-se possivelmente por ser a que segurava o escudo, a arma essencial dos
gladiadores. Além disso, a mão direita, que brandia o gládio ou a adaga, estava coberta por
uma manopla (ou guante) espessa e feita de couro, o que poderia impedir de a tornar
plenamente visível ao efectuar tal gesto. No «Vaso de Colchester» 1886, que contém uma das
melhores cenas descobertas em Inglaterra de um combates gladiatório, representou-se um
retiarius chamado Valentinus a erguer o indicador, estando à sua frente, brandindo o gládio, o
vitorioso secutor Memnon (fig. ; século II, Colchester Castle Museum).

Num pormenor de um relevo funerário (fig. p. 86, em baixo) procedente de Amysos (Turquia,
século II d. C., actualmente no Musée du Cinquentenaire, Bruxelas), observamos uma curiosa
variante: neste caso, onde se defrontam dois provocatores, não só o gladiador caído por terra
perdeu a sua arma, como também Diodoros se apoderou da mesma; ambos os oponentes
retiraram os elmos, jazendo o vencido no solo 1887. O último levanta a mão direita, aberta,
dirigindo o seu polegar para o seu vitorioso oponente. Existem mais testemunhos plásticos
exibindo o combatente derrotado no solo, mas com o indicador apontado em direcção do
editor. Note-se que este tipo de cena se atesta, de maneira similar, tanto para o murmillo como
para o thraex. Tais diferenças na descrição do tema do vencido refelectiam, por certo, o desejo,
por parte dos fabricantes de lucernas decoradas, de satisfazerem a sua clientela, na qual
haveria adeptos não apenas dos grandes escudos como igualmente dos grandes 1888.

Nesse momento dramático, o amator da gladiatura sentir-se-ia investido de grande parte do


seu poder para perdoar ou condenar à morte o combatente que estava ajoelhado na arena. A
sensação experimentada por cada um dos espectadores, por intervir no destino dos
gladiadores, decidindo a sentença em função da coragem e da destreza que eles haviam
demonstrado ou não nos combates, seria decerto a motivação essencial do público 1889.

Se nos cingirmos às imagens esculpidas em lucernas, este instante parece ainda mais
relevante que o da própria execução de um gladiador. Com efeito, muito rara e, geralmente
atestada em fontes icónicas tardias, a morte jamais se representa nas lamparinas de azeite.
Afinal de contas, contrariamente às ideias preconcebidas dos Modernos, a realidade da
gladiatura seria bastante menos rígida do que à partida se supõe. Também importa lembrar
que este fenómeno perdurou ao longo de séculos em cenários geográficos muito distintos.
Mais do que um tipo de gesto único e imutável (o polegar virado para baixo ou para cima),
seria mais a própria atitude do gladiador que teria de se afigurar bem evidente aos olhos de
todos. Estender o indicador da mão esquerda ou mostrar esta aberta constituiriam dois meios
adequados para comunicar ao árbitro, ao público e, se possível, ao vencedor, que o combate
havia findado1890. No fundo, o gesto em si mesmo pouca importância teria, contanto que cada
actor no espectáculo soubesse o que devia fazer. Para o árbitro, tinha de intervir com toda a

1886T. Wiedemann, Emperors and Gladiators, fig. 12; S. Wisdom, Gladiators 100 BC-AD 200…, p. 23. Trata-se de uma peça em
terra sigillata. Contudo, no caso concreto dos retiarii e dos gladiadores canhotos/scaevae, estes erguiam o indicador da mão
direita (como o faz Valentinus), já que tinham o braço esquerdo protegido pela manica, o que não oferecia garantia absoluta de
que se haviam rendido.

1887Veja-se M. J. Carter, «Blown Call? Diodorus and the Treacherous Summa Rudis», Zeitschrift für Papyrologie und Epigraphik
177 (2011), p. 63 (onde se descreve a lápide e o epitáfio de Diodoros), 64 (fotografia do baixo-relevo e da inscrição). Porém, se
bem que no relevo Diodoros parece ter vencido o duelo, na realidade acabou por perecer no mesmo, como a inscrição funerário
refere. Voltaremos a estudar este caso neste capítulo.

1888 P. Veyne escreveu que «estas imagens nas lamparinas são de reduzido tamanho e pouco detalhadas». Estas palavras
resumem uma corrente de opinião largamente disseminada, daí, em parte, a insuficiente atenção prestada a estes preciosos
documentos.

1889 É igualmente o que ressalta dos comentários de Equião no Satyricon.

629
celeridade para impedir que o banho de sangue ocorresse antes da altura certa, o que,
aparentemente acontecia com bastante facilidade. Ainda que envolvido no calor da refrega, o
gladiador vencedor devia compreender, a tempo, que seria inútil prosseguir com a vantagem
que já obtivera. Por fim, o gesto de abandono de um dos combatentes balizava o instante tão
almejado pelo público, pois que se tratava da sua entrada em cena, enquanto actor, no drama
que estava prestes a acontecer.

Num mosaico atrás analisado, descoberto em Roma, datando de finais do século III ou de
começos do IV (conservado no Museu Arqueológico de Madrid), que descreve o confronto
entre o retiarius Kalendio e o secutorAstyanax, observam-se o summa rudis e o secunda rudis a
fazer cessar o combate: nesta imagem, o fim da pugna é manifestado pelo retiarius. Não
obstante a vantagem que ele poderia ter explorado ao enrolar a sua rede no elmo do secutor,
este, contudo, não esmoreceu e reagiu, chegando a atirar o adversário ao solo. Face ao
oponente, o retiarius mostra a sua adaga na mão direita 1891. Neste instante, o árbitro situado à
esquerda (certamente o secunda rudis, visto que não exibe a rudis), levanta a mão direita com
a palma aberta e olha para o secutor Astyanax, por forma a evitar que este continue a lutar. Em
simultâneo, o summarudis, à direita, ergue também a mão direita e centra o seu olhar
provavelmente no editor.

Noutro mosaico, um thraex acabou de vencer um murmillo (Museo Archeologico di Verona,


século II ou III). O gladiador subjugado, que surge figurado estendido de barriga para baixo na
arena, parece já morto ou, pelo menos, desmaiado. À semelhança do mosaico de Madrid, o
árbitro levanta o braço direito com a palma da mão aberta. Torna-se evidente que o combate já
terminou. Como referimos, é difícil de verificar se o vencido já está morto, se vai ser executado
ou se pode ainda ver-se agraciado. Dada a posição em que ele se encontra, o seu estado de
abandono parece indicar que pereceu; ao aceitarmos a última hipótese, estaríamos então
diante de uma das primeiras representações de um gladiador morto aquando de um munus.
Por outro lado, se ele ainda está vivo, a sua morte não vai tardar. Com efeito, um objecto
rectangular, colocado junto do gladiador derrotado, corresponde possivelmente a uma padiola,
com a qual geralmente se transportavam os mortos para fora da arena. Através destes
exemplos, concluimos que a linguagem gestual era extremamente simples.

Já dissemos que a música era outro elemento importante que cabe ter em conta no contexto
da comunicação e da cenografia do anfiteatro: os músicos, figurados em diversas imagens
antigas, surgem posicionados invariavelmente bastante perto dos combatentes e dos árbitros,
o que prova a sua presença no interior da arena. A este respeito, o mosaico de Zliten ( fig. )
revela-se, novamente, de grande valor pela riqueza de pormenores que fornece: em duas
ocasiões, o mosaico mostra-nos, num ângulo da composição plástica, quatro músicos tocando
em conjunto, formando uma pequena orquestra. Em ambos os casos, trata-se de um tocador

1890 Quando um gladiador pedia a missio fazia todo o possível por se manter em pé (stans) nessa altura e quando se
pronunciava o veredicto, uma vez que o ficar erguido era interpretado pelo público e pelo editor como um sinal de que, apesar de
vencido, ele suportara bem a pugna. Pelo contrário, um combatente derrotado, incapaz de ficar de pé, mostrava que se encontrava
esgotado ou muito enfraquecido (fosse pelo esforço físico durante o confronto ou em resultado dos ferimentos sofridos), o que
não era aceite favoravelmente por aqueles que iriam decidir sobre o seu destino (entendiam que estava debilitado). Não obstante,
a exaustão do vencido devia ser, amiúde, extrema, já que, embora lhe pudesse custar a vida, os mosaicos e os relevos mostram-nos
perdedores que não conseguiam evitar cair por terra (decumbere). De acordo com o teor do epitáfio de um gladiador chamado
Flamma (ILS 5113), confirma-se a ideia de que a posição em que se pedia a missio marcaria certa diferença: na inscrição diz-se que
Flamma pereceu com 30 anos, tendo lutado em 34 combates, dos quais venceu 21; a seguir, mecionam-se dois géneros de missio,
stans [missus] («solto [ainda de pé]») e mis[sus] («agraciado [mas não de pé]»). A derrota em falta no texto foi, evidentemente, a
porfia em que perdeu a vida. É possível que Flamma se orgulhasse do número de indultos que recebera erguido, que fora o dobro
dos obtidos encontrando-se ele no solo; somente em quatro das suas derrotas Flamma terá ficado em tão más condições que não
teve forças para se levantar e pedir a missio; o facto de ter solicitado a missio e esta ser-lhe atribuída achando-se ele de pé
mitigava a vergonha de haver sofrido 8 derrotas (R. Dunkle, Gladiators…, p. 132).

1891Ao contemplar-se atentamente o mosaico, detecta-se a presença do cabo. A arma já não é empunhada pelo retiarius,
encontrando-se pousada na palma da sua mão.

630
de tuba, dois cornicines e de uma mulher, que se situa atrás de um órgão hidráulico. Numa
cena, o artista enfatizou a ligação entre a orquestra e o árbitro: o vencedor de um combate
entre equites parece não entender o summa rudis, que lhe ordenou que cessasse de lutar
contra o adversário, que se encontra deitado de costas no solo; o árbitro, tentando, a todo o
transe, refrear a fúria mortífera do gladiador, agarra-lhe o braço direito, ao mesmo tempo que
se volta para os músicos, que respondem ao seu apelo tocando os seus instrumentos.

Os músicos estavam presentes na arena para ritmarem os momentos mais fortes do


espectáculo. Tal prática, que é talvez tão antiga quanto a própria gladiatura 1892, obedeceu a
uma determinada codificação que, lamentavelmente, temos dificuldade em compreender na
sua totalidade. Recordemos os relevos de Lucus Feroniae, descritos no Capítulo II, em que duas
cenas diferentes figuram músicos posicionados muito perto dos combatentes: vê-se um
tubicen, fazendo ressoar o seu instrumento na altura em que um thraex ergue um dedo para
assim reconhecer a sua derrota; noutro painel, um cornucen, com as bochechas inchadas, toca
no instante em que um provocator está prestes a matar o seu adversário subjugado. Esta
repartição de funções por diferentes tipos de músicos reflectiria uma missão específica
atribuída a cada instrumento, consoante o género de acto que estaria a decorrer? É muito
possível, mas a indigência dos testemunhos iconográficos impede que possamos responder
afirmativamente.

Passemos a outro exemplo: num grafito parietal encontrado sobre um túmulo da necrópole
da Porta Nocera, em Pompeia, observamos seis músicos a acompanharem um combate
opondo um hoplomachus a um murmillo (datável do século I d. C.) 1893. Apoiando-nos nesta
imagem, vemos que os músicos acompanhavam as várias etapas das pugnas ou, pelo menos, o
momento em que elas findavam. Neste desenho garatujado numa parede, bastante sugestivo
mas denotando sofrível factura, os músicos figurados à direita tocam tubae e flautas, enquanto
os da esquerda foram rudimentarmente representados com os seus instrumentos colocados à
volta das suas cabeças. Enquanto a porfia se desenrola, os músicos da direita vão tocando e os
cornicines estão inactivos. A música servia para conferir ritmo à acção, sobretudo nos
momentos de maior intensidade ou quando os combatentes davam mostras de virtuosismo e
galhardia. Se de facto, era assim que as coisas se passavam, deparamos com uma característica
que ainda hoje se observa nas corridas de touros, quando o presidente do espectáculo faz sinal
à orquestra para tocar durante o duelo entre o matador e o animal, aquando da faena.

Além do caso «clássico» do gladiador solicitar a missio, por vezes, embora raramente, tinha
lugar outro desfecho, quando ambos os combatentes exibissem qualidades equivalentes. Esta
situação era conhecida em latim pela expressão stantes missi. Se a bravura e a habilidade dos
dois homens cativassem o público e satisfaziam o editor, este, mediante proposta do árbitro ou
a pedido dos espectadores, podia mandar «libertar/perdoar de pé» os gladiadores em
questão. Neste caso, o árbitro, que lá se achava para avaliar, na qualidade de profissional, a
qualidade e a realidade do combate, desempenharia, estamos em crer, um papel crucial. Com
efeito, ele podia constatar que os dois gladiadores tinham um valor idêntico, facto que os
últimos não estariam em condições para verificar. Se ambos decidissem parar de lutar, tal
iniciativa seria mal entendida, pelo que eles teriam de retomar o combate o mais rapidamente
possível. Em contrapartida, se um deles parasse bruscamente, o seu oponente não deixaria de
aproveitar o momento para obter uma vantagem decisiva. Ora isto suscita um problema de
comunicação, designadamente entre o summa rudis e o editor, a quem tal solução podia ser
proposta no decurso do combate.

1892Nos afrescos tumulares de Paestum os músicos já se encontram presentes. O mais antigo testemunho plástico da gladiatura
pompeiana mete igualmente em cena um tubicen, juntamente com dois samnitis e igual número de equites.

1893P. Sabbatini-Tumolesi, Gladiatorum paria…, nº 71; M. Langner, Antike Graffitizeichnungen…., nº 1007.

631
No «Medalhão de Cavillargues» (Musée de Nîmes, França), a legenda aludindo ao stantes
missi encontra-se inscrita na parte superior direita da cena esculpida, situando-se por cima de
um personagem que corresponde ao summa rudis. De facto, o último ocupa um lugar
significativo no medalhão: o artista representou-o com a cabeça erguida e de perfil, parecendo
virar-se em direcção ao editor (o qual, como sempre sucede, está ausente da imagem), a fim de
lhe transmita alguma indicação. A mão direita do árbitro, levantada para uma tribuna invisível,
faz um gesto bem concreto – o polegar acha-se dobrado, assentado nos demais dedos da mão
direita. O autor desta cena reproduziu tal gesto mesmo sob a inscrição stantes missi, como que
para sublinhar um elo de ligação entre o primeiro e a última. No topo do medalhão, à esquerda
da legenda, foram representados quatro figuras de pequenas dimensões – trata-se de um
secutor e de um retiarius, respectivamente chamados Eros e Xantus, desprovidos de armas,
que parecem saudar o público. A ladear ambos os combatentes, vêem-se dois músicos a
tocarem os seus instrumentos. Assim, este grupo de personagens em tamanho reduzido ilustra
tanto o sinal feito pelo árbitro, como o sentido da expressão dos «libertos/soltos de pé».

Sobre a questão do stantes missi e os gestos da gladiatura, há um testemunho essencial (mas


amiúde incompreendido ou mal interpretado), da autoria de Marcial. O seguinte trecho é
especialmente precioso para compreendermos o espírito em que se desenrolavam as pugnas
sob os Flávios:
«Quando Priscus e Verus se arrastavam no seu confronto [certaminem] há já demasiado tempo, sem que Marte
finalmente se decidisse por um ou por outro, o público reclamou, muitas vezes, a missio [remissão] para os
campeões. Mas César [Tito] obedeceu ele próprio à sua lei [Caesar legi pauit ipse suae]. A lei era a de se combater
até que um adversário levantasse o dedo [ad digitum], estando a palma posta no solo. Em várias ocasiões, ele
mandou dar-lhes […], víveres e prémios. No entanto, ele acabou por encontrar um meio para pôr termo a esta
igualdade entre os dois combatentes (vantagens, reveses, tudo neles era equivalente). Cada um deles recebeu a sua
rudis e a sua palma de César. Tal foi a recompensa pelos seus méritos [virtus] e pela sua inteligência [ingeniosa].
Nunca antes havia ocorrido algo semelhante, salvo no teu principado, César, o de ver dois vencedores para um
duelo!» (Liber Spectaculorum, 32).

Frisemos que a tradução mais correcta deste trecho se deve a G. Ville, que restituiu o
vocábulo palma, utilizado nos manuscritos, o qual abusivamente fora «corrigido» por parma
(pequeno escudo) por vários tradutores 1894. Tal corrupção textual é, aliás, bem característica
dos fantasmas que os Modernos projectaram sobre a gladiatura, ao pretenderem torná-la
ainda mais sanguinária do realmente foi. Diversos historiadores serviram-se desta passagem
para insistirem veementemente na tónica da suposta barbárie do imperador que, impaciente
por querer ver um dos gladiadores morto, ordenara, supostamente, que ambos se livrassem
dos escudos para acelerar o desfecho do combate 1895. Esta interpretação, que ainda
recentemente foi advogada por Roger Dunkle 1896 e outros autores, reflecte um certo
desconhecimento das técnicas de combate antigas.

1894 Ao debruçar-se sobre este trecho de Marcial, M. Carter chegou basicamente à mesma conclusão que G. Ville: cf. «Palms for
the Gladiators: Martial, Spect. 31 (27 [29])», Latomus. Revue d’études latines, t. 65, fasc. 3, (juil.set-s 2006), pp. 650-658.

1895 Um recente mas medíocre documentário da BBC, intitulado Gladiators, que se baseou neste episódio, mostra o combate de
acordo com essa leitura errada. Priscus e Verus apresentam-se equipados com uma panóplia improvável que lembra, vagamente, a
da armatura dos provocatores. O tipo de elmo que os actores cingem não tem protecção para o rosto, o que se afigura aberrante
no tempo da dinastia Flávia. Uma vez desembaraçados dos escudos, os campeões depressa sacam de duas magníficas «soqueiras»
de bronze, certamente muito apelativas em termos visuais, mas de todo anacrónicas. É realmente surpreendente que a BBC, que
goza de elevada reputação na realização de documentários históricos, não tenha produzido uma recriação de maior rigor. Este
Gladiators só evidencia alguma qualidade nas cenas que procuram reconstituir a vida quotidiana dos gladiadores. Mas no duelo
entre Priscus e Verus, os cenógrafos deixaram-se cair nos clichés mais estapafúrdios.

1896 Gladiators…, p. 132. No entanto, R. Dunkle mostra conhecer a outra interpretação, a de ler palma em vez de parma, que,
para além de G. Ville e M. Carter, foi sustentada por K. Coleman, no seu estudo e tradução da obra de Valério Marcial ( M. Valerii
Martialis Liber Spectaculorum, Oxford, 2006, pp. 226-229); o primeiro autor entendeu que não seria necessário para o imperador
utilizar a palma desta maneira, no propósito de informar a multidão acerca da sua decisão: «Even if a herald could not hava made
himself herad in a large amphitheatre like the Colosseum (as Coleman suggests), would the spectators not have realized the nature
of Titus’ decision when the two gladiators resumed their fight, even without the placement of a palm?» (Gladiators…, n. 299).

632
Lembremos que o escudo estava sempre no «centro dos debates», ao passo que os gládios
eram muito curtos e apenas serviam para finalizar um assalto na fase do corpo a corpo, ferindo
o adversário e obrigando-o a abandonar a pugna. As fontes iconográficas proporcionam
diversos exemplos em que um combatente, embora tendo perdido o escudo, continua a lutar
movido pela energia do desespero (haja em vista fig. p. 315). Mas em nenhuma fonte se
observam os gladiadores a combaterem sem os seus escudos. Consequentemente, a ideia de
«colocar em cena» o escudo (parma) afigura-se simplesmente aberrante em relação às práticas
antigas, sendo apenas produto de uma visão moderna sobre tal fenómeno. Na realidade, as
coisas eram menos simples. O combate entre Priscus e Verus, que ocorreu aquando da
inauguração do Anfiteatro Flávio, obedeceu decerto a regras estritas definidas pelo imperador.
Este princípio fundamentava-se numa noção jurídica à qual nem o anfiteatro escapava. No caso
em apreço, a regra estipularia, provavelmente, a exclusão do stantes missi, ou seja, uma porfia
não podia acabar num empate, situação em que os dois gladiadores teriam de solicitar a
missio, ao mesmo tempo que punham um joelho em terra. Apesar da existência dessa regra, os
espectadores reclamaram, num grande clamor, que se concedesse o stantes missi.

A clemência de Tito para com ambos os combatentes prova que a finalidade do «jogo» não se
resumia em proferir sistematicamente o veredicto da morte, já que havia que tomar em
consideração as qualidades demonstradas pelos gladiadores 1897. No intuito de motivar mais
Priscus e Verus, o imperador ordenou que se colocasse na arena o troféu, a palma. Isto
significava que ele se ateve a observar a sua norma, ao pôr em evidência o símbolo da vitória.
Desta maneira, Tito resolveu conceder o stantes missi, em jeito de ex aequo aos dois
combatentes agraciados.

No trecho de Marcial, o gesto para marcar a paragem do combate é indicado pela expressão
ad digitum. Como vimos, isto corresponde perfeitamente à imagem (muito atestada na
iconografia) do gladiador erguendo o indicador da mão direita, reconhecendo, deste modo, a
derrota. Após ter lembrado a regra que estava em vigor, o imperador permitiu aos gladiadores
que recuperassem as forças. Embora este facto só apareça na passagem citada, é bem provável
que ele acontecesse com certa frequência nos munera. Quando dois combatentes excepcionais
haviam logrado manter o público quase sem fôlego e asssombrado, o editor teria todo o
interesse de prolongar o mais possível esta espécie de tensão ou expectativa. Ademais, nessa
pausa, Tito ofereceu recompensas aos gladiadores. Assim, o editor, ao manifestar grande
generosidade, ganhou a simpatia dos espectadores e também motivou os combatentes.

No entanto, Priscus e Verus, após retomarem a porfia, continuaram a evidenciar elevada


destreza e coragem, mas não conseguindo chegar a um desempate. Então, a fim de se sair
deste impasse, o imperador atribuiu a rudis a ambos os gladiadores, que deste modo se
converteram em homens livres, recebendo igualmente os dois uma palma para simbolizar a
sua vitória1898. Este episódio, como aliás Marcial teve o cuidado de sublinhar, foi extremamente
invulgar, dado que diferiu do usual stantes missi, em que dois combatentes eram declarados
vencidos porque perdoados. O que aconteceu é que, graças à sua extraordinária valentia e aos
pedidos insistentes da multidão, Priscus e Verus tiveram a honra de abandonar o anfiteatro na
condição de vencedores, o até aí que jamais havia sucedido.

Do conjunto das imagens plásticas mais precisas que a gladiatura deixou, sobressai um dos
mosaicos de Nennig que nos mostra também um árbitro a fazer um gesto específico (fig. p.
313): ao levantar a mão direita, aponta o seu indicador dobrado, ao mesmo tempo que retrai

1897Neste trecho, não se consegue determinar a que armaturae pertenceriam os dois homens. Contudo, se tivermos em conta
que ocorreu no período flaviano, talvez seja de imaginar que a pugna opusesse um thraex a um murmillo ou, então, um thraex a
um hoplomachus, o que explicaria melhor a presença das duas parmae.

1898 M. Carter, «Palms for the Gladiators…», p. 658.

633
os outros dedos. Pela direcção do seu olhar, o summa rudis parece dirigir-se aos combatentes e
não ao editor, que se situava na tribuna. Torna-se difícil interpretar tal gesto, uma vez que os
dois gladiadores estão a combater. Será que se trata da ordem para prosseguir a pugna
(perseverate) ou estaremos diante do sinal indicando uma vantagem dada a um dos
oponentes, no momento em que o retiarius acabou de colocar o tridente sob o scutum do
secutor? Outra hipótese: corresponderá a mais um caso de stantes missi? Não dispomos de
argumentos que permitam responder categoricamente a tais questões, mas, num mosaico tão
detalhado como o de Nennig, esse gesto possuiria decerto um significado particular.

Pelo que ficou exposto, concluimos que a linguagem gestual na gladiatura, longe dos
estereótipos engendrados no século XIX, era bem mais variada e menos rígida do que
geralmente ainda hoje alguns pensam. Fica claro que os combates se escoravam num conjunto
de trocas de mensagens e de comunicação entre os gladiadores, o árbitro, o editor e,
sobretudo, o público. Este, porém, nunca é representado nas fontes iconográficas, à
semelhança do editor, que apenas aparece em dois casos1899. Contudo, estes actores ausentes
desempenhavam um papel fundamental na vida e na morte dos combatentes da arena.

Ferimentos em combate

As condições de vida num ludus asseguravam aos gladiadores uma boa saúde e boa forma
física, condições sine qua non para que eles pudessem realizar brilhantes prestações na arena.
De facto, como pormenorizámos noutro capítulo, havia médicos, nutricionistas e massagistas
que velevam pelo bem-estar dos combatentes. É certo que por vezes ocorriam acidentes na
caserna, mas o perigo estava sobretudo presente nos espectáculos, pelo menos quando as
porfias não se limitassem a demonstrações com armas embotadas. A morte podia acontecer
brutalmente na pista, mas também fora dela, no seguimento de ferimentos graves sofridos nos
duelos, o que, aliás, diversas fontes atestam. Certos ferimentos, igualmente, embora não letais,
incapacitavam os gladiadores, a tal ponto que a sua carreira findava, ficando eles
definitivamente inaptos para combater. De acordo com o teor de uma estela conservada em
Istambul, terá sido o que sucedeu a Neon e a Philemon, que se viram aposentados por razões
médicas 1900. Em algumas situações, a consciência profissional dos gladiadores, bem como o seu
próprio orgulho, faziam com que eles não se subtraissem aos golpes. Cícero testemunha este
facto: «Vede de que maneira os que são bem treinados preferem receber um golpe em vez de
se esquivarem do mesmo».

Ovídio afirma também que «O gladiador ferido jura renunciar aos combates; mas depressa
volta a pegar nas suas armas, esquecendo-se das cicatrizes» (Pont. 1.5). Não admira, pois, que
praticamente todos os combatentes tivessem o corpo totalmente coberto de chagas, como
referiu Séneca (De Beneficiis, 5.3).

Atrás abordámos o papel e a função dos médicos: agora vejamos como se tratavam as feridas
dos gladiadores. Elas eram principalmente de dois tipos: as causadas por estocadas, com armas
pontiagudas (gládios, adagas, lanças, dardos e tridentes) e as infligidas por meio de cutiladas,
provocadas por armas cortantes (espadas, lãminas falciformes); no primeiro caso, os
ferimentos penetrantes apresentavam geralmente chagas cutâneas simples, com fendas pouco
profundas, com as bordas claras e rectilíneas. Quando a arma não era só pontiaguda mas

1899 Um grafito de Pompeia e um baixo-relevo de Chiusi.

1900 L. Robert, «Monuments de gladiateurs dans l’Orient grec», Hellenica V (1948), nº 320.

634
igualmente cortante, os ferimentos revelavam-se mais profundos e largos. Note-se que a ferida
era mais difícil de tratar quando a arma se retirava do corpo por meio de um gesto rotativo.

A localização dos ferimentos estava correlacionada com a armatura do combatente, além do


número e da natureza das suas protecções. Exceptuando o retiarius, todos os demais
gladiadores possuíam a cabeça bem protegida (assim como o rosto, quando os elmos passaram
a estar providos de viseiras a partir da primeira metade do século I d. C.), o mesmo sucedendo
com o braço que empunhava a arma, mais exposto aos golpes do adversário: ao encontrar-se
coberto por um braçal (manica) prolongado por uma espécie de manopla, este seria
eventualmente utilizado como um escudo, permitindo evitar os chamados «ferimentos de
defesa», observáveis habitualmente em indivíduos agredidos que colocam os braços ou as
mãos para proteger o rosto, o pescoço ou o torso.

Algumas armaturae beneficiavam da protecção facultada por coxotes, peças de linha


acolchoado e ocreae (grevas metálicas), como acontecia com os thraeces e os hoplomachi, mas
não é raro vermos no corpus iconográfico gladiadores feridos nas pernas e a esvairem-se em
sangue. Segundo Plínio-o-Velho, os Romanos acreditavam que um ferimento no joelho era
mortal, bem como, mais logicamente, no pescoço (Nat. Hist. 11.103). O último, com efeito,
estava desigualmente coberto nos gladiadores, além de que o torso e as costas se achavam em
geral a descoberto. Havia poucas protecções toráxicas e não se trajava qualquer veste que
lograsse oferecer resistência à penetração de uma lâmina. De acordo com os medici romanos,
as feridas no diafragma tinham por consequência desencadear ataques de riso, facto que Aulo
Gélio corrobora, ao referir-se a um gladiador hilariante enquanto um indivíduo cuidava dele
(Nocte Atticae, 12.5). Plínio explica-nos o porquê deste fenómeno:
«Todas as vísceras principais foram encerradas em membranas especiais e, por assim dizer, em bainhas…Para o
diafragma há uma razão particular, a proximidade em relação ao ventre, com medo que os alimentos interceptem a
respiração… também não existe carne alguma, ele [diafragma] é nervoso e delgado. Aí, igualmente, é a sede
principal da alegria, o que se reconhece sobretudo através de cócegas nas axilas, por baixo das quais ele avança.
Nenhuma parte da pele do homem é mais fina, em nenhuma outra o prazer das cócegas se faz sentir tão perto. Por
este motivo, nos combates e nos espectáculos de gladiadores, um ferimento no diafragma causou o riso e a morte»
(Nat. Hist. 11.77).

A medicina forense moderna atesta que, muitas vezes, uma pessoa ferida não sente qualquer
dor e só descobre a sua situação quando vê o seu sangue jorrar. Para travar a efusão, os
Romanos utilizavam diferentes receitas, como por exemplo, uma pomada feita à base de banha
e alúmen (principalmente a variedade proveniente de Melos (Nat. Hist. 35.52) ou ainda o
recurso à gemoterapia, ao utilizar-se uma hematite, cujas qualidades hemostáticas eram
reconhecidas na Antiguidade (Nat. Hist. 37.58).Ao tempo, ainda não se conhecia a noção da
«infecção», uma vez que ignoravam a existência dos micróbios, a septicemia ou a pululação
dos germes. Para os Romanos, o mais importante era que as chagas supurassem
correctamente, o que significava a manifestação visível da infecção e, aos seus olhos, o começo
de uma boa cicatrização (pus bonum et laudabile / «pús bom e louvável»). Também a
inflamação era encarada pelos médicos como benéfica para a cura, o que se explicava pelo
desequilíbrio dos «humores», segundo a doutrina hipocrática. Estes «humores», ou fluidos
vitais do corpo humano, eram de quatro tipos e correspondiam aos quatro elementos
constitutivos da natureza: o sangue quente e seco (o fogo); a bílis negra, quente e húmida (a
terra); a bílis amarela, fria e seca (o ar); e a linfa, fria e húmida (a água). No caso em foco, a
supuração advinha de uma preponderância da bílis amarela, permitindo a expulsão das
matérias nocivas. O mais se temia era a supuração no interior do organismo. Este teoria,
defendida por Celso e Galeno retardou o desenvolvimento da cirúrgia, reservada para as
situações mais graves. No entanto, a última fez grandes progressos sob a influência dos
médicos ao serviço do exército romano e dos ludi, que tinham de lidar necessariamente com

635
ferimentos bem distintos dos que poderiam apresentar os citadinos pacíficos. É facto que
Galeno testemunha frequentemente nos seus escritos:
«Se tomardes em consideração as pessoas feridas no epigastro [zona superior e média do abdómen] e em que
parte do epiploom [sítio no peritónio, que vai do estômago ao cólon e cobre os intestinos] … há a necessidade, para
os médicos, de operar a ablação da parcela afectada. Todos estes feridos sentem o estômago frio, digerem menos
bem e precisam de ser cobertos, sobretudo quando o sítio atingido possui uma notória extensão. Nós mesmos
procedemos a uma ablação quase completa do epiploom num gladiador com uma lesão nesta zona. O homem
melhorou prontamente, mas tornou-se tão sensível, tão impressionável ao frio exterior, que não conseguia aguentar
ficar com o ventre a descoberto, o qual ele tapava constantemente com lã» (Da utilidade das partes do corpo
humano, IV.9).

Também se dominavam as técnicas de amputação. Um esqueleto exumado no «Cemitério dos


Gladiadores de Éfeso» demonstra que um paciente sobreviveu a uma durante anos. Os
instrumentos cirúrgicos descobertos em grande número pelos arqueólogos deixam entrever o
alto grau de competência dos antigos médicos.

Logicamente que não tencionamos aqui apresentar um tratado de medicina: para terminar,
assinalemos, apenas, a existência de algumas soluções cicatrizantes enumeradas por vários
autores, nomeadamente Plínio-o-Velho, os quais certamente frequentaram os anfiteatros. Sem
ainda conhecerem o fenómeno da infecção e das bactérias, entendiam que, antes de tudo, se
devia lavar a chaga para a desembaraçar dos corpos externos que se tivessem introduzido na
mesma, com água mas também vinagre, que a desinfectava (Petrónio, Satyricon, 136).
Baseando-nos igualmente em Petrónio, sabemos que se aplicava usualmente uma espécie de
penso por cima da ferida, feito à base de teias de aranha embebidas em azeite (Ibidem, 98).
Por vezes, ainda se punham emplastros, geralmente minerais, sobre os ferimentos, produzidos
com ferrugem diluída em vinha e amassada com mirra (Plínio-o-Velho, Naturalis Historia,
34.45), ou com escórias de prata (Ibidem, 33.35), a eretria cozida (pigmento empregue na
pintura; ibidem, 35.21) ou, ainda, molibdeno, mineral comum da prata e do chumbo; ibidem,
34.53). As escamas de ferro aplicavam-se para tratar da carnação em fracturas expostas
(Ibidem, 34.46); contra as luxações, revelava-se eficaz uma pomada de banha de porco ou de
resina líquida, com cal e mel (ibidem, 36.57). Por fim, antes de se utilizar o escalpelo ou de
cauterizar uma ferida, anestesiava-se a zona submetida a intervenção cirúrgica, se possível com
pó de mármore menfita misturado com vinagre 1901.

De acordo com a percepção romana, todas estas receitas se empregavam para ajudar a
Natureza, que podia curar, sozinha, um doente, mas também se afigurava impotente para o
salvar. Punham-se em prática diferentes métodos, consoante os casos em questão:
faramacêuticos, dietéticos ou cirúrgicos, mas havia ainda o recurso a um sacerdote, pois que
em várias ocasiões apenas restavam as preces e os deuses para auxiliarem e decidirem o
destino dos homerns.

A modalidade do vencedor escolher o destino do vencido. Indagação do estereótipo do


«gladiador homicida». A eventualidade da existência de um código de conduta gladiatório
não escrito

Em primeiro lugar, detenhamo-nos sobre a invulgar inscrição que preserva o epitáfio do já


referido secutor Urbicus (CIL V.5933 = ILS 5115)1902:

1901 F. Gilbert, Devenir gladiateur…, p. 135.

1902G. L. Gregori, EAOR II, nº 50 (contém uma fotografia do epitáfio). A estela foi descoberta em Milão (antiga Mediolanum).

636
D(is) M(anibus)/ Urbico, secutori/ Primo palo, nation(e) Flo-/rentin(o) qui pugnavit XIII/vixsit(!) ann(is)
XXII, Olympias/ filia quem (!) reliquit me(n)si(bus) V/et Fortune(n)sis filiae [serva]/ et Lauricia
uxor/marito bene merenti/cum quo vixsit(!) ann(is) VII/ te moneo ut quis quem vic[e]-/rit occidat./ Colent
Manes amatores ipsius

Tradução:

«Aos deuses manes.A Urbicus, o secutor, primus palus, de origem florentina, que combateu 13
vezes.Viveu 22 anos, [com] a sua filha Olympias, que deixou com a idade de 5 meses, e Fortune[n]sis, [a
escrava] da sua filha, e Lauricia, sua mulher [mandou erigir este monumento] ao seu marido que bem o
merece e com o qual viveu durante 7 anos.E aviso-te: que se mate aquele que se venceu [!] Os que o
amarem honrem os seus manes».

Embora perecendo bastante novo1903 na arena, Urbicus foi claramente um gladiador bem-
sucedido, logrando atingir a categoria de topo nos secutores (primus palus secutorum), depois
de travar 13 combates. Deixou para trás a esposa, Lauricia, com quem viveu ao longo de sete
anos, da união resultando uma filha, Olympias. Ao contrário do que se vê em algumas
traduções deste epitáfio, Fortunensis era uma escrava, não outra filha do defunto. Urbicus deve
ter acumulado suficiente fortuna para prover ao sustento da sua família, a qual dispôs de
dinheiro para custear as despesas com o seu funeral e com uma lápide inscrita e esculpida 1904.

A acompanhar o epitáfio está um baixo-relevo representando Urbicus, que brande o seu


gládio na mão direita e segura com a esquerda o seu escudo; outrora, era possível observar o
seu rosto (actualmente danificado), uma vez que o seu elmo se figurou colocado num poste, ao
lado da imagem do defunto. Em muitos aspectos, este epitáfio é como centenas de outros,
frequentemente inseridos pelas suas mulheres ou colegas em lápides, em memória de
gladiadores falecidos, que se descobriram por todo o império, datando de finais do século II e
do III d. C. Como se verifica nesta inscrição, a maior parte dos epitáfios gladiatórios inclui
detalhes da vida profissional do defunto, a menção à sua armatura e, amiúde, o seu escalão
hierárquico bem como o número das pugnas que livrou ou o das suas vitórias. No entanto, o
que se reveste de especial interesse no epitáfio de Urbicus radica no conselho que dá aos seus
colegas de ofício, apresentado na primeira pessoa do singular: «E eu aconselho que se mate
aquele que se venceu» (linhas 11-12).

Qual será o contexto desta admonição implacável? Em certo sentido, estas palavras parecem
confirmar o que geralmente muita gente acredita ter sido a verdadeira natureza dos combates
gladiatórios na época imperial. Com efeito, apreciável número de académicos parte do
princípio de que os munera consistiam em confrontos brutais travados por homens
desesperados por satisfazer a multidão. Peguemos num exemplo: M. Poliakoff, na sua
excelente monografia versando os antigos desportos de combate, excluiu o combate
gladiatório do seu estudo, afirmando que não se tratava de um «desporto» e que «um
gladiador lutando para matar ou incapacitar o seu oponente e salvar-se a si próprio de todas as
maneiras possíveis não participava num desporto, mas numa forma de guerra para os
espectadores»1905.
1903Resta saber, como referiu F. Meijer (entre outros), se o lapidário que gravou a o epitáfio não se terá equivocado ao colocar o
numeral XXII em vez de XXXII. Caso Urbicus contasse 32 anos à data da sua morte, já não pareceria tão estranho que estivesse
casado há sete anos . No entanto, cingimo-nos á idade cinzelada na estela: cf. The Gladiators: History’s Most Deadly Sport, p. 68.

1904A este respeito, R. Gorden (cf. «Roman Inscriptions 1986-90», JRS 83, 1993, p. 155) afirmou: «In a sense, every funerary
epitaph makes reference, among other things, to the fact that other men could not afford one».

1905M. B. Poliakoff, Combat Sports in the Ancient World…, pp. 7-8. Para opiniões idênticas, tomemos em consideração: C. Barton
(The Sorrows of the Ancient Romans: The Gladiator and the Monster, Princeton, 1993), que se referiu à grande vontade que os
Romanos tinham de assistir e participar nestas competições mortíferas; H. S. Versnel, Transition and Reversal in Myth and Ritual,
Leiden, 1993, pp. 210-227; A. Futrell (Blood in the Arena), que, como vimos, defendeu a teoria de que estes espectáculos
significavam uma forma de sacrifício humano; ou, ainda, P. Plass (The Game of Death in Ancient Rome, Madison, 1995), que

637
Porém, diversos eruditos do meio científico distanciaram-se desta posição: D. S. Potter, em
particular, contribuiu bastante para tentar mostrar que um munus não se cingia apenas à
morte1906. Não obstante, a imagem do gladiador homicida continua a persistir e a advertência
cruel de Urbicus parece apoiá-la. No entanto, esta exortação afigura-se excepcional, visto
praticamente não conhecermos quaisquer paralelos. Das centenas de epitáfios que chegaram
até nós, procedentes de diversas regiões do mundo romano, poucos nos facultam algo de
similar à declaração homicida do secutor florentino. Na maior parte destas inscrições
funerárias, quando a morte do gladiador aparece referida, o seu adversário quase nunca é
acusado de matar; em vez disso, a culpa é muitas vezes atribuída às Parcas ou, até, ao próprio
defunto. Ademais, vários epitáfios gladiatórios mostram uma visão totalmente contrastante
com a admonição de Urbicus, já que, em lugar de incitar ao homicídio, alguns combatentes até
se vangloriam de ter «salvado muitos na arena ou de não ferirem os adversários.

Consequentemente, determinar o contexto e a motivação do conselho drástico de Urbicus é


importante para a nossa compreensão da natureza da gladiatura durante a época imperial. Se
o sentimento subjacente às palavras do secutor reflectem o que actualmente se poderá
designar como industry standards e se viu partilhado pela maioria dos gladiadores, então
caberia subscrever as ideias de M. Poliakoff e de outros, entendendo o munus gladiatorium
como um espectáculo inequivocamente homicida. Mas se, pelo contrário, a frase do epitáfio de
Urbicus é única, ou objecto de uma má interpretação, a nossa percepção do carácter da
gladiatura no seu todo requer certamente uma reavaliação.

Um dos poucos estudiosos a examinar a motivação implícita à advertência de Urbicus foi G.


Ville1907, que sugeriu talvez indiciar a existência de uma «lei» da arena vigente nos tempos
imperiais, segundo a qual a vida de um gladiador derrotado poderia ser deixada nas mãos do
seu adversário vitorioso1908. O renomado académico francês apontou dois possíveis paralelos,

comparou o combate gladiatório ao suicídio. Para discussões relativamente recentes sobre a relação entre a gladiatura e o conceito
hodierno de «desporto»: M. Junkelmann, «Famila Gladiatoria: The Heroes of the Amphitheatre», pp. 67-69; G. Horsmann,
«Sklavendienst, Stratvollzug oder Sport? Überlegungen zum Charakter der römischen Gladiatur», in H. Bellen e H. Heinen (eds.),
Fünfzig Jahre Forschungen zur antiken Sklaverei an der Mainzer Akademie, 1950-2000: Miscellanea zum Jubiläum, Estugarda
(Sttutgart), 2001, pp. 225-241.

1906D. S. Potter, «Entertainers in the Roman Empire» in D. Potter e D. Mattingly (eds.), Life, Death, and Entertainment in the
Roman Empire, Ann Arbor, 1999, pp. 311-317; idem, «Gladiators and Blood Sport», in M. M. Winkler (ed.), Gladiator: Film and
History, Oxford, 2004, pp. 73-86.

1907 La gladiature, p. 421.

1908 Esta modalidade foi relativamente incomum: ela aconteceria quando a decisão do público não reunisse consenso. Assim, o
editor, ao tentar fugir à responsabilidade de uma decisão que inevitavelmente desagradaria uma série de espectadores, optaria
por delegar o seu poder ao combatente vencedor. Ao proceder deste moldo, o munerarius, que era também um político, «lavava as
suas mãos». Ao deixar a incumbência a um gladiador vitorioso, que tomaria a decisão em seu lugar, o editor transferia para o
primeiro a impopularidade de que poderia ser objecto caso assumisse tal responsabilidade. O problema passava então a recair no
gladiador: decidisse ele matar ou não matar o ponente, arriscava-se, de qualquer forma, a insatisfazer parte do público. Consoante
a sua familia ou localidade de origem, o combatentente podia eventualmente reencontrar esses mesmos espectadores noutro
espectáculo. Se eliminasse o seu adversário ou, pior ainda, um seu colega de ludus, o gladiador converta-se simultaneamente em
juíz e algoz. E, nesta ocasião, teria de pensar sobretudo no seu próprio interesse (E. Teyssier, La mort en face…, pp. 379-380).
Existem vários epitáfios que confirmam a prática do vencedor decidir o destino do derrotado: os de Urbicus, Victor, Maximinianus
Aureus e outros. Muito recentemente, A. Mañas Bastida (Gladiadores…, pp. 129-130) defendeu a teoria de que, por volta do ano
90 d. C.,durante o reinado de Domiciano, ocorreu um facto que parece ter causado sensação nas bancadas do anfiteatro: um
vencedor, depois de receber a ordem de matar o vencido, negou-se a fazê-lo. Não era a primeira vez que isto acontecia mas este
episódio teve mais recpercussão do que o habitual; segundo o autor espanhol, «parece que os espectadores consideraram que
ainda seria mais emocionante não saber qual iria ser o destino do vencido (o qual anteriormente se podia predizer facilmente,
vendo simplesmente qual era o parecer dominante entre os espectadores). Se a decisão dependesse apenas do vencedor, era
impossível adivinhá-la… abominaria ele o vencido... e não hessitaria, por um instante sequer, em matá-lo? Ou, caso o vencedor
fosse amigo do adversário, salvar-lhe-ia a vida? Ou, ainda, mesmo havendo laços de amizade, resolveria executar o vencido?». Para
Mañas Bastida, estas ideias depressa se materializaram: «Assim, ao longo de um século (de finais do século I até finais do II), as
duas práticas aparentemente coexistiram. Contudo, para o começo do século III, as fontes já mostram que o costume vigente era o
que fosse o vencedor a decidir o que fazer com o vencido». Para fundamentar os seus argumentos, o autor escorou-se na atitude
de Caracala, aquando do munus celebrado em 215 em Nicomédia; «um gladiador derrotado pediu a missio ao imperador, e este

638
extraídos de munera imperiais: primeiro - ele citou uma passagem de Dião Cássio (78.19), na
qual Caracala, enquanto assistia a um munus em sua honra em Nicomédia (em 215 d. C.),
quando um gladiador lhe pediu a missio, o imperador declarou não poder interceder no
sentido de poupar a sua vida, uma vez que a decisão cabia ao seu adversário vitorioso («Vai
pedir ao teu oponente, pois que não me é permitido poupar-te»); segundo – Ville referiu-se ao
poema já aqui evocado de Marcial, em que o imperador Tito afirmou ser incapaz de intervir no
longo duelo que opôs Priscus a Verus, apesar de os espectadores exigirem que o princeps
concedesse a missio aos dois gladiadores. O filho de Vespasiano recusou-se a fazê-lo porque
não podia violar a lex que ele próprio estabelecera para o combate:
Sed Caesar legi paruit ipse suae:/ lex erat, ad digitum posita concurrere palma; «Mas César obedeceu à sua
própria lei, e esta lei era a de combater até ao dedo [rendição] quando se pôs a palma» (Marcial, Liber Spect. 31, 4-
5).

Se bem que Ville tenha admitido haver uma «lei» permitindo a um gladiador vencedor tomar
a decisão de poupar ou matar o seu adversário, ela adoptou-se apenas excepcionalmente, já
que o costume usual era que o veredicto recaísse no munerarius e no público. Mas existiu
efectivamente uma tal lex pugnandi? As evidências são, na realidade, escassas. O episódio
relatado por Díon acerca de Caracala destinou-se, acima de tudo, a demonstrar a crueldade
deste imperador: repare-se que o munus se celebrou no dia do seu aniversário e, todavia,
como sublinhou o historiador grego, até nesta altura ele não conseguiu refrear o seu
desmedido prazer pelo derramamento de sangue; Díon Cássio acrescentou ainda que o
gladiador vencedor matou o seu oponente, depois de Caracala se negar a intervir,
principalmente por não desejar parecer mais misericordioso que o próprio imperador. Assim,
este sabia perfeitamente o que estava a fazer e queria, sem margem para dúvidas, que o
combatente derrotado fosse eliminado.

Quanto à lex no espectáculo oferecido por Tito, tal como Marcial a descreveu, exigia que os
gladiadores lutassem até que um deles fizesse sinal de se render: o combate era ad digitum.
Neste caso, não se verifica qualquer requisito que estipulasse que um dos duelistas teria
obrigatoriamente de morrer.De facto, exigências deste género parecem ter sido muito raras.
Numa inscrição de Beroia, na Macedónia (anteriomente mencionada), alude-se a gladiadores
que combateriam «pelas suas vidas» (περί ψυχής), mas o editor, um sumo sacerdote
provincial, juntamente com a sua esposa, anunciaram que para o efeito haviam obtido uma
indulgentia imperial1909.

Noutras cidades, os anúncios a pugnas deste mesmo género vêem-se acompanhados,


frequentemente, por referências à autorização oficial o que, per se, sugere que tais duelos
teriam um carácter extraordinário. A razão para a necessidade da permissão imperial não
obedecia, de todo, a valores humanitários, mas relacionava-se com a redução ou controlo do
fardo financeiro suportado pelos funcionários, que habitualmente eram sacerdotes do culto
imperial. Um munus era dispendioso e tornava-se ainda mais se os gladiadores, que em geral
se alugavam a um lanista, ficassem gravemente feridos ou perdessem a vida. Se um gladiador
saisse da porfia ileso, voltaria automaticamente para as mãos do seu proprietário, pelo que o
contrato se consideraria cumprido. No entanto, se o combatente sofresse ferimentos ou

respondeu “Pede-a ao teu adversário, eu não tenho poder para te libertar”. Desta maneira, Caracala manifestou a sua intenção de
respeitar uma tradição que já remontava há muitos anos…». Mañas Bastida não conseguiu perceber que Caracala apenas
demonstrou a sua crueldade, nada mais que isso, além de que cometeu um erro crasso ao sustentar que a modalidade do
vencedor decidir a sorte do vencido se generalizou, quando significou uma prática de carácter excepcional.

1909AE 1971, 430, 431; J. P. Touratsouglou, «Δύο νέαι έπιγραψικαί μαρτυρίαι περί τού Κοινοΰ τών Μακεδόνων κατά τόν τρίτον
μεταχριστιανικόν αίώνα» in B. Lourdas e Ch. Makaronas (eds.), Ancient Macedonia, Tessalónica, 1970, pp. 280-290. Descobriu-se
uma inscrição idêntica em Mileto: W. Günther, «Gladiatorendenkmäler aus Milet», IstMitt 35 (1985), pp. 124-130, nº 1 (est. 27) =
SEG (1985) 1132.

639
morresse, o aluguer convertia-se numa venda, e o editor teria de pagar o preço total do
gladiador, montante que podia ser cinquenta vezes mais elevado do que o preço do aluguer 1910.

No senatus consultum do tempo de Marco Aurélio e de Cómodo (associado ao pai no trono


desde os 16 anos de idade), contido no Aes Italicense, que examinaremos no capítulo seguinte,
visou reduzir e controlar osd preços dos gladiadores treinados e profissionais, que, em termos
globais, iam de 3 0000 HS a 12 000 ou 15 000 Hs. Assim, a morte de gladiadores profissionais e
de alta categoria ocasionava enormes aumentos nos gastos associados à organização dos
munera. Ora como os gastos envolvidos na morte de um gladiador subiram vertiginosamente,
parece improvável que uma «regra» da arena fizesse recair num combatente vencedor a
decisão de poupar ou matar o seu oponente. Outras fontes antigas sugerem que os combates
com armas aguçadas até seriam incomuns, o que reflectiria, de novo, as tremendas despesas
relacionadas com os gladiadores profissionais que sucumbissem na arena ou sofressem graves
ferimentos1911.

Em face de tudo isto, há, concerteza, uma explicação melhor para a admonição que Urbicus
faz no seu epitáfio. No século II da nossa era, os munera tornaram-se em espectáculos
acrescidamente complexos, compreendendo venationes e execuções de noxii. Mas,
contrariamente a estes eventos, os combates gladiatórios eram protagonizados por
profissionais muito caros. Relembremos que as pugnas eram regidas por uma série de «regras»
e de «padrões de comportamento», servindo para encorajar exibições de excelência marcial,
mesmo que limitassem ou até pusessem em cheque a faceta letal do espectáculo. Sobretudo
talvez por causa dos custos potencialmente onerosos implicados, os duelos mais correntes
realizavam-se até que um dos gladiadores fazia o sinal com o dedo indicador (ad digitum).

Mesmo o munus sine missione podia apenas significar que não se concederia a missio até que
se declarasse nitidamente um vencedor (quando um combatente se visse compelido a
capitular e o editor aceitasse a sua rendição). Claro que era muito possível que ocorressem
ferimentos e mortes, mas isto não constituía propriamente a vertente principal do espectáculo.
O combate gladiatório traduzia-se, acima de tudo, numa exibição marcial excitante mas sujeita
a normas: uma demonstração de bravura face à morte, bem como de disciplina e mestria no
manuseamento das armas1912.

Em diversos epitáfios gladiatórios, a maior parte procedente do Oriente grego, os defuntos


gabam-se de não terem magoado os seus adversários e de salvarem as vidas de muitos nos
estádios. Na inscrição de Meilesis, sepultado em Edessa, lê-se o seguinte:
«Eu chamava-me Meilesis e tinha o nome civil Mestrianos. Combati cinco vezes e não feri ninguém. Agora fui eu
ferido. E com os seus próprios meios [ilegível] Alexandra erigiu isto em memória do seu esposo. Até à vista, a todos
os que por aqui passem»1913.

Noutro epitáfio, de Tenedos, em honra do gladiador Autolykos:

1910Para uma discussão mais circunstanciada, veja-se M. J. Carter, «Gladiatorial Ranking and the SC de pretiis Gladiatorum
Minuendis (CIL II 6278 = ILS 5163)», Phoenix, 57 (2003), pp. 102-103.

1911M. J. Carter, «Gladiatorial Combat with ‘Sharp Weapons’ (τοίς όξέσι σιδήοις)», ZPE 155 (2006), pp. 161-175; D. Potter,
«Gladiators and Blood Sport», p. 77; K. M. Coleman, Bonds of Danger: communal life in the gladiatorial barracks of ancient Rome,
The Fifteenth Todd Memorial Lecture. Department of Classics and Ancient History, University of Sydney, Sydney, 2005, p. 3.

1912 M. J. Carter, «Gladiatorial Combat: The Rules of Engagement», p. 101.

1913 L. Robert, Les gladiateurs, pp. 84-85, nº 20.

640
«Talvez te espantes por estar morto, amigo, eu - Autolykos. Tomei tanto cuidado e desejei salvar (o meu
adversário); mas, apesar de vitorioso, morri contrariamente ao destino. Sebastiana (erigiu isto) para Autolykos em
sua memória…»1914.

Noutras duas inscrições funerárias, uma em memória de Aias de Thasos e outra para Olympos
(às quais nos referimos no Capítulo VII), o primeiro declara que «salvou poderosamente muitas
almas»1915 e o último afirma algo de semelhante («muitos salvou nos estádios» 1916).

A este conjunto de fontes epigráficas acrescentemos ainda a observação de Séneca-o-Velho,


de que «entre os gladiadores a condição mais dura para o vencedor aparece com a morte de
um combatente» (inter gladiatores quoque victoris condicio pessuma est cum moriente
pugnantis)1917. Dião Cássio, ao descrever a situação ocorrida no munus oferecido por ocasião do
aniversário de Caracala, em Nicomédia, acreditava que, se lhefosse dada uma oportunidade, o
gladiador vencedor teria poupado o seu adversário. Como dissemos, Dião utilizou este episódio
para enfatizar a crueldade do imperador: ora, significa isto que a maioria dos espectadores
estaria à espera que o combatente derrotado escapasse da arena com vida? Devemos
igualmente ter em conta o relato de Díon ilustrando o comportamento de alguns gladiadores
nos grandes munera imperiais de Cómodo, em 192. Depois de este vencer os seus combates de
demonstração (σκκιαμαχίαι) na arena, o espectáculo recomeçou (73.19.5):
«Então nada que se assemelhasse a combates de diversão ocorreu, mas pugnas de tal género que muitos foram
mortos. Na realidade, quando alguns hesitaram em matar, ele [Cómodo] mandou prender os contendores uns aos
outros e ordenou que todos lutassem ao mesmo tempo».

Por que razão vários gladiadores vitoriosos se mostraram renitentes em eliminar os seus
oponentes vencidos, especialmente quando tal comportamento parecia enfurecer o
imperador? Estariam eles a combater em confrontos até à morte e, mesmo assim, não
quiseram matar?

Quase todos os epitáfios acima mencionados foram coligidos pela primeira vez por L. Robert,
que explicou a atitude manifestada pelos gladiadores como resultado da camaradagem que
nascia das experiências compartilhadas no ludus1918. Com efeito, os gladiadores que lutavam
entre si na arena muitas vezes viviam juntos na mesma familia gladiatoria, o que era uma
situação indubitavelmente difícil e assaz incómoda. Antigos pensadores, designadamente
Séneca e Quintiliano, teceram comentários sobre este triste facto 1919.

Phoebus, sepultado em Larissa, afirma ter «vivido bem e partilhado o alojamento com outros
que eram amigos» (καλως δέ Βιώσας φίλοις έτέροις συμβι ώσας)1920. Noutros casos, podemos
presumir a existência de laços de amizade quando um gladiador era enterrado pelos seus

1914 Ibidem, pp. 223-225, nº 285; M. Ricl, The Inscriptions of Alexandreia Troas, Bona, 1997, nº 104; R. Merkelbach e J. Stauber
(eds.), Steinepigramme aus dem grieschischen Osten. Band II: Die nordküste Kleinasiens (Mermarameer und Pontos), Lepzig, 2001,
nº 07/05/02.

1915 L. Robert, Les gladiateurs…, pp. 113-115, nº 55.

1916 Ibidem, pp. 115-116, nº 56.

1917 Séneca, Con. 9.6.1. Consulte-se também D. Potter, «Gladiators and Blood Sport», p. 77.

1918 Les gladiateurs…, p. 306.

1919Quintiliano, Inst. 2.17.33: saepe gladiatores sub eodem magistro eruditi inter se componuntur; Séneca, Dial. 4.8.2 (=de Ira
2.8.2): …non alia quam in ludo gladiatorio vita est cum isdem viventium pugnatiumque…; cf. G. Ville, La gladiature…, p. 362, nº 42;
K. M. Coleman, Bonds of Danger…, p. 4.

1920 M. Kontoyannis, «Έπιτύμβιο γιά ένα μονομάχο», ArchEph (1981), pp. 37-52.

641
colegas. Não resta a menor dúvida que compartilhar perigos e adversidades numa vida
comunal desenvolvia, por vezes, um sólido espírito de camaradagem. Os gladiadores
pertencentes ao mesmo ludus certamente que se conheceriam uns aos outros, mas parece
improvável que treinassem em conjunto os que se enfrentassem no anfiteatro ou no estádio (e.
g. retiarii e secutores).

No entanto, nenhum testemunho sugere que na arena apenas se «salvassem» os amigos; nos
epitáfios em que os gladiadores defuntos se gabam de ter poupado a vida a muitos e não
ferirem os seus oponentes, isto aplicar-se-ia a qualquer adversário, até porque um combatente
não porfiava sempre contra membros do seu próprio ludus. A este respeito, por exemplo, é de
duvidar que apenas um ludus estaria representado nos munera oferecidos por Cómodo em
192, onde alguns gladiadores, como vimos, hesitaram em executar os vencidos. Kathleen M.
Coleman atribuiu este comportamento mais ao profissionalismo do que ao companheirismo, já
que estava «dentro da capacidade profissional do gladiador assim agir; as regras do jogo
permitiam-lhe conceder quartel aquando da vitória» 1921. As múltiplas referências a esta prática
dão a entender que estaria amplamente disseminada e, se assim foi, esperar-se-ia que os
gladiadores a aplicassem na arena, conhecendo ou não os seus adversários. Mais: os próprios
combatentes adoptavam tal costume ao combater, tentando derrotar o oponente, mas fazendo
o possível para o não ferir ou matar. Quando um gladiador vencia uma porfia, pouco ganhava
ao aniquilar o adversário; o que o fizesse seria encarado pelos seus colegas de ofício como
desnecessariamente cruel. Observemos o destino de Victor, sepultado em Philippopolis:
«Eu, Victor, gladiador esquerdino, aqui repouso, embora a minha terra-mãe seja Thessaloniki. A Fortuna matou-
me, não o perjuro Pinnas; que este não se vanglorie mais disso. Tive um colega de armas, Polynices, que me vingou
ao matar Pinnas. Claudius Thallus ficou incumbido desta lápide, de acordo com o que Victor deixou escrito [ex
testamento]»

Os gladiadores que não aderiam ao «código» e, intencionalmente, buscavam matar o


oponente, em vez de só derrotá-lo sem infligir ferimentos graves, eram perigosos e
necessitavam que alguém os travasse. Na inscrição acima transcrita, a situação que se descreve
pode tratar-se de uma amostra de camaradagem, uma vez que Victor declara ter sido vingado
por um colega, presumivelmente do mesmo ludus. Mas no epitáfio também se alude à justiça
(δίκη): corresponderá este vocábulo ao dito «código» de conduta? Os sentimentos expressos
por Stephanos, que foi enterrado em Hierapolis, afiguram-se similares: no texto da sua estela
ele proclama que matou o seu oponente porque este se encontrava invadido por uma fúria
irracional (κτείνας άντίπαλον μεστόν πικρίας άλογίστον)1922. Tanto L. Robert como K. M.
Coleman qualificaram a atitude revelada por Stephanos (que pereceu neste mesmo combate)
como própria de um profissional calmo e racional: eliminou o oponente, simplesmente por
deixar que dele se apossassem a raiva e a paixão desenfreada 1923. Coleman chegou a comparar
o comportamento de Stephanos com uma passagem de Séneca, em que este observa a
importância da destreza para um gladiador e dos perigos que a ira comportava (de Ira, 1.11.1:
gladiatores quoque ars tuetur, ira denudat).

Relevante para os nossos propósitos é o facto de Stephanos matar o oponente devido ao seu
comportamento perigoso e irracional. Dito de outro modo: o último era culpado pela sua má
(ou inaceitável) conduta. Embora, provavelmente, tanto os espectadores como o munerarius
esperassem em geral que os gladiadores lutassem de acordo com as normas estabelecidas, a

1921 Bonds of Danger…, p. 14.

1922L. Robert, Les gladiateurs…, p. 155, nº 124; T. Ritti e S. Yilmaz, «Gladiatori e


venationes a Hierapolis di Frigia», Atti della
Accademia Nazionale dei Lincei, 10.4 (1998), nº 20; R. Merkelbach e J. Stauber (eds.), Steinepigramme aus dem grieschischen
Osten…, nº 02/12/08.

1923 L. Robert, Les gladiateurs…, p. 155; K. M. Coleman, Bonds of Danger…, p. 14.

642
fúria irracional mencionada no epitáfio ofenderia mais os próprios combatentes profissionais
do que o público ou o editor: o adversário de Stephanos violou o «código» e Stephanos
aniquilou-o, mas à custa da perda da sua vida. M. J. Carter sustentou que este comportamento
auto-regulador iria para além dos sentimentos ou da atitude profissional de qualquer
gladiador, representando o que hoje se pode chamar industrial standards.1924

Agora perguntemos: onde se encaixa Urbicus em tudo isto? À primeira vista também ele
parece um gladiador tomado por uma enorme sanha assassina, que aconselha os seus colegas
a matar sempre que tivessem oportunidade de o fazer. Contudo, se cotejarmos o epitáfio de
Urbicus com o de Diodoros, que culpa pela sua derrota a traição ardilosa do summa rudis,
podemos formar uma opinião diferente sobre o primeiro. Diodoros afirma, na realidade, haver
vencido o seu adversário, que aparece nomeado (Demetrios); apesar de Demetrios ter acabado
por executá-lo, Diodoros não o responsabiliza pela sua derrota e subsequente morte, acusando
antes o Destino e o árbitro pelo seu infortúnio:
Ένθάδε νεικήσας κεϊμαι Διόδωρος/ ό τλήμων άντίπαλον ρήξας/Δημήτριον ούκ έκτανον εύθύς/άλλά με Μοϊρ
όλοή καί σουμμα- [linhas 4-5]/ρού(δου) vδόλος vαίνόςv έκτανον, έκ δέ/ φάους ήλυθν είς ΄Άϊδην. Кέί-/μαι δ΄εν
γαίη αύτοχθόνων΄ήδέ μ΄έ-/θαψεν ένθα ψίλος άγαθός εύσε-/βίης ένεν 1925.

«Aqui repouso vitorioso, Diodoros, o desventurado. Depois de derrubar o meu oponente Demetrios, não o matei
logo de seguida. Mas a Parca funesta e a traição ardilosa do árbitro [σομμρούδου/sommaroudou, corruptela em
grego de summa rudis1926] fizeram com que perecesse e, da luz, desci para o Hades. Encontro-me na terra dos [meus
antepassados]. E um bom amigo aqui me sepultou por dever de piedade» 1927.

O que daqui se extrapola é que Diodoros não se aproveitou da vantagem inicial contra
Demetrios para o ferir ou arrebatar-lhe a vida: Diodoros não era um assassino. Vista sob esta
perspectiva, a admonição de Urbicus – te moneo, ut quis quem vicerit occidat – não significa
necessariamente que o secutor florentino fosse um homicida maníaco. Em vez disso, a possível
existência de um «código de conduta» gladiatório sugere que, tal como aconteceu com
Diodoros, Urbicus, no seu último confronto, venceu inicialmente o seu oponente, mas optou
por não o matar, depois arrependendo-se amargamente de tomar essa decisão; Urbicus,
também, não se movia por instintos assassinos. Na opinião de M. Carter, «Isto é mais do que
camaradagem entre amigos ou do que um comportamento profissional… e pode indicar a
existência de um ‘código’ entre os gladiadores»1928.

Ainda se podem fazer outras leituras destes epitáfios, nem sempre coincidentes com as
previamente expostas: observamos, a par do alegado «código de conduta», a existência de
certos procedimentos profissionais típicos na gladiatura, dos quais não se descortinam
informes noutros tipos de fontes antigas. Aparentemente, os contendores estabeleciam uma

1924 «Gladiatorial Combat: The Rules of Engagement», p. 110.

1925 Baseámo-nos na recente transcrição de M. J. Carter, «Blown Call? Diodoros and the Treacherous Summa Rudis», Zeitschrift
für Papyrologie und Epigraphik 177 (2011), p. 63. Também consultámos a de L. Robert, que referimos numa das subsequentes
notas infrapaginais.

1926 Ao ler o epitáfio, L. Robert (Les gladiateurs…, p. 131) referiu que o vocábulo σουμμαρον, escrito entre as linhas 4-5, faz
pouco sentido, pelo que cabe compreender como σομμαρούδου/sommaroudou.

1927 L. Robert, Les gladiateurs…, pp. 130-131, nº 79. A estela de Diodoros, do século II e procedente de Amysos (Ásia
Menor,Turquia) conserva-se no Musée du Cinquantenaire de Bruxelas (inv. nº A1562).

1928«Gladiatorial Combat: The Rules of Engagement», p. 111. M. J. Carter sugeriu que o «bom amigo» mencionado na inscrição
talvez corresponda ao próprio Demetrios, a única pessoa que surge nomeada para além do defunto. Julgamos tratar-se de uma
interpretação assaz forçada: por qualquer razão, o indivíduo que enterrou Diodoros e lhe erigiu a estela preferiu quedar no
anonimato; parece-nos descabido, neste caso, que tenha sido o gladiador que lhe roubou a vida. Carter olvidou-se de um
«pormenor, quanto a nós, importante:tem alguma lógica que Demetrios mandasse elaborar uma lápide em cujo relevo ele próprio
aparece aparentemente derrotado e solicitando a missio?

643
espécie de «acordos de preservação mútua» quando se previa o caso de um gladiador
vitorioso ter de escolher qual o destino a dar ao seu adversário.

Examinemos de novo a estela de Diodoros: nela foi esculpida uma cena com dois
provocatores, um tombado no solo que pede a missio, e outro que se encontra de pé
(Diodoros). Se nos restringissemos a esta imagem, poderiamos pensar que o defunto ganhara o
combate, mas o epitáfio mostra que o desenlace foi outro, inesperado. Na inscrição deparamos
com outro exemplo de um adversário que não foi imediatamente eliminado. Estamos diante de
um cenário idêntico ao de Urbicus. No texto não se evoca o efeito de um perdão concedido a
um derrotado que, depois, se mostrasse ingrato, na medida em que Diodoros afirma que jaz
«vitorioso». Através das palavras «não o matei logo de seguida», o defunto talvez quisesse
dizer que pode ter hesitado precisamente no momento mais crucial, dando tempo a que o
oponente retomasse o combate. Mas esta interpretação não se coaduna com o facto de
Diodoros aparecer figurado na lápide com duas armas nas mãos. Neste caso, o problema
radicou no árbitro, que revelando uma «terrível astúcia» (segundo o ponto de vista de
Diodoros), ordenou que a pugna prosseguisse e se devolvesse o gládio ao combatente que
estava prostado. Demetrios não terá ficado gravemente ferido quando caiu ao chão e perdeu a
sua arma, pois que de outra forma torna-se difícil imaginar que conseguisse retomar o
combate e sair vitorioso. Quanto ao árbitro, não aparece na composição escultórica. Na maior
parte dos exemplos iconográficos, o summa rudis/sommaroudou, quando representado,
aparece a apartar os gladiadores mal um deles faz o sinal da rendição, como no relevo de
Amysos, onde vemos Demetrios a claudicar. Neste momento, como vimos, a questão de o
prélio continuar ou não cabia à decisão do editor que oferecia o espectáculo e que, por sua vez,
se esperava que atendesse à vontade do povo/público 1929. O relevo da estela de Diodoros
mostra, não só a altura em que ele pensou que já vencera a pugna, como também o momento
em que o árbitro teria de intervir para declara o combate terminado. No entanto, algo de
incomum aconteceu: o sommaroudou mandou que os gladiadores prosseguissem,
presumivelmente primeiro permitindo que Demetrios se reerguesse e reavesse o seu escudo e
o gládio1930.

Se tivesse sido o editor e o público a não aceitar a submissão de Demetrios, obrigando os


gladiadores a continuar o duelo, então Diodoros certamente não culparia o sommaroudou,
visto que não fora decisão sua. O facto de o último ver-se acusado de culpado no epitáfio
manifesta que o árbitro podia, e neste caso fê-lo, intervir na porfia por outras razões que não
somente um pedido de missio. Com efeito, ele estava presente na arena não apenas para
actuar quando um combatente se rendesse, como igualmente para garantir que os
contendores lutariam de acordo com as regras e os procedimentos estabelecidos 1931.

Pouco sabemos acerca destas regras, mas Pseudo-Quintiliano alude à sua existência e refere-
se colectivamente às mesmas como lex pugnandi (Decl. Mai. 9.9); o narrador deste texto, que
foi resgatado de um ludus gladiatório por um amigo, descreve um combate entre dois
gladiadores, um tratando-se de um experiente veteranus, e o outro (o seu amigo), um simples
novício sem prática:
Facinus indignum illum animum, illum ardorem non contigisse castris, non bellicis certaminibus, ubi vera virtus
nulla pugnandi lege † praescribitur †. Qua vi proelium invaserat iratus etiamnum tamquam adversario meo! At

1929 Consultem-se: G. Ville, La gladiature,… pp. 415-416; S. Brown, «Death as Decoration: Scenes from the Arena in Roman
Domestic Mosaics», in A. Richlin (ed.), Pornography and Representation in Greece and Rome…., pp. 180-211; M. G. Mosci Sassi, Il
linguaggio gladiatorio…, p. 57.

1930 M. J. Carter, «Blown Call? Diodoros and the Treacherous Summa Rudis», p.66.

1931 L. Robert, «Une vision de Pérpetue martyre à Carthage en 203», CRAI (1982), pp. 262-263.

644
omnis impetus excipiebatur callide, veterani gladiatoris astu; omnes conatus contra se errant. Nec difficilem tamem
sub illo praesertim auctoramento habuisset missionem, sec noluit gladiator vivere 1932.

Tradução:
«É uma vergonha que este espírito e fervor não tenham sido empregues no exército, no combate dos soldados,
onde a verdadeira coragem não se vê circunscrita por qualquer lex pugnandi. Com que vigor ele se precipitou para o
prélio, cheio de raiva contra o seu adversário!... Mas todo o seu esforço foi anulado pela mestria do gladiador
veterano, e todas as suas tentativas se viraram contra ele. Podia ter obtido a missio sem dificuldade, especialmente
por causa do contrato [auctoramentum] sob o qual combatia, mas o gladiador não queria que ele vivesse» 1933.

Independentemente da situação em que esta lex particular se aplicava, é diferente da regra


geral envolvendo a missio, onde o summa rudis findava o confronto para que o editor e os
espectadores ponderassem se iriam conceder o indulto ou, pelo contrário, condenar o vencido
à morte. No trecho acima citado, subentende-se que a lex pugnandi oferecia uma vantagem ao
veteranus: ao tiro não lhe faltava determinação, bravura ou mesmo talento a pelejar, uma vez
que se afirma que ele teria brilhado como soldado, além de que era merecedor da missio.
Contudo, o que não tinha era a experiência em relação às normas que condicionavam e
restringiam os gladiadores nas pugnas.

Muito dificilmente conseguimos reconstituir estas regras, mas não resta a menor dúvida de
que a pessoa incumbida de as fazer aplicar era o summa rudis, o perito técnico que se
encontrava na arena para supervisionar o combate e intervir quando necessário. Nestre
sentido, o monumento funerário de Diodoros talvez nos proporcione algumas pistas para tal
lex pugnandi. A maneira mais provável para Demetrios ter ficado indemne mas despojado das
suas armas e achar-se estendido no solo radicaria na eventualidade de haver caído
acidentalmente, perpendo o escudo e o gládio. Também se afigura possível que Diodoros tenha
impedido que o oponente agarrasse as armas, pisando, por exemplo, uma das suas mãos, facto
observável numa das cenas dos painéis de Lucus Feroniae. K. M. Coleman sugeriu que estas
atitudes eram permitidas, já que surgem descritas de modo bem explícito num monumento
mortuário1934.

No entanto, Diodoros assevera ter «quebrado» o seu adversário (άντίπαλον ρήξας), um


vocábulo homérico significando que o derrubou violentamente, com toda a probabilidade,
utilizando o escudo. Consistia numa prática corrente em que o escudo funcionava como arma
ofensiva,que, no presente caso, derrubou Demetrios, fazendo-o, ao mesmo tempo, perder as
armas. A seguir, Diodoros depôs o seu próprio escudo para brandir o gládio do adversário, que
jazia na areia. Num combate militar, isto anunciaria claramente o fim de Demetrios, mas não
era esta a situação. Diodoros terá então retrocedido, pensando que ganhara. O sommaroudou
interveio, mas não parece haver consultado o editor (como Diodoros estaria à espera) e, em
vez disso, autorizou que Demetrios se levantasse, pegasse nas armas e voltasse a lutar1935.

Como se patenteia no relato do Pseudo-Quintiliano, um duelo gladiatório não se resumia


apenas na derrota e na morte do oponente, mas antes em vencê-lo, obedecendo a normas
estabelecidas. Haveria alguma regra específica, referente aos gladiadores que caissem
inadvertidamente?Aparentemente sim. Repare-se que Suetónio, ao descrever o interesse

1932Aqui lemos praescribitur em vez do praemium scribitur que se observa no manuscrito. Veja-se: G. Krapinger [Quintilian] Der
Gladiator (Gröβere Deklamationen, 9), Collana Scientifica 18, Cassino, 2007, p. 116, n. 176; G. Ville (La gladiature, p. 403) leu
praecircumscribitur. Não obstante as ligeiras dificuldades textuais, o sentido afigura-se claro.

1933 M. J. Carter, «Blown Call?...», pp. 66-67.

1934Cf. «Spectacle», in A. Barchiesi e W. Scheidel (eds.), The Oxford Handbook of Roman Studies, Oxford, 2010, p. 656 (651-670).

1935 M. J. Carter, «Blown Call?...», p. 67.

645
doentio de Cláudio pelos espectáculos gladiatórios, e em especial a sua «natureza sanguinária
e cruel», afirma que o imperador até ordenava que se matassem os combatentes que caíssem
acidentalmente (Cláudio, 34.1)1936:
Quocumque gladiatorio munere, vel suo vel alieno, etiam forte prolapsos iugulari iubebat, maxime retiarios, ut
exspirantium facies videret.

«Em qualquer dos munera, fosse [organizado por] ele ou por outra pessoa, ele mandava que até os que
tombassem acidentalmente fossem degolados, principalmente os retiarii, para que pudesse ver os seus rostos ao
expirarem».

G. Ville interpretou esta passagem como significando que Cláudio entendia a queda de um
gladiador, mesmo que fortuita, como uma admissão de derrota e pedido de missio, algo que
ele automaticamente proibia, não só nos seus espectáculos, mas igualmente nos dos outros 1937.
Como Suetónio estava interessado em ilustrar a crueldade do princeps, cabe depreendermos
que normalmente, quando um gladiador caía sem querer teria permissão para se voltar a
levantar. Assim, o escritor e senador romano apresenta a ordem de Cláudio de os matar como
uma excepção cruel face aos procedimentos usuais.

Se Demetrios se viu arrojado ao solo por Diodoros, fosse porque sofrera um ferimento ou pelo
simples facto de ter sido vencido, então só isto, de acordo com G. Ville, bastaria para indicar
um petere missionem em combates normais, levando o summa rudis a agir e a auscultar a
opinmião do munerarius e do público. Todavia, se a queda fosse simplesmente acidental, neste
caso o árbitro autorizaria o gladiador a reerguer-se e continuar a lutar. Consequentemente, o
summa rudis deve ter interpretado a queda de Demetrios como uma casualidade sem
importância. Compreensivelmente, Diodoros, no seu epitáfio, discorda do árbitro, garantindo
que ele deitara abaixo o oponente deliberadamente, pelo que a queda fora intencional.

O que o editor e os espectadores geralmente pretendiam ver eram pugnas em que um


gladiador forçava outro a submeter-se, fazendo uso de um talento e de uma valentia
superiores, mas ao mesmo tempo observando as normas estabelecidas e as expectativas – a
lex pugnandi. O público não queria assistir a uma vitória acidental, nem tão quanto contemplar
um simples homicídio. Curiosamente, Diodoros, com o oponente à sua mercê, podia tê-lo
ferido ou matado, assim garantindo a sua vitória, mas preferiu não o fazer, quando Demetrios
se encontrava indefeso e efectuava o gesto da rendição. Diodoros buscava mais a vitória do que
a aniquilação do adversário. Mas, ironicamente, perdeu o combate e a vida. Posto isto, a lápide
de Amysos mostra que os confrontos nem sempre findavam com a vitória garantida de um dos
protagonistas. Assumiria interesse conhecer a reacção da multidão nestas situações.

Sobre o epitáfio de Urbicus, há dois elementos informativos essenciais: primeiro, que Urbicus
foi morto por alguém que anteriormente ele poupara a vida, e que o último (ou o público) não
demonstrou a mesma generosidade para com o secutor florentino; segundo, Urbicus alude ao
hábito esporádico de deixar ao critério do vencedor a sorte que mereceria o seu adversário.
Tratava-se de uma decisão que muito pesaria na consciência de alguns gladiadores:
efectivamente, aplicar a sentença proferida pelo editor, quando este ordenava a execução do
vencido, era um dos principais deveres do gladiador. No entanto, resolver matar ou não o
oponente (que, se sobrevivesse, poderia aniquilar o que o poupara noutro combate) constituía
um problema que acarretava sérias implicações. Este dilema, quando a decisão se confiasse a
um combatente, contribuía para aumentar ainda mais o drama do instante final, e o público
não ficaria decerto indiferente. Lamentavelmente para Urbicus, e para a sua familía, ele fez a

1936Suetónio introduz a sua discussão, escrevendo: saevum et sanguinarium natura fuisse, magnis minimisque apparuit
rebus(«Que ele tinha uma natureza cruel e sanguinária, observável tanto nas grandes como pequenas coisas»).

1937 La gladiature…, p. 416.

646
pior escolha. Assim, por detrás do conselho que o defunto da aos seus colegas de ofício, capta-
se um profundo ressentimento contra uma sorte considerada injusta.

Na inscrição funerária de outro secutor, Victor, à qual também nos reportámos, vê-se um
idêntico sentimento de amargura e revolta, só que neste caso o falecido insurge-se contra o
antagonista (Pinnas), que venceu o duelo de maneira fraudulenta. O epitáfio de Victor
expressa, simultaneamente, o fatalismo, ao atribuir a morte à deusa Fortuna, e um forte
rancor. De que perjúrio Pinnas havia sido culpado? Antes do combate, os dois homens terão
feito algum pacto, combinando poupar-se mutuamente? Não sabemos ao certo…

Noutro epitáfio, descoberto em Salonae, a esposa e o irmão de Maximinius Aureus, um


secutor que pereceu com 22 anos de idade depois de participar em 5 combates, extravasam o
seu rancor para com o adversário que o matou, rotulando-o de ladrone (CIL III 8830).
Sobreviveram outros textos referentes a gladiadores vitoriosos que, subitamente, encontraram
a morte, haja em vista a inscrição da estela do retiarius Eumelos, de Stratonikeas (Mugla Müze,
Turquia 187):
«Depois de ter eliminado vários no corpo a corpo, ele foi morto por uma lança zumbidora vinda de longe».

No relevo da sua lápide, Eumelos foi representado a combater e vê-se que ganhou 8 coroas;
datando a estela do século II ou III, não faz grande sentido, à primeira vista, a menção à lança,
dado que nesse período, à excepção dos equites, os gladiadores já não lutariam com esta arma
de haste, nem tão quanto utilizariam dardos de arremesso. Neste sentido, talvez caiba
imaginar que o retiarius foi assassinado fora da arena, quiçá num acto retaliatório de algum
amigo, colega ou parente das vítimas que o próprio Eumelos afirma haver aniquilado no corpo
a corpo. O contraste entre a lança, «vinda de longe», e os adversários que sucumbiram em
combate pode ter sido uma maneira de o redactor do texto enfatizar, em linguagem
metafórica, a coragem do retiarius contraposta à cobardia do seu assassino.

Torna-se difícil afirmar, num tom generalizante, que os gladiadores primassem pela
afectuosidade no trato uns com os outros. É certo que sobreviveram testemunhos de piedade
e amizade post mortem entre companheiros de armas, mas a verdade é que nas porfias
travadas na arena, raramente restaria espaço para atitudes de clemência ou compaixão por um
oponente. Apesar de vários destes profissionais se nortearem por um «código» de conduta,
captam-se indícios que outros recorreriam a vários estratagemas e «golpes baixos», mesmo
que oficialmente proibidos, para sobreviverem. O ódio parece ter sido um sentimento
preponderante entre os gladiadores, a tal ponto que o mesmo até chegava a transitar da vida
terrena para o Além: num epitáfio de Smyrna (CIG 3284), o defunto Asképon lança uma
maldição contra o seu oponente, Pardos, esperando ardentemente que este tenha «[um dia] a
mesma morte».

Nas inscrições funerárias se, por um lado, os adversários surgem amiúde referidos, o público,
por outro, raramente se evoca. Ocasionalmente observamos parentes ou amigos do falecido a
manifestarem grande ressentimento contra aqueles que proferiram o veredicto da morte:
«Actius, murmillo, com 6 vitórias, tendo vivido até aos 21 anos, aqui repousa. Que a terra lhe seja leve. A sua
esposa mandou erigir este monumento à sua própria custa para o marido. Aquele que, entre vós, desejou a minha
morte, que os deuses o transformem também, e para sempre, num vivo e num morto» (CIL II.7353).

Este gladiador, que perdeu a vida em Corduba (Córdova), amaldiçoa, aparentemente, os que
concorreram para a sua condenação capital, desejando-lhes uma eterna errância, isto é, que se
tornassem em almas penadas. Conquanto se possa tratar de uma alusão a antigos rivais, há
que não excluir a hipótese de a maldição visar os próprios espectadores.

647
Atestam-se, frequentemente, provas documentadas de gladiadores que morreram em
consequência dos ferimentos sofridos em combate. Em algumas inscrições, considerou-se
importante justificar a interrupção demasiado prematura de uma carreira: é o que constatamos
no epitáfio em memória de Rapidus, cuja estela foi erigida em Salona, falecido após travar 6
pugnas (CIL III.12925). Noutro texto, igualmente achado em Salona, as palavras espelham um
misto de decepção e orgulho:
«Para Amabilis, secutor dácio, com XIII combates. Foi o Destino, e não o homem, que me venceu!» (CIL III 14644).

As inscrições dos monumentos funerários oferecem dados relativamente elucidativos sobre a


psicologia dos gladiadores: não encontramos exemplo algum em que o vencido reconheça
mérito ou superioridade técnica ao seu vencedor. Embora houvesse um «código» de conduta,
muitas vezes o gladiador não se regia pelas normas éticas de um cavaleiro medieval, nem
corresponderia a um desportista imbuído de fairplay. Pelo contrário, o que mais avulta na
documentação que analisámos é a angústia ou o azedume, e a tónica dominante no conteúdo
dos epitáfios tem a ver com a ideia de uma sorte geralmente encarada como injusta.
Assinalam-se também referências a maus-olhados, ou, mais usualmente, à velhacaria ou
perfídia dos adversários. Jamais se alude à falta de talento do gladiador defunto e, muito
menos ainda, à sua ausência de valentia.

Por outro lado, não há palavras explicitamente dirigidas ao público ou aos editores, enquanto
responsáveis pelo destino funesto dos combatentes, apenas se assinalando um caso em que se
culpa um árbitro (epitáfio de Diodoros). O veredicto, mesmo que desfavorável, transmitido
pelo munerarius ou pela multidão, era aceite como elemento constitutivo e incontornável dos
riscos do ofício gladiatório. Em contrapartida, quando estava em causa outro combatente, o
perjúrio e o comportamento traiçoeiro ou fraudulento eram-lhe imputados mediante duras
invectivas, quase parecendo agitar estas vítimas de uma ira derradeira. Não obstante a
existência de testemunhos de amizade, camaradagem e piedade fraternal entre os gladiadores,
o adversário nunca se descreve como um alter ego, mas, acima de tudo, como um inimigo
perigoso e muitas vezes desprovido de honra que importava eliminar o quanto antes.

Por fim, os epitáfios revelam muitas vezes o sentimento de um orgulho profissional ferido: na
óbvia impossibilidade de poder terminar gloriosamente a sua carreira, o gladiador falecido
jamais dá mostras de arrependimento ou de desgosto por haver exercido esta profissão, nem
procura esboçar queixumes ou lamentos. Mas nos epitáfios transparece, acima de tudo, um
certo desprezo, por parte dos aguerridos combatentes da arena, face à morte que os atingiu
(contemptus mortis), mas que enfrentaram com destemor. Por último, a morte não se
apresenta como produto da fraqueza dos gladiadores, mas enquanto resultado do caprichoso
destino ou da traição, contra os quais eles se viram reduzidos à impotência.

Os métodos de execução dos gladiadores com base na iconografia e na arqueologia 1938

Os gladiadores nem sempre pereciam na arena. Apesar de estarmos perante um facto


dificilmente comprovável, o certo é que dispomos de vários testemunhos que apontam nesse
sentido: veja-se, por exemplo, o caso de Placentinus (CIL III 2127), um retiarius, que faleceu em
Salonae com setenta anos de idade; o mesmo terá sucedido com outro, da Cirenaica, citado

1938Sobre esta matéria específica: E. Teyssier, La mort en face…, pp. 368-377; Idem, «Les modes opératoires de la mise à mort à
travers l’iconographie de la gladiature», Histoire Antique &Medievale, HS nº 23 (avril 2010), pp. 40-45; F. Gilbert, Gladiateurs,
chasseurs et condamnés à mort…, pp. 159-162; A. Mañas Bastida, Gladiadores…, pp. 127-128.

648
por L. Robert, no epitáfio do qual lemos a seguinte inscrição - «Poupado pelo ferro, ele foi
morto pela doença». Embora nem todos os combates terminassem obrigatoriamente com uma
ou várias mortes, não há dúvida de aqueles em que tal acontecia eram os mais esperados e
apreciados pelo público. Estes munera viam-se, ademais, acompanhados por uma cerimónia
específica, a atrás mencionada probatio armorum, altura em que se confirmava se as armas
estavam devidamente afiadas. Com o propósito de se atestar o carácter mortífero das mesmas,
convidavam-se certas personalidades para verificar se elas se apresentavam efectivamente
cortantes e não eram embotadas. Atrás vimos que Suetónio relatou num episódio em que Tito,
depois descobrir uma conspiração urdida contra si próprio, decidiu oferecer essa honra aos
conspiradores desmascarados:

Os textos antigos nunca evocam de maneira concreta o momento da morte. Quando esta se
encontra em causa, emprega-se apenas o verbo iugulare, cujo significado é bastante vago,
tanto podendo querer dizer «degolar» como «matar» ou «assassinar», mas não se explicita o
método específico de execução. As próprias representações figurativas também se manifestam
muito contidas a respeito deste instante crucial. O corpus iconográfico exibe muito mais
frequentemente o momento do pedido da missio do que a morte em si mesma. Se, por um
lado, é possível inventariar centenas de pares de gladiadores a combaterem, por outro, só uma
dezena de cenas reproduz, não a altura em que a arma trespassa o corpo do vencido, mas o
instante que precede imediatamente o golpe fatal, isto é, aquele «minuto» trágico em que o
público e o vencedor se acham expectantes ante a decisão do árbitro.

Destaquemos outro aspecto: os gladiadores derrotados aparecem figurados numa atitude


indiferente em relação ao seu funesto destino, como que marcados por uma espécie de
conformismo fatalista. É o que contemplamos num baixo-relevo de começos do século I a. C.
(fig. ; Teatro de Benevento, Itália), onde se representaram um thraex e um murmillo. Os dois
combatentes ostentam elmos desprovidos de protecções faciais. O murmillo, que saiu
vencedor, mantém o escudo na mão esquerda e vira-se para o editor. Quase alheado face ao
drama que está prestes a concretizar-se, o vencido (o thraex) chega a ajudar,
complacentemente, o adversário a posicionar a ponta da sua lâmina sobre a sua clavícula
esquerda. Assim, ao desferir uma poderosa estocada de cima para baixo, o gladiador vencedor
poderia, caso o editor tal ordenasse, atingir o coração do oponente. Este gesto e esta imagem
foram perfeitamente descritos pelo cálamo de Séneca em duas passagens:
«[Um gladiador] apresenta ao seu adversário o seu pescoço e sobre este ajusta o gládio errante [que se
desvia]»/«iugulum adversario praestat et errantem gladium sibii attemperat»1939;

«[O gladiador] que não afasta o pescoço nem opõe as mãos, mas valorosamente recebe o ferro»/«qui ferrum non
subducta cervice nec manibus oppositis, sed animose recipis»1940.

Noutro relevo, de meados do século I d. C. (fig. ;Museo di Penne, Itália), vemos o mesmo
género de submissão: aqui, o vencido, novamente um thraex, oferece o seu pescoço ao
gladiador vitorioso. Só que este não colocou a sua lâmina sobre a clavícula do adversário, mas
antes sobre o peito. À semelhança da imagem precedente, o vencedor vira ligeiramente a
cabeça, certamente atento à decisão que o editor estará prestes a tomar a partir da sua
tribuna. O aspecto mais curioso neste caso é que o combatente derrotado ainda se encontra
provido de todo o seu armamento, mas, atente-se, ele exibe a sica e o escudo atrás das suas
costas.

Entre as cenas que representam a morte de gladiadores, a mais impressionante é a


pertencente ao baixo-relevo do monumento funerário de U. Scaurus (fig. p. 86): observa-se um
1939 Séneca, Epist. 30.8.

1940 De Tranquilitate Animi, 11.5.

649
provocator a degolar o seu oponente já ferido, que está ajoelhado à sua frente. A vítima não
busca evitar o golpe, nem demonstra renitência ou nervosismo face à sua triste sorte. Ferido
na coxa, tíbia e no antebraço, o vencido apoia-se firmemente na perna direita do adversário.
Este posiciona o gládio sobre o pescoço do derrotado e segura a parte de trás do seu elmo com
a mão esquerda. Esta imagem mostra claramente que, no momento fatal, ambos os homens
contribuem para que a lâmina penetre certeiramente na carótida do vencido, causando em
princípio uma morte relativamente rápida1941. Este tipo de gesto (que conheceu variantes) tinha
o seu significado: é possível que nestas cenas se pretendesse transmitir a ideia de que uma
execução codificada se assemelharia mais com um suicídio acompanhado do que com um
homicídio1942.

Quais poderiam ser as motivações para que os gladiadores vencidos tivessem uma atitude tão
pouco natural em relação à morte? A força do treino que haviam recebido, como Cícero e
Séneca afirmaram? O desprezo ante uma morte inelutável, cuja eventualidade era aceite
através de um contrato? O respeito por uma certa consciência profissional? Ou o realismo dos
próprios combatentes, que desejariam, ao guiar a estocada do vencedor, morrer rapidamente
e quase sem sofrimento? É difícil apresentarmos uma resposta concludente, mas não
andaremos longe da verdade se dissermos que todas estas razões talvez se conjugassem, de
uma ou outra maneira. Seja como for, a exibição de uma tal coragem e resignação contribuía
certamente para o êxito da gladiatura e para o fascínio que ela exercia sobre a multidão.

***

Para além destas cenas, anteriores à segunda metade do século I d. C., há outras onde se
vêem outros métodos de execução dos gladiadores. No leque muito restrito de imagens em
que a morte do vencido se anuncia como iminente, embora não forçosamente garantida,
certos documentos plásticos mostram o vencedor aprestando-se a golpear o adversário nas
costas. A mais antiga destas fontes consiste no medalhão de uma lucerna (da qual se
conhecem vários exemplares praticamente iguais) datando provavelmente de meados do
século I da nossa era: visualiza-se um murmillo a apontar ameaçadoramente asua arma para o
oponente, virando a cabeça por cima do ombro direito, parecendo aguardar pela decisão do
editor para, então, enterrar o seu gládio na nuca do thraex (FIG. ;Museu Arqueológico de
Colónia, Alemanha). O último, depois de ter solicitado a missio, espera pelo veredicto de
maneira resignada, ainda mantendo nas suas mãos a sica e a parma. A sua atitude revela uma
passividade tanto mais espantosa quanto o facto de estar obviamente em jogo a sua vida, no
meio da agitação das bancadas do anfiteatro.

Quando se recusava a missio, com base noutras fontes iconográficas vemos que a morte do
gladiador nem sempre era dada de frente. É o que observamos numa cabaça de terracota,

1941Com a descoberta do chamado «Cemitério dos Gladiadores» em Éfeso, por arqueólogos austríacos em 1993, acharam-se
muitos elementos esclarecedores: nas ossadas de um gladiador, com 25-40 anos na altura da sua morte, K. Grossschimdt e F. Kanz
(Gladiatoren in Ephesos. Tod am Nachmittag, Katalog der Ausstellung in Ephesos Museum Selçuk, Viena, 2002, p. 71;
reconstituição, fig. 5), descobriram um caso concreto deste método de execução, com uma lâmina trespassando o pescoço da
vítima. Veja-se também M. Junkelmann, Gladiatoren…, p. 176, fig. 308.

1942 É. Teyssier, La mort en face…, p. 371.

650
achada em Colónia, datando do século II ou III d. C.: na imagem que ornamenta essa peça, o
vencido encontra-se estendido no solo, de barriga para baixo, enquanto o adversário lhe
espeta o gládio nas costas; é possível que se tratasse de um combatente que já estivesse
gravemente ferido, e não do caso mais usual em que se degolava o gladiador depois de este
haver efectuado um mau combate. Além disso, não obsta a que pensemos que esta cena nos
mostra o momento preciso em que o vencedor retira a lâmina do cadáver do seu oponente; se
efectivamente for esta a situação descrita, então estaremos, paradoxalmente, diante do único
testemunho, no conjunto do corpus imagético dos séculos I, II, III d. C, em que se mostra um
gladiador já morto.

Representou-se algo de semelhante num baixo-relevo do Museu Arqueológico de Dürres


(fig. ), esculpido em meados do século I d. C.: aqui vê-se um thraex de gatas, no solo. Se bem
que manifestamente derrotado, ainda tem o elmo (dotado do característico prótomo de grifo)
posto na sua cabeça e a sica na mão direita 1943. O seu oponente, um murmillo, posiciona-se
mesmo por detrás dele, colocando o joelho esquerdo sobre as suas costas. O vencedor aparece
figurado na iminência de mergulhar a sua adaga por baixo da omoplata esquerda do
adversário1944. No claro intento de fazer entrar a lâmina de uma só vez, o murmillo apoia o
antebraço esquerdo na sua mão direita, a fim de a estocada se desferir com maior firmeza e
rapidez. A sua arma apresenta aqui uma lâmina particularmente comprida e afilada. Este
detalhe leva-nos a depreender, novamente, que a execução se efectuava com uma arma
específica.

Contempla-se cena idêntica em vários exemplares de uma lucerna da segunda metade do


século I. Tal como no relevo de Dürres, um murmillo apoia o seu joelho e a mão direita nas
costas de um thraex submetido. Este também se acha de gatas e, mantendo ainda as suas
armas, aguarda pelo golpe fatal. Ao basear-nos nestes exemplos, fica-nos a impressão de que,
a partir da segunda metade do século I, se terá registado uma tendência generalizada de se
matar os gladiadores pelas costas e não de frente, posição em que se perecia através da
degolação. Por outro lado, à excepção do caso do provocator de Pompeia, nenhuma outra
representação mostra um combatente a ser degolado. Assim, em princípio, todos os
gladiadores eram executados por uma estocada de adaga, assestada de cima para baixo, sobre
a clavícula esquerda ou, então, por um golpe dado com muita força sob a omoplata esquerda.

A execução efectuava-se com uma lâmina especialmente fina, conduzindo a uma morte
rápida. Presumimos também que este método de eliminação obedeceria a uma razão de
ordem prática: com efeito, o outro modo operatório de execução – desferir um golpe na
carótida (visível no relevo do túmulo dito de Scaurus – conquanto pudesse resultar numa
morte relativamente rápida, não impediria que a vítima perdesse imediatamente a consciência.
Pelo contrário, um golpe directo no coração causaria uma perda instantânea dos sentidos, e
uma morte que ocorreria volvidos cerca de três minutos. Se, por um lado, no século I d.C. a
morte ainda era ainda muito ritualizada, por outro, torna-se difícil sabermos como seria esta
encarada nos séculos subsequentes, visto que, afora a cabaça de Colónia, o acervo icónico do
século II se afigura mudo a este respeito.

Em 1993, uma equipa de arqueólogos austríacos fez uma importante descoberta (à qual nos
reportámos várias vezes), que ajuda a esclarecer certos aspectos sobre esta matéria: No tempo
da ocupação romana, Éfeso era a capital da opulenta província da Ásia: esta parte do Império,
muito urbanizada, encontra-se entre as mais ricas em fontes ligadas à gladiatura. Conquanto

1943 Se nos fundamentarmos nos elmos como critério de datação, este baixo-relevo terá sido esculpido nos anos 50 ou 60 d.C.

1944Novamente, nas ossadas de um gladiador, descoberto no cemitério de Éfeso, confirmou-se a prática deste tipo de golpe
mortal: K. Grossschimdt e F. Kanz, Gladiatoren in Ephesos…, p. 71, (reconstituição) fig. 4; M. Junkelmann, Gladiatoren…, p. 176, fig.
308.

651
Éfeso não dispusesse de um anfiteatro, tinha, em contrapartida, um teatro imponente e,
sobretudo, um amplo estádio, os quais serviam de palco para combates de gladiadores.Perto
do estádio, achou-se uma necrópole particularmente digna de interesse: nela se exumaram
diversas lápides de combatentes da arena, datando de 200 a 300 d. C., algumas delas
parecendo situar-se no local original1945; num dos monumentos funerários, o defunto Pardos
vangloria-se, na inscrição, de ter saído vitorioso em dez ocasiões, «tendo o Sol nos olhos» e de
matar os seus adversários «como se fossem asnos». No epitáfio de outro gladiador, lê-se que
pereceu aos 21 anos, aquando do seu quinto combate, depois de haver passado quatro anos
na gladiatura. Esta inscrição reveste-se de interesse, dado que confirma, em certa medida, que
existiam poucos munera onde os combates terminavam invariavelmente com a morte de um
dos adversários, ao mesmo tempo que nos indica que certos gladiadores começaram a lutar na
arena muito jovens, no caso em apreço, com dezassete anos.

No mesmo sector do cemitério, exumaram-se numerosos esqueletos, pertencentes a uns 120


indivíduos, incluindo homens, mulheres e crianças. Embora várias ossadas tenham sido
removidas para se reutilizarem alguns dos sarcófagos, os múltiplos vestígios de ferimentos que
se observaram em tais restos humanos levam a supor que estariam associados às estelas
mortuárias gladiatórias. Consequentemente, esta necrópole constituiria uma espécie de
recinto destinado para o sepultamento dos gladiadores e das suas famílias 1946. Os esqueletos
foram examinados por Fabian Kanz e Karl Grossschimdt, antropólogos especializados em
osteologia pela Universidade de Medicina de Viena.

O delicado labor de reconstituição das ossadas permitiu chegar a algumas conclusões


elucidativas, lançando nova luz sobre as especificidades físicas e a traumatologia dos
gladiadores. No conjunto dos esqueletos exumados, F. Kanz e K. Grossschimdt identificou 68
homens como tendo sido gladiadores1947. A partir do estudo atento dos ossos dos pés, o
antropólogo conseguiu determinar que os gladiadores andavam frequentemente descalços.
Por outro lado, a análise dos ossos dos braços revelou que os seus tendões eram, tal como os
pés, igualmente maiores do que o normal, e o braço direito (no caso dos destros)
desmesuradamente grande comparativamente ao outro, fenómeno assinalável, por exemplo,
nos campeões de ténis da actualidade, o que confirma a intensidade dos treinos que faziam
diariamente. No entanto, esses exercícios estariam adaptados em função dos combatentes.
Contudo, a ausência de microfissuras nos ossos leva a excluir a ideia de que os seus treinos
seriam demasiado violentos.

Um dos achados que despertou mais curiosidade foi um conjunto de fragmentos de um crânio
recuperado da necrópole de Éfeso. Depois de reconstituído o último, detectou-se que continha
três orifícios formando uma linha regular, desde a parte superior da arcada supraciliar direita
até á parcela posterior esquerda da cabeça. Não resta a menor dúvida de que aqueles foram
causados por um violento golpe desferido por um tridente, de cima para baixo, encontrando-se
a vítima certamente estendida no solo. As pontas da fuscina penetraram profundamente no
cérebro, provocando uma morte imediata. No crânio, para além desta lesão fatal, F. Kanz e K.

1945 W. Pietsch, «Gladiatoren. Stars oder Geächtete?, in P. H. Tauber e H. Thür (eds.), Steine und Wege – Festschrift für Dieter
Knibbe zum 65. Geburstag, Viena, 1999, pp. 373-378; W. Pietsch e E. Trinkl, «Grabungsbericht der Kampagnen 1992/93, Bericht
und Materialien Österreichisches Archäologisches Institut, 6 (1995), pp. 14-48; S. Fabrizzi-Reuer, «Gräber im Bereich der Via Sacra
Ephesiana», in H. Freisinger e F. Krinzinger (eds.), 100 Jahre Österreichische Forschung in Ephesos, Akten des Symposions Wien
1999, Österreichische Akademie der Wissenschaften, Viena, 1999, pp. 461-464; W. Pietsch, «Außerstädische Grabanlagen von
Ephesos», ibidem, pp. 455-460; F. Kanz e K. Grossschmidt, «Stand der anthropologischen Forshungen zum Gladiatorenfriedhof in
Ephesos», Öjh 74 (2005), pp. 103-123.

1946 A algumas centenas de metros a sul do anfiteatro de Nîmes, descobriram-se estelas funerárias de gladiadores, pelo que
deveria existir uma necrópole particular nessa cidade. Em Salonae (a oeste do anfiteatro local), e em Patras, também se
encontraram cemitérios de gladiadores.

1947 «Head injuries of Roman Gladiators», Forensic Science International, 160 (2006), p. 209.

652
Grossschimdt encontraram o vestígio de outro ferimento cicatrizado mais antigo, que terá
ocasionado abundante perda de sangue 1948. Assim, concluiram que o crânio pertenceu a um
gladiador experiente que perdeu a vida de forma especialmente brutal. A armatura sob a qual
combateu suscita problemas de identificação, mas podemos avançar com duas possibilidades:
talvez fosse um secutor, que tivesse perdido o elmo durante a pugna ou que o retirasse após o
seu pedido da missio. A seguir, o retiarius utilizaria o tridente, perfurando a cabeça do
adversário com as três pontas da sua arma de haste; a outra hipótese consiste em identificar a
vítima como sendo um retiarius: neste caso, o secutor vitorioso poderia ter-se servido do
tridente do oponente para o executar depois da sua derrota.

O facto de o gladiador ter sofrido uma anterior lesão no crânio faz-nos pender para a segunda
possibilidade: de facto, só o retiarius não utilizava casco e um ferimento na parte superior da
cabeça normalmente não poderia ser infligido num secutor. Todavia, a utilização do tridente
para um golpe destes não aparece descrita nem representada nas fontes literárias e
iconográficas conhecidas. Noutros esqueletos, encontraram-se de cicatrizes de golpes mortais
mais «clássicos». As marcas visíveis em determinados ossos permitiram, pois, apurar com alto
grau de precisão dois métodos básicos de execução. Um dos gladiadores foi degolado por uma
estocada assestada frontalmente no pescoço, seguindo uma trajectória similar à que se figurou
na morte do provocator do baixo-relevo de Nápoles (fig. p. 86). Por seu turno, os vestígios
observados numa omoplata revelam que outro combatente sofreu um golpe nas costas,
através de uma lâmina que penetrou pelo ombro esquerdo, deslizando depois para a abertura
superior do tórax e, por fim, trespassando o coração. Aqui, de novo, a interpretação forense
coincide perfeitamente com a execução esculpida na composição relevada de Dürres.

Assim, os exames forenses confirmam a veracidade observável em diversas cenas do corpus


iconográfico gladiatório. Os diferentes métodos de eliminação demonstram que não havia
apenas um tipo de execução, mas várias técnicas concomitantemente aplicadas. Em geral,
visavam limitar o sofrimento dos combatentes que já estariam, possivelmente, gravemente
feridos quando receberam o golpe de misericórdia. Em tudo isto, apenas o crânio atingido
supostamente por um tridente constitui um caso anómalo, pois que se trata de uma prática
que jamais se evoca na documentação antiga. O único testemunho que talvez se reporte à
mesma é o trecho de Prudêncio atrás citado, a propósito do pollice verso: «E o peito daquele
que está por terra, a honesta virgem, ao revirar o polegar [converso pollice], ordena que se
trespasse»1949.

A «Porta dos Vivos»: as recompensas atribuídas aos vencedores

A busca pela fama e prestígio sempre representou uma das forças motrizes para os que se
tornavam gladiadores, a par da vontade de eventualmente enriquecer. De facto, algumas
recompensas mais substanciais ajudavam estes homens a superar o medo de sofrerem
ferimentos e, até, de perderem a vida. No contexto gladiatório, não nos situamos no quadro de
um desporto amador, em que os participantes se defrontassem somente por simples prazer: o

1948 Ibidem, pp. 213-214, fig. 5.

1949 Lembremos que este testemunho do século V é coevo do extremo final da história da gladiatura.

653
que estava em jogo era todo um conjunto de outros factores. Afinal de contas, os gladiadores
(e os venatores) eram profissionais que apostavam muito na arena, mas também almejavam
lucrar com as suas prestações. Quantos, entre os auctorati, não enveredaram por este perigoso
ofício, acalentando a esperança de travar uma série de combates e fazer fortuna, para depois
se retirarem, gozando de uma vida tranquila e desafogada? Mas quantos sonhos se dissiparam,
brutal e prematuramente, face a um adversário mais forte ou sortudo? Certamente que a
maioria não atingiu tais metas, uma vez que para tirar proveito nesta profissão era
fundamental ter dois requisitos imperativos: ser-se talentoso e sobreviver, a primeira não
condicionando forçosamente a segunda.

A primeira recompensa para um combatente da arena era, desde logo, a satisfação de vencer
e, naturalmente, o alívio de continuar vivo. Um gladiador indicava a sua vitória por meio de um
gesto particular, que se observa em vários documentos iconográficos: por exemplo, na estela
do thraex Exochus e em duas figuras representadas numa greva e num elmo descobertos em
Pompeia, o vencedor esboça uma espécie de saudação militar (lembrando a continência
moderna), com o braço direito dobrado e a mão tocando na fronte, estando os dedos,
encolhidos ou não, virados para dentro. À primeira vista será difícil concluir outra coisa que não
uma saudação, mas os gestos têm igualmente uma história, e a realidade antiga muitas vezes
não guarda relação com a linguagem gestual actual. Contemplamos também esta posição do
braço e da mão numa efígie encontrada em Deva (Roménia) figurando a deusa da caça Diana, e
numa estatueta de terracota conservada no Musée de Strasbourg, que nos mostra um oficial
de uma legião ou mesmo Marte «em pessoa». Comum ao mundo do exército e ao da
gladiatura, a manifestação do êxito averbado está, indiscutivelmente na origem explicativa
deste gesto misterioso. Repare-se, ainda, que no monumento funerário de Exochus, este
segura uma palma na mão esquerda.

Efectivamente, em função da magnitude do seu brilhantismo, uma vitória podia ver-se


simbolizada pela atribuição de uma palma ou de uma corona. Pela sua natureza e
propriedades, os vegetais possuíam um significado específico desde a noite dos tempos, ao
qual os Romanos prestaram muita atenção. Note-se que as condecorações militares (dona
militaria) eram, na sua maior parte, coronae honoríficas vegetais que diferiam em função do
género de proeza obrada: havia-as, assim, em erva entrançada, em folhas de carvalho ou de
loureiro, etc. As insígnias das unidades do exército romano também se apresentavam cobertas
pelas mesmas por iguais motivos. No mundo do desporto antigo obedecia-se a regras
similares: os Gregos já coroavam os seus atletas com folhas de loureiro ou de oliveira. No que
respeita à coroa de louros, esta conheceu a sua origem no mito da virgem Dafne, que se
metamorfoseou num loureiro para escapar a Apolo. Esta árvore tornou-se então num dos
símbolos do deus das artes e da luz, pelo que os Helenos utilizavam as suas folhas para coroar
os vencedores, antes que a tradição se viesse a adoptar em solo itálico. A palma estava
igualmente ligada a Apolo, mais tarde largamente associada a Augusto, que proclamava ser
filho do deus, e, de modo mais abrangente, ao culto imperial 1950.

Nos afrescos tumulares campanianos e etruscos que representam competições desportivas,


observam-se, por vezes, ramos de palmeira exibidos pelos árbitros ou pelos vencedores. Na
iconografia gladiatória, as palmae da vitória são extremamente frequentes: os combatentes
tinham grande orgulho em fazer-se retratar com elas, nas suas lápides, assim sublinhando as
suas vitórias passadas (e. g., a estela do thraex Satornilos de Smyrna [Rijksmuseum de Leiden,
Holanda]; a estela do essedarius Eirenion [Museu de Afrodísias, Turquia]). Aparentemente, a
palma significaria o primeiro grau das recompensas, servindo para honrar todos os vencedores.
Ao ostentarem esta palma, amiúde de grande tamanho, é que os gladiadores vitoriosos
percorriam a arena numa volta de honra (discurrere).

1950 M. Carter, «Palms for the Gladiators…», p. 653ss.

654
«A um murmillo de um ludus gladiatorius, que se exercitava, utilizando um gládio de madeira, com ele [Calígula],
que caiu no solo voluntariamente, espetou-lhe uma adaga de ferro e pôs-se a correr….com uma palma, à maneira
dos vencedores…» (Suetónio, Calígula, 32.5).

Em algumas inscrições, como anteriormente salientámos, aparecem as letras SPA ou SPAT na


titulatura de um gladiador (por exemplo, CIL VI.07659) que, contrariamente ao que se pensou
durante largo tempo, não se trata de uma abreviatura para spatharius, mas antes spatha, outro
vocábulo para «palmeira», consequentemente, tais abreviaturas remetem, não para a
especificidade do armamento, mas para uma recompensa do combatente e, extensivamente,
para a sua vitória.

Nas imagens mostrando atletas e aurigas, as palmae concedidas aos vencedores aparece em
geralmente colocadas em vasos de consideráveis proporções, bem visíveis, ao lado dos
candidatos, a fim de mais os incentivarem. É muito possível que o mesmo se fizesse nos
anfiteatros. Contudo, a palma muito raramente se vê em fontes plásticas do início da época
imperial: encontramo-la, a título excepcional, em várias peças de cerâmica em terra sigillata de
Graufesenque (França) e num grafito de Pompeia, atrás citado, em que um secutor desce de
uma estrutura através de de uns degraus ou de uma rampa: a estrutura tanto pode
corresponder à tribuna do editor como a um pons (o que nos parece mais credível). A palma
tornou-se mais frequente na iconografia ao longo dos séculos II e III d. C.: numa cabaça de
barro do Museu de Mainz (Alemanha), ela figura aos pés de dois provocatores envolvidos
numa encarniçada porfia.

A história do combate entre Priscus e Verus ilustra a mesma vontade de motivar os dois
gladiadores, quando Tito ordenou que se depusesse uma palma sobre a areia, entre eles.
Como dissemos, normalmente só poderia haver um vencedor, o que tal palma lembrava de
forma indubitável. Ela ali estava para encorajar os contendores a terminar uma pugna que
parecia interminável. Mas o entusiasmo do público convenceu o imperador a conceder duas
palmae, uma para cada campeão, assim recompensando dois vencedores; quando havia um ex
aequo, o usual era ambos os gladiadores receberem o indulto (stantes missi), mas não se viam
declarados vencedores. Assim, a este respeito, o duelo de Priscus e Verus revela-se assaz
invulgar. No entanto, certas imagens sugerem que, noutras paragens do império romano, se
terão registado desfechos idênticos: num medalhão de uma lucerna, procedente de Cnides,
vislumbram-se duas palmae enquadrando um retiarius e um dimachaerus, e noutra fonte
icónica também se descortinam outras duas numa cena protagonizada por um murmillo e um
provocator (?)1951.

Em determinados documentos mais detalhados, a cifra das vitórias de um gladiador


apresenta-se em paralelo com o número de coronae ganhas. O último é habitualmente inferior,
o que prova que a corona não se atribuía sistematicamente, apenas ocorrendo em
consequência de uma condição, decerto relacionada com a qualidade e a «beleza» de um
combate, cabendo ao editor tomar a decisão, esporadicamente influenciado pelos
espectadores. Um grafito de Roma alude ao retiarius Antigonus, que participou em 20 pugnas e
recebeu 6 coronae, o que é pouco quando cotejado com o palmarés de Rusticius Manlius, que
ganhou 11 coronae num total de 12 combates. Em Cápua, o gladiador Maximus obteve ainda
mais, 36 coronae e 40 vitórias (CIL VI.33952).

No entanto, à medida que o tempo foi passando, os editores vieram a conceder mais
facilmente as coroas, no intento de abrilhantar os seus munera1952. Um espectáculo passaria
1951 F. Gilbert, Devenir Gladiateur…, p. 112.

1952De facto, inicialmente, a coroa de louros só se atribuía a um gladiador que tivesse obtido uma vitória extraordinária. Mas
depois os editores começaram a inflacionar este praemium, oferecendo a corona quase automaticamente, o que conduziu à
desvalorização simbólica da mesma, já não sendo mais prestigiante que a palma: R. Dunkle, Gladiators…, p. 143. Assim, quando se

655
melhor à posteridade se os combatentes tivessem sido recompensados pelas suas proezas,
fossem reais ou imaginárias. Transmitir a ideia de que se oferecera ao povo um grande número
de campeões equivalia a evidenciar a generosidade do editor, já que aqueles custavam
logicamente mais caro. Citemos, a propósito, o imperador Galieno: coroou um venator que,
todavia, falhara dez vezes ao matar um touro já frouxo à sua frente; o público manifestou
ironicamente o seu descontentamento, dizendo que a recompensa era bem merecida, porque
se afigurava dificílimo errar tanto face a um alvo tão grande (História Augusta/SHA, Os Dois
Galienos, 12, 4-5).

A corona foi, pois, mais sistematicamente atribuída nos séculos II e III e não recebê-la
entender-se-ia, talvez, como uma recusa. Os curricula dos gladiadores acabaram então por
apenas mencionar o número de combates, já que tornando-se as execuções cada vez mais
correntes para os perdedores neste período, sobreviver a um duelo correspondia, em certa
medida, a uma vitória1953.

Não nos parece que o gladiador recompensado subisse à tribuna do editor para receber das
mãos deste a palma ou a corona. Seria, em vez disso, um assistente que lhe entregaria o
prémio no meio da cavea. Na estela funerária de um provocator descoberta em Patras, vemos
representado um minister nu, sem dúvida uma criança a avaliar pela sua altura,que estende
uma palma ao gladiador, enquanto com a outra mão pega numa corona (Museu de Patras; fig.
Gilbert, p. 113). Atrás da figura do provocator, esculpiram-se outras nove coronae, que
testemunham as recompensas que anteriormente recebeu e o seu valor. Nas lápides do
Oriente grego erigidas nos séculos II e III, as coronae surgem muitas vezes representadas e,
geralmente, em grande número, mas nas fontes do século I ainda se revelam bastante
discretas: citemos uma lucerna que ilustra o confronto entre o thraex Sabinus e o murmillo
Popillius, cada uma deles recebendo uma coroa no fim do espectáculo.Porém, estas coroas
vegetais tinham uma existência efémera, pelo que provavelmente também se dariam coroas
metálicas, troféus mais duradouros, à semelhança do se costumava fazer nas competições
atléticas.

Desconhecemos quando foram concedidas pela primeira vez palmae e coronae a gladiadores,
mas, ao termos em conta a fraca estima que os Romanos nutriam pelos criminosos e
prisioneiros, talvez este sistema de gratificação tenha sido criado no âmbito das reformas
implementadas após a derrota de Espártaco, quando os homens de condição livre (auctorati)
começaram a ingressar nos ludi. Estes elementos simbólicos assumiam inegável importância
aos olhos dos gladiadores, que os podiam prender ou fixar nas paredes das suas celas na
qualidade de lembranças (Juvenal, Sat. 7.115), mas eles gostariam muito mais de acumular
bens e somas de dinheiro, podendo fazer a sua fortuna, pelo menos no caso das melhores
combatentes. Nos tempos mais remotos, é provável que o vencedor de um duelo fúnebre
guardasse para si as armas daquele que havia derrotado: é o que parecem mostrar as pinturas
tumulares osco-samnitas que descrevem os combatentes a pendurarem nas suas lanças as
túnicas e os cinturões do inimigo vencido1954 e, ocasionalmente, o seu escudo.

Os elmos e as couraças podiam ser muito valiosos. Esta tradição de oferecer armas
perpetuou-se ao longo de séculos no exército romano, como o testemunham ainda Júlio César,
no fim da República, ou Onosandro, no início da época imperial. O carácter bélico e viril destas
exaravam as carreiras dos gladiadores, plasmadas nas inscrições, a ausência da coroa de louros veio a tornar-se mais significativa
do que a sua presença. Se o número de coronae não equivalesse à quantidade de vitórias, então a última não era grandemente
impressionante (G. Ville, La gladiature…, p. 315).

1953 G. Ville, La gladiature…, p. 318.

1954 Num afresco de Paestum, observa-se um guerreiro ostentando uma túnica colorida e um cinturão de bronze pendentes da
sua lança, peças que arrebatou a um inimigo (Museu de Paestum).

656
peças tornava-as em recompensas perfeitamente apropriadas. A parma ornamentada e
prateada que se descobriu no ludus gladiatorius de Pompeia deve ser vista como um troféu,
uma vez que a sua forma não corresponde a qualquer dos tipos utilizados em combate no
anfiteatro (a não ser, talvez, nas mãos de um venator, cuja panóplia não obedecria a uma
regulamentação tão estrita como a dos gladiadores. Distribuíam-se ainda outros objectos
preciosos, como travessas ou bandejas de prata. Um grafito pompeiano alude às últimas -
«Possas tu receber sempre travessas em todos os locais em que te apresentes» (CIL IV 1595).

A palavra empregue é lances (plural de lanx), a qual gerou alguma confusão entre os
estudiosos, chegando amiúde a ser traduzida por «lanças». No entanto, cabe verté-la de outro
modo: quando Marcial (Liber Spect. 29, 6) narra o duelo entre Priscus e Verus, refere a certa
altura que ambos receberam travessas do imperador Tito, e não «lanças» (lances donaque
saepe dedit). Quanto à inscrição de Pompeia acima transcrita, relaciona-se com um auriga e
não um gladiador. Verdade se diga que as fontes que dispomos para apreender as dádivas
feitas à gente do espectáculo na Roma antiga são mais numerosas em relação ao circo do que
ao anfiteatro. Ainda assim, mostram-nos, pelo menos, os usos e costumes nesta matéria
específica, designadamente acerca dos montantes dos prémios atribuídos aos condutores de
carros.

Se, por um lado, certas corridas de bigas podiam traduzir-se somente num milhar de
sestércios para o vencedor, por outro, ocasionalmente, os ganhos ascendiam a cerca de 15 000
sestércios para uma biga, 25 000 para uma triga e ainda mais para uma quadriga. Nos «grandes
prémios» (praemia maiora), as quantias entregues aos ganhadores podiam atingir 50- 60 000
sestércios. O auriga Diocles, por exemplo, terá acumulado 35 milhões durante a sua carreira e
Lacerta, pertencente à factio russata, ganhou tanto como 100 advogados juntos (Juvenal, Sat.
7.112-113; Marcial, Liber Spect. 10, 74). Na História Augusta, afirma-se que os prémios não
eram simples recompensas mas verdadeiros patrimónios que se ofereciam aos aurigas,
incluindo, entre outros bens, roupas luxuosas (SHA, Aureliano, 15.4), o que chocava muita
gente, à semelhança do que acontece actualmente com os «salários» exorbitantes auferidos
pelas estrelas do futebol. Marcial expressou a sua indignação ao saber que o famoso auriga
Scorpus embolsava numa hora o equivalente ao que o primeiro ganhava, a custo, durante um
ano. Por seu lado, o imperador Alexandre Severo, embora sendo um amator, defendia que
estes profissionais do espectáculo deviam ver-se tratados apenas como escravos (História
Augusta/SHA, Alexandre Severo, 30.7.1).

Acerca dos combatentes da arena, possuimos menos informações. De acordo com Suetónio,
Nero ofereceu presentes de grande valor ao murmillo Spiculus, por quem muito se afeiçoara,
além de «bens e residências de cidadãos que haviam tido as honras do triunfo» ( Divus Nero,
30.5). O imperador Cómodo, por seu turno, que actuou muitas vezes no anfiteatro como
secutor, recebia diariamente a quantia de 250 dracmas, dinheiro que procedia dos fundos
destinados aos gladiadores.

Mais modestamente, através da «Tábua de Italica», no fim do século II d. C., Marco Aurélio,
que tencionava restabelecer um pouco de ordem no sistema gladiatório e mais decência nas
gratificações, limitou o praemium dos gladiadores (de acordo com a sua categoria) para 1/5 do
montante da prestação, caso fossem auctorati, e para ¼ em relação aos que tivessem condição
servil1955. Os últimos, não obstante o seu estatuto social, podiam também enriquecer. O prémio
era entregue pelo editor e constituía objecto de uma cláusula no contrato (sob a designação de
1955James H. Oliver e Robert E. A. Palmer, «Minutes of an Act of the Roman Senate», Hesperia 24.4 (1955), p. 332 (Aes
Italicense, linhas 45-46); M. Carter, num estudo mais recente, defendeu que este dinheiro constituía uma percentagem do valor do
aluguer, assemelhando-se mais a uma espécie de «salário» e não tanto a uma recompensa em numerário concedida a um
vencedor: «Gladiatorial Ranking and the SC De prettis gladiatorum minuendis (CIL II, 6278)», Phoenix, nº 57 (2003), p. 104). A
dificuldade é que a palavra mercedis tanto pode significar «salário» como «recompensa». No próximo capítulo tentamos esclarecer
esta e outras questões.

657
preciput) que o ligava ao lanista. Este devia saber gerir devidamente os seus campeões. Várias
imagens antigas mostram os sacos com moedas que ficavam em exibição, durante os
espectáculos, para depois se oferecerem aos gladiadores ou aos venatores mais bem-
sucedidos. No conhecido mosaico de Smirat, um auxiliar da arena transporta uma grande
bandeja de metal precioso, sobre a qual estão quatro bolsas marcadas com o valor do
conteúdo: 500 denarii (por cada fera abatida).

No canteiro do «Vestíbulo de Eros e Pan», na Villa del Casale, na Piazza Armerina (Sicília),
assim como no seu cubiculum «dos músicos e actores», colocaram-se dois sacos com
dinheiro1956 ao pé de uma mesa (qualificada de «agonística»), sobre a qual se observam quatro
vasos contendo as palmae e as coronae que se concederiam aos vencedores de vários
confrontos. Suetónio, numa anedota sobre Cláudio, descreveu-o a contar, juntamente com a
multidão, as moedas que eram atiradas, uma a uma, sobre uma bandeja, a qual a seguir se
dava a um gladiador (Cláudio, 21.9).

O público comprazia-se que o Princeps recompensasse pessoalmente o vencedor de uma


pugna, ao lançar-lhe, por exemplo, uma bolsa. Plínio-o-Moço diz-nos que os espectadores
chegavam mesmo a clamar: «Possa o imperador ser-te propício!» (Ep. 6.5.5; CIL VI.632 e
9223/XI.8/ XIV.2163).

Embora os gladiadores tivessem todo o prazer e interesse em receber recompensas em


dinheiro, não é este tipo de praemium que se exibe nos seus epitáfios: nestas inscrições apenas
se mencionam as recompensas simbólicas (palmae e coronae); como salientou Valerie Hope,
«Nenhum gladiador é descrito em termos do seu valor monetário ou da amplitude dos seus
lucros»1957.

Premiavam-se igualmente os combatentes vitoriosos com torques: Pertinax mandou vender


as torques gladiatórias do seu predecessor Cómodo (História Augusta/SHA, Pertinax, 8.4).
Seriam estes objectos apenas uma fantasia do imperador-gladiador ou mesmo uma
recompensa concreta inventada para troçar das torques que se atribuíam como condecorações
aos militares? Embora não haja certezas a este respeito, o certo é que se contempla uma
torques no pescoço do gladiador Bato, na sua estela funerária.

A liberatio

Um gladiador vencido que recebesse a missio e pudesse abandonar a arena pelos seus
próprios pés (ou numa maca) não se considerava «liberto» mas somente agraciado. A liberatio
dizia respeito exclusivamente aos vencedores que tivessem oferecido uma actuação
verdadeiramente extraordinária ou que obtinham tal recompensa em virtude de um palmarés
excepcional. Ignoramos se o talento do combatente signicaria o único requisito a ter-se em
conta, ou se havia outros critérios como, por exemplo, o tempo passado no ofício gladiatório
ou o número de vitórias.

Alguns epitáfios de rudiarii1958 dos séculos I e II da nossa era mostram que esta recompensa
era concedida a gladiadores no espaço entre o 10º e o 20º combates, ou seja, entre dois e

1956 Tal como no mosaico de Smirat, cada um dos sacos possui a indicação do dinheiro que continha.

1957 «Fighting for Identity…», p. 97.

1958 G. Ville, La Gladiature…, p. 312, n. 198.

658
quatro anos de carreira aproximadamente. Fontes mais tardias indicam que uma liberatio
podia ocorrer antes de um combatente travar a sua décima pugna: a partir do momento em
que a gladiatura se tornou mais mortífera, no decurso dos séculos III e IV, é possível que a
liberatio tivesse igualmente mais cedo na carreira, obedecendo, em certa medida, a uma
preocupação pelo equilíbrio 1959. No entanto, os testemunhos não são suficientemente
numerosos para se elaborarem estatísticas; apesar de tudo, verificamos que seria necessário
dar provas de valor ao longo de certo período de tempo, afigurando-se muito improvável que
um tiro pudesse obter a rudis logo após o seu primeiro duelo.

A primeira referência conhecida a uma liberatio aparece nas Philippicae de Cícero (2.29.74),
mas resta saber se ela não existiria já antes de meados do século I a. C. A ideia e a prática da
liberatio terão surgido possivelmente no rescaldo da reforma que se operou na gladiatura
depois da revolta de Espártaco, quando se concluiu que, doravante, seria desejável um novo
tipo de gladiador.

Logicamente que nos sentimos tentados a considerar a libertação do gladiador como a sua
recompensa suprema. Porém, ele poderia encarar isto de acordo com o seu estatuto: talvez
visse na liberatio um reconnhecimento público, acima de tudo, da sua destreza e coragem, o
zénite da sua carreira, mas não seria apenas por causa da primeira que um combatente se veria
incitado a retirar-se da arena, um pouco como, nos dias de hoje, um actor não decide parar de
entrar em filmes só porque recebeu um óscar em Hollywood. Com efeito, muitos terão optado
por continuar. Porquê deixar de lutar quando o gladiador se encontrava no seu apogeu?
Permanecessem ou não na gladiatura, estes combatentes, ao receberem a rudis, passavam a
ser portadores de um símbolo de glória, uma mais-valia nos seus palmarés. Um dos principais
objectivos era acumular recompensas em dinheiro, para assegurar uma «aposentadoria» que
permitisse ter um final de vida sem miséria nem privações. Juvenal (Sat. 3,158) alude, numa
passagem, a filhos de gladiadores tentando ocupar os lugares reservados aos membros da
ordem equestre no teatro, o que deixa supor que teriam uma confortável fortuna familiar.

No fim da sua actuação ou talvez no terminus do espectáculo, o gladiador que iria receber a
liberatio era chamado até ao centro da arena, bem à vista de todos, e o praeco anunciava a
decisão do munerarius. A iniciativa desta nem sempre se revelava conforme à vontade da
multidão, a qual não hesitava em fazer-se ouvir, de molde a influenciar o editor, que, por
demagogia, tentava satisfazê-la, mesmo quando isto fosse contrário aos seus interesses. De
facto, para libertar um gladiador (ou um venator), o organizador do munus tinha de o comprar
ao seu antigo proprietário, pagando uma avultada soma que até poderia não ter previsto
gastar. Ora precisamente para proteger os editores da pressão popular e da sua eventual ruína
financeira, foram promulgadas leis para proibir estas liberationes obtidas sob coacção (o que se
assinala no senatusconsultum da «Tábua de Italica», sob o reinado de Marco Aurélio). A priori,
só as liberationes propostas pelos editores (e eventualmente pelos lanistae) eram válidas, mas
para o público interessava a importância da sua opinião, exigindo que fosse imposta, o que
muitas vezes aconteceu:
«Aos deuses manes. A Thelonicus, regressado à vida civil, que foi retiarius e obteve a rudis graças ao favor do
público, o seu amigo Xustus e o seu colega Pepticus» (AE 1934.284).

Suetónio evoca o caso (anteriormente referido) de um essedarius que foi libertado pelo
imperador Cláudio devido às súplicas insistentes dos filhos do combatente (Divus Claudius,
21.10).

Os próprios gladiadores podiam fazer tal pedido mas nesta situação teriam de se submeter a
uma derradeira prova, tão espectacular quanto perigosa, enfrentando, sozinhos, um elefante.

1959 Ibidem, p. 328.

659
Este género de liberatio só parece ter existido num período concreto, sob os reinados de
Cláudio e Nero (Plínio-o-Velho, Naturalis Historia, 8.7).

Posto isto, os homens recompensados com a liberatio recebiam a rudis, um bastão de


madeira com cerca de um metro de comprimento, que por vezes se observa nas fontes
iconográficas. Não consistia num gládio de madeira, como frequentemente se escreveu. No
mosaico tardio da Villa Borghese, quatro retiarii, depois de tirarem o seu equipamento no fim
dos combates, brandem o símbolo da sua liberdade, no qual está presa uma fita,
aparentemente branca ou cinzenta. Estas vittae tinham geralmente uma conotação religiosa:
nos desportos antigos, elas consagravam os vencedores a uma deusa, podendo ser cingidas à
volta da testa ou atadas a um braço, mas também fixadas à própria recompensa, como nas
coronae, onde amiúde se vêem as vittae a flutuar nas extremidades. Noutras imagens, o bastão
encontra-se nas mãos do árbitro: quer isto dizer que era ele que a entregava ao combatente
assim distinguido? Ou será apenas um expediente icónico adoptado pelo artista para deixar
subentendido o desfecho de uma pugna?

As recompensas colocavam-se bem em evidência para motivar os competidores, sendo


entregues pelo árbitro ou por um minister delegado especificamente para tal tarefa. Quanto ao
editor, seria muito improvável que descesse pessoalmente até à arena para distribuir as
recompensas.

Para os escravos, a rudis significava uma promessa de manumissão feita em público; depois,
seria preciso oficializar esta mudança de estatuto social por meio de uma cerimónia jurídica,
que tinha lugar noutros locais, como, por exemplo, na parte central da Basílica Ulpia (atrium
libertatis), que foi erigida por Trajano no começo do século II d. C. Tal como sucedia num acto
formal de alforria, o gladiador (ou o venator) de condição servil cingia na cabeça o chamado
pileus, a típica coifa dos libertos. É o que mostra a estela de um murmillo do Museu do
Hermitage: na figura esculpida neste monumento funerário, não há como confundir esta
espécie de «boné» com o elmo, que foi representado ao lado da imagem do defunto; o
gladiador pega num objecto semelhante a um cacete, que, em princípio, deve corresponder à
rudis1960. Uma vez desobrigados de continuarem a porfiar na arena, estes rudiarii cumpriam
frequentemente a promessa que tinham feito a esta ou aquela divindade, a de lhe oferecer as
suas armas, na qualidade de ex-votos, caso sobrevivessem:
«Veianus, depois de pendurar as suas armas na porta de Hércules, esconde-se nos campos, longe do povo, ao qual
suplicou tantas vezes na arena» (Horácio, Epist. 1.1.5).

Há igualmente uma inscrição que atesta a promessa que o provocator Mansuetus fizera a
Vénus, de lhe levar o seu escudo se saísse vencedor (CIL IV 283). Nos afrescos que outrora
decoravam vistosamente o podium do anfiteatro de Pompeia (os quais apenas conhecemos
graças às cópias oitocentistas elaboradas por Morelli ou Nicolini) apareciam escudos mostrados
enquanto oferendas, depostas junto a um pilar hermaico, que se encontrava sobrepujado pelo
busto de um deus. Na estela do thraex Exochus vemos também as suas armas suspensas em
ganchos fixos numa parede: a parma e a sica. Quanto aos elmos, certamente demasiado
preciosos, deviam ficar guardados no armamentarium do ludus. Um dos galerus (de ferro) de
retiarius que conhecemos foi achado no decurso das escavações efectuadas num santuário
(fanum) localizado na Bélgica (fig. p. 119, Gilbert); esta protecção deve ter sido consagrada
como um ex-voto.

As armas votivas eram por vezes substituídas por réplicas em miniatura, o que talvez
acontecesse nos ludi com mais escassos recursos, que não se podiam dar ao luxo de perder
dispendiosas peças de equipamento gladiatório. Em Mérida (Emerita Augusta) e em Pompeia

1960 F. Gilbert, Devenir Gladiateur…, p. 119.

660
encontraram-se armas de pequenas dimensões de bronze. Na cidade campaniana, descobriu-
se um galerus miniatural ornamentado por uma palma de vitória, uma adaga e por um tridente
(fig. p. 119). Esta peça tem um cordão, em que também se prendeu uma tabula com o nome
do gladiador – RET(iarius) SECVN(dus)1961. Existem também uma ocrea de reduzido tamanho de
um parmatus (sem nome) e um pequeno scutum, talvez de provocator, com uma tabula
encerrando a seguinte inscrição: A. ALF. FORTV.

No mundo militar, estas armas miniaturais eram muito frequentes, exumando-se elevado
número delas em santuários, como no de Flaviers, em Mouzon (Ardenas), onde se
inventariaram não menos de 419 exemplares de escudos e 430 de gládios. Durante a
República, estes escudos miniaturais podiam apor-se às phalerarum (pl. de phalerae, uma das
típicas condecorações romanas) de soldados, ao jeito das medalhas modernas. No que respeita
às pequenas peças pompeianas, é de supor que tenham sido utilizadas igualmente fora da
arena (à semelhança dos pins) pelos gladiadores já retirados, que desta forma anunciavam a
sua antiga profissão, à semelhança do que faziam habitualmente os legionários veteranos
desmobilizados.

A «Porta dos Mortos»

Enquanto o gladiador vitorioso recebia a sua recompensa, aclamado pela multidão, depois
saindo em glória do anfiteatro pela Porta Trumphalis ou Porta Sanavivaria («Porta da Saúde e
da Vida»), o infortunado vencido era removido da arena: o seu corpo não tinha direito a que se
prestassem as últimas honras, nem a aplausos; ele resumia-se simplesmente a um peão cuja
identidade deixava de assumir importância. Para os seus «empregadores», só a sua
rentabilidade contava, e o combatente morto depressa seria substituído. Quando alguns
campeões reputados pereciam, os amatores podiam sentir tristeza ou pena, mas por pouco
tempo: «…o povo e o Senado atingidos pela alição, gemeram como se fosse por um gladiador
ilustre golpeado mortalmente na arena» (Estácio, Silvae, 2.5.25-27).

Na sua derradeira actuação, o gladiador podia oferecer ao público, pelo menos, uma «bela
morte», aceitando-a com coragem e resignação, como o exigia o código de honra da sua
profissão. O cadáver do vencido podia ser retirado de duas maneiras: arrastado por meio de
ganchos, tal como sucedia também com as carcassas dos animais e os condenados
despedaçados pelas feras, ou, então, evacuado sobre os ombros dos libitinarii (auxiliares
encarregados especificamente desta tarefa) e a seguir colocado numa padiola, que,
frequentemente, já se encontraria na pista durante os combates. Acto contínuo, levavam-no
em direcção à porta dos mortos (Porta Libitinensis), até ao spoliarum (morgue) do anfiteatro,
onde se lhe tiravam as peças do equipamento e as vestes. No subsolo do edifício, um oficiante
devia certificar-se que o gladiador estava mesmo morto; se, por um estranho acaso, ainda
respirasse, abreviava-lhe a agonia.

Nesta alínea não incluimos o ritual envolvendo Mercúrio Psicopompus e Dis Pater, pela
simples razão de que, afora o testemunho de Tertuliano e outros magros indícios, não
subsistem provas documentais concretas de que este género de cerimónia se realizasse
habitualmente na arena. A. Mañas Bastida 1962, contudo, não teve peias em inclui-la nos

1961 Estas peças costumam ter formato quadrangular, com lados iguais medindo entre 30 a 35cm.

1962 Gladiadores…, p. 131.

661
comentários tecidos quanto ao destino do gladiador morto, dando a impressão de a considerar
um dado adquirido, que não é. Sobre isto É. Teyssier escreveu:
«A presença do psicopompus, mesmo não tendo sido sistemática, afigura-se muito plausível no seio dos
anfiteatros. No entanto, a sua função prática era quase nula. Com efeito, na presença de dois árbitros e de
numerosos ministri, é pouco provável que o vencedor fingisse degolar o vencido. Porquê, então, golpear o corpo
sem vida de um gladiador com o martelo, tarefa levada a cabo por um actor disfarçado. Talvez se descortine uma
explicação: através desse gesto, visível aos olhos de todos, o psicopompus levaria consigo a alma do vencido, ao
mesmo tempo que a consciência pesada do próprio público»1963.

Pausas entre os combates

No intervalo entre uma pugna e a seguinte, geralmente apareciam na arena os paegnarii que,
munidos de bastões e látegos (por vezes com máscaras), entretinham o público enquanto o
próximo par de gladiadores se preparava para actuar. Nestes «tempos mortos» também
entravam em cena acrobatas e saltibancos. Os espectadores de então, tal como hoje em dia,
odiavam aqueles momentos em que nada se passava, razão pela qual um editor previdente
arranjava maneira para que algo estivesse sempre a acontecer na arena. Séneca, a propósito,
refere que a multidão exigia, aos gritos, que houvesse constantes diversões na pista (Epistulae,
7.5).

A lusio

Numa das alíneas precedentes deste capítulo vimos que a prolusio consistia numa etapa que
ocorria imediatamente antes de se travar um combate, altura em que os gladiadores
ensaiavam as suas técnicas, buscavam atemorizar os seus adversários e tentavam captar a
atenção da audiência. No entanto, durante a parte principal de um munus, por vezes também
se efectuavam duelos com armas embotadas, conhecidos pelo termo de lusiones.

Tito, Trajano e, principalmente, Marco Aurélio ofereceram munera que só incluiram


confrontos com armas não aguçadas, no decurso dos quais não se registava, evidentemente,
qualquer morte. Se bem que gostasse de assistir às porfias verdadeiras, Tito mostrava especial
intereresse por estes espectáculos sem efusão de sangue, porque nas lusiones os gladiadores
tinham a liberdade de poder realizar movimentos dotados de maior nível técnico e certas
acrobacias que, nos duelos a sério, não conseguiriam fazer tão à vontade. Assim, em certo
sentido, as lusiones acabavam por se revelar mais espectaculares do que os combates que se
travavam com ferra acuta. Tito terá pago do seu próprio bolso umas lusiones que se
apresentaram em Reate, ao passo que Trajano, por seu turno, durante o seu magnífico munus
se prolongou por 123 dias, em 107 d. C., ofereceu igualmente várias lusiones; no ano seguinte,
o Optimo Princeps ofereceu outras que duraram 13 dias seguidos, em que participaram 350

1963 «Archéologie expérimentale de la gladiature», Histoire Antique & Medievale, HS, n 26 (avril 2011), p. 31.

662
pares de gladiadores. Quanto a Marco Aurélio, promoveu as lusiones sempre que pôde, dada a
sua clara aversão pelos combates sangrentos.

Os lanistae também preferiam as lusiones, porque nestas não perdiam os seus homens, ao
mesmo tempo que obtinham lucros. Os próprios gladiadores apreciariam certamente mais esta
modalidade em que as suas vidas não estavam em risco. Mas o público do anfiteatro sentia
uma inaudita predilecção pelas pugnas que tivessem como desfecho a morte de um
combatente ou em que podia ser ouvida na altura de se conceder a missio ou de condenar o
vencido à iugula.

Outros prazeres do munus

A venatio matinal e os combates gladiatórios vespertinos eram os maiores atractivos que um


munus proporcionava, mas o espectáculo tinha frequentemente elementos adicionais para
divertir e satisfazer ainda mais os espectadores. Estes, em abono da verdade, ficariam
desapontados se o editor omitisse tais extras. A este respeito, dispomos de uma inscrição da
cidade grega de Mylasa (actual Milas, no Sudeste da Turquia), que consiste num decreto em
que se presta homenagem a um asiarca (sumo sacerdote do culto imperial; lamentavelmente,
não sobreviveu o seu nome) por um munus que ele havia oferecido1964. Nesta fonte, exarou-se
uma espécie de lista das coisas que o público apreciava ver num munus. Salienta-se, por
exemplo, o que os espectadores ficavam incredulamente maravilhados quando contemplavam
a «beleza e a força» dos gladiadores durante a pompa, altura em que estes eram muito
aplaudidos 1965. A reacção positiva da multidão é igualmente evocada devido à generosidade do
editor, que gastou uma avultada soma de dinheiro nos equipamentos utilizados pelos
gladiadores, com ornamentos dourados1966. Conquanto apenas se faça referência apenas ao
ouro, na parcela que restou da inscrição, L. Robert considerou que neste munus também se
terá utilizado prata1967.

A última era, aliás, um meio relativamente corrente para valorizar mais as panóplias
gladiatórias. Aquando dos jogos funerários celebrados por Júlio César em honra do seu pai, em
65 a. C., «todo o aparato da arena era feito de prata», segundo Plínio-o-Velho, incluindo a
decoração das armas dos gladiadores. Neste munus, até os condenados à morte que lutaram
contra animais selvagens, na venatio, receberam armas ornamentadas com prata. Plínio
acrescenta que este costume veio depois a ser muito imitado nas cidades da Itália 1968.

Tornemos ao caso do editor de Mylasa: ele também mandou que se distribuissem rosas e
presentes pelos espectadores 376 1969. Aparentemente, também era usual atirarem-se molhos
de rosas para a própria arena, conforme se pode ver em cenas que se desenrolam num
1964 L. Robert, Les gladiateurs…, nº 171.

1965 Ibidem, inscrição nº 171, linhas 9-10.

1966 Ibidem, linha 18.

1967 Ibidem, p. 177.

1968 Nat. Hist. 33.53.

1969 L. Robert, Les gladiateurs…, nº 171, linhas 15-16.

663
anfiteatro, representadas em dois mosaicos do Norte de África 1970. Quanto ao principal evento
do espectáculo, o sumo sacerdote apresentou gladiadores de todo o género 1971: a variedade
proporcionada por diferentes armaturae e por variegadas técnicas ou estilos de combate
constituía, efectivamente, algo de muito importante para o êxito do munus e do seu
patrocinador. Mas o interesse dos espectadores não era apenas de ordem técnica: no começo
da inscrição declara-se que os gladiadores competiram pelas suas vidas 1972. Isto pode tratar-se
só de uma referência ao risco de morte que estava presente em todos os duelos, mas supomos
que aqui os combates devem ter findado com a morte de um dos oponentes. Para o efeito, o
munerarius recebeu certamente uma autorização imperial (indulgentia) para oferecer um
espéctaculo deste tipo.

Todos estes aspectos do munus ilustram bem o desejo do editor em tudo fazer para agradar
ao público, o que gerou, decerto, um ambiente de mútua boa vontade entre ele e os
espectadores1973. No final da inscrição, louva-se o sumo sacerdote por haver ultrapassado todas
as expectativas graças à sua singular munificência 1974. Muito provavelmente, no término do
espectáculo, o sumo-sacerdote, à semelhança de um actor depois de actuar em palco, terá
recebido uma ruidosa acclamatio da multidão. A inscrição da qual extraimos estes dados foi
publicamente exibida em Mylasa, pertencendo a um monumento comemorativo do munus,
prova tangível da gratidão do público1975.

Outro extra popular de um munus era o banquete público (epulum). O mais famoso terá sido
o oferecido pelo imperador Domiciano no Coliseu. O poeta Estácio considerou este festim
especialmente notável porque transmitiu um exemplo de «liberdade»: todos os ordines
comiam numa só mesa: crianças, mulheres, homens das classes mais baixas, equestres e
senadores». O próprio Domiciano teria jantado com os seus súbditos: aqui, porém, estamos
diante de uma hipérbole poética, que se destinou a aludir à presença do imperador no
anfiteatro, enquanto decorreu o banquete1976. Estácio descreve o último desta maneira:
«Vede, há um grupo de gente bem-parecida, elegantemente vestida, a entrar na área dos assentos, não mais
pequeno em número do que o dos já sentados. Alguns trazem cestos com pão, guardanapos brancos da cor da neve
e esplêndidos manjares; outros distribuem vinho maduro» 1977.

O epulum também tinha lugar noutras cidades, como o banquete público fictício que Petrónio
inseriu no Satyricon, ocorrido numa localidade da Itália Meridional, mas a escala de tais festins
era bem mais modesta, obviamente, que os realizados a mando de imperadores na capital 1978.

1970 K. Dunbabin, The Mosaics of Roman North Africa: Studies in Iconography and Patronage, p. 69, est. XXII.54 (Le Kef = Sicca
Veneria); 71, est. XXIV.57 (Cartago).

1971 L. Robert, Les gladiateurs…, nº 171, linha 17.

1972 Ibidem, nº 171, linhas 1-2.

1973 Ibidem, nº 171, linhas 7, 14.

1974 Ibidem, linha 18.

1975 Para outras duas inscrições honoríficas dedicadas a editores, vejam-se: CIL VIII.5276; CIL VIII.7969.

1976 Estácio, Silvae, 1.6.48-50.

1977 Ibidem, 1.6.28-33.

1978 Satyr. 45.10.

664
Outro elemento típico do munus era a sparsio, vocábulo que possuía dois significados
distintos em associação aos espectáculos: um género de sparsio consistia em dádivas ou
presentes que se distribuíam pelos espectadores (missilia, coisas que se atiravam para o
público), tal como sucedeu no munus apresentado em Mylasa, atrás mencionado. Num
espectáculo patrocinado por Nero, a quantidade de prendas lançadas para as bancadas foi de
tal modo grande que causou violentas disputas entre a multidão: «...várias espécies de
pássaros, diversos tipos de alimentos, vales [para serem trocados] por trigo, roupas, ouro,
prata, gemas, pérolas, pinturas, escravos, animais de carga, animais selvagens amestrados,
barcos, apartamentos e vivendas»1979.

Na inauguração do Anfiteatro Flávio, em 80 d. C., o imperador Tito mandou atirar pequenas


bolas de madeira para os espectadores, a partir da zona superior do auditório, nas quais se
indicava, numa breve inscrição, um determinado prémio. Assim, estes objectos serviam como
vales para trocar por comida, vestuário, prata, taças de ouro, cavalos, azémolas, cabeças de
gado e escravos. Os que conseguissem apanhar dessas bolas, teriam depois de se dirigir a um
centro de distribuição1980. Como se pode imaginar, esta modalidade de sparsio podia gerar
distúrbios no meio da multidão. Séneca salientou que nessas alturas o público, cheio de
ganância, provocava situações verdadeiramente caóticas 1981. Este tipo de distribuição de
presentes efectuava-se, estamos em crer, ao cair da noite, quando já havia terminado o
espectáculo, por forma a cativar ainda mais a multidão, que depois deixava o anfiteatro
satisfeita e cheia de boa vontade para com um editor tão generoso.

A outra sparsio consistia na aspersão de perfume sobre o anfiteatro, consistindo usualmente


numa essência de açafrão misturada com água. Séneca referiu que a vaporização dessa
fragrância se disseminava desde a parte inferior do recinto até ao seu topo, o que acontecia
devido à pressão da água1982. Com calor que se poderia fazer sentir durante a Primavera e o
Verão, e o cheiro nauseabundo provocados pelo massacre de animais na venatio e pelas
mortes de gladiadores, esta espécie de spray era um bom método para refrescar o ambiente,
ao mesmo tempo que servia de desodorizante 1983.

Durante a época imperial, nos munera tiveram lugar esporadicamente, eventos que não
constavam do programa oficial, alguns dos quais, embora deixando os espectadores repletos
de nervosismo, adicionavam emoções extremamente fortes ou mesmo calafrios aos
espectáculos, pelo menos para os elementos do público que não tivessem a desgraça de se ver
directamente envolvidos nessas situações insólitas e bizarras. Normalmente, o anonimato de
uma grande multidão protegia os espectadores a nível individual, mas por vezes, calhava que
um deles despertava a atenção do próprio imperador no anfiteatro na altura errada e então
havia sérios problemas. Com efeito, houve casos de espectadores chegarem mesmo a proferir
impropérios ou, até, palavras insultuosas dirigidas ao imperador 1984. Mas o público teria de
estar preparado para quase tudo, especialmente se o editor fosse um imperador instável,
caprichoso e tirânico como um Calígula ou um Domiciano.

1979 Suetónio, Divus Nero, 11.2; Séneca, Ep. 74.6-7.

1980 Dião Cássio, 66.25.5.

1981 Ep. 74.7.

1982 Q. Nat. 2.9.2.

1983 Marcial, Liber Spect. 11.8.2. Alex Scobie, «Spectator Security and Comfort at Gladiatorial Games», Nikephoros 1 (1988), pp.
223-234; L. Robert, Les gladiateurs, p. 86, nº 22.

1984 Tertuliano, De spect. 16.7.

665
Já nos referimos ao episódio que teve como infeliz protagonista um filho de um centurião,
Aesius Proculus, que, por causa da boa aparência, robustez e grande altura enfureceu Calígula,
invejoso da fama que o Colosseros gozava junto das mulheres. O imperador ordenou então que
o obrigassem a descer até a arena, onde teve de se bater sucessivamente contra dois
gladiadores. Apesar de Aesius ter vencido os adversários, Calígula não desistiu, resolvendo que
ele fosse conduzido, acorrentado e esfarrapado, pelas ruas de Roma, para o humilhar. Pouco
depois, o jovem terá sido morto num local recôndido, de forma a não suscitar ainda maior
indignação do que a manifestada pela multidão no anfiteatro 1985. Mais tarde, no tempo de
Domiciano, um paterfamilias, ao assistir a um espectáculo em que o imperador estava
presente, escarneceu de maneira bem audível contra a sua parcialidade em relação aos
gladiadores munidos de grandes escudos (scutarii). O imperador identificou o homem e vingou
a afronta quase de imediato, arrojando-o para a arena acompanhado de um cartaz, a fim de
sofrer uma morte lenta sendo atacado por cães de caça 1986.

O comportamento do público

Quando um gladiador era atingido ou derrubado pelo oponente, a multidão explodia num
enorme clamor, gritando palavras típicas do jargão gladiatório tais como «Hoc habet!»/«Já
apanhou/está!», «Peractum est!»/«Está terminado!» ou «Ferrum recepit!»/«Recebeu o
ferro!», que ecoavam por todo o anfiteatro 1987. A participação dos espectadores, através de
brados ou gestos, era constante ao longo das etapas de um munus. A multidão elogiava ou
invectivava, enraivecida, os gladiadores, aconselhava-os a lutarem desta ou daquela maneira,
emitia as suas opiniões sobre assuntos relacionados com a política, ou aproveitavam para fazer
pedidos ou queixas. Como seria expectável, os momentos mais paroxísticos das pugnas
ocasionavam as mais poderosas reacções do público. Se um combatente demonstrava
relutância ou falta de bravura, o público logo diria «Adhibete, verbera!»/«Açoita-o, chicoteia-
o[com o látego]!», ou «Ure!»/ «Queima-o!», através de barras de ferro em brasa. Na altura em
que uma pugna findava, os espectadores, caso achassem que o gladiador vencido merecia ser
poupado, exclamavam «Mitte!»/«Solta-o!»; se, pelo contrário, o queriam ver morto,
empregavam o verbo «Iugula!»/«Degola-o». Se algo acontecesse que irritasse os espectadores,
estes podiam comportar-se como crianças com birras, sobretudo quando um gladiador da sua
preferência ficasse muito aquém das suas expectativas:
«Por que é que a multidão se zanga com os gladiadores e pensa, erradamente, que eles cometeram uma injustiça
por não quererem aceitar o seu destino [depois de lhes ter sido recusada a missio]? Eles [os espectadores]
acreditam que foram desprezados e transformam-se, na expressão, nos gestos e na paixão em inimigos» 1988.

Quando se enfurecia, a multidão arremessava objectos frequentemente para a arena, mas


noutras ocasiões agiam contra outros espectadores, nas próprias bancadas: em finais da época
republicana, durante um munus, o público atirou pedras contraVatínio, um político impopular,

1985 Suetónio, Divus Caligula, 35.2.

1986 IDEM, Divus Domicianus, 10.1.

1987Sérvio (Ad Aen. 12.296) explica que «hoc habet!» era uma expressão que as multidões gritavam no passado; no seu tempo
(século IV d. C.), os espectadores preferiam exclamar «peractum est!». No entanto, há provas de que estas duas expressões já se
utilizariam durante o século I da nossa era: cf. Séneca, Agamemnon, 901; Hercules Furens, 1457.

1988 Séneca, Dial. 3.2.4.

666
pouco depois de ele haver entrado no anfiteatro. Tempos depois, quando Vatínio estava na
iminência de oferecer um munus, pediu aos edis que promulgassem um édito proibindo o
público de atirar com quaisquer objectos, salvo peças de fruta. Quando questionado se uma
pinha era um fruto, um jurisconsulto chamado Cascellius respondeu, em tom jocoso: «Se for
para lançar contra Vatínio, então é um fruto!» 1989.

As paixões e impulsos que se geravam na multidão eram poderosos. Séneca referiu que, se
fizesse parte de um grande aglomerado de gente num espectáculo, ele tornava-se «mais
ganancioso, mais ambicioso e com mais vontade de procurar o prazer. Na realidade, devo até
dizer mais cruel e desumano, embora estando entre seres humanos» 1990. O conhecido filósofo
escreveu estas palavras dentro do contexto do meridianum spectaculum. Também relevante se
afigura a reacção de Alípio, jovem amigo e discípulo de Santo Agostinho, bispo de Hipona
(posteriormente santificado), face à sua primeira experiência ao assistir a combates
gladiatórios. Antes disso, Alípio expressara apenas hostilidade e desdém por tal género de
espectáculo, mas, certo dia, acabou por se ver arrastado para o anfiteatro por alguns
conhecidos seus.

A narração de Santo Agostinho sobre o comportamento de Alípio no anfiteatro dá-nos uma


impressão vívida e sugestiva acerca do barulho e do que se passava na arena. Agostinho
localiza o anfiteatro em Roma, certamente o Coliseu, que podia acolher, no seu limite máximo,
50 000 espectadores. Assim, não causa estranheza que o jovem Alípio, procedente da
província, se visse quase literalmente esmagado pelo ruído ensurdecedor da multidão que
ocupava as bancadas1991:
«Quando eles lá chegaram e ocuparam os seus lugares, todo o anfiteatro fervilhava com monstruosas delícias.
Alípio fechou os olhos de maneira a que nada de terrível que aí de desenrolava não entrasse na sua consciência, mas
se ele ao menos também tivesse tapado os ouvidos! Pois quando um dos gladiadores caiu durante o combate, e um
enorme clamor de toda a multidão resoou poderosamente nos seus ouvidos, ele foi vencido pela curiosidade, como
se estivesse preparado para ver o que havia acontecido, o que antes desdenhara fazê-lo. Abriu os olhos e sofreu um
ferimento maior na alma do que aquele gladiador no seu corpo. Ele [Alípio] caiu de forma mais desprezível do que o
gladiador cuja queda tinha provocado a tremenda gritaria que lhe entrara pelos ouvidos e abriu os olhos, resultando
que a sua mente, ainda firme mais do que corajosa e muito mais fraca devido à sua maior confiança em si mesma do
que em Ti [Cristo], se viu atingida e deitada abaixo. Mal ele contemplou o sangue, mergulhou na selvajaria; e, não
virando as costas, manteve o seu olhar fixo e absorveu a loucura, deliciou-se com o combate criminoso e ficou
embriagado com o prazer sangrento. Agora, já não era a mesma pessoa que até aí fora ao lá chegar, mas uma
apenas na multidão, à qual se juntou e um verdadeiro companheiro dos seus amigos que para ali o tinham trazido.
Será necessário eu dizer mais? Ele olhou atentamente, gritou, excitou-se e trouxe do anfiteatro uma loucura que o
faria regressar ao mesmo, não só com aqueles amigos, que o arrastaram para lá pela primeira vez, mas também sem
eles, arrastado como os demais pelo espectáculo»1992.

Tertuliano, por seu lado, também adverte os seus leitores cristãos contra a poderosa
influência emotiva que a multidão podia exercer sobre o indivíduo no anfiteatro: «O que fareis
quando vos virdes apanhados naquela torrente de aplausos perversos?». O autor recomendava
então que os seus correligionários se mantivessem afastados do anfiteatro 1993.

1989Macróbio, Sat. 2.6.1.

1990 Ep. 7.3.

1991Séneca refere-se ao enorme clamor produzido pelas multidões nos espectáculos gladiatórios em Roma (cf. Tranq. 2.13).

1992 Agostinho de Hipona, Confessiones, 6.8.

1993 De spect. 27.2-4.

667
No entanto, muitos cristãos estiveram longe de seguir tal conselho: alguns chegaram mesmo a
assistir às execuções dos seus irmãos de fé 1994. A força quase irresistível da atracção dos
espectáculos gladiatórios sobre os cristãos evidencia-se na Vida de Santo Hilário de
Jerónimo1995; o santo foi atormentado por tentações recorrentes que constantemente
apareciam nas suas visões: uma mulher nua, um sumptuoso banquete e um espectáculo
gladiatório, incluindo a imagem de um gladiador que recentemente perecera e suplicava a
Hilário para que tratasse do seu enterro.

À semelhança dos jovens de hoje em dia, que se sentem atraídos pela violência em filmes, na
televisão e em jogos de computador, os seus equivalentes de antanho, como Alípio, revelavam-
se particularmente vulneráveis face às violentas atracções dos jogos gladiatórios. Num
exercício de retórica, um jovem descreve o seu comportamento à medida que vai observando
o seu amigo, que combate em seu lugar na arena: ao assistir, ele «luta» juntamente com o
amigo, imitando-lhe os movimentos, aparando ou desviando-se dos ataques de um oponente
imaginário e levantando-se, muito direito, quando o amigo passou à ofensiva 1996.

Também havia frequentemente este género de atitudes e reacções nas corridas de quadrigas.
Sílio Itálico, na sua Púnica, indubitavelmente inspirado pela sua observação em primeira mão
do comportamento dos espectadores no Circo Máximo, descreve-os a imitarem a posição
inclinada dos aurigas segurando as rédeas ao conduzirem os seus carros, e gritando as mesmas
ordens que os primeiros davam aos equídeos1997.

As mulheres vibravam igualmente com os combates gladiatórios, neles dando vazão a uma
amálgama de sentimentos e pulsões, um prazer mórbido pela violência sangrenta e um
arrebatamento sensorial que não encontrava explicação racional e, por vezes, até lascívia face
a gladiadores que as cativavam. Já atrás nos reportámos a um trecho de Prudêncio, que
descreve uma vestal de tal modo delirante que até saltou do seu lugar quando um dos
combatentes assestou um golpe no adversário, condenando de imediato à morte o vencido.
Como se isto já não bastasse, ela ainda manifestou uma inusitada luxúria, ao qualificar o
combatente vitorioso de «querido», em cada uma das vezes que ele mergulhou a sua lâmina
no pescoço do oponente1998. Contudo, este episódio, como dissemos, não parece corresponder
de todo a um facto real, obedecendo o relato do poeta ao intento de contrastar o
comportamento de uma virgem pagã a uma cristã. Colhemos outra menção literária a uma
mulher chamada Marta, que, supostamente, se sentava aos pés da esposa do famoso general
Mário e conseguia prever com a máxima precisão o vencedor de cada uma das pugnas na
arena1999.

Espectadores havia que demonstravam emoções mais brandas: por vezes, criavam mesmo um
laço afectivo com alguns dos combatentes, facto que se evidenciava quando choravam a morte
de um gladiador predilecto ou, mesmo, de um animal selvagem pelo qual nutrissem algum
género de carinho ou compaixão2000.

1994 J. Salisbury, Perpetua’s Passion: The Death and Memory of a Young Roman Woman, p. 134.

1995 7.

1996 Pseudo-Quintiliano, Decl. Mai. 9.9.

1997 Punica, 16.323-325.

1998 C. Symm. 2.1096-101. Estas linhas terão servido de inspiração para a representação que J.-L. Gérôme fez das Vestais
(exigindo a morte de um retiarius tombado por terra) no seu famoso quadro Pollice Verso.

1999 Plutarco, Mário, 17.3.

668
Mas esse envolvimento emocional podia transformar-se em ódio visceral, o que se atesta nas
«tábuas de maldição/execração» (tabellae defixionum), em que indivíduos escreviam preces
dirigidas a várias divindades, a fim de que as últimas actuassem contra figuras do espectáculo
pelas quais nutrissem absoluto desprezo. Embora as inscrições feitas nestes suportes visassem
geralmente os aurigas circenses, descobriram-se algumas para amaldiçoar certos gladiadores e
venatores. Encontramos um exemplo de defixio, em que uma pessoa anónima deseja
ardentemente que um venator chamado Gallicus sofra toda a espécie de ferimentos e seja
votado ao mais completo fracasso: o texto foi gravado numa lamela de chumbo, descoberta no
anfiteatro de Cartago 2001. No teor dessa maldição, as frases repetidas indicam claramente um
intenso ódio pelo dito venator e, ademais, constituem uma tentativa insisistente de persuadir a
divindade a satisfazer os desejos expressos na inscrição. Nesta aparece também a
representação de uma entidade divina com cabeça de serpente mas com corpo humano,
segurando uma lança na mão direita e um raio na esquerda 2002. Atentemos ao conteúdo desta
tábua defixio:
«Mata, destrói, fere Gallicus, o filho de Prima, que se encontra neste momento na pista do anfiteatro […] [com um
sortilégio] prende-lhe os pés, os membros, a sua mente, o próprrio tutano dos seus ossos. Imobiliza Gallicus […] de
maneira a que ele não consiga aniquilar um urso ou um touro com um ou dois golpes, ou matar um touro com três
golpes. Em nome do [deus] omnipotente, vivente, faz com que tudo isto aconteça agora, agora, rápido, rapido, que
um urso o atinja e fira»2003.

A despeito deste envolvimento emotivo da multidão na violência dos combates gladiatórios e


nas venationes, aparentemente o controlo do público no anfiteatro em Roma jamais terá
representado um grande problema. Se bem que tenhamos referências ao fervoroso
facciosismo entre os fãs dos jogos gladiatórios (opondo-se os parmularii aos scutarii), este tipo
de divisões entre adeptos não alcançava a força e o extremismo observáveis nas facções das
corridas de carros no Circo, e raramente resultava em mais do que a troca de insultos. Em
Roma, pelo menos, não se registaram distúrbios como sucedia, em contrapartida, no teatro e
no circo. De facto, não se colhem notícias de tumultos comparáveis aos confrontos Nika (532 d.
C.), em que se envolveram adeptos das factiones azul e verde das corridas de quadrigas em
Constantinopla, que principiaram no hipódromo e depressa alastararam por grande parte da
cidade, nos quais, segundo as fontes, teriam morrido 30 000 pessoas (o número deve ter sido
inflacionado)2004.

Em Roma, existia uma coorte de soldados (milites stationarii), cuja presença se fazia sentir no
anfiteatro, no circo e no teatro, mas não se colhem notícias de que essas tropas sido obrigadas
a sufocar alguma desordem grave aquando dos munera gladiatórios2005. Atentemos ao seguinte

2000 Estácio, Silv. 2.5.25-27.

2001A este respeito, veja-se Auguste Audollent, Defixionum tabellae. Quotquot innotuerunt tam in Graecis orientis quam in totius
occidentis partibus praeter Atticas in corpore inscriptionum Atticarum editas, 2ª edição (1ª, Paris, 1904), Frankfurt, 1967, 348-
50.252; 354.254. Escolhemos uma defixio dirigida contra um venator, porque as duas defixiones que aparentam envolver
gladiadores se revelam verdadeiramente intraduzíveis. Para uma visão abrangente sobre a utilização de defixiones nos desportos
romanos: Florent Heintz, «Circus Curses and the Archaeological Contexts», JRA 11 (1998), pp. 337-442.

2002 A. Audollent (Defixionum tabellae, 336.247) sugeriu tratar-se de uma divindade híbrida, uma mescla do deus grego Typhon
e do egípcio Seth.

2003 ILS 8755. Para mais defixiones tendo como alvos venatores, A. Audollent, Defixionum tabellae, 348-50.248-251.

2004 Procópio, De bell. 1.24.1-58. Consultem-se: Alan Cameron, Circus Factions: Blues and Greens at Rome and Byzantium,
Oxford, 1976, pp. 278-280; J. P. V. D. Balsdon, Life and Leisure in Ancient Rome, pp. 265-266.

2005 Digesto, 1.12.1.12;Tácito, Ann. 13.24. K. M. Coleman (cf. «The Contagion of the Throng: Absorbing Violence in the Roman
World…» , p. 80) afirmou que a violência no anfiteatro era «extremamente controlada», ficando confinada apenas á arena. Vejam-
se também: A. Scobie, «Spectator Security and Comfort…», p. 219; W. Nippel, Public Order in Ancient Rome, pp. 93-94; J. P. V. D.
Balsdon, Life and Leisure in Ancient Rome, p. 266.

669
comentário de Alex Scobie: «Parece, portanto, que a violência dos espectadores nas três
principais formas de entretenimento público do mundo romano [combates gladiatórios, jogos
circenses e representações teatrais] […] foi inversamente proporcional ao grau de violência
inerente a cada um destes tipos de espectáculo» 2006 No que toca às tropas que compunham os
referidos milites stationarii, tanto poderiam ser membros da Guarda Pretoriana como
legionários das coortes urbanas sob o comando do perfeito da Urbs2007.

A este respeito, Sandra Bingham expôs argumentos convincentes no sentido de que, pelo
menos ao longo da dinastia Júlio-Cláudia, os militares que serviam como força de segurança
nos espectáculos consistiam em efectivos da Guarda Pretoriana. A autora rastreou o
desenvolvimento de uma guarda pessoal do imperador nos jogos, através de um dispositivo de
segurança regularizado incluindo membros da guarda, enquanto uma extensão da sua guarda
de corpo. As coortes urbanas, ao possuirem metade dos efectivos dos da Guarda Pretoriana,
teriam decerto muito mais coisas para fazer, relacionadas com a sua missão prioritária: a
manutenção da ordem nas ruas2008.

Em 56 d. C., Nero mandou retirar provisoriamente a guarda militar que até aí ficava
estacionada nos vários locais de entretenimento público, dizendo que a vigilância dos
espectadores não se coadunava com os deveres castrenses. Segundo Díon Cássio, este
imperador, que se comprazia com os violentos distúrbios que ocorriam nos teatros e no circo,
acalentava a esperança de que a ausência de soldados propiciaria a eclosão de tumultos, mas,
curiosamente, a falta de guardas parece não ter conduzido a desordens no anfiteatro 2009.

Porém, fora de Roma, registaram-se situações bem distintas: num munus em Pompeia (59 d.
C.), os seus habitantes envolveram-se em violentos distúrbios com os espectadores
provenientes da cidade vizinha de Nucéria. Tácito, que é a nossa única fonte sobre este triste
episódio, não aponta o número de pessoas que morreram e ficaram feridas nestes confrontos
que começaram nas bancadas do anfiteatro e depois alastraram pelas suas imediações, mas
deve ter havido muitas vítimas, sobretudo entre os nucerianos. Nada permite supor que
estivesse um contingente militar de serviço no anfiteatro, mas mesmo que lá se encontrassem
soldados, ser-lhes-ia muito difícil pôr cobro a esta espécie de batalha campal 2010. O historiador
romano não explica claramente a razão específica que conduziu a tamanha violência, mas não
resta a menor dúvida de que ele teria raízes numa animosidade pre-existente entre essas duas
cidades. Como o grau de antagonismo assumiu proporções muito sérias, é possível que as
«claques» de ambas as localidades estivessem concentradas em bloco em sítios distintos no
anfiteatro, não se encontrando os pompeianos e nucerianos misturados uns com os outros (o
que poderia diminuir o risco de eclosão de violência. A «solidariedade da causa» só poderia
desenvolver-se da pior maneira se cada indivíduo estivesse sentado ao pé dos seus
concidadãos. A preceder a violência física houve acaloradas trocas de palavras injuriosas e de
ameaças. Depois degenerou no arremesso de pedras e de outros objectos, prolongando-se a
agitação para fora do anfiteatro, onde muitos terão usado armas.

2006 «Spectator Security and Comfort…», p. 232.

2007 W. Nippel, Public Order in Ancient Rome…, p. 93.

2008 Cf. «Security at the Games in the Early Imperial Period», Echos du monde classique 18 (1999), pp. 370-371; 375-376.

2009 Dião Cássio, 61.8.1-3. Tácito (Ann.,13.24) apresenta três razões diferentes para Nero decidir retirar os soldados dos jogos:
primeira, para que os espectadores gozassem de maior liberdade; segunda, para que os militares não se vissem degradados pela
licentia theatralis; terceira, para observar como se comportaria a multidão face à ausência das tropas.

2010 A. Scobie, «Security and Comfort», p. 220.

670
Estes distúrbios foram suficientemente graves, ao ponto de merecer a atenção do Senado
romano que decidiu, desde logo, proibir a realização de munera em Pompeia durante dez anos;
também ordenou a dissolução das corporações sociais (collegia) que fossem ilegais e o
desterro do munerarius, Livieno Régulo, pelo papel que desempenhara ao incitar à
violência2011.

Tal como nos desportos actuais, os espectadores dos espectáculos da arena formavam
«clubes», assim mostrando o seu fervor pelos combates gladiatórios e pelas venationes,
embora se centrando em determinadas vedetas dos anfiteatros. Esses grupos de adeptos
parecem ter derivado das organizações juvenis conhecidas como collegia iuvenum (nas quais
rapazes se entregavam à prática de várias modalidades atléticas, incluindo as lusiones, duelos
com armas embotadas). Conservaram-se testemunhos da existência desse tipo de «clubes»,
tanto no Oriente helenístico, como no Ocidente. Na parte leste do Império, em Termesso,
Mileto e Éfeso, tais associações de «fãs» da gladiatura recebiam a designação genérica de
Philoploi («Amigos das armas»), ou, no caso da última cidade citada eram conhecidas como
philobedioi philoploi2012, ao passo que as compostas pelos apreciadores da venatio se
chamavam, por exemplo, Philokunegoi («Amigos da caça»)2013. Em Itália, na cidade de Verona,
um grupo de aficionados (auto-intitulado Amatores) de um retiarius chamado Glaucus,
chegaram a ajudar a mulher do defunto nas despesas tidas com a feitura da lápide em
memória desse gladiador.

Capítulo X - O preço dos gladiadores durante os séculos I e II d. C. Análise e


interpretação da «Tábua de Italica»/Aes Italicense

Embora seja muito difícil determinar os custos dos combates gladiatórios sob o Império, as
fontes literárias e epigráficas deixam entrever algumas ordens de grandeza que cabe estudar
com alguma prudência. Suetónio apresenta-nos, assim, o montante do praemium de um
gladiador que voltara a actuar na arena: «Tibério ofereceu um munus gladiatório em memória
de seu pai, e outro em honra do seu avô Druso, em alturas e locais diferentes, o primeiro no
forum, o segundo no anfiteatro; ele até mandou que alguns gladiadores já retirados
retomassem o serviço, com um prémio, em média, no valor de 100 000 sestércios».

Com base nesta passagem, um gladiador veria o seu prémio aumentar à medida que
obtivesse mais vitórias. É basicamente a mesma situação que se observa no mundo do boxe

2011Tácito, Ann. 14.17. As autoridades romanas acreditavam que os collegia instigavam muitas vezes actos violentos (Cícero, Pro
Sest. 34; Pis. 9; Suetónio, Divus Iulius, 42.3; Divus Augustus, 32.1). O munerarius, Livieno Régulo (Livienus Regulus) gozava de uma
dúbia reputação, anteriormente havendo sido expulso do Senado. J. C. Edmondson (cf. «Dynamic Arenas…», p. 101) sugeriu que os
lugares nas bancadas, repartidos pelos membros dos collegia, podem ter concorrido para os tumultos. Por seu turno, A.
Bomgardner (The Story of the Roman Amphitheatre…, p. 50) opinou que estes incidentes no anfiteatro constituiram resultado de
uma maquinação urdida pelos veteranos do exército de Pompeia, organizados em collegia, contra os habitantes da vizinha Nucéria.

2012 Para o sentido desta expressão, veja-se L. Robert, Les gladiateurs…, pp. 24-27.

2013 R Dunkle, Gladiators…, p. 151.

671
moderno, em que um pugilista recebe somas proporcionais ao ao valor do seu palmarés. Dião
Cássio escreveu algumas linhas que confirmam tal hipótese: «Para obter dinheiro, [Calígula]
vendeu aos cônsules, pretores e outros, que nem sempre o desejavam, os gladiadores que
tinham sobrevivido aos combates, inflacionando largamente os seus preços».

Assim, os gladiadores seriam objecto de uma «quota» precisa, estabelecida decerto de acordo
com o número de vitórias, bem como o de recompensas concedidas (palmae e coronae). Este
trecho reporta-se também à prática corrente da revenda dos gladiadores depois de «usados».
No caso em apreço, Dião Cássio não sublinha tanto o facto de Calígula revender os seus
combatentes, mas, sobretudo, a inflação dos preços dos mesmos e o método de venda forçada
empregue pelo imperador. Para o tempo de Nero, é-nos facultada uma cifra concreta, a
propósito do munus apresentado por um tal Tito 2014. No Satyricon, uma das personagens,
Equião, transmite o ponto de vista da plebe em relação às obrigações e aos lucros extraídos dos
espectáculos:
«Ele vai oferecer-nos as melhores lâminas [ferrum optimum] e tem meios visto que herdou 30 milhões de
sestércios: o seu pai teve a infelicidade de falecer. Mesmo que ele gaste 400 000, o seu património não sofrerá
perda alguma e o seu nome jamais será esquecido».

Conquanto as importâncias indicadas por Petrónio sejam, talvez, demasiado elevadas para um
munus de província, a proporção não deixa de se revestir de interesse: um herdeiro rico podia
facilmente gastar 1 a 2% do seu legado para imortalizar o seu nome e satisfazer a plebe. Aqui,
situamo-nos bem abaixo das percentagens que actualmente se cobram sobre os direitos de
sucessão e, mais ainda, no que toca às do imposto sobre a fortuna para um ano. Para além da
popularidade que passaria a gozar, até depois da sua morte, imaginemos o respeito que todos
os comerciantes de uma cidade teriam por alguém que, ao organizar um espectáculo, fazia
aumentar os seus lucros e o volume dos seus negócios durante alguns dias.

Para o século I e princípios da subsequente centúria dispomos de poucos números concretos,


e este exigem uma interpretação cautelosa. No entanto, não resta a menor dúvida que as
despesas inerentes aos munera se tornaram, com o passar do tempo, cada vez mais difíceis de
suportar. De acordo com a História Augusta, Antonino Pio foi compelido a intervir para tentar
restringir os gastos: «[Antonino Pio] fixou um tecto para as despesas nos jogos gladiatórios»
(SHA, Pius 12.3) Esta medida, sobre a qual não temos outros testemunhos, parece ter sido um
fracasso, já que o seu sucessor, Marco Aurélio, impôs uma regulamentação com o mesmo
objectivo, que a História Augusta descreve em termos muito similares: «[Marco Aurélio] impôs
um limite aos combates de gladiadores»; esta iniciativa, que afectava o conjunto dos
espectáculos, vê-se precisada:
«[Ele] limitou, em todos os domínios, os espectáculos de gladiadores, assim como restringiu os custos das
representações teatrais, ficando especificado que cada actor receberia cinco moedas de ouro e que,
consequentemente, nenhum editor de um espectáculo devia gastar mais de dez» (SHA, Marc. 9.4 e 27.6).

Constata-se, portanto, que a medida adoptada em relação aos combates gladiatórios esteve
associada a uma decisão comparável respeitante às peças de teatro. Quanto a estas,
designadas como scaenicas donationes, apenas se trata do custo de cada um dos actores e dos
gastos totais para o editor. Mas os números citados suscitam dúvidas: cinco moedas de ouro
para um actor constituíam uma soma relativamente considerável, perfazendo 125 denários, o
equivalente, por exemplo, a cinquenta dias do soldo auferido pelos legionários romanos nesse
momento histórico. Se, por um lado, o preço a pagar por um actor pode parecer alto, o total
das despesas para um espectáculo teatral afigura-se, por outro, muito baixo, dado que não
devia ultrapassar dez moedas de ouro, ou seja, 250 denários = 1000 sestércios. Como devemos

2014 Tendo Petrónio falecido provavelmente durante o reinado de Nero, este Tito não pode corresponder ao segundo imperador
flávio.

672
interpretar estes montantes? Para já, a aproximação das duas cifras é espantosa. As
representações teatrais, por esta altura, apenas compreenderiam dois actores? Reduzir-se-ia o
teatro, como por vezes se disse, à condição de um «café-teatro», em que actuações a solo
alternariam com duetos? Não sendo o caso, então cabe entender tal passagem como um valor
máximo, nunca ultrapassável, para uma «vedeta», existindo a possibilidade de se pagar muito
menos aos actores pouco conhecidos que contracenavam com o protagonista?

Independentemente da solução que se proponha, o certo é que 10 moedas de ouro para um


espectáculo pouco significavam, ao cotejarmos com os preços praticados nos combates
gladiatórios. Tal soma seria até irrisória, uma vez que, no período em causa, nem sequer
permitiria apresentar um único par de gladiadores de fraca categoria.

Como a História Augusta foi escrita mais de cem anos após os factos evocados, talvez
devamos ver nela uma extrapolação das tarifas vigentes numa fase já de declínio dos munera
ou, então, simplesmente, um erro de transcrição. Não temos forma de esclarecer esta questão
categoricamente, mas os números referidos levantam mais problemas do que ajudam a
arranjar respostas, principalmente quanto às despesas dos combates gladiatórios, que estão
omissas na História Augusta. Segundo o trecho desta obra relativo a Antonino, é provável que
este imperador tenha pretendido limitar igualmente os gastos no conjunto dos sectores ligados
à gladiatura2015. De entre os últimos, poder-se-ia cortar no número dos ludi, cuja gestão
implicava grandes despesas, assim como também na manutenção dos anfiteatros. Para
pegarmos nm só exemplo a este respeito, é curioso verificar que, no século II da nossa era,
nenhuma fonte literária ou inscrição nos ajuda a confirmar se o velum se colocaria sempre
sobre a arena durante as pugnas. A supressão deste elemento de conforto para o público
poderia corresponder a uma das ideias que o imperador teria em mente quando quis reduzir
«todas» as despesas. Seja como for, esta passagem não nos oferece nada de concreto, pelo que
ficaríamos condenados às suposições se tivéssemos de nos contentar com tal fonte para o
conhecimento das medidas legislativas tomadas por Marco Aurélio, com o propósito expresso
de limitar os custos dos espectáculos.

Mas, felizmente, esta regulamentação conservou-se numa fonte epigráfica, à qual aludimos
várias vezes (CIL II.6278), constituindo um dos documentos mais importantes para o estudo da
gladiatura romana durante o Alto-Império, a que se convencionou chamar Senatus consultum
[SC] de Pretiis Gladiatorum Minuendis2016: gravado numa tábua de bronze possivelmente
afixada no anfiteatro da cidade de Italica (actual Santiponce, perto de Sevilha, antigamente
situada na Hispania Baetica), este longo texto foi redigido no fim do reinado de Marco Aurélio
(que associara ao trono o seu filho e co-imperador Lúcio Cómodo), entre 176-178 d. C, talvez
mais concretamente em 177. Descoberto em 1888, o documento consiste no resumo de uma
sessão do Senado na qual se visou reduzir as despesas com os munera impostas aos flâmines
provinciais2017. Nele se reproduz o discurso (relatio) proferido pelo imperador, que serviu de
2015 Aqui, note-se, a expressão gladiatória que se empregou foi spectacula, em vez do termo mais tradicional munera.

2016 As inscrições preservando parcelas deste decreto infelizmente não contêm o seu título. T. Mommsen (cf. «Observationes
Epigraphicae XLI. Senatus consultum de sumtibus ludorum gladiatorum minuendis», Ephemeris Epigrahica 7, 1892, pp. 388-416) e
H. Dessau denominaram a fonte de SC de Sumptibus Ludorum Gladiatorum Minuendis e outros também adoptaram a designação,
mas é melhor evitar aludir aos combates gladiatórios, os munera, como ludi. Como o maior fragmento que sobreviveu deste
decreto consiste no painel de bronze proveniente de Italica, alguns estudiosos preferiram rotulá-lo simplesmente como Aes
Italicense ou Lex Italicensis. Outros, ainda, reportam-se a este documento como SC de Pretiis Gladiatori Minuendi, e, apesar de as
provisões legais englobarem mais aspectos do que apenas os preços dos gladiadores, actualmente é a designação mais empregue.

2017 Apenas sobreviveu um dos painéis que havia em Italica, o qual contém quase 63 linhas do texto do decreto: além de
Mommsen (no estudo citado na precedente nota), o conteudo do documento foi publicado também por J. H. Oliver e R. E. A.
Palmer, «Minutes of an Act of the Roman Senate», Hesperia 24 (1955), pp. 327-328, n. 11, e P. Piernavieja, Corpus de inscripciones
deportivas de la España romana, Madrid, 1977, pp. 183-196. Ressalve-se, igualmente, a existência de uma cópia, muito mais

673
introdução ao assunto, seguido dos de outros oradores que apoiaram a sua moção e, no fim,
apresenta-se o teor do próprio senatus consultum (decreto senatorial). O facto de a ordo de
Italica mandar cinzelar a lei no suporte de bronze, com toda a sua argumentação, mostra que a
matéria em discussão assumia suma relevância.

Este tipo de documento lembra as tábuas claudianas de Lugdunum (Lyon), nas quais se
discutiu autorizar os gauleses mais proeminentes a tomarem assento no Senado de Roma.
Tanto num caso como noutro, estes decretos possuiriam um valor bem real aos olhos dos
notáveis, aos quais os mesmos diziam respeito.

Mesmo não sobrevivendo o começo e a parte final da «Tábua de Italica», preservou-se um


fragmento bastante extenso do discurso de um senador. Esta exposição fornece-nos uma série
de informações específicas, designadamente de carácter financeiro, quanto à organização dos
munera e à limitação dos gastos nestes espectáculos. Se nos ativermos a uma alusão no texto,
é possível que tenham sido os senadores das Gálias a tomar a iniciativa de solicitar tal medida.
Isto faz sentido, ao pensarmos na importância do conjunto de anfiteatros destas províncias. A
organização dos munera tornou-se, a partir do século II, um encargo excessivamente pesado
para os notáveis das Três Gálias e do resto do território imperial. Com efeito, de acordo com a
ordem de grandeza facultada por Petrónio para o século I d. C., o custo de um munus em
relação à fortuna de um notável parecia, ainda, bastante suportável: equivalia, uma ou duas
vezes na vida, aos gastos tidos com o casamento de uma jovem de boas famílias. No século II,
estas grandes manifestações de generosidade eram claramente mais difíceis de assumir.

A alegria dos notáveis ante o anúncio desta medida atesta, inequivocamente, o peso desse
encargo inerente aos cargos sacerdotais e municipais que eles ocupavam: «A leitura oficial da
mensagem ainda não terminara quando se espalhou o rumor de que os benefícios dos lanistae
tinham sido revogados e que o tesouro imperial renunciara a todo este dinheiro como se
estivesse contaminado, de imediato os sacerdotes das vossas mais fiéis províncias gaulesas se
precipitaram, cheios de júbilo, para falarem uns com os outros».

Para atingir o objectivo da diminuição do ónus das despesas, utilizaram-se dois meios:
primeiro, no intento de reduzir os «repugnantes» benefícios dos lanistae, o legislador impôs
um preço máximo para cada tipo de gladiador, consoante a sua qualidade; segundo, o que é
importante, o Estado renunciava às taxas muito pesadas aplicadas aos munera. Este ponto
afigura-se fundamental, proporcionando-nos um sólido indício da relevância que os
espectáculos gladiatórios tinham na economia romana. Por outro lado, esta medida mostra-
nos a amplitude dos sacrifícios fiscais que o Estado estava disposto a suportar, a fim de permitir
a continuação dos jogos. O senador que defendia o decreto, não deixou de invocar nobres
motivos morais:
«Por que é que o tesouro imperial de Marco Aurélio e de Cómodo Lúcio devia ser sustentado pela arena? Todo o
dinheiro destes imperadores é honesto, não se encontra manchado pelos salpicos de sangue humano, nem
contaminado por sórdidos ganhos…».

Realcemos que não estava em causa a sorte dos gladiadores: era a mácula causada pelo
derramamento do seu sangue que suscitava problemas. A perda de receitas para o Estado era
considerável, como, aliás, se observa na mesma passagem; o senador expõe dados bastante
concretos; o fisco, segundo ele, retirava entre ¼ e 1/3 do preço dos munera, pelo que a
supressão destas taxas conduziria à perda de «20 ou mesmo 30 milhões de sestércios por
ano»2018.

fragmentária, gravada em mármore, achada em Sardis, na província romana da Asia. (CIL III 7106 = ILS 9340: Cf. J. H. Oliver e R. E.
A. Palmer, «Minutes of an Act…», p. 328, n. 12, com bibliografia aduzida).

674
Tomemos em consideração a perda mínima do Estado, isto é, 20 milhões de sestércios.
Imaginemos que este valor representa também, a minima, ¼ das despesas totais da gladiatura.
As somas anualmente arrecadas no império ascenderiam, então, a uns 80 milhões no tocante
aos munera. Por seu lado, se utilizarmos o valor máximo, 30 milhões de sestércios
representando ¼ das despesas, os gastos anuais da gladiatura ascenderiam a 120 milhões de
sestércios. Esta perda consentida pelo Estado era, realmente, substancial.

De facto, o valor mínimo de 20 milhões de sestércios correspondia, grosso modo, aos soldos
de quatro legiões e repressentaria cerca de 15% do montante aproximado das despesas que o
Estado romano tinha com o exército. O défice gerado pelo abandono desta avultada fonte de
receitas foi tanto mais pesado quanto o facto de Marco Aurélio ter de manter uma longa
guerra contra os Germanos e os Marcómanos2019.

Cabe perguntar por motivos o imperador-filósofo terá resolvido diminuir as despesas ligadas
aos combates gladiatórios. Ainda que os Romanos pudessem temer tal eventualidade, não nos
parece que a atitude de Marco Aurélio espelhasse a sua própria vontade de privar o povo de
uma parte do seu prazer, norteado por razões de ordem moral. Atrás vimos que Marco Aurélio
sentia aversão e repugnância ao assistir a estes espectáculos 2020, mas não desejou, de modo
algum, impor os seus gostos ao povo. Antes pelo contrário, este imperador, muito atento à
satisfação dos seus súbditos, certificava-se sempre, antes de partir para se juntar às suas
legiões, que os espectáculos estariam garantidos durante a sua ausência. Quanto a isto, colhe-
se uma passagem bastante reveladora na História Augusta:
«Quando se ausentava de Roma, ele dava instruções precisas para que se velasse pelos prazeres [ voluptates] do
povo romano, ao apelar a diferentes organizadores de jogos [ditissimos editores]. Pois que, no momento em que ele
tinha recrutado os gladiadores para a guerra, correu o rumor de que queria retirar ao povo os seus prazeres, para
assim obrigá-lo a cultivar a filosofia».

Através destas linhas constatamos que Marco Aurélio se preocupava genuinamente em


assegurar a continuidade da celebração dos munera. Em vez de ser uma lei que visava apenas
restringir os combates gladiatórios, a medida consignada na «Tábua de Italica» até se
destinava-se até a perpetuá-los. A iniciativa imperial significou uma resposta aos lamentos
expressos pelos sumos sacerdotes municipais e provinciais, que não conseguiam mais fazer
face à organização bem onerosa destes jogos. Por seu turno, as linhas 17 e 18 do senatus
consultum atestam o alívio que esta medida trouxe aos notáveis provinciais:
Omne onus quod patrimonium meum opprimebat sanc[tissimi impp(eratores) remiserunt. Iam sacerdos esse et
cupio et opto et editionem muneris, quam olim destestabamur amplector!

«Os mais sagrados dos imperadores libertaram-me de todos os encargos que esmagavam o meu património.
Agora, desejo e espero pacientemente pelo cargo de sacerdote. E, nessa altura, organizar um munus, em relação ao
qual eu antes desprezara o nome, mas que, presentemente, o abraço!».

Perante o risco destes notáveis se furtarem às suas responsabilidades num contexto de crise,
o imperador preferiu alijar as suas despesas, mesmo quando tal medida se teria de fazer à
custa de um tesouro público já duramente oprimido pela guerra. Se compreendermos a
2018 Não parece que se tratasse de duas taxas, como propôs G. Ville, fundamentando-se em T. Mommsen, mas antes, uma
aproximação Num caso, por meio de vel («ou», «se quiserdes» e noutro por sive («isto é»). É possível que a diferença se prenda
simplesmente às variações anuais desta receita fiscal.

2019 Para este conflito, Marco Aurélio chegou mesmo a recrutar escravos, rufias e gladiadores. A fim de poder financiar as
operações militares sem exercer demasiada pressão sobre as províncias assoladas pela peste, o princeps colocou em hasta público
os objectos preciosos da corte imperial no Forum.

2020Marco Aurélio costumava, durante os jogos do circo, receber pessoas em audiência e assinar documentos o que, diz-se, lhe
valeu amiúde comentários sarcásticos.

675
disposição legal sob esta perspectiva, concluimos que as pugnas de gladiadores eram,
inequivocamente, um elemento «estratégico» indispensável para a manutenção do equilíbrio
social do Império, sobretudo em tempos de conflitos armados. Em certa medida, tratava-se de
manter a «produção» destes espectáculos, suprimindo-se os impostos que até aí sobre eles
incidiam. Consequentemente, «os munera passaram de produtos de luxo pesadamente
taxados a produtos de primeira necessidade, totalmente livres de impostos, mas cujos preços
eram estreitamente controlados»2021.

Desta primeira leitura da «Tábua de Italica» extrapolamos dados informativos importantes.


Esta medida legislativa teve lugar num contexto particularmente calamitoso: em 177 d. C., o
Império encontrava-se em guerra desde há vários anos, ficando o reinado de Marco Aurélio
também pautado pela sedição de Avídio Cássio no Oriente, dois anos antes, por inundações
catastróficas em Roma, secundadas pela fome tanto na capital como em Itália. Depois, um
surto pestífero assolou duramente várias províncias e, na Bética, as incursões dos Mauri
provocaram grandes devastações. Não obstante esta acumulação de adversidades e
infortúnios, Marco Aurélio optou por enfraquecer o tesouro público, no intento de não correr o
risco de privar o povo dos espectáculos. Em si mesmo, este facto mostra inegavelmente todo o
valor que tinha o fenómeno gladiatório no século II. Embora a sua importância social fosse
incontestável, o peso económico da gladiatura sob o reinado de Marco Aurélio tornou-se
acrescidamente insuportável para os notáveis que estavam encarregados de satisfazer tais
obrigações.

O carácter financeiramente intolerável deste munera teve, provavelmente, duas causas que se
completavam entre si. Na conjuntura quase catastrófica do reinado do imperador-filósofo, é
praticamente garantido que os notáveis do império também se viram afectados com esta
situação, o que tornava penosa a obrigação de oferecerem espectáculos ao povo.
Concomitantemente, atingindo a crise os patrimónios, a vertente «política» da generosidade
dos editores diminuiu progressivamente e tornou-se incompatível relativamente às somas
envolvidas nos munera. Estes dois factos explicam a razão pela qual os magistrados das
províncias e das cidades tentavam fugir às suas responsabilidades, ameaçando assim a paz
social do império, numa altura em que este praticamente era atacado por todos os lados. O
objectivo maior desta lei foi, sem dúvida, o de prestar auxílio aos bens patrimoniais das
camadas da elite dirigente. Neste sentido, segundo as palavras do orador, cujos argumentos se
conservaram na «Tábua de Italica», os «mercadores de carne humana» alugariam ou
venderiam os seus gladiadores a preços mais equitativos. Ironicamente, o termo humanitas é
empregue no texto, mas referindo-se à preservação do património dos editores, e não à vida
dos combatentes da arena. Os editores, ao deixarem de alimentar o receio de ficarem
arruinados, apressaram-se, aparentemente, em oferecer espectáculos ao povo. Foi este,
nitidamente, o motivo essencial que presidiu à criação desta importante medida legal.

Os números apontados facultam, igualmente, uma visão mais ou menos sugestiva dos custos
globais da gladiatura. Debrucemo-nos novamente sobre o valor mínimo de 80 milhões de
sestércios, representando o total das despesas estimadas no âmbito dos munera. Se deste
montante retirarmos os 25 milhões que anteriormente se destinavam ao fisco e os 5 milhões
de lucros que os lanistae terão perdido neste processo, obtemos 50 milhões de sestércios.
Estes gastos anuais calculados para a gladiatura no final do reinado de Marco Aurélio podiam
ser repartidos pelas cerca de trezentas grandes cidades que possuíam edifícios capazes de
acolher grandes munera: a média de despesas para as mesmas situar-se-ia em 166 000
sestércios, o que correspondia precisamente à categoria mais alta dos custos previstos pela lei
da «Tábua de Italica»:

2021 É. Teyssier, La mort en face…, p. 413.

676
Categoria do munus em sestércios Classes de gladiadores e os seus preços em função da categoria do
munus

1 2 3 4 5

De 30 000 a 60 000 5 000 4 000 3 000

De 60 000 a 100 000 8 000 2022 6 000 5 000

De 100 000 a 150 000 12.000 10 000 8 000 6 000 5 000

De 150 000 a 200 000 (ou mais) 15 000 12 000 9 000 7 000 6 000

Quadro elaborado com base nos dados extraídos da «Tábua de Italica (CIL II.6278, linhas 29-35)2023

Afora o esforço consentido pelo Estado romano, o decreto de Marco Aurélio buscava também
reduzir os benefícios dos lanistae, ao enquadrar, de maneira rigorosa, os preços dos
gladiadores. Esta medida tinha toda a lógica, visto que sem ela os proprietários das familiae
poderiam apagar o sacrifício do Estado através de um aumento proporcional dos seus preços.
As linhas 29-35 revestem-se de particular relevância, uma vez que constituem a única
referência concreta aos preços dos gladiadores. Estes foram divididos em cinco categorias
distintas: a primeira dizia respeito aos combatentes da arena que se destacavam pela sua força
ou boa aparência física; no texto aparecem designados como meliores ou summi formosi
gladiatores. Na «Tábua de Italica», os gladiadores aparecem repartidos por várias categorias
ditas ordines, classes, coetus ou manipuli. Para cada categoria, afixou-se o preço máximo para o
gladiador, de acordo com a importância do munus em que iria combater. Estas denominações
surgem apenas nesta fonte, não se captando a sua presença em quaisquer outros documentos
ligados à gladiatura.

Michael Carter2024 sublinhou acertadamente que estamos perante o discurso de um senador


que defendia este projecto, apresentando variações retóricas, mas não face ao texto definitivo
da lei. Importa salientar, do mesmo modo, que nunca se observam alusões às armaturae. Ora
isto leva a supor que um secutor de «primeira classe» equivaleria a um retiarius do mesmo
nível, o que faz sentido. Quem é que terá procedido a esta classificação? É altamente
improvável que ela fosse deixada somente à apreciação dos lanistae; se isto acontecesse, os
últimos facilmente tenderiam a «sobreclassificar» os seus homens a fim de obter melhores
preços. Para evitar esta situação, é possível que existisse um sistema hierárquico em que tanto
o público como o editor teriam uma palavra dizer sobre a matéria.

Embora o texto de Italica não se reporte a tal facto, nos epitáfios gladiatórios evoca-se
frequentemente, como vimos, à atribuição de recompensas simbólicas (coronae e palmae).
Ademais, em certos testemunhos epigráficos, designadamente do Oriente grego, apresentam
um número de combates superior ao das coronae ou ao das palmae concedidas, sinal de que
cada vitória não conduzia sistematicamente a uma recompensa. Por outro lado, algumas
inscrições mostram números diferentes de coronae e palmae, o que indicia uma hierarquia
entre as mesmas. Como atrás salientámos, estes dois géneros de distinções honoríficas serviam

2022 Esta linha é idêntica à seguinte e não respeita uma progressão lógica dos preços. É provável que consista num erro do
lapidarius. Cabe, então, ler 6 000 ou 7 000, 5 000 e 4 000, em vez de 8 000, 6 000 e 5 000.

2023 Apoiámo-nos na «Figura 1», englobando um esquema dos preços gladiatórios por cada munus, contida no artigo de M.
Carter, «Gladiatorial Ranking and the SC de pretiis gladiatorum minuendis (CIL II 6278 = ILS 5 163)», PHOENIX, 57 (2003), p. 88, e no
«Quadro 7» elaborado por É. Teyssier (cf. La mort en face, p. 415).

2024 «Gladiatorial Ranking and the SC de pretiis gladiatorum minuendi[…]», p. 84.

677
para premiar um gladiador depois de participar num duelo particularmente brilhante, sendo a
coroa e a palma atribuídas pelo editor, certamente a pedido do público2025

Em função do número de vitórias e recompensas, os gladiadores iam singrando pelos escalões


de uma classificação hierárquica, a dos pali2026, sobre a qual já tecemos comentários alargados.
Embora durante algum tempo se pensasse que havia basicamente quatro categorias de
gladiadores portadores deste título (no topo encontrando-se o primus palus, seguindo-se o
secundus, tertio e quartus pali), não há muito, a publicação de documentos epigráficos
descobertos em Afrodísias veio a revelar a existência de um sexto e de um oitavo «postes» 2027.
Neste ponto, frisemos a preponderância das menções a gladiadores com o título de primus
palus. No Oriente helenístico, esta proporção atinge 64%, ou seja, 25 referências a este grau
num conjunto de mais de quarenta ocorrências do palus2028. A hipótese interpretativa segundo
a qual o sistema do palus corresponderia a uma espécie de «equipas» no seio das familiae
gladiatórias não contradiz a sua finalidade hierárquica: à medida que fossem somando vitórias,
os gladiadores com mais títulos deviam treinar-se com colegas pertencentes a outras
armaturae mas com nível equivalente. Outro argumento que milita a favor desta ideia
encontra-se em Dião Cássio; este afirma que o imperador Cómodo se apropriou do título de
secutor primus palus e que, nesta qualidade, é que ocupava a «primeira sala do ludus».

Assim, é muito possível que estas distinções entre gladiadores se fundamentassem no


palmarés e no nível atingido por cada combatente no seio do ludus. Os graus e recompensas
que se atribuíam aos gladiadores mais exitosos comportavam muitas vantagens. A referência
de Dião Cássio a propósito do título ostentado por Cómodo deixa supor que um primus palus
poderia usufruir de um alojamento reservado, certamente mais confortável do que os
cubículos onde ficavam os gladiadores menos graduados 2029. Este título, e os privilégios que
dele advinham, funcionava como meio de emulação para os jovens tirones, sem experiência,

2025 Aqui, uma vez mais, afigura-se inevitável a compaaração com a tauromaquia moderna, com a atribuição ao toureiro de uma
ou duas orelhas, ou até do rabo, no fim de uma brilhante faena. O presidente da corrida de touros apoia-se geralmente nos
pedidos do público, que expressa a sua vontade ao acenar lenços.

2026 Tal como para as palmae, a atribuição de um novo grau de palus a um gladiador podia dever-se à iniciativa do próprio
lanista, assim esperando obter mais lucro com o seu homem nos contratos. Mas, se esta atribuição não traduzia um mérito
genuíno, adquirido na arena, a reputação de uma familia gladiatoria poderia ver-se rapidamente desfeita, assim como a do
munerarius que tivesse recorrido àquela. Ademais, o sistema de palus certamente não se transpunha de forma directa de uma
«escola» para outra. Ele fornece mais a imagem do valor de um combatente no seio da sua própria familia, constituindo a base
para as negociações entre o lanista e o sacerdote.

2027 Charlotte Roueché, com base nesta «multiplicação», argumentou que este sistema demasiado complexo com 8 escalões de
palus não teria uma vocação hierárquica ou, então, esta teria desaprecido no Baixo-Império (cf. Performers and Partisans at
Aphrodisias, Society for the Promotion of Roman Studies, Londres, 1993, pp. 64-65, 67, no. 23, 67-68, no. 24. Mais que uma
hierarquização qualitativa, Roueché encarou isto como uma organização agrupando determinado número de gladiadores sob cada
palus. No entanto, na opinião de M. Carter (cf. «Gladiatorial Ranking […]», pp. 89-95), 8 graus não traudiziriam um sistema de
particular complexidade; além disso, o académico canadiano sustenta que a hierarquização mediante o palus, aceite desde há
muito pelos historiadores, não deve ser posta em causa.

2028 Este número foi estabelecido por M. Carter («Gladiatorial Ranking […]», pp. 90-91, n. 24), que se baseou num corpus
epigráfico aproximadamente duas vezes maior que o já bastante significativo reunido por L. Robert (cf. Les gladiateurs dans
l’Orient grec, Paris, 1940, e os artigos-adendas publicados mais tarde; «Monuments de gladiateurs dans l’Orient grec», Hellenica 3
(1946), pp. 112-150; «Monuments de gladiateurs…», Hellenica,5 (1948), pp. 77-98; «Monuments de gladiateurs…», Hellenica 7
(1949, pp. 126-151); «Monuments de gladiateurs…», Hellenica 8 (1950), pp. 39-72). Escorado nesse acervo documental, Carter
afirma que 10% das inscrições gladiatórias do Oriente helenístico aludem ao palus. Salientemos que, até à data, o corpus de Carter
ainda não foi publicado na íntegra.

2029 A expressão primus palus não deixa de lembrar o de primipilus (primus pilus), título concedido ao centurião mais experiente
da legião. O último, como provavelmente o gladiador primus palus, gozava de numerosas vantagens e privilégios. Aqui, uma vez
mais, a vida e os moldes organizativos dos gladiadores assemelham-se aos dos legionários.

678
ou para os gladiadores que ainda contavam com poucos combates na sua carreira. Posto isto, o
elo que M. Carter estabeleceu entre o decreto de Marco Aurélio e o sistema do palus parece
muito convincente. Segundo o académico canadiano, os gladiadores, desde o primeiro até ao
quarto palus, a que acrescentou os tirones, corresponderiam às cinco classes da «Tábua de
Italica»2030 . Acresce também que o principal objectivo do sistema de classes de palus tinha a
ver com a possibilidade de se situar o valor dos gladiadores, uns em relação aos outros.

Para além dos meliores gladiatores, a «Tábua de Italica» menciona uma categoria mais
medíocre de combatentes chamados promiscua multitudo ou gregarii. Neste caso, o preço de
compra deveria rondar os 1000 sestércios para os menos caros e 2000 para os mais
dispendiosos. Na lei, prevê-se explicitamente que metade, pelo menos, dos gregarii, devia ser
composta pelos menos caros. Esta medida procurava pôr cobro à manha de um lanista que
fingisse não ter tantos gregarii ao preço mais baixo. Neste caso, ele deveria completar a
«encomenda» ao fornecer os gregarii de melhor qualidade ao preço dos menos caros. Estes
gregarii, que se achavam à parte seriam condenados ou voluntários sem formação técnica que
combatiam em grupos2031. É possível que os sobreviventes destes combates ad gregatim
viessem a esperar, não ganhar a liberdade, mas a receberem um treino adequado nos ludi para
assim se tornarem em verdadeiros gladiadores. Na «Tábua de Italica» evoca-se igualmente os
auctorati (homens livres que assinavam um contrato para servirem como gladiadores durante
um determinado espaço de tempo2032):
Is autem qui aput tribunum plebei clarissimum virum sponte ad dimicandum profitebitur cum babeat ex lege
pretium duo milia, si liberatus discri men instaraverit, aestimatio eius posthac HS XII (milia) non excedat.

«O que está diante de sua Excelência o tribuno da plebe jura bater-se voluntariamente, em conformidade com a
lei, a um preço de 2 000 sestércios. Se depois da sua liberatio ele desejar voltar a combater, a estimativa [aestimatio]
do seu valor não deve exceder 12 000 sestércios».

Assim, eles custariam apenas 2 000 sestércios no momento em que prestavam o juramento,
não tendo ainda lutado na arena, pelo que não havia um «valor acrescentado». Ficariam, pois,
ao nível dos gregarii mais dispendiosos e abaixo dos gladiadores menos caros. Caso fossem de
novo contratados, a sua «estimativa» não poderia superar o montante de 12 000 sestércios. O
emprego do vocábulo aestimatio, em vez do pretium (preço) usado para os demais
gladiadores, mostra-nos que os auctorati poderiam negociar o seu tarifário, desde que não
ultrapassassem o limite máximo estipulado pelo decreto.

Incluiu-se mais um ponto assaz importante na «Tábua de Italica»: a remuneração dos


gladiadores quando combatiam: «Do mesmo modo, defendo as propostas que dizem respeito
ao dinheiro atribuído para o pagamento dos gladiadores, devendo o auctoratus receber1/4
desse dinheiro e o gladiador escravo 1/5».Um gladiador, livre ou servil, estava financeiramente
interessado em propostas que não fossem descartáveis. Note-se, aliás, que um combatente
escravo não ficava com muito menos do que um auctoratus. Estes dois elementos provam que
os gladiadores, tanto os voluntariamente contratados como os escolhidos por um patrono,
eram essencialmente profissionais que auferiam de uma remuneração que guardava relação

2030 De acordo com o quadro que propôs sobre isto, M. Carter situou os tirones na quinta e derradeira categoria da «Tábua de
Italica». Malgrado a inexperiência de tais homens, estes custavam entre 3 000 e 6 000 sestércios, consoante o munus em que iriam
dar os seus primeiros (e muitas vezes últimos) passos. Para mais informes sobre os tirones, cf. Carter, «Gladiatorial Ranking […]»,
pp. 91-92.

2031 Por vezes chamados catervarii.

2032 A respeito dos auctorati, Tertuliano referiu que «eles vendem a sua própria violência por dinheiro». A «Tábua de Italica»
dá-lhe razão de uma maneira muito explícita.

679
directa com a qualidade das pugnas que eles haviam travado. Um gladiador com uma carreira
afortunada podia embolsar somas relativamente consideráveis.

Com base nos números apontados na «Tábua de Italica», imaginemos a carreira teórica de um
gladiador (com valores indicados a negrito no Quadro II). Na base dos munera, ele livrava o seu
primeiro e único combate enquanto tiro por 3 000 sestércios. Depois, iria subindo os escalões
da gladiatura, ao participar em espectáculos cada vez mais prestigiosos. Para atingir uma
carreira média de uns 17 combates, consideremos que ele permaneceria em cada uma das
classes gladiatórias até efectuar cinco pugnas. Ao já gozar de fama, lutaria pela última vez no
nível mais elevado da sua carreira, num munus particularmente relevante. Se ele conseguisse
sobressair e notabilizar-se em cada uma das porfias, mostrando-se simultaneamente temível e
bafejado pela sorte, ganharia para si e para o seu lanista as seguintes somas: 3 000 + 30 000 +
40 000 + 60 000 + 15 000, isto é, 148 000 sestércios. Deste total, o gladiador receberia 29 600
sestércios, se fosse escravo, ou 37 000, caso tivesse condição livre. No primeiro caso, o lanista
embolsaria 118 400 sestércios, e no segundo 111 000 sestércios. Seja como for, ressalvemos
que este tipo de carreira não é aplicável à maioria dos combatentes da arena.
Quadro II: Modelo teórico das somas obtidas por um gladiador durante a sua carreira e o número de combates que travou em
cada categoria (a negrito)

Categoria do munus Classes de gladiadores e os seus preços em sestércios em função da

(em sestércios ) categoria do munus

1 2 3 4 5

De 30 000 a 60 000 5 000 4 000 3 000 x 1


2033
De 60 000 a 100 000 8 000 6 000 x 5 5 000

De 100 000 a 150 000 12 000 10 000 8 000 x 5 6 000 5 000

De 150 000 a 200 000 ou mais 15 000 x 1 12 000 x 5 9 000 7 000 6 000

No entanto, este modelo teórico demonstra a lógica do sistema: ao submeter um homem


vigoroso a um treino intensivo, o lanista podia esperar obter, a prazo, um valor de negócio na
ordem de uns 100 000 sestércios, montante que justificaria correr alguns riscos financeiros. Por
outro lado, um auctoratus – ou um escravo que podia, além disso, ver-se alforriado – tinha a
possibilidade de acumular somas em numerário que praticamente só a gladiatura
proporcionaria. Ora esta perspectiva de ganhos constituía certamente a principal força motriz
que permitiu ao sistema funcionar ao longo de quase três séculos.

Por último, no texto prevê-se que os sacerdotes pudessem comprar os gladiadores adquiridos
pelos seus predecessores, mas na condição de não se ultrapassassem os preços máximos
estipulados per capita:
Sacerdotes quoque provinciarum, quibus nullum cum lanistis negotium erit, gladiatores a prioribus sacerdotibus
susceptos, vel si placet auctoratus, recipiunt, at post editionem plure ex pretio in succedentes transferunt. Ne quis
singulatim aliquem rei gladiatoriae causa vendat quam lanistis est pretium perscriptum.

«Há também os sacerdotes provinciais que, não possuindo qualquer negócio com os lanistae, voltam a ficar com
os gladiadores dos sacerdotes anteriores, ou com os auctorati, mas depois de oferecerem o seu espectáculo, eles
transmitem-nos ao sacerdote seguinte ao preço mais alto. É proibido deixar alguém vender gladiadores a um preço
por cada gladiador superior ao prescrito para os lanistae» (Inst. 3. 146)2034.

2033 Elementos extraídos de É. Teyssier, La mort en face, «Table 8», p. 418.

2034. Este excerto confirma o esquema, a que o célebre médico Galeno alude, através do qual os sumos sacerdotes do culto
imperial (archiereis) na cidade de Pérgamo compravam e vendiam familiae gladiatoriae uns aos outros.

680
Este trecho prova que os montantes apresentados no decreto correspondiam aos preços dos
próprios gladiadores e não ao seu aluguer para um só combate. Estes preços coadunam-se,
aliás, com os que se conhecem em relação a outros escravos «artistas». Importa sublinhar que
a questão da compra, do aluguer ou do aluguer-venda situa-se no próprio núcleo dos
problemas gerados pela gladiatura. Ao fundamentar-se numa passagem do jurista Gaio, M.
Carter supôs que o aluguer de um gladiador para uma pugna traduzir-se-ia em cerca de 2% do
seu preço2035. Observemos o que escreveu Gaio:
«Imaginai que vos entrego gladiadores em conformidade com os preços formais, através dos quais eu receberia
20 denários pelos esforços de cada gladiador que saisse indemne, mas 1 000 denários por cada combatente morto
ou ferido. Trata-se de uma venda ou de um aluguer? A opinião geral é que há aluguer para os que escapam [dos
combates] ilesos, mas venda quanto aos que morrem ou ficam mutilados, determinando os acontecimentos a
classificação em venda ou aluguer, como se existisse uma venda ou um aluguer condicional para cada um. Não
restam dúvidas de que a venda ou a locação de mercadorias pode estar sujeita a condições» Inst. 3.146) 2036.

Ao analisar a demonstração de Gaio, M. Carter depreendeu que, uma vez decidido o valor do
arrendamento, o editor aceitaria pagar este preço para alugar cada gladiador, mas prontificar-
se-ia a pagar o seu valor integral caso ele fosse ferido ou perecesse. Para os gladiadores que
combatessem e saissem, o editor pagaria a locação prevista para cada porfia, ou seja, 20
denários, de acordo com Gaio. Quanto aos mortos ou feridos, ele pagaria o valor completo do
combatente, tal como antecipadamente se definira 2037. Contudo, M. Carter parece não ter
tomado em consideração certas dificuldades concretas: o primeiro problema que se coloca
está relacionado com a parte que se destinaria ao gladiador.

Na «Tábua de Italica» explicita-se que um auctoratus tinha direito a 25% dos custos da sua
prestação. Se subscrevermos a argumentação de Carter, para um aluguer de 20 denários, um
combatente só poderia ficar com 20 sestércios por arriscar a sua vida, mesmo quando já não
fosse um gladiador principiante2038. Ora, ao multiplicá-lo pelo número médio de pugnas este
montante afigura-se irrisório. No propósito de reforçar a sua interpretação, Carter citou casos
de gladiadores que obtiveram 50 ou 60 vitórias 2039. Mesmo aceitando estes números, que são
bem superiores à média observada, a quantia continua a revelar-se demasiado fraca para ser
atractiva. Com efeito, se pensarmos numa média de 25 combates, o total de ganhos recebidos
cifrar-se-ia em 500 sestércios para uma carreira de quatro ou cinco anos. Recordemos que, ao
tempo, um legionário podia ganhar dez vezes mais numa profissão que acarretava menores
riscos. Se as perspectivas fossem estas, os lanistae dificilmente conseguiriam atrair para o
ofício outros que não simples desgraçados, incapazes de participar em combates reais.

Poder-se-ia alegar que Gaio não teria ideia alguma dos preços, mas esta explicação não
resolve este problema. Afinal de contas, o jurista não escolheria o seu exemplo a partir de um

2035 Cf. «Gadiatorial Ranking […]», p. 102: «This suggests a hypothetical lease rate of 2 per cent of the overall value of the
gladiator».

2036 Segundo a tradução de W. M. Gordon e O. F. Robinson, The Institutes of Gaius, Cornell, 1988. Neste trcho, Gaio discute a
relação legal entre «venda» (emptio et venditio) e «alugar» (locutio et conductio).

2037 Possivelmente, para garantir os acordos fixados entre duas pessoas de estatuto muito diferente, interviria um terceiro
indivíduo (um argentarius ou um negotiator gladiatorum), no sentido de velar pela devida aplicação do contrato.

2038 A título comparativo, os legionários auferiam um soldo anual de 900 denários, ou seja, 3 600 sestércios. Assim, 20
sestércios representavam dois dias de salário para um legionário. O lanista, por seu lado, receberia 60 sestércios, soma também
insuficiente para cobrir as suas despesas com treino e manutenção do combatente.

2039 M. Carter, «Gladiatorial Ranking […]», p. 103. Segundo o teor de uma inscrição achada em Claudiópolis (Bitínia-Ponto: cf. D.
French e M. Ündemis, «Two Gladiatorial Texts from Claudiopolis in Bithynia», EpgrAnat 13 (1989), pp. 91-97. Provavelmente, o
número de combates travados seria maior do que o número de vitórias obtidas.

681
domínio sobre o qual tudo ignorasse e que, ademais, poderia desacreditar a sua
argumentação. Na realidade, cabe ver na passagem atrás citada de Gaio uma demonstração
sobre o princípio de compra e venda. Do mesmo modo, a própria ordem de grandeza também
não se aguenta face a um exame atento. Efectivamente, 4 000 sestércios correspondem ao
preço indicado pelas fontes para a prestação de um gladiador de valor mediano, soma que
significa o dobro do preço de um escravo sem qualificações 2040. Em contrapartida, o preço de
locação é aqui ridiculamente baixo, pois que 80 sestércios representam um montante mínimo
para alugar um gladiador, a não ser que se relacionasse com uma exibição a nível privado com
armas embotadas. Por fim, com um tal tarifário, mesmo que todos os vencidos fossem
executados, as despesas totais de um munus não teriam nada de extraordinário. Além disso, o
trecho de Gaio não deve interpretar-se ao pé da letra; até se pode conjecturar no sentido de
ter havido uma corrupção do texto por parte de um copista, para melhor explanar a falta de
coerência económica desse excerto. De facto, 200 denários, isto é, 20 % do preço de cada
gladiador, fariam mais sentido tendo em conta o perigo que corriam os combatentes e os
investimentos feitos pelo lanista.

Dito isto, os preços apontados na «Tábua de Italica» parecem, então, fixar o preço real de
compra de gladiadores, já que de outra forma as linhas 59 a 61 não teriam qualquer lógica. Um
espectáculo custaria mesmo 100 000 ou 200 000 sestércios, dinheiro que o editor precisaria de
reunir. Todavia, uma soma destas não significava uma perda da totalidade, visto que o
munerarius podia revender os sobreviventes válidos 2041. Mas a quem? Os lanistae eram, sem
dúvida, os que se encontrariam mais dispostos a tornar a adquirir os seus homens depois dos
duelos, visto que estes «mercadores de carne humana» estariam numa posição vantajosa. Eles
não perderiam a oportunidade de dizer que um dos gladiadores se achava de tal modo
estropiado que já nada valeria, argumentando que necessitavam de ganhar a vida, que os
combatentes saíam muito onerosos para serem mantidos, e que se viam desvalorizados por
completo se não estivessem submetidos atreinos constantes. Quanto ao editor, só lhe restaria
revender os gladiadores com mazelas por preços fortemente desvalorizados 2042.

A outra solução preconizada pelo decreto era a de revender os gladiadores ao indivíduo que
ocupasse o cargo sacerdotal no ano seguinte. Ora isto suscita a questão sobre o que
aconteceria aos combatentes no espaço entre os dois munera que celebravam a tomada a
posse. Poderia dar-se o caso de o sacerdote subalugar os gladiadores a outros magistrados
provinciais ou organizar mais espectáculos. É uma hipótese verosímil, mas se assim sucedesse
o sacerdote ver-se-ia compelido a exercer uma função de lanista, nada gratificante para a sua
honrosa posição. Ademais, precisaria de manter esses homens bem alimentados e treinados.
Mesmo que isto fosse viável, não constituía tarefa fácil para alguém que não era um
profissional nesta área; consequentemente, recorreria então ao lanista, que podia acolher no
seu ludus os gladiadores pertencentes ao magistrado. Aí, os homens continuariam a exercitar-
se e a ser alugados para combates – sangrentos ou não – dos quais o proprietário em título e o
lanista partilhavam os benefícios. Este sistema assemelhar-se-ia um pouco com o dos cavalos
de corrida, para os quais os seus donos nem sempre têm a competência e o equipamento

2040 Duas inscrições procedentes do Norte de África apresentam o montante de 500 denários para um escravo: a tarifa
alfandegária de Zarai, de 202 d. C. (CIL VIII, 4508) e um texto de Nenchir-Snobbeur, de 186 d. C. (CIL VIII, 23956). Estes 4 000
sestércios representam, segundo o Aes Italicense, o preço de um gladiador de créditos já firmados.

2041 Era possível, igualmente, oferecer alguns a um amigo que fizesse tenções de organizar um munus. Se nos ativermos a
Séneca, este género de presente parece ter sido apreciado, pelo menos, se tivesse lugar durante o período habitual para as pugnas
gladiatórias.

2042 Lembremos que Calígula usou do seu poder como imperador para revender os gladiadores que haviam sobrevivido,
inflacionando largamente os seus preços.

682
adequados: então confiam os seus puros-sangues a especialistas que deles tirem o melhor
partido, contentando-se os proprietários a recolher os ganhos ou a sofrer as perdas.

Um sumo sacerdote imperial (ou um magistrado municipal) podia permanecer assim como
proprietário nominal dos gladiadores durante um ano, até revender os combatentes
sobreviventes ao seu sucessor no cargo. Verifica-se, portanto, que o sistema era mais complexo
do que parece à primeira vista. Muito provavelmente, os gladiadores iriam passando de mão
em mão, ao mesmo tempo que se manteriam ligados ao mesmo ludus. No seio de uma familia,
os gladiadores pertenceriam a vários proprietários diferentes ao longo das suas carreiras, o que
pouca importãncia teria para eles, já que precisavam, acima de tudo, de se aplicar em
progredir, mantendo uma vida normal aparente e aguardando que a fortuna lhes sorrisse. Para
este sistema, os lanistae eram os fornecedores de novos recrutas, tratando o melhor que
podiam as «estrelas» que emergissem do «lote». Assim, os riscos eram compartilhados pelo
lanista e pelo proprietário nominal, que comprava os combatentes por ocasião da celebração
de um munus legítimo, podendo mantê-los de seguida por algum tempo.

Por fim, a crise financeira que se manifestou na segunda metade do século III conduziu ao
declínio das cidades, à dificuldade de encontrar crédito e à diminuição do interesse, em termos
político-financeiros, pela apresentação de combates. Todas estas razões contribuíram para o
declínio e subsequente desaparecimento da gladiatura no século IV. Neste capítulo, uma dos
aspectos que mais se destaca é a questão financeira: esta demonstra, de forma muito prática, o
problema do modo de funcionamento de toda uma economia organizada em torno do
combate-espectáculo.

CAPÍTULO XI – A «Idade Obscura» da gladiatura. Ensaio sobre os derradeiros tempos


do fenómeno

As últimas etapas evolutivas da gladiatura

A história dos tempos finais da gladiatura mereceria um estudo específico, uma vez que a
natureza do fenómeno não parece mais assentar nos mesmos fundamentos, desde os começos
do século III e, mais ainda, no término desta centúria 287 tey. Todos os estudos mais
aprofundados sobre a gladiatura – o de L. Robert, para o Ocidente do império romano, o de G.
Ville para o Ocidente, ou mais recentemente, a monografia de Elisabeth Bouley, em relação aos
Balcãs – constatam o aumento do carácter sangrento dos jogos a partir de finais do século I d.
C., processo que culminou no século III. Em 249, por exemplo, em Minturnae, no Sul do Lácio, o
duumvir Publius Baebius Iustus ofereceu, durante quatro dias, um munus englobando 11 pares
de gladiadores; na inscrição que se encontra na base da estátua de Iustus, o editor anuncia
claramente ter mandado degolar onze vencidos; estes não eram combatentes de segunda
categoria, já que o munerarius realça que se contavam entre os melhores da Campânia (CIL X

683
6012)2043. G. Ville referiu que uma tal crueldade «seria dificilmente concebível no século I» e é
possível que a mesma manifeste uma profunda evolução da própria lógica inerente à
gladiatura. No entanto, ela afigura-se difícil de captar, já que, com «crise» do século III (período
atribulado mas não tão negro como anteriormente se supôs, de acordo com as investigações
mais recentes), as fontes iconográficas começaram a rarear, ao ponto de quase desaparecerem
por completo.

Seja como for, continuaram a organizar-se munera e o número de combatentes até terá
subido. Baseando-nos na História Augusta/SHA, Gordiano I demonstrou ser particularmente
generoso, mesmo antes de se tornar imperador: «Ele exerceu a pretura com magnificência. No
decurso da sua edilidade, organizou, à sua custa, para o povo romano, 12 munera, um em cada
mês, apresentando às vezes 500 pares de gladiadores, em todo o caso não menos de 150» 289
tey2044. Estes números – 150 e 500 pares – permitem deduzir uma média, que se situa em 325
pares de gladiadores. Caso multipliquemos esta cifra por doze meses, atingimos o
extraordinário total de 3 900 pares, ou seja, perto de 8 000 combatentes da arena
apresentados ao longo do ano!...

Mesmo pondo em dúvida a fiabilidade da História Augusta, uma coisa é certa: os munera no
século III não diminuiram e ganharam provavelmente em quantidade aquilo que perderam em
qualidade. Divisamos, aliás, um indício desta aparente mediocridade dos gladiadores na
mesma obra, a propósito de Probo; em 282 d. C., na véspera de partir em campanha contra os
Persas (onde viria a ser assassinado pelos seus próprios soldados), este imperador apresentou
em Roma um espectáculo com 300 pares de gladiadores. Se, por um lado, o número de
combatentes é digna de respeito, a origem dos mesmos, por outro, afigura-se espantosa. Na
Historia Augusta cita-se um caso, sob o reinado de Probo, em que «entre os seus combatentes
havia um grande número de Blémios que tinham participado no triunfo, assim como muitos
Germanos e Sármatas, sem falar de alguns salteadores isáurios». A acreditarmos nesta
passagem redigida no século IV, os munera de finais do século III teriam regressado ao estado
primitivo da gladiatura «étnica». Aqui não estava mais em causa a presença de armaturae
concretas ou de gladiadores profissionais, mas antes de prisioneiros de guerra e criminosos
que se viam forçados a lutar entre si na arena, certamente até à morte, quase todos
perecendo. Assim, é de supor que a crise do século III veio a subverter profundamente as
estruturas da gladiatura. Até quando os imperadores da dinastia de Constantino buscaram
restaurar os fundamentos da sociedade romana no início do século IV, esta já havia sofrido
uma mutação definitiva, pelo que não se chegou a reencontrar a sua antiga organização.
Aparentemente, observam-se reflexos destas mudanças nas fontes iconográficas e epigráficas
(inscrições de monumentos funerários ou honorífícas), que não voltaram a ocupar o lugar que
possuíam um século antes. Este silêncio quase total destes dois géneros da documentação
antiga, bem como a proliferação dos escritos cristãos, hostis a todas as formas de espectáculo,
toldam consideravelmente a nossa compreensão da gladiatura nos seus tempos derradeiros.

Não obstante tais lacunas, que percepção se pode ter da gladiatura que tentou sobreviver ao
longo do século IV? É possível apontar para algumas pistas, com base nos testemunhos mais
tardios do nosso corpus imagético. Se, por um lado, a quantidade de representações figurativas
alusivas à gladiatura diminuiu a partir do século III, por outro, a natureza das mesmas transmite
igualmente uma significativa evolução. O reduzido número de ocorrências disponíveis e as
dificuldades experimentadas em datá-las com exactidão impedem que se obtenham
conclusões definitivas, mas parece que a mutação final da gladiatura foi tão importante como

2043 Fonte igualmente consultável em: ILS 5062; M. Fora, I munera gladiatoria in Italia. Considerazioni sulla loro
documentazione epigrafica, nº 34. Veja-se J. Carlsen, «Exemplary Deaths in the Arena: Gladiatorial Fights and the Execution of
Criminals», in J. Engberg et al. (ed.), Contextualizing Early Christian Martyrdom, p. 89.

2044

684
as que aconteceram no período tardo-republicano e no principado de Augusto. Com efeito,
certos indícios levam a crer que a gladiatura cessou de constituir um fenómeno técnico e
regulamentado, passando a traduzir-se numa prática progressivamente mais brutal e aleatória.
As escassas figurações em relevo que sobreviveram até hoje parecem corroborar tal impressão.

A Ásia Menor fornece algumas destas fontes icónicas, datando do século III. Como vimos, a
armatura identificada sob a designação de arbelas terá sido especialmente apreciada no
Oriente, no século II. Afora os exemplos de arbelases, que foram, na sua maior parte, reunidos
por L. Robert, descobriram-se mais recentemente outros testemunhos atípicos de um
gladiador também provido de um tubo metálico. Se bem que os elmos sejam distintos dos já
citados, essa particularidade não chamou à atenção dos estudiosos. As ditas imagens
escultóricas são em número de cinco: num baixo-relevo fragmentário, actualmente exposto no
Bodrum Müze (Turquia; antiga Halicarnasso), cuja origem concreta se desconhece, observa-se
um gladiador dotado de um tubo metálico rematado por uma lâmina em meia-lua, e de um
gládio curto; o combatente, com duas pequenas ocreae a cobrir-lhe as tíbias, aparenta ter o
torso protegido por uma túnica acolchoada, que apresenta um volume invulgar no contexto
gladiatório. O seu casco não comporta a tradicional cimeira do secutor e do scissor-arbelas,
mas um rebordo circular horizontal, elemento que nos faz lembrar os capacetes dos equites ou
dos provocatores. A nível técnico, o desaparecimento de uma característica tão peculiar teve
decerto um significado – provavelmente o adversário tradicional deste novo género de arbelas
já não corresponderia mais ao retiarius ou, pelo menos, a um que empregasse a rede.

Trata-se de algo que, em princípio, se confirma noutros quatro relevos, procedentes de um


mesmo complexo funerário, descobertos na necrópole de Hierápolis, na Frígia e conservados
no Museu de Pamukkale (Turquia); as imagens descrevem as diferentes etapas de um combate,
uma vez que o nome de um dos gladiadores, Odyseus (Odisseu) surge escrito em vários sítios.
Estes preciosos testemunhos da gladiatura tardia mostram-nos um combatente munido de
uma protecção tubular, com uma meia-lua afiada na sua extremidade, e de uma adaga. Como
sucede no exemplo de Halicarnasso, o elmo não revela a cimeira típica dos secutores. Nos três
casos em que o seu oponente aparece representado, estes gladiadores de um novo tipo jamais
defrontam um retiarius, o que explica a supressão da cimeira (anti-rede). Este adversário, com
elementos igualmente inovadores, foi esculpido num quarto baixo-relevo, também achado em
Hierápolis. É um gladiador que evidencia as mesmas características que o «neo- arbelas» (assim
rotulado por É. Teyssier) atrás descrito: um casco do tipo provocator ou eques, duas pequenas
ocreae, túnica acolchoada apertada na cintura e gládio curto, mas aqui o elemento tubular vê-
se substituído por uma sica. Esta combinação é bastante surpreendente e contradiz por
completo os critérios téccnicos estabelecidos desde o fim da República. Conquanto a sica não
se contemple nos relevos de Pamukkale, devido às suas lacunas, não resta a menor dúvida que
este gladiador seria, por certo, o oponente do «neo-arbelas» e representaria, à sua maneira,
uma espécie de neo-thraex» (uma vez mais segundo Teyssier), único no corpus iconográfico. O
facto de ambos os combatentes não utilizarem escudos constitui outro estranho aspecto
técnico. O carácter singular deste testemunho impõe, porém, alguma prudência, mas a
modalidade de confronto seria inegavelmente assaz violenta e devia terminar no solo com
rapidez, como se assinala, aliás, na cena final do combate de Odyseus.

Deparamos com mais imagens tardias da gladiatura também atípicas: um baixo-relevo do


Pergamon Museum de Berlim mostra outra oposição de gladiadores com armaturae nada
habituais. Numa observação superficial da cena, poder-se-ia deduzir que descreve a luta entre
um thraex e um murmillo, os dois tendo perdido os escudos e envolvendo-se, na fase final,
num encarniçado corpo a corpo. Contudo, num exame mais atento, constatamos que o
contendor da direita possui duas pequenas ocreae quando, na realidade, deveriam ser
grandes. Ademais, não se vislumbra qualquer escudo tombado no solo. Por último, se o

685
gladiador da direita empunha mesmo uma sica, é provável que o seu adversário tivesse uma
protecção tubular no braço esquerdo, que ficaria oculta devido à bidimensionalidade da
representação escultórica. Consequentemente, estamos perante, não uma porfia entre um
thraex e um murmillo, mas uma cena similar à visível em Pamukkale, opondo um «neo-
arbelas» a um «neo-thraex». A única grande diferença está nos cascos, que se apresentam, na
estela de Berlim, dotados de cimeira. O elmo do gladiador Drakon, situado à direita, comporta,
além disso, uma protuberância que não deixa de evocar uma esquematização do prótomo de
grifo tradicional nas representações de thraeces. À sua frente, o adversário cinge um elmo
muito semelhante, cuja cimeira termina numa forma mais angular. Aparentemente, neste
relevo, topa-se com uma variante das oposições esculpidas nas composições de Hierápolis.
Neste caso, bem como no de Halicarnasso, a natureza tardia dos testemunhos plásticos pauta-
se por um «estilo» mais pesado que o dos relevos habitualmente observados no Oriente. Não
obstante a dificuldade em situar cronologicamente a execução destes relevos, mas talvez não
estejamos equivocados se os datarmos do século III.

Estes exemplos, lamentavelmente muito parcos, permitem entrever uma verdadeira evolução
técnica da gladiatura coeva ou posterior à dinastia dos Severos. Durante este período, a
gladiatura parece apartar-se das regras que constituíram a sua unicidade sob o Alto Império. A
primeira característica deste processo evolutivo traduz-se numa tendênxcia para a
uniformização das armaturae. É, assim, notável verificar que os dois cascos muito similares do
baixo-relevo de Berlim se aproximam indubitavelmente na sua forma dos elmos do secutor. De
facto, certos relevos de secutores procedentes da Ásia Menor transmitem elementos muito
próximos, como por exemplo uma estela funerária de Didymes, conservada no Izmir Müze:
aqui, o secutor em questão é portador de um elmo cuja protecção facial não é simplesmente
dotada de duas aberturas ao nível dos olhos do utilizador, mas de toda uma série de orifícios
mais pequenos que cobriam o conjunto do rosto. A vantagem deste sistema, que terá surgido
tardiamente, era, sem dúvida, de uma melhor ventilação. Esta evolução prática pode ser
igualmente um indício de que os gladiadores, ao tempo, estariam submetidos a um treino
menos intenso e rigoroso do que nos séculos I e II.

Quanto à cimeira em configuração de meia-lua do secutor, viu-se modificada para um


esporão. Este elemento, pontiagudo, próprio da gladiatura do século III, podia converter-se
numa arma perigosa na luta corpo a corpo. Veja-se o mosaico de Kourion (Chipre),
protagonizado por um murmillo e um thraex, que ainda aparecem munidos dos seus escudos:
nesta representação, a similariedade com os cascos do relevo do Pergamon Museum de Berlim
é flagrante; o thraex, à esquerda, reconhecível pela sua sica, não exibe na sua cimeira o outrora
emblemático prótomo de grifo; ele segura numa parma de tamanho invulgar e tem uma
manica provavelmente de metal a cobrir o braço direito; quanto às grevas, são menos amplas
que os modelos assinaláveis noutras imagens antigas.

Posto isto, a evolução dos equipamentos contribuiu para uma uniformização e simplificação
globais. Paralelamente, as técnicas de combate tornaram-se mais primárias, designadamente
por causa do desaparecimento do escudo, pelo menos em certos casos. Ora estas alterações
desembocaram numa espécie de «brutalização» da gladiatura derradeira. As razões essenciais
destas mutações foram decerto de ordem financeira: é possível que a crise do século III tenha
perturbado seriamente a estrutura já debilitada da gladiatura. Neste sentido, o treino que
estes gladiadores recebiam deve ter sido muito menos «puxado» do que nos séculos I e II d. C.
Progressivamente, o público passou a nutrir menos interesse pelas subtilezas técnicas das
porfias, daí estas virem a perder os requintes agonísticos do passado, transformando-se em
duelos cada vez mais sangrentos. Ao mesmo tempo, e por motivos idênticos, é também
provável que tais combatentes não fossem mais voluntários/auctorati, mas consistissem antes

686
em escravos, criminosos ou prisioneiros de guerra, como o atesta a passagem da Historia
Augusta, referente ao munus de Probo.

Se efectivamente foi este o caso, então a uniformização dos gladiadores torna-se mais lógica
já que, desprovidos de treino ou recebendo, no máximo, uma formação muito rudimentar e
breve, estes homens, do fim do século III e início do IV, não tinham mais tempo para aprender
e assimilar as subtilezas das antigas armaturae da gladiatura «técnica», pacientemente
elaboradas ao longo do tempo. Embora disponhamos de raros testemunhos documentais
concretos, a hipótese aqui aventada pode significar um elemento de resposta à questão do
processo evolutivo da gladiatura tardia. O gosto do próprio público pode igualmente ter
evoluído em simultâneo. Buscou-se, ao que tudo indica, a exibição de pugnas sangrenas de
uma maneira mais sistemática, sobretudio quando os gladiadores envolvidos não fossem
profissionais conhecidos e admirados, mas bárbaros cativos.

Uma das últimas inscrições ligadas à gladiatura que até nós chegou data do século IV (CIL V,
563): apesar de nela se mencionar as armaturae do secutor e do retiarius, o seu teor remete
para combates que culminavam, muito mais amiúde do que outrora, em mortes sistemáticas:
«Constantius editor, que ofereceu um munus, deu este túmulo como presente aos seus gladiadores, para lhes
agradecer pelo êxito que teve com o seu munus. Para Decoratus, rhaetarius [sic], que matou Caeruleus e tombou
morto pelo último. Foi a rudis que pôs termo às suas vidas e a pira funerária é a morada deles. Decoratus travou 9
combates contra secutores. Deixou a maior dor à sua esposa Valeria».

Gravado no tempo da dinastia de Constantino, este texto parece dar a ideia de pretender
restaurar os antigos rituais da gladiatura «clássica», ao evocar as armaturae, o número de
vitórias, o árbitro, o editor e, até, aludindo à inconsolável mulher de Decoratus. No entanto, o
facto de ambos os gladiadores terem perecido sem que o editor tenha logrado mandar
executar apenas um deles, mostra bem a violência do confronto. A despeito de Constantius se
ter esforçado por reintroduzir os antigos costumes, a gladiatura do século IV sofrera,
manifestamente, uma metamorfose total.

O mosaico da Galleria Borghese

As últimas tendências da gladiatura estão irrefutavelmente plasmadas num mosaico


possivelmente contemporâneo da mencionada inscrição de Trieste. Este famoso testemunho
plástico é muitas vezes reproduzido em livros e artigos, mas sem que se veja sublinhado o seu
carácter tardio e anómalo. Descobertos em 1834 numa villa em Torrenova, nos arredores de
Roma, os cinco grandes painéis que compõem este mosaico foram removidos do local e
reinstalados no salão de entrada da Villa Borghese: datando de começos do século IV, este
grande e impactante conjunto imagético serve de remate cronológico para o nosso corpus
icónico. No mosaico, ocupando mais de 50 m 2, justapuseram-se as diferentes fases de um
munus legitimus, com os venatores, os noxiii agarrados aos cornos de um touro, mas reservou-
se mais espaço aos gladiadores. Contudo, a representação destes não têm quase nada em
comum com as imagens dos séculos precedentes. Terminando um processo iniciado a partir do
século II, o par retiarius-secutor está omnipresente no mosaico em apreço, como se tivesse
conseguido excluir definitivamente as demais armaturae. Além disso, não foram descritas
posições técnicas precisas, mas tão-só o fatídico instante em que o vencedor da pugna remete

687
nas mãos do editor e do público. Se no acervo iconográfico anterior a figuração da morte
praticamente não existe, neste caso tudo parece girar em seu torno.

No Painel II (FIG. ), por exemplo, o secutor Talamonicus, que depôs o seu elmo, segura, ainda,
com a mão esquerda, uma adaga ensanguentada, com a qual acabou de aniquilar o retiarius
Aureus, que aparece nitidamente figurado já sem vida. O theta nigrum está inscrito ao seu
lado, e os olhos do retiarius encontram-se fechados, detalhe que não vemos em qualquer
outra fonte gladiatória. Na mesma secção, imediatamente por cima de Aureus, deparamos com
uma representação similar: o secutor Bellerefons apresta-se a degolar o retiarius Cupido, cujo
nome também se acha acompanhado do fatal theta nigrum; parece tratar-se do instante que
antecede a cena envolvendo Talamonicus e Aureus: o retiarius ainda respira e desvia o olhar do
golpe que vai atingi-lo no pescoço. No conjunto da composição, salitentemos a total ausência
de um árbitro, o que é, per se, bem revelador de uma mutação profunda, dado que estes
actores dos munera marcam geralmente presença nas imagens gladiatórias de alguma
importância. Analogamente, a missio também não está presente no mosaico da Villa Borghese.
Os dois factos estão intíma e claramente interrelacionados. Se o objectivo de cada combatente
era o de matar, por todos os meios, o seu oponente, então o summa rudis, assim como o
secunda rudis não teriam mais qualquer papel a desempenhar na arena. Não havia, pois,
necessidade de se assinalar alguma fraude, nem tão quanto uma atitude de coragem, já que o
público apenas alimentava a expectativa de assistir à degolação do vencido.

As cenas do mosaico em apreço repartem-se entre o momento em que o vencedor está


prestes a assestar o golpe fatal e aquele em que acabou de eliminar o adversário antes de
triunfar. O nome de cada gladiador surge exarado, por vezes até em duas ocasiões: uma para
indicar o vencedor em acção e outra para mostrar o mesmo pouco antes de saudar o público. É
o que se contempla no Painel III, em relação a Astacius, o retiarius vitorioso (FIG. ), que
aparece numa escala mais reduzida, junto de um cavalo, ostentando um manto colocado nos
ombros. Não restam dúvidas que aqui se enfatizam as recompensas oferecidas pelo editor. No
mesmo Painel III, um retiarius chamado Purpureus abandonou o seu tridente e aparenta
atingir as costas do secutor Baccibus, que se vira para ele. Esta cena foi interpretada de várias
maneiras: talvez o retiarius esteja a golpear o oponente com uma adaga, o que se infere pelo
facto de o último ter sangue a escorrer-lhe entre as suas pernas; mas é igualmente possível
que Purpureus esteja a atacar o adversário com um atiçador incandescente/ ferro em brasa,
mediante o qual procuraria «incitar Baccibus a um envolvimento mais activo na pugna. A estar
correcta esta suposição, este retiarius voltaria a exercer, em certa medida, uma função que
levou a cabo no século I d. C., a de uma espécie de «polícia» da arena. Quanto a Purpureus,
destaquemos outro ponto, o da sua morfologia corporal invulgar: se o cotejarmos com o
retiarius do célebre mosaico de Nennig, logo constatamos que os dois homens são
diametralmente diferentes: se o o gladiador de Nennig prima pela sua elegância atlética e e
harmoniosa musculatura, o seu homólogo da Villa Borghese, pelo contrário, mostra um tronco
desproporcionado e adiposo, com um rosto de traços pesados que não deixa de lembrar os
«retratos» dos pugilistas das Termas de Caracala 291 Teyss 2045. Certamente que um tal
combatente seria incapaz de possuir a agilidade e a rapidez que caracterizavam os retiarii nos
séculos I e II.

Afora a evidente «brutalização» da gladiatura, o mosaico da Villa Borghese atesta também o


seu declínio técnico. Note-se, por exemplo, no âmbito dos equipamentos das armaturae, que a
rede parece haver desaparecido por completo. As manicae dos retiarii, assim como as dos
secutores mostram uma factura inabitual, porque manufacturadas com escamas de ferro
(lorica squamata). Os cascos dos secutores são basicamente de dois tipos: o primeiro, muito
simples, está despojado de cimeira e tem duas aberturas à altura dos olhos; de tonalidade

2045

688
amarelo-acastanhada, este elmo terá sido produzido em bronze, mas também poderia ser de
couro; no mosaico Borghese, observa-se várias vezes o outro género de capacete, de cor
cinzenta-azulada, feito manifestamente de ferro, dotado de uma grelha facial perfurada por
múltiplos orifícios e com uma cimeira rematada por um acerado esporão.

Com as suas degolações sistemáticas e a representação de gladiadores mortos ou


agonizantes, o mosaico da Villa Borghese dá-nos a ver uma outra gladiatura: ao descreverem
sem pudor nem contenção a morte e o sofrimento, esta série de cenas tem poucas afinidades
com as imagens gladiatórias anteriormente aqui analisadas. Existe outra constatação que se
impõe fazer, menos abordada pelos estudiosos modernos, mas que é igualmente sintomática –
com efeito, sob o ponto de vista técnico, esta gladiatura evoluiu rumo a um gradual
empobrecimento. Os elmos conheceram, também, como já dissemos, uma simplificação
formal. Dos dois modelos distintos adoptados pelos secutores, um é extremamente singelo e
assemelha-se a um pote munido de dois orifícios, e o outro, dotado de uma cimeira em forma
de esporão, representa o casco típico da gladiatura tardia. De facto, ele reencontra-se
indiferenciadamente a proteger a cabeça de um thraex, de um murmillo ou de um secutor. Esta
uniformação da peça de equipamento mais característica das três armaturae mencionadas
constitui o sinal tangível do ocaso da gladiatura «técnica». Ao utilizarem o mesmo género de
casco, estes três tipos de gladiadores, torna-se difícil distinguir, tanto na aparência exterior
como nas suas técnicas de combate. Certamente que o esporão afiado sobrepujando o elmo
consistia numa arma suplementar, destinando-se a ser empregue, brutalmente nos duelos,
nomeadamente quando o secutor se defrontava com o retiarius, que tinha a cabeça sem
protecção alguma.

Tratava-se de uma maneira de satisfazer, ao mesmo tempo, um público que ansiava sobretudo
pela violência nas porfias, e dissimular o melhor possível a falta de um treino rigoroso e
intensivo que esses homens poderiam ter recebido, antes de se verem arrojados para a arena,
gozando de carreiras indubitavelmente breves.

Ainda que as imagens atrás estudadas não anunciem o fim imediato da gladiatura, elas
atestam categoricamente o desaparecimento da gladiatura «clássica». Os motivos desta
evolução encontram-se principalmente numa redução dos montantes postos em jogo nos
espectáculos gladiatórios desde a segunda metade do século III, e numa diminuição
concomitante do número de anfiteatros em condições para acolher os munera. Estes dois
fenómenos, conjugados com uma mudança de gostos e das expectativas dos espectadores
explicam, em larga medida, o declínio da gladiatura.

O fim da gladiatura: comentários sobre as razões prováveis do seu desaparecimento

A história do fim da gladiatura é um tema em si mesmo, daí que não tencionamos desenvolvê-
lo em profundidade, abordando apenas várias linhas de força. Como vimos, a propósito do
mosaico da Villa Borghese, entre finais do século III e o reinado de Constantino surgiu uma
outra gladiatura. Ademais, a quase completa desparição de imagens após o começo do século
IV e, até ao fim definitivo do fenómeno cerca de cem anos depois, obsta a que se consiga
empreender uma investigação de carácter técnico. A partir de Constantino, as fontes textuais
antigas consistem, praticamente em exclusivo, em testemunhos moralizantes e hostis de
cristãos. Estes escritos unívocos, indirectos e parciais, impedem que se possa estabelecer um
quadro concreto da gladiatura dos últimos tempos. Quando muito, apercebemo-nos de
algumas etapas da agonia de um fenómeno plurisecular.

689
Após a «proto-gladiatura», ritual e «étnica», e a gladiatura «clássica», técnica e organizada,
não é possível determinar com nitidez uma «terceira idade» da gladiatura sobretudo por causa
da rarefacção das figurações plásticas no conjunto do mundo romano. No século IV, também
algo similar se passa com as fontes epigráficas e literárias referentes à gladiatura final,
revelando-se as mesmas escassas e quase mudas sobre as armaturae. Mas uma coisa é
garantida: os poucos elementos de que dispomos mostram mais um paulatino declínio das
práticas antigas do que propriamente a emergência de uma nova gladiatura. Esta teve como
aspecto característico uma evidente «brutalização», provocada por grandes mutações
operadas na sociedade e pela provável desaparição dos ludi desde finais do século III. Importa
realçar que foi esta gladiatura findante, «caricatural por assim dizer, que os seus últimos
observadores cristãos retiveram na mente. Foi, igualmente, esta visão parcial que prevaleceria
durante largo tempo, cobrindo de opóbrio um fenómeno cuja antiguidade se cifrou em cerca
de oito séculos.

Contrariamente a Cícero ou a Marcial, que conheciam e apreciavam as pugnas da arena, o


propósito fundamental dos escritos cristãos radicou na condenação de tal prática. Face a estes
testemunhos, vemo-nos quase na situação de um historiador do século 4º milénio que
tentasse conhecer as técnicas dos toureiros só através de obras produzidas por membros de
associações contra as corridas de touros. Os autores cristãos que então evocaram a gladiatura,
os únicos que chegaram até nós, transmitem uma perspectiva muito peculiar: discorrem sobre
aquilo que condenam sob um ponto de vista ideológico, sem buscarem compreender as as
antigas motivações do fenómeno gladiatório. Mais: escreveram sobre algo que, pelo menos em
princípio, não conheciam, uma vez que a sua crença os proibia de assistir aos combates de
gladiadores, assim como ao conjunto dos espectáculos «pagãos». No entanto, sabe-se que
houve diversos cristãos que assistiram pessoalmente aos munera, vários deles confessando o
facto e descrevendo essa experiência como um erro cometido na juventude, o qual rejeitam
com uma convicção tanto mais veemente quanto procuram fazer-se perdoar pelas infracções
praticadas.

Para além dos retiarii-secutores do mosaico Borghese e de raras menções epigráficas do


século IV, torna-se difícil afirmar se as demais armaturae continuariam a existir. Em meados
desse século, Amiano Marcelino ainda alude aos pretorianos, dizendo que efectuavam o
mesmo género de «esgrima» dos murmillones:
«Os soldados, em ordem mais compacta e em linha cerradas, aí se mantiveram firmes como torres, das quais
possuíam a estabilidade e a resistência, e retomaram o prélio com ímpeto acrescido; atentos a esquivar-se dos
ferimentos e cobrindo-se à maneira de um murmillo, eles romperam com os gládios em riste o flanco dos bárbaros,
que a sua ardente cólera pusera a descoberto».

Ainda que talvez subsistissem outras armaturae, pelo menos até meados do século IV, os
retiarii e os secutores constituiram, sem dúvida, os gladiadores mais correntes do Baixo-
Império. Assim, vários fragmentos de um baixo-relevo datando do século III, descobertos na via
Appia, apresentam um grande número de gladiadores que pertencem todos a este par. Do
mesmo modo, no século subsequente, o mosaico da Villa Borghese mostra uma vintena de
combatentes que são, uma vez mais, unicamente retiarii e secutores (Teyss. 292) 2046.

Cabe ver nesta evolução um reflexo da «barbarização» da sociedade romana tardia ou, mais
simplesmente, a consequência do declínio da civilização urbana? De facto, o retraimento das
cidades para o interior de muralhas estreitas e a instalação das elites nas zonas rurais (que
desta forma fugiam ao peso financeiro das responsabilidades municipais) correspondem a
alguns das razões explicativas para a rarefacção dos munera. Esta diminuição da «procura»
gladiatória conduziu ao decréscimo do nível profissional dos combatentes. É muito possível

2046

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que este processo tenha começado no decurso da segunda metade do século III, agravando-se
ao longo do século seguinte. Com efeito, apesar de Santo Ambrósio ainda testemunhar pugnas
de gladiadores em Milão, no fim do século IV, os munera foram desaparecendo gradualmente
nas províncias, depois em Itália e, por fim, em Roma. Estes dois fenómenos, o declínio das
escolas/ludi e a «brutalização» dos combates estiveram interligados. Os gladiadores com
menos formação e treino só poderiam oferecer um espectáculo de sofrível qualidade. O
interesse maior não residia mais no conjunto de gestos técnicos longamente repetidos, mas no
desfecho fatal, que ganhou uma preponderância que antes nunca conhecera, como vimos nos
mosaicos da Villa Borghese e do Museu Arqueológico de Madrid. A par das causas económicas
e sociais, a multiplicação das condenações da Igreja contra os gladiadores participou
igualmente na decadência do fenómeno. Assim, de acordo com a tradição apostólica, o Papa
Hipólito excluiu os gladiadores e os seus treinadores da comunhão desde finais do século (?).
Sensivelmente no mesmo período, Tertuliano lançou o anátema sobre o conjunto dos jogos e
espectáculos pagãos:
«Na sua casa, ele tapa os ouvidos da sua filha a toda e qualquer palavra impura, [mas] depois leva-a a assistir aos
discursos e gestos dissolutos do teatro: nos locais públicos, ele apazigua e condena as querelas; no estádio [pelo
contrário], aplaude os sangrentos morticínios dos atletas. Face à aparência do cadáver de um homem que morreu
de causas naturais, ele estremece de pavor; no anfiteatro [todavia], ele alimenta avidamente os seus olhos com o
espectáculo de um corpo dilacerado, feito em pedaços e mergulhado no seu próprio sangue. Há ainda melhor: ele
vai ao anfiteratro para castigar um homicida, e ei-lo, de látego na mão, empurrando um gladiador a tornar-se
homicida. Pede que se atire ao leão o mais famoso assassino; por outro lado, ele solicita as indsígnias da liberdade
para o gladiador mais cruel. O gladiador acaba por sucumbir na luta, e ele saboreia de perto a morte daquele que
quis matar de longe, tanto mais bárbaro neste momentto, mesmo que pouco antes tal não desejasse».

Contudo, não se deve exagerar o impacto real destas diatribes. Sublinhemos que estas não se
dirigem apenas aos gladiadores, mas também se estendem aos actores de teatro, aos atletas e
aos aurigas circenses. No início do século III, para o autor cristão Minúcio Félix, os gladiadores
não recebem a palma da infâmia, quando declara:
«Quem não tem horror, na corrida de carros, de ver o furor de todo um povo que se exalta e disputa? Quem não
se espanta de ver, nos jogos de gladiadores, a disciplina do homicídio? Nos teatros, furor não é menor, mas a infâmia
é maior neles»

No século III d. C., a gladiatura sofreu muito mais com as perturbações de ordem económica
ocorridas ao tempo do que com as condenações eclesiásticas. Como vimos, a formação, em
regime de permanência, de milhares de gladiadores significou uma enorme aposta económica.
A instabilidade política e as primeiras incursões bárbaras acarretaram, pois, pesadas
consequências na organização da «economia gladiatória». Foi, inegavelmente, a
desorganização desta economia e as dificuldades experimentadas em encontrar gladiadores
treinados que obrigaram ao recurso a certos expedientes. Assim, em 282, o imperador Probo
celebrou o seu triunfo contra os Germanos ao oferecer à multidão combates entre prisioneiros
de guerra ou salteadores, mas não porfias opondo profissionais da arena.

Outros imperadores e munerarii procederam da mesma maneira durante o século IV, o que
concorreu ainda mais para a mediocridade dos espectáculos oferecidos ao público. A utilização
de cativos de guerra recentemente capturados conduziu a uma autêntica regressão da
gladiatura, que voltou praticamente à fase da gladiatura «étnica», anterior à criação dos ludi
destinados a formar os combatentes. Ora aqui observa-se a marca de um inexorável declínio
das «escolas» gladiatórias. No entanto, apesar de ter diminuido a quantidade de imagens
ilustrando a gladiatura nos séculos III e IV, os munera continuaram a ser oferecidos dentro do
espírito da mais pura tradição, sempre que um período de estabilidade o permitisse. Isto
sucedeu, nomeadamente, com Diocleciano (284-305 d. C.), que envidou todos os esforços para
apresentar jogos magníficos, inequívoco sinal da sua vontade de uma restauração imperial.

691
Em meados do século IV, o Código Teodosiano (Codex Theodosianus) proibiu formalmente que
os soldados firmassem contratos com os lanistae. Esta disposição legal suscita dúvidas e o seu
conteúdo já foi objecto de várias interpretações: ele pode deixar supor que a gladiatura ainda
seria suficientemente atractiva, ao ponto de incitar os milites a abandonar os castra e
passsarem a actuar no anfiteatro. É certo que, por esta altura, a vida militar era certamente
mais perigosa do que nos reinados de Nero ou Adriano. Contudo, tal interdição representa,
aparentemente, outro sinal da crise estrutural da gladiatura: num período em que os munera
rareavam, tornava-se quase impossível tratar da manutenção dos gladiadores ao longo de
meses, à espera de hipotéticas pugnas. Neste sentido, afigurar-se-ia indiscutivelmente mais
rentável para os lanistae aliciarem pontualmente outros profissionais do combate – os militares
- quando se organizavam munera. O lanista podia, então, fornecer combatentes com algum
valor sem ter de gastar dinheiro na sua formação, a qual o exército já se encarregara de levar a
cabo. Se aceitarmos esta interpretação, é fácil compreendermos a preocupação, por parte do
Estado, em conservar ao seu serviço as tropas que haviam sido treinadas à sua custa, tropas,
afinal de contas, se necessitava cada vez mais que estivessem junto às fronteiras do império.

Embora as «escolas» se encontrassem em declínio, no século IV o público ainda continuava a


sentir entusiasmo ao assistiir aos combates. Santo Agostinho relata o episódio de Alípio (ao
qual já nos reportámos noutro capítulo), que, por volta de 375, não conseguiu deixar de
contemplar uma pugna, não obstante as suas firmes convicções cristãs:
«Um incidente no combate arrancou a toda a multidão um imenso clamor que o fez sobressaltar. Vencido pela
curiosidade e julgando-se preparado, fosse qual fosse o espectáculo, a desprezá-lo e a dominá-lo, ele [Alípio] abriu
os olhos e viu-se ferido na sua alma com mais gravidade do que se fora no seu corpo, aquilo que ele observava com
avidez (…)».

Este trecho permite constatar que, na segunda metade do século IV, os combates gladiatórios
ainda conmtinuavam a seduzir multidões. Todavia, a maneira pela qual se olhava para estas
porfias havia mudado. Cícero sublinhou a infâmia da condição dos gladiadores, mas aludiu
também à sua bravura. Na sua qualidade de espectador assíduo, ele deixou-nos, juntamente
com Marcial ou Juvenal, uma série de pormenores sobre estas lutas na arena. Mas com os
autores cristãos, o ponto de vista difere por completo. À semelança de Santo Agostinho ou de
outros autores cristãos, não é mais um testemunho ocular que se expressa: efectivamente,
vários dos cristãos que censuram e abominam estes jogos fazem-no pelo «ouvir dizer» e
sempre no intuito de uma condenação sem apelo nem agravo. Na passagem de Santo
Agostinho, por outro lado, vê-se, como também acontece noutros excertos do mesmo género,
que é sempre o espectador o mais digno de pena: «ele viu-se ferido», «ele tombou». Em
contrapartida, nada nos é dito sobre os próprios combates nem sobre os gladiadores. Era
sobretudo o esprctador que mais interessava aos autores cristãos, visto que se tratava da alma
do último, mais do que a vida dos gladiadores, que devia ser salva.

As motivações do público sofreram igualmente mudanças desde o Alto-Império: já não


correspondiam mais a amatores dos scutati e dos parmati sob o Baixo-Império, ou da
associação de «amigos das armas» no século IV. Segundo Santo Agostinho, a paixão
desenfreada dos espectadores «torna as pessoas semelhantes a demónios; pelos seus
clamores, incitam homens a matar-se uns aos outros, que não têm outros motivos para
combater […], afora o de agradar a um público de fanáticos». Embora esta passagem seja
polémica, não deixa, ainda assim, de estabelecer uma relação com os morticínios sistemáticos
visíveis no mosaico da Villa Borghese. Consequentemente, no decurso do último século da
gladiatura, é provável que o público tivesse mais avidez pelo derramamento do sangue e do
que pela coragem e a técnica dos combatentes.

No extremo final do século IV, São Paulino testemunha igualmente a persistência da


organização das pugnas gladiatórias. O autor cristão escreveu que Roma não devia temer as

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ameaças do Apocalipse se o prefeito da Urbs fosse cristão e gastasse o dinheiro rm esmolas e
não em bestiis et gladiatoribus. Aproximadamente nesta altura, os munera de gladiadores só
deveriam ser apresentados na capital do Império, pois que por quase toda a parte eles
possivelmente terão desaparecido em proveito das venationes, mais fáceis de organização.
Mas a desaparição afigurava-se inelutável até em Roma, como se verifica pelo episódio
contado pelo autor pagão Aurélio Símaco, posterior em cerca de trinta anos a Santo Agostinho:
em 401, Símaco desejava celebrar dignamente a pretura do seu filho. Apesar de ter conseguido
reunir sem dificuldade (mas com grandes despesas) feras provenientes de todo o território
imperial, ele deparou, aparentemente, com problemas em arranjar um lanista que lhe
fornecesse gladiadores: serviu-se, então, das suas amizades na corte para obter do imperador
29 prisioneiros de guerra saxões. Como de imediato se infere, o número de homens era ímpar,
o que deixaria supor um confronto entre dois grupos, em vez da oposição tradicional mediante
pares bem definidos. O certo é que estes «gladiadores» de ocasião deram mostras de uma
total falta de profissionalismo, ao suicidarem-se todos, em vez de lutarem na arena, para
grande desespero e frustração de Símaco. É caso para afirmar que esta infeliz tentativa
equivale praticamente ao dobre a finados dos combates gladiatórios.

Em 404, no seguimento de grandes tumultos ocorridos no Coliseu, Honório proibiu


formalmente as pugnas de gladiadores. É difícil dizer se este édito teve real eficácia, mas não
resta a menor dúvida de que a conquista de Roma pelos Godos, seis anos mais tarde,
contribuiu ainda mais decisivamente para a extinção do fenómeno. Esta tomada da Urbs, pela
primeira vez desde há oito séculos, conduziu a uma subversão profunda e ao êxodo de grande
parte da população da cidade. Produzido após o saque de Roma, sobreviveu até hoje um
medalhão que constitui o testemunho de um derradeiro combate de gladiadores, a última
tentativa para reencontrar a imagem de uma Roma imperial que se recusava a morrer. É de
crer que tal peça date do triunfo de Honório sobre o usurpador Átalo, em 417. Na legenda
proclama-se: Reparatio muneris feliciter Teyss. 293 2047

O Anfiteatro Flávio, já fortemente atingido por vários abalos sísmicos, veio a perder a sua
função de edifício de espectáculos, como, aliás, se atesta pela existência de numerosas
sepulturas coevas no quarteirão onde ficava o Ludus Magnus. Não obstante as tentativas
restauradoras de Honório e Teodósio II, entre 417 e 423, os gladiadores nunca mais pisariam a
arena do maior anfiteatro do mundo. Cumpre repetir que não foram certamente as
condenações morais dos autores e dos imperadores cristãos que levaram a tal desaparição.
Com efeito, se, por um lado, os Doutores da Igreja confundiram, num só opróbrio, o conjunto
dos actores de todos os espectáculos, por outro, apenas os gladiadores é que sairam de cena a
partir do começo do século V. Os bestiarii continuaram a participar em venationes em Roma
até ao século VI, bem como as corridas de carros também perduraram, ainda inflamando o
público de Bizâncio durante vários séculos.

Mais que os anátemas dos cristãos, o desaparecimento dos gladiadores deveu-se a factores
económicos e políticos. Nos séculos I e II da nossa era, a prosperidade e a pax romana
tornavam possível a manutenção de múltiplas «escolas» distribuídos por todo o império. Sob o
Baixo-Império, tais condições estavam longe de se reunir, não admirando, portanto, que a
gladiatura declinasse.

No entanto, influenciados pelos autores cristãos, os pintores, escritores e historiadores da


Europa Ocidental oitocentista apenas retiveram a vão moralizadora de uma gladiatura brutal
prestes a findar. Esta imagem unívoca prevalece, ainda hoje, aos olhos do público e de certos
estudiosos da civilização romana. É certo que este género de gladiatura existiu efectivamente,
mas resumia-se a uma degenerescência e espécie de caricatura de um fenómeno que se

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estruturou ao longo de muito tempo, e que cativara multidões durante mais de três séculos.
Um fenómeno, acrescente-se, que convém actualmente reinserir na sua duração e diversidade,
tomando em consideração as suas influências sociais e políticas, bem como na sua lógica
técnica e económica.

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