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3.2. O SÉCULO XVII E A SUBJETIVIDADE

(excerto. Texto inédito)

O século XVII vê surgir em âmbitos diferentes uma reflexão que, de modo


maduro, tematiza e faz emergir a idéia do sujeito. Como já dito e repetido, esta
idéia acabará sendo um pilar essencial da construção moderna (na filosofia, na
ciência, na política, no direito). No âmbito deste texto nos limitaremos a
assinalar três grandes momentos teóricos em três diferentes âmbitos (que,
todavia, em vários modos se interpenetram): a filosofia (com René Descartes), a
política (com Thomas Hobbes) e o direito (com Hugo Grócio).

3.2.1. SUBJETIVIDADE POLÍTICA: THOMAS HOBBES

O filósofo inglês Thomas Hobbes (1588-1679) é comumente considerado o


primeiro teórico contratualista. A própria metáfora do contrato social já indica
que ela só poderia ser fruto do individualismo e do racionalismo que
caracterizam a modernidade. De fato, a concepção (na verdade uma hipótese e
um pressuposto teórico), comum nas diversas formas de contratualismo no
sentido de que os homens viviam num estado de natureza - isto é, num estado
pré-social, soltos, dotados apenas de sua autodeterminação - jamais poderia ser
concebida numa sociedade corporativa, como a medieval, ou numa sociedade
(como a Grécia Antiga, por exemplo) que não vislumbrasse a razão e a
autonomia como pressupostos que dirigem a vida humana e sua convivência. Só
numa sociedade que credita ao indivíduo a iniciativa e a fundação do Estado ou
da sociedade a partir de um ato de vontade com conteúdo racional seria capaz
de ensejar esta forma de teorização.

E é aqui que todos os contratualismos convergem (e é neste ponto que eles se


mostram tributários e herdeiros de toda a reflexão jusnaturalista): por mais
diversos que sejam os "estados de natureza" entre os principais contratualistas
(e se está a mencionar Hobbes, Locke e Rousseau), os homens saem deste
estado a partir de um ato de vontade, por uma decisão racional que, pesando as
mazelas existentes no estado pré-social de um lado e as vantagens de uma vida
politicamente organizada de outro, se constitui no momento inaugural da
organização política de uma sociedade. E Hobbes, antes de todos, elabora uma
teorização original que, em alguns sentidos, pode ser considerada como
inaugural da modernidade política.

Em Hobbes[1] existe (assim como para outros pensadores contratualistas) a


idéia de um estado de natureza, anterior à constituição da sociedade. Em
verdade esta idéia funciona como uma ficção teórica, uma hipótese, que vai
alavancar a tese da formação do Estado. A peculiaridade deste estado natural
em Hobbes é que nele os homens estão entregues às suas paixões, sem
quaisquer limitações, que os fazem estar em conflito constante. Convém
determo-nos nesta idéia do conflito inerente ao chamado ‘estado de natureza'
dos homens, em que diversos motivos fazem com que uns se lancem contra os
outros e que entrem num estado de violência (efetiva ou latente) constante. O
‘estado de natureza' é o estado da discórdia perene, do entrave incessante. E
para Hobbes, existem três grandes causas para a discórdia dos homens[2]: são
elas a competição, a desconfiança e a glória. A primeira delas leva os homens a
atacar os outros em vista do lucro ou faz com que os homens usem da violência
para se tornarem senhores das pessoas, dos bens ou das mulheres de outros
homens. A desconfiança faz os homens rivalizarem entre si em vista da
segurança, tornando-os violentos para defenderem-se. Já a busca da glória tem
como motor uma ninharia qualquer, uma diferença de opinião, às vezes uma
palavra, uma rivalidade.

Em suma: seja por seu próprio impulso de conquista - que visa garantir uma
situação em que o homem esteja num estado sobrepujado com relação aos
demais, seja pelo seu impulso defensivo e pelo seu medo de perder seus bens
ou ainda por meras picuinhas ou pequenas divergências que o afrontam com os
demais, os homens se lançam uns contra os outros. Esta passionalidade
humana, quando neste estado pré-social, é, assim, já dada. O homem, antes de
se definir como um ser racional, é um ser passional.[3]

Em vista disto, os homens vivem num estado que se pode dizer como sendo de
guerra. E aqui não se fala apenas da guerra efetivada, mas aquele estado
latente quando há um desejo, uma vontade de travar uma batalha, e isto é
conhecido e sentido por todos. A natureza da guerra portanto, aqui, se define
também pela disposição para tal, durante todo o tempo em que não há garantia
para a paz. Esta guerra de todos contra todos é uma conseqüência inevitável do
fato de haver paixões.[4] Assim, segundo o próprio Hobbes, se somarmos a
propensão natural dos homens a se ferirem uns aos outros (o que deriva de suas
paixões e também de uma vã estima de si mesmos) com o direito de todos a
tudo (que faz com que uns invadam as esferas de interesse dos outros que,
legitimamente, também resistem a esta invasão) estaremos num estado de
guerra. Guerra pode ser definida, assim, como "aquele tempo em que a vontade
de contestar o outro pela força está plenamente declarada, seja por palavras,
seja por atos".[5]

Junto com a guerra há a perenidade do medo. A guerra e o medo são naturais, e


são dados. Não são construções culturais dos homens no seu convívio. E se esta
é a condição natural dos homens, o estado de paz, este sim, só pode ser
construído. E é precisamente que há uma inflexão importante: a superação
deste estado de guerra e de medo deve ser construída pelo sujeito, é portanto
algo artificial, é criada a partir de pressupostos racionais. Neste ponto, Agostinho
Ramalho Marques Neto esclarece que "... a paz hobbesiana não pode deixar de
ser construída, ou seja, não é um dado natural, mas o resultado de um artifício.
Pois cabe precisamente à razão operar este artifício, sugerindo normas de paz
sem as quais a sociedade humana não pode ser instituída. Essas normas de paz
são para Hobbes as leis da natureza, que, nele e em outros importantes
contratualistas, são essencialmente regras da razão."[6] (grifos originais).

Em outros termos: as regras da razão humana extraem, através do contrato, as


normas que garantem a paz. A paz nada mais é do que a superação do estado
de natureza, e que somente pode ser assegurada por um poder maior, capaz de
manter todos em respeito.

Pois este poder é a lei. A lei é a instituidora da paz. A lei é o único recurso capaz
de cessar a guerra e o estado de guerra. Só a lei (aqui entendida, obviamente,
como a derivação de um Estado soberano, com autoridade soberana) instaura a
possibilidade do convívio harmônico das pessoas. A lei é a única instância capaz
de aplacar as paixões. Hobbes neste sentido enuncia que "As paixões que fazem
os homens tender para a paz são o medo da morte, o desejo daquelas coisas
que são necessárias para uma vida confortável, e a esperança de consegui-las
através do trabalho. E a razão sugere adequadas normas de paz, em torno das
quais os homens podem chegar a acordo. Essas normas são aquelas a que por
outro lado se chama leis da natureza..."[7]

Para Hobbes, é a lei que institui as noções do justo e do injusto, do bem e do


mal, do certo e do errado. Com isto, são estabelecidas também as penas e as
sanções derivadas dos descumprimentos das normas. Penas que devem ser
severas - e é por isto que o soberano deve deter o poder da espada, o poder
absoluto - para que, incutindo o temor nos corações dos homens, possam fazer
com que suas paixões seja contidas e o convívio harmônico seja possibilitado.

Isto é: a lei é o poder que garante o fim do estado de guerra, é a lei que faz
findar o estado em que as paixões e os medos são a tônica que dirige o convívio
social. É instituída uma nova racionalidade - fundada no poder - que faz com que
seja cessado o estado de guerra e seja possibilitada a paz.

Em suma: razão e direito do sujeito, razão e lei atuam conjuntamente e o poder


do sujeito é o direito do sujeito.[8] O sujeito é aquele que, a partir da sua razão,
constrói esta ordem artificial que é capaz de cessar o estado de guerra e de
medo, criando uma sociedade política (e jurídica) fundada numa lei (racional)
que assegure uma vida mais segura aos indivíduos, uma vida melhor. A
formação da sociedade política, como se vê, ocorre pela iniciativa dos sujeitos
racionais (que resolvem sair do estado de natureza), a partir de um fundamento
humano (a razão) com a finalidade de criar um convívio melhor entre os
indivíduos neste mundo terreno (não há aqui a preocupação em realizar na terra
os desígnios de Deus). Estamos, como se vê, num ambiente teórico que, ao
teorizar a sociedade política, manifesta de modo incontestável seu caráter
moderno. E o faz afirmando a centralidade do sujeito (e sua razão) como o
motor e como finalidade da nova ordem política.
 

3.2.2. SUBJETIVIDADE FILOSÓFICA: RENÉ DESCARTES

René Descartes (1596-1650) é comumente designado como fundador da


subjetividade e inaugurador do racionalismo moderno. É o filósofo que
ultrapassa o paradigma do ser em direção ao paradigma da consciência [9], ou
seja, é aquele que substitui a busca do fundamento da filosofia num substrato
material (como os gregos) ou teológico (como os teólogos medievais) para situá-
la na própria consciência do homem: a partir de agora é a razão que passa a ser
o ponto de partida para o filosofar e o guia para desvelar o mundo.

Neste item - que de fato não tem a pretensão de enfrentar a filosofia de


Descartes, mas tão somente captar seu núcleo de viragem no que se refere à
questão da subjetividade - parece adequado aduzir duas contribuições essenciais
de seu pensamento: de um lado o estabelecimento de um método para a busca
da verdade e de outro o surgimento do primado da consciência (da razão) como
guia para o conhecimento da verdade.

Partindo-se da premissa que é necessário colocar tudo em dúvida,


metodicamente [10], Descartes coloca em cheque toda a tradição cultural, todos
os saberes que foram transmitidos como também todas as crenças que são
adquiridas pelos sentidos: é necessário duvidar de tudo para a partir daí
reconstruir, pela razão, o caminho que leva às certezas. Descartes hiperboliza as
dúvidas, pois o único caminho seguro para superá-las é enfrentando-as e
atravessando-as (jamais as evitando). É somente na medida em que todas as
idéias são colocadas em dúvida - até mesmo aquelas mais claras, que o espírito
considera a princípio evidentes - é que ela permite extrair um núcleo de certeza,
que cresce na medida em que ele se radicaliza. Como aduz José Américo
Pessanha, "é indubitável que, "se duvido, penso". E quanto mais se duvide, mais
se repete, reforçando-se, a mesma experiência: se duvidar de que duvido, só
posso fazê-lo pensando essa dúvida a respeito da própria dúvida inicial". [11]
Descartes, portanto, chega a um "ponto fixo", indubitável e que não pode ser
objeto de dúvida: a consciência que duvida e, por conseqüência, que pensa; por
outro lado esta consciência, enquanto ser pensante, na medida em que pensa (e
duvida) não pode ter sua existência colocada em dúvida. Todo o resto pode ser
colocado em dúvida, menos a existência do pensamento que duvida. Em outras
palavras, como diz Franklin Leopoldo e Silva, se eu duvido "eu mesmo, enquanto
pensamento, me afirmo enquanto tal no próprio exercício da dúvida. Se a
própria dúvida existe, então o pensamento, do qual a dúvida é uma modalidade,
existe, e eu mesmo, que duvido, logo penso, existo necessariamente, ao menos
como ser pensante". [12] A partir da busca do ponto "firme e constante" do
conhecimento (a dúvida metódica), a que Descartes alude na primeira de suas
Meditações Metafísicas [13] é que se atinge a certeza do pensamento da dúvida
e, portanto, da existência do pensamento. Se duvido, penso; se penso, existo.

Surge então o pensamento, e consequentemente a noção de consciência, como


ponto de partida básico da busca da verdade. O homem não encontra mais em si
a verdade divina, mas descobre a auto-evidência da verdade. Não existem mais
formas ou essências transcendentes iluminando o mundo sensível e o processo
de conhecimento, já que a verdade não se dá no céu das idéias inteligíveis, mas
na imanência do pensamento. E é a descoberta deste eu pensante em sua
interioridade reflexiva que se constitui no princípio inaugural da filosofia
moderna. [14]

O grande filósofo Hegel em sua "História da Filosofia" [15] assinala este ponto de
ruptura com grande precisão: "com Descartes entramos, com rigor, em uma
filosofia própria e independente que sabe que procede substantivamente da
razão e que a consciência de si é um momento essencial da verdade. (...) Com
efeito, com Descartes começa verdadeiramente a cultura dos tempos modernos,
o pensamento da moderna filosofia (...). Neste novo período, o princípio geral
que regula e governa tudo no mundo é o pensamento que parte de si próprio.
Este pensamento, que é para si, essa cúpula mais pura da interioridade se
afirma e se fortifica como tal, relegando para o segundo plano e rechaçando
como ilegítima a exterioridade morta da autoridade. Somente o pensamento
livre que se abriga em mim pode reconhecer e corroborar, como tribunal
competente, o pensamento (...). A filosofia se converte, dessa maneira, numa
incumbência geral acerca da qual todo homem deve saber emitir juízo, pois todo
indivíduo é um ser pensante por natureza."

O passo dado por Descartes, como se pode notar, é decisivo em toda a cultura
ocidental e inaugura um novo modo de pensar que definirá o fundamento
filosófico dali em diante. Pode-se dizer de um modo geral que toda a reflexão
jusnaturalista e contratualista, de certo modo, parte da premissa que foi
elaborada (antes ou depois daquelas correntes) de modo teoricamente rigoroso
pelo filósofo. A filosofia da consciência, da razão, é o discurso da filosofia da
modernidade que tem o seu ponto de inflexão precisamente nessa concepção de
subjetividade, definida a partir destes fundamentos.

3.2.3. SUBJETIVIDADE JURÍDICA: HUGO GRÓCIO.

Existem vários nomes importantes dentro do contexto do assim chamado


jusnaturalismo moderno - que este item enfrenta de modo mais específico.
Samuel Pufendorf (1632-1694), por exemplo, estabeleceu pela primeira vez os
requisitos metodológicos de uma ética social completamente autônoma e
sistemática, dando um acento especial na noção de contrato como o novo centro
do direito, como o meio capaz de organizar as liberdades e egoísmos[16]. Pode-
se mencionar ainda Johannes Althusius (1557-1638), Christian Thomasius
(1655-1728) e Christian Wolff (1679-1754)[17] - todos eles epígonos deste
importante movimento que representou um passo crucial em direção à
modernidade jurídica. Porém, foi Hugo Grócio (1583-1645), jurista holandês,
aquele que, nas palavras de Franz Wieacker, desempenhou o papel de eficaz
mediador entre a tradição da teologia moral e o jusracionalismo profano[18].

É certo que na Antigüidade e na Idade Média ocorreram diversas formas de


jusnaturalismo, cada qual com diferentes fundamentos. Como ensina Miaille
[19], na Antigüidade clássica a idéia de "justo" presidia aquilo que nós podemos
hoje designar como direito, e esta "justiça" somente poderia ser encontrada na
natureza, já que o justo (o direito) é o natural. A perfeita ordenação da natureza
preside também a ordenação do mundo dos homens e é nela que o fundamento
da regulamentação jurídica entre os homens busca seu fundamento. Na Idade
Média, ao menos na concepção tomista, a lei natural é atributo de Deus e, sendo
a natureza o fundamento do direito, há que se ter em conta que a natureza é
uma criação divina e está submetida aos seus desígnios e à guarda da Igreja.
Trata-se também, portanto, de um direito calcado na natureza, mas uma
natureza submetida à criação de Deus. Na época moderna o fundamento na
natureza ou em Deus é abandonado e substituído pela "natureza do homem".
Quando se fala no direito natural moderno (ou jusracionalismo) fala-se então
num direito que se assenta na natural razão humana e seus atributos. Apesar
das inúmeras vertentes do direito natural moderno neste período em que está se
debruçando o estudo, sua linha comum e seu traço distintivo, ainda segundo
Miaille, é que agora o direito está ligado ao indivíduo, à qualidade específica do
homem, tornando-se a emanação deste, a expressão de suas possibilidades
inalienáveis e eternas. [20] O fundamento do direito, portanto, aparece como
sendo outro: o homem e sua racionalidade.

Grócio, de maneira exemplar, liga a instância jurídica à instância da razão.


Trata-se de uma racionalidade secular que, presidindo a vida individual e
coletiva, deve prevalecer em todas as questões nacionais e internacionais. O
procedimento adotado por Grócio, ao procurar estabelecer grandes divisões no
direito (ius latius patens [sociedade internacional], ius civile [direito dos
Estados], ius arctius [direito dos pequenos grupos], ius rectorium [relações
hierárquicas entre pais e filhos] e ius equatorium [direito que regula a relação
entre pares e associações fraterais]), por exemplo, denota uma preocupação
com a sistematização e a racionalização - preocupação esta que não pode ser
desvencilhada do entusiasmo com a nova ciência de Galileu (a ciência Moderna)
e com o método de Descartes. [21] E a definição do direito, enquanto conjunto
de normas superiores que são apreendidas pela razão, faz com que ele
desempenhe tanto o papel de "inspirador" do direito legislado, como o de seu
"controlador". [22] A partir do processo moderno da autonomização das esferas
axiológicas de que nos fala Weber (esferas que até o mundo medieval estavam
unidas e indiferenciadas) o direito e razão passam a ter uma relação necessária
e indissociável.

De fato, do ponto de vista metodológico, existem logo de saída várias


demonstrações em Grócio da sua sintonia com estes tempos racionalistas: no
parágrafo 39 dos Prolegômenos de seu livro mais importante (De iure belli ac
pacis, de 1625), pode-se ler o seguinte: "Em primeiro lugar, me preocupei em
ligar as provas às coisas que dizem respeito ao direito de natureza junto com
noções tão seguras que ninguém as possa negar, a menos que se violente. De
fato, os princípios desse direito, se for dada atenção, são claros e evidentes de
per si". Já no parágrafo 58 dos mesmos Prolegômenos, afirma que "assim como
os matemáticos consideram as figuras, abstração feita de corpos, de igual modo,
tratando do direito, eu afastei meu pensamento de todo fato particular" [23]. Ou
seja: de um lado a busca tenaz de certeza e de confiança racional no
conhecimento e, de outro lado, o direcionamento do saber jurídico (como, de
resto, vai ocorrendo com todo o saber) para a abstração e sistematização que
fujam das particularidades, que escapem do caos indomáveis dos fatos que
pululam na história. O que se busca agora é abstração (esquivando-se da
concretude, da riqueza e da irredutibilidade dos fatos particulares), abstração
esta que encontrará refúgio nesta idéia de racionalidade subjetiva (que, para
Grócio e Descartes, é certa e segura) recém conquistada.

Neste contexto a noção de direito subjetivo enquanto faculdade de agir do


indivíduo e como atributo ligado ao sujeito vai aparecer de um modo ainda mais
elaborado. O direito se liga definitivamente à pessoa. Nas palavras de Grócio,
nessa acepção "O direito é uma qualidade moral ligada ao indivíduo para possuir
ou fazer de modo justo alguma coisa. Este direito está ligado à pessoa, mesmo
que às vezes siga a coisa, como ocorre com a posse de imóveis que são
chamados direitos reais (...) Quando a faculdade moral é perfeita eu a designo
faculdade; quando não o é, aptidão". [24]

Esta elaboração conceitual em torno do direito subjetivo obviamente não deve


ser desvencilhada das noções teóricas da subjetividade e também da
racionalidade que esta encerra; afinal, o sujeito aqui tematizado (o sujeito que é
capaz de agir por ser dotado de faculdades jurídicas) é um sujeito racional. E,
como diz Costa, apesar da clara vinculação de Grócio a uma lógica na qual os
sujeitos estão ainda imersos entre si na renitente cadeia dos vários status[25]
(com vínculos importantes e complexos de obediência e sujeição), aqui, nessa
cadeia "é o sujeito como tal que aparece em toda a sua evidência, subtraído de
toda relação potestativa". [26]

Temos, portanto, na figura de Hugo Grócio, a primeira e mais sintomática


elaboração teórico-jurídica seiscentista, a fina flor do jusnaturalismo moderno
elevando a figura do sujeito de direito em protagonista da reflexão jurídica.
Assim como o fundamento da filosofia se dá a partir do sujeito, a pedra de toque
do direito, a partir daqui, será o sujeito de direito.

[1] Ver sobre Hobbes: RIBEIRO, Renato Janine. Ao leitor sem medo: Hobbes
escrevendo contra seu tempo. 2ª ed. Belo Horizonte: UFMG, 1999; MCPHERSON,
C. B.. A teoria política do individualismo possessivo: de Hobbes a Locke. Rio de
Janeiro: Paz e Terra, 1979 e também BOBBIO, Norberto. Thomas Hobbes. 4ª ed.
Rio de Janeiro: Campus, 1991. Boa parte da interpretação das idéias de Hobbes
aqui colocadas já havia elaborado em FONSECA, Ricardo Marcelo. Reflexões
sobre a guerra e a lei "in" Revista da Faculdade de Direito da UFPR. Porto Alegre,
síntese, vol. 33, ano 2000, págs. 109/119.

[2] HOBBES, Thomas. Leviatã: ou matéria, forma e poder de um Estado


eclesiástico e civil. São Paulo: Nova Cultural, 1997, págs. 108/109.

[3] MARQUES NETO, Agostinho Ramalho. Hobbes e as paixões. Curitiba: mimeo,


1994, pág. 7.

[4] MARQUES NETO, Agostinho Ramalho. Hobbes e as paixões, pág. 12.

[5] HOBBES, Thomas. Do cidadão. 2ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 1998. Pág.
33.

[6] MARQUES NETO, Agostinho R. Hobbes e as paixões, pág. 15.

[7] HOBBES, Thomas. Leviatã, pág. 111.

[8] COSTA, Pietro. Civitas: storia della cittadinanza in Europa, Vol. 1, pág. 166.
[9] HABERMAS, Jürgen. Pensamento pós-metafísico. Rio de Janeiro: tempo
brasileiro, 1990. p. 43. LUDWIG, Celso.  Para uma filosofia da libertação:
paradigmas da filosofia, filosofia da libertação e direito alternativo. Florianópolis:
conceito editorial, 2006, págs. 53 e segs.

[10] O estabelecimento de um método por Descartes sem dúvida está ligado ao


espírito científico de sua época, que busca de um lado separar a pessoa humana
da natureza e, de outro, aparta o conhecimento científico do senso comum
(conforme SANTOS, Boaventura de Souza. A crítica da razão indolente, p. 62.).
A primeira separação (entre homem e natureza) possibilita a acessibilidade desta
ao conhecimento daquele, e em Descartes ela é bem evidenciada na dualidade
existente entre as idéias e as coisas; já a separação do saber do senso comum
do saber científico reforça a necessidade de afastar-se do primeiro (pois a
realidade imediata pode ser enganadora) em direção à segunda, que é sempre
certa e verdadeira. Estes procedimentos - típicos do nascente pensamento
moderno - marcam o trabalho de Descartes. É necessário, para ter um acesso
seguro ao conhecimento, estabelecer os passos que tracem o caminho do
conhecimento vulgar ao saber verdadeiro e para isto é que surge a questão
metódica da dúvida hiperbólica cartesiana. O sentido da dúvida está em que ela
determina o método que leva à verdade. A certeza é gerada a partir da dúvida -
e é isto que lhe dá o caráter metódico (cf. SILVA, Franklin Leopoldo e.
Descartes: metafísica da modernidade. São Paulo: Moderna, 1993. p. 26, 35/36
e 43/44). E tal método (que coloca a dúvida como guia para a certeza) foi em
verdade elaborado com base em exigências internas da razão que, se bem
conduzidas a partir de regras corretas, permitem alcançar a evidência. Assim,
temos que a razão, para Descartes, informa o método que pode chegar a uma
evidência que seja verdadeira.

[11] PESSANHA, José Américo Motta. "Vida e Obra" "in" DESCARTES, René. O
discurso do método (col. Os Pensadores). São Paulo: Nova Cultural, 1991, págs.
XIV/XV.

[12] SILVA, Franklin Leopoldo e. Descartes: a metafísica da modernidade, pág.


52.

[13] DESCARTES, René. Os Pensadores, p. 167. Para uma potente leitura das
‘Meditações metafísicas', vide SCRIBANO, Emanuela. Guida alla lettura delle
meditazioni metafisiche di Descartes. 3ª Ed. Roma/Bari: Laterza, 2003.

[14] MATOS, Olgária Chaim Feres. Filosofia a polifonia da razão: filosofia e


educação. São Paulo: Scipione, 1997, págs. 72 e 74/75.

[15] MATOS, Olgária Chaim Feres. Filosofia a polifonia da razão: filosofia e


educação, págs. 72/75.

[16] Vide, a respeito, os clássicos livros de Hans Welzel, Naturrecht und


materiale gerechtigkeit (Göttingen, 1951), e, de modo mais específico, Die
naturrechtslehre Samuel Pufendorfs (Berlin, 1958), que também são acessíveis
na língua italiana, respectivamente, nas seguintes edições: WELZEL, Hans.
Diritto naturale e giustizia materiale. (a cura di Giuseppe de Stefano). Milano:
Giuffrè, 1965, págs. 195 e segs. e WELZEL, Hans. La dottrina giusnaturalistica di
Samuel Pufendorf: un contributo alla storia delle idee dei secoli XVII e XVIII.
Trad. Vanda Fiorillo. Torino: Giappichelli, 1993. Vide também COSTA, Pietro.
Civitas: storia della cittadinanza in Europa, Vol. 1, págs. 245 e segs.;
WIEACKER, Franz. História do direito privado moderno. Trad. António M.
Hespanha. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1980, págs. 345 e segs.;
TARELLO, Giovanni. Storia della cultura giuridica moderna: assolutismo e
codificazione del diritto. Bologna: Il mulino, 1976, págs. 106 e segs.; e
CAVANNA, Adriano. Storia del diritto moderno in Europa: le fonti e Il pensiero
giuridico, Vol. 1. Milano: Giuffrè, 1984, págs. 338/339.

[17] ALTHUSIUS. Johannes. Política. Trad. Joubert de Oliveira Brízida. Rio de


Janeiro: Topbooks, 2003; COSTA, Pietro. Civitas: storia della cittadinanza in
Europa, Vol. 1, págs. 350 e segs.; WIEACKER, Franz. História do direito privado
moderno, págs. 356 e segs.; TARELLO, Giovanni. Storia della cultura giuridica
moderna, págs. 113 e segs. e 144 e segs.; e CAVANNA, Adriano. Storia del
diritto moderno in Europa: le fonti e Il pensiero giuridico, Vol. 1., págs. 340 e
segs.
 

[18] WIEACKER, Franz. História do direito privado moderno, págs. 338 e 353.

[19] MIAILLE, Michel. Introdução Crítica ao Direito. Trad. Ana Prata. 2ª ed.
Lisboa: editorial estampa, 1989, p. 255/258.

[20] MIAILLE, Michel. Introdução crítica ao direito, pág. 259.

[21] SANTOS, Boaventura de Souza. A crítica da razão indolente, pág. 126.

[22] MIAILLE, Michel. Introdução crítica ao direito, pág. 261.

[23] GROTIUS, Hugo. O direito da guerra e da paz. Trad. Ciro Mioranza. Ijuí: Ed.
Unijuí, 2004, (col. ‘Clássicos do Direito Internacional', coord. Arno Dal Ri Junior),
págs. 55 e 64/65, respectivamente. Quem chama a atenção para estes
parágrafos dos prolegomena é Paolo Grossi, em sua recente e magnífica obra de
síntese: L'Europa del diritto. Roma/Bari: Laterza, 2007 (col. ‘Fare l'Europa',
diretta da Jacques Le Goff), págs. 99 e 100.

[24] GROTIUS, Hugo. O direito da guerra e da paz, pág. 74.

[25] Sobre o tema vide o magistral texto de CAPPELLINI, Paolo. Status accipitur
tripliciter: postilla breve per um'anamnesi di ‘capacità giuridica' e ‘sistema del
diritto romano attuale' in" VVAA, Studi in memoria di Mario Viora. Biblioteca della
rivista di storia del diritto italiano, n. 30, Roma, 1990, págs. 73/148.

[26] COSTA, Pietro. Civitas: storia della cittadinanza in Europa, Vol. 1, pág. 160.

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