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Em suma: seja por seu próprio impulso de conquista - que visa garantir uma
situação em que o homem esteja num estado sobrepujado com relação aos
demais, seja pelo seu impulso defensivo e pelo seu medo de perder seus bens
ou ainda por meras picuinhas ou pequenas divergências que o afrontam com os
demais, os homens se lançam uns contra os outros. Esta passionalidade
humana, quando neste estado pré-social, é, assim, já dada. O homem, antes de
se definir como um ser racional, é um ser passional.[3]
Em vista disto, os homens vivem num estado que se pode dizer como sendo de
guerra. E aqui não se fala apenas da guerra efetivada, mas aquele estado
latente quando há um desejo, uma vontade de travar uma batalha, e isto é
conhecido e sentido por todos. A natureza da guerra portanto, aqui, se define
também pela disposição para tal, durante todo o tempo em que não há garantia
para a paz. Esta guerra de todos contra todos é uma conseqüência inevitável do
fato de haver paixões.[4] Assim, segundo o próprio Hobbes, se somarmos a
propensão natural dos homens a se ferirem uns aos outros (o que deriva de suas
paixões e também de uma vã estima de si mesmos) com o direito de todos a
tudo (que faz com que uns invadam as esferas de interesse dos outros que,
legitimamente, também resistem a esta invasão) estaremos num estado de
guerra. Guerra pode ser definida, assim, como "aquele tempo em que a vontade
de contestar o outro pela força está plenamente declarada, seja por palavras,
seja por atos".[5]
Pois este poder é a lei. A lei é a instituidora da paz. A lei é o único recurso capaz
de cessar a guerra e o estado de guerra. Só a lei (aqui entendida, obviamente,
como a derivação de um Estado soberano, com autoridade soberana) instaura a
possibilidade do convívio harmônico das pessoas. A lei é a única instância capaz
de aplacar as paixões. Hobbes neste sentido enuncia que "As paixões que fazem
os homens tender para a paz são o medo da morte, o desejo daquelas coisas
que são necessárias para uma vida confortável, e a esperança de consegui-las
através do trabalho. E a razão sugere adequadas normas de paz, em torno das
quais os homens podem chegar a acordo. Essas normas são aquelas a que por
outro lado se chama leis da natureza..."[7]
Isto é: a lei é o poder que garante o fim do estado de guerra, é a lei que faz
findar o estado em que as paixões e os medos são a tônica que dirige o convívio
social. É instituída uma nova racionalidade - fundada no poder - que faz com que
seja cessado o estado de guerra e seja possibilitada a paz.
O grande filósofo Hegel em sua "História da Filosofia" [15] assinala este ponto de
ruptura com grande precisão: "com Descartes entramos, com rigor, em uma
filosofia própria e independente que sabe que procede substantivamente da
razão e que a consciência de si é um momento essencial da verdade. (...) Com
efeito, com Descartes começa verdadeiramente a cultura dos tempos modernos,
o pensamento da moderna filosofia (...). Neste novo período, o princípio geral
que regula e governa tudo no mundo é o pensamento que parte de si próprio.
Este pensamento, que é para si, essa cúpula mais pura da interioridade se
afirma e se fortifica como tal, relegando para o segundo plano e rechaçando
como ilegítima a exterioridade morta da autoridade. Somente o pensamento
livre que se abriga em mim pode reconhecer e corroborar, como tribunal
competente, o pensamento (...). A filosofia se converte, dessa maneira, numa
incumbência geral acerca da qual todo homem deve saber emitir juízo, pois todo
indivíduo é um ser pensante por natureza."
O passo dado por Descartes, como se pode notar, é decisivo em toda a cultura
ocidental e inaugura um novo modo de pensar que definirá o fundamento
filosófico dali em diante. Pode-se dizer de um modo geral que toda a reflexão
jusnaturalista e contratualista, de certo modo, parte da premissa que foi
elaborada (antes ou depois daquelas correntes) de modo teoricamente rigoroso
pelo filósofo. A filosofia da consciência, da razão, é o discurso da filosofia da
modernidade que tem o seu ponto de inflexão precisamente nessa concepção de
subjetividade, definida a partir destes fundamentos.
[1] Ver sobre Hobbes: RIBEIRO, Renato Janine. Ao leitor sem medo: Hobbes
escrevendo contra seu tempo. 2ª ed. Belo Horizonte: UFMG, 1999; MCPHERSON,
C. B.. A teoria política do individualismo possessivo: de Hobbes a Locke. Rio de
Janeiro: Paz e Terra, 1979 e também BOBBIO, Norberto. Thomas Hobbes. 4ª ed.
Rio de Janeiro: Campus, 1991. Boa parte da interpretação das idéias de Hobbes
aqui colocadas já havia elaborado em FONSECA, Ricardo Marcelo. Reflexões
sobre a guerra e a lei "in" Revista da Faculdade de Direito da UFPR. Porto Alegre,
síntese, vol. 33, ano 2000, págs. 109/119.
[5] HOBBES, Thomas. Do cidadão. 2ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 1998. Pág.
33.
[8] COSTA, Pietro. Civitas: storia della cittadinanza in Europa, Vol. 1, pág. 166.
[9] HABERMAS, Jürgen. Pensamento pós-metafísico. Rio de Janeiro: tempo
brasileiro, 1990. p. 43. LUDWIG, Celso. Para uma filosofia da libertação:
paradigmas da filosofia, filosofia da libertação e direito alternativo. Florianópolis:
conceito editorial, 2006, págs. 53 e segs.
[11] PESSANHA, José Américo Motta. "Vida e Obra" "in" DESCARTES, René. O
discurso do método (col. Os Pensadores). São Paulo: Nova Cultural, 1991, págs.
XIV/XV.
[13] DESCARTES, René. Os Pensadores, p. 167. Para uma potente leitura das
‘Meditações metafísicas', vide SCRIBANO, Emanuela. Guida alla lettura delle
meditazioni metafisiche di Descartes. 3ª Ed. Roma/Bari: Laterza, 2003.
[18] WIEACKER, Franz. História do direito privado moderno, págs. 338 e 353.
[19] MIAILLE, Michel. Introdução Crítica ao Direito. Trad. Ana Prata. 2ª ed.
Lisboa: editorial estampa, 1989, p. 255/258.
[23] GROTIUS, Hugo. O direito da guerra e da paz. Trad. Ciro Mioranza. Ijuí: Ed.
Unijuí, 2004, (col. ‘Clássicos do Direito Internacional', coord. Arno Dal Ri Junior),
págs. 55 e 64/65, respectivamente. Quem chama a atenção para estes
parágrafos dos prolegomena é Paolo Grossi, em sua recente e magnífica obra de
síntese: L'Europa del diritto. Roma/Bari: Laterza, 2007 (col. ‘Fare l'Europa',
diretta da Jacques Le Goff), págs. 99 e 100.
[25] Sobre o tema vide o magistral texto de CAPPELLINI, Paolo. Status accipitur
tripliciter: postilla breve per um'anamnesi di ‘capacità giuridica' e ‘sistema del
diritto romano attuale' in" VVAA, Studi in memoria di Mario Viora. Biblioteca della
rivista di storia del diritto italiano, n. 30, Roma, 1990, págs. 73/148.
[26] COSTA, Pietro. Civitas: storia della cittadinanza in Europa, Vol. 1, pág. 160.