Você está na página 1de 8

HEGEL E SUA RELAÇÃO COM O CONSERVADORISMO

HEGEL AND HIS RELATION WITH CONSERVATISM

Pablo Fernando Campos Pimentel1

Resumo

Este artigo apresentará, mesmo que de forma preliminar, uma conexão bastante singular,
entretanto, um tanto quanto evidente, entre o pensamento de Hegel e a mentalidade
conservadora. O foco irá centrar-se no texto conservador clássico de Edmund Burke e alguns
princípios conservadores apresentados por Russel Kirk entrando em consonância com a
explicação dialética de Hegel e elementos de sua Filosofia do Direito.

Palavras-chave: Hegel. Dialética. Direito. Conservadorismo. Burke. Kirk.

Abstract

This article will present, even if in a preliminary way, a very singular connection, however,
somewhat evident, between Hegel's thought and the conservative mentality. The focus will be
on Edmund Burke's classic conservative text and some conservative principles presented by
Russel Kirk coming in line with Hegel's dialectical explanation and elements of his
Philosophy of Right.

Keywords: Hegel. Dialectic. Right. Conservatism. Burke. Kirk.

INTRODUÇÃO

O presente artigo buscará apresentar elementos na explicação da dialética de Hegel e


de sua Filosofia do Direito que, quando confrontados com textos importantes da tradição
conservadora, como por exemplo, as Reflexões sobre a Revolução na França de Edmund
Burke (1729 – 1797) e alguns princípios conservadores dos dez levantados por Russel Kirk
(1918 – 1994) em sua obra Política da Prudência, nos ajudarão a fazer uma conexão bastante
razoável entre o pensamento de Hegel e o conservadorismo político.
Importa aqui, porém, delinear o que permeia um pensamento ou mentalidade
conservadores, para que, contrariamente ao que se costuma entender por conservador ou
conservadorismo, seja, de uma vez por todas, do ponto de vista honesto intelectualmente,
superado, a saber, a concepção de que ser conservador é o mesmo que ser retrógrado e
apegado ao passado, independentemente de ser um passado bom ou ruim.

1
Doutorando do Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Escola de Humanidades da PUCRS.
pablo_winchester@hotmail.com.
O pensamento conservador visa a manutenção da ordem social, buscando lenta e
gradualmente corrigir aquilo que ainda se apresenta e se constata injusto ou passível de
aprimoramento. O indivíduo conservador prefere conviver com uma desigualdade natural do
que com um igualitarismo forçado, amplamente tentado por regimes influenciados por
pensadores revolucionários. A mentalidade conservadora tem por característica fundamental
incentivar e respeitar as tradições que mantêm os laços entre a comunidade, fortes.
Conforme Oakeshott (2016, p.137):

Ser conservador é, pois, preferir o familiar ao estranho, preferir o que já foi tentado a
experimentar, o fato ao mistério, o concreto ao possível, o limitado ao infinito, o que
está perto ao distante, o suficiente ao abundante, o conveniente ao perfeito, a risada
momentânea à felicidade eterna.

Portanto, é correto afirmar que o pensamento conservador procura, não a resignação


com a situação tal qual se apresenta, mas, tão somente, a aceitação daquilo que se tem
provado positivo em detrimento do desconhecido que pode ser desastroso ao ser tentado
imprudentemente.
Assim, pretendemos demonstrar de forma satisfatória elementos contidos no
pensamento de Hegel, que nos leva a afirmar que o sistema hegeliano por meio de sua
dialética e o que este apresenta em sua obra Filosofia do Direito, possui características claras
da mentalidade conservadora. Parece ser o caso, muitos concordam que é possível fazer uma
leitura da obra de Hegel, principalmente de sua Fenomenologia do Espírito e dela extrair, de
forma clara e objetiva, conceitos e afirmações que levam a compreender que o mesmo pode
ser lido a partir de um viés conservador.
É mister notar que a dialética ou, o movimento dialético foi utilizado, por exemplo,
posteriormente no pensamento de Marx. No entanto, este se utiliza do movimento dialético
para explicar o desdobramento da história no que tange aos processos humanos materiais em
relação ao trabalho e a economia.
Porém, para compreender a dialética e o seu movimento em loco, segundo HEGEL
(1992, p.22):

O botão desaparece no desabrochar da flor, e poderia dizer-se que a flor o refuta; do


mesmo modo que o fruto faz a flor parecer um falso ser-aí da planta, pondo-se como
sua verdade em lugar da flor: essas formas não só se distinguem, mas também se
repelem como incompatíveis entre si. Porém, ao mesmo tempo, sua natureza fluida
faz delas momentos da unidade orgânica, na qual, longe de se contradizerem, todos
são igualmente necessários. E essa igual necessidade que constitui unicamente a
vida do todo.

É bastante evidente a passagem entre uma etapa e outra, no movimento dialético


apresentado por Hegel, na passagem acima. A superação de uma etapa não significa
necessariamente a aniquilação completa e irrestrita da anterior, mas sim, cada etapa é um
momento preciso e necessário no todo do movimento. A flor está contida em potência no
botão, mas ainda não é flor, o fruto está contido na flor em potência também. É crucial
perceber que as etapas do processo dialético, também estão contidas em potência umas nas
outras. Desse modo, o todo orgânico do processo possui uma interdependência entre os
incompatíveis. Sendo assim, pode-se dizer que aquilo que é superado conserva algo, bem
como o contrário é correto, a saber, o conservar pressupõe o superar algo em certa medida.
Pois, só se pode falar em conservar ou guardar se, em algum sentido, superou-se alguma
coisa.
Segundo Branco (2016, p. 122): “[...]o pensamento de Hegel é não somente
progressista, mas também conservador, de que a ideia de superação, em Hegel, requer a ideia
de preservação e de que, para se atingir a liberdade, tem-se que ter passado pelo trabalho e
pela servidão.” Aqui, o autor no artigo em referência faz alusão à famosa passagem “senhor e
escravo”, encontrada na primeira parte da Fenomenologia do Espírito, de Hegel.
Edmund Burke, em Reflexões sobre a Revolução na França de 1790, segundo muitos
intelectuais, fundou o Conservadorismo Moderno. Essa obra criticou fortemente a Revolução
Francesa que, segundo o mesmo, anteviu seu desfecho, aludindo ao banho de sangue que a
França desse período viveu, fazendo referência aqui ao conhecido período do terror.
É importante notar que apesar de Burke não pertencer ao ilustre grupo dos clássicos
contratualistas como Hobbes, Locke e Rousseau, há nesta obra uma clara definição de
contrato.
Por isso, com respeito ao contrato entre Estado e Sociedade Civil, segundo Burke
(2014, p. 115): “A sociedade é, certamente, um contrato. [...] Como os fins dessa associação
não podem ser obtidos em muitas gerações, torna-se uma parceria não só entre os vivos, mas
também entre os mortos e os que hão de nascer”. É claramente possível neste excerto,
perceber o movimento dialético descrito por Hegel, em ação, a saber, essa “associação”, que é
a sociedade mediada pelo Estado, é apresentada por Burke em três momentos distintos –
presente, passado e futuro.
Nessa parceria entre vivos, mortos e aqueles que ainda virão a nascer apresenta-se um
contrato. Os vivos são a superação dos mortos que já passaram, mas deixaram uma herança
aos vivos e, aqueles que ainda virão a nascer serão a superação dos vivos, que herdarão um
contrato que também foi herdado, no entanto, já superado em parte pela geração anterior.
Parece que o primeiro aspecto a ser ressaltado é a importância dada por Burke ao
contrato chamado Estado. O contrato social para este, goza de elevado prestigio, não deve ser
considerado como um contrato de menor valor ou de espécie ordinária.
No entanto, o trecho que nos concerne é o final, em que é afirmado que os fins da
associação denominada Estado só podem ser obtidos através das gerações, daí Burke afirmar
aquilo que ficou conhecido de sua percepção como uma comunidade de almas. Portanto, na
gênese do pensamento Conservador, Burke, apresenta-nos um movimento dialético-temporal,
no qual o Estado só pode cumprir seu fim quando os vivos observam e respeitam aquilo que
foi herdado, conservando aquilo que há de bom, fazendo melhorias lentas e graduais no que se
demonstra ainda defeituoso. Assim, ao prestar zelo à herança dos antepassados, lega àqueles
que ainda não nasceram as melhores instituições e valores na boa condução da vida humana.
Então, em Burke, a dialética assume um movimento temporal em que o herdado deve ser
conservado no seu melhor e aprimorado em suas arestas. Essa dialética conservadora em
Burke não leva em consideração apenas aqueles que efetivamente estão vivos e participando
de uma comunidade política, mas as instituições herdadas e constituídas ao longo do tempo e
o respeito com aqueles que nos sucederão no tempo e no espaço. Burke apela recorrentemente
à cautela. Repetidas vezes afirma que uma sociedade orientada ao progresso deve ser capaz de
se conservar naquilo que há de bom e respeitável 2. Nesse sentido, considera-se o
conservadorismo como um tipo de filosofia sobre o vínculo afetivo, pois nos sentimos
sentimentalmente conectados àquilo que amamos e desejamos proteger contra a decadência
(SCRUTON, 2016). É nessa direção que, segundo Pierre Hassner (2013, p.656):

O Estado [...] É a fonte da arte, da filosofia e da religião, que, de certa forma,


transcende o Estado. Quando Hegel fala do Estado como divino, está apenas
insistindo que seja respeitado, ao demonstrar que é fundamentalmente informado
pela racionalidade que, apesar de seus aparentes defeitos e contingência, é o que
deveria ser.

Esta passagem é crucial para perceber o zelo que, tanto Burke quanto Hegel
despendem ao Estado. É no Estado e no respeito a este que indivíduo e comunidade
encontram seus fins mais nobres. Este ponto reafirma aquilo que conservadores creem com
certa força, há uma certa racionalidade evolutiva na instituição Estado, que transmite a
indivíduos e comunidade a sensação de segurança e pertença, seja em seus aspectos culturais,

2
Cf. BURKE, Edmund. Reflexões sobre a Revolução na França. Tradução, apresentação e notas de José Miguel
Nanni Soares. São Paulo: EDIPRO, 2014, p. 44. “Um Estado sem meios para mudar, não tem meios para se
conservar.”. Essa passagem nos ajuda a escapar da velha e repetida crítica de que o pensamento conservador é
antimudança ou contra toda e qualquer inovação. O pensamento ou mentalidade conservadores é contra a
mudança pela mudança, ou a inovação pela inovação.
filosóficos ou religiosos. Esta racionalidade evolutiva compreendida no Estado é alcançada no
pensamento conservador através de muito tempo, tentativa e erro, consagração pelo uso etc.
Isto é o que, no pensamento de Hegel, podemos ligar ao movimento dialético do conservar-
superando à mentalidade conservadora.
Alexis De Tocqueville (1805 – 1859), um dos maiores burkeanos, desfere um golpe
semelhante à França revolucionária, reforçando o pensamento de Burke e Hegel com relação
ao respeito e deferência que devem ser dados ao Estado. Conforme Tocqueville (1955, p.
147):

Our revolutionaries had the same fondness for broad generalisations, cut-and-dried
legislative systems, and a pedantic symmetry; the same contempt for hard facts; the
same taste for reshaping institutions on novel, ingenious, original lines…[for
reconstructing] the entire system instead of trying to rectify its faulty parts. 3

Apesar de ressaltar corretamente as características que dominam boa parte daqueles


que desejam refundar o Estado com um pensamento revolucionário, Tocqueville aponta para
algo muito semelhante ao que fora dito por Burke e Hegel, a saber, observar cuidadosamente
a racionalidade para a qual o Estado aponta e, acima de tudo, respeitar este buscando corrigir
suas partes defeituosas.
Mais recentemente, ao adentrarmos os princípios conservadores enumerados por
Russel Kirk (1918 – 1994) em A Política da Prudência, pelo menos dois parecem corroborar
a visão dialética processual no pensamento conservador: “o conservador adere aos costumes,
à convenção e à continuidade” 4 (2º princípio) e “o conservador razoável entende que a
permanência e a mudança devem ser reconhecidas e reconciliadas em uma sociedade
vigorosa”5, (10º princípio).
Os dois princípios acima citados deixam muito clara a mentalidade conservadora, a
saber, de que o pensamento conservador não busca manter irrestritamente toda e qualquer
tradição ou costume ao longo do tempo. E, ainda, de que o progresso não integre o
pensamento conservador, pelo contrário, o verdadeiro progresso deve ser conciliado com a
permanência também, aqui o velho dito hegeliano do “superar conservando” ou “conservar
3
Tradução livre da citação: “Nossos revolucionários tinham o mesmo gosto por generalizações amplas, sistemas
legislativos cortados e secos e uma simetria pedante; o mesmo desprezo por fatos concretos; o mesmo gosto por
reformular as instituições em linhas inovadoras, engenhosas e originais ... [por reconstruir] todo o sistema, em
vez de tentar corrigir suas partes defeituosas.”
4
Cf. KIRK, Russel. A Política da Prudência. Tradução de Gustavo Santos e Márcia Xavier de Brito;
Apresentação à edição brasileira de Alex Catharino; introdução de Mark C. Henrie; estudos anexos de Bruce
Frohnen, Gerhart Niemeyer e Edward E. Ericson Jr. São Paulo: É Realizações, 2013, p. 106.
5
Cf. KIRK, Russel. A Política da Prudência. Tradução de Gustavo Santos e Márcia Xavier de Brito;
Apresentação à edição brasileira de Alex Catharino; introdução de Mark C. Henrie; estudos anexos de Bruce
Frohnen, Gerhart Niemeyer e Edward E. Ericson Jr. São Paulo: É Realizações, 2013, p. 112.
superando”. Por isso, o pensamento conservador não deve, nesse sentido, jamais ser
compreendido como pensamento do passado, retrógrado e atrasado, mas sim, reflexivo,
cauteloso e prudente. Lento, gradual-processual e imperfectível. É o reconhecimento da
imperfectibilidade humana que deve conscientizar o homem que o progresso deve ser
relacionado com um processo de tentativa e erro, responsável e cauto.
Para que algo mude, algo precisa ser mantido, conservado, preservado. Para que algo
seja conservado, mantido ou preservado é preciso mudar, a saber, nos aspectos evolutivos ou
no que concerne ao aperfeiçoamento moral e político dos indivíduos e das sociedades
humanas, que, desde os primórdios nos fazem saber de seu desenvolvimento, tanto no que
tange à moralidade quanto à techne.

CONCLUSÃO

Feitas as devidas exposições, desde a mais preliminar colocação da dialética de Hegel,


o contratualismo Burkiano e a menção aos dois princípios conservadores desenvolvidos por
Kirk, é possível notar que há na dialética de Hegel e em sua visão do Estado um tom ou
características bastante claras de representantes importantes do pensamento Conservador.
Seja do mais imediato ao mais mediado, seja do mais indeterminado ao absoluto, seja
no campo das possibilidades do que podemos conhecer ou no campo do agir ou fazer ético e
político, parece inegável que a definição de contrato em Burke e a exposição de dois dos dez
princípios conservadores em Kirk, pressupõem um movimento dialético.
Portanto, o pensamento conservador ou mentalidade conservadora pressupõe um
movimento, a saber, um movimento que respeite as conquistas históricas da humanidade,
tendo em vista que um indivíduo pode equivocar-se, mas há sabedoria na espécie humana,
sendo assim, considerada capaz de legar à posteridade instituições e modos de vida úteis à sua
preservação e aprimoramento sensato.
O contrato descrito por Burke segue a linha dialética temporal ao estabelecer um
contrato de almas, ou seja, um contrato em que os vivos preservam a herança dos
antepassados, buscando legá-la àqueles que ainda farão parte da sociedade um dia.
Nesse ínterim, dos dez princípios aventados por Kirk, dois se mostram profundamente
alinhados ao movimento dialético, pois, aderir aos costumes, convenção e continuidade e,
procurar conciliar permanência e mudança significa observar com cuidado o movimento
ocorrido a nível ético, político e social.
Parece, ao menos de forma singela que, - o pensamento de Hegel alinhando-se ao
pensamento conservador – ao apostarem em um olhar cuidadoso ao movimento que deve ser
feito em termos de Estado e sociedade civil, propõem um certo tipo ou modelo de pacto, o
qual poderíamos num primeiro momento chamar de pacto de razoabilidade.

REFERÊNCIAS

BRANCO, Daniel Artur Emidio. Conservadorismo em Hegel: servidão e liberdade na


primeira parte da Fenomenologia do Espírito. In: REVISTA REFLEXÕES. Fortaleza-CE.
Ano 5, Nº9, Julho-Dezembro, 2016, p. 109-124.

BURKE, Edmund. Reflexões sobre a Revolução na França. Tradução, apresentação e notas


de José Miguel Nanni Soares. São Paulo: EDIPRO, 2014, 255p.

HASSNER, Pierre. George W. F. Hegel. In: CROPSEY, Joseph & STRAUS, Leo (Org.),
História da Filosofia Política. Tradução de Heloisa Gonçalves Barbosa. Rio de Janeiro:
Forense, 2013, 875p.

HEGEL, G.W.F. Fenomenologia do Espírito. Tradução de Paulo Meneses. Petrópolis:


VOZES, 1992, 2 v. 493p.

OAKESHOTT, Michael. Conservadorismo. Tradução de André Bezamat. Belo Horizonte:


Editora Âyiné, 2016, 194p.

KIRK, Russell. A Política da Prudência. Tradução de Gustavo Santos e Márcia Xavier de


Brito; Apresentação à edição brasileira de Alex Catharino; introdução de Mark C. Henrie;
estudos anexos de Bruce Frohnen, Gerhart Niemeyer e Edward E. Ericson Jr. São Paulo: É
Realizações, 2013, 495p.

SCRUTON, Roger. Como ser um conservador. Tradução de Bruno Garshagen; revisão


técnica de Márcia Xavier de Brito. São Paulo: É Realizações, 2016, 292p.
TOCQUEVILLE, Alexis de. The Old Regime and the French Revolution. New York:
Doubleday, 1955, 300p.

Você também pode gostar