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Resumo: Nas últimas décadas se consolidou dentro do marxismo crítico uma forma de
encarar a dialética como instrumento específico para a análise da forma mercadoria e de
seus desdobramentos, como dinheiro e capital. Segundo diversos autores tal
especificidade se deve à “abstração real” que Marx descobriu em sua análise do valor,
algo que seria totalmente diferente de outras abstrações, que se supõe, tem seu lugar
apenas no pensamento subjetivo. A proposta desse artigo é, a partir do resgate desse
debate marxista, recolocar a questão do ponto de vista hegeliano. O que se apresenta
então é que não apenas a contradição perpassa tudo, mas também que a existência de
um abstrato efetivo, que domina a realidade, constitui o fundamento não apenas de
formas sociais, mas também dos seres vivos em geral.
Palavras chave: Hegel, Marx, Contradição, Dialética, Abstração Real, Vida, Lógica.
***
4 Este que se traduz a partir do ‘anders’ (diferente), do ‘Anderssein’ (um ente diferente, a
alteridade) e de outras palavras com essa raiz, provém diretamente da mesma base
significativa para expressar diferença ou identidade. ‘Ganz anders’, por exemplo,
significa ‘totalmente diferente’, o contrário de ‘egal’, ‘igual’ ou a ‘mesma coisa’, o que não
faz diferença. Quando lemos “outro” nas traduções para o português devemos nos
lembrar que na língua alemã o significante diferença (em pura oposição lógica com a
identidade, assim também imediatamente colocada) está junto como algo de
fundamental de maneira muito mais perceptível que na língua portuguesa. É uma das
determinações lógicas mais essenciais, aquela que, em oposição ao princípio da
identidade com o qual forma uma unidade, gera a base para compreensão de todas as
coisas.
outro", porque ela é mesmo "para si", ou seja, ela vive como sendo aquela pessoa
determinada, mas tudo nela é de um outro (e aqui leia-se, daquilo que é diferente
dela), desde a língua que fala até os átomos que compõe o seu corpo, ela absorveu
do exterior por meio da educação ou da alimentação. A contradição esta nela não
apenas no nível social, esta já em sua constituição básica como ser vivo. Se
aplicamos o principio da identidade clássico, pensado com o da "não
contradição", só dizemos que a pessoa é igual a si mesma, e daí nada se
movimenta, nada se transforma, e tudo aparece relacionado só de fora, como
caixinhas com setas num esquema de power point.
Tomar a contradição nessa universalidade demanda, no entanto, uma
atenção muito especial e uma reinterpretação dos saberes. Os muros do
pensamento representativo não caem sem grande esforço. Por isso é, sem dúvida,
mais fácil entender um objeto específico do pensamento ou da vida prática que
traga em si uma lógica diferente, como o capital na análise de Marx, do que aceitar
que essa lógica, que apenas foi percebida primeiramente no objeto específico, é
algo que abarca tudo. A análise da mercadoria e do capital, como veremos, atende
à essa forma da dialética de Hegel, muitas vezes fazendo o velho Marx se opor ao
que escreveu quando mais jovem. Traremos mais alguns exemplos do
funcionamento dessa lógica em objetos específicos conforme o tratamento dado
por outros grandes pensadores. Apontando assim a dialética nesses “objetos” viso
tornar mais clara a implicação geral da tese hegeliana, uma forma de pensar que,
com mais de dois séculos, ainda foi muito pouco compreendida. Ver-se-á, no
entanto, que mesmo com a pouca compreensão que se tem de Hegel, aquilo que
sua dialética tem por fundamental já se realizou e não precisou esperar ninguém.
Essa realização na maioria das vezes se deu não como uma compreensão filosófica
geral derivada da teoria do suábio, como é o caso na análise da mercadoria por
Marx, mas brotou, além de na própria efetividade onde ela já fazia desde sempre
sua morada, também no saber científico como “soluções” diversas para impasses
teóricos específicos de campos tão distintos como economia, linguística, física,
matemática, teoria da informação etc.
1983, p.231.
13 “Na circulação D-M-D (...) mercadoria e dinheiro funcionam apenas como modos
18 Ibid, p. 72
19 REICHELT, H., Sobre a Estrutura Lógica do Conceito de Capital em Karl Marx.
Campinas: Ed. Unicamp. 2013.
20 “Em Hegel, os homens são marionetes de uma consciência sobreposta a eles. Para
critical theory. Nova Iorque e Cambridge: Cambridge University Press, 1993, p.80-81.
Tradução nossa do inglês.
Estas semelhanças por parte desses grandes marxistas citados não
significam uma identidade em outros aspectos. Importa aqui apenas realçar
pontos comuns - em especial a noção de que o Espírito hegeliano é o Capital
mistificado, e de que a dialética é um instrumento para a análise específica da
forma mercadoria, como ainda apresentaremos - entre alguns dos mais elevados
marxismos críticos no que tange a interpretação do relacionamento entre as
teorias de Marx e Hegel. A fórmula de Postone acima parece ser bastante geral e
se constitui em ler Hegel como se sua teoria atingisse coisas acertadas da
realidade, mas isso apenas por generalizar a lógica mercantil que ele
(supostamente) de maneira inconsciente reproduzia. Assim Hegel pode ser
representado como necessário ao desenvolvimento da análise do valor, mas ao
mesmo tempo se permitir manter uma distância “saudável” de sua perturbadora
teoria.
22 Em seu texto Advertência aos Leitores do Livro I d’O Capital, diz Althusser: “O
conhecimento dos três outros livros permite resolver muitas das grandes dificuldades
teóricas do Livro I, sobretudo as que se encontram na terrível seção I (“Mercadoria e
dinheiro”), em torno da famosa teoria do “valor-trabalho”. Preso a uma concepção
hegeliana da ciência (para Hegel, só há ciência filosófica, e por isso toda verdadeira
ciência deve fundar seu próprio começo), Marx pensava que em qualquer ciência “todo
começo é difícil”. De fato, a seção I do Livro I apresenta uma ordem de exposição cuja
dificuldade se deve em grande medida a esse preconceito hegeliano. Além disso, Marx
redigiu esse começo uma dezena de vezes, antes de lhe dar forma “definitiva” – como se
lutasse contra uma dificuldade que não era apenas de simples exposição –, e não sem
razão.” (p. 74). Páginas à frente ele diz sobre “uma segunda ordem de dificuldades que
constituem um obstáculo real à leitura do Livro I e dizem respeito não mais ao fato de
que O capital compreende quatro livros, mas aos resquícios, na linguagem e mesmo no
pensamento de Marx, da influência do pensamento de Hegel”. (p. 77). Para então,
próximo ao fim do artigo, arrematar criticando os marxistas que focam sua análise na
mercadoria “Último vestígio da influência hegeliana, e dessa vez flagrante e
extremamente prejudicial (já que todos os teóricos da “reificação” e da “alienação”
encontraram nele com o que “fundar” suas interpretações idealistas do pensamento de
Marx): a teoria do fetichismo (“O caráter fetichista da mercadoria e seu segredo”, quarto
item do capítulo 1 da seção I)” ALTHUSSER, Louis. Advertência aos Leitores do Livro I
d’O Capital in Marx, Karl, O Capital, Boitempo, p. 79.
operação, se colocam numa posição contraditória, de considerar Hegel um
ingênuo idealista e ao mesmo tempo o maior gênio da filosofia antes de Marx.
dialética enquanto método, revelando uma certa oscilação entre expressões que indicam
antes o caráter reconstrutivo da dialética como procedimento 'subjetivo', e expressões
que traem a sua proveniência especulativa como forma de autoexposição do conteúdo: a
dialética é um “modo de apropriação do concreto pelo pensamento” (G. 22), um “método
de elaboração”(45) que “reproduz” (G. 22) o concreto que as ciências empíricas
analisaram e prepararam para a exposição, que então “transpõe”, “traduz”, “expressa”
idealmente o movimento efetivo do conteúdo e “espelha idealmente a vida do material”
(K, I, 27).” MÜLLER, M. L., Exposição e Método Dialético em "O Capital", in Seaf, nº 2,
Belo Horizonte, 1982, sem paginação (s/p).
27Ibid., s/p.
28 “Marx marca a sua diferença fundamental face a Hegel distinguindo a exposição
29 Ibid., s/p.
30 Ibid., s/p.
31 “no instante em que se aceita o caminho do abstrato ao concreto surge o perigo da
ilusão hegeliana: na medida em que este processo de síntese aparece como resultado e
não como inicio na medida em que se renuncia ao ponto de partida da intuição e da
representação, somos levados a imaginar, como de fato fez Hegel o real resultando do
pensamento que se volta sobre si mesmo e se determina e se particulariza. Contra tal
abstração Marx contrapõe o caráter propriamente improdutivo do pensamento teórico
que apenas se apropria e reproduz (termo que Althusser deixa de comentar) o concreto
numa forma espiritual: “de modo nenhum ele é o processo de nascimento
(Entstehungsprocess) do próprio concreto”. Dai a limitação do método abstrato: em
oposição a Hegel ele não é senão a maneira do pensamento se apropriar do concreto”.
GIANNOTTI, J. A., Contra Althusser. Op. Cit., p.68-69.
32 Ibid., p.70.
desdobramento da ideia como núcleo da realidade fosse o acerto “metodológico”
de Marx? Giannotti responde que:
33 Ibid., p.70.
34 Ibid., p.70.
35 Ibid., p.70.
36 JAPPE, A., As Aventuras da Mercadoria: Para uma nova crítica do valor. Lisboa:
38 “A objetividade do valor não é nem algo de puramente pensado, nem uma coisa
fisicamente presente; não é possível apreender essa “quimera” senão por intermédio de
um instrumento muito especial, a saber, a lógica dialética. Na socialização por via da
forma mercadoria, a realidade toma formas que os sentidos humanos já não podem
captar e que são completamente absurdas do ponto de vista do “senso comum”. Hegel
faz deste mundo paradoxal uma constante do ser humano e natural. Foi esse o seu erro;
Hegel considera inclusivamente que esta realidade “dialética” é uma realidade superior,
e constrói sobre ela a totalidade do seu sistema. Esse facto, porém, não altera em nada a
justeza do seu ponto de partida. Mesmo sendo verdade que em Hegel estava desde o
inicio presente uma certa tendência mística tal apenas mostra que a mística hegeliana do
conceito esta mais apta para compreender a mística real de uma sociedade em que “4 =
5””. Ibid., p.179.
39 FULDA, H. F., These zur Dialektik als Darstellungsmethode (im „Kapital" von Marx),
41 Ibid., p.215-223.
significa o fim das formas e abstrações sociais, o fim de qualquer
institucionalidade. Significa criar novas formas institucionais que atendam
nossos anseios a partir do que já está aí.
47 Aqui vale apontar que essa noção de projeção seria vista por Hegel como um recair no
representativo, como uma forma em que a sofistaria do entendimento busca salvar o
princípio da identidade abstrata. Assim, por exemplo, sem o conceito cristão de Deus,
não se desenvolveria a europa cristã como se desenvolveu. O entendimento, no entanto,
isola a noção de Deus, retira dela toda a efetividade que só se desenvolveu em conjunto
com ela (seja nas relações sociais, políticas, linguagem, arquitetura, arte etc) e assim
rebaixa Deus a um princípio unilateral do qual se retirou todo o conteúdo efetivo. Um
mero pensamento, tão pobre e inefetivo, pode então ser facilmente descartado como
mera projeção, como algo secundário ou meramente derivado. Sem a religião cristã, no
entanto, não só as maravilhas arquitetônicas e artísticas, bem como as fronteiras e
práticas políticas não teriam se desenvolvido dessa maneira, mas mesmo o princípio
legal e lógico de igualdade formal humana, base do capitalismo, não existiria. Aqui, como
se vê por todo lado, a própria efetividade depende da estrutura de crença. A Ideologia
não é só um derivado, mas algo que é diretamente constituinte da realidade, como o Marx
mais velho demonstra em O Capital.
48 MARX, Karl & ENGELS, Friedrich. A Ideologia Alemã. Op. Cit, p. 93.
vemos a mesma questão, sobre diferentes formas, ser excluída de diferentes
passagens da Ideologia Alemã, como numa nota do fragmento excluído de
“Feuerbach e História”, na qual se lê:
49 Ibid., p. 529.
50 MARX, Karl & ENGELS, Friedrich. A Ideologia Alemã. Op. Cit, p. 38.
esse querer” não deveria ser levado em conta que esta Universalidade detém um
poder, conduzindo a realidade por sobre os homens determinados? Este tipo de
questionamento deveria pesar sobre Marx, que tinha de dar conta deste poder
social por cima dos indivíduos, sem, no entanto, perder de vista sua base
materialista que parte do “indivíduo real”, concreto. Assim ele dá um passo atrás
em sua crítica mais direta a Hegel e se foca em seus discípulos. Posteriormente,
como vimos no tópico anterior, Marx desenvolverá esse tema do universal como
sendo o próprio capital que se comporta como uma forma de sujeito substância,
ou de maneira mais determinada, em suas palavras, como um sujeito automático.
Marx claramente ainda não havia dado conta da totalidade da teoria de seu
antecessor. Leva de maneira ainda mais clara a essa conclusão uma das anotações
que compõe a edição brasileira d’A Ideologia Alemã e que estava no mesmo
caderno onde foram redigidas as famosas Teses ad Feuerbach, num pequeno
esquema intitulado Sobre a Fenomenologia do Espírito de Hegel:
A construção hegeliana da Fenomenologia
1. A autoconsciência em vez do homem. Sujeito – objeto.
2. As diferenças das coisas são irrelevantes porque a substância é
apreendida como autodiferenciação ou porque a
autodiferenciação, o diferenciar, a atividade do entendimento é
apreendida como essencial. É por isso que Hegel, no interior da
especulação, fornece distinções reais, distinções que capturam as
coisas.
3. A suprassunção [aufhebung] da alienação é identificada com a
suprassunção da objetividade [Gegenständlichkeit} (um aspecto
especialmente desenvolvido por Feuerbach)
4. A tua suprassunção do objeto representado, do objeto
como objeto da consciência, é identificada com a
suprassunção real, objetiva, com a ação [aktion]
sensível, a prática [Praxis], com a atividade real que é
diferente do pensar (ainda a desenvolver). (Grifo meu)51
Esse esquema aparece como uma espécie de confissão de questões não
resolvidas em escritos anteriores como na crítica dos Manuscritos Econômicos
Filosóficos, e assim mais como um tipo de elogio do que uma crítica a Hegel.
Declara que este “no interior da especulação, fornece distinções reais, distinções
que capturam as coisas” o que mostra a efetividade da teoria hegeliana. No ponto
4, de maneira mais relevante, afirma expressamente ainda não ter desenvolvido
teoricamente a diferença entre a suprassunção do objeto representado e a própria
51 MARX, Karl & ENGELS, Friedrich. A Ideologia Alemã. Op. Cit., p. 541.
suprassunção prática, ou seja, que não resolveu o ponto central do modo como
Hegel encara o conceito.
O argumento hegeliano da análise da vida, ainda a ser apresentado,
desmonta toda essa crítica a Hegel ao justamente penetrar por esse ponto que
Marx confessa ainda não ter desenvolvido. Não é que a atividade real seja
identificada com o objeto representado ao mesmo tempo que se toma ele como
diferente do pensar, mas que, para se representar ao sabor marxista o argumento
hegeliano, os seres vivos e tudo que deles deriva em termos de organização tem
que serem vistos não como uma coisa, algo meramente “real”, mas sim como uma
abstração real. Assim o metafísico (chame-se de abstrato, suprassensível,
conceitual etc) não aparece como algo adicionado de fora, como um mero
pensamento inefetivo, mas como propriedade efetiva presente antes de qualquer
análise lá identifica-la. No próximo ponto tentarei tornar clara essa afirmação.
Em O Capital e também nos Grundrisse, após entender o capital como
abstração real num sentido próximo ao hegeliano - como sendo o Universal que
em seu movimento metafísico forma não apenas as consciências individuais, mas
também o mundo material - Marx parece, no entanto, manter intocada sua crítica
geral sobre a teoria hegeliana e a relação entre materialismo e idealismo face a
outros “objetos”. É como se, mesmo após adotar a forma dialética de
compreensão para esse “objeto” específico que é a mercadoria e o capital, se
mantivesse no nível anterior, o empirismo da Ideologia Alemã, para representar
o restante das coisas. Mesmo percebendo a abstração como real na análise dessa
forma específica, Marx (como apontam os comentadores) não parece disposto a
radicalizar essa nova compreensão de modo a abarcar nela outros fenômenos.
Como ele diz na introdução de sua grande obra:
53Pois como diz Marx> “A mistificação que a dialética sofre nas mãos de Hegel não
impede em absoluto que ele tenha sido o primeiro a expor, de modo amplo e consciente,
suas formas gerais de movimento. Nele, ela se encontra de cabeça para baixo. É preciso
desvirá-la, a fim de descobrir o cerne racional dentro do invólucro místico”. Ibid, p. 129.
Na Enciclopédia, Hegel afirma, de maneira a princípio misteriosa, que “a
ideia imediata é a vida. O conceito, como alma, é realizado em um corpo, de cuja
exterioridade essa alma é a universalidade imediata referindo-se a si” 54,
ao corpo material e, ao mesmo tempo, forma com ele uma unidade. De modo similar
explicou um tradutor do De Anima, de Aristóteles: “ψυχή. «Alma» é a versão tradicional,
embora A. [Aristóteles] tenha em vista uma realidade bastante diferente daquela que o
termo português denota. ψυχή designa o princípio vital, ou mesmo a vida”. Ibid., (nota
do tradutor 2). ARISTÓTELES. Sobre a Alma (De Anima). Obras completas Vol. III,
tomo I, tradução de Ana Maria Lóio. Lisboa: Ed. Centro de Filosofia da Universidade de
Lisboa, Imprensa Nacional (Casa da Moeda), 2010, p. 31
57 HEGEL, G. W. F. Ciência da Lógica. Vol. 3 – A doutrina do Conceito, Petrópolis: Vozes,
2018, p. 47.
Podemos hoje, diante do desenvolvimento científico do último século,
exemplificar o motivo para que Hegel chame a vida de conceito de maneira
simples, representativa, sem ter de penetrar no especulativo. Sabemos que um
microscópico óvulo fecundado, portador de uma informação como o DNA,
absorve alimentos, os processa e os ordena a partir de suas instruções, de modo
que esse componente abstrato, essa informação que é como o núcleo do ser vivo,
produz para si mesmo o próprio corpo físico do ser58.
58 “Em 1954, Wattson e Crick, que receberam o Prêmio Nobel oito anos depois,
estabeleceram que é uma sequência de sucessão de um número finito de bases ao longo
de uma hélice acoplada de fosfatos doces que constitui a instrução, código de informação,
ou seja, o idioma do programa ao qual a célula se conforma para sintetizar os materiais
protéicos das novas células. Desde então foi estabelecido, e o Prêmio Nobel de 1965
recompensou essa nova descoberta, que esta síntese é feita sob demanda, isto é, de
acordo com informações vindas do ambiente – ambiente celular, para ser claro. Então,
ao mudar a escala em que são estudados os fenômenos mais característicos da vida, os
da matéria estruturante e das funções reguladoras, incluindo a função estruturante, a
biologia contemporânea também mudou de linguagem. Ele deixou de usar a linguagem
e os conceitos de mecânica, física e química clássica, linguagem baseada em conceitos
mais ou menos diretamente formado em modelos geométricos. Ela agora usa a
linguagem da teoria da linguagem e a da teoria das comunicações. Mensagem,
informação, programa, código, instrução, decodificação, estes são os novos conceitos do
conhecimento da vida”. CANGUILHEM, Georges. Le Concept et la Vie. In: Revue
Philosophique de Louvain. Troisième série, tome 64, n° 82, 1966. Tradução livre do
francês, p. 218-219.
mínima do absoluto. Sua unidade é indivisível, ab-soluto, algo que não pode ser
solvido sem se perder: se decompusermos qualquer ser vivo teremos separados
os diferentes átomos da tabela periódica que ele contém, e, no entanto, não
teremos mais a vida, porque ela era só a unidade dessa dinâmica que reúne os
elementos que a compõe, ao mesmo tempo em que deles permanece abstraída. É
“absoluto” justamente porque essa unidade do organismo não se dissolve em suas
partes, mas antes permanece como uno indissolvível, uma estrutura que perpassa
todas as partes sem se confundir com nenhuma. O ser vivo não pode ser
representado como algo puramente material, antes deve ser entendido como uma
dinâmica, uma abstração ou negativo (em oposição à materialidade positiva), que
gera ou transforma o próprio mundo material, tanto produzindo seu corpo como,
por meio de seu agir, mudanças no mundo exterior.
faculdade desiderativa, por sua vez, não existe sem a imaginação; e toda a imaginação é
racional ou perceptiva. Desta última, com efeito, os outros animais também participam”.
ARISTÓTELES, De Anima., Op.Cit., p.129.
sensível que é o verdadeiro, mas sim essa abstração encarnada, que deseja e que
se impõe sobre o material.
E aqui devemos considerar que por mais rudimentar que seja esse desejo
animal ele não pode ser entendido como pura determinação, pois comporta
sempre algum nível de liberdade. Como o próprio Darwin afirma no capítulo
sobre o Instinto, de seu Origem das Espécies, “uma pequena dose de julgamento
ou razão, como Pierre Huber coloca, frequentemente entra em jogo, mesmo com
animais baixos na escala da natureza”62, e está presente mesmo no nível de
consciência de uma ameba63. Essa espécie de intencionalidade do conceito vivo é
que molda assim o mundo. É o suprassensível, chame-se de fome ou outro
“interesse” do animal, que o impulsiona a agir sobre as coisas materiais e
transformá-las, e esse já é o conceito em sua forma mínima anterior ao espírito,
produzindo para si sua própria realidade. Assim se percebe já quão
preconceituosa é a visão daqueles que veem em Hegel um determinista. Para ele
mesmo a natureza não pode ser vista com lentes de um puro determinismo, mas
como conceito está já como um universal aberto para acolher o indeterminado.
ameba de que falávamos há pouco. Em presença de uma substância que pode servir-lhe
de alimento, ela lança para fora de si filamentos capazes de capturar e englobar os corpos
estranhos. Esses pseudópodes são órgãos verdadeiros e, portanto, mecanismos; mas são
órgãos temporários, criados para essa circunstância e que, assim parece, já manifestam
um rudimento de escolha. Em resumo, de alto a baixo da vida animal vemos exercer-se,
embora de forma cada vez mais vaga à medida em que vamos descendo, a faculdade de
escolher, isto é, de responder a uma determinada excitação com movimentos menos ou
mais imprevistos”. BERGSON, Henri. A consciência e a vida. In: BERGSON, Henri. A
energia espiritual. São Paulo: Editora Martins Fontes, 2009, p. 09.
e diz ter sido esse seu “mérito infinito”64, que Kant parcialmente retomou65. De
modo muito similar às passagens de Hegel sobre a vida com as quais abrimos esse
tópico, diz Aristóteles que “a alma é a causa e o princípio do corpo que vive”66 e
que “a substância para todos os seres vivos, é viver, sendo a alma a sua causa e
princípio”67. O abstrato aqui domina o concreto. O estagirita desdobrou seu
argumento dizendo que o fim “é causa também enquanto aquilo em vista do qual:
tal como o entendimento age em vista de alguma coisa, a natureza age da mesma
maneira, e essa coisa é o seu fim”68. Ou seja, a finalidade ou teleologia deve
também ser compreendida como algo que se diz em relação às coisas fora do agir
utilitário humano. Essa finalidade interna, esse objetivo autorreferenciado da
manutenção do próprio vivente, é a forma primeira de aparição do que Hegel
chamou de para si. Como Aristóteles afirma “a alma é, nos animais, um fim desse
tipo, por natureza. É que todos os corpos naturais são instrumentos da alma –
tanto os dos animais como os das plantas –, de forma que existem tendo como
fim a alma”69. A vida assim existe como um fim em si mesmo em oposição ao
material de seus corpos, que aparecem como meio dessa finalidade.
64 No final da parte em que trata do conceito de conceito na Ciência da Lógica, Hegel diz
que: “É um mérito infinito de Aristóteles, mérito que tem de nos encher de suprema
admiração pela força desse espírito, ter empreendido primeiramente essa descrição. Mas
é necessário que se avance e que se conheça, em parte, a conexão sistemática, em parte,
o valor das formas” HEGEL, G. W. F. Ciência da Lógica. Vol. 3 – A doutrina do Conceito.
Op. Cit., p. 57.
65 “Com o conceito de finalidade interna, Kant ressuscitou a idéia em geral, e em
https://www.canafoundation.org/rewild-our-world/horses/trophic-cascade-in-
yellowstone-national-park/ Acesso em maio de 2018.
72 MCMAHON, William J; DAVIES, Neil S.Evolution of alluvial mudrock forced by early
Dissemos acima junto com Darwin e Bergson que o desejo animal, por
mais rudimentar que seja, não pode ser entendido como mero instinto, como
mera programação objetiva e completamente determinada, mas que em todo
mundo animal, mesmo numa ameba, há algum grau de liberdade de escolha. Esse
ponto é fundamental, entender que o indeterminado, a potência de fazer surgir o
novo, não é algo que surge apenas com o simbólico humano, mas que acompanha
a vida desde o início. Só assim o conhecimento, o que há de propriamente
humano, pôde surgir a partir da base animal, porque já estava lá como uma
potência ainda não realizada. Porque esse caráter indeterminado da vida, esse
suprassensível que organiza o corpo, é a fagulha divina, o anima, que na evolução
para o humano vai se desdobrar e se exteriorizar na forma do espírito, do
conhecimento:
Na famosa frase de Marx “eles não sabem disso, mas o fazem”79, não está
dado justamente que o que limita o humano é não perceber que sua situação ele
mesma gera só porque representa a situação como sendo gerada por um Outro
supostamente existente por si? Quando fala em “fetichismo da mercadoria”, Marx
não denuncia que essa dominação do capital se funda num fetiche que pressupõe
justamente que ele existiria por si, independentemente da ação dos humanos?
Hegel ao apontar que no nível do conceito finalmente se concebe que são os
sujeitos vivos que constituem a realidade, que essa esfera de mediação
A universalidade da contradição
81 Todas as três formas de chamar, entre outras possíveis, referem-se à mesma coisa.
Quem procurar compreender Hegel fazendo uma espécie de tipologia de seus conceitos,
procurando traduzir cada palavra como se sua significação se mostrasse em apartado,
terminará com um nominalismo vazio que só o afastará da compreensão do especulativo
e da dialética. Os problemas maiores que a teoria visa solucionar não são os de análise
isolada ou da determinação da identidade apartada de um “conceito” meramente
pensado, mas da análise que mostra que o efetivo é a contradição.
82 HEGEL, G. W. F. Fenomenologia do Espírito. Op. Cit., p. 78.
83 “Analisar uma representação, como ordinariamente se processava, não era outra coisa
forneçam apenas “o que flutua na superfície da época”, pois como afirma Silvio Rosa:
“De uma parte, a figura sistêmica da cientificidade está para o agregado da
paracientificidade, assim como as dificuldades da apreensão conceitual estão para as
facilidades em que se emoldura o registro da representação: expor as primeiras equivale
a encontrar, em certo sentido, as condições para levar a efeito uma travessia crítica das
segundas. Mas de outra parte, isso significa que a crítica do registro representativo,
mesmo quando coextensivo à esfera das ciências particulares, não autoriza a encetar,
pura e simplesmente, uma desqualificação destas últimas. Ao contrário, não somente é
sua contraparte são, entretanto, inefetivos, ou seja, são pensamentos que por
mais instrumentalizáveis que sejam, só existem em sua pureza como
pensamentos, pois na efetividade os lados já aparecem desde o princípio em sua
unidade de opostos, destacada das quais eles não subsistem:
(Werke, 8, p. 360-361)
que se olhe86. Dessa maneira o que na análise de alguns derivados da vida aparece
de maneira muito mediada, aqui aparece de maneira mais direta, imediata, o que
facilita a apreensão.
Em um ser vivo sua unidade constitutiva é dada pela relação entre duas
partes completamente distintas, corpo e vida (chame-se de alma, abstrato,
suprassensível, negativo, informação etc), que, apesar de aparecerem como
totalmente diferentes, só existem nessa unidade. O ser vivo não existe sem o
elemento material, seu corpo que se fragmenta na multiplicidade dos diferentes
membros e órgãos, nem sem o elemento conceitual, a vida, que coloca a unidade
suprassensível que mantém e reproduz organicamente o corpo. Se se tenta
representar o ser vivo como puramente material, se perde de vista como é
possível, por exemplo, que ele absorva o alimento e, dessa coisa diferente de si,
construa seu próprio corpo como um igual a si, ou mesmo que passe essa
informação que o constitui para sua prole. Perde-se em suma a unidade do
organismo que se apresenta como corpo por meio dessas múltiplas formas
especializadas (os diversos órgãos, membros etc) que compõe sua anatomia. É
por isso que, nessa dualidade corpo e alma, já está compreendida também a
forma mais geral de uma das mais importantes dualidades da filosofia, a existente
entre Uno e Múltiplo. Esses dois opostos só existem numa unidade efetiva e
querer opor um ao outro, como se não fossem o mesmo, resulta em uma mera
abstração unilateral do pensamento. O uno do organismo assim só existe por
meio do múltiplo que são suas células, órgãos, membros etc. Os órgãos e
membros também, só subsistem nessa relação com o Uno, pois como Aristóteles
já bem apontava, uma mão decepada é mão apenas no nome87. No organismo se
86 Esse conceito de conceito como vida, formulado por Hegel, como na análise da
mercadoria de Marx, trata de algo que só pode ser encarado de maneira especulativa,
como diz o suábio “na ciência do conceito, o conteúdo e a determinação do conceito
podem ser comprovados unicamente pela dedução imanente que contém sua gênese e
que já está atrás de nós” HEGEL, G. W. F. Ciência da Lógica. Vol. 3 – A doutrina do
Conceito. Op. Cit., p. 42. Tanto mercadoria quanto a vida surgiram antes que se pudesse
pensá-las, e assim sua dedução só se processa de maneira imanente, especulativa.
87 “os membros singulares do corpo só são o que são por sua unidade, e em relação com
ela. Assim, por exemplo, uma mão que é seccionada do corpo só é uma mão no nome,
mas não segundo a Coisa como Aristóteles já notara” HEGEL, G. W. F. Enciclopédia das
Ciências Filosóficas em Compêndio., Op. Cit., adendo ao § 216. (Werke, 8, p. 374) ou, em
outra passagem tratando dos limites da observação de animais mortos “apreende-se o
organismo segundo o aspecto abstrato da existência morta; seus momentos assim
capturados pertencem à anatomia e ao cadáver, não ao conhecimento e ao organismo
vivo. Como partes mortas, esse momentos já deixaram de ser, pois deixaram de ser
mostra muito claramente que os dois pólos, uno e múltiplo, só existem como
conjunto de opostos da mesma figura efetiva. Não existe uno sem múltiplo, nem
múltiplo sem uno, sempre que se coloca um lado imediatamente se refere
também ao outro.
Com isso já se distingue outro par de opostos, um dos mais evocados por
Hegel e também dos menos levados a sério: a oposição, constitutiva do ser vivo,
entre finitude e infinitude. Quando se fala em infinito se pensa geralmente num
idealismo barato de palavras grandiloquentes, místicas, mas esse termo em Hegel
trata apenas daquilo que é o efetivo, o verdadeiramente existente como potência
nunca completamente realizada em ato. Assim, por um lado a vida se realiza num
indivíduo determinado de uma espécie, esse indivíduo dá sua forma concreta e
finita, ele existe por um determinado tempo após o qual seu anima (chama-se,
novamente, de vida, suprassensível, abstração etc) se perde e o material do seu
corpo se dispersa, retornando ao inorgânico. Por outro lado o caráter abstrato e
indeterminado da vida é um infinito, ele não se encerra num ser vivo singular,
mas sim é passado para frente na reprodução, que se estende potencialmente até
o infinito. Assim infinito e finito se mostram como sendo partes opostas da
mesma coisa que é a vida em geral. Não se tratam de coisas diferentes, mas da
mesma coisa que só se apresenta nessa oposição. A potência infinita de se
reproduzir e mesmo de dar origem a novas espécies, que fez os primeiros seres
vivos evoluírem até o ser humano, não é uma fantasia ou misticismo, mas algo
totalmente efetivo, se realizando em cada ser vivo. Só por meio de seres finitos é
que a infinitude da vida se mostra, e também só por meio da potência da
infinitude inscrita no conceito vivo é que cada novo ser vivo determinado é
gerado. Quando se fala do finito imediatamente se traz seu oposto, o infinito,
oposição sem a qual ambos não podem subsistir. Não existe no Universo nenhum
finito que não se relacione com o todo infinito, bem como esse todo infinito
mesmo só existe como o conjunto interminável dos finitos, são, em suma a
mesma coisa e isolar um lado do outro só é possível como abstração unilateral do
pensamento.
separador, dizendo como ele procede: “Na lei do movimento, por exemplo, é necessário
que esse se divida em tempo e espaço, ou também em distância e velocidade. Sendo
apenas relação entre esses momentos, o movimento como universal está, sem dúvida,
dividido em si mesmo; mas então essas partes, tempo e espaço, distância e velocidade,
não exprimem nelas sua origem [comum] do Uno: são indiferentes entre si, o espaço é
representado como se pudesse ser sem o tempo; o tempo, sem o espaço; e a distância,
sem a velocidade pelo menos; assim como suas grandezas são indiferentes entre si, já
que não se relacionam como positivo e negativo e portanto não estão ligadas uma à outra
através de sua essência. Sem dúvida, a necessidade da divisão está aqui presente, mas
não a das partes como tais, uma em relação à outra. Por isso, também, aquela primeira
necessidade é apenas uma falsa necessidade ilusória; quer dizer, o movimento mesmo
não é representado como algo simples, ou como pura essência, se não como já dividido.
Tempo e espaço são suas partes independentes ou essências nelas mesmas; distância e
velocidade são maneiras de ser ou de representar que bem podem dar-se uma sem a outra
- e, portanto, o movimento é somente sua relação superficial, e não sua essência. O
movimento, representado como essência simples, ou como força, é justamente a
gravidade, a qual porém não contém nela essas diferenças em geral”. Mais à frente ele
retoma o tema dialeticamente e afirma o contrário do que criticava naquele
entendimento, que “por meio do conceito de diferença interior, esse desigual e
indiferente, espaço e tempo etc. são uma diferença que não é diferença nenhuma, ou
somente uma diferença de homônimo; e sua essência é a unidade. Em sua relação
recíproca são animados como o positivo e o negativo; mas seu ser consiste antes em pôr-
se como não-ser, em suprassumir-se na unidade. Subsistem ambos [os termos]
diferentes, são em si e são em si como opostos; isto é, cada qual é o oposto de si mesmo,
traz o outro. Ambos os polos, tempo e espaço, estão assim em relação a um ser
vivo, capaz de fornecer sua medida90. Não é possível falar de permanência, nem
mudança, a não ser pensando nesse aspecto temporal e espacial introduzido por
aquilo que tem vida. Claro que se pode hoje abstrair unilateralmente de toda a
base viva e social que produziu nossas concepções de tempo e de espaço e assim
querer representar a duração, digamos, de uma rotação da terra ao redor do sol,
como sendo o próprio tempo. Mas essa rotação não se apreende a si mesma, e
assim não coloca a diferença na identidade, e assim permanece indiferente. A vida
é um universal em oposição às formas perecíveis em que aparece e nisso também
se apresenta como a mínima forma da significação, da capacidade de entender o
tempo como essa ordem contínua (e ao mesmo tempo discreta) e eterna (e ao
tem o seu outro nele, e os dois são apenas uma unidade” HEGEL, G. W. F.
Fenomenologia do Espírito. Op. Cit., p. 128. Imediatamente após essa afirmação,
complementa Hegel, introduzindo aí a vida “Esta infinitude simples - ou o conceito
absoluto - deve-se chamar a essência simples da vida, a alma do mundo, o sangue
universal, que onipresente não é perturbado nem interrompido por nenhuma diferença,
mas que antes é todas as diferenças como também seu Ser-suprassumido; assim, pulsa
em si sem mover-se, treme em si sem inquietar-se. E igual-a-si-mesmo, pois as
diferenças são tautológicas; são diferenças que não são diferenças nenhumas. Portanto,
essa essência igual-a-si-mesma só a si mesma se refere. A si mesma; eis aí o Outro ao
qual a relação se dirige, e o relacionar-se consigo mesma é, antes, o fracionar-se, ou,
justamente, aquela igualdade-consigo-mesma é a diferença interior” Ibid., p. 129.
90 Uma primeira abordagem à colocação desses termos é facilitada se remetermos para
exemplos que Bergson dá para sua noção de vida como duração. Para o pensador francês,
diferentemente da matéria, “a vida empenha-se desde o início em conservar o passado e
antecipar o futuro numa duração em que passado, presente e futuro se encavalam e
formam uma continuidade indivisa” (BERGSON, Henri. A consciência e a vida. Op. Cit.,
p. 12.) e que “essa memória e essa antecipação são, como já vimos, a própria consciência”
que assim é “coextensiva à vida” (Ibid.). Com outras palavras, a “consciência é um traço
de união entre o passado e o futuro” (Ibid., p.06) e, se ela é assim “é precisamente porque
ela é chamada a escolher” pois “para escolher é preciso pensar no que se poderá fazer e
rememorar consequências” (Ibid., p.10). Bergson afirma mesmo como em formas mais
simples de vida como uma ameba, algum tipo de memória está sempre presente e que
isso distingue a vida da matéria inorgânica, que não guarda memória. O mundo físico-
químico ou o em-si tem seu desdobrar independente que não aparece para a vida, pois
“quando abro os olhos e torno novamente a fechá-los, a sensação de luz que experimento,
e que cabe em um dos meus momentos, é a condensação de uma história
extraordinariamente longa que se desenrola no mundo exterior” (Ibid, p. 15). Lá
acontecem “sucedendo-se umas às outras, trilhões de oscilações, ou seja, uma série tão
grande de eventos que, se eu quisesse conta-los, mesmo com a maior economia de tempo
me tomariam milhares de anos” (Ibid, p. 15), apesar de ocuparem “apenas um instante
de minha consciência pessoal, capaz de contráí-los numa sensação pitoresca de luz”
(Ibid, p. 15) pois “na confluência entre a consciência e a matéria, a sensação condensa na
duração que é atributo nosso (...) períodos imensos do que poderíamos chamar (...) de
duração das coisas” (Ibid, p. 15). Bergson ainda arremata se perguntando se “se nossa
percepção contrai assim os eventos da matéria” não é para que “nossa ação os domine?”
(Ibid, p. 15).
mesmo tempo atemporal, que se manifesta efetivamente como um eterno
presente, no qual passado e futuro são só projeções). O lado eterno é a infinitude,
mas esta só se mostra encarnada em um corpo finito, e assim a vida dá em sua
própria estrutura mínima os opostos da continuidade e da descontinuidade. Do
presente para o passado os acontecimentos ganham maior significação não só por
sua proximidade, mas pela própria marca da diferença que a acompanha. Mesmo
olhando a partir do hoje, por mais que as eras geológicas antes do seu surgimento
sejam supostamente muito mais longas do que as eras em que a vida existiu, só a
partir desta e do seu desdobrar numa multiplicidade diferenciada é que consegue
se preencher de sentido dado tempo. Isso se torna visível quando olhamos para a
linha do tempo de um Atlas de história que contemple a “história natural”.
Bilhões de anos antes do surgimento da vida resumem-se a poucas linhas pela
pura falta do que significar. Quando a vida surge é como se ela significasse em si,
mesmo quando ainda não pode gerar para si qualquer significação, pelo simples
fato dela ser um Universal, uma abstração que reúne diferentes momentos em
sua constituição, deles se diferenciando e por meio deles se mantendo.
100“o pensamento e o universal é justamente isto: é ele mesmo e seu Outro, apodera-se
desse Outro e nada lhe escapa. Enquanto a linguagem é a obra do pensamento, também
nela nada se pode dizer que não seja universal. O que eu apenas viso é meu
[meine/mein], pertence-me enquanto a este indivíduo particular; mas, se a linguagem
só expressa o universal, eu não posso dizer o que apenas viso. E o indizível — sentimento,
sensação — não é o mais excelente, o mais verdadeiro; e sim o mais insignificante, o mais
inverídico. Se eu digo: o “singular”, “este singular”, “aqui”, “agora”, tudo isso são
universalidades; tudo e cada um é algo singular, um este: e também, se for sensível, é um
aqui, um agora. Igualmente, se digo: “Eu”, eu viso a mim como este que exclui todos os
outros; mas o que eu digo “Eu”, cada um justamente o é: um Eu que exclui de si todos os
outros. Kant serviu-se da expressão inadequada — de que Eu acompanho todas as
minhas representações, e também sensações, desejos, ações etc. O Eu é o universal em si
e para si, e a comunidade é também uma forma de universalidade, mas uma forma
exterior. Todos os outros homens têm de comum comigo serem um Eu, assim como é
comum a todas as minhas sensações, representações etc. serem as minhas. Mas Eu,
abstratamente enquanto tal, é a pura relação consigo mesmo, na qual se abstrai do
representar, do sentir, de todo o estado como de toda a particularidade da natureza, do
talento, da experiência etc. Eu é, nessa medida, a existência da universalidade totalmente
abstrata, o abstratamente livre. Portanto o Eu é o pensar como sujeito, e, enquanto Eu
está implicada, um lado é constitutivo do outro, e apenas a abstração unilateral
operada pelo pensamento e induzida pela própria linguagem é que os pode
representar separadamente.
empiricamente; um, o que dá o nome, outro, aquele para o qual é dado um nome; e assim
um é o que concebe, outro, o que é concebido. É inútil notá-lo e, no entanto,
perfeitamente falso considerar, na intuição empírica assim como na memória e no
conhecimento conceitual, que tais momentos constitutivos da consciência sejam
reunidos a partir dos dois lados da oposição, de tal maneira que cada um deles contribua
mesmo problema de considerar um lado sem o outro. Como vimos Hegel dizer
acima “A injustiça mais comum contra o conteúdo especulativo é torna-lo
unilateral, isto é, ressaltar apenas um dos enunciados nos quais ele pode ser
dissolvido”103. A unidade cindida hegeliana é a reunião numa unidade do que é
lógico em todas essas diferenças. Não se trata, com certeza, da unidade simples
numericamente concebida, pois como diz Hegel:
para uma parte [na formação da] unidade; e falso se perguntar por aquilo que, nessa
reunião, seria o princípio ativo de cada parte”. HEGEL, C.W.F. Primeira Filosofia do
Espírito, APUD LEBRUN, Gérard. A Paciência do Conceito: ensaio sobre o discurso
hegeliano. Tradução de Silvio Rosa Filho. São Paulo: Editora da UNESP, 2006, p. 379.
103 HEGEL, G. W. F. Ciência da Lógica: Excertos. Op. Cit., p.81. (Werke, 5, p. 93)
104 HEGEL, G.W.F. Enciclopédia das Ciências Filosóficas. Op. Cit., p.6. (Werke, 10, p.
386)
105 Ibid., p. 9. (Werke, 10, p. 390)
A noção hegeliana de unidade de opostos, diferença interior ou dialética
(chame-se como quiser, contanto que se apreenda a necessidade da
oposição/diferença como constitutiva da unidade/identidade) se mostra numa
enorme multidão de “unidades” diferenciadas, em tudo que é efetivo. As
diferentes determinações dessas unidades como unidade de opostos é o que
caracteriza as diferenças do mundo efetivo, e a tarefa do saber é conhecê-las em
sua determinidade:
Que é, então, esse objeto, que Saussure erige sobre uma tábua rasa de
todas as noções recebidas? Tocamos aqui no que há de primordial na
doutrina saussuriana, num princípio que presume uma intuição total
da linguagem, total ao mesmo tempo porque contém o conjunto da sua
teoria, e porque abarca a totalidade do seu objeto. Esse princípio é que
a linguagem, como quer que se estude, é sempre um objeto duplo
formado de duas partes cada uma das quais não tem valor a não ser
pela outra. Aí está, parece-me, o centro da doutrina, o princípio de onde
procede todo o aparato de noções e de distinções que forma o Cours
publicado. Realmente, tudo na linguagem tem de ser definido em
termos duplos; tudo traz a marca e o selo da dualidade opositiva:
- dualidade artículatória/acústica;
- dualidade do som e do sentido;
- dualidade do indivíduo e da sociedade;
- dualidade da língua e da fala;
- dualidade do material e do não-substancial;
- dualidade do "memorial" (paradigmático) e do sintagmático;
- dualidade da identidade e da oposição;
- dualidade do sincrônico e do diacrônico, etc.
E, mais uma vez, nenhum dos termos assim opostos tem valor por si
mesmo ou remete a uma realidade substancial; cada um deles adquire
o seu valor pelo fato de que se opõe ao outro.111
Tudo que dissemos da vida em relação ao jogo de oposições poderia ser
novamente dito da linguagem: As palavras todas de uma língua, seu múltiplo, só
existe em relação à unidade da língua como um todo, que como sistema uno provê
a significação das palavras individuais. Cada palavra, por outro lado, é um termo
finito com uma significação já assentada, mas seu encadeamento com outras
palavras em um discurso possibilita utilizar aqueles significados já determinados
para alcançar o novo, o indeterminado, ou, em outras palavras, prover
significações infinitas usando para isso apenas termos finitos. Finito e infinito,
uno e múltiplo aqui aparecem, novamente, como dois polos em que o
entendimento representa como diferentes o que é a mesma coisa. Pela
profundidade de sua compreensão dessa unidade de opostos na língua, Saussure
merecia ser colocado entre os mestres da dialética, apesar de, como os marxistas,
1978, p. 43.
insistir por vezes que essa característica dúplice da unidade é específica de seu
objeto de análise, sem perceber como tal estrutura perpassa toda a efetividade112.
115 “Vemos aqui de relance o motivo de uma famosa propriedade da dupla progressão
geométrica em números inteiros, o que significa que, se tivermos apenas um desses
números de cada grau, poderemos incluir todos outros números inteiros abaixo do
número binário de grau mais alto”. LEIBNIZ, Godefroy-Guillaume. Explication de
l’arithmétique binaire, qui se sert des seuls caractères O et I avec des remarques sur son
utilité et sur ce qu’elle donne le sens des anciennes figures chinoises de Fohy. Mémoires
de mathématique et de physique de l’Académie royale des sciences, Académie royale des
sciences, 1703, p. 85-86.
116 Ibid, p. 87.
117 “Em virtude do princípio, de que uma proposição é ou verdadeira ou falsa todo símbolo
luz, com a clareza da visão não turvada, e o nada, porém, representamos como sendo a
pura noite – e ligamos sua diferença a essa diversidade sensível bastante conhecida. De
fato, porém, quando também representamos esse ser de modo mais exato, podemos
o ser e o nada, e são como as determinações mais básicas, que funcionam como
marcadores de negativo e positivo, permitindo assim, ao relacionar o polo da
identidade e da diferença, reproduzir a multiplicidade efetiva. Tudo no digital –
seja uma foto, uma música, um vídeo ou um texto - aparece como essa
combinação de um e zero, de modo estruturalmente dialético. O código binário
assim expressa apenas isso, que a diferença está junta com a identidade e que na
combinação desses dois polos se torna possível emular qualquer outra diferença
e identidade. É como o mínimo múltiplo comum da possibilidade de sentido, que
permite expressar a diferença que é interior à identidade.
facilmente perceber que não vemos tanto na clareza absoluta quanto na escuridão
absoluta; que um ver como o outro ver, o puro ver, são um ver nada. A pura luz e a pura
escuridão são dois vazios iguais. Algo pode ser distinguido primeiramente na luz
determinada – e a luz é determinada por meio da escuridão – portanto, na luz turvada e,
do mesmo modo, primeiramente na escuridão determinada – e a escuridão é
determinada por meio da luz – na escuridão clareada, pois primeiramente a luz turva e
a escuridão clareada têm a diferença nelas mesmas e, assim, são um ser determinado,
existência”. HEGEL, G. W. F. Ciência da Lógica: Excertos. Op. Cit., p. 83. (Werke, 5, p.
96)
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