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Sobre a Universalidade da Contradição e da Abstração Real: uma

resposta hegeliana à redução marxista da dialética.

Thiago Ferreira Lion1

Resumo: Nas últimas décadas se consolidou dentro do marxismo crítico uma forma de
encarar a dialética como instrumento específico para a análise da forma mercadoria e de
seus desdobramentos, como dinheiro e capital. Segundo diversos autores tal
especificidade se deve à “abstração real” que Marx descobriu em sua análise do valor,
algo que seria totalmente diferente de outras abstrações, que se supõe, tem seu lugar
apenas no pensamento subjetivo. A proposta desse artigo é, a partir do resgate desse
debate marxista, recolocar a questão do ponto de vista hegeliano. O que se apresenta
então é que não apenas a contradição perpassa tudo, mas também que a existência de
um abstrato efetivo, que domina a realidade, constitui o fundamento não apenas de
formas sociais, mas também dos seres vivos em geral.

Palavras chave: Hegel, Marx, Contradição, Dialética, Abstração Real, Vida, Lógica.

***

Dedico esse artigo aos camaradas do grupo de estudos


“Dialética, Hegel e Marx” no Facebook, cujas discussões
inspiraram sua redação.

Como alguém que se formou teoricamente dentro do marxismo e, em


especial, daquele marxismo teórico que tem seu enfoque na análise da
mercadoria feita por Marx no início de O Capital, tive desde o começo de minha
jornada na Filosofia contato com diversos textos que analisavam a diferença da
dialética de Marx para a de Hegel. Nunca, no entanto, me satisfiz com as respostas
marxistas que encontrei para essa relação. Todas elas me pareciam aceitar muito
rapidamente o suposto “fato” de que Hegel estava errado, de que ele mistificava
a dialética pondo-a de ponta cabeça. Esse “erro” – afirmado muitas vezes de
maneira tão simples, como se fosse um erro óbvio - contrasta com genialidade
que, ao mesmo tempo, se atribuí ao pensador suábio. É como se essa relação de

1Doutor em Filosofia pela Universidade Federal de São Paulo – UNIFESP, Especialista


em Políticas Públicas do Estado de São Paulo.
Hegel com Marx devesse ser rapidamente liquidada para, sem maiores
implicações, se tomar o primeiro como uma mera espécie de preâmbulo místico
para o estudo do segundo. A teoria hegeliana, por aqueles textos, é levada a sério
quase que tão somente naquilo que ela aparece como já absorvida pela teoria de
Marx.
Apenas após quase uma década de estudos partindo do próprio Hegel é
que pude reformular esta questão que implicitamente perpassa toda minha tese
de doutorado. Como forma de debater com maior público e também de explicitar
fatores que n’O Fundamento do Especulativo2 estão implícitos, apresento agora
este artigo. O que se mostrará aqui como fundamental é que, como na Ciência da
Lógica, o Conceito seja tomado de maneira imediata como estrutura da própria
vida em geral, o que já coloca o problema de uma abstração efetiva, uma que não
é do mero pensamento, transformando assim radicalmente o que se compreende
por “idealismo” em Hegel. Igualmente fundamental é a primeira tese,
absolutamente perturbadora e contra intuitiva, defendida por Hegel já nas onze
teses apensas ao seu trabalho de doutorado Sobre a Órbita dos Planetas, na qual
se lê que:

Contradictio est regula veri, non contradictio falsi3

A profunda verdade dessa tese, que efetivamente pode ser considerada o


ponto central da teoria hegeliana, é o que pretendemos descortinar no percurso
desse artigo. Sua simplicidade, no entanto, é tamanha que ela confunde o
pensamento, deixando-o sem saber o que fazer com esse estranho enunciado.
Antes de mais nada deve-se dizer que a dialética não é algo distante ou
específico, mas que é tudo, e assim também do que há de mais próximo. Por isso
mesmo é difícil de apreender, por conta de sua simplicidade que se encontra por
todo lado. A contradição não é uma coisa colocada apenas pelo capital, nem algo

2 LION, Thiago Ferreira. O Fundamento do Especulativo: Hegel e o Conceito como vida,


seu desenvolvimento na linguagem e sua realização nas primeiras formas sociais. Tese
de Doutorado em Filosofia. Universidade Federal de São Paulo, 2018.
3 “A contradição é o domínio do verdadeiro, a não contradição o domínio do

falso”. HEGEL, G. W. F. Philosophical Dissertation on the Orbits of the Planets.


Graduate Faculty Philosophy Journal, Vol. 12, n. 1 & 2. Disponível em
http://blogs.newschool.edu/graduate-faculty-philosophy-
journal/2014/08/05/philosophical-dissertation-on-the-orbits-of-the-planets-1801-
preceded-by-the-12-theses-defended-on-august-27-1801-by-g-w-f-hegel/. Acesso em
maio de 2018, p. 276. (Werke, 2, p. 533)
apenas social, mas já é fundamento inclusive do mundo natural. A contradição é
também efetiva, não algo meramente teórico e muito menos mero produto do
pensar subjetivo, e assim pode ser mostrada onde quer que seja. Tudo aparece
como uma unidade de contrários, ou, em outras palavras, como uma diferença
interior à unidade, como veremos repetidamente nesse escrito.
Um pequeno exemplo provisório, pode, no entanto, ajudar a penetrar na
questão ou ao menos aguçar a curiosidade do leitor. Uma pessoa só é sendo
também o que é diferente dela, ou seja, o resto do mundo. Então sempre que se
pensar numa pessoa deve-se lembrar também que ela só existe com esse mundo,
que faz ela ser “ela”. Como base da própria identidade da pessoa está justamente
aquilo que excluímos para determinar essa identidade, a diferença (o outro4).
Assim, ao determinar a pessoa, o entendimento abstrai do alimento que fez seu
corpo, do ar que ela respira, da água que bebe, da roupa que usa, da educação que
recebeu, da língua que fala, ou das relações sociais que nutre. Mas sem isso tudo,
por outro lado, essa pessoa não seria "ela mesma", pois sua própria determinação
está nesse outro. Se ao pensarmos na pessoa excluímos tudo aquilo que a faz ser
daquele jeito, dizer que “ela = ela” na verdade se revela uma abstração unilateral
do entendimento. O principio da identidade, se pensado sem o da diferença (para
Hegel, como veremos, imediatamente o princípio da identidade deve vir junto
com o da diferença), só diz que A = A, e assim as coisas diferentes do mundo não
são colocadas em relação umas com as outras, antes ficam como uma pluralidade
indiferente de caixinhas. Como se verá o importante, no entanto, é esse jogo
articulado de identidades e diferenças, e não declarar uma identidade abstrata
que não se comunica com nada. Assim a pessoa é em si mesma essa contradição,
de ser diferente do mundo e ao mesmo tempo ser parte dele. Ela é, na
maravilhosamente precisa e sintética formulação de Hegel, o "ser para si de um

4 Este que se traduz a partir do ‘anders’ (diferente), do ‘Anderssein’ (um ente diferente, a
alteridade) e de outras palavras com essa raiz, provém diretamente da mesma base
significativa para expressar diferença ou identidade. ‘Ganz anders’, por exemplo,
significa ‘totalmente diferente’, o contrário de ‘egal’, ‘igual’ ou a ‘mesma coisa’, o que não
faz diferença. Quando lemos “outro” nas traduções para o português devemos nos
lembrar que na língua alemã o significante diferença (em pura oposição lógica com a
identidade, assim também imediatamente colocada) está junto como algo de
fundamental de maneira muito mais perceptível que na língua portuguesa. É uma das
determinações lógicas mais essenciais, aquela que, em oposição ao princípio da
identidade com o qual forma uma unidade, gera a base para compreensão de todas as
coisas.
outro", porque ela é mesmo "para si", ou seja, ela vive como sendo aquela pessoa
determinada, mas tudo nela é de um outro (e aqui leia-se, daquilo que é diferente
dela), desde a língua que fala até os átomos que compõe o seu corpo, ela absorveu
do exterior por meio da educação ou da alimentação. A contradição esta nela não
apenas no nível social, esta já em sua constituição básica como ser vivo. Se
aplicamos o principio da identidade clássico, pensado com o da "não
contradição", só dizemos que a pessoa é igual a si mesma, e daí nada se
movimenta, nada se transforma, e tudo aparece relacionado só de fora, como
caixinhas com setas num esquema de power point.
Tomar a contradição nessa universalidade demanda, no entanto, uma
atenção muito especial e uma reinterpretação dos saberes. Os muros do
pensamento representativo não caem sem grande esforço. Por isso é, sem dúvida,
mais fácil entender um objeto específico do pensamento ou da vida prática que
traga em si uma lógica diferente, como o capital na análise de Marx, do que aceitar
que essa lógica, que apenas foi percebida primeiramente no objeto específico, é
algo que abarca tudo. A análise da mercadoria e do capital, como veremos, atende
à essa forma da dialética de Hegel, muitas vezes fazendo o velho Marx se opor ao
que escreveu quando mais jovem. Traremos mais alguns exemplos do
funcionamento dessa lógica em objetos específicos conforme o tratamento dado
por outros grandes pensadores. Apontando assim a dialética nesses “objetos” viso
tornar mais clara a implicação geral da tese hegeliana, uma forma de pensar que,
com mais de dois séculos, ainda foi muito pouco compreendida. Ver-se-á, no
entanto, que mesmo com a pouca compreensão que se tem de Hegel, aquilo que
sua dialética tem por fundamental já se realizou e não precisou esperar ninguém.
Essa realização na maioria das vezes se deu não como uma compreensão filosófica
geral derivada da teoria do suábio, como é o caso na análise da mercadoria por
Marx, mas brotou, além de na própria efetividade onde ela já fazia desde sempre
sua morada, também no saber científico como “soluções” diversas para impasses
teóricos específicos de campos tão distintos como economia, linguística, física,
matemática, teoria da informação etc.

O marxismo e a redução da dialética a um mero instrumento da


análise da mercadoria e do capital.
Nas últimas décadas diversas “escolas” de pensamento marxista se
desenvolveram tendo por ponto central a consideração de que a análise da
mercadoria – que segundo o que seus integrantes reconhecem, só pode ser
entendida a partir da dialética hegeliana –, constitui a parte mais importante da
obra de Marx. Apesar de se tratarem de teóricos marxistas de grupos, épocas e
enfoques tão diferenciados entre si5, sua abordagem sobre a relação entre as
teorias de Marx e Hegel guarda semelhanças em alguns pontos centrais, das quais
partiremos para nossas considerações sobre a dialética. Torna-se mais fácil
apresentar o argumento hegeliano após entender a crítica marxista que se
supunha se direcionar contra ele. Isso pois essa crítica pressupõe o entendimento
da lógica da mercadoria e do capital, que podem servir na formação individual
como espécie de introdução à forma geral da dialética hegeliana. Pela estrutura
de apresentação do argumento nesse artigo e pelo público que tinha em mente
quando o escrevi, conhecimento sobre a análise da mercadoria por Marx é quase
um pré-requisito para sua adequada compreensão. Iniciemos aqui então tratando
da compreensão dos marxistas críticos da mercadoria sobre a relação entre Marx
e Hegel.

Uma das mais importantes convergências dos críticos marxistas da forma


mercantil parece estar em torno da noção de abstração real, utilizada para definir
a realidade abstrata da mercadoria, afirmando-a não como uma coisa física, mas
como uma relação social abstrata que se projeta como valor em uma forma física,
configurando assim um “sensível suprassensível”6. A mercadoria não é uma mera
coisa física que exista como realidade externa ao homem e, por outro lado, não é
coisa puramente ideal, que exista apenas subjetivamente no pensamento
humano, mas uma abstração real, isto é, uma objetividade criada por meio do
agir no mercado, agir ao qual necessariamente está atrelada uma forma
socialmente determinada de consciência. Partindo dessa compreensão, o

5 Agrupamento heterogêneo que engloba pensadores provenientes da “Escola de


Frankfurt”, da “Nova Leitura de Marx” (Neue Marx-Lektüre), da “Crítica do Valor”
(Wertkritik), bem como de teóricos italianos como Lucio Colletti, franceses como Guy
Debord e Jean Marie-Vincent, de estadunidenses como Moishe Postone a brasileiros
como Rui Fausto, José A. Giannoti, Marcos Müller, Jorge Grespan, entre outros.
6 Como diz Marx: “em direta oposição à palpável e rude objetividade dos corpos das

mercadorias, não se encerra nenhum átomo de matéria natural na objetividade de seu


valor”, ou mesmo, sobre um objeto como uma mesa, “logo que ela aparece como
mercadoria, ela se transforma numa coisa fisicamente metafísica”. MARX, K., O Capital:
Crítica da Economia Política. Vol. 1. São Paulo: Abril Cultural, 1983, p.54 e 70.
brasileiro José A. Giannotti, tão cedo quanto na década de 60, já falava em uma
abstração real presente na obra de Marx:

importa salientar como uma categoria torna-se autônoma e se constitui


a partir de relações humanas que transformam as coisas pelo trabalho,
lançando-as pela troca numa nova dimensão da objetividade, a
objetividade valor, de que os objetos trocados passam a ser expressão
(...) A relação sujeito-objeto é assim substituída por uma abstração real
que se dá no próprio núcleo da objetividade7
A objetividade aqui já é concebida como formada pela própria abstração,
que a tem como núcleo. Marcos Müller, por sua vez, no começo da década de 80,
dizia que “antes de serem abstrações teóricas do analista, as categorias da
economia política são pensadas por Marx como expressões teóricas da abstração
real presente nestas relações, que se opõem aos indivíduos como um poder de
dominação”8. Frisa-se assim que a abstração real do valor não é algo subjetivo,
do pensamento de Marx, mas uma abstração objetiva, que ocorre na realidade
social e que se coloca como um poder contra os indivíduos. Essa abstração que
constitui a efetividade do mercado é a base da realidade capitalista. Em linha
similar Anselm Jappe, um dos maiores expoentes da assim chamada Wertkritik,
por exemplo, nos diz que:

Um dos traços distintivos da sociedade capitalista reside no facto de ela


ter uma natureza “conceitual”: a abstração incarnada no dinheiro, não
deriva do concreto, antes o domina. A forma torna-se independente do
conteúdo e tenta desembaraçar-se dele completamente. A análise
“conceptual” que Marx leva a cabo não foi minimamente compreendida
e constitui o objecto de muitos ataques; ela é, porém, a descrição mais
adequada que alguma vez foi dada dessa dominação da forma sobre o
conteúdo 9
Robert Kurz, a figura fundadora da Wertkritik, por sua vez escreveu que:

A revolução capitalista consistiu essencialmente em desvincular a


chamada economia de todo contexto cultural, de toda necessidade
humana. Ao transformar a “abstração real” do dinheiro, antes um meio
marginal, num fim em si mesmo de caráter tautológico, a economia
autonomizada inverteu também a relação entre o abstrato e o concreto:
a abstração deixa de ser a expressão de um mundo concreto e sensível,
e todos os contextos concretos e objetos sensíveis contam apenas como

7 GIANNOTTI, J. A., Contra Althusser. Revista Teoria e Prática, n. 3. Teoria e Prática:


São Paulo, 1968, p.72.
8 MÜLLER, M. L., Exposição e Método Dialético em "O Capital", in Boletim Seaf, nº 2,

Belo Horizonte, 1982.


9 JAPPE, A., As Aventuras da Mercadoria: Para uma nova crítica do valor. Lisboa:

Antígona, 2006, p.173.


expressão de uma abstração social que domina a sociedade sob a figura
reificada do dinheiro. 10
Esta conclusão da inversão entre concreto e abstrato é assim um dos
pontos centrais na alteração de enfoque que Marx em sua maturidade dá à teoria
de Hegel, uma relação para muito além de uma negação do idealismo. Os objetos
principais de análise tanto da Fenomenologia do Espírito como d’O Capital são
uma espécie de sujeito abstrato que tudo suprassume, recolocando a si mesmo e
assim criando o processo histórico, como Hegel ao afirmar a existência do
Espírito como um sujeito-substância11. Em O capital Marx, partindo da forma
mercadoria, logo demonstra sua transformação em dinheiro e então em capital,
estabelecendo que o valor se torna “valor em processo, dinheiro em processo e,
como tal, capital”, e assim que a utilização do dinheiro para fazer mais dinheiro,
D-M-D’ (dinheiro “D” que é usado para produzir e comprar mercadorias “M”,
para serem vendidas pelo dinheiro inicial mais o lucro “D’”), “é a fórmula geral
do capital”12. Adentrando mais profundamente neste processo, Marx se utiliza de
uma expressão hegeliana para explicar uma temática igualmente hegeliana: a
existência de um “sujeito automático”, que ele então demonstra dominar a vida
no capitalismo, constituindo também um “círculo que pressupõe seu fim como
sua meta” e que domina a realidade concreta em seu automovimento13.

10KURZ, R., A expropriação do tempo. Disponível em:


<http://www1.folha.uol.com.br/fsp/mais/fs03019903.htm> Acesso em: 23/07/2015.
11 “A substância viva é o ser, que na verdade é o sujeito, ou – o que significa o mesmo –

que é na verdade-efetivo, mas só na medida em que é movimento do pôr-se-a-si-mesmo,


ou a mediação consigo mesmo do tornar-se outro. (...) Só essa igualdade reinstaurando-
se, ou só a reflexão em si mesmo no seu ser-Outro, é que são o verdadeiro; e não uma
unidade originária enquanto tal, ou uma unidade imediata enquanto tal. O verdadeiro é
o vir-a-ser de si mesmo, o círculo que pressupõe seu fim como sua meta, que o tem como
princípio, e que só é efetivo mediante sua atualização e seu fim” HEGEL, G.W. F.,
Fenomenologia do Espírito. 6. ed. Petrópolis: Vozes, 2002, p.35.
12 MARX, K., O Capital: Crítica da Economia Política. Vol. 1. São Paulo: Abril Cultural,

1983, p.231.
13 “Na circulação D-M-D (...) mercadoria e dinheiro funcionam apenas como modos

diversos de existência do próprio valor: o dinheiro como seu modo de existência


universal, a mercadoria como seu modo de existência particular, por assim dizer,
disfarçado. O valor passa constantemente de uma forma a outra, sem se perder nesse
movimento, e com isso, transforma-se no sujeito automático do processo. (...) o valor se
torna, aqui, o sujeito de um processo em que ele, por debaixo de sua constante variação
de forma, aparecendo ora como dinheiro, ora como mercadoria, altera sua própria
grandeza e, como mais-valor, repele a si mesmo como valor originário valoriza a si
mesmo. Pois o movimento em que ele adiciona mais-valor é seu próprio movimento; sua
valorização é, portanto, autovalorização”. Ibid., p.229-330.
É a partir do reconhecimento dessa homologia estrutural entre o Espírito
e o capital14 que a relação entre Hegel e Marx tem sido recentemente
reinterpretada15. O capital é uma abstração imaterial, mas que possui existência
real, dominando e produzindo a consciência dos indivíduos pelos quais ao mesmo
tempo existe e se reproduz. É, como trabalho abstrato, uma generalidade
singular, ou seja, uma abstração que determina e reúne os singulares, e, segundo
diz Ruy Fausto, “é precisamente esta unidade que retira aos seus agentes a
condição de sujeitos”16.

Retroagindo um pouco na ordem cronológica dos autores marxistas,


podemos ver já nos escritos de Theodor Adorno essa linha de pensamento sobre
a relação de Marx com Hegel, apesar de Adorno preferir enfatizar nessa
comparação o polo do “trabalho social” ao invés do “capital”:

Hegel não permite em nenhuma circunstância falar de separação entre


trabalho físico e espiritual, e não decifra o espírito como um aspecto
isolado do trabalho, mas pelo contrário, dissipa o trabalho num
momento do espírito, por assim dizer escolhendo a figura do pars pro
toto (a parte pelo todo) como máxima. Apartado daquilo que não é
idêntico a ele próprio, o trabalho torna-se ideologia17.
Páginas adiante em seus Três Estudos Sobre Hegel, Adorno retoma o
argumento, dizendo coisas como:

o passo através do qual o trabalho se lança como tal ao princípio


metafísico não é outro senão a simples eliminação daquele “material”,
ao qual todo trabalho sente-se vinculado, e que traça sua própria
fronteira, recorda-o de estar abaixo dele e relativiza sua soberania. (...)

14 Como diz Zizek: “o que Marx demonstra em O Capital é que a autorreprodução do


capital obedece à lógica do processo dialético hegeliano de um sujeito-substância que põe
retroativamente seus próprios pressupostos. Marx caracteriza capital como um “caráter
automaticamente ativo” – tradução inadequada das palavras alemãs usadas por Marx
para caracteriza o capital como “automatischen Subjekt”, “sujeito automático”, um
oxímoro que une subjetividade viva e automatismo morto. Isto é o capital: um sujeito,
mas um sujeito automático, e não um sujeito vivo”. ZIZEK, S., Menos que Nada: Hegel
e a Sombra do Materialismo Dialético. São Paulo: Boitempo, 2013, p.310.
15 “depois que o dinheiro enquanto capital perdeu a sua rigidez material e se tornou

processo, é possível e significativa a comparação com o conceito hegeliano do espírito.


Em O capital, Marx aponta explicitamente, ainda que em forma de paródia, para a
identidade estrutural, fazendo referência ao “mais sublime exemplo” que Hegel pôde
citar para aclarar a natureza do espírito, a respeito da qual ele, no entanto, diz
simultaneamente não se tratar propriamente de um exemplo, mas do ‘universal, do
próprio verdadeiro, do qual tudo mais é exemplo’” REICHELT, H., Sobre a Estrutura
Lógica do Conceito de Capital em Karl Marx. Campinas, Ed. Unicamp. 2013, p.257.
16 FAUSTO, R., Marx: Lógica & Política. São Paulo: Brasiliense, 1983, p.92.
17 ADORNO, Theodor. Três Estudos Sobre Hegel. Tradução, Apresentação e Notas por

Francisco López Toledo Corrêa. Guarulhos: Dissertação de Mestrado, UNIFESP, 2015,


p. 70.
Deve-se ocultar o fato de que também o espírito situa-se sob coerção
do trabalho e ele próprio é trabalho (...) A crítica da identificação do
espírito com o trabalho só se dá na confrontação de seu conceito
filosófico com o que o espírito realmente realiza”18
A partir desta compreensão, que representa o Espírito hegeliano como
decalcado do trabalho social, é que os integrantes da Neue Marx-Lektüre, como
Helmut Reichelt, puderam ver algum sentido no idealismo de Hegel, ao dizer que
esse idealismo que “afirmava obedecerem os homens a um conceito que detém o
poder, [é, por isso] essencialmente mais adequado a este mundo invertido do que
toda a teoria nominalista que só aceita o universal como algo de puramente
conceitual e subjetivo”19. De maneira semelhante escreveu Hans Jürgen Krahl
sobre o capital, afirmando que este é uma “aparência que não tem uma real
estrutura de coisa, mas ainda assim, domina os homens”20. Moishe Postone,
talvez de maneira mais determinada que os demais, afirma que a teoria madura
de Marx visaria uma espécie de “justificação materialista” da teoria de Hegel, e
não mera inversão:

A explicação histórica de Marx do Sujeito como capital, e não como


classe, visa (re)colocar a dialética de Hegel socialmente e assim
fornecer sua crítica. A estrutura do desdobramento dialético do
argumento de Marx em O capital deve ser lida como um
metacomentário incidindo sobre Hegel. Marx não “aplicou” Hegel à
economia política clássica, mas contextualizou os conceitos de Hegel
em termos de formas sociais da sociedade capitalista. Isto é, a crítica
madura de Marx a Hegel é imanente ao desdobramento das categorias
em O capital – as quais, seguindo paralelamente o caminho em que
Hegel desdobra estes conceitos, implicitamente sugere o contexto sócio
histórico do qual são expressões. 21

18 Ibid, p. 72
19 REICHELT, H., Sobre a Estrutura Lógica do Conceito de Capital em Karl Marx.
Campinas: Ed. Unicamp. 2013.
20 “Em Hegel, os homens são marionetes de uma consciência sobreposta a eles. Para

Marx, por outro lado, a consciência é um predicado e uma propriedade de homens


finitos, mortais. Aqui se encontra a mudança fundamental que Marx realiza nos escritos
juvenis, uma crítica sistemática das premissas de Hegel. E, a partir dela, Marx pode
novamente acolher a lógica hegeliana da essência. A existência de uma consciência
metafísica, sobreposta aos homens, é uma aparência, mas uma aparência real: o capital.
O capital é uma aparência, porque não tem uma real estrutura de coisa: e, no entanto,
domina os homens”. KRAHL, H. J., Seminarios enero in Introduccion General a La
Critica de La Economia Politica. Buenos Aires: Pasado y Presente, 1968, p.25-26.
Tradução nossa do espanhol.
21 POSTONE, M., Time, labor, and social domination: A reinterpretation of Marx´s

critical theory. Nova Iorque e Cambridge: Cambridge University Press, 1993, p.80-81.
Tradução nossa do inglês.
Estas semelhanças por parte desses grandes marxistas citados não
significam uma identidade em outros aspectos. Importa aqui apenas realçar
pontos comuns - em especial a noção de que o Espírito hegeliano é o Capital
mistificado, e de que a dialética é um instrumento para a análise específica da
forma mercadoria, como ainda apresentaremos - entre alguns dos mais elevados
marxismos críticos no que tange a interpretação do relacionamento entre as
teorias de Marx e Hegel. A fórmula de Postone acima parece ser bastante geral e
se constitui em ler Hegel como se sua teoria atingisse coisas acertadas da
realidade, mas isso apenas por generalizar a lógica mercantil que ele
(supostamente) de maneira inconsciente reproduzia. Assim Hegel pode ser
representado como necessário ao desenvolvimento da análise do valor, mas ao
mesmo tempo se permitir manter uma distância “saudável” de sua perturbadora
teoria.

Os críticos da mercadoria já se sentem, por vezes, desconfortáveis em lidar


com o caráter metafísico de seu objeto, e manter-se distintos de Hegel lhes parece
central para não cairem em descrédito. Mesmo dentro do marxismo crítico eles
disputam com correntes importantes, como a de Althusser, que estava pronto a
denunciar o início d’O Capital e especialmente a análise do “fetichismo da
mercadoria” como “vestígio da influência hegeliana (...) flagrante e extremamente
prejudicial”22. Os marxistas focados na crítica da mercadoria, por meio dessa

22 Em seu texto Advertência aos Leitores do Livro I d’O Capital, diz Althusser: “O
conhecimento dos três outros livros permite resolver muitas das grandes dificuldades
teóricas do Livro I, sobretudo as que se encontram na terrível seção I (“Mercadoria e
dinheiro”), em torno da famosa teoria do “valor-trabalho”. Preso a uma concepção
hegeliana da ciência (para Hegel, só há ciência filosófica, e por isso toda verdadeira
ciência deve fundar seu próprio começo), Marx pensava que em qualquer ciência “todo
começo é difícil”. De fato, a seção I do Livro I apresenta uma ordem de exposição cuja
dificuldade se deve em grande medida a esse preconceito hegeliano. Além disso, Marx
redigiu esse começo uma dezena de vezes, antes de lhe dar forma “definitiva” – como se
lutasse contra uma dificuldade que não era apenas de simples exposição –, e não sem
razão.” (p. 74). Páginas à frente ele diz sobre “uma segunda ordem de dificuldades que
constituem um obstáculo real à leitura do Livro I e dizem respeito não mais ao fato de
que O capital compreende quatro livros, mas aos resquícios, na linguagem e mesmo no
pensamento de Marx, da influência do pensamento de Hegel”. (p. 77). Para então,
próximo ao fim do artigo, arrematar criticando os marxistas que focam sua análise na
mercadoria “Último vestígio da influência hegeliana, e dessa vez flagrante e
extremamente prejudicial (já que todos os teóricos da “reificação” e da “alienação”
encontraram nele com o que “fundar” suas interpretações idealistas do pensamento de
Marx): a teoria do fetichismo (“O caráter fetichista da mercadoria e seu segredo”, quarto
item do capítulo 1 da seção I)” ALTHUSSER, Louis. Advertência aos Leitores do Livro I
d’O Capital in Marx, Karl, O Capital, Boitempo, p. 79.
operação, se colocam numa posição contraditória, de considerar Hegel um
ingênuo idealista e ao mesmo tempo o maior gênio da filosofia antes de Marx.

Ligada à noção de abstração real e do sujeito automático, encontra-se


então a interpretação do que seria a dialética e da diferença de sentido que esta
toma entre os dois pensadores alemães. Jorge Grespan diz que a dialética, antes
renegada pelo jovem Marx, passa a ser utilizada quando ele encontra um “objeto
contraditório”23, pois afinal:

não é em qualquer objeto que Marx distingue dois níveis de realidade,


em que se constitui uma essência para além das formas de
aparecimento. Bem como não é todo objeto que deve ser considerado
dialeticamente, portanto, mas especificamente o que tiver uma
natureza contraditória”24.
Diferenciar-se-ia a dialética materialista “da dialética de Hegel, que vê
todo real – natureza e espírito – como contraditória, enquanto para Marx só o é
certo tipo de relação social historicamente constituída, a saber, o das sociedades
de classe em geral e da capitalista em particular”25.Como Marcos Müller comenta,
a dialética marxista é encarada como método para expor o resultado26, como
“método no sentido subjetivo de um procedimento de reconstrução categorial,
em oposição ao método enquanto ‘atividade universal absoluta’”27 de Hegel28. É

23 “depois as objeções da juventude, que ressaltam o aspecto errôneo e “mistificador” da


dialética, o empreendimento da crítica à economia politica fez ele resgatar o aspecto
positivo, o “racional” daquele método, pois então percebe como contraditório seu próprio
objeto – o capitalismo. Dai perceber também a economia política como contraditória,
que podia por isso ser algo de uma crítica interna, isto é, aquela que aceita inicialmente
os princípios e conceitos do que quer criticar e os desenvolve, para deles deduzir o seu
contrário. ” GRESPAN, J., A Dialética do Avesso. Crítica Marxista, 2002, p.23.
24 Ibid., p.22.
25 Ibid., p.24.
26 “A própria terminologia de Marx acusa este deslocamento realista, 'materialista', da

dialética enquanto método, revelando uma certa oscilação entre expressões que indicam
antes o caráter reconstrutivo da dialética como procedimento 'subjetivo', e expressões
que traem a sua proveniência especulativa como forma de autoexposição do conteúdo: a
dialética é um “modo de apropriação do concreto pelo pensamento” (G. 22), um “método
de elaboração”(45) que “reproduz” (G. 22) o concreto que as ciências empíricas
analisaram e prepararam para a exposição, que então “transpõe”, “traduz”, “expressa”
idealmente o movimento efetivo do conteúdo e “espelha idealmente a vida do material”
(K, I, 27).” MÜLLER, M. L., Exposição e Método Dialético em "O Capital", in Seaf, nº 2,
Belo Horizonte, 1982, sem paginação (s/p).
27Ibid., s/p.
28 “Marx marca a sua diferença fundamental face a Hegel distinguindo a exposição

dialética enquanto método através do qual o pensamento se eleva do abstrato ao concreto


e o expõe como resultado (“concreto de pensamento”) e a exposição dialética enquanto
seu “processo de surgimento” como manifestação de uma razão que se realiza, isto é, para
Marx, como “ato de produção real””. Ibid., s/p.
um instrumento específico para expor a realidade categorial capitalista
implicando em um “procedimento de reconstrução categorial que pressupõe o
trabalho prévio de investigação das ciências empíricas e a maturação histórica do
objeto para então expor a sua lógica interna de acordo com os nexos que a análise
apreendeu entre suas determinações”29, e assim:

o que legitima e torna (...) válida a desvinculação, reivindicada por


Marx, entre o núcleo racional da dialética e seus compromissos com a
metafísica hegeliana do conceito, é o diagnóstico histórico do
capitalismo como modo de produção dominado pela abstração real do
valor e do seu fundamento, o trabalho abstrato capitalizado30.
Gianotti parte de análise semelhante em seu clássico artigo Contra
Althusser dizendo que, ao combater “o emprego do método indutivo em
economia politica, Marx lhe opõe aquele que vai do abstrato ao concreto, já que
‘o concreto é concreto porque é o resumo (zusammenfassung) de muitas
determinações e, assim, unidade do múltiplo’”. O caminho do abstrato ao
concreto, no entanto, guardaria o risco da “ilusão hegeliana”31. A diferença do
procedimento metodológico “acertado” de Marx para a “ilusão” hegeliana seria,
segundo esses autores, a de que o primeiro toma o processo como uma
reconstrução mental e subjetiva do processo real, enquanto o segundo considera
esse processo abstrato como o próprio processo real. Para Giannotti é “evidente,
porém, que o perigo existe unicamente porque somos obrigados a retomar o
mesmo percurso de Hegel sem contudo lhe atribuir caráter produtivo”32, ou seja,
ele reconhece que Marx é obrigado em sua forma de apresentação (e, portanto,
dentro de sua própria cabeça ou nos textos) a seguir como “método” o
desdobramento da ideia que Hegel entenderia ser produtora da própria
realidade. E como seria possível que o suposto erro de Hegel de tomar o

29 Ibid., s/p.
30 Ibid., s/p.
31 “no instante em que se aceita o caminho do abstrato ao concreto surge o perigo da

ilusão hegeliana: na medida em que este processo de síntese aparece como resultado e
não como inicio na medida em que se renuncia ao ponto de partida da intuição e da
representação, somos levados a imaginar, como de fato fez Hegel o real resultando do
pensamento que se volta sobre si mesmo e se determina e se particulariza. Contra tal
abstração Marx contrapõe o caráter propriamente improdutivo do pensamento teórico
que apenas se apropria e reproduz (termo que Althusser deixa de comentar) o concreto
numa forma espiritual: “de modo nenhum ele é o processo de nascimento
(Entstehungsprocess) do próprio concreto”. Dai a limitação do método abstrato: em
oposição a Hegel ele não é senão a maneira do pensamento se apropriar do concreto”.
GIANNOTTI, J. A., Contra Althusser. Op. Cit., p.68-69.
32 Ibid., p.70.
desdobramento da ideia como núcleo da realidade fosse o acerto “metodológico”
de Marx? Giannotti responde que:

sustentamos que tal espelhamento só se torna possível porque ocorre


na própria realidade um processo de constituição categorial,
contraposto ao vir a ser do fenômeno, processo que configura a
essência de um modo de produção determinado e, por conseguinte, de
uma forma de sociabilidade33
Ao reputar ser efeito de um tipo específico de sociabilidade, Giannotti
afirma efetivamente que a proximidade entre os desenvolvimentos hegelianos e
sua utilização “invertida” como método em Marx se dá por uma especificidade
deste momento histórico em que a forma do valor é preponderante. Depois de
feita a pesquisa e chegadas às conclusões, é hora de apresentar o movimento e
assim “estamos então prontos a ceder à ilusão hegeliana e conceber o concreto
como resultado de uma construção a priori”34. Giannotti insiste na diferença
entre a reconstrução do movimento da realidade na cabeça, como seria a ideia
entendida como algo subjetivo, em contraposição à realidade tomada como tendo
uma forma de ideia, e assim julga poder seguir o caminho hegeliano sem
concordar com o seu “principal”, ao afirmar que “isto não quer dizer que
estejamos confundindo o objeto do pensamento com o objeto real”35.

A Wertkritik segue panorama similar ao dos autores acima ao explicar


temas como a relação de Marx e Hegel e a natureza da dialética. No Aventuras da
Mercadoria, livro que talvez seja o que melhor sintetize as avançadas posições do
grupo, podemos ler que “Marx sublinha que o capitalismo é uma sociedade
fundamentalmente contraditória: porém, diferentemente do que acontece em
Hegel, não está convencida de que toda a realidade seja contraditória”36 e que,
assim:

alguns desenvolvimentos levados a cabo por Marx tem um caráter que


pode parecer idealista ou metafísico. Mas trata-se de facto de uma
consequência da natureza do objeto da investigação: enquanto
descrição do capitalismo é precisamente a descrição “metafísica”,
conceptual, que é a correta37.

33 Ibid., p.70.
34 Ibid., p.70.
35 Ibid., p.70.
36 JAPPE, A., As Aventuras da Mercadoria: Para uma nova crítica do valor. Lisboa:

Antígona, 2006, p.176.


37 Ibid., p.177.
A dialética é novamente tratada como um mero instrumento para capturar
este objeto contraditório específico, que Hegel teria “confundido” e “mistificado”
ao julgar como abrangendo toda a realidade38. Este suposto “erro” de ver a
dialética em tudo estaria em íntima conexão com seu suposto “erro” primordial,
o idealismo, visão que explicitara anteriormente Fulda ao afirmar que:

o erro fundamental de Hegel, também em relação à sua dialética, é o


idealismo. Deve-se opor a ele uma interpretação materialista da
dialética. Uma consequência do idealismo são as mistificações, que a
dialética sofre nas mãos de Hegel39.
É na Wertkritik, no entanto, que esta questão toma contornos mais claros,
pois ela acaba corretamente por concluir que a história deve ser entendida
“enquanto história dos fetichismos, na qual se entrelaçam sempre fatores
‘materiais’ e ‘ideais’ (ou ‘simbólicos’)”40, mas – ao mesmo tempo – julga que
apenas no capitalismo surge a realidade conceitual contraditória e o abstrato
domina o concreto.

Como conciliar a afirmação de que a “metafísica real” é um problema


específico capitalista ou apenas da forma mercadoria com a afirmação de que a
história é história das formas de relação dominadas pelo fetiche? Se as formas de
organização social anteriores à mercadoria também são fetichistas, sua
estruturação não tem também a forma conceitual, ou seja, sua efetividade não
depende também de modos de consciência? Não são assim chamados “sistemas
totêmicos” sistemas de organização social em que a ideia de um animal ou vegetal
ancestral guardião é fundamental para organizar a realidade social da tribo? Não
foi o totemismo descrito pelo próprio Jappe como forma fetichista de relação

38 “A objetividade do valor não é nem algo de puramente pensado, nem uma coisa
fisicamente presente; não é possível apreender essa “quimera” senão por intermédio de
um instrumento muito especial, a saber, a lógica dialética. Na socialização por via da
forma mercadoria, a realidade toma formas que os sentidos humanos já não podem
captar e que são completamente absurdas do ponto de vista do “senso comum”. Hegel
faz deste mundo paradoxal uma constante do ser humano e natural. Foi esse o seu erro;
Hegel considera inclusivamente que esta realidade “dialética” é uma realidade superior,
e constrói sobre ela a totalidade do seu sistema. Esse facto, porém, não altera em nada a
justeza do seu ponto de partida. Mesmo sendo verdade que em Hegel estava desde o
inicio presente uma certa tendência mística tal apenas mostra que a mística hegeliana do
conceito esta mais apta para compreender a mística real de uma sociedade em que “4 =
5””. Ibid., p.179.
39 FULDA, H. F., These zur Dialektik als Darstellungsmethode (im „Kapital" von Marx),

in Hegel Jahrbuch-1974. Köln: Pahl-Rugenstein, 1974, p.205. Tradução nossa do alemão.


40JAPPE, A., As Aventuras da Mercadoria: Para uma nova crítica do valor. Lisboa:

Antígona, 2006, p.204.


análoga ao capital?41. Este tipo de questionamento já deveria ser suficiente para
mostrar como é frágil essa tese da dominação do concreto pelo abstrato ser algo
especificamente capitalista, e assim também revelar a insuficiência de se
compreender a dialética como instrumento específico limitado a essa tarefa.

Antecipando o ponto de vista hegeliano que será desenvolvido mais à


frente, diríamos que essa realidade contraditória não é o fato exclusivo do
capitalismo, e que o abstrato sempre constituiu o concreto na vida social como
também na vida natural. O que esses grandes teóricos marxistas - com toda razão
- percebem do capital no que tange a relação entre abstrato e concreto, aplica-se
para Hegel a tudo que é efetivo. O efetivo em geral não é o material, mas o que
aparece como abstrato ou suprassensível e que “domina” e articula o material,
ponto central que ainda temos de apresentar mais à frente. Importante ressaltar
que essa conclusão de que essa relação entre abstrato e concreto é anterior à
mercadoria obviamente não impede de vermos a estrutura especificamente
quantitativa da abstração mercantil, esse sim principal traço lógico distintivo
dela para as demais formas de “abstração real”. Compreender o ponto hegeliano
também não nos impede de concordar com a exposição crítica que Marx faz n’O
Capital e com a necessidade de superação da forma mercantil. Pelo contrário, a
crítica da forma mercantil e a significação do comunismo continuam de pé e se
tornam mais palpáveis quando se apreende a lógica hegeliana do conceito.

O que os críticos da mercadoria de imediato poderiam compreender com


o que foi dito até aqui é que o problema capitalista não é o fato de existir abstração
e ela dominar a realidade, mas a forma determinada da abstração que opera
contra nossos interesses e contra nossa vida. O reconhecimento disso seria
inclusive útil para desbloquear o caminho de pensar a superação do capitalismo.
Considerado desse ângulo o problema deixa de ser o de romper com todo e
qualquer tipo de abstração real, romper com toda e qualquer determinação de
forma como se se buscasse retornar a uma concretude pressuposta. Se torna
muito mais, no próprio nível formal, de construir o que nos seja agradável. O
comunismo não é a destruição do universal, destruição de todo tipo de
institucionalidade, mas sua verdadeira efetivação como Sentido. A superação da
forma mercadoria é necessária para um mundo emancipado, mas isso não

41 Ibid., p.215-223.
significa o fim das formas e abstrações sociais, o fim de qualquer
institucionalidade. Significa criar novas formas institucionais que atendam
nossos anseios a partir do que já está aí.

A confissão de Marx da não solução de sua relação com Hegel

A concepção dos marxistas críticos da mercadoria de que a dialética


marxista é um instrumento para análise desse objeto contraditório específico que
é a mercadoria e o capital parece não prosperar nem n’O Capital, pois como
podemos ler lá, Marx diz:

Vimos que o processo de troca das mercadorias inclui relações


contraditórias e mutuamente excludentes. O desenvolvimento da
mercadoria não elimina essas contradições, porém cria a forma em que
elas podem se mover. Esse é, em geral, o método com que se
solucionam contradições reais. É, por exemplo, uma contradição o fato
de que um corpo seja atraído por outro e, ao mesmo tempo, afaste-se
dele constantemente. A elipse é uma das formas de movimento em que
essa contradição tanto se realiza como se resolve.42
O tema hegeliano da órbita planetária reaparece, no livro I d’O Capital,
como exemplo para explicar o desdobramento das formas do valor a partir de sua
contradição inicial. Da leitura desse trecho acima não parece restar dúvidas de
que Marx, ainda que tenha escrito pouco sobre a dialética em geral para além da
mediação por seu “objeto específico”, o valor e seus desdobramentos, não a via
como algo restrito à análise da forma capitalista. Revisemos então alguns
aspectos comumente esquecidos da transformação de pontos de vista de Marx em
relação a Hegel, antes de passarmos a argumentar com base no mestre do
Idealismo Objetivo.

Em A Ideologia alemã, grande obra na qual Marx e Engels julgam terem


desenvolvido seu modo materialista de pensamento43, vemos uma crítica do

42MARX, Karl. O Capital, Boitempo, Op. Cit. p. 340.


43“Friedrich Engels, com quem (desde a publicação, nos Anais franco-alemães, de seu
genial esboço de uma crítica das categorias econômicas) eu mantinha constante
correspondência, por meio da qual trocávamos ideias, chegou por outro caminho -
consulte-se a Situação das classes trabalhadoras na Inglaterra - ao mesmo resultado que
eu. E quando, na primavera de 1845, ele também veio domiciliar-se em Bruxelas,
resolvemos trabalhar em comum para salientar o contraste de nossa maneira de ver com
a ideologia da filosofia alemã, visando, de fato, acertar as contas com a nossa antiga
consciência filosófica. O propósito se realizou sob a forma de uma crítica da filosofia pós-
hegeliana. O manuscrito [A ideologia alemã\, dois grossos volumes em oitavo, já se
encontrava há muito tempo em mãos do editor na Westphalia, quando nos advertiram
hegelianismo na forma de crítica aos jovens hegelianos de esquerda. Importante
perceber que a crítica não ataca diretamente a Hegel, a não ser em algumas
passagens esparsas, mas ao invés disso ela se foca nos demais “hegelianos de
esquerda”. É claro que a crítica a Hegel está sempre sendo esboçada entre as
linhas do texto, mas há uma tensão, uma espécie de linha invisível que impede
um ataque mais direto ao mestre e que apenas poucas vezes Marx se atreve a
atravessar. Todos os discípulos que, no entanto, ao falarem desviam-se de Hegel
e pisam na linha são nocauteados pelo enfant terrible materialista. Mas por qual
motivo isso, por que n’A Ideologia não se deu um ataque frontal contra Hegel em
seus textos mais fundamentais como a Fenomenologia e a Lógica?

Na Ideologia Alemã vemos em diversas partes uma tomada de posição


firmemente materialista, decidida a se livrar de todo “ranço” especulativo, como
se lê:

O fato é, portanto, o seguinte: indivíduos determinados (em


determinadas relações de produção44), que são ativos na
produção de determinada maneira, contraem para si estas
relações sociais e políticas determinadas. A observação empírica
(que se atém simplesmente aos fatos reais45) tem de provar, em
cada caso particular, empiricamente e sem nenhum tipo de
mistificação ou especulação, a conexão entre a estrutura social e
política e a produção. A estrutura social e o Estado provêm
constantemente do processo de vida de indivíduos determinados,
mas desses indivíduos não como podem aparecer na imaginação
própria ou alheia, mas sim como realmente são, quer dizer, tal
como atuam, como produzem materialmente e, portanto, tal
como desenvolvem suas atividades sob determinados limites,
pressupostos e condições materiais, independentes de seu
arbítrio46.
Aqui, como na grande maioria do texto, nega-se veemente a utilização de
qualquer filosofia especulativa. Deve-se ater aos fatos e homens reais,
empiricamente constatáveis e fugir da mistificação causada pelo pensamento
especulativo. A concepção mais simples de ideologia como projeção aqui está
colocada por Marx ao dizer que estas mistificações são provenientes da própria

que uma mudança de circunstâncias criava obstáculos à impressão. Abandonamos o


manuscrito à crítica roedora dos ratos, tanto mais a gosto quanto já havíamos alcançado
nosso fim principal, que era nos esclarecer”. MARX, Karl. Contribuição à Crítica da
Economia Política. São Paulo: Expressão Popular, 2ª ed, 2008, p. 48-49.
44 MARX, Karl & ENGELS, Friedrich. A Ideologia Alemã. São Paulo: Boitempo, 2007, p.

93. Indicado como variante do manuscrito.


45 Ibid. Indicado como variante do manuscrito.
46 Ibid., p. 93.
base “material” das relações sociais. Estas ilusões derivam da base real das
contradições ao mesmo tempo em que as escondem, pois é a vida dos indivíduos
concretos que as cria. O “material” aqui é privilegiado e o “ideal” aparece como
sua derivação, seu “sublimado”, que se coloca como um véu que nos impediria de
ver a realidade como ela é. Marx aparece nesse trecho como um crítico direto de
Hegel, de modo similar ao que faz Feuerbach ao declarar que a religião é uma
projeção47 do indivíduo, uma mera ilusão de quem ainda não se encontrou em si,
como indivíduo real. Homens determinados fazem a história e a análise sempre
deve partir deles para o “sublimado” e não o contrário. Neste sentido, após a parte
citada acima e ainda continuando na mesma página, Marx escreveu em seu
manuscrito:

As representações que estes indivíduos produzem são


representações, seja sobre sua relação com a natureza, seja sobre
suas relações entre si ou sobre sua própria condição natural
[Beschaffenheit]. É claro que, em todos esses casos, essas
representações são uma expressão consciente – real ou ilusória
– de suas verdadeiras relações e atividades, de sua produção, de
seu intercâmbio, de sua organização social e política. A
suposição contrária só seria possível no caso de, além
do espírito dos indivíduos reais e materialmente
condicionados, pressupor-se ainda um espírito à parte.
(Grifo meu)48
Esta parte acima, que fundamentalmente apenas desdobra o argumento
anterior retirando sua conclusão mais radical no sentido de crítica à filosofia
hegeliana, está, no entanto, riscada por Marx no manuscrito. Qual é o motivo que
o levou a se refrear retirando esta passagem? Claro que poderia ser simplesmente
uma questão estilística ou de ordenação do conteúdo do texto, mas o fato é que

47 Aqui vale apontar que essa noção de projeção seria vista por Hegel como um recair no
representativo, como uma forma em que a sofistaria do entendimento busca salvar o
princípio da identidade abstrata. Assim, por exemplo, sem o conceito cristão de Deus,
não se desenvolveria a europa cristã como se desenvolveu. O entendimento, no entanto,
isola a noção de Deus, retira dela toda a efetividade que só se desenvolveu em conjunto
com ela (seja nas relações sociais, políticas, linguagem, arquitetura, arte etc) e assim
rebaixa Deus a um princípio unilateral do qual se retirou todo o conteúdo efetivo. Um
mero pensamento, tão pobre e inefetivo, pode então ser facilmente descartado como
mera projeção, como algo secundário ou meramente derivado. Sem a religião cristã, no
entanto, não só as maravilhas arquitetônicas e artísticas, bem como as fronteiras e
práticas políticas não teriam se desenvolvido dessa maneira, mas mesmo o princípio
legal e lógico de igualdade formal humana, base do capitalismo, não existiria. Aqui, como
se vê por todo lado, a própria efetividade depende da estrutura de crença. A Ideologia
não é só um derivado, mas algo que é diretamente constituinte da realidade, como o Marx
mais velho demonstra em O Capital.
48 MARX, Karl & ENGELS, Friedrich. A Ideologia Alemã. Op. Cit, p. 93.
vemos a mesma questão, sobre diferentes formas, ser excluída de diferentes
passagens da Ideologia Alemã, como numa nota do fragmento excluído de
“Feuerbach e História”, na qual se lê:

Insignificâncias filosóficas: Feuerbach, tal como seus demais


concorrentes, acredita ter superado a filosofia! A luta contra a
universalidade, que até o momento submeteu o indivíduo,
resume o ponto de vista [standpunkt] da crítica filosófica alemã.
Afirmamos que essa luta, na forma como ela foi
conduzida, repousa ela mesma sobre ilusões filosóficas
para as quais essa universalidade é um poder. (grifo
meu)49
Se é necessário partir sempre dos indivíduos reais empiricamente
comprováveis, se eles em suas relações compõe a história e seu pensamento é
determinado pelas condições de vida particulares, temos um caminho em que o
universal é concebido como sendo gerado pelos particulares. O Universal aqui se
torna o derivado, como as estruturas estatais que “provêm constantemente do
processo de vida de indivíduos determinados” e desta maneira se mostraria
incorrigível a afirmação de que apenas existe o espírito dos indivíduos e não o
Espírito (hegeliano), ou, como colocado na outra passagem, que é uma ilusão que
a universalidade seja um poder. Mas por que nestas passagens em que
desenvolveu as conclusões de seu argumento que iria diretamente contra Hegel
Marx retroage e risca o argumento do texto? Talvez algo do qual ele já tinha
clareza de que não se “encaixava”, mas que, no entanto, ele ainda não sabia como
dar um tratamento adequado. Este algo é justamente este Universal que aparece
por cima do individual, que retorna de diversas formas n’A Ideologia, sem, no
entanto, receber um tratamento adequado:

O poder social, isto é, a força de produção multiplicada que nasce


da cooperação dos diversos indivíduos condicionada pela divisão
do trabalho, aparece a esses indivíduos, porque a própria
cooperação não é voluntária mas natural, não como seu próprio
poder unificado, mas sim como uma potência estranha, situada
fora deles, sobre a qual não sabem de onde veio nem para onde
vai, uma potência, portanto, que não podem mais controlar e
que, pelo contrário, percorre agora uma sequência particular de
fases e etapas de desenvolvimento, independente do querer e do
agir dos homens e que até mesmo dirige esse querer e esse agir.50
Não seria este “poder social” justamente o Espírito hegeliano? Mais, se este
“poder social” se apresenta como uma “potência estranha” que “dirige este agir e

49 Ibid., p. 529.
50 MARX, Karl & ENGELS, Friedrich. A Ideologia Alemã. Op. Cit, p. 38.
esse querer” não deveria ser levado em conta que esta Universalidade detém um
poder, conduzindo a realidade por sobre os homens determinados? Este tipo de
questionamento deveria pesar sobre Marx, que tinha de dar conta deste poder
social por cima dos indivíduos, sem, no entanto, perder de vista sua base
materialista que parte do “indivíduo real”, concreto. Assim ele dá um passo atrás
em sua crítica mais direta a Hegel e se foca em seus discípulos. Posteriormente,
como vimos no tópico anterior, Marx desenvolverá esse tema do universal como
sendo o próprio capital que se comporta como uma forma de sujeito substância,
ou de maneira mais determinada, em suas palavras, como um sujeito automático.
Marx claramente ainda não havia dado conta da totalidade da teoria de seu
antecessor. Leva de maneira ainda mais clara a essa conclusão uma das anotações
que compõe a edição brasileira d’A Ideologia Alemã e que estava no mesmo
caderno onde foram redigidas as famosas Teses ad Feuerbach, num pequeno
esquema intitulado Sobre a Fenomenologia do Espírito de Hegel:
A construção hegeliana da Fenomenologia
1. A autoconsciência em vez do homem. Sujeito – objeto.
2. As diferenças das coisas são irrelevantes porque a substância é
apreendida como autodiferenciação ou porque a
autodiferenciação, o diferenciar, a atividade do entendimento é
apreendida como essencial. É por isso que Hegel, no interior da
especulação, fornece distinções reais, distinções que capturam as
coisas.
3. A suprassunção [aufhebung] da alienação é identificada com a
suprassunção da objetividade [Gegenständlichkeit} (um aspecto
especialmente desenvolvido por Feuerbach)
4. A tua suprassunção do objeto representado, do objeto
como objeto da consciência, é identificada com a
suprassunção real, objetiva, com a ação [aktion]
sensível, a prática [Praxis], com a atividade real que é
diferente do pensar (ainda a desenvolver). (Grifo meu)51
Esse esquema aparece como uma espécie de confissão de questões não
resolvidas em escritos anteriores como na crítica dos Manuscritos Econômicos
Filosóficos, e assim mais como um tipo de elogio do que uma crítica a Hegel.
Declara que este “no interior da especulação, fornece distinções reais, distinções
que capturam as coisas” o que mostra a efetividade da teoria hegeliana. No ponto
4, de maneira mais relevante, afirma expressamente ainda não ter desenvolvido
teoricamente a diferença entre a suprassunção do objeto representado e a própria

51 MARX, Karl & ENGELS, Friedrich. A Ideologia Alemã. Op. Cit., p. 541.
suprassunção prática, ou seja, que não resolveu o ponto central do modo como
Hegel encara o conceito.
O argumento hegeliano da análise da vida, ainda a ser apresentado,
desmonta toda essa crítica a Hegel ao justamente penetrar por esse ponto que
Marx confessa ainda não ter desenvolvido. Não é que a atividade real seja
identificada com o objeto representado ao mesmo tempo que se toma ele como
diferente do pensar, mas que, para se representar ao sabor marxista o argumento
hegeliano, os seres vivos e tudo que deles deriva em termos de organização tem
que serem vistos não como uma coisa, algo meramente “real”, mas sim como uma
abstração real. Assim o metafísico (chame-se de abstrato, suprassensível,
conceitual etc) não aparece como algo adicionado de fora, como um mero
pensamento inefetivo, mas como propriedade efetiva presente antes de qualquer
análise lá identifica-la. No próximo ponto tentarei tornar clara essa afirmação.
Em O Capital e também nos Grundrisse, após entender o capital como
abstração real num sentido próximo ao hegeliano - como sendo o Universal que
em seu movimento metafísico forma não apenas as consciências individuais, mas
também o mundo material - Marx parece, no entanto, manter intocada sua crítica
geral sobre a teoria hegeliana e a relação entre materialismo e idealismo face a
outros “objetos”. É como se, mesmo após adotar a forma dialética de
compreensão para esse “objeto” específico que é a mercadoria e o capital, se
mantivesse no nível anterior, o empirismo da Ideologia Alemã, para representar
o restante das coisas. Mesmo percebendo a abstração como real na análise dessa
forma específica, Marx (como apontam os comentadores) não parece disposto a
radicalizar essa nova compreensão de modo a abarcar nela outros fenômenos.
Como ele diz na introdução de sua grande obra:

Meu método dialético, em seus fundamentos, não é apenas diferente


do método hegeliano, mas exatamente seu oposto. Para Hegel, o
processo de pensamento, que ele, sob o nome de Ideia, chega mesmo a
transformar num sujeito autônomo, é o demiurgo do processo efetivo,
o qual constitui apenas a manifestação externa do primeiro. Para mim,
ao contrário, o ideal não é mais do que o material, transposto e
traduzido na cabeça do homem. Critiquei o lado mistificador da
dialética hegeliana há quase trinta anos, quando ela ainda estava na
moda52.

52 MARX, Karl. O Capital, Boitempo, Op. Cit., p. 129.


No próximo tópico apresentaremos como a Ideia hegeliana não se trata do
mero pensamento individual inefetivo, e nem exatamente apenas do processo de
pensamento humano em geral, mas de uma “abstração real” anterior que
organiza a materialidade, e que assim faz essa aparecer como sua manifestação
externa. Ver-se à assim que o “abstrato efetivo” ou real não é um fenômeno
observado apenas nas mercadorias, mas em tudo que é vivo, sendo essa
determinação, a vida, inclusive a condição de possibilidade mais geral para a
existência de qualquer tipo de abstração real. Assim cai por terra ao menos a
ilusão de que, por conta do idealismo, a dialética precisaria53 ser virada de ponta
cabeça.

A vida como conceito, fundamento imediato do idealismo hegeliano e


núcleo da crítica ao materialismo

Hegel é constantemente criticado por seu idealismo, pela importância que


as noções como Conceito e Ideia têm em sua obra. A concepção que ele tem desses
termos, no entanto, é completamente diferente da do senso comum, não se trata
de meras ideias que temos em nossa cabeça, nem de apenas um produto do
pensar humano. O idealismo de Hegel não quer, de maneira alguma, dizer que a
realidade é mero produto de uma consciência que a criaria sem o agir. Antes de
qualquer coisa temos que afastar essas concepções simplistas, que em nada
ajudam a compreender o mestre da dialética. Não pretendo tratar aqui do
conceito hegeliano em toda sua extensão, mas focar principalmente na sua figura
mínima que é a vida, que dá o “substrato” lógico para o surgimento do Eu, e assim
também do Espírito, o “Eu que é nós, o nós que é eu”. Longe de querer reduzir a
análise do conceito ao ser meramente vivo (ele depois se desenvolve no humano
como espírito, ou seja, como civilização), pretendemos nessa breve exposição
apenas enfatizar o momento mais imediato do conceito, que perpassa o conceito
todo e é o que mais comumente dá margem a grosseiros mal-entendidos.

53Pois como diz Marx> “A mistificação que a dialética sofre nas mãos de Hegel não
impede em absoluto que ele tenha sido o primeiro a expor, de modo amplo e consciente,
suas formas gerais de movimento. Nele, ela se encontra de cabeça para baixo. É preciso
desvirá-la, a fim de descobrir o cerne racional dentro do invólucro místico”. Ibid, p. 129.
Na Enciclopédia, Hegel afirma, de maneira a princípio misteriosa, que “a
ideia imediata é a vida. O conceito, como alma, é realizado em um corpo, de cuja
exterioridade essa alma é a universalidade imediata referindo-se a si” 54,

enquanto na Lógica encontramos formulações similares como “a vida (...) é em si


e para si, absoluta universalidade; a objetividade, que tem em si, está penetrada
em absoluto pelo conceito, tem apenas o conceito como substância”55. Aqui já se
percebe que a vida não é concebida por Hegel de maneira puramente material,
mas que a alma (que ele chama de seu componente conceitual) é um universal
que dá a própria substância do corpo. Também já aparece a unidade de opostos,
de um lado alma ou vida56 (um suprassensível) e do outro o corpo (sensível),
trazendo a estrutura da contradição à qual voltaremos depois.

Agora importa desenvolver essa noção hegeliana de conceito e ideia, que


estão profundamente calcados na análise que, na esteira de Aristóteles, Hegel faz
da vida. Essa análise aparece não só em pontos chave da Fenomenologia e da
Enciclopédia, como também domina a parte final da Ciência da Lógica,
justamente quando se trata da Lógica do Conceito, aquela que lida não como o
perceptivo ou o representativo, mas com o nível conceitual mais elevado, o
verdadeiro que liga as diferentes percepções e representações. Na parte da
Ciência da Lógica sobre o “conceito de conceito” podemos ler que:

o conceito não tem de ser considerado aqui enquanto ato do


entendimento autoconsciente, enquanto entendimento subjetivo, mas,
sim, é o conceito em si e para si, que constitui um estágio tanto da
natureza quanto do espírito. A vida ou natureza orgânica é esse estágio
da natureza no qual o conceito emerge; mas como conceito cego, que
não apreende a si mesmo, quer dizer, que não pensa a si mesmo;
enquanto tal ele compete somente ao espírito57

54 HEGEL, G. W. F. Enciclopédia das Ciências Filosóficas em Compêndio. Vol. I. São


Paulo: Edições Loyola, 1995a, §216. (Werke, 8, p. 373)
55 HEGEL, G. W. F. Ciencia de la Lógica. 1. ed. Buenos Aires: Las Cuarenta, 2013, p. 956.

Tradução nossa do espanhol, conferida no original. (Werke, 6, p. 472)


56 Aqui se fala de “alma” ou “vida” como sinônimos para essa forma abstrata que se opõe

ao corpo material e, ao mesmo tempo, forma com ele uma unidade. De modo similar
explicou um tradutor do De Anima, de Aristóteles: “ψυχή. «Alma» é a versão tradicional,
embora A. [Aristóteles] tenha em vista uma realidade bastante diferente daquela que o
termo português denota. ψυχή designa o princípio vital, ou mesmo a vida”. Ibid., (nota
do tradutor 2). ARISTÓTELES. Sobre a Alma (De Anima). Obras completas Vol. III,
tomo I, tradução de Ana Maria Lóio. Lisboa: Ed. Centro de Filosofia da Universidade de
Lisboa, Imprensa Nacional (Casa da Moeda), 2010, p. 31
57 HEGEL, G. W. F. Ciência da Lógica. Vol. 3 – A doutrina do Conceito, Petrópolis: Vozes,

2018, p. 47.
Podemos hoje, diante do desenvolvimento científico do último século,
exemplificar o motivo para que Hegel chame a vida de conceito de maneira
simples, representativa, sem ter de penetrar no especulativo. Sabemos que um
microscópico óvulo fecundado, portador de uma informação como o DNA,
absorve alimentos, os processa e os ordena a partir de suas instruções, de modo
que esse componente abstrato, essa informação que é como o núcleo do ser vivo,
produz para si mesmo o próprio corpo físico do ser58.

Os diferentes átomos que formam o corpo físico não deixam de ser


matéria, mas essa matéria mesma só é reunida como corpo material por meio da
dinâmica abstrata do organismo, que lhe assinala uma função (como um átomo
de ferro que se torna parte do sangue ou o cálcio que forma um osso, que não são
deixados em sua materialidade pura, mas antes assumem uma função dada pela
unidade orgânica). Sabemos que grande parte dos elementos materiais que
formam um corpo podem ser trocados com o ambiente, isto é, a parte material
ser paulatinamente substituída, sem que aquele ser vivo perca sua identidade.
Apesar da troca dos componentes materiais o ser vivo mantém sua unidade no
tempo. Sua duração não aparece como a duração de um material determinado
que apenas sofre desgaste externo, mas da capacidade da própria abstração de se
manter como um uno continuamente sintetizando o material, sem cair assim na
dispersão orgânica que é sua morte. Aqui é a unidade abstrata do organismo - que
não se confunde com nenhuma de suas partes materiais isoladas - que gera essa
figura concreta do corpo, e por isso que o organismo mesmo tem em si a forma

58 “Em 1954, Wattson e Crick, que receberam o Prêmio Nobel oito anos depois,
estabeleceram que é uma sequência de sucessão de um número finito de bases ao longo
de uma hélice acoplada de fosfatos doces que constitui a instrução, código de informação,
ou seja, o idioma do programa ao qual a célula se conforma para sintetizar os materiais
protéicos das novas células. Desde então foi estabelecido, e o Prêmio Nobel de 1965
recompensou essa nova descoberta, que esta síntese é feita sob demanda, isto é, de
acordo com informações vindas do ambiente – ambiente celular, para ser claro. Então,
ao mudar a escala em que são estudados os fenômenos mais característicos da vida, os
da matéria estruturante e das funções reguladoras, incluindo a função estruturante, a
biologia contemporânea também mudou de linguagem. Ele deixou de usar a linguagem
e os conceitos de mecânica, física e química clássica, linguagem baseada em conceitos
mais ou menos diretamente formado em modelos geométricos. Ela agora usa a
linguagem da teoria da linguagem e a da teoria das comunicações. Mensagem,
informação, programa, código, instrução, decodificação, estes são os novos conceitos do
conhecimento da vida”. CANGUILHEM, Georges. Le Concept et la Vie. In: Revue
Philosophique de Louvain. Troisième série, tome 64, n° 82, 1966. Tradução livre do
francês, p. 218-219.
mínima do absoluto. Sua unidade é indivisível, ab-soluto, algo que não pode ser
solvido sem se perder: se decompusermos qualquer ser vivo teremos separados
os diferentes átomos da tabela periódica que ele contém, e, no entanto, não
teremos mais a vida, porque ela era só a unidade dessa dinâmica que reúne os
elementos que a compõe, ao mesmo tempo em que deles permanece abstraída. É
“absoluto” justamente porque essa unidade do organismo não se dissolve em suas
partes, mas antes permanece como uno indissolvível, uma estrutura que perpassa
todas as partes sem se confundir com nenhuma. O ser vivo não pode ser
representado como algo puramente material, antes deve ser entendido como uma
dinâmica, uma abstração ou negativo (em oposição à materialidade positiva), que
gera ou transforma o próprio mundo material, tanto produzindo seu corpo como,
por meio de seu agir, mudanças no mundo exterior.

O caráter conceitual que define e assim “agarra” algo, de deixar uma


definição presa como expresso no termo alemão Begriff - que se traduz como
“conceito”, mas que também é o particípio passado do verbo greifen (agarrar),
denotando aquilo que foi agarrado – está aqui presente na vida, pois o código
abstrato que determina a estrutura agarra aquilo que é material, o consome
transformando-o em corpo, em forma de expressão daquilo que era informação,
ou como chamavam os gregos, logos. É por isso que a lógica não deve ser
compreendida como enunciados ou princípios soltos, mas só encontra sua
verdade nas definições formais do próprio ser vivente. Não existe lógica, nem
pensamento, sem essa base anterior, o substrato vivo que em si já antecipa as
determinações mais gerais que o pensamento depois colocará para si. É por ser
um abstrato ou suprassensível desde o princípio que a vida pôde desenvolver, a
partir da percepção, a própria linguagem e com ela o pensamento humano.

A vida na análise hegeliana se enquadra na forma geral do que no


marxismo se chamou de abstração real, embora lá se entenda por esse termo
apenas a estrutura da mercadoria e do capital. Aqui vemos novamente um
abstrato (chame-se de conceito, suprassensível, logos, informação etc) não só
alterar o exterior, mas mesmo produzir para si sua própria materialidade. Desse
modo se tornam inteligíveis complicadas passagens como uma na introdução da
Fenomenologia, onde Hegel com grande sarcasmo critica o materialismo ao
dizer:
Quanto a essa alusão à experiência universal, que se nos permita
antecipar uma consideração atinente à prática. Nesse sentido pode-se
dizer aos que asseveram tal verdade e certeza da realidade dos objetos
sensíveis, que devem ser reenviados à escola inferior da sabedoria, isto
é, aos mistérios de Eleusis, de Ceres e de Baco, e aprender primeiro o
segredo de comer o pão e de beber o vinho. De fato, o iniciado nesses
mistérios não só chega à dúvida do ser das coisas sensíveis, mas até ao
seu desespero. O iniciado, consuma, de uma parte, o aniquilamento
dessas coisas, e, de outra, vê-las consumarem seu aniquilamento. Nem
mesmo os animais
estão excluídos dessa sabedoria, mas antes, se mostram iniciados no
seu mais profundo; pois não ficam diante das coisas sensíveis como em
si essentes, mas desesperando dessa realidade, e na plena certeza de
seu nada, as agarram sem mais e as consomem. E a natureza toda
celebra como eles esses mistérios revelados, que ensinam qual é a
verdade das coisas sensíveis59.
Hegel está aqui ridicularizando os materialistas, que querem representar
tudo como sendo uma relação material, mostrando-os o mistério do consumo de
alimentos60. O animal, esse conceito vivo que se move e que, portanto, deseja e
percebe61, diante das coisas materiais, ao invés de filosofar sobre elas tomando-
as como a verdade, simplesmente as consome. Mostra assim que não é o mundo

59 HEGEL, G. W. F. Fenomenologia do Espírito. 6. Ed. Tradução de Paulo Menezes.


Petrópolis: Vozes, 2011, p. 93.
60 O tema do consumo do alimento aparece constantemente em Aristóteles quando ele

relaciona dialeticamente momentos diferentes, ligando, por exemplo, a conversão em


semelhante do dessemelhante por meio da atividade, à diferença entre ato e potência.
Assim, diz ele “faz diferença, igualmente, se o alimento é aquilo que se adiciona no fim
ou aquilo que se adiciona no princípio. Se são ambos, um não digerido, o outro digerido,
será possível falar de «alimento» em ambos os sentidos” ARISTÓTELES, De Anima.,
Op.Cit., p.71. Ele vê a diferença lógico-temporal entre ato e potência como um fator de
transformação no qual o dessemelhante pode se tornar semelhante, e assim afirma que
“enquanto não digerido, o contrário é alimentado pelo contrário; enquanto digerido, o
semelhante é alimentado pelo semelhante” Ibid, p. 72. Em potência as dessemelhanças
permanecem como dessemelhanças, mas em ato ocorre o passar de um lado para o outro;
o que foi consumido é dessemelhante daquele que consome antes de ser consumido, mas
se torna parte dele (e, portanto, semelhante) após ter sido consumido, tema que Hegel
em passant retoma em sua Filosofia do Direito ao dizer que “o consumo de alimentos é
um penetrar e alterar a natureza qualitativa que faz que eles sejam o que são antes de se
aniquilarem” HEGEL, G. W. F. Princípios da filosofia do direito. São Paulo: Martins
Fontes, 1997, (Werke, 7, p. 116). Dando mais uma amostra de seu poder especulativo,
Aristóteles na citação acima não separa as perspectivas diferentes do ato por distintas
temporalidades às quais caberiam distintos pontos de vista, antes as coloca juntas para
declarar simultaneamente sua verdade e inverdade, e assim a existência da contradição
como coisa efetiva: “Assim, ambas as perspectivas estão, de algum modo, parcialmente
correctas e parcialmente incorrectas”. ARISTÓTELES, De Anima., Op.Cit., p. 74.
61 “o animal é capaz de mover-se a si mesmo em virtude de ser capaz de desejar. A

faculdade desiderativa, por sua vez, não existe sem a imaginação; e toda a imaginação é
racional ou perceptiva. Desta última, com efeito, os outros animais também participam”.
ARISTÓTELES, De Anima., Op.Cit., p.129.
sensível que é o verdadeiro, mas sim essa abstração encarnada, que deseja e que
se impõe sobre o material.

E aqui devemos considerar que por mais rudimentar que seja esse desejo
animal ele não pode ser entendido como pura determinação, pois comporta
sempre algum nível de liberdade. Como o próprio Darwin afirma no capítulo
sobre o Instinto, de seu Origem das Espécies, “uma pequena dose de julgamento
ou razão, como Pierre Huber coloca, frequentemente entra em jogo, mesmo com
animais baixos na escala da natureza”62, e está presente mesmo no nível de
consciência de uma ameba63. Essa espécie de intencionalidade do conceito vivo é
que molda assim o mundo. É o suprassensível, chame-se de fome ou outro
“interesse” do animal, que o impulsiona a agir sobre as coisas materiais e
transformá-las, e esse já é o conceito em sua forma mínima anterior ao espírito,
produzindo para si sua própria realidade. Assim se percebe já quão
preconceituosa é a visão daqueles que veem em Hegel um determinista. Para ele
mesmo a natureza não pode ser vista com lentes de um puro determinismo, mas
como conceito está já como um universal aberto para acolher o indeterminado.

Aristóteles alcançou uma concepção de teleologia diferente da teleologia


externa comumente entendida como utilidade ao apontar uma finalidade interna
própria do vivente. Hegel repetidamente enfatiza esse grande feito de Aristóteles

62 DARWIN, Charles. The Origin of Species: by means of natural selection or the


preservation of favored races in the struggle for life. New York: The Modern Library, p.
3. Tradução livre do inglês, p.184. Tradução livre do inglês. Darwin ainda relata ao
observar o comportamento de uma formiga: “eu permiti uma formiga visitá-los [os
pulgões], e ela imediatamente pareceu, por conta de seu ansioso jeito correr, estar
bastante consciente do rico rebanho que descobriu; ela começou então a brincar com sua
antena primeiro no abdômen de um pulgão e depois em outro; e cada um, tão logo tenha
sentido a antena, imediatamente levantou seu abdômen e excretou uma gota límpida de
fluído doce”. Ibid., p.186.
63 Uma excelente citação de Bergson ajuda a visualizar essa afirmação: “Pensem na

ameba de que falávamos há pouco. Em presença de uma substância que pode servir-lhe
de alimento, ela lança para fora de si filamentos capazes de capturar e englobar os corpos
estranhos. Esses pseudópodes são órgãos verdadeiros e, portanto, mecanismos; mas são
órgãos temporários, criados para essa circunstância e que, assim parece, já manifestam
um rudimento de escolha. Em resumo, de alto a baixo da vida animal vemos exercer-se,
embora de forma cada vez mais vaga à medida em que vamos descendo, a faculdade de
escolher, isto é, de responder a uma determinada excitação com movimentos menos ou
mais imprevistos”. BERGSON, Henri. A consciência e a vida. In: BERGSON, Henri. A
energia espiritual. São Paulo: Editora Martins Fontes, 2009, p. 09.
e diz ter sido esse seu “mérito infinito”64, que Kant parcialmente retomou65. De
modo muito similar às passagens de Hegel sobre a vida com as quais abrimos esse
tópico, diz Aristóteles que “a alma é a causa e o princípio do corpo que vive”66 e
que “a substância para todos os seres vivos, é viver, sendo a alma a sua causa e
princípio”67. O abstrato aqui domina o concreto. O estagirita desdobrou seu
argumento dizendo que o fim “é causa também enquanto aquilo em vista do qual:
tal como o entendimento age em vista de alguma coisa, a natureza age da mesma
maneira, e essa coisa é o seu fim”68. Ou seja, a finalidade ou teleologia deve
também ser compreendida como algo que se diz em relação às coisas fora do agir
utilitário humano. Essa finalidade interna, esse objetivo autorreferenciado da
manutenção do próprio vivente, é a forma primeira de aparição do que Hegel
chamou de para si. Como Aristóteles afirma “a alma é, nos animais, um fim desse
tipo, por natureza. É que todos os corpos naturais são instrumentos da alma –
tanto os dos animais como os das plantas –, de forma que existem tendo como
fim a alma”69. A vida assim existe como um fim em si mesmo em oposição ao
material de seus corpos, que aparecem como meio dessa finalidade.

A vida é um mediatizar dos materiais exteriores no metabolismo, a


unidade que toma a dispersão da matéria para si e a organiza conforme seu
próprio fim, sua própria existência. Com sua potência de ser sempre diferente do
que é mantendo-se ao mesmo tempo igual a si mesmo, o vivente se outorga o

64 No final da parte em que trata do conceito de conceito na Ciência da Lógica, Hegel diz
que: “É um mérito infinito de Aristóteles, mérito que tem de nos encher de suprema
admiração pela força desse espírito, ter empreendido primeiramente essa descrição. Mas
é necessário que se avance e que se conheça, em parte, a conexão sistemática, em parte,
o valor das formas” HEGEL, G. W. F. Ciência da Lógica. Vol. 3 – A doutrina do Conceito.
Op. Cit., p. 57.
65 “Com o conceito de finalidade interna, Kant ressuscitou a idéia em geral, e em

particular a idéia da vida. A determinação de Aristóteles da vida contém já a finalidade


interna, e está por isso infinitamente acima do conceito da teleologia moderna, que
somente tinha em vista a finalidade finita, a finalidade externa. Necessidade [Bedürfnis],
impulso são os exemplos que se situam mais próximos do fim. São a contradição sentida,
que encontra lugar no interior do próprio sujeito vivente, e entram na atividade de negar
essa negação, que é a subjetividade ainda simplesmente tal. A satisfação estabelece a paz
entre o sujeito e o objeto; enquanto o objetivo — que fica do outro lado na contradição
ainda presente (na necessidade) — é igualmente suprassumido, por meio da união com
o subjetivo”. HEGEL, G. W. F. Enciclopédia das Ciências Filosóficas em Compêndio.
Vol. I e III. São Paulo: Edições Loyola, 1995a, §204. (Werke, 8, p. 360-361)
66 ARISTÓTELES, De Anima., Op.Cit., 71.
67 Ibid., p. 72.
68 Ibid.
69 Ibid.
poder de colocar novas causalidades e construir o mundo onde só havia o
inorgânico. A consciência de si animal, justamente por tomar as diferenças para
si e ao mesmo tempo se intuir como um uno igual diante dessas diferenças, acaba
por ser o princípio que, ainda que “instintivamente”, já modela e organiza essas
diferenças do mundo conforme sua “intencionalidade”.

Estudos recentes como os realizados após a reintrodução dos lobos no


parque Yellowstone70 (eles foram dizimados 70 anos antes) tornaram clara à
ciência a potência transformadora da vida no mundo exterior. Não apenas a
reintrodução dos lobos gerou, por seu efeito no comportamento dos grandes
herbívoros, o aumento da biomassa vegetal e da variedade animal, como também
mudou o comportamento geofísico dos rios, que passaram a sofrer menos erosão
e assoreamento71. O poder negativo da vida de se colocar como o fator de
transformação do mundo é o responsável pela formação da terra como a
conhecemos, herança inestimável que o humano recebeu do longo processo
iniciado pelos seus mais simples ancestrais. Na superfície da terra, e mesmo em
suas entranhas de onde se extrai petróleo, por todo lado se encontra a marca
impositiva e transformadora do conceito vivo. Outro estudo recente revelou que
a ação das plantas tiveram um papel fundamental na transformação da superfície
do planeta, começando cerca de 400 milhões de anos atrás, ao reter em terra
firme a lama que anteriormente era dragada pelos rios e despejada nos oceanos72.
É esse conceito vivo, muito anterior ao humano, que construiu a superfície e a
atmosfera do planeta, o chamado “meio ambiente”, e é a base para as diferenças
entre o que temos na terra e nos outros planetas “mortos”.

Quando fala coisas como “o conceito produziu para si essas diferenças”, é


de um ponto de partida muito mais amplo que Hegel fala, que possibilita assim
não focar sua análise numa área específica, mas especulativamente abordar o
todo, nisso incluído não só espírito, mas também natureza. Não se trata de poesia

70 Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=fVfB4N_tvlE. Acesso em


dezembro 2019.
71 ARGERIS, Lianne. Trophic Cascade in Yellowstone National Park. 2017.

https://www.canafoundation.org/rewild-our-world/horses/trophic-cascade-in-
yellowstone-national-park/ Acesso em maio de 2018.
72 MCMAHON, William J; DAVIES, Neil S.Evolution of alluvial mudrock forced by early

land plants. Disponível em http://science.sciencemag.org/content/359/6379/1022.


Acesso em maio de 2018.
ou de figuras alegóricas dizer que o conceito produz para si suas diferenças, mas
de uma prosa muito bem determinada, que apreende que a própria vida tem
forma conceitual. Ela não deve ser entendida de maneira rebaixada, como um
mero objeto material sobre o qual o conceito é colocado de fora, mas antes contém
em si o que há de mais fundamental no conceito.

As noções de conceito e ideia de Hegel estão assim muito mais próximas


das noções aristotélicas de potência e ato, do que de um idealismo do mero
pensar. O conceito é a potencialidade viva, como toda a potência que existe em
uma pequena semente e que a impele a brotar e se tornar uma árvore
infinitamente maior. A ideia é essa realização da potência que é o conceito, a
árvore efetiva e não a semente que contém sua potencialidade. Tomando-se a vida
assim como essa forma mínima do suprassensível ou abstrato é que podemos
entender a complicada passagem de Hegel no prefácio da Fenomenologia do
Espírito, onde ele diz que a palavra importada “ideia” nada mais significa que
“espécie”:

o ser-aí é o "nous" e foi como tal que Anaxágoras reconheceu primeiro


a essência. Seus sucessores conceberam mais determinadamente a
natureza do ser-aí como "eidos" ou "idea", isto é, universalidade
determinada, espécie. A expressão espécie parece talvez demasiado
vulgar e pequena demais para as ideias, para o belo, o sagrado, o
eterno, que pululam no tempo atual. Mas, de fato, a idéia não exprime
nem mais nem menos que espécie. Ora, vemos hoje com freqüência que
é desprezada uma expressão que designa um conceito de maneira
determinada, enquanto se prefere outra que envolve de névoa o
conceito e assim ressoa mais edificante, talvez apenas porque pertence
a um idioma estrangeiro 73
Nous é comumente traduzido por “entendimento”, mas não o
entendimento discursivo, linguístico, mas justamente aquele entendimento
perceptivo e imaginativo que compartilhamos também com os demais animais. A
ênfase está não num entendimento como representado desde a época moderna,
um entendimento abstraído da realidade que simplesmente julga de maneira
distanciada, mas sim do entendimento encarnado no corpo, o ser-aí. A diferença
aqui poderia ser representada como a de um entendimento compreendido quase
como uma função de um sistema de computador para o entendimento que vemos
em ação nos demais animais, que pensam e sentem, e que “apenas’ não
desenvolvem a palavra. “Ideia” designa, segundo Hegel, exatamente o mesmo

73 HEGEL, G. W. F. Fenomenologia do Espírito. Op. Cit., p. 59.


que espécie, isso tanto no sentido efetivo de espécies naturais, como também de
outras universalidades determinadas, algo que toma a forma da universalidade
por uma necessidade, que traz em si a potência de sua efetivação. Como uma
semente de dada árvore, da qual se brota outra árvore similar e que só pode dar
origem a uma nova espécie por meio de uma grande cadeia de repetições na qual
esse conceito dela mesma se transformou. A transformação de uma espécie em
outra não é apenas a mudança externa na sua materialidade, mas mudança
justamente da sua abstração constitutiva, no caso dos seres vivos, diríamos hoje
de seu “código genético”. Por isso a determinação de um ser vivo não se encontra
apenas na empiria de seu desenvolvimento, nas contingências de sua história
como queria Lamarck com sua teoria do uso e desuso, mas numa lógica
constitutiva dada de antemão, uma potencialidade que impele à sua realização.

Dissemos acima junto com Darwin e Bergson que o desejo animal, por
mais rudimentar que seja, não pode ser entendido como mero instinto, como
mera programação objetiva e completamente determinada, mas que em todo
mundo animal, mesmo numa ameba, há algum grau de liberdade de escolha. Esse
ponto é fundamental, entender que o indeterminado, a potência de fazer surgir o
novo, não é algo que surge apenas com o simbólico humano, mas que acompanha
a vida desde o início. Só assim o conhecimento, o que há de propriamente
humano, pôde surgir a partir da base animal, porque já estava lá como uma
potência ainda não realizada. Porque esse caráter indeterminado da vida, esse
suprassensível que organiza o corpo, é a fagulha divina, o anima, que na evolução
para o humano vai se desdobrar e se exteriorizar na forma do espírito, do
conhecimento:

a vida é tão pouco inconcebível que nela deparamos, antes, com o


conceito mesmo; e mais precisamente com a ideia imediata, existindo
como conceito. Com isso tambem já esta expressa a deficiência da vida.
Essa deficiência consiste em que, aqui, conceito e realidade não
correspondem ainda verdadeiramente um ao outro. O conceito da vida
é a alma, e esse conceito tem o corpo por sua realidade. A Alma, por
assim dizer, esta difundida em sua corporeidade, de modo que é
somente sensível, mas nao ainda [um] livre ser-para-si. O processo da
vida consiste em superar a imediatez, a qual a vida ainda está presa, e
esse processo que por sua vez é ele mesmo um processo, triplice, tem
por seu resultado a ideia na forma do juizo; quer dizer, a ideia enquanto
conhecimento.74

74HEGEL, G. W. F. Enciclopédia das Ciências Filosóficas em Compêndio. Op. Cit.,


adendo ao §216. (Werke, 8, p. 374)
O suprassensível (novamente, chame-se de abstração, negativo, conceito,
logos etc) que estrutura o corpo é como que a primeira forma de um universal que
é para si, isso é, que se intui diferente do restante do mundo. A ameba, por
exemplo, para se mover atrás do alimento necessariamente já se intui diferente
desse75. É essa forma que se desenvolvendo na vida natural o faz também com os
sentidos e a percepção, até o ponto em que, em estágio muito elevado, permite o
desenvolvimento da linguagem e do intercâmbio de consciências, e assim, do “Eu
que é nós, o nós que é Eu”, o espírito, ou seja, tudo que é propriamente humano.

Desfeito o mal entendido básico sobre o que Hegel considera conceito, e


como esse tem sua forma elementar na vida, voltemos à definição marxista de
abstração real, como explica o seu talvez mais dedicado estudioso, Alfred Sohn
Rethel:

A origem da abstração-mercadoria se encontra, segundo a


determinação de Marx, em uma esfera que escapa completamente à
linguagem conceitual do pensamento metafísico. Esta nos refere das
coisas à consciência e da consciência às coisas: não existe uma terceira
opção. Ao contrário, a relação social que é derivada da abstração valor
não entra nesta dicotomia de coisas e da consciência: no quadro dos
conceitos tradicionais, o fenômeno da abstração mercadoria é um
absurdo, alguma coisa que, simplesmente, não pode existir. Ela se trata
como Marx a determina, de um processo espaço-temporal e de
natureza causal. Contudo, seu resultado é uma abstração, é dizer, um
efeito de natureza conceitual. Entre o mundo espaço-temporal das
coisas e o mundo ideal dos conceitos, o pensamento metafísico não
tolera nenhum elemento comum – estas são esferas separadas de
maneira antinômica.76
No caso da análise da vida como conceito estamos diante, para usar o
vocabulário marxista, justamente disso, de uma abstração real, mas uma que não
é a da forma mercantil. É um suprassensível que ordena o sensível, o próprio
corpo, e que, desenvolvida como espírito, permite criar outras abstrações reais do
mundo humano, como o capital ou o Estado. Não é mera coisa, nem mera
consciência, mas justamente o conceito que gera para si um corpo e é assim o
logos encarnado que molda a realidade material.

75 “É a si mesmo que alcança através do movimento de seu agir; e seu sentimento de si é


atingir-se só a si mesmo. Sendo assim, está sem dúvida presente a diferença entre o que
ele é, e o que ele busca.” Ibid., §257. (Werke, 3, p. 199)
76 SOHN-RETHEL, A., La Pensée Marchandise. Broissieux: Éd. du Croquant, 2010. p.52.

Tradução nossa do francês.


Deve-se aqui ainda enfatizar o óbvio: não existe capital, nem nenhuma
troca, sem seres humanos vivos que trabalhem e troquem. Quando Hegel diz que
o conceito em sua forma imediata é a vida, deve-se sempre entender esse caráter
imediato do conceito como responsável pela reprodução do mundo. Não há
sequer atmosfera sem o conjunto de seres que a produzem, sem o ecossistema. A
verdade do mundo não é a realidade como diretamente percebida pelos sentidos
ou que aparece na reflexão, como a concretude material de uma cidade com seus
prédios e avenidas, mas sim o conjunto vivo de seres, entre eles os humanos, que
constantemente a reproduz. Isso é o conceito em sua forma imediata, a vida em
geral que reproduz não só o meio-ambiente, mas também a vida humana que
reproduz todo nosso modo determinado de vida77. Por mais que o humano
individual e mesmo povos inteiros encontrem a matéria como resistente ao
esforço, e que assim o trabalho apareça como uma luta inglória contra a escassez
material, olhando-se em perspectiva a história natural e humana a produção do
mundo material se dá em conformidade com esse conceito, que progressivamente
faz valer sua vontade contra o sensível inorgânico:

O atual ponto de vista ao qual esse desenvolvimento conduziu é o de


que a forma do absoluto, que é mais elevada do que o ser e a essência,
é o conceito. Na medida em que ele, segundo esse lado, submeteu a si
o ser e a essência, aos quais, sob outros pontos de partida também
pertencem o sentimento, a intuição e a representação, e os quais
apareceram como suas condições prévias, e se mostrou como
fundamento incondicionado do ser e da essência, resta ainda o segundo
lado, a cujo tratamento é dedicado esse terceiro livro da Lógica, a saber,
a apresentação de como o conceito forma, dentro de si e a partir de si,
a realidade que desapareceu dentro dele.78
Cada humano vem ao mundo que existe como resultado do agir anterior
do conceito. Nesse resultado, pode parecer ao indivíduo que a materialidade
existe por si só, mas na verdade, como vimos, não só as cidades, mas mesmo nossa
atmosfera é resultado dessa ação anterior do conceito vivo. A realidade surge
assim no nível conceitual não como algo existente por si, mas como função do

77 “Como, pois, a efetividade é susceptível de uma dupla significação em virtude dessa


liberdade, então o mundo do indivíduo tem de ser concebido a partir do indivíduo
mesmo. A influência da efetividade, que é representada como essente em si e para si,
sobre o indivíduo, recebe através desse indivíduo o sentido absolutamente oposto: o
indivíduo, ou deixa correr imperturbado o fluxo da efetividade que o influencia, ou então
o interrompe e o inverte” HEGEL, G. W. F. Fenomenologia do Espírito. Op. Cit., p 221.
(Werke, 3, p. 232)
78 HEGEL, G. W. F. Ciência da Lógica. Vol. 3 – A doutrina do Conceito. Op. Cit., p.52.
conceito, isso é, função dessa abstração encarnada que são os seres vivos que
produzem e reproduzem constantemente o mundo ao redor, de maneira
consciente ou não. O conceito é assim a verdade desses momentos anteriores. Nas
partes 1 e 2 da Ciência da Lógica, primeiro se partia desse mundo material, do
ser, e depois da esfera reflexiva de mediações entre o ser e o conceito, que dá o
nível representativo, como se essas fossem verdade. Hegel enfatiza que essas
esferas são tomadas como verdade só enquanto o próprio conceito não se
apreendeu como estrutura mesma da realidade, ele mesmo limita sua potência
por estar preso a uma forma de entendimento ainda perceptivo ou representativo.

Os marxistas consideram em geral como a mais elevada parte da Ciência


da Lógica a segunda, a da lógica da essência, das determinações de reflexão e
assim da representação. Essa predileção pela parte da obra de Hegel que este
próprio não via como a mais elevada se dá por lá se encontrarem as
determinações mais utilizadas por Marx em O Capital, como quantidade, sua
relação com a qualidade etc. Os marxistas não percebem desse modo o beco sem
saída em que se colocam, porque assim, diante da brilhante e majestosa Crítica
da Economia Política erigida por Marx, ficam como que fascinados e tomam o
objeto de crítica, o capital, como a totalidade do Espírito. Desse modo não sobra
nada para se contrapor ao poder do capital, e comumente a crítica cai na
desesperança ou mesmo na glorificação de sua miséria, como se o crítico só fosse
crítico sendo pessimista. O verdadeiro mais alto acaba assim, de maneira mais ou
menos consciente, identificado pelos marxistas com o próprio capital, enquanto
Hegel, ao enfatizar que o conceito vivo é o verdadeiro, desbloqueia na teoria o
caminho para se pensar uma superação desse estágio civilizatório.

Na famosa frase de Marx “eles não sabem disso, mas o fazem”79, não está
dado justamente que o que limita o humano é não perceber que sua situação ele
mesma gera só porque representa a situação como sendo gerada por um Outro
supostamente existente por si? Quando fala em “fetichismo da mercadoria”, Marx
não denuncia que essa dominação do capital se funda num fetiche que pressupõe
justamente que ele existiria por si, independentemente da ação dos humanos?
Hegel ao apontar que no nível do conceito finalmente se concebe que são os
sujeitos vivos que constituem a realidade, que essa esfera de mediação

79 MARX, Karl. O Capital. Boitempo. Op. Cit., p.208.


(identificada por Marx com o Capital) é só uma fixação do entendimento limitado,
está apontando justamente para a superação dos fetichismos. Assim se entende
também o que é o Saber Absoluto, muito diferente das opiniões simplistas e
vaidosas que o mistificam como um suposto saber irrestrito de tudo. Leiamos sua
primeira definição na Fenomenologia, no trecho final da introdução:

A consciência, ao abrir caminho rumo à sua verdadeira existência, vai


atingir um ponto onde se despojará de sua aparência: a de estar presa
a algo estranho, que é só para ela, e que é como um outro. (...). E,
finalmente, ao apreender sua verdadeira essência, a consciência
mesma designará a natureza do próprio saber absoluto.80
A mensagem hegeliana aqui é uma mensagem profundamente
emancipatória, que anda junto com a crítica marxista do fetichismo mercantil.
Ele afirma que quando a consciência se desprender do “fetichismo” de achar que
ela é determinada por um Outro que ela mesma cria em seu desenvolvimento
(como o capital), ela mesma poderá determinar a estrutura da realidade, porque
vai entender que essa realidade é ela mesma quem constrói. Como nesse ponto a
consciência mesma decide a construção da realidade, ela mesma diz o limite do
saber, que por isso é absoluto, porque sabe que os limites para si estão não em
algo diferente, mas em si mesmo. O espírito elevado ao saber absoluto só pode
ser compreendido como o comunismo, onde o humano, conforme Marx, poderá
decidir como criar sua própria história.

A universalidade da contradição

Apresentadas as noções de conceito e ideia em sua forma imediata como


vida, retornemos agora ao outro ponto central para a compreensão da teoria do
suábio, o enunciado que diz “a contradição é o domínio do verdadeiro, a não
contradição o domínio do falso”. É claro que num artigo como esse é impossível
dissecar profundamente a universalidade da contradição, e quem quiser se
aprofundar nesse nível elevado do conceito vai encontrar aqui apenas uma
introdução destinada a evitar os mal-entendidos mais grosseiros que dominam
as representações sobre o tema.

79 HEGEL, G. W. F. Fenomenologia do Espírito. Op. Cit., p. 82. (Werke, 3, p. 81)


A questão central é a dos opostos em uma unidade, contradição, diferença
interior ou como queira se chamar81 essa estrutura em que duas coisas
mutuamente opostas só existem nessa unidade. Essa oposição na unidade
perpassa tudo, e por isso é difícil de ser apreendida, mas configura o mais
importante, como diz Hegel no início da Fenomenologia:

o essencial (...) é manter firmemente durante o curso todo da


investigação que os dois momentos, conceito e objeto, ser-para-um-
Outro e ser-em-si-mesmo incidem no interior do saber que
investigamos82
É o próprio entendimento com seu maravilhoso poder de dividir83 que
separa e isola esses lados (do que quer que seja pensado), e induz ao erro mais
comum, que é entender que esses lados que foram isolados pelo pensar podem
existir isoladamente, quando eles na efetividade só existem como opostos numa
unidade. Isso não significa que o dividir próprio ao entendimento e à
representação não sejam produtivos, pelo contrário, é justamente isolando uma
área do saber e desprezando a conexão interna com as demais que a ciência
normalmente progride, o que não permite uma desqualificação simples da
representação84. Conceitualmente tomados, entretanto, qualquer dos lados sem

81 Todas as três formas de chamar, entre outras possíveis, referem-se à mesma coisa.
Quem procurar compreender Hegel fazendo uma espécie de tipologia de seus conceitos,
procurando traduzir cada palavra como se sua significação se mostrasse em apartado,
terminará com um nominalismo vazio que só o afastará da compreensão do especulativo
e da dialética. Os problemas maiores que a teoria visa solucionar não são os de análise
isolada ou da determinação da identidade apartada de um “conceito” meramente
pensado, mas da análise que mostra que o efetivo é a contradição.
82 HEGEL, G. W. F. Fenomenologia do Espírito. Op. Cit., p. 78.
83 “Analisar uma representação, como ordinariamente se processava, não era outra coisa

que suprassumir a forma de seu Ser-bem-conhecido. Decompor uma representação em


seus elementos originários é retroceder a seus momentos que, pelo menos, não tenham
a forma da representação já encontrada, mas constituam a propriedade imediata do Si.
De certo, essa análise só vem a dar em pensamentos, que por sua vez são determinações
conhecidas, fixas e tranquilas. Mas é um momento essencial esse separado, que é
também inefetivo; uma vez que o concreto, só porque se divide e se faz inefetivo, é que
se move. A atividade do dividir é a força e o trabalho do entendimento, a força maior e
mais maravilhosa, ou melhor: a potência absoluta”. HEGEL, G.W.F. Fenomenologia do
Espírito, Op. Cit., p. 38.
84 Aqui deve-se colocar a seguinte “advertência” à crítica da representação, ainda que elas

forneçam apenas “o que flutua na superfície da época”, pois como afirma Silvio Rosa:
“De uma parte, a figura sistêmica da cientificidade está para o agregado da
paracientificidade, assim como as dificuldades da apreensão conceitual estão para as
facilidades em que se emoldura o registro da representação: expor as primeiras equivale
a encontrar, em certo sentido, as condições para levar a efeito uma travessia crítica das
segundas. Mas de outra parte, isso significa que a crítica do registro representativo,
mesmo quando coextensivo à esfera das ciências particulares, não autoriza a encetar,
pura e simplesmente, uma desqualificação destas últimas. Ao contrário, não somente é
sua contraparte são, entretanto, inefetivos, ou seja, são pensamentos que por
mais instrumentalizáveis que sejam, só existem em sua pureza como
pensamentos, pois na efetividade os lados já aparecem desde o princípio em sua
unidade de opostos, destacada das quais eles não subsistem:

Se o entendimento mostra que a ideia se contradiz a si mesma, porque,


por exemplo, o subjetivo é só subjetivo, e o objetivo é, antes, oposto a
ele; que o ser é algo totalmente outro que o conceito, e por conseguinte
não se pode fazer sair dele; também que o finito é só finito, e
exatamente o contrário do infinito; portanto não lhe é idêntico, e assim
por diante, através de todas as determinações; a Lógica mostra antes o
contrário, a saber, que o subjetivo que deve ser só subjetivo, o finito
que deve ser só finito, o infinito que deve ser só infinito, e assim por
diante, não têm verdade alguma; contradizem-se e passam para o seu
contrário. Com isso, esse passar e a unidade em que os extremos estão
enquanto suprassumidos — como um aparecer ou momentos —
revelam-se como sua verdade85.
Nessa apresentação, no entanto, ao invés de partirmos do entendimento,
colocaremos o tema conceitual a partir primeiro do “objeto” vida, fornecendo um
modo representativo de se alçar ao conceitual. Após essa apresentação do tema
em relação à vida, poderemos generalizá-lo mostrando como opera o
entendimento abstrato, revelando por meio dessa crítica a nova compreensão da
lógica desenvolvida por Hegel.

Colocar o problema da contradição a partir da análise da vida traz outras


vantagens, como deixar claro que a existência da contradição efetiva é anterior à
análise, contradição assim que não é um mero considerar exterior que um sujeito
faz sobre a coisa, um mero pensamento, mas a contradição constitutiva da vida
em todas suas formas. Como as demais abstrações efetivas ou reais – o capital,
o Estado, o mundo digital etc – dependem imediatamente da coletividade dos
seres vivos (humanos, mas não só). Nas determinações essenciais do vivente já
encontramos sempre a figura da unidade de opostos ou da contradição
constitutiva que é a base para toda a efetividade criada por ele. Aqui não há o que
se falar de reconciliação meramente pensada, que seria operada a posteriori pelo
sujeito que a analisa, pois a contradição é anterior e constitutiva por todo o lado

preciso pressupor a particularidade científica, como ainda é imprescindível, ao saber


filosófico, não se substituir a ela”. ROSA FILHO, Sílvio. Eclipse da Moral. Kant, Hegel e o
nascimento do cinismo contemporâneo. São Paulo: Barcarolla, 2009, p. 80.
85 HEGEL, G. W. F. Enciclopédia das Ciências Filosóficas em Compêndio. Op. Cit., §214.

(Werke, 8, p. 360-361)
que se olhe86. Dessa maneira o que na análise de alguns derivados da vida aparece
de maneira muito mediada, aqui aparece de maneira mais direta, imediata, o que
facilita a apreensão.

Em um ser vivo sua unidade constitutiva é dada pela relação entre duas
partes completamente distintas, corpo e vida (chame-se de alma, abstrato,
suprassensível, negativo, informação etc), que, apesar de aparecerem como
totalmente diferentes, só existem nessa unidade. O ser vivo não existe sem o
elemento material, seu corpo que se fragmenta na multiplicidade dos diferentes
membros e órgãos, nem sem o elemento conceitual, a vida, que coloca a unidade
suprassensível que mantém e reproduz organicamente o corpo. Se se tenta
representar o ser vivo como puramente material, se perde de vista como é
possível, por exemplo, que ele absorva o alimento e, dessa coisa diferente de si,
construa seu próprio corpo como um igual a si, ou mesmo que passe essa
informação que o constitui para sua prole. Perde-se em suma a unidade do
organismo que se apresenta como corpo por meio dessas múltiplas formas
especializadas (os diversos órgãos, membros etc) que compõe sua anatomia. É
por isso que, nessa dualidade corpo e alma, já está compreendida também a
forma mais geral de uma das mais importantes dualidades da filosofia, a existente
entre Uno e Múltiplo. Esses dois opostos só existem numa unidade efetiva e
querer opor um ao outro, como se não fossem o mesmo, resulta em uma mera
abstração unilateral do pensamento. O uno do organismo assim só existe por
meio do múltiplo que são suas células, órgãos, membros etc. Os órgãos e
membros também, só subsistem nessa relação com o Uno, pois como Aristóteles
já bem apontava, uma mão decepada é mão apenas no nome87. No organismo se

86 Esse conceito de conceito como vida, formulado por Hegel, como na análise da
mercadoria de Marx, trata de algo que só pode ser encarado de maneira especulativa,
como diz o suábio “na ciência do conceito, o conteúdo e a determinação do conceito
podem ser comprovados unicamente pela dedução imanente que contém sua gênese e
que já está atrás de nós” HEGEL, G. W. F. Ciência da Lógica. Vol. 3 – A doutrina do
Conceito. Op. Cit., p. 42. Tanto mercadoria quanto a vida surgiram antes que se pudesse
pensá-las, e assim sua dedução só se processa de maneira imanente, especulativa.
87 “os membros singulares do corpo só são o que são por sua unidade, e em relação com

ela. Assim, por exemplo, uma mão que é seccionada do corpo só é uma mão no nome,
mas não segundo a Coisa como Aristóteles já notara” HEGEL, G. W. F. Enciclopédia das
Ciências Filosóficas em Compêndio., Op. Cit., adendo ao § 216. (Werke, 8, p. 374) ou, em
outra passagem tratando dos limites da observação de animais mortos “apreende-se o
organismo segundo o aspecto abstrato da existência morta; seus momentos assim
capturados pertencem à anatomia e ao cadáver, não ao conhecimento e ao organismo
vivo. Como partes mortas, esse momentos já deixaram de ser, pois deixaram de ser
mostra muito claramente que os dois pólos, uno e múltiplo, só existem como
conjunto de opostos da mesma figura efetiva. Não existe uno sem múltiplo, nem
múltiplo sem uno, sempre que se coloca um lado imediatamente se refere
também ao outro.

Com isso já se distingue outro par de opostos, um dos mais evocados por
Hegel e também dos menos levados a sério: a oposição, constitutiva do ser vivo,
entre finitude e infinitude. Quando se fala em infinito se pensa geralmente num
idealismo barato de palavras grandiloquentes, místicas, mas esse termo em Hegel
trata apenas daquilo que é o efetivo, o verdadeiramente existente como potência
nunca completamente realizada em ato. Assim, por um lado a vida se realiza num
indivíduo determinado de uma espécie, esse indivíduo dá sua forma concreta e
finita, ele existe por um determinado tempo após o qual seu anima (chama-se,
novamente, de vida, suprassensível, abstração etc) se perde e o material do seu
corpo se dispersa, retornando ao inorgânico. Por outro lado o caráter abstrato e
indeterminado da vida é um infinito, ele não se encerra num ser vivo singular,
mas sim é passado para frente na reprodução, que se estende potencialmente até
o infinito. Assim infinito e finito se mostram como sendo partes opostas da
mesma coisa que é a vida em geral. Não se tratam de coisas diferentes, mas da
mesma coisa que só se apresenta nessa oposição. A potência infinita de se
reproduzir e mesmo de dar origem a novas espécies, que fez os primeiros seres
vivos evoluírem até o ser humano, não é uma fantasia ou misticismo, mas algo
totalmente efetivo, se realizando em cada ser vivo. Só por meio de seres finitos é
que a infinitude da vida se mostra, e também só por meio da potência da
infinitude inscrita no conceito vivo é que cada novo ser vivo determinado é
gerado. Quando se fala do finito imediatamente se traz seu oposto, o infinito,
oposição sem a qual ambos não podem subsistir. Não existe no Universo nenhum
finito que não se relacione com o todo infinito, bem como esse todo infinito
mesmo só existe como o conjunto interminável dos finitos, são, em suma a
mesma coisa e isolar um lado do outro só é possível como abstração unilateral do
pensamento.

processos. Pois o ser do organismo é essencialmente universalidade ou reflexão sobre si


mesmo”. Ibid., §276. (Werke, 3, p. 210 )
As noções de tempo e espaço em Hegel estão unidas desde muito antes de
Einstein, como também a compreensão de que estas abstrações todas estão
referenciadas numa espécie de observador, que tem no ser vivo e sua finalidade
interna (o para si) sua figura mínima. Hegel diz que a vida é “a essência simples
do tempo, que tem, nessa igualdade-consigo-mesma, a figura sólida do espaço”88.
Os componentes materiais que formam o corpo de um ser vivo, os átomos dos
diferentes elementos, se renovam constantemente por meio do consumo de
alimentos, da respiração etc. Desse lado, a mudança é permanente, mas do lado
da abstração que é a unidade do ser, a identidade do ser consigo mesmo, ele
permanece o mesmo ser do início ao fim de sua vida, apesar das mudanças
materiais em seu corpo, sua mudança de tamanho, de forma etc. Assim a figura
viva dá a forma do tempo, pois este é significativo apenas em relação a ela. O
mesmo se passa com o espaço, onde a unidade abstrata do organismo se realiza
como corpo que ocupa uma dada dimensão e se movimenta nesse elemento
extenso. Essas duas abstrações, quando consideradas unilateralmente, não
significam nada de efetivo, mas meras abstrações isoladas, pois não existe espaço
fora do tempo ou tempo fora do espaço89, a representação de um necessariamente

88 HEGEL, G. W. F. Enciclopédia das Ciências Filosóficas em Compêndio., § 169.


(Werke, 3, p. 140)
89 No terceiro capítulo da Fenomenologia, Hegel critica o entendimento abstrato,

separador, dizendo como ele procede: “Na lei do movimento, por exemplo, é necessário
que esse se divida em tempo e espaço, ou também em distância e velocidade. Sendo
apenas relação entre esses momentos, o movimento como universal está, sem dúvida,
dividido em si mesmo; mas então essas partes, tempo e espaço, distância e velocidade,
não exprimem nelas sua origem [comum] do Uno: são indiferentes entre si, o espaço é
representado como se pudesse ser sem o tempo; o tempo, sem o espaço; e a distância,
sem a velocidade pelo menos; assim como suas grandezas são indiferentes entre si, já
que não se relacionam como positivo e negativo e portanto não estão ligadas uma à outra
através de sua essência. Sem dúvida, a necessidade da divisão está aqui presente, mas
não a das partes como tais, uma em relação à outra. Por isso, também, aquela primeira
necessidade é apenas uma falsa necessidade ilusória; quer dizer, o movimento mesmo
não é representado como algo simples, ou como pura essência, se não como já dividido.
Tempo e espaço são suas partes independentes ou essências nelas mesmas; distância e
velocidade são maneiras de ser ou de representar que bem podem dar-se uma sem a outra
- e, portanto, o movimento é somente sua relação superficial, e não sua essência. O
movimento, representado como essência simples, ou como força, é justamente a
gravidade, a qual porém não contém nela essas diferenças em geral”. Mais à frente ele
retoma o tema dialeticamente e afirma o contrário do que criticava naquele
entendimento, que “por meio do conceito de diferença interior, esse desigual e
indiferente, espaço e tempo etc. são uma diferença que não é diferença nenhuma, ou
somente uma diferença de homônimo; e sua essência é a unidade. Em sua relação
recíproca são animados como o positivo e o negativo; mas seu ser consiste antes em pôr-
se como não-ser, em suprassumir-se na unidade. Subsistem ambos [os termos]
diferentes, são em si e são em si como opostos; isto é, cada qual é o oposto de si mesmo,
traz o outro. Ambos os polos, tempo e espaço, estão assim em relação a um ser
vivo, capaz de fornecer sua medida90. Não é possível falar de permanência, nem
mudança, a não ser pensando nesse aspecto temporal e espacial introduzido por
aquilo que tem vida. Claro que se pode hoje abstrair unilateralmente de toda a
base viva e social que produziu nossas concepções de tempo e de espaço e assim
querer representar a duração, digamos, de uma rotação da terra ao redor do sol,
como sendo o próprio tempo. Mas essa rotação não se apreende a si mesma, e
assim não coloca a diferença na identidade, e assim permanece indiferente. A vida
é um universal em oposição às formas perecíveis em que aparece e nisso também
se apresenta como a mínima forma da significação, da capacidade de entender o
tempo como essa ordem contínua (e ao mesmo tempo discreta) e eterna (e ao

tem o seu outro nele, e os dois são apenas uma unidade” HEGEL, G. W. F.
Fenomenologia do Espírito. Op. Cit., p. 128. Imediatamente após essa afirmação,
complementa Hegel, introduzindo aí a vida “Esta infinitude simples - ou o conceito
absoluto - deve-se chamar a essência simples da vida, a alma do mundo, o sangue
universal, que onipresente não é perturbado nem interrompido por nenhuma diferença,
mas que antes é todas as diferenças como também seu Ser-suprassumido; assim, pulsa
em si sem mover-se, treme em si sem inquietar-se. E igual-a-si-mesmo, pois as
diferenças são tautológicas; são diferenças que não são diferenças nenhumas. Portanto,
essa essência igual-a-si-mesma só a si mesma se refere. A si mesma; eis aí o Outro ao
qual a relação se dirige, e o relacionar-se consigo mesma é, antes, o fracionar-se, ou,
justamente, aquela igualdade-consigo-mesma é a diferença interior” Ibid., p. 129.
90 Uma primeira abordagem à colocação desses termos é facilitada se remetermos para

exemplos que Bergson dá para sua noção de vida como duração. Para o pensador francês,
diferentemente da matéria, “a vida empenha-se desde o início em conservar o passado e
antecipar o futuro numa duração em que passado, presente e futuro se encavalam e
formam uma continuidade indivisa” (BERGSON, Henri. A consciência e a vida. Op. Cit.,
p. 12.) e que “essa memória e essa antecipação são, como já vimos, a própria consciência”
que assim é “coextensiva à vida” (Ibid.). Com outras palavras, a “consciência é um traço
de união entre o passado e o futuro” (Ibid., p.06) e, se ela é assim “é precisamente porque
ela é chamada a escolher” pois “para escolher é preciso pensar no que se poderá fazer e
rememorar consequências” (Ibid., p.10). Bergson afirma mesmo como em formas mais
simples de vida como uma ameba, algum tipo de memória está sempre presente e que
isso distingue a vida da matéria inorgânica, que não guarda memória. O mundo físico-
químico ou o em-si tem seu desdobrar independente que não aparece para a vida, pois
“quando abro os olhos e torno novamente a fechá-los, a sensação de luz que experimento,
e que cabe em um dos meus momentos, é a condensação de uma história
extraordinariamente longa que se desenrola no mundo exterior” (Ibid, p. 15). Lá
acontecem “sucedendo-se umas às outras, trilhões de oscilações, ou seja, uma série tão
grande de eventos que, se eu quisesse conta-los, mesmo com a maior economia de tempo
me tomariam milhares de anos” (Ibid, p. 15), apesar de ocuparem “apenas um instante
de minha consciência pessoal, capaz de contráí-los numa sensação pitoresca de luz”
(Ibid, p. 15) pois “na confluência entre a consciência e a matéria, a sensação condensa na
duração que é atributo nosso (...) períodos imensos do que poderíamos chamar (...) de
duração das coisas” (Ibid, p. 15). Bergson ainda arremata se perguntando se “se nossa
percepção contrai assim os eventos da matéria” não é para que “nossa ação os domine?”
(Ibid, p. 15).
mesmo tempo atemporal, que se manifesta efetivamente como um eterno
presente, no qual passado e futuro são só projeções). O lado eterno é a infinitude,
mas esta só se mostra encarnada em um corpo finito, e assim a vida dá em sua
própria estrutura mínima os opostos da continuidade e da descontinuidade. Do
presente para o passado os acontecimentos ganham maior significação não só por
sua proximidade, mas pela própria marca da diferença que a acompanha. Mesmo
olhando a partir do hoje, por mais que as eras geológicas antes do seu surgimento
sejam supostamente muito mais longas do que as eras em que a vida existiu, só a
partir desta e do seu desdobrar numa multiplicidade diferenciada é que consegue
se preencher de sentido dado tempo. Isso se torna visível quando olhamos para a
linha do tempo de um Atlas de história que contemple a “história natural”.
Bilhões de anos antes do surgimento da vida resumem-se a poucas linhas pela
pura falta do que significar. Quando a vida surge é como se ela significasse em si,
mesmo quando ainda não pode gerar para si qualquer significação, pelo simples
fato dela ser um Universal, uma abstração que reúne diferentes momentos em
sua constituição, deles se diferenciando e por meio deles se mantendo.

Esses momentos todos em que vimos a unidade de opostos podem ser


assim como que resumidos numa proposição lógica que é a dessa figura de uma
identidade que já contém a diferença dentro de si, a diferença interior à
identidade. A diferença do múltiplo, por exemplo, é a mesma coisa que a
identidade do uno, os dois são o mesmo, do mesmo modo que no Universo todo
a única identidade entre todas as coisas é sua diferença. Isso não é um jogo de
palavras, é simplesmente a compreensão de que essas expressões diferentes (a
“diferença do múltiplo” e a “identidade do uno”) indicam o mesmo referente. A
identidade como pensada na lógica clássica e na formal, a identidade fixa que,
como na unidade abstrata matemática, exclui de si a diferença (e faz assim surgir
o princípio da não contradição), é a base do erro do entendimento, do abstrair
unilateral que não percebe a diferença na identidade:

a proposição da identidade soa “Tudo é idêntico consigo”; A = A; e,


negativamente: A não pode, ao mesmo tempo, ser A e não-A. Essa
proposição, em lugar de ser uma verdadeira lei-do-pensar, não é outra
coisa que a lei do entendimento abstrato. A forma da proposição já a
contradiz, ela mesma, porque uma proposição também promete uma
diferença entre sujeito e predicado; enquanto esta não fornece o que
sua forma exige.91
Não só essa forma de estabelecer o princípio não capta o movimento e o
evanescente permanecendo numa estática na qual não apenas não se sabe como
surgiu e para onde vai, como também não consegue atingir as determinações do
que é efetivo. Como Hegel afirma:

é da maior importância entender-se bem sobre a verdadeira


significação da identidade. Para isso, é preciso, antes de tudo, que não
seja apreendida simplesmente como identidade abstrata, isto é, como
identidade com exclusão da diferença92.
Este erro é o que se incorre ao se elencar como segundo princípio da lógica
a não contradição, fica-se perdido numa identidade imóvel e tautológica que na
realidade não exprime nenhum ser ou ente efetivamente existente. Por isso, para
Hegel “a essência é somente pura identidade e aparência em si mesma, enquanto
é a negatividade que se refere a si mesma, e por isso[o] repelir-se de si mesma;
contém assim essencialmente a determinação da diferença”93. Assim o que era
oposto aparece como diferença interior de uma identidade:

por meio do conceito de diferença interior, esse desigual e indiferente,


espaço e tempo etc. são uma diferença que não é diferença nenhuma,
ou somente uma diferença de homônimo; e sua essência é a unidade.
Em sua relação recíproca são animados como o positivo e o negativo;
mas seu ser consiste antes em pôr-se como não-ser, em suprassumir-
se na unidade. Subsistem ambos [os termos] diferentes, são em si e são
em si como opostos; isto é, cada qual é o oposto de si mesmo, tem o seu
outro nele, e os dois são apenas uma unidade.94
Aqui está um dos motivos principais da dificuldade de se ler Hegel, a falta
de compreensão dessa diferença interior que está em tudo, e, principalmente,
como o nível linguístico turva essa compreensão ao querer representar as coisas
na forma do juízo, do X = X. Nessa igualação abstrata perde-se a dimensão
constitutiva da diferença interior. Hegel expressamente chama a atenção dos
leitores para o fato de que “o enunciado, na forma de um juízo, não é apropriado
para expressar verdades especulativas”95 e que assim “a familiaridade com essa

91 HEGEL, G. W. F. Enciclopédia das Ciências Filosóficas em Compêndio., §115. (Werke,


8, p. 237)
92 Ibid., adendo ao §115. (Werke, 8, p. 238)
93 Ibid., §116. (Werke, 8, p. 239)
94 HEGEL, G. W. F. Fenomenologia do Espírito. Op. Cit., §161. (Werke, 3, p. 131-132)
95 HEGEL, G. W. F. Ciência da Lógica: Excertos. Seleção e tradução Marco Aurélio Werle.

São Paulo: Barcarolla, p. 80. (Werke, 5, p. 93)


circunstância seria apropriada para afastar muitos mal entendidos das verdades
especulativas”96. Analisemos isso mais detalhadamente a partir do exemplo
fundante da primeira parte da Ciência da Lógica. Quando Hegel diz que ao se
dizer “o ser e o nada são um e o mesmo” – tema inicial da lógica do ser – o
problema mais comum de interpretação é que “o acento é especialmente colocado
no ser um e o mesmo”, e assim:

O sentido parece ser, por conseguinte, que se nega a diferença que, no


entanto, ao mesmo tempo surge mediatamente no enunciado; pois ele
exprime ambas as determinações, ser e nada, e as contém como
distintas. Esse sentido resultaria por si mesmo como unilateral, que
aquilo do qual se deve abstrair está, todavia, presente no enunciado e é
nomeado. – Na medida em que o enunciado “o ser e o nada é o mesmo”
exprime a identidade dessas determinações, mas de fato contém
igualmente ambos como distintos, ele se contradiz a si em si mesmo e
se dissolve. Se apreendermos isso de modo mais preciso, temos aqui,
portanto, posto um enunciado que, considerado mais atentamente,
possui o movimento de desaparecer por meio de si mesmo. Mas, com
isso ocorre nele mesmo o que deve constituir seu conceito próprio, a
saber, o devir. O enunciado contém, assim, o resultado, ele é esse
resultado em si mesmo. A circunstância, porém, para a qual aqui tem
de ser chamada a atenção é a deficiência que o resultado não é ele
mesmo expressado no enunciado; é uma reflexão exterior que o
reconhece nele97
Ora, o enunciado de que “o ser e o nada são um e o mesmo” constitui um
oxímoro, locução que expressa um paradoxo, pois para um nível conceitual de
utilização da língua deve-se perceber que nessa formulação está expresso que o
ser e o nada são diferentes – já que são designados por nomes diferentes –
permanecendo ao mesmo tempo iguais. O princípio da não contradição e do
terceiro excluído não operam aqui onde a contradição aparece como essencial da
mensagem, e o princípio da identidade tem que ser imediatamente pensado com
o da diferença. Como Hegel diz, ao invés de dois enunciados separados que
expressariam uma antinomia aparente (ser e nada como diferentes e como a
mesma coisa), o especulativo deve manter os dois lados firmemente unidos,
gerando assim:

uma unificação que então apenas pode ser expressa como um


inquietação de incompatíveis ao mesmo tempo, como um movimento.
A injustiça mais comum contra o conteúdo especulativo é
torna-lo unilateral, isto é, ressaltar apenas um dos
enunciados nos quais ele pode ser dissolvido. Então não pode
ser negado que esse enunciado é afirmado; a indicação é tão correta

96 Ibid., p. 80-81. (Werke, 5, p. 93)


97 Ibid., p.80. (Werke, 5, p. 92-93)
quanto falsa, pois quando é tomado do especulativo um enunciado,
teria ao menos de ser observado e indicado igualmente o outro98 (grifo
meu)
Para as verdades especulativas surge essa necessidade de se expressar a
contradição, pois a contradição não é um defeito da análise, mas justamente o
verdadeiro que é nele mesmo contraditório e que no enunciado que toma a forma
do oximoro encontra sua expressão adequada. A divisão própria do
entendimento, que quebra as coisas em duas partes, pode ser considerada como
caso em que a linguagem ajuda, por meio de sua estrutura, a velar essa
contradição. A antinomia real se torna difícil de perceber, pois as duas palavras
arbitrariamente designadas não mantém a princípio, como significantes
linguísticos distintos que são, nenhuma relação entre si. Os sons “quente” e “frio”,
por exemplo, não guardam qualquer relação de similaridade entre si, antes são
colocados no nível linguístico, como se retratassem dois referentes
completamente distintos, como pau e pedra. No entanto ambos estão
indissociavelmente ligados como negativo e positivo, ou seja, no nível do
significado dizem respeito a dois polos diferentes da mesma “coisa”: a
temperatura como espécie de escala que vai de um extremo a outro, e que coloca
frio e quente com opostos necessários99. O que se designa como um dia frio para
um brasileiro, por exemplo, 15 graus, seria imediatamente considerado quente,
caso se tratasse do interior de um freezer. Essas palavras “frio” e “quente” não se
referenciam em dois referentes distintos, antes são opostos necessários, que
dizem respeito à mesma coisa. Esse ir de um extremo a outro foi apresentado nas
categorias básicas da vida como uno e múltiplo, infinito e finito, tempo e espaço
etc sendo indissociáveis entre si, o fundamento de um polo estando no outro. Os

98Ibid., p.81. (Werke, 5, p. 93)


99 O que, diga-se de passagem, Aristóteles já compreendia, pois como escreveu o stagirita:
“quente em acto é frio em potência e o frio em acto é quente em potência, pelo que, se
não forem equivalentes, mudam de um para o outro, o mesmo ocorrendo no caso dos
outros contrários”. ARISTÓTELES. Sobre a geração e a corrupção. In Obras Completas,
vol II – III, disponível em https://www.netmundi.org/home/wp-
content/uploads/2017/09/Aristóteles-Obras-Completas-Vol.-II-III-Sobre-a-geração-e-
a-corrupção.pdf, p. 193. Sua compreensão do problema da contradição, no entanto, não
se aprofundou e se determinou como em Hegel, e o próprio Aristóteles parece por vezes
indicar sua falta de clareza quanto à questão, quando como escreve que: “É necessário,
como alguns dizem, ou que tudo aquilo que aparece seja verdadeiro, ou que o engano
seja a acção de tocar o contrário, uma vez que isso é o inverso de conhecer o semelhante
pelo semelhante. É opinião comum, no entanto, que o engano e a ciência dos contrários
são o mesmo”. ARISTÓTELES, De Anima, Op. Cit., p. 109-110.
significantes da língua, no entanto, afastam um e outro como se ambos os termos
(por exemplo, quente e frio) fossem suficientes separadamente, como se com as
palavras diferentes se tratasse de coisas diferentes, cada uma existindo por si.

Assim, por exemplo, é possível usar a estrutura da língua para escamotear


a contradição que é anterior a ela e dizer que o contrário do negativo não seria o
positivo, mas o ‘não-negativo’, e que assim o contrário do positivo não é o
negativo, mas o ‘não-positivo’. O contrário do frio não seria o quente, mas o não-
quente etc. Desse modo a relação de alteridade necessária entre positivo e
negativo é escamoteada por uma manobra que se dá no nível superficial da língua,
e a aparência de não contradição é salva. A crítica de Hegel à reflexão como forma
do pensar própria do entendimento vai nesse sentido fundamental de reconhecer
ambos os lados como dizendo respeito à mesma coisa, e assim tomar um lado
como verdadeiro e outro como falso, é um erro em muito facilitado pela própria
estrutura da língua. Ela induz a aparência, por exemplo, de que primeiro haveria
sujeito e objeto separados, já que no próprio pensamento se parte primeiro dessas
palavras que já estão separadas como se cada uma designasse um universal que
subsistisse por si, para apenas posteriormente ligarmos elas por meio da reflexão.
O inverso, no entanto, é o verdadeiro: nunca houve um sujeito criado numa bolha
esvaziada ao qual posteriormente pudéssemos por meio da reflexão adicionarmos
o mundo de objetos, antes os dois polos se constituem numa unidade desde o
princípio100. Desde a mais simples forma de vida a divisão entre interior e exterior

100“o pensamento e o universal é justamente isto: é ele mesmo e seu Outro, apodera-se
desse Outro e nada lhe escapa. Enquanto a linguagem é a obra do pensamento, também
nela nada se pode dizer que não seja universal. O que eu apenas viso é meu
[meine/mein], pertence-me enquanto a este indivíduo particular; mas, se a linguagem
só expressa o universal, eu não posso dizer o que apenas viso. E o indizível — sentimento,
sensação — não é o mais excelente, o mais verdadeiro; e sim o mais insignificante, o mais
inverídico. Se eu digo: o “singular”, “este singular”, “aqui”, “agora”, tudo isso são
universalidades; tudo e cada um é algo singular, um este: e também, se for sensível, é um
aqui, um agora. Igualmente, se digo: “Eu”, eu viso a mim como este que exclui todos os
outros; mas o que eu digo “Eu”, cada um justamente o é: um Eu que exclui de si todos os
outros. Kant serviu-se da expressão inadequada — de que Eu acompanho todas as
minhas representações, e também sensações, desejos, ações etc. O Eu é o universal em si
e para si, e a comunidade é também uma forma de universalidade, mas uma forma
exterior. Todos os outros homens têm de comum comigo serem um Eu, assim como é
comum a todas as minhas sensações, representações etc. serem as minhas. Mas Eu,
abstratamente enquanto tal, é a pura relação consigo mesmo, na qual se abstrai do
representar, do sentir, de todo o estado como de toda a particularidade da natureza, do
talento, da experiência etc. Eu é, nessa medida, a existência da universalidade totalmente
abstrata, o abstratamente livre. Portanto o Eu é o pensar como sujeito, e, enquanto Eu
está implicada, um lado é constitutivo do outro, e apenas a abstração unilateral
operada pelo pensamento e induzida pela própria linguagem é que os pode
representar separadamente.

Na visão hegeliana o erro mais típico ao que o entendimento induz é o de


que possamos representar um negativo que exista sem positivo, um uno sem
múltiplo, finito sem infinito, ou seja, isolar por meio do pensamento um dos lados
e entender ele como o determinante ou essencial, quando ambos os opostos só
existem em uma unidade no qual os dois polos são fundamentais:

Assim, da representação da inversão que constitui a essência de um dos


lados do mundo supra-sensível, deve-se manter longe a representação
sensível da consolidação das diferenças num distinto elemento do
subsistir: [deve-se] representar e aprender em sua pureza esse conceito
absoluto da diferença como diferença interior - o repelir-se fora de si
mesmo do homônimo como homônimo, e o ser-igual do desigual
enquanto desigual. Há que pensar a mudança pura, ou a oposição em
si mesma: a contradição. Com efeito, na diferença que é uma
diferença interior, o oposto não é somente um dos dois - aliás
seria um essente, e não um oposto; mas sim o oposto de um
oposto, ou seja, nele está dado imediatamente o Outro. Ponho,
na certa, o contrário do lado de cá; e, do lado de lá, o Outro de que é o
contrário; portanto de um lado, o contrário em si e para si sem o Outro.
Mas, justamente porque tenho o contrário em si e para si, é o contrário
de si mesmo, ou seja, já tem de fato o Outro imediatamente em si
mesmo. Assim o mundo supra-sensível, que é o mundo invertido, tem,
ao mesmo tempo, o outro mundo ultrapassado, e dentro de si mesmo:
é para si o invertido, isto é, o invertido de si mesmo; é ele mesmo e seu
oposto numa unidade. Só assim ele é a diferença como interior, ou
como diferença em si mesma, ou como infinitude101 (grifo meu).
É sempre necessário considerar que dado uno só pode existir como
composto de partes diferentes, e que, no entanto, essa diferença só existe
efetivamente numa unidade, ou seja, numa relação de identidade. Não faz
sentido ter de priorizar um lado ao invés do outro, entendendo um como essencial
e outro como inessencial ou mera projeção102, erro muito comum que recai no

estou ao mesmo tempo em todas as minhas sensações, representações, estados etc. o


pensamento está em toda a parte presente e atravessa como categoria todas essas
determinações”. HEGEL, G. W. F. Enciclopédia das Ciências Filosóficas em Compêndio,
Op.Cit., §20. (Werke, 8, p. 74)
101 HEGEL, G. W. F. Fenomenologia do Espírito. Op. Cit., p. 128. (Werke, 3, p. 130-131)
102 “Na intuição empírica, um é o que intui empiricamente, o outro, o que é intuído

empiricamente; um, o que dá o nome, outro, aquele para o qual é dado um nome; e assim
um é o que concebe, outro, o que é concebido. É inútil notá-lo e, no entanto,
perfeitamente falso considerar, na intuição empírica assim como na memória e no
conhecimento conceitual, que tais momentos constitutivos da consciência sejam
reunidos a partir dos dois lados da oposição, de tal maneira que cada um deles contribua
mesmo problema de considerar um lado sem o outro. Como vimos Hegel dizer
acima “A injustiça mais comum contra o conteúdo especulativo é torna-lo
unilateral, isto é, ressaltar apenas um dos enunciados nos quais ele pode ser
dissolvido”103. A unidade cindida hegeliana é a reunião numa unidade do que é
lógico em todas essas diferenças. Não se trata, com certeza, da unidade simples
numericamente concebida, pois como diz Hegel:

A vazia unidade numérica talvez deva atribuir-se ao mundo, mas essa


determinação abstrata não apresenta, além disso, nenhum interesse
especial; antes, essa unidade numérica consiste em ser, precisamente,
em seu conteúdo a infinita pluralidade e multiformidade das
finitudes104.
Essa unidade simples, esse todo abstratamente considerado, é o que
geralmente vem à imaginação quando se fala de Hegel como um idealista. Nada
poderia ser mais injusto com o suábio, já que a unidade de opostos que preside o
pensamento hegeliano é justamente o que se opõe, como consideração lógica, a
essa consideração abstrata:

a filosofia tem, decerto, a ver-se com a unidade em geral, não porém


com a unidade abstrata, com a mera identidade e com o Absoluto vazio,
mas com a unidade concreta (do conceito), e que em todo o seu curso
só tem que ver-se com essa unidade — cada degrau de sua marcha para
a frente é uma determinação peculiar dessa unidade concreta; e a mais
profunda e última das determinações da unidade é a do espírito
absoluto. Ora, dos que querem julgar da filosofia e pronunciar-se sobre
ela, seria de exigir que se encaixem nessas determinações da unidade
e se esforcem por lhes adquirir a noção; pelo menos que saibam que há
uma grande multidão dessas determinações, e que entre elas há uma
grande diversidade. Mas eles se mostram ter tão pouco uma noção a
respeito, e menos ainda uma preocupação com isso, que antes, quando
ouvem falar de unidade — e a relação contém, de entrada, unidade —,
eles se atêm à unidade totalmente abstrata, indeterminada e abstraem
daquilo em que somente incide todo o interesse, a saber, no modo da
determinidade da unidade. Assim nada sabem enunciar sobre a
filosofia, a não ser que a sua identidade é seu princípio e resultado, e
que ela é o sistema da identidade. Mantendo-se nesse pensamento, sem
conceito, da identidade, nada compreenderam justamente da
identidade concreta, do conceito e do conteúdo da filosofia, mas antes
o que apreenderam foi seu contrário105.

para uma parte [na formação da] unidade; e falso se perguntar por aquilo que, nessa
reunião, seria o princípio ativo de cada parte”. HEGEL, C.W.F. Primeira Filosofia do
Espírito, APUD LEBRUN, Gérard. A Paciência do Conceito: ensaio sobre o discurso
hegeliano. Tradução de Silvio Rosa Filho. São Paulo: Editora da UNESP, 2006, p. 379.
103 HEGEL, G. W. F. Ciência da Lógica: Excertos. Op. Cit., p.81. (Werke, 5, p. 93)
104 HEGEL, G.W.F. Enciclopédia das Ciências Filosóficas. Op. Cit., p.6. (Werke, 10, p.

386)
105 Ibid., p. 9. (Werke, 10, p. 390)
A noção hegeliana de unidade de opostos, diferença interior ou dialética
(chame-se como quiser, contanto que se apreenda a necessidade da
oposição/diferença como constitutiva da unidade/identidade) se mostra numa
enorme multidão de “unidades” diferenciadas, em tudo que é efetivo. As
diferentes determinações dessas unidades como unidade de opostos é o que
caracteriza as diferenças do mundo efetivo, e a tarefa do saber é conhecê-las em
sua determinidade:

a questão é saber de que espécie é essa relação; e a peculiaridade e a


diferença completa de todas as coisas naturais, inorgânicas e viventes,
repousam somente na determinidade diversa dessa unidade”106.

Pequena observação sobre a realização da dialética

Como vimos acima, segundo Hegel a unidade de opostos é então a forma


geral, lógica, das unidades determinadas, isso é, de qualquer unidade efetiva. A
descoberta da determinação da unidade pela relação dos pares de opostos é não
só uma espécie de visada filosófica que pudesse ser representada de outra
maneira, mas é o que move a ciência em seus diversos campos, e engloba tudo.
Essa estrutura da contradição segundo Hegel pode e deve ser visto por todo lado,
sob pena de, ao não se fazer, recair numa abstração unilateral:

Quando em qualquer objeto ou conceito for mostrada a contradição —


e, por toda a parte, não há absolutamente nada em que não possa e
não deva ser mostrada a contradição, isto é, determinações opostas: o
abstrair do entendimento e o fixar-se à força em uma só
determinidade, é um esforço de obscurecer e de afastar a consciência
da outra determinidade.107
As grandes revoluções científicas coincidem nisso: aqueles fenômenos que
eram vistos como duas coisas completamente diferentes são em geral, por uma
nova teoria mais elevada, unificados. Não é uma unificação apenas pensada, mas
como que o reconhecimento de uma unidade de opostos que já era anterior à
análise. No entanto, cada nova teoria geralmente toma esse fato da unificação de
duas coisas que são a princípio diferentes como uma especificidade de seu próprio
campo, como se fosse uma especificidade de um objeto específico.

106 Ibid. (Werke,10, p. 390)


107 Ibid, §89. (Werke, 8, p. 194)
Em O Capital opera, como vimos por meio das análises do marxistas, a
mesma lógica geral. A mercadoria só pode se corretamente apreendida em sua
unidade contraditória de valor e valor de uso, o capital só na relação contraditória
com o trabalho e o próprio trabalho, como Marx aponta ter sido uma necessidade
primeiramente percebida por ele, só pode se apresentar na oposição entre
trabalho abstrato e trabalho concreto108; o capital então também deve se
apresentar, por sua vez, em variável e constante109 e assim por diante. Vimos
como os marxistas julgam ser essa característica dialética própria apenas desse
fenômeno mercantil, mas por onde quer se olhe com cuidado aparece a mesma
figura lógica da unidade de opostos. Vamos nesse curto espaço que nos resta
apenas apontar algumas mais dessas unidades contraditórias, além da já citada
estrutura da vida (em Aristóteles e Hegel) e do capital (em Marx).

Na comparação que o “pai da linguística”, Saussure, faz entre a língua e


uma folha de papel, mostrando seu caráter paradoxal, ou, em outras palavras,
como os dois lados opostos que a compõe são o mesmo:

A língua é ainda comparável a uma folha de papel: o pensamento é


frente e o som é o verso; nós não podemos recortar a frente sem
recortar ao mesmo tempo o verso; do mesmo modo na língua, nós não
saberíamos isolar nem o som do pensamento, nem o pensamento do
som; nós não conseguiríamos a não ser por uma abstração cujo
resultado seria fazer psicologia pura ou fonologia pura. A linguística
trabalha então sobre um terreno limítrofe onde os elementos de duas
ordens se combinam; esta combinação produz uma forma, não uma
substância110
A precaução de Saussure é justamente no sentido de evitar análises que
representariam a língua a partir do prisma do som ou, alternadamente, do
sentido. Ambos devem ser considerados ao mesmo tempo, e assim a unidade que

108 “Inicialmente, a mercadoria apareceu-nos como um duplo [Zwieschlächtiges] de


valor de uso e valor de troca. Mais tarde, mostrou-se que também o trabalho, na medida
em que se expressa no valor, já não possui os mesmos traços que lhe cabem como
produtor de valores de uso. Essa natureza dupla do trabalho contido na mercadoria foi
criticamente demonstrada pela primeira vez por mim. Como esse ponto é o centro em
torno do qual gira o entendimento da economia política, ele deve ser examinado mais de
perto”. MAR, Karl. O Capital. Boitempo, Op. Cit., p. 165.
109 “Recordo ao leitor que fui o primeiro a empregar as categorias de capital variável e

capital constante. Desde A. Smith, a economia política mistura confusamente as


determinações contidas nessas categorias com as diferenças formais, derivadas do
processo de circulação entre o capital fixo e o capital circulante” Ibid., Nota 67, página
1413.
110 SAUSSURE. Ferdinand de. Cours de Linguistique Générale. Paris: Payot, 1968.

Tradução livre do francês, p. 156-157.


provém dos dois não aparece mais como algo material, mas como uma forma
paradoxal que desde o início é constituída por dois polos diferentes e opostos,
significante e significado. Benveniste, um conhecido sucessor de Saussure,
sintetizou assim o que há de mais relevante na doutrina do genebrino:

Que é, então, esse objeto, que Saussure erige sobre uma tábua rasa de
todas as noções recebidas? Tocamos aqui no que há de primordial na
doutrina saussuriana, num princípio que presume uma intuição total
da linguagem, total ao mesmo tempo porque contém o conjunto da sua
teoria, e porque abarca a totalidade do seu objeto. Esse princípio é que
a linguagem, como quer que se estude, é sempre um objeto duplo
formado de duas partes cada uma das quais não tem valor a não ser
pela outra. Aí está, parece-me, o centro da doutrina, o princípio de onde
procede todo o aparato de noções e de distinções que forma o Cours
publicado. Realmente, tudo na linguagem tem de ser definido em
termos duplos; tudo traz a marca e o selo da dualidade opositiva:
- dualidade artículatória/acústica;
- dualidade do som e do sentido;
- dualidade do indivíduo e da sociedade;
- dualidade da língua e da fala;
- dualidade do material e do não-substancial;
- dualidade do "memorial" (paradigmático) e do sintagmático;
- dualidade da identidade e da oposição;
- dualidade do sincrônico e do diacrônico, etc.
E, mais uma vez, nenhum dos termos assim opostos tem valor por si
mesmo ou remete a uma realidade substancial; cada um deles adquire
o seu valor pelo fato de que se opõe ao outro.111
Tudo que dissemos da vida em relação ao jogo de oposições poderia ser
novamente dito da linguagem: As palavras todas de uma língua, seu múltiplo, só
existe em relação à unidade da língua como um todo, que como sistema uno provê
a significação das palavras individuais. Cada palavra, por outro lado, é um termo
finito com uma significação já assentada, mas seu encadeamento com outras
palavras em um discurso possibilita utilizar aqueles significados já determinados
para alcançar o novo, o indeterminado, ou, em outras palavras, prover
significações infinitas usando para isso apenas termos finitos. Finito e infinito,
uno e múltiplo aqui aparecem, novamente, como dois polos em que o
entendimento representa como diferentes o que é a mesma coisa. Pela
profundidade de sua compreensão dessa unidade de opostos na língua, Saussure
merecia ser colocado entre os mestres da dialética, apesar de, como os marxistas,

BENVENISTE, Émile. Problemas de linguística geral. São Paulo: Editora da USP,


111

1978, p. 43.
insistir por vezes que essa característica dúplice da unidade é específica de seu
objeto de análise, sem perceber como tal estrutura perpassa toda a efetividade112.

Na teoria física é relativamente simples, principalmente pela notoriedade


da escandalosa descoberta de Einstein, apontar que dois fenômenos que eram
considerados coisas diferentes (como tempo e espaço, energia e massa, onda e
partícula etc) são, na realidade, modos diferentes em que o entendimento capta
a mesma unidade. Foi necessário um enorme esforço teórico para se elevar além
da aparência imediata de diferença e alcançar a identidade disso que aparece
como diferente. Na física anterior esse tipo de progressão científica que atende à
forma geral hegeliana da unidade de opostos já se manifestava sobre outros
“objetos”. Clark Maxwell fez época ao descobrir que o magnetismo e a
eletricidade, até então enxergados como fenômenos diferentes, são expressões da
mesma coisa, um polo não podendo existir – e nem ser tecnicamente dominado
- sem o outro.

A dialética não se trata assim de algo distante ou de uma maneira


específica de análise que poderia ou não ser utilizada, pelo contrário, ela
corresponde à própria estrutura da efetividade, que é tudo. Sua realização não
teve de esperar ninguém, ela já existia na efetividade e se impôs na teoria como
necessidade prática por dentro das diferentes áreas, mesmo que seus

112“Eis aqui a nossa profissão de fé em matéria linguística: em outros domínios, pode


falar-se das coisas através deste ou daquele prisma, com a certeza de reencontrar um
terreno firme no próprio objeto. Em linguística, negamos em princípio que haja objetos
dados, que haja coisas que continuem a existir quando se passa de uma ordem de ideias
a outra e que seja possível, consequentemente, permitirmo-nos considerar "coisas" em
várias ordens, como se fossem determinadas por elas mesmas” SAUSSURE apud
BENVENISTE, Émile. Problemas de linguística geral. Op. Cit., p. 42. Sobre isso
comentava Benveniste, que “Saussure considerava tão importante mostrar ao linguista
‘o que ele faz’. Queria fazer compreender o erro em que se envolveu a linguística desde
que estuda a linguagem como uma coisa”. Ibid., p. 43. Se for considerado, como em Hegel
e em Aristóteles, que a vida mesma já não é algo puramente material, mas um conceito
encarnado, já se perceberia que ela também se trata de uma forma e não de uma pura
substância. Sua análise encontraria, como fizemos acima, o conjunto paradoxal de uma
unidade de opostos que permeia tudo, e não somente na língua ou em outros sistemas
de valores, como ele chega, genialmente, a afirmar: “Para além da língua, todos os valores
parecem regidos por este princípio paradoxal. Eles são sempre constituídos: 1- por uma
coisa diferente suscetível de ser trocada contra aquela na qual o valor está para ser
determinado; 2 – por coisas similares que nós podemos comparar com aquelas nas quais
o valor está em causa” SAUSSURE, Curso de Linguística Geral. Op. Cit., 1968, p. 159-
160.
desenvolvedores em áreas específicas não tenham dado a ela esse nome e nem
percebido sua conexão com fenômenos paradoxais similares de outras áreas.

No mundo digital essa forma de opostos numa unidade, que na língua


aparece apenas por meio de uma análise aprofundada como a de Saussure e de
outros sucessores como Jakobson113, aparece de maneira bastante imediata. Isso
não somente em relação às oposições que parecem repetir a oposição entre
abstrato e concreto, ou alma e corpo, como ocorre na oposição entre software e
hardware. No digital essa pura forma da oposição alcançou, por dentro da
matemática, o mesmo significado que o apontado por Hegel na Ciência da
Lógica, de que o ser e o nada marcam apenas polos opostos e idênticos, que
permitem, como combinação múltipla de identidades e diferenças, definir todas
as coisas:

o mesmo que foi dito anteriormente sobre a imediatidade e a mediação


(a última contém uma relação recíproca, ou seja, uma negação) deve
ser dito sobre o ser e o nada, a saber, que não existe em lugar algum,
nem no céu nem na terra, algo que não contenha em si mesmo ambos,
o ser e o nada. Sem dúvida, uma vez que aqui se trata de um algo
qualquer e de algo efetivo, assim aquelas determinações não existem
mais neles em perfeita inverdade, na qual eles são como ser e nada, mas
numa determinação ulterior e são, por exemplo, apreendidos como o
positivo e o negativo, aquele o ser posto, refletido, este o nada posto,
refletido; mas o positivo e o negativo contém, como seu fundamento
abstrato, um o ser, o outro o nada114
A lógica que analisamos, que deve sempre trazer a identidade junto com a
diferença, está presente no código binário no que este tem de fundamental. Com

113 A descoberta progressiva, pela Lingüística, de um principio dicotômico, que está na


base de todo o sistema dos traços distintivos da linguagem, foi corroborada pelo fato de
os engenheiros de comunicações empregarem signos binários (binary digits, ou bits, para
usar a “palavra-chave”) como uma unidade de medida. Quando eles definem a
informação seletiva de uma mensagem como o número mínimo de decisões binarias que
permitam ao receptor reconstruir aquilo que precisa extrair da mensagem, com base nos
dados já à sua disposição, esta forma realista é perfeitamente aplicável ao papel exercido
pelos traços distintivos da comunicação verbal. Tão logo se procurara “o meio de
reconhecer universais pelos seus invariantes”, e se esboçara uma classificação de
conjunto dos traços distintivos, com base nesses princípios, o problema de traduzir os
critérios propostos pelos lingüistas “numa linguagem matemática e instrumental” foi
imediatamente suscitado por D. Gabor em suas conferências sôbre a teoria da
comunicação. E recentemente se publicou um instrutivo estudo de G. Ungeheuer, que
apresenta um ensaio de interpretação matemática dos traços distintivos e de sua
estrutura binária” JAKOBSON, Roman. Linguística e comunicação. São Paulo: Cultrix.
1969, p.74-75.
114 HEGEL, G. W. F. Ciência da Lógica: Excertos. Op. Cit., p.74. (Werke, 5, p.86)
ele chega-se aos princípios mais simples115, ao mínimo múltiplo comum do
sentido, como Leibniz tão cedo quanto em 1703 já apontava:

o cálculo por dois, ou seja, por 0 e 1, em compensação por seu


comprimento, é o mais fundamental para a ciência e fornece novas
descobertas, que serão úteis mais tarde, mesmo para a prática dos
números, e especialmente para geometria; e a razão para isso é a de que
os números são reduzidos aos princípios mais simples116
No desenvolvimento posterior do código binário por Boole não se trata
mais, como na matemática decimal, de um interesse pela unidade abstrata, pelo
puro quantum, mas antes disso, visa-se fundar um sistema de combinação de
diferenças e identidades que pode reproduzir no digital as diferenças
qualitativas117. Não se objetiva mais assim uma pluralidade abstrata de numerais
que expressam apenas quantidade, mas da abstração da quantidade até que dela
se retire apenas o polo da unidade e da diferença, que assim permite diferenciar
as qualidades como numa combinação de luz e sombra, que nos dá o mundo
visível. Reduziu-se tudo à oposição, e dela, como mínimo múltiplo comum do
sentido, se permite reconstruir a miríade de diferenças e identidades. Como no
jogo entre luz e sombra, que permite ver, já que na pura luz, como na pura
sombra, nada é visível118. O um só existe em oposição ao zero e vice versa, como

115 “Vemos aqui de relance o motivo de uma famosa propriedade da dupla progressão
geométrica em números inteiros, o que significa que, se tivermos apenas um desses
números de cada grau, poderemos incluir todos outros números inteiros abaixo do
número binário de grau mais alto”. LEIBNIZ, Godefroy-Guillaume. Explication de
l’arithmétique binaire, qui se sert des seuls caractères O et I avec des remarques sur son
utilité et sur ce qu’elle donne le sens des anciennes figures chinoises de Fohy. Mémoires
de mathématique et de physique de l’Académie royale des sciences, Académie royale des
sciences, 1703, p. 85-86.
116 Ibid, p. 87.
117 “Em virtude do princípio, de que uma proposição é ou verdadeira ou falsa todo símbolo

elegível utilizado na expressão de hipóteses admite apenas valores de 0 e 1, os quais são


as únicas formas quantitativas de um símbolo eletivo. É de fato possível partindo da
teoria das probabilidades (que é puramente quantitativa), chegar a um sistema de
métodos e processos para o tratamento de hipóteses exatamente similar àqueles que
foram dados. Os dois sistemas de símbolos eletivos e de quantidade se beijam, se eu
puder usar a expressão, nos pontos de 0 e 1. Parece para mim estar implicado nisso, que
a verdade incondicional (categórica) e a verdade provável se encontram na constituição
da verdade contingente; (hipotéticas). A doutrina geral dos símbolos eletivos e todas as
outras aplicações características são independentes de qualquer origem quantitativa”.
BOOLE, George. The Mathematical Analysis of Logic: Being na Essay Towards a
Calculus of Deductive Reasoning. New York, 1948 (original 1847): Philosofical Library,
p. 82.
118 “Certamente representamos diante de nós o ser – por exemplo, com a imagem da pura

luz, com a clareza da visão não turvada, e o nada, porém, representamos como sendo a
pura noite – e ligamos sua diferença a essa diversidade sensível bastante conhecida. De
fato, porém, quando também representamos esse ser de modo mais exato, podemos
o ser e o nada, e são como as determinações mais básicas, que funcionam como
marcadores de negativo e positivo, permitindo assim, ao relacionar o polo da
identidade e da diferença, reproduzir a multiplicidade efetiva. Tudo no digital –
seja uma foto, uma música, um vídeo ou um texto - aparece como essa
combinação de um e zero, de modo estruturalmente dialético. O código binário
assim expressa apenas isso, que a diferença está junta com a identidade e que na
combinação desses dois polos se torna possível emular qualquer outra diferença
e identidade. É como o mínimo múltiplo comum da possibilidade de sentido, que
permite expressar a diferença que é interior à identidade.

facilmente perceber que não vemos tanto na clareza absoluta quanto na escuridão
absoluta; que um ver como o outro ver, o puro ver, são um ver nada. A pura luz e a pura
escuridão são dois vazios iguais. Algo pode ser distinguido primeiramente na luz
determinada – e a luz é determinada por meio da escuridão – portanto, na luz turvada e,
do mesmo modo, primeiramente na escuridão determinada – e a escuridão é
determinada por meio da luz – na escuridão clareada, pois primeiramente a luz turva e
a escuridão clareada têm a diferença nelas mesmas e, assim, são um ser determinado,
existência”. HEGEL, G. W. F. Ciência da Lógica: Excertos. Op. Cit., p. 83. (Werke, 5, p.
96)
BIBLIOGRAFIA UTILIZADA

ADORNO, Theodor. Três Estudos Sobre Hegel. Tradução, Apresentação e Notas por
Francisco López Toledo Corrêa. Guarulhos: Dissertação de Mestrado, UNIFESP, 2015.

ALTHUSSER, Louis. Advertência aos Leitores do Livro I d’O Capital in Marx, Karl, O
Capital, São Paulo: Boitempo, 2011.

ARGERIS, Lianne. Trophic Cascade in Yellowstone National Park. 2017.


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yellowstone-national-park/ Acesso em maio de 2018.

ARISTÓTELES. Sobre a geração e a corrupção. In Obras Completas, vol II – III,


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