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ENTREVISTA INTERVIEW 333

Entrevista: José Paulo Netto

Interview: José Paulo Netto

José Paulo Netto é Professor Emérito da Univer- José Paulo Netto is Professor Emeritus at the
sidade Federal do Rio de Janeiro (vinculado à Federal University of Rio de Janeiro (linked to
Escola de Serviço Social) e um conhecido in- the School of Social Service) and a known Bra-
telectual marxista brasileiro. Doutor em Serviço zilian Marxist intellectual. Holding a Doctorate
Social, Netto se destaca como autor de obras que in Social Work, Netto stands out as the author
também apresentam, de forma didática e sem re- of works that have also outlined Marxist thought
ducionismos, o pensamento marxista. Dentre in a didactic manner and without any reductio-
tais obras, lembramos O que é marxismo (Bra- nism. Among these works, we mention "O que
siliense) e, mais recentemente, o livro Economia é marxismo" (Brasiliense), more recently "Econo-
política: uma introdução crítica, em co-autoria mia política: uma introdução crítica," in co-au-
com Marcelo Braz (Cortez), e o volume, com a co- thorship with Marcelo Braz (Cortez), and the vo-
laboração de Miguel Yoshida, de Marx-Engels, lume, with the collaboration of Miguel Yoshida,
Cultura, arte e literatura: textos escolhidos (Ex- from Marx-Engels, "Cultura, arte e literatura:
pressão Popular). Com Carlos Nelson Coutinho, textos escolhidos" (Expressão Popular). With
organizou três volumes de textos de G. Lukács Carlos Nelson Coutinho, he organized three vo-
(O jovem Marx, Socialismo e democratização e lumes of texts written by G. Lukács (“O jovem
Arte e sociedade, todos pela Editora UFRJ). Marx”, “Socialismo e democratização” and “Arte
Nesta entrevista,1 Netto discute principalmente e sociedade”, all by Editora UFRJ).
a dialética a partir da matriz marxista, enten- In this interview, Netto discusses, mainly, dia-
dendo-a tanto como um método de apreensão da lectics under the Marxist framework, understan-
realidade quanto como o movimento do real. ding it both as a method of apprehending rea-
Para Netto, Marx, a despeito de ter deixado pou- lity and as the movement of the real. To Netto,
cos escritos sobre o tema, constitui uma referên- although Marx did not write much on the sub-
cia fundamental para aqueles que buscam, hoje, ject, he is an essential benchmark for those who
pensar e transformar de forma objetiva a reali- today are looking to analyze and transform rea-
dade. Seguindo esta temática, a entrevista trata lity objectively. In line with this theme, the inter-
ainda da relação entre teoria e prática, das po- view also deals with the relationship between
tencialidades do conhecimento científico e da theory and practice, the potential of scientific
lógica acadêmica contemporânea. knowledge, and the contemporary academic logic.

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Revista ele, é o método para pensar o mundo enquanto


Para o pensamento marxista, a dialética nomeia movimento.
tanto um método de conhecimento da realidade
quanto o movimento da própria realidade. Eu Revista
queria que você falasse um pouco sobre esse Como se situa a contradição no pensamento
conceito. Você poderia discorrer sobre ele, em hegeliano?
linhas gerais?
José Paulo Netto
José Paulo Netto O movimento do ser não é um movimento qual-
Quando pensamos na palavra ‘dialética’, vemos quer: é na verdade um automovimento, ou seja,
como certas categorias filosóficas, quando se um movimento que tem a sua força motriz, a sua
tornam de uso comum, entrando na linguagem dinâmica, no próprio ser. E, além de não ser
cotidiana, na mídia etc., frequentemente per- movimento qualquer, é um movimento que tem
dem o seu sentido rigoroso. Eu costumo dizer, seu dinamismo fundado na contradição. A é ao
brincando, que a palavra ‘dialética’ é uma es- mesmo tempo A e não-A; A é ao mesmo tempo a
pécie de panaceia ou recurso de macumba que afirmação de si contendo forças que negam essa
resolve todos os problemas. Quem tem uma fu- afirmação. É desse confronto entre a afirmação
maça de cultura de esquerda, quando se depara de A e aquilo que é a negação de A que vai sur-
com alguma coisa complicada, geralmente afir- gir o diferente, o outro. Mas o outro, se é novo
ma: “Isto é um processo dialético”. Com isso, não em relação a A, traz em si os traços da positivi-
se diz coisa nenhuma. Se tratarmos o tema com dade de A. Por isso não é uma simples negação:
um mínimo de rigor e seriedade, para além do é uma negação da negação que conduz a um no-
senso comum, veremos que a palavra comparece vo – Hegel diria: em um nível superior – mas
no marco das noções e conceitos ainda da nas- conservando, metamorfoseados, elementos ori-
cente filosofia, na Grécia. Então, dialética deno- ginais. Isso seria a dimensão tríplice do movi-
tava um método discursivo, uma forma retórica. mento da lógica dialética de Hegel: uma afir-
Ao longo da história da filosofia no Ocidente, mação, uma negação e a negação da negação,
ora a dialética se referiu a esse significado origi- que se pode chamar de superação. Numa lin-
nal, ora ganhou outros sentidos. guagem que se tornou comum: tese, antítese e
Na entrada da Modernidade, ela se constituiu síntese. Mas isso não significa que aquela lógica
como pedra angular do pensamento de Hegel, formal que vem de Aristóteles é falsa; ela é ape-
um filósofo que é, até hoje, para muitos, um nas unilateral, insuficiente. O método dialético
pensador enigmático ou, no limite, cheio de supera essa unilateralidade.
obscuridades. Para Hegel, o que era dialética? Você dirá: isso é muito complicado, muito con-
De forma muito breve, pode-se dizer que era um fuso, muito difícil! O difícil não é o método.
modo de pensar o mundo, um ‘método’. Em Porque esse método apreende que aquilo que ele
Hegel, esse método constitui uma superação da estuda – o ser, que está sempre em movimento,
grande tradição intelectual que vem desde dinamizado pelas contradições – é que é com-
Aristóteles. Se você fala em método, logo está plexo. Mas note: Hegel é um pensador idealista.
pensando em lógica. Aristóteles é o fundador de Isso significa que, antes do ser material, tem-se
uma lógica rigorosa que vai ser conhecida nos um ser ideal, que cria, põe, esse ser material ao
manuais de filosofia como ‘lógica formal’, que se se contradizer, ao desdobrar-se, cindir-se, obje-
funda numa série de princípios e elementos. Um tivar-se. Em Hegel, o primário é o Espírito que,
princípio importante, por exemplo, é o da não- num automovimento, instaura a sua negação, ela
identidade: A não é igual a não-A. Hegel diria mesma também automovida. Uma série de pen-
que essa é uma forma de pensar o mundo que sadores operou uma análise crítica da obra de
não é falsa, mas é unilateral, insuficiente. Por Hegel e, entre eles, muitos filósofos materialis-
quê? Porque A, se é diferente de não-A, é simul- tas, que contribuíram para desenvolver a dia-
taneamente igual a não-A. Pode parecer muito lética numa direção diversa da de Hegel. Mate-
confuso, mas o que Hegel está querendo dizer é rialista, aqui, significa simplesmente o seguinte:
que o ‘mundo é um processo, movimento’. Em no ser, o primado da existência (se você quiser: o
Hegel, o ser é processualidade. A dialética, para primado ontológico) é material – não há nenhuma

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negação do espírito, das realidades anímicas, na- refeições... A vida cotidiana, na sua imediatici-
da disso. Essas dimensões anímicas, do espírito, dade, não mostra o movimento do ser.
são produtos de uma longa, complexa e contra-
ditória evolução do ser material. Para evitar qual- Revista
quer equívoco, é melhor esclarecer: o materia- O conhecimento dialético do mundo, então, é
lismo a que aqui se refere implica o ateísmo, mas dificultado pela vida cotidiana, que mobiliza
ele é muito mais do que o ateísmo. outros saberes, baseados, sobretudo, na expe-
riência. Em que medida a experiência produz
Revista conhecimento?
Qual a relação histórica entre Marx e Hegel no
que tange à dialética? José Paulo Netto
O conhecimento começa com a experiência, tem
José Paulo Netto nela seu ponto de partida. Mas apenas o ponto
Para ser curto e grosso: sem Hegel, Marx é im- de partida. Permita-me um exemplo bem sim-
pensável. Marx partiu da dialética de Hegel, ples. Você nasce aqui, no lugar x, onde está sua
recolhendo-a mediante uma crítica rigorosa e casa, e tem a experiência cotidiana, ao longo de
profunda; tomou-a como o movimento do real, toda a sua vida, de ver que a sua casa está no
ou seja, o automovimento efetivo da realidade, mesmo lugar. Você observa e constata que o sol
seja a natureza ou a história e a cultura (ainda nasce num ponto específico pela manhã, naqui-
que sua atenção básica tenha se voltado para a lo que você chama de meio-dia ele está ali em
sociedade ou, na expressão de Lukács, para o ser cima e de tarde ele se esconde. O que a sua ex-
social). Para Marx, pois, a dialética é objetiva. periência cotidiana lhe mostra? Que a terra,
É importante destacar que o fato de só Hegel ter onde está sua casa, está paradinha e o sol se
posto a dialética no centro da reflexão filosófica movimenta em torno dela. Essa é a experiência
não significa que a dialética nasce com Hegel. imediata de todos os homens. Mas o que essa ex-
Como algo objetivo, é claro que ela independe periência mostra é verdadeiro? O conhecimento
do conhecimento (ou da consciência) que se tenha e a própria prática social demonstram que não.
dela. Ela é objetiva em razão de o ser constituir- Sabemos, comprovadamente, que a terra não es-
se dialeticamente. Mas foi com Hegel que ela tá parada, é ela que gira em torno do sol. Isso
se construiu como o que podemos chamar de significa que o conhecimento rigoroso, profun-
‘dialética subjetiva’, ou seja, como o modo mais do, da essência, da estrutura íntima dos fenô-
adequado para compreender o ser e seu movi- menos, não pode se limitar a essa experiência
mento – vale dizer, estritamente, como método. cotidiana. A aparência dos fenômenos é abso-
E o método de Marx é dialético exatamente lutamente importante porque começamos a
neste sentido: como o modo mais adequado para conhecê-los a partir dela – o que não tem qual-
conhecer o ser social. quer aparência não pode ser conhecido. Mas o
É evidente que este é um método muito difícil conhecimento veraz, verdadeiro, parte da apa-
de ser utilizado, porque os homens não pensam rência dos fenômenos para encontrar a sua essên-
em abstrato: pensam a partir dos problemas, dos cia, a sua estrutura íntima e o seu movimento.
impasses, dos dilemas que são postos na vida A nossa vida cotidiana e os seus quadros sociais
cotidiana – com a sua heterogeneidade e a sua ne- contribuem para que o pensamento dialético se-
cessária imediaticidade. E nenhum homem pode ja pouco favorecido. Recorro a outra ilustração
suspender sua relação com a vida cotidiana senão simples: imagine se você acorda e reflete: o mun-
por momentos. O cientista que está no labora- do está numa mudança constante, cheio de con-
tório, o filósofo que está refletindo, o romancista tradições, tudo se move e tenho que conhecer o
que está criando – nesses momentos, eles se sus- conjunto desta dinâmica para... Se pensar assim,
pendem de sua vida cotidiana e concentram e você não se levanta da cama. É preciso manipu-
direcionam a sua energia para um objeto deter- lar o mundo, intervir no mundo. E você precisa
minado. Nesses momentos, empenham toda a das oposições imediatas para poder se mover:
sua energia nas suas criações e descobertas. Mas precisa saber que o alto se opõe ao baixo, que o
eles depois tomam ônibus, enfrentam o trânsito quente se opõe ao frio, que o sólido se opõe ao
em seus carros, voltam para casa, fazem suas líquido ou ao gasoso etc. E essas discriminações

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que você faz não são falsas, são apenas unila- como trabalhador partir da sua vida prática, que
terais. Mas sem elas você não vive. Ora, o pen- se dá lá na fábrica. Se não dispuser de uma ela-
samento dialético implica que você, reconhecen- boração teórica que lhe abra caminhos para além
do essas determinações – alto/baixo, perto/longe, da experiência prática e imediata, ele só vai con-
branco/preto –, saiba que o branco é diferente seguir chegar à ideia de que há injustiças so-
do preto, mas que ele pode tornar-se preto e por ciais neste mundo: ele trabalha muito, a empre-
assim adiante... Então, pensar dialeticamente sa cresce, seus proprietários individuais e cole-
traz uma série de exigências que vão na contra- tivos enriquecem e ele não. Veja como o mundo
corrente da instrumentalização, da manipulação é injusto! Isso não é falso, mas não leva à com-
que nós praticamos com os fatos do mundo. Es- preensão dos mecanismos que põem e repõem as
sa manipulação é necessária, mas nos dá uma vi- bases da injustiça percebida. Para chegar a esta
são que não é da totalidade do mundo, que não compreensão, ele precisa estudar a crítica da eco-
nos permite perceber a processualidade e a di- nomia política, que não está na vida cotidiana:
nâmica do mundo e a natureza dessa dinâmica. é resultado de uma larga elaboração teórica que
Pensar dialeticamente supõe uma formação teó- partiu da vida cotidiana, mas produziu e utili-
rica, pesquisa, estudo constante, e supõe que se zou categorias, investigações, instrumentos heurís-
aproprie da herança cultural que vem, pelo ticos para entender por que a realidade parece –
menos, de Hegel a nossos dias. Isso é absoluta- e é, de fato, segundo determinados padrões éti-
mente importante não apenas para termos uma cos – injusta. Se permanecer no nível imediato
relação mais eficiente com a natureza e com o da sua prática, jamais ele vai encontrar uma
mundo que instrumentalizamos e manipulamos, jovem senhora – que hoje já é uma velha ca-
mas, sobretudo, para que possamos adquirir o quética – chamada mais-valia. Ninguém nunca
conhecimento teórico-científico verdadeiro do cumprimentou a senhora mais-valia. Eu estou
conjunto da nossa vida. Porque a nossa vida não sinalizando isso porque importantes grupos e
é um amontoado de pequenos segmentos: ela é movimentos sociais se esforçam para elaborar
uma totalidade que se insere numa totalidade um conhecimento sobre o mundo limitando-se à
maior, que é a nossa sociedade, que não existe experiência cotidiana. Ora, este conhecimento
sem a sua relação unitária (não identitária) com tem que transcender a cotidianidade e sua prá-
outra totalidade que é a natureza. São essas to- tica imediata. É só nesta transcendência que a
talidades que constituem o ser. É evidente que dialética do real pode aparecer. A dialética é um
isso supõe pesquisa, reflexão. É difícil com- movimento real. Mas para que ela apareça como
preender o mundo? É dificílimo. Porque o mun- um movimento real, há que estar equipado in-
do é muito complexo. Nesse mundo, nesse pe- telectualmente para poder apreender esse movi-
daço de universo que nós estamos, não há nada mento do real – ele não é imediatamente visível.
de simples.
Conhecer o mundo, então, é muito mais do que Revista
sistematizar experiências cotidianas. A organi- Voltando à vida cotidiana: para manipular o
zação, a sistematização de experiências e sua mundo, precisamos ‘conhecê-lo’ de alguma
discussão são extremamente importantes e úteis forma. Existem outros tipos de conhecimento
porque mostram, ademais, que qualquer proces- além do científico?
so de conhecimento eficaz tem que ser social e
coletivo. Mas se não houver aí uma inserção José Paulo Netto
e um insumo do ponto de vista teórico, nós Sim, sem dúvida existem vários tipos de conhe-
podemos acabar concluindo que o sol gira em cimento. Tome outro exemplo simples. Você sabe
torno da terra... É preciso tomar muito cuidado perfeitamente que, para iluminar esta sala, pre-
com a ideia de que, a partir da prática, se cons- cisa apertar o interruptor. Essa é uma forma de
trói conhecimento. Não: a prática põe os pro- conhecimento. Mas você não sabe o que acontece
blemas que o conhecimento teórico-científico entre apertar aquele comutador ali na parede e
pode esclarecer. Imagine um torneiro mecânico o acendimento dessa lâmpada incandescente:
que, sabendo ler e escrever, reúna alguns com- disso entendem o eletricista e, rigorosamente, o
panheiros de trabalho e desenvolva uma dis- físico... Boa parte do nosso conhecimento do
cussão coletiva para compreender a sua situação mundo opera assim. Você sabe ligar seu carro,

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sabe que tem que abastecê-lo, lubrificá-lo etc., esse reflexo não é um espelhamento. Ele implica
mas não tem a menor ideia de como o motor fun- que a mente, o cérebro, as faculdades intelec-
ciona – e, para dirigir bem, não precisa dominar tivas dos homens se mobilizem ativamente. O
o conhecimento de como ele funciona. Eu diria mundo é sempre um mistério a ser decifrado.
que esse conhecimento é prático-mental. Se Então, o reflexo do mundo não é o reflexo da
você observar bem, verá que quase tudo o aparência do mundo, da fenomenalidade – do
que você faz durante o dia é com esse tipo de ponto de vista da dialética, é o reflexo do movi-
conhecimento. mento real do mundo.
Existe outra forma, mais elevada, de conheci-
mento – a arte, por exemplo. Quando lê Macha- Revista
do de Assis, você tem uma clara ideia de como Carlos Nelson Coutinho, no livro O estruturalis-
vivia uma parte da sociedade no Segundo mo e a miséria da razão, aponta problemas nas
Reinado, aqui no Rio de Janeiro. Mas eu posso concepções que pensam separadamente o mate-
também conhecer como vivia essa população rialismo histórico ou o materialismo dialético.
recorrendo aos historiadores que trataram A dialética precisa ser histórica?
daquele período. O objeto destes últimos e de
Machado de Assis, neste caso, é o mesmo, mas o José Paulo Netto
modo do conhecimento é diferente. Um é arte, o Carlos Nelson tem inteira razão. A dialética é a
outro é ciência. Se a ciência é indispensável para expressão da história. A dialética é um processo
o conhecimento do mundo, isto não significa objetivo, o movimento tanto do ser natural
dizer que as outras modalidades de conheci- quanto do ser social. Mas a dialética da natureza
mento sejam dispensáveis: não se pode conceber não é igual à dialética da sociedade porque o ser
o mundo, quando a sociabilidade está desen- social, embora surgido da natureza e a ela ne-
volvida, sem a arte e sem a manipulação práti- cessariamente vinculado, tem especificidades.
co-mental. Mas é a ciência que permite saber Há movimento, há contradição, há avanço, há
como o mundo é independentemente da sua superação, tanto na natureza quanto na socie-
subjetividade. É diferente do conhecimento que dade. Mas a dialética da natureza não pode ser
a arte oferece. Quando você conhece parte da equalizada à da sociedade. Por exemplo, a cate-
sociedade do Segundo Reinado no Rio de Ja- goria de liberdade – categoria que é um traço
neiro lendo Machado de Assis, o conhecimento pertinente da realidade social, um modo de ser
oferecido pelo Bruxo do Cosme Velho tem como do real social – não existe na natureza. Na na-
centro organizador a subjetividade humana. Na tureza não há liberdade, há acaso, azar, acidente,
arte, o sujeito humano se compromete com o mas não liberdade. Esta é uma característica es-
objeto: o objeto é apreendido numa perspectiva pecífica do ser social.
que eu diria, seguindo Lukács, que é ‘para nós’, Há outra categoria que não existe na natureza:
para os sujeitos humanos. A perspectiva do cien- teleologia, a ação dirigida segundo fins, o movi-
tista é outra; o biólogo, por exemplo, não estu- mento que tende a uma finalidade que é pressu-
da a célula ‘para nós’: ele quer saber o que a posta no seu início. Eu posso perguntar por que
célula é ‘em si’, tal como ela é. uma macieira dá maçãs e não peras, mas eu não
posso perguntar para que ela dá maçãs – na na-
Revista tureza, há causas, mas não há motivos, intencio-
Como método, a dialética é o reflexo do real? nalidades. Com isso, quero dizer que na natu-
reza há movimento dialético, mas a dialética
José Paulo Netto social não é a natural. Há uma história da na-
Como método, a dialética não produz a reali- tureza, como há uma história da sociedade. E,
dade. O objeto é – perdoe-me a aparente tautolo- na medida em que a sociedade se constitui, ela
gia – objetivo e efetivo, está fora da consciência interfere na natureza. Mas a história da natureza
dos homens. O que a dialética me permite é guarda uma diferença fundamental: não somos
apreender o que se passa nele. Enquanto o que nós, os seres sociais, que a fazemos. Nós faze-
designei como ‘dialética subjetiva’, ela tem cará- mos a nossa história, mas não fazemos a história
ter de reflexo – é o mundo refletido no cérebro da natureza. Nós também não fazemos a nossa
humano –, mas é fundamental sublinhar que história com liberdade absoluta, porque isso não

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existe (liberdade é escolher entre alternativas vista da realidade natural, já que há, neste cam-
concretas). A determinação dessa diferença (faze- po, tendências muito fortes contra a noção de
mos a nossa história, mas não fazemos a história evolução da natureza. Mas não há nenhum pen-
da natureza) coube a um pensador que precede sador sério que negue o movimento da socie-
Hegel, Vico, que, sem saber, já estava fazendo dade. O problema está em conceber qual a na-
dialética. Essa é a diferença essencial entre a tureza desse movimento, em primeiro lugar. Em
história da natureza e a história social. Nos pro- segundo lugar, qual a concepção desse movi-
cessos da natureza, não há sujeitos – exceto o mento na relação sociedade-natureza. Eu diria
ou os deuses, mas esta é uma questão de religião que nenhum dos pensadores pós-modernos ne-
e não de ciência. A sociedade tem sujeitos so- ga o movimento. Boa parte deles até invoca a dia-
ciais, coletivos, grupos, classes. Na natureza, lética para fundar a sua noção de movimento. O
onde não existe liberdade, mas acaso, predomi- problema é que a esmagadora maioria dos pen-
nam causalidades e necessidades. Na sociedade, sadores sociais pós-modernos – aqui, é preciso
há leis causais, necessidades, mas há também enfatizar o trato da sociedade, uma vez que
alternativas: se a sociedade não tem um fim pre- qualquer ideia de ‘ciência dura’ pós-moderna já
determinado, os homens, que atuam sempre co- foi suficientemente ridicularizada (lembre-se de
letivamente, têm projetos, finalidades e obje- Sokal) – trabalha uma noção de movimento ao
tivos. Isto mostra que há história no ser natural mesmo tempo em que retira de cena categorias
e no ser social, mas que esta história tem especi- sem as quais essa noção não faz nenhum sentido.
ficidades em cada um desses níveis, que são dis- Por exemplo, a categoria de totalidade. O pensa-
tintos, porém unitários. A sociedade e a natu- mento pós-moderno, numa operação epistemo-
reza fazem uma unidade, mas unidade não é logicamente ilegítima e histórica e socialmente
junção de iguais, não é identidade, é unidade artificiosa, além de pouco séria, suprimiu a cate-
entre diferentes. O ser é a unidade – não a iden- goria de totalidade, que é por ele identificada ao
tidade – entre o ser natural e o ser social. Isso é ‘totalitarismo’. Isso é um absurdo: totalidade é
dialética. Dialética é história, do ponto de vista uma categoria ontológica e teórico-metodoló-
do seu processo real. gica; ‘totalitarismo’ não é nem categoria, é uma
das pérolas do cretinismo sociológico ou da teo-
Revista ria política liberal. Neste sentido, o que muitos
O conceito de dialética pressupõe uma verdade pós-modernos entendem como movimento não
objetiva. No caminho contrário, pensadores pós- tem nada a ver com a concepção de movimento
modernos têm defendido, entre outras questões, dialético, seja como ele aparece em Hegel, seja
a impossibilidade de se conhecer objetivamente como ele aparece concretizado historicamente
o mundo. A constatação, dialética, de que o real sobre fundamentos materialistas em Marx.
é contraditório não pode reforçar essa impos-
sibilidade? Revista
Uma das críticas pós-modernas ao conceito de
José Paulo Netto dialética é que ele supõe um movimento orde-
Eu diria que a ideia de que o mundo e o ser são nado do mundo, que eliminaria a ideia de liber-
movimento é uma conquista da Modernidade. dade e de acaso...
Já na Antiguidade, vários pensadores tiveram
essa percepção, mas foi na Modernidade, resul- José Paulo Netto
tado do desenvolvimento da Ilustração, que as O pensamento dialético que vem de Hegel pode
ideias de movimento e processualidade se ins- ter operado inicialmente como um elemento de
tauraram no pensamento ocidental. Do ponto de hipótese, como diríamos hoje, mas é algo que a
vista dialético, a natureza desse movimento é investigação de Marx comprovou, estudando,
que ele é um automovimento: não é preciso que por exemplo, o movimento do capital.
alguém lhe dê um empurrão. O ser tem contra- O movimento que expressa o modo de ser do ser
dições internas, imanentes, que produzem o seu da sociedade não é aleatório, nem arbitrário ou
movimento. Desde o século XIX, não há um pen- irracional: dispõe de uma racionalidade. A rea-
sador sério que negue a dinâmica da realidade, lidade social não é uma totalidade amorfa nem
seu movimento – alguns até negam do ponto de inarticulada: ela tem forma, é estruturada, con-

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creta, dinâmica e dispõe de racionalidade. Não ar. De balão, você não voa, flutua. Você supri-
é arbitrária nem aleatória, o que não significa miu a lei universal da gravitação dos corpos? Não.
que não haja acasos, mas isso é o excepcional. A Você consegue voar exatamente porque a conhece.
totalidade social não é fechada, está em movi- Nós não suprimimos a necessidade: conhecendo
mento, pode negar-se. O fato de ser uma totali- a necessidade, nós podemos utilizá-la.
dade aberta não faz com que ela deixe de ser uma
totalidade. Uma totalidade fechada não conhe- Revista
ceria mudanças: o movimento seria, no limite, Dialética como método é compatível com as meto-
circular. A realidade social é uma totalidade que dologias específicas da ciência contemporânea?
se movimenta no sentido de sua desestruturação
para gerar uma nova estrutura. Nesse sentido, José Paulo Netto
há relações causais necessárias nessa totalidade. Os parâmetros da produção científica e a or-
E isso não é nenhum determinismo. ganização da produção científica institucional
Tomemos o exemplo da economia política: se é contemporâneas têm bases claramente neoposi-
próprio do movimento do capital a tendência à tivistas (no livro do Carlos Nelson que você
concentração e à centralização, um dos resulta- mencionou, há excelentes observações sobre o
dos necessários é o monopólio. Não se trata de neopositivismo). E isso é uma camisa de força.
nenhum determinismo prévio, mas da impli- A organização institucional da produção do
cação incoercível daquelas tendências. Eis aí um conhecimento expressa o fato de que ela está
exemplo da racionalidade dessa totalidade, que subsumida a uma lógica macroscópica maior,
não é uma racionalidade posta de fora. Onde en- que é a lógica do capitalismo contemporâneo.
tra a liberdade? Depende do que entendemos por No interior dessa organização institucional, nun-
liberdade. Para Hegel, a liberdade é a consciên- ca se pesquisou tanto, nunca se produziu tanto
cia da necessidade. Se conhece a necessidade, e... nunca se conheceu tão pouco sobre o con-
você é livre, mesmo que não cancele a necessi- junto da sociedade. Eu penso que a mesma coisa
dade. Essa caracterização é importante, mas me vale – mas aí sou muito cauteloso – para o domí-
parece incompleta, porque não deixa claro onde nio das ‘ciências duras’. Penso que aquela que
entra o agir humano. Eu prefiro trabalhar, na tra- tem avançado mais é a biologia contemporânea,
dição dialética que vem de Marx e é expressa até porque, nela, o processo dialético do ser se
por Lukács, com a ideia de que a liberdade é a impõe obrigatoriamente. Penso, inclusive, que
possibilidade de escolher entre alternativas con- os avanços que virão da engenharia genética,
cretas. Se não há alternativas, não há liberdade. do longo processo – por exemplo – de análise do
Portanto, a liberdade não é um componente de genoma, vão colocar a dialética no centro da bio-
tipo subjetivo, tal como se expressa em formu- logia. A biologia hoje restaura a dialética: ela
lações como “Estou preso, mas como sei que es- tem que pensar movimento, contradição e trans-
tou preso, estou livre”. A liberdade é concreta. formação. Na física, isso em parte já ocorreu,
O fato de reconhecer a necessidade de que con- mas muito subordinado ao complexo industrial-
centração somada à centralização leve ao mo- militar.
nopólio não me torna livre; porém, se eu sei que Em qualquer caso, seja nas ciências sociais, seja
concentração e centralização são movimentos nas ‘ciências duras’, a questão da organização
objetivos do capital, que, portanto, não estão institucional da produção científica deve inda-
na minha cabeça; se sei que o capital não é uma gar quem financia e o que se financia. Veja co-
coisa, e sim relação social, entendo que eu es- mo mudou e vai mudar mais ainda a produção
tou incluído nisso, que posso escolher outro na área das ciências sociais desde que, entre nós,
caminho. Posso escolher, por exemplo, suprimir o financiamento institucional passou a se orga-
as bases da concentração: a propriedade pri- nizar mediante os chamados editais. Quando
vada dos meios de produção. Essa é uma alter- você concorre a um edital, ali já está demarcado
nativa que eu posso escolher concretamente: por onde vai a pesquisa. É claro que, nestas con-
há uma via capitalista e uma via socialista. Mas, dições, a tão invocada liberdade de pesquisa tor-
veja: eu não suprimi a necessidade. É arqui- na-se pura retórica. Dificilmente se pode conce-
conhecido o mito de Ícaro, aquele que queria voar. ber esta liberdade quando o marco da pesquisa
Mas o avião só voa porque é mais pesado do que o está determinado pelo financiamento. Em geral,

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este marco expressa claramente uma concepção enfim, constituem, em suas relações, as classes).
de conhecimento voltado para a manipulação Uma coisa me parece clara: as contradições da
do real. Para manipular o real, eu não preciso ordem burguesa, exponenciadas nos últimos 30
conhecer a sua essência. Esse é o caráter neopo- anos, terão o seu desfecho. Uma possibilidade é
sitivista – não é o positivismo do velho [Auguste] o processo revolucionário capaz de suprimir a
Comte. Não. É o neopositivismo como forma de ordem burguesa. Outra é, simplesmente, a des-
pensar a realidade a partir da sua manipulação. truição da vida sobre o planeta. A alternativa
Penso que isso é terrivelmente nefasto para a dia- concreta é, pois, socialismo ou barbárie.
lética. Para o pensamento dialético, no processo
de conhecimento, o elemento que dirige o pro-
cesso, que implica a sua direção, é o objeto, não
o sujeito. Assim, não se pode escolher o método
arbitrária ou aleatoriamente. Isso, do ponto de
vista dialético, é um absurdo. Há que se ter co- Nota
mo método aquele que seja capaz de apreender
o movimento do objeto. Na academia, frequen-
temente se identifica método com um conjunto 1 Entrevista concedida a Cátia Corrêa Guimarães,
de regras formais e intelectivas para o trato do coordenadora de Comunicação, Divulgação e Even-
objeto. É evidente que essas regras são funda- tos da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venân-
mentais: não casualmente, foi Durkheim quem cio, da Fundação Oswaldo Cruz.
deu o passo decisivo neste sentido. Mas isso não é
método, é técnica de pesquisa. Por essas e outras,
penso que hoje, na universidade, fazer pesquisa
fundada no método dialético significa cada vez
mais remar contra a corrente.

Revista
Se o método é histórico, a dialética tem uma re-
lação direta com esse ‘objeto’ que é a sociedade
capitalista? A síntese final é a revolução?

José Paulo Netto


Vamos ver se eu consigo responder à sua per-
gunta de maneira a evitar qualquer finalismo ou
teleologismo. Uma das críticas ao marxismo é que
ele seria determinista ao afirmar que a ‘revolu-
ção’, ou ‘o socialismo’, é ‘inevitável’... Ora, no
Manifesto Comunista, o mais ‘clássico’ dos tex-
tos de combate de Marx e Engels, lê-se que as
lutas de classes resultam sempre na vitória da
classe que traz nas suas mãos o futuro – no caso
da sociedade que Marx e Engels têm em vista, o
proletariado – ou na destruição das classes em
presença. Portanto, as lutas de classes em nossa
sociedade podem não resultar em socialismo,
podem não conduzir ao comunismo. Podem de-
rivar na barbárie: a destruição das classes em
presença. E é precisamente por isso que é ne-
cessária a iniciativa política: é esta que pode di-
recionar os processos de lutas para um fim. Não
há finalismo imanente na história: a teleologia
é posta pela ação organizada dos homens (que,

Trab. Educ. Saúde, Rio de Janeiro, v. 9 n. 2, p. 333-340, jul. /out.2011

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