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AVISO: Este conteúdo possui menções

de temas – como suicídio, morte,


violência, pensamentos suicidas e entre
outros – que podem ser nocivos para os
que possuem gatilhos emocionais ou
estão passando por um momento
delicado. Pedimos encarecidamente que
não dê prosseguimento à leitura ao sentir
que não lhe fará bem.
Sobre o “The Notes”: Este conteúdo é parte do "BTS
Universe" (BU), criado pela Bighit Entertaiment,
oficialmente, em 2017, onde há um enredo que engloba
MVs, short films, highlight reels, etc, e se inspira nos
membros do BTS para a criação dos personagens e suas
histórias individuais.

O "HYYH The Notes" são minibooks que vêm junto dos


álbuns físicos da série 'Love Yourself' (Her, Tear e Answer)
e, agora, dos próximos álbuns de uma possível série, com
'Map of The Soul: Persona'. Os 'The Notes' contêm
fragmentos da história que nos é apresentada, como partes
de um diário. Em 2019, os minibooks também foram
lançados em livro (este que você vai ler agora), nos dando
uma noção mais completa da história.

Boa leitura.
SUMÁRIO

Prólogo: Bom garoto 1


Sombra da minha infância 5
Tudo começou daqui 13
Fim do verão, início da solidão 23
Eu devo sobreviver 31
O que procurar quando se está perdido 42
As coisas com asas 55
O andar mais alto da cidade 64
O dia mais lindo de nossas vidas 84
Depois de voltar da praia 95
A direção onde o sol nasce 129
Epílogo: Pesadelo 157
Prólogo
Bom Garoto

1
SeokJin
10 de outubro do ano 9

"Vamos, nós temos que sair daqui!" Eu agarrei a mão do meu amigo e corri para a porta da
nossa sala de aula. Enquanto olhava para trás e corria pelo corredor, eu vi os homens saindo
da sala de aula e nos perseguindo. "Parem! Parem bem aí!" As vozes pareciam nos agarrar
pelo pescoço.
Nós pensamos freneticamente para onde iríamos enquanto descíamos as escadas. O
primeiro destino que veio em mente foi a colina atrás da escola. Nós só tínhamos que cruzar
o parquinho e ir até o portão da escola e estaríamos bem no final da colina. Mesmo que não
fosse tão alta, era bem rochosa e desalinhada. Depois de correr pelo portão e virar a esquina
com toda velocidade, nós ignoramos a trilha e pulamos bem nos arbustos. Depois de passar
com dificuldade por eles, nós continuamos correndo. Nós corremos muito, e finalmente
paramos, quando não havia mais passos atrás de nós.
Nós caímos no chão coberto com folhas secas, suor pingando em nossas faces. "Eles
não conseguem nos seguir até aqui, certo?" Meu amigo assentiu, respirando profundamente.
Nós levantamos nossas camisas para secar nossos rostos com elas. O rosto do meu amigo
estava molhado com lágrimas e suor. Seus pulsos estavam manchados de preto com
machucados. A gola de sua camisa estava rasgada.
"Faz uma semana que meu pai não vem para casa. Minha mãe continua chorando. A
empregada e o motorista pararam de vir. Minha tia disse que a empresa do meu pai fechou.
Aqueles homens vieram em casa ontem. Eles ficaram apertando a campainha e gritando pelo
meu pai. Nós ficamos lá dentro, com as luzes apagadas, e eles continuaram gritando na porta.
Nós não conseguimos dormir nada." Meu amigo chorou durante toda sua história. Eu não
conseguia pensar em nada para dizer. Tudo que eu pude fazer foi pedir para que ele não
chorasse.
Foi um pouco depois que a aula começou, quando a porta abriu e quatro ou cinco
homens invadiram. Eles eram ignorantes e sem educação. "Quem é o filho do Sr. Choi?
Venha conosco." Chocada, nossa professora pediu para eles saírem imediatamente, mas eles
a ignoraram. "Nós sabemos que você está aqui. Apareça agora." Algumas crianças olharam
para o meu amigo sentado ao meu lado e começaram a sussurrar. O homem percebeu e veio
até nós. "Você não percebeu que estamos no meio da aula? Por favor, saiam." Nossa

2
professora tentou impedi-los, mas um dos homens a empurrou com força contra o quadro
branco. Ela caiu no chão.
O homem que empurrou nossa professora veio até nós de uma forma ameaçadora.
Todos os alunos se viraram para nós. O homem agarrou o braço do meu amigo. "Nós vamos
levá-lo até seu pai e conseguir dinheiro dele. Tenho certeza que ele não vai rejeitar seu
próprio filho." O homem ameaçou, e a atmosfera era intimidante.
Eu olhei para o rosto do meu amigo. Ele estava tremendo. Tremendo fortemente, com
a cabeça baixa. Ele era meu amigo. Eu alcancei sua mão por debaixo da mesa. Ele olhou
para cima e eu puxei sua mão. "Vamos fugir!"
O céu estava cada vez mais escuro. Parecia que ninguém estava nos seguindo. Nós
seguimos caminho através das árvores e arbustos até a trilha. Um lugar vazio com
equipamentos de exercícios apareceu na nossa frente. Eu fui até a barra e meu amigo segurou
em uma das pontas. "Eu tenho medo de que você fique com problemas por minha culpa."
Meu amigo não pareceu acreditar quando eu disse que ficaria bem. Tudo que eu conseguia
pensar na sala de aula era tirar meu amigo de lá. Eu tinha que levá-lo para longe daqueles
homens. Mas, assim que começamos a correr, eu percebi que não tínhamos para aonde ir.
"Vamos para minha casa." Deveria ser nove horas da noite, já que tinha passado
algum tempo desde que o sol se pôs. Eu estava com muita fome. Ele também deveria estar.
"Seus pais não estão em casa? Você não vai ficar com problemas por me levar?",
"Nós podemos entrar escondidos. Se tiver algum problema, então estaremos com
problemas." Minha casa não era longe do pé da colina. Rapidamente, eu conseguia vê-la.
"Entre assim que o portão abrir e se esconda atrás da árvore. Eu vou abrir a janela para você
depois."
Minha mãe estava sentada no sofá da sala de estar. "Onde você estava? A sua
professora ligou." Em vez de responder sua pergunta, eu me desculpei. Era sempre a forma
mais rápida de terminar uma conversa. Minha mãe disse que meu pai chegaria logo e foi
para seu quarto. Meu quarto era do lado oposto e a sala de estar estava entre eles. Eu
rapidamente fui até meu quarto e abri a janela.
Nós ouvimos o portão abrindo enquanto jogávamos no computador, depois de comer
um sanduíche com leite. Meu amigo olhou para mim com os olhos arregalados. "Está tudo
bem. Meu pai nunca vem no meu quarto." A porta abriu antes de eu terminar a frase, nós
levantamos assustados e petrificados.

3
"Você é o filho do Sr. Choi?" Meu pai continuou sem esperar uma resposta. "Vamos.
Tem alguém esperando por você lá fora." Havia um homem esperando na porta. Eu pensei
que era o Sr. Choi, mas logo notei que não. Era um daqueles homens que entraram na sala
de aula. Eu olhei para o meu pai. Ele parecia exausto, com as sobrancelhas enrugadas e a
pálpebra do olho tremendo levemente. Era melhor não o incomodar quando ele estava assim.
Enquanto eu tentava ler sua expressão, o homem entrou no meu quarto e pegou meu amigo
pelo ombro. Eu entrei na frente do meu amigo. "Não, pai, não deixe esse homem levá-lo. Ele
é uma pessoa ruim."
Ele só continuou olhando para baixo e não se mexeu. "Por favor, ajude ele, pai. Ele
é meu amigo." O homem tentou puxar meu amigo para fora. Eu segurei o braço do meu
amigo e meu pai segurou meu ombro. Ele segurou e puxou forte, e eu tive que soltar o braço
do meu amigo. Ele estava sendo levado para fora. Eu me contorci e tentei me soltar, mas
meu pai me apertou mais forte. "Está doendo!" Eu gritei, mas meu pai não me soltou. Ele
apertou meu ombro mais forte. Lágrimas caíram sobre minha face.
Eu olhei para meu pai. Ele era como uma grande parede cinza. Seu rosto estava sem
expressão, até seu cansaço havia sumido. Ele lentamente abriu a boca com seus olhos fixados
em mim. "Seokjin, seja um bom garoto." Ele ainda tinha aquele olhar vazio.
Mas eu sabia o que fazer, o que fazer para parar a dor.
"Seokjin." Eu virei minha cabeça ao ouvir o choro do meu amigo. Ele escapou do
homem e estava correndo até a minha porta. Ele estava em prantos. Meu pai, com uma mão
segurando meu ombro, fechou a porta com a outra. Eu me desculpei com ele. "Me desculpa,
pai. Eu não vou causar problemas de novo."
No dia seguinte, o lugar ao meu lado estava vazio. A professora disse que ele havia
sido transferido para outra escola.

4
Sombra da minha
infância

5
HoSeok
23 de julho do ano 10

Tudo aconteceu quando eu contei até quatro. Eu estava contando algumas frutas, talvez
tomates e melões. Eu não tenho certeza. "Quatro." Assim que falei isso, uma visão da minha
infância apareceu em frente aos meus olhos. Eu estava de mãos dadas com alguém.
Foi a primeira vez que eu fui ao parque de diversões com a minha mãe. Eu estava
deslumbrado com as bandeiras coloridas e as barraquinhas. Pessoas vestidas como palhaço
acenaram para mim e uma música animada soava em todos os cantos. Minha mãe parou em
frente ao carrossel. Cavalos brancos davam a volta embaixo das luzes brilhantes. Eu ia
perguntar "Mãe, nós vamos nesse?", quando alguém me chamou. "Hoseok." Eu olhei para
cima.
Era minha professora. Meus colegas de classe estavam me olhando desnorteados. A
visão da minha infância desapareceu. Minha professora pediu para eu continuar, e eu voltei
a contar. Cinco. Seis. Minha mãe apareceu em frente aos meus olhos novamente. Ela estava
exatamente igual há um minuto atrás. Seu rosto estava sombreado como se ela estivesse em
frente à uma luz, e uma brisa mexeu seus cabelos. Minha mãe me entregou uma barra de
chocolate. "Hoseok, feche seus olhos e não abra até que você conte até dez."
Sete. Oito. Nove. Eu parei aí. Minha professora fez um gesto indicando que eu
continuasse. Meus colegas de classe olharam para mim novamente. Eu abri minha boca, mas
nenhuma palavra saiu. O rosto da minha mãe estava borrado. Parecia que ela nunca iria me
procurar se eu terminasse de contar até dez. Eu caí no chão.

6
TaeHyung
29 de dezembro do ano 10

Eu arremessei meus sapatos e minha mochila no chão e corri até a sala. Meu pai estava em
casa. Eu não tive tempo para pensar por quanto tempo ele ficou longe e de onde ele estava
vindo. Eu apenas me joguei em seus braços. Tudo se tornou um borrão a partir desse
momento. Eu não tinha certeza se cheirei licor em seu hálito, escutei ele xingando ou recebi
um tapa no rosto primeiro. Eu não sabia o que estava acontecendo. Seu hálito de álcool era
repulsivo e sua respiração pesada. Seus olhos estavam vermelhos. Sua barba estava malfeita.
Uma grande mão bateu em meu rosto. "O que você está olhando?" Ele me bateu de novo.
Meu pai me pegou pelos ombros e me levantou. Eu estava quase cara a cara com ele. Olhos
vermelhos e barba malfeita. Ele não era o meu pai. Bom, ele era. Mas não era. Meus pés
balançaram no ar. Eu estava tão assustado que não consegui nem chorar. No próximo
momento, minha cabeça bateu na parede e eu caí no chão. Eu senti como se minha cabeça
tivesse quebrado. Eu não conseguia enxergar direito. Tudo ficou preto.

7
JiMin
6 de abril do ano 11

Eu saí sozinho pelo portão da frente do Jardim Botânico. O céu estava nublado e o tempo
um pouco frio. Mas eu estava me sentindo bem. Era o dia de piquenique na escola, e como
sempre, meus pais estavam muito ocupados para comparecer. Isso me deixou para baixo.
Mas eu recebi notas altas no concurso de desenho de flores, e as mães dos meus amigos me
disseram: "Você é tão maduro e gentil", e eu me senti bem legal.
"Jimin, espere aqui. Só um minuto", minha professora pediu, depois que o piquenique
acabou e nós estávamos indo embora. Eu não esperei. Eu sabia que conseguiria ir embora
sozinho. Eu segurei as alças da minha mochila com as duas mãos e andei confiante. Parecia
que todos estavam me olhando, então eu mantive minha postura. Depois de andar por um
tempo, começou a chover. Meus colegas de classe e suas mães tinham ido embora e ninguém
prestou atenção em mim. Minhas pernas doíam. Eu me abriguei debaixo de uma árvore. A
chuva começou a cair mais e mais forte. Eu estiquei meu pescoço para ver se alguém estava
vindo, mas não tinha ninguém por perto.
Eu comecei a correr, segurando minha mochila sobre minha cabeça com as duas
mãos. Minhas calças ficaram ensopadas pela chuva depois de alguns passos. Não tinha
nenhuma loja, casa ou parada de ônibus por perto. Um pouco distante, eu consegui ver um
portão. Eu corri até ele sem pensar. Eu estava ensopado e meus dentes batiam um contra o
outro. No topo do portão, estava escrito Jardim Botânico. Era o portão dos fundos. Tinha
um pequeno depósito do lado de dentro.

8
SeokJin
21 de julho do ano 12

A porta da entrada continuava abrindo e fechando, e eu continuei olhando, sentado na sala


de espera do aeroporto. Pessoas com malas passavam, algumas usando óculos de sol. O
monitor continuava mudando com chegadas, atrasos e cancelamentos. O motorista estava
murmurando, com os olhos no celular, "nada dele ainda." Eu olhei para o meu relógio. Já
havia passado mais de uma hora do horário que ele prometeu que chegaria.
Desde que eu consigo lembrar, sempre estive sozinho. Meu pai era ocupado e minha
mãe indiferente. Eles falavam para eu fazer o que mandavam e não tentar mais nada. Quando
eu desobedecia, eles me castigavam com silêncio. Eu queria agradar meus pais.
Minha mãe morreu há pouco tempo. Meu pai disse para eu não chorar e também não
chorou. Eu tentei obedecer, mas não foi fácil. Ele decidiu me mandar para a minha avó
materna nos Estados Unidos. Ele não pareceu muito triste com isso.
O motorista do meu pai me entregou meu passaporte. Era hora de partir. Eu olhei
para trás, enquanto ia para o portão de embarque. A porta de entrada se fechou. O motorista
acenou para mim. Meu pai não veio.
Eu olhei para fora, pela janela. As nuvens passavam e o céu começou a escurecer. A
comissária de bordo me trouxe uma refeição, e o copo de suco caiu durante a turbulência.
Nervoso, pedi por guardanapos. A comissária de bordo perguntou se eu estava bem. Meu
arroz frito e carne estavam ensopados com suco. Minhas mãos estavam grudentas e minhas
calças molhadas. "Não", eu sussurrei em resposta, mas a comissária de bordo não ouviu. Ela
disse para eu não me preocupar e levou minha bandeja. Eu assenti e continuei olhando para
o chão.

9
NamJoon
21 de junho do ano 16

Eu desci as escadas desde o 13° andar. Eu estava com falta de ar e minhas pernas estavam
tremendo. Eu colapsei na sombra da entrada do prédio. Eu comecei com atraso hoje, porque
a escola foi até mais tarde. Eu tive que correr para conseguir colocar os panfletos nos quatro
prédios até o fim do prazo. Se eu não conseguisse, meu chefe estaria me esperando com um
grande sermão. Foi difícil convencê-lo a contratar um estudante, então eu não podia ser
demitido agora. Minha mãe saiu de seu emprego no restaurante na semana passada. Nós
tínhamos que pagar as contas do meu pai no hospital, sem contar as contas de luz e gás. Eu
continuei parado debaixo da sombra. Algumas crianças estavam jogando basquete. Eu me
levantei novamente. Hora de correr. Eu disse para mim mesmo. Eu tenho que fazer isso. Eu
posso fazer isso.

10
YoonGi
19 de setembro do ano 16

As chamas estavam devorando minha casa. Esta manhã, ela estava inteira e intacta, mas
agora está em chamas. Pessoas me reconheceram e correram até mim, gritando palavras que
eu não entendia. Os vizinhos bateram seus pés, parecendo nervosos. O carro de bombeiros
não conseguia chegar até a minha casa porque a entrada estava bloqueada. Eu fiquei parado
lá. Era o final do verão e o começo do outono. O céu estava azul e o ar fresco. Eu não sabia
o que pensar, sentir ou fazer. Eu pensei na minha mãe. Nesse mesmo momento, minha casa
caiu com um estrondo. Estava completamente envolvida em chamas. Ou melhor, era uma
grande chama. O teto, as colunas, paredes e meu quarto, caíram um por um, como se fossem
feitos de areia. Tudo que eu podia fazer era olhar com meus olhos vazios.
Pessoas esbarraram em mim ao passarem. Eu as ouvi dizendo que o carro de
bombeiros havia conseguido passar. Alguém me segurou pelo ombro e perguntou com
pressa: "Tem alguém lá dentro?". Eu só olhei sem expressão. "Sua mãe está lá?" Ela me
balançou fortemente pelo ombro. "Não, não tem ninguém lá", eu me ouvi dizendo. "O que
você quer dizer?" Era uma das senhoras da minha vizinhança. "O que aconteceu com a sua
mãe? Onde ela está?", "não tem ninguém lá dentro." Eu não tinha certeza do que estava
dizendo. Alguém esbarrou e passou por mim novamente.

11
JungKook
11 de setembro do ano 17

Eu esperei por dez dias, mas o cartão de aniversário nunca veio. Abri a última gaveta e
levantei um caderno para encontrar quatro cartas. Jungkook, feliz aniversário, do papai. Eu
leio essas cinco palavras várias vezes.
Era inverno e eu tinha sete anos de idade. As vozes vindas da sala me acordaram.
Meu quarto ficava no sótão e eu podia chegar ao quarto dos meus pais descendo cinco
degraus e abrindo a porta de correr. Eu estendi a mão para abrir a porta e parei. Embora eu
ainda fosse jovem, podia sentir, pela atmosfera pesada que entrava pela porta, que não era
um bom momento.
Papai disse que era muito difícil continuar e que o mundo era pesado demais para ele
suportar. Mamãe não respondeu. Ela provavelmente estava chorando quieta ou sem se
mexer. Um longo silêncio seguiu. Papai disse que ficaria arrasado se continuasse vivendo
assim e que deveria ir embora agora. Mamãe protestou, chamando-o de homem
irresponsável. Então ouvi meu nome. "O que você vai fazer quanto ao Jungkook?" Eu esperei
por muito tempo atrás da porta de correr, mas papai não respondeu. Então ouvi o som da
porta da frente se abrindo. "Estou completamente vazio e não há nada que eu possa fazer por
Jungkook." Essas foram as últimas palavras do meu pai.
Eu corri de volta até as escadas para o sótão. Mudei minha cadeira contra a parede,
logo abaixo da janela, e subi nela. Papai estava descendo a rua. Primeiro, suas pernas
desapareceram, e depois a cintura, o peito e os ombros. Era como se o mundo desconhecido,
além daquela rua, estivesse lentamente engolindo-o inteiro.
Alguém abriu a porta do meu quarto e eu, instintivamente, empurrei a gaveta com o
pé. Era minha mãe. Ela disse que nenhum cartão de aniversário chegaria e que esse era o
tipo de pessoa que meu pai era. Era o que ela sempre dizia. Que papai era débil mental,
incompetente e, o mais importante, um desajustado social que nos abandonou... Mamãe
estava certa.
Nenhum cartão de aniversário veio. Eu era o mundo que era pesado demais para ele
suportar – aquele mundo do qual ele desistiu. Uma criança que nunca poderia ser a razão
para suportar tudo isso. Era eu.

12
Tudo começou
daqui

13
SeokJin
2 de março do ano 19

Entrei no escritório do diretor depois do meu pai. Cheirava a mofo. Faz dez dias desde
que voltei dos Estados Unidos, e acabei descobrindo, no dia anterior, que eu entraria na
escola uma série antes, por causa dos sistemas escolares diferentes. "Por favor, cuide bem
do meu filho." Estremeci com a mão do meu pai em meu ombro. "A escola é um lugar
perigoso. Ela precisa ser controlada rigorosamente." O diretor me olhou nos olhos.
Vestindo um terno preto, suas bochechas enrugadas e os cantos de sua boca tremiam
levemente toda vez que ele a abria. O interior de seus lábios cruéis era ainda mais escuro.
"Você não concorda, Seokjin?" Enquanto eu me contorcia com sua pergunta repentina,
papai fortaleceu seu aperto em meu ombro. Eu senti uma pontada na parte de trás do meu
pescoço. "Tenho certeza que você vai se comportar." O diretor tentou fazer contato visual,
enquanto papai me apertava ainda mais. Eu cerrei meus punhos quando seu aperto quase
fraturou meu ombro. "Você sabe que tem que me manter informado, certo? Você será um
bom aluno, não é?" O diretor me encarou sem dar sinal de um sorriso. "Sim." Assim que
soltei a resposta, a dor no meu ombro desapareceu. Papai e o diretor soltaram uma
gargalhada. Eu não conseguia nem levantar a cabeça. Fiquei olhando para os sapatos
marrons do papai e para os sapatos pretos do diretor. As pontas de seus sapatos brilhavam
intensamente, embora fosse um mistério para mim de onde vinha aquela luz.

14
JiMin
12 de março do ano 19

Fazia vários dias desde o início do novo semestre, mas meus colegas ainda eram estranhos
para mim. Não era difícil adivinhar que eles estavam fofocando sobre mim. Eu tentei agir
com indiferença, mas sem sucesso. "Nós ouvimos dizer que você mora em um
apartamento do outro lado do rio. Por que você veio para esta escola?" Eu fingi que não
ouvi a pergunta. Não tinha nada a dizer. Apenas continuei andando com a cabeça
abaixada. "Ei, você não me ouviu?" Acelerei meu passo. Eu era transferido de uma escola
para outra conforme entrava e saía do hospital. Não havia mais escolas perto do meu
bairro para aonde eu pudesse ir.
Fui em direção à sala de aula abandonada, que tinha sido transformada em
depósito e que limpei como detenção por estar atrasado. Quando abri a porta, fiquei
surpreso ao ouvir vozes lá dentro. Quem poderia estar aqui a esta hora? Eu estava prestes
a fechar silenciosamente a porta e me virar, quando alguém chamou meu nome. "Ei, você
é Park Jimin, não é?" Eles eram os estudantes veteranos que limparam a sala de aula
comigo quando fomos pegos atrasados. Eu não tinha certeza se deveria respondê-los ou
simplesmente sair. Alguém bateu de leve em meu ombro. "Você não vai entrar?" Sem
perceber, entrei na sala. "É bom ver você de novo. Você não se lembra de mim? Eu sou
Taehyung. Estamos na mesma série."
Antes que eu percebesse, estava sentado em uma cadeira. A porta da sala
continuou a abrir e fechar. Os sete alunos que fizeram a limpeza juntos estavam todos lá.
Ninguém fez perguntas. Nós apenas ouvimos música, lemos livros, dançamos e
brincamos. Era como se estivéssemos juntos desde sempre.

15
YoonGi
12 de junho do ano 19

Eu matei aula sem pensar, mas não tinha para onde ir. Estava calor e eu não tinha dinheiro,
nem nada para fazer. Foi Namjoon quem sugeriu primeiro que fôssemos ver o mar. Os
outros pareciam animados com isso, mas eu não me importava muito. "Você tem
dinheiro?" Ouvindo a minha pergunta, Namjoon disse aos outros para procurarem em
seus bolsos. Algumas moedas e contas no vermelho. "Nós não podemos ir." "Por que não
andamos?" Taehyung deve ter dito isso. A expressão de Namjoon parecia dizer-lhe para
usar a cabeça e pensar antes de falar. Todos, menos eu, estavam tagarelando, rindo sem
motivo e brincando. Abaixei a cabeça novamente, pois não estava de bom humor. O sol
estava brilhando. Era meio-dia e não havia sombra debaixo das árvores. A estrada de
asfalto não tinha calçadas e, toda vez que passava um carro, levantava uma espessa nuvem
de poeira.
"Vamos até lá.” Taehyung falou. Ou era o Hoseok? Eu não estava prestando
atenção, mas deve ter sido um dos dois. Eu não vejo nenhum motivo para ir até lá... Devo
dizer a eles para irem sem mim? Eu virei a cabeça e quase bati em alguém. Era o Jimin.
Ele ficou lá, parado como uma estátua. Seu rosto estava tremendo até o menor músculo,
como se ele tivesse visto algo horrível. “Você está bem?" Ele parecia inconsciente da
questão. Seu olhar estava fixo em uma placa de sinalização escrita 2,1 km para o Jardim
Botânico. Suor escorria do seu rosto, que estava pálido, como se ele fosse desmaiar. "Park
Jimin!" Eu chamei de novo, mas ele não se mexeu, apenas ficou lá, olhando para a placa.
"Ei, está quente demais para ir a um jardim botânico. Vamos para a praia.” Tentei
dizer isso da forma mais tranquila possível. Eu não sabia o que era o tal Jardim Botânico,
mas tinha a sensação de que deveríamos evitá-lo. "Estamos com pouco dinheiro", Hoseok
insistiu. "Nós podemos andar.” Taehyung disse novamente. "Acho que vamos conseguir
decidir quando chegarmos à estação de trem. Claro, teremos que pular o jantar." Namjoon
entrou na conversa. Jungkook e Taehyung choramingam. Jimin acordou daquela espécie
de transe depois que todos começaram a ir para a estação. Jimin, com a cabeça baixa e os
ombros curvados, parecia uma criancinha. Eu olhei de volta para a placa. As palavras
Jardim Botânico estavam desaparecendo lentamente da nossa vista.

16
JungKook
12 de junho do ano 19

O sol ainda estava se pondo quando chegamos à estação de trem junto a praia. Nossas
sombras eram quase invisíveis, pairando em torno de nossos pés. Não havia onde se
esconder do sol. Eu pensei ter ouvido o rugido das ondas, e logo um trecho de uma linda
praia apareceu diante de nossos olhos. Era o começo do verão. Os primeiros turistas já
estavam enfileirados sob guarda-sóis. Há algo sobre o mar que me faz sentir bem com as
emoções. Taehyung e Hoseok gritaram de animação e correram. Quando eles acenaram,
Jimin e Seokjin se juntaram a eles.
Eles me chamaram. "Jungkook!" Eu acenei para eles e sorri alegremente. Ou sorri
para fingir que estava alegre. Eu ainda tinha dificuldades em revelar meus sentimentos e
me adaptar a ambientes estranhos. Alguém me disse uma vez que eu ajo como uma
criança tímida e intimidada. Era o mesmo naquele dia. Eu me senti um pouco deslocado
na presença dos outros, como se eu não pertencesse àquele lugar.
Não havia muito o que fazer na praia, nosso destino impulsivo. "Vamos correr."
Hoseok sugeriu de repente e correu na frente. Todos começaram a persegui-lo, mas logo
desistiram. Estava muito quente. Namjoon trouxe um guarda-sol rasgado, que encontrou
em algum lugar. Nós sete deitamos sob a sombra. A luz do sol atravessou os rasgos no
guarda-sol e pontos redondos de luz continuaram a se mover pouco a pouco, e nos
contorcemos para evitá-los.
"Vocês querem ir ver essa rocha?" Hoseok levantou o telefone. Havia uma foto
de uma grande rocha na praia. "Eles dizem que se você gritar o seu sonho em direção ao
mar enquanto estiver sobre essa rocha, ele se tornará realidade." Jimin pegou o telefone e
olhou para a foto. "Não é um pouco longe? É pelo menos três quilômetros e meio de
distância daqui." Yoongi se virou. "Eu não vou. Eu não tenho nenhum sonho, em primeiro
lugar. E mesmo se eu tivesse, não andaria três quilômetros nesse calor... De jeito
nenhum." Taehyung ficou de pé. "Eu vou.”
Começamos a andar sob o guarda-sol rasgado. A praia estava queimando sob o
sol escaldante e o ar estava tão quente que mal podíamos respirar. Nós andamos na praia
como perdidos, com nossos pés afundando na areia quente. Hoseok tentou fazer piadas,
mas ninguém respondeu. Taehyung caiu no chão e disse que estava desistindo. Namjoon
17
o colocou de pé novamente e deu-lhe um empurrão nas costas. Todos os nossos rostos
estavam vermelhos e pingando suor. Nós tentamos nos abanar com a bainha de nossas
camisetas, mas só recebemos mais ar quente. No entanto, continuamos seguindo.
Algum tempo atrás, eu perguntei aos outros quais eram seus sonhos. Seokjin disse
que sonhava em se tornar uma boa pessoa. Yoongi disse que não havia problema não ter
um sonho. Hoseok só queria ser feliz. E Namjoon... o que ele nos disse? Não me lembro,
mas não foi nada de especial. Basicamente, nenhum de nós tinha um sonho a seguir.
Então, por que estávamos caminhando por aquela praia quente, sob o sol escaldante, para
chegar a uma rocha a três quilômetros e meio de distância, que supostamente transforma
sonhos em realidade?
Ao longo do caminho, nós jogamos fora o guarda-sol que Namjoon, Hoseok e
Seokjin se revezavam segurando. Bloqueava um pouco do sol, mas era muito pesado com
o cabo de aço. "Pare de fazer isso." Foi o que Yoongi disse para mim, enquanto fazíamos
uma pequena pausa depois de deixar o guarda-sol. No começo, fiquei intrigado. Na
verdade, eu raramente conversava com o Yoongi, e nem percebi que ele estava falando
comigo. Yoongi me mostrou seus dedos. "Eles vão ficar como os meus." Ele também
tinha as cutículas machucadas por roer as unhas. Hesitando um pouco, coloquei minhas
mãos nos bolsos. Não respondi, porque não sabia o que dizer.
“Qual é o seu sonho?” Yoongi perguntou. “Você não nos contou o seu.” Ele não
parecia realmente interessado na minha resposta. Parecia estar apenas perguntando para
manter a conversa. “Eu não sei. Nunca pensei sobre isso." "Bem, não há nada de errado
com isso.”
"A propósito, o que é um sonho?" Eu perguntei depois de pensar um pouco.
Yoongi respondeu com sua voz arrastada. "Eu te disse que eu não tenho um." "Não, eu
quero dizer..." Eu hesitei e continuei. “Eu estava me perguntando o que é um sonho. O
que as pessoas querem dizer com um sonho?” Ele olhou para mim e depois voltou seu
olhar para o céu, franzindo a testa. “Algo que você quer alcançar? Eu acho."
Hoseok assumiu o comando da conversa, agitando seu celular para nós. “As
definições do dicionário são: primeiro, ‘uma série imaginária de eventos que você
experimenta enquanto dorme; segundo’, ‘uma situação ou um ideal que você espera
realizar’; e terceiro, ‘falsas expectativas ou pensamentos que são quase improváveis ou
completamente improváveis de se tornarem realidade.’”

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“A terceira definição não é estranha? Como algo que é improvável de se tornar
realidade pode ser chamado de sonho?" Hoseok respondeu: “As pessoas às vezes dizem
para você acordar do seu sonho. Sendo assim, se você está sonhando em voltar e ir para
casa antes de chegarmos à rocha, acorde do seu sonho."
Alguns de nós riram alto, mas o resto não mostrou reação, provavelmente porque
não tinham mais energia sobrando. "Isso é estranho. Como pode algo que você quer muito
alcançar na vida e algo que é improvável de se realizar serem chamados de sonho ao
mesmo tempo?" Yoongi disse, rindo: “Talvez isso signifique que as pessoas estão
desesperadas nesse nível. Elas simplesmente não conseguem desistir de seus sonhos,
mesmo sabendo que eles não vão se realizar. Nunca tente ter um sonho.” Olhei para ele,
surpreso. “Por quê?” Yoongi começou a roer as unhas e, sentindo-se consciente do meu
olhar, colocou as mãos nos bolsos. "Porque é difícil ter um."
Eu estava curioso sobre por que ele mordia as unhas, mas não perguntei. Em vez
disso, olhei para os meus próprios dedos. Me machucar virou um hábito desde a infância.
Não me lembro quando começou. Tudo que me lembro é a sensação distinta de cortar o
dedo em uma faca um dia. Depois que a sensação dolorosa passou, o sangue jorrou da
ferida. O local parecia entorpecido, mas formigava ao mesmo tempo. Minha mãe me
levou para o hospital e eu tive a ferida costurada, esterilizada e tapada. Ela fingiu fazer
um drama na frente do médico, mas não me fez jantar ou me ajudou a tomar o remédio
depois que chegamos em casa. Eu realmente não esperava que ela fizesse. Ela ficou assim
desde que meu pai foi embora.
A ferida cicatrizou muito devagar, porque eu continuei pressionando com a ponta
da minha unha. Toda vez que eu apertava a ferida, uma dor aguda disparava através do
meu dedo. Às vezes, doía tanto que eu ficava a ponto de chorar. Mas também me ajudava
a ficar acordado novamente. Mesmo agora, às vezes, me sinto vazio. Tudo parece sem
sentido e toda energia sugada de mim.
"Quanto mais temos que andar?" Com a pergunta de Taehyung, Hoseok parecia
estar perdido. "É estranho. Tenho certeza que deve estar em algum lugar por aqui." Nós
ficamos lá e olhamos em volta. Apenas o som das ondas quebrando na praia encheu o
vazio do silêncio sob o céu azul. Centenas de milhares de pedras foram espalhadas pela
praia, como grãos de areia. A rocha da foto não estava em lugar nenhum.
"Nós deveríamos continuar até um pouco mais longe?", "Eu não consigo dar outro
passo." "Estou faminto e com sede." No meio da nossa conversa, Jimin soltou um suspiro,
19
com os olhos fixos em seu telefone. Taehyung, que estava olhando para o celular de Jimin,
chutou violentamente uma pedra com o rosto sem expressão. Jimin leu o artigo em voz
alta: um resort de alto padrão seria construído nesta praia, e a construtora quebrou a pedra
em pedaços porque obstruiria a vista do primeiro e segundo andar do resort. Nós demos
uma olhada ao redor, todos de uma vez. Faixas amarelas foram instaladas ao longo de
toda a praia para marcar que a área foi designada como uma zona de desenvolvimento,
com escavadeiras perambulando ao fundo. Uma placa que dizia "Construção do Quebra-
mar" apareceu.
"Eu acho que nós viemos para o lugar certo." Hoseok disse, batendo em uma pedra
com a ponta do tênis. Todas essas pedras espalhadas pela praia devem ser o que sobrou
daquela pedra explodida. "Tudo bem. Não existe tal coisa como uma rocha que faz com
que os sonhos se tornem realidade, de qualquer maneira.” Namjoon consolou Hoseok,
batendo levemente em seu ombro. "Nós não temos nenhum sonho, em primeiro lugar."
"Não temos como realizá-los, mesmo que tivéssemos." "É um luxo para nós ter um
sonho." Todos tentaram dizer algo positivo, mas não estava funcionando. Nós não
estávamos com expectativas altas, mas também não viemos até aqui para ver isso.
Yoongi, que me disse para não ter sonhos porque eles são muito difíceis, não
estava diferente. Depois de olhar para o mar por alguns minutos, ele começou a roer as
unhas de novo. Ele parecia completamente inconsciente do que estava fazendo. "Yoongi".
Ele se virou para olhar para mim. "Não..." Minhas próximas palavras foram interrompidas
pelo barulho de um som de perfuração. Nós todos nos viramos ao mesmo tempo. Estavam
retomando o trabalho de construção. A forte batida soou como se viesse de uma sólida
rocha maciça sendo perfurada.
Yoongi franziu a testa e bateu no meu ombro. "O que você disse?" Yoongi
murmurou alguma coisa. "Não faça isso." Eu coloquei minhas mãos em volta da minha
boca e gritei. Yoongi não parecia ter me ouvido e balançou a cabeça novamente, franzindo
a testa. Eu ia gritar de novo, mas ele já tinha parado de roer as unhas. Eu podia ver o mar
além de seus ombros. As pedras rangeram sob meus pés. A rocha deve ter sido enorme,
poderosa e antiga o suficiente para realizar os sonhos das pessoas. Mas agora não passava
de uma pilha de pedregulhos. "O mundo é difícil para você também?", perguntei. Como
esperado, o rugido da broca engoliu minha voz. O olhar confuso de Yoongi me disse que
ele não tinha entendido. Gritei de novo. "Você também quer desistir deste mundo?" Ele
murmurou algo dessa vez, mas eu não consegui entender o que era. Balancei a cabeça e
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Yoongi gritou novamente. Olhando para a nossa situação, Hoseok e Taehyung caíram na
gargalhada. O riso deles também era inaudível, mas seus rostos mostravam seu humor.
No minuto seguinte, estávamos todos olhando para o mar e gritando nossos
sonhos. Hoseok cobriu as orelhas com as duas mãos e abriu bem a boca. Ele parecia estar
competindo com o som da perfuração, mas eu não conseguia escutar. Foi o mesmo com
Taehyung, Jimin e Namjoon. Cada um gritou uma história que nunca chegaria a destino
nenhum. Eu estava de pé, atrás de Yoongi e Seokjin no começo, e passei por eles até o
ponto onde as ondas quebravam. Todos os meus sentidos ganharam vida. As vozes dos
outros se entrelaçaram e formaram uma teia intrincada com o perfume, um tanto suspeito,
mas refrescante do mar, e a brisa forte que serpenteava em meus dedos. Antes que eu
percebesse, gritava para o mar. Em meio ao som alto da broca, eu não conseguia nem
ouvir qual era o meu sonho.
Então, o som da perfuração parou tão de repente quanto havia começado. O
mundo inteiro ficou em silêncio, como se o barulho tivesse sido cortado com uma faca.
Bem desse jeito. Mas nossos gritos não estavam em perfeita ordem. Taehyung tossiu
forte, como se tivesse engolido pelo caminho errado enquanto tentava fechar a boca com
pressa. A voz de alguém fez uma nota absurdamente alta. A última palavra ouvida foi "...
por favor!", por Seokjin. Instantaneamente, todos nós fechamos nossas bocas. Por um
segundo, ninguém se mexeu. Então nós caímos na gargalhada juntos. Seguramos nossas
barrigas com as risadas, apontando uns para os outros.
"Vamos tirar uma foto aqui." Por sugestão de Seokjin, ficamos em fila, com o mar
como paisagem de fundo. Seokjin ajustou o temporizador e veio correndo. Clique! Este
dia, no calor sufocante do início do verão, ficou impresso em nossas memórias e nesta
foto. O caminho de volta foi mais curto do que o caminho para o rochedo. No exato
momento em que pensávamos que estávamos na metade do caminho, o guarda-sol
abandonado apareceu. Em breve, a estação de trem apareceu.
“Posso guardar a foto?”, Seokjin tirou a polaroid da bolsa e escreveu “12 de junho”
no verso. "O sonho que você gritou vai se tornar realidade". Eu olhei para ele. "Você sabe
o que eu disse?", Seokjin apenas bateu no meu ombro, sem dizer nada, e caminhou à
frente.

21
SeokJin
25 de junho do ano 19

Ninguém estava na sala abandonada. Nós nunca marcamos qualquer compromisso com
antecedência, mas era normalmente sempre cheio de pessoas e vozes. Esse silêncio era
raro. Quando entrei, vi um vaso perto da janela. Quem poderia ter trazido uma planta
aqui? A sala estava sempre escura, sem eletricidade, e as folhas verdes pareciam ainda
mais verdes na luz que entrava pelas janelas sujas. Eu tirei algumas fotos com meu celular.
Como esperado, as fotos não ficaram boas. Eu sempre achei que fotos não conseguiam
capturar perfeitamente o que o olho humano vê.
Quando me aproximei do vaso, pude ver a letra “H” escrita no chão, parcialmente
coberta pelo vaso. Eu levantei o pote para descobrir “a planta do Hoseok” rabiscada lá.
Eu ri. Eu deveria saber. Posicionei o pote para cobrir completamente o rabisco e olhei ao
redor. Eu não tinha notado isso antes, mas as soleiras das janelas estavam cobertas de
grafites e rabiscos. Os peitoris das janelas, as paredes e até o teto estavam cobertos de
frases como "admissão na faculdade ou morte", confissões de amores não correspondidos,
datas e inúmeros nomes irreconhecíveis. Esse depósito também serviu como uma sala de
aula normal, igual qualquer outra. Deve ter visto os alunos entrarem para as aulas todas
as manhãs e partirem novamente à tarde. Em dias de volta às aulas, os alunos devem ter
preenchido esta sala, que estava vazia durante os meses de férias, conversando alto.
Alguns deles devem ter sido punidos por estarem atrasados ou matando aula, assim como
nós. Esta sala de aula viu professores que usaram a violência, testes intermináveis e lição
de casa? Houve alunos como eu, que entregaram seus amigos para o diretor?
De repente, comecei a me perguntar se o nome do meu pai estava na parede. Papai
também se formou nesta escola. Ele acreditava que frequentar a mesma escola e
universidade, de geração em geração, aumentava o prestígio de nossa família. Eu
naveguei por todos os nomes e finalmente encontrei seu nome entre os escritos, no meio
da coluna da esquerda. Por baixo do seu nome, dizia: Tudo começou aqui.

22
Fim do verão, início
da solidão

23
TaeHyung
20 de março do ano 20

Eu corri pelo corredor, fazendo um barulho, e escorreguei no final. Namjoon estava em


pé na frente da "nossa sala de aula". A nossa sala de aula. Era assim que eu chamava a
sala de aula abandonada que fora transformada em depósito. Uma sala de aula para todos
os sete. Eu silenciosamente fui até Namjoon para tentar derrubar seu boné.
"Diretor!" Eu ouvi a voz urgente através da janela ligeiramente aberta da nossa
sala de aula, depois de ter dado cerca de cinco passos em direção a Namjoon. Parecia a
voz do Seokjin. Eu parei. Seokjin está falando com o diretor? Na nossa sala de aula?
Sobre o quê? Eu ouvi meu nome e o nome de Yoongi e vi Namjoon respirar pesadamente.
Sentindo nossa presença, Seokjin abriu a porta. Ele tinha um telefone na mão e parecia
surpreso e confuso.
Eu me escondi em um canto e os observei. Seokjin estava abrindo a boca,
provavelmente para dar uma desculpa, mas Namjoon o interrompeu. "Está tudo bem.
Você deve ter uma boa razão.” Eu não podia acreditar. Seokjin contou ao diretor o que
Yoongi e eu estávamos fazendo nos últimos dias. Sobre como matamos aula, pulamos o
murro da escola e nos metemos em uma briga. E Namjoon estava dizendo que tudo bem.
"O que você está fazendo aqui?" Eu me virei, surpreso, encontrando Hoseok e
Jimin. Hoseok me deu um olhar que dizia que ele estava ainda mais surpreso do que eu,
e colocou o braço em volta dos meus ombros, arrastando-me para a sala. Namjoon e
Seokjin olharam para nós. Namjoon sorriu para mim como se nada de estranho tivesse
acontecido. Naquele momento, organizei meus pensamentos. Namjoon deve ter suas
razões. Ele é muito mais experiente, inteligente e maduro do que eu. E esta é a nossa sala.
Caminhei em direção a Namjoon e Seokjin, dando aquele sorriso tolo que todos
chamavam de "sorriso quadrado". Eu decidi não contar a ninguém sobre a conversa deles.

24
NamJoon
15 de maio do ano 20

Eu atravessei a sala de aula abandonada, que havia se tornado uma despensa e servia de
esconderijo para nós sete, enquanto alisava algumas cadeiras ao longo do caminho. Eu
recolhi uma mesa derrubada e a limpei com a palma de minhas mãos. Hoje foi o meu
último dia nesta escola. Minha família decidiu se mudar há duas semanas atrás. Meu pai
desenvolveu “complicações” e nós não podíamos arcar com as despesas. Nosso aluguel
estava atrasado por meses. A ajuda bondosa dos nossos vizinhos e meu salário no trabalho
de meio período, no posto de gasolina, não conseguiriam cobrir o que era necessário.
Tínhamos que nos mudar antes que o dinheiro acabasse.
Eu dobrei um pedaço de papel ao meio, coloquei-o na mesa e peguei um lápis. Eu
não tinha ideia do que escrever. Minutos se passaram. Enquanto eu estava escrevendo, a
ponta do lápis quebrou. Eu tenho que sobreviver. Foi tudo o que eu escrevi, sem ao menos
notar que o fiz, antes dos fragmentos do grafite se espalharem por todo o papel.
Eu amassei o pedaço de papel, coloquei-o em meu bolso e me levantei. A poeira
voou quando eu empurrei a mesa. Antes de sair da sala, eu assoprei a janela e escrevi três
palavras nela. Nenhuma mensagem de despedida seria o suficiente para que eles
soubessem como eu estou me sentindo e, ao mesmo tempo, nenhuma mensagem de
despedida era necessária para que eu compreendesse tudo. “Nos veremos novamente”.
Era mais um desejo do que uma promessa.

25
JungKook
25 de junho do ano 20

Eu alisei suavemente as teclas do piano com meus dedos, cobrindo-os de poeira. Eu


pressionei as teclas com mais força, mas eu não consegui fazê-las soar como o Yoongi
fazia. Faz duas semanas desde que Yoongi parou de vir para a escola. Há rumores de que
ele finalmente foi expulso. Hoseok não disse nada a respeito, e eu também não perguntei.
Um dia, há duas semanas atrás, Yoongi e eu éramos os únicos que estavam na sala
quando o professor entrou. Foi durante o dia em que a escola estava aberta à visitação.
Nós fomos até lá sem nenhum plano, só queríamos ficar longe das salas de aula. Yoongi
não se importou com mais nada e foi tocar o piano, e eu estava deitado em duas mesas,
com meus olhos fechados. Yoongi e o piano não pareciam combinar um com o outro, mas
eles eram inseparáveis. Eu não tinha ideia de quanto tempo havia passado. De repente, a
porta abriu com um estrondo, como se alguém a tivesse quebrado. O piano parou.
Continuei me afastando, até o professor bater em meu rosto, fazendo com que eu
caísse. Eu me sentei de modo encurvado, submetendo-me às palavras ofensivas que eram
proferidas. De repente, o professor parou de gritar. Eu vi Yoongi interferir e empurrá-lo.
Por cima dos ombros do hyung, eu pude ver o olhar espantado do professor.
Eu apertei as teclas tentando imitar a melodia que Yoongi tocou naquele dia. Ele
realmente foi expulso? Ele voltará um dia? Ele disse que costumava apanhar e ser
maltratado pelos professores. Se eu não estivesse lá, ele ainda assim teria se voltado
contra o professor? Se eu não estivesse lá, ele ainda estaria aqui, tocando piano?

26
YoonGi
25 de junho do ano 20

Assim que pisei na sala, tirei um envelope de dentro da última gaveta da mesa. Eu peguei
a tecla de piano queimada do envelope, lancei-a na lata de lixo e deitei na cama. Eu estava
com a respiração ofegante e não conseguia parar de pensar em tantas coisas.
Eu voltei para a casa incendiada logo após o funeral. O esqueleto do que era um
piano ainda estava no mesmo lugar onde era o quarto da minha mãe. Eu caí no chão. Os
raios de sol da tarde atravessaram a janela e refletiram. Eu levantei minha cabeça e vi
várias teclas de piano a uma certa distância. Quais notas eram aquelas? Por quanto tempo
os dedos dela tocaram aquela tecla? Eu me levantei e coloquei uma das teclas em meu
bolso.
Quatro anos se passaram. A casa estava preenchida com o silêncio, o que me
enlouquecia. Já passava das dez, então o meu pai já deveria ter ido para a cama. Tudo e
todos dentro daquela casa não podiam se mexer depois que ele ia dormir. Aquela era a
única regra. Eu não estava acostumado com um silêncio tão profundo. Ou a ser pontual e
seguir as regras. Era ainda mais insuportável viver nesta casa depois de tudo aquilo. Eu
estava recebendo a mesada dele, jantando com ele e estava sendo repreendido por ele.
Algumas vezes, eu o desafiava e causava problemas, mas eu não tinha coragem de
abandoná-lo, de fugir e encontrar a verdadeira independência.
Eu peguei a tecla de piano da lata de lixo, embaixo da minha mesa. Quando abri
a janela, o ar da noite entrou. Minha mente relembrou rapidamente as coisas que
aconteceram durante o dia. Eu arremessei a tecla de piano pela janela com toda a minha
força. Faz duas semanas desde a última vez que fui para a escola. Eles disseram que eu
fui expulso. Mesmo se eu quisesse contar sobre isso para o meu pai, eu provavelmente
seria expulso de casa. Eu não ouvi o som da tecla do piano batendo no chão. Agora, eu
nunca vou saber qual som ela fazia. Ela nunca mais faria aquele som novamente. E eu
nunca mais irei tocar o piano de novo.

27
SeokJin
17 de julho do ano 20

O estridente zunir das cigarras atingiu meus ouvidos assim que eu parei no prédio da
escola. O parquinho estava cheio de estudantes rindo, brincando e correndo. Era o começo
das férias de verão e todos estavam animados. Eu fiz meu caminho dentre a multidão, de
cabeça baixa. Tudo que eu queria era sair dali.
“Seokjin!” A sombra de alguém apareceu em meu caminho e eu levantei a cabeça.
Eram Hoseok e Jimin. Eles estavam com seus sorrisos amáveis de sempre e me olharam
com um olhar malicioso. “Você não está indo direto para casa no primeiro dia de férias,
não é?”, Hoseok disse, enquanto puxava o meu braço. Eu resmunguei algo que soou como
“sim” e virei o rosto.
O que aconteceu naquele dia foi um acidente. Não foi a minha intenção. Eu não
sabia que Jungkook e Yoongi estariam na sala abandonada naquela hora. O diretor estava
suspeitando de que eu estava encobrindo os outros. Ele ameaçou contar ao meu pai o quão
mal eu estava indo na escola. Eu tinha que dizer algo. Eu contei sobre o nosso esconderijo
porque pensei que ele estaria vazio. Mas isso levou à expulsão do Yoongi. Ninguém sabia
que eu estava envolvido nisso.
“Tenha boas férias! Vamos manter contato!” Hoseok deve ter lido o meu rosto.
Ele lentamente soltou o meu braço e se despediu ainda mais animado. Eu não consegui
responder. Não havia nada para dizer. O meu primeiro dia nesta escola passou em minha
cabeça, enquanto eu atravessava o portão do colégio. Todos se atrasaram e foram punidos.
Mas nós estávamos juntos, então poderíamos rir juntos. Eu arruinei todas essas memórias
que dividíamos. Depois que decidi viver como meu pai queria, depois que eu resolvi não
buscar mais a felicidade, eu estava mordendo mais do que podia mastigar.

28
HoSeok
15 de setembro do ano 20

A mãe de Jimin caminhou pela sala de emergência em direção à cama dele. Ela conferiu
a etiqueta com o nome no pé na cama e o soro pendurado e removeu um resquício de
grama de seu ombro. Eu caminhei até ela meio hesitante e me curvei. Eu senti que deveria
contar como o Jimin foi parar na emergência e como ele teve uma convulsão no ponto de
ônibus. A mãe de Jimin notou pela primeira vez que eu estava ali, mas ela imediatamente
desviou o olhar e disse um rápido “obrigado”, sem esperar pela minha explicação.
Então médicos e enfermeiras começaram a mover a cama. Eu estava pronto para
segui-lo, mas a mãe de Jimin me olhou de relance novamente. Ela me agradeceu
novamente e me empurrou de leve. Pensando melhor, ela não me empurrou. Ela apenas
colocou uma das mãos em meu ombro e retirou rapidamente. Neste curto espaço de
tempo, uma linha foi traçada entre nós. Aquela linha era firme e forte. Era fria e
indesejada. Eu nunca poderia passar daquela linha. Eu vivi em um orfanato por mais de
dez anos. Eu conseguia reconhecer aquele tipo de linha com todos os meus sentidos; eu
vejo nos olhos da pessoa e a sinto no clima.
Eu dei alguns passos errados para trás e caí. A mãe de Jimin me olhou sem
expressão. Ela era pequena e bonita, mas sua sombra era grande e fria. A grande sombra
passou por mim enquanto eu sentava no chão da sala de emergência. Quando eu olhei
para cima, a cama de Jimin havia ido embora.

29
JungKook
30 de setembro do ano 20

"Jungkook, você não continua indo lá, continua?" Apenas olhei para a ponta dos meus
tênis. Eu me recusava a responder, então o professor bateu na minha cabeça com o livro
de presença. Não respondi mesmo assim. O lugar ao qual ele estava se referindo era onde
nos encontrávamos. Desde a primeira vez que pisei naquela sala, não teve um dia que não
passei por lá. Os outros não sabiam. Eles tinham outros planos e seus empregos de meio-
período, e nem sempre iam para lá. Yoongi e Seokjin, às vezes, não apareciam por dias.
Mas eu era diferente. Eu ia até lá sem exceção. Havia dias onde ninguém aparecia, e
estava tudo bem. Estava tudo bem porque aquela sala estava lá e porque os outros iriam
aparecer mais tarde, ou amanhã, ou no dia seguinte.
"Eu sabia que você estava saindo com as pessoas erradas." O livro acertou minha
cabeça de novo. Quando levantei meus olhos e olhei para o professor, ele me acertou com
o livro novamente. A cena de Yoongi levando uma surra veio à minha mente. Cerrei os
dentes e me segurei. Eu não queria mentir e dizer que não estive indo até lá.
E então, eu estava na frente da sala. Senti como se os outros estivessem ali, do
outro lado da porta. Quando eu abrisse, eles olhariam para mim e reclamariam do meu
atraso. Seokjin e Namjoon devem estar lendo, Taehyung deve estar jogando, Yoongi deve
estar na frente do piano, e Hoseok e Jimin devem estar dançando.
Mas, quando abri a porta, apenas o Hoseok estava lá dentro. Ele veio limpar o que
havia sobrado das nossas coisas. Eu permaneci congelado, com a mão na maçaneta.
Hoseok veio até mim, colocou o braço em volta dos meus ombros e me guiou para fora.
"Vamos." A porta fechou atrás de nós. Eu percebi, então. Aqueles dias acabaram e nunca
voltariam.

30
Eu devo sobreviver

31
NamJoon
17 de dezembro do ano 21

Eu continuei a diminuir meus passos e finalmente parei. Era madrugada, em uma vila do
interior, onde até os ônibus não passavam com frequência. A vila toda estava coberta pela
neve que havia caído a noite toda. As árvores estavam curvadas como grandes monstros
brancos e faziam cair neve toda vez que o vento soprava. Eu sabia, mesmo sem olhar para
trás, que era o único na vila deixando pegadas pela rua cheia de neve. Ambos os meus
pés estavam molhados por causa dos furos na sola dos meus tênis. Uma vez eu ouvi uma
frase que dizia que Deus nos faz solitários para nos guiar em direção a Ele. Mas eu não
estava sozinho. Eu não estava seguindo o caminho para me encontrar. Eu estava indo
embora. Eu estava fugindo de mim mesmo.
Minha família chegou nesta vila no outono passado. As coisas que possuíamos
ficavam cada vez menores todas as vezes que mudávamos para uma nova cidade. Agora,
só precisávamos de uma pequena van de entregas para mudar tudo. Não estávamos em
posição de escolher onde viveríamos. Só havia duas condições. Uma era um hospital para
o meu pai, e a outra era uma pessoa que estivesse disposta a contratar alguém sem um
diploma do ensino médio.
Essa vila tinha ambos. O ônibus, que passava duas vezes por dia, parava na frente
do hospital, e uma série de pequenos restaurantes vendiam cozidos e fritas feitas com
pequenos peixes que eram pescados no riacho, e o verão era a época da pesca. Multidões
que faziam excursões às margens do rio vinham de cidades vizinhas e a demanda de
entregas de comida para essas pessoas, que ficavam nos pontos de descanso na região
montanhosa, era alta. Durante o inverno, quando o rio congelava, os restaurantes usavam
peixes do estoque feito no verão, mas os pedidos de entrega continuavam constantes. Eu
era um dos entregadores da cidade.
É claro, havia uma competição aqui também. A maioria das famílias dependia da
agricultura e, como pode-se concluir, não eram tão ricas. O serviço de entrega era o único
emprego de meio-período disponível para os garotos da cidade. Os donos de restaurantes
nos faziam competir entre si. "Não é natural que eu contrate quem mais me impressiona?"
Para eles, não importava se éramos menores, sem carteira de motorista. Os garotos que já

1) Demian, de Hermann Hesse.


32
estavam contratados eram possessivos. Eram poucos, mas me tratavam de forma rude.
Durante as férias, a competição ficava ainda mais agressiva. Nós fazíamos
compras e levávamos o lixo para fora para os donos, competindo em tudo que fazíamos.
O incentivo deles apenas nos levava mais longe. E ainda assim, quase que
inesperadamente, começamos a criar um certo tipo de solidariedade entre nós. Éramos
rivais, mas tínhamos um tipo de simpatia uns pelos outros. Se um de nós não aparecia, o
resto se perguntava o que podia ter acontecido. Eles também me lembravam do tempo
que eu passei naquela sala de aula abandonada no ensino médio. Alguns se pareciam com
Yoongi, e alguns com Jimin. Eu não podia deixar de me perguntar. Se os meus amigos
da escola tivessem se conhecido nessa vila, teríamos competido e tentado superar uns aos
outros? Se eu tivesse conhecido esses garotos na escola, seríamos amigos?
A neve caía pesada quando nossa competição, instintos e um estranho senso de
solidariedade chegaram aos seus limites. Então, a competição acabou instantaneamente.
Uma motocicleta era necessária para fazer as entregas nos pontos de descanso da vila,
mas era muito perigoso andar em uma moto tão leve nas ruas cheias de neve da montanha.
A rua que levava para a vila nos pontos de descanso era íngreme e sinuosa. Fazer as
entregas a pé não era uma opção.
No final, era um confronto entre Taehyung e eu. Taehyung era dois anos mais
novo e morava nos arredores da vila, perto do pomar. Taehyung não era seu nome
verdadeiro. Era Jongsik ou Jonghun. Mas ele me lembrava o Taehyung. Ele não tinha
aquele sorriso bobo ou era aberto com todos, com sua natureza gentil e ingênua. Ao invés
disso, ele sempre me pareceu agressivo, bravo e insatisfeito. Por fora, ele parecia com o
Yoongi, mas curiosamente, ele me lembrava mais o Taehyung.
Taehyung e eu éramos os únicos miseráveis o suficiente para arriscar e continuar
fazendo entregas naquela montanha coberta de neve. Aconteceu do mesmo jeito naquele
dia. Quando outro pedido chegou ao restaurante, eu estava andando perto do rio. Ninguém
apareceu, já que a previsão do tempo era de neve pesada a tarde. Taehyung apareceu
alguns minutos depois. Ao invés de entrar no restaurante e conversar com todos, como de
costume, ele apenas sentou no chão perto da porta e não se mexeu. Era um daqueles dias,
quando o rosto dele estava cortado e machucado, quando seus olhos estavam vermelhos
e suas roupas manchadas de sangue. Tinha algo de errado com ele? Tinha alguém batendo
nele? Eu não perguntei.

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Começou a nevar enquanto eu estava esperando a comida ser preparada. No
mesmo instante, senti algo gelado cair no meu pescoço; a neve começou a cair mais grossa
e mais pesada. "Vocês têm certeza que vão ficar bem?" O dono do restaurante colocou a
cabeça para fora e perguntou. Taehyung se levantou rapidamente e eu virei meu rosto
para ele. "É claro!”, nós respondemos juntos. "Você nunca sabe quanta neve vai cair
daquele tipo de céu", alguém disse de dentro do restaurante. "Acabou de começar a cair.
Eu vou voltar em um minuto." O dono me lançou um olhar duvidoso. "Mas você não
consegue dirigir a motocicleta muito bem ainda." Taehyung interrompeu, dizendo que já
tinha andado com ela muitas vezes. O dono fez um barulho de reprovação quando viu o
rosto dele. "Não, hoje não. Você vai descansar." Eu não perdi a oportunidade e tentei de
novo. "Tem uma primeira vez para tudo. Hoje é o primeiro dia que faço entregas na neve.
Você sabe que tenho muito cuidado." O dono aceitou. "Venha aqui. Você vai fazer
algumas viagens, então tenha cuidado."
Eu pude sentir os olhos do Taehyung seguindo minhas costas, enquanto eu entrava
no restaurante. Ele ficou perto de mim enquanto eu arrumava a comida pronta na mochila.
Era estranho. Taehyung normalmente era orgulhoso demais para agir assim. Quando o
olhei, ele se aproximou, como se quisesse dizer algo. Então se afastou novamente. O dono
continuou me incomodando sobre dirigir em uma rua coberta de neve. Eu fingi que ouvia,
balançando a cabeça com entusiasmo. Dirigir uma motocicleta não era uma coisa que
precisava de tanta atenção, habilidade e estresse.
Ao contrário do que pensei, não era fácil subir a encosta em uma moto com flocos
de neve caindo por toda parte. A neve ainda não tinha começado a grudar na rua, mas eu
estava nos nervos porque ela caía em todas as direções com flocos pesados. A velha
motocicleta teve dificuldades subindo a encosta. Era como se ela estivesse se agarrando
a mim. Estava frio, mas eu estava pingando de suor e todos os meus músculos estavam
tensos. No minuto seguinte, meu suor secou e eu senti um arrepio na espinha. Eu repeti
para mim mesmo, várias vezes, que tinha subido e descido essa rua sem nenhum problema
o outono todo, até o começo do inverno. Além disso, a neve não estava grudando e a rua
não estava escorregadia.
A moto escorregou descontrolada, enquanto eu estava descendo na terceira
viagem. Eu tinha acabado de ganhar confiança e pensei que estava indo bem dirigindo a
motocicleta em um dia de neve. Como a neve estava caindo já há algum tempo e a rua
não estava muito movimentada, ela começou a se acumular aqui e ali. Mas o meio da rua
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ainda estava sem neve e a ladeira não era tão inclinada. Então, assim que esse pensamento
passou pela minha cabeça, a roda traseira escorregou. Assustado, eu apertei os freios com
força. Será que eu segurei eles com muita força? Isso passou pela minha cabeça. Acho
que me lembrei do dono dizendo algo sobre os freios. Os avisos dele, os quais eu só
escutei pela metade, corriam pela minha cabeça. A motocicleta parecia ter voltado ao meu
controle por um momento, mas as rodas começaram a escorregar antes que eu pudesse
suspirar de alívio. Em um piscar de olhos, fui lançado na rua. Eu caí como se a moto
tivesse me jogado para fora o mais forte que podia. Ela escorregou sozinha pela rua e
deve ter batido em alguma coisa. Eu escutei um baque alto.
Me coloquei de pé e não consegui nem checar se estava machucado ou não. Eu
corri até a motocicleta, que estava de lado, embaixo de uma árvore no lado direito da
pista. Estava coberta de folhas. Eu a levantei e descobri um arranhão grande e visível no
corpo dela. Eu coloquei a chave e girei. Não funcionou. Suor corria pela minha nuca e
cada junta do meu corpo doía. Eu estava paralisado de medo. Eu não tinha como pagar
pela motocicleta, de jeito nenhum.
Virei a chave de novo, desta vez ligando o motor. Quando a motocicleta parecia
finalmente estar funcionando, morreu no mesmo instante. Eu murmurei alguns
xingamentos, fechei os olhos e chutei o chão tão forte quanto pude. Minha mão, que
segurava a chave, não parava de tremer. O rosto dos meus pais e do meu irmão vieram à
minha mente. Eu olhei para o céu e tentei me recompor, enquanto fechava e abria os
punhos. Então eu virei a chave novamente.
O motor finalmente funcionou, depois de algumas tentativas. A moto voltou à
vida, fazendo o barulho de um animal morrendo. Eu sentei no chão. Eu estava esgotado.
O risco na moto era muito visível. Eu levantei e esfreguei o risco com força com a ponta
do meu tênis. Era uma motocicleta velha, já estava coberta com vários amassados e riscos.
Talvez ninguém perceba.
Quando eu fiquei de pé, um dos meus tornozelos formigou com a dor. Somente
então eu comecei a checar a minha própria condição. Felizmente, não houve lesões
graves. Tinha um pequeno corte abaixo do meu osso do tornozelo esquerdo que estava
sangrando. Minha cintura e coxas talvez doam na manhã seguinte, mas eu já tinha passado
por isso antes.
Taehyung me observou estacionar a motocicleta e entrar no restaurante. Ele
percebeu? Eu fiquei nervoso, mas conversei com o dono o mais casualmente possível. O
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próximo pedido de entrega veio rápido. Eu tinha que sair novamente, antes mesmo de eu
ter me aquecido.
“Ei…” Taehyung falou comigo, no momento em que me aproximei da
motocicleta. Ele viu o arranhão? Eu respondi, em uma voz deliberadamente alta. “O quê?”
Depois de alguma hesitação, Taehyung continuou. “Eu tenho um favor para pedir.”
“Favor? Que favor?” Foi quando meu telefone começou a tocar. Eu levantei uma mão
para pedir silêncio e me virei. Era minha mãe. Meu pai tinha tentado sair sozinho e caiu.
Ela me pediu para levá-lo ao hospital. Eu fechei os meus olhos. A raiva tomou conta de
mim. Eu cerrei os meus dentes. Eu conseguia sentir a irritação subindo lentamente pelo
meu estômago. Flocos de neve, agora visivelmente maiores, caíram em meu rosto. Eu
estava subindo e descendo por aquela rodovia escorregadia, nesse clima, para ganhar
quase nada. O corte em meu tornozelo esquerdo doía e minhas coxas estavam queimando.
Mas eu estava me preparando para sair com aquela motocicleta novamente. Era o único
jeito de ganhar aquele pouco de dinheiro hoje.
Eu conseguia entender por que ele tentou caminhar sozinho. Era o seu último
orgulho como o chefe da nossa família e a sua tentativa para manter a dignidade como
um pai. Mas nós não podíamos nos permitir tais luxos diante da pobreza. Dignidade,
orgulho, senso de justiça e morais só traziam um fardo maior e mais dinheiro para se
gastar. Quando abri os meus olhos, Taehyung estava me encarando. Eu entreguei a chave
a ele.
Quando eu e meu pai descemos do ônibus do hospital, o sol já tinha se posto. Os
grandes flocos de neve de mais cedo tinham continuado a crescer e criaram montes de
neve. O ônibus andou lentamente. Levou o dobro do tempo que normalmente levaria para
chegar ao hospital e voltar para casa. Eu caminhei para casa, carregando o meu pai nas
costas, com ninguém à vista para segurar um guarda-chuva para nós. Meu cabelo estava
úmido e minhas mãos o segurando estavam dormentes com o frio.
Eu fiz uma pausa debaixo de uma árvore de Zelkova, depois da estrada, na ladeira.
Eu respirei fundo e olhei para cima. Uma visão panorâmica da vila encontrou os meus
olhos. A vila, esbranquiçada por baixo da neve, parecia tranquila e pacífica. Luzes
amarelas vibrantes brilhavam através das janelas de diferentes casas, aqui e ali. O cheiro
de arroz e ensopado cozido aguçavam meu apetite. Quando entramos no beco, após
atravessar a ponte, os cachorros começaram a latir. Mesmo que nós tenhamos vivido nesta
vila por vários meses até agora, os cachorros ainda latiam para mim, como se eu fosse um
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estranho. Minha mãe surgiu quando nós entramos. “Ele precisa receber um tratamento
ambulatorial por pelo menos mais três dias.” Eu deitei meu pai em seu quarto e saí. Ainda
não havia nenhum sinal de que a neve iria dar alguma trégua. “Por que vocês me odeiam
tanto? Me deixem saber, pelo menos, a razão.” Eu gritei para os cachorros, que latiam
sem parar. Eu ouvi sobre o acidente de Taehyung no dia seguinte.
Quando eu passei pelo restaurante ao longo do rio, eu vi o dono falando com um
policial. Eu congelei instintivamente. Eu pensei que ele tinha vindo atrás de mim. Eu
tinha danificado a motocicleta no dia anterior. Eu poderia ter problemas por dirigir sendo
menor de idade e sem uma carteira de motorista. Eu deveria correr de volta para casa?
Mas o ônibus não viria por horas. Simplesmente não era possível fugir, com meu pai em
suas condições.
“Você ouviu?” Era a dona de outro restaurante vizinho. Ela disse que o acidente
aconteceu quando o Taehyung estava dirigindo ladeira abaixo, depois da entrega. Seu
corpo simplesmente ficou deitado ali por mais de três horas até que alguém, em um carro
que passava por ali, o encontrou. Um habitante, entre a cidade e a parada de descanso,
ligou para o dono do restaurante, mas ninguém saiu para encontrá-lo.
O policial disse que Taehyung era um motorista não qualificado. Ele também o
culpou por não usar um capacete. Eu vi um capacete, o qual eu nunca havia visto antes,
colocado em cima do balcão do restaurante. O dono continuou dizendo que ele nunca
forçou o Taehyung a sair para fazer entregas, e até mesmo tentou conversar com ele sobre
isso. Era verdade. Eu e Taehyung insistimos que nós estávamos bem com isso. Todos os
vizinhos cooperaram. Era uma pequena vila, onde todos conheciam todo mundo. Eles
tinham pelo menos uma lembrança ou duas sobre todos ali, independentemente se fosse
sobre uma briga, fofoca ou traição. Uma série de histórias sobre ele veio de uma vez só.
Ele vivia com sua mãe e irmã, e não tinha pai.
A mãe de Taehyung contorcia-se em agonia em um banco, em frente ao
restaurante, e se lamentava. Tragam o meu filho de volta. Tragam o meu pobre, pobre
filho de volta. É um homicídio culposo. A princípio, os vizinhos tentaram acalmá-la e
choraram com ela. Mas estava frio e o sol se pôs mais cedo. À noite, a mãe de Taehyung
foi deixada sozinha, e o cheiro do jantar sendo cozido espalhou-se pelas janelas, como
sempre. Toda vez que o vento soprava sobre as árvores alinhadas na beira do rio, a neve
caía em pedaços. Ela simplesmente ficou sentada ali, no meio disso tudo.

37
Eu a vi sentada sozinha enquanto eu estava levando meu pai do hospital para casa.
Sem perceber, eu parei de andar e me lembrei do local do acidente. Após ouvir sobre
Taehyung, eu caminhei sozinho ao longo da pista. Minha respiração congelou e caiu no
solo, como cristais de gelo. O formato de Taehyung, desenhado em um contorno branco
na estrada, estava meio apagado. Eu parei aos seus pés. Folhas secas estavam rolando
pelo chão e os traços acinzentados do sal ainda estavam deixados para trás. Poderia ter
sido eu deitado ali. Se eu tivesse feito aquela entrega, se tivesse sido eu em vez de
Taehyung, então esse seria o meu contorno. Poderia ter sido a minha família lamentando-
se naquele banco em vez da família de Taehyung.
Eu aumentei os meus passos depois que meu pai tossiu violentamente.
“Namjoon.” Meu pai me chamou quando nós estávamos prestes a entrar no beco, após
atravessar a ponte. No momento em que diminui meus passos, os cachorros começaram
a latir. Meu pai continuou a falar em uma voz fraca e frágil. Era dificilmente audível,
perdida entre os latidos dos cachorros. Eu fingi que eu não havia escutado.
Mais uma semana se passou. A vila rapidamente voltou ao normal. A mãe de
Taehyung às vezes chorava, amargamente, na frente do restaurante, mas ninguém
compartilhava de sua tristeza. As pessoas só repreenderam a irmã de Taehyung, até que
ela levou sua mãe dali. Alguns disseram que foi só um acidente de trânsito. Eu comecei
a trabalhar em outro restaurante. Na verdade, eu fui encarregado de todas as entregas entre
a vila e a parada de descanso. Mais uma forte nevasca seguiu, e a pista continuou a
congelar e derreter. Os pedidos de entrega estavam vindo a todo vapor, mas ninguém se
candidatava para o trabalho de entrega. Eu fiz cinco ou seis entregas em um dia, e a minha
renda aumentou muito. Eu sempre me certifiquei de colocar o capacete e os equipamentos
de proteção. Eu nunca desviei o meu olhar da estrada, com todos os nervos em atenção.
Noite passada, eu fiz minha última entrega. Eu não sabia que seria a minha última
vez, mas foi. De qualquer maneira, a parada de descanso havia fechado para os meses de
inverno. Quando eu fui até lá, as pessoas estavam reunidas no escritório. Eles pareciam
estar discutindo as vendas do estabelecimento. Eu não reconheci alguns dos rostos. Eles
devem ser novatos que acabaram de se mudar. Enquanto eu deixava a comida e recebia o
dinheiro, um deles começou a falar sobre o acidente de Taehyung. Outro novato fez um
som de reprovação e mencionou o quão perigoso era dirigir uma motocicleta em um dia
de neve. O novato, que foi o primeiro a mencionar o acidente de Taehyung, advertiu-me
para sempre tomar um cuidado extra. Eu o agradeci por se preocupar comigo. Mas eu não
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quis dizer isso, de verdade. Se ele estava tão preocupado sobre a pista coberta de neve e
minha segurança, ele não deveria ter pedido comida, em primeiro lugar.
“Vocês sabem o que é realmente perigoso?”, o novato desabafou, logo antes de
eu fechar a porta atrás de mim. “Sal e folhas molhadas, não a neve por si só. A não ser
que você seja um motorista muito bom, você vai deslizar se você passar por cima delas.
Não nevou naquele dia? Então, ele deve ter…” Suas últimas palavras tornaram-se
inaudíveis assim que a porta fechou. Eu atravessei pela parada de descanso vazia e
sombria. Eu passei pela lanchonete estreita e pelo balcão de descontos das especialidades
locais e fui em direção à saída.
Eu desci as escadas de degrau em degrau. Estava abaixo de zero, mas não parecia
tão frio. A chave ficava escorregando pelos meus dedos e eu continuei girando-a, sem
sucesso. Eu apertei e desapertei os meus punhos. A velha motocicleta sacudiu-se
loucamente e finalmente deu partida. Eu saí da parada de descanso lentamente. Uma curva
iniciava-se no poste de sinalização da parada de descanso. Eu virei à direita em um amplo
círculo, percorri uma curta linha reta e me deparei com outra curva que girava para a
esquerda. Esse foi o local onde eu escorreguei primeiro e, então, Taehyung teve
problemas.
Eu mantive o meu olhar para frente e passei pelo local rapidamente. Eu tentei
convencer a mim mesmo que eu não estava tirando os meus olhos da pista para me manter
seguro, mas isso era culpa. Culpa por sobreviver sozinho. Culpa por me sentir aliviado
por eu ser a pessoa que ainda estava viva. Culpa por não ser capaz de me aproximar.
Culpa por não defender suas habilidades de condução e por não confessar que eu nunca
havia visto um capacete no restaurante. Talvez eu fosse só um hipócrita fingindo ter uma
consciência pesada.
Eu tinha espalhado as folhas molhadas no local onde Taehyung desceu. Eu não
queria que isso tivesse acontecido, mas eu fui responsável por tudo isso. Fui eu quem
tinha jogado cloreto de cálcio, com boas intenções, para evitar que a estrada congelasse.
Na verdade, eu fiz isso por mim mesmo, porque eu acreditava verdadeiramente que iria
fazer a próxima entrega, e a outra após essa. “Vocês sabem o que é realmente perigoso?”
O que eu ouvi na parada de descanso reproduziu-se na minha mente. “Ele deve ter passado
por cima disso e deslizado.” Se eu tivesse removido as folhas, se eu não tivesse salpicado
sal, ele estaria seguro?

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Muitas pessoas já estavam no ponto de ônibus, esperando pelo primeiro ônibus do
dia. Eu acenei com a cabeça em cumprimento e então a mantive abaixada. Eu tentei não
fazer contato visual com ninguém. O primeiro ônibus do dia apareceu.
O ônibus veio a parar lentamente. Com a minha cabeça abaixada, eu embarquei
depois dos outros passageiros. Eu não tinha um plano específico. Eu estava apenas
fugindo. Do rosto exausto da minha mãe. Do meu irmão indo para o mal caminho. Do
meu pai lutando contra a sua doença. Da sorte da nossa família indo ladeira abaixo. Da
minha família exigindo sacrifício e obediência de mim. De mim mesmo, tentando
renunciar meu destino. E, acima de tudo, da pobreza. A pobreza corrói tantas coisas.
Transforma o que é precioso em algo sem significado. Faz você desistir do que não
deveria desistir. Faz você duvidar, temer e se desesperar.
Noite passada, eu saí da parada de descanso, passei pelo restaurante e então fui
para casa. Eu não me lembro de quem encontrei e sobre o que conversei e pensei. Meu
corpo inteiro e minha mente pareciam anestesiados. Eu não conseguia dizer nem se estava
ventando, nem se estava frio, qual era o cheiro ou quem eu encontrei. Meu cérebro parecia
ter congelado. Eu estava me movendo mecanicamente, como um zumbi, alheio a quem
eu sou, o que eu fiz, o que eu estou fazendo e o que eu estou pensando. Foram os cachorros
latindo que me fizeram acordar na entrada do beco, a caminho de casa. Naquele momento,
todos os meus sentidos, que tinham sido paralisados, acordaram de uma vez, e incontáveis
cenas do meu passado se passaram diante dos meus olhos: os dias dirigindo de um lugar
para outro, o momento em que deslizei na estrada, eu me humilhando para o dono do
restaurante e competindo com outros garotos para conseguir o emprego de entregador, os
garotos que riram de mim e eu olhando para os meus colegas, em seus uniformes
escolares, esperando pelo ônibus. O som de cachorros latindo e a visão de seus olhos
ameaçadores, cheios de ódio, foram adicionadas à essas cenas.
Eu quase gritei: “Parem com isso! O que vocês querem que eu faça?” Mas eu me
controlei. A voz do meu pai ressoava nos meus ouvidos. A voz fraca e frágil do meu pai.
Eu pensei sobre o que ele havia me dito naquela noite em que nós viemos do hospital para
casa… a qual eu fingi não ter ouvido, mas ouvi tão claro como o dia entre os latidos dos
cachorros. Algo que eu tive que lidar repetidamente, desde aquele dia. Algo que eu tentei
não pensar a respeito. “Vá, Namjoon. Você deve sobreviver.”
O ônibus partiu, programado para chegar em Songju algumas horas mais tarde. Eu
não deixei uma mensagem quando eu parti de Songju, um ano atrás. Agora, eu estou
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retornando para a cidade sem nenhum aviso. Eu pensei em meus amigos. Eu não mantive
contato com nenhum deles. Eu me perguntava sobre o que eles estariam fazendo e se eles
ainda estariam lá. Eu não podia enxergar o lado de fora, através da janela coberta por
gelo. Eu lentamente escrevi na janela, com meu dedo indicador. “Eu devo sobreviver.”

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O que procurar
quando se está
perdido

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HoSeok
2 de março do ano 22

Eu gostava de me enturmar com as pessoas. Assim que eu deixei o orfanato, eu comecei


a trabalhar no Two Star Burger, como funcionário de meio período. Eu tinha que lidar
com inúmeras pessoas, sorrir constantemente e sempre parecer feliz. Eu amava aquele
trabalho. Havia algumas coisas que me faziam sorrir ou me deixavam feliz em minha
vida. Eu me deparei muito mais com pessoas ruins do que com as boas. Essa deve ter sido
a razão pela qual eu gostava tanto daquele trabalho. Enquanto eu sempre espremia uma
risada, conversava em um tom mais alto, de propósito, e fingia ser animado na frente dos
clientes, na verdade, eu mudava. Eu me senti melhor depois de soltar uma risada alta e
me tornei uma pessoa com um coração melhor através do trabalho duro de servir os
clientes de um jeito amigável. É claro, existia os dias difíceis. Cada passo para casa no
final do dia era um grande esforço. Às vezes, eu sofria bullying de alguns clientes. Mas
eu apenas sorria e ria. Rir me dava uma nova energia.
Eu me formei no ensino médio em fevereiro. Um diploma do ensino médio não
me trouxe muita mudança. Apenas me deixou trabalhar por mais horas na hamburgueria.
Eu conseguia um pouco mais de dinheiro, mas ainda não era o suficiente para me mudar
para um lugar melhor. Com o começo do novo semestre, o Two Star Burger estava cheio
de novatos, parecendo perdidos, e de veteranos tentando parecer maduros. Todos eles
eram fofos. Nós costumávamos ser como eles. O que os outros estão fazendo? Eu pensava
neles de vez em quando.
A última vez que vi Seokjin foi no começo das férias de verão. Ele parecia estar
me evitando, então eu me mantive distante. Depois de um tempo, eu ouvi que ele havia
sido transferido para outra escola. Yoongi, como de costume, não retornava as nossas
ligações, e ninguém sabia o que havia acontecido com Namjoon. Taehyung, que estava
particularmente afeiçoado a Namjoon, começou a abandonar a escola em certo ponto, e
disseram que ele ia e voltava da delegacia por fazer grafite nas ruas. Jungkook aparecia
de vez em quando, em frente à porta de vidro da hamburgueria. Parecia que ele estava
sempre se envolvendo em brigas, já que sempre tinha cortes e hematomas em seu rosto.
Já o Jimin, a última vez em que o vi foi quando ele foi levado da sala de emergência. As

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memórias daquele dia frequentemente vinham à minha mente e me assombravam. Eu fiz
algo errado? Eu perdi algo?
Outro cliente entrou na loja. Eu respirei fundo e o cumprimentei em alto tom. Eu
dei um sorriso grande e olhei em direção à porta. Era alguém que eu conhecia.

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TaeHyung
29 de março do ano 22

Depois que o dono do posto de gasolina cuspiu no chão e foi embora, eu apenas continuei
deitado, encolhido no chão. Ele havia me pegado fazendo grafite na parede dos fundos, e
me bateu sem misericórdia. Eu achei que estava acostumado a apanhar, mas não estava.
Eu comecei a fazer grafite com tinta spray há algum tempo. Sem pensar, eu
borrifei tinta na parede com uma lata que alguém havia jogado fora. A tinta amarela
borrifada na parede cinza se destacou nitidamente. Um suspiro escapou, meio
desconfortável. Peguei outra lata de tinta e borrifei sobre a tinta amarela. Eu não gostei
também. Logo, eu havia usado todas as latas de tinta. Depois que a última havia acabado,
eu a joguei no chão e me afastei. Eu estava sem fôlego, como se eu tivesse acabado de
correr uma maratona.
Eu não sabia o que as cores na parede significavam. Eu também não sabia o que
eu tinha desenhado e o porquê eu havia o feito. Mas eu podia dizer que representava o
meu estado mental. Eu havia pintado a minha mente na parede. No início, eu achei feio,
sujo, estúpido, inútil e miserável. Eu não gostei. Eu apaguei a tinta fresca com a palma da
minha mão. Eu queria apagar tudo. As camadas de tinta mancharam e se misturaram para
criar novas combinações de cores. Mas eu não conseguia apagá-las. Eu sentei e me apoiei
contra a parede. Não importava se eu gostava ou não. Não importava se era feio ou bonito.
Estava lá, como se fosse uma parte de mim.
Eu me sentei de lado e comecei a tossir. Sangue respingou na palma das minhas
mãos. A mão de alguém pegou uma das latas de spray. Eu levantei minha cabeça,
seguindo a mão, e um rosto familiar apareceu. Era o Namjoon. Ele estendeu a mão. Eu
apenas continuei o encarando. Namjoon me levantou. Sua mão era quente.

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YoonGi
7 de abril do ano 22

Eu parei, ao som desajeitado de uma apresentação de piano. Na calada da noite, o fogo


em um tambor de metal fazia um som crepitante no meio de um terreno em construção
vazio. Eu reconheci a melodia como uma que eu havia tocado não muito tempo atrás, mas
a descartei. Comecei a andar, sem cuidado nenhum, com meus olhos fechados. Eu estava
bêbado, cambaleando e tropeçando. Com o calor do fogo, o som do piano, o ar da noite e
o efeito do álcool desapareceram.
Eu voltei aos meus sentidos com o som alto de uma buzina. O carro havia quase
me acertado. A luz brilhante do farol, o vento agitado pelo carro e a constante excitação
do álcool fez eu me sentir tonto. Eu ouvi o motorista xingar. Eu estava prestes a gritar
algo de volta, quando percebi que não estava mais ouvindo o som do piano. Nada do
piano, apenas o som crepitante do fogo, o vento forte e o som dos carros passando. Por
que parou? Quem estava tocando?
Uma faísca escapou do tambor com um estalo e foi em direção ao céu escuro. Eu
olhei faísca se tornando cinzas completamente escuras e caindo no chão. Meu rosto
esquentou devido ao calor do fogo. Naquele momento, eu ouvi um barulho alto, como se
alguém tivesse batido com o punho nas teclas do piano. Eu olhei para trás
instantaneamente. Meu sangue correu rápido por todo meu corpo. O pesadelo que eu tive
na minha infância. Era o mesmo som que eu ouvi naquele pesadelo.
Eu comecei a correr em direção à loja de música. Eu não estava no controle do
meu corpo, ele apenas se moveu sozinho. Eu senti como se eu tivesse feito isso milhares
de vezes. Eu não tinha certeza do que era, mas parecia que eu havia esquecido algo
valioso.
Uma pessoa estava sentada em frente ao piano na loja de música com uma janela
quebrada. Havia se passado anos, mas eu reconheci seu rosto imediatamente. Eu desviei
meu olhar. Eu não queria me envolver na vida de alguém. Eu não queria tentar consolar
alguém que estava sozinho. Eu não queria ser importante para alguém. Eu não tinha
certeza se podia proteger essa pessoa até o fim. Eu não estava confiante de que poderia
ficar ao lado dessa pessoa até o fim. Eu não queria machucar alguém. Eu não queria me

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machucar. Já é difícil o bastante para nós tentarmos nos salvar quando o último momento
chega, quanto mais salvar outra pessoa.
Eu comecei a me aproximar. Eu ia me virar e ir embora, sem olhar para trás. Mas
eu estava me aproximando do piano antes de me dar conta. Eu mostrei qual nota estava
errada. Jungkook olhou para mim. Era a primeira vez que nos víamos desde que eu
abandonei a escola.

47
SeokJin
11 de abril do ano 22

Com uma derrapada forte, o carro quase não parou a tempo. Eu não vi a luz do semáforo
mudar, distraído com outros pensamentos. Estudantes vestidos com uniformes familiares
me encararam pela janela do carro, enquanto atravessavam a rua. Alguns me olharam com
raiva, outros deram risada, como se estivessem contando piadas aos seus amigos, outros
andavam com seus olhos fixados em seus livros e alguns olhavam ao redor enquanto
falavam ao telefone. Todos eles formavam um cenário tranquilo.
Quando o sinal verde de “ande” começou a piscar, alguns carros impacientes se
mexeram. Aqueles que pisaram na faixa de última hora correram para atravessar. Eu pisei
no acelerador.
Cheguei no cruzamento com o posto de gasolina bem na hora. À distância, eu vi
Namjoon abastecendo um carro. Apertei o volante. Eu sabia o que fazer, mas isso não
significava que eu não estava com medo. Eu seria capaz de pôr um fim nessa onda de azar
e dor? Falhar repetidas vezes não significa que não há possibilidade de sucesso? Não
significa que deveríamos desistir? A felicidade é mesmo uma esperança inútil para nós?
Minha cabeça estava latejando com esses pensamentos.
Eu inspirei profundamente e expirei lentamente. Eu pensei nos rostos de Yoongi,
Hoseok, Jimin, Taehyung e Jungkook, um após o outro. Eu mudei de faixa e entrei no
posto de gasolina. Namjoon estava se aproximando. Eu abaixei a janela do carro. “Quanto
tempo!”

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NamJoon
11 de abril do ano 22

Assim que acabei de abastecer o carro e me virei, algo bateu na minha bochecha e caiu
no chão. Eu me afastei e olhei para baixo, achando uma cédula amassada no meu pé. Eu
me abaixei para pegá-la. A pessoa do carro riu. Eu fiquei paralisado, sem reação. Seokjin
estava me observando a distância. Eu não conseguia olhar para cima. O que eu faria
quando encarasse a pessoa que estava dirigindo um carro chique e zombava dos outros
com arrogância? Eu deveria tomar alguma atitude contra isso. Deveria me defender se
eles me tratam injustamente. Não era uma questão de coragem, orgulho ou igualdade. Era
apenas educação.
Mas aquilo era um posto de gasolina, eu era trabalhador de meio período. Eu tinha
que pegar o lixo jogado pela janela dos carros. Eu tinha que apenas ficar ali e aceitar os
xingamentos dos clientes. Eu tinha que pegar o dinheiro quando os clientes o jogavam no
chão. Eu vivi desse jeito a minha vida toda. Era humilhante, mas eu tinha que aguentar
isso. Eu apertei meus punhos. As minhas unhas afundaram na minha palma.
Eu mantive meus olhos no chão, quando alguém pegou a nota por mim. A pessoa
do carro resmungou pela sua diversão ter acabado e foi embora. Mesmo assim, eu não
levantei minha cabeça. Eu apenas não conseguia encarar Seokjin. Ele já sabia o quão
covarde e pobre eu era. Mas eu não queria que ele soubesse a verdade completa sobre
mim. Ele apenas ficou lá, no canto da minha visão. Ele não se aproximou para conversar.

49
JungKook
11 de abril do ano 22

Finalmente, eu realizei o meu desejo. Eu trombei com aqueles caras na rua, de propósito,
e eles me bateram sem piedade. Eu ri enquanto eles faziam isso, então eles me surraram
ainda mais, chamando-me de louco. Eu me apoiei contra a persiana de uma loja e olhei
para o céu. Era noite. Nada brilhava na escuridão total do céu. Eu vi uma moita ao longe.
Estava deitada por causa do vento. Era como eu. Senti como se fosse chorar, então me
forcei a rir.
Fechei meus olhos e vi a imagem do meu padrasto limpando a garganta. Meu
meio-irmão riu. Os parentes olhavam para outro lugar ou conversavam sobre coisas sem
importância. Eles agiam como seu eu não estivesse ali, como se minha existência não
importasse. Na frente deles, minha mãe parecia perdida. Eu coloquei as mãos no chão e
me levantei, mas a poeira levantou e eu tossi. Doía, como se eu tivesse sido esfaqueado.
Subi até o telhado da primeira construção que vi. Fiquei no topo do corrimão e
andei com os dois braços abertos. Estiquei um pé na escuridão. A noite da cidade se
esticou em cores terríveis. Símbolos neon, carros buzinando e o pungente cheiro da poeira
estavam todos misturados na escuridão. Eu me senti tonto. Enquanto eu abria meus braços
mais ainda para tentar manter meu equilíbrio, um pensamento veio em minha cabeça.
Apenas mais um passo para frente. Isso é tudo o que levaria para acabar com tudo isso.
Eu me inclinei em direção ao buraco escuro. A escuridão que passou pelos meus pés
cresceu em mim como se fosse devorar todo o meu corpo. Eu fechei meus olhos, e a
cidade desordenada, o barulho e o medo, tudo desapareceu. Eu segurei minha respiração
e lentamente me inclinei mais uma vez. Eu esvaziei minha cabeça. Eu não pensei em
ninguém. Eu não queria ter nada na minha mente. Eu não queria lembrar de nada. Esse
era o fim.
Meu telefone tocou. Eu voltei a consciência como se eu tivesse acordado de um
longo sonho. Todos os meus sentidos voltaram ao normal. Eu tirei meu celular do bolso.
Era o Yoongi.

50
YoonGi
11 de abril do ano 22

Eu continuei caminhando, prestando atenção nos passos de Jungkook me seguindo. Uma


sequência de containers apareceu ao longo trecho da ferrovia. “É o quarto contêiner, a
partir do final.” Hoseok disse que estava se encontrando com Namjoon e Taehyung e
pediu para eu vir. Eu disse que iria, mas não foi de verdade. Eu odiava ficar no meio de
outras pessoas e Hoseok sabia disso. Ele não pensava que eu realmente estava indo.
Quando abri a porta, Hoseok olhou surpreso. Então, depois de ver Jungkook, ele
veio até nós, fazendo aquele seu gesto exagerado com uma expressão cheia de
sentimentos misturados. Jungkook se virou, provavelmente para esconder seus lábios
machucados. Eu passei pelos dois e entrei no container. “Faz quanto tempo?” Hoseok,
que estava tentando abraçar Jungkook, e Jungkook, que estava tentando se desviar do
abraço, continuaram a lutar um com o outro. Depois de um tempo, Namjoon e Taehyung
apareceram. A camiseta de Taehyung estava rasgada. Nós perguntamos o que havia
acontecido e Namjoon fingiu dar um cascudo na cabeça de Taehyung. “Esse cara aqui foi
preso de novo por causa do grafite, então eu tive que ir buscar ele.” Taehyung continuou
contando como sua camiseta rasgou enquanto ele tentava escapar da polícia.
Eu sentei em um canto e os observei. Namjoon deu uma blusa para Taehyung
vestir, Hoseok trouxe hambúrgueres e bebidas. Jungkook estava em pé de um jeito
estranho, olhando em volta. Pensando nisso, nós éramos assim antigamente, no ensino
médio. Naquela sala que foi transformada em depósito, Namjoon sempre ria quando
tentava argumentar com Taehyung, Hoseok estava sempre animado e Jungkook estava
sempre andando ao redor, como se nunca soubesse onde ficar.
Quanto tempo havia se passado? Eu não consigo me lembrar da última vez em
que estivemos todos juntos. O que aconteceu com Seokjin e Jimin? Eu me perguntei,
mesmo que não fosse muito de fazer isso. Eu nunca estive aqui antes, mas me senti
estranhamente confortável. Eu olhei para fora da porta. De repente, eu senti uma
necessidade de correr deste lugar. Uma ansiedade misteriosa me inundou depois daquela
inexplicável serenidade. Meus pensamentos voltaram para aquela sala em que nos
escondíamos no ensino médio. Nós costumávamos conversar e rir, mas esses dias se
foram. Assim como esse tempo que estamos passando aqui irá acabar. Existe alguma

51
razão em ter esse sentimento bom, o sentimento de pertencer aqui e essa ansiedade, sem
motivo?

52
SeokJin
11 de abril do ano 22

A luz entrando pela janela estreita do contêiner parecia com algum tipo de sinal. Um sinal
que nos guia quando nós estamos perdidos, um sinal que aponta para um abrigo quando
não temos nenhum lugar para ir, e um sinal que ilumina os amigos que estão ao nosso
lado. Eu estacionei o meu carro em um canto um pouco longe da ferrovia e assisti os
outros se reunirem, seguindo o sinal. Hoseok entrou primeiro no contêiner, seguido por
Yoongi, Jungkook, Taehyung e Namjoon. Como eles se parecem agora? Sobre o que eles
estão falando agora? Não é que eu não quisesse encontrá-los, mas isso era só o começo.
Ainda não era a hora certa. Um dia, nós iremos nos reunir novamente. Nós iremos rir
juntos em meio àquele sinal. Isso é o quão longe eu irei hoje. Dei meia volta com o meu
carro.

53
NamJoon
28 de abril do ano 22

Eu sabia que algo estava errado com Taehyung. Embora ele fingisse estar bem, sua
ansiedade se manifestou através de seu comportamento, expressões e voz, não importava
o quanto ele tentasse esconder. Isso não era sobre ser preso por grafitar. Para Taehyung,
grafite era um jogo, era divertido. As feridas e contusões que, às vezes, coloriam seu
rosto, devem ser de seu pai violento, mas essa não era a razão também. Quando o seu
rosto estava agredido, Taehyung exagerava ainda mais, agindo jovialmente e falando sem
parar.
Taehyung parecia estar em um pesadelo. Eu não o pressionei para falar sobre isso
porque decidi esperar até que ele estivesse pronto. Também duvidei de que eu era
qualificado para ser aquele que ouviria os seus problemas. Eu tentei agir como um irmão
mais velho e fingi ser maduro, mas eu não estava lá quando os outros estavam passando
pelos seus momentos mais difíceis. Eles disseram que eu era maduro e adulto, mas isso
não era verdade.
Taehyung me lembrava o que eu vivi naquela vila no interior. Na verdade, os dois
garotos não tinham nada em comum. Eu estava ciente disso quando eu estava vivendo
naquela vila. Mas aquele garoto me fez lembrar de Taehyung, assim como Taehyung me
faz lembrar dele agora. “Eu tenho um favor para pedir.” Qual era o favor? A motocicleta
realmente derrapou em folhas molhadas? Os cachorros ainda estavam latindo sem parar?
E os meus pais? Eu chacoalhei a minha cabeça. Eu fiquei de pé para forçar esses
pensamentos a se dispersarem. Logo quando eu estava prestes a sair do contêiner,
Taehyung começou a sacudir-se e revirar-se, como se estivesse tendo um pesadelo.
Taehyung acordou com um sobressalto, quando eu balancei seus ombros, e
sentou-se ali, perdido por um longo tempo. Ele somente deixou suas lágrimas descerem
pelo seu rosto e começou a tagarelar. Ele disse que Yoongi morreu, Jungkook caiu do
telhado e eu me envolvi numa briga. Ele disse que tinha esse sonho frequentemente. Era
tão vívido que parecia realidade, e a realidade parecia com um sonho. “Não me deixe.” O
rosto daquele garoto na vila do interior estava sobreposto no rosto de Taehyung. Eu não
pude ser capaz de dar a ele uma resposta. Eu não pude ser capaz de lhe dizer que ele não
precisava se preocupar, porque eu não estava indo para lugar algum.

54
As coisas com
asas*

* “Esperança” é a Coisa com Penas, por Emily Dickinson.

55
Esperança é a coisa com penas
Emily Dickinson

Esperança é a coisa com penas


Que se empoleira na alma
E canta um som sem palavras
E nunca, nunca para.

E mais doce é ouvido no vendaval


E dura precisa ser a tempestade
Que poderia desanimar o passarinho
Que mantém aquecido a tantos.

Já o ouvi nas terras mais geladas


E nos mares mais estranhos,
Entretanto, nunca, mesmo no desespero,
Ele pediu uma migalha a mim.

56
SeokJin
2 de maio do ano 22

Eu estava tão nervoso que os meus dedos endureceram. Eu apertei e desapertei os meus
punhos. E se eu fracassar? Eu vim fazendo isso repetidamente, mas eu me sentia
aterrorizado toda vez. Eu respirei, lento e profundamente, e pensei em Yoongi. Ele deve
estar bêbado neste momento, acendendo seu isqueiro com uma mão e segurando o seu
celular com a outra. Ele deve estar deitado em seu sofá, contemplando as razões pelas
quais deve continuar vivendo. Ou as razões para não continuar.
Como Yoongi vê o mundo e a si mesmo? Eu enfrentei essas perguntas toda as
vezes em que tentei salvá-lo. Eu não conseguia entender como ele podia continuar
tentando destruir a si próprio. Isso não significava que eu estava muito feliz vivendo neste
mundo, ou que cada e todo dia de minha vida estava coberto de felicidade. Na verdade,
eu nunca fui cativado por nada, nem mesmo pela vida e a morte.
Olhando para o passado, eu não era diferente de quando comecei tudo isso pela
primeira vez. Eu seria capaz de corrigir todos os erros e enganos e salvar a todos nós? Eu
não compreendi a profundidade e o peso dessa pergunta. Era verdade que eu,
desesperadamente, queria salvar todos nós. Ninguém merece morrer, se desesperar, ser
reprimido e desprezado. Acima de tudo isso, eles eram meus amigos. Nós talvez
tivéssemos nossos defeitos e cicatrizes, e fomos torcidos e distorcidos. Nós talvez
fossemos ninguém. Mas nós estávamos vivos. Nós tínhamos dias para viver, planos para
seguir e sonhos para realizar.
A princípio, eu não pensei muito sobre isso. Eu pensei que tudo iria depender de
quanto esforço eu colocasse em cima disso, depois que eu descobrisse quem eu precisava
salvar, e do quê. Isso era o que eu pensava. Eu acreditava que poderia resolver tudo isso
convencendo-os e mudando as coisas. Eu era tão simples e ingênuo. Mas isso não era
nada mais do que uma tentativa para salvar a minha própria pele. Após uma série de
tentativas e erros, eu percebi uma coisa. Não era tão simples salvar os outros.
Yoongi não era fácil de lidar. Ele provavelmente era o mais difícil de todos. Ele
estava sempre mudando a hora e o lugar de suas tentativas de suicídio. Eu tinha que
abordá-lo de maneiras diferentes dos outros. A solução que funcionou bem da última vez,

57
não funcionou na próxima. Bem quando eu pensava que iria desvendar um mistério, isso
levava a outro problema.
A princípio, eu não pude reconhecer as suas razões. Depois de tudo, o que eu pude
adivinhar foi que a angústia de Yoongi estava conectada aos seus conflitos internos.
Namjoon foi pego em uma briga por conta de um cliente rude no posto de gasolina. Mas
Yoongi era diferente. Ele não tinha um alvo definitivo e causa definitiva. Ele possuía
muitas variáveis.
Eu tentei imaginar o que estava passando dentro da mente de Yoongi. Uma vez,
eu o segui em segredo por horas. Os seus passos eram inseguros e imprevisíveis. Ele
cambaleou pelas ruas noturnas e tentou atirar a si mesmo no fogo. Às vezes, ele agachava
no chão e ouvia a música que ressoava em algum lugar dentro de um shopping
subterrâneo. Depois de uma noite seguindo ele, eu percebi o quão seca, tediosa e chata a
minha própria vida era. Não que eu invejasse Yoongi. O sofrimento que ele deve ter
suportado, indo de um extremo a outro, estava além da minha imaginação. Tudo que eu
podia fazer era vê-lo cambalear.
Um revés era sempre seguido por outro. Uma nova camada de aflição veio antes
mesmo da anterior passar. Talvez eu não seja capaz de salvar o Yoongi, no final das
contas. Eu não pude achar uma ruptura. Mas, naquele momento, a esperança voou para
dentro. Uma vez, eu ouvi que a esperança tinha asas. Era um pequeno pássaro com asas.
Um pássaro voou para dentro do estúdio de Yoongi, o qual estava num edifício
abandonado no meio de um bairro em reconstrução. Foi decidido que iriam demolir
aquele bairro um longo tempo atrás, mas ele foi abandonado quando o plano de
reconstrução foi interrompido. O pássaro voou para dentro, através de uma janela
quebrada. Yoongi estava parado no meio do estúdio, com um isqueiro em sua mão. Todo
o estúdio cheirava fortemente à gasolina. Eu estava apenas parado do lado de fora da
porta. Eu estava prestes a entrar, quando ouvi um grande baque e o bater de asas. A porta
estava meio aberta, então eu espiei através dela. Yoongi estava de costas para mim.
O pássaro desabou no chão. Ele bateu suas asas novamente, mas falhou em subir
para o ar. Yoongi permaneceu completamente parado e olhou para o pássaro. Eu ainda
não podia ver o seu rosto. O pássaro bateu por todo o estúdio, em busca de uma saída.
Suas asas colidiram na parede e na cadeira, e as penas que caíram flutuaram pelo chão.
Yoongi estava só o encarando. Sua mão que segurava o isqueiro ainda no ar. Ele
finalmente abaixou seu braço, sentou-se e cobriu sua cabeça com ambas as mãos.
58
Eu fui até o seu estúdio naquela noite. Era espaçoso, mas deserto. Um sofá sujo,
cadeira e piano era tudo o que podia encontrar lá. Pedaços de papéis amassados estavam
espalhados por todo o piso. Ele deve ter tentado iniciar um incêndio. Alguns deles
pareciam com letras de música, com frases de letras rabiscadas neles.
Eu olhei em volta e achei a coisa com asas. O pássaro estava agachado atrás do
piano, com sangue seco em volta de suas feridas nas asas. Parecia petrificado e coberto
de medo quando me aproximei. Pequenas gotas de sangue estavam marcadas no piso.
Migalhas de pão e água estavam colocadas na frente do piano.
Eu recuei. Mesmo se eu deixá-lo sair pela janela, ele não será capaz de voar ainda.
Quanto tempo levaria para as feridas cicatrizarem? Yoongi permaneceria são e salvo
enquanto o pássaro estivesse ali? Então um pensamento veio até minha mente. Yoongi
deve ter parado ele mesmo por causa disso. Esse pequeno pássaro ferido. Uma coisa frágil
que não podia proteger ou salvar a si próprio. Um ser vivo minúsculo que confiou a sua
vida a Yoongi.
Depois daquele dia, eu percebi uma coisa. Se todas as variáveis relacionadas às
tentativas de suicídio do Yoongi existiam dentro do próprio Yoongi, por que não arrastar
pelo menos uma delas para fora? Eu teria que visar o alvo certo e criar a situação certa.
Uma variável que poderia dar a Yoongi uma razão para parar de destruir a si mesmo.
Alguém que poderia compartilhar suas cicatrizes e desejos. Esse alguém não era eu. “Não
é algo que você pode fazer sozinho”. Eu me tornei dolorosamente consciente do
significado completo dessas palavras que ouvi não muito depois que tudo isso começou.
Eu percebi que Jungkook tinha em seus olhos o mesmo olhar que Yoongi. Quando
Namjoon disse isso: “Jungkook ainda tem aquela foto”, ele quis dizer a foto que nós
tiramos juntos na praia no ensino médio. Namjoon, aparentemente, queria que eu
soubesse que Jungkook ainda estava pensando em mim, mas eu lembrei de uma cena
completamente diferente.
No dia em que fomos procurar aquela pedra que tornou sonhos em realidade, nós
rimos, reclamamos e brincamos embaixo do sol escaldante. E, devastado em descobrir
que aquela pedra desapareceu, eu gritei o meu sonho, o qual nem mesmo eu podia ouvir,
para o mar.
Naquele momento, eu vi Jungkook gritando alguma pergunta para o Yoongi. Eu
não pude ouvir o que ele estava dizendo, mas eu pude sentir que isso era importante para
o Jungkook. O que ele perguntou ao Yoongi? Por que ele? Eu não tinha pensado nisso
59
naquela época. Yoongi não era tão animado como o Hoseok, não era tão amigável como
o Jimin e não era tão confiável como o Namjoon. Por que foi Yoongi? Eu percebi, de
repente. Foi o Yoongi quem salvou Jungkook. Os dois tinham o mesmo olhar em seus
olhos.
Não foi difícil mandar o Jungkook até o Yoongi. Jungkook estava sozinho na
escola e em casa. Ele não tinha lugar nenhum para ir depois da escola. Ele normalmente
passava o seu tempo na hamburgueria do Hoseok ou vagava por volta do contêiner do
Namjoon. Eu tranquei a porta do contêiner e fiz o Hoseok deixar a loja antes do Jungkook
chegar. Depois de vaguear por um tempo, Jungkook finalmente seguiu para o estúdio de
Yoongi. Ele parecia ter sentimentos confusos. Eu devo entrar? E se ele pensar que eu sou
irritante? Expectativa e medo, ambos os sentimentos passavam através do rosto de
Jungkook. Desde aquele dia, ele visitou o estúdio de Yoongi todo dia. A princípio, Yoongi
disse, diretamente, para ele ir embora, mas ele realmente não quis dizer isso.
Uma sombra apareceu por um momento. Era Jungkook. Eu me encolhi mais
profundamente no assento. Eles ainda não sabiam que eu estava de volta, exceto
Namjoon, que eu encontrei no posto de gasolina. Namjoon disse que todos iriam ficar
emocionados, mas eu me recusei a encontrá-los. Eu estava esperando pelo momento certo.
Eu tinha que esperar até que todos nós estivéssemos juntos.
Talvez nós estivéssemos amarrados uns aos outros com cordas, e apoiando um ao
outro. Não foi fácil traçar essa teia de cordas. Foi como um labirinto complexo. Quando
algumas cordas, e nós, eram descobertas, outras partes se rompiam. Quando uma corda
era puxada muito forte, tudo desabava em um instante. Eu tinha que conectar os pontos,
uma corda com outra, observando os outros de perto para que eles salvassem uns aos
outros sem perceberem.
Jungkook parou na frente do estúdio de Yoongi e olhou para o andar de cima. Ele
não parecia muito alegre. Yoongi tinha passado por um momento difícil nos últimos dez
dias. Ele vinha bebendo muito e torturando a si próprio. Eu empurrei Jungkook para esta
profundeza de agonia. O sofrimento de Yoongi deve ter sido demais para o Jungkook.
Uma vez, Jungkook desistiu do Yoongi. Naquela época, Yoongi jogou si próprio nas
chamas. Mas, cruelmente, Yoongi não morreu. Jungkook nunca perdoou a si próprio por
falhar em pará-lo.
Tinha se passado por volta de dez minutos desde que Jungkook foi ao estúdio de
Yoongi. O som de algo se quebrando veio da janela do segundo andar, e Yoongi, com os
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lábios cortados, apareceu na entrada do edifício, cambaleando. Ele correu pela estrada
inclinada. Eu olhei acima, para a janela no segundo andar. Jungkook deve estar sentado
ali em cima, em frente ao espelho quebrado. Ele deve estar pensando que ele não podia
salvar o Yoongi. Ele deve estar pensando que não há esperanças.
Eu dei partida no carro depois de ver Jungkook correr para fora do edifício.
Yoongi deve estar a caminho do motel no final do quarteirão. Eu deveria deixar uma pista
para Jungkook do paradeiro do Yoongi. Isso era tudo o que eu podia fazer. Eu larguei um
lenço manchado de sangue perto do portão do motel.
Sentando no carro, eu vi Jungkook subindo as escadas do motel. Eu deixei uma
foto na frente do espelho no estúdio de Yoongi mais cedo, nesta manhã. Era a foto de
todos nós, tirada naquele dia em que fomos para a praia. Jungkook viu a foto? Eu não
podia saber se Jungkook seguiu o Yoongi por causa daquela foto, se Jungkook decidiu
dar uma chance vendo uma pequena semente de esperança ou se Jungkook foi motivado
por alguma outra coisa.
Eu não tinha certeza de como Jungkook poderia salvar o Yoongi. Aquele
momento decisivo na vida, aquele último momento, para cada um de nós, incluindo
Jungkook e Yoongi, não pode ser interferido. Só pode ser compartilhado por aqueles que
sofrem a mesma ferida, entendem o medo, sonhos e derrotas um do outro e, portanto,
enxergam através um do outro até a alma.
Eu olhei acima, para a janela do motel. Perguntei-me sobre o que Jungkook e
Yoongi estavam conversando ali dentro e desejei desesperadamente que a coisa com asas
fosse capaz de voar para o céu dali.

61
YoonGi
2 de maio do ano 22

O lençol pegou fogo e, instantaneamente, incendiou-se. Tudo sujo e surrado morreu no


calor insuportável. O cheiro de mofo, a umidade depressiva, e a luz escura e sombria não
eram mais reconhecíveis. Somente a dor restou. A dor física, que parecia ferver nas
chamas. As pontas dos meus dedos pareciam estar derretendo, com bolhas se formando.
O rosto sem expressão do papai e o som da música disperso no ar.
Eu era diferente dele. Papai não me entendia e eu não o entendia. Se eu tentasse,
eu seria capaz de persuadi-lo? Eu acho que não. Tudo que eu podia fazer era me esconder,
desafiar e fugir. Às vezes, eu sentia que não era dele que estava tentando me libertar.
Nesses momentos, o medo me consumia. Do que eu estou fugindo então? O que é
necessário para que fuja de mim mesmo? Tudo parecia sem esperança.
Eu pensei ter ouvido alguém me chamando, mas eu não virei a minha cabeça [para
olhar]. Eu não conseguia respirar. Eu não conseguia me mexer. Mas eu sabia. Era o
Jungkook. Ele deve ter ficado furioso. Ele iria chorar por mim. Eu só queria desaparecer.
Eu queria colocar um fim na fumaça, calor, dor e medo. Jungkook gritou alguma coisa,
mas eu ainda não podia ouvir. Tudo perante os meus olhos desmoronou. Era o último
momento. Eu levantei a minha cabeça. Minha última visão deste mundo foi este quarto
sujo e isolado, as chamas incandescentes e o calor contínuo, e o rosto retorcido de
Jungkook.

62
JungKook
2 de maio do ano 22

Eu olhei para cima e me encontrei na frente do contêiner. Eu abri a porta e entrei. Deitei
encolhido e me cobri com todas as roupas que pude encontrar. Eu sentia frio e meu corpo
estremecia. Era difícil de me conter e ficar parado. Eu sentia vontade de chorar, mas as
lágrimas não viriam.
A cena de Yoongi em pé, entre as chamas, continuava a repetir-se na minha mente.
Chamas inflamaram-se no lençol. Eu não conseguia pensar. Eu não sabia o que fazer. Eu
não era bom em conversar. Eu não conseguia nem expressar os meus próprios
sentimentos, quem dirá convencer alguém. Lágrimas brotaram e uma tosse alojou-se na
minha garganta. Tornou-se ainda mais difícil para falar. As únicas palavras que eu
conseguia pronunciar no momento em que pulei nas chamas eram “eu pensei que todos
nós iríamos juntos para a praia”.
“O que há de errado? Você está tendo um pesadelo?” Alguém chacoalhou o meu
ombro. Eu abri os meus olhos para encontrar Namjoon. Um sentimento de alívio me
dominou. Namjoon colocou sua mão em minha testa e me contou que eu estava com
febre. Era verdade. O lado de dentro da minha boca parecia estar queimando, mas estava
congelando de frio ao mesmo tempo. Minha cabeça doía e minha garganta estava
dolorida. Eu mal conseguia engolir as pílulas que Namjoon trouxe para mim. “Volte a
dormir. Nós iremos conversar mais tarde.” Eu assenti. Então eu o perguntei: “serei capaz
de me tornar um adulto como você?”

63
O andar mais alto
da cidade

64
HoSeok
10 de maio do ano 22

Minha narcolepsia ocorria a qualquer hora, em qualquer lugar. Eu desmaiava sem aviso,
enquanto estava trabalhando, e na rua, apagava de repente. Eu fingia que não estava tão
preocupado sobre isso na frente daqueles que se preocupavam comigo. Eu nunca tinha
contado para ninguém que eu não conseguia suportar contar até dez.
Eu sempre acabava tendo sonhos com a mamãe quando eu apagava. Os sonhos
eram todos parecidos. Eu estava indo para algum lugar num ônibus com a mamãe. Eu
estava animado e alegre. Eu lia as placas que passavam, olhava o perfil de seu rosto e
ficava inquieto. Eu tinha aproximadamente sete anos em meus sonhos.
Então isso passou, de repente, pela minha mente. Mamãe tinha me abandonado.
Eu tinha 20 anos quando percebi isso. Mamãe ainda estava sentada no ônibus, no assento
à minha frente. Ela parecia exatamente a mesma por trás. Quando eu sussurrei “mamãe”,
ela virou sua cabeça como se tivesse me ouvido. Sua silhueta cintilava contra a brilhante
luz solar e seu cabelo esvoaçava ao vento, assim como naquele dia no parque de diversões.
A parte mais triste, era que eu sabia. Eu sabia que iria acordar desse sonho se ela virasse
sua cabeça um pouco mais e olhasse para mim.
Eu tentei dizer a ela para não se virar, mas minha voz falhou. Eu continuei
tentando gritar. “Mamãe, não se vire. Não se vire.” Mas ela sempre se virava e olhava
para mim. Logo quando nossos olhos estavam prestes a se encontrar, tudo ficava branco,
e a pálida luz fluorescente, no teto do quarto do hospital, aparecia.
Foi a mesma coisa hoje. Quando eu abri os meus olhos, a primeira coisa que surgiu
à vista foi a luz fluorescente no teto. Eu fui vestido com uma camisola hospitalar. O doutor
disse que eu parecia ter tido uma concussão e precisava de um exame mais completo. Eu
fui transferido para um quarto de hospital para seis pessoas. Eu me senti exausto. Eu
sempre me sentia exausto quando eu recobrava a consciência.

65
JiMin
11 de maio do ano 22

Eu fui transferido para a ala cirúrgica há aproximadamente duas semanas. A princípio,


foi estranho ver pessoas entrando e saindo tão livremente. Logo, eu descobri que era
apenas outra parte do hospital. Tinha pacientes, enfermeiros e doutores. Deram-me
medicamentos e injeções. Contudo, era praticamente a mesma coisa que a ala psiquiátrica.
A única diferença era que a ala cirúrgica tinha um corredor mais longo, com um salão no
meio do caminho. É claro, havia mais uma grande diferença. Eu estava autorizado a
circular livremente por toda a ala. À noite, eu escapava do meu quarto e andava por aí.
Eu pulava e dançava no salão e corria pelo corredor do primeiro andar em alta velocidade.
Essas eram alegrias simples que não me eram permitidas na ala psiquiátrica.
Um dia, eu descobri algo estranho sobre mim mesmo, enquanto estava correndo
pelo corredor. Em algum momento, passado o quarto-e-sala e a escada de emergência,
meu corpo parou completamente, por nenhuma razão. Eu ainda tinha que dar mais cinco
passos para chegar ao final, mas eu parei, e fui incapaz de dar outro passo. No fim do
corredor, havia uma porta. A porta abria-se para o mundo exterior, para fora do hospital.
A porta não tinha uma placa de “Zona Proibida” e ninguém veio correndo para me parar.
Mas eu só não conseguia ir além disso. Eu logo descobri o porquê. Esse era o fim do
corredor, assim como na ala psiquiátrica. Como se uma linha tivesse sido desenhada no
piso, eu vim a parar naquele exato local, onde o corredor da ala psiquiátrica teria acabado.
Eles me chamavam de bom garoto na ala psiquiátrica. Às vezes, eu tinha
convulsões, mas na maior parte do tempo eu era obediente. Eu sorria e mentia sem
ninguém perceber. E eu conhecia o meu limite. O corredor da ala psiquiátrica poderia ser
percorrido em 24 passos regulares. Quando eu fui hospitalizado pela primeira vez, eu
tinha oito anos. Eu chorei e exigi ir para casa com a mamãe, segurando-me na porta de
ferro no fim do corredor. Eu tentei abrir a porta várias vezes, até as enfermeiras virem
correndo e me darem uma injeção. Por um tempo, as enfermeiras ficavam tensas sempre
que eu pisava no corredor. Agora, ninguém prestava atenção em mim, mesmo se eu
corresse pelo corredor e alcançasse a porta. Eu já sabia que a porta estava trancada, de
qualquer maneira. Eu só continuava correndo até a porta e voltando. Eu não implorava
mais ou chorava para eles abrirem a porta.

66
Mas o mundo é repleto de pessoas mais idiotas do que eu. Eles seguravam e
sacudiam a porta sem parar. Eles eram reprimidos pela equipe, recebiam injeções e eram
amarrados em suas camas. Se eles tivessem se comportado de maneira um pouco mais
aceitável, suas vidas poderiam ter se tornado muito mais confortáveis. Esses idiotas não
sabiam de nada.
Eu não era assim no começo. Eu também fui deixado sem sentido pelos sedativos
injetados à força pelas enfermeiras, e fui pego tentando escapar do hospital nos primeiros
dias. Eu ligava para a mamãe várias vezes, chorando muito, o suficiente para ficar rouco.
“Eu não estou doente. Eu estou bem agora. Por favor, venha e me leve para casa.” Eu
fiquei acordado a noite inteira por vários dias, mas mamãe não veio.
Quando eu fui trazido para o hospital, depois que eles me encontraram
inconsciente no Jardim Botânico, meus pais não fizeram nenhuma pergunta. Eles
ignoraram o fato de que eu tinha apagado lá. Foi a mesma coisa quando eu desenvolvi
convulsões. Eles me hospitalizaram, deram-me alta depois de algum tempo e me
transferiram para outra escola. A reputação da família era importante para eles. Um filho
com doença mental era inaceitável.
Eu não me tornei um bom garoto do dia para a noite. Não houve um acontecimento
dramático ou um incidente memorável. Eu apenas continuei a desistir de mim mesmo,
pouco a pouco, assim como uma unha cresce. Eu parei de chorar e desejar sair. Eu parei
de correr em direção à porta no final do corredor.
Eu compareci à escola entre as internações hospitalares, mas eu sabia que
eventualmente iria ser mandado de volta. Era refrescante olhar para o céu e apreciar a
fragrância de cada estação. Mas eu tentei não os manter em minha memória. De qualquer
jeito, eles logo seriam tomados de mim. Amigos também. Um histórico de doença mental
não era útil em fazer amizades.
Havia uma exceção. Eu conheci um grupo que pareciam ser amigos verdadeiros.
Foi há quase dois anos. Eu tentei não lembrar deles, mas eu não pude deixar de recordar
esses dias. Eu tive que me separar deles depois que tive uma convulsão no ponto de
ônibus, após a escola. A última cena que me lembro foi a janela do ônibus do Jardim
Botânico abrindo. Foi quando eu apaguei.
Quando abri meus olhos, eu estava em um hospital. Mamãe estava no canto,
falando em seu telefone. Minha mente rodopiou por um instante. Eu não sabia onde eu
estava ou como eu cheguei ali. Eu analisei a minha volta e encontrei janelas com barras
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de metal. Então tudo veio de uma vez até mim. O céu azul que eu vi em meu caminho
para casa, os jogos bobos que jogamos no ponto de ônibus, o ônibus do Jardim Botânico
se aproximando e os olhares através das janelas do ônibus.
Eu fechei os meus olhos. Mas já era muito tarde. O portão da frente do Jardim
Botânico apareceu diante dos meus olhos. Era o dia do piquenique da escola, na primeira
série. Eu estava correndo debaixo de uma chuva forte, com a minha mochila acima da
minha cabeça. Um depósito apareceu à minha vista. A porta foi deixada aberta. Eu entrei.
O cheiro úmido de mofo, o som da minha respiração pesada e o som metálico estridente.
Eu sentei em minha cama e gritei. “Não! Eu não me lembro! Eu esqueci!” Mamãe
veio correndo, chamando por alguém. Eu sacudi a minha cabeça violentamente. Eu
balancei os meus braços em todas as direções para livrar-me daquele cheiro, toque, som
e visão. Mas as memórias vieram com tudo. A barragem, que havia a segurado nos
últimos dez anos, desmoronou, e cada detalhe daquele dia passou pela minha mente,
olhos, células e unhas, como se isso estivesse acontecendo novamente. Eu tive uma
convulsão e recebi uma injeção. O medicamento fluiu pelos meus vasos sanguíneos e eu
rapidamente cochilei. Eu fechei os meus olhos e desejei que tudo isso fosse só um sonho,
e que, quando eu acordasse novamente, eu não fosse capaz de me lembrar de nada.
Aquele desejo fora só um desejo. Em vez disso, um ciclo de convulsões, injeções,
e um sono induzido por injeção, que parecia com a sensação de cair de um penhasco,
continuaram. Depois que eu despertei daquele sonho, meu corpo inteiro parecia estar
coberto por lama. Lama que parecia sangue. Não importava o quanto eu tentasse lavar
isso, o cheiro daquele depósito permanecia. Eu esfregava até sangrar, mas ainda parecia
sujo.
Quando o doutor me perguntou sobre isso em um tom de preocupação, eu
primeiramente estremeci e me desculpei. Eu disse, repetidamente, que eu sentia muito.
Isso era tudo minha culpa. Por favor, me deixe esquecer tudo sobre isso. Então eu tentei
fingir que nada havia acontecido. Eu não sabia sobre o que ele estava falando. Eu não me
lembrava de nada. Então eu olhei para o doutor e sorri. “Eu não me lembro de nada.” O
doutor realmente acreditou em mim? Eu não tinha certeza. Mas o importante foi que eu
me tornei um bom garoto. Minha vida no hospital era pacífica. Era um lugar ideal para
eu passar o meu tempo. Eu não desejava nada e não me sentia constrangido, com medo
ou solitário. Isso até a noite passada. Antes de eu encontrar Hoseok novamente.

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Eu fui transferido para a ala cirúrgica porque eu briguei com o idiota que
continuava a tentar chegar na porta no fim do corredor, apesar da restrição das
enfermeiras. Nós dois ficamos feridos e fomos colocados em dois quartos diferentes, no
quinto andar da ala cirúrgica. Eu fui colocado em um quarto de seis pessoas. Minha cama
estava no meio e os pacientes de ambos os lados mudavam com frequência.
Eu acordei no meio da noite. O paciente ao meu lado parecia estar tendo um
pesadelo e continuava a gemer. O som de gemido veio da cama à minha esquerda. Eu
puxei o cobertor sobre a minha cabeça. Eu estava tão farto e cansado de pesadelos. Eu
não precisava ouvir isso. Eu tentei tolerar isso por um tempo, mas o pesadelo dele
continuou e continuou. Finalmente, eu me levantei e caminhei até sua cama. Eu bati em
seu ombro e tentei ajudar. “Está tudo bem. É só um sonho.”
Eu descobri esta manhã que aquele paciente era Hoseok. Eu fechei as cortinas para
o meu café-da-manhã, e Hoseok estava sentado na cama perto da minha. Ele parecia
contente em me ver novamente. Eu estava contente também? Provavelmente, em um
canto da minha mente. Ele tinha saído comigo e cuidado de mim, um aluno transferido
que era um completo estranho na escola. Ele também pegou o caminho mais longo para
casa comigo, depois da escola. Eu ainda me lembrava dos dias em que nós costumávamos
caminhar para casa com picolés em nossas mãos. Mas também foi ele quem viu minha
convulsão no ponto de ônibus, antes de eu vir para cá. Foi ele quem me trouxe para este
hospital. Ele deve ter encontrado minha mãe. Eu não queria explicar a minha situação
para ele.
Eu saí do quarto, deixando a minha refeição intocada. Hoseok parecia me seguir,
mas eu conhecia todos os cantos deste hospital. Ele não conseguiria me acompanhar. Eu
perambulei pelo hospital o dia inteiro. Das escadas, eu vi os outros, até Jungkook, quando
eles vieram ver Hoseok. Eles não tinham mudado muito.
Por toda aquela tarde, eu subi e desci as escadas e passeei pelos outros andares.
Eu me apoiei na janela no fim do corredor e contei os carros que passavam. Eu fiquei
chateado. Eu tinha pulado todas as minhas refeições e não tinha lugar nenhum para sentar
e relaxar confortavelmente. Era irritante ouvir as gargalhadas vindo do meu quarto. Eu
fiquei mais chateado porque eu não conseguia saber o porquê de eu estar tão chateado.
Eu voltei para a minha cama tarde da noite. Então Hoseok me deu um pedaço de pão.
Devia ser porque eu estava morrendo de fome. O pão estava quente e delicioso.
Eu não pude deixar de confessar a ele. Que eu estive confinado na ala psiquiátrica por um
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longo tempo. Que eu fui brevemente transferido para a ala cirúrgica, mas que em breve
seria mandado de volta. Que eu não receberia alta no futuro próximo. Que, assim como
ele testemunhou, eu era uma pessoa que tinha convulsões na rua. Que eu era um paciente
que talvez fosse perigoso. Eu não queria adicionar a última parte. Mas eu achei que isso
iria pará-lo de me criticar.
Ele pausou por um minuto. Então ele pegou o meu pão. “Jimin, não exagere. Você
não sabia que eu tenho narcolepsia? Eu posso apagar a qualquer hora, em qualquer lugar.
Eu sou perigoso também?” Ele mordeu um pedaço do meu pão. Eu simplesmente
congelei, sem saber o que dizer. Então, ele disse “O quê? Você quer isso de volta?” Ele
mordeu o pão novamente e devolveu para mim. Eu peguei de volta imediatamente. Ele
me perguntou novamente. “Convulsões são contagiosas? Narcolepsia não é. Não se
preocupe.” Ele não tinha mudado nada.

70
HoSeok
12 de maio do ano 22

Abri a saída de emergência e desci as escadas. Meu coração estava disparado. Eu tinha
certeza de que vi minha mãe no corredor. Assim que olhei para trás, a porta do elevador
se abriu e uma multidão de pessoas saiu. Mamãe desapareceu de vista. Saí
desesperadamente por entre a multidão e a vi atravessando a saída de emergência. Eu a
segui até a escada e desci de dois em dois degraus. Desci vários andares sem parar.
"Mãe!" Mamãe parou. Dei mais um passo apressado. Ela se virou. Outro passo
descendo a escada. Seu rosto tornou-se gradualmente visível. Então meu pé escorregou e
meu corpo inteiro avançou para frente. Eu balancei meus braços para manter o equilíbrio,
mas já era tarde demais. Fechei os olhos com força, com medo de cair pelas escadas.
Naquele momento, alguém agarrou meu braço por trás. Por pouco não cai de cabeça.
Quando me virei, Jimin estava parado, parecendo assustado. Eu rapidamente olhei para
frente novamente, apressado demais para lembrar de agradecê-lo.
Eu vi uma mulher. Ela parecia perplexa. Havia um garotinho ao lado dela. A
mulher continuava piscando seus grandes olhos. Não era minha mãe. Ela recuou com o
garotinho escondido atrás de si. Eu apenas fiquei na escada, sem dizer nada,
contemplando o rosto dela.
Eu não conseguia lembrar o que eu disse para sair daquela situação. Eu devo
apenas ter murmurado que sentia muito ou que a confundi com outra pessoa. Pensando
sobre isso, eu nem perguntei ao Jimin por que ele estava lá. Minha cabeça estava uma
bagunça e não consegui processar nenhum dos detalhes. Ela não era minha mãe. Talvez
eu soubesse disso antes de começar a persegui-la. Fazia mais de dez anos desde o dia em
que fui deixado sozinho no parque de diversões. Ela deve ter envelhecido e ficado
diferente do que eu lembrava. Mesmo se eu a encontrasse novamente, não seria fácil
reconhecê-la. Seu rosto foi quase completamente apagado da minha memória.
Eu olhei para trás. Jimin estava apenas me acompanhando, sem dizer uma palavra.
Ele disse que ficou neste hospital desde o ensino médio, desde a última vez que o vi na
sala de emergência. Quando lhe perguntava se queria sair dali, ele apenas hesitava em
responder, parecendo confuso. Talvez Jimin também estivesse preso à uma teia de
memórias como eu. Eu dei um passo em direção a ele. "Jimin, vamos sair daqui."

71
JiMin
15 de maio do ano 22

Três dias se passaram depois que Hoseok recebeu alta do hospital. Eu não queria dizer
adeus, então o segui secretamente. Enquanto eu continuava me escondendo e tomando
cuidado para continuar atrás, Hoseok desceu o longo corredor em direção à porta. Ele
despreocupadamente passou a linha perto da saída de emergência, onde eu sempre parava.
Eu o observei por trás. Sem perceber, parei bem ali. Eu poderia dar pelo menos mais cinco
passos, mas eu apenas fiquei parado lá.
Hoseok lentamente estendeu a mão e gentilmente abriu a porta. A luz do sol
ofuscante entrava pela porta aberta junto com o ar externo. Cheirava um pouco forte, mas
era refrescante ao mesmo tempo. A paisagem do outro lado da porta tomou conta de mim.
Quando Hoseok saiu, a porta começou a fechar. Eu ainda poderia passar por ela se eu
corresse agora. Eu olhei para o chão. A linha limite, que só eu conseguia ver, ainda estava
lá.
Eu me virei, ou eu estava prestes a me virar, quando alguém passou, empurrando
meu ombro com força. Eu caí para frente, no chão. Levantei minha cabeça, ainda deitado
no chão. Eu tinha cruzado a linha. O idiota passou correndo por mim e se dirigiu para a
porta. Foi ele quem me empurrou, e ele continuou a empurrar os outros em seu caminho,
sem prestar atenção neles. Quando ele empurrou a porta o mais forte que pôde, a luz do
sol entrou novamente. Ele correu para fora. Uma enfermeira o perseguiu, mas ele foi mais
rápido. A porta começou a fechar novamente. Eu dei um pulo e fiquei em pé. Um passo
acima da minha linha. Eu dei mais um passo à frente. Eram apenas mais três passos para
chegar à porta. Mas virei novamente, bem ciente do meu limite.
Um estranho já ocupava a cama de Hoseok. Fechei os olhos, mas não consegui
dormir. Não pude deixar de pensar no que ele disse antes de receber alta. "Jimin, vamos
sair daqui." Ele estava com uma expressão séria que eu nunca tinha visto anteriormente.
Ele nunca olhou ou pareceu assim antes. Eu fiquei parado lá, sem saber como responder.
Havia mais uma razão pela qual eu não conseguia parar de pensar em suas palavras. Um
acidente ocorreu antes disso.
Eu estava esperando o elevador no segundo andar, onde eu tinha fisioterapia. Eu
tropecei, enquanto brigava com o idiota, e meu pulso que estava machucado não

72
cicatrizou bem. Eu estava ficando impaciente, já que a alta de Hoseok se aproximava,
mas o elevador estava preso no nono andar. Eu pensei ter ouvido alguém chamar meu
nome assim que eu estava pensando em subir as escadas. Aquele alguém estava parado
em frente à saída de emergência, no final do corredor. Eu não conseguia distinguir quem
era por causa da luz do sol entrando pela janela. Quando dei um passo à frente, a pessoa
subitamente correu pela saída de emergência. O perfil da pessoa apareceu por alguns
segundos, mas ainda não consegui reconhecer quem era. Quem poderia ser? Eu andei em
direção à escada de emergência, sentindo-me estranho.
Quando abri a porta da saída de emergência e olhei para dentro, alguém passou
rapidamente. Eu instintivamente dei um passo para trás. Nós quase colidimos. "Mãe!"
Ouvindo o grito desesperado, enfiei a cabeça para dentro de novo. Era Hoseok, saltando
freneticamente pelas escadas. Havia uma mulher parada ao pé da escada. O que era isso?
Eu pisei na escada. Hoseok perdeu o equilíbrio exatamente naquele momento. Eu corri
para frente e estendi minhas mãos, sem pensar, e o peguei. Hoseok vacilou, quando
abruptamente o segurei, e eu mal consegui manter o equilíbrio.
Ele não disse nada até que subimos as escadas e entramos no corredor do quinto
andar. Ele permaneceu em silêncio enquanto caminhávamos para o quarto do hospital.
Então ele parou de repente e olhou para mim. "Jimin, vamos sair daqui." Eu não consegui
responder. Ele me disse com firmeza. "Vou voltar para buscar você." Respondi: "eu vou
voltar para a ala psiquiátrica daqui alguns dias".
Três dias se passaram. Eu deveria voltar para a ala psiquiátrica no dia seguinte.
Arrumei meus pertences e me deitei. Fiquei rolando na cama por um tempo, mas logo
cochilei.
Acordei com a sensação de algo caindo. O hospital era um lugar estranho e era
difícil dormir profundamente. Eu podia sentir tudo ao meu redor com os olhos fechados,
e até os menores sons me mantinham acordado. O quarto estava escuro como breu. Uma
brisa soprou pela janela aberta. As cortinas batiam em meio ao fluxo do ar já abafado. O
teto, o chão, a escuridão e o silêncio. Eles eram todos familiares.
Eu estava prestes a ligar a luz da cabeceira quando a mão de alguém me segurou.
Era Hoseok. Sentei-me surpreso e ele colocou o dedo indicador nos lábios para que eu
fizesse silêncio. "Todos nós viemos juntos." Ele disse que estavam esperando por mim lá
fora e estendeu a mão.

73
Eu ainda estava enterrado sob tantos medos. Eu era invisível para meus pais. Eu
seria nada mais que um fugitivo de uma ala psiquiátrica no mundo exterior. Era mais
seguro apenas ficar no hospital como um paciente obediente. Eu não tinha certeza se me
ajustaria bem lá fora. Eu poderia pensar em um milhão de razões para não sair.
Hoseok não hesitou. Ele pegou minha mão, me pôs de pé e me entregou uma
camiseta. Eu estava fora da cama antes de perceber. O corredor estava parado e quieto.
Algumas enfermeiras estavam nas mesas, todas ocupadas com o próprio trabalho, e nem
olhavam para o nosso lado, mas Hoseok e eu andamos o mais silenciosamente possível,
tensos. O elevador estava esperando no quinto andar. Quando a porta se abriu, Namjoon
e Seokjin estavam do lado de dentro.
Saímos do elevador no primeiro andar e entramos no corredor, quando Hoseok
me empurrou para uma porta à esquerda de repente. Era um lounge. Geralmente, ficava
lotado de pacientes e cuidadores durante o dia, mas à noite ficava tudo quieto e escuro,
com apenas as luzes dos postes entrando. Uma vela foi acesa e Jungkook e Taehyung
saíram da escuridão. O rosto de Yoongi também era visível atrás deles. Na mesa, havia
lanches e latas de refrigerante.
Uma enfermeira entrou pela porta dos fundos no momento em que tomei um gole
de refrigerante. Antes de terminar de cumprimentá-los, a enfermeira perguntou o que
estávamos fazendo aqui e Yoongi disse que era uma festa de aniversário. Ela entrou no
salão. "Vocês são todos nossos pacientes internados? Eu acho que não." Eu era o único
vestindo roupas do hospital. Sem perceber, apertei a lata de refrigerante que estava na
minha mão. O alumínio amassado fez um som estranho. Hoseok agarrou meu ombro.
"Está tudo bem", Namjoon falou. "Quando eu der o sinal, apenas comece a correr."
Jungkook deve ter dito isso.
Seokjin, que já estava na porta da frente, lançou-nos um olhar e foi para fora.
Hoseok olhou em volta e sussurrou: "Corra, Jimin." Nós todos começamos a correr. Eu
fui pego de surpresa e corri com eles. Taehyung perdeu o equilíbrio e quase caiu, os
lanches e garrafas de refrigerante voaram no ar. Passamos correndo pelas mesas e
entramos no corredor do primeiro andar. Os gritos e passos das enfermeiras continuaram
a nos perseguir. O corredor se estendia diante de nós, assim como aconteceu ontem.
Meu coração disparou quando passei pela cozinha e cheguei às escadas de
emergência. Sem perceber, meu ritmo diminuiu. Minha cabeça foi bombardeada com
perguntas. Isso é certo mesmo? Tenho certeza? Pode ser ainda mais difícil lá fora. Eu
74
posso não ter ninguém do meu lado. Seria mais seguro e mais confortável aqui. Não é tão
tarde. É melhor eu parar por aqui. É melhor eu admitir meus limites. É melhor eu ser um
bom garoto.
Minha linha estava a poucos passos de distância. Eu olhei para trás. Agora os
zeladores haviam se juntado e estavam nos perseguindo também. Minha mão, que
segurava a camiseta, tremia violentamente. Eles pareciam estar bem atrás de mim. Talvez
eu não tivesse chance. "Tudo bem, Park Jimin, corra!" Essa voz me incentivou a
continuar. Eu dei mais um passo.
Eu cruzei a linha. Eu havia apenas dado um passo mais perto da porta, mas uma
mudança dramática ocorreu. Uma sensação dentro de mim veio, como se eu tivesse
acabado de pular de um penhasco para outro. Quando tirei minha roupa de paciente e
coloquei a camiseta, dei mais um passo em direção à porta. O próximo passo foi mais
rápido e o próximo ainda mais. As paredes de ambos os lados passaram rapidamente e a
porta se aproximou cada vez mais. Apenas cinco passos foram dados da linha até a porta.
Para qualquer outra pessoa, era apenas uma curta distância de cinco passos. Mas eu nunca
me atrevi a chegar tão longe. Esta foi a primeira vez que eu consegui passar da linha
sozinho. A porta estava ao meu alcance.
Depois de passar por esta porta, o ambiente será completamente diferente daquele
que me rodeou. Eu me recuso a pensar sobre o que vai acontecer a seguir. Vou me
concentrar em dar um passo de cada vez. Eu empurrei a porta com toda minha força. Cada
célula do meu corpo colidiu com o ar exterior. Não havia luz solar opressiva, nem vento
forte, como eu sempre imaginei. Eu senti vontade de chorar. O som do meu batimento
cardíaco reverberou em todas as direções.

75
JiMin
16 de maio do ano 22

A casa de Hoseok ficava na encosta da montanha. Era um quarto no telhado de um prédio


de um condomínio em ruínas, no final de um beco sem saída. O beco sem saída passava
por um outro, estreito e sinuoso, longe da rua principal, e seguia uma longa e íngreme
subida. Era ali que ele morava. Quando entramos no quarto, Hoseok se gabou de que
estava no último andar da cidade, com o resto do mundo aos seus pés. Ele estava certo. O
quarto na cobertura tinha uma visão de tudo. Quando olhei diretamente para baixo, pude
ver a estação de trem e os contêineres ao longo da ferrovia. Namjoon estava morando em
um desses contêineres. Não muito longe, estava a escola que frequentamos juntos.
Enquanto olhava para a nossa escola, minha linha de visão chegou a um ponto do
outro lado do rio. Um grande complexo de apartamentos ficava no sopé da montanha. Era
onde minha casa estava. Não, era onde ficava a casa dos meus pais. Eu havia escapado
do hospital sem nenhum plano. O hospital deve ter entrado em contato com meus pais e
eles devem estar procurando por mim agora. Eu não tinha coragem de encontrá-los cara
a cara ainda. Eu não podia ir para casa. Eu não tinha para aonde ir e não tinha dinheiro.
Hoseok me disse para segui-lo e me trouxe até aqui. Foi assim que acabei na casa dele.
Eu olhei para os condomínios novamente. Eu tenho que voltar lá algum dia. Eu
tenho que encontrar meus pais e dizer a eles que não vou voltar para o hospital. Eu respirei
profundamente, Hoseok chegou perto e ficou ao meu lado.

76
HoSeok
16 de maio do ano 22

Eu podia ser meu “eu” mais honesto quando estava em casa. Às vezes, eu gritava a plenos
pulmões e cantava na janela. Às vezes, eu tocava música e dançava como um louco. E às
vezes eu acordava à noite, chorando. Quando isso aconteceu, fiquei ali parado, olhando
para o teto. Mas eu nunca desmaiei por causa da narcolepsia em casa.
Jimin não voltou para casa depois que deixou o hospital. Ele veio até minha casa
e agora olhava para a cidade, encostado na mureta de proteção do telhado. Ele deve estar
procurando a nossa escola, a hamburgueria Two Star Burguer e as luzes ao longo da
ferrovia, como eu. Ele também deve estar procurando por sua casa. Isso é algo dos nossos
instintos humanos. Todo mundo procura sua casa quando sobe em algum lugar alto ou vê
um grande mapa.
Pensei em perguntar por que ele não foi para casa, mas eu desisti. Sua cabeça deve
estar uma bagunça, e eu não queria deixar isso pior. Além disso, eu podia adivinhar o
porquê, com base na reação da mãe dele na sala de emergência naquele dia. Na verdade,
eu raramente fazia perguntas aos meus amigos. Eu sentia que já sabia as respostas para a
maioria delas, e eu não queria que eles se sentissem estranhos, ou eles poderiam achar
minhas perguntas curiosas e irritantes demais.
Para ser sincero, eu sempre ficava curioso para aonde os outros estavam indo
quando passavam pela minha loja, mas eu nunca corri para perguntar a eles. Para aonde
Jungkook foi com suas feridas? O estúdio do Yoongi era nessa direção? Por que Namjoon
saiu da escola? Onde Taehyung aprendeu grafite? Parando para pensar sobre isso, eu não
sabia muito sobre os outros.
"Você achou?", eu me aproximei de Jimin e perguntei. "Achei o quê?", Jimin
parecia confuso. "Sua casa", respondi. Jimin assentiu. "Eu cresci no orfanato bem ali",
apontei para um lugar além da ferrovia. "Você vê o supermercado na direção do rio, onde
Namjoon trabalha no posto de gasolina? Você vê a placa de neon em forma de trevo atrás
dele? O orfanato fica à esquerda daquele letreiro de neon. Eu morei lá por mais de dez
anos." Os olhos de Jimin pareciam se perguntar porque eu estava contando tudo isso para
ele. Meus amigos já sabiam que eu cresci em um orfanato. Eu considerava minha casa.

77
Eu não me forcei a pensar isso para ter paz de espírito. Eu realmente acreditava que era
minha casa. Uma casa sem minha mãe.
"Eu preciso confessar uma coisa." Algo sobre o qual eu estava mentindo. "Minha
narcolepsia era falsa." Isso pode ter sido o motivo deu não poder perguntar nada sobre
ninguém. Não foi porque eu estava com medo de machucá-los. Foi porque eu mentia,
porque não tinha coragem de ser sincero. Porque, uma vez que eu admitisse, eu também
teria que admitir que não tenho ninguém para chamar de "mãe", não apenas no orfanato,
mas no mundo inteiro. Deve ter sido por isso que não perguntei a nenhum deles sobre
seus problemas.
Jimin não era bom em esconder seus sentimentos. Seu olhar assustado era
autoexplicativo. Eu não sabia como me desculpar com ele. Jimin se preocupou comigo
inúmeras vezes. Ele deve ter chorado muito quando testemunhou isso pela primeira vez.
"Eu não fiz isso de propósito. Eu só devo ter ignorado o fato de que havia um jeito de
ficar bem. Eu sei que isso não faz sentido. Eu não consigo descrever isso direito."
"Então você está bem agora?", Jimin, que estava ouvindo em silêncio há algum
tempo, virou a cabeça para mim e fez a pergunta. Estou bem agora? Eu me perguntei.
Jimin ainda estava olhando para mim. Ele não estava me criticando, muito menos
simpatizando comigo. Eu olhei para a cidade iluminada abaixo. "Bem, eu não sei. Nós
vamos descobrir isso com o passar do tempo. Estou ansioso por isso. Você não está?"
Jimin riu. Eu ri junto.

78
JiMin
19 de maio do ano 22

Eu tinha que voltar para o Jardim Botânico. Eu tinha que parar de mentir sobre não
lembrar o que eu vi lá. Era hora de parar de me esconder no hospital e acabar com as
minhas crises. Para fazer isso, eu tinha que voltar lá. Durante dias, eu fui para o ponto de
ônibus, mas nunca conseguia pegar o ônibus realmente.
Depois que vi o terceiro ônibus do dia ir embora, Yoongi apareceu de repente e
sentou ao meu lado. Ele disse que veio porque não tinha nada para fazer e estava
entediado. Então ele me perguntou o que eu estava fazendo aqui. Eu mantive minha
cabeça baixa e chutei o chão com a ponta do meu tênis. Eu estava sentado lá porque não
tinha coragem. Eu queria fingir que estava bem agora, que sabia o suficiente e que poderia
facilmente superar isso. Mas eu estava com medo. Eu estava com medo de não saber o
que eu estava prestes a enfrentar, se eu seria capaz de suportar isso e se eu teria uma crise
novamente.
Yoongi parecia relaxado. Descontraído, ele murmurou algo que soou como "o
tempo está tão bom", de uma maneira despreocupada. O tempo realmente estava bom,
mas eu estava tão tenso que não podia me dar ao luxo de olhar em volta, quanto mais
aproveitar o tempo. O céu estava azul. Uma brisa suave soprava de vez em quando. Ao
longe, o ônibus estava se aproximando. O ônibus parou e a porta se abriu. O motorista
olhou para mim. Eu perguntei para Yoongi: "Você quer ir comigo?"

79
HoSeok
20 de maio do ano 22

Saí da delegacia com Taehyung. "Obrigado”, eu me curvei e falei com ainda mais
vontade, mas eu realmente não estava de bom humor. A delegacia não ficava longe da
casa de Taehyung. Se ele vivesse em uma distância maior da delegacia, ainda iria para lá
tantas vezes assim? Por que seus pais escolheram ficar tão perto deste lugar? O mundo
era tão injusto e desleal para um garoto tolamente bondoso e sensível. Coloquei meu braço
em volta dos ombros de Taehyung e perguntei se ele estava com fome. Taehyung sacudiu
a cabeça. "Os policiais receberam você de volta e te compraram comida?”, eu perguntei
de novo, mas ele não respondeu.
Nós dois caminhamos sob a luz do sol, mas um vento gelado pareceu atravessar
meu coração. Eu não podia imaginar como ele deveria estar se sentindo, quando até eu
estava sentindo este frio por dentro. Seu coração deve ter sido rasgado e dilacerado. Ou,
ele ainda tem um coração depois de tudo? Quanta angústia ele suportou? Eu não podia
olhá-lo nos olhos, então virei meu olhar para cima. Um avião voava contra o céu um
pouco escuro. Vi a cicatriz nas costas de Taehyung pela primeira vez no contêiner do
Namjoon. Eu não conseguia perguntar sobre isso quando ele estava sorrindo tão
amplamente com seu presente, uma camiseta nova.
Eu não tive pais. Eu não tenho lembranças do meu pai e as da minha mãe foram
embora aos meus sete anos de idade. Eu provavelmente tinha mais feridas abertas e
cicatrizes em relação à família e à infância do que qualquer outra pessoa. As pessoas
sempre diziam com tanta facilidade que precisamos superar nossas feridas, abraçá-las e
aceitá-las como parte de nossas vidas, que precisamos nos reconciliar e perdoar os outros
para continuar vivendo. Não era como se eu não estivesse ciente disso. Não era que eu
não quisesse tentar. Mas tentar não garantia sucesso. Ninguém me ensinou como. O
mundo nos deu novas feridas antes mesmo das antigas sararem. Certamente, ninguém no
mundo pode evitar se machucar. Eu estava ciente disso. Mas nós realmente precisamos
nos machucar tão profundamente assim? Para quê? Por que essas coisas acontecem
conosco?
"Eu estou bem. Eu posso ir sozinho", Taehyung disse, no cruzamento. "Eu sei."
Eu guiei o caminho. "Eu estou bem, de verdade. Veja. Estou bem." Taehyung sorriu. Não

80
respondi. Ele não podia estar bem. Por mais que ele admitisse, ele não seria capaz de
suportar. Então ele estava apenas ignorando a verdade. Isso se tornou seu hábito.
Taehyung me seguiu, colocando o capuz. "Você não está mesmo com fome?", perguntei
a ele quando chegamos ao corredor que levava à sua casa. Ele me deu aquele sorriso tolo
e assentiu. Esperei um pouco e o observei caminhar até a porta, então finalmente me virei.
O caminho pelo qual ele estava indo e o caminho por onde eu passava eram estreitos e
sombrios. Ele e eu estávamos sozinhos.

81
SeokJin
20 de maio do ano 22

A casa de Taehyung ficava em um dos edifícios mais antigos do bairro. A tinta estava
descascando em vários lugares e as ervas daninhas cresciam nas rachaduras das paredes
de cimento. Parecia desgastado. Eu estava esperando por Taehyung e Hoseok, no pequeno
parque na colina, atrás do prédio. Como estava na encosta, ele dava para o corredor
descoberto do prédio de Taehyung.
Hoseok apareceu em uma esquina que levava a um beco ao longe. Taehyung
estava o seguindo. Seu rosto não era bem visível porque ele tinha o capuz sobre a cabeça.
Taehyung e Hoseok trocaram algumas palavras no beco. Taehyung parecia estar tentando
mandar Hoseok para casa e Hoseok estava dizendo que estava bem. Hoseok começou a
andar de novo primeiro. Os dois chegaram à frente do prédio sem uma palavra. Hoseok
subiu as escadas e parou em frente à porta de Taehyung. Ele bateu no ombro de Taehyung
e fez um gesto para ele entrar na casa. Então ele se virou e começou a andar em direção
à saída. Taehyung o olhou por um momento, enquanto estava indo embora, e estendeu a
mão para a maçaneta.
Liguei para Hoseok no momento em que Taehyung começou a abrir a porta. Após
chamar três vezes, Hoseok pegou seu telefone no meio do corredor. Taehyung estava
entrando em casa. "Hoseok, você pode ligar para o Taehyung?" Hoseok parou de andar.
"Eu acabei de vê-lo." Eu disse que estava planejando uma viagem para a praia para todos
nós e ele deveria pedir a Taehyung para vir junto. Hoseok riu, dizendo que Taehyung iria
junto. "Mas só para ter certeza, você poderia perguntar a ele e me avisar?" Eu desliguei
apressadamente. Esta foi a hora. Hoseok deveria entrar na casa de Taehyung agora.
Hoseok inclinou a cabeça para o lado, olhando para a tela do celular e se virou. Então ele
entrou na casa de Taehyung pela porta ainda aberta.

82
TaeHyung
20 de maio do ano 22

Eu olhei para a palma da minha mão. Sangue estava escorrendo. Apenas quando minhas
pernas começaram a ceder e eu estava prestes a desmoronar, alguém me agarrou por trás.
A luz do sol veio através da janela escura. Minha irmã estava chorando e Hoseok estava
lá parado, em silêncio. Como de costume, o chão estava entulhado de pratos sujos,
possibilidades, fins e cobertores. Meu pai já havia escapado do quarto antes que eu
percebesse.
A raiva incontrolável e a tristeza que surgiram quando me joguei no meu pai ainda
estavam frescas em minha mente. Eu não sabia o que tinha me impedido quando eu estava
prestes a esfaqueá-lo. Eu não sabia como apagar essas chamas furiosas dentro de mim.
Eu queria me matar ao invés do meu pai. Se eu pudesse, eu queria cair morto ali mesmo.
Eu não consegui derramar lágrimas. Eu queria chorar, chorar bem alto, chutar e
destruir tudo, e desmoronar. Mas tudo parecia estar fora do meu controle. “Desculpe,
Hoseok, estou bem. Você pode ir.” Minha voz soou seca e calma, ao contrário da minha
mente frenética. Eu mandei Hoseok para casa contra sua vontade e olhei para a palma da
minha mão. O sangue ainda estava saindo em gotas. Ao invés de esfaquear meu pai, eu
esmaguei uma garrafa no chão. A garrafa quebrou em pedaços e cortou a palma da minha
mão. O mundo girou e girou, quando fechei meus olhos. Meu cérebro congelou. O que
eu devo fazer agora? Como devo viver?
Depois que recuperei a consciência, eu me vi olhando para o número do Namjoon.
Mesmo nesta situação, ou por causa desta situação, eu estava procurando Namjoon ainda
mais desesperadamente. Eu queria confessar tudo para ele. Queria dizer que quase matei
meu pai, que me trouxe para este mundo e que me batia todos os dias. Eu quase matei ele.
Não, eu realmente o matei. Incontáveis vezes. Eu o matei incontáveis vezes na minha
cabeça. Eu quero matar ele. Eu quero morrer. Eu não sei o que fazer. Estou perdido. Eu
só quero te ver agora.

83
O dia mais lindo de
nossas vidas

84
JungKook
22 de maio do ano 22

Alguém sacudiu meu ombro para me acordar. Quando abri os olhos, a janela do carro
estava totalmente preenchida com a vista do mar. A brisa do mar estava fria,
provavelmente porque eu estava meio acordado. Eu me envolvi com os dois braços e saí
do carro. Os outros, já distantes na praia, onde as ondas quebram contra a costa, acenaram
para mim. Além deles, estava o mar, e acima do mar, estava o sol. A cena inteira parecia
uma moldura.
O vento ficou mais forte e encheu a moldura com areia enfurecida, assim que eu
levantei a mão para acenar de volta. A poeira arenosa subiu do chão e girou ao redor. Os
outros se viraram de uma vez, cobrindo os rostos para afastar o vento granuloso. Eu fiz o
mesmo, fechando os olhos com força, inclinando a cabeça e cobrindo o rosto com o braço.
Nós ficamos nessa posição, em meio aos sons das ondas batendo e o vento assobiando,
por um longo tempo.
Eu tentei abrir meus olhos, mas eles ardiam por causa da areia. "Não os esfregue.
Isso só vai fazer piorar." Ao ouvir Hoseok, eu pisquei lentamente. O mar, o céu, os outros,
continuaram aparecendo e desaparecendo através das lágrimas que apareciam em meus
olhos. Depois que pisquei várias vezes, as lágrimas escorreram e o ardor diminuiu. As
lágrimas devem ter lavado os grãos de areia. Eu ouvi os outros rindo. Eles estavam rindo
de mim, em pé no meio da praia vazia, derramando lágrimas.
Não ficou claro quem começou a correr primeiro. Começou como um jogo bobo.
Fingi perseguir os outros que ficavam tirando sarro de mim. Hoseok disparou, como se
estivesse fugindo de mim. Então os outros se juntaram, correndo na direção, longe um do
outro, e rindo alegremente. Em algum momento, estávamos correndo pela estrada
costeira. Corri atrás dos outros. Eu estava sem fôlego, suado e com uma forte dor de
cabeça. Mas eu não parei, porque eles continuaram.
Todos nos encontramos de novo, tiramos Jimin do hospital e voltamos para a
mesma praia. Foi tudo não planejado. Tudo o que eu fiz foi ir junto deles, mas foi
emocionante. Talvez correr de um jeito inexpressivo fosse o único jeito de eu lidar com
aquela sensação de medo e adrenalina. Fiz o mesmo quando todos nós abandonamos a
escola e viemos a esta praia pela primeira vez.

85
"Isso mesmo. Nós éramos assim naquela época também." Namjoon disse, quando
nos sentamos na praia para recuperar o fôlego. "Eu acho que estava tão quente quanto
antes. Quando foi?", Jimin disse. "Era 12 de junho", minha boa memória deixou todos
surpresos. Lembrei exatamente porque a foto que tínhamos tirado na praia estava marcada
com a data. Eu a peguei por vezes e fiquei olhando. Não contei a ninguém, mas senti
naquele dia que, finalmente, encontrei uma família de verdade. Verdadeiros irmãos.
"Gente", comecei a expressar minha gratidão, mas me vi sem palavras. "O quê?"
Os outros me apressaram, um por um, e depois se viraram para mim. Ficamos um tempo
juntos na praia, abraçados, brincando como se fôssemos crianças.
"Por que você está aqui sozinho?" Me sentei ao lado de Taehyung, que estava
sentado em um canto da praia, longe dos outros. Ele me olhou brevemente e fez uma
pergunta, em vez de responder a minha: "aquilo estava lá na última vez que viemos
aqui?", ele estava falando sobre o observatório. "Se estivesse, nós teríamos escalado, mas
eu não me lembro disso." Ele balançou a cabeça concordando. Ele continuou olhando
para o observatório.
"Vamos." Alguém bateu no meu ombro. Foi Seokjin. Seu rosto irreconhecível por
estar de pé contra a luz. Pode ter sido porque eu estava sentado, olhando-o, mas ele parecia
tão alto. Levantei-me, tirando a areia de mim. Meus pés afundaram profundamente na
areia quente. Eu fui discretamente pela sombra de Seokjin e caminhei, chutando a areia
com as pontas do meu tênis. A areia que eu chutei sujou as calças de Seokjin, mas ele não
olhou para trás.

86
TaeHyung
22 de maio do ano 22

Eu já vi isso antes. Em um sonho que pareceu muito vivo e real, eu vi o mar, os sete de
nós e o grandioso observatório. Eu estava no observatório no final do sonho. Todo mundo
olhou para mim. Eles estavam longe, então era difícil ver seus rostos. Ainda assim, sorri
para eles. Como se estivesse me despedindo. E então eu pulei.
"Seokjin?" Ouvindo Jungkook, virei a cabeça para ver Seokjin subindo no
observatório. No topo, ele virou o corpo para nós. Ele parecia estar tentando tirar uma
foto de nós. Os outros acenaram para ele, mas eu não. Foi como a última cena do meu
sonho. A única diferença era que Seokjin estava lá em cima, ao invés de mim.
No momento, senti como se o chão afundasse sob meus pés e meu corpo flutuasse
no ar. Fechei meus olhos com força, com medo de que meu corpo pudesse cair no chão.
Eu não apertei meu punho, mas a ferida na minha mão começou a doer. A ferida parecia
profunda, mas curou mais rápido do que eu esperava. Deixou uma cicatriz vermelha. Às
vezes, doía intensamente, como se eu estivesse sendo punido. Punido por todos os meus
erros. Doía agora.

87
NamJoon
22 de maio do ano 22

"Ele é apenas um ano mais novo do que eu. Não, eu não disse isso. Eu sou mais velho.
Eu sei. Mas ele não é mais uma criança. Já é hora dele começar a cuidar de si mesmo. Eu
entendi. Entendi. Não, eu não estou com raiva. Desculpe."
Eu olhei para o chão depois que desliguei o telefone. Nós estávamos a caminho
do nosso alojamento, depois de passar o dia na praia. Uma brisa morna soprava no nosso
caminho. Parecia que meu coração estava entupido e poderia explodir a qualquer
momento. As formigas marchavam, alinhadas lado a lado, no chão coberto de areia e
terra.
Não era que eu não amava meus pais. Não era que eu não me preocupava com o
meu irmão. Eu não daria ouvidos a eles se pudesse, mas sabia que nunca seria capaz. Eu
sabia disso muito bem. Então de que adiantava lutar, perder a paciência, me sentir
angustiado e tentar me libertar ficando naquele lugar?
Ao longe, alguém estava parado como eu, com as costas viradas. Era o Jungkook.
Jungkook uma vez me disse: "Eu quero ser como você quando crescer." Não consegui
dizer que eu estava longe de ser um adulto, quanto mais um adulto exemplar. Parecia
muito cruel acabar com suas esperanças ali. Eu não podia dizer a alguém tão jovem,
alguém a quem não tenha sido dado a confiança, o apoio e o carinho que merecia, que
você não se torna um adulto apenas ficando mais velho e mais alto. Eu gostaria que o
futuro de Jungkook fosse mais gentil para ele do que o meu era para mim, mas eu não
poderia prometer que lhe seria de alguma ajuda ao longo do caminho.

88
SeokJin
22 de maio do ano 22

Eu olhei para os outros novamente. Eles estavam fazendo piadas bobas e rindo,
conversando e rindo novamente, quando alguém se levantou e começou a dançar. Eu não
podia acreditar no que estava acontecendo diante dos meus olhos. Chegamos aqui juntos,
depois de tantas tentativas e erros. Eu sonhei com isso por tanto tempo, e tão
desesperadamente, que parecia impossível que estivesse realmente acontecendo.
Mas me senti desconfortável, porque ainda tinha algo para confessar. Eu continuei
hesitando e não consegui ter a coragem. Mas eu não podia mais fugir de tudo isso. A
menos que eu dissesse a eles, não seria capaz de olhar no rosto dos meus amigos.
Quando o jantar estava quase acabando, eu falei para eles que tinha algo a dizer,
mas não prestaram muita atenção. Apenas Taehyung estava olhando para mim. Alguns
dias atrás, ele veio até mim e me questionou sobre o sonho que ele estava tendo. "Você
sabe o que isso significa, não é?" Ele me pressionou para ter uma resposta, mas eu fiz
como se não soubesse. Eu disse: "Como eu poderia saber? Foi apenas um sonho".
Taehyung ficou chateado e se afastou.
Não foi completamente uma mentira. Eu não sabia o motivo pelo qual Taehyung
estava tendo um sonho assim. Mas eu sabia o quão terrível isso era. É por isso que não
posso contar a verdade a ele. Ainda mais porque eu sabia o que ele estava pensando. Ele
não precisava saber que não era um sonho; ele matando seu pai – mas isso aconteceu na
vida real, inúmeras vezes. Ninguém deve viver a vida com toda essa agonia. Eu não
voltaria atrás com a minha decisão, mesmo que isso prejudicasse nossa amizade.
Eu virei a cabeça para evitar os olhos do Taehyung. Fechei a boca, prendi a
respiração e falei com mais clareza desta vez. "Eu tenho algo a dizer para vocês."
Namjoon e Hoseok me encararam e os outros também se acalmaram. "Eu deveria ter dito
isso há muito tempo. Quando estávamos no ensino médio..."
Taehyung interrompeu. "Quando estávamos no ensino médio? Quando você nos
dedurou ao diretor? Ou quando Yoongi foi expulso da escola por causa disso? De qual
deles você está falando?" A desaprovação estava claramente escrita no rosto de
Taehyung.

89
"Taehyung!" Namjoon o chamou em uma tentativa óbvia de controlá-lo.
Taehyung afastou a mão de Namjoon, com os olhos fixos em mim. "Tudo isso foi você
que fez." Ninguém disse nada. Todo mundo foi pego de surpresa e não conseguiam pensar
em nada para dizer. Eu olhei para Yoongi. Taehyung estava certo. Yoongi foi expulso da
escola por minha causa. Eu murmurei com a cabeça baixa: "eu sinto muito". Taehyung
começou a falar novamente.

90
TaeHyung
22 de maio do ano 22

"Seokjin, isso é tudo? Você não está escondendo algo de nós?" Eu olhei para Seokjin, ele
olhou de volta para mim. Eu estava prestes a pressioná-lo ainda mais quando alguém
segurou meu ombro para me impedir. Eu sabia quem era sem precisar olhar para trás. Era
Namjoon. "Não interrompa. Por que você se importa? Você nem é meu irmão de
verdade." Eu podia sentir os olhos de Namjoon na parte de trás da minha cabeça. Eu
afastei suas mãos sem sequer olhar para ele. Eu também sabia disso. Eu estava
descontando minha raiva em Namjoon.
Quando eu estava indo para o nosso alojamento na praia, passando pela floresta
de pinheiros, eu ouvi Namjoon falando ao telefone. Cada palavra que ele disse era
verdade. Eu era apenas um ano mais novo e eu não era seu irmão de verdade. Eu tinha
que cuidar de mim mesmo. Mas ainda doía.
"Taehyung, me desculpe. Vamos parar por aqui." Foi Seokjin que abriu a boca
primeiro. Seokjin foi o único que me disse que estava arrependido. Namjoon não disse
nada. Ele só ficava me encarando com os olhos irritados. "Parar o quê? Basta colocar tudo
para fora. Você está escondendo algo de nós.” O olhar de todo mundo estava agora fixado
em Seokjin. Ele lançou um olhar que parecia nos dizer para parar.
"Vamos lá fora e conversar", Namjoon agarrou meu braço novamente. Eu tentei
afastar sua mão, mas ele apertou mais forte para me levar para fora. Eu me preparei contra
ele. "Me deixe ir. Que direito você acha que tem? O que você sabe? Você não sabe de
nada. Você acha que é algo especial, huh?"
E foi quando Namjoon soltou meu braço, de repente, e eu tropecei em reação. Ou
não foi uma reação que me fez tropeçar. No momento em que ele soltou meu braço, senti
como se a corrente que nos ligava se partisse ao meio. Tudo o que me sustentava e servia
como meus pés parecia rachar e se partir.
Talvez eu estivesse esperando que ele não soltasse meu braço até o fim. Talvez eu
estivesse esperando que ele gritasse comigo, dizendo-me para calar a boca, e que me
arrastasse para fora, irritado. Talvez eu estivesse esperando que ele me desse uma boa
bronca, como ele faria com seu irmão de verdade ou alguém precioso demais para desistir.

91
Mas ele soltou meu braço. Eu não pude deixar de sorrir de forma pretensiosa.
Estava sorrindo antes de perceber. Eu coloquei para fora: "O que tem de especial em
estarmos juntos? O que somos um para o outro? Estamos todos sozinhos no final".
Naquele momento, Seokjin me bateu.

92
JiMin
22 de maio do ano 22

"É melhor irmos embora também", foi o que Hoseok disse. Eu virei minha cabeça,
olhando para além da porta do nosso alojamento. A mesa, cadeiras, panelas e pratos
estavam espalhados por todo o lugar. "Jimin, vamos." Eu fechei a porta com pressa. Eles
já estavam na minha frente. Yoongi e Hoseok assumiram a liderança, com Jungkook os
seguindo atentamente. Havia sete de nós quando chegamos, e agora apenas quatro
restaram.
Eu olhei para cima quando passamos pelo observatório. Não havia luz na praia
depois do pôr do sol. O observatório e o mar desapareciam na escuridão e nada era visível.
Havia apenas o rugido das ondas batendo. Eu percebi que este era o lugar. O lugar que
visitamos quando viemos à praia pela primeira vez. A rocha, que era conhecida por
supostamente realizar sonhos. Nós choramos muito neste mesmo lugar, onde a rocha tinha
sido explodida em pedaços para abrir caminho para um novo resort. "Jungkook, não foi
em algum lugar por aqui?", eu olhei para trás, mas Jungkook já estava à frente dos outros.
Hoseok o chamou, mas ele não pareceu ouvir. Então me lembrei. Jungkook também
estava seguindo seu próprio caminho. Jungkook sempre esteve atrás dos outros. Ele havia
seguido e parado quando os outros pararam. Eu era igual. Eu olhei em todas as direções
em um cruzamento. Eu tinha que virar para a esquerda para chegar à estação de trem ou
à direita para pegar o ônibus para casa.
Eu tinha que voltar para casa algum dia. Eu não poderia evitar isso para sempre.
Eu tinha que confessar minhas mentiras e dizer a verdade para os meus pais. Mesmo que
eles não estivessem dispostos a ouvir. Eu tinha que começar a dar o primeiro passo em
algum momento. Eu vi Yoongi entrar na rua à esquerda. "Jimin, rápido." Hoseok se virou
para mim. "Hoseok, eu vou para casa agora." Com um olhar confuso, ele perguntou:
"casa?", eu assenti. Então, fui para a direita.

93
JungKook
22 de maio do ano 22

Eu senti como se o meu corpo estivesse flutuando pelo ar, mas no próximo minuto, eu
estava deitado no chão duro. Não consegui sentir nada por um tempo. Meu corpo inteiro
parecia tão pesado que eu não pude nem abrir minhas pálpebras. Eu não conseguia engolir
ou respirar. Caindo em um estado semiconsciente, fui ficando cada vez mais quente,
quando de repente meu corpo tremeu por inteiro. Uma indefinível dor e sede
instintivamente forçaram meus olhos a se abrirem. Algo brilhante capturou meus olhos,
que estavam secos como se estivessem cheios de areia. A princípio, eu pensei que fosse
uma luz, mas não, era brilhante, grande e embaçado. E se pendurou no ar, imóvel. Eu
continuei a olhar por um tempo, e então começou a tomar forma. Era a lua. O mundo
apareceu de cabeça para baixo. Minha cabeça deve ter inclinado para trás. Naquele
mundo, a lua também estava de cabeça para baixo. Eu tentei respirar tossindo, mas não
conseguia me mexer. Um ar frio caiu sobre meu corpo. Foi apavorante. Eu tentei abrir
meus lábios, mas não conseguia dizer uma palavra. Minha visão continuou a desaparecer,
mesmo com os meus olhos abertos. Alguém me fez uma pergunta assim que a minha
consciência ficava cada vez mais fraca.
“Será mais doloroso viver do que morrer. Você ainda quer viver?”

94
Depois de voltar da
praia

95
SeokJin
13 de junho do ano 22

Depois de retornar da praia, nós voltamos para as nossas vidas solitárias. Como se
tivéssemos imposto uma regra, nenhum de nós ligou um para o outro. Nós apenas
presumimos vagamente o que cada um estava fazendo, baseado no grafite que víamos nas
ruas, na luz brilhante do posto de gasolina e nos sons de piano vindos do edifício em
ruínas. O alojamento na praia estava vazio quando eu voltei, após falhar em achar
Taehyung, quando ele correu para longe, naquela noite. Não tinha nada a não ser uma
foto no chão. Na foto, nós estávamos sorrindo com o mar atrás de nós. Isso foi há apenas
algumas horas atrás, mas parecia ter sido há muito tempo. Será que trabalhamos tão duro
por tanto tempo sem razão nenhuma? Estávamos destinados a desmoronar assim?
Eu passei pelo posto de gasolina sem nem parar. Nós vamos nos encontrar de novo
algum dia, vamos rir juntos algum dia, assim como nós rimos na foto. Eu vou reunir
coragem o suficiente para me enfrentar algum dia. Mas hoje não era o dia. O vento úmido
soprou como naquele dia. Neste momento, meu celular tocou, como se estivesse me
mandando um aviso. As vibrações do celular chegaram à foto pendurada no retrovisor. O
nome de Hoseok apareceu na tela: “Seokjin, Jungkook sofreu um acidente naquela noite.”

96
JungKook
13 de junho do ano 22

Eu ouvi vozes fracas e abri meus olhos, quando vi Hoseok e Jimin me observando. Toda
vez que eu piscava, os rostos deles continuavam desaparecendo e aparecendo, de novo e
de novo. “Você está machucado? Está com dor?”, Jimin perguntou. “Eu estou bem. Não
estou machucado”, era uma mentira. Foi um acidente sério e eu quase morri. Os médicos
continuaram avisando aos outros por dias, que eles teriam de estar preparados para o pior.
Eu retomei a consciência novamente após dez dias e comecei a me recuperar de modo
surpreendente.
“Você devia ter nos ligado. O que nós somos para você?”, Hoseok parecia bravo.
“Hoseok, não é isso, eu...” comecei a falar, mas não consegui terminar a frase. Assim que
voltei a consciência no hospital, eu pensei neles. Se eu fosse capaz de pensar direito, eu
teria ligado para eles primeiro, mas a minha mente estava vazia e eu estava com dor. O
sedativo que eles me deram era tão forte que realidade, sonhos, memórias e ilusões, todas
pareciam estar atadas em minha cabeça e impossíveis de desembaraçar.
A dor insuportável finalmente diminuiu. Mas as imagens estranhas que passaram
por meus olhos, enquanto eu sofria de febre e insônia, continuaram a surgir. Não tinha
certeza se aquelas cenas realmente tinham acontecido ou eram apenas pesadelos torcidos,
provocados por uma dor muito forte. Eu não podia confiar em minha memória, mas eu
ainda não conseguia entrar em contato com eles. Eu não sabia o que falar e nem como
começar a falar. Eu apenas sorri para eles. Ou tentei sorrir para eles. Meu rosto deve ter
parecido todo torcido, e eu estava prestes a chorar.

97
HoSeok
13 de junho do ano 22

Eu saí do quarto, pois senti meus olhos se encherem de lágrimas. Jungkook dizendo que
estava bem era de partir o coração. Eu fiquei sabendo do acidente dele naquela mesma
tarde. A hamburgueria estava cheia de pedestres se abrigando da chuva, alguns deles eram
colegas de classe do Jungkook. “Por que o Jungkook não aparece mais?”, eu não tinha
nenhuma razão em particular quando fiz essa pergunta. Eu perdi contato com todos os
outros depois de voltar da praia, incluindo Jungkook. Então, uma resposta inesperada veio
a mim. “Oh, ele teve um acidente, por isso esteve ausente.” “Um acidente? Ele está muito
machucado?” “Nós não sabemos. Ele não está frequentando a escola por, não sei... uns
vinte dias, talvez?”
Eu liguei para ele imediatamente, mas Jungkook não atendeu. Eu estava quase
ligando para ele de novo, mas acabei decidindo abrir nossa conversa em grupo ao invés
disso. Nenhuma mensagem nova pelos vinte dias que tinham se passado. A última
mensagem foi de quando estávamos na praia. Foi nesse dia? Aquela noite em que nós
festejamos e voltamos para casa. Foi nessa noite?
Eu mandei uma mensagem dizendo que Jungkook estava muito machucado. E
que, seja o que for que eles estivessem fazendo naquele momento, era ridículo não saber
o que tinha acontecido com ele por esses vinte dias que haviam passado. O número ao
lado da minha mensagem não mudou, significando que nenhum deles tinha aberto a
conversa para ler. Os nossos dias juntos não significavam nada? O “nós” era feito de
amigos de só algumas ocasiões? Eu fiquei bravo comigo mesmo. Bravo por não ter
entrado em contato com ele mais cedo, bravo por ter lhe deixado voltar para casa sozinho.
Jungkook não era uma criança, mas era o mais novo, ele ainda era apenas um estudante.
Eu andei de um lado para o outro do corredor algumas vezes e parei em frente de
seu quarto. Pela fresta da porta, eu reconheci o rosto de Jungkook. Ele claramente não
estava bem. Estava pálido como uma folha de papel. A imagem de Jungkook passando
pela porta de nosso esconderijo vazio veio a minha mente. Ele estava em seu oitavo ano
do ensino fundamental. Seu olhar ingênuo mostrava um sentimento de perda, como se ele
tivesse percebido que algo tinha chegado ao seu fim. Será que a nossa existência o

98
lembrou desse sentimento de perda? Quatro dos outros ainda não tinham visto minha
mensagem no grupo. Eu mandei outra mensagem. “Isso é decepcionante.”
“Você? Dançando?” Quando eu entrei no quarto, Jimin e Jungkook estavam
conversando sobre um grupo de dança. Jimin disse que tinha se juntado a um grupo há
apenas duas semanas e depois virou a cabeça timidamente. “Isso mesmo. Você era um
bom dançarino. Nós todos devíamos ir ver você dançar.”
Recebi uma ligação de Taehyung neste momento. “O que você andou fazendo?
Por que você não viu minha mensagem mais cedo?” Tentei soar mais bravo do que
realmente estava. Taehyung gaguejou com uma voz rouca, como se estivesse chorando.

99
TaeHyung
13 de junho do ano 22

“Como está o Jungkook?”


Isso foi tudo que consegui dizer. Eu terminei meu turno na loja de conveniência e
fui à rua, achando poças de água aqui e ali. Choveu algumas horas atrás. Eu notei a chuva,
quando olhei para fora da porta de vidro, assim que um dos clientes comprou um guarda-
chuva. Meu rosto se refletia na poça. Meus olhos estavam cheios de lágrimas e havia um
nó na minha garganta.
Hoseok disse que estava com Jungkook e que ele parecia melhor do que
imaginava. Eu desabei. “Eu estou bem”, neste instante, Hoseok deve ter passado seu
telefone para Jungkook. Ele parecia estar fingindo que estava bem. “E você?”, “Se
preocupe consigo mesmo.” Minha resposta foi rude sem intenção. Jungkook riu
timidamente. “Estou indo para aí agora.”
Eu não pude manter minha palavra. Eu cheguei ao hospital num instante, corri
pelas escadas, pois não pude esperar pelo elevador, então disparei pelo corredor. Eu
estava prestes a entrar no quarto de Jungkook, mas eu paralisei bem ali. Eu conseguia
escutar as vozes pela fresta da porta. Era o Namjoon. Seokjin estava lá também. Eu dei
um passo para trás sem perceber.
“Estou sempre no mesmo”, disse Namjoon. E realmente, ele estava. Ele estava
apenas seguindo em frente com sua vida. Eu desabei em um banco do corredor. Pessoas
em uniformes de pacientes passavam por ali e alguns estavam chorando. Se alguém
tivesse perguntado, eu teria respondido o mesmo. Que eu sempre era o mesmo. Essa era
a verdade. Eu apenas ia e voltava entre a minha casa e a loja de conveniência. Papai ainda
estava bebendo e causando problemas de tempos em tempos. A luz interna ainda estava
fraca e o ralo ficava entupido com frequência.
Apenas uma coisa mudou. O pesadelo havia parado de me atormentar. O pesadelo
do Yoongi morrendo, Jungkook caindo e Hoseok em um frenesi de desespero. Parando
para pensar, o pesadelo deve ter parado depois daquela noite em que nós brigamos na
praia. Foi substituído por outro sonho. Lágrimas escorreriam pelo rosto de Seokjin.
Pétalas de flores azuis rolavam pelo asfalto à noite, estavam pisoteadas e manchadas pelo
sangue de alguém.

100
Eu comecei a andar. O elevador estava chegando do segundo andar do subsolo.
Eu olhei novamente para o quarto. Eu ainda não estava pronto para me encontrar com
Seokjin e Namjoon.

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NamJoon
13 de junho do ano 22

Eu cheguei ao quarto de hospital onde Jungkook estava, no meio da noite. Jungkook


parecia estar bem, ele riu bastante e conversou bastante também. Nós conversamos sobre
o posto de gasolina, o clima e qualquer outra coisa, pois assim não precisaríamos
conversar sobre o que era realmente importante. Jungkook devia ter perguntado, mas ele
não o fez. Ele não perguntou o motivo dos outros terem brigado naquela noite, o motivo
de termos ido embora e o motivo de nós não termos voltado. Eu também não fiz diferente.
Eu não contei para ele o porquê de ter deixado o nosso alojamento sem dizer nada, e não
perguntei para Seokjin que problemas ele havia tido com Taehyung. Nós apenas
engolimos as perguntas que deveríamos ter deixado escapar. Em nosso caminho de volta,
Seokjin me perguntou se eu estava bem. “Você sabe que ainda não disse nenhuma
palavra?” Eu respondi que não sabia e pedi desculpas. Eu disse que estava bem. Nós nos
separamos perto do posto de gasolina.
Eu olhei em volta na rua, antes de entrar no posto. Eu estava desolado. O semáforo
com sinal vermelho de “não ande” se tornou verde, dizendo “ande”. Eu atravessei a rua e
caminhei ao longo da estrada de ferro. O quarto contêiner, a partir do final. Fizemos uma
fogueira aqui antes de irmos para a praia. Esta era a primeira vez que vinha aqui, desde
aquele dia.
Quando eu abri a porta do contêiner, a poeira saiu. Fiquei ali em pé por um tempo,
até meus olhos se acostumarem com a escuridão. Pelo o que ouvi de Jungkook, os outros
não mantiveram contato entre si. Ninguém me atualizou sobre Taehyung, mas nada
demais teria mudado. Este contêiner era o único lugar que Taehyung podia usar de abrigo
quando fugia de seu pai. Eu sabia disso, mas não aparecia aqui. Era cansativo o suficiente
ir e voltar entre a biblioteca e o posto de gasolina. Era uma verdade e uma desculpa ao
mesmo tempo. Bem lá no fundo, talvez eu estivesse evitando o Taehyung. Eu não poderia
suportar confrontar ele, era muito exaustivo emocionalmente.
Com os meus olhos acostumados com a escuridão, eu pude ver diferentes cantos
do contêiner. Eles estavam cheios de memórias de nós compartilhando nossas vidas
juntos. Eu disse a Seokjin que estava bem, mas eu realmente não estava. Jungkook, que
tinha tido um acidente, não poderia estar bem. Não poderia estar bem o fato de termos

102
afogado tudo o que havia acontecido naquela noite de uma vez só. Se Taehyung e Seokjin
não tivessem brigado naquela noite, se eu tivesse ficado com os outros, se alguém tivesse
ficado com o Jungkook, então um acidente não teria acontecido.
Mas eu disse que estava bem. Eu conversei com ele normalmente, como se nada
disso tivesse sido minha culpa, e dei tapinhas em seus ombros, dizendo-lhe para se
recuperar rápido. Eu disse isso como se fosse uma benção, um conselho ou consolo. Eu
não tinha mudado nem um pouco. Eu sempre hesitava antes de fazer perguntas e escolhas
quando as estradas de dividiam.

103
YoonGi
15 de junho do ano 22

Eu acordei de um sonho estranho. Eu pensei ter ouvido alguém bater na porta, mas não
consegui escutar mais nada depois de ter acordado. Devo ter ouvido em meu sonho. “Que
horas são?” Eu peguei meu celular, mas estava sem bateria. Eu o conectei no carregador
e saí da cama. Minha cabeça doía e meus ombros pareciam rígidos. A música em que eu
estava trabalhando até o amanhecer não parava de se repetir. Eu estava passando noites
em claro por vários dias, mas ainda não conseguia achar o tom certo para arrumar as notas
que estavam bagunçadas.
Talvez seja por causa daquela música se repetindo de novo e de novo, mas em
meu sonho, eu estava andando pela névoa e seguindo o som de um assobio fraco. Depois
de um bom tempo, eu cheguei a um jardim de um condomínio, e lá eu encontrei a tecla
de um piano sobre grandes arbustos. A tecla queimada pela metade estava coberta de terra
e folhas podres. Fui adentrando o jardim em direção a ela. Quando eu estava quase a
pegando, o condomínio, a névoa e o som fraco de um assobio, todos desapareceram de
uma só vez. No próximo minuto, eu estava de pé no meio deste estúdio. À distância, eu
estava sentado na frente do piano, com Jungkook. Ele disse algo e eu ri. Quando foi isso?
Eu não conseguia dizer a data exata, mas essa cena estava impressa em minha memória
de modo claro como o dia. Houve muitos dias em que eu pude ver essa cena. De repente,
ficou escuro lá fora, e eu estava vagando pela rua de noite. Eu estava voltando da praia.
Coloquei minhas mãos em meus bolsos enquanto conversava com Hoseok sobre o meu
trabalho, e eu senti a tecla do piano com as pontas dos meus dedos. O sonho continuou
dessa maneira desarticulada. Momentos começaram a se sobrepor e fragmentos da minha
memória começaram a se empilhar em uma bagunça.
Eu escutei um barulho de algo batendo na entrada e apenas desliguei a música.
Quem poderia ser? Eu abri a porta, mas não tinha ninguém lá. Eu bebi um copo d’água e
me deitei no sofá. As últimas semanas têm sido como um carrossel. As coisas não
conseguiam ser normais quando se tratava de compor música. A princípio, foi difícil me
concentrar, e eu também não estava acostumado em trabalhar com uma parceira.
A mulher era direta e dizia o que pensava. Ela entrava e saía do meu estúdio
quando achava que devia, e nunca hesitou em avaliar meu trabalho. Ela tirou o isqueiro

104
de mim quando tentei fumar e me deu um pirulito. Ela me incomodava para que eu fosse
dormir e comer. Eu não podia discutir com ela, porque seu desempenho e seus trabalhos
eram impressionantes. E porque a sua avaliação fazia sentido.
Isso me provocou. Eu comecei a passar mais e mais tempo no meu estúdio. Eu
perdi a noção de tempo e fiquei viciado em meu trabalho. Eu poderia ficar a noite inteira
acordado, desde que eu fosse trabalhar. Eu não respondi ligações ou chequei minhas
mensagens. Todos os meus nervos estavam a flor da pele e eu não queria conversar com
ninguém. Eu desliguei todas as notificações dos aplicativos de conversa. Eu teria me
tornado habilidoso e talentoso como ela, se eu não tivesse perdido meu tempo e tivesse
continuado a treinar música? Perguntei-me. Eu não queria acabar ficando para trás.
“Isso está realmente bom”, foi o que ela disse depois de ter escutado a música
incompleta na tarde de ontem. Era uma versão melhorada do que eu já havia escrito. “Isso
está muito bom”, parecia que eu já tinha escutado as mesmas palavras antes. Eu estava
tentando me lembrar onde já as ouvi, quando ela pegou seu violão e, então, começou a
harmonizar e tocar variações da melodia. Eu me sentei em frente ao piano e toquei junto
com ela.
“Não se esqueça, nos encontraremos no hospital amanhã de manhã.” A mulher
guardou seu violão e se levantou depois de duas horas. Eu a olhei com uma expressão
vazia e ela revirou seus olhos. Então eu me lembrei. Ela estava se apresentando de graça
em hospitais e escolas. Ela havia me contado semana passada sobre me juntar a ela para
a próxima apresentação. Eu não tinha respondido, mas ela decidiu sozinha que eu iria.
Ela disse que me ligaria cedo pela manhã e eu tinha que atender a ligação.
Depois dela ter saído, eu me sentei em frente ao piano mais uma vez. Não tinha
sido ruim. Mas parecia como se algo estivesse faltando. Eu lembrava claramente de quase
ter compreendido o que faltava da última vez que trabalhei nesta música. Eu fiz
alterações, mas nada ficou bom. Eu me levantei do banco do piano, sentindo a pressão no
meu peito. Talvez eu estivesse colocando muita ênfase naquele “algo” porque não
conseguia me lembrar. Talvez a música ficasse melhor se me esforçasse um pouco mais
em ajustá-la e parasse de esperar por esse “algo”. Eu olhei através da janela: O sol estava
nascendo
Meu celular vibrou assim que terminou de carregar. Ela ainda não havia ligado.
Eu me deitei no sofá. Meu celular tocou logo após alguns minutos. O nome Jimin
apareceu na tela. Isso imediatamente me lembrou de uma cena do sonho que tive noite
105
passada. Uma casa estava em chamas. Alguém me pergunta: “Tem alguém lá dentro?”
Eu respondo: “Não, não tem ninguém lá dentro.” A cena muda, e, então, eu estava sentado
no quarto escuro da minha mãe. Ela estava dizendo: “Se eu não tivesse tido você... Se
você não tivesse nascido...”
Eu não sei como fui do meu estúdio para o hospital. Eu estava correndo pelas
escadas como um louco. O corredor era estranhamente longo e escuro. Pessoas vestindo
roupas de hospital passavam por ali. Meu coração continuava disparado. Seus rostos
estavam pálidos, como folhas de papel, e sem expressão. Eles pareciam mortos. Eu podia
escutar a respiração pesada em minha cabeça.
Eu pude ver Jungkook deitado em sua cama naquela roupa de hospital, através da
fresta da porta. Ele devia estar dormindo, mas parecia estar morto. “Ele quase morreu. Os
médicos disseram que é um milagre ele ter sobrevivido. Foi naquela noite, naquela noite
em que voltávamos da praia.” A voz de Jimin ainda ecoava em meus ouvidos.
Eu virei minha cabeça. Eu não conseguia mais olhar para ele. Várias imagens
passaram pelos meus olhos, como um panorama. A chama que queimava em um tambor
de um canteiro de obras, o quarto da minha mãe que sempre esteve apagado, os sons do
piano que vinham do fogo, as costas de Jungkook enquanto ele tocava desajeitadamente
o piano na loja de música, Jungkook deitado inconsciente na rua vazia, e a dor e o medo
que ele deve ter passado quando perdeu a consciência...
Ela disse “É tudo por sua causa”. Ela disse “Se você não tivesse nascido...”. Foi a
voz da minha mãe ou foi a minha? Ou era a voz de um outro alguém? Eu passei minha
vida inteira sendo atormentado por essas palavras. Eu queria acreditar que elas não eram
verdadeiras, mas Jungkook estava deitado lá, ele estava deitado em um hospital onde os
pacientes passeavam como mortos vivos. Se eu apenas tivesse o ignorado e deixado a loja
de música, se eu tivesse morrido nas chamas, nada disso teria acontecido?
Neste momento, a melodia do violão da mulher penetrou em minha mente. O som
do violão se sobrepôs ao som destruidor das chamas, o som do piano e incontáveis outros
sons. Eu cobri minha cabeça e meus ouvidos com os dois braços, mas o som do violão
apenas ficava mais alto. Eu me virei e comecei a escapar daquele corredor. Eu esbarrei
com alguns pacientes que passavam por ali, mas não tive tempo para virar e me desculpar.
Eles gritaram e me xingaram, mas eu não olhei para trás, eu tinha de fugir daquela voz e
daquela alucinação. Minha cabeça doeu. Eu tinha perdido toda a minha confiança. Eu
corri pelo corredor, cambaleando e tropeçando, e saí do hospital.
106
JungKook
15 de junho do ano 22

Um barulho de fora da sala me despertou do sono. Eu estava tendo um sonho estranho,


mas não conseguia lembrar direito dos detalhes. A noite do acidente repetia-se como uma
tela de TV borrada em preto e branco. Eu conseguia sentir meus batimentos diminuírem
e então aumentarem rapidamente. De repente, uma dor surgiu, e alguém estava
sussurrando. No minuto seguinte, eu acordei me contorcendo.
Meu corpo inteiro estava ensopado de suor. A luz do sol entrou pela minha janela
e batia diretamente no meu rosto. Eu entrei no corredor e encontrei uma cena comum. Era
minha primeira vez utilizando muletas. Ainda tinha que me acostumar com elas, mas
eram bem mais fáceis do que a cadeira de rodas. Eu fui para o lado de fora pela entrada
do hospital. Estava ventando. Meu suor diminuiu rapidamente e eu senti um frio na parte
de trás do meu pescoço. Não estava tão quente quanto eu pensava, enquanto estava no
quarto.
Quando sentei em um banco e abri meu caderno de esboços, o médico responsável
veio até mim. Disse que era um milagre eu ter me recuperado; ele não achou que seria
possível. Tocou no meu ombro, dizendo que eu era a prova viva de um milagre.
“Você deve ser bom pelo resto da sua vida.” Eu virei minha cabeça e vi uma garota
parada ali, que eu conheci ontem no corredor. A garota disse que era incrível encontrar
um milagre bem ao seu lado e me perguntou como eu me sentia. Eu respondi que só estava
muito saudável.
Eu baixei meus olhos para o caderno de esboços novamente. Antes que eu
percebesse, estava desenhando o que eu vi em meu sonho. Minhas memórias estavam
borradas como a tela de uma TV antiga. Era difícil me concentrar no desenho ou nas
minhas memórias, porque a garota continuava me fazendo perguntas. Depois de um
tempo, eu levantei a cabeça. Uma música familiar estava tocando. Alguém estava fazendo
uma apresentação a uma certa distância. Eu definitivamente conhecia aquela música.
Yoongi a tocava algumas vezes em seu estúdio. Eu fui em direção ao palco com as minhas
muletas. Um isqueiro com a marca YK estava pendurado no violão.

107
JiMin
3 de julho do ano 22

Hoseok tem estado de mau humor desde que visitou Jungkook. Se alguém pudesse
verdadeiramente “amarrar” nós sete juntos, como um “nós”, essa pessoa seria o Hoseok.
Ele abraçava e protegia esse “nós” como se fosse um abrigo em pessoa. Mas ele nem
sempre era tão animado e alegre internamente como tentava parecer na nossa frente. Ele
fazia isso mais como um senso de responsabilidade. Ele sentia instintivamente as feridas
e dores daqueles ao seu redor, e não conseguia suportá-las bem. Esse é o porquê de ele
fingir ser mais alegre do que realmente é por natureza.
Hoje também, Hoseok apenas sentou em um canto da sala de ensaio por um longo
tempo e saiu sem dizer uma palavra. Eu me juntei à Just Dance e comecei a aprender a
dançar logo depois que voltei da praia. Hoseok me deu a oportunidade. Eu agia estranho
ao conhecer novas pessoas, já que passava muito tempo no hospital. Ele trouxe uma nova
parceira de dança também. Ela era uma amiga que ele conheceu no orfanato.
Ela era a única pessoa que conseguia fazê-lo rir quando ele estava naquele humor.
Quando ela murmurou alguma coisa, enquanto olhavam para o celular dele juntos, ele riu
abafado. “Você riu. Você riu.” Ela brincava com ele. Hoseok virou sua cabeça para o
outro lado, dizendo para ela parar. Ele riu novamente.
A sala de ensaio ficou silenciosa em um piscar de olhos depois que eu parei a
música. Eu apenas deitei no chão. Eu gostava de dançar quando era menor. Eu dançava
muito e geralmente era elogiado por isso. Mas o quarto de hospital não era um bom lugar
para dançar. Quando eu ia para a escola, entre estadias no hospital, eu apenas afundava
minha cabeça em meu peito, para evitar olhares dos meus colegas de classe. Depois de
um tempo, eu sentia meu corpo muito rígido. Eu não conseguia fazer os movimentos que
Hoseok realizava tão facilmente. Não havia nada a fazer, a não ser continuar praticando,
mesmo depois que todos já tivessem ido embora.
Eu repeti o vídeo dos passos de dança, que aprendi mais cedo, no meu celular. No
vídeo, os movimentos de Hoseok eram fluídos, mas precisos. Eu sabia que eles eram fruto
de anos de prática, e que levaria um longo tempo para um novato como eu alcançar aquele
nível. Era um pensamento desejoso. Eu apenas conseguia suspirar alto.

108
Eu fui para “casa dos meus pais” no dia em que voltei da praia sozinho. Assim
que olhei para as janelas bem iluminadas, eu não pude deixar de pensar: “Será que esse
lugar algum dia foi a nossa casa?” Eu apertei a campainha no portão da frente. Levou um
tempo para ser aberto. Eu peguei o elevador e sai no décimo sétimo andar. Apesar da
porta estar aberta, ninguém veio me cumprimentar.
Meus pais estavam sentados no sofá, na sala de estar, assistindo um filme preto e
branco na TV. “Eu não quero voltar ao hospital”, eu soltei, depois de certa hesitação.
“Não se preocupem. Eu não farei nada que não devo. Mas eu não vou voltar para lá.”
“Onde você esteve?”, minha mãe perguntou. “Com os meus amigos.” “Amigos? Tome
um banho e vá para cama. Nós vamos tirar um tempo para pensar sobre o que faremos
com você”, meu pai interviu.
Eu fiz uma reverência e fui para o meu quarto, no final do corredor. Assim que a
porta fechou atrás de mim, eu desabei. “Nós vamos tirar um tempo para pensar sobre o
que faremos com você”, a voz do meu pai soou em minha cabeça. Eu tentei me preparar,
mas não era fácil. Eu mal consegui dormir naquela noite. Ao invés disso, eu tomei duas
decisões. Eu vou descobrir com o que eu gostaria de me comprometer. E eu irei provar
que sou bom nisso.
Eu me levantei e parei na frente do espelho. Eu conseguia imitar os giros muito
bem, mas meus pés continuavam se embolando. Eu continuava errando. Era para eu fazer
os passos com a minha nova parceira de dança no dia seguinte, e eu queria impressioná-
la. Eu queria ser reconhecido como um igual, ao invés de ouvir “não é ruim”.

109
JiMin
4 de julho do ano 22

Quando voltei aos meus sentidos, eu estava esfregando meu braço com tanta força que
arranquei a pele. Minhas mãos tremeram e eu conseguia ouvir o som da minha respiração
pesada. Um fino filete de sangue correu pelo meu braço. Pelo reflexo no espelho, eu
conseguia ver que meus olhos estavam vermelhos. Fragmentos do que acabara de
acontecer passaram pela minha mente.
Eu perdi a concentração enquanto dançava com a minha parceira. Meus passos se
embaraçaram. Eu esbarrei nela, caí e machuquei meu braço. O sangue me lembrou o
Jardim Botânico. Eu me senti sufocado. Não conseguia lembrar como me levantei, corri
da sala de ensaio e cheguei ao banheiro. Eu esfreguei e lavei o arranhão como um louco,
ficando mais e mais assustado vendo o sangue ser sugado pelo ralo. Eu pensei que
superaria isso. Eu pensei que estava bem. Mas não estava. Eu tive que fugir. Eu tive que
lavar aquilo. Eu tive que ignorar todo o resto. Então eu percebi, de repente, que minha
parceira também caiu.
Eu corri rapidamente de volta para a sala de ensaio, mas não havia ninguém lá. O
seu sobretudo e a bolsa de Hoseok estavam jogados no chão. Eu corri para o lado de fora.
Estava chovendo forte. Eu conseguia ver Hoseok, com a minha parceira de dança em suas
costas, correndo com toda sua força a uma longa distância. Ela parecia estar inconsciente.
Seus braços moles balançavam para todas as direções.
Eu corri atrás dele com um guarda-chuva em minha mão, mas parei. Eu tentei
lembrar do momento em que ela caiu, mas não consegui. Quando eu vi o sangue, tudo ao
meu redor desapareceu. Eu não seria de muita ajuda, mesmo que o alcançasse. Eu a
machuquei ao empurrá-la no chão, mas nem parei para ver se ela estava bem, porque eu
estava tremendo como uma gelatina ao ver meu próprio sangue.
Eu dei meia volta. A cada vez que eu dava um passo, chuva respingava em meu
tênis. Os faróis dos carros passavam por mim. Choveu naquele dia do piquenique, há
muito tempo, assim como hoje. Naquele dia, eu corri do Jardim Botânico. Meu corpo
estava coberto de lama, que parecia sangue. Eu não havia crescido nem um pouco desde
que era um pequeno garoto de oito anos de idade

110
HoSeok
7 de julho do ano 22

Meu tornozelo não sarou bem. Eu tive um pequeno acidente há alguns dias. Agora eu
posso dizer que foi “pequeno”, mas foi sério no dia. Jimin e aquela garota se esbarraram
enquanto praticavam um passo de dança e ambos caíram feio no chão. Eu carreguei a
garota em minhas costas e corri para o hospital. Não era longe, mas estava chovendo e
ela estava inconsciente.
Enquanto ela era tratada, eu andava de um lado para o outro no corredor. Era tarde
da noite, mas o corredor em frente à sala de emergência estava cheio de pessoas tomando
café da máquina de vendas automática, ou olhando para seus celulares. Chuva e suor
pingavam do meu cabelo. Eu balancei meu cabelo com uma mão, sentado no banco em
um canto, quando derrubei a bolsa dela sem querer. Moedas rolaram pelo chão, canetas
esferográficas e um lenço se espalharam por todo lugar. Havia também uma passagem de
avião. Eu sabia que ela havia se candidatado em um teste para uma equipe de dança
internacional. A passagem deveria significar que ela ganhou a vaga.
Naquele momento, o médico me chamou. Eu coloquei a passagem de volta na
bolsa dela e andei em sua direção. Ele disse que a garota bateu a cabeça e teve uma
concussão, e que eu não tinha de me preocupar muito. Ainda estava chovendo lá fora. Eu
parei na entrada com ela. “Hoseok”, a garota me chamou. Ela parecia ter algo a dizer.
“Espere aqui. Eu vou comprar um guarda-chuva.” Eu corri em meio àquela chuva forte.
Havia uma loja de conveniência ali perto. Eu não queria ouvir o que ela tinha a dizer. Eu
não sabia se conseguiria parabenizá-la.
Jimin estava ansiosamente me esperando na sala de ensaio. Eu disse a ele que a
garota estava bem, mas Jimin parecia desanimado e abaixou a cabeça.
Na manhã seguinte, meu tornozelo estava inchado. Eu tropecei levemente na noite
anterior, enquanto a carregava em minhas costas. Estava chovendo e eu estava correndo.
Eu nem caí, mas meu pé escorregou só um pouco. Fiz um curativo para aliviar a dor e
tentei andar com mais cuidado. Eu pensei que ficaria bem. À primeira vista, não havia
inchado tanto. Mas apenas ficou pior e pior. Eu tinha que ficar de pé o dia todo na
hamburgueria e eu não podia deixar de ir ao ensaio.

111
TaeHyung
10 de julho do ano 22

Eu corri pelas ladeiras e por entre os becos estreitos. Eu vivi nessa vizinhança por cerca
de vinte anos. Eu conhecia cada lugarzinho. Cada esquina trazia de volta histórias e
memórias. Mas este não era o momento para relembrar velhas histórias. A polícia estava
me perseguindo. Eu não poderia me permitir ficar perdido em memórias. Mas assim que
virava em uma esquina depois da outra, enquanto pulava uma cerca depois da outra,
parecia que o tempo estava voltando.
Eu pintei um grafite com spray no ponto de ônibus pela primeira vez depois de
muito tempo. Eu peguei novamente as latas de spray por causa de uma garota. Eu esbarrei
nela enquanto ela estava tentando roubar comida de uma loja de conveniência, há alguns
dias. Ela não conseguia olhar para suas mãos vazias. Ela estava, obviamente, com medo
de suas mãos vazias. Eu não queria admitir que sabia exatamente como ela se sentia. Você
tem que olhar diretamente para as suas próprias mãos vazias. Ninguém pode fazer isso
por você. Mas eu não conseguia ignorá-la. Eu reconheci o olhar em seu rosto. O olhar
quando você sente como se não pertencesse a nenhum lugar no mundo. Quando você está
com medo de ser responsável por tudo de errado que aconteceu na sua vida. Quando você
está solitário e não sabe para aonde ir ou onde ficar.
Eu via aquela garota de tempos em tempos depois daquele dia. Nós não fazíamos
nada de especial juntos. Apenas sentávamos na rua ou andávamos pelas ferrovias. Então
nós fizemos um grafite juntos. Ela parecia se sentir estranha segurando uma lata de spray
pela primeira vez, mas fez seu melhor para seguir o que eu fiz. Finalmente, nós chegamos
à parada de ônibus. Namjoon descia nessa parada. A polícia também aparecia por aqui
frequentemente. Uma vez, eu fui pego fazendo grafite aqui. A garota tentou ler meu rosto,
ao passo que eu fiquei parado com a lata de spray em minha mão.
Eu não entrava em contato com Namjoon desde que o vi no hospital. Mas passei
pelo seu contêiner na ferrovia uma noite, há alguns dias. Eu estava na rua para fugir do
meu pai e seu temperamento de bêbado. Eu apenas corri sem direção, vaguei por aí sem
rumo e vi uma luz acesa no contêiner. Alguém estava lá. Deveria ser o Namjoon. Eu
queria ir lá, mas não podia. Eu me aproximei e ouvi uma melodia fraca e sons de ronco.

112
Eu sentei no chão, em frente ao contêiner, e olhei para o céu. Estava, literalmente, um
breu, sem nenhum sinal de estrelas.
A polícia estava me alcançando muito rápido. Eu estava escondido em um beco
sem saída. Não havia como fugir. Estava destinado a acontecer. Mesmo se eu parasse de
relembrar velhas histórias e me concentrasse em fugir, eu seria pego, de qualquer maneira.
Era um resultado esperado. Nenhum problema conseguiria ser resolvido de punhos
vazios. Eu caminhei para fora do beco e coloquei ambos os braços para cima. Eu me
rendi.

113
NamJoon
13 de julho do ano 22

Eu arrumei minha bolsa e saí da biblioteca. Já tinha mais de um mês desde que comecei
a trabalhar em turnos noturnos no posto de gasolina, e eu ia à biblioteca durante a manhã.
Depois de chegar em casa, eu estava derrotado por ter trabalhado a noite inteira. Mas eu
não ficava sentado depois que o alarme tocava. Não é como se eu tivesse conquistado
alguma coisa no último mês. Eu apenas olhava para fora da janela e folheava revistas, em
transe. Não é como se eu não estivesse impaciente. Eu sabia que deveria ir no meu próprio
ritmo. Mas não era tão fácil quanto pensei. O que todas essas pessoas faziam aqui na
biblioteca? Será que eu conseguiria alcançá-las? Mas eu não sabia por onde começar ou
em que me apoiar.
Eu encostei minha cabeça na janela do ônibus. Da biblioteca até o posto de
gasolina. Todos os dias. A paisagem tediosamente familiar deslizava pelo lado de fora da
janela. Será que um dia eu conseguirei escapar desta rotina? Parecia impossível para mim
até desejar por um amanhã melhor.
Uma mulher sentada na parte da frente do ônibus entrou em meu campo de visão.
Seus ombros pesavam, como se ela estivesse suspirando. Ela era a mulher que entregava
panfletos em uma faixa de pedestre. Eu também a reconheci da biblioteca. Nós
estudávamos na mesma biblioteca e íamos para casa no mesmo ônibus. Eu nunca iniciei
uma conversa com ela, mas nós víamos a mesma paisagem, passávamos pelas mesmas
experiências e suspirávamos da mesma maneira. Eu vi como ela cochilou em um canto
da biblioteca, e como seu nariz sangrou em frente à máquina de café. Eu não estava
procurando por ela, mas ela chamava minha atenção de tempos em tempos. Eu ainda tinha
o elástico de cabelo no meu bolso, que comprei de um vendedor de rua sem pensar, depois
de ver o seu cabelo amarrado com um elástico amarelo de borracha.
O ônibus estava chegando no ponto dela. Alguém apertou o botão de parada e
vários passageiros se levantaram. Mas a mulher não. Ela deve ter caído no sono. Eu
deveria acordá-la? Eu hesitei por um momento. O ônibus finalmente chegou ao ponto,
mas ela não mostrou nenhum sinal de que se moveria. Passageiros saíram, a porta deslizou
para fechar e o ônibus seguiu em frente.

114
O ônibus chegou no meu ponto e a mulher ainda não havia acordado. Eu hesitei
mais uma vez, enquanto saía pela porta dos fundos. Ninguém prestaria atenção nela. Ela
já havia perdido sua parada e não acordaria até que mais algumas passassem. Aquilo
provavelmente só adicionaria ainda mais cansaço em sua vida.
O ônibus partiu assim que eu saí. Eu não olhei para trás. Eu coloquei o elástico de
cabelo em cima da bolsa da mulher, e foi isso. Alguns dias atrás, eu estive aqui e vi alguns
grafites pintados na parede, em frente ao ponto de ônibus. Eu automaticamente olhei ao
redor, mas Taehyung não estava em lugar nenhum. Eu supus que ele devia ter saído com
pressa, porque as latas de spray estavam rolando pelo chão. Eu encarei o grafite pintado
por toda a parede durante um bom tempo.

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SeokJin
14 de julho do ano 22

Eu sentei em um banco no bar, ao lado de Namjoon. Já passava da meia-noite, mas o bar


ainda estava cheio de clientes, que vieram terminar o dia com bebidas amargas. A ligação
veio à tarde. Namjoon havia pedido para que eu o encontrasse depois de seu turno no
posto de gasolina, e ele não havia dito nada até agora. Ele apenas continuava a esvaziar
copo atrás de copo. Eu perguntei se tinha algo errado e ele apenas sorriu e balançou a
cabeça. “É só que a minha vida não mudou nada desde que eu nasci. Não melhora nem
piora.”
Namjoon disse que a sua energia havia se esgotado. Que ele havia fingido ser um
amigo, quando não podia fazer nada por nós. Que esse era o motivo de ele não poder
encontrar com Taehyung ou visitar Jungkook novamente. Que estava arranjando
desculpas até neste momento e que ele não era nada.
Nossos anos de ensino médio vieram à minha mente depois que tomamos alguns
drinques. Aquele incidente que Taehyung revelou na praia. Por que Namjoon havia me
defendido então? “Por que você fez aquilo então?”, Namjoon me questionou, ao invés de
responder a minha pergunta. Por que eu fiz o que fiz até então? A morte da minha mãe,
minha infância na casa da minha avó materna em Los Angeles, a expressão fria de meu
pai quando voltei para a Coreia. Eu nunca senti o calor de uma família. Talvez eu estivesse
me sentindo tonto, ou era o ar noturno, mas eu contei todos os meus segredos, que eu
nunca havia revelado antes.
“Agora eu sei tudo sobre você, mas você não acha que outros também estão
esperando que você compartilhe sua história? Esperando que você os dê uma pista sobre
o que aconteceu?”, Namjoon disse, depois de ouvir minha confissão. Eu me despedi dele
e fui para casa. Eu passeei pelas ruas durante um tempo, cambaleando um pouco. A brisa
noturna era refrescante e a lua estava brilhante no céu. Eu parei em frente a uma pintura
de grafite no ponto de ônibus. Se eu confessasse tudo, será que Namjoon acreditaria em
mim? Se alguém confessasse para mim justamente o que eu gostaria de dizer, será que eu
conseguiria acreditar nessa pessoa?
Alguns dias atrás, eu passei por perto da loja de conveniência que Taehyung estava
trabalhando. Da janela do carro, eu podia vê-lo sorrindo. Ele estava conversando com um

116
cliente e rindo alto. Aquela risada familiar que fazia sua boca ficar em forma de um
quadrado. O que havia para se conversar e rir tão alto com um cliente? Bom, Taehyung
sempre foi assim. Ele ria de piadas que ninguém achava engraçadas e chorava com coisas
que ninguém achava triste. Como deveria me reconciliar com Taehyung? O futuro parecia
sombrio.

117
HoSeok
16 de julho do ano 22

Eu virei as páginas do caderno de rascunhos uma por uma. Estávamos sorrindo juntos na
sala de aula abandonada, no túnel e na praia. Jungkook estava deitado sozinho em uma
estrada asfaltada. Sangue escorria pela rua. A grande lua estava alta no céu.
"Você está machucado?" Eu olhei para trás e vi Jungkook entrando em seu quarto
do hospital. Eu dancei com meu tornozelo enfaixado em uma atadura, e agora um molde
de gesso estava em volta dele. "Pareço estar melhor que você". Eu mostrei uma reação
dramática com as palavras dele, de propósito, e disse que a saúde dele era imbatível.
Jungkook disse que teria de passar por um exame completo na próxima semana e poderia
ir para casa depois, se não tivesse problemas.
Eu decidi que deveríamos dar uma festa para ele. Fizemos uma no contêiner do
Namjoon no dia em que o Jimin escapou do hospital, com hambúrgueres, refrigerante e
um bolo que Seokjin comprou. Nós discutimos para saber quem iria usar o único chapéu
de aniversário, até ele ser destruído. Sujamos os rostos uns dos outros com aquele bolo
caro e Namjoon reclamou que teria de limpar sozinho toda aquela bagunça, mas foi
divertido. Nós sete finalmente nos reunimos pela primeira vez depois que saímos do
ensino médio. Rimos de todas as palavras e de tudo que fazíamos. Todo minuto juntos
era entusiasmante e animador, mesmo não fazendo ou falando muito. Eu queria fazer um
dia como esse. Um dia onde poderíamos nos encontrar e rir juntos de novo.
"Ei, naquela noite...", Jungkook começou a dizer, enquanto saíamos do elevador,
em direção à porta da frente do hospital. O olhar dele estava fixo em algo lá fora. Ele não
parecia estar realmente olhando para alguma coisa, estava apenas piscando, como se
tentasse desenterrar uma velha lembrança. "Seokjin fala sobre aquela noite? Digo, por
acaso ele disse que me viu ou...?", Jungkook parou de falar. "Seokjin? Viu você? Onde?",
eu perguntei, mas ele não abriu a boca de novo.
"Você é uma boa pessoa, não é?", Jungkook me perguntou, antes de nos
separarmos. "Pare de falar besteiras", eu bati de leve em seu ombro e acenei.
Rapidamente, encontrei meu caminho. Será que sou uma boa pessoa? Enquanto crescia,
disseram-me que eu era uma criança animada e feliz. Costumavam dizer que eu era
sensível e impressionável. Isso significava que eu era uma boa pessoa? Nunca pensei

118
nisso antes. Olhei para trás e vi Jungkook ainda parado na entrada, olhando para o céu
nublado.

119
SeokJin
24 de julho do ano 22

Eu segui meu pai para dentro da sala de reunião. Sentei em uma cadeira perto da entrada
e olhei em volta. Eu não tinha certeza do porquê fui chamado para este lugar. Meu pai
sentou no centro e estava cercado de rostos familiares. Olhei para o relógio. A festa para
o Jungkook já deveria ter começado. Eu estava pensando em ligar para os outros, quando
meu pai abriu a boca e a sala toda ficou em silêncio. A atmosfera ali estava pesada, mas
não parecia ameaçadora. Ao invés disso, todos estavam em um misto de animação e
expectativa. As luzes se apagaram e o título da reunião apareceu na tela. Plano-mestre
para a renovação do centro da cidade de Songju.
Meu pai me chamou de repente. Para ser mais exato, foi o secretário dele quem
me ligou. Eu ia dizer que tinha um compromisso, mas não achei que essa desculpa
funcionaria. Já no carro, no caminho para cá, papai me perguntou se eu ainda saía com
aqueles meus "supostos amigos". Eu não respondi. Ele não estava fazendo uma pergunta.
Ele só estava fazendo pouco caso deles, repreendendo-me por andar com eles e ordenando
que eu cortasse meus laços.
Ele nem mesmo olhou para mim. "Não perca seu tempo com nada. Estou te
dizendo isso por experiência própria. Além disso, você vai ter muito com o que me ajudar
aqui. Tente aprender o quanto puder. Então, em breve, você vai se tornar um adulto
digno.”

120
JiMin
24 de julho do ano 22

O lado de dentro do contêiner estava completamente decorado. Os hambúrgueres, batatas


fritas e bebidas que Hoseok trouxe, estavam na mesa, e as decorações natalinas
balançavam nas paredes. Jungkook estava sentado no meio.
Apenas três dos sete copos estavam cheios. Hoseok foi para seu trabalho de meio-
período, logo depois de deixar a comida, e Namjoon viria tarde, depois que seu turno
terminasse. Ninguém conseguiu contato com Yoongi, e Seokjin disse que viria, mas ainda
não havia aparecido. Taehyung estava calado. Ele ainda está desconfortável no contêiner
do Namjoon? Eu praticamente o arrastei até lá, mas era impossível melhorar aquele clima.
Era desse jeito que nos sentíamos depois do dia que voltamos da praia. Ninguém
tomou a iniciativa de saber sobre os outros primeiro, e ninguém estava ciente de como os
outros estavam. Talvez fosse inevitável. Já não éramos mais aqueles alunos que matavam
aula para sair juntos. Nós tínhamos nossos próprios problemas e obrigações agora. Não
podíamos simplesmente descartar todos eles só porque queríamos ficar juntos. No meu
caso, eu tinha que trabalhar duro para ficar fora do hospital e decidir se voltaria para a
escola. Eu tinha que provar para os meus pais, assim como para mim mesmo, que eu
estava bem, e tinha de ter certeza que eu não seria um fardo para ninguém.
Depois de algum tempo, Jungkook se levantou. Eu o segurei, dizendo que ele
deveria ficar mais um pouco e ver Namjoon. Jungkook apenas riu, dizendo que deixaria
isso para outra ocasião. Eu não podia mantê-lo ali. Nós limpamos a mesa e saímos do
contêiner. Ligamos as lanternas nos nossos celulares. Já era dez e meia. Nós nos
separamos na frente do contêiner. Enquanto eu atravessava a ferrovia e esperava pelo
ônibus, eu conseguia ver Jungkook e Taehyung indo embora ao longe, com suas lanternas
ligadas.

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TaeHyung
24 de julho do ano 22

Eu subi as escadas correndo, usando os degraus de três em três. Garrafas de licor estavam
rolando aqui e ali, e copos e pratos estavam espalhados pelo chão. Papai estava caído em
um canto, com sua cabeça abaixada. Minha irmã disse que não era o que eu estava
pensando, antes mesmo de eu abrir a boca. "A voz do papai estava um pouco alta, então
alguém ligou para a polícia, achando que ele estava nos batendo."
Então os policiais apareceram. Mulheres da vizinhança que estavam na frente da
nossa porta se mostraram decepcionadas e foram embora. Minha irmã continuou a se
desculpar e se curvar para os policiais. "Nada foi quebrado e ninguém se machucou." Eu
não precisava ficar envergonhado dessa situação. A bebedeira do papai tem sido a fofoca
da vizinhança por muito tempo, mas eu via de outro modo. Papai parecia ter dormido
onde estava. O rosto dele estava queimado pelo sol e coberto com uma barba grande, já
que ele estava trabalhando como pedreiro em um canteiro de obras. Ele tinha mais cabelos
brancos que antes. Eu conseguia ver a saliva em sua boca e sua língua.
Eu costumava matar o papai em meus sonhos. Uma vez, eu quase o apunhalei de
verdade. Talvez isso tenha começado nesse dia. Eu comecei a simpatizar com ele. Eu me
odiava por simpatizar com ele. Aquela pessoa poderia ser chamada de pai? Ele não era
capacitado o suficiente para ser um.
Alguém tocou no meu ombro e eu olhei para trás, encontrando um rosto familiar.
Ele era um policial que já havia sido mandado para minha casa algumas vezes. Eu também
o via na delegacia às vezes, quando eu era pego grafitando. Eu apenas abaixei minha
cabeça. Era um gesto que pedia desculpa por fazê-los correr até ali por nada, mas eu
também não tinha certeza de qual expressão deveria colocar em meu rosto. "Seus vizinhos
devem estar muito preocupados com vocês dois. A mulher que denunciou esse incidente
não parecia irritada e pediu várias vezes para que viéssemos rápido, antes que alguém se
machucasse." Eu perguntei se a voz daquela mulher era grave e rouca. Ele não conseguia
se lembrar exatamente, mas disse que poderia ser. Minha irmã, que estava conversando
com outro policial, olhou para mim.
"Você ainda fala com a mamãe?", eu perguntei a ela depois que todos foram
embora. Ela estava limpando as garrafas e os pratos jogados no chão, e eu estava sentado,

122
encostado em uma parede. Papai ainda estava dormindo naquela posição desconfortável.
O sol já havia se posto e a grande janela sobre a cabeça do papai estava escura.
Minha irmã se levantou e sentou-se à mesa de jantar. Ela não disse uma palavra,
mas seu silêncio mais do que respondeu minha pergunta. Eu a perguntei o endereço e o
telefone da mamãe. "Eu não sei o número dela. Eu só sei que ela mora em um apartamento
alugado em Buk-gu, Munhyeon. Taehyung, por que você quer falar com ela?", ela
perguntou. "Para lhe perguntar o que ela está pensando. Por que ela foi embora. E por que
apareceu de novo." Minha irmã sentou ao meu lado. "Taehyung, a mamãe sente sua falta."
Eu bufei e levantei. Ela claramente não havia percebido o quão bravo eu estava. Eu disse
que perguntaria tudo isso para a mamãe, mas eu não estava mesmo curioso sobre as
respostas dela. Como saber o porquê ela foi embora me ajudaria? Eu só queria aliviar esse
meu ressentimento contido. "Por que ela veio aqui? Foi ela que nos abandonou, e agora
quer fazer o papel de mãe?"
Eu comecei a andar para o norte, em direção a Munhyeon. Eu queria andar mais
rápido do que as batidas aceleradas do meu coração. Só assim eu seria capaz de respirar.
Já passava da meia-noite. Os ônibus já haviam parado e eu não tinha dinheiro para um
táxi. Andar era minha única opção. Para chegar lá, eu tinha que atravessar a ferrovia, a
ponte e passar pelo centro da cidade. Talvez eu consiga chegar lá antes do sol nascer. Eu
senti os passos de alguém atrás de mim, quando estava atravessando a ferrovia. Jungkook
estava me seguindo. Eu esqueci completamente que ele estava comigo, quando corri para
casa ao ver a polícia.
"Vai embora!", eu gritei para ele e continuei andando sem olhar para trás. Ele deve
ter visto tudo. A polícia, os vizinhos decepcionados, as garrafas de licor, papai roncando
e minha irmã com sua cabeça abaixada. Jungkook deve ter visto tudo isso. Eu nunca
contei a ninguém sobre a violência do meu pai. Nunca. Eu nunca disse para os outros que
mamãe foi embora. Não era por causa do meu orgulho. Talvez fosse. Só não parecia justo
que eu tivesse de explicar minha situação e vida miserável sozinho.
Aumentei a velocidade dos meus passos. Eu finalmente saí da área residencial e
subi as escadas de um viaduto que passava por cima da ferrovia, quando ouvi passos atrás
de mim. Eu olhei rapidamente e vi Jungkook. Eu ia gritar e perguntar por que ele ainda
estava me seguindo, mas mudei de ideia. Não era da minha conta. Pisei na ponte depois
de sair da ferrovia. Jungkook ainda estava me seguindo de longe. Eu parei no meio da
ponte e olhei para o rio logo embaixo.
123
Na escuridão da noite, estradas e prédios eram iluminados pela luz turva dos
postes, mas o rio não. O rio escuro corria ferozmente embaixo dos meus pés, com um
rugido. Era ainda mais ameaçador porque eu não conseguia vê-lo na escuridão. Só havia
nós dois na ponte. Sem pedestres, sem carros. Nossas camisetas estavam molhadas de
suor e balançavam com o vento.
"Você sabia que estamos andando já faz uma hora?" Eu acenei para o Jungkook e
ele chegou mais perto. Começamos a andar lado a lado. "Posso perguntar para aonde
estamos indo?" Eu disse que estava indo para a casa da minha mãe. Eu tinha algo para
dizer a ela. Jungkook concordou com a cabeça. Meus passos estavam ficando mais lentos.
De repente, eu me perguntei se estava mesmo indo para casa da mamãe. Eu não sabia
exatamente onde ela morava. Eu não sabia o número dela ou seu endereço. Eu não tinha
nenhum plano depois de chegar lá. Minha raiva passou em apenas uma hora, e a fome e
a dor tomaram lugar.
Imaginei como seria nosso encontro. Na verdade, eu já tinha imaginado
incontáveis vezes. Era o próximo passo que não estava claro. Depois de perguntar a ela
tudo aquilo, o que ela diria? Será que ela iria me dar uma resposta mesmo? Se sim, ou se
não, como eu deveria reagir? Talvez fosse melhor para todos nós se eu não a encontrasse.
Essa era sempre a minha conclusão, mas eu continuava imaginando esse momento. E
agora, eu estava caminhando pelas ruas escuras, assim, sem nenhum plano, para encontrá-
la.
"Sua perna está boa?" Pensando nisso, Jungkook acabou de tirar o gesso, e eu o
fiz andar por horas. "O médico disse que eu deveria andar bastante como reabilitação."
Jungkook sorriu e aumentou a velocidade de seus passos, tentando me mostrar que estava
falando a verdade. Não consegui dizer a ele que deveríamos parar aqui. Eu decidi
caminhar mais devagar. "Você não está com fome?" Enquanto eu tentava descontrair,
todos os meus sentidos voltavam. "Estou me arrependendo de não ter terminado o bolo e
aquele hambúrguer." Eu ri com as palavras dele. Humanos são tão fortes, mas também
tão fracos, e éramos a prova disso – com fome, reclamando que nossas pernas doíam, e
rindo juntos mesmo estando nesta situação.
As luzes ficaram mais fortes e barulhentas, uma rua movimentada logo apareceu
na nossa frente. Já era tarde da noite, mas a rua bem iluminada estava cheia de pessoas e
carros passando. Era três e meia da manhã. Nós sentamos em uma mesinha ao lado de
fora de uma loja de conveniência.
124
Jungkook disse que estava com sede, depois de comer apenas metade do seu cup
noodles. Eu entrei na loja para comprar bebidas. Quando voltei, alguém estava parado na
frente do Jungkook. Ele tinha as costas viradas para mim, então eu não conseguia dizer
quem ele era ou o que estava fazendo. Jungkook estava olhando para ele com espanto.
Corri para o lado do Jungkook e olhei para o homem.
Ele estava vestindo um sobretudo cáqui-escuro, no meio do verão. Ele tinha um
cabelo grande e cinza, que parecia um esfregão, e sua barba bagunçada estava suja de
caldo de macarrão. Ele fedia a álcool e estava devorando meu cup noodles com vontade.
Não levaria a nada perguntar quem ele era ou o porquê de ele estar comendo meu
macarrão. Eu estava surpreso, mas não bravo. Na verdade, eu estava com medo.
Naquele momento, alguém de um grupo de problemáticos saindo da loja esbarrou
no ombro do homem, e outro tropeçou nele. O homem de sobretudo perdeu o equilíbrio
e empurrou a mesa enquanto caía. O macarrão do Jungkook foi para o chão e o caldo caiu
sobre as suas pernas. Surpreso, Jungkook saltou e tentou limpar as próprias calças. Ele
disse que estava bem e que não tinha se queimado, já que o caldo havia esfriado.
O grupo de encrenqueiros estava indo embora, rindo. O homem no sobretudo sujo
estava olhando para o copo caído, com os dedos na mesa cobertos de macarrão. Não
consegui perguntar se ele estava bem. "Você não deveria se desculpar? Você quem fez
essa bagunça." Eu gritei para os homens. Eles olharam para trás. "Não, não fizemos. Ele
fez. E ninguém disse para você sentar aí. Garotinhos fora de casa a essa hora." Os homens
gritaram de volta.
O homem de sobretudo olhou para mim. Nossos olhos se encontraram. Ele tinha
olhos amarelados e um rosto coberto com marcas da idade. Ele me lembrava alguém.
Alguém que estava sempre bebendo, balançando tudo com seus punhos e vivendo como
um ditador e um perdedor.
O que eu esperava que acontecesse, aconteceu. Eu voei naqueles homens e dois
deles me deram socos. Eu desviei do primeiro soco, mas o segundo raspou pelo meu
queixo. Jungkook tentou intervir e me parar, mas acabou entrando na briga também. As
mesas e cadeiras de plástico estavam todas reviradas e a placa de "Não Estacione" foi
chutada. O funcionário da loja de conveniência já tinha chamado a polícia, como se
estivesse acostumado com tais brigas. Nós ouvimos a sirene um minuto depois. Todos se
levantaram e correram em direções opostas, gritando uns para os outros que foram
sortudos em se livrar dessa.
125
Eu era particularmente bom em escapar. Às vezes, eu me deixava ser pego de
propósito, mas agora não era hora disso. Eu continuei mostrando o caminho, verificando
se Jungkook estava me acompanhando. Um carro prata passou por nós a toda velocidade.
O retrovisor esbarrou no Jungkook. Chocado, ele caiu sentado no chão. Ele acabara de
ter alta do hospital depois de dois meses, por causa de um acidente de trânsito. Era natural
que ele ficasse chocado. O carro parou com uma freada e um dos homens que nos bateu
antes, colocou a cabeça para fora na janela. "Cuidado. Vamos deixar vocês irem dessa
vez. Não vamos ter piedade na próxima." E o carro sumiu com o ronco do motor.
Jungkook lentamente se colocou de pé, segurando em meu braço. Ele parecia
desconfortável, deve ter machucado a perna quando caiu. O interior da minha boca
pulsou. Havia sangue nas costas da minha mão, quando limpei minha boca com ela. "Para
aonde devemos ir?", Jungkook perguntou. "Com essa perna? Nós vamos voltar."
Jungkook começou a andar, dizendo que estava bem. "Olha! Eu estou bem." Eu fiquei ali
parado e assisti Jungkook arrastar a perna.
"Vamos voltar!", eu gritei para ele. Olhei as horas no celular, eram quatro e
cinquenta da manhã. Ainda tínhamos um tempo para matar até que o primeiro ônibus
chegasse. Eu olhei em volta e achei uma pequena colina atrás do distrito de artes. "Você
já viu o nascer do sol?"
Eu apoiei Jungkook em mim, enquanto subíamos a colina. Sentei nas escadas no
final da pequena encosta. Eles dizem que o céu fica no auge da sua escuridão bem antes
do sol nascer, e era verdade. Era impossível ver uma estrela sequer naquele céu
completamente escuro, mas placas de néon em diferentes formatos e cores brilhavam na
cidade lá embaixo. Eu olhei na direção ao norte. Tentei adivinhar o bairro que minha mãe
deveria estar morando agora, sem pista nenhuma. Ali, ela deve estar ali. Ela deve estar
comendo, dormindo e limpando aquele apartamento.
"Jungkook, eu segui minha mãe naquele dia." Jungkook olhou para mim. Eu fixei
meus olhos nas luzes saindo das janelas daquele condomínio. Aquele dia. Aquela noite.
Dez anos atrás, quando minha mãe saiu de casa. Naquela noite, quando mamãe, minha
irmã e eu levamos uma surra do meu pai e choramos até dormir. Eu não conseguia me
lembrar o porquê ele nos bateu tanto, mas eu lembro de pensar: tenho que ir nadar com
meus amigos amanhã, e acho que minha mãe não vai conseguir fazer um almoço para
mim. Será que minha boca cortada vai sarar até amanhã? Senão, eles vão tirar com a

126
minha cara. Meus ombros doem. Eu não deveria ter virado de costas para evitar os socos
dele. Minha irmã está chorando baixinho. Era ainda mais angustiante ouvir isso hoje.
Ainda meio dormindo, eu pude ver minha mãe nos pés da nossa cama, observando.
Ela estava indo embora. Ela estava nos abandonando. Eu soube imediatamente. Eu fingi
que estava dormindo, levantei e a segui. Eu não tinha nenhum plano. Não estava pensando
em ir embora com ela. Não estava me sentindo rancoroso ou com medo. Como seria não
ter uma mãe, como seria viver sem uma – não era algo que você conseguia simplesmente
entender.
Eu a segui por um bom tempo. Pelo que lembrava, eu andei a noite toda. Mas
minhas lembranças devem ser um pouco exageradas, já que eu era só um garotinho
naquela época. Ela não olhou para trás. Nem uma vez. Ela não sabia mesmo que eu a
estava seguindo? Talvez estivesse se forçando a olhar para frente, apenas pelo medo de
ter que me levar junto, se olhasse para trás. "É claro, isso passou pela minha cabeça
depois. Quando eu não conseguia entendê-la. Agora? Eu não sei por que vim tão longe."
"Ei." Levantei minha cabeça com a voz do Jungkook. "Sinto muito." Eu olhei para
ele. "Por que você está se desculpando? Por que sente muito?" "Você não conseguiu ir
ver sua mãe por minha causa", Jungkook respondeu. "Você é um idiota?" Eu fiquei bravo.
Não queria perder a paciência, mas minha voz ficou mais alta automaticamente. As
palavras saíam de qualquer jeito, como se eu não conseguisse falar e não soubesse como
expressar meus sentimentos. "Por que você sente muito? As pessoas deveriam se
desculpar com você. O que você fez de errado? Eu deveria me desculpar por trazer você
aqui. Meus pais, que me fizeram te trazer aqui, deveriam se desculpar. Aqueles caras que
arrumaram briga com a gente, deveriam se desculpar." Eu continuava aumentando minha
voz. "Você é uma boa pessoa. Você é tão bom quanto pode ser. Não é sua culpa. Não é
sua culpa!"
O céu, que parecia ter ficado completamente escuro para sempre, começou a dar
um sinal de luz. A luz que surgia ao longe ofuscava a luz das placas de néon. Nós
assistimos o nascer do sol em silêncio. O sol, grande e vermelho, surgiu sobre o
condomínio. Será que minha mãe está assistindo o nascer do sol também?
Nós sentamos um ao lado do outro no fundo do ônibus na volta para casa. Foi
antes do amanhecer cair sobre nós. A rua estava vazia e o ônibus continuava correndo.
Eu virei minha cabeça para olhar para o norte mais uma vez. Naquela noite. Minha mãe
parou de andar. Ela permaneceu parada ali por algum tempo. Mas ela não olhou para trás
127
também. Se eu tivesse continuado a andar naquela hora, eu a alcançaria. Eu poderia ter
segurado na mão dela e perguntado para aonde ela estava indo, para aonde ela teria ido
depois de nos deixar e quando voltaria. Eu poderia ter chorado, tido um ataque de raiva e
talvez trazido-a de volta para casa. Mas eu só dei meia volta e retornei para casa. Meu
corpo inteiro doía e não consegui ir nadar com meus amigos. Deitei no chão, suando e
tentando dormir. Eu não sabia o porquê.
"É aquele homem de novo." Ao ouvir a voz do Jungkook, eu olhei pela janela. Um
homem de sobretudo cáqui-escuro estava andando sozinho.

128
A direção onde o
sol nasce

129
HoSeok
25 de julho do ano 22

Eu encontrei Yoongi no meu caminho para sala de ensaio, ao voltar do hospital. Eu estava
indo para lá sem perceber e então parei. O que eu poderia fazer lá de qualquer forma?
Meu tornozelo piorou e o médico brigou comigo. "Você não pode forçar seu tornozelo."
Mas eu não podia sentar enquanto trabalhava na hamburgueria. Eu tinha muito que fazer
na sala de ensaio também. "Você tem que tomar cuidado extra com seu tornozelo. Ele já
esteve machucado antes, e pode ficar lesionado para sempre, a não ser que você cuide
muito bem dele." O médico disse isso várias e várias vezes.
Entrei na rua principal, caminhando para casa com minha muleta. Nunca fui para
casa tão cedo antes. Eu nunca perdi um ensaio sem uma razão especial antes. Eu me
deparei com Yoongi. Ele estava bêbado e cambaleando em uma faixa de pedestre, e não
me reconheceu quando passou por mim.
Fixei meus olhos no sinal verde. Dois dias depois da minha visita ao Jungkook no
hospital, eu fui ao estúdio do Yoongi. Ele não atendeu minha ligação, então fui direto ao
seu estúdio. Deve ter sido de manhã, porque foi antes de eu ir para a Two Star Burguer.
Eu bati na porta, mas ninguém respondeu. O som fraco de música passou pela porta.
Pensei em ligar para ele de novo, mas desisti. Eu chutei a porta ao invés disso.
Eu conheço o Yoongi desde o ensino médio. Eu sabia que a mãe dele tinha
morrido, como a morte dela o impactou e como ele teve muitas dificuldades depois. Eu
tentei ser um amigo bom e fiel para ele. Eu ria das palavras rudes dele e o levava para
cima e para baixo, mesmo que ele me achasse irritante. Mas nós não tínhamos importância
para ele. Pensamos que pelo menos com Jungkook seria diferente. Ele com certeza sabia
o que significava para o Jungkook. Ele já estava sabendo do acidente do Jungkook pelo
Jimin, mas não foi ao hospital. E o que é pior, alguns dias atrás, uma mulher que dizia ser
a parceira de música dele, me procurou de repente. Ela disse que me achou depois de
perguntar para muitas pessoas, e disse que não conseguia falar com o Yoongi.
O sinal de pedestre ficou verde e eu comecei a atravessar a faixa, arrastando-me.
Olhei para trás enquanto me decidia se mudava a direção dos meus passos. Eu tentei, mas
não consegui me segurar. Yoongi estava deitado na rua, em frente a uma loja de acessórios

130
de carro. O vendedor gritou com ele e as pessoas que passavam na rua olhavam de cara
fechada.
"Quando você vai parar de fazer isso?" Ele olhou para mim sem expressão. "Você
acha que é o único passando por dificuldades? Você acha que eu coloco um sorriso na
frente dos outros porque minha vida é linda e feliz? Me diga. Com o que você está tão
aborrecido? Todos sabem que você é bom na música, e todos estão dispostos a te ajudar
nisso, mesmo quando você tem suas recaídas. Sim, você pode estar nessa dor desde que
sua mãe morreu. Eu sei. Mas você não pode ficar assim para sempre. Você não vai fazer
música? Você consegue viver sem ela? Você já não ficou feliz, mesmo que só uma vez,
por causa da música? Por que você não foi ver o Jungkook? Não sabe o que você significa
para ele? Não vê que estamos todos sofrendo também? Você não vê isso?"
Eu não queria pressioná-lo assim, mas eu estava muito aborrecido. Não era
completamente por causa dele. Eu estava bravo porque estava de muletas. Lesões eram
inevitáveis, mas também fatais para dançarinos. Eu pensei que estava tendo cuidado, mas
me machuquei em um momento inesperado. Era minha culpa. Eu não podia culpar mais
ninguém por isso. Eu sabia que ficaria nervoso e ciente do meu tornozelo machucado toda
vez que fosse dançar, e isso me faria ficar desanimado. Ou então, eu teria mais uma lesão.
E ainda assim, não conseguia me afastar da dança. Eu não conseguia viver sem dançar.
Eu tinha que continuar dançando mesmo desanimado e machucado.
"É hora de parar de fugir. Se você for fugir de novo, nunca mais volte."
Eu virei e atravessei a rua. "Hoseok." Eu pensei ter ouvido ele me chamar, mas
não olhei para trás. Eu sempre me culpava por tudo que dava errado. Eu sempre pensava
que deveria ter feito isso ou tolerado aquilo. Eu não queria mais viver assim.

131
YoonGi
25 de julho do ano 22

Eu abri meus olhos no meio da noite. Estava chovendo. Palavrões saíram da minha boca
automaticamente, enquanto me levantava do chão. Sentei por um momento. Meu corpo
inteiro estava molhado com a chuva. Eu estava tremendo e com frio.
"Se você vai fugir de novo, nunca mais volte." A voz de Hoseok soou nos meus
ouvidos. Tudo que eu conseguia lembrar, depois de ter saído do hospital onde Jungkook
estava, foi que eu continuei tropeçando, esbarrando em coisas, e caí. Tonto por estar
embriagado, com dor de cabeça, medo e desespero, eu não tinha certeza de quanto tempo
havia se passado ou onde eu estava. Foi então que encontrei o Hoseok. Naquele momento,
me senti emocionado. Era metade felicidade e metade alívio. Por algum motivo, eu
acreditava que ele seria capaz de entender minha confusão e medo, mesmo que eu próprio
não conseguisse me entender.
Mas ele me ignorou. Ele estava fingindo que não me via. Logo, o sinal mudou e
eu fiquei ali parado, olhando-o ir embora. Então alguém me empurrou e eu caí no chão.
Ouvi pessoas gritando e fazendo sons de reprovação para mim.
"Por que você não foi ver o Jungkook? Não sabe o que você significa para ele?"
É claro que eu sabia. E talvez por esta razão, eu não consegui entrar no quarto dele. Eu
era transtornado e intolerante. Qualquer um que tentasse chegar perto de mim estava
destinado a se machucar.
Levantei minha cabeça e olhei para o caminho entre as montanhas. Havia duas
direções. Eu podia seguir por entre as montanhas ou dar meia volta e descer para a cidade.
Comecei a caminhar em direção a floresta escura. Eu sempre apostava minha vida em
caminhos diferentes. Eu não tinha destino. Eu perdia a noção do tempo. Talvez eu
estivesse andando em círculos. Senti como se meus joelhos fossem desistir a qualquer
minuto, por causa do frio e do cansaço. Eu estava sem ar e meu coração estava palpitando
rápido. E se eu desmaiasse aqui e morresse? Bem, se for meu destino morrer aqui, então
é aqui que vou morrer. Eu desisti de tudo.
Gotas de chuva caíam em meu rosto. Mesmo com os olhos abertos, tudo estava
escuro, como se eles estivessem fechados. Eu estava me afogando em camadas de
escuridão. Eu pensei na morte de novo e de novo. Eu queria escapar dos medos e desejos

132
que me assombravam. Eu queria ficar o mais longe possível daquele objeto aterrorizante,
para qual eu era atraído, mas que não conseguia olhar diretamente, daquela agonia que
me levava de um extremo a outro. Agora deve ser a hora. Era para o bem de tudo e todos.
Eu causava dor nos outros enquanto sofria uma dor ainda maior. Eu ignorei as
feridas deles. Eu não queria tomar nenhuma responsabilidade para mim. Eu não queria
me envolver. Era quem eu era. Este momento deve ser uma bênção para todo mundo. Eu
pisquei devagar e comecei a adormecer. O frio, a dor e o cansaço desapareceram, e fiquei
indiferente a toda escuridão, a luz e ao meu redor. Tudo ficou turvo.
Abri meus olhos novamente com o som de um piano. Estava silencioso, exceto
pelo som da chuva caindo e as folhas balançando. Em meio ao silêncio, os frágeis e
delicados sons de um piano continuaram a chegar até os meus ouvidos. Tinha alguém
tocando o piano nas montanhas a esta hora da noite? Eu pensei que era uma alucinação,
mas o som continuou.
Eu sorri. Era aquela melodia. Aquela melodia à qual eu tentei me lembrar várias
e várias vezes. Aquela coisa tão importante que estava faltando, que me fez ficar acordado
a noite toda por dias a fio. Por que estava aparecendo para mim agora, dentre todas as
ocasiões? Eu me concentrei mais, mas quase não conseguia ouvir a melodia, estava
distante e sendo interrompida pela chuva. Eu comecei a tossir.
Tentei me levantar, mas parei. O que eu faria agora, mesmo se conseguisse
reconhecer a melodia? O que mudaria se eu conseguisse completar minha música? Eu
nunca quis ser reconhecido pelos outros, receber aplausos ou ser famoso. Eu nunca quis
me provar. Então, o que significaria completar essa canção?
Mas me forcei a levantar do chão e andei na direção de onde o som estava vindo.
Eu estava cambaleando e meu corpo tremia. Meu rosto e mãos estavam adormecidos. Eu
não conseguia sentir minhas pernas. Nenhuma das partes do meu corpo parecia estar sob
meu controle, mas eu dei passos firmes, um de cada vez, para me aproximar da melodia.
Gotas pesadas de chuva acertavam minha cabeça. Minha camiseta estava
pingando. Cada junta e músculo do meu corpo pareciam gritar. Minhas pernas tremiam
tanto que eu não conseguia levantar meu pé do chão. Meus pés deslizavam na grama
molhada e galhos espinhosos raspavam nos meus ombros. Eu me senti congelado até o
âmago e quase desmaiei. Meus passos diminuíam. A melodia que saía do piano ficava
cada vez mais baixa com cada passo que eu dava.

133
No mesmo instante, eu aumentei a velocidade dos meus passos para encontrar a
fonte da música, antes que ela parasse. Eu estava com medo de que, se ela parasse, eu
nunca mais fosse capaz de escutá-la novamente. Eu continuei andando, incapaz de ver a
trilha de caminhada na montanha. Fui acertado por alguns galhos que caíram. Então, de
repente, meus joelhos dobraram e eu caí. Eu estava tão sem ar, que senti como se fosse
vomitar. Todos os meus sentidos voltaram, e senti frio, cansaço, e meus arredores eram
estranhos, porque eu estava bem no fundo da montanha. Enquanto eu aumentava meus
passos mais e mais, e batia em mais galhos, e meus pés escorregavam ainda mais, o som
do piano ficava mais alto. Quanto mais forte a dor, mais o som aumentava.
Eu finalmente parei, depois de andar sem direção, na chuva, por horas. A melodia
estava ainda mais clara. Explodia na minha cabeça, combinando com o que eu estava
compondo até alguns dias atrás. Cobri minha cabeça com os dois braços e caí de joelhos.
Estava mais para um instinto do que uma música. Isso estimulou minha dor, ao invés da
minha audição. Era uma combinação de sofrimento, esperança, felicidade e medo. Era
tudo do que eu estava tentando tanto me afastar.
De repente, a cena de uma tarde ensolarada apareceu na frente dos meus olhos. Eu
estava tocando uma música no piano do meu estúdio. Era aquela melodia que estava na
minha cabeça. "Parece muito bom." Jungkook se aproximou. Eu ri. "Você sempre diz
isso."
Não era só uma melodia. Era uma combinação de várias lembranças. Dos dias em
que eu costumava brincar e apertar as teclas do teclado quando criança. Dos dias em que
meus amigos dançavam em sincronia com a minha apresentação na sala de aula
abandonada. Dos dias nos quais eu ficava acordado a noite toda, escrevendo músicas e
respirando o ar refrescante da manhã. Meu piano estava do meu lado em todos os
momentos de felicidade. Essas lembranças felizes sempre acabavam em pedaços, mas
não podiam ser negadas.
O que significaria completar essa música? Eu ainda não conseguia encontrar a
resposta. Mas tinha algo que vinha antes dessa pergunta e da resposta para ela. Eu queria
capturar tudo isso antes que se transformasse em pedaços. Não era para agradar ninguém
ou provar algo. Não era nem mesmo para mim. Eu só queria guardar essa emoção, dor e
medo, às quais estavam quase explodindo na minha cabeça e no meu coração, com a
música. Não precisava ser o sinal do começo de algo. Não precisava significar alguma
coisa. Eu só queria completar essa música.
134
O som do piano já não podia mais ser ouvido. A chuva estava passando aos
poucos, mas meu corpo estava tremendo sem parar. Eu fechei meus olhos e senti tudo ao
meu redor. As gotas de chuva, que caíam na minha bochecha, pingavam no chão e fluíam
como um riacho, o vento gelado, o cheiro da terra, o som do vento nas árvores. E a minha
respiração. Quando me levantei, a placa do caminho para as fontes termais estava logo à
frente. Eu pensei que tivesse andado mais a fundo na montanha, mas eu voltei para onde
comecei, e o caminho ainda se dividia em duas direções opostas. Eu comecei a andar em
direção aonde o sol nasce.

135
JiMin
28 de julho do ano 22

Dei uma olhada no Two Star Burguer. Hoseok não estava lá. Fazia quatro dias desde a
última vez que ele apareceu na sala de ensaio. Alguém me disse que ele contou para minha
parceira de dança que ia tirar uma folga, mas depois disso não atendeu nenhuma ligação.
Ele nem mesmo leu as mensagens no chat em grupo do Just Dance.
Eu sabia que o tornozelo machucado estava sendo um incômodo para ele. Talvez
tenha sido naquela noite. Na noite quando minha parceira de dança se machucou por
minha causa. Estava chovendo, e ele carregou ela em suas costas até o hospital debaixo
da chuva. A situação deve ter piorado.
Enquanto entrava no restaurante, os funcionários me cumprimentaram. "Hoseok
está de folga hoje?" Eles disseram que ele estava de licença, provavelmente por três
semanas, mas não tinham certeza. O tornozelo dele piorou. Ele tinha de usar uma muleta
e o gerente sugeriu que ele tirasse uma folga.
Eu corri direto para a casa dele. Eu não podia esperar pelo ônibus, então subi
correndo a ladeira. Estava muito quente aquele dia. Minhas costas estavam pingando de
suor. Eu me apressei pelas escadas até o quarto no telhado. A maçaneta, exposta na luz
do sol, estava queimando. A porta estava trancada. Eu deixei uma mensagem no nosso
chat em grupo. "Onde você está, Hoseok?" Até o final do dia, ele ainda não havia
respondido.

136
YoonGi
28 de julho do ano 22

Eu pude, finalmente, conseguir levantar pela tarde. Eu sofri com diversos resfriados por
dois dias, após descer da montanha. Não conseguia me lembrar de detalhes desses dois
dias. Eu tremia e me arrepiava com a febre. Às vezes, minha consciência voltava, mas,
rapidamente, eu me perdia de novo.
Meu lençol estava ensopado. Ainda me sentia tonto. Pisei fora do meu estúdio,
tentando me manter em pé. Eu fui ao hospital, para receber remédios pela veia e, então,
empanturrei minha boca com comida. Mas eu vomitei tudo de volta. Eu li a mensagem
de Jimin, enquanto estava enxaguando minha boca no banheiro. Mesmo o número ao lado
da mensagem ficando menor, não tinha respostas.
Eu andei ao longo da ferrovia e cheguei na parada de ônibus. Havia um edifício
não finalizado ao longe. A construção tinha sido interrompida há meses. A loja de música
era um pouco acima da ladeira, depois de passar por aquele edifício. Eu não tinha energia
para me abaixar, pegar uma pedra e a jogar. A coisa toda parecia como um passado
distante e isso me fez imaginar se tal coisa realmente havia ocorrido. Eu conseguia ver
um piano pela vitrine.
“Você não vê que todos estamos sofrendo também? Você não vê isso?” Foi o que
Hoseok disse no outro dia. As memórias daquele dia estão todas misturadas na minha
cabeça. Mas eu distintamente lembrava que Hoseok era, de algum modo, diferente. Não
era a primeira vez que Hoseok estava bravo comigo. Ele nunca esteve em tal limite, mas
ele sempre me empurrava, puxava e encorajava todas as vezes que eu caía. Por que eu me
sentia diferente?
Eu abri a mensagem de Jimin novamente. “Onde você está, Hoseok?” Diversas
horas se passaram, mas Hoseok não respondeu. Eu conseguia ver que o tinha
decepcionado. Era como se algo dentro de mim estivesse caindo e golpeando ao redor.
Hoseok, frequentemente, ficava bravo e nos afastava. Mas ele nunca tinha recaído ao
silencio ou olhado para o outro lado. Ele era quem sempre pavimentava o caminho para
eu voltar, não importava o quão longe eu tivesse ido. Não desta vez. Desta vez, parecia
irreversível.

137
NamJoon
7 de agosto do ano 22

Eu liguei a luz e olhei a folha que estava pendurada na porta do meu contêiner. Lia-se
“redesenvolvimento” e “demolição”. As pessoas devem estar falando sobre o
redesenvolvimento desta área novamente. Sempre existiu uma conversa sobre acabar com
os contêineres alinhados com a ferrovia e os edifícios que estão ocupados por sem-teto
do outro lado da ferrovia. Eu amassei a folha e a joguei na lata de lixo. A conversa sobre
redesenvolvimento não começou ontem. Mas sempre fervorava, como se a demolição
fosse ocorrer no dia seguinte, e então tudo se acalmava depois de pouco tempo.
Eu coloquei minha mochila no chão. Fazia um tempo após o pôr do sol, mas o
contêiner ainda estava quente. Eu passei todas as noites aqui depois que visitei Jungkook.
Sentia-me exausto. Meu nariz sangrava de tempos em tempos, quando eu estava lavando
meu rosto. Mas eu sempre vinha aqui, ao invés da pequena sala atrás do posto de gasolina.
Ninguém mais abriu aquela porta e entrou aqui. Talvez ninguém nunca fosse.
Todos que se encontram devem se separar, sem exceção. Poderia ter sido nossa vez. Mas,
se alguém ainda sentia a necessidade de “nós” estarmos juntos, eu queria mandar um sinal
de que eu estava aqui. Eu queria os mostrar que nosso esconderijo ainda estava aqui, e
ainda estava iluminado.

138
TaeHyung
11 de agosto do ano 22

Eu saí da loja de conveniência depois de terminar o meu turno. Eu, habitualmente, pegava
meu celular, mas não tinha ligações perdidas ou mensagens. Estava anoitecendo e a rua
estava cheia de pessoas ocupadas andando. Eu coloquei ambas as mãos nos bolsos e
comecei a andar. Um vento abafado varreu a estrada. Eu comecei a suar depois de dar
poucos passos. O quanto mais este verão duraria? Eu chutei o chão, frustrado.
Eu continuei andando, com minha cabeça baixa, e parei em frente à uma parede
familiar. Era a parede que aquela garota desenhou seu primeiro grafite. Eu,
automaticamente, olhei ao redor. Desde aquela noite, quando eu a deixei no beco e saí em
frente as luzes do carro de patrulha sozinho, eu não tinha a visto na minha vizinhança.
Eu descobri um grande “X” pintado por cima do grafite dela, quando eu tentava
rastrear suas marcas. O que isso significava? Várias imagens foram sobrepostas ao grafite
de “X”. A imagem dela rindo para mim quando eu tentei deitar na ferrovia e bati minha
cabeça, e como ela me colocou de pé quando eu a ajudei escapar e caí, como ela perdeu
seu temperamento quando peguei seu pão e o comi, como ela parecia triste toda vez que
passava pelo estúdio de fotos com imagens de famílias na vitrine. Eu disse a ela, enquanto
grafitamos esta parede, lado ao lado: “Não acho que você tem que carregar o fardo
sozinha. Compartilhe com os outros.” O “X” gigante foi pintado por cima de todas essas
memórias. Parecia gritar que elas eram falsas. Que era tudo mentira. Eu nunca mais olhei
para esta parede desde aquele dia.
Eu estava prestes a me virar, quando eu descobri uma frase pequena escrita em
uma letra menor ainda, embaixo do “X”. Não é culpa sua foi riscado na parede. Foi aquela
garota. Eu não vi ela escrevendo, nem reconheci a sua caligrafia, mas eu apenas sabia.
“Não culpa sua.” Foi aquela garota.
Eu me lembrei do dia em que eu, cegamente, parti para encontrar minha mãe. Eu
continuei andando freneticamente, cheio de ressentimento, mas, no final, não consegui
fazer nada naquele dia. Enquanto eu estava andando para casa, sem nada nas mãos, eu
virei minha cabeça na direção da cidade em que ela vivia. A cidade estava acuada embaixo
da luz do dia, amanhecendo no leste. Eu senti vontade de chorar. Alguma coisa que eu
estava firmemente agarrando parecia estar escapando pelos meus dedos. Sentimentos

139
difíceis silenciosamente se desfizeram. Senti-me triste e aflito, como se eu tivesse
desistido de algo que eu não deveria estar desistindo.
“Não culpa sua.” A frase me lembrava de como me senti naquele momento. Eu
comecei a andar de novo. Eu passei por becos estreitos e subi e desci ladeiras incontáveis.
Finalmente, minha casa, Mansão Magnolia, apareceu. Eu subi as escadas. Quando parei
em frente à porta, pude ouvir a respiração pesada do meu pai e o ressoar de taças de vidro.
Eu me virei, coloquei as mãos no corrimão e olhei para fora. O sol já tinha se posto. Sua
cor turva vermelha estava desaparecendo do céu que estava escurecendo. “Não culpa
sua”, eu murmurei. Respirei fundo, me virei e entrei em casa.

140
HoSeok
12 de agosto do ano 22

Alguém esbarrou em meu ombro quando eu saí do trem. Derrubei o bilhete que estava
segurando. Ele caiu na trilha do trem e escorregou entre as fendas. Eu olhei ao redor. Era
o meio do verão quando fui embora, e ainda é verão. O trem partiu para a próxima estação,
movimentado o vento.
No final do mês passado, deixei Songju em um trem saindo desta plataforma. Eu
assisti a cidade desaparecendo pela janela. Até onde eu conseguia me lembrar, sempre
morei em Songju. Eu nunca tinha deixado a cidade e nunca imaginei viver em outro lugar.
Eu ia à hamburgueria e ao estúdio de dança, como estava no meu cronograma. Depois de
dançar por horas, eu ia para casa e dormia. Mesmo sendo uma cidade pequena, em Songju,
eu tinha lugares que precisava ir, lugares que eu precisava estar.
Depois que meu tornozelo foi ferido, minha rotina diária mudou. Eu fui ao
trabalho e ao estúdio de dança usando um imobilizador no tornozelo. A condição do meu
tornozelo piorou. Com um imobilizador que pegava meu tornozelo inteiro, tive que pedir
licença médica. Eu tinha três semanas cheias de nada. Três semanas sem trabalho, sem
dança e sem nenhum lugar que eu precisava estar.
Eu consegui passar pela manhã do primeiro dia. A chuva, que caiu pela noite,
parou pelo amanhecer. Eu limpei a casa e organizei minhas roupas. Eu cortei meu cabelo
e sequei a água da chuva que estava no banco em frente à minha casa. Mas eu não tinha
mais nada para fazer durante a tarde. Meu telefone não tocava. Algumas mensagens dos
meus colegas de trabalho e membros da Just Dance foram tudo que recebi. Ainda
nenhuma ligação ou mensagem dos outros. Pensando nisso, eu era sempre o que entrava
em contato com os outros primeiro. Deixei meu celular de lado. Eu não queria chamá-los
primeiro desta vez. E se nenhum deles mandar uma mensagem? Então, que seja. Eu me
lembrei de como encontrei Yoongi na noite anterior. As coisas que eu disse sem pensar
estavam repassando na minha mente. Eu me levantei e gritei ao ar: “Ele nem vai se
lembrar mesmo!”
O caminho para casa pareceu mais longo do que o normal, depois que eu deixei
Yoongi lá. Eu tinha que subir as ladeiras com muletas. Mesmo que o sol tivesse se posto,
o ar parecia abafado. Também estava úmido. Eu estava ensopado de suor quando cheguei

141
em casa. Não me arrependia do que havia dito ao Yoongi. Era hora dele parar de ter pena
de si mesmo. Mas aqueles momentos, aquelas palavras, continuavam voltando.
No telhado, eu conseguia olhar para a cidade sem mim. O trem estava passando
pelo centro da cidade e desaparecendo no canto ao pé da montanha. Sem cuidado, joguei
minhas roupas em uma mala e fui em direção à estação. Procurei na lista de cidades em
frente à bilheteria e escolhi a cidade grande mais próxima. Pensei que seria melhor me
mudar para uma cidade grande. E, desse modo, fui embora de Songju.
Saí do trem depois de duas horas. Ao sair da estação, eu me vi em uma intersecção
movimentada. Filas de edifícios altos e pessoas andando ocupadas embaixo do sol
brilhante apareceram. Eu peguei o primeiro ônibus que parou na minha frente.
“Onde eu deveria descer?” O motorista me olhou como se eu estivesse falando
algo sem sentido algum. Um passageiro que pergunta seu próprio destino? Sim, eu devo
ter parecido estúpido. Depois de vinte minutos, o ônibus chegou em um bairro que parecia
ser uma parte velha da cidade. Eu coloquei minha mala no chão em um quarto pequeno
que era anexado a um mercado com uma placa de “hospedaria”. Saí do lugar. Eu não
conseguia dizer qual direção era qual.
Eu apenas vaguei pelo bairro pelos primeiros dois dias. Não havia edifícios altos,
nem um distrito comercial cheio de luzes. Era parecido com o meu bairro, onde meu
quarto no telhado ficava, em uma ladeira. Eu tinha escolhido deixar Songju, pela primeira
vez na minha vida, e havia chegado em outra Songju. Talvez essa fosse a razão. Eu tentei
não pensar na cidade e nas pessoas que deixei para trás, mas perdi o controle. Eu liguei
meu celular e pensei nos outros. Eu podia ter deixado Songju, mas minha mente ainda
estava lá.
No terceiro dia, decidi me aventurar mais longe. Mas em menos de vinte minutos
meus ombros começaram a endurecer com as muletas embaixo deles. Suor corria pelas
minhas costas, embaixo do sol escaldante. Um edifício de tijolos vermelhos apareceu a
vista. Era o “Salão Cultural” da cidade. Enquanto eu apertava o botão na máquina
automática de vendas, a porta do auditório se abriu e várias pessoas saíram. O som da
música correu pela porta aberta. Eu conseguia ver um homem se alongando no canto do
palco, com os holofotes iluminando sua cabeça.
Antes que pudesse perceber, eu já estava entrando no auditório. Quando fechei a
porta atrás de mim, fiquei sozinho no escuro e na música. Eu me sentei no primeiro
assento que vi. O som da música fluiu pelo ar, como ondas. O homem no palco se movia
142
devagar e alongava suas pernas, tornozelos, braços, pescoço e ombros. Seu alongamento,
que durou um tempo, parecia parte de uma coreografia. E então, a música parou. O
homem, que estava sentado no chão, levantou-se e andou até o centro do palco. O palco
ficou imerso em silêncio por um tempo.
A música começou novamente. Desta vez, era algo abundante. O homem
aumentava e diminuía a velocidade dos seus movimentos, conforme o ritmo da música.
Seus braços e pernas formavam não apenas linhas diretas e curvas, mas também formas
com três dimensões. Um momento levava ao outro, guiados por seus movimentos e gestos
dinâmicos. Seus movimentos estavam criando uma história que parecia não ter fim. Ele
empurrou o ar para o lado com suas mãos e criou reverberações no chão, o que enviou
adrenalina não para meus olhos, mas para a minha mente.
O tom da música ficou cada vez mais baixo e levou o homem a ter uma explosão
de emoções. Ele rugiu com raiva com toda sua grandeza, respirou fundo e olhou para algo
longe. Seu sofrimento, esperança, alegria e medo apareciam sem filtro. Sentimentos que
eu nunca tinha experimentado antes jorravam e se movimentavam dentro de mim.
Eu não sabia quanto tempo havia se passado. As luzes do auditório se acenderam.
Eu apenas fiquei sentado ali, sem reação.
Alguém se aproximou e me pediu para sair, porque os dançarinos estavam
ensaiando. Pessoas de fora não eram permitidas. O pôster da performance da academia
de dança estava pendurado na entrada do salão cultural. O homem que estava no palco
não aparecia nele. A performance estava marcada para acontecer depois de amanhã.
Eu voltei para a hospedaria e me deitei no banco largo do quintal. Fechei meus
olhos e pensei sobre aquelas horas no auditório. Era minha primeira vez vendo uma
performance ao vivo. Era uma experiência totalmente diferente do que eu tinha visto pela
pequena janela chamada YouTube. Talvez eu tenha ficado mais boquiaberto porque foi
tão real e emocionante. Eu remontei cada movimento e gesto que fez meu coração bater
mais forte.
Naquele momento, meu celular tocou no meu bolso. “Onde você está, Hoseok?”
Era uma mensagem do Jimin. O número ao lado da mensagem desceu aos poucos, mas
nenhuma outra mensagem foi recebida. O que eu deveria dizer? Eu tinha sempre me
explicado com brincadeiras, mas não queria fazer isso desta vez. Foi a primeira vez que
não respondi uma mensagem direcionada a mim. Nosso chat em grupo caiu no silêncio.

143
Fui ao auditório no próximo dia, no mesmo horário. Escondi-me na escuridão e
assisti os movimentos do homem. Era a mesma performance, mas passava uma história e
emoções diferentes. Quem era ele? Como ele podia expressar seus sentimentos desse
jeito? O ensaio terminou. Quando pisei no corredor, encontrei o olhar do homem enquanto
ele estava conversando com os membros da equipe de funcionários. Sem perceber, curvei-
me. Um dos membros da equipe veio até mim e disse: "Oh, você é o cara de ontem".
A apresentação aconteceu no próximo dia, mas o homem não estava nela. A
performance, que tinha quatro partes, não contava com sua participação. O show durou
por mais de uma hora e eu aplaudi e torci diversas vezes do meu assento. Mas era isso.
Eu não poderia reviver aquele momento esmagador que ferveu meu coração e congelou
meu corpo. Nada disso se comparava aos movimentos incríveis dele. Por que ele não se
juntou à apresentação? Andei ao redor do palco depois da apresentação, mas só tinham
membros da equipe e dançarinos ocupados se arrumando.
Encontrei os membros daquela academia de dança novamente na estação de trem.
Eu estava na plataforma para ir para outra cidade e vi um grupo de pessoas juntas. Eles
estavam, obviamente, com problemas para carregar peças do palco e equipamentos de
todos os tamanhos para dentro do trem. Eu não tinha um propósito decidido quando me
aproximei e os ajudei. Eles apenas pareciam confusos e inexperientes e eu estava
acostumado em ajeitar e mover coisas. Minha muleta tentou me parar, mas eu era melhor
do que a maioria deles, que estavam apenas parados e envergonhados. "Você é aquele
cara de novo." Eu olhei ao redor e vi aquele mesmo membro da equipe deles.
"Eu nem te agradeci direito." Ele veio até meu assento, antes do trem partir. Ele
se sentou no assento ao meu lado e me contou que quase metade dos funcionários tinha
ido embora porque as coisas tinham se complicado. Ele disse também que não teriam
conseguido carregar tudo no trem sem a minha ajuda. Ele apontou para minha muleta e
perguntou se não foi muito esforço para o meu tornozelo e eu apenas disse que não.
"Falando nisso, o homem que vi no ensaio. Por que ele não estava na
apresentação?" Ele me pareceu confuso por um momento. E então afirmou: "Ah, ele. Ele
é nosso diretor artístico." A explicação sobre o homem continuou. Como antes ele era um
dançarino aclamado, como ele tinha sofrido com uma terrível lesão, como ele passou anos
de desespero e frustração. "Você sabe qual é a parte mais incrível? Ele surpreendeu a
todos e voltou como coreógrafo e diretor." Mas aquela lesão deixou um impacto para

144
sempre. Ele não conseguia se apresentar nos palcos novamente. O membro da equipe ao
meu lado suspirou alto. Estava começando a ficar escuro lá fora.
Eu acabei me juntando a eles na turnê por coincidência. Eu os ajudei a descarregar
suas bagagens na próxima estação e minha mala acabou se misturando com as deles no
processo. Felizmente, eu tinha o número de um dos funcionários. Eu desci na próxima
estação e voltei para a estação em que eles saíram, indo para o alojamento deles. Era tarde
da noite. Fui convidado para passar a noite com eles. Tomamos café da manhã juntos na
manhã seguinte e me juntei a eles para ir ao Centro Cultural daquela cidade, que era o
próximo local onde se apresentariam.
A proposta de me juntar a eles e ir em turnê deve ter sido feita em parte como uma
brincadeira. Eu também aceitei brincando. Naquele momento, o ensaio começou. Eu
assisti sem expressão, e então os perguntei: "Eu posso realmente ir com vocês?"
Fui em turnê com eles por três cidades. Nós pegávamos um ônibus ou trem,
saíamos, desfazíamos nossas malas em um motel, enchíamos nossas bocas de comida,
checávamos o palco no local que aconteceria a performance, voltávamos para o motel e
pegávamos o ônibus ou trem novamente. O homem se alongava e praticava todos os dias,
não importava onde estava. Ele nunca pulava um dia, mesmo não se apresentando no
palco.
Eu fiz amizade com os membros da equipe e com os dançarinos. Suas danças e a
minha eram diferentes, mas compartilhávamos a paixão em expressar o que sentíamos
pelos movimentos. Nós falávamos sobre dança no trem e enquanto esperávamos pelo
ônibus. Contávamos uns aos outros sobre nossos dançarinos preferidos e assistíamos seus
vídeos juntos.
Finalmente, pude falar com aquele homem, quando eu estava mostrando a um
staff um vídeo do Just Dance praticando.
“Você é um dançarino?” Eu olhei ao redor e ele estava parado lá. Eu me levantei,
inclinei-me um pouco. Olhei para o homem. Eu estava perdido em como responder sua
pergunta. Eu estava hesitante em admitir na frente dele que eu também era um dançarino.
“Você é um dançarino”, ele disse, apontando para mim no vídeo. Foi assim que eu
comecei a falar com ele. “Por que você gosta de dançar?” Eu gaguejei nervosamente no
final da minha frase. “Bem, isso é... você sabe...” O homem me perguntou quando eu
comecei a dançar. Eu contei que foi em um show de talentos na escola, quando eu tinha
12 anos.
145
Meus amigos de classe me arrastaram até o palco. Meu corpo começou a se mover
automaticamente. Eu fiquei ainda mais animado com as palmas e torcida da audiência.
Eu não conseguia mais pensar em nada. Eu apenas me movi espontaneamente. Depois
que a música terminou, eu olhei para frente, passei meus dedos pelo meu cabelo molhado
com suor. Eu senti como se fosse vomitar todos os nós que estavam prendendo meu
coração. Senti-me novo e com um senso de gratidão. Levei um longo tempo para perceber
o quão emocionante era e que esse sentimento não vinha do aplauso da audiência, mas
sim de dentro de mim mesmo.
O homem apontou para mim no vídeo e disse que gostou dos meus movimentos.
“Nem todo dançarino consegue se mexer assim.” Assisti a mim mesmo no vídeo. Eu
gostava de como eu parecia quando dançava. Eu conseguia voar pelo ar e me libertar dos
olhos e amarras do mundo. Nada era importante para mim, exceto mover meu corpo com
a música e comunicar meus sentimentos por meio do meu corpo. Fora do palco, eu estava
preso por muitas coisas. Eu não conseguia permanecer no ar com meus pés foras do chão.
Eu tinha que sorrir e rir mesmo quando eu estava chateado e triste. Eu costumava
desmaiar na rua, tomando medicamentos que eu não precisava. Havia momentos em que
eu conseguia revelar quem eu verdadeiramente era. Momentos quando eu acreditava que
podia ser feliz de novo. Momentos em que eu podia largar tudo que me colocava para
baixo e voar alto. Momentos que eu podia alcançar alturas inimagináveis fora do palco.
Dançar me proporcionava esses momentos.
“Ouvi que você superou uma lesão muito séria.” O homem me encarou. Eu sabia
que estava sendo grosso, mas eu tinha que perguntar isso. Ele olhou para minha muleta e
abriu sua boca.
“Altura é importante, mas a profundidade também. Você tem que chegar no seu
ponto mais baixo. Você tem que afundar até não conseguir mais, até sentir que vai sufocar
em seu próprio desespero. E então você tem que escapar disso. Descobrir sua força motora
é crucial nesses casos. Em outras palavras, você tem que descobrir o que te faz ficar de
pé novamente. E quando você descobrir, nunca deixe ir embora. Pode ser uma pessoa ou
um desejo. Pode até ser mau e nojento. Mas se prenda a isso.”
Essa foi nossa primeira e última conversa. A turnê continuou, mas não tive outra
chance de conversar com ele. Eu o assistia praticar todos os dias e pensava profundamente
sobre o que ele disse. Meu desespero mais sombrio. O que me faria ficar de pé novamente
diante daquele desespero?
146
“Você vive em Songju? O diretor também é de lá”, um dos membros da equipe
me disse, quando eu estava olhando um panfleto promocional no lounge da estação de
trem. O festival de fogos de artifício na costa de Yangjicheon, em Songju. 30 de agosto.
Até onde me lembrava, eu tinha assistido o festival todos os anos. Acontecia no final de
cada verão. Quando eu estava morando no orfanato, todos nós subíamos no telhado e
assistíamos os fogos de artifício aparecendo ao anoitecer e desaparecendo. Depois que fui
embora do orfanato, eu vivi no andar mais alto de um complexo de casas, onde várias
famílias moravam, no bairro mais alto de Songju. Era o lugar perfeito para assistir os
fogos de artifício. Mesmo sendo longe do lugar de exibição, tinha uma vista ampla e sem
interrupções.
“Você mudou de ideia de repente?”, o funcionário me perguntou um dia. Foi ele
que sugeriu que eu me juntasse a eles dias atrás. “Nós te achamos confiável e talentoso.”
O resto da equipe concordou com entusiasmo. Alguns até aplaudiram. Eu quase aceitei.
Eu tinha me apegado a eles, sem perceber. Sair em turnê era um trabalho árduo, mas eu
aproveitei todos os momentos, até quando me deitava na cama de noite, reclamando e
lamentando. Meu tornozelo sarava enquanto eu trabalhava com eles e presenciava mais
apresentações. Talvez eu conseguisse fazer um teste para ser selecionado como membro
oficial e conseguisse subir no palco também. Talvez eu pudesse receber treinamento
daquele homem e aprender mais sobre profundidade. Eu tinha começado a pensar que
talvez fosse este o lugar ao qual eu pertencia. Eles me disseram para pensar mais um
pouco, e eu dei a minha resposta na noite anterior. Eu os agradeci por sua sugestão e o
falei que tinha que voltar. “Você tem certeza?”, aquele funcionário me perguntou
novamente. Pegando minha mala, eu respondi: “Eu tenho que voltar para retirar o
imobilizador do meu tornozelo.”
Eu entrei no trem do lado oposto, que me levaria de volta para casa. Eu chegaria
em Songju em duas horas. Senti-me animado. Eu ainda não havia chegado no meu ponto
mais profundo psicologicamente. Talvez isso nunca aconteça. Mas eu tinha pensado sobre
alguns momentos depois da conversa que tive com o homem. “Eu não vou te procurar
nunca mais. Viva sua vida e nunca mais volte.” Talvez Yoongi tivesse atingido seu limite
naquele dia. “Hoseok.” Eu me virei e continuei a andar, e ele me chamou. Eu não olhei
para trás. Eu o abandonei quando ele estava sufocando em seu próprio desespero. Eu fugi.
“Você está bem?” Eu enviei essa mensagem depois de muita hesitação. A
lembrança daquele dia estava pesando em mim cada dia mais. A mensagem de Jimin
147
ainda estava no chat. “Onde você está, Hoseok?” Eu enviei a mensagem para o Yoongi
em outro chat, com apenas nós dois.
Sua resposta chegou pelo amanhecer. Eu acordei assustado com a vibração do
meu celular. O nome do Yoongi apareceu na tela. Ele me mandou um arquivo de música.
Eu coloquei meus fones de ouvido e dei play no arquivo. Eu ouvi sua música com meus
olhos fechados, deitado na cama. Era bonita e muito diferente das outras músicas que ele
já tinha feito. Alegria e desespero inseridos na tristeza, e um mar azul se movimentando
além do deserto. Flores desabrochavam e murchavam, e notas saltavam e caíam no
mesmo instante. Parecia muito com o Yoongi.
Eu perguntei a ele qual era o nome da música, mas ele me respondeu com outra
pergunta. “Quando você vai voltar?”
A estação de trem era calma ao meio-dia. As pessoas estavam carregando grandes
malas ao descer a plataforma para pegar o próximo trem. Eles me lembravam do dia em
que fui embora. Eu estava usando as mesmas roupas que tinha usado naquele dia, e
carregando uma mala com o mesmo peso, mas meu tornozelo devia estar sarado. Não foi
a única coisa que tinha se curado. Eu abri o nosso chat em grupo no celular e enviei uma
mensagem. “E aí, meus amigos! Estou de volta! Como vocês estão?”

148
HoSeok
13 de agosto do ano 22

Eu entrei na sala de ensaios do Just Dance pela primeira vez em muito tempo. Encontrei
o som pulsante da música, o ar com cheiro de suor e a sala cheia de adrenalina. Meu
coração vibrava toda vez que eu vinha aqui. Depois de uma rodada de cumprimentos altos
e cheios de barulho dos membros, sentei-me contra a parede e os assisti ensaiar. Quando
eu seria capaz de dançar novamente? Eu estava animado e impaciente. Eu pensei na dança
daquele homem. Eu seria capaz de dançar como ele algum dia? Naquele momento,
alguém se aproximou e sentou ao meu lado.
Era aquela garota. Ela deu batidinhas no meu ombro, sorrindo, e disse: “Por onde
você andou? Estava se divertindo sozinho?” No reflexo do espelho, estávamos sentados
um ao lado do outro, apoiados na parede. “Como você está?” Ela fez uma expressão que
parecia me repreender pela pergunta retórica. Eu continuei ainda me olhando no espelho.
“Já te contei sobre minha mãe?” Eu já devia ter repetido isso umas cem vezes, mas ela
sempre ouvia minha história com entusiasmo. “Ela deve estar vivendo feliz em algum
lugar, não é? Então eu estou bem. Mesmo se nunca nos encontrarmos novamente, está
tudo bem se estivermos felizes.”
Ela me encarou. “E eu pensei que você parecia com a minha mãe. Mas você não
parece. Levei um tempo para perceber isso.” Ela parecia confusa. Eu ri e continuei a falar.
“Então, quando você vai embora? Não, não era isso que eu ia dizer. Parabéns. Era
seu sonho”. Ela abaixou a cabeça e a levantou de novo. “Sinto muito, eu deveria ter dito
antes.” “Se você sente muito, me compre comida. Vou te fazer uma festa de despedida
muito legal depois.”
Eu dei um grande sorriso e fiz barulho para ela. “Vamos nos encontrar novamente
algum dia, como dançarinos famosos. Trabalhe muito, porque não vou deixar você ser
melhor que eu”. Ela concordou com a cabeça. No reflexo do espelho, estávamos sentados
um ao lado do outro, apoiados na parede.

149
SeokJin
15 de agosto do ano 22

Eu a vi pela primeira vez perto da ferrovia. Foi aproximadamente um mês atrás, em um


dia que eu tinha muito em minha mente. Fui ver Jungkook no hospital, mas fiquei lá por
apenas dez minutos. Quando eu estava lá, raramente conversava com Jungkook. Por
alguma razão, ele estava tenso e mantinha uma guarda alta comigo. Nenhuma mensagem
foi postada em nosso chat em grupo. A mensagem de Hoseok, a qual ele dizia que não
iria mais manter contato, foi a última. Eu senti que aquela mensagem foi direcionada ao
Yoongi. Mas, toda vez que a lia, por algum motivo, parecia ser direcionada a mim.
Fui embora do hospital e andei sem rumo. Depois de um tempo, percebi que eu
estava em frente à uma travessa de ferrovia. A barra de travessia estava abaixada e eu
conseguia ver um trem se aproximando na distância. Isso me lembrou de quando entrei
em um avião sozinho, quando era criança. Pode soar bobo, mas parecia similar. O que eu
esperava? O que quer que fosse, eu não deveria esperar algo assim? Aquele sentimento
de pertencer a algum lugar era nada mais que uma ilusão? O que era este vazio que eu
estava sentindo? Depois de tudo, eu estava sozinho? O que eu fiz de errado? Essa linha
de pensamento continuou com o vento forte que passou junto com o trem.
O trem desapareceu de minha vista tão rápido quanto apareceu. A barra se
levantou e a travessia se abriu novamente. Ela andou em minha direção, nadando contra
o vento gerado pelo trem. Enquanto passava suavemente por mim, ela deixou cair seu
diário. Em seu diário, havia sua lista de desejos: fazer aulas de italiano, juntar-se a um
programa de estadia em templos, voluntariar-se em um abrigo de animais, fazer um curso
de barista e compartilhar fones de ouvido com seu namorado, enquanto caminhavam.
Smeraldo também era um de seus desejos.
Embaixo de um recorte de revista de uma Smeraldo, estava o parágrafo seguinte:
“Amor não é apenas uma relação com uma pessoa específica; é uma atitude, que
determina o relacionamento de uma pessoa com o mundo como um todo. Se eu
verdadeiramente amar uma pessoa, eu amo todas as pessoas, eu amo o mundo, eu amo
a vida. Se eu consigo dizer ‘eu te amo’ para alguém, eu devo ser capaz de dizer ‘eu amo
todos em você, eu amo o mundo por você, eu também me amo em você’” – A Arte de
Amar, por Erich Fromm

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Eu fiz muitas coisas com ela por um mês. Nós caminhamos, dividimos o fone de
ouvido, ouvimos música e nos voluntariamos juntos em um abrigo de animais, como ela
desejava. Nós não conseguimos fazer a estadia no templo, mas pegamos um ônibus,
fomos até a parada final e passamos um tempo em nosso café favorito.
Smeraldo é uma flor a qual dizem que apenas cresce no norte da Itália. Eu passei
em uma floricultura grande, mas ninguém tinha ouvido falar da flor. E então encontrei
essa floricultura pequena, ainda sendo construída. Era na esquina do lado esquerdo,
depois de atravessar a ponte para Munhyeon.
Eu não tinha altas expectativas quando o dono, que estava organizando alguns
documentos em um canto, aproximou-se de mim. Ao ouvir o nome da flor, o dono me
encarou por um longo tempo e me disse que conseguiria entregar a flor, mesmo que sua
floricultura ainda não estivesse aberta oficialmente. "Por que precisa ser essa flor
específica?"
Ela não sabia que eu estava com o seu diário. Ela nunca imaginaria que eu tinha
seguido a lista em seu diário por todas as coisas que tínhamos feito no mês passado. Eu
não a entreguei o diário de volta, nem disse que eu estava com ele. Eu sabia que era
errado. Eu sabia que a estava enganando. Eu tentei falar a verdade para ela algumas vezes,
mas eu estava com medo. Eu estava com medo de que ela me deixasse, como meus amigos
fizeram. Eu estava com medo de que o seu coração se tornasse frio quando soubesse de
meus erros, minhas falhas, tolices e meus medos.
Eu queria fazê-la feliz. Eu queria fazê-la rir. Toda vez que eu a fazia feliz, era
como se eu me tornasse uma pessoa melhor. Era como se minhas falhas fossem colocadas
de lado. Eu tinha apenas mais uma coisa para preparar. Era a flor que significava "a
verdade não contada", no idioma das flores.
O dono pareceu desconcertado com meu pedido para conseguir a flor até 30 de
agosto, disse que seria difícil arrumar até aquela data. Mas tinha que ser naquele dia. Uma
exibição de fogos de artifício estava marcada para acontecer no riacho de Yangjicheon.
Ela era apaixonada pelo céu noturno. Eu estava pensando em confessar meu amor por ela
quando os fogos de artifício iluminassem a noite. Eu estava pensando em dar suas flores
preferidas de presente e a confiar meu coração em seu momento favorito e em seu lugar
favorito.

151
TaeHyung
29 de agosto do ano 22

Nos juntarmos para assistir à queima de fogos foi ideia do Hoseok. Depois que ele voltou,
nosso chat em grupo voltou a tocar e vibrar. Nós dissemos a ele o quanto sentimos sua
falta, de uma forma acolhedora, reaproximando-nos. Hoseok nos respondeu de modo
brincalhão que deveríamos ter percebido a importância de sua existência antes.
"Certifiquem-se de virem para ver os fogos de artifício." Nós todos aceitamos.
Namjoon chegaria depois do turno em seu trabalho de meio expediente, e Seokjin também
prometeu vir, no entanto, chegaria atrasado, depois de seu compromisso. Eu lembrei do
meu sonho quando vi a mensagem. Uma mulher sendo morta em um acidente, na frente
de Seokjin. Aquele sonho terminava com fogos de artifício. Pétalas brancas de chamas
choviam do céu noturno.
Balancei minha cabeça para tentar esquecer esses pensamentos. O local em que
nos juntamos era no contêiner do Namjoon. Às vezes, eu andava nessa direção, quando
não conseguia dormir à noite ou quando meu pai ficava bêbado e enlouquecia. Eu não ia
até a porta ou ficava ali, como estava acostumado. Eu me virava assim que passava pela
estação de trem, apenas para dar uma olhada.
Mas o contêiner sempre estava aceso. Até recentemente, eu não havia percebido
o quão estranho isso era. Estava sempre com as luzes ligadas. Até quando ele deveria
estar dormindo. Eu percebi que era um sinal para nós, um sinal de que éramos bem-vindos
a qualquer hora. Eu não tinha como saber. Era só uma suposição. Mas eu estava confiante
de que estava certo. Ainda assim, não conseguia bater na porta e entrar, porque eu não
sabia o que dizer.
Os fogos de artifício são amanhã. Se eu sair assim que terminar meu turno,
conseguirei chegar a tempo.

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YoonGi
30 de agosto do ano 22

Desci do ônibus e caminhei junto aos trilhos. Conforme a distância diminuía, os


contêineres apareciam. Da janela do ônibus, já havia visto Taehyung no meu caminho.
Ele também estava andando em direção aos contêineres. Os outros deveriam estar vindo
também.
Completei a música muitos dias atrás. Mudei a versão e enviei para Hoseok mais
algumas vezes. Eu a dei o nome de "Hope". Para ser sincero, o título, na verdade, não
combina com a música. Ela contém meus medos, covardias e inferioridades. Contém
todos os momentos dos quais tentei evitar e me manter longe, reprimindo-me. Mas eu não
pude pensar em nenhuma outra palavra que pudesse contemplar tudo isso.
O contêiner de Namjoon apareceu. Alguém estava em pé na frente dele. Seu rosto
não estava visível, mas, baseado em seu físico, era Jimin. Parei e olhei ao redor, quando
alguém que estava atrás de mim me chamou. Aquele alguém estava em frente ao primeiro
contêiner acenando para mim.

153
SeokJin
30 de agosto do ano 22

Recebi um buquê de flores de Smeraldo no último minuto. Já havia passado da hora


marcada e eu estava impacientemente olhando para o meu relógio. Por sorte, o caminhão
de entregas apareceu antes dela. O dono da floricultura era quem estava dirigindo o
caminhão com o logo do Smeraldo na parte superior.
"Desculpe-me. O festival de fogos de artifício me atrasou."
Após o caminhão ter partido, descobri que não havia cartão algum no buquê, o
qual eu tinha pedido com as flores. No mesmo instante, liguei para o dono.
"Ah, farei o retorno agora. O sinal acabou de mudar."
Após o dono ter finalizado a frase, pude ver ela andando em minha direção, em
um cruzamento distante.

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JungKook
30 de agosto do ano 22

Cheguei realmente cedo à ferrovia. O ar esfriou após o pôr do sol, e estava escuro. Pensei
em ir até o contêiner, mas decidi sentar em um canto da plataforma. Já fazia um tempo
desde que nos encontramos. Uma mistura de sentimentos se sobrepunha à felicidade e
expectativa. Eu me lembrava constantemente do dia do acidente.
Jimin foi o primeiro a chegar no contêiner. Ele abriu a porta, olhou lá dentro, mas
não entrou. Eu saí da plataforma e cruzei a ferrovia mais uma vez. Yoongi apareceu
naquele momento, andando lentamente, com os olhos fixados no chão e, de repente, olhou
para trás. Hoseok estava atrás dele, sobrecarregado com sacolas em ambas as mãos.
Senti-me ansioso e agitado. Estava animado para encontrá-los. Mas eu não poderia
apenas aproveitar esse momento livremente. Venho esperando há muito tempo por isso,
mas, ao mesmo tempo, só queria dar meia volta e ir embora. Sem aviso, os primeiros
fogos de artifício explodiram no ar. As luzes brancas surgiram no meio da noite e se
dividiram em milhões de brilhos, pétalas flamejantes, com um grande estouro.

155
SeokJin
30 de agosto do ano 22

O caminhão de entregas parou de repente após virar na rotatória. Seus faróis brilharam.
Permaneci lá, desamparado frente à cena da colisão, balanço e queda. Eu não pude ouvir
nem sentir nada por um momento. Era verão, mas o vento estava frio. Então eu ouvi algo
batendo na avenida e rolando. A fragrância das flores fez cócegas no meu nariz. Voltei à
realidade. O sangue começou a se espalhar debaixo de seu cabelo bagunçado. O sangue
vermelho-escuro escorreu pela avenida.
Com um alto estouro, a primeira leva de fogos de artifício explodiu no ar, distante
no céu da noite. Em algum lugar, eu ouvi um vidro quebrar.

156
Epílogo
Pesadelo

157
TaeHyung
11 de abril do ano 22

Era madrugada quando acordei. O cheiro e o ronco familiar de meu pai se alastravam por
seu quarto. Havia um ar sombrio no outro lado da peça de vidro colocada em frente à
porta quebrada. Bastaram três passos da estreita entrada, onde os sapatos estavam todos
espalhados, até chegar no quarto principal. Eu comecei a dormir lá, não sei desde quando.
Senti uma pressão nas minhas costas e em meus ombros, enquanto me levantava.
Fui para o lado de fora com um copo de água em minha mão. Calcei qualquer sapato e,
então, comecei a andar devagar. Passei pelo posto policial, pelo beco, pela faixa de
pedestres, e a ferrovia ficou à minha vista. Isso foi antes do nascer do sol. A rua estava
imersa em um silêncio, sem carros ainda. Alguém havia vomitado mais cedo, estava
fedendo.
Andei junto aos trilhos do trem. Um, dois, três, quatro. Parei em frente ao quarto
contêiner. Era o de Namjoon. Coloquei a mão na maçaneta da porta, mas não abri.
Namjoon deve estar dormindo agora. O que eu vi no meu sonho não deve ser nada além
de um pesadelo.
Tomei um gole d'água e dei meia volta. A estação e a ferrovia depredadas, as casas
abandonadas, as árvores e ervas estavam crescendo entre elas de maneira irregular. Uma
sacola preta de plástico rolou em minha direção e voou. Era um bairro pobre.
No meu sonho, essa área estava envolta em chamas. A cena toda estava ofuscante
e ondulada. Talvez fosse por causa do calor ou porque eu estava sonhando. O grito de
alguém, algum tipo de som de algo quebrando, som de choro e o som de algo caindo.
Tudo isso veio junto e encheu minha mente. As imagens que brilhavam ao longe
apareceram de repente, parecendo próximas e em alta velocidade. Senti náuseas e fechei
meus olhos, mas era um sonho. Eu não poderia fugir dele fechando meus olhos.
Meu olhar, primeiramente barrado pelas chamas, no próximo minuto pareceu
passar através das pessoas, que estavam de costas para mim, e de repente tudo parou. Um,
dois, três, quatro. O quarto contêiner era o de Namjoon. A porta estava caída. Havia
marcas de sangue. Olhei para o chão, Namjoon estava deitado lá. Alguém disse "Ele está
morto".

158
Abri meus olhos e vi o teto da minha casa. Pude ouvir o ronco do meu pai. Tudo
foi um sonho. A palma da minha mão estava machucada. Virei um copo de água nela e a
apertei. Parecia dormente sob o jato de água. Enchi um copo com água e bebi. Foi um
sonho. Um pesadelo.

159
CRÉDITOS

Tradução
Bruna Pastori
Camila Felix
Carolina Reis
Fabi Oliveira
Giovana Silva
Isabella Almeida
Isabella Bortoletto
Laís Bassetti
Iasmyn Duarte
Niinà
Stéfane Bogéa
Sunny Dias

Revisão
Amanda Tiemi
Candy Michels
Layuri Toko

Design
Miih
Iasmyn Duarte

Organização
Fabi Oliveira
Layuri Toko

Equipe BTS Notícia

Versão original disponibilizada por @BTS_Resources

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