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POESIAS – MANOEL DE BARROS

RETRATO DO ARTISTA QUANDO COISA

A maior riqueza
do homem
é sua incompletude.
Nesse ponto
sou abastado.
Palavras que me aceitam
como sou
— eu não aceito.
Não aguento ser apenas
um sujeito que abre
portas, que puxa
válvulas, que olha o
relógio, que compra pão
às 6 da tarde, que vai
lá fora, que aponta lápis,
que vê a uva etc. etc.
Perdoai. Mas eu
preciso ser Outros.
Eu penso
renovar o homem
usando borboletas.
O APANHADOR DE DESPERDÍCIOS

Uso a palavra para compor meus silêncios.

Não gosto das palavras

fatigadas de informar.

Dou mais respeito

às que vivem de barriga no chão

tipo água pedra sapo.

Entendo bem o sotaque das águas.

Dou respeito às coisas desimportantes

e aos seres desimportantes.

Prezo insetos mais que aviões.

Prezo a velocidade

das tartarugas mais que a dos mísseis.

Tenho em mim esse atraso de nascença.

Eu fui aparelhado

para gostar de passarinhos.

Tenho abundância de ser feliz por isso.

Meu quintal é maior do que o mundo.

Sou um apanhador de desperdícios:

Amo os restos

como as boas moscas.

Queria que minha voz tivesse um formato de canto.


Porque eu não sou da informática:

eu sou da invencionática.

Só uso a palavra para compor meus silêncios.


O MENINO QUE CARREGAVA ÁGUA NA PENEIRA

Tenho um livro sobre águas e meninos.


Gostei mais de um menino
que carregava água na peneira.
A mãe disse que carregar água na peneira
era o mesmo que roubar um vento e
sair correndo com ele para mostrar aos irmãos.
A mãe disse que era o mesmo
que catar espinhos na água.
O mesmo que criar peixes no bolso.
O menino era ligado em despropósitos.
Quis montar os alicerces
de uma casa sobre orvalhos.
A mãe reparou que o menino
gostava mais do vazio, do que do cheio.
Falava que vazios são maiores e até infinitos.
Com o tempo aquele menino
que era cismado e esquisito,
porque gostava de carregar água na peneira.
Com o tempo descobriu que
escrever seria o mesmo
que carregar água na peneira.
No escrever o menino viu
que era capaz de ser noviça,
monge ou mendigo ao mesmo tempo.
O menino aprendeu a usar as palavras.
Viu que podia fazer peraltagens com as palavras.
E começou a fazer peraltagens.
Foi capaz de modificar a tarde botando uma chuva nela.
O menino fazia prodígios.
Até fez uma pedra dar flor.
A mãe reparava o menino com ternura.
A mãe falou: Meu filho você vai ser poeta!
Você vai carregar água na peneira a vida toda.
Você vai encher os vazios
com as suas peraltagens,
e algumas pessoas vão te amar por seus despropósitos!
POEMA

A poesia está guardada nas palavras — é tudo que eu sei.


Meu fado é o de não saber quase tudo.
Sobre o nada eu tenho profundidades.
Não tenho conexões com a realidade.
Poderoso para mim não é aquele que descobre ouro.
Para mim poderoso é aquele que descobre as
insignificâncias (do mundo e as nossas).
Por essa pequena sentença me elogiaram de imbecil.
Fiquei emocionado e chorei.
Sou fraco para elogios.
EXERCÍCIOS DE SER CRIANÇA

No aeroporto o menino perguntou:


-E se o avião tropicar num passarinho?
O pai ficou torto e não respondeu.
O menino perguntou de novo:
-E se o avião tropicar num passarinho triste?
A mãe teve ternuras e pensou:
Será que os absurdos não são as maiores virtudes da poesia?
Será que os despropósitos não são mais carregados de poesia do que o bom
senso?
Ao sair do sufoco o pai refletiu:
Com certeza, a liberdade e a poesia a gente aprende com as crianças.
E ficou sendo.
Ele sabia que as coisas inúteis e os
homens inúteis
se guardam no abandono.
Os homens no seu próprio abandono.
E as coisas inúteis ficam para a poesia.
Tenho o privilegio de não saber quase tudo.
E isso explica
o resto.
Visão é recurso da imaginação para dar as palavras
novas liberdades?
O CASACO

Um homem estava anoitecido.

Se sentia por dentro um trapo social.

Igual se, por fora, usasse um casaco rasgado

e sujo.

Tentou sair da angústia

Isto ser:

Ele queria jogar o casaco rasgado e sujo no

lixo.

Ele queria amanhecer.


Caramujos sempre chegam depois.
Representa que estão chegando
da eternidade.
Palavras
Gosto de brincar com elas.
Tenho preguiça de ser sério.
Há quem recite a palavra ao ponto de osso, de oco;

ao ponto de ninguém e de nuvem.

Sou mais a palavra com febre, decaída, fodida, na

sarjeta.

Sou mais a palavra ao ponto de entulho.

Amo arrastar algumas no caco de vidro, envergá-las

pro chão, corrompê-las

até que padeçam de mim e me sujem de branco.

Sonho exercer com elas o ofício de criado:

usá-las como que usa brincos.


Escrever nem uma coisa

Nem outra –

A fim de dizer todas –

Ou, pelo menos, nenhumas.

Assim,

Ao poeta faz bem

Desexplicar –

Tanto quanto escurecer acendo os vaga-lumes.


O LÁPIS

É por demais de grande a natureza de Deus.

Eu queria fazer para mim uma naturezinha

particular.

Tão pequena que coubesse na ponta do meu

lápis.

Fosse ela, quem me dera, só do tamanho do meu quintal.

No quintal ia nascer um pé de tamarino apenas

para uso dos passarinhos.

E que as manhãs elaborassem outras aves para

compor o azul do céu.

E se não fosse pedir demais eu queria que no

fundo corresse um rio.

Na verdade na verdade a coisa mais importante

que eu desejava era o rio.

No rio eu e a nossa turma, a gente iria todo

dia jogar cangapé nas águas correntes.

Essa, eu penso, é que seria a minha naturezinha

particular:

Até onde o meu pequeno lápis poderia alcançar.


No descomeço era o verbo.

Só depois é que veio o delírio do verbo.

O delírio do verbo estava no começo, lá onde a

criança diz: Eu escuto a cor dos passarinhos.

A criança não sabe que o verbo escutar não funciona

para cor, mas para som.

Então se a criança muda a função de um verbo, ele

delira.

E pois.

Em poesia que é voz de poeta, que é a voz de fazer

nascimentos –

O verbo tem que pegar delírio.


Tudo que não invento é falso.
Há muitas maneiras sérias de não dizer nada, mas só

a poesia é verdadeira.
Sempre que desejo contar alguma coisa, não faço nada;

mas quando não desejo contar nada, faço poesia.


Palavra poética tem que chegar ao grau de brinquedo

para ser séria.


Livros:

“Livro sobre nada”, 2016

“Meu quintal é maior que o mundo”, 2015

“O livro das ignorãças”, 2016

“Poesia completa”, 2010

Internet:

Documentário “Só dez por cento é mentira”, 2013. Disponível em:


https://www.youtube.com/watch?v=VG4P_mWWAI0&list=WL&index=84&t=13s

Manoel de Barros declamando algumas de suas poesias:


https://www.youtube.com/watch?v=eB5_l2NdRLc&list=WL&index=86&t=27s

Canal Toda Poesia – Carolina Muait declamando “As grandezas do ínfimo”:


https://www.youtube.com/watch?v=HJW6u0Na-pk&list=WL&index=85

Canal Toda Poesia – Luiza Barreto Boechat declamando “Olhos parados”:


https://www.youtube.com/watch?v=ugJrbLvO2TQ&list=WL&index=87&t=106s

Projeto Crianceiras – poemas de Manoel de Barros, musicadas por Márcio de


Camillo: http://crianceiras.com.br/manoel-de-barros/

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