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Karl Korsch – A Passagem da Ortodoxia Marxista: Bernstein-

Kautsky-Luxemburgo-Lênin

Publicado em: International Council Correspondence, Vol. 3, número 11 e 12,


Dezembro de 1937.

Nada revela em cores tão gritantes o enorme contraste que existiu nos últimos 30
anos entre o ser e a consciência, entre a ideologia e a realidade do movimento
proletário, como fez a última publicação daquele grande debate, cuja primeira passagem
apareceu nos anais da história do partido sob o nome de “Controvérsia Bernstein”.
Tendo de lidar tanto com a teoria quanto com a prática do movimento socialista, ela
explodiu publicamente, pela primeira vez, na social-democracia alemã e internacional
da geração anterior, pouco depois da morte de Friedrich Engels. Quando naquela época,
Edward Bernstein, que já era capaz de olhar para o passado e ver as grandes realizações
no campo do marxismo, exprimiu pela primeira vez de seu exílio em Londres suas
opiniões “heréticas” (extraídas principalmente do estudo do movimento operário inglês)
a propósito da real relação entre a teoria e prática no movimento socialista alemão e
europeu da época, as suas concepções e pontos de vistas foram naquele momento e
ainda por muito tempo depois, unanimemente mal interpretadas e mal compreendidas,
tanto por amigos como inimigos.

Em toda a imprensa burguesa e literatura especializada, a sua obra "Die


Voraussetzungen des Sozialismus und die Aufgaben der Sozialdemokratie1" foi
acolhida com cânticos de alegria e exibida com hinos de louvor. O dirigente do recém-
fundado Partido Nacional Socialista – o ideólogo social-imperialista Friedrich Naumann
– declarou sem disfarces em seu jornal: “Bernstein é o nosso posto mais avançado no
campo da social-democracia”. E em amplos círculos da burguesia liberal, reinava na
época a esperança confiante de que esse primeiro “revisionismo” fundamental do
marxismo no campo marxista também se separaria oficialmente do movimento
socialista e fugiria para o movimento reformista burguês.

1
Traduzido por Edith C. Harvey sob o título “Evolutionary Socialism: A Criticism and Affirmation” e
publicado em Londres (1909) pelo Partido Trabalhista Independente.
Essas esperanças da burguesia encontraram sua contrapartida em um forte
sentimento no campo do Partido Social-Democrata e do movimento sindical da época.
No entanto, por mais que os dirigentes desse movimento tivessem ficado esclarecidos
de que, em certa medida, o “revisionismo” de Bernstein do programa marxista da
social-democracia nada mais era do que o desabafo público do desenvolvimento, que há
muito tempo havia sido realizado na prática e através do qual o movimento social-
democrata tinha sido transformado de um movimento revolucionário de luta de classes
em um movimento de reforma política e social, ainda assim eles tomaram muito cuidado
para não dar expressão a este conhecimento interior em direção ao exterior. Bernstein,
tendo terminado seu livro com sua advertência ao partido de que ele “poderia se
aventurar a parecer o que é: um partido democraticamente socialista de reforma”, foi
discretamente chamado à ordem (em uma carta privada publicada mais tarde) por aquele
velho demagogo dissimulado do comitê executivo do partido, Ignaz Auer, que o
advertia amigavelmente: “Meu caro Eddy, isso são coisas que se fazem, mas que não se
dizem”. Nos seus discursos públicos, todos os porta-vozes teóricos e práticos da social-
democracia alemã e internacional, os Bebels e Kautskys, os Victor Adlers e Plekhanovs,
e por qualquer nome que se chamem, se opuseram à tagarelice insolente do segredo
cuidadosamente guardado. No congresso do Partido em Hanover, em 1899, num debate
de quatro dias aberto por Bebel com um relatório de seis horas, Bernstein foi submetido
a um inquérito regular. Ele escapou por pouco de uma exclusão formal do partido. Além
disso, muitos anos depois, Bernstein foi o alvo de ataques diante dos membros e
eleitores, na imprensa, nas reuniões do partido e nos grandes congressos oficiais do
partido e do sindicato; apesar do fato de que o revisionismo de Bernstein já tivesse sido
vitorioso nos sindicatos e já não encontrasse resistência no seio do partido, continuou-se
a falar sem hesitação do “partido de luta de classes” revolucionário anticapitalista
literalmente até o último minuto, ou seja, pouco antes da conclusão do pacto de paz
social de 1914, seguido pelo pacto de associação entre capital e trabalho em 1918.

Para essa atitude de dupla face em relação à primeira tentativa séria de uma
formulação teórica dos fins e meios reais da política operária burguesa que eles
praticavam na realidade, os representantes teóricos e práticos da política conduzida
pelo executivo do partido social-democrata e pelo aparato sindical afiliado tinham seus
bons motivos. Assim como hoje, os representantes do aparato do Partido Comunista na
Rússia e em todas as seções nacionais da Internacional Comunista, a fim de ocultarem o
caráter real de sua política, precisavam da piedosa lenda do acentuado avanço da
“construção do socialismo na União Soviética”, e do caráter “revolucionário”
(garantido nem que seja por este mesmo fato) de toda a política e tática adotadas em
todas as circunstâncias pelas lideranças dos partidos comunistas em todos os países.
Assim, naquela época, os hábeis demagogos do executivo do Partido Social-Democrata
e à frente do aparato sindical, precisavam, para ocultarem suas tendências reais, manter
a piedosa lenda segundo a qual o movimento que dirigiam fosse naquele momento -
certamente obrigado - limitado a simplesmente consertar o Estado burguês e a ordem
econômica capitalista por meio de todo tipo de reformas, mas que "no objetivo final",
ele seguia o caminho da revolução social, da derrubada da burguesia e da abolição da
ordem econômica e social capitalista.

Mas não foram apenas os demagogos do executivo do partido social-democrata e


de seus defensores “teóricos” que, através de pseudo-lutas que travaram naquela época
contra o revisionismo de Bernstein, emprestaram ajuda ao perigo do avanço reformista e
da degeneração burguesa do movimento socialista. Nesse sentido, teóricos
revolucionários radicais como Rosa Luxemburgo na Alemanha e Lênin na Rússia,
trabalharam durante muito tempo, inconscientemente e contra suas vontades, de acordo
com seus projetos subjetivos visando conduzir uma luta séria e intransigente contra a
tendência expressa por Bernstein. Quando no momento atual, com base nas novas
experiências das últimas três décadas, olhamos para trás acerca dessas lutas dirigidas
anteriormente dentro do movimento operário alemão e de toda a Europa, é um tanto
trágico ver quão profundamente até Luxemburgo e Lênin estavam presos à ilusão de
que o “bernsteinismo” representava somente um desvio do caráter fundamentalmente
revolucionário do então movimento social-democrata; trágico igualmente ver com que
fórmulas objetivamente inadequadas eles também buscaram dirigir a luta contra a
degeneração burguesa do partido socialista e da política sindical.

Rosa Luxemburgo encerrava a sua polêmica contra Bernstein, publicada no ano


de 1900 sob o título “Sozialreform oder Revolution? 2”, com a profecia
catastroficamente falsa: “a teoria de Bernstein foi a primeira e, ao mesmo tempo, a
última tentativa de dar uma base teórica ao oportunismo”. Ela pensava que o
oportunismo, ilustrado na teoria do livro de Bernstein e na posição de Schippel sobre a
questão do militarismo na prática, “tinha ido tão longe que nada mais restava para
fazer”. E embora Bernstein tivesse afirmado enfaticamente que ele “aceitou quase
completamente a prática atual da social-democracia” e, ao mesmo tempo, tinha

2
“Reform or Revolution?” [Reforma ou Revolução?], Three Arrows Press, 21 E. 17th Street, New York.
violentamente posto a nu toda a insignificância prática da então habitual fase
revolucionária do “objetivo final” com seu reconhecimento aberto, “o objetivo final,
não importa de qual natureza, não é nada para mim; o movimento é tudo”, ainda assim,
Rosa Luxemburgo, num notável deslumbramento ideológico, não dirigiu seu contra-
ataque crítico contra a prática social-democrata, mas contra a teoria de Bernstein, que
não era nada mais do que a expressão autêntica do caráter real daquela prática. A
característica pela qual o movimento social-democrata era distinto da política burguesa
reformista, ela não viu em termos da prática, mas expressa no “objetivo final”,
acrescentando a esta prática como ideologia e, muitas vezes, apenas como uma simples
fraseologia. Ela declarou apaixonadamente que “o objetivo final do socialismo constitui
o único fator decisivo que distingue o movimento social-democrata da democracia
burguesa e do radicalismo burguês, o único fator que, em vez de transformar todo o
movimento operário de um esforço em vão para reparar a ordem capitalista, transforma-
o em uma luta de classe contra esta ordem, visando a sua abolição". Este "objetivo
final" geral que, segundo as palavras de Rosa Luxemburgo, deveria ser tudo e pelo qual
o distinguia do movimento social-democrata da política burguesa reformista atual,
posteriormente foi revelado na história atual como, de fato, nada de que Bernstein, o
observador sóbrio da realidade, já o havia denominado. Para todas aquelas pessoas
cujos olhos ainda não foram abertos para todos os fatos dos últimos quinze anos, uma
confirmação convincente desse estado histórico de interesses é fornecida pelas
afirmações expressas sobre o assunto que vieram dos próprios principais participantes
por ocasião das diversas celebrações de aniversários “marxistas” nos últimos anos. É o
caso, por exemplo, daquele memorável banquete que foi organizado em 1924 pelas
grandes figuras do marxismo social-democrata, reunidas em Londres para a celebração
do sexagésimo aniversário da primeira “International Working Men's” [“Associação
Internacional dos Homens Operários”] em homenagem ao 70º aniversário de Kautsky.
Aqui a “controvérsia” histórica entre o “marxismo revolucionário ortodoxo” de Kautsky
e o reformismo “revisionista” de Bernstein encontrou sua íntima harmonia naquelas
“palavras de amizade” (relatadas por “Vorwaerts”), proferidas por Bernstein de 75 anos
de idade em homenagem à Kautsky de 70 anos de idade, e na cerimônia simbólica de
abraço na qual as palavras acompanharam: “Quando Bernstein terminou, e os dois
velhos, cujos nomes desde então tornaram-se dignos de respeito há três gerações, se
abraçaram e permaneceram juntos por vários segundos, quem, naquela ocasião, poderia
ter resistido à emoção, quem poderia desejar evitá-la? E, no ano de 1930, o Kautsky de
75 anos de idade escreve exatamente nesse mesmo sentido no “Kampf” social-
democracia de Vienna, em homenagem ao 80º aniversário de Bernstein: “Em questões
político-partidários, temos sido desde 1880 gêmeos siameses. Mesmo dois gêmeos
siameses podem discutir um pouco entre si. E por vezes fizemos isso abundantemente.
Mas mesmo em tais momentos era impossível falar de um sem pensar também no
outro". Outros testemunhos posteriores Bernstein e Kautsky iluminam muito
bem o trágico mal entendido com o qual, no período pré-guerra, aqueles radicais da
esquerda alemã - sob o slogan “objetivo revolucionário final contra a prática cotidiana
reformista” - procuraram dirigir a luta contra a prática e, em última instância, contra o
aburguesamento teórico do movimento operário social-democrata. Na realidade, eles
apenas apoiaram e contribuíram para esse processo histórico de desenvolvimento levado
a cabo por Bernstein e Kautsky nos seus respectivos papeis. No entanto, com as devidas
concessões, o mesmo pode ser dito de outro slogan pelo qual no mesmo período, o
marxista russo Lênin, em seu próprio país e em escala internacional, procurou traçar a
linha divisória entre a política burguesa e a política operária “revolucionária”. Rosa
Luxemburgo em sua consciência subjetiva era a adversária mais perspicaz do
bernsteinismo, como também Lênin era subjetivamente um inimigo mortal do
“renegado” Bernstein. Na primeira edição de “Reforma ou Revolução?” no ano de
1900, ela ainda exigia expressamente a exclusão de Bernstein do partido social-
democrata, e de todo os desvios heréticos cometidos por ele, em seu “herostraticamente 3
celebrado” livro, da doutrina pura e imaculada do programa marxista “revolucionário”.
Mas, exatamente como Luxemburgo e a esquerda radical social-democrata alemã, foi
também o bolchevique social-democrata Lênin que utilizou, em sua luta contra o
revisionismo social-democrata, de toda uma plataforma ideológica, na qual ele buscava
garantir o caráter “revolucionário” do movimento operário, não em seu real conteúdo de
classe econômico e social, mas expresso somente na direção dessa luta por meio do
PARTIDO revolucionário guiado por uma teoria marxista correta.

3
[N.T.] Uma alusão à Heróstrato de Éfeso que tentou se imortalizar queimando o templo de Diana.

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