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Arte e deriva: a escrita como processo-invenção1

Cecilia Cotrim

Aborda a escrita como processo-invenção, em sua articulação com a obra e com o


campo de eventos, constituindo espécies de dispositivos poéticos em deriva, mem-
branas arte/vida.
Arte contemporânea, escrita, processos, deriva.

prefiro meus textos poéticos, que nas- Investimento no arquivo? Se há aqui o dese-
cem na rua, em toda parte jo de criar um atraso na duração do mundo,
Hélio Oiticica, Londocumento, agosto de 1969 “a resposta a uma necessidade ontológica
de anamnesia, de deixar o traço de um coti-
Quando comecei a rever meu diário
diano que escapa”,3 ao se deixar inscrever,
filmado, percebi que ele continha tudo
o que não havia em Nova York algo das imagens já estaria mesmo desloca-
Jonas Mekas, Movie Journal, 1972 do, no sistema de diferenças que vai sendo
criado, nesse fluir instável e descontínuo. “O
In New York was still winter but the diário filmado, observam beauvais e
wind was full of spring Bouhours, desafia a cronologia da filmagem
Jonas Mekas, Walden e opõe a fragmentação de uma narrativa mais
Revejo blocos esparsos2 de Walden, de ou menos explodida à continuidade dos pla-
Jonas Mekas. No momento em que escre- nos.”4 O que se percebe, entre os vários
vo, ouço, mais do que vejo o filme, que desfila textos e imagens que se entrecruzam, velo-
parcialmente escondido sob a tela de texto. cidades e ritmos que se superpõem ou se
Apenas um ruído indeterminado e denso, alternam, é algo como um processo infinito
como vento, ressoando por diversos blocos de reiteração e desvio. Reinventar o presente
de imagens, rearranjando-as, conectando-as de via o passado, a cidade de Nova York se-
outro modo – parte das operações de deslo- gundo estratos de memórias e luzes da
camento e entrecruzamento, constantes nesse Lituânia – e, ao reler a cidade, criar uma es-
filme-experimento. A sinfonia monótona que crita do cotidiano, justo, segundo Blanchot,
se instala por algum tempo, apenas pulsação
“o que há de mais difícil a descobrir”.5 Man-
e ritmo (respiração de um animal ou de uma
tendo-se na planeza do dia-a-dia, Mekas re-
máquina, rumor de um trem em movimen-
Hélio Oiticica to), é logo cortada ou sobreposta a ruídos pete em seu filme algo do caráter inesgotá-
Fatos, Notebook, de rua, saltos de sapato em estacato sobre vel da poesia romântica – o mergulho da
1973 arte na dimensão da vida. Em Walden (1964-
Fonte: http:// calçadas e conversas calmas, canções anti-
www.itaucultural.org.br/ gas, mantras hare-krishna, poemas entoados, 69) como em 365 Films (2007), o mergu-
aplicexternas/enciclopedia/ho/
home/index.cfm a voz do cineasta em duplo de storyteller. lhar coincide com a construção de um siste-

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ma fílmico, medium não-específico mas dis- uma poética que parece enfim encontrar sua
seminado em campo, “onde” se dá o des- realização na constituição de uma dinâmica
dobrar-se de estratégias de deslocamento entre arte e mundo. “Quando ando pela ci-
em um programa progressivo. “Seria pre- dade com a câmera … eu avanço, e meus
ciso lançar-me, fundir-me com a realida- olhos são como janelas abertas, e eu vejo as
de que eu estava filmando, colocar-me ali coisas, e as coisas caem em meus olhos”,9
indiretamente, por meio do ritmo, da ilu- escreve Mekas.
minação, da exposição, dos movimentos”,6
anota Mekas, comparando a experiência Com um toque no teclado retomo o filme
do movie journal à escrita fragmentária do e me deparo com um trecho do diário Reel
diário literário. 3, entre dois intertítulos: Black power e What
Leslie saw thru the coop window? O
Volto então ao que seria um dos primeiros intertítulo, esse traço que une/separa os seg-
blocos desse texto cotidiano, em Walden. mentos de Walden, aqui, como em um co-
Notes and Sketches. É marcante, talvez mes- mentário para iniciados no jogo, dobra-se
mo determinante, a passagem em que a ironicamente sobre a tensão explosiva do
câmera acompanha (sempre trepidante, sen- slogan afirmativo do poder negro. À inscri-
sível ao toque de Mekas), as mãos de uma ção rápida do primeiro intertítulo seguem-
mulher que cruzam a tela/o plano de uma se imagens captadas da demolição de um
janela, em pequenos gestos de regar e re- prédio por opérarios – quase todos pretos
mexer a terra úmida de uma jardineira com –, e, então, após outro intertítulo (What
flores vermelhas. A ação meio frenética des- Leslie saw … ?), da rua o diário salta para
ses braços e mãos, fragmentos animados, um dos lugares do poeta-voyeur: crispado,
contrasta com um plano de paisagem quase desde Baudelaire, mas atraído pela vidraça,
estático (como um De Chirico, com a rua sempre tensionando estratos de discurso
cortada pela luz em diagonal), em uma ten- entre arte e vida. O perfil do cineasta em
são que já indica a inscrição da imagem na contraluz, em sua mesa de trabalho, é ima-
dimensão atual de percursos, memórias, gem que se contrapõe e se conecta à ener-
desejos, passados, presentes.7 Imagem aber- gia e à dureza da vida de labor na rua, em
ta, em devir: trata-se da invenção de uma um caos pós-nevasca visto através. E, como
escrita instável, da criação de regiões o diário se confunde com o filme de família,
intersticiais. A arte aqui corresponde à ex- Leslie, de chupeta e fraldas, também apare-
periência da multiplicidade, propõe-se a ce colada à janela, e observa as obras na rua
acompanhar o fluir de diferenças. Nada se pela vidraça, de pé, delicadamente descalça,
afirma além do próprio caminhar. Esse esta- sobre o parapeito. O filme desloca-se então
do errático e lábil definiria, em parte, a con- por mais outra rua, mais outra janela, fazen-
dição das obras que abordamos. Assim, nos- do apelo a membranas de contato, trazen-
sos problemas se estendem de fragmentos do a pergunta que indica a raiz do proble-
de Mekas ao projeto NBP, 8 de Ricardo ma. O que se dá a ver na superfície de tan-
Basbaum, inspirados por uma imagem de tos gestos cotidianos? Pois o cotidiano, iden-
Antonioni: uma página dupla de jornal que tificado à banalidade, é o que importa, se-
rola ao vento pelo calçamento de pedra de gundo Blanchot, por reenviar a existência a
uma rua, em uma breve seqüência de De- seu movimento circular, à espontaneidade
serto Vermelho, a câmera seguindo os aca- própria do que se vive, a sua experiência-
sos do solo. Somos levados por traços de limite, enfim. Vibrando entre a escrita e o

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apagamento dos eventos, o cineasta traba- co noutra janela : filtros que quebram a luz
lha aqui como o poeta-sismógrafo. Deseja e positividade de dia que começa sol quen-
que suas pálpebras sejam cortadas, para que te e busy : móveis : não ter q aceitar o nu
assuma seu pronto pertencimento ao mun- permanente da janela q abre pra rua –
do das coisas. “Pois, diz Hofmannsthal, para
ele, humanos, coisas, pensamentos e sonhos O trecho, extraído de um notebook11 de
são o mesmo… Ele nada pode omitir. A Hélio Oiticica – belo manuscrito datado de
nenhum ser, nenhuma coisa, nenhum fan- Nova York, junho de 1973 –, remete a um
tasma, nenhum espectro infantado pelo es- termo inventado pelo artista em outra pas-
pírito humano ele deve fechar os olhos. Di- sagem de sua escrita in progress: experiên-
ríamos que seus olhos não têm pálpebras.”10 cia-limite. Tal condensação, quem sabe ins-
pirada na Conversa infinita de Maurice
filtros/membranas Blanchot,12 nomeia provisoriamente, no con-
ho nyk texto de uma carta, o desdobramento de
FATOS “um tipo de experiência que se coloca nos
12 jun. 73 limites de um tipo de produção positiva e
NINHOS Babylonests : (nome dado tendo de negação de produção : q não quer ser
ainda como fascínio fácil New York como obra mas q quer manifestar-se no tempo e
Babilônia –> não q (vejo e quero hoje) seja no espaço e q por isso mesmo é contradi-
de todo inútil : é proposição de jogo-luxo- ção e limite”.13 A fórmula, recriada por HO,
prazer, q não são mais aqui ligados a sonhos viria portanto enfatizar um dos aspectos
românticos de aspiração à aristocracia utó- marcantes da arte na era da indeterminação,
pica (salão de cristal luzes de seda) mas prá- do propor-propor14 – a transgressão, o trans-
tica de experimentalidades não formuladas bordamento que se traça infra-mince nos
(…) próprios limites da relação entre arte e mun-
do: “produção positiva de viver negativo,
meu ninho conjugado à tv ainda é espaço- voilà!”.15
sala “conjugado” e não dinamicamente
mutável : por preguiça, é claro : adiar é meu A escrita-invenção de Oiticica tem caráter
Artur Barrio, dia-a-dia : adiar até a morte : mas como ter progressivo e hiperbólico,16 como pode ime-
Mensagem 16
tempo e fazer do abrigo o abrigo sonhado? diatamente revelar sua espacialização, seu
março de 1971
Fonte: http:// – mesmo a relação dentro-fora, com a rua : caminhar que segue o encadeamento
www.muvi.advant.com.br/
artistas/a/artur_barrio/
sempre a mesma, agora, hoje mudei : colo- ininterrupto de sinais de : (dois-pontos). De
mensagem.htm quei o cobertor amarelo numa, o lençol bran- dentro da experiência do limite surge o pró-

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prio ilimitado, de dentro do impossível, da ria rapidamente a outra janela e a um mo-
“mais valia de vazio”, o jogo das possibilida- mento bem mais recente da arte brasileira,
des. “Qual é o excesso que faz com que o precisamente a uma outra espécie de diário,
acabamento seja ainda e sempre criado por Artur Barrio em lâminas de car-
inacabado?”, 17 pergunta Blanchot. Em tão coladas à janela de seu ateliê em
Oiticica, a escrita, desdobrada entre arte e Copacabana. São notas, desenhos, rabiscos,
vida, tempo e espaço, aparece como o mais pequenos objetos agregados de forma
potente programa artístico (e crítico) nesse descontínua, como a indicar o lance. Atraso
momento. Projeto-limite: Conglomerado. sobre papel sobre vidro. A estrutura tende,
Trata-se da concepção de um lugar de ins- de dentro mesmo da esfera íntima do dese-
crição para a arte experimental brasileira, um
nho, da escrita diária, à multiplicidade do
dispositivo textual que retomaria certos pro-
mundo. Como escreve Ricardo Basbaum, “É
gramas modernos, como o Athenäum, ou o
preciso propor que este resíduo ou objeto
Almanaque do Blaue Reiter, porém dessa
ao meu lado – um som qualquer na rua, um
vez em versão rebaixada, pop-tropicalista.
Para o artista e propositor, a escrita será um elemento arquitetônico, tudo afinal – nos
tipo de membrana, o abrigo sonhado que já envolve e nos toca de forma decisiva
se anuncia na mesma carta : “Neville meu (deliberadamente ou por acaso) enquanto
amor … tenho escrito muita coisa em apon- fonte selvagem do sensível; e é preciso en-
tamentos e textos enormes : (…) não que- frentar a tarefa de responder e evidenciar
ro lhe dizer porque aqui, já q iria ao infini- esta pluriestimulação.”19
to : o q decidi foi o seguinte : uma série de
textos e assuntos que são especiais e de Janela….. 12h…..18h….. 3h….. 5h, realiza-
difícil publicação em media brasileira (…) do em 1999, significaria a
vou publicar aqui, junto com essa grande manifestação de um desejo de contato com
minha : seria assim um volume separado a dinâmica da rua, como nas aventuras
sob o título de DOCUMENTOS DE deambulatórias de Barrio, em início dos anos
EXPERIMENTALIDADE BRASILEIRA : tex-
70. Vem à lembrança o caderno-livro
tos, fotos, excertos como sinais espaciais
escritos, poético-espacial-fotoimagem, etc., de 1971 que descreve e traz os registros
(…)” fotográficos de um
surpreendente deslocamento pelas ruas do
Estamos no coração da poética de Oiticica,
Rio de Janeiro, Mensagem 16: “uma
nesses tempos em que o artista, de Londres
e de Nova York, repensa a produção con- tesoura um espelho de metal cromado so-
temporânea brasileira e recoloca os termos bre um espelho com moldura de madeira
de sua própria obra. Oiticica realiza assim, vermelha/descascada, espelho este coberto
em plena deriva, uma escrita crítica/poética por uma camada de cola semi
infinita, puro jogo e invenção, texto que sur-
transparente. Disposição/colocação desta
ge como o filtro/cobertor na janela do “con-
peça por vários locais (peça única)
jugado” de Nova York, confundindo-se com
ninhos, parangolés e probjetos, e jogando abrangendo/realizando assim, após 4 dias 4
conceitualmente segundo a modalidade do noites, o trabalho mensagem 16.”20
redingote conceitual informe,18 de Bataille. Mensagem 16, revivendo a radicalidade po-
Mas a membrana/abrigo de Oiticica nos tra- ética do 4 dias 4 noites,

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propõe, de algum modo, a criação de mem- Deslocamento
branas de contato com bueiros,
“Com freqüência, a câmera poderia estre-
calçamentos, com esse estrato do mangue mecer, como um raio, até seu olho e, em
pulsante que cobria nossas bordas de litoral uma trepidação dos dedos…”26 – assim
atlântico – os intestinos do asfalto.21 Stanley Brakhage tenta articular palavras ao
Assim como no projeto Deflagramento de movimento quase instantâneo dos gestos de
situações sobre ruas, 1970, Jonas Mekas. Penso em alguns trechos de
diários urbanos. Penso de imediato na mas-
Mensagem 16 insinua uma espécie de cir-
sa sonora, na variedade de ruídos de rua,
cuito poético. Ou, promete o artista: nas cortinas trepidantes de imagens cintilan-
“continuidades elétricas”.22 tes, opacas, horizontais, verticais, de Shibuya,
Como pensa Derrida, nessa escrita estamos de yann beauvais. Aqui as imagens desfazem-
sempre em transformação: “Vive-se na es- se todo o tempo em pensamento do vídeo,
crita e escrever é um modo de vida.”23 da captura, montagem e da exibição – a
membrana pensada na dimensão do pixel e
A ênfase nessas passagens parece explicitar,
dos modos digitais de desdobramento des-
do mesmo modo que os filtros de Oiticica
se medium em campo.
nas janelas de Nova York, ou os diagramas
NBP, a ambigüidade dessa escrita entre in- Mas é mais ainda o registro, também urgen-
terior/exterior, uma espécie de “mergulho te, de Edson Barrus, em This is my heart,27
ao avesso”.24 Pois “ser artista deve ser acer- que vem em mente lendo o trecho de
Artur Barrio
Janela 12h.....18h..... 3h.....
tar as contas e medir forças com este traço Brakhage. A peça foi criada bem em meio
5h, Rio de Janeiro, 1999 real do mundo, frente a frente a um exces- aos fluxos excessivos da megacidade, dando
Fonte: http:// so de realidade liminar que não nos aban- a pensar que “só as intensidades passam e
www.muvi.advant.com.br/artistas/a/
artur_barrio/janela.htm dona nunca”, escreve Basbaum.25 circulam”.28 Dentro do metrô de Berlim, a

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extrema atenção de Barrus engendra o vídeo to de arte, criando novas linhas que irão atra-
que registra num rasgão o abandono nas vessar a própria configuração dos gestos: vi-
capitais da Europa globalizada. O colapso do das e afetos são conectados às proposições
lugar, o tempo eclipsado. Captura = proje- visando à exploração dos limites do cotidia-
ção: em uma precisa estratégia com sua di- no, em sua microssensorialidade – o poéti-
gital de bolso, Barrus acompanha a disrupção co delineando aqui possibilidades de trans-
da narrativa através do próprio movimento formação nessa esfera. NBP nos mantém li-
e ruídos bruscos do trem, e quase faz coin- gados ao problema da criação de membra-
cidir o enquadramento com o deslizar, pela nas de contato, de regiões intermediárias que
vidraça lateral, de paisagens nubladas. As podem gerar séries de diagramas, poemas,
imagens são ritmadas por gritos de uma danças, prosas, desenhos, vídeos, composi-
mulher africana que, envolta em pane- ções musicais, redes e, enfim, o projeto as-
jamentos avermelhados, manifesta a falta de sume a alteridade, busca a escrita de um
lugar, a falta de calor, o desabrigo. O pouco romance crítico coletivo. É o que parece in-
que se vê de relance (trata-se de uma pre- dicar todo o humor que também atravessa
sença/ausência) e que perdura são manchas Você gostaria de participar de uma experi-
vermelhas, lembrando a agitação das peque- ência artística?, em que se lança a possibili-
nas telas algerianas de Delacroix. dade do “envolvimento do outro como par-
ticipante em um conjunto de protocolos
Não apenas como mais um de seus indicativos dos efeitos, condições e possibi-
Manifestons! que invadem algumas páginas lidades da arte contemporânea”.30
do You Tube, Barrus parece dar aqui novo
sentido à intervenção situacionista, retoman- Os projetos envolvem um objeto/marca,
do, em sua arte austera, a observação de segundo o texto do artista, uma forma de-
Michel Foucault segundo a qual “a transgres- senhada para ser implantada na memória,
são é um gesto que diz respeito ao limite; é como inscrição de um trauma vindo da “ge-
aí, na magreza da linha, que se manifesta o léia adversa” em que se movia a Geração
raio de sua passagem”.29 80. Da marca/objeto, de presença tão
pregnante, é como que extraída a mobilida-
NBP de de um dispositivo intersticial capaz de
é um programa para súbitas mudanças. desdobrar perguntas dentro de perguntas,
Quais? Como? Quando? implicado na criação de estratégias de dife-
Deixe-se contaminar: renciação, como revela a bula do “Você gos-
Elas serão fruto de seu próprio esforço. taria…?”: “As experiências que você realizar
Ricardo Basbaum tornam visíveis redes e estruturas de media-
ção, indicando a produção de diversos tipos
A observação acima leva ao móvel do pro-
de relações e dados sensoriais: os conjuntos
jeto NBP: o virus poema que multiplica per- de linhas e diagramas, trazidos ao primeiro
guntas e desperta o exercício poético nos plano a partir de sua utilização, são mais im-
limites entre corpo, pensamento, e mundo. portantes que o objeto.”31
Evocando a costura de um “imenso
parangolé imaterial”, NBP retoma perguntas Enfatizando a microssensorialização ver/ler,
de nossa vanguarda neoconcreta, entretan- os diagramas NBP são estruturas abertas ao
to com alguns deslocamentos críticos. Bus- devir. Constituem um anti-palimpsesto que,
ca-se um procedimento que desestabilize e como teoria de artista,32 opera entre as di-
desnaturalize as práticas e normas do circui- mensões plástica e discursiva. Trata-se de

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uma escrita-limite, atenta à captura do siste- em vez de oposições binárias fixas. E essa
ma normativo, que não deixa de buscar não-estabilidade seria, aliás, um atributo
modos de resistência ao desempenho da constitutivo do próprio dispositivo: “Em pri-
indústria cultural, programa a ser desdobra- meiro lugar [um dispositivo] é uma espécie
do como um jogo, nos próprios termos da de novelo ou meada, um conjunto
pergunta: “o que pode a arte?” 33 multilinear. É composto por linhas de natu-
Reinventando os princípios das criações ex- reza diferente e essas linhas do dispositivo
pandidas neoconcretas, NBP e Você gosta- não abarcam nem delimitam sistemas ho-
ria…? se pretendem experiências transfor- mogêneos por sua própria conta [o objeto,
madoras “tanto para o participante como o sujeito, a linguagem], mas seguem direções
para o artista e o próprio objeto”.34 Os pro- diferentes, formam processos sempre instá-
jetos visam à criação de um campo de ações veis.”36 Em Re-projecting, trabalho desenvol-
coletivas, funcionando ao modo da conta- vido na cidade de Utrecht em maio de 2008,
minação virótica e buscando uma modalida- o espaçamento que se vai estabelecendo
de de escrita ampliada: “diante do fluxo cres- entre mapa, marca NBP, diagrama e situa-
cente das experiências propostas, a escrita ções de vida busca mais uma vez “abrir à
do artista torna-se pequena e busca auxílio apreensão sensível uma modalidade particu-
de outros colaboradores na construção de lar de intercruzamento entre texto e obra
um discurso de múltiplas vozes – aponta- de arte”. 37 O mapa, como em Borges e
se a necessidade de um romance crítico Smithson, desdobra-se temporalmente e
enquanto órgão sensorial coletivo, como pode até vir a ganhar algumas linhas ma-
perfil de uma configuração discursiva que teriais (e imaginárias) no mundo. Cada pon-
responda à alta demanda das respostas to determina um encontro possível, fixa uma
dos participantes, instituindo um diálogo espécie de rendez-vous, um relogismo, um
em fluxo.”35 interstício do sonho com a vida terrena, lem-
Ricardo Basbaum
brando o tom de Eisenman em seu “Proces-
diagrama de Utrecht, Gilles Deleuze nos desafia a pensar o dispo- sos do intersticial”: “Uma arquitetura de fun-
2008 sitivo em termos dinâmicos: processos, mo- cionamento maquínico seria não-subordina-
Foto: Ricardo Basbaum vimentos, tensões, linhas móveis e múltiplas, da às leis da semelhança ou utilidade e não

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produziria objetos formais conceitualmente comentada pelo cineasta na trilha sonora, ou apre-
sentada em intertítulos.” Id. ibid.
estáveis, mas priorizaria condições do espa-
ço sempre em estado de devir … Mas o 5 Maurice Blanchot. L’Entretien infini. Paris: Gallimard,
que é uma arquitetura do devir?”38 1969: 355.
6 Jonas Mekas, The Diary Film, 1972. In Sitney, P. Adams
Em NBP como em Eisenman, o movimento (org.). The Avant-garde Film. A reader of Theory and
poético viria do contato entre (n +1) dia- Criticism. Anthology Film Archives Series 3: 192.
gramas, sempre deslocados de suas deter- 7 Como escrevem yann beauvais e Jean-Michel Bouhours,
minações anteriores. E, para encerrar com “[o diário] é elaborado em tempo real, ou quase; como
um desvio, um trecho levemente inspirado o instantâneo fotográfico, ele abole a distância do tem-
po, e o trabalho mnemônico opera principalmente en-
em Felix Jair, músico duplo de Basbaum: “A quanto interação do passado sobre um presente que se
musicalidade latente em NBP é ainda algo a inscreve”. Le je à la caméra.
ser exteriorizado com maior contundência,
8 NBP = Novas Bases para a Personalidade.
mas fica desde já indicada esta presença a
ativar fluxos e ritmos de desdobramento do 9 Jonas Mekas, The Diary Film, op. cit.: 192.
projeto e acolhimento do outro – como se 10 Hugo von Hofmannsthal. Le poète et l’époque présente.
a costura do projeto NBP pudesse ser per- In Lettre de Lord Chandos et autres écrits. Paris:
Gallimard, 1992: 95.
cebida como um imenso parangolé imaterial
composto de malha plástico-discursiva pron- 11 Ver Fatos, 1973, em: http://www.itaucultural.org.br/
aplicexternas/enciclopedia/ho/home/index.cfm.
to a ser utilizado, assumindo vocação
verbivocovisual.”39 12 Maurice Blanchot escreve em L’Entretien infini, op. cit.:
302: “A experiência-limite é a resposta que encontra o
Cecilia Cotrim trabalha com ensino e pesquisa em história homem quando decide colocar-se radicalmente em
da arte moderna e contemporânea, no Programa de Pós- questão.”
Graduação em História Social da Cultura, PUC-Rio. 13 Ver Neville meu amor, carta de 21/07/1973, em: http://
www.itaucultural.org.br/aplicexternas/enciclopedia/ho/
home/index.cfm.
Notas
14 Em A obra, seu caráter objetal, o comportamento, Oiticica
1 O texto corresponde a uma conferência realizada na anota: “O artista não é então o que declancha os tipos
Escola Letra Freudiana do Rio de Janeiro, em agos- acabados, mesmo que altamente universais, mas sim
to de 2008. propõe propor, o que é mais importante como conse-
qüência” (grifo meu). In Aspiro ao grande labirinto. Rio
2 Seria preciso aqui desde logo fazer uma espécie de adver- de Janeiro, Rocco, 1986: 120.
tência, citando Jonas Mekas: “Esse filme [Walden] sendo
o que é, quer dizer, uma série de notas pessoais dizen- 15 Hélio Oiticica, Neville meu amor, op. cit.
do respeito a acontecimentos, pessoas (amigos) e à 16 Sobre a relação entre a escrita de Hélio Oiticica e a
Natureza (as estações) – o autor não ficará aborrecido poesia progressiva romântica, ver tese de Patricia
com o espectador (ele quase o encoraja) se este prefe- Dias Guimarães: Poesia em Progresso: Romantismos,
rir ver apenas certas partes do trabalho (filme), segundo Vanguardas Modernas e o Experimentalismo de
o tempo de que dispõe, segundo suas preferências ou Hélio Oiticica. Programa de Pós-Graduacão em His-
qualquer outra boa razão.” Jonas Mekas, dez. de 1969, tória Social da Cultura, PUC-Rio, 2008.
in Light Cone Catalogue, Paris, Light Cone, 2001: 167.
17 Blanchot, op. cit.: 308.
3 beauvais, yann, Bouhours, Jean-Michel. Le je à la caméra. In
Le je filmé. Paris: Centre Georges Pompidou, 1995. 18 Ref. ao conceito de informe de Georges Bataille: “Um
dicionário começaria a partir do momento em que não
4 Sobre a praxis de Mekas, os dois autores observam: mais fornecesse o sentido das palavras, mas suas tarefas.
“Os filmes são construídos em dois tempos: antes, Assim, informe não é apenas um adjetivo possuindo tal
o registro, a captura das imagens, tomadas na ur- sentido, mas um termo que serve para desclassificar,
gência; em seguida, a elaboração de uma constru- geralmente exigindo que cada coisa tenha sua forma.
ção fílmica sofisticada, apelando ao jornal escrito, Aquilo que designa não possui direitos em qualquer sen-

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tido, e se faz esmagar em toda parte como uma aranha nível em http://www.rizoma.net.
ou um verme. Com efeito, para que os homens acadê-
micos fiquem contentes, seria necessário que o univer- 34 Basbaum, Você gostaria..., op. cit., vol. 1: 13.
so adquirisse forma. A filosofia como um todo não pos- 35 Fluindo de diferença para diferença, entrevista de Ricardo
sui outro objetivo: trata-se de fornecer uma beca Basbaum a Cecilia Cotrim. In Cultura e Pensamento n.
[redingote] àquilo que é, uma beca matemática. Por 2, Brasília: MinC, 2007: 73.
outro lado, afirmar que o universo não se parece com
nada e que é apenas informe equivale a dizer que o 36 Gilles Deleuze, O que é um dispositivo? Disponível
universo é alguma coisa como uma aranha ou um escar- em http://www.unb.br/fe/tef/filoesco/foucault/art14.html
ro” (tradução de Ricardo Basbaum). Ver Yve-Alain Bois 37 Basbaum. Você gostaria..., op. cit., vol. 1: 13.
e Rosalind Krauss. Informe. Paris: Centre Georges
Pompidou, 1996. 38 Peter Eisenman. Processes of the intersticial (1997). In
Written into the Void. Selected Writings 1990-2004.
19 Ver Ricardo Basbaum, Dentro d’água. In Registros. Porto: New Haven e Londres: Yale University Press, 2007: 57.
Museu Serralves, 2000: 22.
39 Basbaum. Você gostaria..., op. cit., vol. 1: 84.
20 Artur Barrio. Caderno-livro Mensagem 16. Rio de Janei-
ro: MAM-Rio, 1971. Coleção Gilberto Chateaubriand.
21 Barrio observa: “sobre essa questão do corpo relaciona-
do às excreções, às secreções, acho que o cristianismo
anulou de tal maneira o corpo, que o que existe como
expressão interna do corpo passa a ser encarado como
uma coisa atroz.” Artur Barrio, entrevista a Camillo
Osório. In Cotrim, Cecilia; Basbaum, Ricardo; Resende,
Ricardo. Panorama da Arte Brasileira 2001. São Paulo:
MAM, 2001: 82.
22 Defl………Situação….+S+……….Ruas….Abril….…..-
1979. In Registros, op. cit.: 86.
23 Jacques Derrida. Uma arquitetura onde o desejo pode
morar. Entrevista de Jacques Derrida a Eva Meyer. In
Nesbitt, Kate (org.). Uma nova agenda para a arquitetu-
ra. São Paulo: Cosac Naify, 2006: 169.
24 Dentro d’água, op. cit.: 30.
25 Ibid.: 22.
26 Citado por beauvais e Bouhours, op.cit. Ver Jonas Mekas,
Paris: RMN, 1992.
27 http://fr.youtube.com/watch?v=7yS8_gXWlTc.
28 Gilles Deleuze e Felix Guattari. Comment se faire un Corps
sans Organes? In Mille Plateaux, Paris: Les Éditions de
Minuit, 1980: 189.
29 Michel Foucault. Préface à la transgression. In Critique, n.
195-196, ago.-set. 1963: 754. (Hommage à G. Bataille)
30 Ricardo Basbaum. Você gostaria de participar de uma
experiência artística? (+ NBP). Vol. 1. Tese de Doutora-
do. Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais. ECA/
USP, 2008: 10.
31 Id., ibid.
32 Id., ibid.
33 Ver Suely Rolnik, Geopolítica da cafetinagem, s/d, dispo-

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