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Artigo - A Escrita Como Processo Invenção
Artigo - A Escrita Como Processo Invenção
Cecilia Cotrim
prefiro meus textos poéticos, que nas- Investimento no arquivo? Se há aqui o dese-
cem na rua, em toda parte jo de criar um atraso na duração do mundo,
Hélio Oiticica, Londocumento, agosto de 1969 “a resposta a uma necessidade ontológica
de anamnesia, de deixar o traço de um coti-
Quando comecei a rever meu diário
diano que escapa”,3 ao se deixar inscrever,
filmado, percebi que ele continha tudo
o que não havia em Nova York algo das imagens já estaria mesmo desloca-
Jonas Mekas, Movie Journal, 1972 do, no sistema de diferenças que vai sendo
criado, nesse fluir instável e descontínuo. “O
In New York was still winter but the diário filmado, observam beauvais e
wind was full of spring Bouhours, desafia a cronologia da filmagem
Jonas Mekas, Walden e opõe a fragmentação de uma narrativa mais
Revejo blocos esparsos2 de Walden, de ou menos explodida à continuidade dos pla-
Jonas Mekas. No momento em que escre- nos.”4 O que se percebe, entre os vários
vo, ouço, mais do que vejo o filme, que desfila textos e imagens que se entrecruzam, velo-
parcialmente escondido sob a tela de texto. cidades e ritmos que se superpõem ou se
Apenas um ruído indeterminado e denso, alternam, é algo como um processo infinito
como vento, ressoando por diversos blocos de reiteração e desvio. Reinventar o presente
de imagens, rearranjando-as, conectando-as de via o passado, a cidade de Nova York se-
outro modo – parte das operações de deslo- gundo estratos de memórias e luzes da
camento e entrecruzamento, constantes nesse Lituânia – e, ao reler a cidade, criar uma es-
filme-experimento. A sinfonia monótona que crita do cotidiano, justo, segundo Blanchot,
se instala por algum tempo, apenas pulsação
“o que há de mais difícil a descobrir”.5 Man-
e ritmo (respiração de um animal ou de uma
tendo-se na planeza do dia-a-dia, Mekas re-
máquina, rumor de um trem em movimen-
Hélio Oiticica to), é logo cortada ou sobreposta a ruídos pete em seu filme algo do caráter inesgotá-
Fatos, Notebook, de rua, saltos de sapato em estacato sobre vel da poesia romântica – o mergulho da
1973 arte na dimensão da vida. Em Walden (1964-
Fonte: http:// calçadas e conversas calmas, canções anti-
www.itaucultural.org.br/ gas, mantras hare-krishna, poemas entoados, 69) como em 365 Films (2007), o mergu-
aplicexternas/enciclopedia/ho/
home/index.cfm a voz do cineasta em duplo de storyteller. lhar coincide com a construção de um siste-
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apagamento dos eventos, o cineasta traba- co noutra janela : filtros que quebram a luz
lha aqui como o poeta-sismógrafo. Deseja e positividade de dia que começa sol quen-
que suas pálpebras sejam cortadas, para que te e busy : móveis : não ter q aceitar o nu
assuma seu pronto pertencimento ao mun- permanente da janela q abre pra rua –
do das coisas. “Pois, diz Hofmannsthal, para
ele, humanos, coisas, pensamentos e sonhos O trecho, extraído de um notebook11 de
são o mesmo… Ele nada pode omitir. A Hélio Oiticica – belo manuscrito datado de
nenhum ser, nenhuma coisa, nenhum fan- Nova York, junho de 1973 –, remete a um
tasma, nenhum espectro infantado pelo es- termo inventado pelo artista em outra pas-
pírito humano ele deve fechar os olhos. Di- sagem de sua escrita in progress: experiên-
ríamos que seus olhos não têm pálpebras.”10 cia-limite. Tal condensação, quem sabe ins-
pirada na Conversa infinita de Maurice
filtros/membranas Blanchot,12 nomeia provisoriamente, no con-
ho nyk texto de uma carta, o desdobramento de
FATOS “um tipo de experiência que se coloca nos
12 jun. 73 limites de um tipo de produção positiva e
NINHOS Babylonests : (nome dado tendo de negação de produção : q não quer ser
ainda como fascínio fácil New York como obra mas q quer manifestar-se no tempo e
Babilônia –> não q (vejo e quero hoje) seja no espaço e q por isso mesmo é contradi-
de todo inútil : é proposição de jogo-luxo- ção e limite”.13 A fórmula, recriada por HO,
prazer, q não são mais aqui ligados a sonhos viria portanto enfatizar um dos aspectos
românticos de aspiração à aristocracia utó- marcantes da arte na era da indeterminação,
pica (salão de cristal luzes de seda) mas prá- do propor-propor14 – a transgressão, o trans-
tica de experimentalidades não formuladas bordamento que se traça infra-mince nos
(…) próprios limites da relação entre arte e mun-
do: “produção positiva de viver negativo,
meu ninho conjugado à tv ainda é espaço- voilà!”.15
sala “conjugado” e não dinamicamente
mutável : por preguiça, é claro : adiar é meu A escrita-invenção de Oiticica tem caráter
Artur Barrio, dia-a-dia : adiar até a morte : mas como ter progressivo e hiperbólico,16 como pode ime-
Mensagem 16
tempo e fazer do abrigo o abrigo sonhado? diatamente revelar sua espacialização, seu
março de 1971
Fonte: http:// – mesmo a relação dentro-fora, com a rua : caminhar que segue o encadeamento
www.muvi.advant.com.br/
artistas/a/artur_barrio/
sempre a mesma, agora, hoje mudei : colo- ininterrupto de sinais de : (dois-pontos). De
mensagem.htm quei o cobertor amarelo numa, o lençol bran- dentro da experiência do limite surge o pró-
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propõe, de algum modo, a criação de mem- Deslocamento
branas de contato com bueiros,
“Com freqüência, a câmera poderia estre-
calçamentos, com esse estrato do mangue mecer, como um raio, até seu olho e, em
pulsante que cobria nossas bordas de litoral uma trepidação dos dedos…”26 – assim
atlântico – os intestinos do asfalto.21 Stanley Brakhage tenta articular palavras ao
Assim como no projeto Deflagramento de movimento quase instantâneo dos gestos de
situações sobre ruas, 1970, Jonas Mekas. Penso em alguns trechos de
diários urbanos. Penso de imediato na mas-
Mensagem 16 insinua uma espécie de cir-
sa sonora, na variedade de ruídos de rua,
cuito poético. Ou, promete o artista: nas cortinas trepidantes de imagens cintilan-
“continuidades elétricas”.22 tes, opacas, horizontais, verticais, de Shibuya,
Como pensa Derrida, nessa escrita estamos de yann beauvais. Aqui as imagens desfazem-
sempre em transformação: “Vive-se na es- se todo o tempo em pensamento do vídeo,
crita e escrever é um modo de vida.”23 da captura, montagem e da exibição – a
membrana pensada na dimensão do pixel e
A ênfase nessas passagens parece explicitar,
dos modos digitais de desdobramento des-
do mesmo modo que os filtros de Oiticica
se medium em campo.
nas janelas de Nova York, ou os diagramas
NBP, a ambigüidade dessa escrita entre in- Mas é mais ainda o registro, também urgen-
terior/exterior, uma espécie de “mergulho te, de Edson Barrus, em This is my heart,27
ao avesso”.24 Pois “ser artista deve ser acer- que vem em mente lendo o trecho de
Artur Barrio
Janela 12h.....18h..... 3h.....
tar as contas e medir forças com este traço Brakhage. A peça foi criada bem em meio
5h, Rio de Janeiro, 1999 real do mundo, frente a frente a um exces- aos fluxos excessivos da megacidade, dando
Fonte: http:// so de realidade liminar que não nos aban- a pensar que “só as intensidades passam e
www.muvi.advant.com.br/artistas/a/
artur_barrio/janela.htm dona nunca”, escreve Basbaum.25 circulam”.28 Dentro do metrô de Berlim, a
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uma escrita-limite, atenta à captura do siste- em vez de oposições binárias fixas. E essa
ma normativo, que não deixa de buscar não-estabilidade seria, aliás, um atributo
modos de resistência ao desempenho da constitutivo do próprio dispositivo: “Em pri-
indústria cultural, programa a ser desdobra- meiro lugar [um dispositivo] é uma espécie
do como um jogo, nos próprios termos da de novelo ou meada, um conjunto
pergunta: “o que pode a arte?” 33 multilinear. É composto por linhas de natu-
Reinventando os princípios das criações ex- reza diferente e essas linhas do dispositivo
pandidas neoconcretas, NBP e Você gosta- não abarcam nem delimitam sistemas ho-
ria…? se pretendem experiências transfor- mogêneos por sua própria conta [o objeto,
madoras “tanto para o participante como o sujeito, a linguagem], mas seguem direções
para o artista e o próprio objeto”.34 Os pro- diferentes, formam processos sempre instá-
jetos visam à criação de um campo de ações veis.”36 Em Re-projecting, trabalho desenvol-
coletivas, funcionando ao modo da conta- vido na cidade de Utrecht em maio de 2008,
minação virótica e buscando uma modalida- o espaçamento que se vai estabelecendo
de de escrita ampliada: “diante do fluxo cres- entre mapa, marca NBP, diagrama e situa-
cente das experiências propostas, a escrita ções de vida busca mais uma vez “abrir à
do artista torna-se pequena e busca auxílio apreensão sensível uma modalidade particu-
de outros colaboradores na construção de lar de intercruzamento entre texto e obra
um discurso de múltiplas vozes – aponta- de arte”. 37 O mapa, como em Borges e
se a necessidade de um romance crítico Smithson, desdobra-se temporalmente e
enquanto órgão sensorial coletivo, como pode até vir a ganhar algumas linhas ma-
perfil de uma configuração discursiva que teriais (e imaginárias) no mundo. Cada pon-
responda à alta demanda das respostas to determina um encontro possível, fixa uma
dos participantes, instituindo um diálogo espécie de rendez-vous, um relogismo, um
em fluxo.”35 interstício do sonho com a vida terrena, lem-
Ricardo Basbaum
brando o tom de Eisenman em seu “Proces-
diagrama de Utrecht, Gilles Deleuze nos desafia a pensar o dispo- sos do intersticial”: “Uma arquitetura de fun-
2008 sitivo em termos dinâmicos: processos, mo- cionamento maquínico seria não-subordina-
Foto: Ricardo Basbaum vimentos, tensões, linhas móveis e múltiplas, da às leis da semelhança ou utilidade e não
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tido, e se faz esmagar em toda parte como uma aranha nível em http://www.rizoma.net.
ou um verme. Com efeito, para que os homens acadê-
micos fiquem contentes, seria necessário que o univer- 34 Basbaum, Você gostaria..., op. cit., vol. 1: 13.
so adquirisse forma. A filosofia como um todo não pos- 35 Fluindo de diferença para diferença, entrevista de Ricardo
sui outro objetivo: trata-se de fornecer uma beca Basbaum a Cecilia Cotrim. In Cultura e Pensamento n.
[redingote] àquilo que é, uma beca matemática. Por 2, Brasília: MinC, 2007: 73.
outro lado, afirmar que o universo não se parece com
nada e que é apenas informe equivale a dizer que o 36 Gilles Deleuze, O que é um dispositivo? Disponível
universo é alguma coisa como uma aranha ou um escar- em http://www.unb.br/fe/tef/filoesco/foucault/art14.html
ro” (tradução de Ricardo Basbaum). Ver Yve-Alain Bois 37 Basbaum. Você gostaria..., op. cit., vol. 1: 13.
e Rosalind Krauss. Informe. Paris: Centre Georges
Pompidou, 1996. 38 Peter Eisenman. Processes of the intersticial (1997). In
Written into the Void. Selected Writings 1990-2004.
19 Ver Ricardo Basbaum, Dentro d’água. In Registros. Porto: New Haven e Londres: Yale University Press, 2007: 57.
Museu Serralves, 2000: 22.
39 Basbaum. Você gostaria..., op. cit., vol. 1: 84.
20 Artur Barrio. Caderno-livro Mensagem 16. Rio de Janei-
ro: MAM-Rio, 1971. Coleção Gilberto Chateaubriand.
21 Barrio observa: “sobre essa questão do corpo relaciona-
do às excreções, às secreções, acho que o cristianismo
anulou de tal maneira o corpo, que o que existe como
expressão interna do corpo passa a ser encarado como
uma coisa atroz.” Artur Barrio, entrevista a Camillo
Osório. In Cotrim, Cecilia; Basbaum, Ricardo; Resende,
Ricardo. Panorama da Arte Brasileira 2001. São Paulo:
MAM, 2001: 82.
22 Defl………Situação….+S+……….Ruas….Abril….…..-
1979. In Registros, op. cit.: 86.
23 Jacques Derrida. Uma arquitetura onde o desejo pode
morar. Entrevista de Jacques Derrida a Eva Meyer. In
Nesbitt, Kate (org.). Uma nova agenda para a arquitetu-
ra. São Paulo: Cosac Naify, 2006: 169.
24 Dentro d’água, op. cit.: 30.
25 Ibid.: 22.
26 Citado por beauvais e Bouhours, op.cit. Ver Jonas Mekas,
Paris: RMN, 1992.
27 http://fr.youtube.com/watch?v=7yS8_gXWlTc.
28 Gilles Deleuze e Felix Guattari. Comment se faire un Corps
sans Organes? In Mille Plateaux, Paris: Les Éditions de
Minuit, 1980: 189.
29 Michel Foucault. Préface à la transgression. In Critique, n.
195-196, ago.-set. 1963: 754. (Hommage à G. Bataille)
30 Ricardo Basbaum. Você gostaria de participar de uma
experiência artística? (+ NBP). Vol. 1. Tese de Doutora-
do. Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais. ECA/
USP, 2008: 10.
31 Id., ibid.
32 Id., ibid.
33 Ver Suely Rolnik, Geopolítica da cafetinagem, s/d, dispo-