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Encontro Nacional Especial de Formadores para Reitores e Psicólogos (as) de Seminários

A PESSOA E A VIVÊNCIA DO CELIBATO: PERSPECTIVAS E DESAFIOS NA CULTURA


CONTEMPORÂNEA.

William Cesar Castilho Pereira1

1. DEFINIÇÃO

Pretendemos, nesta palestra, discutir o conceito de Pessoa como expressão da imagem de


Deus, da nobreza da razão, e também da singularidade própria do sujeito dividido, em processo de
subjetivação, na contemporaneidade. Estabelecemos, ainda, os conceitos psicanalíticos de
inconsciente e libido como diferenciadores entre a pessoa humana e os demais seres vivos.
Paralelamente à definição de afetividade/sexualidade, conforme a teoria psicanalítica, buscamos
analisar a escolha do celibato enquanto carisma e fonte de sublimação. Além disso, refletimos
sobre as contradições entre sublimação e narcisismo como repressão e desejo. Como conclusão,
apresentamos as formas compensatórias do celibato obrigatório - quando os processos
sublimatórios não são bem elaborados, sobretudo frente aos impactos e desafios do mundo
globalizado - nas transformações da experiência presbiterial e da vida religiosa consagrada.

2. O CONCEITO DE PESSOA

O pressuposto teórico empregado pelo cristianismo para entender o ser humano centralizou-se no
conceito de pessoa enquanto imagem e semelhança de Deus revelada, de maneira especial, na
encarnação do Filho. Revelação que se concretiza na relação com o outro. Trindade, a mais perfeita
experiência da relação amorosa de reciprocidade-alteridade. É nesse contexto que repousa a visão da
dignidade humana como rosto de Deus.2
Já no arcabouço da filosofia clássica, a concepção de pessoa é sustentada pela ideia de um indivíduo
coeso, único, indivisível, absolutamente livre, autônomo, homogêneo e caucionado pela razão. Esse
construto teórico ganhou corpo com as matrizes da sociedade moderna, iluminista, com o aval dos
ideais da família burguesa, patrimonial e patriarcal.

1
Doutor pela UFRJ. Professor Aposentado da PUC Minas. Psicólogo Clínico. Analista Institucional. Assessor
Ad Hoc do Departemento de Vocasiones Y Ministerios – Conselho Episcopal Latino-Americano, CELAM, Bogotá; e da
Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB). . Autor de diversos livros e artigos.

2
CASTILLO, J. M. Dios y nuestra felicidad. Bilbao: Desclée de Brouwer. 7ª ed., 2005.
A pessoa humana sustentava-se na invenção de um estilo pessoal e privado: tão inconfundível quanto
as impressões digitais, tão incomparável quanto nosso próprio corpo! A ética e a estética das
matrizes modernas estavam organicamente ligadas à concepção de um eu, ou seja, de uma identidade
privada, única e de uma pessoa coagulada.
Durante todo o período da modernidade os conceitos de pessoa, indivíduo, personalidade e
identidade se fundiram de forma profundamente simbiótica, gerando consequências importantes para
o campo ideológico-político e para a própria Igreja, principalmente, em sua dimensão pastoral.
Hoje, numa perspectiva transdisciplinar, os teóricos sociais e políticos têm se distanciado da
concepção de pessoa como identidade única. A concepção de sujeito individual era viável numa certa
época, na era clássica do capitalismo industrial, no apogeu da ciência moderna e da família nuclear
burguesa. Mas, atualmente, na era do capitalismo globalizado e da explosão imigratória, demográfica
e cultural, esse conceito já não é tão estável, na medida em que não é suficiente para favorecer a
compreensão dos novos fenômenos sociais, políticos, psíquicos, culturais que brotam em todas as
esferas do cotidiano.
A questão da pessoa humana, enquanto identidade, está sendo extensamente discutida na teoria
psicossocial. O argumento é o seguinte: as velhas identidades, que por tanto tempo estabilizaram o
mundo social e institucional, estão em declínio, permitindo o surgimento de novas identidades e, ao
mesmo tempo, fragmentando a noção de pessoa, até aqui vista como um sujeito unificado e
monolítico. Dessa forma, a chamada “crise de identidade da pessoa” tem sido vista como parte de um
processo mais amplo de mudança, que está deslocando as estruturas e os processos centrais das
sociedades modernas e abalando os quadros de referência que garantiam uma ancoragem estável no
mundo social.
Afastando-se das matrizes do sujeito da modernidade, o arcabouço pós-estruturalista desenvolveu um
conceito de sujeito dividido do inconsciente, o qual seria singular e portador de diferenças e desejos.
Esse conceito revela como a ideia de pessoa individual burguesa vem sofrendo abalos profundos e
significativos.
A teoria da pessoa enquanto singularidade é formada com base em processos psíquicos e simbólicos
do inconsciente, que funcionam de acordo com uma lógica muito diferente daquela que é centrada
apenas na ideia de razão. Esse arcabouço critica o conceito de sujeito cognoscente e racional, pleno
de uma identidade fixa e unificada— aquele que diz “penso, logo existo”, conforme a teoria de
Descartes.
A leitura realizada pelos pensadores pós-estruturalistas mostra que a imagem da pessoa - como um
eu integrado e unificado - é algo que a criança vive apenas parcialmente e com grande dificuldade,
quando é obrigada a separar-se da figura materna. Essa imagem não se desenvolve naturalmente, a
partir do interior de um suposto núcleo do ser da criança: pelo contrário, ela é formada na relação
com os outros. Ou seja, formar-se como pessoa é relacionar-se com o outro, pois é a partir dele que
se configuram as condições de organização e auto-compreensão das diferenças individuais, daquilo
que é próprio do eu e daquilo que é próprio do não eu ou do outro. Isso se desenvolve especialmente
no âmbito das complexas negociações psíquicas inconscientes da infância, na luta entre a criança e
suas poderosas fantasias referentes às figuras maternas e paternas. Naquilo que Lacan chama de
“fase do espelho”,3 a criança que não está ainda coordenada e não possui qualquer auto-imagem
como uma pessoa “inteira”, se vê ou se “imagina” a si própria refletida — seja literalmente, no
espelho, seja figurativamente, no “espelho” do olhar do outro — como uma “pessoa inteira”.
A formação do eu no “olhar” do Outro inicia a relação da criança com os sistemas simbólicos fora
dela mesma, configurando, assim, o momento de sua entrada nos vários sistemas de representação
simbólica — incluindo-se aí a língua, a cultura, as diferenças sexuais e uma infinidade de matrizes
sociais, econômicas e religiosas.
Embora o sujeito esteja sempre dividido, ele vivencia sua própria identidade como se ela estivesse
“resolvida”, ou unificada, como resultado da fantasia de si mesmo como uma “pessoa” unificada que
ele formou na fase do espelho. De acordo com esse pensamento psicanalítico, essa é a origem
contraditória do que chamamos de “identidade”.
A identidade da pessoa desenvolve-se, portanto, de forma processual, ao longo do tempo, através do
inconsciente, não se tratando de algo inato, que exista na consciência no momento do nascimento do
indivíduo. Nesse caso, existe sempre algo “imaginário” ou fantasiado sobre a unidade, mas, de fato, a
pessoa humana permanece sempre “em processo”. As partes “femininas” do eu masculino, por
exemplo, que geralmente são negadas, permanecem com ele e encontram expressão inconsciente, na
vida adulta, em muitas formas não reconhecidas.
A identidade surge, portanto, não tanto da plenitude de uma identidade que já estaria dentro de nós
como pessoa, mas de uma carência de inteireza que é “preenchida” a partir de nosso exterior, pelas
formas através das quais imaginamos estar sendo vistos pelos outros. Psicanaliticamente,
continuamos buscando a “identidade” e construindo biografias que buscam agregar as diferentes
partes de nossos eus divididos numa unidade, porque procuramos recapturar o prazer fantasiado da
plenitude – o narcisismo perdido.
Nosso objetivo, aqui, não é decidir sobre a validade da ideia de pessoa, seja ela cristã, moderna ou
contemporânea. O que temos pela frente é o desdobramento da terceira teoria - a ideia de sujeito
dividido do inconsciente - como processo de subjetivação e de como esse construto teórico contribui
para se compreender a vivência do celibato.
3
LACAN, J. Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1995.
O propósito desta reflexão é marcar algumas das questões sobre a pessoa e a identidade cultural na
contemporaneidade, refletindo sobre a chamada “crise de identidade” e sobre as direções que ela está
tomando. A reflexão se volta para questões como: Que pretendemos dizer com “crise de identidade
da pessoa”? Que acontecimentos recentes nas sociedades contemporâneas precipitaram essa crise?
Que formas ela toma? Quais são suas consequências potenciais na vivência do celibato?

3. A PESSOA NA CONTEMPORANEIDADE

Após a Segunda Guerra Mundial, irrompe entre nós um surto de “ideias novas” que buscam se impor
como padrão de conduta, de práticas culturais e de princípios político-econômicos. Essas ideias estão
vinculadas à emergência de novas formas de experienciar o tempo e o espaço. Elas espelham novas
subjetividades e novo relacionamento com a experiência religiosa, a autoridade, a
afetividade/sexualidade, a autonomia e a liberdade. Elas traduzem o abalo sofrido pelas propostas
iluministas - a crise da razão ocidental, vinculada a um desenvolvimento urbano desordenado, pós-
industrial, e incidindo sobre os campos da estética, da arte, da ação política, da linguagem, da
organização do trabalho, especialmente após a crise do sistema capitalista, do bem-estar social e do
socialismo.
Outro fenômeno de “passagem” está configurado no interior da própria organização social da
atualidade: somos uma sociedade planetária, global, atingimos e inutilizamos as fronteiras do mundo,
cujas partes dependem inteiramente umas das outras.
A sociedade pós-moderna faz coexistir, de fato, diversas contemporaneidades: culturas diferentes,
não só em termos de conteúdo, mas também de densidade histórica, heranças do passado com
antecipações do futuro. Trata-se de uma sociedade multiétnica, multicultural e também multi-
histórica.
No espetáculo da mídia, tudo se torna contemporâneo, na medida em que se torna imagem presente
nas diversas telas do cotidiano, enquanto culturas e territórios continuam carregando suas próprias
histórias, pois vêm de uma fase anterior da evolução humana, de uma escala temporal diversificada.
Nesse cenário, passado e presente se mesclam, se confundem, interagem, dialogam e se modificam
mutuamente.
Sabemos que, em todo momento de transformação cultural profunda, há um movimento pendular: há
pontos convergentes e divergentes sobre as demarcações das mudanças e sobre as futuras
configurações que ora já se iniciam. Nesse caso, o que estamos chamando de crise da modernidade e
advento da pós-modenidade? Sobre isso, há pelo menos duas posições, que se entrecruzam.
A primeira delas pode ser chamada de posição da razão emancipatória, pois a pós-modernidade abre
espaço para a liberdade dos saberes, exercendo profunda ação libertadora das alteridades postergadas
pela modernidade - a natureza, o feminino, o sagrado, a arte, a etnia, a sexualidade, – fazendo com
que as novas gerações lidem com identidades sociais e políticas de alta complexidade.
A segunda posição pode ser pensada como pós-modernidade racional instrumental e manipuladora
de fenômenos e apresenta as caraterísticas do maníaco-eufórico, pois na medida em que as visões
globalizantes se esfacelam, a pessoa humana se torna desprotegida e entregue a si mesma. Nesse
caso, o abismo do abandono se aprofunda e com ele vêm as crises de depressão. Hoje, fala-se em
morte das utopias, em fim da história, em ausência de representações e metateorias. Nesse fenômeno,
a profunda decepção diante das palavras, dos símbolos e dos discursos vazios vai construindo um
novo modo de vida que se caracteriza pela fragmentação da pessoa, por uma cultura narcisista, pelo
império do gozo e do consumismo.
Juntam-se a essas “passagens”, as dimensões sociais e culturais das migrações que hoje envolvem
enormes massas de pessoas carentes de políticas de assistência e de direitos humanos. Além disso,
presenciamos uma infinidade de migrações religiosas, estéticas e artísticas, além das que se realizam
devido a novos padrões econômico-políticos, eletrônicos, tecnológicos e industriais.
Sabemos pouco sobre as profundas mutações antropológicas, étnicas e societárias que virão e,
sobretudo, sobre o fato de a história humana ter se transformado em algo fortemente vinculado à
contemporaneidade. Talvez este seja o pior momento para esquecermos as dimensões da Razão e da
Cultura. Como lembra José Paulo Netto4, “os tempos atuais são tempos difíceis para a razão”.
Essa situação tem criado uma espécie de orfandade, com substantivas perdas filosóficas, religiosas e
políticas. Os ventos pós-modernos que sopraram no mundo, colocam-nos diante de vários impasses,
dentre os quais se destaca a perda de referências totalizantes e de momentos históricos definidos. O
momento é outro e difícil para aqueles que creem em Deus, em valores filosóficos e éticos. O ser
humano contemporâneo parece não precisar de Deus e pretende que o presbítero seja relegado a
segundo plano. Apenas o valoriza ao âmbito individual de mera conveniência: festa de casamento ou
nas exéquias. É uma forma de espiritualidade mais intimista que vai à contramão da instituição. A
maioria das pessoas experimenta o divino de modo “mais livre”, numa versão mais “light” da
espiritualidade, cada pessoa dentro de si mesma ou em grupos independentes das Igrejas.
Entretanto, hoje, somos chamados, mais do que nunca, à desconstrução, à reconstrução e à
reivenção. Estamos diante de uma nova ordem simbólica, caracterizada por grande consumo de
signos e imagens, mas, antes de mais nada, encontramo-nos frente a uma profunda semiotização da

4
NETTO, J. P. Nota sobre a crise de paradigmas nas ciências sociais. In: Caderno ABESS S. Produção do
conhecimento e serviço social. São Paulo: Cortez, 1992, p.25.
vida cotidiana, provocada pela indústria cultural. Qual seria o impacto dessa da nova cultura e das
novas tecnologias sobre a Igreja e a vida dos presbíteros, religiosos e cristãos?
Isso representa uma transformação radical para os interesses dos padres e religiosos, já que devem
não só atualizar códigos e linguagens, mas também entender a novidade dessas formas culturais de
representar e intervir nas condutas humanas frente à opção pelo celibato como dom de Deus, a
serviço do Reino dos pobres.

4. A PESSOA E O CELIBATO

4.1. O Celibato como estranhamento

Temos que reconhecer que a proposta de celibato, feita por Jesus Cristo, é um fenômeno, no mínimo,
estranho.5 Tão estranho que Ele mesmo adverte que não é para todo mundo, e sim para poucos. No
Evangelho de Mateus6, temos três citações que esclarecem muito bem a questão do celibato como
algo especial e de difícil compreensão. Cristo pronuncia: “A messe é abundante, mas os operários,
pouco numerosos” (Mt 9,37) E, novamente, em Mt 19,11-12: “Ele lhes respondeu: ‘nem todos
compreendem essa linguagem, mas só aqueles a quem é concedido’. Com efeito, há eunucos que
nasceram assim do seio materno; há eunucos que foram feitos pelos homens; e há os que se tornaram
eunucos por causa do Reino dos céus. Compreenda quem puder compreender.”E, finalmente, em Mt
22,14: “Pois a multidão é chamada, mas poucos são os eleitos”.
A opção pelo celibato não é uma conduta evidente e absolutamente natural. É uma opção especial e
pouco conhecida pela razão. Causa perplexidade! Porém, é um dom,7 um carisma, ou seja, o sujeito
precisa ter recursos internos: espirituais e psicoafetivos. Noutras palavras, quem não tem aptidão,
estrutura humano-afetiva e qualidade de alma pode ter sérios problemas com esse tipo de
compromisso. O celibato é um fenômeno estranho. Ele pode afetar o psiquismo, o equilíbrio. 8
Provavelmente, os apóstolos estranharam esse convite.

5
“O estranho é aquela categoria do assustador que remete ao conhecido, ao velho, e há muito familiar”
(FREUD, 1996, p. 238). Como algo estranho poderia remeter, também, ao familiar? O que é familiar e encontra-se
oculto, “fora da vista”, “é tudo o que deveria ter permanecido secreto e oculto, mas veio à luz” (FREUD, 1996, p.243).
Trata-se de conteúdos do recalcado, pois “tudo aquilo que agora nos surpreende como ‘estranho’ satisfaz a condição de
tocar aqueles resíduos de atividade mental animista dentro de nós e dar-lhe expressão” (FREUD, 1996, p.258). O retorno
do recalcado é como o segredo que veio à luz, o incomum que se tornou comum. FREUD, Sigmund. O estranho
familiar. Edição Standart Brasilleira das Obras Completas. Rio de Janeiro: Imago, 1996, v. XVII. P. 233-271.
6
BIBLIA Tradição Ecumênica (TEB). São Paulo: Edições Paulinas. 1994.
7
Santo Agostinho é um dos místicos que mais tematizou essa questão, ao refletir sobre sua própria história e
opção, de maneira dramática no Livro VIII das Confissões. Uma de suas máximas, repetidas muitas vezes em suas obras,
a esse respeito é a seguinte: "Senhor, dá-me o que mandas e manda-me o que quiseres".
8
MORANO, C. D. Afetividade, espiritualidade e mística. Brasília: CRB/Equipe de Reflexão Psicológica, 2007.
4.2. A afetividade da pessoa como sedução do sagrado

A psicanálise analisou o fenômeno da afetividade enquanto transfiguração da pulsão em favor da


civilização e da cultura. A psicanálise formulou algo parecido com Jesus quanto à opção pelo
celibato pela via da sublimação: o celibato não é para quem quer, e sim para quem pode.
Do que falamos quando falamos de corpo, de afetividade/sexualidade?
O corpo é uma metalinguagem. Uma metáfora, um significante que diz algo: corpo-palavra. O corpo
é, pois, muito mais do que um amontoado orgânico de células, músculos e órgãos. Ele é olhar,
destreza dos dedos, generosidade das mãos ou avidez dos gulosos. O corpo é a ternura que se dá e se
recebe ou a mesquinhez dos contidos e controladores.
Freud postula que o desenvolvimento da afetividade/sexualidade humana passa por um obscuro
caminho que parte das funções biológicas, da ordem da necessidade e, posteriormente, delas se
desvia, passando para o caminho da pulsão e gerando um conjunto de sensações, imagens e fantasias
da ordem do desejo em busca da realização, da corporeidade.
A libido é uma pulsão vital, uma energia que invade o ser, impregna a existência humana e todas as
formas de relacionamento, inclusive o relacionamento com o sagrado, em busca da realização do
desejo – trata-se, nesse caso, da sedução do sagrado. O sagrado é o desejo de outro ser. É viagem,
impulso que vai longe, saída de si para acessar o estrangeiro, o diferente. E quem deterá esse desejo
que não se sacia jamais? Os místicos testemunham essa experiência, entretanto, nada sabem e nada
são capazes de dizer sobre tudo isso. Mistério de fé.
Frente ao celibato, os discípulos de Cristo não entendem nada pela via da razão. Eles se veem apenas
diante da mística do celibato, da união mística do sensual e do sagrado, da carne (corporeidade) com
o transcendente. Quando esses elementos polares da vida convergem, como acontece nos momentos
mais sublimes do desejo e da autodoação humana, nosso mundo finito toca o infinito. É a experiência
“mística da loucura”, “a louca da nossa casa”, como diria Pascal,9 “reza é que salva da loucura”,
como diria Guimarães Rosa10. Ou, segundo o Apóstolo Paulo, poderíamos nos perguntar: “Acaso,
Deus não tornou louca a sabedoria deste mundo?” (1Cor 1,20)

9
PASCAL, B. Pensamentos. São Paulo: Editora Abril Cultural. Col. Os Pensadores, 1984. A paixão, assim
como o amor, segundo o mesmo filósofo, é “a louca da nossa casa”. Mas, uma loucura que não é oposta à razão pura, ao
contrário, ela representa uma razão mais ampliada, uma razão ainda não domesticada pelo sistema dominante e não
controlada pelo poder das instituições sociais
10
GUIMARÃES ROSA, J. Grande sertão: veredas. Rio de Janeiro: Ed. Livraria José Olympio, 1972. Em meio
à narrativa, Riobaldo opina: “O que mais penso, testo e explico: todo mundo é louco. O senhor, eu, nós, as pessoas todas.
Por isso, é que carece principalmente de religião: para se desendoidecer: desdoidar. Reza é que salva da loucura. No
geral, isso é que é salvação da alma... Muita religião, seu moço. Eu cá, não perco ocasião de religião”, p.241.
O marco de toda a experiência da vida religiosa está centrado no desejo, no fascínio, na atração pelo
mistério com que o Outro (Deus) nos vê, na maneira como nos envolve, seduz e apaixona com sua
forma extraordinária e sua diferença, provocando rejeição ou aproximação e união.
Rudolf Otto11, em sua obra O sagrado, enfatizou que, em algum momento, o sagrado não era
concebido pela razão humana, somente a excitava e a despertava “como tudo o que procede do
espírito”. Ele percebeu a existência de um aspecto irracional do sagrado, que não seria ensinado ou
definido por conceitos científicos. Recorreu, então, ao vocábulo “numinoso”, para se referir a esse
momento de experiência com o absoluto. Com esse termo, Otto elevou o sagrado à categoria de
indizível, apontando para a essência irracional da religião. Apesar de seu caráter inefável, Otto
mostra a existência de testemunhos narrativos, nos textos bíblicos, a respeito dos sentimentos
provenientes da experiência do numinoso.
Com suas leituras dos textos sagrados, o pensador identificou dois elementos que constituiriam o
numinoso: um seria o mysterium tremendum (mistério atemorizante) e outro o mysterium fascinans
(mistério fascinante). Ambos estariam associados aos sentimentos que o homem experimenta em seu
contato com o numinoso.
Nas formas de relacionar-se com seu entorno, o corpo humano não se limita à simples experiência do
biológico, mas ao transcendente. Essa transcendência eleva-se à ordem do simbólico. O corpo se faz
palavra. A união com Deus é a comunhão do corpo, pois “e o Verbo se fez Carne e habitou entre
nós”. (Jo, 1.14). Assim, pela linguagem, o corpo transcende as coisas e chega à Trindade, a mais
perfeita experiência da relação amorosa de reciprocidade-alteridade.
Com a descoberta da libido - e, consequentemente, da sexualidade na infância - Freud 12 abriu uma
grande polêmica e arrebanhou uma série de acusações e injúrias. Em 1909, o pastor protestante
Oscar Pfister, seu grande amigo, escreve-lhe uma carta condenando veementemente sua teoria,
classificando-a de pansexualismo e tomando-a como uma busca desordenada de erotismo. Freud
responde ao amigo pastor citando, inicialmente, a Epístola de São Paulo aos Coríntios: “Mesmo que
eu fale em línguas, as dos homens e dos anjos, se me falta o amor, sou um metal que ressoa, um
címbalo retumbante” (1 Cor 13,1).
Freud afirma a Pfister que o erotismo em que acreditava não se restringia ao “gozo sexual grosseiro”
e, em sua obra Psicologia das massas e análise do ego (1921), ela retoma a questão:

Por chegar a essa decisão, a psicanálise desencadeou uma tormenta de


indignação, como se fosse culpada de um ato de ultrajante inovação. Contudo,
não fez nada de original em tomar o amor nesse sentido “mais amplo”. Em sua

11
OTTO, R. O sagrado. Rio de Janeiro: Edições 70, 1992, p.15.
12
FREUD, S. Psicologia das massas e analise do eu. Obras Completas, volume XV. São Paulo: Companhia das
Letras. 2011.
origem, função e relação com o amor sexual, o Eros do filósofo Platão coincide
exatamente com a força amorosa, a libido da psicanálise, tal como foi
pormenorizadamente demonstrado por Nachmansohn (1915) e Pfister (1921), e,
quando o apóstolo Paulo, em sua famosa Epístola aos Coríntios, louva o amor
sobre tudo o mais, certamente o entende no mesmo sentido “mais amplo”. Mas
isso apenas demonstra que os homens nem sempre levam a sério seus grandes
pensadores, mesmo quando mais professam admirá-los 13.

O desejo pode ser tomado como força elementar, sem direção certa ou errada, aquilo que nos queima
por dentro, perturba o sono, treme, agita, arde, clama, implora por nosso reconhecimento mas se
apresenta como enigmático e incansável. É um movimento do devir, buscando caminhos, atalhos,
desvios. Em cada um de nós, esse desejo constitui a força motriz, a tensão incessante a mover-nos
por toda a vida. Eros, Ágape e Filia como motor de vida.

4.3. O que é que sublimamos?

Definida por Freud como uma mudança de objeto e da finalidade da pulsão (a energia
afetiva/sexual), a sublimação é entendida como um modo de atividade que, extraindo sua força da
energia libidinal, desloca-a para fins e objetos socialmente valorizados e distanciando-a de
finalidades e objetos primitivos. Trata-se de uma mudança da ordem biológica para a ordem
biográfica.
O desejo pulsional humano não se vê encaminhado, programado fatalmente para um único objetivo
da procriação ou genitalidade. Encontraremos o objeto de amor na paixão estética do poeta, no poder
político do revolucionário, na investigação científica do sábio, na consagração e conversão da
sociedade injusta em um projeto do Reino de Deus do discipulado de Jesus.
“Quando os seres se abraçam, não sabem o que fazem; não sabem o que querem; não sabem o que
buscam; não sabem o que encontram” (Paul Ricoeur14). Nada está garantido na vida, no âmbito de
nosso mundo afetivo sexual. A afetividade é um obscuro objeto de desejo, figurado no mito de Platão
em que o ser humano aspira encontrar-se com uma outra parte. Somos seres separados, sempre em
busca de uma completude. Deus é um objeto de desejo com o qual a pessoa humana busca
constantemente a sua realização. Porém, Deus é objeto de desejo dos mais perigosos15.

13
FREUD, Op. Cit. 2011,p. 44.
14
RICOEUR, P. Da interpretação: ensaio sobre Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1977, p.47.
15
MORANO, C. D. Deus Imaginário. Razon e Fé. Revista Hispanoamericana de Cultura. Madri: Centro
Loyola, Tomo 231, Enero-junio 1995.
Usando a metáfora do carburador16 (dispositivo que mistura o ar e o vapor de hidrocarboneto
provocando a explosão que permite ao carro deslocar-se), poderíamos dizer que a sublimação
funciona como uma espécie de carburador de primeira grandeza, no jogo social e no
desenvolvimento da cultura: é ela que reúne os elementos aparentemente incompatíveis, cujo contato
é explosivo e altamente criativo, gerando a energia necessária para mover o mundo.
A sublimação não é uma questão de mera vontade ou de propósitos mais ou menos elevados. Ela
precisa disso, com certeza, mas somente com tais elementos, não alcançamos sucesso. Diz Freud:
“uma progressiva renúncia às pulsões constitucionais parece ser uma das bases do desenvolvimento
humano”17.
Sublima-se o que se pode, não o que se quer. “Nem todos entendem isso, a não ser aqueles a quem é
concedido”. “Por causa do Reino de Deus. Quem puder entender, entenda”. “Por que muitos são
chamados, e poucos são escolhidos.” (Mt 20,16)
A sublimação é humana, é própria de pessoas - não é algo que ocorre apenas com “padres”,
“religiosos” e “religiosas”. Como sujeitos de transformação da cultura, inúmeros artistas, poetas,
intelectuais, revolucionários e ativistas de movimentos sociais vivenciam processos de sublimação.
Há que levar em conta dois fatores no processo de sublimação:
a) a constituição psicobiológica do sujeito, a partir da qual existe maior ou menor predisposição para
sublimar;
b) as matrizes societárias da cultura, já que os fatores sócio-culturais das instituições predispõem
para maior ou menor capacidade de transfigurar a pulsão.
A religiosidade também pode ser um campo para a sublimação. Muitas vocações são originárias de
contextos psíquicos muito precários e de ambientes autoritários, o que exige uma elaboração
sublimatória das razões da opção vocacional. Em nosso contexto, o celibato pode ser um valor
socialmente importante, mas em outras culturas, como a indígena e a africana, o celibato não é visto
como um valor, e sim como uma imposição cultural.
Contemporaneamente, a sensibilidade a respeito dos temas da sexualidade tem sofrido mudanças
significativas. Nesta época, desenvolve-se uma desvalorização social do celibato. Entra em cena a
tirania do prazer. É o império obsessivo de ter que experimentar obrigatoriamente todos os prazeres.
Unem-se prazer sem compromisso e fidelidade. Valoriza-se o prazer momentâneo, presente e
fugidio.

16
MORANO, C. D. La aventura Del celibato evangélico. Gasteiz/Vitória: Frontera – Hegian. 2004.
17
FREUD, S. Três ensaios sobre a teoria da sexualidade. (1905) Edição Standard brasileira das obras
psicológicas completas.Volume VII. Rio de Janeiro: Imago. 1997, p. 117-218
A proposta de Jesus não é um efeito de massa. No evangelho, Jesus não diz “imita-me”. Ele propõe
um desafio. É um contrato de risco. Quer dizer, Jesus CONVOCA para um projeto: o Reino de Deus.
Na sociedade pós-moderna, isso começa a ser substituído por um projeto profundamente atomizado,
narcisista, consumista, presentista, focado apenas em si mesmo. Por outro lado, ter a santidade
pessoal como o único objetivo de vida pode ser um deslocamento narcisista do Seguimento de
Cristo18. O chamamento é uma aventura desafiante e a santidade virá por acréscimo. A Imitação se
mostra como um espelho narcísico, mas o Seguimento se revela como um caminho provocativo.
“Não centrar em si mesmo” seria o lema desse percurso (Fl 3,19).
Uma espiritualidade centrada em si mesma é apenas uma mudança de defeitos, pois ela fomenta
supostas virtudes como uma imagem narcisista, já que é egocêntrica. Esse tipo de espiritualidade
deixa a sublimação a meio caminho, pois a “imitação” não modifica o interior da pessoa: trata-se
mais de uma prótese frente à dificuldade de se lidar com a incompletude.

4.4. Sublimação ou narcisismo? Repressão ou vivencia do desejo?

A noção de sublimação é uma das mais complexas na teoria freudiana e está sempre relacionada à
pulsão e ao não sexual. Ela começa a aflorar no texto “Os três ensaios sobre a teoria da
sexualidade”,19 quando Freud (1997) elabora o conceito de sexualidade infantil, e depois aparece
articulada à noção de desvio. Nesse caso, o período de latência é visto como o período do
desenvolvimento sexual da criança, em que há uma supressão da sexualidade, ou seja, as pulsões
sexuais infantis não cessam, mas a energia delas é desviada do uso sexual e voltada para outros fins,
socialmente aceitos e não sexuais, em um processo de sublimação importante para as produções
culturais futuras. Vejamos a seguir:

Mediante esse desvio das forças pulsionais sexuais de suas metas, e sua
orientação na direção de novas metas (um processo que merece o nome de
sublimação), se adquirem poderosos componentes para todos os logros culturais. 20

A sublimação está associada a duas condições – intervenção narcísica e formação do ideal do eu – as


quais são responsáveis por tal processo. Quando o eu retira a libido dos objetos sexuais, essa retorna
ao eu e, posteriormente, redireciona-se para um objeto não sexual. A busca de satisfação sexual
direta é substituída por uma satisfação sublimada, como o prazer obtido por um artista em função de
18
MORANO. Op.cit. 2004.
19
FREUD, S. Op.cit. 1997.
20
FREUD, Op.cit. 1997,pp.161-162.
sua satisfação narcísica. O ideal do eu é responsável pela sublimação, uma vez que ele conserva os
ideais e valores sociais21 .
Nesse processo, o que realmente acontece, portanto, é a saída da libido de seus investimentos
objetais e a colocação dessa libido no eu, a qual depois se encaminha para um objeto não sexual.
Essa transformação implica a renúncia das metas sexuais diretas, isto é, a dessexualização e,
portanto, a sublimação.
Para o que nos interessa na discussão da opção pelo celibato, basta entendermos que a sublimação é
um mecanismo cuja base é a reorientação para novas metas, é o desvio para outros fins, não sexuais
– trata-se de um novo caminho, outra saída para a pulsão. Quando São João da Cruz 22 fala em
redirecionar e canalizar os apetites, em dar novos rumos a ele, tudo indica ser, também, esse o
significado conferido à compreensão do caminho do NADA, que aliás, é o mais recorrente: “as
paixões, quando desordenadas, produzem na alma todos os vícios e imperfeições, e, quando
ordenadas e bem dirigidas, geram todas as virtudes”23.
Sem renúncia não há sublimação. Renúncia ao destino da sexualidade e nunca ao prazer ou a
intensidade de afetividade. No campo da sublimação, não há celibatário recalcado, triste, autoritário
e não afetuoso. Há sexualidade no processo de sublimação. A sublimação não desvaloriza a
sexualidade, ela simplesmente marca uma transfiguração desse objetivo em outro que resulta em
realização e, em muitas ocasiões, em atividades religiosas, amorosas, sociais, produtivas, artísticas e
inventivas. A mudança se dá por meio de uma condensação importante através do Ideal de Eu,
alimentado por um saudável narcisismo. Sem ideal, sonho e criação não há sublimação, menos ainda
celibatário realizado.

5. O REINO DE DEUS TEM ROSTO HUMANO

O Reino de Deus tem rosto humano 24. Esse tem que ser o objeto fundamental que condensa a energia
amorosa sublimada de quem opta pela vocação do celibato. Sem um ideal sublimado é impossível
viver a plenitude do celibato. A renúncia desviada dos fins sexuais só poderá ser sustentada quando
for direcionada a um projeto altamente valorizado.
Esse projeto tem muito de aventura. E, como em toda aventura, supõe coisas muito sublimes e
também é um risco25. É uma aventura abnegada e importante. Há que ver se a pessoa que considera
21
Idem.
22
S. JOÃO DA CRUZ. Obras Completas. Petrópolis: Vozes, 2002.
23
S. JOÃO DA CRUZ. Op. cit. p.359.
24
MORANO, Op.cit.2004.
25
MORANO, Op.cit. 2004.
optar por esse chamado tem os recursos espirituais, psíquicos e sócio-institucionais para embarcar
nessa aventura.
É importante sinalizar que tanto celibatários como pessoas que vivem uma sexualidade genital ativa
por meio do matrimônio, dentro da fé católica, são chamados a esse caminho sublime e de risco:
profetismo. O Concílio Vaticano II sinalizou muito bem que a vida religiosa não tem uma perfeição
maior que a vida do matrimônio. O matrimônio, diz o Concílio, é lícito e legítimo. Defender que a
opção pelo celibato é mais completa que outros estilos de vida não é ético e está na contramão da
doutrina da Igreja. O celibatário sadio valoriza positivamente a sexualidade.
No processo vocacional, não se trata de escolher “o melhor”, e sim discernir o que Deus quer para
cada pessoa em particular em um processo único e pessoal para seguir a Jesus e ao Evangelho. Trata-
se de dizer: “celibatário, não por Deus, e sim com Deus e por Seu Reino”. Da mesma forma, ocorre
no matrimônio. Os sacramentos não são mercadorias de troca, são sinais de Deus.
É uma falácia pensar que a renúncia ao sexo permite uma maior intimidade com Deus, como se a
virgindade fosse uma imagem da incorruptibilidade de Deus e o matrimônio não 26. Como se Deus
amasse com predileção “as almas virgens semelhantes aos anjos do céus”.
Os presbíteros, religiosos e religiosas devem ter consciência de que sua vocação compreende: uma
renúncia importante; requer uma grande capacidade de compromisso de fé e político; necessita de
uma satisfação irrenunciável (um “Eros transfigurado”), situação em que a pessoa possa dizer: “em
minha vocação me sinto razoavelmente bem e me realizo no que faço.”
É lógico que a experiência de solidão do celibatário se redobra, por causa da dimensão de carência
que constitui os seres humanos. Em qualquer tipo de relação, matrimonial ou celibatária, há que se
assumir a distância e a diferença entre eu e outro, mas o celibato renuncia por completo a uma
importante opção de exclusividade.
Duas questões são relevantes a esse respeito: a primeira é que esta renúncia pode desembocar em
sentimento de superioridade27 ou orgulho religioso, onde a renúncia dos sentidos tende a desenvolver
numa certa presunção narcísica que não é apropriada. O celibatário, normalmente, tem uma espécie
de química que atrai, seduz e transmite uma fascinação entre as pessoas.
A segunda, é necessário que se faça uma diferenciação entre solidão e experiência de desolado.
Tanto na vocação consagrada, como no matrimônio existe a experiência de solidão e em ambos
existe o perigo da desolação e a depressão.
Para suportar a angústia da separação, são necessárias três experiências fundamentais:

26
MORANO, Op.cit. 2004.
27
COZZENS, D. Liberar o celibato. São Paulo: Loyola, 2008.
Em primeiro lugar, a experiência de Deus através da oração mística. Orar é, sem dúvida, uma
experiência difícil. Pelo menos, orar de modo sadio. “Não é fácil estabelecer um contato com alguém
que jamais vimos, de quem não podemos fazer uma idéia senão por analogia e de quem não temos
respostas pelas vias habituais da comunicação”28. Segundo os místicos, Deus é, por si, uma
experiência do mais profundo vazio que, como um espaço mental para além do mundo, das pessoas e
das coisas, podemos utilizar conforme nosso livre arbítrio. Sabemos que não podemos confundir
Deus com o templo, com os tempos e com os saberes, sendo esses apenas mediações que levam ao
mistério; não um mistério que produz regressão, infantilismo, inquietude e medo, mas que determina
a confiança afetuosa. Trata-se de uma concepção de espiritualidade de mistério amoroso, sem fusão
em Deus, identificado à “loucura” no sentido da subversão profética. Isaías disse: “Seguramente, tu
és um Deus que se mantêm escondido” (Is 45,15). “Depois Jesus entrou no Templo e si pôs a
expulsar os que vendiam” (Lc 19,45; Mt. 21,12). Portanto, Deus é da ordem do vazio: a expulsão dos
vendilhões e o desejo de ver o templo sem nada. A Eucaristia como ausência/presença. (Lc 22, 19-
20). A experiência de angústia e morte no Jardim das Oliveiras (Lc 22,39-44). O túmulo vazio (Lc
24, 1-5). O vazio deixado ao partir o pão com os discípulos de Emaús (Lc 24,13-35);
Em segundo lugar, temos a experiência comunitária presbiterial e o apoio afetivo de amigos e
amigas. Trata-se de uma recuperação da dimensão da amizade, quer dizer, do afeto por excelência,
em seu verdadeiro sentido de desprendimento como elemento básico da vida social. Os padres têm
dificuldade com a afetividade e a sexualidade. Trazer de volta à cena a amizade como atitude
pública, e não como espaço de intimidade privada, de amizade particular/possessiva, de controle
moral, sadismo e masoquismo. Um presbitério ou uma comunidade fundada na valorização da
amizade e da fratria traz para a cena pública todas as bases da ternura, do companheirismo, da
solidariedade e da justiça. Esse caminho leva inevitavelmente à mística. A mística é a experiência de
ternura com Deus. Suas vigas de apoio consistem nas relações de amizade com homens e mulheres
pela nutrição da dimensão lúdica e estética da vida;
Em terceiro lugar, encontramos a missão como transformação concreta do Reino de Deus. “Pelos
frutos os conhecereis”. O Reino de Deus está inserido no espaço temporal e histórico. A paixão pelo
Reino não deve ser narcisista. O Reino de Deus tem rosto humano 29: do cego de nascença, da
prostituta, da viúva, do impuro leproso, do enfermo impotente. O Reino de Deus tem rosto de tudo
que se exclui socialmente: crianças de rua, drogados, homossexuais, indígenas, mulheres violentadas,
negros, dos sem terra, dos sem teto e emigrantes excluídos. O celibatário escolheu identificar-se não
com Deus e, sim preferencialmente, pelo amor apaixonante ao Reino. Ele escolhe não a virgindade
28
MORANO, C. D. Crer depois de Freud. São Paulo: Loyola, 2003, p.61.
29
MORANO, Op. Cit. 2004.
enquanto pureza, ausência de prazer e, sim, o prazer transbordante da ternura, do bem-estar, da arte,
da beleza e da arquitetura do Reino de Deus.

6. CELIBATO POR EQUÍVOCO: OUTRAS MOTIVAÇÕES

A afetividade/sexualidade da pessoa humana, como já analisamos na reflexão anterior, é “não


sublima quem quer, mas quem pode”. A sublimação não é uma panacéia para todos os nossos
impulsos adequados ou inadequados. Se assim fosse, cairíamos numa máquina repressora de nossos
desejos. Em nenhum caso a sexualidade se deixa mudar totalmente pela via da sublimação. As
dimensões do mundo erótico, narcisista, sádico, masoquista, obcecado por poder, ambição, soberba e
avareza vão se manter sempre dentro de nós. Cabe ao sujeito elaborar suas escolhas e se
responsabilizar por seus desejos. Na elaboração das escolhas não se trata de reprimir e sim de
renunciar. Muitas vezes, a repressão é um ato inconsciente, enquanto a renúncia é uma opção
consciente.
Que tipo de gente é essa que procura o chamado de Jesus30? Esse grupo possui, razoavelmente, os
predicados necessários para assumir o celibato? Ou se trata de pessoas ingênuas, imaturas e
equivocadas quanto à sua escolha? Quais são os fatores da sociedade contemporânea que auxiliam ou
dificultam essa opção pelo Reino?
Novamente, temos que recorrer aos textos de Mateus: “Compreenda quem puder compreender” (Mt
19,11) “Pois a multidão é chamada, mas poucos são os eleitos”(Mt.22,14).
Realmente, existem alguns poucos homens e poucas mulheres que parecem possuir o carisma do
celibato, como dom de Cristo e compromisso com o Reino de Deus na história.
Há vários celibatários perturbados por uma escolha equivocada e como não trabalham esses
equívocos acabam colecionando um número significativo de sintomas. Os sintomas passam a
transbordar em condutas desordenadas no lugar da fala. O que há na “palavra” de tão amedrontador
para que o ser humano (o presbítero) frequentemente, em vez de fazê-la falar escolhe o caminho do
sintoma? O que a escolha desta forma de expressão não verbal representa para a instituição Igreja?
Apenas, o silêncio sagrado?
Assim, eles tentam dar prosseguimento à vida presbiteral com esforços que às vezes chegam às raias
do heroísmo e do masoquismo inútil. A vida tediosa de oração que levam, a irritabilidade com os
paroquianos, a opção pelo clericalismo autoritário e a capa afetiva de proteção mostram como são

30
COZZENS, D. A face mutante do sacerdócio. São Paulo: Loyola, 2001; COZZENS, D. Liberar o celibato.
São Paulo: Loyola, 2008.
superficiais e formais frente às tensões do cotidiano. Assim, são atraídos pelo poder de casas
superconfortáveis, pelas férias exóticas e pela posição social de comando e controle.
Sem o retorno ao cultivo da paixão pela causa da pessoa de Jesus Cristo e a evangelização,
lentamente, os padres perdem o sentido e o encanto. O humor, a alegria do múnus presbiteral, que
provem do amor devotado ao Senhor e sua causa, morre e o padre começa a se perguntar a que veio?
Iniciam os desvios do ministério. A amizade fraterna esfria, a dedicação diminui e o “Bom
Samaritano da vida inteira começa a ficar desiludido”. Por diversos motivos, vai-se produzindo certa
rotina, cansaço visível, resignação tediosa e frustração não dissimulada em não poucos presbíteros. É
uma realidade espinhosa, testemunhada pelos presbíteros e leigos. A depressão entra no silêncio e no
passar lento dos dias31.
Outros se escondem atrás de traços obsessivo-compulsivos e são traídos pela obstinação do dinheiro
como compensação pela falta de afeto e ternura. O poder do dinheiro enche o vazio interior e atenua
a ansiedade que acompanha a perda de poder que sofrem.
Existem casos que apontam o fascínio e a atração de padres celibatários por mulheres ou mesmo por
parceiros masculinos. Tais experiências são vividas com fortes lutas emocionais de culpa e conflitos
que dividem gravemente os sujeitos causando um sofrimento emocional dilacerante.
São incontáveis, hoje em dia, os presbíteros que trocaram a opção do seguimento de Cristo pelo
palco do altar em busca de um autoprazer narcisista. Assumem por compensação formas maníacas
celebrativas. Fazem sessões de cura. A característica principal dessas condutas maníacas é a
alteração do estado de humor, com o surgimento de forte alegria contagiante, dilatação da
autoestima, sentimento de grandiosidade. A manifestação de grandeza considera a pessoa ou o grupo
como algo especial, dotado de poderes e de capacidade única. Observa-se o aumento de atividade
motora, agitação, vigor físico e forte pressão para falar ininterruptamente as mesmas idéias. Cantar
euforicamente é um gesto freqüente nessas pessoas. Há uma necessidade constante de percepção de
estímulos externos, levando a pessoa ou seu grupo a se distrair com pequenos ou insignificantes
acontecimentos alheios à sua interioridade. A pessoa perde a consciência de sua própria condição de
alienado, tornando-se socialmente inconveniente ou insuportável.
Muitos desses homens acreditavam que realmente tinham vocação para o sacerdócio, mas com o
tempo as motivações inconscientes vieram à tona. Outros encontraram no sacerdócio celibatário um
lugar até certo ponto confortável para viver sua repressão sexual. Outros, ainda de forma perversa,
encontraram um abrigo perfeito para viver tanto a heterossexualidade como a orientação
homossexual de forma descomprometida, antiética e sem nenhuma relação de alteridade.

31
PEREIRA, W.C. Sofrimento psíquico dos presbíteros: dor institucional. Petropolis: Vozes. 2012.
CONCLUSÃO

Antigamente, a vida presbiteral caracterizava-se pela rígida vivência clerical, marcada, sobretudo por
seu caráter instituído. Regras variadas mostravam que o acento estava na autoridade centralizada na
figura de “Deus Centralizador”, que garantia a proteção e a segurança, como moeda de troca da
obediência silenciosa. Nessa realidade, as questões conflitivas sobre a vida presbiteral, por exemplo,
o celibato, eram abafadas e até mesmo dispensáveis, uma vez que o objetivo comum da afetividade
ou união fraterna, perdia lugar para a obediência cega e passiva ao bispo, formador ou provincial que
representavam a figura de Deus Pai. Não se esperava das dioceses ou congregações qualquer tipo de
criação que ultrapassasse seus deveres tradicionais e seculares de presbíteros, religiosos, ligados à
espiritualidade individual e solitária. A monarquia e a hierarquia da Igreja ocupavam o lugar de
Deus, com fortes fundamentações teológicas. A soberania eclesiástica não se fundava na relação
fraterna ou afetiva com os membros do presbitério. Atribuía-se à maior relevância ao Direito
Canônico, à lei, às normas, às regras, aos ritos e rubricas.
A partir do século XVIII, a modernidade ocidental gradativamente, implicou a morte de Deus, isso
quer dizer que a condição do poder social deslocou-se para o Estado-Nação. A secularização do
poder foi instituída. Com o Iluminismo, a modernidade trouxe o esgotamento dos modelos
institucionais tão fortemente centralizados na figura imaginária de Deus Pai centralizador, dando
lugar a uma nova forma de vida, pautada na razão, no contrato, na argumentação, na democracia, nos
direitos humanos e no poder do Estado. Era o tempo de controle disciplinar, realizado, nas diversas
instituições, pela figura da autoridade presencial: pais, professores, agentes do governo, polícia,
médicos, bispos, padres e pastores.
Hoje, um dos efeitos da pós-modernidade é a diminuição do lugar da autoridade central e também
dos caminhos tradicionais mitificados. É o tempo da descentralidade do poder. Afinal de contas, o
que significa dizer que o poder foi contemporaneamente descentralizado e marcado pela pluralidade
e por micropoderes? Isso quer dizer que o poder não se localiza apenas no espaço de Deus ou do
Estado, mas está em múltiplos espaços e em diferentes expressões. As pessoas adultas ou mais
vividas são reconhecidas pelo poder que lhes concede a idade, o saber ou a experiência; cada etnia
tem a sua forma de expressar, viver e administrar o poder; as mulheres exercem o poder de maneira
diversa dos homens; os crentes exercem o poder sobre os seus bispos e pastores; presbíteros
questionam o celibato obrigatório e aprofundam os princípios do celibato como carisma e dom;
convive-se, ainda com o poder da orientação humano-afetiva, política e social. Isso ultrapassa em
muito a luta de poder dos antigos movimentos sociais voltados apenas para interesses particulares de
grupos, que se centravam principalmente, em reivindicações trabalhistas ou econômicas.
O registro da subjetividade, quanto à maneira de viver o poder e a autoridade, foi radicalmente
transformado pelo conjunto desses processos históricos. No entanto, as novas formas de subjetivação
sobre a autoridade são experimentadas, mas intercruzam com as antigas. Não podemos ler esse
fenômeno com a lente evolucionista e sim, de forma ambivalente e processual. Os modelos de
autoridade continuam um grande dilema: afinal, o que terminou, o que ainda continua e o que é
mesmo a grande novidade do que chegou? Eis o enigma!
Assim, a diminuição da referência de autoridade eclesiástica em torno de Deus-Pai e do modelo de
autoridade centrado no Estado-Nação de instituições fortes, provocou o efeito da perda de referencias
tradicionais e do suporte de autoridade sobre o qual se realizava a ordenação da subjetividade dos
sujeitos e seus grupos e organizações. Há uma tendência, aparentemente oposta, mas igualmente
condicionada pela cultura dominante, é a conduta que encontra sua expressão radical no prazer da
“desobediência” (leia-se indiferença). O conceito é aqui apresentado sem conotação moralista, mas
para apontar que esse caminho revela um comportamento meramente individualista e carece de
componentes éticos e de alteridade. Trata-se de uma “desobediência cínica”. A conduta
“desobediência” divide o sujeito do institucional. Produz uma subjetividade atomizada, de um
mundo a parte, sem o menor contato afetivo com o outro, uma obstrução para evitar o conflito. É
lógico, que não estamos analisando a “desobediência civil”32 e sim, uma crise de autoridade, de
valores humanos, éticos e da dimensão da alteridade. De uma pessoa fragilizada, preocupada
unicamente em construir o próprio mundo, já que tudo fora dele perdeu sentido.
Afloram os questionamentos entre o certo e o errado; entre os valores aprendidos e os vividos, enfim
abriu-se um abismo no interior dos sujeitos, onde a angústia e a ansiedade acham guarida. Provocou
também uma orfandade coletiva, que tem conduzido a uma reevangelização de cultos carismáticos,
exorcismos do mal, consumo abusivo de remédios, drogas, álcool e práticas de auto-ajuda. Além da
desorientação psíquica generalizada, se percebe também um aumento de quadros depressivos, que
tem a ver com esta questão da desorientação e do vazio, onde parece que já não existem projetos
sociais coletivos ou projetos direcionados para Reino de Deus, senão os projetos de realização
individual centrado no puro império do prazer. É muito provável que Jesus, a quem os presbíteros
entregaram um dia as suas vidas com generosidade – deixando tudo – tenha cedido a sua centralidade
na vida de muitos deles, compartilhando a sua soberania com outros ídolos não confessados, mas
realmente adorados, como a liberdade absoluta e cínica, o aburguesamento existencial, o dinheiro e o
poder eclesial.

32
Desobediência civil é uma conduta de indignação de grupos e organizações que se manifestam contra graves
atitudes antiéticas de pessoas e instituições societárias.
O momento contemporâneo indica uma encruzilhada fundamental para as instituições, sobretudo, da
Igreja. Hoje em dia, os bispos, padres e cristãos não encontram, apenas, tão fortemente o poder de
Deus para apaziguar os conflitos de autoridade, da afetividade/sexualidade, do desempenho pastoral
e da opção pelo celibato.
As instituições estão fragilizadas e as autoridades estão inseguras pelo quadro pós-moderno e muitos
escolheram abandonar o barco à deriva. A ausência da autoridade gera abandono. Até onde teremos
de recuar no tempo para encontrar a Instituição ideal com a qual comparamos as nossas?
O vazio da autoridade e a falta de referencias, acentuam e aprofundam cada vez mais o desalento. O
desamparo só faz aumentar ainda mais a busca desenfreada de compulsões a pessoas, a objetos de
consumo, do tráfico de drogas lícitas (remédios) e ilícitas (cocaína, crack), sexismo compulsivo pela
Internet, vigorexia nas academias físicas. Até Deus também pode se transformar numa droga.
A opção pelo celibato entrou em crise? Diria que sim e não. Considero os tempos atuais muito
difíceis não só para a opção pelo celibato, mas, para pensar, amar e vivenciar várias condutas
humanas éticas. Alguns teólogos, presbíteros e leigos defendem a tese da opção de padres
celibatários e casados. São inúmeros os argumentos. O maior deles é a tensão entre o instituído e o
instituinte, ou seja, entre a lei e o carisma. O primeiro é sustentado apenas pela disciplina e muitas
vezes pela repressão e o recalque. O segundo é regido pela renuncia com a finalidade de amar e de
realizar-se na direção do Reino de Deus. Quando minimamente não ocorre esse processo de
sublimação os padres, inconsciente e ou conscientemente tentem a buscar vários tipos de
compensação, algumas delas simples e até normais, outras, porém, muitas vezes graves, destrutivas
para si mesmo e principalmente, atingem a causa do Reino de Deus.
Mudar simplesmente por decreto uma conduta, nesse caso, liberar o celibato, não garante a plena
transformação das pessoas. O problema do celibato não é ser apenas para poucos. Trata-se de
observar a diferença que esse pouco provoca como transformação da sociedade.
A crise das instituições é mais profunda, principalmente, na Igreja. A mudança além do decreto de
liberar ou não o celibato, exige transformações estruturais e novas atitudes de fazer as coisas
relacionadas ao carisma do fundador Jesus Cristo, a maneira de governar a Igreja, as atitudes
humana-afetivas, um plano de pastoral encarnado no mundo contemporâneo e o compromisso com
os marginalizados, rosto de Deus por excelência.
A crise de hoje pode ser um sinal de Deus. É um sintoma de uma crise muito mais profunda que
exige de todos: bispos, padres e cristãos – O Povo de Deus – começarmos um novo tempo de ser
Igreja. Ainda não esgotamos o tanto que temos a dizer; o que tudo isso significa e o que tem que ser
feito em cada Diocese, Igreja Particular e a Igreja Universal.
É preciso, urgentemente, escutar essa crise!
William Cesar Castilho Pereira
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