Você está na página 1de 704

DIMENSÕES JURÍDICAS DAS

POLÍTICAS PÚBLICAS
VOL. 1
PEMBROKE COLLINS
CONSELHO EDITORIAL

PRESIDÊNCIA Felipe Dutra Asensi

CONSELHEIROS Adolfo Mamoru Nishiyama (UNIP, São Paulo)


Adriano Moura da Fonseca Pinto (UNESA, Rio de Janeiro)
Adriano Rosa (USU, Rio de Janeiro)
Alessandra T. Bentes Vivas (DPRJ, Rio de Janeiro)
Arthur Bezerra de Souza Junior (UNINOVE, São Paulo)
Aura Helena Peñas Felizzola (Universidad de Santo Tomás, Colômbia)
Carlos Mourão (PGM, São Paulo)
Claudio Joel B. Lossio (Universidade Autónoma de Lisboa, Portugal)
Coriolano de Almeida Camargo (UPM, São Paulo)
Daniel Giotti de Paula (INTEJUR, Juiz de Fora)
Danielle Medeiro da Silva de Araújo (UFSB, Porto Seguro)
Denise Mercedes N. N. Lopes Salles (UNILASSALE, Niterói)
Diogo de Castro Ferreira (IDT, Juiz de Fora)
Douglas Castro (Foundation for Law and International Affairs, Estados Unidos)
Elaine Teixeira Rabello (UERJ, Rio de Janeiro)
Glaucia Ribeiro (UEA, Manaus)
Isabelle Dias Carneiro Santos (UFMS, Campo Grande)
Jonathan Regis (UNIVALI, Itajaí)
Julian Mora Aliseda (Universidad de Extremadura. Espanha)
Leila Aparecida Chevchuk de Oliveira (TRT 2ª Região, São Paulo)
Luciano Nascimento (UEPB, João Pessoa)
Luiz Renato Telles Otaviano (UFMS, Três Lagoas)
Marcelo Pereira de Almeida (UFF, Niterói)
Marcia Cavalcanti (USU, Rio de Janeiro)
Marcio de Oliveira Caldas (FBT, Porto Alegre)
Matheus Marapodi dos Passos (Universidade de Coimbra, Portugal)
Omar Toledo Toríbio (Universidad Nacional Mayor de San Marcos, Peru)
Ricardo Medeiros Pimenta (IBICT, Rio de Janeiro)
Rogério Borba (UVA, Rio de Janeiro)
Rosangela Tremel (UNISUL, Florianópolis)
Roseni Pinheiro (UERJ, Rio de Janeiro)
Sergio de Souza Salles (UCP, Petrópolis)
Telson Pires (Faculdade Lusófona, Brasil)
Thiago Rodrigues Pereira (Novo Liceu, Portugal)
Vanessa Velasco Brito Reis (UCP, Petrópolis)
Vania Siciliano Aieta (UERJ, Rio de Janeiro)
ORGANIZADORES
ARTHUR BEZERRA DE SOUZA JUNIOR, DANIEL GIOTTI DE
ORGANIZADORES:
LUIZ ANTÔNIO REIS JUNIOR,
PAULA, EDUARDO KLAUSNER, MAURICIO PIRES GUEDES,
ROGERIO BORBA TELSON PIRES,
DA SILVA
VANESSA VELASCO, HERNANDES BRITO REIS

DIREITOS HUMANOS
JURIDICIDADE E EFETIVIDADE
DIMENSÕES JURÍDICAS DAS
POLÍTICAS PÚBLICAS
VOL. 1

G RU PO M U LT I F O C O
Rio de Janeiro, 2019

PEMBROKE COLLINS
Rio de Janeiro, 2021
Copyright © 2021 Luiz Antônio Reis Junior, Mauricio Pires Guedes, Telson Pires,
Vanessa Velasco, Hernandes Brito Reis (org.)

DIREÇÃO EDITORIAL Felipe Asensi


EDIÇÃO E EDITORAÇÃO Felipe Asensi
REVISÃO Coordenação Editorial Pembroke Collins

PROJETO GRÁFICO E CAPA Diniz Gomes

DIAGRAMAÇÃO Diniz Gomes

DIREITOS RESERVADOS A

PEMBROKE COLLINS
Rua Pedro Primeiro, 07/606
20060-050 / Rio de Janeiro, RJ
info@pembrokecollins.com
www.pembrokecollins.com

TODOS OS DIREITOS RESERVADOS

Nenhuma parte deste livro pode ser utilizada ou reproduzida sob quaisquer meios existentes
sem autorização por escrito da Editora.

FINANCIAMENTO

Este livro foi financiado pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro, pelo
Conselho Internacional de Altos Estudos em Direito (CAED-Jus), pelo Conselho Internacional de Altos
Estudos em Educação (CAEduca) e pela Pembroke Collins.

Todas as obras são submetidas ao processo de peer view em formato double blind pela Editora e, no caso
de Coletânea, também pelos Organizadores.

D582

Dimensões jurídicas das políticas públicas / Luiz Antônio Reis


Junior, Mauricio Pires Guedes, Telson Pires, Vanessa Velasco,
Hernandes Brito Reis (organizadores). – Rio de Janeiro: Pembroke
Collins, 2021.

v. 1; 704 p.

ISBN 978-65-87489-73-5

1. Estado. 2. Políticas públicas. 3. Direito. I. Reis Junior, Luiz


Antônio (org.). II. Guedes, Mauricio Pires (org.). III. Pires, Telson (org.).
IV. Velasco, Vanessa. V. Reis, Hernandes Brito (org.).

CDD 323

Bibliotecária: Aneli Beloni CRB7 075/19.


SUMÁRIO

ARTIGOS – DIREITO CONSTITUCIONAL 17

A (NÃO) IMPLEMENTAÇÃO DE POLÍTICAS PÚBLICAS NO BRASIL: UM


PROBLEMA DE COMPETÊNCIA? 19
Thamires de Mendonça Gomes

AINDA AS VAQUEJADAS: POLÍTICAS PÚBLICAS COMO INSTRUMENTOS


PARA SUPERAR A VISÃO DA MODERNIDADE OCIDENTAL HEGEMÔNICA
SOBRE OS ANIMAIS NÃO HUMANOS 36
Luciano Rosa Vicente

O ATIVISMO JUDICIAL NO BRASIL: LIMITAÇÕES NECESSÁRIAS PARA


EQUILÍBRIO ENTRE ATUAÇÃO DOS PODERES 53
Natália Pessoa de Oliveira
Edilla Lucena de Abrantes

A POSSIBILIDADE DE HABEAS CORPUS EM FACE DAS CORREIÇÕES


DISCIPLINARES MILITARES 70
Luiz Pereira do Nascimento Junior
Roseana Barbosa da Silva

O CONTROLE DE CONVENCIONALIDADE NO ORDENAMENTO


JURÍDICO BRASILEIRO 85
Laís Miranda Feitosa Rocha
Thais Miranda Feitosa Rocha

TRIBUNAIS CONSTITUCIONAIS PÓS-PANDEMIA: PERSPECTIVAS 95


Felipe José Minervino Pacheco
A EVENTUAL RELATIVIZAÇÃO DO PRINCÍPIO DA NEUTRALIDADE DA
REDE E OS IMPACTOS SOBRE A LIBERDADE DE EXPRESSÃO DO USUÁRIO
NO CIBERESPAÇO NO BRASIL 110
Cássio Santos Borges
Denison Melo de Aguiar
Ygor Felipe Távora da Silva

POSIÇÕES POLÍTICAS EM FACE À GARANTIA CONSTITUCIONAL DA


DEMOCRACIA 128
Larissa Hofmann
Luiz Eduardo dos Santos

O ATIVISMO JUDICIAL NO CONTROLE DAS POLÍTICAS PÚBLICAS DE


SAÚDE NA PANDEMIA DO COVID-19 145
Thales Ferreira Leite

O PODER NORMATIVO DAS AGÊNCIAS REGULADORAS E A DEFINIÇÃO


DE “DROGAS” PELA ANVISA COMO COMPLEMENTO DE NORMA PENAL
INCRIMINADORA. 158
Márcio Antônio Alves de Oliveira
Marco Aurélio de Jesus Pio
Carlos Humberto Naves Junior
Célio Roberto Pinto de Araújo

OS PRINCÍPIOS INSTRUMENTAIS DE INTERPRETAÇÃO DAS NORMAS


CONSTITUCIONAIS NO BRASIL 174
Edeilson Ribeiro Bona

A CONSTITUIÇÃO BRASILEIRA FRENTE AO RACISMO ENRAIZADO NA


SOCIEDADE 192
Ana Luiza Schmidt Baracho
Lorena Chamone Vita

JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL BRASILEIRA: UMA LEITURA


DO PROCESSO OBJETIVO A PARTIR DO MODELO DE JUSTIÇA
CONSTITUCIONAL LATINO-AMERICANO 203
João Paulo Marques dos Santos
(IN)CONSTITUCIONALIDADE DA PRISÃO DO DEPOSITÁRIO INFIEL E O
SEU ENQUADRAMENTO NO TRATADO DE SÃO JOSÉ DA COSTA RICA 220
Eduardo Aires Franchi
Larissa Puhl Bif

ARTIGOS – DIREITOS FUNDAMENTAIS 239

CORONAVÍRUS E DIREITOS HUMANOS: ESTUDO SOBRE A VIOLAÇÃO


DO DIREITO À VIDA, À LIBERDADE E À SEGURANÇA NA PANDEMIA 241
Hiana de Lima Melo
Maria Gabriela Gama de Oliveira
Jurema Cristina Martins Bernardo
Anne Heracléia de Brito e Silva

JUIZADOS ESPECIAIS E A BUSCA DO CIDADÃO PELA EFETIVIDADE DO


PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL DO ACESSO À JUSTIÇA 255
Nivea Maria Dutra Pacheco

A PROPAGAÇÃO DESCARACTERIZADA DOS DIREITOS HUMANOS PARA A


NEGAÇÃO​SELETIVA DE DIREITOS. 270
Francisca Alynne Ribeiro Rolim

AS DISTINTAS DIMENSÕES DE DIREITOS FUNDAMENTAIS  283


Alexsandro de Morais Rodrigues

A LEGISLAÇÃO AMBIENTAL BRASILEIRA EM BUSCA DE EFETIVIDADE 301


Ana Keuly Luz Bezerra

A LIVRE MANIFESTAÇÃO DO PENSAMENTO E O DIREITO À IMAGEM: UMA


ANÁLISE DA COLISÃO DE DIREITOS FUNDAMENTAIS NO ÂMBITO DA
INTERNET 318
Duane Daisy Duarte de Alencar

O ACESSO À ÁGUA E A VIOLAÇÃO DE DIREITOS FUNDAMENTAIS DE


PESSOAS VULNERÁVEIS NO CURSO DA PANDEMIA DA COVID-19 NO BRASIL331
Rogers Alexander Boff
Valéria Koch Barbosa
DIREITOS FUNDAMENTAIS SOCIAIS: PANORAMA HISTÓRICO,
FUNDAMENTO TEÓRICO E EFETIVIDADE 346
Raquel Braz Scarpe Morgan

A IMPORTÂNCIA DAS POLÍTICAS PÚBLICAS NO CONTEXTO BRASILEIRO


PARA A MANUTENÇÃO DO ESTADO DE BEM ESTAR SOCIAL 362
Rafael Pimentel
Sabrina Cassol
Danilo Scramin Alves
Fabiana David Carles

TRÁFICO DE MULHERES NA AMAZÔNIA: A IMPORTÂNCIA DA GARANTIA


E EFETIVAÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS FRENTE AO COMBATE E
ENFRENTAMENTO AO TRÁFICO DE MULHERES NA REGIÃO.  374
Tânia Nunes Esashika
Thirso Del Corso Neto
Ygor Felipe Távora da Silva

A VIOLAÇÃO DOS DIREITOS DA PERSONALIDADE DOS MENORES EM


SITUAÇÃO DE CUMPRIMENTO DE MEDIDAS SOCIOEDUCATIVAS 391
Maria das Dores Lopes da Silva Ferreira Félix
Flávio Gutenberg de Oliveira

O DIREITO AO LIVRE EXERCÍCIO DOS CULTOS FRENTE AS LIMITAÇÕES


DECORRENTES DA PANDEMIA CAUSADA PELO COVID-19 408
Hilzemara de Oliveira Alcântara
Erivaldo Cavalcanti e Silva Filho

O IMPACTO DO CONHECIMENTO JURÍDICO A RESPEITO DA LEI DOS


USUÁRIOS DOS SERVIÇOS PÚBLICOS 421
Wilmara Batista Silva Aires
Ronny Cesar Camilo Mota

O DIREITO AO SANEAMENTO BÁSICO COMO DIREITO FUNDAMENTAL E


SOCIAL E O MÍNIMO EXISTENCIAL 441
Viviane Cristina Martiniuk
ARTIGOS – DIREITO SOCIAIS 463

O DIREITO À ALIMENTAÇÃO E A PROBLEMÁTICA DE SUA EFETIVIDADE 465


Túlio Almeida Rocha Pires

A JUDICIALIZAÇÃO DA SAÚDE SOB A ÓTICA DO SUPREMO TRIBUNAL


FEDERAL (STF) 482
Michelle Marinho do Nascimento
Gláucia Maria de Araújo Ribeiro

A NECESSÁRIA CRIAÇÃO DE POLÍTICAS MUNICIPAIS PARA ATENÇÃO


ÀS PESSOAS PORTADORAS DO TRANSTORNO DE ACUMULAÇÃO
COMPULSIVO 497
Natália Rossi Doro

TERRITORIALIZAÇÕES FEMININAS: EXPERIÊNCIA DE ESTÁGIO


CURRICULAR EM SERVIÇO SOCIAL EM UM CENTRO DE REFERÊNCIA DE
ASSISTÊNCIA SOCIAL 510
Desirre Vitória de Morais Mariano
Ângela Maria Pereira da Silva

DA IDEALIZAÇÃO CONSTITUCIONAL À REALIDADE: UMA ANÁLISE DA


SITUAÇÃO DA EDUCAÇÃO FUNDAMENTAL BRASILEIRA CONFORME O
IDEB (2017) 524
Carolina Polvora Bica

VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER NO CONTEXTO DA PANDEMIA DE


COVID-19 537
Larissa Puhl Bif

UM NOVO OLHAR SOBRE O ORÇAMENTO PÚBLICO PARA A SUA


UTILIZAÇÃO COMO INSTRUMENTO DE EFETIVAÇÃO DOS DIREITOS
SOCIAIS 549
Caroline Levergger Costa

OS DIREITOS SOCIAIS E A POLÍTICA PÚBLICA NA AGENDA DOS PODERES 567


Mariza Rios
Thaís Durães Mol
POLÍTICAS PÚBLICAS E A GARANTIA À SAÚDE AOS POVOS INDÍGENAS 579
Matheus Kawamata
Maria Clara Giassetti
Osvaldo Caetano Neto

DIREITOS SOCIAIS DAS MINORIAS: CONTEXTOS DE VIOLÊNCIA


FAMILIAR EM FACE DAS PESSOAS COM DEFICIÊNCIA NO BRASIL E A (IN)
EXISTÊNCIA DAS POLÍTICAS PÚBLICAS 595
Renata Gabrielle Silva de Lima

ARTIGOS – CORTES CONSTITUCIONAIS E INTERNACIONAIS 611

VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER NO SÉCULO XXI: O PAPEL DO SISTEMA


INTERAMERICANO NA DEFESA DAS QUESTÕES DE GÊNERO 613
Maria Fernanda Machado Bizzo
Vivian Frade Guedes

JUSTIÇA CONSTITUCIONAL: O PAPEL DA DEFENSORIA PÚBLICA NA


JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL DA LIBERDADE NO BRASIL 630
João Paulo Marques dos Santos

O DESAPARECIMENTO FORÇADO NO SISTEMA INTERAMERICANO DE


DIREITOS HUMANOS: UMA ANÁLISE DO CASO GOMES LUND E OUTROS
(“GUERRILHA DO ARAGUAIA”) VS BRASIL  646
Millena Correia de Souza Santos

RESUMOS  663

AS POLÍTICAS PÚBLICAS NO ATUAL CENÁRIO ECONÔMICO:


JUDICIALIZAÇÃO OU ATIVISMO JUDICIAL? 665
Thaloara Nascentes Gomes Pereira

O RACISMO INSTITUCIONAL E O FUNCIONAMENTO DAS INSTITUIÇÕES


ADMINISTRATIVAS BRASILEIRAS EM UM PROCESSO DE ESTADO DE
COISAS INCONSTITUCIONAL 670
Maria Fernanda de Carvalho Pio
Cristina Veloso de Castro
NECESSIDADE DO ABORTO NA CONJUNTURA ATUAL 673
Daniel Stefani Ribas

POLÍTICAS PÚBLICAS PARA SEGURANÇA ALIMENTAR NO CONTEXTO


ESCOLAR 675
Simone Cesario Soares

A EFETIVAÇÃO DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS SOCIAIS E ECONÔMICOS


POR MEIO DE POLÍTICAS PÚBLICAS PARA PROMOÇÃO DO
DESENVOLVIMENTO 680
Emanuelle Clayre Silva Banhos

A UTILIZAÇÃO DE PROJETOS ESTRUTURAIS ENQUANTO POLÍTICA


PÚBLICA DE EFETIVAÇÃO DA LEI Nº 11.888/2008: PRINCÍPIOS
ADMINISTRATIVOS E OBEDIÊNCIA CONSTITUCIONAL 684
Tainan Cardoso Hagge Moreira
Yuri Castro Carneiro

CONFLITOS AGRÁRIOS: UM ENTRAVE À IGUALDADE SOCIAL 689


Marcos Aureliano Bezerra Matos

DIREITOS HUMANOS E POLÍTICAS PÚBLICAS INEFETIVAS NA


AMAZÔNIA: SERIA A JUDICIALIZAÇÃO DA SAÚDE O REMÉDIO PARA AS
COMUNIDADES TRADICIONAIS À MARGEM DO COVID-19? 692
Natalia Luiza Moraes Vasques

A EFETIVAÇÃO DA CONVENÇÃO AMERICANA DE DIREITOS HUMANOS


NO BRASIL A PARTIR DO CUMPRIMENTO E EXECUÇÃO INTERNOS
DE SENTENÇAS CONDENATÓRIAS DA CORTE INTERAMERICANA DE
DIREITOS HUMANOS: UMA ANÁLISE DO CASO DAMIÃO XIMENES LOPES
VERSUS BRASIL E SUAS IMPLICAÇÕES PARA OS DIREITOS HUMANOS DAS
PESSOAS COM DEFICIÊNCIA. 698
Adriana Souza Dinelly
CONSELHO DO CAED-Jus

Adriano Rosa (Universidade Santa Úrsula, Brasil)


Alexandre Bahia (Universidade Federal de Ouro Preto,
Brasil)
Alfredo Freitas (Ambra College, Estados Unidos)
Antonio Santoro (Universidade Federal do Rio de Janeiro,
Brasil)
Arthur Bezerra de Souza Junior (Universidade Nove de Julho, Brasil)
Bruno Zanotti (PCES, Brasil)
Claudia Nunes (Universidade Veiga de Almeida, Brasil)
Daniel Giotti de Paula (PFN, Brasil)
Danielle Ferreira Medeiro da (Universidade Federal do Sul da Bahia,
Silva de Araújo Brasil)
Denise Salles (Universidade Católica de Petrópolis,
Brasil)
Edgar Contreras (Universidad Jorge Tadeo Lozano,
Colômbia)
Eduardo Val (Universidade Federal Fluminense, Brasil)
Felipe Asensi (Universidade do Estado do Rio de Janeiro,
Brasil)
Fernando Bentes (Universidade Federal Rural do Rio de
Janeiro, Brasil)
Glaucia Ribeiro (Universidade do Estado do Amazonas,
Brasil)
Gunter Frankenberg (Johann Wolfgang Goethe-Universität -
Frankfurt am Main, Alemanha)

13
DIMENSÕES JURÍDICAS DAS POLÍTICAS PÚBLICAS – VOL. 1

João Mendes (Universidade de Coimbra, Portugal)


Jose Buzanello (Universidade Federal do Estado do Rio de
Janeiro, Brasil)
Klever Filpo (Universidade Católica de Petrópolis,
Brasil)
Luciana Souza (Faculdade Milton Campos, Brasil)
Marcello Mello (Universidade Federal Fluminense, Brasil)
Maria do Carmo Rebouças dos (Universidade Federal do Sul da Bahia,
Santos Brasil)
Nikolas Rose (King’s College London, Reino Unido)
Oton Vasconcelos (Universidade de Pernambuco, Brasil)
Paula Arévalo Mutiz (Fundación Universitária Los Libertadores,
Colômbia)
Pedro Ivo Sousa (Universidade Federal do Espírito Santo,
Brasil)
Santiago Polop (Universidad Nacional de Río Cuarto,
Argentina)
Siddharta Legale (Universidade Federal do Rio de Janeiro,
Brasil)
Saul Tourinho Leal (Instituto Brasiliense de Direito Público,
Brasil)
Sergio Salles (Universidade Católica de Petrópolis,
Brasil)
Susanna Pozzolo (Università degli Studi di Brescia, Itália)
Thiago Pereira (Centro Universitário Lassale, Brasil)
Tiago Gagliano (Pontifícia Universidade Católica do
Paraná, Brasil)
Walkyria Chagas da Silva Santos (Universidade de Brasília, Brasil)

14
SOBRE O CAED-Jus

O Conselho Internacional de Altos Estudos em Direito


(CAED-Jus) é iniciativa consolidada e reconhecida de uma rede de aca-
dêmicos para o desenvolvimento de pesquisas jurídicas e reflexões inter-
disciplinares de alta qualidade.
O CAED-Jus desenvolve-se via internet, sendo a tecnologia parte
importante para o sucesso das discussões e para a interação entre os par-
ticipantes através de diversos recursos multimídia. O evento é um dos
principais congressos acadêmicos do mundo e conta com os seguintes
diferenciais:

• A bertura a uma visão multidisciplinar e multiprofissional sobre o


direito, sendo bem-vindos os trabalhos de acadêmicos de diversas
formações
• Democratização da divulgação e produção científica;
• Publicação dos artigos em livro impresso no Brasil (com ISBN),
com envio da versão ebook aos participantes;
• Galeria com os selecionados do Prêmio CAED-Jus de cada edição;
• Interação efetiva entre os participantes através de ferramentas via
internet;
• Exposição permanente do trabalho e do vídeo do autor no site
para os participantes
• Coordenadores de GTs são organizadores dos livros publicados

15
DIMENSÕES JURÍDICAS DAS POLÍTICAS PÚBLICAS – VOL. 1

O Conselho Científico do CAED-Jus é composto por acadêmicos


de alta qualidade no campo do direito em nível nacional e internacional,
tendo membros do Brasil, Estados Unidos, Colômbia, Argentina, Portu-
gal, Reino Unido, Itália e Alemanha.
Em 2020, o CAED-Jus organizou o seu tradicional Congresso In-
terdisciplinar de Políticas Públicas (ConiPUB 2020), que ocorreu
entre os dias 28 a 30 de setembro de 2020 e contou com 53 Áreas Te-
máticas e mais de 500 artigos e resumos expandidos de 59 universidades
e 31 programas de pós-graduação stricto sensu. A seleção dos trabalhos
apresentados ocorreu através do processo de peer review com double blind, o
que resultou na publicação dos livros do evento.
Esta publicação é financiada por recursos da Fundação de Amparo à
Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (FAPERJ), do Conselho Interna-
cional de Altos Estudos em Direito (CAED-Jus), do Conselho Interna-
cional de Altos Estudos em Educação (CAEduca) e da Editora Pembroke
Collins e cumpre os diversos critérios de avaliação de livros com excelên-
cia acadêmica nacionais e internacionais.

16
ARTIGOS – DIREITO
CONSTITUCIONAL

17
A (NÃO) IMPLEMENTAÇÃO DE
POLÍTICAS PÚBLICAS NO BRASIL: UM
PROBLEMA DE COMPETÊNCIA?
Thamires de Mendonça Gomes1

INTRODUÇÃO

A Carta constitucional de 1988 modificou a Constituição anterior


em relação à sistemática dos direitos fundamentais, mas pouco mudou em
relação à organização dos poderes conforme posta pelo regime anterior.
O Poder Legislativo foi o que sofreu as mais graves restrições durante
o regime militar, com a cassação dos mandatos políticos dos seus membros
e o fechamento do Congresso Nacional, momento em que o general-pre-
sidente concentrou todas as competências legislativas.
A reconstitucionalização garantiu ao Poder Legislativo a retomada
de suas prerrogativas, contudo observa-se que o Executivo ainda con-
centra a parcela mais significativa das competências legislativas. Nesse
contexto, questiona-se de quem é a competência para a implementa-
ção de políticas públicas no Brasil e qual é o papel do Poder Judiciário
quando as ações governamentais não são suficientes para concretizar os
direitos fundamentais.
Assim, o primeiro capítulo traça um pequeno panorama acerca da
retomada das prerrogativas do Poder Legislativo no cenário inaugurado
pela Constituição de 1988. O segundo, por sua vez, traz o conceito de

1 Advogada. Pós graduanda em Direito Constitucional pelo Instituto Brasiliense de Direito


Público (IDP) e graduação em Direito pela FAESA Centro Universitário.

19
DIMENSÕES JURÍDICAS DAS POLÍTICAS PÚBLICAS – VOL. 1

políticas públicas e como ele dialoga com a concretização dos direitos fun-
damentais.
O terceiro e quarto capítulos buscam compreender qual é o papel dos
Poderes Legislativo, Executivo e Judiciário na implementação de políti-
cas públicas, deixando claro que o presente artigo não pretende esgotar o
tema, mas iniciar um debate que toma difíceis contornos, estando muitas
vezes na fronteira entre o Direito e a Política.

1. NOTAS SOBRE O CONTEXTO INSTITUCIONAL


BRASILEIRO INAUGURADO COM A CONSTITUIÇÃO DE
1988

A Carta constitucional de 1988 modificou a Constituição anterior em


relação à organização dos direitos fundamentais, contudo não alterou subs-
tancialmente a organização dos poderes conforme posta pelo regime militar
de 1967 (GARGARELLA, apud BARBOZA, ROBL FILHO, 2018).
Ao longo do regime militar, o Poder Legislativo foi o que sofreu as
mais graves consequências do autoritarismo. Em diversos momentos o
Congresso Nacional foi fechado, com a cassação de mandatos e direitos
políticos dos seus membros. Nesse período o general-presidente passou a
concentrar todos os poderes legislativos (BARROSO, 2019).
A reconstitucionalização do país possibilitou que o Poder Legislati-
vo retomasse suas prerrogativas, além de ter ampliado as suas competên-
cias a partir das funções fiscalizadora e investigativa, com destaque para
a instituição das Comissões Parlamentares de Inquérito (CPI) (BAR-
ROSO, 2019).
Em contrapartida, observa-se que houve um enfraquecimento do seu
papel no processo de produção legislativa que continuou bastante reduzido
à vista dos projetos do Executivo (BARROSO, 2019). A título de exemplo,
na década de 90 algumas das leis mais importantes aprovadas pelo Congres-
so foram de iniciativa do Poder Executivo, tais como o Estatuto da Criança
e do Adolescente (Lei nº 8.069/1990), o Código de Defesa do Consumidor
(Lei nº 8.078/1990) e a Lei de Licitações (Lei nº 8.666/1993).
Um dos instrumentos previstos na Constituição de 1988 que cor-
robora com o contínuo protagonismo do Poder Executivo e minimiza o
papel do Congresso Nacional é o emprego abusivo de medias provisórias.

20
LU I Z A N TÔ N I O R E I S J U N I O R , M A U R I C I O P I R E S G U E D E S , T E L S O N P I R E S ,
VA N E S S A V E L A S C O, H E R N A N D E S B R I TO R E I S ( O R G . )

Legislar é competência atípica do Poder Executivo, no entanto, desde a


promulgação da atual Constituição (de 1988 até 2020) foram editadas e
reeditadas cerca de sete mil Medidas Provisórias. Só entre 2000 e 2001
foram editadas mais de três mil MPs.2
Trata-se de um cenário, provavelmente, não vislumbrado por Mon-
tesquieu. Segundo a clássica separação dos poderes, o Executivo sequer
poderia propor projetos de lei, sendo lícito ao Chefe de Governo a facul-
dade de vetar, mas não a faculdade de propor leis (FILHO, 2013). Contu-
do, a Constituição brasileira não só atribui ao Chefe do Poder Executivo a
possibilidade de propor projetos leis, como também lhe confere iniciativa
exclusiva em alguns casos (BARROSO, 2019).
Nesse contexto de reestabelecimento das prerrogativas do Poder Le-
gislativo cumulada com a manutenção da parcela mais substantiva das
competências legislativas na mão do Poder Executivo Federal (BARRO-
SO, 2019), indaga-se de quem é a competência para implementar e legis-
lar sobre políticas públicas no Brasil.

2. O CONCEITO DE POLÍTICAS PÚBLICAS

Neste ponto é importante trazer o conceito de políticas públicas e


como ele pode contribuir no deslinde do tema, afirmando desde já que
existe um dissenso na doutrina quanto a sua conceituação. Maria Paula
Dallari Bucci define políticas públicas como “programas de ação governa-
mental visando a coordenar os meios à disposição do Estado e as atividades
privadas, para a realização de objetivos socialmente relevantes e politica-
mente determinados” (BUCCI, 2006, p. 241).
A partir deste conceito, João Trindade Cavalcante Filho observa a ní-
tida conexão entre políticas públicas e direitos sociais, na medida em que
aquelas são o meio para a efetivação destes. Assim, a existência dos direitos

2 O número exato de medidas provisórias editadas e reeditadas, entre 1988 e junho/2020,


foi de 7.178. A pesquisa foi realizada com base nos dados disponibilizados em <https://www.
planalto.gov.br/ccivil_03/MPV/Quadro/_Quadro2003-2006.htm>. Acesso em: 07/06/2020.
Observou-se que a entrada em vigor da Emenda Constitucional nº 32 de 2001 coibiu em
parte a edição dessas medidas ao estabelecer sua vigência pelo prazo de sessenta dias,
prorrogáveis uma única vez por igual período, com trancamento da pauta até que haja deli-
beração por parte de cada uma das Casas do Congresso Nacional.

21
DIMENSÕES JURÍDICAS DAS POLÍTICAS PÚBLICAS – VOL. 1

sociais, como direitos prestacionais de segunda dimensão, é o que justifica


o aparecimento das políticas públicas (BUCCI, 1997).
Os direitos fundamentais se manifestaram na ordem institucional em
três dimensões, que traduzem um processo cumulativo e qualitativo. O
lema da revolução francesa conseguiu exprimir, muito antes, a sequência
histórica da gradativa institucionalização dos direitos fundamentais: Li-
berdade, Igualdade e Fraternidade (BONAVIDES, 2004).
Os direitos de primeira dimensão têm um cunho fortemente indi-
vidualista, fruto do pensamento liberal do século XVIII. São direitos do
indivíduo perante o Estado e demarcam uma zona de não intervenção
deste frente a autonomia individual. Apresentam um caráter negativo ao
pressupor uma abstenção por parte do Estado (SARLET, MARINONI,
MITIDIERO, 2020).
Os direitos de segunda dimensão, ao revés, atribuem ao Estado um com-
portamento positivo na realização da justiça social (SARLET, MARINONI,
MITIDIERO, 2020). Eles “nascem abraçados ao princípio da igualdade”
(BONAVIDES, 2004, p. 564) como resposta as reflexões antiliberais.
Nesse contexto, foi a partir do segundo pós-guerra, no século XX,
que um número significativo de constituições passou a consagrar os direi-
tos fundamentais de segunda dimensão (SARLET, MARINONI, MITI-
DIERO, 2020).
A Carta de 1988 trouxe o mais amplo catálogo de direitos sociais da
história do nosso constitucionalismo, seguindo em parte, a tradição inau-
gurada pela Constituição de 1934, que pela primeira vez incluiu direitos
sociais em seu texto, dando especial destaque àqueles que regem as rela-
ções de trabalho (MENDES, BRANCO, 2019).
O artigo 6º da Constituição de 1988 traz como direitos sociais a edu-
cação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o transporte, o lazer,
a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância e a
assistência aos desamparados (BRASIL, 1988).
Em relação a eficácia desses direitos, Daniel Sarmento faz uma im-
portante observação quanto ao notável avanço da doutrina e da jurispru-
dência pátria:

Até então, o discurso predominante na nossa doutrina e jurispru-


dência era o de que os direitos sociais constitucionalmente consa-

22
LU I Z A N TÔ N I O R E I S J U N I O R , M A U R I C I O P I R E S G U E D E S , T E L S O N P I R E S ,
VA N E S S A V E L A S C O, H E R N A N D E S B R I TO R E I S ( O R G . )

grados não passavam de normas programáticas, o que impedia que


servissem de fundamento para a exigência em juízo de prestações
positivas do Estado. As intervenções judiciais neste campo eram
raríssimas, prevalecendo uma leitura mais ortodoxa do princípio
da separação de poderes, que via como intromissões indevidas do
Judiciário na seara própria do Legislativo e do Executivo as deci-
sões que implicassem em controle sobre as políticas públicas volta-
das à efetivação dos direitos sociais (SARMENTO, 2008).

Hoje, no entanto, essa posição se inverteu e os direitos sociais são


autênticos direitos fundamentais, com aplicabilidade direta e eficácia ime-
diata, possibilitando a sua postulação em juízo, de forma que o Judiciário
brasileiro é um dos mais ativistas na sua proteção (SARMENTO, 2008).
Assim, a trajetória dos direitos sociais teve como ponto de partida o
seu reconhecimento como norma meramente programática, para, então,
concretizar-se de forma parcial e progressiva como norma de aplicabilida-
de imediata, conforme dispõe expressamente a Carta de 1988.
Nos próximos capítulos buscar-se-á compreender o papel dos Pode-
res da República no desafio de efetivação dos direitos sociais e implemen-
tação de políticas públicas.

3. O ARTIGO 61, §1º, INCISO II, ALÍNEA E DA


CONSTITUIÇÃO FEDERAL E A COMPETÊNCIA
EXCLUSIVA DO PODER EXECUTIVO EM MATÉRIA DE
POLÍTICAS PÚBLICAS.

Samira Souza Silva e Eduardo Martins Lima (2017), ao escreverem


acerca dos limites do Poder Legislativo para atuar sobre políticas públicas,
pontuam que o artigo 61, §1º, inciso II, alínea e, da Constituição Federal
funciona como instrumento limitador da função legiferante sobre a matéria.
Nesse sentido, importante trazer à colação o disposto no citado artigo
61, §1º, inciso II, alínea e, da Constituição Federal, in verbis:

Art. 61 – A iniciativa das leis complementares e ordinárias cabe


a qualquer membro ou Comissão da Câmara dos Deputados, do
Senado Federal ou do Congresso Nacional, ao Presidente da Re-
pública, ao Supremo Tribunal Federal, aos Tribunais Superiores,

23
DIMENSÕES JURÍDICAS DAS POLÍTICAS PÚBLICAS – VOL. 1

ao Procurador Geral da República e aos cidadãos, na forma e nos


casos previstos nesta Constituição.

§1º São de iniciativa privativa do Presidente da República as leis


que:

[...]

II. Disponham sobre:

[..]

e) Criação e extinção de Ministérios e órgãos da administração


pública, observado o disposto no artigo 84, VI.

Assim, denota-se que o referido dispositivo constitucional trata da


competência privativa do Presidente da República de criar e extinguir
Ministérios e órgãos da administração pública. Questiona-se, então, em
que medida este artigo limita a atuação do Poder Legislativo na formula-
ção de políticas públicas.
A fim de corroborar com a tese levantada, os autores se baseiam em
diversos julgados do Supremo Tribunal Federal (STF), dentre eles as
Ações Direitas de Inconstitucionalidade (ADI) nº 2.808/RS; nº 2.654/
AL; nº 2.857/ES; nº 2.646/SP; e nº 1.144/RS, bem como o Recurso Ex-
traordinário 627.255, de relatoria da Ministra Carmem Lúcia.
Decerto, em todos os casos citados, o STF declarou a lei estadual
inconstitucional, invocando o artigo 61, §1º, inciso II, alínea e. Com isso,
a jurisprudência da Corte é no sentido de que o referido artigo funciona
como instrumento limitador da atuação do Poder Legislativo.
Os julgados têm como ponto em comum leis de iniciativa do Par-
lamento que ao instituírem políticas públicas acabaram por: (I) criar ór-
gãos; (II) definir novas atribuições à órgãos previamente existentes; (III)
e alterar a composição desses órgãos, sendo que em todos os casos houve
impactos na dotação orçamentário do Poder Executivo. 3

3 A ADI nº 2.808/RS, de relatoria do ministro Gilmar Mendes, versava sobre lei estadual
que instituiu o “Polo Estadual de Música Erudita”, que além de criar o órgão, conferia atri-
buições à Secretaria de Cultura e impunha consignação anual de dotação orçamentária
para a execução do projeto. Na ADI nº 2.654/AL, cujo relator foi Dias Toffoli, ficou consig-
nado que Emenda Constitucional nº 24, do Estado do Alagoas, era inconstitucional pois

24
LU I Z A N TÔ N I O R E I S J U N I O R , M A U R I C I O P I R E S G U E D E S , T E L S O N P I R E S ,
VA N E S S A V E L A S C O, H E R N A N D E S B R I TO R E I S ( O R G . )

Assim, restou consignado que a intenção do legislativo de conferir


maior efetividade a determinados direitos individuais e sociais – através
das políticas públicas - não convalida o vício formal de iniciativa parla-
mentar que ultrapassa os limites constitucionalmente estabelecidos.
Contudo, é importante ter em mente que a implementação de po-
líticas públicas não decorre, exclusivamente, da criação de órgãos públi-
cos. Quando se fala em políticas públicas tem-se um quadro muito mais
abrangente que depende da atuação ativa do Poder Legislativo como re-
presentante do povo.
Nesse sentido, João Trindade Cavalcante Filho acrescenta que:

[...] a criação de uma política pública não se resume à instituição de


um novo órgão, e até não pressupõe essa providência. Ao contrá-
rio, a formulação de uma política pública consiste mais em estabe-
lecer uma conexão entre as atribuições de órgãos já existentes, de
modo a efetivar um direito social.

Dessa maneira, quando se diz que a formulação de políticas pú-


blicas é atividade prioritariamente atribuída ao Legislativo, não
se está conferindo ao legislador a tarefa de necessariamente criar
novos órgãos, mas principalmente de criar programas para racio-

interferia diretamente na composição do Conselho Estadual de Educação, que é órgão


integrante da administração pública que desempenha funções afetas ao Poder Executivo.
A ADI nº 2.847/ES, de relatoria do Ministro Joaquim Barbosa, referia-se à Lei de iniciativa
da Assembleia Legislativa do Estado do Espírito Santo (ALES) que criava nova atribuição à
Secretaria Estadual da Fazenda, órgão integrante do Poder Executivo daquele Estado. In-
teressante mencionar que neste caso a própria ALES reconheceu a inconstitucionalidade
da lei impugnada, tendo em vista que dispõe sobre matéria reservada ao Chefe do Poder
Executivo Estadual. A ADI nº 2646/SP – Relator Ministro Maurício Corrêa – tratou de Lei
de iniciativa parlamentar que interferia na organização da Polícia Militar do Estado de São
Paulo, órgão da estrutura do Poder Executivo. Na ADI nº 1.144/RS, a lei de iniciativa do
Parlamento disciplinava sobre a central de atendimento telefônico de serviço do executi-
vo, ao criar um único número para os serviços de emergência. Ressalta que a medida im-
plicaria em esforço significativo do Poder Executivo, com remanejamento de atribuições,
material e recursos. Por fim, no Recurso Extraordinário nº 627.255, a relatora ministra
Carmem Lúcia negou seguimento ao recurso sob o argumento que a Lei nº 2.933/99, ao
disciplinar acerca da prevenção à mortalidade materna, acabou estabelecendo atribui-
ções ao Executivo Municipal, o que afronta à Constituição.

25
DIMENSÕES JURÍDICAS DAS POLÍTICAS PÚBLICAS – VOL. 1

nalizar a atuação governamental e assegurar a realização de direitos


constitucionalmente assegurados (FILHO, 2013, p. 22).

Para o autor, o artigo 61, § 1º, II, e, da Constituição não impede que
o legislativo inicie projetos de lei sobre políticas públicas. Para tanto, ele
elenca algumas razões. A primeira delas é que a competência privativa
é exceção no ordenamento jurídico pátrio, devendo ser interpretada em
sentido estrito. Assim, as hipóteses constitucionais de iniciativa exclusiva
formam um rol taxativo e não importam interpretação ampliativa.
A partir da leitura do artigo 61, § 1º, II, e temos que a criação e a ex-
tinção de Ministérios e órgãos da administração pública são de iniciativa
privativa do Presidente da República. Dessa forma, a Constituição não
impede que o Legislativo legisle sobre políticas públicas, o que ela veda é
“a iniciativa parlamentar que vise ao redesenho de órgãos do Executivo,
conferindo-lhes novas e inéditas atribuições, inovando a própria função
institucional da unidade orgânica” (FILHO, 2013, p. 23).
É possível, pois, que o Poder Legislativo formule políticas públicas a
partir dos órgãos já existentes, a exemplo da Lei nº 12.711, de 29 de agosto
de 2012, que dispõe acerca da reserva de vagas nas universidades públi-
cas brasileiras. Trata-se de uma ação afirmativa que busca universalizar
o acesso ao ensino superior público no Brasil, com foco na população de
baixa renda, bem como nos autodeclarados pretos, pardos e indígenas, que
historicamente foram marginalizados em nossa sociedade.
No mesmo sentido, tem-se também a Lei nº 12.764, de 27 de de-
zembro de 2012, que instituiu a Política Nacional de Proteção dos Di-
reitos da Pessoa com Transtorno do Espectro Autista, atribuindo a elas
direitos específicos, além de estabelecer diretrizes para a sua consecução.
Veja-se que não houve a criação de nenhum órgão ou atribuição.
O que se buscou foi a coordenação da atuação de diversos setores do
Poder Público para produzir igualdade material e atender aos objetivos
fundamentais da República Federativa do Brasil, que é “construir uma
sociedade livre, justa e solidária; [...] erradicar a pobreza e a margina-
lização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; promover o bem
de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quais-
quer outras formas de descriminalização” (BRASIL, 1988, p. 1-2),
demonstrando que a atuação do Poder Legislativo é fundamental na

26
LU I Z A N TÔ N I O R E I S J U N I O R , M A U R I C I O P I R E S G U E D E S , T E L S O N P I R E S ,
VA N E S S A V E L A S C O, H E R N A N D E S B R I TO R E I S ( O R G . )

elaboração de políticas públicas que dão efetividade à Constituição e


ao direitos fundamentais.
Outro ponto que deve ser considerado a fim de subsidiar a competên-
cia do Poder Legislativo em matéria de políticas públicas é a aplicabilidade
imediata dos direitos fundamentais, conforme atribui a própria Constitui-
ção, no § 1º, do artigo 5º, a qual “as normas definidoras dos direitos e ga-
rantias fundamentais têm aplicabilidade imediata” (BRASIL, 1988, p. 6).
Conforme exposto anteriormente, restou superada pela doutrina e
pela jurisprudência a ideia dos direitos sociais como promessa constitucio-
nal. Os direitos de segunda dimensão são legítimos direitos fundamentais
e como tais possuem aplicabilidade imediata, tanto é que o artigo 5º, §1º
se refere aos direitos fundamentais de forma geral, sem distinção entre os
direitos individuais e sociais.
No entanto, o fato de todas as normas de direitos e garantias fun-
damentais terem reconhecida sua aplicabilidade imediata não corres-
ponde a afirmar que a eficácia jurídica de tais normas seja idêntica
(SARLET, MARINONI, MITIDIERO, 2019). O caráter prestacio-
nal dos direitos sociais, por exemplo, faz com que a sua plena eficácia
fique condicionada a uma complementação pelo legislador (MEN-
DES, BRANCO, 2019).
Nesse sentido, Ingo Sarlet Wolfgang faz uma importante contribui-
ção ao afirmar que ao lado de um dever de aplicação imediata, existe o
dever por parte dos Poderes estatais em atribuir a máxima eficácia e efeti-
vidade possível aos direitos fundamentais (SARLET, MARINONI, MI-
TIDIERO, 2019).
Assim, a Constituição impõe aos poderes públicos, inclusive o Poder
Legislativo, o dever de editar leis que promovam os direitos fundamentais,
criando condições favoráveis ao seu exercício.
Dessa forma, considerando que as políticas públicas são um meio para
a efetivação dos direitos sociais, a atuação do legislativo, através da sua fun-
ção típica de legislar, é imprescindível para a realização dos direitos socias
da forma mais ampla possível (FILHO, 2013).
Com isso, o artigo 61, § 1º, II, e da CF deve ser interpretado de forma
restritiva, possibilitando que o Poder Legislativo atue ativamente na im-
plementação de políticas públicas e na efetivação dos direitos fundamen-
tais. Nada impede, contudo, que seus atos sejam invalidados judicialmente

27
DIMENSÕES JURÍDICAS DAS POLÍTICAS PÚBLICAS – VOL. 1

caso constatado que sua iniciativa ultrapassa os limites constitucionalmen-


te estabelecidos.
Importante salientar ainda que apesar de legitimados, muitas vezes
a inércia dos poderes Legislativo e Executivo impedem a fruição dos di-
reitos fundamentais. Nesse cenário, o próximo capítulo busca analisar o
papel do Poder Judiciário na concretização dos direitos sociais, a partir da
judicialização das políticas públicas.

4. A JUDICIALIZAÇÃO DAS POLÍTICAS PÚBLICAS E O


CUSTO DOS DIREITOS

A atual Constituição consagrou os direitos sociais como legítimos di-


reitos fundamentais lhes atribuindo aplicabilidade imediata. Estabeleceu
ainda o princípio da inafastabilidade do controle jurisdicional em caso de
lesão ou ameaça à direito.
Nesse contexto, o desenho institucional arquitetado pela Carta de
1988 foi favorável à judicialização, em virtude da ampliação da constitu-
cionalização dos Direitos Fundamentais em conjunto com os meios de
acesso ao judiciário. Os direitos, principalmente os sociais, deixaram de
ser normas meramente programáticas e passaram a constituir verdadeiros
programas de ação e objetivos que implicam o dever de ação do Estado
(ROMANELLI, 2016).
As omissões passaram a ser inconstitucionais e com frequência o Ju-
diciário é instado a se pronunciar, ainda que em demandas individuais.
Tem-se então um cenário de intensa judicialização, em que o Poder Judi-
ciário influi na implementação de políticas públicas. Teria ele legitimidade
para tanto ou estaria agindo fora das suas atribuições?
Neste ponto, importante estabelecer uma distinção entre o ativismo
judicial e a judicialização da política. O ativismo judicial ocorre quando o
Judiciário atua para além de suas funções, exigindo uma atitude proativa
e criativa por parte do Juiz ou Tribunal. Já o fenômeno da judicialização
nada tem a ver com a atuação dos magistrados, mas é consequência da
própria vontade do constituinte que ampliou os mecanismos de acesso à
justiça, possibilitando que as demandas cheguem ao Judiciário.
As discussões acerca do ativismo judicial no Brasil ganham, muitas
vezes, contornos negativos, considerado um “risco ao regime democrá-

28
LU I Z A N TÔ N I O R E I S J U N I O R , M A U R I C I O P I R E S G U E D E S , T E L S O N P I R E S ,
VA N E S S A V E L A S C O, H E R N A N D E S B R I TO R E I S ( O R G . )

tico”. Mas o que seria mais lesivo para o sistema democrático brasileiro:
a insigne burocracia estatal ou a concretização dos direitos fundamentais
através de uma ordem judicial? (SANTANA, 2019)
Felipe Augusto Viégas Alves e Santana, a partir das críticas feitas por
Ackerman, sustenta que o dogma jurídico da independência dos poderes
carece de uma nova hermenêutica e acrescenta:

A ilação dedutiva extraída da obra de Ackerman mostra-nos não


ser mais concebível que direitos fundamentais permaneçam sendo
inobservados porque a separação dos poderes “coíbe” que o Judi-
ciário adentre em questões relacionadas a políticas públicas. Esse
modelo estático não é mais adequado, tampouco traz efetividade
aos direitos fundamentais. (SANTANA, 2019, p. 102)

Em muitos desses casos, a sociedade busca a concretização de direitos


mínimos, o que não raras vezes é reflexo da disfunção dos demais poderes
no cumprimento dos seus deveres institucionais (SANTANA, 2019).
Virgílio Afonso da Silva aponta que em um país marcado pela desi-
gualdade social “as políticas públicas implementadas pelos governos nunca
foram suficientes para satisfazer a imensa demanda de uma população ca-
rente de serviços em quantidade e qualidade” (SILVA, 2008, p. 587/588).
Salutar, portanto, lembrar que a aplicabilidade imediata dos direitos
fundamentais impõe à sua observância, independente da atuação do le-
gislador. Os direitos fundamentais se fundam na Constituição e não na
lei, de forma que não há a necessidade de aguardar que o legislador venha
repetir ou esclarecer os direitos fundamentais para que a norma constitu-
cional seja aplicada. Inclusive, o artigo 5º, §1º da CF autoriza que os ope-
radores do direito venham a concretizar os direitos fundamentais, ainda
que na ausência de comando legislativo, pela via interpretativa. Mais do
que isso, os juízes podem dar aplicação aos direitos fundamentais mesmo
contra a lei, na hipótese de ela não estar de acordo com a Constituição
(MENDES, BRANCO, 2019).
Por outro lado, existe um cenário de recursos escassos e o atendi-
mento aos direitos sociais envolve custos, de forma que não há como
realizar todos os direitos sociais em grau máximo. Não é só a falta de
vontade política que impede que o Brasil tenha o mesmo grau de aten-

29
DIMENSÕES JURÍDICAS DAS POLÍTICAS PÚBLICAS – VOL. 1

dimento aos direitos sociais que a Suécia e a Dinamarca (SARMEN-


TO, 2008).
Esse quadro de escassez de recursos leva o Estado, muitas vezes, a fa-
zer escolhas trágicas, estabelecendo prioridades em demandas igualmente
legítimas. Quando o Judiciário concede alguma prestação material, o Es-
tado se vê obrigado a alocar seus recursos e essa conjuntura foi resumida,
em termos claros, por Daniel Sarmento:

Ora, a cada vez que uma decisão judicial concede alguma pres-
tação material a alguém, ela retira recursos do bolo destinado ao
atendimento de todos os outros direitos fundamentais e demandas
sociais. Cada decisão explicitamente alocativa de recursos envolve
também, necessariamente, uma dimensão implicitamente desalo-
cativa. Em palavras mais toscas, sendo curto o cobertor, cobrir o
nariz implica deixar os pés de fora ... (SARMENTO, 2008).

O Juiz carece de elementos ou condições que o possibilita analisar,


sobretudo em demandas individuais, a realidade do Estado como um
todo. Ao julgar, ele está focado na resolução do caso concreto e acaba por
ignorar outras necessidades relevantes e a imposição de gerir recursos li-
mitados quando as demandas são ilimitadas (BARCELLOS, 2008).
Nesse mesmo sentido, Manoel Gonçalves Ferreira Filho acrescenta que:

[...] é preciso observar que o magistrado, habituado ao julgamento


singelo – tem direito, não tem direito – defere pedidos, sem levar
em conta o possível, sem avaliar oportunidade e conveniência, que
levam à definição de prioridades, sem estar preso a limitações or-
çamentárias, ou sujeito à lei de responsabilidade fiscal (FILHO,
2015, p. 67-81).

Outro ponto a ser considerado é que o acesso à justiça no Brasil não é


igualitário. Qual é, então, o perfil de quem recorre ao Judiciário?
Apesar do brilhante papel desenvolvido pelas Defensorias Públicas, os
seguimentos mais excluídos da população dificilmente recorrem ao Judi-
ciário para proteger os seus direitos (FILHO, 2015).
Assim, a atividade jurisdicional que deveria estar voltada à promoção
da igualdade material, acaba por provocar uma espécie de “darwinismo

30
LU I Z A N TÔ N I O R E I S J U N I O R , M A U R I C I O P I R E S G U E D E S , T E L S O N P I R E S ,
VA N E S S A V E L A S C O, H E R N A N D E S B R I TO R E I S ( O R G . )

social”, canalizando recursos e criando privilégios não universalizáveis a


quem já pertence a uma parcela mais privilegiada da população (SAR-
MENTO, 2008).
Assim como afirmou Daniel Sarmento, essa crítica não busca a re-
jeição da possibilidade de proteção dos direitos sociais. Tal premissa de-
monstraria um retrocesso. Busca-se, então, traçar critérios racionais para
o Judiciário atuar neste domínio.
É possível defender uma forma de ativismo judicial, em que os juí-
zes são legítimos para discutir as políticas públicas, e, ao mesmo tempo,
sustentar que esse ativismo é limitado por uma série de razões estruturais
(SILVA, 2008).
Embora a Constituição não estabeleça diferenciação entre direitos in-
dividuais e direitos sociais, eles não podem ser tratados como se seguissem
o mesmo padrão individualista que se baseiam as relações entre um credor
e um devedor. (SILVA, 2008).
A garantia dos direitos individuais tem um custo para o Estado. Mas a
implementação dos direitos sociais custa muito mais. As políticas públicas
não estão imunes ao controle judicial, sobretudo em questões envolvendo
os direitos fundamentais, no entanto, verifica-se que o Judiciário não pos-
sui capacidade institucional e os juízes não têm a expertise necessária para
uma visão global e coletiva das políticas públicas, que transcende a relação
individual posta em juízo.
Apesar disso, demandas dessa natureza continuarão a existir e os juí-
zes continuarão a ter que decidir sobre elas. Não há fórmula mágica para
a solução desse problema, mas há medidas que podem contribuir para a
racionalização da tutela dos direitos prestacionais.
O juiz deve estar atento ao custo da universalização das prestações
demandadas: O custeio do tratamento de um único paciente no exterior,
com o que há de mais moderno, não representa um impacto significativo
no orçamento público. Contudo, a universalização desse tratamento para
pessoas que se encontram em igual situação já demonstra uma alocação de
recursos muito maior, que traz impactos na implementação das políticas
públicas gerais. Assim, o olhar não deve estar focado só na árvore, mas em
toda a floresta (SARMENTO, 2008).
Ademais, é importante levar em consideração o quão essencial é a
prestação demandada do Estado para o titular do direito, a fim de evitar

31
DIMENSÕES JURÍDICAS DAS POLÍTICAS PÚBLICAS – VOL. 1

a alocação dos recursos das políticas públicas gerais para demandas espe-
cíficas daqueles que já pertencem às classes favorecidas, aumentando o
abismo social, quando na verdade o papel do Estado-Juiz era fomentar a
igualdade material (BARCELLOS, 2008).
Ainda que de mais difícil implementação nas demandas individuais,
os processos estruturais se mostram uma alternativa à falta de expertise do
Poder Judiciário. Através de uma ação conjunta com os demais Poderes, o
Judiciário delegaria funções objetivando a reformulação do modus operandi
das instituições estatais e o seu aperfeiçoamento, a fim de viabilizar a con-
cretização dos direitos fundamentais (SANTANA, 2019).
Assim, a problemática que envolve as políticas públicas no Brasil não
se restringe à questão da competência. A partir de uma leitura sistemática
da Constituição observa-se que a implementação de políticas públicas é um
dever dos Poderes Legislativo e Executivo e, residualmente, do Poder Judi-
ciário na promoção da igualdade material e concretização dos direitos fun-
damentais. Nesse sentido, o próprio texto constitucional prevê mecanismos
de controle, quando verificado que um dos poderes ultrapassou os limites
constitucionalmente estabelecidos ao instituir uma política pública.
Ademais, o Brasil tem um problema estrutural, típico dos países em de-
senvolvimento, cujos recursos são limitados e as demandas ilimitadas, de for-
ma que não é só a falta de interesse político que leva o país a não ter o mesmo
índice de desenvolvimento humano que os países nórdicos, por exemplo.
Esse cenário impõe uma atuação conjunta entre os poderes aliado ao
estudo morfológico da realidade brasileira e ao diálogo com a sociedade
civil, a fim de compreender quais são as maiores necessidades da popula-
ção com a alocação dos recursos para os setores mais vulneráveis, buscando
a eficiência do gasto público e a potencialização dos direitos fundamentais,
para que eles sejam realizados em maior medida.

CONCLUSÕES

A partir das competências constitucionalmente estabelecidas, as fun-


ções dos Poderes Legislativo e Executivo se complementam na empreita-
da de concretizar os direitos fundamentais.
O artigo 61, §1º, II, e, da Constituição de 1988, ao dispor acerca da
competência privativa do Presidente da República em extinguir e criar

32
LU I Z A N TÔ N I O R E I S J U N I O R , M A U R I C I O P I R E S G U E D E S , T E L S O N P I R E S ,
VA N E S S A V E L A S C O, H E R N A N D E S B R I TO R E I S ( O R G . )

Ministérios e órgãos da administração pública, não impede que o legisla-


tivo opere ativamente na implementação de políticas públicas, mas baliza a
sua atuação no que tange a (a) criação de órgãos, (b) a atribuição de novas
funções a órgãos previamente existentes e (c) a alteração da composição
desses órgãos.
Contudo, observa-se que em um país marcado pela desigualdade so-
cial, onde muitas vezes as necessidades mínimas não são garantidas, a ação
governamental não é suficiente para a garantia da maior efetividade dos
direitos fundamentais.
Assim, o Judiciário age no controle das políticas públicas na tentativa
de concretizar esses direitos, contudo a sua falta de expertise pode acabar
corroborando para o aumento do abismo social existente, tendo em vista
o perfil de quem recorre ao Judiciário.
Nesse sentido, foram traçadas algumas propostas na tentativa de ra-
cionalizar a atuação do Poder Judiciário, como a análise dos impactos da
universalização da medida pretendida e o estabelecimento de um processo
estrutural, que busca o diálogo entre as instituições para o aperfeiçoamen-
to das políticas públicas.
Retomando o ponto fulcral da discussão deste trabalho, a implemen-
tação de políticas públicas no Brasil não decorre da atuação de um Poder
isolado, mas do conjunto de ações entre os Poderes da República, que
sendo independentes e harmônicos entre si, trabalham juntos para a maior
efetivação dos direitos fundamentais.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BARCELLOS, Ana Paula de. Constitucionalização das políticas pú-


blicas em matéria de direitos fundamentais: o controle políti-
co-social e o controle jurídico no espaço democrático. In: Revista de
direito do Estado. 3 ed., 2008, p. 17-54.

BARROSO, Luís Roberto. Curso de direitos constitucional con-


temporâneo: os conceitos fundamentais e a construção do novo mo-
delo. 8. ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2019. Disponível em: <ht-
tps://integrada.minhabiblioteca.com.br/#/books/9788553610112/
pageid/0>. Acesso em: 06/06/20.

33
DIMENSÕES JURÍDICAS DAS POLÍTICAS PÚBLICAS – VOL. 1

BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 15. ed. São


Paulo: Malheiros, 2004.

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988,


1988. Disponível em:<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Cons-
tituicao/Constituicao.htm>. Acesso em: 07/06/20.

BUCCI, Maria Paula Dallari. Direito administrativo e políticas pú-


blicas. São Paulo: Saraiva, 2006.

BUCCI, Maria Paula Dallari. Políticas públicas e o direito adminis-


trativo. Brasília, a. 34, n. 133, jan./mar. 1997.

FILHO, João Trindade Cavalcante. Limites da iniciativa parlamentar


sobre políticas públicas: uma proposta de releitura do art. 60, §1º,
II, e, da Constituição Federal. Núcleo de Estudos e Pesquisas do
Senado, Brasília, p. 5-33, fev. 2013.

FILHO, Manoel Gonçalves Ferreira. A separação dos poderes: a dou-


trina e a sua concretização constitucional. Cadernos Jurídicos da Es-
cola Paulista da Magistratura, São Paulo, ano 16, nº 14, p. 67-81,
abr./jun. 2015.

GARGARELLA, Roberto. apud BARBOZA, Estefânia Maria Queiroz.


ROCL FILHO, Ilton Norberto. Constitucionalismo abusivo:
fundamentos e análise da sua utilização do Brasil contemporâneo.
Direitos Fundamentais e Justiça. Belo Horizonte, ano 12, n. 39,
p. 79-97, jul./dez. 2018.

MENDES, Gilmar Ferreira. BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso


de direito constitucional. 14. ed. rev. e atual. – São Paulo: Saraiva
Educação, 2019 (Série IDP), Disponível em: <https://integrada.mi-
nhabiblioteca.com.br/#/books/9788553610945/pageid/0>. Acesso
em: 07 jun. 2020.

ROMANELLI, Sandro Luís Tomás Ballandre. Suprema (in)depen-


dência: mecanismos da relação entre governos e o supremo tribu-
nal federal. 218 p. Tese (Doutorado na área de Direitos Humanos e
Democracia). Setor de Ciências Jurídicas, Universidade Federal do
Paraná, Curitiba, 2016.

34
LU I Z A N TÔ N I O R E I S J U N I O R , M A U R I C I O P I R E S G U E D E S , T E L S O N P I R E S ,
VA N E S S A V E L A S C O, H E R N A N D E S B R I TO R E I S ( O R G . )

SANTANA, Felipe Augusto Viégas Alves e. Reformas Estruturais e o


Estado de Coisas Inconstitucional. 189 p. Dissertação (Mestrado em
Direito Público) Curso de Pós-Graduação do Instituto Brasiliense
de Direito Público, Brasília, 2019.

SARLET, Ingo Wolfgang; MARINONI, Luiz Guilherme; MITIDIE-


RO, Daniel. Curso de direito constitucional. 8. Ed. São Paulo:
Saraiva Educação, 2019. Disponível em: <https://integrada.minha-
biblioteca.com.br/#/books/9788553610105/>. Acesso em: 07/06/20.

SARMENTO, Daniel. A Proteção Judicial dos Direitos Sociais: al-


guns parâmetros ético-jurídicos. Disponível em: <http://files.camo-
linaro.net/200000426-33a4135980/A-Protecao-o-Judicial-dos-Di-
reitos-Sociais.pdf>. Acesso em: 28/05/20.

SILVA, Samira Souza. LIMA, Eduardo Martins de. Os limites do poder


legislativo para atuar sobre políticas públicas. Revista de Direitos
Sociais e Políticas Públicas. Brasília, v. 3, n. 01, p. 101-111, Jan/
Jun. 2017.

SILVA, Vírgílio Afonso. O judiciário e as políticas públicas: entre


transformação social e obstáculo à realização dos direitos sociais. In
Cláudio Pereira de Souza Neto & Daniel Sarmento, Direitos so-
ciais: fundamentação, judicialização e direitos sociais em espécies,
Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008.

35
AINDA AS VAQUEJADAS: POLÍTICAS
PÚBLICAS COMO INSTRUMENTOS
PARA SUPERAR A VISÃO DA
MODERNIDADE OCIDENTAL
HEGEMÔNICA SOBRE OS ANIMAIS
NÃO HUMANOS
Luciano Rosa Vicente4

O caput do art. 225 da CF/88 prevê que todos têm direito ao meio
ambiente ecologicamente equilibrado, e do seu § 1º, VII, verte que para
assegurar a efetividade desse direito incumbe ao poder público proteger a
fauna e a flora, vedadas as práticas que submetam os animais à crueldade.
Já do caput do art. 215 aflora que “o Estado garantirá a todos o pleno exer-
cício dos direitos culturais e acesso às fontes da cultura nacional, e apoiará
e incentivará a valorização e a difusão das manifestações culturais”.
Esses dois comandos constitucionais se tensionaram fazendo cambalear a
manifestação cultural da vaquejada, depois que o STF julgou a ADI nº 4.983/
CE (2016), declarando inconstitucional a Lei Cearense nº 15.299/2013, que
regulamentou a vaquejada como prática desportiva e cultural no Estado do Ceará.
Entretanto, após a votação com placar de 6x5 no STF, o Congresso
Nacional movimentou-se e restaurou as forças do evento talhando a Lei
nº 13.364/2016, que o reconheceu como patrimônio cultural imaterial, e

4 Mestrando em Direito no Centro Universitário de Brasília (Uniceub); especialista em Direi-


to Disciplinar, Direito Constitucional, Direito Administrativo, Direito Penal e Direito Público;
bacharel em Direito e bacharel em Ciência Contábeis.

36
LU I Z A N TÔ N I O R E I S J U N I O R , M A U R I C I O P I R E S G U E D E S , T E L S O N P I R E S ,
VA N E S S A V E L A S C O, H E R N A N D E S B R I TO R E I S ( O R G . )

em seguida a Emenda Constitucional (EC) nº 96/2017, convertida no § 7º


do art. 225 da CF/88: “... não se consideram cruéis as práticas desportivas
que utilizem animais, desde que sejam manifestações culturais ...”.
O novo dispositivo deu fôlego à visão da modernidade ocidental he-
gemônica sobre o meio ambiente e os animais não humanos, que é de
separação entre homem e natureza, com supremacia daquele sobre esta,
que existiria apenas para servi-lo. Assim, o problema voltou ao STF para
discussão de constitucionalidade, agora da EC.
A pergunta que este estudo movimentou foi qual dos dois direitos
tensionados deve respirar com mais folga, a partir da visão hodierna sobre
o meio ambiente, com o objetivo de esclarecer qual das posições está mais
afinada com o caderno normativo brasileiro e as políticas públicas de pro-
teção aos animais adotadas nas três esferas estatais.
O debate orbita duas posições bem delineadas: de um lado defen-
dem-se os direitos culturais, o entretenimento e a economia agitados na
vaquejada, enquanto de outro abraçam-se o direito dos animais não serem
maltratados. Assim como no placar acirrado no STF, a sociedade também
está dividida, precisando de informações qualificadas para compreender a
discussão: foi o que justificou este estudo.

1. Pela defesa da cultura, do entretenimento e da


economia

Obviamente o Governo Cearense, autor da Lei atacada na ADI, ma-


nifestou-se favoravelmente à vaquejada, ressaltando a importância histó-
rica do evento. Defendeu sua constitucionalidade, alegando que ao re-
gulamentar a atividade protegeu os bens constitucionais ditos violados,
fixando sanções aos infratores.
Ponderou que a Lei obriga a adoção de medidas protetivas da saúde
dos animais, acrescentando que a vaquejada foi reconhecida como “prova
de rodeio” pela Lei nº 10.220/2001, e os praticantes do esporte, como
atletas profissionais. Frisou que se trata de direito cultural plasmado no ar-
tigo 215 da CF/88, que incentiva o turismo e gera empregos, tratando-se
de evento importante para a economia local.
Arrematou que não se pode confundir a vaquejada com as “brigas de
galo” e “farra do boi”, pois nela inexiste crueldade com os animais. Há

37
DIMENSÕES JURÍDICAS DAS POLÍTICAS PÚBLICAS – VOL. 1

de se reconhecer que é coerente não comparar aquelas duas modalidades


com as vaquejadas, porque lá a mutilação ou a morte dos animais eram a
regra, enquanto nas vaquejadas exceção.
Além disso, na “farra do boi” não há técnica, habilidade e treina-
mento, diferentemente dos vaqueiros, que por força da Lei nº 12.870/13
são profissionais habilitados. Na vaquejada não há intuito premeditado de
machucar os bois, por isso que em regra não ocasiona lesões nos animais
envolvidos.
Outra concordância com o Governo Cearense, é que a Lei impug-
nada foi uma iniciativa positiva para proporcionar mais segurança aos ani-
mais, atendendo ao comando constitucional, na medida em que previu
várias medidas de segurança e controle do evento. Não fosse por ela, as
vaquejadas continuariam ocorrendo sem aquelas medidas protetivas, o
que significa dizer que quando o Estado se moveu para regulamentar a
matéria, velando pela segurança dos animais, foi premiado com a declara-
ção de inconstitucionalidade.
A Associação Brasileira de Vaquejadas (Abvaq) participou da ADI
como amicus curiae, alegando que atualmente há uma série de medidas pro-
tetivas aos animais utilizados no evento. Nesse rumo, adota-se o “Regula-
mento de bem-estar animal”, que proíbe aos competidores, por exemplo,
açoitarem os cavalos, além de prever obrigatoriedade de assegurar que os
animais não tenham fome ou sede, nem ferimentos e doenças.
Como uma das críticas era a puxada brusca da cauda dos bois, desen-
volveu-se um protetor de cauda que amortece o impacto e reduz a quase
zero a possibilidade de acidentes nesse ponto nodal da atividade. Nesse
cariz, ampliam-se os cuidados com o bem-estar dos animais nas vaqueja-
das, e seus proprietários são os primeiros interessados que eles não sofram
danos na competição.
No tocante aos aspectos econômicos, a associação argumentou que
só no Ceará ocorreram 730 vaquejadas em 2015 e que o evento gera 600
mil empregos no Nordeste brasileiro. Embora os direitos em tensão na
ADI orbitassem cultura e meio ambiente, é certo que o aspecto econômi-
co em alguma medida deve ser sopesado.
Pelo flanco cultural, Cascudo (1966, p. 8) ensinou que a vaquejada se
difundiu a partir do século XIX, deixando de ser uma técnica empregada
na lide rural para se tornar uma demonstração esportiva e cultural do seu

38
LU I Z A N TÔ N I O R E I S J U N I O R , M A U R I C I O P I R E S G U E D E S , T E L S O N P I R E S ,
VA N E S S A V E L A S C O, H E R N A N D E S B R I TO R E I S ( O R G . )

povo. Já Prado Jr. (1972, p. 94), remonta a origem da vaquejada como ma-
nifestação cultural do vaqueiro nordestino, a partir da prática da apartação
nas fazendas de gado, desde a Bahia ao Ceará.
Não há espaço para dúvidas que a vaquejada é um grande aconteci-
mento do calendário dos vaqueiros de várias regiões do país, notadamente
do Nordeste, alçado a evento esportivo e festivo que pertence à cultura
secular dos nordestinos. Por isso, mereceria preservação, dentro de parâ-
metros e condições que respeitem a saúde dos animais, como as que vem
sendo adotadas e podem ser aprimoradas.
Outro aspecto abordado é que soa contraditório descartar uma Lei
que prevê medidas protetivas aos animais e limites aos vaqueiros, num
país que consome toneladas de carne bovina diariamente, num sistema
de abate angustiante, que Vieira (2007) descreveu com detalhes desde o
nascimento ao abate do boi.
Embora pareça que o animal não sinta dor, trata-se de um percurso
sinistro que os 43 milhões de bois abatidos anualmente percorrem para
que os brasileiros comam em média 26 kg de carne bovina ao ano, figu-
rando como o terceiro maior consumidor do mundo, atrás da Argentina
e EUA.
Por essas razões, considerar a Lei Cearense inconstitucional agrediria
o direito à cultura, prejudicaria a economia, fulminaria milhares de postos
de trabalho e retiraria do ordenamento uma Lei que protege os animais.
Por isso, ela deveria ser vista como um passo importante na trilha por uma
interação cada vez mais harmoniosa entre os animais humanos e não hu-
manos, argumentam os defensores das vaquejadas.

2. Pela defesa dos animais

Foi da Procuradoria-Geral da República (PGR) a iniciativa de


guerrear contra a Lei Cearense, argumentando que ela viola o artigo
225, § 1º, inciso VII, da CF/88, de vedação à crueldade aos animais.
Segundo a PGR, trata-se de prática esportiva e cultural na qual uma
dupla de vaqueiros busca derrubar o boi puxando-o pelo rabo dentro
da demarcação.
Na competição, prossegue, o animal é enclausurado, açoitado e insti-
gado a correr quando abrem o portão, sendo conduzido pela dupla de va-

39
DIMENSÕES JURÍDICAS DAS POLÍTICAS PÚBLICAS – VOL. 1

queiros competidores até uma área marcada com cal, agarrado pelo rabo,
que é torcido até ele cair com as quatro patas para cima.
Para provar suas alegações, a PGR apresentou laudo técnico de es-
pecialista demonstrando a presença de lesões traumáticas nos animais em
fuga, com possibilidade de a cauda ser arrancada e consequente compro-
metimento dos nervos e da medula espinhais. Juntou, também, estudo da
Universidade Federal de Campina Grande/PB, revelando lesões irrepará-
veis nos cavalos utilizados, em razão do esforço empreendido.
Ao fazer uma retrospectiva jurídica sobre os direitos fundamentais no
ano de 2016 no Brasil, Sarlet (2016) alinhou-se à corrente vencedora no
STF: as práticas culturais e desportivas que impliquem crueldade com os
animais são vedadas pela CF/88. O que chama a atenção na argumentação
do professor é que para ele o tema não poderia ser objeto de ponderação
com outros princípios, como ocorreu à farta na votação pretoriana.
Isso porque, a vedação dos maus tratos é uma regra constitucional,
não um princípio, por isso já foi objeto de ponderação do legislador cons-
tituinte quando da sua elaboração e aprovação no Congresso Nacional,
descabendo novo balanço de forças.
Cirne (2019, pp. 4-22) toca pela mesma partitura de defesa dos ani-
mais, mas com abordagem diferente, desde a perspectiva do patrimônio
cultural, já que a Lei nº 13.364/2016 reconheceu a vaquejada como patri-
mônio cultural imaterial e a EC nº 96/2017 definiu que não são cruéis os
esportes que utilizem animais em manifestações culturais.
No seu estudo, a professora concluiu que o debate legislativo não se
preocupou com a ofensa à constituição, porque na questão das vaquejadas
ignorou, por exemplo, a temporalidade da proteção cultural, passível de
revisão a cada dez anos, e a posição contrária do Instituto do Patrimônio
Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) sobre o reconhecimento da va-
quejada como patrimônio imaterial.
O alerta da professora foi preciso, pois se o órgão competente para
reconhecer um patrimônio cultural não reconheceu, não poderia o Con-
gresso Nacional fazê-lo, como bem pontuou o próprio IPHAN no seu
Ofício nº 852/2016 - PRESI/IPHAN (2016). No documento, o órgão
registrou que a inserção da vaquejada no inventário do patrimônio cultu-
ral é indevida, pois não respeitou a avaliação técnica e não será reavaliada
no tempo.

40
LU I Z A N TÔ N I O R E I S J U N I O R , M A U R I C I O P I R E S G U E D E S , T E L S O N P I R E S ,
VA N E S S A V E L A S C O, H E R N A N D E S B R I TO R E I S ( O R G . )

Moraes (2019, pp. 179-194) também deu cota de colaboração à defesa


dos animais ao analisar o Acórdão do STJ no REsp nº 1.797.175/SP, que
será abordado adiante e tratou da guarda de um papagaio. A professora
cearense ressaltou a relevância do alargamento do alcance do princípio da
dignidade na CF/88, dando as mãos à jurisprudência constitucional lati-
no-americana afirmativa dos direitos da natureza e da relação harmoniosa
entre os seres.
Juíza federal, defensora dos direitos da natureza e estudiosa do consti-
tucionalismo latino-americano, Moraes citou exemplos de duas decisões
da Justiça Argentina em 2019, nas quais se reconheceram os direitos de
liberdade de um Orangotango e um chimpanzé que estavam sofrendo de
solidão por confinamento em zoológicos.
Decisões como essas encontram ressonância no magistério de Zaf-
faroni (2002, p. 493), que há muito defende uma interpretação jurídica
dinâmica para reconhecer aos animais a condição de sujeito de direitos,
impondo sua proteção jurídica no âmbito correspondente.
É tão certo quanto o movimento da Terra ao redor do sol que os avan-
ços do Direito são demorados, tentando alcançar a evolução social. Nesse
itinerário de raciocínio, há dez anos Zaffaroni (2010, p. 125), ao comentar
sobre a CF Equatoriana de 2008, anotou que “a incorporação da Natureza
ao direito constitucional em caráter de sujeito de direito abre um novo
capítulo na História do Direito”. E arrematou: “uma nova jurisprudência
iniciará, com conseqüências práticas difíceis de prever”. Foi o que ocor-
reu nas decisões mencionadas em favor do papagaio e dos macacos, entre
outras que já campeiam pelas Cortes mundo afora.
Sobre essas Decisões, Silveira (2018, p. 103) ponderou que são im-
portantes precedentes mundiais que sustentam a tese de que a correta clas-
sificação jurídica dos animais é um importante passo para o acesso deles
à Justiça e desenvolvimento do bom direito. Concorda-se que realmente
é um passo importante, agregando-se que vários outros vêm sendo dados
nesse mesmo sentido há alguns anos, como o da Corte Constitucional
Colombiana ao reconhecer o Rio Atrato como sujeito de direitos em
2016.
Tratou-se de uma demanda proposta por entidades da sociedade civil
colombiana, na qual a Corte Suprema reconheceu, em votação unânime,
o rio Atrato como sujeito de direitos, e impôs sanções ao poder público

41
DIMENSÕES JURÍDICAS DAS POLÍTICAS PÚBLICAS – VOL. 1

pela omissão quanto à degradação causada por uma empresa contra o rio,
sua bacia e afluentes. Essa decisão não é novidadeira, sendo que a pioneira
plantou suas raízes na Corte Constitucional Equatoriana em 2011, quan-
do reconheceu a personalidade jurídica do Rio Vilcabamba.
Segundo Câmara e Fernandes (2018, p. 230), esses dois Acórdãos
são indicação inequívoca da tendência de superação do paradigma antro-
pocêntrico que vigorou nos últimos 500 anos na América Latina. Todas
essas contribuições doutrinárias e jurisprudenciais harmonizam-se com o
entendimento que prevaleceu no STF, de vedação às vaquejadas e quais-
quer eventos que causem sofrimento aos animais.

3. O debate no STF

O resultado da votação no Plenário do STF foi acirrado, com placar


de 6x5, vencendo os defensores da constitucionalidade da Lei analisada e,
por extensão, pela extinção das vaquejadas na forma como ocorrem. De-
fenderam essa linha os ministros Barroso, Carmen Lúcia, Celso de Melo,
Lewandovski, Marco Aurélio e Rosa Weber. Foram vencidos os ministros
Fachin, Fux, Gilmar Mendes, Teori e Toffoli.
Dada a complexidade do tema, os ministros Barroso e Toffoli inter-
romperam o julgamento com pedidos de vistas, e após estudarem melhor
os autos se posicionaram em polos opostos. Analisando o caso da prisão a
partir de decisão colegiada, Casagrande (2018) ponderou que “uma deci-
são 6x5 é uma não decisão”, porque na jurisdição constitucional brasileira
“maiorias precárias não estabilizam o direito”.
O professor, que têm vários estudos comparando o direito brasileiro
com o norte-americano, sustenta que embora na Suprema Corte dos EUA
sejam cada vez mais frequentes decisões por apertada maioria de 5x4, lá
os princípios da integridade e da colegialidade têm mais força, por razões
institucionais que faltam ao sistema brasileiro de jurisdição constitucional.
Casagrande indica quatro razões que fragilizam nossa Corte Supre-
ma, mas aqui se citará apenas uma, para não desviar o foco: a mudança
frequente de ministros. No caso das vaquejadas, esse fator será preponde-
rante, porque com o falecimento do ministro Teori, Alexandre de Moraes
o substituiu, o que pode alterar o placar na próxima votação para os mes-
mos 6x5, só que para o outro lado, como ocorreu na votação da prisão a

42
LU I Z A N TÔ N I O R E I S J U N I O R , M A U R I C I O P I R E S G U E D E S , T E L S O N P I R E S ,
VA N E S S A V E L A S C O, H E R N A N D E S B R I TO R E I S ( O R G . )

partir de decisão colegiada com o câmbio de posição do ministro Gilmar


Mendes.
Há que se levar em conta, ainda, as duas mudanças que ocorrerão em
breve na Corte, com a aposentadoria dos ministros Celso de Melo e Mar-
co Aurélio. Sendo assim, a próxima votação sobre o tema, agora envol-
vendo a EC nº 96/2017, tem resultado imprevisto, podendo-se consolidar
a posição contrária às vaquejadas, ou haver uma virada para confirma-las
como patrimônio cultural que merece ser preservado.
No tocante ao debate do mérito da ADI no Plenário, se abordará
apenas alguns aspectos interessantes dos votos que melhor representaram
as duas frentes da discussão. O ministro Teori trouxe um argumento novo
em relação aos de seus colegas: o que estava em julgamento não era a cons-
titucionalidade das vaquejadas, mas da Lei que a regulamentava no Ceará,
na qual não via nenhuma inconstitucionalidade.
Isso porque, argumentou o ministro, todos os dispositivos da Lei se
alinhavam à CF/88 para evitar que houvesse crueldade aos animais nos
eventos, portanto eram dispositivos protetivos que vinham em benefício
dos animais. Gilmar Mendes alinhou-se a Teori e agregou novos argu-
mentos, comparando outras atividades esportivas que também podem
causar danos aos animais e nem por isso são vetadas.
O ministro Barroso se opôs a ambos os raciocínios: primeiro defen-
deu que torcer o rabo do touro, derrubando-o em alta velocidade, e dei-
xando-o com as quatro patas para cima é inerentemente cruel e não há al-
ternativa. Há atividades em que o risco e a crueldade são inerentes, como
a vaquejada, e atividades em que o risco e a crueldade são contingentes,
como nas corridas de cavalo, ponderou Barroso.
O professor também discordou que se discutia apenas a constitucio-
nalidade da Lei Cearense, porque para ele debatiam se a prática, em si, é
legítima, discutindo uma tese, de forma que se prevalecesse o entendi-
mento de que a crueldade é inerente à vaquejada e, portanto, ela é incons-
titucional, essa tese produziria efeitos para além do caso concreto.
Ambas as posições estão muito bem fundamentadas, com argumen-
tos robustos em ambos os sentidos, porque realmente o que se julga na
ADI é a constitucionalidade da Lei vergastada, mas também é verdade que
sendo reputada inconstitucional, a tese vitoriosa que sustentou a decisão
passará a ser utilizada no sistema jurisdicional.

43
DIMENSÕES JURÍDICAS DAS POLÍTICAS PÚBLICAS – VOL. 1

Isso significa que mesmo que outros estados não tenham leis regulamen-
tando a vaquejada, os seus opositores podem ingressar com demandas para
impedir a realização dos eventos escorados na tese predominante de que a ati-
vidade maltrata os animais. Portanto, nesse ponto concorda-se com Barroso,
pois as teses em debate são determinantes para o futuro das vaquejadas.

4. A dignidade e os direitos fundamentais dos animais


na compreensão do STJ

A partir de uma interpretação sistemática da CF/88 pode-se enten-


der que tanto quanto os homens, os animais também têm direitos funda-
mentais. Atracando o olhar interpretativo no caput do art. 225 percebe-se
que todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, e a
palavra “todos” abraça os demais seres vivos para além dos humanos, do
contrário a limitação mereceria o registro “todos os seres humanos”.
Além de um meio ambiente equilibrado, outros direitos fundamen-
tais dos animais derivam do art. 225, § 1º, VII, da CF/88, que veda sub-
metê-los à crueldade, como o direito à integridade e vida saudável, a liber-
dade e o direito de conviver com outros da sua espécie.
Recentemente, a Segunda Turma do STJ reconheceu a dignidade e
os direitos dos animais não humanos, numa dimensão ecológica da digni-
dade da pessoa humana. Foi no REsp nº 1.797.175/SP (2019), que tratou
de recurso contra multa e apreensão de um papagaio que vivia há 23 anos
com a recorrente.
O relator mencionou que a ideia de tratamento não cruel dos animais
deve buscar o seu fundamento não mais na dignidade humana ou na com-
paixão humana, mas na dignidade inerente aos animais não humanos. É
o mesmo raciocínio de Sarlet e Fensterseifer (2017, p. 94), ao lecionarem
que a dignidade dos animais verte de uma percepção de justiça ecológica
focada no respeito que o homem deve ter na sua interação com o meio
natural e as formas de vida não humanas.
A Segunda Turma já havia adotado essa postura biocêntrica, de re-
dimensionamento da relação do homem com a natureza, no julgamento
do AREsp nº 667.867/SP (2018), que tratou de dano ao meio ambiente
por derramamento de óleo em quantidade tal que o Tribunal de origem
entendeu insignificante.

44
LU I Z A N TÔ N I O R E I S J U N I O R , M A U R I C I O P I R E S G U E D E S , T E L S O N P I R E S ,
VA N E S S A V E L A S C O, H E R N A N D E S B R I TO R E I S ( O R G . )

O STJ divergiu desse entendimento e julgou inaplicável o princípio


da insignificância em matéria de responsabilidade civil ambiental, voltan-
do a escorar o raciocínio na dimensão ecológica da dignidade humana.
Essas decisões demonstram um relevante movimento de reconhecimento
dos animais como sujeitos de direitos no Brasil, pois assim como os hu-
manos, sentem dor e prazer, merecendo proteção legal, emparelhando-se
ao racional do STF de valorização dos direitos dos animais.

5. As leis e as políticas públicas de proteção dos animais

Um dos primeiros documentos com dignidade internacional focado


na defesa dos animais foi a “Declaração Universal dos Direitos dos Ani-
mais”, que segundo Nouët (2017), citado por Porto e Paccagnella (2017),
é uma declaração de ordem ética e moral, sem força normativa ou regu-
lamentar, tratando-se de uma visão filosófica que deve reger as relações
entre seres humanos e animais.
O documento prevê vários direitos dos animais, entre os quais o de
que todo animal tem o direito a ser respeitado e nenhum animal será sub-
metido a maus tratos ou atos cruéis. Essa Declaração influenciou nossa Po-
lítica Nacional do Meio Ambiente (PNMA), moldada na Lei nº 6.938/91,
que por vanguardista vários de seus dispositivos desaguaram na CF/88,
como a vedação de maus tratos aos animais.
Mais adiante, a Lei de Crimes Ambientais nº 9.605/98 reprisou
a vedação e previu detenção e multa ao infrator, enquanto a Lei nº
9.985/2000 reservou locais específicos para que os animais possam vi-
ver em harmonia com a natureza, como as reservas de fauna e os refú-
gios de vida silvestre.
Em todos os estados brasileiros também há leis de proteção aos animais,
como a que prevê o abate humanitário, Lei nº 7.705/92, e a que estabe-
lece procedimentos para o uso científico de animais, Lei nº 11.794/2008,
ambas de São Paulo, com o objetivo de proteger os animais da crueldade.
As políticas públicas rezam por esse mesmo catecismo, havendo pro-
gramas nas três esferas voltadas ao bem-estar animal, além do trabalho
de diversas ONG’s e movimentos sociais. O estado de SP, por exemplo,
desde 2018 tem uma “Subsecretaria de Defesa dos Animais”, que gere o
“Sistema de Defesa dos Animais Domésticos”.

45
DIMENSÕES JURÍDICAS DAS POLÍTICAS PÚBLICAS – VOL. 1

Políticas públicas como vacinação, castração e controle de zoonoses


competem às prefeituras, e uma das que se destacam nesse solo sagrado é a
de Florianópolis/SC: a sua “Diretoria de Bem-Estar Animal” desenvolve
projetos como o consultório veterinário gratuito, o centro de controle de
zoonoses e a carrocinha da castração.
No âmbito federal, a Presidência da República publicou o Decreto
nº 10.455, de 11/8/2020, que entre outras medidas criou a “Coordenação
Nacional de Proteção e Defesa Animal” no Ministério do Meio Ambiente, que será
um órgão federal de políticas públicas trabalhando pelo bem-estar e combate aos maus
tratos dos animais domésticos.
Esses são alguns exemplos de políticas públicas que vertem dos es-
forços municipais, estaduais e federal, que somam forças com os braços
da sociedade para proteger a fauna, para evitar que seja submetida a maus
tratos e crueldade.
Por isso, além de alinharem-se à corrente do STF que considerou
inconstitucional a Lei Cearense que regulamentou a vaquejada, com a tese
de que ali se pratica crueldade com os animais, colaboram para o rompi-
mento dos laços com a visão da modernidade ocidental hegemônica de
superioridade do homem sobre a natureza e os demais animais.
Isso porque, todas são voltadas ao acolhimento e bem-estar dos ani-
mais, com postura de respeito e solidariedade com o mais frágil, reco-
nhecendo que na natureza tudo está conectado, sem hierarquia de im-
portância de um ser vivo sobre outro, pois todos têm o seu papel no bom
funcionamento da engrenagem planetária.

6. A visão da modernidade ocidental hegemônica sobre


a natureza

A partir da segunda metade do século passado a natureza passou a dar


sinais de esgotamento, alertando para a necessidade de mudanças na rela-
ção do homem com o meio ambiente. Chegamos nessa situação após 500
anos sob a visão ambiental da modernidade ocidental hegemônica, que
é de oposição entre o homem e a natureza, com superioridade daquele
sobre esta, que existiria apenas para ser explorada e servi-lo.
Essa ideia foi muito bem sintetizada na obra de Francis Bacon, citado
por Mignolo (2007, p. 119): “a natureza é uma força que os homens de-

46
LU I Z A N TÔ N I O R E I S J U N I O R , M A U R I C I O P I R E S G U E D E S , T E L S O N P I R E S ,
VA N E S S A V E L A S C O, H E R N A N D E S B R I TO R E I S ( O R G . )

vem conquistar e dominar”, ideia também presente no pensamento Car-


tesiano (1983, p. 54). Segundo Santamaría (2017, p. 37), os termos da
oposição são cultura e natureza.
A ideia original, impulsionada pelo Renascimento, era que quanto
mais primitiva fosse uma sociedade, maior a influência do meio ambiente
na vida humana e vice-versa, quanto mais “desenvolvida” uma socieda-
de, maior o controle e a influência do homem na natureza, que menos
importância teria para a geografia. O que resulta evidente, para Peralta
(2007, p. 16), é que no pensamento hegemônico “a separação da natureza
e da cultura em categorias diferenciadas é o resultado de vários séculos de
história intelectual”.
Nesse racional, considerava-se que o ser humano não era animal, nem
natureza, e na compreensão Kantiana, citada por Murcia (2012, p. 132), o
homem é livre frente à natureza, “por isso se identifica a razão com o reino
da liberdade, e a natureza com o da necessidade”. Analisando esse dualismo
entre homem e natureza, característico da modernidade ocidental hege-
mônica, Pesantez (2013, p. 18) esclarece que para essa visão quanto menos
se domina a natureza, menos racional, menos livre e menos humano.

7. A mudança de paradigma

Após cinco séculos sob aquele paradigma, os sinais de alerta do plane-


ta chamaram a atenção e na segunda metade do século passado iniciaram
movimentos mundiais que demonstraram uma preocupação incipiente
com o quadro que se desenhava. Emergiu a ideia de que vivemos em uma
única Terra, num ecossistema frágil e interdependente.
Nesse momento, surgiu a primeira centelha na consciência coletiva
mundial sobre a responsabilidade de proteger a saúde e o bem-estar desse
ecossistema. Ribeiro (2001, p. 82) comenta que impulsionada por essa
percepção, em 1972 ocorreu a primeira grande reunião de chefes de Esta-
do para tratar da degradação do meio ambiente, em Estocolmo.
Na Conferência de Estocolmo, que contou com a presença de 113
países e cerca de 400 instituições governamentais e não governamentais,
produziu-se o primeiro documento do direito internacional a reconhecer
o direito humano ao meio ambiente de qualidade, que lhe permita viver
com dignidade.

47
DIMENSÕES JURÍDICAS DAS POLÍTICAS PÚBLICAS – VOL. 1

Esse documento refletiu positivamente no Brasil, que nove anos de-


pois publicou sua PNMA, talhada na Lei nº 6.938/1981, que por inova-
dora para os padrões da época teve vários dos seus dispositivos acolhidos
na CF/88, e pela primeira vez uma CF brasileira ganhou um capítulo para
tratar do meio ambiente.
Nessa esteira, ainda no século passado, alguns cientistas apresentaram
estudos relevantes sobre os efeitos da relação do homem com a natureza,
como Lovelock (2014, p. 22) e sua Teoria de Gaia, segundo a qual a Terra
é um imenso organismo vivo que se autorregula, onde tudo e todos estão
conectados. Capra (1997, p. 35) sustentou ideia similar em “A teia da
vida: uma nova compreensão científica dos sistemas vivos”.
Nessa sequência histórica houve muitos avanços, até que a CF Equa-
toriana de 2008, vanguardista em materia ambiental, alçou a natureza a su-
jeito de direito. Sobre essa normatização Andina, Zaffaroni (2011, p. 136),
citado por Moraes (2013, p. 137), ensina que foi no constitucionalismo dos
Andes que ocorreu o salto do ambientalismo para a ecologia profunda, com
destemor e ousadia, independentemente das críticas recebidas.

Conclusão

Este artigo ocupou-se da tensão entre os direitos culturais e a vedação


de crueldade aos animais, no contexto da discussão sobre as vaquejadas,
que voltou ao STF para avaliar emenda constitucional que considerou não
serem cruéis as práticas desportivas que utilizem animais em manifesta-
ções culturais.
Iniciou-se investigando os argumentos favoráveis à defesa da cultura
e em seguida os de proteção aos animais. Adiante analisou-se o debate no
STF quando da primeira assentada sobre o problema e na continuação a
compreensão do STJ sobre os direitos fundamentais dos animais.
Passando pelas políticas públicas e leis versantes sobre a defesa dos
animais, finalizou-se abordando a visão da modernidade ocidental hege-
mônica sobre o meio ambiente e o processo de mudança desse paradigma.
Essa trilha permitiu concluir que a acirrada decisão do STF tem seu futuro
incerto com a substituição de ministros.
Concluiu-se, também, que a Segunda Turma do STJ tem uma pos-
tura biocêntrica do trato com o meio ambiente, de redimensionamento

48
LU I Z A N TÔ N I O R E I S J U N I O R , M A U R I C I O P I R E S G U E D E S , T E L S O N P I R E S ,
VA N E S S A V E L A S C O, H E R N A N D E S B R I TO R E I S ( O R G . )

da relação do homem com a natureza. Esse entendimento demonstra uma


movimentação relevante de reconhecimento dos animais como sujeitos de
direitos no Brasil, dando as mãos à compreensão que prevaleceu no STF,
de valorização dos direitos dos animais.
Sobre o direito constitucional que deve prevalecer, concluiu-se que
nas grandes mudanças sociais democráticas não existem saltos quânticos,
mas processos amadurecidos com velocidade aquém da necessária, num
lento avanço civilizatório. Ainda que a passos lentos, é necessário avançar
de alguma forma, e o desencadeamento do processo de valorização dos
direitos dos animais não humanos já começou e é imparável.
Se de um lado a CF/88 prevê que o Estado deve incentivar e garan-
tir as manifestações culturais, de outro veda a crueldade com os animais.
Nessa raia, não se pode apequenar a realidade de que forçar um boi a dis-
parar, para em seguida lança-lo ao chão com um puxão brusco da cauda,
significa maltratá-lo: contra fato que chama a atenção como um nervo
exposto não há argumentos possíveis.
Quanto ao aspecto econômico do fim das vaquejadas, entende-se que
deve ser considerado na ponderação de valores, para que se possam buscar
alternativas de ocupação profissional dos envolvidos, ou para mudar as
regras do evento, caso isso seja possível sem descaracterizá-lo. A evolução
social vence os obstáculos que se apresentam, como sói ocorrer com vários
seguimentos econômicos com o avanço da tecnologia, por exemplo.
As manifestações culturais mudam e adaptam-se aos novos contextos,
não podendo constituírem-se como elemento de salvaguarda para valori-
zação do entretenimento humano em detrimento da saúde dos animais: o
riso dos frequentadores de vaquejadas não pode prevalecer sobre o pranto
dos animais.
Além da interpretação pretoriana, toda a legislação e políticas públicas
brasileiras em matéria ambiental e de proteção aos animais voltam-se a
esse Norte. Nesse eito, seria contraditório ter todo um caderno norma-
tivo e atividades organizadas numa direção e manter eventos que seguem
noutra, promovendo um hiato entre teoria/intenção e prática, transfor-
mando esse cabedal normativo-instrumental em mera poesia legal.
Entre as sístoles e diástoles da pesquisa, concluiu-se, à derradeira, que
todas as políticas públicas e leis brasileiras de defesa dos animais estão ali-
nhadas com o novo paradigma de relacionamento do homem com a na-

49
DIMENSÕES JURÍDICAS DAS POLÍTICAS PÚBLICAS – VOL. 1

tureza e irmãos de outras espécies, após ultrapassar-se a visão bolorenta


da modernidade ocidental hegemônica sobre o meio ambiente, que aqui
campeou por 500 anos.
Inobstante o Brasil ter incorporado o novo paradigma da conexão
humana com a natureza, no cenário internacional há posições opostas em
curso: enquanto os EUA anunciaram, em 2017, a saída do Acordo de Pa-
ris, acompanhado de um ensaio brasileiro subserviente de seguir na mes-
ma trilha naquela ocasião, Equador e Bolívia alçaram a natureza a sujeito
de direito em 2008 e 2009.
Essa postura Andina é uma das melhores maneiras de “corazonar la
vida”, expressão cunhada por Guerrero (2012) em oposição ao racionalis-
mo Cartesiano: é preservando, respeitando e aprendendo com a natureza,
guiados pelos princípios do bem viver, o “Sumak Kawsay”, e da “Pacha-
mama”, dos povos andinos, que o mundo e seus habitantes humanos e
não humanos seguirão harmoniosamente por melhor caminho.

Referências

CÂMARA, Ana Stela; FERNANDES, Márcia Maria. O Reconhecimento


Jurídico do Rio Atrato como Sujeito de Direitos: reflexões sobre a mudança de
paradigma nas relações entre o ser humano e a natureza. Revista de Estudos
e Pesquisas sobre as Américas. Volume 12, N.1, 2018, pp. 221/240.
Disponível em: https://periodicos.unb.br/index.php/repam/article/
view/15987/14276 . Acesso em 07/8/2020.

CAPRA, Fritjof. A teia da vida – uma nova compreensão científica dos sistemas
vivos. Tradução de Newton Roberval Eichemberg. São Paulo: Cul-
trix, 1997, p. 35.

CASAGRANDE, Cássio. O acaso não tem pressa: uma decisão 6 X 5 é uma


‘não-decisão’. Revista Eletrônica Jota. Publicado em 23/4/2018. Dis-
ponível em: https://www.jota.info/paywall?redirect_to=//www.
jota.info/opiniao-e-analise/colunas/o-mundo-fora-dos-autos/o-
-acaso-nao-tem-pressa-uma-decisao-6-x-5-e-uma-nao-deci-
sao-23042018 . Acesso em 07/8/2020.

CASCUDO, Luís da Câmara. A Vaquejada Nordestina e sua origem.


Recife: Editora Imprensa Universitária, 1966, pp. 8 e 14.

50
LU I Z A N TÔ N I O R E I S J U N I O R , M A U R I C I O P I R E S G U E D E S , T E L S O N P I R E S ,
VA N E S S A V E L A S C O, H E R N A N D E S B R I TO R E I S ( O R G . )

CIRNE, Mariana Barbosa. A (in)constitucionalidade da vaquejada como pa-


trimônio cultural imaterial. Artigo publicado no XXVIII Encontro
Nacional do Conpedi Goiânia (GO) – Direito e Sustentabilidade
I. Evento ocorrido entre 19 e 21/6/2019. Publicado nas pp. 4-22.
Disponível em: http://conpedi.danilolr.info/publicacoes/no85g2cd/
1jj4cy28/93Z08nTxOl185LNv.pdf . Acesso em 07/8/2020.

DESCARTES, René. Discurso del método. Barcelona: Ediciones Orbis,


1983.

ECHEVERRÍA, Bolívar. La modernidad de lo barroco. México: Biblioteca


Era, 2011, p. 27.

GUERRERO, Patrício Arias. Corazonar - Una Antropología comprometida


con la vida. Madri: EAE Editorial Academia Española. 2012.

LOVELOCK, James et al. Gaia - Uma teoria do conhecimento. 4. Edição.


Organizado por William Irwing Thompson. São Paulo: Global Edi-
tora, 2014, p. 22.

MIGNOLO, Walter. La idea de América latina: La Herida Colonial Y La


Opcion Decolonial. Barcelona: Gedisa, 2007, p. 119.

MORAES, Germana de Oliveira. O constitucionalismo ecocêntrico na América


Latina, o bem viver e a nova visão das águas. Revista da Faculdade de Di-
reito da Universidade Federal do Ceará. Fortaleza, v. 34, n.1, 2013,
p.123-155. Disponível em: http://www.repositorio.ufc.br/bitstream/
riufc/11840/1/2013_art_gomoraes.pdf Acesso em 10/8/2020.

MURCIA, Diana. La naturaleza con derechos. Un recorrido por el derecho in-


ternacional de los derechos humanos, del ambiente y del desarrollo. Quito:
Instituto de Estudios Ecologistas del Tercer Mundo, 2012, p. 132.

PERALTA, Pablo Ospina. Naturaleza y sociedad: una lectura antropológica del


viejo problema. In: GARCÍA, F. (Ed.). II Congreso Ecuatoriano de An-
tropología y Arqueología. Balance de la última década: Aportes, retos y nue-
vos temas. Tomo II. Quito: Abya – Yala / Banco Mundial, 2007, p. 16.

PRADO JÚNIOR, Caio da Silva. História Econômica do Brasil. São Paulo:


Editora Brasiliense, 1972, p. 94.

51
DIMENSÕES JURÍDICAS DAS POLÍTICAS PÚBLICAS – VOL. 1

RIBEIRO, Wagner Costa. A ordem ambiental internacional. 1. Ed. São Pau-


lo: Contexto, 2001, p. 82.

SANTAMARÍA, Ramiro Ávila. Os direitos da natureza desde o pensamento


crítico latino-americano. Revista Culturas Jurídicas, Vol. 4, Núm. 8,
mai./ago., 2017, p. 17/85.

SARLET, Ingo Wolfgang; FENSTERSEIFER, Tiago. Direito constitucio-


nal ambiental: Constituição, direitos fundamentais e proteção do ambiente. 5ª
edição. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2017, p. 94.

SARLET, Ingo Wolfgang. Retrospectiva 2016 - Direitos fundamentais viveram


série de retrocessos no plano fático e jurídico. Revista Eletrônica Consultor
Jurídico. Publicado em 30/12/2016. Disponível em: https://www.
conjur.com.br/2016-dez-30/retrospectiva-2016-direitos-humanos-
-viveram-serie-retrocessos#author . Acesso em 10/8/2020.

SILVEIRA, Kelly. Animais e o acesso à Justiça, uma realidade emergente com


fundamento na igualdade de Peter Singer. IN “Direitos de Pachama-
ma e direitos Humanos” (e-book), co-organização com Martônio
Mont’alverne Barreto Lima e Thaynara Andressa Frota Araripe. 1ª
edição. Fortaleza: Editora Mucuripe, 2018, p. 103.

VIEIRA, Patrícia. Como o boi vira bife. Revista Superinteressante. Publi-


cado em 31/5/2017 e atualizado em 31/10/2016. Disponível em: ht-
tps://super.abril.com.br/saude/como-o-boi-vira-bife/ . Acesso em
10/8/2020.

ZAFFARONI, Eugênio Raul, et al. Derecho Penal, Parte General. Buenos


Aires: Editora Ediar, 2002, p. 493.

ZAFFARONI, Eugênio Raul. La naturaleza como persona: Pachamama y


Gaia». En Bolívia: Nueva Constitución Política del Estado. Conceptos ele-
mentares para su desarrollo normativo. 2010, pp. 109-132. Disponível
em: https://neopanopticum.wordpress.com/2012/09/02/la-natura-
leza-como-persona-pachamama-y-gaia-e-r-zaffaroni/ . Acesso em
09/8/2020.

52
O ATIVISMO JUDICIAL NO BRASIL:
LIMITAÇÕES NECESSÁRIAS PARA
EQUILÍBRIO ENTRE ATUAÇÃO DOS
PODERES
Natália Pessoa de Oliveira5
Edilla Lucena de Abrantes6

INTRODUÇÃO

O presente Artigo, intitulado “O Ativismo Judicial no Brasil: limita-


ções necessárias para equilíbrio entre atuação dos Poderes”, tem como ob-
jetivo central estabelecer os limites do ativismo judicial para a preservação
da autonomia dos Três Poderes da União resguardada pela Constituição
da República Federativa do Brasil, de 1988.
O ativismo judicial é um fenômeno jurídico-político recente que tem
sido observado nas decisões judiciais brasileiras, e se refere a uma atuação
proativa e expansiva do Poder Judiciário com interferência direta nos Po-
deres Executivo e Legislativo. Para grande parte dos cientistas jurídicos,
trata-se de uma participação mais ampla e intensa do Judiciário na concre-
tização dos valores e fins constitucionais, com maior ingerência no espaço
de atuação dos outros dois Poderes.

5 Graduanda concluinte do Curso de Direito da Universidade Estadual da Paraíba. Pós-gra-


duanda em Direito Administrativo.
6 Graduanda concluinte do Curso de Direito da Universidade Estadual da Paraíba. Pós-gra-
duanda em Direito Processual Civil.

53
DIMENSÕES JURÍDICAS DAS POLÍTICAS PÚBLICAS – VOL. 1

Assim, o ativismo judicial é um recurso utilizado nas decisões profe-


ridas pelos juízes, consequência direta da judicialização dos conflitos, que
utiliza como respaldo a concretização dos direitos fundamentais, a qual
deve ser buscada com um conjunto de esforços dos Três Poderes, funda-
mentada na Carta Magna. Nesse contexto, surge o seguinte questiona-
mento: o ativismo judicial fere a autonomia, independência e harmonia
dos Três Poderes da União resguardada pela Constituição da República
Federativa do Brasil de 1988?
Para alguns juristas, o ativismo judicial é extremamente necessário e
benéfico à aplicação do Direito e à concretização dos direitos fundamen-
tais, e por isso, deve ser exercido em quaisquer situações. Para outros, deve
ser evitado ao máximo, pois pode causar o desequilíbrio entre os poderes,
cabendo exclusivamente ao Poder Legislativo criar regras de convívio so-
cial. Percebe-se a necessidade de se encontrar um equilíbrio entre estes
posicionamentos, apesar de ser um importante mecanismo hermenêutico
de integração do Direito, de forma que o ativismo judicial seja pratica-
do com cautela, a fim de preservar o sistema constitucional de freios e
contrapesos, e consequentemente, efetivar a soberania da Constituição da
República Federativa do Brasil de 1988.
Ao pesquisar sobre esta temática, apreende-se que, no Brasil, decisões
judiciais ativistas têm se tornado crescentes, inclusive com afastamento da
aplicação da lei em detrimento de casos concretos, sobretudo no âmbito
político, nas grandes operações anticorrupção. Assim, infere-se que o ati-
vismo judicial passa a atingir diretamente a vida dos cidadãos, invadindo
a sua esfera privativa de direitos, e muitas vezes sendo utilizado em detri-
mento da aplicação da lei, o que causa extrema insegurança jurídica aos
operadores do Direito e à sociedade, posto que interpretações jurídicas
estão se sobrepondo às normas vigentes, situação gravosa ao Estado De-
mocrático de Direito.
A escolha do tema como objeto de estudo se justifica em virtude da
inovação do seu conteúdo, considerando ser um fenômeno jurídico re-
cente no Brasil, e consequentemente, com escassos trabalhos realizados a
seu respeito, tendo como público-alvo os operadores do Direito, o mundo
acadêmico e a sociedade em geral.
Para a realização da pesquisa, utilizou-se os métodos observacional
e indutivo, tendo em vista que foram observados os principais casos en-

54
LU I Z A N TÔ N I O R E I S J U N I O R , M A U R I C I O P I R E S G U E D E S , T E L S O N P I R E S ,
VA N E S S A V E L A S C O, H E R N A N D E S B R I TO R E I S ( O R G . )

volvendo o Poder Judiciário brasileiro a fim de compreender o fenôme-


no geral do ativismo judicial no sistema jurídico brasileiro. Quanto aos
fins, o tipo de pesquisa adotado foi descritivo, pois estudou o fenômeno
do ativismo judicial no Brasil, as suas características, os posicionamentos
favoráveis e contrários à sua aplicação, e os principais exemplos de gran-
de repercussão de sua ocorrência, e bibliográfica quanto aos meios, pois
utilizou-se artigos científicos recentes publicados em revistas e em redes
eletrônicas, livros, e a legislação pertinente ao tema, em especial a Consti-
tuição da República Federativa do Brasil, de 1988.

1. A IMPORTÂNCIA DA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA


FEDERATIVA DO BRASIL NA EVETIVAÇÃO DOS
DIREITOS FUNDAMENTAIS

Os direitos humanos fundamentais estão previstos na Constituição


da República Federativa do Brasil, de 1988, e destinam-se a estabelecer
direitos, garantias e deveres aos cidadãos, normatizando as noções básicas
e centrais que regulamentam a vida social, política e jurídica dos cidadãos
que vivem no país. (OLIVEIRA, 2019).
Dessa forma, deve-se estabelecer um equilíbrio entre a concretiza-
ção dos direitos fundamentais, almejada na judicialização de situações dos
conflitos, postos sob apreciação do Poder Judiciário, e a preservação da
autonomia dos Três Poderes, com suas respectivas atribuições previstas no
sistema constitucional de freios e contrapesos, tendo em vista que o regi-
me de governo estabelecido constitucionalmente para o Brasil é o demo-
crático. Sendo assim, as instituições políticas abrangem as organizações
formais próprias do regime democrático e as normas vigentes que influen-
ciam o comportamento dos atores da política, destacando-se as relações
estabelecidas entre os Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário.
Assim, o Poder Judiciário e a sociedade em geral se deparam com
um evidente conflito entre princípios constitucionais, entre eles o
princípio da inafastabilidade da jurisdição, previsto no artigo 5º, inciso
XXXV, da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988,
determinando que toda lesão ou ameaça a direito deve ser apreciada
pelo Judiciário. Por conseguinte, ocorre alta demanda de atuação deste
poder nas mais diversas questões postas sob sua apreciação para julga-

55
DIMENSÕES JURÍDICAS DAS POLÍTICAS PÚBLICAS – VOL. 1

mento, sempre com o fim comum de concretizar direitos humanos


que estão abstratamente previstos.
Nessa conjuntura, destaca-se o estudo do ativismo judicial, que con-
siste num desequilíbrio entre os poderes causado pela atuação expansi-
va do Poder Judiciário com interferência direta nas demais esferas. Para
Martins (2019), o ativismo judicial é um termo técnico usado para definir
a atuação expansiva e proativa do Poder Judiciário ao interferirem em de-
cisões de outros poderes. A respeito esclarece Barroso (2009, p. 3) que é
uma atitude, a escolha de um modo específico e proativo de interpretar a
Constituição, expandindo o seu sentido e alcance, afirmando que:

Normalmente ele se instala em situações de retração do Poder Le-


gislativo, de certo descolamento entre a classe política e a socie-
dade civil, impedindo que as demandas sociais sejam atendidas de
maneira efetiva. A ideia de ativismo judicial está associada a uma
participação mais ampla e intensa do Judiciário na concretização
dos valores e fins constitucionais.

Segundo Granja (2013), o vocábulo ativismo no âmbito da Ciência


do Direito é empregado para designar que o Poder Judiciário está agindo
além dos poderes que lhe são conferidos pela ordem jurídica, compreen-
dendo o ativismo judicial como sendo uma escolha de um determinado
magistrado que visa buscar através de uma hermenêutica jurídica expan-
siva, com a finalidade de concretizar o verdadeiro valor normativo cons-
titucional, garantindo o direito das partes de forma rápida, e atendendo
às soluções dos litígios e às necessidades oriundas da lentidão ou omissão
legislativa, e até mesmo executiva. Nesse contexto, a investigação des-
te fenômeno é de extrema relevância, pois o estudo acerca da teoria da
tripartição dos poderes, a discricionariedade administrativa na fixação e
estabelecimento de políticas públicas, assim como o ativismo judicial e
a busca de parâmetros atuação, traduzem-se em questões relevantes para
o aprimoramento e a manutenção do Estado Democrático e de Direito.
(NUNES et al, 2015, p. 76).
Logo, o ativismo judicial deve ser utilizado como mecanismo para sa-
nar a omissão legislativa, em atenção aos fins sociais e à exigência do bem
comum, conforme determinam os artigos 4º e 5º da Lei de Introdução às

56
LU I Z A N TÔ N I O R E I S J U N I O R , M A U R I C I O P I R E S G U E D E S , T E L S O N P I R E S ,
VA N E S S A V E L A S C O, H E R N A N D E S B R I TO R E I S ( O R G . )

Normas do Direito Brasileiro, servindo, portanto, como mecanismo her-


menêutico de integração de normas jurídicas. Os autores Miarelli e Lima
observam, com razão, que:

Diante de novas necessidades, onde a lei não se mostra suficiente ou


diante de necessidades que forjam uma determinada interpretação
do texto de lei, é o momento em que o esforço do intérprete faz-se
sentir. Tem-se como Ativismo Judicial, portanto, a energia emanada
dos tribunais no processo da criação do direito. (2012, p. 16).

Em contraponto ao princípio da inafastabilidade da jurisdição supra-


citado, tem-se o sistema de freios e contrapesos e o princípio da separação
dos poderes, independentes e harmônicos entre si, previstos no artigo 2º
da Carta Magna. Ou seja, os poderes possuem uma margem de atuação
no exercício de suas funções, e, portanto, não podem agir de forma so-
berana e ilimitada, pois estão controlados pela atuação dos outros. É um
sistema de vigilância mútua, em que a harmonia se faz presente porque
um não pode invadir a esfera privativa do outro, sob pena de se desres-
peitar o texto constitucional, responsável pela distribuição das respectivas
competências das instituições representativas dos poderes.
Apesar de funcionar como um mecanismo de integração do Direito
em casos de omissão legislativa, ou como técnica hermenêutica de forma
a efetivar as garantias constitucionais dos cidadãos, não raramente acaba
por usurpar funções próprias dos demais poderes, o que é extremamente
danoso à manutenção do Estado Democrático de Direito, pois a legislação
deixa de ser a principal fonte normativa regulamentadora e passa a com-
partilhar esta responsabilidade com as decisões judiciais. No entanto, a
criação de regras de convívio social é própria do Poder Legislativo, o qual
tem seus membros escolhidos através de um prévio processo eleitoral.
Dessa forma, existem duas correntes que se posicionam a respeito da
interferência judicial em temas políticos: a “substancialista”, favorável ao
ativismo judicial, cujos principais defensores são Dworkin, Cappelletti e
Agra, e a “procedimentalista”, que tem como defensores Habermas, Gara-
pon, Sunstein e Ely, os quais sustentam que o ativismo judicial é perigoso
para o regime democrático, pois dificulta fortalecimento de uma cidada-
nia ativa. (COUTO; SILVA, 2016).

57
DIMENSÕES JURÍDICAS DAS POLÍTICAS PÚBLICAS – VOL. 1

Nesse contexto, a “Constituição Cidadã”, conforme denominada


por Ulysses Guimarães, se tornou um marco de proteção aos indivíduos
ao garantir uma série de direitos aos governados, coibindo abusos de po-
der e usurpação de direitos como outrora ocorrido em tempos não demo-
cráticos. Nas palavras de Moraes (2003, p. 5):

Na visão ocidental de democracia, governo pelo povo e limitação


de poder estão indissoluvelmente combinados. O povo escolhe
seus representantes, que, agindo como mandatários, decidem os
destinos da nação. O poder delegado pelo povo a seus representan-
tes, porém, não é absoluto, conhecendo várias limitações, inclusive
com a previsão de direitos e garantias individuais e coletivas, do ci-
dadão relativamente aos demais cidadãos e ao próprio Estado [...].
Ressalte-se que o estabelecimento de constituições escritas está
diretamente ligado à edição de declarações de direitos do homem.
Com a finalidade de estabelecimento de limites ao poder políti-
co, ocorrendo a incorporação de direitos subjetivos do homem em
normas formalmente básicas, subtraindo-se seu reconhecimento e
garantia à disponibilidade do legislador ordinário.

Nesse sentido, diz Canotilho (1993, p. 373) que os direitos funda-


mentais cumprem a função de direitos de defesa dos cidadãos sob uma
dupla perspectiva: (I) constituem, num plano jurídico-objetivo, normas
de competência negativa para os poderes públicos, proibindo fundamen-
talmente as ingerências destes na esfera jurídica individual; (II) impli-
cam, num plano jurídico-subjetivo, o poder de exercer positivamente
direitos fundamentais (liberdade positiva) e de exigir omissões dos po-
deres públicos, de forma a evitar agressões lesivas por parte dos mesmos
(liberdade negativa).
Dessa forma, a previsão constitucional de direitos fundamentais,
como os direitos individuais à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança
e à propriedade, bem como os direitos sociais ao trabalho, ao lazer, à mo-
radia, à saúde e à educação, possibilita à população exigir do Estado a sua
aplicabilidade, de forma que estes se tornem efetivos. Assim, os governos
passam a atuar na promoção destas garantias, que funcionam como instru-
mento impeditivo da interferência estatal na esfera privativa dos cidadãos.

58
LU I Z A N TÔ N I O R E I S J U N I O R , M A U R I C I O P I R E S G U E D E S , T E L S O N P I R E S ,
VA N E S S A V E L A S C O, H E R N A N D E S B R I TO R E I S ( O R G . )

Releva destacar que o posicionamento defendido pela teoria substan-


cialista demonstra que o ativismo judicial é um fenômeno positivo, ino-
vador, que antecede a lei e amplia a eficácia legislativa no caso concreto,
efetivando direitos previstos abstratamente.

1.1. O papel do ativismo judicial na concretização dos


direitos fundamentais

A aplicação do ativismo judicial é defendida sob o argumento de que


os direitos fundamentais se sobrepõem a quaisquer outros princípios, in-
clusive ao sistema de freios e contrapesos, ou seja, ao princípio da separa-
ção dos poderes ou tripartição do poder estatal. Assim, o ativismo judicial
assegura a inafastabilidade da jurisdição, posto que toda e qualquer de-
manda será decidida pelo Poder Judiciário, mesmo em caso de inércia do
Poder Legislativo. Nesse sentido,

É necessário analisar a responsabilidade de proteção dos direitos


fundamentais e sociais pelo Estado a fim de verificar seu modo de
atuação, uma vez que é absurdo considerar o princípio da separa-
ção de poderes como entrave à efetivação de direitos fundamentais,
já que esta interpretação aniquila a própria efetividade da separação
dos poderes. (NUNES et al, 2015, p.77).

Dessa forma, o papel do ativismo seria o de concretizar os direitos


sociais na maior medida possível, pois se trata de uma responsabilidade
estatal, e, portanto, são direitos a prestações sociais estatais. Logo, o
Estado tem o dever expresso de não se abster, agindo frente às deman-
das que se impõem e dando maior concretude e efetivação aos direitos
expressos na Carta Magna. Assim, o Poder Judiciário possuiria o papel
de interpretar as normas de forma a possibilitar a aplicabilidade ime-
diata destes direitos, o que, apesar de em certa medida interferir na
competência de outros Poderes, encontraria respaldo no texto cons-
titucional, pois objetiva aplicá-lo de forma integral, maximizando a
efetivação de garantias fundamentais.
Destarte, o ativismo judicial teria uma função integradora do Direito,
a ser realizada através da hermenêutica e da interpretação das normais pe-

59
DIMENSÕES JURÍDICAS DAS POLÍTICAS PÚBLICAS – VOL. 1

los juízes, os quais, ao aplicarem as normas aos casos concretos, estariam


efetivando ao máximo as garantias aos cidadãos previstas abstratamente na
Carta Magna. É nesse contexto que se torna compreensível o brado de
Tavares, ao afirmar que:

A interpretação do Direito é a operação intelectiva por meio da


qual a partir da linguagem vertida em disposições (enunciados)
com força normativa o operador do Direito chega a determina-
do e específico conteúdo, sentido e objetivo desse enunciado,
em face de um caso concreto (real ou hipotético). [...]. Assim,
a supremacia da Constituição quanto às demais normas do Di-
reito é uma especificidade própria da qual decorre uma série
de limitações a seu intérprete, podendo-se citar a denominada
“interpretação conforme a Constituição”. Justifica-se, ainda, a
existência de uma hermenêutica constitucional pela presença da
denominada jurisdição constitucional, determinada a aplicar, a
fazer valer a Constituição como norma suprema. O controle abs-
trato-concentrado é, pois, um dos maiores indicadores de que da
hermenêutica jurídica merece destaque aquela dedicada à questão
constitucional. (2012, p. 101-103).

Logo, a discussão a respeito do sistema de freios e contrapesos torna-


-se inócua, na medida em que a preservação dos direitos constitucionais
assegurados aos indivíduos merece destaque em detrimento da tripartição
do poder estatal. No Estado Constitucional, diante da tarefa compartilha-
da de concretizar direitos fundamentais como meta principal do Estado,
Peter (2015, p. 56) afirma que as funções de poder atuam, na medida
de suas competências constitucionalmente postas, buscando aproximação
com o ideal de máxima efetividade jusfundamentadora.
Acrescentando, ainda, que a atitude de quaisquer poderes será
avaliada com a métrica dos direitos fundamentais, e não mais com a
métrica das estritas limitações de competências. As próprias ideias de
ativismo judicial e judicialização da política perdem algo de sua razão
de ser, nesse contexto, pois as acomodações entre as funções de poder
passam a ser muito mais visíveis e o diálogo muito mais intenso, so-
brevindo momentos de tensões e acomodação pelo exercício recíproco

60
LU I Z A N TÔ N I O R E I S J U N I O R , M A U R I C I O P I R E S G U E D E S , T E L S O N P I R E S ,
VA N E S S A V E L A S C O, H E R N A N D E S B R I TO R E I S ( O R G . )

das respectivas competências. Desse modo, percebe-se que discussões


acerca da separação dos poderes devem ser superadas, pois o fim de
cada esfera de poder é a máxima concretização dos direitos da Carta
Magna. Portanto, a insegurança jurídica se faz presente, pois não se
sabe em que situações postas sob julgamento do Poder Judiciário este
agirá de forma expansiva, ficando, portanto, a cargo do julgador e de
seu entendimento as situações em que o mesmo aceitará fazer uso deste
comportamento proativo.
Conforme a teoria substancialista, deve sim o Poder Judiciário in-
tervir nestas questões, pois é o Supremo Tribunal Federal o guardião da
Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, e quando certos
comportamentos venham a prejudicar a paz social, a vida digna de uma
coletividade, direitos mínimos existenciais, deve sim este Poder fazer va-
ler as suas vezes e garantir estes direitos fundamentais, seja em controle
concentrado, seja em controle difuso de constitucionalidade.  (GALVÃO,
2010, p. 137). Dessa forma, essa intervenção do Poder Judiciário na arena
política, decidindo questões antes reservadas a outros poderes, é defendida
pelo eixo substancialista, que considera a atuação dos juízes na política
indispensável para concretização de direitos sociais e políticos garantidos
pela Constituição. (COUTO; SILVA, 2016).
A esse respeito, Garapon observa: o Poder Judiciário ganhou um es-
paço tão significativo que pode se tornar a esperança para uma democracia
enfraquecida, afirmando que:

Se por um lado essa atuação busca estabilizar as esferas sociais e


políticas, por outro, há um enfraquecimento do homem cívico,
público e preocupado com o interesse comum. O Juiz vem se tor-
nando a última esperança, mas “a promoção contemporânea do
Juiz não se deve tanto a uma escolha deliberada, mas antes a uma
reação de defesa perante o quádruplo desmoronamento: político,
simbólico, psíquico e normativo. (1996, p. 22-23).

É evidente, pois, que esta atuação deve ser cautelosa, de forma a en-
contrar limites de atuação, sob pena de se vivenciar uma espécie de “dita-
dura do Poder Judiciário”, em que este atua de forma desmedida sobre os
demais e sobre os administrados.

61
DIMENSÕES JURÍDICAS DAS POLÍTICAS PÚBLICAS – VOL. 1

1.2. O princípio da separação dos poderes e a


supremacia constitucional

A Carta Magna é considerada a fonte de todo o Direito, inclusive dos


demais dispositivos normativos, que só terão validade caso a observem
fielmente. Assim, segundo Bulos (2009, p. 59), “todos os atos legislativos,
administrativos e jurisdicionais como os atos praticados por particulares
submetem-se à supremacia da Constituição brasileira”, que esparge sua
força normativa em todos os segmentos do ordenamento jurídico, poden-
do-se conceituá-la, portanto, como “o vínculo de subordinação dos atos
públicos e privados à constituição de um Estado. ”
Nesse contexto, é inegável que esta temática está relacionada a um
conflito político que envolve os Três Poderes da União, cuja autonomia é
posta em xeque, ocorrendo inevitavelmente um desequilíbrio entre os po-
deres, pois a competência do Poder Judiciário é alargada e passa a exercer
o que originalmente é competência dos demais. Portanto, os autores que
defendem a imposição de limites à atuação jurisdicional ativista, precur-
sores da corrente procedimentalista, entendem que o fenômeno contribui
para a perda do lugar histórico do Poder Legislativo nas democracias con-
temporâneas, além de não ser o Poder Judiciário democraticamente legiti-
mado para a tarefa de ditar regras de convívio social pela falta do processo
de eleição de seus membros. (PETER, 2015, p. 71).
Conforme a teoria procedimentalista, a atuação sem medidas do
Poder Judiciário em questões políticas pode depauperar a esfera pública
democrática. Esta vertente acredita que mudanças políticas devem ser
discutidas por meio de um processo plural e participativo, e sustenta
que ao efetivar as promessas da democracia por meio do judiciário,
judicializa-se a política e dificulta a construção de um espaço públi-
co de debate político democrático. Os procedimentalistas entendem
que o judiciário tão somente deve estabelecer regras do jogo político,
assegurar igualdade de participação e garantir instrumentos de aces-
so à arena política, sendo preocupante que o judiciário sobreponha os
outros poderes de forma não controlada e isso traga prejuízos para a
separação de poderes. Além disso, ao controlar e garantir as liberdades
públicas, o Poder Judiciário pode se tornar a mais alta instância moral
da sociedade. (COUTO; SILVA, 2016).

62
LU I Z A N TÔ N I O R E I S J U N I O R , M A U R I C I O P I R E S G U E D E S , T E L S O N P I R E S ,
VA N E S S A V E L A S C O, H E R N A N D E S B R I TO R E I S ( O R G . )

É certo que, de acordo com a teoria procedimentalista, o Poder


Judiciário torna-se o guardião das promessas democráticas de igualdade e
isso pode demonstrar a fragilidade das instituições políticas. A soberania
popular se declinou, deslocando o reconhecimento do justo para a justiça e
não mais para a política. Nesse contexto, o sistema de freios e contrapesos
torna-se uma limitação explícita à interferência do Poder Judiciário
nas demais esferas de poder, pois a função legisladora é originalmente
atribuída, por força constitucional, ao Poder Legislativo. De acor-
do com Britto (1981, p. 121), todas as funções de poder disporiam de
meios eficientes para impedir a usurpação de funções uns pelos outros,
fazendo refluir o órgão exorbitante para os espaços de poder que lhe são
constitucionalmente destinados. A referência aqui reporta-se ao
modelo proposto pelos americanos conhecido como “freios e contrape-
sos” como aquele em que os poderes estão de tal forma compartilhados,
repartidos e equilibrados entre os diferentes órgãos da República que ne-
nhum deles pode ultrapassar seus limites constitucionais sem que o outro
imediatamente possa detê-lo ou contê-lo.
Em confronto ao argumento de que o ativismo judicial seria um sim-
ples mecanismo de integração do Direito, ou seja, teria como função au-
xiliar na interpretação das leis e efetivar direitos fundamentais, Surgik et al
(2014) defende que a função de intérprete da Constituição não é negada,
mas a capacidade normativa do judiciário não pode se agigantar a ponto
de romper com a força normativa democrática vinda das leis.
Vale ressaltar que o comportamento ativista por parte dos juízes tomou
dimensões alarmantes quando, em 7 de abril de 2018, o ex-presidente Lula
foi preso após autorização do Tribunal Regional Federal da 4ª Região, com
fundamento em decisão proferida em segunda instância, sem esgotamento
de todas as fases recursais, em desacordo com o que está previsto no artigo
5º, inciso LVII, da Constituição da República Federativa do Brasil, de 1988,
que assim preceitua: “ninguém será considerado culpado até o trânsito em
julgado de sentença penal condenatória”. Este é um exemplo prático dos
reflexos negativos do ativismo judicial, conforme defendido pela teoria pro-
cedimentalista, pois retrata uma situação em que este fenômeno passou a
interferir diretamente na esfera privativa dos cidadãos.
Posteriormente, o caso foi decidido em controle abstrato de constitu-
cionalidade, com a decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal em

63
DIMENSÕES JURÍDICAS DAS POLÍTICAS PÚBLICAS – VOL. 1

7 de novembro de 2019, que por seis votos a cinco, declarou inconstitu-


cional a possibilidade de prender após a segunda instância por considerar
um desatendimento à Constituição da República Federativa do Brasil de
1988, o que foi aplicado ao caso em questão e culminou na sua soltu-
ra. Percebe-se que, apesar de ser utilizado sob o argumento de aplicação
dos direitos fundamentais e extensão de sua fruição aos cidadãos, direitos
como a liberdade, a presunção de inocência, a prisão após o trânsito em
julgado e à defesa plena foram infringidos, sendo um exemplo negativo de
atuação ativista.
Assim, apesar de reconhecerem que o ativismo está ligado à efetiva-
ção de direitos, substituindo-se até mesmo a expressão “ativismo judicial”
por “ativismo constitucional”, deve-se atentar para os limites da atuação
jurisidicional.
De acordo com Streck et al (2015, p.7), a atuação dos juízes e dos
tribunais passa a ser compreendida de dois modos: como judicialização
da política e/ou ativismo judicial. Para entender esse fenômeno comple-
xo que envolve a articulação entre os Três Poderes, uma das importantes
considerações a ser feita é estabelecer critérios que sejam capazes de dis-
tinguir essa dúplice faceta que se visualiza na mais intensa interferência
do Poder Judiciário na sociedade contemporânea, pois ao demonstrar os
elementos de diferenciação entre ativismo judicial e judicialização da po-
lítica, será possível compreender que existem limites à atuação jurisdicio-
nal. Logo, estes juristas propõem uma discussão que envolve assumir a
premissa de que, no interior de uma cultura democrática, os atos judiciais
estão sujeitos a uma espécie de prestação de contas para o fortalecimento
da democracia. Além disso, essa análise que recai sobre o Poder Judiciário
também implica reconstruir a relação que existe entre Direito e Política.
Portanto, o ativismo do Poder Judiciário, embora efetivado sob a premis-
sa de concretizar direitos constitucionais, encontra claras limitações no prin-
cípio da separação dos poderes e do sistema de freios e contrapesos, igualmen-
te previstos na Carta Magna; logo, sua utilização acaba por afastar a aplicação
constitucional, mesmo que de forma parcial, o que, conforme os autores que
adotam este posicionamento, não pode ser admitido no ordenamento jurídi-
co, sendo a sua improficuidade o desequilíbrio entre os poderes.
Por outro lado, e na linha defendida pelos procedimentalistas, em al-
gumas situações, a interferência direta do Poder Judiciário através de suas

64
LU I Z A N TÔ N I O R E I S J U N I O R , M A U R I C I O P I R E S G U E D E S , T E L S O N P I R E S ,
VA N E S S A V E L A S C O, H E R N A N D E S B R I TO R E I S ( O R G . )

decisões é importante para evitar abusos de poder por parte de agentes


políticos das demais esferas, como interferências políticas em processos
judiciais. Cite-se, a exemplo, a decisão liminar proferida em 29 de abril
pelo Ministro do Supremo Tribunal Federal Alexandre de Moraes, na
qual suspendeu a nomeação de Alexandre Ramagem para a diretoria-geral
da Polícia Federal, por considerar desvio de finalidade no ato presidencial
de nomeação, tendo em vista que o escolhido é amigo da família Bolso-
naro, o que contraria os princípios constitucionais da impessoalidade, da
moralidade e do interesse público.
A decisão do ministro do STF que se sobrepôs ao ato administrati-
vo proferido pelo Poder Executivo contribuiu para a aplicação plena dos
princípios da Administração Pública.
Portanto, percebe-se que não se pode estabelecer uma resposta in-
cisiva e geral ao fenômeno do ativismo judicial, que deve ser analisado
minuciosamente no caso concreto a fim de se determinar a possibilidade
de sua prática. Apesar de ser um instrumento de concretização de políticas
públicas, necessário à cidadania plena, o ativismo judicial deve ser exer-
cido com cautela, encontrando limites de atuação, caso contrário violará
a Constituição da República Federativa do Brasil, de 1988, no que tange
à separação dos poderes, o que é feito sob a justificativa de defesa ampla
dos direitos fundamentais. Ressalte-se, ainda, que o Estado brasileiro é
um Estado constitucional, e, portanto, adota um conjunto de normas a
ser observado não só pelos cidadãos, mas pelas autoridades, funcionando
como instrumento de segurança aos governados por coibir o despotismo
político ou qualquer outra forma de arbitrariedade que porventura queira
prevalecer. Assim, Estados constitucionais são “os que dispunham de uma
ordenação estatal plasmada num documento escrito, garantidor das liber-
dades e limitador do poder mediante o princípio da divisão de poderes”.
(CANOTILHO, 1993, p. 63).
Ante o exposto, depreende-se a existência de dois posicionamentos
a respeito do ativismo judicial: o substancialismo e o procedimentalismo.
O substancialismo é favorável à sua aplicação, por defender um modelo
constitucional em que o Poder Judiciário realiza amplo papel de concreti-
zação dos direitos fundamentais, aplicando as garantias sociais sem limites.
Conforme este entendimento, é legítimo que os juízes imponham a reali-
zação de políticas públicas dispostas na Carta Magna, mesmo que ausente

65
DIMENSÕES JURÍDICAS DAS POLÍTICAS PÚBLICAS – VOL. 1

a interferência do Poder Legislativo, bastando a inércia do Poder Executivo


na execução das normas programáticas constitucionais. Já o procedimen-
talismo é contrário ao ativismo judicial, por entender que a sociedade é a
responsável pela implementação de direitos através de deliberações com o
Poder Legislativo. Portanto, não é cabível que o Poder Judiciário exerça esta
função, devendo apenas garantir o processo democrático, de forma que o
processo de consolidação de direitos é puramente democrático.
Por fim, constata-se que nenhuma das duas correntes —  substan-
cialista e procedimentalista — pode ser adotada de forma integral, pois
são contrárias e absolutas, e insuficientes para responder efetivamente à
aplicação ideal do ativismo judicial no Brasil. Em algumas situações, é
evidente que ocorrem abusos do Poder Judiciário, que exorbita os limites
legislativos constitucionais a fim de adequá-los as suas vontades pessoais,
conforme as interpretações atribuídas. No entanto, em outras situações, é
importante para controlar os demais poderes, e manter vigente o sistema
de freios e contrapesos, em que ocorre um mútuo controle de atuação
para torná-los harmônicos.

CONCLUSÕES

É evidente que o fenômeno do ativismo judicial necessita de limitações


a fim de que seja respeitada a autonomia dos Três Poderes da União,
para que a Constituição da República Federativa do Brasil, de 1988, seja
integralmente observada e efetivada, além de ser garantida a segurança
jurídica aos administrados, os cidadãos.
Apesar do ativismo judicial ser aplicado sob a premissa de efetivação
de direitos fundamentais, observa-se que a atuação expansiva do Poder Ju-
diciário tem sido utilizada para fins diversos, principalmente para justificar
comportamentos abusivos de autoridades, com desrespeito a princípios
constitucionais, como ocorrido na prisão do ex-presidente Lula, após de-
cisão de segunda instância, em clara afronta ao texto constitucional que
determina a condenação apenas após o trânsito em julgado bem como em
desobediência aos princípios da presunção de inocência e da ampla defesa.
Importante, enfim, reconhecer que o ativismo judicial deve ser utilizado
como forma de integração do Direito, ou seja, como mecanismo de herme-
nêutica, quando estritamente necessário e com objetivos de ampliar ou efe-

66
LU I Z A N TÔ N I O R E I S J U N I O R , M A U R I C I O P I R E S G U E D E S , T E L S O N P I R E S ,
VA N E S S A V E L A S C O, H E R N A N D E S B R I TO R E I S ( O R G . )

tivar, no caso concreto, os direitos fundamentais abstratamente previstos no


texto constitucional, ou seja, para proporcionar a aplicabilidade dos princípios
constitucionais, concretizando as garantias previstas no plano abstrato e maxi-
mizando o efeito das leis. O fim comum deve ser sempre o interesse público,
pois os cidadãos são os destinatários das normas e são por elas governados.
Assim, o ativismo judicial deve ter como limites de atuação a utiliza-
ção apenas com o fim de ampliar os direitos previstos no ordenamento ju-
rídico brasileiro, jamais para suprimi-los, sempre com o escopo de manter
o equilíbrio entre os Poderes da União — Legislativo, Executivo e Judi-
ciário —, coibindo a exacerbação de competência dos demais e mantendo
a harmonia entre si.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BARROSO, Luís Roberto. Constituição, democracia e supremacia ju-


dicial: direito e política no Brasil contemporâneo. Revista da Fa-
culdade de Direito (RFD), Rio de Janeiro, v. 2, n. 21, jan./jun.
2012 – (Semestral).

______.  Judicialização, Ativismo Judicial e Legitimidade Democrática.


Revista Atualidades Jurídicas – Revista Eletrônica do Conse-
lho Federal da OAB, 4 ed. Janeiro/Fevereiro 2009 - (Bimestral).
Disponível em: <http://www.plataformademocratica.org/Publica-
coes/12685_Cached.pdf>. Acesso em: 18/06/2020.

BRASIL. Decreto-lei nº 4.657, de 4 de setembro de 1942. Lei de Intro-


dução às Normas do Direito Brasileiro. Senado Federal. (2020).
Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/
del4657compilado.htm >. Acesso em: 18/06/2020.

______. Constituição (1988). Constituição: República Federativa do


Brasil. Senado Federal. (2020). Disponível em: <http://www.pla-
nalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm>. Acesso em:
25/10/2019.

BRITTO, Carlos Ayres. Separação dos poderes na constituição brasileira.


Revista de Direito Público. V. 14, n. 59-60, jul./dez. 1981 – (Se-
mestral).

67
DIMENSÕES JURÍDICAS DAS POLÍTICAS PÚBLICAS – VOL. 1

BULOS, Uadi Lammêgo. Curso de direito constitucional. 4. ed., São


Paulo: Saraiva, 2009.

CANOTILHO, J.J. Gomes. Direito constitucional. 6. ed., Coimbra:


Almedina, 1993.

GALVÃO, José Octavio Lavocat. Entre Kelsen e Hercules: uma análise ju-


rídico-filosófica; In: Estado de direito e ativismo judicial. José Levi
Mello do Amaral Júnior. (Coord.). São Paulo: Quartier Latin, 2010.

GARAPON, Antoine. O guardador de promessas: Justiça e democracia. Lis-


boa: Piaget, 1996.

GRANJA, Cícero Alexandre. O ativismo judicial no Brasil como


mecanismo para concretizar direitos fundamentais sociais.
Âmbito Jurídico (2013). Disponível em: <https://ambitojuridico.
com.br/cadernos/direito-constitucional/o-ativismo-judicial-no-bra-
sil-como-mecanismo-para-concretizar-direitos-fundamentais-so-
ciais/>. Acesso em: 16/06/2020.

MARTINS, Sérgio Merola. Ativismo judicial. Blog da Aurum (2019).


Disponível em: < https://www.aurum.com.br/blog/ativismo-judi-
cial/>. Acesso em: 25/10/2019.

MIARELLI, Mayra Marinho; LIMA, Rogério Montai. Ativismo judi-


cial e a efetivação de direitos no Supremo Tribunal Federal.
Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2012.

MORAES, Alexandre de. Direito constitucional. 13. ed., São Paulo:


Atlas, 2003.

NUNES, Ana Luisa Tarter; COUTINHO, Nilton Carlos; LAZARI,


Rafael José Nadim de. Políticas públicas e ativismo judicial: o dilema
entre efetividade e limites de atuação. Revista Brasileira de Políti-
cas Públicas [online]. V. 5, n. 2, 2015 - (Trimestral).

OLIVEIRA, Douglas Luciano de. Os direitos fundamentais no orde-


namento jurídico brasileiro. Jus.com.br (2019). Disponível em:
<https://jus.com.br/artigos/72567/os-direitos-fundamentais-no-or-
denamento-juridico-brasileiro>. Acesso em: 16/06/2020.

68
LU I Z A N TÔ N I O R E I S J U N I O R , M A U R I C I O P I R E S G U E D E S , T E L S O N P I R E S ,
VA N E S S A V E L A S C O, H E R N A N D E S B R I TO R E I S ( O R G . )

PETER, Christine Oliveira. Do ativismo judicial ao ativismo constitu-


cional no estado de direitos fundamentais. Revisa Brasileira de
Políticas Públicas [online]. V. 5, n. 2, 2015 - (Trimenstral).

SILVA, Lorena Fonseca; COUTO, Felipe. Sobre ativismo judicial: o de-


bate substancialismo x procedimentalismo em perspectiva, Revis-
ta Contribuciones a las Ciencias Sociales (abril-junho) - (Tri-
mestral). (2016). Disponível em: <https://www.eumed.net/rev/
cccss/2016/02/legitimidade.html>. Acesso em: 16/06/2020.

STRECK, Lenio Luiz; TASSINARI, Clarissa; LEPPER, Adriano Oba-


ch. O problema do ativismo judicial: uma análise do caso MS3326.
Revista Brasileira de Políticas Públicas [online]. V. 5, n. 2, p.52-
61, 2015 - (Trimestral).

SURGIK, Aloisio; WACHELESKI, Marcelo Paulo. O poder judiciário e as de-


cisões políticas: uma crítica a partir da teoria procedimentalista. Revista Ele-
trônica Direito e Política. Programa de Pós Graduação Stricto Sensu em
Ciência Jurídica da UNIVALI, Itajaí, v. 9, n. 3, 3º quadrimestre de 2014.
Disponível em: <www.univali.br/direitoepolitica>. Acesso em: 16/06/2020.

TAVARES, Ramos André. Curso de Direito Constitucional. 10.ed.,


São Paulo: Saraiva, 2012.

69
A POSSIBILIDADE DE HABEAS
CORPUS EM FACE DAS CORREIÇÕES
DISCIPLINARES MILITARES
Luiz Pereira do Nascimento Junior7
Roseana Barbosa da Silva8

INTRODUÇÃO

O presente trabalho de pesquisa surgiu da necessidade de entender


melhor o instituto do Habeas Corpus quando em matéria disciplinar mi-
litar, seja na esfera federal, onde encontramos o Exército, a Marinha e
a Aeronáutica, seja em âmbito estadual, com participação das Polícias e
Bombeiros Militares.
A ordem de Habeas Corpus (HC) nas punições disciplinares militares,
as quais muitas vezes se revestem de prisões, com verdadeiro cerceamento
da liberdade, constitui-se em autêntica ação penal de natureza processual
constitucional (remédio jurídico), destinada a assegurar a liberdade de lo-
comoção do cidadão sem distinção de sexo, raça, religião, nacionalidade,
capacidade, ou atividade laborativa.
O art. 5º, da Constituição Federal (CF) de 1988 não faz referência
alguma sobre a proibição de cabimento de Habeas Corpus para as prisões
disciplinares militares, por se tratar de uma garantia fundamental do ci-
dadão. É neste artigo que estão inseridos valores que se sobrepõem sobre
quaisquer outros, de modo que passou a ser conhecido por cláusula pétrea.

7 Mestrando em Linguística e Ensino – UPFB. Bacharel em Direito - Unipê.


8 Bacharel em Direito – Unipê.

70
LU I Z A N TÔ N I O R E I S J U N I O R , M A U R I C I O P I R E S G U E D E S , T E L S O N P I R E S ,
VA N E S S A V E L A S C O, H E R N A N D E S B R I TO R E I S ( O R G . )

O tema escolhido está centrado e se justifica na importância da ex-


tensão desse remédio constitucional, de modo a entender se o Habeas Cor-
pus pode ser aplicado em casos de punições disciplinares militares.
Durante dez anos, vivenciamos de perto – como policial militar - a
necessidade de aplicação deste instrumento no direito castrense e consti-
tucional. E vivenciar o cotidiano das ilegalidades existentes na aplicação
do Regulamento Disciplinar Militar motivou o presente estudo.
Isso porque a liberdade é, sem dúvida, um direito fundamental do ci-
dadão, tratando-se de um valor assegurado a todos os brasileiros e estran-
geiros residentes no país, desde que estejam sendo vítima de ilegalidade e
abuso de poder contra seu direito de locomoção.
Acontece que em dado momento é possível identificar uma incon-
gruência entre o artigo 5º, LXVIII, e o § 2º do art. 142, ambos da Cons-
tituição Federal, uma vez que este último apresenta uma restrição apenas
ao servidor militar do direito constitucional de ação do Habeas Corpus,
denotando uma inquestionável incongruência.
Diante desse cenário, apresentaremos os motivos fundamentados em
normas e jurisprudências acerca da possibilidade da concessão de Habeas
Corpus nos casos de prisão disciplinar militar ilegais ou abusivas.
O presente artigo, no que importa à sua metodologia, revestiu-se de
uma abordagem qualitativa, segundo nos apresenta Oliveira (2002). Não
temos a pretensão de numerar ou medir unidades ou categorias homogê-
neas, nem empregaremos dados estatísticos como centro do processo de
análise de um problema.
O estudo, igualmente, fez uso do método dedutivo, uma vez que usa
princípios gerais de isonomia defendidos pelo art. 5° da CF (Cláusulas Pé-
treas), a fim de comprovar a incongruência existente no texto consitucional.
No que importa à classificação da pesquisa, no alcance do procedi-
mento técnico, dizemos que a pesquisa bibliográfica norteia o presente
trabalho. Esta conclusão fundamenta-se em razão dos estudos terem sido
realizados com base em livros e artigos científicos, incluindo suas remis-
sões, além de trabalhos monográficos e outros acadêmicos em geral, de
modo a corroborar com a proposta de estudo, mesmo sendo o presente
tema de difícil de discussão.
Temos como objetivo analisar a incongruência do art. 5º, LXVIII em
relação ao § 2º do art. 142, ambos da Constituição Federal, bem como

71
DIMENSÕES JURÍDICAS DAS POLÍTICAS PÚBLICAS – VOL. 1

confrontar princípios estritamente ligados ao devido processo legal, igual-


dade, dentre outros.
Para conseguirmos entender melhor a aplicação do HC nos casos de
reprimendas administrativas de constrição de liberdade, parte-se da reali-
dade que que é possível haver uma prisão sem obediência do devido pro-
cesso legal, em absoluta ilegalidade e abuso de poder.
Destacamos, ainda, e para o auxílio da intelecção do tema proposto
neste estudo, que a autoridade coatora que fere (ou possa ferir) a liberda-
de do direito de locomoção de pessoa natural deve ser, obrigatoriamente,
agente público, agindo em ilegalidade ou abuso de poder.
Caso a restrição de liberdade seja feita por uma pessoa do povo, sem
a investidura do Estado, caracterizaria, assim, cárcere privado, constrangi-
mento ilegal ou ameaça, crimes capitulados, respectivamente nos artigos
146, 147 e 148, todos do Código Penal Brasileiro.
Assim, quando estivermos falando de autoridade coatora, é impres-
cindível a percepção estrita do que vem a ser tal sujeito opressor.
De modo sincrônico, estando, pois, qualquer do povo sob ameaça ou
puro constrangimento no seu direito de ir e vir causado por uma pessoa
sem investidura de atribuições públicas, o Habeas Corpus não é o meio
mais adequado para requerer a proteção jurisdicional do Estado.
Na hipótese em que o paciente não tiver ainda sofrido o constrangi-
mento do cárcere, a medida imponente é a do Habeas Corpus preventivo.
Por outro lado, quando o paciente já tenha sido privado de sua liberdade,
por ilegalidade ou abuso, o pedido de Habeas Corpus será liberatório ou re-
pressivo, porquanto se propõe a afastar constrangimento ilegal à liberdade
de locomoção já existente.
E é para combater prisão revestida de ilegalidade e abusiva, ou a imi-
nência de sua existência, que defendemos que no confronto entre normas
constitucionais, as inseridas nas cláusulas pétreas devem ter precedências
sobre as demais, dado aos valores por elas protegidos.

1. A CONVENÇÃO AMERICANA DOS DIREITOS


HUMANOS

Também conhecida como Pacto de São José da Costa Rica, a Con-


venção Americana dos Direito Humanos – CADH foi consignada pelo
Brasil, através do Decreto nº 678, de 6 de novembro de 1992.
72
LU I Z A N TÔ N I O R E I S J U N I O R , M A U R I C I O P I R E S G U E D E S , T E L S O N P I R E S ,
VA N E S S A V E L A S C O, H E R N A N D E S B R I TO R E I S ( O R G . )

Por este motivo, adquiriu status de norma constitucional, devido tra-


zer em seu texto extrema ligação com direitos e garantias fundamentais
asseguradas aos cidadãos dos países signatários, devendo se estabelecer
dentro da hierarquia das normas.
As matérias tratadas no âmbito constitucional, ou no aspecto pactual,
possuem características complementares, de modo que uma irá preencher
a lacuna deixada na outra e vice-versa.
Em caso de duplicidade de segurança, a interpretação deverá ser dada
de maneira mais favorável na prevalência dos direitos e garantias funda-
mentais.
No que importa ao direito de Habeas Corpus, impende destacar que o
texto presente no artigo 7º, nº 06, da CADH tem força equiparada ao tex-
to constitucional, sendo norma de aplicação imediata, devendo se estender
a todo o cidadão, independente da existência de manifestação contrária.
Vejamos in verbis o texto em comento:

Toda pessoa privada da liberdade tem direito a recorrer a juiz ou


tribunal competente, a fim de que este decida, sem demora, so-
bre a legalidade de sua prisão ou detenção e ordene sua soltura se
a prisão ou detenção forem ilegais. Nos Estados Partes cujas leis
preveem que toda pessoa que se vir ameaçada de ser privada de sua
liberdade tem o direito a recorrer a um juiz ou tribunal compe-
tente a fim de que este decida sobre a legalidade de tal ameaça, tal
recurso não pode ser restringido ou abolido. O recurso pode ser
interposto pela própria pessoa ou por outra pessoa. (CADH, 1995)

Notadamente, percebemos que o texto não traz exceções quanto


às punições disciplinares militares, o que nos leva a uma interpretação
extensiva quanto ao caso castrense, permitindo-se, nesta inteligência, a
impetração do remédio constitucional contra medida disciplinar militar
abusiva ou ilegal.
A terminologia é a adequada e inclusiva, vez que a expressão “toda
pessoa” não faz qualquer distinção, do mesmo modo que o texto constitu-
cional prescreve que sempre que “alguém” sofrer ou se achar ameaçado de
sofrer violência ou coação em sua liberdade de locomoção, por ilegalidade
ou abuso de poder poderá impetrar Habeas Corpus.

73
DIMENSÕES JURÍDICAS DAS POLÍTICAS PÚBLICAS – VOL. 1

Mazzuoli (2009, p. 92) assevera que:

[...] os tratados internacionais de direitos humanos ratificados pelo


Brasil podem ser imediatamente aplicados pelo Poder Judiciário,
com status de norma constitucional, independentemente de pro-
mulgação e publicação no Diário Oficial da União e independente-
mente de serem aprovados de acordo com a regra do novo § 3º, do
art. 5º da Carta de 1988. Tais tratados, de forma idêntica à que se
defendia antes da reforma constitucional, continuam dispensando a
edição de decreto de execução presidencial para que irradiem seus
efeitos tanto no plano interno como no plano internacional, uma
vez que têm aplicação imediata no ordenamento jurídico brasileiro.

Em sendo assim, mesmo aqueles que defendem a interpretação literal


do §2º do art.142, da Constituição Federal, digo, advogam a restrição do
Habeas Corpus em punições disciplinares militares, devem considerar a in-
congruência dos textos em comento.
Havendo, pois, disparidade de normas que assentam o mesmo tema,
a interpretação deve caminhar no sentido mais favorável, ou seja, permitir
a concessão da medida protetiva. (GRINOVER, 2004).

2. O HABEAS CORPUS E A DISCIPLINA MILITAR

O Poder Disciplinar está entre os poderes inerentes à administração


pública, ao lado do poder vinculado, discricionário, hierárquico e regula-
mentar. São, na verdade, instrumentos que auxiliam a administração no
alcance de seus objetivos.
No que importa ao tema deste trabalho, o poder disciplinar é o que
mais nos interessa, pois é com o fundamento neste parâmetro que a admi-
nistração regula a conduta de seus administrados.
No caso das instituições militares, o poder disciplinar possui um status
punitivo maior que demais setores da administração pública, uma vez que as
penas aplicadas podem, inclusive, interferir no direito de liberdade do militar.
As punições estão gradualmente estabelecidas em ordem de gravi-
dade, podendo ser desde uma simples advertência, que consiste numa
admoestação verbal perante os pares do militar, até uma prisão, que se
assemelha as reclusões conhecidas no mundo civil.

74
LU I Z A N TÔ N I O R E I S J U N I O R , M A U R I C I O P I R E S G U E D E S , T E L S O N P I R E S ,
VA N E S S A V E L A S C O, H E R N A N D E S B R I TO R E I S ( O R G . )

Estas tais prisões são o resultado de uma perseguição pela manuten-


ção da ordem disciplinar interna, não sendo aplicada por qualquer outra
organização.
Sabemos que o poder disciplinar pode atingir qualquer pessoa que
tenha vínculo jurídico com a administração pública, seja o vínculo de ca-
ráter contratual ou funcional. (ALEXANDRINO e PAULO, 2012).
Neste último caso, havendo o administrado transgredido valores de
ordem moral, ética e disciplinar deverá sofrer as sanções previstas na lei
específica, cabendo, de acordo com a oportunidade e conveniência do
administrador (o Estado), uma das medidas repressivas, incluindo suas
possíveis gradações.
Dentro da seara castrense, a prisão disciplinar é a medida mais severa
e consiste no encarceramento do indisciplinado. Contudo, o ato que pre-
cede a punição deve obediência a um rito próprio onde será assegurada a
ampla defesa e o contraditório.
É normal que o Estado busque a punição daqueles que, eventualmen-
te, possam ter condutas desviantes, mas é exigido dele uma maneira solene
e formal para a efetivação dessa punição, principalmente quando o resulta-
do pode ser a privação da liberdade.
Como dito, a prisão como medida disciplinar exige a preexistência
de um rito formal para a sua efetivação. Caso exista algum vício durante
o processo apuratório, a medida disciplinar resta prejudicada, não sendo
legal a punição imposta.
Prescreve ao artigo 5º, LV, da Constituição Federal, que aos litigan-
tes, em processo administrativo, e aos acusados em geral são assegurados
o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes.
(BRASIL, 1988).
Ora, é perfeitamente possível que alguém seja punido sem o devido
respeito ao texto legal, ou sem motivos aparentes, o que resultaria, em
consequência, em uma punição ilegal ou irregular.
Mesmo pondo em prática o direito de punir os desvios de condutas
disciplinares, o Estado não pode se afastar da obediência irrestrita da lei
que orienta seus atos.
Caso a prisão disciplinar ocorra ao arrepio da lei, entendemos ser o
instituto do Habeas Corpus o meio mais apropriado para combater tais ir-
regularidades.

75
DIMENSÕES JURÍDICAS DAS POLÍTICAS PÚBLICAS – VOL. 1

O §2º do artigo 142,  da Constituição Federal, dispõe que não cabe-


rá Habeas Corpus em relação às punições disciplinares militares, contudo
a doutrina ensina e a jurisprudência tem entendido que o impedimento
em questão está diretamente ligado ao mérito das punições disciplinares
militares.
Todos os ensinamentos contemporâneos traduzem que os princípios
de Direito Penal devem ser aproveitados, em sua totalidade, para as me-
didas infracionais da ordem administrativas, incluindo o da legalidade,
como escreve o renomado jurista e professor Luiz Flávio Gomes (GO-
MES, 1995):

Todas as garantias do Direito Penal devem valer para as infrações


administrativas, e os princípios como os da legalidade, tipicida-
de, proibição da retroatividade, da analogia, do ne bis in idem, da
proporcionalidade, da culpabilidade, etc, valem integralmente in-
clusive no âmbito administrativo.Por tal motivo, entende-se que,
nada impede que o Poder Judiciário examine os pressupostos de
legalidade da punição, cabendo neste caso, a interposição de Habeas
Corpus, mas não para a análise do mérito.

Por outro lado, o Supremo Tribunal Federal, no Recurso Extraordi-


nário nº 338.840-RS, da relatoria da Ministra Ellen Gracie, resolveu um
caso onde houve impetração de Habeas Corpus contra punição disciplinar.
Nesta oportunidade peculiar, o colegiado maior decidiu apontando
no sentido de que não há que se falar em violação ao art. 142, §2º,
da  Constituição Federal, se a concessão de Habeas Corpus, impetrado
contra punição disciplinar militar, volta-se tão somente para os pressu-
postos de sua legalidade, excluindo a apreciação de questões referentes ao
mérito. (BRASIL, 2003).
Caso a punição disciplinar do militar que decidiu usar o remédio
constitucional tenha atendido aos pressupostos de legalidade, ou seja, exis-
te o elemento da hierarquia, o poder disciplinar, o ato ligado à função e a
pena susceptível de ser aplicada disciplinarmente, o Habeas Corpus não será
medida jurídica adequada.
Contudo, precisamos saber se, além dos elementos acima, o ato ad-
ministrativo revestiu-se da legalidade, sendo obediente à ampla defesa e

76
LU I Z A N TÔ N I O R E I S J U N I O R , M A U R I C I O P I R E S G U E D E S , T E L S O N P I R E S ,
VA N E S S A V E L A S C O, H E R N A N D E S B R I TO R E I S ( O R G . )

ao contraditório, e ainda no círculo da impessoalidade e imparcialidade.


Do contrário, a análise pelo judiciário de medida disciplinar imposta ao
militar deverá ser regra de ordem.
Uma transgressão disciplinar castrense pode levar o transgressor a ser
punido com até 30 (trinta) dias de prisão, muitas vezes de forma arbitrária,
injusta e ilegal, sendo necessária a intervenção do judiciário para a defesa
do direito atingido.
Quanto às ilegalidades e injustiças que eventualmente podem vitimar
alguém no direito administrativo militar, Chaves (2002) ensina que jamais
uma constituição que se baliza na democracia e num estado de direitos
poderia promover exceções, e que a vedação contida no artigo 142 deve
ser lida restritivamente.
Contudo, ao tentar dissipar a incongruência entre os textos constitu-
cionais, é preciso processar uma interpretação de maneira extensiva, ou
seja, de modo que deve ultrapassar o agrupamento de signos linguísticos,
com seus significados e significantes, devendo considerar elementos con-
temporâneos e sociais, além de se fazer necessária remissão aos textos que
tratam sobre o assunto ao longo da constituição.
Ora, se até mesmo os crimes tidos como hediondos são suscetíveis de
liberdade provisória, em relevância ao direito natural do homem ser livre,
e neste estado se manter até o trânsito em julgado de ação penal conde-
natória, então porque não expandir a noção do termo “alguém” para o
militar?
É prudente destacar que o mencionado remédio constitucional,
muitas vezes referido como heroico, está abrigado no capítulo pertencente
aos direitos e garantias fundamentais da Constituição Federal de 1988.
De tal modo, resta-nos destacar que tais garantias estão revestidas de
uma medida assecuratória, pois não apenas exprimem direitos, mas limi-
tam os poderes que eventualmente podem atingir os direitos.
O legislador quis, sobretudo, blindar a hierarquia e a disciplina mi-
litar, impedindo que o subordinado pudesse de qualquer forma invalidar
atos de correção disciplinar assumidos por seus superiores. Entretanto, es-
queceu que num dispositivo incluído nas garantias fundamentais do cida-
dão acabou incluindo o militar quando se referiu a “alguém”.
E não fica por ai. Caso realmente não fosse possível a análise dos atos
corretores da disciplina castrense pelo judiciário, o legislador teria criado

77
DIMENSÕES JURÍDICAS DAS POLÍTICAS PÚBLICAS – VOL. 1

uma figura inatingível, uma vez que suas decisões jamais poderiam ser
corrigidas, mesmo que eivadas de vícios.
Se até mesmo os mais altos degraus do judiciário estão sujeitos a erros
e correções, então por qual motivo o legislador teria criado um ente su-
premo? É óbvio que não foi esse o objetivo.
Quando o legislador instituiu este dispositivo, agregou nele a obe-
diência aos outros valores presentes no mesmo texto, de modo que não
caberá Habeas Corpus em punições disciplinares quando estas tiverem em
estrita obediência legal.
Em caso contrário, desnudo da legalidade, o ato que pune militar sem
obediência ao regramento e os princípios constitucionais deverá ser refeito
e corrigido pelo judiciário através do remédio heroico.
Não é demais ressaltar que não existe no texto constitucional qual-
quer distinção entre o cidadão civil (aquele que exerce qualquer outro
tipo de atividade) de outro cidadão militar (que tem atividade profissional
regulada pelo regime militar).
É justo que o Estado, de alguma forma, persiga e alcance a punição
do militar que transgrida o regulamento, o que não é diferente na esfera
cível. Todavia, o mesmo Estado deve obedecer ao que ele mesmo instituiu
no artigo 5º da CF, em resumo, a igualdade perante a lei, sem distinção de
qualquer natureza.
Rosa (2007) ensina que:

O policial infrator, ou seja, aquele que desobedece o regulamento


ao qual se encontra sujeito e viola o seu juramento, deve ser julga-
do de forma imparcial e, comprovada a acusação, deve ser punido,
e se for o caso, demitido dos quadros da Corporação, na qual in-
gressou de forma voluntária. Mas, a busca de uma punição ao policial
infrator não pode ser marcada pelo abuso, pela intolerância, acompanhada de
parcialidade dos julgamentos, onde alguns aplicam interpretação diversa do
princípio da inocência, ou seja, na dúvida, o réu é culpado. (grifo autoral).

Ora, afastar a análise do judiciário de ordem de Habeas Corpus im-


petrada por militar que sofre coação do seu direito de ir, vir e permane-
cer de acordo com sua vontade é considerado por Campos Júnior (2001)
um disparate jurídico ao somente impedir o Habeas Corpus com relação à

78
LU I Z A N TÔ N I O R E I S J U N I O R , M A U R I C I O P I R E S G U E D E S , T E L S O N P I R E S ,
VA N E S S A V E L A S C O, H E R N A N D E S B R I TO R E I S ( O R G . )

prisão decorrente de leves lesões à disciplina militar, isto é, a oriunda de


infrações disciplinares.
Desta feita, deve o magistrado competente receber a impetração deste
remédio heroico e julgá-lo, na ótica da legalidade e na obediência irrestri-
ta da garantia individual.
Seu julgamento deve se basear no rito do ato, verificando a devida
obediência no que importa à competência, à finalidade e ao motivo, ou
seja, na aplicação do direito, o julgamento deverá verificar se ao militar foi
garantida a ampla defesa e o contraditório.
Curial destacar que a defesa não necessariamente seja feita por advogado
habilitado, podendo ser realizado apenas e tão somente pelo próprio adminis-
trado, em estrita obediência a sumula nº 05 do Supremo Tribunal Federal.
Neste entendimento sumulado, a defesa técnica ausente durante o
processo administrativo disciplinar não ofende a Constituição, e em con-
sequências os direitos e garantias nela inseridos.
É suficiente, para que exista a ampla defesa e o contraditório, que
o militar que esteja sendo punido possa ter tido acesso a todas as provas
e informações inseridas no processo, podendo contradizê-las e também
trazendo provas para sua defesa, além de ter tido acesso aos recursos
cabíveis no processo administrativo.
Veda-se ao juiz da causa a apreciação da conveniência e oportunidade
do ato disciplinar, uma vez que deve obediência ao princípio da separação
dos poderes.

3. A COMPETÊNCIA PARA JULGAMENTO DE HABEAS


CORPUS DISCIPLINAR E DO CRIME DE ABUSO DE
AUTORIDADE

Vimos no decorrer do texto que é perfeitamente possível a aplicação


de uma medida disciplinar sem o devido respeito à legalidade, o que resul-
ta em prejuízo ao militar supostamente indisciplinado.
O prejuízo margeia a incidência do crime de abuso de autoridade
pelo agente que puniu indiscriminadamente seu subordinado, em desa-
cordo e flagrante desobediência ao ordenamento pátrio.
Para que haja o crime de abuso de autoridade, que consiste na prá-
tica por qualquer órgão público – personificado pelos seus agentes -, no

79
DIMENSÕES JURÍDICAS DAS POLÍTICAS PÚBLICAS – VOL. 1

exercício irregular de suas atribuições, de atos que vão além dos limites
previstos, dando causa ao prejuízo de outra pessoa, são necessários os pres-
supostos existenciais, quais sejam: I) o ato ilícito praticado; II) sujeito ativo
agente público, no exercício de sua função ou em razão dela; III) que não
exista motivo que o legitime.
Dessa forma, uma prisão disciplinar irregular, como vimos anterior-
mente, enseja uma ilegalidade e a existência de crime, conforme a lei de
abuso de autoridade.
Havendo, pois, um crime que se reveste dos requisitos legais que o
colocam como crime militar, o ato abusivo de punir disciplinarmente um
militar, sem o devido calço legal, implica num crime militar, sendo com-
petente a justiça militar processar e julgar o abuso.
Em sendo este o caso, o crime de abuso de autoridade não será pro-
cessado em fase de Habeas Corpus, mas por ação própria iniciada por im-
pulso de um Inquérito Policial Militar, que sustentará possível denúncia
pelo Ministério Público Militar.
O art. 124 da Constituição Federal estabelece que à Justiça Militar
compete processar e julgar os crimes militares definidos em lei. Em sendo assim,
compete a ela julgar apenas os crimes militares definidos no Código Penal
Militar. Por outro lado, temos que a transgressão disciplinar não é crime,
mas tão somente um ato administrativo, apartando a analise deste ato pela
justiça militar.
Todavia, em se tratando da análise do Habeas Corpus, entendemos que
seu processamento e julgamento são da alçada da justiça comum, desde que
na Lei de Organização Judiciária do Estado não tenha previsão específica.
Não é demais repetir que o art. 5º, LXVIII, da Constituição Federal
de 1988, é a consolidação de uma garantia, rígida, imutável, que a todos
é imperativa. Garante o parágrafo 2º, do mesmo artigo e diploma, que as
normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação
imediata.
É por isso que defendemos a possibilidade da concessão do Habeas
Corpus em punições disciplinares militares.
O crime militar, resultado do cerceamento ilegal por ato indiscipli-
nar, será processado e julgado pela justiça militar, pois se reveste dos re-
quisitos necessários do elemento penal, além de está inserido dentro do rol
taxativo das condutas específicas definidas como crime militar.

80
LU I Z A N TÔ N I O R E I S J U N I O R , M A U R I C I O P I R E S G U E D E S , T E L S O N P I R E S ,
VA N E S S A V E L A S C O, H E R N A N D E S B R I TO R E I S ( O R G . )

Enquanto isso, por se tratar de um ato administrativo, o Habeas Corpus


contra ato de disciplina militar se processa na justiça comum, caso não
exista previsão contrária em cada estado da jurisdição, no caso dos mili-
tares estaduais.
No Estado da Paraíba, a Lei de Organização e Divisão Judiciária do
Estado – LOJE dispõe, em seu art. 188, que compete à Justiça Militar
processar e julgar os militares do Estado, nos crimes militares definidos
em lei, e as ações judiciais contra atos disciplinares militares.
Sendo assim, a ação de Habeas Corpus que vergasta prisão disciplinar
militar ilegal, no caso de policial ou bombeiro militar da Paraíba, mesmo
se tratando de ato administrativo, deverá ser processada pela justiça militar
estadual.
É tão verdade essa independência no processamento dos atos
administrativos dessa ordem que no estado do Rio Grande do Norte a
Lei Complementar nº 65, de 28 de abril de 1999, que organiza a justiça
daquele ente federado, sofrendo diversas alterações ao longo do tempo,
excluiu a apreciação pela justiça de ações contra atos disciplinares militares.
Em resumo, compete à justiça comum julgar o  Habeas Cor-
pus  impetrado contra transgressão disciplinar militar, salvo quando a lei
de organização judiciária estabelecer o contrário, podendo inclusive ser
apreciado em varas de fazenda pública.
Acreditamos que, por ser incomum este tipo de processamento em
varas da fazenda pública, é provável que o juiz que se coloque para julgar
a presente ação acabe por declinar da competência, havendo, em conse-
quência disso, um possível conflito de competência, já que pode existir
incompetência do juiz militar e de qualquer juízo criminal.
Em caso de haver o aludido conflito de competência, o paciente po-
deria sofrer coação na sua liberdade enquanto o conflito fosse sanado, cor-
rendo o risco de permanecer preso por todo o tempo da prisão disciplinar.
Vejamos como resultou o Recurso em Habeas Corpus nº 17.960-DF
(BRASIL, 2001):

RECURSO EM HABEAS CORPUS - PRISÃO DISCIPLI-


NAR MILITAR - HC ORIGINÁRIO DENEGADO - PRI-
SÃO INTEGRALMENTE CUMPRIDA - PEDIDO PREJU-
DICADO.

81
DIMENSÕES JURÍDICAS DAS POLÍTICAS PÚBLICAS – VOL. 1

1. Despreza-se preliminar de intempestividade do recurso em HC


porque, em tema de liberdade de ir e vir e da correspondente garan-
tia constitucional, o pedido pode ser conhecido como originário e a
ordem concedida até de ofício, sem o rigor da regra procedimental.

2. Já cumprida a prisão disciplinar militar durante o trâmite da


ação fazem quase três anos, o pedido resta prejudicado.

3. Habeas Corpus prejudicado.

Percebe-se que, mesmo não sendo caso de conflito de competência,


o julgado acima trata do prejuízo da análise do mérito do Habeas Corpus,
uma vez que a prisão disciplinar já fora cumprida em sua totalidade, o que
aproxima do decurso do prazo quando houver conflito de competência.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O Habeas Corpus, objeto deste trabalho, foi apresentado desde seu


perfil histórico até a importância desse instrumento no direito contempo-
râneo, trazendo uma visão sistêmica e humanizada da ordem.
Demonstramos a incongruência de sua inaplicabilidade para os mi-
litares quando os consideramos como um “alguém” ou uma “pessoa”,
terminologia empregada sempre em noção ampla nas normas que tratam
do assunto, a qual acaba por incluí-los.
Assim, não se pode negar ao militar recluso por medida disciplinar o
direito de requerer apreciação do judiciário do seu direito em permanecer
em liberdade, caso esta tenha lhe sido tirada por um ato atentatório aos
preceitos constitucionais.
É dever do judiciário socorrer aqueles que se sentem injustiçados,
principalmente quando o direito levado a julgamento seja de ordem
constitucional, defendido inclusive por tratados internacionais consignados
pelo Brasil.
Positivado no direito brasileiro, este instituto está inserido nas cláu-
sulas pétreas, as quais possuem características que impedem alterações e
supressões, havendo precedência delas quando, no caso concreto, colidem
com outros institutos constitucionais.
Até mesmo a Conferência Americana dos Direito Humanos prevê
que qualquer pessoa que tenha sua liberdade cerceada por ilegalidade ou

82
LU I Z A N TÔ N I O R E I S J U N I O R , M A U R I C I O P I R E S G U E D E S , T E L S O N P I R E S ,
VA N E S S A V E L A S C O, H E R N A N D E S B R I TO R E I S ( O R G . )

abuso de autoridade deve requerer a análise deste fato pelo judiciário. Tal
segurança garante a possibilidade de Habeas Corpus para casos de discipli-
nar militar, uma vez que o texto não faz nenhuma exceção.
Em sendo assim, sanando a incongruência, concluímos pela perfeita
possibilidade de concessão da medida quando o militar estiver tendo sua
liberdade cerceada, ou antes mesmo de tê-la, por ato ilegal ou abusivo.

REFERÊNCIAS

ALEXANDRINO, Marcelo; PAULO, Vicente. Direito Constitucio-


nal Descomplicado. 9ª ed. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo:
Método, 2012

BRASIL. Código de Processo Penal Militar, de 21 de outubro de


1969. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/de-
creto-lei/del1002.htm> Acesso em 25.jan.2013

______.Constituição da República Federativa do Brasil, de 5 de


outubro de 1988. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/cci-
vil_03/constituicao/constituicao.htm> Acesso em 02.jan.2013

______. Convenção Americana sobre Direitos Humanos - Pacto de


San José. Brasília, DF: Senado, 1995.

______. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Extraordinário. RE


338.840/RS. 2003 Relatora: Ministra Ellen Gracie. Segunda Tur-
ma. DJ 12.9.2003. Disponível em: https://stf.jusbrasil.com.br/juris-
prudencia/770610/recurso-extraordinario-re-338840-rs Acesso:
29 ago. 2020.

______. Tribunal Regional Federal da 1ª Região. Recurso Constitucional


em Habeas Corpus nº 17.960-DF. 2001. Relator Juiz Luciano Tolenti-
no Amaral. Terceira Turma. DJ 28.09.2001. Disponível em: https://trf-1.
jusbrasil.com.br/jurisprudencia/2322368/recurso-em-habeas-corpus-r-
chc-17960-df-19990100017960-9. Acesso: 30 ago. 2020.

CAMPOS JÚNIOR, José Luiz Dias. Direito penal e justiça milita-


res: inabaláveis princípios e fins. Curitiba: Juruá, 2001.

83
DIMENSÕES JURÍDICAS DAS POLÍTICAS PÚBLICAS – VOL. 1

CHAVES, Evaldo Corrêa. Habeas Corpus na transgressão disciplinar


militar: possibilidade jurídica e ressarcimento dos danos. São Paulo:
RCN, 2002.

GOMES, Luiz Flávio.  Responsabilidade Penal Objetiva e Culpa-


bilidade nos Crimes contra a Ordem Tributária.  RIOBJ nº
11/1995, pág. 3.

GRINOVER, Ada Pellegrini; FERNANDES, Antônio Scarance; GO-


MES FILHO, Antônio Magalhães. As nulidades no processo pe-
nal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004.

MAZZUOLI, Valério de Oliveira. O controle jurisdicional da con-


vencionalidade das leis. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009.

OLIVEIRA, Silvio Luiz de. Tratado de metodologia cientifica. São


Paulo: Pioneira, 2002.

ROSA, Paulo Tadeu Rodrigues. Direito administrativo militar: teo-


ria e prática. Rio de Janeiro: Lúmen Juris, 2007.

84
O CONTROLE DE
CONVENCIONALIDADE NO
ORDENAMENTO JURÍDICO
BRASILEIRO
Laís Miranda Feitosa Rocha9
Thais Miranda Feitosa Rocha10

INTRODUÇÃO

O conceito de controle de convencionalidade, começou a se de-


linear na América Latina, com a atuação da Corte Interamericana de
Direitos Humanos no caso A última tentação de Cristo, no Estado do
Chile, que foi acionado pela Corte, após esta receber petição acerca de
violações cometidas no texto constitucional do país que trazia em seu
inciso 12 do artigo 19 determinação estabelecendo por lei um mecanis-
mo de censura para a exibição de produções audiovisuais, que ia contra
o que determinava os artigos 12 e 13 da Convenção Americana. Em
um caso que ocorreu após decisão judicial impedir a exibição de uma
obra do diretor Martin Scorsese, após o próprio Conselho de Classifi-
cação Cinematográfica ter proibido a exibição da obra, e a confirmação
advinda da Corte Suprema do Chile que manteve a censura, a Corte
Interamericana atuou pela primeira vez modificando a Constituição de
um Estado signatário. Essa Corte então estabeleceu que o Chile de-

9 Bacharel em Direito Pela Universidade Estadual do Piauí.


10 Bacharel em Odontologia, graduanda em Direito pelo Centro Universitário FACID.

85
DIMENSÕES JURÍDICAS DAS POLÍTICAS PÚBLICAS – VOL. 1

veria modificar imediatamente suas leis internas, a fim de que fossem


compatíveis com a liberdade de expressão ali violada, e que também
permitisse a exibição e posteriormente apresentasse os procedimentos
tomados a respeito da matéria (CORTE INTERAMERICANA DE
DIREITOS HUMANOS).
Contudo, só viria a ser efetivado esse instrumento, em 26 de setembro
de 2006 pela Corte Interamericana, no Caso Almonocid Arellano e outros contra o
Governo do Chile, na qual a Corte utiliza-se da expressão controle de conven-
cionalidade pela primeira vez, em que afirmou que os juízes nacionais estariam
submetidos a disposições da Convenção Americana, e determinou que os mes-
mos são os guardiões desses dispositivos internacionais devendo garantir que
estes não sejam contrariados por leis internas. A Corte ainda foi além, e afirmou
que tais juízes devem fazer uso da compatibilidade entre as leis nacionais e a
Convenção Americana, levando em conta em seus julgamentos e análises a ju-
risprudência dessa mesma Corte. A partir daí a nomenclatura controle de con-
vencionalidade se consolida no Continente Americano, especialmente quando
a própria Corte passa a transferir essa obrigação do controle, de forma ex officio
a todos os órgãos do Poder Judiciário dos Estados. Isso ocorreu após o Caso dos
Trabalhadores Demitidos do Congresso Vs. Peru, também no ano de 2006, em que
a Corte reforça seu entendimento sobre o controle, mas o grande marco acerca
do tema viria com o julgamento da Corte acerca do Caso Gelaman Vs. Uruguai,
em 24 de fevereiro de 2011, quando foi mais além ao afirmar que todos os ór-
gãos de um Estado ligados à Justiça, devem realizar esse controle. Outros julga-
mentos de anos seguintes da Corte Interamericana viriam a firmar ainda mais a
importância do controle de convencionalidade e abranger seu campo de atua-
ção ao que a própria Corte Interamericana diz serem “padrões internacionais
aplicáveis” (CORTE AMERICANA DE DIREITOS HUMANOS,2006).
A esfera de proteção normativa dos direitos humanos é formada por
sistemas regionais, no sistema Latino Americano a estrutura é composta
a partir da Convenção Americana de Direitos Humanos. Cujo regime
de proteção é formado pela Comissão Interamericana de Direitos Hu-
manos (CIDH) e pela Corte IDH, cuja competência abrange qualquer
país signatário da Convenção ou membro da Organização dos Estados
Americanos (OEA)e cujo papel é interpretar a Convenção e cuidar de sua
aplicação. Assim, a doutrina dos Direitos Humanos Internacionais, reúne
Estados nacionais, que, elaboraram documentos internacionais, por meio

86
LU I Z A N TÔ N I O R E I S J U N I O R , M A U R I C I O P I R E S G U E D E S , T E L S O N P I R E S ,
VA N E S S A V E L A S C O, H E R N A N D E S B R I TO R E I S ( O R G . )

dos quais reconheceram direitos humanos, e estabeleceram órgãos para a


fiscalização e garantia de sua aplicação aos países signatários.
A Corte Internacional de Direitos Humanos no exercício de suas obri-
gações e julgamentos, produz jurisprudência abrangente acerca dos direitos
humanos, que servirá como guia para a aplicação do controle de conven-
cionalidade no direito interno dos Estados, pelos órgãos da Justiça e pelos
juízes, facilitando a atuação dessas autoridades. Além disso é papel desses
órgãos e dos que atuam nos mesmos, determinar que as disposições da Con-
venção Americana sejam garantidas de forma prática no direito interno.
A partir desse entendimento, considera-se que um caso somente será
apresentado à Comissão Interamericana de Direitos Humanos e subme-
tido a Corte Interamericana de Direitos Humanos, se forem utilizados
todos os recursos de direito interno e esses se mostrarem não satisfatórios,
como define o artigo 46, 1ª, da Convenção Americana de Direitos Hu-
manos. Os tribunais nacionais são, portanto, a fonte primária de proteção
desses direitos previstos na Convenção (OEA,1969).

Introdução do Controle de Convencionalidade no


Ordenamento Jurídico Brasileiro

Antes de se entender o processo de formação do controle de con-


vencionalidade no Brasil, é preciso que se compreenda as conjecturas
que serviram de base para esse instrumento. Dentre eles destacam-se
as teorias monista e dualista, que guiaram a doutrina e jurisprudência
no país, a primeira defende a coexistência e a interdependência entre a
ordem jurídica interna e a jurisdição internacional, dentro dessa teoria
criou força o monismo internacional que defende a supremacia do direi-
to internacional sobre o direito interno, e que considera que os tratados
internacionais especialmente os de direitos humanos, teriam hierarquia
superior as leis do direito nacional. Para a segunda teoria dualista, os di-
reitos internacional e interno de um país não teriam qualquer relação, e
não teriam aplicação um no outro, o direito internacional só integraria o
ordenamento jurídico nacional após recepção feita de forma devida pelos
poderes estatais, de forma expressa ou tácita.
O Brasil se alinhou a teoria dualista até a década de 1970, quando
ainda existia determinação estabelecendo que as normas internacionais,

87
DIMENSÕES JURÍDICAS DAS POLÍTICAS PÚBLICAS – VOL. 1

ainda que aprovadas pelo Congresso Nacional, devessem ser reproduzi-


das para viger no direito interno. A mudança veio quando o Supremo
Tribunal Federal, tendo que se manifestar a respeito do caso da aplica-
bilidade do prazo prescricional dos cheques, no Recurso Extraordinário
de nº 71.154/71, decidiu contrariar o entendimento da antiga lei, que es-
tabelecia em seu artigo 15 um prazo de cinco anos, já o artigo 52 da Lei
Uniforme de Genebra, encurtava esse prazo para seis meses. A decisão do
Ministro Oswaldo Trigueiro, a favor da Lei Uniforme de Genebra, que
fazia parte de Convenção adotada e aprovada pelo país, e que segundo o
entendimento do mesmo teriam aplicação imediata inclusive naquilo em
que modificarem a legislação interna. A decisão viria a formar no direito
interno um entendimento de que a reprodução da norma seria desneces-
sária, mas que é obrigatória a aprovação do Poder Legislativo. É certo que
hoje no ordenamento nacional, a aplicação dos tratados internacionais tem
sido cada vez mais aceita, apesar que, não se pode afirmar que a doutrina
ou jurisprudência tenha se consolidado em uma das teorias, tanto o mo-
nismo quanto o dualismo encontram espaço no debate jurídico interno.
Não obstante, tanto o direito interno quanto o ordenamento ju-
rídico internacional fazem parte de um único sistema global, consi-
derando-se que o Direito é um só, e que para a garantir uma justiça
a todos com garantias fundamentais não pode ser tratado como algo
possível de ser separado em esferas. É justamente por esse motivo que
em caso de conflito entre as duas ordens deve-se sempre optar pela re-
gra pro homine, porque está aí a importante função do Direito de primar
pelo indivíduo acima de qualquer coisa, impedindo que suas liberdades
e direitos sejam violadas.
A tese do controle de convencionalidade no Brasil foi desenvolvida
pelo autor Valério Mazzuoli, que é adepto de um monismo internacio-
nalista dialógico, que também leva em conta a primazia da dignidade
humana, e que discorreu acerca desse novo procedimento de controle
da atividade legislativa no país. Assim, o controle de convencionalida-
de trabalhado pelo autor determina a aplicação de um controle das leis,
tendo como parâmetros tratados e convenções internacionais das quais o
Estado seja parte, não se limitando apenas aos parâmetros formais e ma-
teriais estabelecidos pela Constituição de 1988, e utilizando-se da ordem
jurídica internacional como fonte.

88
LU I Z A N TÔ N I O R E I S J U N I O R , M A U R I C I O P I R E S G U E D E S , T E L S O N P I R E S ,
VA N E S S A V E L A S C O, H E R N A N D E S B R I TO R E I S ( O R G . )

A idéia de controle de convencionalidade se firmou no país a partir


da promulgação da Constituição Federal em 1988, contundo só ganhou
mais destaque com a Emenda Constitucional n° 45/2004, que acrescentou
em seu §3° artigo 5°, o status de supremacia dos tratados internacionais
de direitos humanos ao equipara-los a emendas constitucionais, e dessa
modificação passar-se a controlar a convencionalidade desses tratados em
relação ao ordenamento infraconstitucional (MAZZUOLI, 2013).
É preciso destacar, que a Corte máxima do país reproduziu por muito
tempo, o entendimento inadequado, de que tratados internacionais e
leis ordinárias teriam o mesmo nível, seguindo a norma lex posterior dero-
gat priori, assim permitindo que um tratado ou convenção internacional
fossem revogados sem maiores consequências para o Estado. Contudo,
como já visto, a Corte modificou seu entendimento em uma das suas
mais importantes decisões, estabelecidas pelo pleno do Supremo Tribu-
nal, no HC 87.585-TO e RE 466.343-SP, no caso em questão sobre a
prisão do depositário infiel, reconheceu a Corte com o voto majoritário
do Ministro Gilmar Mendes que entendeu que os tratados que tenham
matéria de direitos humanos teriam nível supralegal, ainda posição mais
avançada foi adotada pelo então Ministro Celso de Mello que entendeu
serem tais tratados de status constitucional, posteriormente viria a Su-
prema Corte reconhecer que esses tratados especiais quando aprovados
pelas duas Casas Legislativas, em duas votações distintas, com quórum
qualificado, passariam a ter valor de emenda constitucional, como defi-
nido pela Emenda Constitucional n° 45/2004, §3° artigo 5°. Reconhe-
ceu ainda a Suprema Corte que, os demais tratados de direitos humanos
não aprovados dessa forma, teriam agora status supralegal, ou seja, es-
tariam acima das leis ordinárias. Contudo ainda permanece na Corte o
entendimento de que os tratados internacionais comuns pertencem a um
nível de leis ordinárias. Como elucida Piovesan:

Todavia, ainda que o Supremo Tribunal Federal tenha convergi-


do em atribuir um status privilegiado aos tratados de direitos hu-
manos, divergiu no que se refere especificamente à hierarquia a
ser atribuída a estes tratados, remanescendo dividido entre a tese
da supra legalidade (a ordem jurídica como uma pirâmide em que
a Constituição assume o ponto mais elevado) e a tese da consti-

89
DIMENSÕES JURÍDICAS DAS POLÍTICAS PÚBLICAS – VOL. 1

tucionalidade dos tratados de direitos humanos (a ordem jurídica


como um trapézio em que a Constituição e os tratados de direitos
humanos assumem o ponto mais elevado), sendo a primeira tese a
majoritária(PIOVERSAN,p.87,2012).

A divergência do Supremo Tribunal Federal, mostra o quanto o or-


denamento nacional ainda precisa avançar no sentido de garantir que as
normas internacionais tenham a correta aplicação, já que é a própria Corte
a principal responsável pelo alcance que terá tal norma internacional, pois
é ela a intérprete final dos tratados no direito interno do país.
A posição de muitos doutrinadores, é a de que tal posição majoritá-
ria da Corte que ainda equipara os tratados internacionais comuns a leis
ordinárias seria ultrapassada, e prejudicial a garantia de uma efetiva prote-
ção do direito internacional. O principal argumento desses doutrinadores,
e também deste estudo, é o presente na própria Carta Maior do país, que
dispõe em seu artigo 4º, parágrafo único, que: “a República Federativa do
Brasil buscará a integração econômica, política, social e cultural dos povos
da América Latina, visando à formação de uma comunidade latino-ameri-
cana de nações”; e em seu artigo 5º, §2º: “os direitos e garantias expressos
nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos prin-
cípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República
Federativa do Brasil seja parte”; também estabeleceu em seu artigo 5º, §3º:
“os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que forem
aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três
quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às emendas
constitucionais”; e ainda no seu artigo 5º, §4º: “o Brasil se submete à juris-
dição de Tribunal Penal Internacional a cuja criação tenha manifestado ade-
são”. Restando claro que o texto constitucional se preocupou em ressaltar a
importância e superioridade dos tratados e convenções internacionais para a
contribuição e formação do direito interno.

Controle difuso e concentrado de Convencionalidade

A teoria tratada e difundida no Brasil por Valerio Mazzuoli (2018),


acerca do controle de convencionalidade, estabelece a dupla compatibili-
dade do mesmo, pelas vias difusa e concentrada. Assim se fazendo neces-

90
LU I Z A N TÔ N I O R E I S J U N I O R , M A U R I C I O P I R E S G U E D E S , T E L S O N P I R E S ,
VA N E S S A V E L A S C O, H E R N A N D E S B R I TO R E I S ( O R G . )

sário analisar como o país aplica o controle difuso e concentrado em suas


esferas da justiça, e como esse mecanismo se relaciona com a vigência das
leis internas.
Dessa forma no Brasil, a validade de determinada lei é estabele-
cida em dois parâmetros: a compatibilidade com a Constituição em um
nível de direito interno, e para o direito externo a compatibilidade com os
tratados internacionais de direitos humanos do quais o Estado seja parte.
Ainda que a lei seja vigente ela poderá apresentar vício material de incon-
vencionalidade, o que deverá ser destacado, pelos juízes nacionais ou por
tribunais internacionais, e para que determinada lei que não se adequa aos
tratados de direitos humanos, seja admitida como inconvencional (MAR-
TINS; MOREIRA, 2011).
No entendimento de Mazzuoli (2018), há de ser feita clara distinção
entre vigência e validade das leis, para que uma lei seja eficaz precisa antes
ser válida, e para que seja válida pode ser antes vigente. Uma lei pode ser
vigente por estar em conformidade com os requisitos estabelecidos pelo Po-
der Legislativo e pela Constituição, contudo, se não estiver de acordo com
os tratados de direitos humanos e os demais que o país fizer parte, tal lei não
será válida. A vigência e validade de uma lei depende da dupla compatibi-
lidade vertical material da mesma, precisa esta então ser compatível com
a Carta Maior e com os tratados de direitos humanos vigentes, e também
com as demais normas internacionais das quais o Brasil faça parte.
O entendimento avançado do autor, permitiria assim que a Suprema
Corte como “guardiã da Constituição”, utilizasse esses mecanismos para
garantir a eficácia e validade dos tratados de direitos humanos no país.
A Emenda Constitucional 45/04, institui no Brasil uma nova organiza-
ção ordenamento jurídico quando institui a equivalência desses tratados a
normas constitucionais, a partir daí é que surge a necessidade da atuação
do Supremo Tribunal Federal, por meio desses procedimentos, para que
se garanta a devida proteção aos direitos humanos no direito interno.
De acordo com Mazzuoli (2018), o controle difuso de convenciona-
lidade, inclui todos os tratados de direitos humanos, tanto os que passa-
ram pelo quórum qualificado, como os que não passaram, já que o autor
acredita que tais tratados também tem nível constitucional. Esse controle
difuso deve ser exercido pelos juízes e tribunais domésticos, seja por re-
querimento das partes ou ainda de ofício, são esses agentes que devem

91
DIMENSÕES JURÍDICAS DAS POLÍTICAS PÚBLICAS – VOL. 1

garantir a invalidação da lei interna sempre que essa for menos benéfica
que o tratado, levando em conta sempre o princípio pro homine. Contudo
a decisão de um juiz nacional que invalida lei interna em favor de um
tratado, só produz efeitos entre as partes, a exemplo do controle de cons-
titucionalidade.
A integração entre o sistema jurídico nacional e o internacional, por
meio da utilização desses procedimentos de controle, faz com que as obri-
gações assumidas pelo Estado sejam cumpridas de forma mais eficaz, não
abrindo espaço para justificativas a violações de direitos humanos, quem
ganha com isso é o ordenamento interno que passa a contar com formas
mais eficazes de proteger os direitos essenciais ao indivíduo.

O âmbito de aplicação do Controle de


Convencionalidade

A nova fase em que se encontra hoje o direito internacional, é ex-


plicada em grande parte pelas influências do neoconstitucionalismo e da
primazia da dignidade da pessoa humana, nessa nova perspectiva a inter-
nacionalização do direito é estimulada como mecanismo para garantia de
direitos, e o Estado e os órgãos judiciários ganham novas atribuições. A
democratização dos Estados, estimula o crescimento de um ordenamento
jurídico interno pautado nos valores de uma sociedade internacional, os
direitos humanos são agora parte essencial dessa nova faceta.
Esses direitos ganham maior visibilidade nesse Estado democrático
de direito, especialmente em um país como o Brasil, em que se busca re-
compensar violações como as ocorridas no passado e avançar na proteção a
esses direitos fundamentais. Surge a necessidade de se repensar o Processo
Civil e a forma como seus agentes estão contribuindo para que se alcance
um ideal de proteção e igualdade a todos.
O controle de convencionalidade cabe aqui como instrumento essen-
cial para que se adequem as leis domésticas a proteção internacional dos
direitos humanos. No entanto, os estudos científicos e doutrinários sobre
o tema ainda são poucos, o que dificulta sua propagação e implementação.
Os maiores avanços encontrados sobre o assunto parecem ser os da dou-
trina, que procurou abordar e conceituar o controle de convencionalidade
no país, ressaltando sua importância.

92
LU I Z A N TÔ N I O R E I S J U N I O R , M A U R I C I O P I R E S G U E D E S , T E L S O N P I R E S ,
VA N E S S A V E L A S C O, H E R N A N D E S B R I TO R E I S ( O R G . )

Apesar de a acepção desses tratados no ordenamento nacional serem


competência exclusiva do Poder Legislativo e Executivo, é a Suprema
Corte a responsável pela interpretação e aplicação de tais tratados de di-
reitos humanos, para que sejam incorporados ao direito interno. Assim
como, também é competência de outros tribunais, como o Supremo
Tribunal de Justiça e outros órgãos estatais.
A organização social atual caminha cada vez mais para um processo
de integração e globalização, por isso os ordenamentos internos dos Es-
tados devem estar preparados para lidar com isso, tendo que se estruturar
com base em uma nova ordem social internacional, em que o Estado não
é mais o único ator dentro do ordenamento jurídico.
A relação entre as diversas ordens jurídicas se daria de forma que
cada ordem nacional reconheceria a outra como sendo parte de um úni-
co sistema global, em um modelo centro-periférico. Essa seria a relação
transconstitucional entre ordens jurídicas, e que é acima de tudo uma
relação de cooperação e coordenação, e não de subordinação. Teoria essa
que opõe a perspectiva dominante de uma Constituição suprema que
tem primazia sobre os outros ordenamentos jurídicos.
Assim, os tratados internacionais de direitos humanos é expressão de
um movimento global de preocupação com a proteção dos direitos e ga-
rantias do ser humano. Tal movimento imprimiu tanto no Direito Inter-
nacional como no Direito Constitucional uma interação baseada no apri-
moramento de instrumentos que visam à proteção desses direitos, sempre
à luz do princípio democrático.
Portanto, ratifica-se que o Brasil, tem empenhado-se bastante no pla-
no internacional para integrar uma nova ordem internacional de proteção
aos direitos humanos, colocando em vigor praticamente todos os tratados
internacionais mais significativos. A Constituição Federal Brasileira de
1988, a chamada “Constituição Cidadã”, estabeleceu um marco para o
processo de redemocratização brasileiro e para a institucionalização desses
direitos humanos, consagrando de maneira inédita um enorme elenco de
direitos e garantias fundamentais.

REFERÊNCIAS

BRASIL, [Constituição  (1988)]. Constituição da República Fede-


rativa do Brasil. Brasília, DF: Presidência da República.[2016].

93
DIMENSÕES JURÍDICAS DAS POLÍTICAS PÚBLICAS – VOL. 1

Disponível em: https://www2.senado.leg.br/bdsf/bitstream/handle/


id/518231/CF88_Livro_EC91_2016.pdf. Acesso em: 20 de junho
de 2019.

BRASIL, Emenda Constitucional nº 45. Brasília,DF: Presidência da


República. 30 de dezembro de 2004. Disponível em: http://www.
planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/emendas/emc/emc45.htm.
Acesso em: 10 de julho de 2019.

CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. São


José da Costa Rica. Caso La Última Tentación de Cristo. Dis-
ponível em: www.corteidh.or.cr/serie_c/Serie_c_73_esp.doc. Aces-
so em: 10 de julho de 2019.

CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS, Caso


Almonacid Arellano e outros Vs. Chile, Sentença de 26 de se-
tembro de 2006. Disponível em: http://www.corteidh.or.cr/cf/Juris-
prudencia2/index.cfm?lang=en. Acesso em: 10 de julho de 2019.

CARNEIRO, Paulo Cezar Pinheiro. Acesso à justiça: juizados espe-


ciais cíveis e ação civil pública. Rio de Janeiro: Forense, 2000.

MAZUOLLI, Valério de Oliveira; TERRA, William. O controle de con-


vencionalidade das leis. São Paulo: RT, 2013.

MAZUOLLI, Valério de Oliveira. Curso de Direito Internacional


Público. Rio de Janeiro:Ed. Forense,2018, p. 179-327.

ORGANIZAÇÃO DOS ESTADOS AMERICANOS, Comissão In-


teramericana de Direitos Humanos. Convenção Interamericana
de Direitos Humanos, em 22 set. 1969. Disponível: http://www.
cidh.org/Basicos/Portugues/c.Convencao_Americana.htm. Acesso:
10 de julho de 2010.

PIOVESAN, Flávia. Direitos humanos e diálogo entre jurisdições. Re-


vista Brasileira de Direito Constitucional – RBDC. n. 19. p.
87. Jan-jun 2012. Disponível em: http://www.esdc.com.br/RBDC/
RBDC-19/RBDC-19-067-Artigo_Flavia_Piovesan_(Direitos_Hu-
manos_e_Dialogo_entre_Jurisdicoes).pdf. Acesso em: 10 de julho
de 2019.

94
TRIBUNAIS CONSTITUCIONAIS PÓS-
PANDEMIA: PERSPECTIVAS
Felipe José Minervino Pacheco11

INTRODUÇÃO

Trata-se neste artigo da atuação política de Tribunais Constitucionais


(TsCs), no contexto histórico “durante/pós” pandemia do vírus SARS
COV-2019 (trataremos aqui como “pandemia de 2020”), no panorama
instalado de crise social.
Com base teórica na aceitação de que os TsCs são atores políticos,
tem-se o reconhecimento de seu papel funcional na “fenomenologia do
político”, abarcando a compreensão da dinâmica entre os Poderes e entre
os atores políticos e a sociedade (corpo social), também, na dimensão
burocrático-estrutural do Estado, na dimensão simbólico-constitucio-
nal (discursivo-informacional nos campos jurídico, político e social), na
agenda política e na orientação dos rumos do Estado e da Sociedade.
O impacto causado pela pandemia de 2020 no Estado pode ser
observado na ótica dos TsCs, enquanto aglutinadores do fluxo de ten-
são política (tendo-se por norte os pontos discursivos do político em
relação a direitos fundamentais, sociais, limites de atuação dos Poderes
etc.). Partindo da trilha deixada por alguns julgados, faremos ao fim
algumas considerações.

11 Mestre em Direito Constitucional pela PUC-SP. Advogado e Professor universitário

95
DIMENSÕES JURÍDICAS DAS POLÍTICAS PÚBLICAS – VOL. 1

1. PAPEL POLÍTICO DOS TRIBUNAIS


CONSTITUCIONAIS.

Cumpre-nos inicialmente apontar que neste trabalho focamos nos


TsCs em virtude da função exercida – como corpo externo aos poderes,
quanto ao STF, via controle concentrado e ações originárias - e não
na de Corte Suprema (CS, última instância recursal; no caso brasileiro,
via recurso extraordinário).12 Dessa maneira, dentro do paradigma de
jurisdição constitucional “austríaco”, mas ciente das peculiaridades do
sistema brasileiro.
Importante anotar sobre o papel político dos TsCs, sendo farta a dou-
trina neste sentido (KOERNER, 2016 e PEREIRA, 2013). Não aden-
traremos, por recorte epistêmico, a seara discursiva do ativismo judicial.13
Olha-se uma dupla-via da manifestação do poder político: Estado em
relação à Sociedade (dimensão de defesa e prestacional) e entre os três po-
deres. Mesmo que com base legitimadora a da constitucionalidade, escrita
e interpretada, a atuação dos TsCs está intrinsecamente ligada a questões
políticas (já que a Constituição é a carta política, de orientação do poder
político, de configuração do Estado). Aqui, a ligação e correspondência
entre o político e o jurídico evidenciam-se.
Como o recorte proposto dimensiona o período “durante-pós” pan-
demia de 2020, dada sua natureza e relevância inata à área/campo da saú-
de, insta salientar que a responsabilidade do Estado é solidária, abrangendo
todos os entes da Federação (SARLET, 2017, p. 637). Ciente estamos que
há um certo “taboo” no campo jurídico, herança de algumas visões sobre
a obra kelseniana14 (KELSEN, 1998, p. 15-16), segundo o qual aspectos

12 “(...)órgão de cúpula do Poder Judiciário brasileiro, exercendo, em tempo parcial, as


funções próprias de um tribunal constitucional, já que também desempenha as funções de
tribunal comum, resolvendo litígios concretos”. (TAVARES, 2007, p.370)
13 “O que tem sido chamado ativismo no Brasil resulta de uma aliança entre a presidência
da República e elites jurídicas a partir de 2002, voltada a promover as políticas do novo go-
verno e a configurar um novo regime governamental.” (KOERNER, 2013)
14 A racionalidade preside grande parte da ciência do direito, como uma necessidade uni-
versal. Hans Kelsen procede a um reducionismo do fenômeno do direito em termos teóri-
cos. Somente a norma jurídica estatal identifica cientificamente o direito. Para compreender
a normatividade do direito, não é preciso vasculhar as fontes sociológicas, políticas, históri-

96
LU I Z A N TÔ N I O R E I S J U N I O R , M A U R I C I O P I R E S G U E D E S , T E L S O N P I R E S ,
VA N E S S A V E L A S C O, H E R N A N D E S B R I TO R E I S ( O R G . )

políticos contaminam o campo jurídico; entretanto, s.m.j, os argumentos


em prol da percepção da atuação política dos TsCs são fortes.
Toda decisão de um TC possui uma carga política, não justificada/
originada somente pela esfera normativo-jurídica, ocorrendo variação de
intensidade/carga política das decisões, a depender de elementos como:
matéria/objeto, atores, espécie de ação e panorama de fundo (extra-jurídi-
co). Assim, os TsCs são aglutinadores das tensões sociais-constitucionais
e de dinâmica estatal.
No tocante a este singelo limite entre harmonia e intromissão entre
poderes, para NUNES JUNIOR (2019, p. 585):

Todavia, não caberá ao Judiciário estabelecer aprimoramentos às


políticas públicas eficazes ou ordenar a substituição de uma polí-
tica pública por outra. O Judiciário, em nosso entender, deve agir,
quando descumprido o mínimo existencial dos direitos funda-
mentais, utilizando-se como parâmetro de aferição o princípio da
dignidade da pessoa humana. Assim, entendemos que, em casos
extremos, pode e deve o Judiciário agir, em defesa da Constituição
e de sua força normativa.

Apresenta KOERNER (2013) serem propícias aqui enquanto catego-


rias operacionais: regime governamental e regime jurisprudencial. Essa dicotomia
de regimes é frutífera na delimitação dos TsCs enquanto atores políticos.15
No que nos importa neste momento, mister que a prática judicial é um exer-
cício conjunto desses dois regimes. Nas palavras de KOERNER (2013):

cas e culturais do poder” (MASCARO, 2015, p. 55-56)


15 “Regime governamental diz respeito à articulação geral, realizada pelas instituições
políticas, das estratégias de poder de uma formação social e indica a maneira pela qual
se programa e reflete a direção política da sociedade e a condução dos indivíduos. Regi-
me jurisprudencial refere-se à maneira pela qual, articulada a um regime governamental,
a prática judicial formula problemas, doutrinas e conceitos num esquema interpretativo
e um repertório de soluções jurídicas. Esse repertório combina soluções (ou orientações
jurisprudenciais) que implicam maior ou menor protagonismo dos tribunais na efetivação
de normas jurídicas segundo domínios, situações e sujeitos envolvidos. O regime jurispru-
dencial realiza uma espécie de gestão diferencial das inconstitucionalidades e ilegalidades
de um regime governamental. Ambos interagem por meio da incorporação ou da reação a
alterações de um ou outro.”(itálico nosso). (KOERNER, 2013)

97
DIMENSÕES JURÍDICAS DAS POLÍTICAS PÚBLICAS – VOL. 1

Os processos judiciais representam oportunidades para a mobili-


zação em vista da redefinição dos problemas e soluções jurídicos,
e as decisões dos tribunais em determinado momento inscrevem
e reproduzem o regime jurisprudencial, testam os seus limites e
inovam-no. Elas têm implicações diversas para os regimes, no que
promovem, facilitam, bloqueiam certos de seus aspectos e abrem
ou não oportunidades de ação para os sujeitos.

Olhando a atuação dos TsCs, seja pela sua função precípua, seja pela
realidade social reflexa à pandemia, podemos elencar, ao menos proviso-
riamente - de forma complementar aos regimes indicados por KOER-
NER(2013), com base nas dimensões da fenomenologia política do ju-
rídico -, alguns campos discursivos de interesse: 1-equilíbrio entre os
poderes/ “freios e contrapesos” (atuação do legislativo, executivo e judi-
ciário); 2- pacto federativo (certo destaque deve ser dado a este); 3- direi-
tos fundamentais; 4- direitos sociais; 5- políticas-públicas.
A título explicativo, busca-se a problematização da atuação política
dos TsCs, enquanto rastreamento do processo/“habitus” político. Ciente
das particularidades/diferenças próprias às realidades sociais, econômicas,
político-estruturais e jurídicas de cada país e de cada TC, não as vemos
como obstáculos epistêmicos, mas sim como fonte de informações com-
plementares, de maneira que a perspectiva comparada possibilitará a aná-
lise das respostas ao impacto da crise pandêmica.
Os padrões/esquemas teóricos do Estado e do Poder, em suas diver-
sas searas discursivas, são confrontados pela crise pandêmica e, enquanto
colocados à apreciação dos TsCs são impregnados pelo “trunfo jurídico”
(DWORKIM, 2014, p. 502), recebendo o “crivo” da segurança jurídica.
Enquanto processos multi-segmentados de análise, as decisões dos
TsCs tratam da estabilidade da dinâmica de funcionamento estatal-social.
No panorama ora em apreço, pode-se de imediato, e por óbvio, ressaltar a
importância de variáveis oriundas das ciências médicas (mas não somente
deste campo) na orientação das tomadas de decisões. Isso veremos mais à
frente, quando mostramos que o STF (Supremo Tribunal Federal) tem jul-
gado questões envolvendo a destinação de respiradores artificiais aos estados.
Mesmo que ao poder judiciário não caiba executar políticas públicas
(matéria inerente à atuação do poder executivo), atrelamos como inte-

98
LU I Z A N TÔ N I O R E I S J U N I O R , M A U R I C I O P I R E S G U E D E S , T E L S O N P I R E S ,
VA N E S S A V E L A S C O, H E R N A N D E S B R I TO R E I S ( O R G . )

ressante diferenciar as decisões “de enfrentamento direto” (que buscam


influenciar a atuação política exercida pelo executivo) e “não de enfrenta-
mento direto” (que tratam de aspectos não relacionados ao enfrentamento
da pandemia em si, mas que guarda relação causal). É natural que as do
segundo tipo passem a surgir com o passar do tempo, já que estamos em
pleno ataque pandêmico. Neste presente artigo, trataremos de decisões de
TsCs relacionáveis às de “enfrentamento direto”.
Cumpre lembrar que as hipóteses de estado de exceção – intervenção
federal, estado de defesa16 e estado de sítio - previstas pelo texto consti-
tucional poderiam até abarcar a excepcionalidade pandêmica; observa-se,
outrossim, que o executivo federal não se utilizou de nem uma delas (não
teceremos juízos de valor sobre a atuação do executivo federal).

2. O SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL (STF) E A CRISE.

2.1. POR VIA DE ARGUIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO DE


PRECEITO FUNDAMENTAL (ADPF).

Tem sido intensa a atuação do STF no momento ora em recorte, sen-


do que até 28/05/2020 o STF chegou à marca de 2,5 mil processos rela-
cionados ao COVID17. Citaremos abaixo algumas decisões.
Para citar alguns exemplos, tem-se o apreciado e julgado pelo Supre-
mo Tribunal Federal (STF, 202018).), no contexto “pós-durante pandemia

16 Estado de defesa, CF88, art. 136: “preservar ou prontamente restabelecer, em locais res-
tritos e determinados, a ordem pública ou a paz social ameaçadas por grave e iminente ins-
tabilidade institucional ou atingidas por calamidades de grandes proporções na natureza”.
Art. 137: “O Presidente da República pode, ouvidos o Conselho da República e o Conselho
de Defesa Nacional, solicitar ao Congresso Nacional autorização para decretar o estado de
sítio nos casos de: I -  comoção grave de repercussão nacional ou ocorrência de fatos que
comprovem a ineficácia de medida tomada durante o estado de defesa;”.
17 Notídicas do STF: “STF chega a 2,5 mil processos recebidos relacionados à Covid-19”. Dis-
ponível em http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=444371 .
Acesso em 24/07/2020.
18 A título explicativo, utilizaremos “(STF, 2020)” para: SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Prin-
cipais decisões relacionadas à covid-19. Coordenadoria de análise de jurisprudência. STF,
2020. Disponível em http://www.stf.jus.br/portal/cms/verTexto.asp?servico=resumocovi-
d&pagina=resumocovid.

99
DIMENSÕES JURÍDICAS DAS POLÍTICAS PÚBLICAS – VOL. 1

de 2020” ora recortado, como se vê nas ADPF´s: 568/PR - Destinação de


recursos recuperados da Lava-Jato para combate à Covid-19, ADPF 662/
DF – suspensão da eficácia (no caso, validade/vigência) do art. 20, §3º, da
Lei 8.742/1993 (LOAS) na redação dada pela Lei 13.981, de 24 de março
de 2020, 663/DF - funcionamento parlamentar durante a crise de saúde
pública decorrente da pandemia de Covid-19 (Coronavírus).
Ainda nesta toada, tratou de (STF, 2020): na ADPF 672/DF - atos
omissivos e comissivos do Poder Executivo federal, ADPF 673/DF - sus-
pensão de prazos do Enem 2020, ADPF 690/DF - divulgação diária dos
dados epidemiológicos sobre a pandemia da Covid-19, 668 e 669 - caráter
informativo, educativo e de orientação social das campanhas publicitárias
dos órgãos públicos, na qual suspendeu-se a veiculação de campanha con-
tra medidas de distanciamento social. (STF, 2020).

2.2. POR VIA DE AÇÕES CÍVEIS ORIGINÁRIAS (ACO).

Quanto à utilização da instrumentalidade das Ações Cíveis Originárias


(ACO), pode-se ressaltar terem sido tratados pelos julgados: 3385/MA -
fornecimento de 68 (sessenta e oito) ventiladores pulmonares ao Estado do
Maranhão, 3393/MT - fornecimento de 50 (cinquenta) ventiladores pul-
monares ao Estado de Mato Grosso, 3398/RO - fornecimento de 30 (trin-
ta) ventiladores pulmonares ao Estado de Rondônia. (STF, 2020).
Observa-se que nos casos aludidos trata o STF do “enfrentamento
direto”, bem como demonstrando algumas feições do nosso federalismo
cooperativo assimétrico19.

2.3. POR VIA DE RECLAMAÇÕES (RCL)

Ademais, tem-se o prolatado pelo STF (STF, 2020) nas Reclamações


(RCL) 39.871/DF - Proibição de transporte fluvial de passeio no Estado
do Amazonas como medida de combate à pandemia, 40.033/RJ, 40.161/
RJ - Fornecimento e pagamento de conta de energia elétrica no estado

19 “O Federalismo brasileiro é assimétrico, na medida em que a Constituição Federal prevê


hipóteses de tratamento diferenciado entre os entes federativos, buscando atender a um
dos objetivos da República: reduzir as desigualdades regionais (art. 3º, III, in fine, CF).” (NU-
NES JUNIOR,1572)

100
LU I Z A N TÔ N I O R E I S J U N I O R , M A U R I C I O P I R E S G U E D E S , T E L S O N P I R E S ,
VA N E S S A V E L A S C O, H E R N A N D E S B R I TO R E I S ( O R G . )

do Rio de Janeiro tendo em vista a Lei Estadual 8.769/2020, (medidas


de proteção à população fluminense durante o plano de contingência do
novo coronavírus), 40.898/MG – bloqueio de receita de Município.
Vê-se que dentre os casos supra aludidos, novamente a dimensão es-
trutural (regime governamental) novamente é juridicizada pelo STF.

2.4. POR VIA DE AÇÃO DIRETA DE


INCONSTITUCIONALIDADE (ADI)

Ainda, nas Ações Diretas de Inconstitucionalidade (ADI), possuidora


de grande importância no nosso sistema de jurisdição constitucional, vemos
os impactos da crise pandêmica retratados em alguns temas julgados: 6.341/
DF - competência e responsabilidade constitucional de Estados e muni-
cípios para executar medidas sanitárias, epidemiológicas e administrativas,
6.342/DF - em face de diversos dispositivos da Medida Provisória nº 927,
de 22 de março de 2020 (que dispõe sobre as medidas trabalhistas para en-
frentamento do estado de calamidade pública), 6.351/DF – inconstitucio-
nalidade do Art. 6º - B da Lei nº 13.979/2020 (“Lei Nacional da quarente-
na”), para citar algumas manifestações deste Tribunal (STF, 2020).
Na ADI 6362, em 02/09/2020, o Supremo Tribunal Federal (STF,
2020) postulou no sentido de que todas as requisições administrativas de
bens e serviços realizadas por estados, municípios e Distrito Federal para
o combate ao coronavírus não precisam de anterior análise nem de autori-
zação do Ministério da Saúde, mas devem se fundamentar em evidências
científicas e serem devidamente motivadas.20
Ainda sobre a ADI 6362, quanto ao que diz respeito ao pacto fe-
derativo (o federalismo cooperativo), o papel da União é proporcionar,
proteger e ajudar os demais entes da federação, e não substituí-los em sua
competência derivada prevista na Constituição Federal. Estes entes, por
seu turno, devem agir de acordo com os princípios da razoabilidade e da
proporcionalidade que norteiam todos os atos administrativos.

20 Notícias do STF: Requisições de bens e serviços contra pandemia não dependem de au-
torização do Ministério da Saúde. Disponível em: http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoti-
ciaDetalhe.asp?idConteudo=450880. Acesso em 02/09/2020.

101
DIMENSÕES JURÍDICAS DAS POLÍTICAS PÚBLICAS – VOL. 1

3. JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL COMPARADA


“DURANTE-PÓS” CRISE.

A esteira metodológica comparada pode trazer alguns elementos à


seara discursivo-jurídica brasileira (que se nos é a imediata). Cabe salien-
tar que, aqui, a crise enfrentada por todos os países tem causa comum, o
mesmo vírus e seus efeitos.
Mesmo em se tratando de uma mesma causa, é claro que o impacto
pandêmico será diferido, tal as peculiaridades de cada país. Como nosso
recorte epistêmico objetiva a atuação de TsCs, busca-se pontos de toque
entre as jurisdições constitucionais. Cumpre anotar que a escolha por de-
terminado Tribunal de um país, e não de outro, neste momento, seguirá
as que forem anotadas em cada caso.

3.1. O TRIBUNAL CONSTITUCIONAL ALEMÃO (BVerfG21)

O direito brasileiro, já há algum tempo, tem sofrido forte interfe-


rência do direito constitucional alemão, sendo ainda muito aventada esta
fonte por parte do STF. Por essa razão, abordaremos algumas decisões do
Tribunal Constitucional Alemão (neste trabalho, utilizaremos BVerfG).
Dessa maneira, em sede comparada, exempli gratia, o Tribunal Cons-
titucional da Alemanha (BVerfG 1 BvR 828/20, julgado em 15/4/2020 e
BVerfG 1 BvQ 37/20 de 17/4/2020) foi instado a atuar em matéria de
direito de manifestação pública em tempos de pandemia. O assunto foi
amplamente discutido na Europa e no mundo, sendo de grande primazia
notar a ponderação entre direito de manifestação e direito à saúde (ou
público de não facilitação do contágio).
Ainda nesta trilha, no caso BVerfG 1 BvR 1541/2020, julgado em
16/7/2020, trata dos critérios a serem utilizados pelas autoridades médico-
-hospitalares na “escolha” das pessoas a serem destinatárias de recursos da
saúde em tempo de pandemia, em vista a escassez de recursos (reserva do
possível). Aqui, vemos as questões citadas como exemplos fáticos atinen-
tes à teoria da Justiça, a “escolha de quem vive e quem morre”.

21 Bundesverfassungsgericht.

102
LU I Z A N TÔ N I O R E I S J U N I O R , M A U R I C I O P I R E S G U E D E S , T E L S O N P I R E S ,
VA N E S S A V E L A S C O, H E R N A N D E S B R I TO R E I S ( O R G . )

Ademais, em 5/05/2020 a BVerfG (BVerfG, 2, 859/15)22 apreciou a


constitucionalidade do Pandemic Emergency Purchase Program (PEPP),
submetendo o Banco Central Europeu ao controle de outras instituições e
controle por parte das autoridades alemãs a órgão da União Europeia (VI-
TERBO, 2020). Este programa implica questões relacionadas ao banco
europeu, sendo fulcral à própria União Europeia (e à sua corte de justiça);
assim, retratando uma questão política própria à realidade da UE, a nós
alheia (ainda mais com a derrocada com Mercosul).

3.2. CORTE CONSTITUCIONAL DA COLOMBIA (CCC).

A realidade da américa latina, por estar geográfica e politicamente


ligada à nossa, dadas as devidas relativizações, se torna interessante à nossa
intelecção. Assim, trataremos de alguns julgados da CCC.23
Na “Sentencia” C-145 de 2020 a Corte Constitucional da Colôm-
bia apreciou positivamente a constitucionalidade do Decreto 417 de 17 de
março de 2020 (“primeiro” decreto), pela qual se declarou um estado de
emergência econômica, social e ecológica em todo o território nacional co-
lombiano. Conforme trecho do voto da Magistrada Diana Fajardo Riveraa:

“(...)la Corte debió aprovechar esta valiosa oportunidad para precisar el con-
tenido y alcance de los controles al poder Ejecutivo en un estado de excepción
que responde a la crisis más grave que se ha presentado en lo que va del siglo
XXI.”. (Corte Constitucional da Colômbia, Boletim n. 63, 2020).

O sentido dado pela CCC denota a concordância entre as esferas dis-


cursivas política e jurídica, ressaltando o caráter de controle ao poder exe-
cutivo em estado de exceção.

22 Houve a reunião dos julgados: 2 BvR 859/15, 2 BvR 1651/15, 2 BvR 2006/15 and 2 BvR
980/16.
23 Foi da Colômbia que originou-se a discussão sobre o estado de coisas inconstitucional:
“Na ADPF 347, verificando a situação periclitante e indigna do sistema penitenciário brasi-
leiro, o Supremo Tribunal Federal decidiu tratar-se de um “Estado de Coisas Inconstitucio-
nal”, teoria criada e adotada originalmente na Corte Constitucional colombiana”. (NUNES
JUNIOR, 2019, pp. 757 e 1178)

103
DIMENSÕES JURÍDICAS DAS POLÍTICAS PÚBLICAS – VOL. 1

Cumpre anotar ter adentrado a Corte a análise da atuação do po-


der executivo, dizendo que estes: “(...)ejercieron apropiadamente sus faculta-
des dentro del margen razonable de análisis que establece la Constitución.” (Corte
Constitucional da Colômbia, Boletim n.63, 2020).
Em um julgado de grande interesse, o Plenário virtual da CCC de-
clarou inconstitucional o art.1 do decreto legislativo 554/2020, pelo qual
se adotaram medidas para a prestação de serviço de televisão aberta, no
marco do estado de emergência econômica, social e ecológica; neste sen-
tido, declarou inconstitucional a cota de 20% para produções nacionais,
determinada pelo governo (CCC, Boletim n. 123, 2020).

Em julho de 2020, a CCC declarou constitucional o chamado a


todo pessoal da saúde e outras medidas de enfrentamento, para
conter e mitigar o vírus. (Boletim n. 125, CCC, 2020); aqui, alude
o princípio da solidariedade e os princípios éticos que embasam as
profissões da área da saúde.

Posteriormente, a CCC – no Boletim n. 131 (22/08/2020)24, quanto


ao “segundo decreto” (decreto legislativo 637/2020) pontuou que:

“La Corte no sólo considera que es necesario repetir lo ya dicho al


momento de valorar la crisis en la Sentencia C-145 de 2020, sino
que, además, debe ahora reconocer que la gravedad de la crisis es
aún mayor en todos los ámbitos.” (Corte Constitucional da Co-
lômbia, Boletim n.131, 2020)

Ademais, tratou da constitucionalidade do decreto legislativo 546,


que dispõe sobre prisão domiciliar transitória, em tempos de calamidade
pandêmica, para pessoas que se encontram em maior vulnerabilidade ante
ao COVID-19. Cumpre-nos destacar um breve trecho:

24 “la Corte encontró que el decreto no desconoce ninguna de las demás prohibiciones
constitucionales, en la medida en que no suspende los derechos humanos y las libertades
fundamentales, no vulnera el principio de intangibilidad de ciertos derechos, no desmejora
los derechos sociales de los trabajadores, no interrumpe el normal funcionamiento de las
ramas y órganos del Estado, ni contraría los principios de finalidad, necesidad, proporciona-
lidad, legalidad y no discriminación.”. (Boletim 131, CCC, 2020)

104
LU I Z A N TÔ N I O R E I S J U N I O R , M A U R I C I O P I R E S G U E D E S , T E L S O N P I R E S ,
VA N E S S A V E L A S C O, H E R N A N D E S B R I TO R E I S ( O R G . )

“por medio del cual se adoptan medidas para sustituir la pena de prisión y la
medida de aseguramiento de detención preventiva en establecimientos peni-
tenciarios y carcelarios por la prisión domiciliaria y la detención domiciliaria
transitorias en el lugar de residencia a personas que se encuentren en situación
de mayor vulnerabilidad frente al COVID-19, y se adoptan otras medidas
para combatir el hacinamiento carcelario y prevenir y mitigar el riesgo de pro-
pagación, en el marco del Estado de Emergencia Económica, Social y Eco-
lógica” (Corte Constitucional da Colômbia, Boletim n.131, 2020)

Vemos assim a índole garantista da CCC, quando aborda questões


sensíveis aos direitos fundamentais e organização judiciária (execução pe-
nal), bem como no concernente a medidas “de enfrentamento direto”.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

No que diz respeito à faceta de equilíbrio (ou, por que não, de “Mi-
nerva”) dos TsCs enquanto atores políticos, cumpre notar a relação com o
modelo político que presume “freios e contrapesos”25 sistêmicos do poder.
Ainda, o que reluz da análise da jurisdição constitucional brasileira
supra, percebe-se a relevância discursiva da temática do federalismo. O
STF tem sido um ator político atuante na seara do “equilíbrio” do pacto
federativo.
Com o momento de crise, as fragilidades estruturais são relevadas – é
como que um cutucar das feridas -, o Estado é instado a exercer seu papel
inato de coordenação da vida social.
Podemos destacar assim alguns pontos conclusivos, observados pela
trilha deixada pelos casos supracitados (poucos, é verdade), sobre como/
quando/por que os TsCs atuam politicamente.

25 “Há um sistema de controles recíprocos entre os três Poderes, denominado sistema


de freios e contrapesos (checks and balances). A origem de tal sistema é inglesa, por conta
do relacionamento entre a Câmara dos Lordes, balanceando os projetos de lei da Câmara
dos Comuns. O próprio Montesquieu, em seu O Espírito das Leis, referiu-se ao sistema de
freios e contrapesos, afirmando que “isto se dará se elas formarem um corpo com direito de
frear as iniciativas do Povo, assim como o Povo terá o direito de frear as delas”. A expressão
foi criada no direito norte-americano, máxime com o judicial review (a possibilidade de
declaração de inconstitucionalidade pelo Poder Judiciário), em razão do caso Marbury v.
Madison.”. (NUNES JUNIOR, 2019, p. 546).

105
DIMENSÕES JURÍDICAS DAS POLÍTICAS PÚBLICAS – VOL. 1

Em virtude do recorte epistêmico proposto, confirmamos que várias


são as instrumentalidades escolhidas a se provocar os TsCs, quanto ao STF
(qual abordou-se acima um maior número de casos), não houve/há predi-
leção por uma ação ou outra.
É de se relevar a importância e intelecção de ao menos alguns temas:
1-equilíbrio entre os poderes/ “freios e contrapesos” (atuação do legislativo,
executivo e judiciário); 2- pacto federativo (certo destaque deve ser dado
a este); 3- direitos fundamentais; 4- direitos sociais; 5- políticas-públicas.
O papel político dos TsCs é inconteste, corroborando – no caso bra-
sileiro - com sua precípua função de equilíbrio do sistema duplamente
trino: três poderes, três entes federativos. Com a devida neutralidade axio-
lógica, levando em consideração não apenas os casos colacionados neste,
a atuação do STF – em esteira comparada -, pode-se aludir algum desali-
nhamento da União ante a Federação “durante-pós” crise de 2020.
Ademais, na perspectiva do direito multi-nível (multi-level) (ANDRA-
DE, 2016), a influência das normativas/orientações específicas dos órgãos
competentes (como as da Organização Mundial da Saúde) encontram am-
paro em nível nacional, bem como pelos TsCs; outrossim, no caso brasilei-
ro, encontra-se a única experiência político-jurídica em que o poder execu-
tivo não se baseia nestas normativas/orientações; já o STF, parece que sim.
Podemos aqui dizer que há atuação de destaque advinda do Tribunal
Constitucional Alemão, no tocante a direitos fundamentais (à liberdade
de manifestação, limites do “ato médico” e direito econômico/comunitá-
rio (PEPP)). Ademais, pela atuação da Corte constitucional colombiana,
já fora abordado a questão da “eficiência” do poder executivo.
Por fim, salutar destacar que o STF acabou sendo determinante, de
uma forma um tanto quanto interessante - dentro do federalismo coope-
rativo empreendido pela atual linha de governo - na destinação de ventila-
dores pulmonares a estados; aqui, vê-se como na jurisdição constitucional
brasileira é sensível a temática da federação, no cenário de enfrentamento
político da crise.

BIBLIOGRAFIA

ANDRADE, Régis Willyan da Silva. A inderrogabilidade de direitos


na ordem constitucional à luz do sistema jurídico multinível.

106
LU I Z A N TÔ N I O R E I S J U N I O R , M A U R I C I O P I R E S G U E D E S , T E L S O N P I R E S ,
VA N E S S A V E L A S C O, H E R N A N D E S B R I TO R E I S ( O R G . )

2016. 333 f. Tese (Doutorado em Direito) - Programa de Estudos


Pós-Graduados em Direito, Pontifícia Universidade Católica de São
Paulo, São Paulo, 2016.

CORTE CONSTITUCIONAL DA COLÔMBIA, Boletim n. 63, 2020.


Disponível em: https://www.corteconstitucional.gov.co/noticia.php?La-
declaratoria-de-estado-de-emergencia-en-Colombia-est%C3%A1-
ajustada-a-la-Constituci%C3%B3n-8904. Acesso em 24/08/2020.

______________ Boletim n. 123, de 15/07/2020. Disponível em:


https://www.corteconstitucional.gov.co/noticia.php?Corte-declara-
inconstitucional-reducci%C3%B3n-de-la-cuota-de-pantalla-
nacional-por-Estado-de-Emergencia-Econ%C3%B3mica,--
Social-y-Ecol%C3%B3gica-8965. Acesso em 24/08/2020.

______________ Boletim n. 125, de 16/07/2020. Disponível em: https://


www.corteconstitucional.gov.co/noticia.php?Llamado-a-todo-el-
personal-de-salud-y-las-dem%C3%A1s-medidas-para-contener-
y-mitigar-el-COVID-19-son-constitucionales-8967. Acesso em
24/08/2020.

______________ Boletim n. 131, de 12/08/2020. Disponível


em: https://www.corteconstitucional.gov.co/noticia.php?La-
segund a-declaraci%C3%B3n-de-Est ado-de-Emergencia-
Econ%C3%B3mica,-Social-y-Ecol%C3%B3gica,-es-
constitucionalBolet%C3%ADn-No.-131--Bogot%C3%A1,-12-
de-agosto-de-2020-La-Sala-Plena-de-la-Corte-Constitucional-
con-ponencia-del-Magistrado-Luis-Guillermo-Guerrero-declara-
exequibl-8973. Acesso em 24/08/2020.

DWORKIN, Ronald. A raposa e o porco-espinho: justiça e valor.


Trad. Marcelo B. Cipolla, São Paulo: Editora WMF Martins Fontes,
2014.

KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. Tradução João Baptista Machado.


6ª ed.. São Paulo: Martins Fontes, 1998.

KOERNER, Andrei. O ativismo judicial como problema intelectual


e político nos estados unidos: uma análise crítica. Lua Nova,

107
DIMENSÕES JURÍDICAS DAS POLÍTICAS PÚBLICAS – VOL. 1

núm. 99, set-dez, 2016, pp. 233-256. Centro de Estudos de Cultura


Contemporânea. São Paulo. Disponível em: https://www.redalyc.
org/pdf/673/67348883009.pdf. Acesso em 24/08/2020.

_______________ Sobre a História Constitucional. On Constitutional


History. Estudos Históricos. Rio de Janeiro, vol. 29, no 58, p.
525-540, maio-agosto 2016 http://dx.doi.org/10.1590/S2178-
1494201600020001. Acesso em 23/08/2020

_______________ Ativismo Judicial: Jurisprudência constitucional


e política no STF pós-88. Novos estud. - CEBRAP,  São Paulo, 
n. 96, p. 69-85, 2013. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.
php?script=sci_arttext&pid=S0101-33002013000200006&lng=en&
nrm=iso. Acesso em  03/09/2020.  http://dx.doi.org/10.1590/S0101-
33002013000200006.

MASCARO, Alysson Leandro. Introdução ao Estudo do Direito. São


Paulo: Atlas, 2015.

NUNES JUNIOR, Flávio Martins Alves. Curso de direito


constitucional. 3ª ed., São Paulo: Saraiva, 2019.

PEREIRA, David da Silva. Jurisprudência e política no Supremo


Tribunal Federal: a omissão inconstitucional nas decisões de
mandado de injunção (1988-2010). Tese (doutorado) - Universidade
Estadual de Campinas, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas,
Campinas, SP: 2013. 244 p.. Disponível em: <http://www.repositorio.
unicamp.br/handle/REPOSIP/280156>. Acesso em 01/09/2020.

SARLET, Ingo; MARINONI, Luis Guilherme; MITIDIERO, Daniel.


Curso de direito constitucional. 6ªed., São Paulo: Saraiva, 2017.

SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Principais decisões


relacionadas à covid-19. Coordenadoria de análise de jurisprudência.
STF, 2020. Disponível em http://www.stf.jus.br/portal/cms/
verTexto.asp?servico=resumocovid&pagina=resumocovid . Acesso
em 25/08/2020.

TAVARES, André Ramos Tavares. “Supremo Tribunal Federal”. Dicio-


nário brasileiro de direito constitucional, Dimitri Dimoulis (coord.-

108
LU I Z A N TÔ N I O R E I S J U N I O R , M A U R I C I O P I R E S G U E D E S , T E L S O N P I R E S ,
VA N E S S A V E L A S C O, H E R N A N D E S B R I TO R E I S ( O R G . )

-geral), São Paulo: Saraiva-Instituto Brasileiro de Estudos Constitu-


cionais, 2007, p. 370

TRIBUNAL CONSTITUCIONAL FEDERAL DA ALEMANHA


(Bundesverfassungsgericht), 2 BvR 859/15, 2020. Disponível em
http://www.bverfg.de/e/rs20200505_2bvr085915en.html. Acesso
em 25/08/2020.

VITERBO, Annamaria. The PSPP judgment of the German


Federal Constitutional Court: throwing sand in the wheels of
the european central bank. European Papers, Vol. 5, 2020, No
1, European Forum, Insight of 26 June 2020, pp. 671-685. ISSN
2499-8249 - doi: 10.15166/2499-8249/370. Disponível em:
http://www.europeanpapers.eu/en/europeanforum/pspp-
judgment-of-german-federal-constitutional-court. Acesso
em 23/08/2020.

109
A EVENTUAL RELATIVIZAÇÃO DO
PRINCÍPIO DA NEUTRALIDADE DA REDE
E OS IMPACTOS SOBRE A LIBERDADE
DE EXPRESSÃO DO USUÁRIO NO
CIBERESPAÇO NO BRASIL
Cássio Santos Borges26
Denison Melo de Aguiar27
Ygor Felipe Távora da Silva28

INTRODUÇÃO

O novel momento social é o da “Era da informação” assim denomi-


nado em decorrência dos vastos e súbitos avanços tecnológicos. Esta atual

26 Graduando em Direito pela Universidade do Estado do Amazonas (UEA). 3º Sargento


da Policial Militar do Estado do Amazonas (PMAM).
27 Graduado em Direito pela Universidade da Amazônia. Advogado. Mestre em Direito Am-
biental pelo Programa de Pós-Graduação em Direito Ambiental da Universidade do Estado
do Amazonas (PPGDA-UEA). Professor Permanente da Universidade do Estado do Amazonas
(UEA). Doutorando pelo Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal do
Estado de Minas Gerias (PPGD-UFMG). Coordenador da Clínica de Mecanismos de Soluções
de Conflitos (MArbiC-UEA).
28 Graduado em Direito pela Universidade do Estado do Amazonas. Advogado. Graduado em Ad-
ministração e Ciências Contábeis pela Universidade Federal do Amazonas. Mestre em Gestão de
Áreas Protegidas da Amazônia pelo Instituto Nacional de Pesquisa da Amazônia. Mestre em Direito
Ambiental pelo Programa de Pós-Graduação em Direito Ambiental da Universidade do Estado do
Amazonas (PPGDA-UEA). Doutor em Geografia pela Universidade Federal de Goiás. Doutorando
pelo Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal do Estado de Minas Gerias
(PPGD-UFMG). Professor Permanente da Universidade do Estado do Amazonas (UEA).

110
LU I Z A N TÔ N I O R E I S J U N I O R , M A U R I C I O P I R E S G U E D E S , T E L S O N P I R E S ,
VA N E S S A V E L A S C O, H E R N A N D E S B R I TO R E I S ( O R G . )

conjuntura, na qual a tecnologia cria novas ramificações de interação so-


cial com a revolução nas telecomunicações - mais precisamente da inter-
net - o direito obriga-se a reverberar sobre as implicações jurídicas destes
novos ambientes. Assim é que com a promulgação da Lei 12.965/2014 o
ambiente sem regras da internet progrediu para um campo de liberdade
controlada.
Contudo, um dos princípios norteadores desta lei - a neutralidade da
rede - entrou em discussão novamente com a mudança regulatória ocorri-
da nos Estados Unidos que, em dezembro de 2017, pois fim a rede neutra.
Diante disso, o presente trabalho tratará de uma eventual relativização
deste princípio no Brasil, descrevendo sua importância e suas implicações
no exercício da liberdade de expressão dos usuários do ciberespaço.
A internet tornou-se uma importante ferramenta de comunicação.
Com ela, o exercício de direitos fundamentais como a liberdade de ex-
pressão e acesso à informação mostram-se ainda mais completos e eficazes
(NONATO, 2020).
Contudo, Piovesan (2016), alerta que os avanços da tecnologia da in-
formação e das comunicações podem potencializar e fortalecer direitos,
assim como ameaça-los. Assim, mudanças na atual legislação que a regu-
lamenta devem ser amplamente debatidas com a sociedade.
Assim, o objetivo geral deste artigo é descrever a importância do
princípio da neutralidade da rede como garantidor do exercício da liber-
dade de expressão no ciberespaço. Assim, neste artigo, se seguirá as se-
guintes etapas: i. Discorrer sobre a neutralidade da rede estabelecida pelo
“Marco civil da internet” como princípio norteador do uso da internet
no Brasil; ii. Apontar o princípio da neutralidade da rede como corolário
do direito fundamental de liberdade de expressão e iii. Mostrar o pos-
sível cenário do ambiente virtual diante de uma eventual mitigação do
princípio da neutralidade das redes no que concerne ao exercício de di-
reitos fundamentais, principalmente, o direito constitucional de opinar e
expressar-se sem interferências.
A pesquisa será qualitativa e teórica. O levantamento de dados se dará
por meio da percepção sobre a relação entre os princípios da neutralidade
da rede e liberdade de expressão diante do caso concreto da legislação
estadunidense de 2017; se utilizará, no âmbito teórico, pesquisa de levan-
tamento bibliográfico, abrangendo doutrinas, leis e jurisprudências espe-

111
DIMENSÕES JURÍDICAS DAS POLÍTICAS PÚBLICAS – VOL. 1

cializadas, bem como artigos e textos especializados, os quais fornecerão


informações pertinentes acerca da importância neutralidade da rede e sua
aplicabilidade na liberdade de expressão.

2. PRINCÍPIO DA NEUTRALIDADE DA REDE:


CONTEXTO E COROLÁRIO DO DIREITO A LIBERDADE
DE EXPRESSÃO NA INTERNET

O advento dos computadores e, mais recentemente, o da internet,


mudaram o comportamento das pessoas. A internet, fruto desses repen-
tinos avanços tecnológicos, tornou-se uma importante ferramenta de
comunicação e informação. Ela aproximou os indivíduos, ampliando o
espaço de convívio social. Este novo ambiente tornou-se um lugar aberto
para expressão de pensamentos e compartilhamento de ideias.
Assim sendo, O direito que se estende para este novo meio, obriga-se a
reverberar sobre todas as implicações jurídicas advindas com esta tecnologia.
Araújo (2017, pág. 83) leciona que o “território livre” da internet
progrediu para um campo de “liberdade vigiada”, pois, neste espaço assim
como no físico, transitam direitos e deveres. O campo virtual carecia de
uma regulamentação específica. Promulgada a Lei 12.965/2014, que pas-
sou a estabelecer os princípios, garantias, direitos e deveres dos usuários,
preencheu-se este vazio normativo.
Um dos fundamentos trazidos por esta lei, em seu Art. 2º, é o da
garantia do exercício de direitos fundamentais na rede, entre eles, o da
liberdade de expressão e opinião. (BRASIL, 2014). Além disso, em seu
art. 3º, o Marco Civil estabeleceu princípios, entre os quais, a garantia
da liberdade de expressão, comunicação e manifestação do pensamento,
proteção à privacidade e preservação e garantia da neutralidade da rede.
(BRASIL, 2014).
Conforme Denny (2016) este é o tripé valorativo em que se alicerça
o Marco Civil da Internet com o propósito de garantir uma internet livre,
segura, regulamentada e sem censura prévia.
Neste primeiro momento, com o propósito de situar o leitor quanto
ao objeto do presente artigo, abordar-se-á mais sobre neutralidade trazen-
do a respeitável opinião daquele que é considerado o pai deste conceito.
Wu (2003, pág. 141) assim discorre:

112
LU I Z A N TÔ N I O R E I S J U N I O R , M A U R I C I O P I R E S G U E D E S , T E L S O N P I R E S ,
VA N E S S A V E L A S C O, H E R N A N D E S B R I TO R E I S ( O R G . )

[...] a ideia é que uma rede pública de informações que se pretende


o mais útil possível aspira a tratar igualmente todos os conteúdos,
sites e plataformas. Isto permite que a rede transporte todo tipo de
informação e suporte todo tipo de aplicativo. O princípio sugere
que as redes de informação são mais valiosas quando elas são menos
especializadas [...]

Teixeira (2015, pág. 91) sobre o tema esclarece:

A neutralidade (ou princípio da neutralidade) no uso da internet


consiste no fato de que o acesso à internet pelo usuário pode dar-se
de forma livre para quaisquer fins: Realizar pesquisas ou compras,
estabelecer comunicações como por e-mail, utilizar redes sociais
em geral, visualizar e postar textos, fotos e vídeos etc. [...]

Assim, o usuário não poderá sofrer distinções na forma como usa sua
conexão, este é livre pra acessar qualquer conteúdo.
A rede neutra favorece, ainda, os pequenos proprietários de sites e
outros serviços, pois inexiste ordem de preferência no envio de pacotes de
dados ao usuário, sejam dos pequenos ou dos grandes provedores de con-
teúdo. Por outro lado, sem neutralidade, os provedores de internet podem
dar acesso preferencial a sites em detrimento daqueles que não poderão
pagar pelo serviço. Alerta-se ainda que numa circunstância extrema, os
internautas poderão se informar apenas pela visão de mundo de um deter-
minado site. (MICELI, 2017).
Discorrem Fortes e Rigo (2015, pág. 11) que:

O principal objetivo do princípio da neutralidade da rede no Mar-


co Civil da Internet é de frear as discriminações de tráfego por
parte dos provedores, isto é, o provedor que fornecer o serviço não
poderá retardar, bloquear, acelerar ou até mesmo discriminar o
conteúdo que o usuário tiver interesse.

Com a observância da neutralidade garante-se na internet o exer-


cício de direitos fundamentais dentro da ótica democrática ao que
o estado brasileiro se propôs a partir da promulgação da atual Carta
Constitucional.

113
DIMENSÕES JURÍDICAS DAS POLÍTICAS PÚBLICAS – VOL. 1

Trazida maiores clarezas quanto ao conceito de neutralidade, este ca-


pítulo parte para um segundo ponto no qual se propõe a analisar os aspec-
tos de interdependência existentes entre os princípios da neutralidade e da
liberdade de expressão.
Faz-se oportuno ressaltar que a liberdade de expressão prevista em
nossa Carta Magna abrange tanto a manifestação do pensamento, como o
direito de resposta, a expressão da atividade intelectual, artística, científica
e de comunicação, independentemente de censura ou licença, o acesso à
informação e a liberdade religiosa.
De acordo com o pensamento de Paulo e Alexandrino (2016, pág.
124) “Qualquer pessoa, em princípio, pode manifestar o que pensa,
desde que não o faça sob o manto do anonimato. A proteção engloba
não só o direito de se expressar, oralmente, ou por escrito, mas tam-
bém o direito de ouvir, assistir e ler.” Apreende-se, desse modo, que
a liberdade de expressão no ciberespaço é, em linhas gerais, acessar,
opinar sobre e compartilhar conteúdo sem sofrer qualquer limitação,
seja por parte do estado, seja por parte das empresas privadas que con-
trolam a infraestrutura.
Mas, o que garante esta não intromissão? É a estrita observância por
estes agentes ao princípio da neutralidade, impedindo que os provedores
de internet passem a controlar a comunicação que por ela transita. Pinhei-
ro (2018) assim nos ensina:

Não é difícil vislumbrar a correlação próxima entre a neutrali-


dade de rede e o direito fundamental à liberdade de expressão.
Se a neutralidade é o princípio que permite a livre circulação
dos pacotes de dados que carregam a manifestação do pensa-
mento dos usuários da rede, ela poderia ser considerada quase
uma garantia da realização da liberdade de expressão na inter-
net, representando a livre circulação dos discursos e das ideias
nas esfera pública da internet [sic].

Cumpre ressaltar que o individuo, por outro lado, não pode extrapo-
lar limites. Em princípio, este pode manifestar seu pensamento desde que
não faça de forma obscura, mascarado pelo anonimato, ou seja, desde que
não se utilize, por exemplo, de perfis falsos e, também, que suas eventuais

114
LU I Z A N TÔ N I O R E I S J U N I O R , M A U R I C I O P I R E S G U E D E S , T E L S O N P I R E S ,
VA N E S S A V E L A S C O, H E R N A N D E S B R I TO R E I S ( O R G . )

manifestações não se configurem como abuso. A manifestação indevi-


da também gera responsabilização daqueles que dela abusam (RAMOS,
2014, pág. 502).
Veja-se o exemplo colhido acerca do assunto na jurisprudência do Su-
premo Tribunal Federal no julgamento do HC 82.424 (BRASIL, 2003):

O preceito fundamental de liberdade de expressão não consagra


o ‘direito à incitação ao racismo’, dado que um direito individual
não pode constituir-se em salvaguarda de condutas ilícitas, como
sucede com os delitos contra a honra. Prevalência dos princípios da
dignidade da pessoa humana e da igualdade jurídica.

Em nome da liberdade de expressão não se pode violar a dignidade de out-


rem, pois como qualquer direito, o exercício a livre expressão não é absoluto. No
entanto, observadas suas limitações legais, eventuais interferências indevidas não
são razoáveis.
Percebe-se, dentro do contexto apresentado, a relevância do princípio
da neutralidade da rede, dada sua interconexão com o exercício do direito
de expressão. Assim leciona Pinheiro (2017, pág. 74):

É nesse contexto que podemos inserir o princípio da neutralida-


de da rede como braço do princípio constitucional da liberdade
de expressão no âmbito das técnicas de programação e arquitetura
de protocolos de rede que regem o fluxo de dados que trafegam
pela Internet. Conquanto o princípio constitucional da liberdade
de expressão por si só não tenha alcance óbvio para estabelecer re-
gramentos na forma do gerenciamento de tráfego pela Internet, a
neutralidade da rede, criada para tanto, possui força principiológica
robusta para fazer face aos desafios impostos pelo novo e altamente
mutável cenário das comunicações pela Internet.

Neste sentido, o princípio da neutralidade da rede é princípio con-


sequente da liberdade de expressão, tendo em vista que por si este direito
fundamental previsto em nossa Constituição não alcançaria o fim desejá-
vel no ambiente de rede, necessitando, desse modo, de uma força princi-
piológica auxiliar.

115
DIMENSÕES JURÍDICAS DAS POLÍTICAS PÚBLICAS – VOL. 1

3. PRINCÍPIO DA LIBERDADE DE EXPRESSÃO DO


USUÁRIO NO CIBERESPAÇO NO BRASIL

Demonstrado no capitulo anterior a importância da neutralidade da


rede para o exercício do direito de expressão e manifestação do pensamen-
to no ambiente virtual. A partir deste ponto, discorre-se mais especifica-
mente sobre o princípio da liberdade de expressão que, por excelência, é
fundamental para convivência democrática.
Como dito anteriormente, onde existe sociedade, existe direito. Nes-
ta nova dinâmica de convívio social pela internet os fundamentos do estado
democrático devem, ali também, ser estendidos, preservados e garantidos.
Assim é que a liberdade de expressão, como direito fundamental, tornou-
-se um dos pilares da lei que regulamentou a internet no Brasil, tendo em
vista que ela é intrínseca ao estado democrático que, por sua vez, não pode
permitir uma condição permanente de anomia na rede virtual.
Considerado um direito de 1ª geração ou dimensão, a liberdade de
expressão conforme assevera Júnior (2012, pág. 3):

Foram frutos das revoluções liberais francesas e norte-america-


nas, nas quais a burguesia reivindicava o respeito às liberdades in-
dividuais, com a conseqüente limitação dos poderes absolutos do
Estado. Oponíveis, sobretudo, ao Estado, são direitos de resistên-
cia que destacam a nítida separação entre o Estado e a sociedade.
Exigem do ente estatal, precipuamente, uma abstenção e não uma
prestação, possuindo assim um caráter negativo, tendo como titu-
lar o indivíduo.

Um estado democrático pleno é apontado através de vários aspectos,


entre os quais, o exercício das liberdades individuais que consiste, tam-
bém, ao acesso à informação, a livre expressão do pensamento e opinião
que são próprios de um regime democrático.
Na elaboração de nossa atual Carta Cidadã ocorrida logo após o
longo período de cerceamento de liberdades vivido no país, houve uma
enorme preocupação quanto a proteção de tais direitos para o cidadão.
Assim, o legislador constituinte, direta ou indiretamente, externou esta
preocupação por diversos artigos de nossa Carta ao se posicionar, ex-

116
LU I Z A N TÔ N I O R E I S J U N I O R , M A U R I C I O P I R E S G U E D E S , T E L S O N P I R E S ,
VA N E S S A V E L A S C O, H E R N A N D E S B R I TO R E I S ( O R G . )

pressamente, contrário a qualquer aparo às liberdades. Quanto a livre


expressão assim asseverou:

“[...] Art. 5º. [...]

IV – é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o ano-


nimato;

[...]

IX – é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica


ou de comunicação, independente de censura ou licença;

[...]

XIV – é assegurado a todos o acesso à informação e resguardado o


sigilo da fonte, quando necessário ao exercício profissional;”

“[...] Art. 220. A manifestação do pensamento, a criação, a ex-


pressão e a informação sob qualquer forma, processo ou veículo
não sofrerão qualquer restrição, observado o disposto nesta Cons-
tituição.

§ 1º Nenhuma lei conterá dispositivo que possa constituir


embaraço à plena liberdade de informação jornalística em qualquer
veículo de comunicação social, observado o disposto no art. 5º, IV,
V, X, XIII e XIV.

§ 2ª É vedada toda e qualquer censura de natureza política, ideoló-


gica e artística”. (BRASIL, 1988).

Conforme o Ministro Luís Roberto Barroso do Supremo Tribunal Fe-


deral “as liberdades de expressão, informação e imprensa são pressupostos
para o funcionamento dos regimes democráticos, que dependem da exis-
tência de um mercado de livre circulação de fatos, idéias e opiniões. [...] Elas
são tratadas como liberdades preferenciais [...]”. (BRASIL, 2014, pág. 6).
O estado desautoriza, num primeiro momento, qualquer espécie de
controle prévio de conteúdo. Desse modo, o estado não pode autorizar
ao agente provedor de acesso essa prévia filtragem sobre a informação que
circula na rede, sob pena daquele estar aplicando, de forma indevida, uma
espécie de sanção ao conteúdo.

117
DIMENSÕES JURÍDICAS DAS POLÍTICAS PÚBLICAS – VOL. 1

Como dito alhures, muito embora a liberdade de expressão seja tra-


tada como um direito humano preferencial protegido em âmbito nacional
e internacional pelos países que possuem como fio condutor os preceitos
democráticos, ela não é um direito absoluto.
Numa eventual colisão de direitos invoca-se a denominada técnica
de ponderação que consiste em um método de decisão jurídica, aplicável
a casos difíceis sobre os quais incidem normas de mesma hierarquia indi-
cando soluções diferentes. (BARROSO, 2015, pág. 373).
A interdição da divulgação de um determinado conteúdo oriundo
das consideradas liberdades preferenciais só é utilizada em casos extremos.
Assim, na mesma decisão tratando sobre este assunto, Barroso (2015, pág.
15) discorre:

Deve ser dada a preferência por sanções a posteriori, que não en-
volvam a proibição prévia da divulgação – parâmetro (viii). O uso
abusivo da liberdade de expressão pode ser reparado por mecanis-
mos diversos, que incluem a retificação, a retratação, o direito de
resposta, a responsabilização civil ou penal e a interdição da divul-
gação. Somente em hipóteses extremas se deverá utilizar a última
possibilidade.

Segundo o artigo XIX da Declaração Universal dos Direitos Huma-


nos (1948) “Todo ser humano tem direito à liberdade de opinião e expres-
são; este direito inclui a liberdade de, sem interferência, ter opiniões e de
procurar, receber e transmitir informações e ideias por quaisquer meios e
independentemente de fronteiras”.
Neste sentido, o exercício da livre expressão e opinião que corresponde a
procurar, receber e transmitir informações e ideias pela internet deve ocorrer
sem qualquer ingerência prévia do estado ou dos agentes de internet.
Assim é que o Marco Civil buscou responsabilizar os agentes de in-
ternet de acordo com suas atividades. Aos provedores de conexão não
atribuiu responsabilidade civil por danos decorrentes de conteúdo gerado
por terceiros. Aos provedores de aplicativos apenas previu esta respon-
sabilização se, após ordem judicial específica, não tomarem providências
quanto a indisponibilidade de conteúdo de terceiro apontado como in-
fringente na ordem judicial (BRASIL, 2014).

118
LU I Z A N TÔ N I O R E I S J U N I O R , M A U R I C I O P I R E S G U E D E S , T E L S O N P I R E S ,
VA N E S S A V E L A S C O, H E R N A N D E S B R I TO R E I S ( O R G . )

Todavia, discute-se no Supremo Tribunal Federal através do RE


1037396 RG / SP (2018) a constitucionalidade ou não deste artigo que
determina a necessidade de prévia e específica ordem judicial de exclusão
de conteúdo para a responsabilização civil de provedor internet, websites
e gestores de aplicativos de redes sociais.
A ausência de responsabilidade civil dos provedores de conexão e a
responsabilização dos provedores de aplicativos somente em momento ul-
terior ao descumprimento de ordem judicial tem como finalidade assegu-
rar a liberdade de expressão e impedir a censura na rede.
Por outro lado, não se pode permitir um paradoxal desequilíbrio en-
tre direitos que também devem ser respeitados pelos agentes de internet
como a intimidade, a honra e a imagem das pessoas.
Oportuno pontuar neste momento a distinção entre os agentes de
internet. Para Melchior (2014, pág. 106):

São quatro os grandes grupos [...], embora não sejam os únicos:

1. Provedor de serviços e aplicações na Internet: [...aquele que ofer-


ta serviços, conteúdo e aplicações pela rede mundial de Internet.

2. Provedor de conexão à Internet: aqueles que fazem a conexão


efetiva entre o serviço de telecomunicações e a Internet.

3. Provedor de Serviço de telecomunicações e infraestrutura que


suportam a conexão à Internet [...].

4. Usuário que contrata os serviços antecedentes em especial os


serviços de telecomunicações e infraestrutura e também a conexão
à internet para acessar serviços, conteúdos (podendo também gerá-
-lo) e aplicações disponíveis e ofertados na Internet.

Em linhas gerais, os usuários produzem e desenvolvem conteúdos


que, por sua vez, serão divulgadas através dos provedores de aplicações
e suportadas pelos provedores de serviço de telecomunicação e conexão.
Esse é o caminho virtual da livre circulação de fatos, ideias e pensamentos.
O Marco Civil garante um ambiente aberto, livre e democrático
onde o usuário pode manifestar suas ideais e pensamentos desde que não
as utilize de maneira imprópria, inadequada, compartilhando conteúdos
que afetem a intimidade, a honra e a imagem de terceiros ou que propague

119
DIMENSÕES JURÍDICAS DAS POLÍTICAS PÚBLICAS – VOL. 1

os chamados discursos do ódio que são práticas inaceitáveis em um estado


democrático de direito.

4. FIM DA NEUTRALIDADE NO CIBERESPAÇO E O


CERCEAMENTO DO EXERCÍCIO DO DIREITO DE
OPINIÃO E EXPRESSÃO

Os debates acerca da quebra da neutralidade, dada sua relevância para


o meio digital, ganharam novos capítulos. Conforme noticiado no site da
ABRANET (Associação Brasileira de Internet), tramita no congresso dos
Estados Unidos um projeto de lei com o propósito de restituí-la naquele
país e, além disso, o órgão que a regulamenta em solo estadounidense,
abriu uma nova consulta para avaliar os impactos da decisão de derrubá-la
em 2017 (ABRANET, 2019, 2020).
Para uma melhor concepção acerca do assunto, importante observar
quais os agentes envolvidos nesta questão e seus respectivos posiciona-
mentos. Conforme Pinheiro (2017, pág. 41), há cinco agentes nesta dispu-
ta com interesses e finalidades distintas: “(i) Os provedores de serviços de
acesso à Internet ou Internet Service Providers – ISP`s; (ii) os usuários finais,
ou end users; (iii) provedores de conteúdo ou Content Providers – CP`s; (iv)
os ativistas digitais, em muitos casos financiados por organismos interna-
cionais; e (v) organismos estatais”.
A par dos agentes envolvidos no debate, destaca-se neste momento
Os argumentos trazidos por aqueles que defendem o fim da rede neu-
tra que são, em princípio, de ordem econômica. Conforme De Almeida
(2007, pág. 9):

O debate sobre neutralidade da rede tem claras bases econômi-


cas. Em seu centro, encontramos uma discussão sobre potenciais
medidas anti-competitivas. [...] as operadoras de telecomunica-
ções alegam que fontes extras de receita podem ser necessárias
para financiar a infra-estrutura da Internet. As operadoras buscam
garantir lucros contínuos e crescentes de provedores de acesso e
usuários, para manter a viabilidade econômica da infraestrutura da
rede. Uma Internet não neutra é uma forma de aumentar a receita
oriunda dos usuários.

120
LU I Z A N TÔ N I O R E I S J U N I O R , M A U R I C I O P I R E S G U E D E S , T E L S O N P I R E S ,
VA N E S S A V E L A S C O, H E R N A N D E S B R I TO R E I S ( O R G . )

Umas das atividades posta em prática pelas operadoras de acesso para


maximizar lucros é a chamada “traffic shaping” que “consiste na análise do
tráfego de dados e subseqüente atraso proposital na entrega de certos tipos
de informação, pela imposição de limites de banda relativos a certos servi-
ços, usuários ou aplicativos”. (DE ALMEIDA, 2007., pág. 20).
De acordo com Artese (2015, pág. 149), esta prática de gerencia-
mento viabiliza o bom funcionamento da internet, quando, por exem-
plo, controla a velocidade de downloads. Há serviço que demandam ele-
vado consumo de dados, como os serviços de streaming de vídeo, e esta
modelagem no tráfego de dados, priorizando o conteúdo mais pesado
em detrimento de um envio de e-mail, por exemplo, que demanda me-
nor dispêndio, é que garante a qualidade do serviço aos usuários finais,
pois atrasos nessas aplicações de alto consumo resultam em travamento
das transmissões de vídeo.
Nos moldes apresentados acima, esta modelagem no tráfego de da-
dos é inteiramente compatível com o Marco Civil que admite, expressa-
mente, esse tipo de discriminação de dados no art. 9º, § 1º, I, desde que
amparada em razões técnicas, em prol da maior qualidade dos serviços
(BRASIL, 2014).
No Entanto, esta mesma prática pode ser utilizada pelo provedor
de acesso para prestigiar serviço próprio em prejuízo do concorrente
ou simplesmente para inviabilizar o uso de determinadas aplicações.
Nessa perspectiva:

Ele tende a acentuar a formação de monopólios e a concentração


de poder econômico, sufocando a inovação e o compartilhamento
de conteúdo, sobretudo aquele proveniente de pequenos desen-
volvedores. Também significa censura velada, uma vez que
o usuário se vê impedido de utilizar certas aplicações com
a qualidade e a velocidade que delas se espera, em virtude
de escolha unilateral do provedor de acesso. (PARENTONI,
2017, pág. 580-581 grifo nosso).

Em decorrência disso, as argumentações trazidas pelos que se mani-


festam pró-neutralidade são válidas tendo em vista que os provedores de
acesso tendem a deturpar essa técnica de gerenciamento de dados. Para

121
DIMENSÕES JURÍDICAS DAS POLÍTICAS PÚBLICAS – VOL. 1

eles interferências no tráfego de dados podem afetar a plena manifestação


do pensamento.

Os defensores da Neutralidade da Rede dizem que a liberdade


de expressão passa pela ausência de descriminação no tráfego dos
aplicativos, evitando assim a censura pelo bloqueio e degradação
dos dados a serem trafegados. [...]. Sendo assim, a Neutralidade da
Rede buscaria prevenir possíveis abusos de poder. [sic] (ARTESE,
2015, pág. 144).

Uma das preocupações dos usuários finais e provedores de conteú-


do, bem como dos ativistas de internet que são pró-neutralidade é o que
Parentoni considera um dos efeitos colaterais da prática do traffic shaping
que possibilita a discriminação do fluxo de dados, segundo determinados
interesses, como no caso da China que indisponibiliza sites com suposto
conteúdo impróprio institucionalizando a censura, ou de empresas para
fins comerciais (PARENTONI, op. cit., pág. 579 -580).
Neste diapasão, o pleno exercício da liberdade de expressão e opinião,
a manifestação do pensamento e outros direitos, direta ou indiretamente,
com ela relacionados estariam prejudicados no ambiente de rede, posto
que tais ingerências confrontam diretamente com aquilo a que se pro-
punha o Marco Civil da Internet com a rede neutra que é garantir uma
internet livre e culturamente diversificada.
Entretanto, os defensores de uma rede neutra negligenciam o que as-
severa Pinheiro (2018):

Embora a neutralidade de rede possa contribuir para a maior cir-


culação de ideias, é preciso reconhecer que uma regulação em
descompasso com preceitos econômicos dos mercados, especial-
mente quanto aos meios de comunicação, in casu, a infraestrutura
de redes que compõe a internet, além de não trazer benefícios ao
consumidor, pode inviabilizar as condições de sustentabilidade da
própria infraestrutura, causando impactos deletérios a toda cadeia
comunicacional virtual.

É nesse ponto que uma neutralidade de rede exageradamente forte


pode, a contrario sensu, causar eventuais danos à liberdade de ex-

122
LU I Z A N TÔ N I O R E I S J U N I O R , M A U R I C I O P I R E S G U E D E S , T E L S O N P I R E S ,
VA N E S S A V E L A S C O, H E R N A N D E S B R I TO R E I S ( O R G . )

pressão. O mercado desempenha papel relevante como mecanismo


para efetivação da liberdade de expressão. [...].

Neste sentido, a neutralidade da rede não pode colocar em risco a


perspectiva de desenvolvimento econômico das empresas de telecomu-
nicações que dão suporte à infraestrutura da internet. Os direitos fun-
damentais da livre expressão e manifestação do pensamento, bem como
do acesso à informação no meio digital possuem, neste prisma, estreita
relação com os valores voltados para a proteção dos interesses do mercado.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Diante das inúmeras repercussões acerca da quebra da neutralidade


da rede ocorrida nos Estados Unidos, o presente estudo se propôs a ana-
lisar o cenário de possibilidade de inobservância deste princípio e suas
implicações também no Brasil, considerando sua importância fática para
o exercício da liberdade de expressão no meio digital.
O presente estudo encontrou dificuldade na busca de informações
acerca da realidade fática da internet dos Estados Unidos, em bases não
neutras, após dois anos desta mudança de paradigma. A FCC ainda com-
pila dados para uma avaliação das consequências advindas com a rede não
neutra. Portanto, não se vislumbrou nenhuma pesquisa mais aprofundada
sobre a realidade estadounidense que viesse a corroborar com os aponta-
mentos teóricos trazidos neste trabalho de pesquisa.
Apesar disto, é possível afirmar que o princípio da neutralidade da
rede advindo com o Marco Civil é, de fato, o mecanismo prático reali-
zador da livre expressão e manifestação do pensamento no meio digital.
Entretanto, uma eventual mitigação deste princípio não necessariamente
cerceia o direito de livre expressão e acesso a informação na rede, pois as
intervenções no gerenciamento de dados sob o aspecto técnico garantem
a livre circulação de ideias e pensamentos quando, por exemplo, priori-
zam serviços que demandam elevado consumo de dados em detrimento
daqueles que demandam baixo consumo, pois sem a priorização, um dos
serviços não chegaria ao usuário final.
De igual modo, sob o aspecto econômico, garante-se a circulação de
ideias e pensamentos quando se viabiliza a expansão da infraestrutura de

123
DIMENSÕES JURÍDICAS DAS POLÍTICAS PÚBLICAS – VOL. 1

rede que necessariamente precisa inovar-se para atender a demanda expo-


nencial do fluxo de dados da rede.
Por outro lado, para evitar qualquer aparo indevido as liberdades, para
coibir eventuais abusos pelas empresas que provem a internet e controlam
o gerenciamento do tráfego de dados, práticas ainda mais transparentes e
claras devem ser adotadas.
Por fim, sugere-se que para uma eventual nova regulamentação da
rede de internet, pró-neutralidade ou não, sejam sempre ponderados os
valores econômicos e sociais, bem como os aspectos técnico/operacional
da rede.

REFERÊNCIAS

ARAÚJO, Marcelo Barreto de. Comércio Eletrônico; Marco Civil


da Internet; Direito Digital/Marcelo Barreto de Araújo. Rio
de Janeiro: Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços
e Turismo. 2017.

BARRETO JUNIOR, Irineu Francisco; CÉSAR, Daniel. Marco Ci-


vil da Internet e Neutralidade da rede: Aspectos Jurídicos e
Tecnológicos. 2017. Disponível em: <https://periodicos.ufsm.br/
revistadireito/article/view/23288>. Acesso 08 ago. 2020.

BARROSO, Luís Roberto. Curso de direito constitucional contem-


porâneo: os conceitos fundamentais e a construção do novo
modelo/Luís Roberto Barroso – 5ª ed – São Paulo: Saraiva . 2015.

BRASIL. [Constituição 1988]. Constituição da República Federati-


va do. Brasília, DF: Congresso Nacional, 05 de outubro de 1988.
Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/
constituicao.htm. Acesso em: 13 abr. 2020.

BRASIL. Lei nº 12.965, de 23 de abril de 2014. Estabelece princípios,


garantias, direitos e deveres para o uso da Internet no Brasil. Diário
Oficial da União, Brasília, DF, 24 abr. 2014. Disponível em: <http://
www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011- 2014/2014/lei/l12965.
htm>. Acesso em: 13 abr. 2020.

1 24
LU I Z A N TÔ N I O R E I S J U N I O R , M A U R I C I O P I R E S G U E D E S , T E L S O N P I R E S ,
VA N E S S A V E L A S C O, H E R N A N D E S B R I TO R E I S ( O R G . )

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Reclamação 18638/CE. Rela-


tor: Ministro Luís Roberto Barroso. Brasília, DF, 17 de setembro de
2014. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticia-
NoticiaStf/anexo/RCL18638.pdf> Acesso em: 27 jul. 2020.

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Habeas Corpus nº: 82.424.


Rel. p/ o ac. Min. Moreira Alves. Brasília, DF, 17 de setembro de
2003. DJ, Brasília – DF, 19 de março de 2004. Disponível em: ht-
tps://stf.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/770347/habeas-corpus-hc-
-82424-rs Acesso em: 27 jul. 2020.

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. RE 1037396 RG / SP. Relator: Mi-


nistro Dias Toffoli. Brasília, DF. 2018. Disponível em: http://www.
stf.jus.br/portal/processo/verProcessoPeca.asp?id=314030456&ti-
poApp=.pdf Acesso em: 15 abr. 2020.

CABRAL, Hildeliza Lacerda Tinoco Boechat et al. E-commerce, Mar-


co Civil da Internet e vulnerabilidade do consumidor. 03 de
Out de 2016. Disponível em: <https://www.derechoycambiosocial.
com/revista046/E-COMMERCE.pdf>. Acesso em: 15 abr. 2020

DE ALMEIDA, Guilherme Alberto Almeida. Neutralidade da rede e


desenvolvimento: o caso brasileiro. 2007. Disponível em: <ht-
tps://www.academia.edu/6742101/Neutralidade _da_Rede_e_De-
senvolvimento_o_caso_ brasileiro>. Acesso em: 08 Agosto 2020.

DENNY, Danielle M. T. Internet Legal. Piracicaba, Editora Imagens


DD , 2016. Disponível em: < https://egov.ufsc.br/portal/sites/default/
files/internet_legal.pdf >. Acesso em: 27 jul. 2020

EUA discutem os impactos ruins do fim da neutralidade de rede.


Abranet 21 fev. 2020. Disponível em: < http://www.abranet.org.br/
Noticias/EUA-discutem-os-impactos-ruins-do-fim-da-neutralida-
de-de-rede-2767.html?UserActiveTemplate=site#.X010WIt7nDc>.
Acesso em: 08 ago 2020.

FORTES, Vinícius Borges; RIGO, Camile. A garantia da neutrali-


dade da rede no Marco Civil como um direito fundamen-
tal. 2015. Disponível em: <http://coral.ufsm.br/congressodireito/
anais/2015/6-26.pdf>. Acesso em: 15 abr. 2020.

125
DIMENSÕES JURÍDICAS DAS POLÍTICAS PÚBLICAS – VOL. 1

JÚNIOR, José Eliaci Nogueira Diógenes. Gerações ou dimensões


dos direitos fundamentais?.2012.Disponívelem:<http://pro-
fessor.pucgoias.edu.br/SiteDocente/admin/arquivosUpload/7771/
material/GERA%C3%87%C3%95ES%20OU%20DIMENS%-
C3%95ES%20DOS%20DIREITOS%20FUNDAMENTAIS.
pdf> Acesso em: 27 jul 2020.

MICELI, André Lima Cardoso. O que é neutralidade de rede e como


sua anulação muda a forma de usar a internet [Entrevista con-
cedida a] Victor Hugo Silva. IG. 20 de Dez. de 2017. Disponível
em: <https://tecnologia.ig.com.br/2017-12-20/o-que-e-neutralida-
de-de-rede.html>. Acesso em: 13 abr. 2020.

Nos EUA, democratas apresentam projeto de lei para restituir


a neutralidade de rede. Abranet 11 mar. 2019. Disponível em:
<http://www.abranet.org.br/Noticias/Nos-EUA,-democratas-apre-
sentam-projeto-de-lei-para-restituir-a-neutralidade-de-rede2292.
html?UserActiveTemplate=site&UserActiveTemplate=mobile%-
252Csite#.X01y54t7nDc. Acesso em: 08 ago. 2020.

NONATO, Alessandro Anilton Maia. O acesso à internet é um di-


reito fundamental? 10 de Jan de 2020. Disponível em: < https://
www.direitonet.com.br/artigos/exibir/11461/O-acesso-a-internet-
-e-um-direito-fundamental>. Acesso em: 14 abr. 2020.

ONU. Relatório da ONU declara internet como um direito humano.


Portal Terra. 06 de jun de 2011. Disponível em: < http://tecno-
logia.terra.com.br/internet/relatorio-da-onu-declara-internet-co-
mo-um-direitohumano,8ea9dceae77ea310VgnCLD200000bbcce-
b0aRCRD.html>.Acesso em: 14 abr. 2020.

PAULO, Vicente; ALEXANDRINO, Marcelo. Direito Constitucio-


nal descomplicado. 15. ed. rev. e atual. Rio de Janeiro: Forense;
São Paulo: MÉTODO: 2016.

PINHEIRO, Guilherme Pereira. Liberdade de expressão e neutra-


lidade de rede na internet. 05 de Mai de 2018. Disponível em:
< https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/liberdade-de-ex-
pressao-e-neutralidade-de-rede-na-internet-05052018>. Acesso
em: 14 abr. 2020.

126
LU I Z A N TÔ N I O R E I S J U N I O R , M A U R I C I O P I R E S G U E D E S , T E L S O N P I R E S ,
VA N E S S A V E L A S C O, H E R N A N D E S B R I TO R E I S ( O R G . )

______. Liberdade de expressão e neutralidade de rede na inter-


net./Guilherme Pereira Pinheiro. – 1. ed. – Rio de Janeiro: Lu-
men Juris, 2017.

PIOVESAN, Flávia. Internet e Direitos Fundamentais.10 de Nov de


2016. Disponível em: < https://nacoesunidas.org/artigo-internet-di-
reitos-humanos/>. Acesso em: 15 abr. 2020.

RAMOS, André de Carvalho. Curso de Direitos Humanos/André


Carvalho Ramos. São Paulo: Saraiva 2014.

SILVA, Emerson Marcelo da; BARBOSA, Marco Antonio; AZEVEDO,


Renato Asamura. Neutralidade na rede e princípios da ordem
econômica na Constituição Federal de 1988. 2014. Disponí-
vel em: < https://casperlibero.edu.br/wp-content/uploads/2016/01/
Neutralidade-na-rede-e-princ%C3%ADpios-da ordemecon%-
C3%B4micanaConstitui%C3%A7%C3%A3o-Federal-de-1988.
pdf>. Acesso em: 16 abr. 2020.

127
POSIÇÕES POLÍTICAS EM FACE À
GARANTIA CONSTITUCIONAL DA
DEMOCRACIA
Larissa Hofmann29
Luiz Eduardo dos Santos30

INTRODUÇÃO

Visando as divergências do debate político no contexto contempo-


râneo, o presente artigo tem como objetivo explanar, através de análises
teóricas e dogmáticas, os elementos que possam impossibilitar quaisquer
ideias que afrontem os preceitos constitucionais, geralmente advindos de
abstrações de regimes extremistas.
Para melhor compreender a concretização do tema, abordar-se-á uma
breve construção histórica a respeito da democracia, analisando desde o
nascimento na Grécia Antiga até sua execução/atuação no Estado Demo-
crático de Direito. Também é necessário demonstrar a diferença entre as
dicotomias direita-esquerda e extremistas-moderados, analisando-as pos-
teriormente sobre um viés democrático e constitucional.
Nesse sentido, apresentar-se-á diversas perspectivas de análise, de-
mostrando os mecanismos constitucionais, que limitam a possibilidade e a
consumação de ideias extremistas que confrontem as garantias fundamen-
tais dos indivíduos que estão positivadas.

29 Graduanda em Direito pelo Centro Universitário de Pato Branco


30 Graduando em Direito pelo Centro Universitário de Pato Branco

128
LU I Z A N TÔ N I O R E I S J U N I O R , M A U R I C I O P I R E S G U E D E S , T E L S O N P I R E S ,
VA N E S S A V E L A S C O, H E R N A N D E S B R I TO R E I S ( O R G . )

1. CONSTRUÇÃO HISTÓRICA DA DEMOCRACIA E A


LIMITAÇÃO DO PODER ESTATAL.

Antes de tudo, é primordial entender que o conceito de política tal


como o de democracia sofreram diversos processos históricos. A demo-
cracia nascida na Grécia Antiga (Séc. XX ao Séc. IV a. C.) não possui as
mesmas características que o conceito democrático aplicado nas socieda-
des democratas atuais. Logo, a política tradicionalmente totalitária advin-
da dos regimes medievos, teve sua ruptura com os ideais aludidos pelo
iluminismo da Revolução Francesa (1789). (COMPARATO, 2015).
Na Grécia Antiga, entre as cidade-estado existiam várias formas de
governo, algumas eram oligarquias e outras monarquias e, centenas delas
eram democracias, porém, dentro destas, a de Atenas foi a mais estável, de
maior duração e a mais radical. (CARTLEDGE, 2017).
Fundada com os princípios da preeminência da lei e a participação
ativa do cidadão, a democracia ateniense consistia em, resumidamente,
atribuir ao povo “o poder de eleger governantes e tomar diretamente em
assembleia as grandes decisões políticas: adoção de novas leis, declaração
de guerra”, (COMPARATO, 2015).
Reunindo-se diretamente em assembleias (a Ekklésia), os cidadãos —
“atenienses filhos de comerciantes ou mesmo de aristocratas, campone-
ses, artesãos, marinheiros, etc.” e “que excluía mulheres, estrangeiros e
escravos” (REIS, 2018) —, podiam limitar o poder que não beneficiasse
a coletividade, mesmo que fosse contra a simples vontade do povo ou dos
governantes.
Assim, por mais de dois séculos o poder dos governantes foi limi-
tado. (COMPARATO, 2015). Com a batalha de Queroneia em 338 a.
C. (FINLEY, 1988, p. 96; MCWHORTER, 1951, p. 298 apud REIS,
2015), e após o domínio da Macedônia sobre a Grécia, Atenas perdeu sua
independência e liberdade e, desse modo, findou o seu regime democrá-
tico. (REIS, 2015).
Com o início da Idade Média (453 d. C.), a sociedade passou a ser
constituída pelo “amálgama de instituições clássicas, valores cristãos e
costumes germânicos” (COMPARATO, 2015), tornando mais intenso
a concentração de poderes. Costumeiramente dividida em duas partes,
Alta Idade Média e Baixa Idade Média, a passagem entre elas (Séc. XI ao

129
DIMENSÕES JURÍDICAS DAS POLÍTICAS PÚBLICAS – VOL. 1

Séc. XII) reintroduziu a ideia de limitação da dominação dos governantes.


(COMPARATO, 2015)
Surge então, uma tentativa de reconstrução do poder concentrado
que desencadeou as primeiras manifestações que ocasionaram, sobretudo,
a Magna Carta de 1215 na Inglaterra, que garantiu o direito à liberdade em
favor, principalmente, do clero e da nobreza.
Com o surgimento dos burgos, da vida comercial e das grandes na-
vegações, nasceu a exigência de uma maior garantia e segurança na vida
econômica, que necessitava da limitação do “tradicional arbítrio do poder
político” (COMPARATO, 2015).
Foi então que, no século XVII, com a “crise da consciência eu-
ropeia” — que trouxe a percepção dos perigos do poder absoluto —, e
após a rebelião do Levellers e a revolta armada bem-sucedida de Oliver
Cromwell, que as ideias republicanas e democráticas ressurgiram, se posi-
tivando a partir do Bill Of Rights britânico com a ascensão do Parlamento.
(COMPARATO, 2015).
Adentrando na história da humanidade após o iluminismo (Séc.
XVIII) percebe-se uma grande evolução relacionada aos direitos assegu-
rados. Em um primeiro momento surge o Estado Liberal de Direito, uma
vez que a ascensão das ideias iluministas rompeu com o governo absolu-
tista presente na França. (ZOLO; COSTA, 2006) .
Dentro do Estado Liberal de Direito, analisando a própria denomina-
ção dada ao período, houve um intenso incentivo ao liberalismo econô-
mico, principalmente na parte de livre iniciativa comercial. Nesse período
que é consonante com a 1ª geração ou dimensão dos Direitos Humanos,
garante-se os direitos civis e políticos aos indivíduos, tal como o voto, a
igualdade formal e a propriedade, sendo esta última requisito importante
para obter o título de cidadão. (GUERRA, 2017).
Por conseguinte, o liberalismo econômico e a posição negativa do Es-
tado (chamado Estado mínimo) frente à Revolução Industrial, ocasionou
uma intensa segregação entre os membros da sociedade, haja vista que al-
gumas pessoas obtinham os meios de produção e outras vendiam sua mão
de obra miseravelmente. (ZOLO; COSTA, 2006).
O constitucionalismo na ordem do Estado de Direito, não se impor-
tou somente com a legalidade, mas sim o conteúdo presente nos ideais ga-
rantidos. Nesse sentido, as disposições constitucionais limitavam o poder

130
LU I Z A N TÔ N I O R E I S J U N I O R , M A U R I C I O P I R E S G U E D E S , T E L S O N P I R E S ,
VA N E S S A V E L A S C O, H E R N A N D E S B R I TO R E I S ( O R G . )

estatal e possíveis atitudes executivas autoritárias e garantiam a proteção


dos direitos fundamentais dos indivíduos. (LENZA, 2020)
Para corrigir as desigualdades provocadas pelo Estado Liberal de Di-
reito, surgem os direitos humanos de 2ª geração ou dimensão, executa-
dos no Estado Democrático de Direito. Nessa dimensão, encontram-se os
chamados direitos sociais, econômicos e culturais, positivados na Cons-
tituição de 1988 em seu artigo 6º, abrangendo os direitos à educação, à
saúde, à alimentação, ao trabalho, à moradia, ao transporte, ao lazer, à
segurança, à previdência social, à proteção à maternidade e à infância e à
assistência aos desamparados. (LENZA, 2020).
Desse modo, apesar das concepções democráticas nem sempre esta-
rem presentes na sociedade, fica evidente que a consciência humana alme-
jou em diversos períodos históricos a necessidade de limitação do poder
estatal, em busca da democracia e de uma maior garantia de direitos.

2. DIRETA-ESQUERDA VS EXTREMISTAS-MODERADOS
À LUZ DO PENSAMENTO DE NORBERTO BOBBIO

Há mais de dois séculos a dicotomia direita-esquerda mantém-se pre-


sente no uso político, divergindo-se inicialmente no contexto revolucio-
nário de 1789 (SILVA; MORAIS; 2019), onde surgiu a sua denominação
política e nominal.
A necessidade de uma assembleia para debater o rumo político fran-
cês, fez com que os rebeldes, de acordo com suas posições frente aos pró-
ximos passos dados no governo, se dividissem em grupos. Enquanto os
que se sentaram à direita da sala, eram considerado os moderados (giron-
dinos) com um cunho mais conservador em relação ao Antigo Regime,
os que se sentaram à esquerda da sala, eram considerados os mais radicais
(jacobinos), com ideais revolucionários mais insurgentes. (SILVA; MO-
RAIS, 2019).
Para Bobbio (2011, p. 49) a direita e a esquerda:

[...] são termos antitéticos que há mais de dois séculos têm sido
habitualmente empregados para designar o contraste entre as ideo-
logias e entre os movimentos em que se divide o universo, eminen-
temente conflitual, do pensamento e das ações políticas. Enquanto

131
DIMENSÕES JURÍDICAS DAS POLÍTICAS PÚBLICAS – VOL. 1

termos antitéticos, eles são, com respeito ao universo ao qual se


referem, reciprocamente excludentes e conjuntamente exaustivos.
São excludentes no sentido de que nenhuma doutrina ou nenhum
movimento pode ser simultaneamente de direita e de esquerda. E
são exaustivos no sentido de que, ao menos na acepção mais forte
da dupla [...] uma doutrina ou movimento podem ser apenas ou de
direita ou de esquerda.

Nesse sentido, Bobbio (2011) traduz as principais diferenças ideológi-


cas entre a direita e a esquerda. Enquanto a direita parte do princípio que
os indivíduos são naturalmente e irreversivelmente desiguais, a esquerda
acredita que os indivíduos são iguais e, que as desigualdades são sociais e
reversíveis. As ideias de direita estão mais voltadas ao liberalismo econô-
mico, sem adentrar ao campo moral que é passível de outras discussões. Já
a esquerda busca por políticas mais igualitárias.
No entanto, a díade encontra-se em decadência, resultado da perca
da essência da sua distinção primordial. Muitos pensadores acreditam que
ela deve entrar em desuso, uma vez que se traçar uma linha entre a extre-
ma direita e a extrema esquerda, percebe-se que entre elas existem varia-
ções intermédias e moderadas, como uma centro-direita, um centro que
as distancia, um centro que as engloba e também uma centro-esquerda.
(BOBBIO, 2011).
As grandes sociedades democráticas contemporâneas possuem um
cenário político crítico e complexo, e, colocar a díade em polos totalmen-
te opostos, pode ser inadequado para esse contexto. Sobre isso, Bobbio
(2011, p. 53):

Em um universo político cada vez mais complexo como o das


grandes sociedades, e, em particular, das grandes sociedades de-
mocráticas, torna-se sempre mais inadequada a separação muito
nítida entre duas únicas partes contrapostas, sempre mais insufi-
ciente a visão dicotômica da política. Sociedades democráticas são
sociedades que toleram, ou melhor, que pressupõe a existência de
diversos grupos de opinião e de interesse entre si; tais grupos às
vezes se contrapõem, às vezes se superpõem, em certos casos se
integram para depois se separem, ora se aproximam, ora se dão as
costas, como um movimento de dança.

132
LU I Z A N TÔ N I O R E I S J U N I O R , M A U R I C I O P I R E S G U E D E S , T E L S O N P I R E S ,
VA N E S S A V E L A S C O, H E R N A N D E S B R I TO R E I S ( O R G . )

Nesta linha de pensamento, muitos teóricos do lado de uma das par-


tes (direita ou esquerda), contribuíram com seus estudos para com a dico-
tomia e, partindo de ideias e princípios, migraram ou se relacionaram com
a ideologia contrária da díade em determinado período.
Bobbio (2011), ressalta importantes teóricos e influenciadores que
participaram de transmigrações entre a direita e esquerda, como Nietzs-
che e Karl Marx que são colocados como pais da nova esquerda, sendo um
considerado inspirador no nazismo e o outro um forte sociólogo alemão.
Ressalta também, Carl Schmitt, que mesmo estando vinculado e atuando
na promotoria nazista, foi homenageado e aclamado por estudiosos italia-
nos de esquerda.
Outro exemplo, trata-se do autor de “Reflexões e violência”, Geor-
ges Sorel, cujo pensamento influenciou os movimentos esquerdistas. So-
rel, desencadeou o sindicalismo revolucionário italiano, e também era
admirador de autoritaristas como Mussolini e Lenin. (BOBBIO, 2011)
Pode-se considerar que a díade é relativa, analisando que em diversos
lugares e épocas ela possui variáveis interpretações, sendo assim, mutável
constantemente. Pedro Lafayette (1942, p.40), jornalista brasileiro, cita:

Teria sido Nietzsche um esquerdista? A questão não é nova. Na


Europa o assunto tem sido causas de interessantes controvérsias,
havendo autores que apontam o filósofo teuto como um dos ba-
luartes dos princípios revolucionários da esquerda e não faltando
inúmeros outros que, ao contrário, o consideram como um legíti-
mo expoente do reacionarismo conservador.

Assim, Nietzsche pode ser considerado tanto de direita como de es-


querda, ressaltando a ideia de que muitos pensadores podem estar vincu-
lados as duas partes da díade, por serem extremistas ou moderados.
Essa nova dupla extremistas-moderados diverge de direita-esquerda,
uma vez que extremistas de direita são totalmente contrários aos modera-
dos de direita, assim como acontece com a esquerda.
Os extremistas de esquerda e de direita têm em comum o pertenci-
mento a mesma ala, haja vista que os mesmos não admitem a existência da
moderação dentro das partes da díade, como cita Solinas (apud BOBBIO,
2011, p. 70): “Nosso drama atual se chama moderantismo. Nosso prin-

133
DIMENSÕES JURÍDICAS DAS POLÍTICAS PÚBLICAS – VOL. 1

cipal inimigo são os moderados. O moderado é naturalmente democráti-


co”, ou seja, os extremistas utilizam de um mesmo meio para chegar a sua
finalidade ideológica. (BOBBIO, 2011)
Por outro lado, os moderados utilizam de mecanismos parecidos,
porém de cunho democrático. Sendo assim, a distinção entre essas duas
duplas é relacionada à meios e fins, extremistas-moderados são formas de
expressar uma ideologia e a direita-esquerda são as ideologias em si.
Comparando os extremismos das ideologias opostas, percebe-se que
a antidemocracia é comum a ambos, pois consideram que existe um con-
senso sobre ilegitimidade em regimes moderados que são, em regra, de-
mocráticos.
Partindo das ideias apresentadas, percebe-se que o extremismo tem
um caráter totalmente regressista visando ressaltar rupturas e mudanças
significativamente grandes. Já a moderação possui um caráter oposto,
considerada progressista, tendo em vista suas ideias evolucionistas e de-
senvolvimentistas.
Extrema direita e esquerda tendem a ter várias linhas que se encon-
tram, porém para Bobbio (2011), a principal delas é a antidemocracia,
no qual cita o exemplo do fascismo francês (conhecido também como
pré-fascismo) que nasce da junção da extrema direita e esquerda em rea-
ção a democracia burguesa — que era a junção das moderadas direita e
esquerda, sendo a esquerda responsável por aceitar as regras da burguesia e
se submeterem a uma mediocracia.
As dicotomias, portanto, são totalmente diferentes, pois abordam
questões opostas de classificação no campo político, entretanto, partindo
da ideia de que no contexto contemporâneo existem várias nuances entre
a direita e a esquerda. Mesmo se distinguindo, as duas díades (extremistas-
-moderados que é a posição, direita-esquerda que é a ideologia) coexistem
e precisam ser classificadas por divergirem entre si. (BOBBIO, 2011).

3. IDEOLOGIAS POLÍTICAS EM FACE AO


CONSTITUCIONALISMO

Segundo Barroso (2012), “Constitucionalismo” significa “Estado de


direito, poder limitado e respeito aos direitos fundamentais. Democracia,
por sua vez, traduz a ideia de soberania popular, governo do povo, von-

134
LU I Z A N TÔ N I O R E I S J U N I O R , M A U R I C I O P I R E S G U E D E S , T E L S O N P I R E S ,
VA N E S S A V E L A S C O, H E R N A N D E S B R I TO R E I S ( O R G . )

tade da maioria”. Desse modo, os elementos do constitucionalismo estão


presentes no ordenamento jurídico brasileiro, de forma que as garantias e
princípios positivados os refletem.
Por outro lado, a democracia expressa a sua soberania popular atra-
vés de uma forma de Estado, uma forma de Governo e um sistema. O
Brasil, segundo as disposições do Poder Constituinte originário, adota o
federalismo como forma de Estado, dando autonomia aos entes federados;
república como forma de governo, dando soberania popular e; o presiden-
cialismo como sistema, dando liberdade para a população escolher perio-
dicamente seus representantes, impedindo que somente uma pessoa ou
família detenha o poder. (STRECK; MORAIS, 2014).

Na sua concepção tradicional, os direitos fundamentais são direitos


de defesa (Abwehrrechte), destinados a proteger determinadas posi-
ções subjetivas contra a intervenção do Poder Público, seja pelo (a)
não impedimento da prática de determinado ato, seja pela (b) não
intervenção em situações subjetivas, seja pela (c) não eliminação de
posições políticas. (ALEXY, 1991, p. 174; CANOTILHO, 1991,
p. 548 apud MENDES; BRANCO, 2018, p.688)

A junção dos direitos constitucionais e da democracia, que não deixa


de ser uma garantia, portanto, não permite que as concepções extremis-
tas acabem por se formalizar/materializar dentro do ordenamento jurídico
interno. De acordo com Barroso (2012, p1.): “O constitucionalismo de-
mocrático, assim, é uma fórmula política baseada no respeito aos direitos
fundamentais e no autogoverno popular. E é, também, um modo de orga-
nização social fundado na cooperação de pessoas livres e iguais”.
Para melhor compreender as abstrações anteriores, é necessário evi-
denciar as principais classificações sobre a Constituição relacionadas aos
preceitos democráticos. Sobre a origem, é classificada como promulgada.
Por Lenza (2020, p. 112):

Promulgada, também, chamada de democrática, votada ou popu-


lar, é aquela Constituição fruto do trabalho de uma Assembleia
Nacional Constituinte, eleita diretamente pelo povo, para, em
nome dele, atuar, nascendo, portanto, da deliberação da represen-
tação legítima popular.

135
DIMENSÕES JURÍDICAS DAS POLÍTICAS PÚBLICAS – VOL. 1

Nesse sentido, desde a sua criação, a Constituição de 1988 segue os


preceitos democráticos e de soberania popular, diferente de constitui-
ções classificados como outorgadas e cesaristas, cuja origem acontece
de maneira unilateral, levando em conta as vontades dos governantes.
(LENZA, 2020)
Considerando o quórum de votação qualificado das emendas constitu-
cionais, previsto no artigo 60, § 2º “A proposta será discutida e votada em
cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, considerando-se apro-
vada se obtiver, em ambos, três quintos dos votos dos respectivos mem-
bros.” (CF/88). Em suma, devido à qualificação, a Constituição vigente é
considerada rígida com “um processo legislativo mais árduo, mais solene,
mais dificultoso do que o processo de alteração das normas não constitu-
cionais” (LENZA, 2020).
Considerando o processo legislativo qualificado, e, a incorporação de
cláusulas pétreas imutáveis (art. 60, §4 da CF/88), a Constituição vigen-
te pode ser considerada e classificada como super-rígida. (MORAES, A.,
2020).
Salienta-se que essa dificuldade quanto à alterabilidade é considerada
uma segurança jurídica, tendo em vista que o texto constitucional é discu-
tido e votado dentro do sistema bicameral do Congresso Nacional, cujos
votantes, Deputados Federais e Senadores, são respectivamente, represen-
tantes do povo e dos estados da Federação (LENZA, 2020).
Partindo do pluralismo político existente no Brasil e do sistema elei-
toral quanto ao poder legislativo, é dificultado que qualquer ideologia ou
valor seja positivado integralmente em todo o sistema jurídico, não abrin-
do quaisquer possibilidades de discussões extremistas.
Retomando os pontos comuns entre as ditaduras e os regimes extre-
mistas, destaca-se a adoção de uma única ideologia. O constitucionalis-
mo brasileiro assegurou em seu texto a conciliação dessas ideologias, bem
como a garantia à liberdade de expressão, classificando assim a constitui-
ção vigente como eclética. (LENZA, 2020).
No entanto, existe uma discussão sobre a ecleticidade do preâmbu-
lo da Constituição de 1988, uma vez que a expressão “sob a proteção
de Deus” remete apenas à determinadas religiões. Entretanto, em Ação
Direta de Inconstitucionalidade, o Supremo Tribunal Federal, julgou na
ADI nº 2076 que o preâmbulo, diferente do corpo fixo e dos Atos das

136
LU I Z A N TÔ N I O R E I S J U N I O R , M A U R I C I O P I R E S G U E D E S , T E L S O N P I R E S ,
VA N E S S A V E L A S C O, H E R N A N D E S B R I TO R E I S ( O R G . )

Disposições Constitucionais Transitórias, não possui caráter vinculante


e normativo, sendo um ato meramente histórico e cultural. (STF, 2002).
No corpo fixo, também se encontram as normas constitucionais que
garantem tais liberdades, positivadas no artigo 5º, inciso VI e seguintes,
impossibilitando que haja qualquer prevalência ideológica ou veto a ex-
pressão sobre as convicções dos indivíduos, característica presente em so-
ciedades democráticas.
Encerrando as explanações acerca das classificações, destaca-se que a
brasileira de 1988 é garantia, social e dirigente. “A Constituição garantia
busca garantir a liberdade, limitando o poder; a balanço reflete um de-
grau de evolução socialista e a dirigente estabelece um projeto de Estado”
(LENZA 2020).
Em síntese, as classificações constitucionais demonstram a impossibi-
lidade da efetivação formal e material das convicções extremistas de cada
parte da dicotomia. Seja pelo seu processo legislativo qualificado, a liber-
dade de escolha para seus representantes, como também pela positivação
de garantias ao pluralismo jurídico.
Por conseguinte, a constituição “é o produto da fusão de duas ideias
que tiveram trajetórias históricas diversas, mas que se conjugaram para
produzir o modelo ideal contemporâneo” (BARROSO, 2012). Nesse
sentido, a Constituição de 1988, sintetizou tanto as concepções liberais
quanto sociais em seu texto:

Na Constituição de 1988 realizou-se uma alteração que a tornou,


estruturalmente, mais técnica. Separou, em títulos diferentes, a or-
dem econômica e a ordem social. A separação se impõe, porque
cada tema tem suas regras específicas e princípios norteadores. A
Carta vigente, no Título VII, trata da Ordem Econômica e Fi-
nanceira (arts. 170 a 192) e, no Título VIII, dispõe sobre a Ordem
Social dividindo-a em oito capítulos: disposição geral (art. 1936);
seguridade social (arts. 194 a 204); educação, cultura e desporto
(arts. 205 a 217); ciência e tecnologia (arts. 218 e 219); comuni-
cação social (arts. 220 a 224); meio ambiente (art. 225); família,
criança, adolescente e idoso (arts. 226 a 230); índios (arts. 231 a
232). A ordem social forma, juntamente com o título dos direitos
fundamentais, o núcleo substancial do regime democrático insti-

137
DIMENSÕES JURÍDICAS DAS POLÍTICAS PÚBLICAS – VOL. 1

tuído. Algumas matérias inseridas nesse Título, contudo, é preciso


salientar, não possuem conteúdo típico de ordem social; por exem-
plo, a Ciência e tecnologia e meio ambiente, assim como a matéria
relativa aos índios. (REDECKER, 2009, p. 2103).

Desse modo, evidencia-se que as disposições constitucionais abran-


gem direitos civis e políticos (1ª dimensão); sociais, culturais e econô-
micos (2ª dimensão); coletivos e difusos (3ª dimensão) e; relacionados às
questões tecnológicas (4ª e 5ª dimensões). (GUERRA, 2017).
No que concerne as relações liberalistas, surgem juntamente com o
Estado de Direito, assegurando na parte econômica um papel reduzido
e mínimo do Estado, fazendo com que houvesse a garantia pela lega-
lidade e, uma maior liberdade de atuação dos indivíduos. (STRECK;
MORAIS, 2014).
Para melhor compreender qual a atuação liberalista no ordenamento
jurídico interno, é necessário conceituar a diferença entre um não inter-
vencionista e um intervencionista:

O Estado pode interferir na ordem econômica de modo direto ou


indireto. Quando se fala em atuação direta, o próprio Estado atua
na economia de um país, seja em regime de monopólio, seja no de
participação com as empresas do setor privado. Já quanto à atuação
indireta, o Estado busca fazer prevalecer o princípio da livre con-
corrência e evitar abusos como os decorrentes de cartéis, dumping
etc. (LENZA, 2020, p. 1565).

Em virtude disso, a constituição positiva os alguns princípios basilares


para a execução do liberalismo econômico, explanados na sequência.
Um exemplo é o princípio da propriedade privada e sua função so-
cial. Trata-se de um direito de 1ª dimensão, a propriedade é um direi-
to fundamentado assegurado a todos os indivíduos, tendo como base as
ideias liberalistas de construção de capital (art. 5º, XXII, CF/88). No en-
tanto, toda propriedade deve atender à uma função social (art. 5º, XXIII,
CF/88), correndo risco de desapropriação (art. 5º, XXIV, CF/88). (LEN-
ZA, 2020).
Outro exemplo é o princípio da livre concorrência previsto no art.
175, §4 da Constituição de 1988, o qual explana que a lei reprimirá o abu-

138
LU I Z A N TÔ N I O R E I S J U N I O R , M A U R I C I O P I R E S G U E D E S , T E L S O N P I R E S ,
VA N E S S A V E L A S C O, H E R N A N D E S B R I TO R E I S ( O R G . )

so do poder econômico que vise à dominação dos mercados, à eliminação


da concorrência e ao aumento arbitrário dos lucros. (LENZA, 2020).
Em síntese, mesmo a Constituição de 1988 assegurando uma econo-
mia descentralizada, consagrou o Estado como um fiscalizador, podendo
interferir da economia como um agente normativo e regulador. (MO-
RAES, A., 2020).

Nessa dimensão, os direitos fundamentais contêm disposições de-


finidoras de uma competência negativa do Poder Público (negative Kom-
petenzbestimmung), que fica obrigado, assim, a respeitar o núcleo de
liberdade constitucionalmente assegurado. (HESSE apud MEN-
DES; BRANCO, 2020, p. 689)

Ao tempo que o constitucionalismo brasileiro garante o liberalismo


econômico, também garante uma postura positiva do Estado quanto aos
direitos sociais, a fim de que haja uma “perspectiva de uma isonomia
substancial e social na busca de melhores e adequadas condições de vida,
estando, ainda, consagrados com fundamentos da República Federativa
do Brasil (art.1º., IV, da CF/88” (LENZA, 2020).
Alexandre de Moraes (2020), salienta que no que concerne aos di-
reitos de cunho social, necessita-se de uma posição positiva do Estado,
tendo como objetivo, através dessas prestações positivas, a prevalência da
dignidade humanada dos hipossuficientes, abrindo caminhos para que o
fundamento da igualdade social logre êxito.

Outras normas consagram direitos a prestações de índole positi-


va (Leistungsrechte), que tanto podem referir-se a prestações fáticas
de índole positiva (faktische positive Handlungen) quanto a prestações
normativas de índole positiva (normative Handlungen). (ALEXY
apud MENDES; BRANCO, 2018, p. 689).

De acordo com o art. 6º da Constituição de 1988, os direitos sociais


são: a educação, visando o pleno desenvolvimento da pessoa; a saúde, dis-
pondo de políticas econômicas e públicas, com o objetivo de prevenir o
risco doenças e garantir recuperação com acesso universal; a alimenta-
ção, cujo poder público deve utilizar do meios necessários para garantir
a segurança alimentar e nutricional da população; o trabalho, como um

139
DIMENSÕES JURÍDICAS DAS POLÍTICAS PÚBLICAS – VOL. 1

instrumento para proporcionar uma existência digna; a moradia, onde os


entes federados possuem competência administrativa para assegurá-la; o
transporte, sendo um meio para conseguir efetuar outros direitos; o lazer,
como um meio de repouso que requer lugares apropriados, fomentados
através de promoções sociais; a segurança, com o objetivo de proteger a
ordem pública e a incolumidade das pessoas e do patrimônio (art. 144, da
CF/88); a previdência social, relacionada à seguridade social; proteção da
maternidade e da infância, devendo ser atendida como um direito previ-
denciário e assistencial e; a assistência aos desamparados, que está relacio-
nado à prestação da assistência social para quem necessitar, independendo
de contribuição à seguridade social. (LENZA, 2020).
Nesse sentido, todos os direitos sociais retratados no referido arti-
go, necessitam de uma posição positiva do Estado e de implementação
de políticas públicas, econômicas e socias. Ao modo que, se os regimes
extremistas de cunho liberal desejassem restringir ou vetar essas garantias
em sua íntegra, teriam impossibilidades constitucionais, uma vez que as
garantias individuais são consideradas cláusulas pétreas e, até mesmo uma
votação acerca das mudanças demandaria de um quórum qualificado.
Ademais, sendo a Constituição de 1988 rígida e, admitindo a in-
corporação de Emendas Constitucionais através do processo legislati-
vo, prevê em seu texto mecanismos de controle sobre as normas cons-
titucionais derivadas, positivadas após a promulgação da constituição
vigente e, que possuem presunção relativa de constitucionalidade, di-
ferente das normas constitucionais originárias, que têm presunção ab-
soluta. (LENZA, 2020).
Destaca-se também, a impossibilidade de mutação constitucional em
relação ao voto, clausula pétrea positivada no Art. 60, §4º, II, da CF/88.
Apesar das discussões sobre a obrigatoriedade do voto, apenas as carac-
terísticas do inciso II — direto, secreto, universal e periódico — não são
passíveis de mudança, devido as impossibilidades de alteração das cláusulas
pétreas. (LENZA, 2020).
O direito de sufrágio, é o direito político mais exercitado no Bra-
sil e, garante a execução da democracia através da composição de “dois
aspectos: a) alistabilidade (direito de votar ou capacidade eleitoral ativa);
b) elegibilidade (direito de ser votado ou capacidade eleitoral passiva)”
(MARTINS, 2020, p. 1048).

140
LU I Z A N TÔ N I O R E I S J U N I O R , M A U R I C I O P I R E S G U E D E S , T E L S O N P I R E S ,
VA N E S S A V E L A S C O, H E R N A N D E S B R I TO R E I S ( O R G . )

Nesse sentido, em relação ao sufrágio universal, advindo do direito


de cidadania que possui eficácia erga omnes (oponíveis a todos), não há
a possibilidade de extinção do pluralismo político, devido ao direito e a
possibilidade de representação legislativa e executiva dos grupos sociais:

A Constituição de 1988 é o símbolo maior de uma história de su-


cesso: a transição de um Estado autoritário, intolerante e muitas
vezes violento, para um Estado democrático de direito. Sob sua
vigência, realizaram-se inúmeras eleições presidenciais, por voto
direto, secreto e universal, com debate público amplo, participação
popular e alternância de partidos políticos no poder. (BARROSO,
2012, p. 2)

A Constituição Cidadã, “assim, é uma fórmula política baseada no


respeito aos direitos fundamentais e no autogoverno popular. E é, tam-
bém, um modo de organização social fundado na cooperação de pessoas
livres e iguais” (BARROSO, 2020), sendo, portanto, o maior símbolo
de garantias fundamentais, inviabilizando qualquer regime contrário aos
preceitos democráticos.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

No âmbito brasileiro, com a ascensão das dimensões dos direitos hu-


manos e a incorporação das matérias tratadas para os direitos fundamen-
tais, a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, impossi-
bilitou, devido suas disposições liberais e sociais, que exista execução dos
ideais extremistas da dicotomia em sua íntegra.
A construção histórica do período da democracia da Grécia Antiga
até a consumação do Estado Democrático de Direito, passou por diversas
etapas onde os preceitos democráticos estiverem mais ou menos presentes
no contexto social, demonstrando que ao longo do tempo e das socie-
dades, houve o almejo por limitação do poder estatal e, mostrando que
qualquer modelo extremista é repressivo e antidemocrático.
A direita e a esquerda são ideologias políticas que estão sempre em
evidência nos debates políticos, entretanto, no contexto contemporâneo,
é fundamental que estas discussões sejam acompanhadas da díade extre-

141
DIMENSÕES JURÍDICAS DAS POLÍTICAS PÚBLICAS – VOL. 1

mistas e moderados, haja vista que, como citado anteriormente, cada po-
sição política em consonância com um lado da ideologia (ou no centro das
duas) possuem diferentes concepções.
Quanto aos extremistas e moderados é evidente a necessidade de
localizá-los dentro da dicotomia direita-esquerda, compreendendo seus
pontos comuns e os que os diferenciam. Dentro das sociedades demo-
cráticas, presente nos ideais moderados, o debate político é indispensável,
uma vez que possibilita a representação de diversos grupos sociais e ideo-
logias diferentes.
Analisando as perspectivas constitucionais acerca de suas características
e classificações, bem como de seu conteúdo, destaca-se as diferentes dis-
posições que abrangem os dois lados ideológicos da díade direita-esquerda,
uma vez que existem direitos de cunho mais liberal – liberalismo econô-
mico, cujo Estado atua como fiscalizador e regulamentador – e direitos de
cunho mais social, que necessitam de uma posição positiva do Estado.
Vale ressaltar que não somente no campo material existem garantias
de maneira sólida, mas também no campo formal, tendo em vista a repre-
sentatividade popular dos membros do Poder Legislativo, a qualificação e
rigidez do processo legislativo e a garantia dos direitos políticos relaciona-
dos ao sufrágio, que atuam como um mecanismo democrático.
O constitucionalismo, portanto, sendo a Lei maior dentro de um
Estado, garante e assegura, devido suas disposições, que os direitos fun-
damentais referente ao direito à democracia, sejam executados, impossi-
bilitando que os regimes extremistas acabem por impor suas ideologias
legalmente.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BAROSSO, Luís Roberto. O Constitucionalismo Democrático no Bra-


sil: crônica de um sucesso imprevisto. Migalhas. In: <https://www.
migalhas.com.br/depeso/168919/o-constitucionalismo-democra-
tico-no-brasil-cronica-de-um-sucesso-imprevisto> Acesso em: 31
ago. 2020

BOBBIO, Norberto. Direita e esquerda: razões e significados de uma


distinção política. 3ª edição. São Paulo: Editora Unesp, 2011.

142
LU I Z A N TÔ N I O R E I S J U N I O R , M A U R I C I O P I R E S G U E D E S , T E L S O N P I R E S ,
VA N E S S A V E L A S C O, H E R N A N D E S B R I TO R E I S ( O R G . )

BRASIL. Constituição da República Federativa no Brasil de 1988.


Brasília, DF, Presidência da República, 2020. In: < http://www.
planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicaocompilado.htm>
Acesso em: 03 de set de 2020.

CARTLEDGE, Paul. The Democratic Experiment. BBC History. In:


<http://www.bbc.co.uk/history/ancient/greeks/greekdemocracy_01.
shtml>. Acesso em: 28/08/2020

COMPARATO, Fabio Konder. A afirmação histórica dos direitos


humanos. 10 edição. São Paulo: Saraiva, 2015

GUERRA, Sidney. Direitos humanos: curso elementar. 5 edição. São


Paulo: Saraiva, 2017.

LENZA, Pedro. Direito Constitucional esquematizado. 24 edição.


São Paulo: Saraiva Educação, 2020.

LAFAYATTE, Pedro. As tendências políticas de Nietzsche. Revista


Carioca, 1942. In:<https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_ar-
ttext&pid=S2316-82422016000300080#:~:text=Resumo%3A,-
como%20expoente%20reacion%C3%A1rio% 20de%20direita.>
Acesso em: 28 ago. 2020

MARTINS, Flávio. Curso de Direito Constitucional. 4 edição. São


Paulo: Saraiva Educação, 2020).

MENDES, Gilmar Ferreira; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet Branco.


Curso de Direito Constitucional. 13 edição. São Paulo: Saraiva
Educação, 2018.

MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 36 edição. São Pau-


lo: Atlas, 2020.

MORAES, Guilherme Peña de. Curso de Direito Constitucional. 12


edição. São Paulo: Atlas 2020.

REDECKER, Ana Cláudia. Seguridade social. In: BONAVIDES, Pau-


lo; MIRANDA, Jorge; AGRA, Walber de Moura. Comentários
à Constituição Federal de 1988. Rio de Janeiro: Forense, 2009.

143
DIMENSÕES JURÍDICAS DAS POLÍTICAS PÚBLICAS – VOL. 1

REIS, Maria Dulce. DEMOCRACIA GREGA: A ANTIGA ATENAS


(séc. V a. C. ). Sapere Aude, v. 9, n. 17, p. 45-66, 13 jul. 2018.

SILVA, Wainer Antonio; MORAIS, Renato Almeida de. Direita e es-


querda no pensamento de Norberto Bobbio. Agenda Política.
Revista de Discentes de Ciência Política da Universidade Federal de
São Carlos Volume 7, Número 1, São Carlos, 2019.

SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. ADI nº 2076, 2002. In:<


http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&do-
cID=375324> Acesso em: 03 de set de 2020.

STRECK, Lenio Luiz; MORAIS, Jose Luis Bolzan de. Ciência Política
e Teoria do Estado. 8ª edição. Porto Alegre: Livraria do Advoga-
do, 2014.

ZOLO, Danilo; COSTA, Pietro. O Estado de Direito: história, teoria,


crítica. 1 edição. São Paulo, Martins Fontes, 2006.

144
O ATIVISMO JUDICIAL NO
CONTROLE DAS POLÍTICAS
PÚBLICAS DE SAÚDE NA PANDEMIA
DO COVID-19
Thales Ferreira Leite31

INTRODUÇÃO

Em dezembro de 2019, o novo coronavírus (SARS-CoV-2) foi iden-


tificado na China e, desde então, sua disseminação no mundo ocorreu
de forma exponencial de modo que, em março de 2020, a Organização
Mundial de Saúde definiu o surto da doença como pandemia. A crise
sanitária causada pela pandemia do COVID-19 trouxe consigo um estado
de anormalidade ainda não enfrentado pela atual geração. A doença vem
alcançando números assustadores. No Brasil, as mortes já beiram, segun-
do Cardim et al (2020), o número de 100 mil, enquanto o número de
infectados vai chegando aos 3 milhões.
A crise sanitária traz consigo um aumento da já grande responsabi-
lidade dos gestores públicos no trato com as políticas públicas. A área as-
sistencial da saúde, já de vital importância, torna-se ainda mais o foco de
todas as atividades, seja com investimentos diretos, seja na economia e
corte de gastos em outras áreas. Soma-se à isso a grande incerteza no com-
bate à tal doença: não há consenso científico quanto ao seu tratamento, o
que dificulta ainda mais as decisões acerca dos investimentos no combate.

31 Graduando de Direito da Universidade do Estado do Amazonas.

145
DIMENSÕES JURÍDICAS DAS POLÍTICAS PÚBLICAS – VOL. 1

O Poder Judiciário e os órgãos de controle deverão considerar todos


esses fatores ao decidir acerca da legalidade das políticas públicas, princi-
palmente considerando os artigos 22 e 28 da LINDB, bem como a po-
lêmica Medida Provisória nº 966 que modifica o regime jurídico da res-
ponsabilização civil e administrativa dos agentes públicos em suas decisões
quanto à emergência de saúde pública e aos efeitos econômicos oriundos
da crise.
O presente artigo tratará inicialmente do ativismo judicial, seu con-
ceito e discussões sobre o tema. Posteriormente, serão brevemente elu-
cidadas as questões relativas a direito à saúde e, por fim, uma análise dos
limites do controle judicial dessas políticas públicas.
O método utilizado na construção do estudo foi a pesquisa bibliográ-
fica através de livros, matérias, artigos e resumos, assim como a análise de
leis e de algumas decisões do Supremo Tribunal Federal (STF). A preten-
são é demonstrar que a pandemia do COVID-19 causou mudanças nos
critérios utilizados no controle das políticas públicas da saúde.

1 ATIVISMO JUDICIAL

Historicamente, a divisão dos três poderes e a independência do Judi-


ciário ocorreram após a revolução francesa. Nesse contexto de implemen-
tação de um estado liberal, buscava-se um direito pautado na legalidade
estrita, palco dos juízes “boca da lei”. Não se permitia aos julgadores a
atividade criativa, ficando a criação de leis, discussão de princípios éticos e
a política restritas ao legislador. Na aplicação da lei, buscava-se a intenção
do legislador, inclusive. Não por acaso, é esse o momento histórico em
que surgem a escola da exegese, assim como o positivismo jurídico, cor-
rente que sustenta a completude do ordenamento jurídico.
Nesse contexto de completa desconfiança em relação ao Estado, sur-
ge a imparcialidade do juiz. Segundo Garau et al (2015, p. 196):

Por esse princípio, o magistrado, ora mero aplicador do direito,


deve valer-se unicamente da interpretação literal da norma, isen-
tando-se de suas subjetividades, exercendo, portanto, atividade
mecânica e vinculada, resultante dos textos legais que deveriam ser
claros e objetivos.

146
LU I Z A N TÔ N I O R E I S J U N I O R , M A U R I C I O P I R E S G U E D E S , T E L S O N P I R E S ,
VA N E S S A V E L A S C O, H E R N A N D E S B R I TO R E I S ( O R G . )

Com a derrocada do modelo liberal (principalmente com a crise de


29 e a Segunda Guerra Mundial), houve a ascensão do modelo de Estado
de Bem-Estar Social. Esse, juntamente com as constituições sociais, trou-
xe consigo a missão do Poder Público de agir ativamente (prestações po-
sitivas) de modo a diminuir as desigualdades entre os cidadãos, assumindo
o dever de prover a esses diversos direitos sociais. No Brasil, por exemplo,
cabe ao Poder Público promover, conforme o art. 6º da Constituição Fe-
deral de 1988, a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o
transporte, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à materni-
dade e à infância, a assistência aos desamparados.
Essa preocupação em promover direitos sociais aos cidadãos já não é
mais compatível com a separação clássica dos Poderes estatais. O contexto
exige um juiz que não seja tão passivo frente ao caso concreto, devendo
aplicar as normas de direito material e efetivar a tutela dos direitos, prin-
cipalmente os previstos na Constituição. É a responsabilidade política do
Poder Judiciário, em que os julgadores devem buscar o interesse coletivo
e os ideais de justiça social.
Coelho (2015, p. 5), em análise à obra Espírito das Leis (marco teóri-
co da divisão do Estado em três Poderes), afirma:

À primeira vista, numa interpretação literal desse texto clássico,


poder-se-ia dizer que o ativismo judicial, na medida em que im-
plica a criação de normas jurídicas – ainda que somente para a so-
lução de casos concretos, configura procedimento vedado à magis-
tratura, qual seja, a invasão de competência própria do Legislativo.
Uma reflexão mais acurada, no entanto, acabará justificando certo
incremento dessa criatividade – inclusive nos sistemas jurídicos
de tradição continental –, chegando mesmo a evidenciar que essa
suposta usurpação de poder se mostra indispensável para realizar
a Constituição e tornar efetiva a defesa dos direitos fundamentais
contra eventuais agressões do legislador.

Sob a ótica do direito constitucional, o controle das políticas pú-


blicas e o próprio ativismo judicial são intimamente relacionados ao neo-
constitucionalismo. Esse último, por sua vez, segundo Barcellos (2004, p.
85), tem como características, do ponto de vista material:

147
DIMENSÕES JURÍDICAS DAS POLÍTICAS PÚBLICAS – VOL. 1

(i) a incorporação explícita de valores e opções políticas nos textos


constitucionais, sobretudo no que diz respeito à promoção da dig-
nidade humana e dos direitos fundamentais; e (ii) a expansão de
conflitos específicos e gerais entre as opções normativas e filosófi-
cas existentes dentro do próprio sistema constitucional.

Prossegue a autora afirmando que as ações positivas do Poder Público


buscando efetivar os fins previstos na Constituição podem ser colocados em
prática através das políticas públicas (BARCELLOS, 2004, p. 90). Como
existe um caráter prioritário em certas finalidades constitucionais, assim
como há escassez de recursos a serem empregados na sua persecução, a for-
ma como são executadas tais políticas públicas não é totalmente restrita ao
meio de discussão político, afinal, há a incidência de normas jurídicas. Res-
ta claro, portanto, o fundamento ao controle das políticas públicas.
O ativismo judicial é definido por Galvão (2015, p. 90) como

um comportamento proativo (e, por raras vezes, antecipador à


função típica dos demais poderes constituídos do Estado), desem-
penhado pelo Judiciário (especialmente, em termos da jurisdição
constitucional), mediante procedimento interpretativo-consti-
tucional, com a justificativa de suprir ou corrigir deficiências ou
insuficiências posturais das demais funções estatais (legislativa e
administrativa), tendo o nítido escopo de melhor garantir, a partir
de decisões judiciais, a correspondência do Estado com os valores
albergados nas normas constitucionais (em especial, as normas-
-princípio), principalmente os ligados à proteção e ao aprimora-
mento dos direitos fundamentais e ao controle e/ou à racionalidade
do exercício do poder estatal.

Galvão (2015, p. 91) afirma que essa atividade jurisdicional proativa


justifica-se muitas vezes pela falta de atividade legislativa ou até mesmo
má técnica na elaboração das leis por parte do Legislativo, enquanto o
Executivo acaba, por vezes, utilizando-se da discricionariedade e do mé-
rito administrativo para camuflar sua inércia. No mesmo sentido, GA-
RAU et al (2015) afirma que “o ativismo judicial está relacionado com a
incapacidade das instituições políticas de oferecer espaço para a realização
das demandas populares.”

148
LU I Z A N TÔ N I O R E I S J U N I O R , M A U R I C I O P I R E S G U E D E S , T E L S O N P I R E S ,
VA N E S S A V E L A S C O, H E R N A N D E S B R I TO R E I S ( O R G . )

Importante pontuar que o ativismo judicial gera grandes discussões


acerca de sua legitimidade. Por exemplo, Streck (2012, apud LIMBER-
GUER et al, 2017, p. 268), aponta que há má utilização de certas teorias
alienígenas (ponderação alexyana, jurisprudência de valores e ativismo
judicial norte-americano), bem como a utilização do neoconstituciona-
lismo, em nosso ordenamento, como um álibi para o voluntarismo e de-
cisionismo.
Limberguer et al (2017, p. 283) também afirmam que

O ativismo judicial no STF e sua replicação nas demais cortes en-


fraquece a Constituição e desafia o Estado Democrático de Di-
reito, influindo diretamente no sentido do texto normativo, ali-
cerçado, hoje pelo neoconstitucionalismo tal qual adotado, tão
entusiasmadamente, pela doutrina nacional.

E continuam:

As Cortes nacionais estão demonstrando uma posição ativista sem


qualquer tipo de limite interpretativo, não respeitando sequer os li-
mites semânticos do texto constitucional, com fundamento numa
ideia concretista desarrazoada, utilizando os princípios constitu-
cionais como um álibi para a discricionariedade neoconstitucional.

Insta salientar que o ativismo a ser tratado no presente trabalho refe-


re-se somente ao contexto das políticas públicas, e é limitado pela regras
e princípios constitucionais. Esse pensamento se assemelha ao de Streck
(2013, p. 82) sobre a decisão adequada constitucionalmente, que “exsur-
girá da reconstrução do Direito, com efetivo respeito à integridade e à
coerência”, que não pode se originar de uma “opção política por valores”.
Outro ponto a ser assinalado diz respeito à diferença entre a judiciali-
zação e o ativismo. Barroso (2012, p. 25) explica que

A judicialização, no contexto brasileiro, é um fato, uma circuns-


tância que decorre do modelo constitucional que se adotou, e não
um exercício deliberado de vontade política. […] Já o ativismo ju-
dicial é uma atitude, a escolha de um modo específico e proativo
de interpretar a Constituição, expandindo o seu sentido e alcance.

149
DIMENSÕES JURÍDICAS DAS POLÍTICAS PÚBLICAS – VOL. 1

Acrescenta, ainda, que o fenômeno da judicialização decorre, dentre


outros fatores, da constitucionalização abrangente presente em nosso or-
denamento e do sistema de controle de constitucionalidade que permite
que diversas matérias sejam levadas ao STF (BARROSO, 2012, p. 24).
É enorme a repercussão do ativismo judicial no controle das políti-
cas públicas, ainda mais quando estas são relacionadas à área da saúde em
tempos de pandemia, onde a população necessita de uma ação conjunta
dos Poderes Públicos na busca pela mais rápida e eficiente saída da crise
sanitária.

2 O DIREITO SOCIAL À SAÚDE

Já em 1948, observava-se no Direito Internacional uma preocupa-


ção com a saúde, conforme consubstanciado na Declaração Universal dos
Direitos Humanos (1948), que prevê em seu artigo XXV que todo ser
humano tem direito, dentre outras coisas, a saúde, cuidados médicos e
segurança em caso de doença.
A Constituição Federal de 1988 prevê tal direito em seu artigo 6°,
bem como outros direitos sociais. No artigo 194 da CF/88, ordena o
constituinte que o direito à saúde será assegurado pela seguridade social,
que por sua vez consiste em um conjunto interligado de ações dos Pode-
res Públicos e da sociedade. Já o 195 determina que toda a sociedade, de
forma direta e indireta, deverá financiar a seguridade social, por meio de
recursos consignados nos orçamentos de cada ente da federação e, tam-
bém, por fundos provenientes de contribuições sociais.
Em se tratando especificamente do direito à saúde, a Carta Magna
prevê:

Art. 196. A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido


mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do
risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitá-
rio às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação.

A natureza jurídica de direito subjetivo da saúde já decorre do fato de


ser um direito fundamental, não obstante, tal qualidade é reafirmada pelo
artigo 196.

150
LU I Z A N TÔ N I O R E I S J U N I O R , M A U R I C I O P I R E S G U E D E S , T E L S O N P I R E S ,
VA N E S S A V E L A S C O, H E R N A N D E S B R I TO R E I S ( O R G . )

Importante para a presente discussão o lecionado por Afonso (2008, p.


139), ao afirmar que o direito à saúde é uma norma de caráter programático
pois “não impõe propriamente ao legislador a tarefa de atuá-las, mas reque-
rem uma política pertinente à satisfação dos fins positivos nela indicados”.
Não obstante seu caráter programático, é totalmente possível que os
órgãos de controle que cobrem do Poder Público atuações na área. Logo,
há a incidência do Judiciário e, quando necessário e dentro das limitações
do ordenamento, do ativismo judicial. Esse último deve ser revisto quan-
do em contraste com as atuações administrativas em tempos de pandemia,
posto que esta impõe a todos um cenário de tomada de decisões comple-
tamente anormal, e que deve ser levado em consideração por qualquer
tipo de controle.

3 LIMITES DO ATIVISMO JUDICIAL NO CONTROLE


SOBRE AS POLÍTICAS PÚBLICAS DE SAÚDE NA
PANDEMIA DO COVID-19

Em se tratando do controle das políticas públicas e principalmente


do ativismo judicial, discute-se acerca de uma eventual invasão do Poder
Judiciário no chamado mérito administrativo. Grinover (2010, p. 12), ao
analisar a possibilidade prevista pela Constituição Federal de ação popular
contra ato lesivo à moralidade administrativa, afirma que esse controle não
pode ser feito sem que se examine o mérito do ato impugnado.
Interessante pensamento da mesma autora ao fundamentar o controle
das políticas públicas: os objetivos fundamentais previstos no art. 3° da CF
(somados à prevalência dos direitos humanos do art. 4°) obrigam o Estado
a se organizar de modo a prover a prestação desses direitos, o que é feito
com as políticas públicas (GRINOVER, 2010, p. 12). O poder estatal é
uno, a divisão em “Poderes” é um instrumento para alcançar suas as fi-
nalidades. Tais Poderes devem ser harmônicos entre si ao buscarem esses
objetivos fundamentais, o que legitima o Poder Judiciário a investigar o
fundamento das políticas públicas (GRINOVER, 2010, p. 13).
Nesse contexto, Canela Junior (2010, p. 69) conceitua políticas pú-
blicas como “um conjunto de normas (Poder Legislativo), atos adminis-
trativos (Poder Executivo) e decisões (Poder Judiciário) tendentes à reali-
zação dos fins primordiais do Estado”. E continua o autor:

151
DIMENSÕES JURÍDICAS DAS POLÍTICAS PÚBLICAS – VOL. 1

Como toda atividade exercida pelo Poder Executivo e pelo Poder


Legislativo deve compatibilizar-se com a Constituição Federal,
cabe ao Poder Judiciário analisar, em qualquer situação e desde que
provocado (CF, art. 5º, XXXV), a constitucionalidade respecti-
va. Aquilo que se convencionou chamar de “ato de governo” ou
“questões políticas” deverá ser examinado pelo Poder Judiciário
sob o prisma do atendimento aos fins do Estado (CF, art. 3º).

Como os recursos são finitos e as necessidades infinitas, sempre have-


rão certos direitos sociais a serem priorizados. Assim, ocorrerão hipóteses
em que a promoção de um direito social irá prevalecer sobre a de outro.
Grinover (2010, p. 18-25) indica critérios que servem como norte nessas
análises, quais sejam: garantia do mínimo existencial, a razoabilidade e a
reserva do possível. Tais limites, se observados, impedem os excessos por
parte do Poder Judiciário.
Essa linha de pensamento acerca da intervenção do Judiciário está
presente no STF. Na ADPF 45-9, o Ministro Celso de Mello, sobre a
função de planejar e implementar políticas públicas, afirma

Tal incumbência, no entanto, embora em bases excepcionais, po-


derá atribuir-se ao Poder Judiciário, se e quando os órgãos estatais
competentes, por descumprirem os encargos político-jurídicos
que sobre eles incidem, vierem a comprometer, com tal comporta-
mento, a eficácia e a integridade de direitos individuais e/ou cole-
tivos impregnados de estatura constitucional, ainda que derivados
de cláusulas revestidas de conteúdo programático.

Nesta mesma ADPF, o STF fixou os limites do Judiciário no con-


trole das políticas públicas da seguinte forma: a) mínimo existencial (bem
indispensável à dignidade humana); b) reserva do possível (existência de
recursos financeiros); e c) razoabilidade. Mais recentemente o mesmo
Tribunal tem decidido que a reserva do possível não pode ser oposta ao
mínimo existencial, conforme Recurso extraordinário (RE) n. 482.611.
Esses limites à atuação jurisdicional no controle das políticas públicas
apontados por Grinover e pelo STF devem ser mantidos nos tempos de
pandemia frente às possíveis ações impugnando os atos administrativos. Po-
rém, é importante fazer algumas ressalvas que decorrem do contexto fático.

152
LU I Z A N TÔ N I O R E I S J U N I O R , M A U R I C I O P I R E S G U E D E S , T E L S O N P I R E S ,
VA N E S S A V E L A S C O, H E R N A N D E S B R I TO R E I S ( O R G . )

O mínimo existencial, por exemplo, acaba por se tornar mais oneroso


ao Estado, haja vista que o COVID-19 exige, para o tratamento em massa,
além de outros equipamentos e medicamentos, as Unidades de Tratamen-
to Intensivo (UTI’s) e respiradores. É fato notório que esses equipamentos
possuem um alto custo, que inclusive tendem a subir devido a grande de-
manda. Esse valor elevado acaba por colidir diametralmente com a reserva
do possível jurídica, afinal, as leis orçamentárias não previram os enormes
gastos com a pandemia.
A razoabilidade também deve ser considerada. Afinal, é possível e
razoável, por exemplo, exigir do Poder Público que disponibilize trata-
mento eficaz contra a tuberculose. O mesmo não pode ser dito sobre o
COVID-19, afinal, nem mesmo os especialistas e pesquisadores chegaram
a consensos acerca da cura, em que pese algumas afirmações positivas com
usos de certos medicamentos. O próprio Ministério da Saúde (2020, p.
33) afirma que “até o momento, não existem evidências robustas de alta
qualidade que possibilitem a indicação de uma terapia farmacológica es-
pecífica para a COVID-19.”.
Em que pese as alegações sobre a reserva do possível jurídica, bem
como a razoabilidade, entendemos que, se provocado, deve o judiciário
agir ativamente de modo a concretizar o direito à saúde nos tempos de
pandemia. A reserva do possível fática permite que a realidade prevista
no orçamento seja revista, afinal, dentro dos direitos sociais prioritários,
a saúde subiu diversos degraus na crise sanitária, enquanto outros gastos
acabaram perdendo posições nessa “hierarquia”. Essa alteração, por ób-
vio, seria de forma totalmente legitimada, pois seria amplamente discutida
pelo Poder Legislativo e pela sociedade. No entanto, a omissão legislativa,
se de fato ocorrer, deve ser impugnada frente ao Judiciário.
Quanto à razoabilidade, conforme já dito, prosperam os entendimen-
tos de que não se pode exigir do Poder Público um tratamento efetivo
buscando a cura da doença. Não obstante, podem ser exigidos o chamado
tratamento sintomático e as medidas de suporte. Segundo o Ministério da
Saúde (2020, p. 32):

O tratamento sintomático compreende opções para o controle da


febre, dor, tosse seca e náusea (88–90). Dessa forma, sugere-se a
utilização de antipiréticos, analgésicos, antitussígenos/expectoran-

153
DIMENSÕES JURÍDICAS DAS POLÍTICAS PÚBLICAS – VOL. 1

tes e antieméticos, sempre que haja indicação clínica, respeitando


o quadro do paciente e as contraindicações adjacentes

Não há aqui uma defesa à tese procedimentalista. No entanto, nas


demandas com o objeto do presente estudo deve ser aplicado o critério
apontado por Barroso (2009, p. 47-50) no contexto das ações relativas
a assistência farmacêutica, afirmando que nas demandas individuais “a
atuação jurisdicional deve ater-se a efetivar a dispensação dos medicamen-
tos constantes das listas elaboradas pelos entes federativos”, enquanto nas
coletivas pode o judiciário buscar uma “alteração das listas”. Ou seja, nas
ações individuais, deve o Poder Judiciário decidir observando o previsto
nas leis orçamentárias, enquanto nas ações coletivas a solução deve levar
em consideração realocar recursos de modo a garantir para o coletivo as
políticas públicas necessárias.
Nesse sentido é interessante a lição de Grinover (2010, p. 24-25)

o Judiciário, em face da insuficiência de recursos e de falta de pre-


visão orçamentária, devidamente comprovadas, determinará ao
Poder Público que faça constar da próxima proposta orçamentária
a verba necessária à implementação da política pública. E, como
a lei orçamentária não é vinculante, permitindo transposição de
verbas, o Judiciário ainda deverá determinar, em caso de descum-
primento do orçamento, a obrigação de fazer consistente na im-
plementação de determinada política pública (a construção de uma
escola ou de um hospital, por exemplo).

Logo, considerando as políticas públicas de saúde na pandemia do


COVID-19 - uma das maiores crises sanitárias da história do mundo, que
já matou mais de 100 mil pessoas só no Brasil - é totalmente legítimo que
o Poder Judiciário, se provocado e observando os limites aqui expostos,
tome decisões mais ativas de modo a assegurar o direito à saúde.

CONCLUSÃO

O neoconstitucionalismo positivando e dando força normativa aos


princípios, juntamente com a busca pelo fim do juiz “boca da lei”, cul-
minaram no desenvolvimento da atuação jurisdicional que passou a ser

154
LU I Z A N TÔ N I O R E I S J U N I O R , M A U R I C I O P I R E S G U E D E S , T E L S O N P I R E S ,
VA N E S S A V E L A S C O, H E R N A N D E S B R I TO R E I S ( O R G . )

chamada de ativismo judicial. Data vênia as posições contrárias, conside-


rando os objetivos constitucionais, bem como a necessidade do Estado
agir positivamente para dar concretude aos direitos sociais, entendemos
que o ativismo judicial, limitado sempre pelas normas do ordenamento
e por uma interpretação constitucional, não interfere na divisão dos três
Poderes, na medida em que atua na omissão ou mesmo na ação ilícita dos
órgãos responsáveis pelas políticas públicas.
A pandemia do COVID-19, com todas as suas incertezas relativas
à tratamento e prevenção, trouxe consigo um estado de anormalidade
poucas vezes visto pela sociedade. Pandemia esta em que os números já
ultrapassam, segundo G1 (2020), 124 mil mortes e 4 milhões de infec-
tados. Nesse contexto de crise sanitária, o direito social a saúde acabou
se tornando foco nas discussões doutrinárias, políticas e jurisprudenciais.
O controle judicial das políticas públicas fundamenta-se na tese de
que os objetivos fundamentais previstos na Constituição devem ser bus-
cados por todos os três Poderes, ficando o Judiciário restrito às hipóte-
ses de omissão ou má execução pelas outras esferas, além de depender de
provocação. Conforme apontado por Grinover e pelo STF, encontra seus
limites na reserva do possível, mínimo existencial e na razoabilidade. Esses
conceitos, em tempos de pandemia e no controle das políticas públicas de
saúde, acabam por abarcar algumas peculiaridades apontadas neste traba-
lho que permitem uma atuação mais ativa do Poder Judiciário, que deve
sempre observar os princípios e regras da Constituição.
Por fim, resta claro que a postura ativista do judiciário, desde que
observando os limites demonstrados neste trabalho, gera bons resultados
na busca pelos objetivos do artigo 3° da Constituição e na efetivação dos
direitos sociais.

REFERÊNCIAS

BARROSO, Luís Roberto. Da falta de efetividade à judicialização exces-


siva: direito à saúde, fornecimento gratuito de medicamentos e parâ-
metros para a atuação judicial. Jurisp. Mineira, Belo Horizonte, v.
60, n. 188, p. 29-60, jan./mar., 2009.

BARROSO, Luís Roberto. Judicialização, ativismo judicial e legitimida-


de democrática. (Syn) thesis, v. 5, n. 1, p. 23-32, 2012.

155
DIMENSÕES JURÍDICAS DAS POLÍTICAS PÚBLICAS – VOL. 1

BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federati-


va do Brasil. Texto Constitucional promulgado em 5 de outubro de
1988. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/cons-
tituicao/constituicao.htm>. Acesso em: 18 de ago. 2020.

______. Supremo Tribunal Federal. Arguição de Descumprimento


de Preceito Fundamental n. 45. Relator(a): Min. CELSO DE
MELLO. Brasília, 29 de abril de 2004. Diário da Justiça, Brasília, 04
maio 2004.

Brasil passa de 4 milhões de casos confirmados de Covid-19 e se


aproxxima de 124 mil mortes. Disponível em: <https://g1.glo-
bo.com/bemestar/coronavirus/noticia/2020/09/02/casos-e-mortes-
-por-coronavirus-no-brasil-em-2-de-setembro-segundo-consor-
cio-de-veiculos-de-imprensa.ghtml>. Acesso em 03 set. 2020.

CANELA JUNIOR, Osvaldo. A efetivação dos direitos fundamen-


tais através do processo coletivo: o âmbito de cognição das polí-
ticas públicas pelo Poder Judiciário. 2009. Tese de Doutorado. Uni-
versidade de São Paulo.

CARDIM, Maria Eduarda; LIMA, Bruna. Brasil registra mais 53.139


casos e 1.237 mortes por coronavírus. Disponível em: <https://
www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/brasil/2020/08/06/
interna-brasil,879111/brasil-registra-mais-53-139-casos-e-
-1-237-mortes-por-coronavirus.shtml>. Acesso em: 18 de ago.
2020.

COELHO, Inocêncio Mártires. Apontamentos para um debate sobre o


ativismo judicial. Revista Brasileira de Políticas Públicas, v. 5,
n. 2, 2015.

DE BARCELOS, Ana Paula. Neoconstitucionalismo, direitos funda-


mentais e controle das políticas públicas. Revista de direito admi-
nistrativo, v. 240, p. 83-105, 2005.

DECLARAÇÃO UNIVERSAL DOS DIREITOS HUMANOS


(1948). Declaração Universal dos Direitos Humanos. Disponí-
vel em: <http://www.dhnet.org.br>. Acesso em: 15 mai. 2020.

156
LU I Z A N TÔ N I O R E I S J U N I O R , M A U R I C I O P I R E S G U E D E S , T E L S O N P I R E S ,
VA N E S S A V E L A S C O, H E R N A N D E S B R I TO R E I S ( O R G . )

DI BENATTI GALVÃO, Ciro. Ativismo judicial: o contexto de sua


compreensão para a construção de decisões judiciais racionais. Re-
vista Brasileira de Políticas Públicas, v. 5, n. 2, p. 89--99, 2015.

Existe algum tratamento específico para COVID-19?. Disponível


em: <https://www.ufrgs.br/telessauders/posts_coronavirus/existe-
-algum-tratamento-especifico-no-tratamento-da-infeccao-por-
-COVID-19/>. Acesso em 28 ago. 2020.

GARAU, Marilha Gabriela Reverendo; MULATINHO, Juliana Pessoa;


REIS, Ana Beatriz Oliveira. Ativismo judicial e democracia: a atua-
ção do STF e o exercício da cidadania no Brasil. Revista Brasileira
de Políticas Públicas, v. 5, n. 2, p. 191-206, 2015.

GRINOVER, Ada Pellegrini. Ensaio sobre a processualidade: fun-


damentos para uma nova teoria geral do processo. Brasília: Gazeta
Jurídica, 2016.

GRINOVER, Ada Pellegrini. O controle das políticas públicas pelo Po-


der Judiciário. Revista do Curso de Direito, v. 7, n. 7, p. 9-37,
2010.

LIMBERGER, Têmis; NOGUEIRA, Alexandre de Castro. Neoconsti-


tucionalismo: o alicerce do ativismo judicial brasileiro/Neoconstitu-
cionalism: the foundation of the brazilian judicial activism. Revista
Direito e Liberdade, v. 19, n. 1, p. 263-289, 2017.

MINISTÉRIO DA SAÚDE. Coronavírus COVID-19: diretri-


zes para diagnóstico e tratamento da COVID-19. Disponí-
vel em: <https://sbim.org.br/images/files/notas-tecnicas/ddt-CO-
VID-19-200407.pdf>. Acesso em: 14 de ago. 2020.

SILVA, José Afonso da. Aplicabilidade das normas constitucionais.


7. ed. São Paulo: Malheiros, 2008.

STRECK, Lênio Luiz. Hermenêutica e princípios da interpretação cons-


titucional. In: CANOTILHO. J. J. Gomes et al. (Coord.). Comen-
tários à Constituição do Brasil. São Paulo: Saraiva; Almedina,
2013.

157
O PODER NORMATIVO DAS
AGÊNCIAS REGULADORAS E A
DEFINIÇÃO DE “DROGAS” PELA
ANVISA COMO COMPLEMENTO DE
NORMA PENAL INCRIMINADORA.
Márcio Antônio Alves de Oliveira
Marco Aurélio de Jesus Pio
Carlos Humberto Naves Junior
Célio Roberto Pinto de Araújo32

1 INTRODUÇÃO

Hodiernamente, nossa Carta Magna, entrega formalmente direitos e


garantias a todos os cidadãos, entretanto, para a realização e materialização
destes direitos é fundamental que o Estado propicie políticas públicas, nas
mais diversas áreas, que visem mitigar os problemas sociais através de pla-
nejamento, assistência, prestação de serviços, criação de normas e garantia
de paz, justiça e harmonia social.
Paralelamente, a chamada administração gerencial, constitui forma de
gestão pela qual o Estado passa a atuar de modo direto e minimamente,
franqueando à iniciativa privada a prestação de serviços públicos lato sensu e
reservando ao Poder Público a consecução em geral, de atividades relacio-
nadas ao denominado “poder de império”, a exemplo da administração tri-
butária e segurança pública, nas quais por regra reina o “poder de polícia”.

32 Doutorandos em Direito pela Universidade Veiga Almeida.

158
LU I Z A N TÔ N I O R E I S J U N I O R , M A U R I C I O P I R E S G U E D E S , T E L S O N P I R E S ,
VA N E S S A V E L A S C O, H E R N A N D E S B R I TO R E I S ( O R G . )

Serviços como telecomunicações, distribuição de energia elétrica, pe-


tróleo e gás, correios e telégrafos dentre outros, passaram a ser prestados
como prenunciado, pelo setor privado, tal “onda” tornou-se crescente
com a reforma administrativa promovida pela Emenda Constitucional
20/1998, o que agigantou ainda mais grandes conglomerados empresa-
riais, frente aos consumidores e ao próprio Estado.
Neste cenário, com origem norte-americana, em certa medida tra-
zida para o Brasil, surgiram as denominadas “agências reguladoras”,
entes estatais autônomos que possuem por mister, em apertada sínte-
se, fiscalizar a prestação dos serviços públicos pelas grandes empresas,
preservando a qualidade e os direitos dos consumidores, sujeitos mais
vulneráveis dessa relação denominada tripartida: Estado, agências regu-
ladoras e consumidores.
As agências reguladoras, também funcionam como instrumento para
geração dessas políticas públicas e, nesta esteira, as políticas públicas de
saúde e políticas criminais voltadas à prevenção e combate ao uso e tráfico
de drogas trazem diversos embates jurídicos, políticos e sociais que requer
estudo e pesquisa detalhada. Uma destas questões que se põe em xeque,
trata-se da determinação do que constitui droga para fins de aplicação do
direito penal, em que através de norma penal em branco, o legislador au-
toriza que agência reguladora possa complementar a legislação criminal.
Assim, o objetivo deste artigo é analisar a legalidade e constituciona-
lidade da autorização dada à ANVISA para que através de ato administra-
tivo possa complementar legislação criminal relativo às drogas.
Inicialmente, será estudado a origem, características e fundamentos
legais das agências reguladoras e o seu poder normativo que presta im-
portante papel no cenário nacional no que tange ao combate ao uso e
disseminação de substâncias entorpecentes.
Em seguida, debruçar-se-á, sobre a questão das normas penais em
branco e a possibilidade de utilizá-la no complemento da norma penal
incriminadora, analisando sua constitucionalidade, legalidade e função
social. Neste prisma, discutir-se-á noções básicas da tarefa regulatória de-
sempenhadas pelas agências reguladoras como inserta na administração
gerencial para então buscar-se solução para os questionamentos apresen-
tados neste introito, máxime a questão do “poder regulador” no combate
ao tráfico de entorpecentes, expondo-se as posições doutrinárias e juris-

159
DIMENSÕES JURÍDICAS DAS POLÍTICAS PÚBLICAS – VOL. 1

prudenciais a respeito da temática e a corrente entendida como a mais


razoável pelos autores deste singelo estudo.
Como metodologia para este trabalho foi utilizado o conhecimento
científico e filosófico, com método hipotético-dedutivo e dialético. Tra-
tando-se, pois de uma pesquisa qualitativa, aplicada, explicativa e biblio-
gráfica, posto que foi efetivada a partir do levantamento de referenciais
teóricos publicados por meios escritos e eletrônicos.

2 O PODER NORMATIVO DAS AGÊNCIAS


REGULADORAS

Inicialmente é importante tratar dos fundamentos relacionados às


agências reguladoras e o seu poder normativo, tratando de suas origens,
conceitos e características, no afã de resgatar alicerces necessários para análi-
se proposta. Assim, a “administração gerencial” surgiu como contrapartida
à “administração burocrática” (BRESSER-PEREIRA, 2006), a qual esta
última se apresenta imiscuída na lentidão, processos enfadonhos e poucos
produtivos, oriundo da noção do “Estado que toma tudo para si”, que de
“tudo quer dar conta”. Já a primeira, mostra-se embebida na ideia de efi-
ciência, de resultados obtidos pela noção de descentralização de tarefas.
No ponto, aquilatando o tema, Oliveira (2015) afirma que logo de-
pois da Primeira Guerra Mundial, um discurso em prol do maior inter-
vencionismo ganhou força a partir da crise econômica americana de 1929,
que evidenciou a insuficiência da autorregulação do mercado, posto que,
houve um declínio do abstencionismo estatal, cuja a intervenção do Esta-
do na economia visava garantir o seu funcionamento adequado, suprir as
falhas do mercado e satisfazer objetivos sociais.
Deste modo, em razão das imperfeições do mercado, diz-se que é de-
ver do Estado corrigir suas falhas, mas o excesso dessa intervenção gerou a
ineficiência das atividades administrativas e a infantilização da sociedade,
diante de um paternalismo estatal e consequente redução da autonomia
das pessoas, o que levou a desregulação da economia (BRESSER-PE-
REIRA, 2006; OLIVEIRA, 2015) . Neste sentido:

O movimento de ajuste fiscal e de privatizações, iniciado a partir


da década de 1980 na Grã-Bretanha, Estados Unidos e Nova Ze-

160
LU I Z A N TÔ N I O R E I S J U N I O R , M A U R I C I O P I R E S G U E D E S , T E L S O N P I R E S ,
VA N E S S A V E L A S C O, H E R N A N D E S B R I TO R E I S ( O R G . )

lândia, e, no Brasil, na década de 1990, acarretou a reformulação


do papel do Estado, com a diminuição da sua intervenção direta
nas relações econômicas e na prestação de serviços públicos (Esta-
do prestador), e incremento das modalidades de intervenção indi-
reta, por meio da regulação (Estado regulador).

O aparelho estatal foi reduzido e a “Administração Pública buro-


crática” foi substituída pela “Administração Pública gerencial” a
partir da Reforma Administrativa instituída pela EC n. 19/1998.
Enquanto a Administração Pública burocrática se preocupa com
os processos, a Administração Pública gerencial é orientada para
a obtenção de resultados (eficiência), sendo marcada pela descen-
tralização de atividades e pela avaliação de desempenho a partir de
indicadores definidos em contratos (OLIVEIRA, 2015, p. 181).

Assim, foi neste cenário de delegação de serviços à iniciativa privada


que surgiram as agências reguladoras no Brasil, em que o legislador in-
fraconstitucional, optou em estabelecer natureza de autarquias, passan-
do a ter poderes para editar normas nos setores regulados, inclusive com
poder de polícia, no afã de poder solucionar conflitos e aplicar sanções,
visando a redução da politização e influências político-partidárias, o que
gera atuação técnica e maior segurança jurídica ao setor regulado (OLI-
VEIRA, 2015).
Como se nota as agências reguladoras vem sendo constituídas na
forma de autarquias, que são entes públicos (art. 41, inciso IV da Lei
10.406/2002) componentes da denominada Administração Pública Indi-
reta, instituídos por lei, conforme bem define o art. 5º, inciso I, do De-
creto-lei nº 200/67:

Autarquia - o serviço autônomo, criado por lei, com personalidade


jurídica, patrimônio e receita próprios, para executar atividades
típicas da Administração Pública, que requeiram, para seu me-
lhor funcionamento, gestão administrativa e financeira descentra-
lizada. (grifo nosso).

Ora, para desempenhar um “papel regulador” e tendo natureza ju-


rídica de autarquia, indubitavelmente restariam vinculadas ao controle

161
DIMENSÕES JURÍDICAS DAS POLÍTICAS PÚBLICAS – VOL. 1

finalístico33 exercido pelo Poder Executivo, ao controle legislativo (art. 70


caput, CF/88) e judicial (art. 5º, inciso XXXV, CF/88). Visando majorar
a autonomia destas agências de regulação, para o bom desempenho dos
seus respectivos misteres, a doutrina administrativista aponta adequação
ao denominado “regime especial”, por todos. Veja-se o escólio de Ale-
xandrino (2018, p. 208):

A fim de atenuar essa limitação incontornável, o legislador atri-


buiu às atuais agências reguladoras o status de autarquias de regime
especial. Conforme anteriormente explicado, não existe uma de-
finição legal específica de “autarquia sob regime especial”, expres-
são empregada por algumas leis muitas décadas antes de alguém
falar em “agência reguladora” no Brasil. O que se observa é que,
sempre que o legislador desejou conceder prerrogativas especiais
a determinada autarquia, mormente as relacionadas a ampliação
de sua autonomia orçamentária, gerencial e financeira, institui-a
como “autarquia sob regime especial” e estabeleceu, na própria
lei criadora, as características daquele particular “regime especial”.

Em síntese, as agências reguladoras têm sido instituídas sob a forma


de autarquias. Com isso, podem exercer atribuições típicas do po-
der público, uma vez que possuem personalidade jurídica de direito
público. Entretanto, sendo autarquias, integram formalmente a ad-
ministração pública, estando sujeitas a todos os controles constitu-
cionalmente previstos. Para conferir maior autonomia às agências
reguladoras- característica essencial do modelo que se pretendeu im-
portar para o Brasil, o legislador tem atribuído a elas o status de “au-
tarquia sob regime especial”, o que se traduz, nos termos de cada lei
instituidora, em prerrogativas especiais, normalmente relacionadas
à ampliação de sua autonomia orçamentária, gerencial e financeira.

33 Embora a simples natureza de autarquia confira certa independência e autonomia, conti-


nua sendo um órgão do Poder Executivo e portanto sujeito a obedecer os ditames, o mister
funcional que conduziu a respectiva criação da agência reguladora, o que a nível federal é
realizado pelo respectivo ministério e chamado de “controle finalístico” ou de “supervisão”
(art. 87, parágrafo único, inciso I da CF/88) que de modo algum confunde-se com o controle
hierárquico, este existente na estrutura da própria autarquia, mas não entre esta e o ministério
que denominamos de “tutor” (DI PIETRO, 2019; ROSSI, 2020).

162
LU I Z A N TÔ N I O R E I S J U N I O R , M A U R I C I O P I R E S G U E D E S , T E L S O N P I R E S ,
VA N E S S A V E L A S C O, H E R N A N D E S B R I TO R E I S ( O R G . )

A necessidade de aumentar a independência das agências reguladoras


é justamente desvincular as respectivas atuações das influências políticas
invariavelmente ligadas ao Poder Executivo e desta feita repassando mais
confiança ao setor privado regulado que in casu totalmente submetido as
operações das bolsas de valores, sendo consabido a ojeriza do mercado aos
desmandos políticos que fatalmente ocorreriam se os órgãos regulatórios
não gozassem de reforço na autonomia (CHEVALLIER, 2009; OLIVEI-
RA, 2015).
A título de exemplo, certamente investidores do setor de comuni-
cação não comprariam papéis de empresas brasileiras, caso o diretor/pre-
sidente da Agência Nacional de Telecomunicações (ANATEL) pudesse
ser facilmente substituído sempre que contrariasse interesses do governo
vigente. Na mesma esteira, conglomerados empresariais do setor farma-
cêutico, perderiam valor de mercado se a direção da Agência Nacional de
Vigilância Sanitária (ANVISA) em vez de atuar tecnicamente, se subju-
gasse a interesses partidários.
Deste modo uma atividade regulatória independente é essencial para
o exercício dos poderes inerentes (ARAGÃO, 2001), máxime o norma-
tivo a seguir explanado nesse estudo e consequentemente para atração de
investidores e crescimento econômico do país em paridade ao ideal de
uma administração desburocratizada e eficiente.
A propósito, calha observar que a Carta de 1988 não utiliza a expres-
são “agências reguladoras ou regulatórias”, tendo o art. 21, inciso XI e
art. 177, §2º, inciso III da Lex Magna tratado de “órgão regulador” em
clara menção magna à Agência Nacional de Telecomunicações e à Agên-
cia Nacional do Petróleo, as únicas com o que se denomina de “embrião
constitucional”.
Ao tratar da independência das agências reguladoras, insta observar
o teor da Lei nº 9.986/2000 que aborda a questão da gestão dos recursos
humanos, e determina inúmeros requisitos técnicos e o acesso aos cargos
de Presidente, Diretor-Presidente ou Diretor-Geral e os demais membros
do Conselho Diretor ou da Diretoria Colegiada, como sendo um “ato
administrativo complexo”: indicação pelo presidente da república, mas
nomeação somente após aprovação pelo Senado Federal (ROSSI, 2020).
Finca ainda: mandato fixo de 5 (cinco) anos, dificultando as substitui-
ções arbitrárias de dirigentes, busca evitar indicações políticas, determina

163
DIMENSÕES JURÍDICAS DAS POLÍTICAS PÚBLICAS – VOL. 1

a impossibilidade de atividade laboral, em outros termos a contratação por


empresas ligadas ao setor regulado, dentre diversos outras nuances. Esta
última vedação relacionada a denominada “teoria do risco da captura”,
para nós, mais adequadamente “norma” já que positivada no art. 8º da lei
em comento, objetiva impedir que informações adquiridas em funções de
direção da agência reguladora sejam indevidamente utilizadas por uma das
empresas tuteladas (DI PIETRO, 2019; ROSSI, 2020).
Resta a crítica do diminuto período de 6 (seis) meses de quarentena
e merece elogios a possibilidade expressa de responsabilização por crime
de advocacia administrativa (art. 321 do Código Penal), sem prejuízo das
demais sanções cabíveis, administrativas e civis.
Entende-se ser possível, inclusive, a responsabilização por ato de im-
probidade administrativa e os atinentes consectários legais compatíveis
(NEVES; OLIVEIRA, 2020): suspensão dos direitos políticos, a perda da
função pública, a indisponibilidade dos bens e o ressarcimento ao erário34.
Ademais, em se tratando do caso, possível também o enquadramento em
outros tipos penais, como o previsto no art. 317 do Codex Penal (corrup-
ção passiva) cuja pena pode chegar a 12 (doze) anos de reclusão e ainda
aumentada em até a terça parte (art. 327, § 2º do CP).
A encerrar esta seção, importa asseverar que até então cada agência
reguladora, afora obviamente as observações doutrinárias e jurispruden-
ciais, eram regidas por suas respectivas “leis instituidoras”, inexistia uma
norma federal a tratar de todas as agências federais, aquilatando aspectos
“gerais’ relacionados a independência e autonomia gerencial, ou em ou-
tros termos não existia uma “lei geral sobre o regime especial”.
Entende-se, assim, que a Lei nº 13.848 de 25 de junho de 2019 que
alterou este cenário, merece leitura atenta para quem deseja aprofunda-
mento no tema, pois trata sobre a gestão, a organização, o processo deci-
sório e o controle social das agências reguladoras, inclusive no que tange a
parâmetros para edição de atos normativos, objeto da nossa próxima seção
deste artigo. Em outra toada, ousamos humildemente asseverar que a lex
em testilha regula de “modo geral o regime especial”.

34 Os atos de improbidade administrativa são abordados no art. 37, §4º da Constituição


Federal de 1988 e regulados pela Lei 8.429/92.

164
LU I Z A N TÔ N I O R E I S J U N I O R , M A U R I C I O P I R E S G U E D E S , T E L S O N P I R E S ,
VA N E S S A V E L A S C O, H E R N A N D E S B R I TO R E I S ( O R G . )

3 O PODER NORMATIVO DA ANVISA E A (IN)


CONSTITUCIONALIDADE E (I) LEGALIDADE NA
DEFINIÇÃO DE SUBSTÂNCIAS ENTORPECENTES
ATRAVÉS DE PORTARIA DO MINISTÉRIO DA SAÚDE

Como antevisto, para bem desempenhar suas obrigações fiscalizató-


rias, as agências reguladoras são autarquias (ente da administração pública
indireta de maior independência) instituídas sob “regime especial” tendo
a autonomia ampliada, só assim pode, por exemplo, atuar tecnicamente na
aplicação de sanções, inclusive com aplicação de vultuosas multas, inter-
mediar soluções consensuais de conflitos, e o que importa mais de perto
para este estudo: editar normas ou regulamentos.
O assunto é objeto de inúmeras divergências, no tema específico des-
te ensaio as inconsistências são ainda maiores, máxime tendo em lume
o princípio da legalidade, axioma do Direito Penal (BITENCOURT,
2012), um questão se coloca como fundamental: estaria a Agência Nacio-
nal de Vigilância Sanitária (ANVISA) violando este princípio ao definir o
que é ou não entorpecente?
In loci é importante recordar, segundo Rossi (2020) que “atos nor-
mativos” oriundos do Poder Executivo não perfazem novidade em nos-
so ordenamento jurídico e como se viu as agências reguladoras integram
tal poder, mormente a chamada Administração Indireta, compondo-a na
qualidade de entidades de direito público.35 A Carta de 1988, inclusive,
amálgama o poder regulamentar exercido pelo Presidente da República
(art. 84, CF/1988).
Assim, o poder normativo das agências reguladoras decorre das leis
de regência respectiva, de modo geral da recente Lei nº 13.848, de 25 de
junho de 2019, outrora mencionada como da impossibilidade de trato via
regular processo legislativo, de todos os temas afetos a tais órgãos, como se
denotará adiante (DI PIETRO, 2019).
Neste sentido, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA)
foi criada pela Lei nº 9.782/99, na linha do já expandido, sob a forma
de autarquia em regime especial, cariz de sua necessária autonomia, mas
vinculada ao Ministério da Saúde (art. 3º, parágrafo único), para enfren-

35 Diferentemente das empresas públicas e sociedades de economia mista que são entes de
direito privado (ROSSI, 2020).

165
DIMENSÕES JURÍDICAS DAS POLÍTICAS PÚBLICAS – VOL. 1

tamento dos temas de sua competência, definidos no art. 7º e seguintes da


lex. Quanto a isso não existem celeumas, no entanto, interessa ao presente
estudo a competência do órgão para atualizar a lista que define o que é ou
não substância entorpecente.
Explicando-se, o art. 1º, parágrafo único da Lei nº 11.343/2006 (re-
gula o combate ao uso e tráfico de drogas) finca que o conceito de droga
será o estabelecido em lei ou em listas atualizadas periodicamente pelo
Poder Executivo. No mesmo caminho, o art. 14 do Decreto 5.912/2006
que regulamentou a norma epigrafada, atribuiu ao Ministério da Saúde
tal mister. O art. 66 da Lei nº 11.343/2006 fazendo menção ao art. 1º da
mesma norma, foi ainda mais expresso, verbis:

Para fins do disposto no parágrafo único do art. 1º desta Lei, até


que seja atualizada a terminologia da lista mencionada no preceito,
denominam-se drogas substâncias entorpecentes, psicotró-
picas, precursoras e outras sob controle especial, da Porta-
ria SVS/MS nº 344, de 12 de maio de 1998. (Grifo nosso)

Assim, tal competência fora exercida através da publicação da Portaria


nº 344/1998 da Secretaria de Vigilância Sanitária do Ministério da Saúde,
que é atualizada periodicamente justamente pela ANVISA e, no anexo
I, define as variadas substâncias entorpecentes (GONÇALVES, BALTA-
ZAR JUNIOR, 2019).
Ocorre que o art. 22, inciso I da Carta Magna estabelece competên-
cia legislativa privativa à União: legislar dentre outras matérias, sobre o
Direito Penal, o que pressupõe obviamente a obediência ao rito proces-
sual legislativo gizado no art. 59 e seguintes da Lex Magna, ademais em
matéria penal vige o Princípio da Legalidade, positivado constitucional-
mente no art. 5º, inciso XXXIX (BITENCOURT, 2012).
É, também, a consagração do segundo, dos dez axiomas do Direito
Penal, descrito no brocardo: nullum crimen sine lege, entrementes: “não
há crime sem lei” (NUCCI, 2019). Nesta esteira, repisa-se o questio-
namento se portaria emitida e atualizada por órgão do Poder Executivo
(Ministério da Saúde e ANVISA) poderia definir o que é ou não droga
e influenciar diretamente na caracterização ou não de inúmeras infrações
penais descritas na Lei nº 11.343/2006, inclusive o malfadado tráfico de

166
LU I Z A N TÔ N I O R E I S J U N I O R , M A U R I C I O P I R E S G U E D E S , T E L S O N P I R E S ,
VA N E S S A V E L A S C O, H E R N A N D E S B R I TO R E I S ( O R G . )

entorpecentes (art. 33), como também associação para o tráfico (art. 35)
e financiamento do tráfico (art. 36) sem ferir o princípio da legalidade.
Para explicar melhor o assunto e sem a pretensão de esgotar o tema,
é importante não olvidar que as normas penais incriminadoras (definem
crimes) possuem um preceito primário (que descreve a conduta típica) e
um preceito secundário (que estabelece a pena a ser cumprida pelo agen-
te). Avançando nas classificações das normas penais, quando o preceito
primário é incompleto e requer, portanto, um “complemento” para sua
perfeita compreensão, têm-se uma “norma penal em branco ou primaria-
mente remetidas”. (GRECO, 2017).
As normas penais incriminadoras em branco ou primariamente re-
metidas podem ter por “complemento” uma definição advinda da mesma
fonte de produção, ou seja da “lei em sentido estrito”, nesse caso são ditas
homogêneas. Um bom exemplo é o crime de bigamia (art. 235 do CP),
para cuja compreensão e perfeito enquadramento típico requer o conheci-
mento do conceito de “casamento” que é obtido no art. 1511 do Código
Civil.
Note-se que a norma penal em branco (art. 235 do CP) e o respectivo
complemento (art. 1511 do CC), ambos, originam-se da mesma fonte de
produção: a lei, através do regular processo legislativo (art. 59 e seguintes
da CF/88), em tom didático: “ambas possuem a mesma (“homo”) gêne-
se, emanam do mesmo Poder Legislativo, isto é, do Congresso Nacional
(GONÇALVES, BALTAZAR JUNIOR, 2019).
De outra banda, nas normas penais em branco ou primariamente re-
metidas podem ter por complemento um conceito advindo de outra fonte
de produção, de outro poder e é justamente esse o caso de todas as infra-
ções penais que perpassam pelo conceito de drogas, estatuídas na Lei nº
11.343/2006: tráfico de entorpecentes (art. 33), como também associação
para o tráfico (art. 35) e financiamento do tráfico (art. 36).
Neste último caso são denominadas de “normas penais em branco
heterogêneas”, isto porque a normal penal, como não poderia deixar de
ser, ante o princípio da legalidade a seguir retomado, provém de regu-
lar processo legislativo, de lei em sentido estrito (ex vi o art. 5º, inciso
XXXXIX e art. 22, inciso I, da CF) e o complemento se origina em ato
do Poder Executivo, justamente a Portaria nº 344/1998 do Ministério da
Saúde, atualizada periodicamente pela ANIVISA.

167
DIMENSÕES JURÍDICAS DAS POLÍTICAS PÚBLICAS – VOL. 1

A título de exemplo, o art. 33 da Lei 11.343/2006 possui em sua de-


finição típica a palavra “droga”, o preceito primário desta norma penal
advém da lei em sentido estrito, via regular atividade do Poder Legislativo
e “precisa de um complemento”, por isso classifica-se como norma penal
em “branco” ou “primariamente remetida”. Já o complemento como an-
tecipado decorre de uma fonte “hetero”, “diferente”, máxime a Portaria
nº 344/1998 emanada do Poder Executivo, através do Ministério da Saú-
de, por isso têm-se a denominada “Norma Penal em Branco Heterogê-
nea”. O acerto ou não desta realidade, será alvo do tópico seguinte deste
ensaio (GRECO 2017; GONÇALVES, BALTAZAR JUNIOR, 2019).
A título adicional, as normas penais em branco homogêneas, podem
classificadas ainda em homovitelinas e heterovitelinas. A explicação é sim-
ples. Sendo “normas penais em branco” o chamado “preceito primário”
ou “incriminador” para ser bem compreendido e aplicável, clama por um
“complemento”, em outros termos uma ou mais das “palavras” dos “nú-
cleos” do tipo penal assim classificados tem o significado dado por um
complemento que deve ter a mesma fonte de produção, máxime a “lei”, o
Poder Legislativo, justamente por isso denomina-se “homogênea”, “nor-
ma penal em branco homogênea” (BITENCOURT, 2012). Assim será
então “homovitelina” a norma penal em branco cujo complemento seja
da mesma fonte de produção (Poder Legislativo) e do mesmo ramo de
direito, como ocorre com o art. 304 do CP.
De outro giro, nas normas penais em branco homogêneas “heterovi-
telinas”, o complemento embora advenha da mesma fonte de produção da
norma penal, Poder Legislativo, pertence a outro ramo de direito. Como
exemplo, tem-se o art. 235 do Código Penal, alhures citado, que perfaz
o crime de bigamia, que embora provenha da mesma fonte de produção,
Poder Legislativo, ‘lei em sentido estrito”, pertence a ramo de direito di-
ferente, o Civil (art. 1511 e seguintes do Código Civil), por isso têm-se
uma norma penal em branco homogênea “heterovitelina”.
Por fim, tem-se ainda as chamadas normas penais incompletas ou
secundariamente remetidas, e como se pode antever da última expressão,
nesta espécie o preceito secundário da norma incriminadora, o que es-
tabelece a “pena a ser cumprida” necessita ou requer um complemento
para sua perfeita compreensão e aplicação, é o caso da extorsão mediante
a restrição à liberdade da vítima com resultado lesão corporal grave ou

168
LU I Z A N TÔ N I O R E I S J U N I O R , M A U R I C I O P I R E S G U E D E S , T E L S O N P I R E S ,
VA N E S S A V E L A S C O, H E R N A N D E S B R I TO R E I S ( O R G . )

morte (art. 158, § 3º do CP) que “remete” às penas da extorsão mediante


sequestro (art. 159, §§ 2º e 3º do CP).
Deste modo, após os esclarecimentos conceituais necessários, é possí-
vel analisar mais detalhadamente, se uma portaria emitida e atualizada por
órgão do Poder Executivo (Ministério da Saúde e ANVISA) pode definir o
que é ou não droga para fins penais. O art. 33 da Lei nº 11.343/2006, como
demonstrado, trata-se de normal penal em branco heterogênea, pois para
compreender o significado e amplitude da palavra “drogas”, deve o exe-
geta se valer da portaria administrativa supramencionada, em que estando
a substância arrolada na sua lista, possibilita que a conduta seja enquadrada
como o tráfico ou outros crimes descritos na lei em tela, que possuem o
mesmo núcleo (GONÇALVES, BALTAZAR JUNIOR, 2019).
Assim, tratando da questão principiológica, parte da doutrina aponta
a constitucionalidade e legalidade desta possibilidade de complementação
da norma penal incriminadora via portaria administrativa, tendo em lume
as previsões do art. 1º, parágrafo único e art. 66 da Lei nº 11.343/2006,
bem como o descrito no art. 14 do Decreto nº 5.912/2006 que regulamen-
tou a Lei Antidrogas. Como a própria lei de regência in origine já trouxe
a previsão da Portaria nº 344/1998 para definir o significado do núcleo
“drogas”, não haveria que se falar em ofensa ao princípio da legalidade
(art. 5º inciso XXXIX e 22, inciso I da CF/88) em matéria penal.
Por outro lado, há entendimento que o caso arremata ofensa ao prin-
cípio da legalidade, pois a definição do que é tráfico de drogas (art. 33 da
Lei nº 11.343/2006) estaria à disposição de órgão administrativo, basta
imaginar que se a ANVISA atualizasse a Portaria nº 344/98, retirando a
substância cannabis sativa (coloquialmente conhecida como maconha), a
venda, transporte, fornecimento et coetera de tal erva deixaria de ser tráfico
de drogas o que atingiria inclusive processos com trânsito em julgado.
(abolitio criminis). Neste sentido:

(...) havendo uma inflação penal desmedida que torna impossível o


conhecimento, pela população, das condutas consideradas ilícitas,
a situação criada pelas normas penais em branco, que transferem
basicamente à esfera administrativa a atribuição de regulamentar a
extensão dos tipos penais, torna-se ainda mais agravada. Não con-
cordamos com (...) a não existência de qualquer função repressiva

169
DIMENSÕES JURÍDICAS DAS POLÍTICAS PÚBLICAS – VOL. 1

na regulamentação administrativa das normas penais, pois a lei pe-


nal em branco, que defere a outro a fixação de determinadas con-
dições, não é nunca uma carta branca outorgada a esse poder para
que assuma funções repressivas, e sim o reconhecimento de uma
faculdade meramente regulamentar. Ora, se não há uma transfe-
rência da função repressiva, no mínimo existe um deslocamento da
complementação da norma penal, a ser feita através de uma outra
espécie legislativa que não a lei, o que viola o princípio da reserva
legal (COPETTI, 2000. p. 182)

Outra posição, aquilata a inexistência de ofensa ao princípio da lega-


lidade quando a norma penal em branco e estabelece um núcleo essencial
de conduta, apontando a necessidade de complemento de normas penais
por portaria administrativas dada a dinâmica social e impossibilidade de
o Poder Legislativo acompanhar, catalogar ou conceituar “drogas” diante
da enorme e infeliz criatividade humana em criá-las (GRECO, 2017).
Data vênia, é possível concordar ser o complemento de uma norma
penal como o tráfico de entorpecentes, realizado através de portaria ad-
ministrativo ante o descompasso entre a atividade legislativa e a capaci-
dade de criação de novas drogas. Na verdade havendo vontade política,
talvez esta “corrida” pudesse ao menos ser “empatada”, mas priorizando
o direito a saúde pública (MACHADO; BOARINI, 2013) que também
possui arcabouço constitucional (art. 6º caput e 196 e s.s da CF/88) enten-
demos tratar-se de um “mal necessário”.
De outra toada não vislumbramos compatível a afirmação de que o
verbete “drogas” não seja um núcleo essencial de conduta, afinal, os de-
zoito verbos nucleares do tipo penal adotado como exemplo (art. 33 da
Lei nº 11.343/2006), configurariam indiferentes penais, se o agente, v.g.,
vendesse ou transportasse “talco” em vez de cocaína, o que denota a es-
sencialidade da definição do significado da palavra “droga” para todos os
tipos penais que a utilizam.
Por postimeiro, candente declinar que o Supremo Tribunal Federal
(Recurso Extraordinário 765.794/São Paulo) tem se posicionado pela
constitucionalidade da técnica da norma penal em branco heterogênea,
com o que concordamos dada a necessidade de prevalecimento do direito
à saúde pública tal combalida pela disseminação de entorpecentes ante o

170
LU I Z A N TÔ N I O R E I S J U N I O R , M A U R I C I O P I R E S G U E D E S , T E L S O N P I R E S ,
VA N E S S A V E L A S C O, H E R N A N D E S B R I TO R E I S ( O R G . )

princípio da legalidade, devendo este último sucumbir nesta ponderação


(ALEXY, 1997).

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Neste sucinto trabalho abordou-se a denominada administração ge-


rencial e a importância das agências reguladoras neste novo cenário, in-
clusive, citando-se interessante digressão histórica para em seguida apon-
tar características gerais de tais entes estatais e os traços mais cruciais da
recente lei geral de regência.
Esclarecemos que o poder normativo das agências reguladoras é apli-
cável à Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA), estudan-
do-se os principais aspectos desta autarquia especial e sua atribuição na
atualização da lista de substâncias entorpecentes descritas na Portaria nº
344/1998 do Ministério da Saúde.
Abordou-se também conceitos classificatórios cruciais das normas
penais incriminadoras, diferenciando-se as variadas espécies e subclassifi-
cações, destacando-se as denominadas normas penais em branco hetero-
gêneas, que alcança o ponto nodal deste trabalho, i.e., discutir a constitu-
cionalidade/legalidade da técnica de complementação de um crime/tipo
penal por uma norma administrativa atualizada por uma agência regula-
dora, neste caso a ANVISA.
Concluímos nesta pesquisa, diversos posicionamentos doutrinários
acerca do tema, bem como a posição do Pretório Excelso, com adoção da
constitucionalidade da complementação das normas penais descritas na
Lei Antidrogas (Lei nº 11.343/2006) por meio da portaria administrativa
nº 344/1998 do Ministério da Saúde.
Entretanto, nos posicionamos pela inconstitucionalidade da norma
penal em branco heterogênea, visto que, afronta o princípio da legalidade,
posto que o poder competente para legislar em matéria penal é do Poder
Legislativo, e deve ser evitado conceder discricionariedade para o Poder
Executivo instituir ou complementar normas penais incriminadoras atra-
vés de regulamentos ou portarias, o que gera insegurança jurídica diante
da Constituição federal.
Mesmo assim, entendemos que independente da constitucionalidade
ou prevalência de entendimento jurídico, e considerando que o legislador
não tem instrumentos para prever todas as situações fáticas da vida social,

171
DIMENSÕES JURÍDICAS DAS POLÍTICAS PÚBLICAS – VOL. 1

principalmente no que diz respeito às políticas públicas de combate ao uso


e tráfico de drogas, um bem maior deve ser assegurado, ou seja, o uso da
norma penal em branco heterogênea tem apanágio instrumental e utili-
tário no seio social. Logo, mesmo entendendo pela inconstitucionalidade
e ilegalidade deste instrumento, não se pode negar que no atual contexto
ele é necessário para a harmonia social.

REFERÊNCIAS

ALEXANDRINO, Marcelo. Direito Administrativo Descomplica-


do. 26. ed. Rio de Janeiro Forense, 2018.

ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais. Madrid: Centro


de Estudos Constitucionais, 1997.

ARAGÃO, Alexandre Santos de. O poder normativo das agências re-


guladoras. A&C – Revista de Direito Administrativo e Cons-
titucional, Curitiba, Juruá, ano 2, n. 7, p. 47-92, 2001. ISSN
1516-3210. Disponível em: http://www.revistaaec.com/index.php/
revistaaec/article/view/768. Acesso em: 15 ago. 2020. Doi: http://
dx.doi.org/10.21056/aec.v0i0

BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal, Parte


Geral, volume 1. 17º edição, São Paulo: Saraiva, 2012.

BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federati-


va do Brasil. Brasília: Senado Federal, Centro Gráfico, 1988.

BRASIL. DECRETO-LEI No  2.848, DE 7 DE DEZEMBRO DE


1940. Código Penal. Brasília, DF. Disponível em: http://www.
planalto.gov.br/ccivil_03/Decreto-Lei/Del2848.htm. Acesso em: 12
ago. 2020.

BRASIL. LEI Nº 11.343, DE 23 DE AGOSTO DE 2006. Brasília, DF.


Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2004-
2006/2006/Lei/L11343.htm. Acesso em: 11 ago. 2020.

BRESSER-PEREIRA, Luiz Carlos. Da administração pública buro-


crática à gerencial. In: BRESSER-PEREIRA, Luiz Carlos; SPINK,

172
LU I Z A N TÔ N I O R E I S J U N I O R , M A U R I C I O P I R E S G U E D E S , T E L S O N P I R E S ,
VA N E S S A V E L A S C O, H E R N A N D E S B R I TO R E I S ( O R G . )

Peter Kevin (orgs). Reforma do estado e administração pública geren-


cial. 7. ed. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2006, p. 237-270.

CHEVALLIER, Jacques. O Estado pós-moderno. Belo Horizonte,


Fórum, 2009.

COPETTI, André. Direito penal e o estado democrático de direito.


Porto Alegre. Livraria do Advogado, 2000.

DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Parcerias na administração públi-


ca: concessão, permissão, franquia, terceirização, parceria público-
-privada. 12. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2019.

GONÇALVES, Victor Eduardo Rios; BALTAZAR JUNIOR, José


Paulo. Legislação penal especial esquematizado. 5. ed. São Pau-
lo : Saraiva Educação, 2019.

GRECO, Rogério. Código Penal Comentado. 11. ed. Niterói: Impe-


tus, 2017.

MACHADO, Letícia Vier; BOARINI, Maria Lúcia. Políticas so-


bre drogas no Brasil: a estratégia de redução de danos.  Psicol.
cienc. prof.,  Brasília,  v. 33,  n. 3,  p. 580-595,  2013. Disponí-
vel em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pi-
d=S1414-98932013000300006&lng=en&nrm=iso. Acesso em: 11
ago. 2020. Doi: https://doi.org/10.1590/S1414-98932013000300006.

NEVES, Daniel Amorim Assumpção; OLIVEIRA, Rafael Carvalho


Rezende. Improbidade administrativa: direito material e proces-
sual. 8. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2020.

NUCCI, Guilherme de Souza. Curso de Direito Penal: parte geral. 3.


ed. Rio de Janeiro: Forense, 2019.

OLIVEIRA, Rafael Carvalho Rezende. Novo perfil da regulação es-


tatal: Administração Pública de resultados e análise de impacto re-
gulatório. Rio de Janeiro: Forense, 2015.

ROSSI, Licínia. Manual de direito administrativo. 6. ed. São Paulo:


Saraiva Educação, 2020.

173
OS PRINCÍPIOS INSTRUMENTAIS
DE INTERPRETAÇÃO DAS NORMAS
CONSTITUCIONAIS NO BRASIL
Edeilson Ribeiro Bona 36

INTRODUÇÃO

O estudo sobre a interpretação e aplicação das normas constitucio-


nais revela extenso conteúdo que deve ser tratado com a maior seriedade
acadêmica. Trata-se de tema complexo e relevante ao direito constitucio-
nal, pois implica na limitação ou expansão dos direitos fundamentais,
dentre outras consequências (CADERMATORI; DUARTE, 2009).
O presente artigo tem um campo de apresentação bastante limitado,
restrito aos princípios instrumentais de interpretação das normas consti-
tucionais no Brasil, conforme estudo realizado principalmente por Luis
Roberto Barroso (2009).
A evolução do constitucionalismo reflete a conquista de direitos que
foram materializados na ordem constitucional contemporânea. A evolução
socioeconômica, por outro lado, alargou as previsões contidas na Consti-
tuição para além da organização do plano político e do reconhecimentos
de direitos fundamentais, elevando para a ordem constitucional muitos
dos temas antes restritos do Direito Privado.

36 Professor substituto na Universidade do Estado de Mato Grosso (UNEMAT). Mestre em


Direito pela UFMT Membro do Grupo de Pesquisa em Direito, Estado e Sociedades (GP-
DES – UNEMAT). Menção Honrosa no Prêmio Academy 2019 (Dissertações), realizado pelo
CAEDJus. Advogado.

1 74
LU I Z A N TÔ N I O R E I S J U N I O R , M A U R I C I O P I R E S G U E D E S , T E L S O N P I R E S ,
VA N E S S A V E L A S C O, H E R N A N D E S B R I TO R E I S ( O R G . )

Esta tensão existente os ramos do Direito conforme se aumenta o


número de previsões constitucionais tratando das mais variadas matérias,
sobretudo de interesse privado, é denominado no Brasil como consti-
tucionalização do direito civil e marca o momento em que a Constituição
tomou o centro de normatividade e hierarquia do sistema.
A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 é filtro
de interpretação e condição de validade das normas infraconstitucionais.
Dentro do âmbito de sua aplicação e interpretação, faz-se, necessário
apontar as peculiaridades destas normas constitucionais, que se apresen-
tam sob diveros olhares na academia jurídica.
A pesquisa se vale do método hipotético-dedutivo e do procedimento
estruturalista. A partir da revisão da literatura, rememora-se as peculiari-
dades que as normas constitucionais apresentam de maneira qualitativa para,
enfim, expor os princípios instrumentais da interpretação constitucional
Especificamente, são os princípios da supremacia da Constituição,
da presunção de constitucionalidade das leis e atos do poder publico, da
interpretação conforme a Constituição, da unidade da Constituição, da
razoabilidade ou da proporcionalidade e, por fim, da efetividade (BAR-
ROSO, 2009).
A artigo, portanto, tem como objeto verificar a aplicabilidade e even-
tuais contribuições na aplicação dos princípios instrumentais na ordem
constitucional brasileira.

1. A ESPECIALIDADE DAS NORMAS CONSTITUCIONAIS


NO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO

As normas constitucionais apresentam peculiaridades frente as demais


normas do ordenamento jurídico. De acordo com Luís Roberto Barroso
(2009, p. 111), há quatro singularidades destas normas: 1) a superioridade
hierárquica; 2) a natureza da linguagem; 3) o conteúdo específico; e 4) o
caráter político.
Neste ponto de partida, tem-se a superioridade hierárquica, também de-
nominada superlegalidade, supremacia da Constituição, ou, ainda, autopri-
mazia normativa (CANOTILHO, 2003, p. 137).
Esta superioridade jurídica confere à Constituição um caráter prag-
mático e subordina todo o ordenamento jurídico. A Constituição faz

175
DIMENSÕES JURÍDICAS DAS POLÍTICAS PÚBLICAS – VOL. 1

frente a toda e qualquer norma jurídica abaixo de si e, portanto, invalido


será todo e qualquer ato que lhe contrariar sentido (BARROSO, 2009,
p. 111).
De acordo com José Afonso da Silva: “todas as normas que se integram
a ordenação jurídica nacional só serão válidas se se conformarem com as
normas da Constituição Federal” (SILVA, 2008, p. 46). E prossegue:

Nossa Constituição é rígida. Em consequência, é a lei fundamental


e suprema do Estado brasileiro. Toda autoridade só nela encontra
fundamento e só ela confere poderes e competências governamen-
tais. Nem o governo federal, nem os governos dos Estados, nem os
dos Municípios ou Distrito Federal são soberanos, porque todos
são limitados, expressa ou implicitamente, pelas normas positivas
daquela lei fundamental. Exercem suas atribuições nos termos nela
estabelecidos. (SILVA, 2008, p. 46)

Por sua vez, a natureza da linguagem constitucional diz respeito a maior


abertura dos termos constitucionais. Isto é, ao tratar de princípios e regras
gerais, mostra-se, por diversas vezes, com vocábulos genéricos, trazen-
do consigo além de um grau de abstração muito abrangente, uma menor
densidade jurídica em suas disposições (BARROSO, 2009, p. 111).
Resgatando a lição primeira da superioridade hierárquica da Constitui-
ção, tem-se que a Lei Maior regula, inclusive, a validade das normas in-
feriores seja pela forma ou pela matéria abordada. Tendo em vista o con-
teúdo material que a Constituição designa para as leis, vê-se que esta não
regula integralmente as normas infraconstitucionais, uma vez que há certa
liberdade ao legislador em concretizar os ditames constitucionais.
As normas constitucionais se apresentam, por diversas vezes, enquan-
to diretrizes e bases a serem cumpridas e, por esta razão e nestas ocasiões,
revelam-se em linguagem menos densas, complementando a caracteriza-
ção da natureza de sua linguagem (MENDES; BRANCO, 2012, p. 74).
Ainda, para Celso Ribeiro Bastos:

A Constituição se traduz em “Sumas de Princípios Gerais” (Ruy


Barbosa). Ela é vazada em linguagem marcadamente lacônica. Este
seu laconismo faz com que as regras constitucionais suscitem pro-
blemas hermenêuticos não encontráveis nos demais ramos jurídi-

176
LU I Z A N TÔ N I O R E I S J U N I O R , M A U R I C I O P I R E S G U E D E S , T E L S O N P I R E S ,
VA N E S S A V E L A S C O, H E R N A N D E S B R I TO R E I S ( O R G . )

cos, ao menos com igual nível de dificuldade. Veja-se o que dá com


os diferentes graus de incidência factual conforme se esteja diante
de uma norma com normatividade suficiente para incidir sobre os
fatos ou se esteja diante de norma carecedora de uma legislação de
integração. Outrossim, o caráter sintético das Constituições eleva
o nível de abstração de suas proposições, expressando as ideias ma-
trizes da consciência jurídica nacional. (BASTOS, 1996, p. 104)

Já a diferenciação acerca do conteúdo específico das normas constitucionais,


mostra-se, em realidade, na complementação das diferenças já abordadas,
pois a Constituição também apresenta grande normatização sobre normas
de conduta, isto é, conjunto de ordens e proibições (LIMA, 1996, p. 112).
Contudo, as Constituições apresentam também as normas de organiza-
ção, aquelas que, como o nome sugere, organizam a estrutura do Estado
e, ainda, disciplinam a edição das normas de conduta, de modo que as
normas de estrutura não podem ser interpretadas como as normas de con-
duta, pois não constituem direitos subjetivos (BARROSO, 2009, p. 113).

Ainda que nos defrontemos com uma Constituição de condutas,


não há dúvida que o núcleo das Constituições é formado por um
conjunto de normas com caráter eminentemente organizatório,
isto é: normas que conferem ou outorgam competências. Não fora
assim, a Constituição não cumpriria o seu papel fundamental de
estruturar o Estado. Nada obstante, é bom notar que esta afetação
ou alocação de competências não vai somente no sentido de aqui-
nhoar o Estado. Mas também aponta na direção de munir o indi-
víduo de prerrogativas oponíveis ao próprio Estado. (BASTOS,
1996, p. 105)

Ainda no tocante ao conteúdo específico das normas constitucionais, Luís


Roberto Barroso aponta a singularidade das chamadas normas progra-
máticas:

Contêm elas disposições indicadoras de valores a serem preserva-


dos e de fins sociais a serem alcançados. Seu objeto é de estabelecer
determinados princípios e fixar programa de ação. Característica
dessas regras é que elas não especificam qualquer conduta a ser se-

177
DIMENSÕES JURÍDICAS DAS POLÍTICAS PÚBLICAS – VOL. 1

guida pelo Poder Público, apenas apontando linhas diretoras. Por


explicitarem fins, sem indicarem os meios, investem os jurisdicio-
nados em uma posição jurídica menos consistente do que as nor-
mas de conduta típicas, de vez que não conferem direito subjetivo
em sua versão positiva de exigibilidade de determinada prestação.
(BARROSO, 2009, p. 113)

Por fim, é excepcional a norma constitucional por seu caráter político,


uma vez que a o poder constituinte originário, com suas características
inerentes, ou seja, um poder inicial, ilimitado, autônomo e, incondicio-
nado (MORAES, 2004, p. 58).
A Constituição cria, a partir das convicções políticas, uma nova or-
dem jurídica vigente. Ou ainda, conforme preceitua Michel Temer (1998,
p. 33), o poder constituinte originário constitui um novo Estado. De
qualquer ângulo, vê-se a Constituição pretende positivar a comutação do
poder político em jurídico. Em outras palavras, “seu objeto é um esforço de
juridicização do fenômeno político” (BARROSO, 2009, p. 115).
Nessa acepção é a advertência de Ferdinand Lassale, baseando-se na
corrente sociológica da Constituição, que figura como percursor:

Os problemas constitucionais não são problemas de direito, mas


do poder; a verdadeira Constituição de um país somente tem por
base os fatores reais e efetivos do poder que naquele país vigem,
e as Constituições escritas não tem valor nem são duráveis, a não
ser que exprimam fielmente os fatores políticos que imperam na
realidade social. (LASSALE, 1985, p. 4)

Atualmente, não raras as vezes se apresenta uma ostensiva movimen-


tação popular no sentido de alteração do “sistema” (lato sensu) vigente no
Brasil, e, para tal, a criação de uma nova Constituição. Daí resulta a im-
portância do fator político como verdadeira excepcionalidade das normas
constitucionais, pois se apresenta como intrínseca manifestação popular e
legitimidade na sua aplicação atual.
Ademais, ao reconhecer a peculiar apresentação do fator político nas
normas constitucionais, amplia-se a interpretação em uma visão política
constitucional, que leva em consideração a ideologia e valores políticos inspi-
radores da norma (BULOS, 1997, p. 7).

178
LU I Z A N TÔ N I O R E I S J U N I O R , M A U R I C I O P I R E S G U E D E S , T E L S O N P I R E S ,
VA N E S S A V E L A S C O, H E R N A N D E S B R I TO R E I S ( O R G . )

Por conseguinte, é acentuada a repercussão desse elevado teor


ideológico de que se impregna na realidade política, no processo
de interpretação das normas constitucionais. Estas, para a apreen-
são do seu mais íntimo e fiel significado, passam a solicitar o aporto
complementar de elementos extra sistemáticos, em certa medida,
hospedados muito mais na dinâmica dos fatos que na estática da
positivação formal. E num grau de intensidade bem maior que o
suplicado pelas normas de direito comum, que não desenham os
contornos do poder político e não cuidam da repartição de seu
exercício entre os Órgãos supremos do Estado ou entre as pessoas
políticas de base territorial. (BASTOS, 1982, p. 17)

Rememora-se que os aspectos das peculiaridades das normas consti-


tucionais não se mostram taxativo, sendo bastante debatido e, por vezes,
constituindo entendimentos diversos. Conforme alguns autores, a espe-
cificidade da norma constitucional acarreta consequências para a própria
interpretação constitucional.
Uodi Lammêgo Bulos (1997, p. 8) traz o fator tipológico como tal pe-
culiaridade. Em linhas gerais, para este autor, a classificação das normas
constitucionais segundo a sua aplicabilidade implica diretamente nos mol-
des e na natureza da interpretação constitucional.
Para além destas peculiaridades das normas constitucionais, outra
importante característica se dá pela distribuição de comandos normati-
vos que se traduzem em regras e outros em princípios. Tal sistematização
constitucional não traz consequência apenas no nível de abstração, mas
também na forma de se efetivar e aplicar o direito aplicado.
A distinção entre as regras e princípios presentes na Constituição
não é, nem de longe, pacificado na doutrina nacional e internacional 37.
E, diante da complexidade do tema na doutrina constitucional, torna-

37 De acordo com a doutrina de Virgílio Afonso da Silva (2011, p. 44): Há autores que susten-
tam que entre regras e princípios há uma diferença de grau. A partir dessa ideia, há aqueles
que sustentam que o que distingue ambos seria o grau de importância: princípios seriam as
normas mais importantes de um ordenamento jurídico, enquanto as regras seriam aquelas
normas que concretizariam esses princípios. Há também aqueles que distinguem ambos a
partir do grau de abstração e generalidade: princípios seriam mais abstratos e mais gerais que
as regras. Outras classificações baseadas em algum tipo de gradação são possíveis.

179
DIMENSÕES JURÍDICAS DAS POLÍTICAS PÚBLICAS – VOL. 1

-se impossível sua apresentação neste artigo, indicando-se como ponto de


partida as obras de Ronald Dworkin (1978), Robert Alexy (1985), José
Joaquim Gomes Canotilho (2003) e Virgílio Afonso da Silva (2011) para
estudos iniciais.
Outra importante contribuição para melhor compreensão na inter-
pretação jurídica constitucional das normas presentes na Constituição se
dá na doutrina de Luís Roberto Barroso (2009), que trata dos princípios
instrumentais de interpretação constitucional, que serão abordados no tó-
pico a seguir.

2. OS PRINCÍPIOS INSTRUMENTAIS DE
INTERPRETAÇÃO CONSTITUCIONAL

As normas constitucionais integram o ordenamento jurídico e, por-


tanto, submetem-se também à interpretação clássica do Direito. Todavia,
diante de suas particularidades, também carecem de uma interpretação
própria, denominada interpretação constitucional.
Embora não positivados expressamente no texto constitucional, os
princípios instrumentais de interpretação constitucional são diretrizes a serem
seguidas pelo intérprete para a solução da questão em ênfase, como leciona
Luís Roberto Barroso:

O emprego do termo princípio, nesse contexto, prende-se à proe-


minência e à precedência desses mandamentos dirigidos ao intér-
prete, e não propriamente ao seu conteúdo, à sua estrutura ou à
sua aplicação mediante ponderação. Os princípios instrumentais de
interpretação constitucional constituem premissas conceituais,
metodológicas ou finalísticas que devem anteceder, no proces-
so intelectual do intérprete, a solução concreta da questão posta.
(BARROSO, 2009, p. 370)

Neste passo, o autor elenca seis princípios instrumentais de interpre-


tação das normas constitucionais. São eles: 1) o princípio da supremacia
da Constituição; 2) o princípio da presunção de constitucionalidade das
leis e dos atos do Poder Público; 3) o princípio da interpretação conforme
a Constituição; 4) o princípio da unidade da Constituição, bem como os

180
LU I Z A N TÔ N I O R E I S J U N I O R , M A U R I C I O P I R E S G U E D E S , T E L S O N P I R E S ,
VA N E S S A V E L A S C O, H E R N A N D E S B R I TO R E I S ( O R G . )

princípios da razoabilidade e da proporcionalidade e, por fim, o princípio


da efetividade (BARROSO, 2009, p. 370-375).

2.1. PRINCÍPIO DA SUPREMACIA DA CONSTITUIÇÃO

O princípio da supremacia da Constituição diz respeito ao dever de


todos os atos normativos e volitivos do Estado respeitar aquilo disposto na
Lei Fundamental. A importância de referido princípio na interpretação
constitucional se reflete no surgimento do constitucionalismo moderno,
pois o conceito de supremacia constitucional se fundamenta primordial-
mente em duas distinções existentes: i) entre poder constituinte e poder
constituído; e ii) entre Constituição rígida e Constituição flexível.
Primeiramente, a diferenciação entre poder constituinte e poder
constituído advém da clássica obra “Qu’est-ce que le Tiers État?”, de autoria
do padre Emmanue Joseph Sieyès, onde afirma que não existe limitação
jurídica ao poder constituinte, isto porque a este poder não pode haver
restrição de leis anteriormente estabelecidas, submetendo-se, apenas, aos
ditames do direito natural (SIEYES, 1986, p. 117).
Desta ideia, adveio novas bases ao direito constitucional, uma vez que
se supôs que a Constituição não serviria apenas para compilar os ditames
legais já estabelecidos, mas para criar, com novas bases, um ordenamento
jurídico a partir de sua força normativa.
Já a diferenciação acerca da rigidez constitucional, isto é, da neces-
sidade de elaborar formas mais complexas e rigorosas para sua alteração,
reflete a verdadeira essência forma da superioridade hierárquica. Ao dife-
renciar a edição de normas constitucionais das demais normas do orde-
namento jurídico, dificultando-as no processo legislativo constitucional,
impôs obediência jurídica à Constituição (BARROSO, 2009, p. 168).
A importância de referido princípio na interpretação das normas se
traduz no fato de que a inobservância dos postulados constitucionais, seja
em âmbito formal ou material, acarreta a utilização de instrumentos pró-
prios de controle de determinada norma.
Inicialmente chamado de “judicial review” pelos norte-americanos, no
Brasil é extensa a doutrina e a aplicação do controle de constitucionali-
dade, que se configura, no ensinamento de Alexandre de Moraes: “como
garantia de supremacia dos direitos e garantias fundamentais previstos na constituição

181
DIMENSÕES JURÍDICAS DAS POLÍTICAS PÚBLICAS – VOL. 1

que, além de configurarem limites ao poder do Estado, são também uma parte da
legitimação do próprio Estado” (MORAES, 2004. p. 599), pois, ao fim, aca-
bam, “determinando seus deveres e tornando possível o processo democrático em um
Estado de Direito” (MORAES, 2004. p. 599).
O caráter instrumental de tal princípio decorre da imposição de res-
peito aos ditames estabelecidos constitucionalmente, pela maneira de edi-
ção da lei estabelecida ou pelo trato material que a Constituição estabelece
a ser cumprido (BARROSO, 2009, p. 372).

2.2. PRINCÍPIO PRESUNÇÃO DE


CONSTITUCIONALIDADE DAS LEIS E ATOS DO PODER
PÚBLICO

Para a compreensão integral do princípio da presunção de cons-


titucionalidade das leis e atos do poder público, necessário se mostra a
apresentação histórica e evolutiva da divisão dos Poderes, uma vez que a
interpretação da Constituição irá ocorrer em todos os âmbitos da Admi-
nistração Pública.
Assim, atribui-se a maior contribuição na sistematização de tal teoria
para Montesquieu (1987), embora já se mostrasse presenta nas obras de
Aristóteles e, também disposta no Iluminismo por John Locke na obra
“Two treatises of government”, datada de 1690 (BARROSO, 2009, p. 179).
Ainda que o poder estatal seja soberano e unitário, a teoria da sepa-
ração dos Poderes discorre acerca da necessidade de se dividir as com-
petências de cada órgão estatal, isto porque, de acordo com a teoria de
Montesquieu (1987), a essência do Estado se perderia se confundissem ao
mesmo órgão (ou pessoa) a competência para legislar, executar e julgar,
vulgarmente, as relações sociais.
Nesta essência, vale a contribuição, ainda, para o controle recíproco
entre os Poderes do Estado (freios e contrapesos), evitando-se discrepân-
cia e abusos entre si:

Embora viva, nesta virada de século, um momento crucial, en-


tre a decadência e a necessidade de reformulação, o princípio
da separação de Poderes subsiste como uma valiosa referência
para a interpretação constitucional, definindo papéis e estabe-

182
LU I Z A N TÔ N I O R E I S J U N I O R , M A U R I C I O P I R E S G U E D E S , T E L S O N P I R E S ,
VA N E S S A V E L A S C O, H E R N A N D E S B R I TO R E I S ( O R G . )

lecendo limites. Caracterizam-no a especialização funcional e


a independência orgânica, que não se contrapõem, no entanto,
à circunstância de que cada Poder não exerce, de modo exclu-
sivo, a função que nominalmente lhe corresponde, e sim tem
nela a sua competência principal e predominante. (BARRO-
SO, 2009, p. 180)

Assim, deve-se ter em mente que ao declarar a inconstitucionalidade


de determinada lei, o Poder Judiciário exercer função legislativa negativa
ao extirpar do ordenamento jurídico determinada lei. A partir daí, advém
a necessidade de maior valimento na atuação jurisdicional constitucional,
pois, ao adentar esfera que não lhe é sua inerente atuação principal, tende
a ser ameaçada teoria de separação dos Poderes, que é princípio basilar do
funcionalismo estatal.
Para Luís Roberto Barroso, este princípio insere duas regras inerentes
para a atividade jurisdicional no controle de constitucionalidade (difuso
ou concreto):

Em sua dimensão prática, o princípio se traduz em duas regras de


observância necessária pelo intérprete e aplicador do direito: a) não
sendo evidente a inconstitucionalidade, havendo dúvida ou a pos-
sibilidade de razoavelmente se considerar a norma como válida,
deve o órgão competente abster-se da declaração de inconstitu-
cionalidade; b) havendo alguma interpretação possível que permita
afirmar-se a compatibilidade da norma com a Constituição, em
meio a outras que se carreavam para ela um juízo de invalidade,
deve o intérprete optar pela interpretação legitimadora, mantendo
o preceito em vigor. (BARROSO, 2009, p. 180)

Por sua vez, o caráter instrumental de aludido princípio afirma que a


declaração de inconstitucionalidade se deve resistir de uma responsabili-
dade maior, frente a possibilidade de invasão de esfera legislativa, quando
exacerbada (BARROSO, 2009, p. 373).
Ou seja, a declaração de inconstitucionalidade só deve ocorrer quan-
do não houver forma de se prevalecer o entendimento de que tal norma se
mostra válida. Aplicando a lógica no sentido contrário, a inconstituciona-
lidade deve estar em evidência para ser reconhecida.

183
DIMENSÕES JURÍDICAS DAS POLÍTICAS PÚBLICAS – VOL. 1

Já a interpretação conforme a constituição, que será apresentada mi-


nuciosamente nas páginas seguintes, profere que sempre que houver algu-
ma maneira de se interpretar a norma nos moldes constitucionais, sem que
a declare inconstitucional, contudo, será essa a forma válida a ser seguida.

2.3. PRINCÍPIO DA INTERPRETAÇÃO CONFORME A


CONSTITUIÇÃO

A interpretação conforme a Constituição deriva de crescente jurispru-


dência do Tribunal Constitucional Federal alemão e determina que dentre
as várias interpretações possíveis que decorre da leitura de determinada dis-
posição, deve-se levar em conta aquela que mais se assemelha aos ditames
constitucionais, sem extinção do texto (BARROSO, 2009, p. 193).
Este postulado guarda respeito ao princípio da supremacia da Constituição
uma vez que todos os atos normativos e volitivos do Poder Público devem
guardar simetria aos postulados constitucionais e, assim sendo, a interpre-
tação conforme a Constituição se mostra determinante. Nesta acepção
reflete a presunção de constitucionalidade das leis e atos do Poder Público,
devendo a extirpação da norma do mundo jurídico se dar como última
hipótese. Sobre o tema, é cirúrgico o apontamento de Jorge Miranda:

A interpretação conforme à Constituição não consiste tanto em


escolher entre vários sentidos possíveis e normais de qualquer pre-
ceito, o que seja mais conforme com a Constituição, quando em
discernir no limite – na fronteira da inconstitucionalidade – um
sentido que, conquanto não aparente ou não decorrente de outros
elementos de interpretação, é o sentido necessário e o que se torna
possível por virtude da força conformadora da Lei Fundamental.
(MIRANDA, 1983, p. 233)

Sua aplicação é determinada em quatro elementos, que residem, pri-


meiro, na escolha da interpretação que reflita harmonia com os preceitos
constitucionais, ainda que a norma legal admita outras possibilidades in-
terpretativas. Segundo, tem-se que não se mostra um método automático
de se encontrar a interpretação mais óbvia, contudo, busca-se encontrar
o sentido possível, tendo em vista as disposições constitucionais. Seu ter-

184
LU I Z A N TÔ N I O R E I S J U N I O R , M A U R I C I O P I R E S G U E D E S , T E L S O N P I R E S ,
VA N E S S A V E L A S C O, H E R N A N D E S B R I TO R E I S ( O R G . )

ceiro elemento trata da exclusão de outras formas de interpretação que


resultariam em sentido contrário à Constituição. E, em quarto lugar, por
fim, observa-se que sua natureza não é apenas de cunho hermenêutico,
conquanto uma vez operada a interpretação conforme à Constituição, de-
clara ilegítima determinadas interpretações, exercendo, assim, verdadeiro
controle de constitucionalidade (BARROSO, 2009, p. 194)
Há de ressaltar, entretanto, que não é unânime a incidência da inter-
pretação conforme a Constituição como princípio para interpretação das
normas constitucionais, refletindo apenas em critério para interpretação das
normas infraconstitucionais.
É o que defende Virgílio Afonso da Silva:

Quanto se fala em interpretação conforme a Constituição não se


está falando de interpretação constitucional, pois não é a Consti-
tuição que deve ser interpretada em conformidade com ela mesma,
mas as leis infraconstitucionais. A interpretação conforme a Cons-
tituição pode ter algum significado, então, como um critério para a
interpretação das leis, mas não para a interpretação constitucional.
(SILVA, 2005, p. 132-3)

Por outro lado, seu caráter instrumental como princípio de inter-


pretação das normas constitucionais, afiança que, como decorrência dos
princípios da supremacia constitucional e presunção de constitucionali-
dade, exerce real controle de constitucionalidade quando afasta interpre-
tações em desconformidade com a Constituição, da mesma forma que
exerce uma ação de correção destes entendimentos errôneos (BARRO-
SO, 2009. p. 373).

2.4. PRINCÍPIO DA UNIDADE DA CONSTITUIÇÃO

O princípio da unidade da Constituição outorga à Lei Fundamental


o caráter sistemático e o conceito de unidade do ordenamento jurídico,
apesar da imensidade de comandos normativos correntes (REALE, 1975,
p. 202). Este postulado decorre naturalmente do princípio da soberania
do Estado, pois se mostra impraticável a presença de multiplicidade de
ordens jurídicas paralelas vigentes no mesmo território.

185
DIMENSÕES JURÍDICAS DAS POLÍTICAS PÚBLICAS – VOL. 1

A técnica de ponderação dos princípios enquanto valores, por exem-


plo, revelam a ideia de unicidade. Isto é: aparentes contradições se resol-
vem na leitura da unidade do texto constitucional, como apontam Celso
Ribeiro Bastos e Carlos Ayres Britto:

Ele (o intérprete) terá de evitar as contradições, antagonismos e


antinomias. As Constituições compromissórias sobretudo, apre-
sentam princípios que expressam ideologias diferentes. Se, por-
tanto, do ponto de vista estritamente lógico, elas podem encerrar
verdadeiras contradições, do ponto de vista jurídico são sem dú-
vidas passíveis de harmonização desde que se utilizem as técnicas
próprias do direito. A simples letra da lei é superada mediante um
processo de cedência recíproca. Dois princípios aparentemente
contraditórios podem harmonizar-se desde que abdiquem da
pretensão de serem interpretados de forma absoluta. Prevalece-
rão, afinal, apenas até o ponto em que deverão renunciar à sua
pretensão normativa em favor de um princípio que lhe é anta-
gônico ou divergente. (BASTOS; BRITTO, 1982, p. 43)

É neste espírito que se revela o caráter instrumental do referido


princípio: a unicidade da Constituição estabelece o necessário equilíbrio
entre as disposições constitucionais, sendo necessária a análise em concreto
para se garantir determinado princípio em detrimento de outro, que con-
tinua tendo sua força normativa intacta (BARROSO, 2009, p. 374).

2.5. PRINCÍPIO DA RAZOABILIDADE OU DA


PROPORCIONALIDADE

Dentro do recorte escolhido para este trabalho, apresenta-se os prin-


cípios da razoabilidade e da proporcionalidade, conforme a doutrina de
Luís Roberto Barroso (2009), notadamente quanto à importância deste
princípio enquanto postulado instrumental de interpretação das normas
constitucionais, sem desconhecer, todavia, profunda discussão acerca da
diferenciação entre determinados princípios na doutrina constitucional38.

38 Como ponto de partida sobre a efetiva diferenciação entre os princípios da razoabilidade


e da proporcionalidade, v. SILVA (2002).

186
LU I Z A N TÔ N I O R E I S J U N I O R , M A U R I C I O P I R E S G U E D E S , T E L S O N P I R E S ,
VA N E S S A V E L A S C O, H E R N A N D E S B R I TO R E I S ( O R G . )

Firmada tal premissa, temos que os referidos princípios, em primeiro pla-


no, obrigam os órgãos públicos a legitimarem seus atos, restando ilícitos quando
não guardarem respaldo na proporcionalidade e razoabilidade. É valiosa a con-
tribuição de Agustín Gordillo ao tratar da aplicação destas diretrizes:

A decisão “discricionária” do funcionário será ilegítima, apesar de


não transgredir nenhuma norma concreta e expressa, se é “irra-
zoável”, o que pode ocorrer, principalmente, quando: a) não dê
os fundamentos de fato ou de direito que a sustentam ou; b) não
leve em conta os fatos constantes do expediente ou públicos e no-
tórios; ou se se funde em fatos ou provas inexistentes; ou c) não
guarde uma proporção adequada entre os meios que emprega e o
fim que a lei deseja alcançar, ou seja, que se trate de uma medida
desproporcionada, excessiva em relação ao que se quer alcançar.
(GORDILLO, 1977, p. 183-184)

Denota-se que a imposição destes princípios acarreta, inclusive, decla-


ração de inconstitucionalidades de atos normativos que se mostram despro-
vidos de razoabilidade e proporcionalidade (BARROSO, 2009, p. 240).
Em outras palavras, pode o Poder Judiciário invalidar atos volitivos
ou normativos da Administração Pública quando desarrazoada a adequa-
ção no fim perseguido e o instrumento que foi empregado, bem como
quando a medida não se mostre necessário, pois existem meios com con-
sequências menores para a resolução do mesmo caso.
Por fim, quando não haver proporcionalidade com o ganho da medi-
da, isto é, as consequências se mostrarem maiores que os ganhos, também é
passível de utilização deste postulado, que é um instrumento na proteção dos
direitos fundamentais e do interesse público (BARROSO, 2009, p. 240).

2.6. PRINCÍPIO DA EFETIVIDADE

Destaca-se que a noção de efetividade decorre da evolução contem-


porânea do Direito, principalmente constitucional, pois a doutrina clás-
sica remete comumente aos três planos de análise da norma: existência,
validade e eficácia.
Em linhas genéricas, enquanto a existência assimila a noção de ele-
mentos constitutivos, a validade do preenchimento de determinados re-

187
DIMENSÕES JURÍDICAS DAS POLÍTICAS PÚBLICAS – VOL. 1

quisitos e a eficácia na capacidade de produção de efeitos e consequências,


o conceito de efetividade traz a ideia de tornar concretas as disposições já
existentes, válidas e eficazes, como leciona Luís Roberto Barroso:

A noção de efetividade, ou seja, dessa específica eficácia, cor-


responde ao que Kelsen – distinguindo-a do conceito de vi-
gência da norma – retratou como sendo “o fato real de ela ser
efetivamente aplicada e observada, da circunstância de uma
conduta humana conforme à norma se verificar na ordem dos
fatos”. A efetividade significa, portanto, a realização do Direi-
to, o desempenho concreto de sua função social. Ela represen-
ta a materialização, no mundo dos fatos, dos preceitos legais e
simboliza a aproximação, tão intima quanto possível, entre o
dever-ser normativo e o ser da realidade social. [...] Efetividade
significa a realização do Direito, a atuação prática da norma, fa-
zendo prevalecer no mundo dos fatos os valores e interesses por
ela tutelados. Simboliza a efetividade, portanto, a aproximação,
tão íntima quanto possível entre o dever ser normativo e o ser da
realidade social. (BARROSO, 2009, p. 375)

O caráter instrumental deste princípio se revela na opção interpretati-


va a ser escolhida, isto é, dentre as espécies interpretativas postas à disposi-
ção do intérprete, deve ele, inspirado no princípio da especificidade, optar
por aquele que tornaria a lei concreta, que pudesse exprimir da vontade da
lei um ato realmente sólido no plano social.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Neste artigo, incialmente se diferenciou as normas constitucionais


das demais normas do ordenamento jurídico, a partir de sua superiori-
dade hierárquica, a natureza de sua linguagem, o conteúdo específico e
o caráter político das mesmas, valendo-se sobretudo da doutrina de Luis
Roberto Barroso (2009).
Por todas estas peculiaridades, a apresentação de métodos instru-
mentais de interpretação se mostra enquanto o produto metodológico da
tradução das particularidades das normas constitucionais para uma di-
reção mais exata na sua compreensão, interpretação e aplicação.

188
LU I Z A N TÔ N I O R E I S J U N I O R , M A U R I C I O P I R E S G U E D E S , T E L S O N P I R E S ,
VA N E S S A V E L A S C O, H E R N A N D E S B R I TO R E I S ( O R G . )

Viu-se a preconização da prevalência da norma constitucional (e de


sua interpretação) frente as demais normas do ordenamento (princípio da
supremacia da Constituição). A deferência aos atos legislativos é a base do
princípio da presunção de constitucionalidade das leis e atos do poder público, refe-
letindo a aplicação da teoria de separação dos Poderes, impondo que a
declaração de inconstitucionalidade se dê apenas em última medida con-
tra evidente arbitrariedade da lei.
A busca sempre que possível pela interpretação que guarda obediência
com os ditames constitucionais, que não precisa se valer de redução do
texto para tal implica na observância do princípio da interpretação conforme a
Constituição.
De grande relevância, viu-se que a investigação da Constituição, a
fim de se evitar aparentes conflitos interpretativos e permitir a interpre-
tação num todo, decorre da aplicação do princípio da unidade da Constitu-
ição. Além disso, existe a possibilidade de se interpretar de maneira ra-
zoável, proporcional e até poder se afastar a incidência da norma quando
se mostrar desproporcionada (princípios da razoabilidade ou proporcionalidade).
Ademais, o princípio da efetividade traduz a necessidade de se buscar
a interpretação que mais se mostre passível de restar concreta no plano
fático.
Em suma, a doutrina dos princípios instrumentais de interpretação
indicam possibilidades de interpretação e de aplicação das normas con-
stitucionais em uma extensão ampliada, valendo-se notadamente de suas
características próprias. Sua aplicação na ordem constitucional brasileira é
de grande valia, sobretudo quando vista em razão da unidade da Consti-
tuição e a necessidade de aplicação de seus preceitos básicos.
A apresentação dos princípios instrumentais de interpretação, todavia,
não afasta a contribuição decorrente da teoria dos direitos fundamentais,
notadamente acerca da proibição de ataque ao núcleo essencial de determi-
nado direito, bem como a interpretação e aplicação dos tratados de direitos
humanos no Brasil, especialmente a aplicação do princípio pro homine, que
ampliam o alcance dos direitos na ordem interna e internacional.
A sistematização realizada por Luis Roberto Barroso (2009) é impor-
tante passo para se dar ordem na interpretação das normas constitucionais,
embora muito dos temas tratados em sua obra implicam em demasiado
subjetivismo na aplicação da Constituição.

189
DIMENSÕES JURÍDICAS DAS POLÍTICAS PÚBLICAS – VOL. 1

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ALEXY, Robert. Theorie der Grundrechte. Frankfurt am Main:


Suhrkamp, 1985.

BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e aplicação da Constitui-


ção: fundamentos de uma dogmática constitucional transformadora.
7. ed. São Paulo: Saraiva, 2009.

BASTOS, Celso Ribeiro. Comentários à Constituição do Brasil. São


Paulo: Saraiva, 1988.

_______. Curso de direito constitucional. 17. ed. São Paulo: Saraiva,


1996.

_______; BRITTO, Carlos Ayres. Interpretação e aplicabilidade das


normas constitucionais. São Paulo: Saraiva, 1982.

BULOS, Uodi Lammêgo. Manual de interpretação constitucional.


São Paulo: Saraiva, 1997.

CADERMATORI, Luiz Henrique; DUARTE, Francisco Carlos. Her-


menêutica e argumentação neoconstitucional. São Paulo:
Atlas, 2009.

CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito constitucional e Teoria da


Constituição. 7. ed. Coimbra: Almedina, 2003.

DWORKIN, Ronald. Taking rights seriously. Cambridge: Harvard


University Press, 1978.

GORDILLO, Agustín. Princípios gerais de direito público. [Trad.


Marco Aurélio Grecco]. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1977.

LASSALE, Ferdinand. A essência da Constituição. Rio de Janeiro: Ed.


Liber Juris, 1985.

LIMA, Hermes. Introdução à ciência do direito. 31. ed. Rio de Janei-


ro: Freitas Bastos, 1996.

190
LU I Z A N TÔ N I O R E I S J U N I O R , M A U R I C I O P I R E S G U E D E S , T E L S O N P I R E S ,
VA N E S S A V E L A S C O, H E R N A N D E S B R I TO R E I S ( O R G . )

MENDES, Gilmar Ferreira; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso


de direito constitucional. 7. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva,
2012.

MORAES, Alexandre de. Direito constitucional. 15. ed. São Paulo:


Atlas, 2004.

REALE, Miguel. Teoria do direito e do Estado. 4. ed. São Paulo: Sa-


raiva, 1975.

SIEYÈS, Emmanuel Joseph. A Constituinte burguesa - que é o Ter-


ceiro Estado? Rio de Janeiro, Ed. Liber Juris, 1986.

SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 30.


ed. São Paulo: Malheiros, 2008.

SILVA, Virgílio Afonso da. Direitos fundamentais: conteúdo essen-


cial, restrições e eficácia. 2. ed. São Paulo: Malheiros Editores,
2011.

_______. Interpretação Constitucional. São Paulo: Malheiros Edito-


res, 2005.

_______. “Princípios e regras: mitos e equívocos acerca de uma distin-


ção”. Revista Latino-Americana de Estudos Constitucionais
v. 1, 2003.

_______. “O proporcional e o razoável”. Revista dos Tribunais, v. 798,


ano 91, 2002.

191
A CONSTITUIÇÃO BRASILEIRA
FRENTE AO RACISMO ENRAIZADO
NA SOCIEDADE
Ana Luiza Schmidt Baracho39
Lorena Chamone Vita40

INTRODUÇÃO

Esse artigo tem como eixo norteador abordar de uma maneira sucinta
um tema bastante atual que é o racismo na sociedade brasileira.
Assim, o primeiro capítulo nos traz a questão das relações raciais, pois
o Brasil, composto de 209,5 milhões de pessoas, onde 56% da população
são compostas por negros é importante salientar que, poucas vezes vemos
em salas de aulas, restaurantes e outros estabelecimentos, pessoas negras.
Logo em seguida, adentramos na questão conceitual do racismo, dis-
criminação, e o papel do estado no combate a essas práticas que infeliz-
mente ainda imperam nos dias de hoje.
Nesse sentido, o racismo estrutural, tema bem atual e pouco conheci-
do vêm à tona, juntamente com a questão da representação. Assim, surgem
os movimentos como “feminismo negro”, “vidas negras, importam?” e
“pretitudes” para corroborar com a temática e para cobrar mudanças não
só no judiciário, mas na sociedade como um todo com o objetivo de mos-
trar, cobrar e conscientizar uma postura dos atuantes da sociedade.

39 Graduanda da Faculdade Arquidiocesana de Curvelo/MG. Estagiária da Defensoria Públi-


ca de Minas Gerais.
40 Bacharela em direito. Pós graduanda em Direito Constitucional.

192
LU I Z A N TÔ N I O R E I S J U N I O R , M A U R I C I O P I R E S G U E D E S , T E L S O N P I R E S ,
VA N E S S A V E L A S C O, H E R N A N D E S B R I TO R E I S ( O R G . )

Assim, é necessário o reconhecimento das desigualdades raciais no


Brasil, com a finalidade de viabilização das pessoas negras e de que eles
existem, bem como para que ações afirmativas sejam implantadas e aplica-
das em nosso ordenamento jurídico, afim de que estes possam além de ter
seu lugar de fala respeitado e ouvido, os mesmos ocupem posições ditas
importantes e possam opinar de maneira efetiva em decisões importantes.
Desta forma, é necessário que todos trabalhem juntos, a fim de cons-
cientizar e mostrar o outro lado da moeda sendo, portanto, que cada um
ocupe sua posição, Estado e sociedade com a finalidade de respeito, igual-
dade e que seus direitos não sejam violados.

2. As relações raciais no Brasil

No Brasil, mesmo nos dias atuais ainda existe o racismo e o precon-


ceito em falas, olhares e atitudes, pois, o que para alguns é denominado
como uma atitude velada, para outros machuca e fere. Nesse aspecto é
importante pensarmos e repensarmos diversas atitudes, aplicando inclu-
sive a empatia para com o outro e abrir sempre que possível debate acerca
do tema.
Nesse sentido devemos buscar melhores condições e soluções para ti-
rar as pessoas negras do invisível e trazer a realidade para o cotidiano e para
os dias atuais, pois, como bem o autor RIBEIRO (2019) corrobora que:

“O problema não é a cor, mas seu uso como justificativa para


segregar e oprimir. Vejam cores, somos diversos e não há nada de
errado nisso — se vivemos relações raciais, é preciso falar sobre
negritude e também sobre branquitude”. (RIBEIRO, 2019, p.15).

É notório que um país de proporções continentais como o Brasil, cuja


população é de 209,5 milhões de pessoas, 56% de sua etnia é composta
por negros.
Desse modo, ainda são poucos os cargos de chefia ocupados pelos
negros no Brasil, uma vez que vivemos em uma sociedade elitista. É preo-
cupante a omissão de alguns entes públicos sobre a questão dos negros
ocuparem cargos de chefia, uma vez que a ausência de pessoas negras se
tornou algo natural para a sociedade, ao invés de ser algo inquietante.

193
DIMENSÕES JURÍDICAS DAS POLÍTICAS PÚBLICAS – VOL. 1

Sob esse prisma, devemos questionar porque em lugares como restau-


rantes, universidades, são poucos frequentados pela população negra, que
em muitos casos acabam ocupando os espaços de prestadores de serviços,
o que ocasiona a invisibilidade conforme bem enfatiza Ribeiro, “Muitas
vezes, as únicas pessoas negras presentes estão servindo mesas, ou se já fo-
ram consideradas suspeitas pela polícia por causa de sua cor”. (RIBEIRO,
2019, p.17)
Diante disso, percebe-se que é necessária uma maior conscientização
acerca das relações raciais, bem como um debate em redes sociais, em
casa, roda de amigos sobre o assunto, com a finalidade de minimizar e
respeitar o indivíduo participante de uma sociedade, com o objetivo de
inseri-lo em todos os locais como partícipe e que o mesmo seja respeitado.

2.1 Preconceito e discriminação racial

A Lei n. º 12.288/10 em seu art. 1º, parágrafo único, inciso I, nos


traz o conceito de discriminação racial, que tem como escopo garantir a
igualdade de oportunidades para a população negra bem como qualquer
forma de intolerância étnica ou discriminação racial, assim como reco-
nhece através do seu gozo ou exercício a igualdade de condições, direitos
humanos e liberdades fundamentais em diferentes esferas sejam elas polí-
ticas, econômicas, sociais ou culturais.
Por sua vez, SILVA, (2015) também menciona que é vedado qualquer
tipo de discriminação ou preconceito com base na origem, raça e cor,
conforme enfatizado:

O racismo indica teorias e comportamentos destinados a realizar e


justificar a supremacia de uma raça. O preconceito e discrimina-
ção racial são consequências da teoria. A cor só não era elemento
bastante, porque dirigida à cor negra. Nem raça nem cor abrangem
certas formas de discriminações com base na origem, como, por
exemplo, discriminações de nordestinos e de pessoas de origem
social humilde. (SILVA, 2015, p.225)

Nesse aspecto, a lei deve estruturar e se fazer valer, para que os direi-
tos de quem sofre qualquer tipo de preconceito ou descriminação sejam

194
LU I Z A N TÔ N I O R E I S J U N I O R , M A U R I C I O P I R E S G U E D E S , T E L S O N P I R E S ,
VA N E S S A V E L A S C O, H E R N A N D E S B R I TO R E I S ( O R G . )

respeitados e impostos, com o objetivo de conscientizar de que qualquer


prática que desrespeite o indivíduo deve ser “descartada”, a fim de cons-
truir uma sociedade mais respeitosa para todos.

2.2 O Racismo estrutural e o papel do judiciário

Em primeiro plano, racismo e racismo estrutural, são muito mais uma


problemática branca, do que o contrário e que devemos partir do pressu-
posto de desmistificar determinados conceitos, partindo da premissa de
que o racismo estrutural muitas vezes está relacionado a privilégios que a
branquitude traz consigo por muitos anos, uma vez ele está em qualquer
ambiente seja ele acadêmico, em serviços públicos ou no próprio senado
federal.
Sob essa ótica é bem verdade que a maioria das pessoas admite existir
racismo, mas que ele é algo bem distante, pois ninguém se assume como
racista muito pelo contrario, atitudes racistas são atitudes veladas, justifica-
das através de comportamentos e atitudes como empregar pessoas negras
em ambientes de trabalhos, porém tratá-los como uma pessoa inferior ou
até mesmo dizer ter amigos negros, mas adotar o mesmo comportamento
da situação anterior se torna a prática do racismo existente.
Para dirimir esses conflitos, incumbe ao poder judiciário, promover
a igualdade entre os povos, bem como repudiar o racismo, em qualquer
âmbito, além de adotar a adesão de tratados e acordo multilaterais, que re-
pudiam qualquer prática discriminatória que faça distinções entre homens
em razão de raça, cor, credo, descendência, origem nacional ou étnica, e
que ocasione práticas como “negrofobia” com o objetivo de superioridade
de um povo com relação ao outro.
Sob esse prisma, é de suma importância a participação conjunta da
sociedade e da população, pois, é necessária a promoção do respeito e
vedado qualquer tipo de preconceito com o outro, por qualquer que seja
o motivo, através da concretização e efetivação da lei, sendo inclusive ado-
tadas medidas que penaliza determinadas condutas assim como se faz ne-
cessárias a ocorrência de denúncias e que movimentos sociais continuem
existindo e reagindo frente à opressão e as injustiças. Somente assim, va-
mos conseguir juntos, combater essa prática e fazer com que todos avaliem
determinadas atitudes.

195
DIMENSÕES JURÍDICAS DAS POLÍTICAS PÚBLICAS – VOL. 1

3. Reflexões acerca da representação

É notório observar que acerca da representação é necessário falar, ler,


conversar e até mesmo ter uma maior visibilidade de pessoas negras com a
finalidade de inserção, assim como bem RIBEIRO (2019) esclarece que:

“Eu brinco que, muitas vezes, pessoas brancas nos colocam no lu-
gar de “Wikipreta”, como se nós precisássemos ensinar e dar todas
as respostas sobre a questão do racismo no Brasil. Essa responsabi-
lidade é também das pessoas brancas — e deve ser contínua. “(RI-
BEIRO, 2019, p.21)

Convém lembrar que qualquer individuo gostaria de ser representa-


do em qualquer ambiente e com pessoas negras não seria diferente. As-
sim, algumas atitudes poderiam ser adotadas como mostrar um livro para
crianças negras com personagens negros que falem sobre a temática ou
pesquisar se na escola de seus filhos faz parte da matriz curricular a Lei n.º
10639/2003 que versa sobre a Lei de Diretrizes e Bases da Educação no
ensino da história africana afro-brasileira para que os mesmos conheçam
suas origens e que a mesma deva ser respeitada ao ser abordada em sala de
aula, pois ao contrário do que dizem e pregam ser diferente é ser normal.
Nesse sentido, é importante conversar em casa, em reuniões de famí-
lia, de amigos, em redes sociais sobre o racismo, sempre conscientizando
as pessoas que é uma prática adotada e que devemos combatê-la, sempre
levantando a bandeira, militando e participando ativamente de movimen-
tos e buscando sempre conhecer a temática, pensando sempre fora da cai-
xa e quando desconhecemos determinado assunto, procurar aprender e
escutar sobre o tema.
Além disso, temos um movimento denominado como “feminismo
negro” em que as mulheres, buscam igualdade e respeito que perpassa
uma luta meramente identitária, sendo inclusive um movimento político
que visa à democracia e que toda mulher negra que se sinta lesada, ou sim-
plesmente queira participar, é bem vinda e possa sentir acolhida.
Desta forma, os movimentos “feminismo negro”, “vidas negras im-
portam”, “pretitudes”, dentre outros movimentos existentes, vêm com
o objetivo de conscientizar, cobrar e também nos mostrar outros

196
LU I Z A N TÔ N I O R E I S J U N I O R , M A U R I C I O P I R E S G U E D E S , T E L S O N P I R E S ,
VA N E S S A V E L A S C O, H E R N A N D E S B R I TO R E I S ( O R G . )

aspectos, sobre o que eles vêm passando e passam diariamente, e


que em sua maioria passa despercebido no qual a impunidade ainda se
faz presente. Assim, para conhecer esses projetos basta buscar esses nomes
nas mídias sociais e acompanhar suas postagens.

3.1 Reconhecimentos das desigualdades raciais no


Brasil

No contexto atual sobre o reconhecimento das desigualdades raciais


no Brasil existem diversas formas de se apresentar, seja através de uma ca-
racterística universal fazendo com que seres humanos não passem de um
simples nome sem qualquer tipo de significado ou sobre a liberdade natu-
ral que está relacionada ao estado da natureza onde prevalecia a igualdade
absoluta sobre uma nação.
Nesse aspecto, pessoas negras estão sujeitas ao preconceito em qual-
quer ambiente, pois “disfarçadamente ou, não raro, ostensivamente, pes-
soas negras sofrem discriminação até mesmo nas relações com entidades
públicas” (SILVA, 2015, p.224).
Convém lembrar que a desigualdade no ordenamento jurídico acon-
tece quando a norma distingue de forma não razoável ou arbitrária, fazen-
do necessários uma justificativa que seja objetiva e razoável e um juízo de
valor sempre em consonância com os direitos e garantias constitucionais
protegidos com o objetivo de proporcionar meios empregados para a fina-
lidade a que se deseja alcançar.
Sobre a temática o Estatuto da Igualdade Racial, através da Lei n.º
12.288/10 elenca em seu art. 1º, parágrafo único, inciso II, que é ga-
rantido por lei à efetivação da igualdade de oportunidades e veda qual-
quer prática que visa à discriminação e a qualquer forma de intolerân-
cia étnica. Nesse aspecto, podemos observar como sendo desigualdade
racial toda e qualquer situação injustificada que promova a exclusão do
individuo a quaisquer bens, serviços e/ou oportunidades sejam elas nas
esferas públicas ou privadas em virtude de raça, cor, descendência ou
origem nacional ou étnica, sendo inclusive esse tratamento considera-
do como crime.
Observa-se, portanto que, o conceito de desigualdade inviabiliza a
promoção da pessoa negra em qualquer ambiente que ele queira partici-

197
DIMENSÕES JURÍDICAS DAS POLÍTICAS PÚBLICAS – VOL. 1

par, pois, além de ser um direito previsto em lei, é um dever ético e moral
respeitar qualquer indivíduo, pertencente a uma sociedade.

3.2 Proteções Jurídicas contra o racismo no Brasil

A Constituição Federal de 1988 traz algumas proteções jurídicas no


que concerne a proteção do indivíduo, conforme bem estabelece o seu
art. 5º, sendo que em seu inciso III e XLII, existem algumas vedações a
qualquer prática de racismo, bem como a tortura ou qualquer tratamento
desumano ou degradante.
Nesse aspecto os direitos fundamentais se apresentam como um
princípio extrínseco no que se refere à dignidade da pessoa humana,
pois é um princípio que deve ser respeitado dentro do ordenamento
jurídico, conforme bem dispõe o art. 1º, inciso III da Constituição
Federal de 1988.
Sob a ótica dos direitos fundamentais, o art. 3º em seus incisos I, III e
IV, bem ilustra quais são os objetivos fundamentais da República Federa-
tiva do Brasil, e como principal objetivo pode-se citar a promoção do bem
de todos, sem preconceito de origem, raça, cor e quaisquer outras formas
de descriminação. (BRASIL, 1988).
Logo, em seu art. 4º, inciso VIII da Carta Magna, a República Fe-
derativa do Brasil, repudia qualquer prática de terrorismo e racismo que
venha a existir.
Apesar de a Constituição Federal elencar diversos direitos asse-
gurados, o que vemos na realidade é bem diferente, pois a luta pelos seus
direitos acaba sendo nula ou inexistente diante de tanta omissão. Nesse
aspecto a caminhada é longa, porém já demos alguns passos rumo ao res-
peito desses direitos.

4. O papel do Estado no combate ao crime de racismo

O Estado possui o dever de combater qualquer tipo de discriminação


existente, com a finalidade de resguardar e preservar o indivíduo como
participante de uma sociedade igualitária.
Nesse sentido, “a Constituição Federal de 1988 não traz em seu texto
condutas que são tipificadas como racismo, especialmente no tocante a

198
LU I Z A N TÔ N I O R E I S J U N I O R , M A U R I C I O P I R E S G U E D E S , T E L S O N P I R E S ,
VA N E S S A V E L A S C O, H E R N A N D E S B R I TO R E I S ( O R G . )

imprescritibilidade desse grave delito” (ALEXANDRINO; PAULO,


2010, p.69).
Vale ressaltar que nesse aspecto, o papel do Estado é essencial no com-
bate a qualquer prática e que os direitos previstos não devem só ficar no
“papel”, mas sua execução deve ser estabelecida, bem como, a participa-
ção de pessoas negras em ambientes e cargos públicos deve existir.

4.1 A discriminação racial e o princípio constitucional


da igualdade

Sobre a igualdade, o preâmbulo da Constituição Federal dispõe que


assegurado ao povo brasileiro, o exercício de direitos sociais e individuais.
Segundo SILVA (2015), o tema do princípio da igualdade, não mere-
ce discursos como a liberdade, pois as discussões, debates doutrinários e as
lutas obnubilaram aquelas, pois a igualdade é vista como signo fundamen-
tal da democracia. Desse modo a burguesia, jamais postulou um regime
de igualdade tanto quanto reivindicara o de liberdade, pois o regime de
igualde contraria seus interesses e dá a liberdade sentido material que não
se harmoniza com o domínio de classe em que assenta a democracia libe-
ral burguesa.
Como diserta o autor, sobre igualdade sem distinção de origem, cor
e raça:

O texto constitucional, que proíbe preconceito de origem, cor e


raça e condena discriminações com base nesses fatores, consubstan-
cia, antes de tudo, um repúdio à barbárie de tipo nazista que vitima-
ra milhares de pessoas, e consagra a condenação do apartheid, por
parte de um povo mestiço, com razoável contingente de negros. O
repúdio ao racismo nas relações internacionais foi, também, expres-
samente estabelecido (art. 4º VIII). (SILVA, 2015, p.224)

Diante disso, LENZA (2020) aborda em sua obra que o caput do


art. 5º dispõe somente sobre a igualdade formal e que essa conceituação
está um pouco equivocada, pois, ela também deveria abordar a igualdade
material, “o art. 5.º, caput, consagra serem todos iguais perante a lei, sem
distinção de qualquer natureza [...], mas, principalmente, a igualdade ma-
terial” (LENZA,2020, p.1307).

199
DIMENSÕES JURÍDICAS DAS POLÍTICAS PÚBLICAS – VOL. 1

Assim, o estado social ativo efetivador dos direitos humanos, se faz


necessário uma igualdade mais real no que concernem os bens da vida,
convergindo totalmente da prevista em lei.
Todavia, deve-se citar não somente a igualdade formal ao falar sobre
igualdade, mas também sobre a igualdade material, pois os direitos huma-
nos devem se valer em todos os seus aspectos.

4.2 Ações afirmativas e o racismo no Brasil

Antes de adentrar-se ao tema em questão, há uma conceituação bas-


tante abrangente do que vem a ser ações afirmativas. A Lei n.º 12.228/2010
elenca o conceito em seu art. 1º, inciso VI, no qual são entendidas como
políticas públicas, que tem como pretensão a correção de desigualdades
socioeconômicas procedentes de discriminação, atual ou histórica, sofrida
por algum grupo de pessoas. Assim, as políticas de ação afirmativa bus-
cam, por meio de um tratamento temporariamente diferenciado, promo-
ver a equidade entre os grupos que compõem a sociedade. (BERNAR-
DINO, 2002, p.257).
As ações afirmativas é um programa destinado a reparar as distorções
e desigualdades sociais existentes, conforme bem enfatiza o art. 4º pará-
grafo único do Estatuto da Igualdade Racial.
Sobre as cotas raciais, embora a desigualdade nas oportunidades
para pessoas negras seja iminente, é de suma importância que elas exis-
tem não como reparação aos danos sofridos pela escravidão que per-
durou por mais de 300 anos, mas como uma forma de oportunizar e
trazer equilíbrio para as relações, afim de que todos participem ativa-
mente da sociedade.
As ações afirmativas propõem-se abreviar a ação da igualdade, com o
alcance da paridade essencial dos grupos de vulnerabilidade social, como o
das étnicas e raciais, das mulheres, idosos, crianças entre outros.
Ao analisar os espaços que o negro ocupa, por exemplo, no âmbito
educacional, é necessário entender o motivo pelo o qual existe nos dias
atuais políticas afirmativas para tal segmente. Pois as ações afirmativas,
especialmente a política de cotas de acesso ao ensino superior, surgem
para favorecer um segmento histórico discriminado e desfavorecido em
consequência de formas de dominação existentes no passado. Desse modo

200
LU I Z A N TÔ N I O R E I S J U N I O R , M A U R I C I O P I R E S G U E D E S , T E L S O N P I R E S ,
VA N E S S A V E L A S C O, H E R N A N D E S B R I TO R E I S ( O R G . )

as cotas raciais, surgem como uma vitória do movimento negro, ultrapas-


sando assim as barreiras do racismo.
Contudo, as políticas afirmativas, vêm de encontro ás demandas do
movimento negro, no qual sempre reivindicou por uma igualdade de
oportunidade entre raças, buscando assim, garantir direitos que sempre
lhes foi negado. É possível afirmar também, acerca dos avanços no que
tange à educação do negro no Brasil, pois esses avanços são resultados de
luta sob o movimento negro brasileiro em busca de direitos.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Á luz das informações contidas, o princípio da igualdade deve preva-


lecer para tentar sanar práticas de preconceito e desigualdades raciais, ain-
da existentes nos dias atuais, pois, para que todos os partícipes da socieda-
de possam ser respeitados e para que se sintam efetivamente participantes
de uma sociedade é necessário que todos caminhem juntos.
Nesse aspecto, é primordial que qualquer pessoa que pratique atos
de violência, discriminação ou violência seja levada ao judiciário e que
através das leis essa pessoa seja realmente punida, afim de não cometer os
mesmos erros.
Convém lembrar que, outros direitos previstos em leis como cotas
raciais sejam utilizadas por pessoas negras e que o órgão fiscalizatórios,
fiscalizem o acesso, e promovam a interação para que todos os que dese-
jarem participar de um concurso público ou de uma universidade, possa
se sentir parte e acolhido, pois, as cotas raciais perpassam a “dívida” que
a sociedade possui em decorrência da escravidão que durou por mais de
300 anos, mas sim uma reparação por um erro tão inviável e descabido.
Nessa esfera, as ações afirmativas vêm para tentar coibir qualquer prá-
tica semelhante, sendo uma forma de inserção a esses direitos. Contudo,
mesmo com sua existência e validade, observamos que na prática a teoria é
bem diferente e que, o ordenamento jurídico deve se adequar a atualidade
e não o contrário e que é necessária uma participação ativa de todos.
É de suma importância ressaltar que o debate acerca das ações afir-
mativas no Brasil, é bastante discutido visto que muitos acreditam que,
por exemplo, as cotas para negros surgem como uma ação compensatória
devido ao processo de exclusão, discriminação, desigualdade no qual os

201
DIMENSÕES JURÍDICAS DAS POLÍTICAS PÚBLICAS – VOL. 1

negros sofreram durante séculos. E essa ação afirmativa busca inserir cada
vez mais a pessoa afrodescendente nas universidades públicas brasileiras,
ressaltando a igualdade e diversificação.
Portanto a inserção do negro no âmbito educacional possibilita maio-
res oportunidades no qual sempre foram escassas ou sofreram uma ascen-
são social.

REFERÊNCIAS

ALEXANDRINO, Marcelo e Vicente Paulo. Resumo de Direito


Constitucional Descomplicado.3ª edição, revista atualizada. Edi-
tora Método. São Paulo. 2010

BERNARDINO, Joaze. Ação Afirmativa e a Rediscussão do Mito


da Democracia Racial no Brasil. Revista Estudos Afro- Asiáti-
cos, ano. 24, n.º 2. 2002

LENZA, Pedro. Direito Constitucional Esquematizado. 24ª edição,


Editora Saraiva jur. 2020

RIBEIRO, Djamila. Pequeno Manual antirracista. Editora Compa-


nhia das Letras, 1ª Edição. 2019.

RIBEIRO, Djamila. Quem tem medo do feminismo negro? Edito-


ra Companhia das Letras; 1ª Edição. 2018.

SILVA, José da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 38º edi-


ção. 2015.

VADE, Mecum Saraiva Compacto.21 ª Edição. 2019.

202
JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL
BRASILEIRA: UMA LEITURA DO
PROCESSO OBJETIVO A PARTIR
DO MODELO DE JUSTIÇA
CONSTITUCIONAL LATINO-
AMERICANO
João Paulo Marques dos Santos41

INTRODUÇÃO

A jurisdição constitucional concentrada no Brasil, possui uma mística


que impede a análise do concreto, dos interesses das partes, do contraditó-
rio, da intervenção de terceiros, da arguição de suspeição ou impedimento
do julgador e etc., porém ela é facilmente superada, se analisada a partir do
modelo de Justiça Constitucional brasileiro adotou.
A Justiça Constitucional, a partir da perspectiva objetiva, possui uma
única função, a de proteger a Constituição e a sua supremacia, sendo ve-
dada qualquer análise que esteja relacionada às questões subjetivas, de inte-
resses secundários, alheios à proteção da Constituição, propriamente dita.
Essa ideia, apesar de bem difundida no âmbito teórico, não guarda
relação com os avanços da jurisdição constitucional no Brasil, pois a pró-
pria legislação passou autorizar a realização de audiências públicas, a mo-

41 Doutorando e mestre pela Faculdade Autônoma de Direito - FADISP. Bacharel em Direito


pela Faculdade Martha Falcão. Pesquisador da Academia Brasileira de Direito Constitucional
- ABDConst.

203
DIMENSÕES JURÍDICAS DAS POLÍTICAS PÚBLICAS – VOL. 1

dulação dos efeitos das decisões para não afetação do concreto de forma
substancial, a intervenção através de Amicus Curiae, além de, inclusive,
autorizar a produção de provas periciais, em alguns casos. Logo, o que
seria esses fatos, senão a manifestação do concreto no processo objetivo?
Estudos como o de Tavares (2007) e Herani (2015), buscam demons-
trar que a ideia restritiva do processo objetivo, quanto à sua pureza em
apenas defender a Constituição, por si só, já não encontra respaldo no
âmbito do direito brasileiro, pois vários institutos que são, notadamente,
de origem do processo subjetivo, estão sendo utilizados constantemente
no controle concentrado.
Assim, o objetivo da presente pesquisa é discutir a influência do mo-
delo de Justiça Constitucional adotado pelo Brasil na construção de um
novo modelo de jurisdição constitucional concentrada.
Com o fim de alcançar esse objetivo, a pesquisa foi dividida em quatro
tópicos. O primeiro tem a finalidade de esclarecer de forma geral o pro-
cesso objetivo e como ele é caracterizado. O segundo possui um viés mais
histórico, porém a ideia é analisar em que contexto o modelo europeu de
Justiça Constitucional para compreender a razão de ser do processo objeti-
vo e a necessária abstração dos fatos. O terceiro busca investigar o modelo
de Justiça Constitucional latino-americano, com o fim de enquadrar o
atual modelo brasileiro. O quarto tópico discutirá as questões do processo
objetivo e as influências recebidas a partir do processo subjetivo, relacio-
nando com modelo de Justiça Constitucional brasileiro.

2. JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL CONCENTRADA: O


PROCESSO CONSTITUCIONAL OBJETIVO

A idealização e a sistematização do processo objetivo são da lavra de


Kelsen (FIX-ZAMUDIO, 1968; TAVARES, 2007) que teorizou a juris-
dição constitucional a partir de um Tribunal Constitucional, com funções
jurisdicionais, mas desvinculado do Poder Judiciário. 
O processo objetivo consiste na análise abstrata da conformidade de
determinado ato legislativo para com a Constituição, ou seja, é o proces-
so pelo qual se garante a defesa da Constituição, de forma abstrata, sem
análise dos interesses subjetivos eventualmente existentes sobre a demanda
(CAMAZANO, 2000). Segundo Dimoulis e Lunardi (2019), o processo

204
LU I Z A N TÔ N I O R E I S J U N I O R , M A U R I C I O P I R E S G U E D E S , T E L S O N P I R E S ,
VA N E S S A V E L A S C O, H E R N A N D E S B R I TO R E I S ( O R G . )

objetivo está diretamente ligado à fiscalização da constitucionalidade abs-


trata, cuja:

[...] finalidade é defender o ordenamento jurídico, sua integrali-


dade e hierarquia normativa. Seu objetivo é fixar a interpretação
constitucional, propiciando certeza jurídica e evitando violações
de normas constitucionais. Trata-se de preservar a supremacia
constitucional, e não de tutelar direitos ou interesses subjetivos.
Isso torna desnecessária a presença dos elementos que garantem o
caráter dialético do processo tradicional. (DIMOULIS; LUNAR-
DI, 2019, p. 238)

Tavares (2007, p. 15) assevera que “A finalidade desse processo [o ob-


jetivo] é a certificação, manutenção e ratificação da supremacia constitu-
cional contra todos os comportamentos normativos (embora, na prática,
sempre com certas restrições quanto ao objeto que dela se desviem.”. 
Algumas características podem ser encontradas nas diversas doutrinas
que aborda a temática do processo objetivo. Dimoulis e Lunardi (2019)
enumeram algumas que são indispensáveis à caracterização desse proces-
so, in verbis:  

1. Não há partes propriamente ditas.

2. Sua finalidade é a defesa da Constituição, e não a tutela de in-


teresses individuais subjetivos, logo inexiste direito subjetivo de tutela.

3. Não são observadas a garantias individuais do princípio do con-


traditório e da ampla defesa. 

4. Não são verificados fatos nem se admitem provas. 

5. Aplica-se o princípio da busca da verdade pelo juiz, indepen-


dentemente da atuação das alegações dos interessados (sistema in-
quisitorial).

6. A fiscalização da constitucionalidade é um ato político.

7. Não se aceita pedido de desistência formulado pelo requerente.

8. Não se admite intervenção de terceiros.

9. A decisão não se vincula à causa de pedir. 

205
DIMENSÕES JURÍDICAS DAS POLÍTICAS PÚBLICAS – VOL. 1

10. Analisa-se a regularidade constitucional de um ato normativo


de maneira abstrata sem efeitos concretos. 

11. Não se admite arguição de suspeição ou de impedimento.

12. A decisão desenvolve, em linha de princípio, efeitos erga omnes


vinculantes ou vontade das partes. 

13. Os efeitos da decisão poder ser modulados, independentemen-


te de pedido ou vontade das partes.

14. Não se cria coisa julgada material.

15. Não se admite duplo grau de jurisdição nem ação rescisória.

16. As Cortes Constitucionais gozam de elevado grau de autono-


mia processual. (DIMOULIS; LUNARDI, 2019, p. 242)

Da análise dessas características, é possível perceber que a doutrina a


todo momento afirma que o concreto não é elemento do processo obje-
tivo, entretanto é possível fazer o seguinte questionamento: “As normas
constitucionais não possuem características concretas que afetam direta-
mente a vida das pessoas?”. 
Embora o processo objetivo vise garantir a primazia da supremacia
da Constituição, isso, não necessariamente, significa que não afete as
relações subjetivas entre particulares. A repercussão da declaração de
inconstitucionalidade pode afetar diretamente várias pessoas que en-
contraram naquela norma - declarada inconstitucional - a proteção da
relação jurídica firmada. A modulação dos efeitos da decisão em sede
de processo objetivo (p. ex.) é a prova que a decisão de inconstitucio-
nalidade influencia diretamente nas relações subjetivas de vários par-
ticulares. 
Hesse (1991) lembra que analisar a norma constitucional é investigar,
com ela, a realidade social, ou seja, é uma dicotomia indissociável, ligada
pelo ser e pelo dever-ser, pois a situação resguardada pela norma deve ser
concretizada a partir de uma realidade na sociedade. 
Ora, sendo a Constituição uma representação da realidade de uma
sociedade, as decisões em prol da Constituição, não estaria, portanto, re-
fletindo os fatores reais da sociedade? A defesa da Constituição não seria a
defesa da realidade social positivada em seu conteúdo?  

206
LU I Z A N TÔ N I O R E I S J U N I O R , M A U R I C I O P I R E S G U E D E S , T E L S O N P I R E S ,
VA N E S S A V E L A S C O, H E R N A N D E S B R I TO R E I S ( O R G . )

Essas questões conduzem ao pensamento que a defesa da Consti-


tuição representa, no fim, a defesa da própria sociedade, isto é, questões
concretas que estão além da mera positivação de determinados direitos.
Imagine que determinada norma ordinária passe a autorizar que as pes-
soas do sexo masculino tenham direito a 60% (sessenta por cento) das
vagas nas universidades e, as mulheres, 40% (quarenta por cento). Tal
norma além de violar o princípio da isonomia insculpido no art. 5.º,
I, da CF/88, incentivaria a discriminação de gênero, o que afrontaria,
também, um dos objetivos fundamentais da República, conforme art.
3º, IV, da CF/88. 
O julgamento dessa patologia constitucional não é apenas do con-
teúdo da norma que afronta a Constituição, mas um conjunto de pessoas
que teriam os seus mínimos direitos violados. Logo, pode-se dizer que a
Constituição representa, para o cidadão, o mínimo existencial para a ma-
nutenção da sua dignidade e que a proteção da Constituição é a defesa da
quota-parte de direitos do cidadão.
Sendo a violação da Constituição, a violação de uma realidade da so-
ciedade, a inconstitucionalidade pressupõe uma questão de direito ou de
fato, ou melhor, a análise dessa inconstitucionalidade deve-se dar no plano
abstrato ou no concreto? Eis a questão.

3. O CONTEXTO HISTÓRICO DA FORMAÇÃO DO


PROCESSO OBJETIVO DE CONSTITUCIONALIDADE

3.1. O Modelo de Justiça Constitucional Americano 

O primeiro modelo de controle de constitucionalidade judicial, sur-


giu nos Estados Unidos, sobretudo a partir do julgamento do caso Marbury
vs Madison, em 1803, onde fora estabelecido as premissas para a realização
do controle de constitucionalidade, declarando, desta feita, a primazia da
Constituição sobre os atos legislativos. 
Os Estados Unidos, adepto à tradição jurídica do common law, ado-
tou o modelo de Constituição rígida, cuja metodologia de reforma ou
revisão é extremamente dificultoso, demonstrando ser uma autêntica lei
fundamental, em especial porque o seu próprio texto a define como “Lei
Suprema” (STRECK, 2018).

207
DIMENSÕES JURÍDICAS DAS POLÍTICAS PÚBLICAS – VOL. 1

Embora a Constituição (1787) dos Estados Unidos não tenha previsto


de forma expressa o controle difuso de constitucionalidade, esta passou a ser
uma realidade com o caso Marbury vs. Madison, onde o juiz Marshall declara
a supremacia da Constituição em detrimento dos atos legislativos ordinários. 
Este caso surgiu após a derrota do partido dos federalistas nas eleições
de 1800. O, então, Presidente Adams há alguns dias do término do seu
mandato, decidiu preencher 67 (sessenta e sete) vagas de juiz, que foram
criados pelos federalistas, porém a nomeação deles somente ocorreria no
mandato do Presidente Jefferson, seu sucessor. Dentre as pessoas que se-
riam nomeadas como juízes, estava Marbury, que decidiu buscar o Ju-
diciário para ter garantido o seu direito à nomeação, já que não ocorrera
(SÁNCHEZ AGESTA, 1982; STRECK, 2018). 
A sentença de Marshall ponderou o valor da lei e da Constituição,
buscando responder qual delas deve ser aplicada a um caso concreto. Para
tanto argumentou que dada a existência de uma Constituição escrita, bem
como uma lei que é incompatível com o regime constitucional, a preva-
lência daquela é o caminho mais adequado para manutenção de um Esta-
do Constitucional de Direito (SÁNCHEZ AGESTA, 1982).
Após proferir essa sentença e instituir o marco do judicial review, esse
controle ficou adormecido por mais sessenta longos anos até a sua utili-
zação novamente. Porém, é fato que aquele julgado marcou o início da
jurisdição constitucional, na defesa da Constituição frente às patologias
legislativas que não respeitavam a sua autoridade e cogência. 

3.2. O modelo de Justiça Constitucional Europeu

Antes de adentrar no modelo de Justiça Constitucional propriamente


dito, é imprescindível entender o contexto histórico em que este mode-
lo foi desenvolvido, assim, garantirá uma compreensão mais completa da
evolução da jurisdição constitucional no mundo. 
Como restou demonstrado no tópico anterior, a primeira versão ou,
melhor, o primeiro modelo de Justiça Constitucional surgiu nos Estados
Unidos, em 1803. Então, a pergunta que deve ser feita é: “Por que a Eu-
ropa decidiu formular um modelo próprio ao invés de utilizar o modelo
americano que já possuía um delineamento mais consolidado?” (FAVO-
REU, 2004). 

208
LU I Z A N TÔ N I O R E I S J U N I O R , M A U R I C I O P I R E S G U E D E S , T E L S O N P I R E S ,
VA N E S S A V E L A S C O, H E R N A N D E S B R I TO R E I S ( O R G . )

A Europa, diferentemente dos demais países, concentrava a maioria


das Monarquias do mundo, por conta disso, havia uma dificuldade de
aceitação da existência de uma norma de hierarquia superior que pudesse
vincular todo o ordenamento jurídico, além do próprio Monarca (UR-
BANO, 2016). 
Assim, as Constituições que eventualmente surgiam da luta contra o
absolutismo, não possuíam um caráter material que seria marcado, prin-
cipalmente, pelos valores históricos, sociais e culturais de uma sociedade.
Ela estava mais ligada a um estatuto legitimador dos atos do Monarca, do
que um instrumento de formação de um Estado, privilegiando o caráter
orgânico ao material da Constituição (URBANO, 2016).
Além disso, à época, no final do século XIX e início do século
XX, era inconcebível atribuir a um Juiz ordinário o poder de confron-
tar o Poder Legislativo, o qual gozava de grande prestígio, o que não
acontecia com o Judiciário (BELAUNDE, 1999). Aliado a isso, a sa-
cralização da lei, fruto do dogma da infalibilidade da lei, muito difun-
dido por Rousseau, era algo muito difícil de ser superado, pois a ideia
vigente era que o direito estava arraigado à própria lei (FAVOREU,
2004; URBANO, 2016). 
Outro fator, era a ausência de unidade da jurisdição, pois, ao passo
que nos Estados Unidos não havia “(...) separação entre os contenciosos
e a dimensão constitucional pode estar presente em todos os processos,
sem necessitar um tratamento à parte e sem risco de chegar a divergências
de opinião sobre a constitucionalidade dos textos fundamentais” (FAVO-
REU, 2004, p. 21), em outros locais a existência de vários contenciosos
dificultava a instituição de um modelo de jurisdição constitucional como
era o caso dos países de tradição common law. 
Dadas essas condições, a adoção do modelo americano de Justiça
Constitucional restou frustrada, muito embora alguns países tivessem
tentado, como foi o caso da Itália e Alemanha, porém, não conseguiram
manter esse modelo. 
No final da Segunda Guerra Mundial, no entanto, surge o modelo
de Justiça Constitucional, teorizado por Hans Kelsen e que foi bem re-
cepcionado por vários países europeus. O sucesso desse modelo, segundo
Favoreu (2004) se deu por razões históricas, teóricas e políticas, respecti-
vamente: 

209
DIMENSÕES JURÍDICAS DAS POLÍTICAS PÚBLICAS – VOL. 1

(i) Favoreu (2004) assevera que na Alemanha e na Áustria, a ideia de


Corte Constitucional já era algo latente, pois o Tribunal do Império de-
sempenhava funções muito semelhantes, não obstante estar limitado aos
litígios federais.  
Além disso, a história demonstrou como a soberania do Poder Le-
gislativo pode ser cruel e opressora com a sociedade, sobretudo com o
ser humano. A necessidade de defender-se, fez com que o paradigma da
“infalibilidade da lei” fosse superada e a adoção de uma Justiça Constitu-
cional com o fim de defender a Constituição e garantir a fundação de uma
verdadeira democracia, sem dúvidas, foram os fatores para adoção de um
modelo que não garantisse a um juiz ordinário o controle de constitucio-
nalidade, pois sobre ele, não pairava, também confiança. Assim, a escolha
não seria outra, senão a criação de um Tribunal que não fizesse parte do
Poder Judiciário, mas com função jurisdicional e que a ele fosse atribuída
a defesa da Constituição (FAVOREU, 2004). 
(ii) Kelsen (2016) construiu a teoria da jurisdição constitucional com
bastante maestria. Ele parte de conceitos básicos, detalhando essa juris-
dição e como ela deve acontecer na prática. No entanto, a definição de
Constituição e a manutenção da regularidade formal do ordenamento são
fatos imprescindíveis para o sucesso dessa teoria, a qual é descrita de forma
sucinta abaixo.
Para Kelsen (2016), a Constituição é o fundamento do Estado e a base
de todo o ordenamento jurídico, onde “(...) traça princípios, diretivas,
limites, para o conteúdo das leis vindouras,” (KELSEN, 2016, p. 131). 
Porém, não basta apenas um conceito para a Constituição, a sua de-
fesa é indispensável para a manutenção da regularidade do ordenamen-
to jurídico, para sanar as patologias constitucionais. Assim, atribuir essa
missão a um dos Poderes tradicionais do Estado, a defesa da Constituição
pode não ser a medida primária, pois nenhum deles desempenhará esse
papel efetivamente quando o ato violador da Constituição decorrer de sua
própria estrutura. Aliás, não pode ser o Poder criador do ato violador da
Constituição, aquele que defenderá a sua normatividade.
Assim, a necessidade da criação de um Órgão que possua jurisdi-
ção, mas que não pertença ao Poder Judiciário foi o caminho traçado por
Kelsen (2016, p. 150), porém havia uma questão que precisava superar, a
supremacia do Parlamento. 

210
LU I Z A N TÔ N I O R E I S J U N I O R , M A U R I C I O P I R E S G U E D E S , T E L S O N P I R E S ,
VA N E S S A V E L A S C O, H E R N A N D E S B R I TO R E I S ( O R G . )

Nessa questão, Kelsen (2016, p. 151–152) desenvolveu o seguinte ra-


ciocínio: o Órgão responsável pela defesa da Constituição não substituirá
o Poder Legislativo, pelo contrário, ele também irá desempenhar a função
legislativa, porém, de forma negativa, pois, toda anulação de ato normati-
vo possui o mesmo caráter de generalidade que da sua elaboração. 
  (iii) A jurisdição constitucional europeia surgiu não apenas para
garantir a defesa da Constituição, mas para manutenir a democracia, ser-
vindo, inclusive como contrapeso às decisões políticas decorrentes da
maioria. Isso, demonstra o receio de um retorno da soberania do Poder
Legislativo que era impregnada por paixões eleitorais que nem sempre
tinham como foco a proteção das liberdades (FAVOREU, 2004). 
Sem dúvidas, todas essas perspectivas demonstram que o sucesso da
construção e da implantação da jurisdição constitucional europeia, decor-
reram de várias questões teóricas, políticas e históricas, porém, embora
vários países tenham adotado esse modelo, é muito raro encontrar um
país que tenha esse modelo de forma pura. As adaptações são necessárias,
em especial quando está diante de tradições jurídicas distintas. Esse movi-
mento não é exclusividade do sistema europeu, ocorrera também com o
americano, em alguns casos, como na América Latina, a hibridação é um
fenômeno comum, conforme será visto a seguir.  

4. O MODELO DE JUSTIÇA CONSTITUCIONAL


LATINO-AMERICANO

Os modelos tradicionais, americano e europeu, tiveram as suas signi-


ficativas participações na formação da jurisdição constitucional, todavia,
nos países da América do Sul, a partir do século XX, em sua maioria ado-
tou um modelo que comporta elementos tanto do controle difuso, quanto
do controle concentrado, acrescentando, entretanto, as regionalidades e as
características do seu modelo de jurisdição. 
Para essa hibridação, atribuiu-se a característica de um modelo mis-
to que é marcada pela impossibilidade da caracterização de apenas um
modelo de jurisdição constitucional. No Brasil, por exemplo, embora a
decisão em sede de controle difuso tenha efeitos inter partes, é fato que se
essa mesma decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal, em sede
de repercussão geral, os seus efeitos são para além das individualidades do

211
DIMENSÕES JURÍDICAS DAS POLÍTICAS PÚBLICAS – VOL. 1

caso posto em análise (SANTOS, 2019; TOLEDO; OLIVEIRA; SAN-


TOS, 2018).
No México, a criação do recurso de amparo para a defesa dos direitos
e garantias fundamentais consagradas na Constituição, garante uma am-
pliação do modelo incidental do americano, porém os seus efeitos são mais
restritos (NOGUEIRA, 1993; SEGADO, 2014).
Belaunde (1999, p. 130) considera que alguns países latino-ameri-
canos, como México, Venezuela e Colômbia “(...) tuvieron importantes
aciertos en el desarrollo y apuntalamiento del control constitucional y en
la defensa de los derechos humanos, ello no fue una creación ex novo, sino
una creación derivada (...).”. 
Embora acertada a hibridação dos modelos, Echaiz Espinoza (2020)
observa que não é possível a instituição de um modelo único para os países
latino-americanos, dadas as características regionais serem muito específi-
cas, o que leva cada um desses países a adotarem procedimentos diferentes.
Essa afirmação surgiu após comparar as jurisdições constitucionais do Chi-
le, Peru, Paraguai, Venezuela e Argentina, onde constatou “(...) uma ampla
diversidade de institutos e mecanismos processuais de defesa da Constitui-
ção (...) de tal forma que se torna impossível enquadrá-los em um único
modelo denominado de ‘misto’.” (ECHAIZ ESPINOZA, 2020, p. 113).
Posição parecida é a de Segado (2014) quando afirma que os modelos
ditos tradicionais foram desenhados com a finalidade de garantir, ao má-
ximo, a harmonia e racionalidade do sistema jurídico, por isso, buscar o
melhor dos dois modelos era um caminho natural, porém questões políti-
cas, culturais, históricas podem frustrar essa tentativa da elaboração desse
terceiro modelo.
Estabelecer parâmetros para formação de um modelo dito “misto”
dada as diversidades de que goza cada Estado, se mostra uma atividade
um tanto complexa. No entanto, essa abundância de variáveis é que faz
dos países latino-americanos, verdadeiros laboratórios de investigação da
Justiça Constitucional, pois a coexistência dos modelos do controle con-
centrado e difuso de constitucionalidade é algo natural. Sem falar que, em
muitos casos, o Tribunal Constitucional ou Órgão responsável pela defesa
da Constituição possui, também, natureza recursal. 
São essas as razões que levam a crer que os países latinos-americanos
gozam de um modelo híbrido de constitucionalidade, pois os mecanismos

212
LU I Z A N TÔ N I O R E I S J U N I O R , M A U R I C I O P I R E S G U E D E S , T E L S O N P I R E S ,
VA N E S S A V E L A S C O, H E R N A N D E S B R I TO R E I S ( O R G . )

processuais são tão específicos que não enquadrados em nenhum dos mo-
delos tradicionais, muito embora esses fazerem parte em maior ou menor
grau nas diversas jurisdições constitucionais desses países. 

5. O PROCESSO OBJETIVO ENQUANTO PROCESSO


CONCRETO E SUBJETIVO?

Tavares (2007) ao tratar do processo objetivo, alude que no Brasil há


uma realidade diferente dos demais países, pois é possível encontrar ele-
mentos deste processo no controle difuso de constitucionalidade, o que
demonstra a necessidade de investigações para além da discussão acerca
da autonomia e da existência do processo objetivo, ou seja, o estudo en-
vidado nesse tema deve ultrapassar a superfície da formalidade e chegar à
materialidade, onde as questões mais complexas podem ser encontradas. 
Assim, superar a “Regla que sintetiza el dogma de la no remisión
a la realidad.” (HERANI, 2015, p. 16) que é colocada por essas noções
restritivas é de suma importância para a superação da doutrina restritiva. 
Aliás, Tavares (2007) chama a atenção ao fato de a doutrina repro-
duzir as ideias restritivas que foram pronunciadas em alguns julgados do
STF (Representação n.º 1.016, ADI n.º 842, ADI-MC-QO- n.º 2.551/
MG), os quais dão conta de que o processo objetivo tem a finalidade de
defender à Constituição, ou seja, analisar a conformidade entre o objeto
do controle para com o parâmetro de forma abstrata, não considerando as
relações jurídicas concretas. 
Mendes (2001) assevera que essa noção restritiva vem sendo superada
pela dogmática, a qual considera inevitável a apreciação de dados da reali-
dade no processo, ou seja, a aplicação da lei como elemento objetivo é tri-
vial à própria metodologia jurídica que é baseada em fatos. Tavares (2007),
por sua vez, atribui essa noção reducionista a dois aspectos: 

(...) i) partia-se de uma premissa kelseniana, de que o Direito e os


fatos da vida não se tocavam e de que essa impermeabilidade alcan-
çava seu auge justamente no processo objetivo; ii) pressupunha que
a inconstitucionalidade seria, única e exclusivamente, uma relação
que se estabelece entre “normas” quer dizer, uma questão de Di-
reito e não uma questão concreta ou com referências e dependên-
cias fáticas.

213
DIMENSÕES JURÍDICAS DAS POLÍTICAS PÚBLICAS – VOL. 1

No entanto, “Hoje, não há como negar a ‘comunicação entre norma


e fato’ (Kommunikation zwischen Norm und Sachverhalt), que, como
ressaltado, constitui condição da própria interpretação constitucional.”
(MENDES, 2001, p. 6). Logo, os fatos concretos são tão relevantes que
eles são condicionantes das valorações realizadas pela Corte Constitucional,
pois as situações que a vida proporciona são maiores do que aquelas que o
legislador pode regulamentar em abstrato (ZAGREBELSKY, 2017).
No Brasil, embora o Supremo Tribunal Federal e uma parte da dou-
trina defenda a impossibilidade da análise concreta dos fatos em razão da
objetividade do controle concentrado, vale destacar que o próprio sistema
se utiliza de fatos para julgar determinadas ações do controle concentrado. 
A inconstitucionalidade formal, por exemplo, obriga uma análise do
procedimento e dos atos administrativos para a formação do ato normati-
vo. Outro exemplo, é a mutação constitucional que demanda do Supremo
Tribunal Federal uma constante análise das realidades sociais e econômi-
cas para que consiga atribuir a um dispositivo constitucional a interpreta-
ção condizente com o atual estágio evolutivo da sociedade em que àquela
Constituição está inserida (BULOS, 1996; FARIAS, 1997; TAVARES,
2007; TOLEDO; OLIVEIRA; SANTOS, 2018). 
  A modulação dos efeitos da decisão, também é outro fator que coloca
em “xeque” a abstração do processo constitucional, na ideia da separação
absoluta dos fatos concretos com o direito a ser analisado, o próprio art.
27, da Lei n. 9.868, de 10 de novembro de 1999, já alerta que em caso
de interesse social ou em vista de segurança jurídica - para não trazer
instabilidade às relações jurídicas concretas que já foram firmadas com
base na norma declara inconstitucional - o Supremo Tribunal Federal
poderá restringir os efeitos da decisão ou determinar que a eficácia da
decisão aconteça em outro momento que entender mais adequado. 
O STF possui orientação de que em situações excepcionais e, com
base numa ponderação concreta, poderá afastar a regra dos efeitos de de-
terminada decisão para modulá-la em prol do interesse social e da segu-
rança jurídica, in verbis: 

A norma contida no art. 27 da Lei n. 9.868, de 10 de novembro


de 1999, tem caráter fundamentalmente interpretativo, desde que se
entenda que os conceitos jurídicos indeterminados utilizados - se-

214
LU I Z A N TÔ N I O R E I S J U N I O R , M A U R I C I O P I R E S G U E D E S , T E L S O N P I R E S ,
VA N E S S A V E L A S C O, H E R N A N D E S B R I TO R E I S ( O R G . )

gurança jurídica e excepcional interesse social - se revestem de base


constitucional. No que diz respeito à segurança jurídica, parece não
haver dúvida de que encontra expressão no próprio princípio do Es-
tado de Direito consoante, amplamente aceito pela doutrina pátria e
alienígena. Excepcional interesse social pode encontrar fundamento
em diversas normas constitucionais. O que importa assinalar é que,
consoante a interpretação aqui preconizada, o princípio da nulidade
somente há de ser afastado se se puder demonstrar, com base numa
ponderação concreta, que a declaração de inconstitucionalidade
ortodoxa envolveria o sacrifício da segurança jurídica ou de outro
valor constitucional materializável sob a forma de interesse social.
(AI 474.708-AgR, rel. min. Gilmar Mendes, decisão monocrática,
julgamento em 17-3-2008, DJE de 18-4-2008.)

Outro julgado que corrobora a necessidade de observação dos fatos


concretos é a ADPF n, 347/DF, onde se julgou o estado de coisas incons-
titucional, onde se avalia vários fatos concretos para chegar à conclusão de
que os detentos cumprem as suas penas em condições desumanas, o que
violaria de forma massiva os direitos fundamentais. 
Inclusive, a Lei n. 9.868, de 10 de novembro de 1999, nos seus arts.
9º, §1º, e 20, §1º, autoriza, excepcionalmente, o Relator das ações de
controle de constitucionalidade, quando avaliar a necessidade de esclare-
cimento das matérias ou circunstâncias de fato ou de notória insuficiência
de informações nos autos, poderá realizar audiência pública para ouvir de-
poimento de pessoas com experiência e autoridade na matéria ou designar
perito para emissão de parecer. 
Estes dispositivos dão conta de que o Supremo Tribunal Federal no
controle objetivo das normas legais, não está adstrito dos fatos, sendo um
importante recurso para melhor compreender quais os impactos que a sua
decisão irá infringir na sociedade. A ideia, que fique claro, não é submeter
a interpretação constitucional aos fatos, mas observá-los para a tomada de
decisão mais adequada.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A jurisdição constitucional concentrada, fruto do modelo de Justiça


Constitucional Europeu, idealizada por Hans Kelsen, onde a realização do

215
DIMENSÕES JURÍDICAS DAS POLÍTICAS PÚBLICAS – VOL. 1

controle de regularidade do ordenamento constitucional de forma abstra-


ta surgiu a partir de um contexto histórico.
Ao importar esse modelo de jurisdição constitucional para o Brasil, a sua
inserção no ordenamento jurídico pátrio sofreu algumas adaptações, pois o mo-
delo de Justiça Constitucional vigente é distinto, o que se mostra compreensível.
Ao passo que a Justiça Constitucional na Europa fora teorizada a par-
tir de um Tribunal Constitucional ad hoc, que possui jurisdição, mas não
faz parte do Poder Judiciário, no Brasil, o nosso “Tribunal Constitucio-
nal” possui natureza recursal, adota dois modelos distintos de jurisdição
constitucional, o europeu e o americano, logo, a “pureza” de cada sistema
não subsistiria nesse ambiente.
O Brasil possui o modelo de Justiça Constitucional Latino-America-
no, cuja principal característica é a “hibridez” entre os modelos americano
e europeu, porém deve ser acrescentada a essa equação as características
específicas que cada país possui. O modelo híbrido é misto, não no sentido
de “junção”, mas no sentido de adoção de parte dos modelos tradicionais
e as regionalidades de cada país, transformando-o em um modelo único.
Por isso, deve ser superada essa noção equivocada de que no Brasil,
o controle de constitucionalidade concentrado só analisa a constitucio-
nalidade de uma norma em abstrato, quando, na verdade, se utiliza de
critérios que subjetiva esse modelo, ao ponto de estar mais próximo de um
processo subjetivo, na defesa dos interesses individuais.
A intervenção de “Amicus Curiae”, a exigência de prova pericial, a
realização de audiências públicas são alguns exemplos de que o nosso mo-
delo de jurisdição constitucional concentrada possui características pró-
prias, fruto do nosso modelo de Justiça Constitucional, e que não guar-
dam relação com a “pureza” da jurisdição constitucional europeia.
A ideia não é desconstruir a teorização daquele modelo de Justiça
Constitucional, mas chamar a atenção ao fato de que o nosso modelo é
diferente, ao ponto de que as nossas especificidades são de extrema rele-
vância para a definição do nosso atual modelo de jurisdição constitucional.

REFERÊNCIAS

BELAUNDE, García Belaunde. De la jurisdicción constitucional al dere-


cho procesal constitucional. Anuario iberoamericano de justicia

216
LU I Z A N TÔ N I O R E I S J U N I O R , M A U R I C I O P I R E S G U E D E S , T E L S O N P I R E S ,
VA N E S S A V E L A S C O, H E R N A N D E S B R I TO R E I S ( O R G . )

constitucional, España, n. 3, p. 121–156, 1999. Disponível em: ht-


tps://recyt.fecyt.es/index.php/AIJC/article/view/50077/30617. Aces-
so em: 9 set. 2020.

BULOS, Uadi Lâmego. Da reforma à mutação constitucional. Revista


de Informação Legislativa, Brasília, v. 33, n. 129, p. 25–43, 1996.

CAMAZANO, Joaquín Brage. La acción de inconstitucionalidad.


1. ed. México: Universidad Nacional Autónoma de México, 2000.
E-book.

DIMOULIS, Dimitri; LUNARDI, Soraya. Curso de processo cons-


titucional: controle de constitucionalidade e remédios cons-
titucionais. 6. ed. São Paulo: Revista dso Tribunais, 2019. E-book.

ECHAIZ ESPINOZA, Danielle Sales. Modelo(s) de Justiça Constitucio-


nal na América do Sul. Revista DIreito em Debate, Ijuí, v. 29, n.
53, p. 106–115, 2020. Disponível em: https://www.revistas.unijui.
edu.br/index.php/revistadireitoemdebate/article/view/9674. Acesso
em: 5 jun. 2020.

FARIAS, Paulo José Leite. Mutação constitucional judicial como meca-


nismo de adequação da Constituição Econômica à realidade econô-
mica. Revista de Informação Legislativa, Brasília, v. 34, n. 133,
p. 213–231, 1997.

FAVOREU, Louis. As cortes constitucionais. Tradução Dunia Mari-


nho Silva. São Paulo: Landy, 2004. E-book.

FIX-ZAMUDIO, Hector. Veinticinco años de evolución de la jus-


ticia constitucional. México: Universidad Nacional Autónoma de
México, 1968. E-book.

HERANI, Renato. La prueba de la inconstitucionalidad. Revista Estu-


dios Constitucionales, Santiago, v. 13, n. 1, p. 13–72, 2015.

HESSE, Konrad. A força normativa da Constituição. Tradução Gil-


mar Ferreira Mendes. Porto Alegre: Fabris, 1991. E-book.

KELSEN, Hans. Jurisdição Constitucional. 4. ed. São Paulo: WMF


Martins Fontes, 2016. E-book.

217
DIMENSÕES JURÍDICAS DAS POLÍTICAS PÚBLICAS – VOL. 1

MENDES, Gilmar Ferreira. Controle de constitucionalidade: herme-


nêutica constitucional e revisão de fatos e prognoses legislativos pelo
órgão judicial. Revista Diálogo Jurídico, Salvador, n. 3, p. 1–24,
2001.

NOGUEIRA, Alcalá. Humberto. La Justicia Constitucional como de-


fensa de la Constitución. Revista Chilena de Derecho, Chile, v.
20, n. 2–3, p. 417–439, 1993.

SÁNCHEZ AGESTA, Luis. La justicia constitucional. Revista de De-


recho Político, Madrid, n. 16, p. 7–26, 1982. Disponível em: ht-
tps://doi.org/10.5944/rdp.16.1982.8197. Acesso em: 9 set. 2020.

SANTOS, João Paulo Marques dos. Controle difuso de constituciona-


lidade em 30 anos de Constituição. In: CONGRESSO COME-
MORATIVO “30 ANOS DA CONSTITUIÇÃO DE 2019, Rio
de Janeiro. Leituras de direito público. Rio de Janeiro: Ágora21,
2019. p. 15–28.

SEGADO, Francisco Fernández. La búsqueda de una nueva tipología ex-


plicativa de los sistemas de justicia constitucional. In: CRUZ, Eto
Gerard (org.). Treinta años de jurisdicción constitucional en el
Perú. Lima: Centro de Estudios Constitucionales, 2014. E-book. Dis-
ponível em: https://www.tc.gob.pe/wp-content/uploads/2018/10/li-
bro_30_anos_tomo2.pdf. Acesso em: 9 set. 2020.

STRECK, Lenio Luiz. Jurisdição constitucional. Rio de Janeiro: Fo-


rense, 2018. E-book.

TAVARES, André Ramos. Processo “objetivo” como processo aberto ao


concreto. Revista Brasileira de Estudos Constitucionais, Belo
Horizonte, n. 4, p. 13–31, 2007.

TOLEDO, Renata Maria Silveira; OLIVEIRA, Maria Fernanda César


Las Casas de; SANTOS, João Paulo Marques dos. A mutação cons-
titucional do art. 52, X, da CF: evolução da Reclamação n.o 4.335-
5/AC às ADI’s 3.406/RJ e 3.470/RJ. In: 2018, Curitiba. XIII Sim-
pósio Nacional de Direito Constitucional. Curitiba: Academia
Brasileira de Direito Constitucional, 2018. p. 771–796.

218
LU I Z A N TÔ N I O R E I S J U N I O R , M A U R I C I O P I R E S G U E D E S , T E L S O N P I R E S ,
VA N E S S A V E L A S C O, H E R N A N D E S B R I TO R E I S ( O R G . )

URBANO, Maria Benedita. Curso de justiça constitucional: evolu-


ção histórica e modelos do controlo da constitucionalidade. 2.
ed. Coimbra: Almedina, 2016. E-book.

ZAGREBELSKY, Gustavo. Realismo Y Concreción Del Con-


trol De Constitucionalidad De Las Leyes En Italia. Revista de
la Facultad de Derecho de México, México, v. 57, n. 248,
p. 341–354, 2017. Disponível em: https://doi.org/10.22201/
fder.24488933e.2007.248.61512. Acesso em: 9 set. 2020.

219
(IN)CONSTITUCIONALIDADE DA
PRISÃO DO DEPOSITÁRIO INFIEL
E O SEU ENQUADRAMENTO NO
TRATADO DE SÃO JOSÉ DA COSTA
RICA
Eduardo Aires Franchi42
Larissa Puhl Bif43

INTRODUÇÃO

O presente trabalho consiste numa pesquisa a respeito da problemá-


tica levantada no que concerne à prisão do depositário infiel, enfatizando
a constitucionalidade do ato, bem como o controle de convencionalidade
sofrido. Assim, o objetivo do trabalho consiste em discorrer sobre o en-
tendimento e a aplicação do instituto, objetivando esclarecer a viabilidade
ou não no uso da sanção restritiva de liberdade ao depositário infiel.
Para desenvolver este projeto, será pesquisado material bibliográfico,
fundamentando-se na legislação vigente com o objetivo de fundamentar
as análises acerca do tema, enfatizando os clássicos, realizando cuidado-

42 Especialista em Direito Público e graduado em Direito pelo Centro Universitário Luterano


de Palmas (CEULP/ULBRA). Cursa Especialização em Direiro Agrário e Direito Notarial, Regis-
tral e Imobiliário pelo Instituto Júlio César Sanchez.
43 Especialista em Análise Criminal pela Universidade Católica de Brasília (UCB). Graduada
em Direito pelo Centro Universitário Luterano de Palmas (CEULP/ULBRA). Cursa Especializa-
ção em Direito Civil e Processo Civil pela Faculdade ITOP.

220
LU I Z A N TÔ N I O R E I S J U N I O R , M A U R I C I O P I R E S G U E D E S , T E L S O N P I R E S ,
VA N E S S A V E L A S C O, H E R N A N D E S B R I TO R E I S ( O R G . )

samente uma seleção de teorias cientificas, com a finalidade de apontar


argumentos favoráveis e contrários a respeito do problema apresentado.
A prisão por dívida no Brasil, atualmente, foi expressamente delimi-
tada pelo legislador constituinte pátrio, o qual é mencionado no artigo 5º,
LXVII da Constituição vigente. Deixa claro que a possibilidade de prisão
civil é apenas para casos de inadimplência de obrigação alimentícia, ou de
depositário infiel. Neste interim, o depositário infiel, por sua vez, será o
tema de foco para a confecção do presente artigo científico, uma vez que
se trata de polêmico assunto discutido quanto à sua constitucionalidade
ou não, mesmo depois de entendimento firmado pelo Supremo Tribunal
Federal.
O Pacto de San José da Costa Rica acarretou à aplicação da legislação
ordinária, a impossibilidade da prisão civil do depositário infiel. Quanto
à alegação de que se estaria infringindo o texto constitucional, esta não se
sustenta, uma vez que o controle de constitucionalidade presta-se a isso,
ou seja, serve para expurgar normas inconstitucionais do ordenamento
jurídico. Ademais, pode-se inferir que os direitos e garantias fundamen-
tais pertencem ao núcleo constitucional intangível, tendo, nos termos da
própria Constituição Federal, imediata e plena aplicação.
No âmbito dos direitos humanos fundamentais, deve-se entender que
não se há de falar em direito interno e externo, o que implica dizer que
se está diante de que extrapolam os limites territoriais do estado, sendo,
portanto, estruturados dentro de uma Comunidade Universal.

1. DIREITOS HUMANOS

Os direitos fundamentais podem ser cotados como a consolidação


formalizada de todos os direitos e garantias da pessoa humana que tem por
intento principal a consideração de sua dignidade, bem como a consigna-
ção de condições ínfimas de vida e efetivação da personalidade humana.

1.1. Direitos Fundamentais

Os direitos fundamentais, ou direitos humanos, são indispensáveis


para qualquer sociedade, haja vista que são inatos ao ser humano, na pro-
teção de sua esfera psíquica, social, individual, entre outras. Os direitos

221
DIMENSÕES JURÍDICAS DAS POLÍTICAS PÚBLICAS – VOL. 1

humanos fundamentais são denominados de ‘‘direitos humanos funda-


mentais, direitos humanos, direitos do homem, direitos individuais, di-
reitos públicos subjetivos, direitos fundamentais, liberdades públicas’’
(BULOS, 2010, p. 512). Assim, os direitos fundamentais, ou humanos,
são mandamentos nucleares da relação entre o individuo e a sociedade,
incluindo aí o poder estatal.
De acordo com Alexandre de Moraes (2014, p. 21), os direitos huma-
nos tem por finalidade a proteção e o respeito à dignidade das pessoas, por
intermédio da proteção contra o arbítrio do poder público e a efetivação
de condições mínimas de existência e desenvolvimento da personalidade.
Para Bulos, os direitos fundamentais consistem em ‘‘ conjunto de
normas, princípios, prerrogativas, deveres e institutos, inerentes á sobera-
nia popular, que garantem a convivência pacífica, digna, livre e igualitá-
ria.’’ Ainda, segundo o autor, sem esses direitos, a pessoa humana não vive
e, em certas circunstâncias, nem pode sobreviver (BULOS, 2010).

1.2. Dignidade da Pessoa Humana

A dignidade da pessoa humana constitui princípio basilar disposto


na Constituição Federal, possuindo valor essencial na ordem jurídica do
Estado Democrático de Direito, pois compreende um valor jurídico fun-
damental da sociedade. Com efeito, constitui atributo da pessoa humana
individualmente considerada, a qual não pode ser confundida com a refe-
rida humanidade como um todo.
De acordo com Kant:

O homem, e, duma maneira geral, todo o ser racional, existe como


fim em si mesmo, não só como meio para o uso arbitrário desta ou
daquela vontade. Pelo contrário, em todas as suas ações, tanto nas
que se dirigem a ele mesmo como nas que se dirigem a outros se-
res racionais, ele tem sempre de ter considerado simultaneamente
como fim (KANT, 2008, p. 32)

Com o exposto, o homem é um fim em si mesmo, e não como meio


de outra vontade, posto ser dotado de dignidade. Ao explicitar que todos os
seres racionais possuem um fim em si mesmo, Kant iguala todas as pessoas,

222
LU I Z A N TÔ N I O R E I S J U N I O R , M A U R I C I O P I R E S G U E D E S , T E L S O N P I R E S ,
VA N E S S A V E L A S C O, H E R N A N D E S B R I TO R E I S ( O R G . )

de modo tal que é aceitável estabelecer um paralelo do raciocínio do filósofo


com a igualdade enquanto fundamentos da dignidade pessoa humana.
A dignidade da pessoa humana consiste em valor diretamente perti-
nente a toda a pessoa humana, havendo uma nítida relação entre esta e os
demais Direitos Fundamentais, haja vista que estes são primordiais para
a assunção daquele. Por isso possui supremacia no ordenamento jurídico
pátrio, tal qual como o direito à vida, entre outros.
Quanto ao princípio da dignidade, Rodrigues (2006, p.94) faz a se-
guinte análise:

O princípio da dignidade da pessoa humana, fundamento de nossa


República (art. 1.º, III, da CF/88), deve desempenhar um impor-
tante papel na esfera de proteção do consumidor. Grosso modo,
relembrando as conhecidas lições de Kant sobre o tema, a digni-
dade é atributo daquilo que não tem preço. Seria paradoxal, assim,
falarmos de dignidade em tema correlato à circulação de riquezas
como é a proteção do consumidor? Obviamente que não, porque
determinados valores que integram a dignidade do homem con-
temporâneo só podem lhe ser assegurados se houver um consumo
mínimo. Assim, a degradação material de um homem reduzido a
uma condição de miséria absoluta afronta a sua dignidade).

Nesse cenário, é, também, analisado como característica comple-


mentar e irrenunciável da condição humana, obrigação a ser reconhecida,
reverenciada, efetivada e resguardada. Por ser inseparável a toda e qual-
quer pessoa, não devendo ser mera concessão do Direito, motivo pelo qual
constitui uma cláusula pétrea.
Como no âmbito jurídico nada é incondicional, pode se dizer que
outros princípios poderão ser minimizados, em prol da proporcionalida-
de, à dignidade da pessoa humana. Nesta toada, o qualquer pessoa merece
tratamento legal igualitário e respeitosa não podendo ser aceita lei ou in-
terpretação que atente contra a dignidade da pessoa humana.
Nas palavras de Ingo Wolfgang Sarlet:

A relação entre a dignidade da pessoa humana e as demais normas


de direitos fundamentais não pode, portanto, ser corretamente
qualificada como sendo, num sentido técnico-jurídico, de cunho

223
DIMENSÕES JURÍDICAS DAS POLÍTICAS PÚBLICAS – VOL. 1

subsidiário, mas sim caracterizada por uma substancial fundamen-


talidade que a dignidade assume em face dos demais direitos fun-
damentais. É nesse contexto que se poderá afirmar, na esteira de
Geddert-Steinacher, que a relação entre a dignidade e os direitos
fundamentais é uma relação sui generis, visto que a dignidade da
pessoa assume simultaneamente a função de elemento e medida
dos direitos fundamentais, de tal sorte que, em regra, uma viola-
ção de um direito fundamental estará sempre vinculada com uma
ofensa à dignidade da pessoa (SARLET, 2011, p. 104).

A prática de ações desprezíveis, ainda que não ocasione a perda da


dignidade, assenta quem os perpetra numa espécie de dessemelhança na
sua relação com os seus iguais. Deste modo, para que se resguarde o prin-
cípio da dignidade pessoal contra terceiras pessoas aceita-se certa relativi-
zação, especialmente quando se trata de proteger a dignidade de todos as
pessoas que compõe certo tipo de grupo social (SARLET, 2011).

2. PRISÃO CIVIL E O DEPOSITÁRIO INFIEL: UMA


ANÁLISE À LUZ DO POSICIONAMENTO DO SUPREMO
TRIBUNAL FEDERAL

2.1. Prisão Civil

A prisão civil é aquela que não decorre da prática de um ilícito defini-


do na lei como delito. É, em apertada síntese, a privação da liberdade indi-
vidual de alguém, com o objetivo exclusivo de obrigar o inadimplemento
ao cumprimento de certa obrigação, cujo descumprimento acarreta em
uma sanção de natureza coercitiva (MORAES, 2014).
Por sua vez, Álvaro Azevedo (2000, p. 43) preleciona com sua perspi-
cácia de constitucionalista, que:

A prisão de que trata a Constituição é de natureza civil. Com isto


quer-se significar que ela não visa a aplicação de uma pena, mas
tão-somente a sujeição do devedor a um meio extremamente vio-
lento de coerção, diante do qual, é de presumir, cedam resistências
do inadimplente. É por isso que, paga a pensão ou restituído o bem
depositado, automaticamente cessa a prisão.

2 24
LU I Z A N TÔ N I O R E I S J U N I O R , M A U R I C I O P I R E S G U E D E S , T E L S O N P I R E S ,
VA N E S S A V E L A S C O, H E R N A N D E S B R I TO R E I S ( O R G . )

Assim, a prisão civil é realizada no âmbito estritamente de Direito


Privado, pois consuma-se em razão de uma dívida não paga, ou seja, de
um dever ou de uma obrigação descumprida e fundada em norma jurí-
dica de natureza civil, objetivando a prisão civil do depositário infiel e do
alimentante descumpridor de dever alimentar.
Yussef Cahali, citando Amílcar de Castro, ensina que:

A prisão civil é meio executivo de finalidade econômica; prende-


-se o executado, não para puni-lo, como se criminoso fosse, mas
para força-lo indiretamente a pagar, supondo-se que tenha meios
de cumprir a obrigação e queira evitar a prisão ou readquirir sua
liberdade (...) decreta-se a prisão civil, não como pena, não com
o fim de punir o executado pelo fato de não ter pago a prestação
alimentícia, mas sim com o fim, muito diverso, de coagi-lo a pa-
gar (...) a prisão civil é meio de experimentar a solvabilidade ou
e vencer a má vontade daquele que procura ocultar o que possui
(CASTRO apud CAHALI,1994, p. 789).

Consequentemente, pode-se concluir que a prisão civil se distingue


das prisões penal e administrativa, tendo a mesma, por natureza jurídica,
o caráter coercitivo de sanção civil.
A prisão penal é prevista na legislação criminal e é decretada quando
os princípios reconhecidos por esta são ameaçados ou violados. Esta apre-
senta caráter de pena, de punição; tendo por objetivo não só puni-lo, mas
para educar, recuperar através desta punição, essa pessoa segregada como
perigosa para a sociedade.
Na prisão administrativa, existe grande polêmica sobre sua aplicação
na atualidade, mas havia, anteriormente à Carta Magna de 1.988, a decre-
tação ocorreria para assegurar a defesa dos interesses do serviço público,
por meio de autoridade administrativa ou judiciária, não tendo natureza
processual penal (MORAES, 2014).
Assim, se o descumprimento da obrigação for involuntária, justifica-
do ou ainda sem qualquer culpa por parte do inadimplente, liberado estará
o devedor de qualquer responsabilização. Neste sentido, se manifesta o
inigualável Azevedo (2000, p. 45):

Se o descumprimento for involuntário, sem qualquer participação


da vontade do devedor, nenhuma culpa pode existir de sua par-

225
DIMENSÕES JURÍDICAS DAS POLÍTICAS PÚBLICAS – VOL. 1

te. O mesmo acontece, também, quando a situação impeditiva do


pagamento ocorre em razão de fenômeno natural (caso fortuito)
ou de acontecimento causado por terceiro (força maior) ou, ainda,
pelo próprio credor.

A prisão civil, como já vimos, não apresenta o caráter de pena, mas de


meio coercitivo, imposto visando o cumprimento de determinada obri-
gação, tendo como requisito de sua imposição que o inadimplemento do
devedor de obrigação alimentícia e do depositário infiel seja voluntário e
inescusável. Dessa forma, possui caráter de sanção civil, de modo a com-
pelir o depositário, tido como infiel, ou o devedor de alimentos, ao cum-
primento da referida obrigação.
Quanto à natureza jurídica, pode-se dizer que a evolução da prisão
civil se verifica por meio de características diversas. Nos primórdios, a
prisão civil apresentou caráter de servidão humana, pois o devedor se tor-
nava servo do credor, devendo trabalhar para ele, com sua família, até o
pagamento do valor da dívida. Depois, a prisão civil passou a assumir um
caráter específico de aprisionamento, privado ou público, de pena, tendo
como competência o Estado, que investido de sua soberania, determinava
e estabelecia normas jurídicas. De tais normas ou comandos jurídicos, o
Estado garantia, dentro de um grupo social, a paz ameaçada pelos conflitos
de interesses entre os seus membros.
Por fim, a prisão civil tornou-se simples experiência de solvabilidade
do devedor, fato este presente na atual Constituição Federal do Brasil, onde
a prisão passa apenas de caráter punitivo para um meio compulsivo, em que
o principal objetivo é constranger o devedor ao pagamento de sua dívida.
Contudo, a natureza da prisão civil possui uma função não somente
de punição, mas também de mero cumprimento da obrigação contratual
pactuada entre as partes, constrangendo a pessoa com a perda da liberda-
de, para proporcionar a realização de um interesse econômico. Em con-
sequência disso, os valores das obrigações contratuais invadiram o terreno
dos direitos humanos fundamentais, em que, anteriormente ao próprio
Direito, a pessoa humana é titular de atributos decorrentes, até mesmo,
de elementos naturais.
Antes de mencionar e adentrar ao contexto do atual tratamento cons-
titucional da prisão civil, necessária se faz uma apresentação sucinta do

226
LU I Z A N TÔ N I O R E I S J U N I O R , M A U R I C I O P I R E S G U E D E S , T E L S O N P I R E S ,
VA N E S S A V E L A S C O, H E R N A N D E S B R I TO R E I S ( O R G . )

tratamento dispensado ao tema em nossas Constituições anteriores. Nesse


sentido, Diana Rabelo de Oliveira expõe de forma clara todo o processo:

Historicamente, a primeira Constituição Federal brasileira que


tratou de garantir o direito à liberdade humana face ao direito
patrimonial foi a Constituição de 1934, que em seu art. 113
estabelecia que não haveria prisão por dívidas, multas ou custas.
Já a Constituição de 1937 nada mencionava sobre tal situação, o
que dava ao legislador ordinário a opção de criar e regulamen-
tar possibilidade de prisão civil, que já não era mais objeto de
garantia constitucional. A Constituição Federal de 1946 resta-
beleceu a garantia proibitiva da prisão por “dívida, multa ou
custas” (OLIVEIRA, 2014).

Por sua vez, a Constituição de 1988 dispõe que ninguém será preso
po dívida, estando a prerrogativa arrolada juntamente com os direitos e
garantias fundamentais, contúdo, manteve as ressalvas do depositário in-
fiel e do devedor de alimentos. Nesse sentindo, apresentou grande avanço
ao delimitar que o inadimplemento do devedor de alimentos e do depo-
sitário infiel deve ser voluntário e inescusável, ou seja, “é preciso que o
devedor queira descumprir sua obrigação e não tenha qualquer desculpa,
para tanto” (AZEVEDO, 1993, p. 64).

2.2 O Supremo Tribunal Federal e o Fim da Prisão do


Depositário Infiel no Brasil

Composto no total por 81 artigos, também conhecido como Con-


venção Americana Sobre os Direitos Humanos, esse pacto traçou as bases
a serem seguidas pelos países membros a partir do dia 18 de Julho de 1978,
na cidade de San José da Costa Rica. Santiago (2011, p. 02) cita os princi-
pais objetivos do Pacto de San José da Costa Rica:

Tem como objetivo estabelecer os direitos fundamentais da pes-


soa humana, como o direito à vida, à liberdade, à dignidade, à in-
tegridade pessoal e moral, à educação, entre outros similares. A
convenção proíbe ainda a escravidão e a servidão humana, trata
das garantias judiciais, da liberdade de consciência e religião, de

227
DIMENSÕES JURÍDICAS DAS POLÍTICAS PÚBLICAS – VOL. 1

pensamento e expressão, bem como da liberdade de associação e


da proteção a família.

Através desse pacto são delimitados dois órgãos para análise de atos
que infrinjam as regras expostas pelo pacto, são elas: a Comissão Inte-
ramericana de Direitos Humanos e a Corte Interamericana de Direitos
Humanos. Com a criação da Comissão Interamericana de Direitos Hu-
manos, surge o órgão responsável por avaliar situações em que os direitos
humanos supostamente estão sendo violados nos seus países membros.
A Corte Interamericana de Direitos Humanos tem a função de julgar
os casos, analisar os fatos expostos e decidir se os mesmos infringiram os
direitos protegidos pelo Pacto. A adesão do Brasil a esse Pacto aconteceu no
ano de 1992, no dia 26 de Maio, durante o governo do presidente Itamar
Franco. Somente no dia 6 de Novembro de 1992 o pacto entrou em vigor
no Brasil e é tido como o principal Pacto Internacional seguido pelo país.
A questão do depositário infiel é tratada no artigo 7º do Pacto de San
José da Costa Rica. Conforme esse artigo “Ninguém deve ser detido por
dívida. Este princípio não limita os mandados de autoridade judiciária
competente expedidos em virtude de inadimplemento de obrigação ali-
mentar”. Nota-se então que a adesão desse pacto contraria a Constituição
Federal de 1988 no seu artigo 5º, inciso LXVII. Sobre isso, Melgaço e
Moreno (2015, p. 02) citam que:

A dúvida então estava implantada. A aceitação do pacto de São José


da Costa Rica no Brasil teria revogado tacitamente a prisão por dívi-
da do depositário infiel ou a Convenção citada não teria o poder de
se sobrepor a uma norma constitucional? Para alcançar uma solução
para este conflito de normas era necessário determinar o valor hie-
rárquico do tratado internacional que era o Pacto de São José.

Uma das grandes discussões acerca do assunto do depositário infiel é


sobre a posição que essas normas assumiriam ao serem incorporadas trata-
dos pelo Brasil. Sobre isso, Mazuolli (2002) cita que:

O texto constitucional de 1988, como se sabe, salvo no que diz


respeito aos tratados de proteção dos direitos humanos, que têm
índole e nível constitucional (art. 5.º, § 2.º), em nenhum de seus

228
LU I Z A N TÔ N I O R E I S J U N I O R , M A U R I C I O P I R E S G U E D E S , T E L S O N P I R E S ,
VA N E S S A V E L A S C O, H E R N A N D E S B R I TO R E I S ( O R G . )

dispositivos estatuiu, de forma clara, qual a posição hierárquica


do direito internacional perante o nosso direito interno. Deixou
para a jurisprudência e para a doutrina esta incumbência. A Excel-
sa Corte brasileira (Supremo Tribunal Federal), há mais de vinte
anos (desde 1977) já firmou de modo praticamente absoluto seu
posicionamento no que diz respeito a esta matéria. Esclareça-se
que estamos tratando, aqui, dos tratados internacionais comuns ou
tradicionais. A sistemática de incorporação dos tratados de prote-
ção dos direitos humanos no ordenamento brasileiro não é objeto
deste estudo (MAZUOLLI, 2002).

O artigo 5º da Constituição Federal de 1988 cita quanto à introdução


de norma Internacional no Direito Interno Brasileiro. Segundo o Inciso
II do Art. 5º:

§ 2º  - Os direitos e  garantias expressos nesta Constituição não


excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela
adotados, ou dos tratados internacionais em que a República
Federativa do Brasil seja parte.

Conforme exposto por Mazuolli, caberá à jurisprudência e a dou-


trina analisar os casos de introdução de norma internacional em direito
interno brasileiro. E posterior a isso, definir qual a posição que as normas
devem assumir no direito interno.
A Emenda Constitucional nº 45 de 31 de Dezembro de 2004, trouxe
alterações quanto à forma de se analisar a introdução de norma interna-
cional. Essa emenda introduziu o parágrafo terceiro ao artigo 5º. Segundo
esse parágrafo “§ 3º Os tratados e convenções internacionais sobre direitos
humanos  que forem aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional,
em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão
equivalentes às emendas constitucionais”.
Nota-se então que segundo essa emenda, tratados como o Pacto de
San José da Costa Rica, que ditam sobre direitos humanos assumiriam o
mesmo poder de normas constitucionais. Observa-se também, que para
ser aceito um tratado, ele deve ser aprovado pelo Congresso Nacional, ad-
quirindo uma votação de três quintos dos votos, assumindo então o poder
de emendas constitucionais.

229
DIMENSÕES JURÍDICAS DAS POLÍTICAS PÚBLICAS – VOL. 1

Sobre essa questão, Carvalho (2013, p. 08) cita que:

A Emenda Constitucional n. 45 se destinou a reformar a estru-


tura da função jurisdicional do Poder e, curiosamente, estabele-
ceu um novo parâmetro para tentar dirimir o problema herme-
nêutico do art. 5º, § 2º da Carta Magna. Exatamente com este
mister foi introduzido o § 3º ao mesmo art. 5º da Constituição
Federal em vigor.

Na visão do autor, observa-se que a introdução do parágrafo terceiro


a Constituição Federal de 1988 era uma tentativa de resolver uma brecha
deixada pelo parágrafo segundo sobre a introdução de normas de tratados
internacionais no direito interno brasileiro. Quanto a essa hierarquia de
normas, Sgarbossa (2015, p. 01) discorre sobre a emenda Constitucional
nº 45 cita que:

No Brasil, existe uma tendência em situar as normas internacio-


nais no mesmo plano hierárquico que as normas infraconstitu-
cionais, conferindo, em geral, o mesmo grau hierárquico de lei
ordinária às normas internacionais. Tal entendimento é predo-
minante, quer na doutrina, quer nos pretórios, equiparando-se
as normas internacionais à lei ordinária e submetendo ambas à
Constituição Federal.

Na visão de Sgarbossa, essas normas internacionais, submetem-se


a normas expressas pela Constituição Federal, assumindo o patamar de
normas ordinárias. Surgem três vertentes sobre a Emenda Constitucional
nº 45, quanto a isso Carvalho (2013, p. 14) cita que:

A propósito desta polêmica, três correntes se formaram. A primei-


ra delas advogando o entendimento que os tratados internacionais
de direitos humanos aprovados antes da Emenda Constitucional n.
45 gozam de status legal. A outra corrente sustenta que os tratados
internacionais de direitos humanos que já tinham sido apreciados
pelo Congresso Nacional ingressaram na ordem jurídica com nível
supralegal. Finalmente a terceira corrente que percebe a dignidade
constitucional de tais instrumentos internacionais.

230
LU I Z A N TÔ N I O R E I S J U N I O R , M A U R I C I O P I R E S G U E D E S , T E L S O N P I R E S ,
VA N E S S A V E L A S C O, H E R N A N D E S B R I TO R E I S ( O R G . )

Para o autor, a emenda constitucional trouxe critérios que possam ser


analisados os tratados e assim, esses serem inseridos no ordenamento jurídi-
co interno. Destaque nesses critérios é a análise pelo Congresso Nacional.
A revogação da Súmula 619 em 03 de Dezembro de 2008 pelo STF
também representa um grande marco para tornar ilícita a prisão de depo-
sitário infiel. Segundo essa súmula “A prisão do depositário judicial pode
ser decretada no próprio processo em que se constitui o encargo, inde-
pendentemente da propositura de ação de depósito”. Sendo que com a
sua revogação, não existia mais entendimento pelo STF que essa forma de
prisão seja aceita. A Súmula 25 vai de encontro com o fim da Súmula 619.
Nesse sentido, a Súmula nº 25 de 16 de Dezembro de 2015 expõe que
não é mais considerada lícita, ou seja, legal a prisão de depositário infiel.
Fato que até então era aceito e previsto em texto constitucional no inciso
LXVII. Em acórdão proferido no julgamento do Habeas Corpus nº 72131
realizado em 23 de novembro de 1995 o Supremo Tribunal Federal crista-
lizou sua posição favorável à prisão civil do devedor da alienação fiduciária
em garantia.

HC 72131 / RJ - RIO DE JANEIRO HABEAS CORPUS Re-


lator(a): Min. MARCO AURÉLIO Relator(a) p/ Acórdão: Min.
MOREIRA ALVES Julgamento: 23/11/1995 Órgão Julgador:
Tribunal Pleno Publicação: DJ 01-08-2003 PP-00103 EMENT
VOL-0211740 PP-08650 Parte(s) PACTE. : LAIRTON ALMA-
GRO VITORIANO DA CUNHA IMPTE. : MARCELLO
FERREIRA DE SOUZA GRANADO COATOR : TRIBU-
NAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO
INTDO. SATEPLAN CONSORCIOS LTDA ADVDO. : VIL-
MAR JOSÉ ARRABAL DE CARVALHO ADVDOS. : JOSÉ
EDUARDO RANGEL DE ALCKMIN E OUTRO Ementa
EMENTA: “Habeas corpus”. Alienação fiduciária em garantia.
Prisão civil do devedor como depositário infiel. - Sendo o deve-
dor, na alienação fiduciária em garantia, depositário necessário por
força de disposição legal que não desfigura essa caracterização, sua
prisão civil, em caso de infidelidade, se enquadra na ressalva con-
tida na parte final do artigo 5º, LXVII, da Constituição de 1988.
– Nada interfere na questão do depositário infiel em matéria de

231
DIMENSÕES JURÍDICAS DAS POLÍTICAS PÚBLICAS – VOL. 1

alienação fiduciária o disposto no § 7º do artigo 7º da Convenção


de San José da Costa Rica. “Habeas corpus” indeferido, cassada a
liminar concedida (STF – HC: 72131 RJ, Relator: MARCO AU-
RÉLIO, Data de Julgamento: 23/11/1995, Tribunal Pleno, Data
de Publicação: DJ 01-08-2003 PP-00103 EMENT VOL-02117-
40 PP-08650).

Em 03 de dezembro de 2008, ao julgar a legalidade da prisão do


depositário infiel, o Supremo Tribunal Federal redesenhou a posição
dos tratados internacionais no ordenamento jurídico brasileiro. Os mi-
nistros definiram que os tratados valem mais do que a legislação infra-
constitucional, mas menos do que a Constituição Federal. No caso da
prisão civil, o Pacto de São José da Costa Rica a permite só para devedor
de pensão alimentícia. A Constituição brasileira permite também para o
depositário infiel.
De acordo com a hierarquia definida pelo Supremo, a previsão cons-
titucional da prisão prevalece sobre o tratado. Este, no entanto, revoga
a toda e qualquer norma infraconstitucional que regulamenta a prisão,
que cai num vácuo legislativo: permanece na Constituição, mas nunca
vai poder ser aplicada por alta de regulamentação. Os ministros Celso de
Mello (revendo seu entendimento) e Ellen Gracie queriam que os tratados
internacionais sobre Direitos Humanos fossem automaticamente elevados
à condição de emenda constitucional. Mais conservadores, os demais mi-
nistros negaram a elevação automática para não verem revogados disposi-
tivos constitucionais por tratados internacionais.
Desta forma, a tese atualmente adotada pelo Supremo no que tange
aos tratados internacionais sobre direitos humanos é a da supralegalidade,
que Gilmar Mendes em seu voto proferido no Recurso Extraordinário
466.343-1, assim defende:

Nesse sentido, é possível concluir que, diante da supremacia da


Constituição sobre os atos normativos internacionais, a previsão
constitucional da prisão civil do depositário infiel (art. 5º, inci-
so LXVII) não foirevogada pela ratificação do Pacto Internacional
dos Direitos Civis e Políticos (art. 11) e da Convenção Americana
sobre Direitos Humanos– Pacto de San José da Costa Rica (art.

232
LU I Z A N TÔ N I O R E I S J U N I O R , M A U R I C I O P I R E S G U E D E S , T E L S O N P I R E S ,
VA N E S S A V E L A S C O, H E R N A N D E S B R I TO R E I S ( O R G . )

7º, 7), mas deixou de ter aplicabilidade diante do efeito paralisan-


te desses tratados em relação à legislação infraconstitucional que
disciplina a matéria, incluídos o art. 1.287 do Código Civil de
1916 e o Decreto- Lei n° 911, de 1º de outubro de 1969. Tendo
em vista o caráter supralegal desses diplomas normativos inter-
nacionais, a legislação infraconstitucional posterior que com eles
seja conflitante também tem sua eficácia paralisada. É o que ocor-
re, por exemplo, com o art. 652 do Novo Código Civil (Lei n°
10.406/2002), que reproduz disposição idêntica ao art. 1.287 do
Código Civil de 1916. Enfim, desde a ratificação pelo Brasil, no
ano de 1992,do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos
(art. 11) e da Convenção Americana sobre Direitos Humanos –
Pacto de San José da Costa Rica (art. 7º, 7), não há base legal para
aplicação da parte final do art. 5º, inciso LXVII, da Constituição,
ou seja, para a prisão civil do depositário infiel. De qualquer for-
ma, o legislador constitucional não fica impedido de submeter o
Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos e a Convenção
Americana sobre Direitos Humanos – Pacto de San José da Costa
Rica, além de outros tratados de direitos humanos, ao procedi-
mento especial de aprovação previsto no art. 5º, 3º, da Constitui-
ção, tal como definido pela EC n° 45/2004, conferindo-lhes status
de emenda constitucional.

O Ministro Celso de Mello, em 1995, após longa dissertação a


respeito da hierarquia das normas dos tratados internacionais, entendeu
a submissão das normas dos tratados à Constituição que autoriza, ex-
cepcionalmente, a prisão civil do depositário infiel. Discorreu também a
respeito da não condição de prisão por ilícito penal, sendo o depositário
infiel protegido pela cela especial, longe dos criminosos comuns. Por esses
argumentos, acompanhou o voto do Ministro Moreira Alves, indeferindo
o habeas corpus.
Em 12/03/2008, no HC87585/TO, o Ministro mudou radicalmente
seu posicionamento e não só votou pela concessão da ordem ao depositá-
rio infiel, como atribuiu status constitucional aos tratados internacionais
sobre direitos humanos.
Assim, no julgamento do HC87585, em 03/12/2008, o STF, em de-
cisão unânime, se posicionou contra a prisão civil do depositário infiel.

233
DIMENSÕES JURÍDICAS DAS POLÍTICAS PÚBLICAS – VOL. 1

Votaram pela aprovação antes de o tratado virar emenda: Gilmar Mendes,


Cármem Lúcia, Ricardo Lewandowski, Carlos Britto e Menezes Direito.
Votaram pela elevação automática: Celso de Mello, Cezar Pelluso, Ellen
Gracie e Eros Grau. Não votou: Marco Aurélio.
A doutrina e a Jurisprudência caminham de maneira pacífica, no en-
tendimento de que os tratados internacionais tradicionais têm hierarquia
de norma infra constitucional, vale dizer, lei ordinária federal. A própria
Constituição federal de 1988, ao prever em seu art. 102, inciso III, letra
“b”, ser de competência do Supremo Tribunal Federal “julgar mediante
recurso extraordinário, as causas decididas em única ou última instância,
quando a decisão recorrida declarar a inconstitucionalidade de tratado ou
lei federal”, está estabelecendo a hierarquia infra constitucional dos trata-
dos internacionais convencionais.
Muitos dos doutrinadores entendem estarem os tratados internacio-
nais em mesma hierarquia das leis ordinárias federais, não havendo supre-
macia destas sobre os tratados ou daqueles sobre as leis. Segundo eles, uma
norma jurídica votada por maioria simples (tratado internacional) não tem
o condão de revogar norma constitucional que exige quórum privilegia-
do. O entendimento da Jurisprudência, e particularmente do Supremo
Tribunal Federal, é justamente no sentido da paridade hierárquica das
normas dos tratados internacionais com as leis ordinárias federais, enten-
dimento este já firmado antes da promulgação da carta de 1988.
Embora se respeite o posicionamento jurisprudencial, não se pode
negar que tal situação leva, inexoravelmente, ao entendimento de que os
tratados podem ser revogados por leis ordinárias federais posteriores se
forem estas, incompatíveis. Acontece que, como bem assevera Flávia Pio-
vesan (2011), isso contraria o princípio da boa fé, além de afrontar a Con-
venção de Viena em seu artigo 27, segundo o qual, não cabe ao Estado
invocar disposições de seu direito interno como justificativa para o não
cumprimento do tratado.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Os tribunais apresentaram as razões da não aplicação da pena de prisão


ao depositário infiel, redesenhando, assim, a posição dos tratados interna-
cionais sobre direitos humanos. Pagar dívida com a liberdade é pagá-la

234
LU I Z A N TÔ N I O R E I S J U N I O R , M A U R I C I O P I R E S G U E D E S , T E L S O N P I R E S ,
VA N E S S A V E L A S C O, H E R N A N D E S B R I TO R E I S ( O R G . )

com o próprio corpo. Shakespeare já satirizava tal situação no século XIV,


em sua peça, O Mercador de Veneza, quando o personagem Antônio tem
de pagar sua dívida coma própria carne.
Reconhecer tal possibilidade é regredir no tempo. O direito inter-
nacional dos direitos humanos preserva a dignidade da pessoa humana,
mantém direitos fundamentais de todo e qualquer indivíduo, preserva,
em última análise, o direito a uma vida digna. Ao ponderarmos as normas
do direito brasileiro com o direito internacional, deveremos observar e
aplicar aquela que respeita e obedece aos princípios acima elencados, pois
assim, estaremos protegendo o ser humano.
Internacionalizar os direitos humanos é garantir de maneira unifor-
me a dignidade da pessoa humana através da institucionalização das suas
normas de maneira global. Independente da já discutida hierarquia das
normas dos tratados internacionais de direitos humanos, o Brasil ao assi-
nar, votar e ratificar a Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto
de San José da Costa Rica) firmou o dever de cumpri-la em todos os seus
artigos, sob pena de enquadramento nas sanções previstas.
A solução encontrada pelo STF, adotando a tese da supralegalidade,
foi conveniente, porém longe da ideal. Os ministros, de forma unânime
votaram contra a prisão do devedor, mas chegaram a tal entendimento por
caminhos diversos, ainda relutantes em reconhecer a primazia do Direito
Internacional.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

AZEVEDO, Álvaro Villaça. Prisão civil por dívida. São Paulo: Revista
dos Tribunais, 1993.

AZEVEDO, Álvaro Villaça. Prisão civil por dívida. 2. ed. São Paulo:
Revista dos Tribunais, 2000.

BRASIL. Constituição de 1988. Disponível em: <www.planalto.gov.


br> Acesso em: 10 set. 2020.

BRASIL, Supremo Tribunal Federal. Habeas Corpus nº 72131. Rela-


tor: MARCO AURÉLIO. Disponível em: <www.stf.jus.br>> Aces-
so em: 10 set. 2020.

235
DIMENSÕES JURÍDICAS DAS POLÍTICAS PÚBLICAS – VOL. 1

BRASIL, Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário nº


466.343-1. Relator: Cezar Peluso. Disponível em: <www.stf.jus.
br> Acesso em: 10 set. 2020.

BULOS,UadiLâmmego. DireitoConstitucional.Saraiva:SãoPaulo,2010.
CARVALHO, Wellinton. Tratados internacionais de Direitos
humanos anteriores à emenda Constitucional 45: o problema
do Status normativo. Disponível em: http://www.fdv.br /publi-
cacoes /periodicos/revistadireitosegarantiasfundamentais/n8/11.pdf.
Acesso em: 08 set. 2020.

CASTRO apud CAHALI, Yussef Said. Dos alimen-


tos. 2. ed. 2ª tiragem. São Paulo: RT, 1994, p. 789.
KANT, Immanuel. Fundamentação da Metafísica dos Cos-
tumes. Tradução de Paulo Quintela - Lisboa: Edições 70, 2008.
MAZZUOLI, Valerio de Oliveira. Prisão civil por dívida e o pac-
to de San José da Costa Rica: especial enfoque para os contratos de
alienação fiduciária em garantia. Rio de Janeiro: Forense, 2002.

MELGAÇO, Danilo e MORENO, Ícaro. Comentários sobre o Pac-


to de San José da Costa Rica. Disponível em: http://brasildireito.
wordpress.com/2010/1 0/26/comentarios-sobre-o-pacto-de-san-jo-
se-da-costa-rica/. Acesso em: 08 set. 2020.

MORAES, Alexandre. Direito Constitucional. Atlas: São Paulo, 2014.

OLIVEIRA, Diana Rabelo de. Prisão civil no direito brasileiro Con-


teudo Juridico, Brasilia-DF: 10 set 2020. Disponivel em: https://
conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/38728/prisao-civil-no-
-direito-brasileiro. Acesso em: 10 set 2020.

PIOVESAN, Flávia. Direitos humanos, democracia e integração


jurídica: avançando no diálogo constitucional e regional. Rio de Ja-
neiro: Lumen Juris, 2011.

RODRIGUES, Geisa de Assis. A proteção ao consumidor como um


direito fundamental.  Revista  de Direito do Consumidor.  n. 58.
Revista dos Tribunais: abr – jun. 2006.

236
LU I Z A N TÔ N I O R E I S J U N I O R , M A U R I C I O P I R E S G U E D E S , T E L S O N P I R E S ,
VA N E S S A V E L A S C O, H E R N A N D E S B R I TO R E I S ( O R G . )

SANTIAGO, Emerson. Pacto de São José da Costa Rica. Disponível


em:http://www.info escola.com/direito/pacto-de-sao-jose-da-cos-
ta-rica/. Acesso em: 08 set. 2020.

SARLET, Ingo Wolfgang.  Dignidade  da pessoa humana e direitos


fundamentais na Constituição Federal de 1988. Porto Alegre:
Livraria do Advogado, 2011.

SGARBOSSA, Luís Fernando. A Emenda Constitucional nº 45/04 e


o novo regime jurídico dos tratados internacionais em maté-
ria de direitos humanos. Disponível em: http://jus.com.br /artigos
/6272/a-emenda-constitucional-n-45-04-e-o-novo-regime-juridi-
co-dos-tratados-internacionais-em-materia-de-direitos-humanos.
Acesso em: 08 set. 2020.

SILVA, José Afonso. Curso de Direito Constitucional Positivo. Sarai-


va: Malheiros, 2010.

237
ARTIGOS – DIREITOS
FUNDAMENTAIS

239
CORONAVÍRUS E DIREITOS
HUMANOS: ESTUDO SOBRE A
VIOLAÇÃO DO DIREITO À VIDA, À
LIBERDADE E À SEGURANÇA NA
PANDEMIA
Hiana de Lima Melo44
Maria Gabriela Gama de Oliveira45
Jurema Cristina Martins Bernardo46
Anne Heracléia de Brito e Silva47

INTRODUÇÃO

Presentemente o Brasil e boa parte dos países do mundo enfrenta a


pandemia do coronavírus. Tal vírus pode se apresentar de diferentes for-
mas dependendo do infectado, variando de assintomáticas, um quadro
leve de gripe ou graves sintomas de síndrome respiratória aguda, exigindo
atendimento hospitalar e/ou tratamento em Unidades de Terapia Inten-
siva (UTI).

44 Acadêmica do curso de Bacharelado em Serviço Social pela Cristo Faculdade do Piauí-


CHRISFAPI
45 Acadêmica do curso de Bacharelado em Serviço Social pela Cristo Faculdade do Piauí-
CHRISFAPI
46 Acadêmica do curso de Bacharelado em Serviço Social pela Cristo Faculdade do Piauí-
CHRISFAPI
47 Psicóloga e Docente da CHRISFAPI

24 1
DIMENSÕES JURÍDICAS DAS POLÍTICAS PÚBLICAS – VOL. 1

O coronavírus é de fácil transmissão e, devido isto, o Brasil vem que-


brando recordes diariamente de novos infectados e mortes pela doença cau-
sada pelo vírus. Dessa forma, devido tantas infecções e, sobretudo, mortes,
surgiu-se o questionamento em compreender como os direitos à vida, à segu-
rança pessoal e à liberdade estão sendo violados na pandemia do COVID-19,
estes expressos no artigo 3º da Declaração Universal dos Direitos Humanos.
Ademais, devido às medidas tomadas pelos órgãos sanitários de dis-
tanciamento social na tentativa de reduzir o contágio dos brasileiros, mui-
tas questões foram levantadas acerca de como mulheres, crianças e ado-
lescentes e idosos vítimas de violência estão passando por este momento,
haja vista estarem compartilhando deste isolamento com seus agressores/
abusadores. Algumas campanhas foram iniciadas por empresas privadas e
Organizações Não Governamentais (ONG’s) a fim de facilitar a denúncia
pelas vítimas ou por testemunhas, entretanto, até o presente momento
não foi publicizado de modo amplo iniciativas governamentais de alerta e
atenção para as vítimas.
Também devido decretos de fechamento de estabelecimentos, não
circulação em parques, praças, praias, entre outros ambientes de circula-
ção, muitos questionamentos surgiram no tocante ao direito à liberdade,
o direito de ir e vir. Será que tais medidas são arbitrárias, inconstitucionais
ou despóticas?
Logo, a fim de compreender e responder algumas questões que surgi-
ram dentro desse cenário atípico que vivenciamos na atualidade, este estu-
do objetiva primariamente investigar como está ocorrendo à violação dos
direitos humanos expressados no artigo 3º da Declaração Universal dos
Direitos Humanos no contexto da pandemia do COVID-19. Por conse-
guinte, tem-se como objetivos específicos: analisar a violação do direito à
segurança pessoal a partir das medidas de isolamento social e seus agravos
à integralidade física e psicológica de mulheres, crianças e adolescentes;
compreender o direito à vida no cenário pandêmico do Brasil e a violação
desse direito à pacientes com COVID-19; e avaliar como as medidas de
isolamento social interferem no direito à liberdade. Deste modo, a pesqui-
sa visa contribuir em tais aspectos para cooperar no entendimento social
de dos mesmos e, também, acrescentar no conhecimento científico de
questões tão relevantes e precisas não apenas para o presente momento,
mas para a ciência como um todo.

24 2
LU I Z A N TÔ N I O R E I S J U N I O R , M A U R I C I O P I R E S G U E D E S , T E L S O N P I R E S ,
VA N E S S A V E L A S C O, H E R N A N D E S B R I TO R E I S ( O R G . )

1. A VIOLAÇÃO DO DIREITO À SEGURANÇA PESSOAL A


PARTIR DAS MEDIDAS DE ISOLAMENTO SOCIAL E SEUS
AGRAVOS À INTEGRALIDADE FÍSICA E PSICOLÓGICA
DE MULHERES, CRIANÇAS E ADOLESCENTES

A pandemia do novo coronavírus tem alterado a rotina de grande


parte da população mundial. O aumento de casos ao redor do mundo
resultou na necessidade da adoção de medidas para contenção do vírus.
Diversos países, entre eles o Brasil, adotaram as recomendações da OMS.
Dentre as medidas recomendadas destaca-se o isolamento social que,
apesar de ajudar na redução de casos, resultou no agravo de um problema já
existente, a violência doméstica. Desde que a medida entrou em vigor pelo
mundo, organizações voltadas para o enfrentamento da violência doméstica
já relatavam um aumento de casos, causados pelo convívio forçado, o es-
tresse econômico e o temor sobre o coronavírus. Na China, números apre-
sentados destacam que os casos de violência doméstica triplicaram no país,
assim como Itália, França e Espanha também apresentaram aumentos nas
ocorrências de violência doméstica (VIEIRA; GARCIA; MACIEL, 2020).
No Brasil, o cenário não é muito diferente. De acordo com o site
Estadão, a quantidade de denúncias de violência contra a mulher rece-
bidas no canal 180 aumentaram quase 40% em relação ao mesmo mês
de 2019. Apesar do aumento de denúncias, estimasse que a realidade seja
ainda pior, visto que muitas mulheres não conseguem sair de casa para
fazer a denúncia ou têm medo de realizá-la pela aproximação do parceiro.
De acordo com Jubilut (et al., 2020, p. 35 )

As mulheres em relacionamentos violentos não são apenas expos-


tas ao agressor por longos períodos, mas também impossibilitadas
de sair de casa ou pedir ajuda. As causas para o agravamento da
violência de gênero são multifatoriais, envolvendo não apenas o
confinamento de vítimas e agressores no interior dos lares, mas
também o distanciamento feminino das redes de apoio e proteção
(amigos, familiares, organizações não governamentais etc.).

Durante o isolamento social, regularmente, as mulheres são obrigadas


a conviver com seu agressor 24 horas por dia, sendo vigiadas e impedidas

24 3
DIMENSÕES JURÍDICAS DAS POLÍTICAS PÚBLICAS – VOL. 1

de conversar com familiares e amigos, ampliando e possibilitando uma


maior manipulação psicológica. O controle financeiro também se torna
mais acirrado devido à presença do homem em um ambiente normalmen-
te dominado pela mulher. “A perspectiva da perda de poder masculino
fere diretamente a figura do macho provedor, servindo de gatilho para
comportamentos violentos” (VIEIRA; GARCIA; MACIEL, 2020, p. 3).
Assim como as mulheres, crianças e adolescentes também vem so-
frendo com as medidas de isolamento social. Segundo a Organização das
Nações Unidas, cerca de 1,5 bilhão de crianças e adolescentes em todo o
mundo está fora da escola devido ao fechamento das instituições de ensino
como iniciativa para a contenção de casos da COVID-19. O que parece
ser uma medida de prevenção à saúde pode-se agravar, visto que, de acor-
do com relatório publicado pela organização humanitária World Vision
até 85 milhões de crianças e adolescentes poderão se somar às vítimas de
violência física, emocional e sexual no mundo nos próximos três meses,
devido ao atual confinamento.
Embora seja uma preocupação global, poucos dados referentes à vio-
lência contra crianças e adolescentes são registrados. De acordo com a
Cartilha publicada pela Fiocruz (2020, p.7)

[…] enquanto o aumento da violência contra mulher tem sido de-


tectado por pesquisas no 190, registros de feminicídio e análise no
Twitter, o mesmo não tem ocorrido no caso da violência contra
crianças, onde percebe-se uma diminuição significativa das de-
núncias de abuso ou negligência. Tais dados podem indicar uma
diminuição das oportunidades de detecção e denúncia e não a di-
minuição de incidência da violência.

Essa redução de denúncias é resultante da impossibilidade da detec-


ção de violência, já que muitos dos parceiros, como as escolas e organi-
zações comunitárias, estão limitadas pelas medidas de isolamento social e
distanciamento social.
Percebe-se mundialmente que, ao mesmo tempo que os casos de vio-
lência doméstica aumentam, é reduzido o acesso a serviços de apoios às
vítimas. Durante a pandemia, a redução na oferta de serviços é acom-
panhada pelo decréscimo na procura, pois as vítimas podem não buscar

24 4
LU I Z A N TÔ N I O R E I S J U N I O R , M A U R I C I O P I R E S G U E D E S , T E L S O N P I R E S ,
VA N E S S A V E L A S C O, H E R N A N D E S B R I TO R E I S ( O R G . )

os serviços em função do medo do contágio (VIEIRA; GARCIA; MA-


CIEL, 2020).
Diante desse cenário, muitas iniciativas surgiram para ajudar no com-
bate a violência doméstica. Alinhadas a medidas já existentes como, disque
180 para a Central de Atendimento à Mulher e disque 100 contra violação
de direitos, sociedade civil, Empresas e Estado apresentam-se engajados
para reduzir tal problema. De acordo com site do Estadão, a utilização do
meio de denúncia proposto pela loja on-line da Magazine Luíza aumen-
tou 450% comparado ao mesmo período do ano passado, haja vista a sua
facilidade para denunciar. Outras ações são vistas nas redes sociais, desde
vídeos que ensinam a realizar a denúncia à propagandas fakes que velam o
seu real sentido diante do agressor.
Por fim, como iniciativa do Estado para combater as dificuldades e
acolher as denúncias de violência doméstica e familiar, o Ministério da
Mulher, da Família e dos Direitos Humanos lançou plataformas digitais
dos canais de atendimento da Ouvidoria Nacional de Direitos Humanos
(ONDH) que amplia o alcance dos serviços do Disque 100 e do Ligue
180 para o meio digital com o lançamento do aplicativo Direitos Huma-
nos Brasil e de portal exclusivo a utilização do site ouvidoria.mdh.gov.
br, que também poderá ser acessado dos endereços disque100.mdh.gov.
br e ligue180.mdh.gov.br. Por meio desses canais, vítimas, familiares, vi-
zinhos, ou mesmo desconhecidos poderão enviar fotos, vídeos, áudios e
outros tipos de documentos que registrem situações de violência domés-
tica e outras violações de direitos humanos. Outra medida que poderá
auxiliar no combate a violência doméstica mas ainda espera a sanção é a
PL 1291/2020, esse projeto estabelece medidas de combate a violência do-
méstica durante o estado de emergência de saúde pública ocasionado pela
pandemia de COVID-19. A PL 1291/2020 passa a considerar essencial os
serviços de atendimento a mulheres, crianças, adolescentes, idosos e defi-
cientes físicos em situação de violência doméstica e familiar.
Diante desse contexto, compreende-se a gravidade da COVID-19 no
Brasil e no mundo, e a importância da aplicação de medidas para reduzir a
transmissão exponencial do vírus e assim impedir o colapso no sistema de
saúde. Porém, o cenário atual nos apresenta violações de direitos que vão
muito além do direito à segurança. Sendo o direito à vida inerente a todos
os seres humanos, onde nem o Estado nem ninguém tem o direito de tirar

24 5
DIMENSÕES JURÍDICAS DAS POLÍTICAS PÚBLICAS – VOL. 1

a vida ou decidir quem deve viver e quem deve morrer, percebe-se que
em tempos de COVID-19 esse direito vem sendo ameaçado e retirado de
vários indivíduos. Esse perigo perpassa desde as medidas de isolamento
social, que limitam a locomoção dos indivíduos e os mantém mais tempo
em casa, colocando em perigo à vida de pessoas que estão expostas a vio-
lência contínua, até a alta letalidade do vírus, sua fácil transmissão e falta
de capacidade do Sistema Público de Saúde promovendo uma escassez de
insumos hospitalares limitando assim, o direito fundamental à vida.

1.1. O direito à vida no cenário pandêmico do Brasil e


sua violação à pacientes com COVID-19

A pandemia do coronavírus é, sem sombra de dúvidas, de alta com-


plexidade e preocupa o mundo inteiro, principalmente devido sua gran-
de proporção e facilidade de propagação. Para seu enfrentamento, além da
prevenção de contágio, é necessário devida organização para o tratamento
dos infectados e, principalmente, disponibilização de insumos para oferecer
condigno tratamento aos que demandam tal atenção. Logo, ao fazer uma
análise dos serviços de saúde pública brasileiro, encontraram-se sérios pro-
blemas estruturais para a batalha contra o coronavírus que, evidentemente,
prejudicaram tal esforço e violaram direitos constitucionais e humanos.
O direito à saúde é uma garantia constitucional universal registrada na
Constituição Federal de 1988 (BRASIL, 1988) oferecida através do Sistema
Único de Saúde (SUS). Quando se fala de saúde, necessariamente é remeti-
da à ideia de bem estar e, principalmente, vivacidade. Deste modo, a Decla-
ração Universal dos Direitos Humanos, em seu artigo 3º contempla a vida
como um direito humano “Todo ser humano tem direito à vida, à liberdade
e à segurança pessoal” (UNIC/RJ, 2009, p. 05), mas em meio a atual pan-
demia do Covid-19, com notificação de milhares de mortes diariamente, o
direito à vida está sendo lembrado, ou melhor, priorizado?
Segundo nota técnica, Rach (et. al, 2020, p. 01) a fim de dimensionar
e alocar recursos hospitalares essenciais ao enfrentamento do COVID-19,
realizou uma esquematização detalhada do

número de leitos de UTI e de ventiladores e respiradores existentes


no país. Encontramos 15,6 leitos de UTI por 100 mil habitantes,

24 6
LU I Z A N TÔ N I O R E I S J U N I O R , M A U R I C I O P I R E S G U E D E S , T E L S O N P I R E S ,
VA N E S S A V E L A S C O, H E R N A N D E S B R I TO R E I S ( O R G . )

sendo a média no SUS de 7,1. Documentamos, no entanto, enor-


me heterogeneidade regional e escassez de recursos na maioria das
regiões do país. Encontramos que em 72% das regiões o número
de leitos de UTI pelo SUS é inferior ao considerado adequado em
um ano típico, sem a influência do COVID-19. Um padrão simi-
lar é observado com relação a ventiladores e respiradores.

Deste modo, é identificado um número reduzido de leitos e venti-


ladores pulmonares no país para tratamento de uma doença respiratória
contagiosa e que exige atenção intensiva para a recuperação do paciente
acometido pela mesma. Ainda no mesmo estudo, é apontado que

Das 316 regiões de saúde com número de leitos de UTI pelo SUS
abaixo do mínimo, 142 regiões não possuem leito algum. Em ter-
mos populacionais, isto significa que 14,9% da população exclu-
sivamente dependente do SUS não contam com leitos de UTI na
região em que residem. [...] Estas regiões se concentram no Norte,
Nordeste e Centro-Oeste: ao todo, 30,5% da população unica-
mente dependente do SUS no Nordeste, 22,6% no Norte e 21,0%
no Centro-Oeste residem em regiões de saúde sem leitos de UTI.
Esses números contrastam com o padrão nas demais áreas do país.
Menos de 1,0% da população atendida pelo SUS na região Sul
e 3,6% na região Sudeste residem em regiões sem leitos de UTI
(RACH, et al., 2020, p. 03).

Tais números se encontram aquém do mínimo desejável para a pro-


porção de 10 leitos para cada 100 mil habitantes, como estabelece a Porta-
ria nº 1.101 de 12 de junho de 2002 do Ministério da Saúde. Embora tal
desvantagem, a fim de tentar suprir a demanda por tratamento intensivo
por pacientes graves, tais equipamentos estão sendo adquiridos por muitos
estados e municípios do Brasil “sendo tais recursos muito importantes
para mitigar problemas na capacidade de provisão de cuidados a pacientes
e reduzir índices de letalidade da doença” (PORTELA, 2020, p. 07) e,
assim, garantir o direito à vida.
Apesar dos esforços, os números de infectados e mortos por coronaví-
rus sobem diariamente no país, o que é extremamente alarmante apesar da
constante justificativa de a doença ter tamanha magnitude devido o Brasil

24 7
DIMENSÕES JURÍDICAS DAS POLÍTICAS PÚBLICAS – VOL. 1

ser um país de extensão continental. Segundo o BBC, no dia 30 de junho


de 2020 “O Brasil atingiu a marca de 1.402.041 de casos de coronavírus
[...]. O total de mortes chegou a 59.594, com 1.280 óbitos registrados nas
últimas 24 horas” (BBC, p. 01, 2020). Com isso, 59.594 pessoas tiveram
o seu direito a vida violado por, muito provável, falta de leitos e ventilado-
res, como registrada anteriormente com os números aquém do necessário
à população demandante, ou por falta de medicamentos, haja vista a noti-
ficação de secretários de saúde de diferentes Municípios e Estados brasilei-
ros ao Ministério da Saúde de um rol de 21 fármacos que não conseguem
adquirir para suas respectivas instituições. Estes medicamentos “integram
protocolos importantes para o tratamento de pacientes infectados pelo
novo coronavírus (Covid-19), que estão hospitalizados por meio do Siste-
ma Único de Saúde” (RIBEIRO, 2020, p. 01).
Portanto, nesta breve análise, pode-se notar como o direito a vida está
sendo evidenciado no Brasil na pandemia do COVID-19. O direito à saúde
está intrinsicamente relacionado ao direito à vida, desta forma, para ter-se
o segundo, é preciso priorizar o primeiro, principalmente na circunstância
aqui levantada. Ademais, como discutido no tópico anterior, dentro deste
cenário pandêmico há altas taxas de violência doméstica devida maior con-
vivência residencial, o que põe diretamente em risco a vida das vítimas que
estão sendo violadas diariamente. Logo, para assegurar direito à saúde e à
vida, não só na pandemia do COVID-19, é necessário ampliar o orçamento
sanitário público, para que o mesmo seja mais expressivo nos recursos desig-
nados ao SUS. Assim, “para alcançar esse objetivo seria necessário cumprir
o compromisso do Brasil com a OPAS em atingir 80% do gasto público,
sobre o gasto total em saúde ou 6% em relação ao Produto Interno Bruto
(PIB)” (SOUSA, BRIONES e MACAMBIRA, 2020, p. 69) e elaborar
estratégias de proteção e facilidade de denúncia para as vítimas de violência
em isolamento social. Logo, somente com a ampliação de recursos e maio-
res investimentos na política de saúde será possível, dentro deste cenário, as-
segurar o direito à vida às pessoas infectadas pelo novo coronavírus, na pers-
pectiva de integralidade, universalidade promoção e recuperação da saúde.
Ausência de leitos, respiradores e medicamentos necessários ao tratamento
do quadro clínico do paciente é humanamente inaceitável e, constitucional-
mente inadequado. Para mais, não se deve ignorar as vítimas de violência
em isolamento, pois estas também correm risco de vida, portanto, priorizar

24 8
LU I Z A N TÔ N I O R E I S J U N I O R , M A U R I C I O P I R E S G U E D E S , T E L S O N P I R E S ,
VA N E S S A V E L A S C O, H E R N A N D E S B R I TO R E I S ( O R G . )

a vida na perspectiva da saúde e da segurança é necessário e prioritário na


pandemia do COVID-19.

1.2. As medidas de isolamento social e o direito à


liberdade

A inexistência de uma vacina ou tratamento médico específico contra


o vírus, levam a buscas por medidas para controle da doença e impedir
a transmissão do vírus. Diante disso, organismos internacionais como a
Organização Mundial da Saúde - OMS e organizações nacionais inicia-
ram a luta contra o novo coronavírus, adotando diversas medidas, como o
fechamento do comércio não essencial, de universidades, escolas, campa-
nhas publicitárias como a “Fique em Casa”, com o objetivo de restringir
a contaminação e, ainda, em decorrência das estruturas hospitalares que
estão entrado em colapso.
Conforme as autoridades sanitárias, é por meio do distanciamento
social e do fechamento de escolas, bares, parques, praças, entre outros, que
se reduz a velocidade de propagação do vírus, aliviando assim a pressão so-
bre o sistema de saúde existente. Com isso, evita-se não só a proliferação
da doença, mas também mortes desnecessárias por falta de leitos disponí-
veis para seu tratamento (DAUD, 2020).
Entretanto as referidas medidas que visam à segurança e à proteção das
pessoas, acaba de certo modo restringindo o direito à liberdade. Como a
pandemia não afeta apenas a saúde das pessoas, mas também interfere no
âmbito social, ambiental e econômico, tais medidas acabam gerando dis-
cussões e dividem opiniões, pelo fato de que a maior parte dos tomadores
de decisão optaram por incentivar medidas, que estrategicamente controle a
mobilidade da população (BEZERRA; SILVA; SOARES; SILVA, 2020).
Como resultado, uma parte da população brasileira apoiou e aderiu
ao movimento do isolamento social com o objetivo de se prevenir da CO-
VID-19 e de colaborar com a atenuação da curva de contágio no país
(BEZERRA; SILVA; SOARES; SILVA, 2020). Já outra parte da popu-
lação saíram em manifesto pelas ruas, argumentando que a imposição do
isolamento fere a liberdade e que o indivíduo pode escolher correr o risco
de contrair o vírus. Com esse argumento, a questão de sair do isolamento
é apresentada como se fosse uma simples escolha que cada um pode fazer

24 9
DIMENSÕES JURÍDICAS DAS POLÍTICAS PÚBLICAS – VOL. 1

e decidir quais riscos está disposto a assumir (TONETTO, 2020). Sendo


reforçada ainda pela campanha o “Brasil não pode parar”, propondo que
as pessoas retomem suas atividades normalmente, independente de uma
possível contaminação.
Todavia, ao circular livremente em áreas aonde há forte incidência da
doença, não apenas assume-se o risco, como também pode-se impor esse
risco às pessoas com a transmissão comunitária. Portanto, a questão não
é apenas se devo assumir algum risco, mas se devo impor esse risco aos
outros (TONETTO, 2020).
Portanto mediante a gravidade da pandemia, a restrição de alguns direi-
tos podem excepcionalmente ser justificada quando não é arbitrária, como
no caso do direito à liberdade de locomoção assim como os demais direitos
fundamentais, mesmo quando não há expressa autorização constitucional,
está sujeito a restrições sempre que estiverem em jogo outros direitos ou
bens constitucionalmente protegidos (saúde pública na hipótese de uma
epidemia ou segurança pública na hipótese de o toque de recolher em deter-
minados locais e horários ser medida necessária para preservar a vida e a se-
gurança pessoal) (GOMES CANOTILHO; SARLET; STRECK; MEN-
DES, 2018 p. 327). Sendo que o isolamento é uma medida emergencial de
prazo determinado que buscam contribuir, mediatamente, à preservação da
vida e à retomada da normalidade dentro da maior brevidade possível, sen-
do o único meio eficaz de combate nesse momento ao novo coronavírus.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ao analisar os números de leitos e respiradores por determinada pro-


porção de brasileiros, evidenciou-se que, anteriormente, a preocupação de
ajustar tal deficiência foi reduzida. Se esta fosse uma preocupação diária
dos gestores, antes da pandemia, muitos outros brasileiros teriam acesso a
tratamento intensivo sem necessidade de deslocamento e, principalmen-
te, tendo sua vida priorizada. Com a pandemia, as lacunas do sistema de
saúde brasileiro, tão importante, mas não valorizado, infelizmente, foram
expostas de modo integral e claro. Todo este déficit na sua estrutura cus-
tou vidas, estas que não foram colocadas em prioridade e nem respeitadas
com dignidade e como direito. O direito à vida é viver com saúde, com
acesso a serviços que a mantenha ou tratamento a doenças, é ser visto

250
LU I Z A N TÔ N I O R E I S J U N I O R , M A U R I C I O P I R E S G U E D E S , T E L S O N P I R E S ,
VA N E S S A V E L A S C O, H E R N A N D E S B R I TO R E I S ( O R G . )

como cidadão/humano portador de direitos, de dignidade e ser valorizado


como tal. Infelizmente, a pandemia do coronavírus evidenciou do modo
mais duro a não valorização da vida daqueles que acessam o serviço públi-
co de saúde, em dedução, aqueles que financiam o sistema, que possuem
o acesso como direito constitucional e universal.
Ademais, devido à inexistência de uma vacina ou de um tratamen-
to específico contra o novo coronavírus, algumas medidas passaram a ser
adotadas para prevenção e controle do vírus, uma delas sendo o isola-
mento social, sendo a única medida eficaz nesse momento, reduzindo a
velocidade de propagação da doença, e, também possibilita que o sistema
de saúde vem colidir. A partir do que foi averiguado, nesse momento a
restrição a alguns direitos pode excepcionalmente ser justificada quando
não é arbitrária, como caso do direto à liberdade, que está baseada em
evidências científicas, tendo em vista, que as medidas suprimem o direito
a liberdade em detrimento ao direito à saúde, à segurança.
Por fim, destaca-se a importância da aplicação de medidas para redu-
zir a transmissão exponencial do vírus. Até o momento, o distanciamento
social e o isolamento social apresentam-se como medidas eficazes para essa
redução de transmissão do vírus. A presente pesquisa não se coloca contra as
medidas citadas, mas destaca o agravo desenvolvido pela mesma. Diante do
exposto, reforçamos a necessidade de ações de enfrentamento das violências
contra mulheres, crianças e adolescentes. Para o enfrentamento da violência
doméstica e familiar contra a mulher no contexto da pandemia, todas as es-
tratégias citadas são válidas. A mobilização da sociedade civil, organizações
não governamentais, empresas e Estados apresentaram resultado significati-
vo, mas não capazes de erradicar esse mal que já se expressam na sociedade
há tempos, sendo potencializados pela pandemia. Desta maneira, existe a
necessidade da criação e aplicação de medidas mais eficazes, que mobilizem
o Estado e sociedade para garantir às mulheres, crianças e adolescentes o
direito a viver sem violência e com segurança.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BBC. Coronavírus: mortes no Brasil chegam a quase 60 mil e casos vão


a 1,4 milhão. 2020. BBC NEWS. Disponível em: https://www.bbc.
com/portuguese/brasil-51713943. Acesso em: 01 jul. 2020.

251
DIMENSÕES JURÍDICAS DAS POLÍTICAS PÚBLICAS – VOL. 1

BEZERRA, Anselmo César Vasconcelos; SILVA, Carlos Eduardo Me-


nezes da; SOARES Fernando Ramalho Galameira; SILVA, José
Alexandre Menezes. Fatores associados ao comportamento da
população durante o isolamento social na pandemia de CO-
VID-19. 2020. Disponível em: https://pesquisa.bvsalud.org/portal/
resource/pt/biblio-1101069. Acesso em: 20 jul. 2020.

BRASIL. Câmara dos Deputados. Projeto de Lei 1291/2020. Altera a


Lei nº 13.979, de 6 de fevereiro de 2020, e dispõe sobre medidas de
enfrentamento à violência doméstica e familiar contra a mulher e de
enfrentamento à violência contra crianças, adolescentes, pessoas ido-
sas e pessoas com deficiência durante a emergência de saúde pública
de importância internacional decorrente do coronavírus responsá-
vel pelo surto de 2019. 2020. Disponível em: https://www.camara.
leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=2242471.
Acesso em: 02 jul 2020.

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. 1988.


Brasília:DF. Disponível em: https://www2.camara.leg.br/ativida-
delegislativa/legislacao/constituicao1988/arquivos/ConstituicaoTex-
toAtualizado_EC%20105.pdf. Acesso em: 04 jun. 2020

BRASIL. Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos. Go-


verno lança canais digitais de atendimento para enfrentamen-
to à violência doméstica durante a pandemia. 2020. Disponível
em: https://www.gov.br/mdh/pt-br/assuntos/noticias/2020-2/abril/
governo-lanca-canais-digitais-de-atendimento-para-enfrentamen-
to-a-violencia-domestica-durante-a-pandemia. Acesso em 02 jul
2020.

DAUD, Felipe. O Direito no Combate ao Coronavírus. Disponível


em: https://www.jota.info/especiais/o-direito-no-combate-ao-co-
ronavirus-03042020# sdfootnote2sym. Acesso em: 01 jul. 2020.

ESTADÃO. Violência contra mulher aumenta em meio à pan-


demia: denúncias ao 180 sobem 40%. 2020. Disponível em:
https://brasil.estadao.com.br/noticias/geral,violencia-contra-
-a-mulher-aumenta-em-meio-a-pandemia-denuncias-ao-180-so-
bem-40,70003320872. Acesso em: 01 jul 2020.

252
LU I Z A N TÔ N I O R E I S J U N I O R , M A U R I C I O P I R E S G U E D E S , T E L S O N P I R E S ,
VA N E S S A V E L A S C O, H E R N A N D E S B R I TO R E I S ( O R G . )

FUNDAÇÃO OSWALDO CRUZ. Saúde mental e atenção psicos-


social na pandemia COVID-19: Violência doméstica e familiar
na COVID-19. Brasília, 2020. Disponível em: https://www.arca.
fiocruz.br/bitstream/icict/41121/2/Sa%c3%bade-Mental-e-Aten%-
c3%a7%c3%a3o-Psicossocial-na-Pandemia-Covid-19-viol%-
c3%aancia-dom%c3%a9stica-e-familiar-na-Covid-19.pdf. Acesso
em 02 jul 2020.

GOMES CANOTILHO; SARLTET, Ingo Wolfgang; STRECK, Lenio


Luiz; MENDES, Gilmar Ferreira. Comentários à Constituição
do Brasil. 2ª Ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2018, p. 325.

JJUBILUT, Liliana Lyra et al. Direitos Humanos e COVID-19 – Im-


pactos em Direitos e para Grupos Vulneráveis. Santos: Grupo de
Pesquisa “Direitos Humanos e Vulnerabilidades” da Universidade
Católica de Santos, 2020. Disponível em: https://www.unisantos.br/
wp-content/uploads/2020/06/Direitos-Humanos-e-Covid-19-Im-
pactos-em-Direitos-e-para-Grupos-Vulner%C3%A1veis.pdf.
Acesso em: 01 jun 2020.

PORTELA M. C., et al. Limites e possibilidades dos municípios bra-


sileiros para o enfrentamento dos casos graves de Covid-19.
Nota Técnica n. 1. Rio de Janeiro: ENSP/FIOCRUZ, 2020.

Rache, B. et al. 2020. Necessidades de Infraestrutura do SUS em


Preparo ao COVID-19: Leitos de UTI, Respiradores e Ocupação
Hospitalar. Nota Técnica n.3. IEPS: São Paulo.

RIBEIRO, W. SUS ENFRENTA GRAVE CRISE COM FALTA DE


MEDICAMENTOS PARA COVID-19. 2020. ICTQ. Dispo-
nível em: https://www.ictq.com.br/politica-farmaceutica/
1726-sus-enfrenta-grave-crise-com-falta-de-medicamen-
tos-para-covid-19. Acesso em: 01 jul. 2020.

SEVERINO, Antônio Joaquim. Metodologia do trabalho científico.


23. ed. rev. e atual. São Paulo: Cortez, 2007.

SOUSA, F. G. P. BRIONES, F. M. A. MACAMBIRA, J. SAÚDE


PÚBLICA E SUA IMPORTÂNCIA NA LUTA CONTRA A

253
DIMENSÕES JURÍDICAS DAS POLÍTICAS PÚBLICAS – VOL. 1

POBREZA E A EXCLUSÃO SOCIAL. In: Capitalismo e CO-


VID-19: um debate urgente. Org: Daniel Castro, Danillo Dal Seno,
Marcio Pochmann. São Paulo: 2020. v. 1.

UNIC. DECLARAÇÃO UNIVERSAL DOS DIREITOS HU-


MANOS. 2009. UNIC RJ/005. Janeiro, 2009.

TONETTO, Milene Consenso. Ética global, direitos humanos e a


pandemia da COVID-19. In: REICH, Evania; BORGES, Maria de
Lourdes; XAVIER, Raquel Cipriani (org.). Reflexões sobre uma
pandemia. 1. ed. Florianópolis: Néfiponline, 2020. p. 124-134.
Disponível em: http://www.nefipo.ufsc.br/files/2012/11/LIVRO.-
-Reflex%C3%B5es-sobre-uma-pandemia-2020.pdf. Acesso em:
20 jun. 2020.

UNITED NATIONS. Policy Brief: The Impact of COVID-19 on chil-


dren. 2020. Disponível em: https://www.un.org/sites/un2.un.org/
files/policy_brief_on_covid_impact_on_children_16_april_2020.
pdf. Acesso em: 02 jul 2020.

VIEIRA, Pâmela Rocha; GARCIA, Leila Posenato; MACIEL, Ethel


Leonor Noia. Isolamento social e o aumento da violência doméstica:
o que isso nos revela?. Revista Brasileira de Epidemiologia, v.
23, p. e200033, 2020. Disponível em: https://doi.org/10.1590/1980-
549720200033. Acesso em: 01 jul 2020.

WORLD VISION. End Violence Against Children. Protecting chil-


dren during the COVID-19 outbreak: resources to reduce vio-
lence and abuse. 2020. Disponível em: https://www.end-violence.
org/protecting-children-during-covid-19-outbreak. Acesso em 02
jul 2020.

254
JUIZADOS ESPECIAIS E A BUSCA DO
CIDADÃO PELA EFETIVIDADE DO
PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL DO
ACESSO À JUSTIÇA
Nivea Maria Dutra Pacheco 48

“Ele não está aqui, fui eu quem tocou o sino”, respondeu o camponês.
“Mas então, ninguém morreu?” Insistiram os habitantes; o camponês res-
pondeu novamente: “Não, ninguém que tivesse um nome ou a figura de
uma pessoa, eu toquei o sino pela Justiça, porque a Justiça está morta”.
(SARAMAGO, 2002, p. 3)

INTRODUÇÃO

Um dos grandes desafios do Estado Democrático de Direito é con-


ceder ao cidadão o efetivo acesso à justiça. De longa data, discute-se a
questão do acesso à justiça e, nos últimos anos, tem surgido entre os ope-
radores do direito a necessidade urgente de revitalização hermenêutica
e uma reformulação das práticas do Judiciário. Na busca incansável pela
justiça, trouxe a Carta Magna de 1988, em seu artigo 98, a previsão cons-
titucional de criação de juizados especiais nos âmbitos estadual e federal,

48 Mestre em Direito Público e Evolução Social. Pós-graduada em Direito Civil e Processual


Civil. Professora de Direito Processual Civil e de Direito Constitucional da Universidade Cân-
dido Mendes. Advogada e Consultora Jurídica. Mediadora. Conselheira Efetiva da OAB-Nova
Friburgo.

255
DIMENSÕES JURÍDICAS DAS POLÍTICAS PÚBLICAS – VOL. 1

considerando as questões de menor complexidade e potencial ofensivo,


nas áreas cível e criminal. O ponto de partida deu-se com a criação dos
juizados cíveis e criminais estaduais, Lei 9.099 de 1995, trazendo em seu
artigo segundo seus princípios norteadores.
A falta de acesso à justiça é, a qualquer tempo e em qualquer lugar do
mundo, fator de diminuição da cidadania e do fortalecimento da opressão.
Partindo desse pressuposto, nos cabe traçar um paralelo entre a função
social do Poder Judiciário dentro de um Estado Democrático de Direito,
e o direito à informação como expressão maior de acesso à justiça do ci-
dadão que espera ver concretizado o fim precípuo da criação dos Juizados,
definidos como marco de significativa onda de renovação dos serviços ju-
diciários. Para tanto, é necessário que o intérprete da Lei dos Juizados
Especiais, o Juiz, não se afaste dos norteadores constitucionais que pro-
tegem a dignidade da pessoa humana e o devido processo legal, atuando
no sentido da concretização do princípio da simplicidade, informalidade e
oralidade, os quais devem reger o procedimento dos juizados.
Repensar o processo para que se transforme em instrumento de efeti-
vidade e conhecimento dos direitos e pacificação social, é a nobre missão
do Acesso à Justiça.

1. O ESTADO DEMOCRATICO DE DIREITO, O ACESSO À


JUSTIÇA E O DIREITO DO CIDADÃO À INFORMAÇÃO.

O Estado não permite que se faça justiça com as próprias mãos, ca-
bendo ao cidadão ir ao Estado para obter a Jurisdição, mas, para obtê-la,
necessário é que as “portas” do Judiciário estejam abertas, sem entraves ou
empecilhos ao seu acesso.
Mas até onde pode o Estado intervir na vida privada de uma pessoa?
Para essa pergunta, dificilmente obter-se-á uma única resposta ou uma
resposta definitiva. No entanto, há um ponto de partida para um limite
mínimo, qual seja, o direito à informação, diante do poder do Estado de
intervir para formar um indivíduo com maior capacidade de compreen-
são; além de se poder exercer a cidadania e contribuir para o crescimento
da Democracia do país, fazendo com que, diante da participação efetiva
no resultado da lide, sintam as partes que receberam do Estado dignidade
suficiente para terem a qualidade de cidadão.

256
LU I Z A N TÔ N I O R E I S J U N I O R , M A U R I C I O P I R E S G U E D E S , T E L S O N P I R E S ,
VA N E S S A V E L A S C O, H E R N A N D E S B R I TO R E I S ( O R G . )

Muito se tem falado - e criticado – o Poder Judiciário, no que diz


respeito à sua postura frente às novas e crescentes demandas dos jurisdi-
cionados, motivadas pelo sopro revitalizante de uma nova ordem consti-
tucional, de contornos claramente democráticos.
Com o objetivo de erradicar os graves problemas que assolam a socie-
dade e orientar a ação estatal no sentido de implementar atividades neces-
sárias à realização das conquistas do povo brasileiro, insculpidos na Cons-
tituição de 1988, começou-se a pensar em uma nova visão de judiciário
com metas a serem alcançadas.
É certo que não se pode achar que uma simples reforma ou
reestruturação do Judiciário é a solução para todos os males do sistema,
entretanto, um bom início pode ser encontrado nos juizados especiais
cíveis, idealizados no texto Constitucional como um caminho para a
grande “virada” no processo tradicional, apontando a simplicidade e
informalidade como princípios para promover a abertura das portas do
Judiciário à população brasileira. Mister ressaltar que o cidadão anseia
não só ter acesso físico ao Poder Judiciário, mas acesso à informação e
compreensão de seus direitos, bem como do trâmite de seu processo,
conhecimento quanto à razão de procedência ou improcedência de seu
pedido, enfim, do completo ou mínimo entendimento sobre seus direitos
e deveres, sendo essa a essência do acesso à justiça.
Esse caminho tem sido reiteradamente apontado pelos sociólogos e
pelos constitucionalistas críticos que enxergam na Constituição valores
capazes de constituir movimentos ativos de mudança real quanto à face
do Poder Judiciário, visando a obter uma ordem jurídica justa ou, pelo
menos, um processo justo.
Para tanto, a Constituição e seus institutos devem ser pensados den-
tro de uma perspectiva de conscientização em favor do cidadão, homem
comum, pois os meios processuais não mais satisfazem, nem à população
e nem ao próprio Poder Judiciário.
É necessário repensar a função do Poder Judiciário, atrelando-o
a uma função social, calcada em novos modelos comportamentais,
principalmente, do magistrado, destacando a necessidade de maior
humildade para ver e compreender os dramas vividos pela população,
hoje, em sua grande parte massacrada pela falta de cultura e,
principalmente, pela desinformação, não se chegando nem a tocar na

257
DIMENSÕES JURÍDICAS DAS POLÍTICAS PÚBLICAS – VOL. 1

questão da pobreza, que, por certo, é elemento básico de obstáculo ao


acesso à justiça.
Necessário, ainda, é que o Judiciário tenha capacidade de buscar a
participação dos demais atores sociais para a realização de uma Jurisdição
eficiente, que possa enxergar a realidade por trás das aparências (afastan-
do o óbvio) e partindo para uma interpretação do texto da lei conforme
a Constituição, em uma visão mais social do que processual, atingindo,
sempre que possível, o bem comum (artigo 5° da Lei 9.099/95).
Surge do somatório da visão principiológica contida na Constituição
Federal e na Lei 9.099/95, uma nova maneira de enxergar os conflitos que
são trazidos ao Judiciário. À luz do princípio da oralidade é possível se de-
senhar contornos de uma Justiça informativa e orientadora para o cidadão,
uma vez que tem a possibilidade de vir a juízo e narrar o seu conflito sem
intermediários.
Os Poderes Legislativo e Judiciário estão conferindo a leigos a capa-
cidade postulatória, admitindo que pessoas alheias ao direito, ignorantes
de conteúdos jurídicos, possam estar em juízo, não dispondo de conheci-
mento técnico para tanto, cabendo, deixar claro, aqui, que não se preten-
do retirar, em momento algum, a importância dos advogados na adminis-
tração da justiça, mas apenas se tem buscado uma nova forma de alcançar
o acesso a uma justiça mais barata, simplificada e informal.
Por outro lado, não se está defendendo uma Lei dos juizados que preten-
de dar uma falsa satisfação de justiça aos jurisdicionados, fantasiando ilusões
de que, para ter acesso, basta não ter custos; ao contrário, defende-se um Ju-
diciário mais ativo e preocupado com a função social do poder que exerce.
Nesse ponto, o importante passa a ser a colocação de pessoas certas
nos lugares certos, ou seja, juízes com pensamentos principiológicos nos
juizados; partes interessadas no exercício da cidadania, para participar do
processo. A jurisdição precisa evoluir para acompanhar o desenvolvimen-
to social e cultural de cada país, sendo necessário melhorar, adaptar, reno-
var e criar novos instrumentos facilitadores do processo a cada dia.
Nota-se que sem direito à informação, não há que se falar em acesso
à justiça. Houve um tempo em que todos ficavam felizes em ter um advo-
gado, um Defensor Público para assessorá-los em juízo. O simples fato de
ter disponível um técnico no assunto já era suficiente para afirmar que se
teria “Acesso à Justiça”.

258
LU I Z A N TÔ N I O R E I S J U N I O R , M A U R I C I O P I R E S G U E D E S , T E L S O N P I R E S ,
VA N E S S A V E L A S C O, H E R N A N D E S B R I TO R E I S ( O R G . )

Atualmente, é insatisfatória essa visão de acesso à justiça, principal-


mente, nos juizados, onde o objeto da causa, muitas vezes, economica-
mente, não compensa a contratação de um profissional.
Justamente pelo fato de ser possível o acesso aos juizados sem o auxilio
de um técnico nas questões de Direito é que se faz necessária a mudança
de mentalidade dos juízes e auxiliares da Justiça no âmbito dos juizados
cíveis, do contrário de nada adiantarão leis novas que tornem o processo
mais acessível e adequado.
Vale dizer, de maneira prática, que o juiz para concretamente fazer
a diferença nos juizados especiais cíveis, deve ter uma postura simples e
informal, recebendo, sempre que possível, a parte diretamente em seu ga-
binete, esclarecendo dúvidas e despachando as tutelas antecipatórias re-
queridas, pois, em muitos casos, peca o magistrado ao deferir ou indeferir
uma tutela antecipada, por não ter a exata noção do problema das partes,
diante da simplicidade em que foi elaborada a petição inicial. Assim, o
despacho diretamente com a parte requerente será um canal de abertura
para a efetividade da tutela jurisdicional, devendo fazê-lo de forma que o
leigo compreenda seus direitos, elevando o seu valor na sociedade como
“gente”, como “cidadão”.
Ademais, torna-se indispensável o surgimento da figura do juiz ativo,
deixando de lado a inércia, quando verificada a falta de isonomia entre as
partes, tendo os juízes uma importante função, a de fazer valer a Consti-
tuição Federal e, por meio de suas atividades, incentivar a informação e a
participação do cidadão no processo e na resolução do conflito.
Não há que se olvidar também das demais obrigações a serem pra-
ticadas pelo magistrado, como: interferir no momento adequado junto às
partes, se necessário, e junto ao Cartório, o qual está a ele subordinado, ob-
jetivando um atendimento ao público condizente com os princípios elenca-
dos pela Lei 9.099/95; não fragmentar o procedimento decisório, buscando
prolatar a sentença em audiência, para que as partes deixem o local cientes
do conteúdo da decisão e qual o próximo passo a dar diante do resultado do
processo, mantendo uma sequência lógica para que o cidadão, ao retornar,
em um outro processo ao juizado, já possa “andar com suas próprias per-
nas” diante do procedimento a ser seguido (BENETI, 2006).
Nesse ponto, sua função é a de orientação e capacitação dos concilia-
dores, seja por meio de reuniões, workshop, treinamento técnico-jurídi-

259
DIMENSÕES JURÍDICAS DAS POLÍTICAS PÚBLICAS – VOL. 1

co, ou mesmo, buscando, por meio de convênio como, por exemplo, com
o Conselho de Psicologia treinamento para os conciliadores objetivando
facilitar o relacionamento do conciliador com as partes.
O conciliador, por sua vez, deve se esforçar para que ocorra um diá-
logo entre as partes, na tentativa de que ouvindo umas às outras possam
buscar uma solução pacífica para a composição do conflito. Não pode o
conciliador limitar-se e ser um “ponto de passagem” do ingresso inicial
do cidadão ao judiciário à sala de Audiência de Instrução e Julgamento.
Não raras às vezes em que as partes adentram a audiência de conciliação
e ouvem apenas a seguinte frase: “Há possibilidade de acordo?”, e em
sendo a resposta rápida e negativa, o máximo que se limita o conciliador
é informar às partes que a Audiência de Instrução e julgamento será “de-
signada” para o dia e horário tal ou que será “convolada” (termo também
desconhecido do cidadão leigo).
Desta forma, o que se tem feito é não se privilegiar o princípio da ora-
lidade, retirando das partes o tempo para que possam refletir sobre o caso e
um possível acordo. Deve o juiz como Coordenador de seu juizado deixar
claro que a audiência de conciliação, não é apenas uma fase obrigatória
prevista no procedimento da Lei 9.099/95, mas, um meio concedido ao
cidadão para buscar a pacificação e resolução de seus conflitos, fazendo do
procedimento do juizado um verdadeiro acesso à justiça.
O princípio da oralidade é critério que deve ser posto como obrigató-
rio, prevalecendo a linguagem sobre a escrita com uma aproximação das
partes ao magistrado, numa busca incessante ao alcance da verdade.
A Lei 9.099/95 objetiva com a democratização da justiça a desburo-
cratização do processo e a efetividade da prestação jurisdicional, não de
cunho quantitativo, mas qualitativo, resgatando o fundamento do exercí-
cio da cidadania.
A linguagem no trato com o cidadão, desde o funcionário do cartó-
rio, passando pelo conciliador ou qualquer outro intermediário até chegar
ao juiz deve ater-se a simplicidade, de forma que a parte sinta-se con-
fortável com as explicações e orientações, sem o receio de dizer que não
compreendeu o que lhe fora explicado.
Assim, embora inúmeros acertos caibam ainda ser implementados para
que se possa, efetivamente, atingir os objetivos propostos pela Lei 9.099/95,
podemos afirmar que os juizados demonstraram que uma “causa de peque-

260
LU I Z A N TÔ N I O R E I S J U N I O R , M A U R I C I O P I R E S G U E D E S , T E L S O N P I R E S ,
VA N E S S A V E L A S C O, H E R N A N D E S B R I TO R E I S ( O R G . )

no valor” pode ter valor correlato à dignidade, que a responsabilidade do


julgador deve estar afeta às mudanças e evoluções sociais e que somente a
partir da conscientização de todos, o ideal de Justiça será alcançado.
Para tanto, sugere-se que o atendimento ao leigo seja realizado em
balcão separado, no qual haja um servidor da justiça qualificado, com lin-
guagem simples e informal; que o juiz trace estratégias em seu juizado para
que, a cada passo do processo, siga, o cidadão sem advogado, orientado
quanto ao procedimento, à vantagem da conciliação e às consequências do
litígio; que as audiências privilegiem o princípio da oralidade, permitindo
às partes a efetiva participação no processo e a oportunidade de exposição
de seu conflito; que as decisões sejam de linguagem acessível, de modo
que possa sentir-se o leigo capaz de conduzir seu processo sem a assistên-
cia de advogado. Concluindo que, como cidadão, passe a ser conhecedor
de seus direitos e deveres.
A legislação brasileira tem alcançado um enorme progresso no que
se refere ao acesso à justiça, mas, ainda é necessário se progredir mais, ter
um processo responsável, que não sirva para desestimular o cidadão a ir a
juízo, mas de estar lá, devidamente informado, sem qualquer empecilho,
sabendo qual foi a decisão no processo e porque daquela decisão.
Neste sentido, nada mais a ressaltar, senão, as palavras de Milton Santos:

A cidadania, sem dúvida se aprende. É assim que ela se torna um


estado de espírito, enraizado na cultura e, talvez, nesse sentido,
que se costuma dizer que a liberdade não é uma dádiva, mas uma
conquista, uma conquista a manter. [...] ela tem seu corpo e os
seus limites como uma situação social, jurídica e política. Para ser
mantida pelas gerações sucessivas, para ter eficácia e ser fonte de
direitos, ela deve se inscrever na própria lei das leis, mediante dis-
positivos institucionais que assegurem a fruição das prerrogativas
pactuadas e, sempre que haja recusa, o direito de reclamar e de ser
ouvido. A cidadania pode começar por definições abstratas, cabí-
veis em qualquer tempo e lugar, mas para ser válida deve poder ser
reclamada (SANTOS, 1998, p. 7-8).

Como alude Luis Gustavo Grandinetti de Carvalho, trata-se de uma


justiça “que veio para ficar e para mostrar que o Poder Judiciário, quando

261
DIMENSÕES JURÍDICAS DAS POLÍTICAS PÚBLICAS – VOL. 1

munido de uma boa legislação, pode perfeitamente responder aos recla-


mes da sociedade” (ROCHA, 2003, prefácio).

1.1. JUIZADOS ESPECIAIS CÍVEIS ESTADUAIS – A BUSCA


POR UMA PARTICIPAÇÃO ATIVA DOS OPERADORES
DO DIREITO E DAS PARTES.

Muito se tem feito em busca do alcance ao efetivo acesso à justiça,


mas é possível se perceber que poucos cidadãos brasileiros têm acesso à
informação em tempo e de maneira efetiva. A grande parte ainda não se
conscientizou e não tem a noção exata dos princípios democráticos; não
incorporou a cidadania a que lhe é incumbida. Após inúmeros períodos
ditatoriais, é provada a falta de habilidade do povo quanto à instrumenta-
lização da liberdade.
Mas, nesse mundo de mudanças, o Poder Judiciário tem se revelado
como o Poder do futuro, apto a resgatar o cidadão, efetivar-lhe os direitos
e dar-lhe garantias, acentuando, em suma, o seu papel ativo no seio de
uma sociedade que se pretende democrática.
Percebe-se que, por um lado, exalta-se a função do julgador, e, por
outro, essa nova visão passa a ser um pesado fardo para o Judiciário, no
momento de lidar com esse poder. A solução para esse aparente paradoxo,
contudo, foi ofertada pela ciência hermenêutica que, logrou viabilizar a
legitimação de outra ideia igualmente preconizada pelos adeptos ao movi-
mento de efetivo acesso à justiça: o reconhecimento, aos juízes, do dever
de adotar uma postura ativa na condução do processo.
Assim, devem os juízes se deixar sensibilizar pelas concretas exigências
sociais, jamais se quedando alheios aos elementos de evolução econômica, so-
cial, política, em sentido amplo cultural, que tanto influenciam na compreen-
são do sentido que às normas e à atividade jurisdicional pode ser atribuída
(CAPPELLETT, 1992), e, em contrapartida, tendo o dever de se manter com
os pés dentro da ordem jurídica e dos princípios previstos no ordenamento.
Opinião essa partilhada por João Baptista Herkenhoff:

No desempenho do papel de aplicador do direito, o juiz pode ser


um ator social a reboque da estagnação ou até mesmo do retro-
cesso, ou pode ser uma força a serviço do progresso. Pode ser o

262
LU I Z A N TÔ N I O R E I S J U N I O R , M A U R I C I O P I R E S G U E D E S , T E L S O N P I R E S ,
VA N E S S A V E L A S C O, H E R N A N D E S B R I TO R E I S ( O R G . )

construtor de uma hermenêutica comprometida com o avanço so-


cial, com a melhor distribuição dos bens, com a universalização
do direito, ou pode ser um sustentáculo do passado, insensível às
mudanças, adepto de uma dogmática jurídica que cristaliza privi-
légios. (HERKENHOFF, 1997, p. 22)

A democratização do Judiciário torna-se uma exigência pública.


Afirma Surgik: “Eis os conflitos do cidadão comum, exatamente estes
que a processualística atual insiste em reduzir os conflitos individuais, e,
imbuindo-os, assim, no Código de Processo Civil, fecha ao cidadão co-
mum o acesso à Justiça”. (SURGIK, 1986, p. 124).
Enfim, torna-se imprescindível se constatar que regras existentes,
tanto no Direito Processual brasileiro quanto no alienígena, reconhecem
aos juízes o dever de assumir uma postura ativa para a realização de um
processo justo.
Não obstante, um longo caminho ainda há que se percorrer, mor-
mente, considerando a massa populacional de um país como o Brasil em
termos de educação. Torna-se difícil buscar a composição de direitos que
não se conhece, pois não se procura aquilo que não se sabe que perdeu.
Embora a imparcialidade esteja intimamente ligada à jurisdição, sen-
do condição para que o magistrado exerça sua função jurisdicional, deve
se ressaltar que o processo não é apenas um instrumento técnico, mas
também ético, para se chegar à solução da lide. Assim, a imparcialidade
deve ser vista, acima de tudo, como uma garantia de justiça para as partes,
não podendo ser confundida com indiferença ou até desprezo pelo direito
dos litigantes. O Juiz para se considerar imparcial, deve estar mais preo-
cupado em prolatar uma decisão justa, sem estar alheio ao sofrimento das
partes ou aos reflexos de sua decisão do que com o formalismo de uma
visão distanciada da situação que envolve o litígio.
O princípio da dignidade humana está entre os cinco fundamentos
do Estado Democrático de Direito brasileiro, presentes no artigo 1º da
Constituição Federal, sendo de total incompatibilidade a existência de um
Poder Judiciário indiferente às deficiências educacionais, culturais e eco-
nômicas do cidadão.
Quando o cidadão chega ao juizado para ser atendido, deve encontrar
gente que tenha satisfação em lidar com gente (princípio da operosida-

263
DIMENSÕES JURÍDICAS DAS POLÍTICAS PÚBLICAS – VOL. 1

de), havendo, por trás de um balcão ou mesmo uma mesa de audiên-


cia, a presença de pessoas sensibilizadas com o objetivo da oralidade e da
linguagem simplificada (princípio da acessibilidade), sendo prestadas as
informações que visem a minorar a angústia que levou aquele indivíduo a
buscar a prestação jurisdicional.
Neste sentido, feliz o texto “Justiça e Comunicação”, de Denise
Frossard:

Nos tribunais, falamos e escrevemos numa língua que, para os


não-introduzidos, reclama intérpretes. Não basta à democracia e
ao exercício pleno da cidadania que os atos e decisões do Poder
Judiciário tenham publicidade. Necessário é que quem os ouça ou
leia consiga entendê-los – traduzi-los para sua própria língua. Na
verdade, a publicidade dos atos subentende compreensão. “Em-
bargos de declaração”, para esclarecer alguma decisão judicial pode
ser simples para nós que vivemos o mundo do direito; agora ima-
ginem o efeito que isso faz nos não-introduzidos.

Um ambiente de pesquisa interessante para quem queira ir mais


longe na questão da linguagem dos tribunais versus linguagem da
população são os balcões dos cartórios. Chega a ser engraçado o
olhar das pessoas quando colocadas diante das decisões ou senten-
ças. Lembra-nos a velha piada sobre Rui Barbosa descrevendo o
furto “de um bípede plumoso” em sua residência. (FROSSARD,
2002, p.26)

Todavia, é na audiência que a manifestação oral traz a oportunidade


de serem esclarecidos os questionamentos e dúvidas sobre os direitos e
deveres de cada cidadão. Como exemplo, o artigo 19, em seu parágrafo
1° da Lei 9.099/95, estabelece que as partes considerar-se-ão cientes, des-
de logo, dos atos praticados na própria audiência, significando dizer, que
deve ser esclarecido pelo conciliador, juiz leigo ou pelo juiz togado tudo o
que está ocorrendo na audiência, visando, ao final, se ter certeza de que as
partes conseguiram compreender exatamente o que ocorreu ou ocorrerá
no futuro do processo, caso não haja seu encerramento naquele momento.
Ademais, o artigo 21 da Lei 9.099/95 traz a obrigatoriedade do juiz
togado, leigo ou conciliador, quando da abertura da audiência, esclarecer

264
LU I Z A N TÔ N I O R E I S J U N I O R , M A U R I C I O P I R E S G U E D E S , T E L S O N P I R E S ,
VA N E S S A V E L A S C O, H E R N A N D E S B R I TO R E I S ( O R G . )

às partes as consequências do litígio, bem como as vantagens da conci-


liação. Nesse diapasão, verifica-se, claramente, que não pode o juiz dos
juizados especiais cíveis manter-se inerte no processo, sendo cristalino seu
papel social de orientador e conscientizador, principalmente, quando as
partes estiverem desacompanhadas de advogado, concluindo-se, portan-
to, que o juizado passa a ser um espaço onde o cidadão deve encontrar a
efetivação do seu direito à informação.
Como bem pontua a Desembargadora Cristina Tereza Gaulia: “De
modo que, sem que se pereça a noção de imparcialidade, deve o juiz nos
juizados especiais cíveis aprender a caminhar entre a lei, seus fins sociais e
a noção geral de bem comum”. (GAULIA, 2005, p. 126)
Nos juizados, o ajuizamento das ações prima pela simplicidade, possi-
bilitando que o leigo elabore seu pedido e postule em juízo sem o auxilio
de um advogado. No entanto, necessária a existência de julgadores mais
ativos, que possam auxiliar os litigantes e, mesmo os doutrinadores mais
críticos quanto ao sistema, reconhecem a necessidade de uma atitude mais
ativa nos juizados. Segundo Cappelletti, o juiz ativo e menos formal tor-
nou-se uma característica básica dos juizados. (GAULIA, 2005)
O artigo 84 da Lei 8.078/90 e o artigo 497 do Código de Processo
Civil dão ao juiz poder, visando a efetivação da tutela jurisdicional, por-
tanto, mesmo no processo civil tradicional, já se tem evoluído para a figura
de um juiz mais ativo, com vistas a um processo justo.
Não há, portanto, que se dizer que nos juizados, onde os princípios
norteadores buscam um procedimento muito mais simples, o juiz não
pode intervir no processo de forma a orientar as partes, propondo efeti-
var a tutela jurisdicional, principalmente, quando a Carta Magna confere
ao juiz poderes de assumir a mais ativa participação na busca do ideal de
fazer justiça, deixando de, simplesmente, agir de forma a “lavar as mãos”
quando sabe que profere decisão incompatível com a justiça que se espera.
As palavras de Márcia Cunha, juíza de Direito do Estado do Rio de
Janeiro, completam o pensamento acima esposado:

O juiz que não está atento para perceber as desigualdades entre as


partes ou aquele que, em que pese percebê-las, permanece iner-
te, fingindo que não vê, ao contrário do que pensa, é parcial, ao
permitir que uma das partes não tenha real acesso à justiça, pois

265
DIMENSÕES JURÍDICAS DAS POLÍTICAS PÚBLICAS – VOL. 1

não pode influir na decisão judicial em razão da sua inferioridade


intelectual, social e econômica.

Não parece aceitável o argumento de que o juiz que intervém na


relação processual para equilibrar as forças das partes torna-se par-
cial. O que torna o juiz parcial não é sua maior ou menor ativida-
de, de ofício, dentro do processo, mas sim sua postura psicológica
diante das partes e do objeto da ação, ou seja, as razões de cons-
ciência que o levam a agir ou, até mesmo, permanecer inerte.

O preâmbulo da Carta de 1988 ensina que o Brasil é um Estado


democrático, destinado a assegurar a igualdade e a justiça como
valores supremos de uma sociedade fraterna, e nada mais cruel e
antiigualitário do que um órgão desse Estado não só assistir impas-
sível à injustiça, mas homologá-la. (CUNHA, 2003, p. 35)

No entanto, torna-se imprescindível para a concretização de novas


ideias a colaboração de todos os que militam no Judiciário (magistrados,
partes, serventuários, conciliadores, juízes leigos, advogados e defenso-
res) e até mesmo fora dos limites desse Poder (os professores universitá-
rios de Direito, de Psicologia, de Pedagogia, entre outras disciplinas), de
forma que a cidadania não permaneça como um privilégio de poucos.
Para tanto, é preciso assegurar à população, seja para classe menos favo-
recida ou mesmo daqueles que possuem elevada condição econômica,
o acesso às garantias fundamentais, incluído dentre esses direitos mais
preciosos, a Justiça.
Portanto, a parte, nos juizados especiais cíveis, deve ter o máximo
de chance de participar do processo, buscando, de todas as formas, ser
participante e efetivador de seus Direitos Fundamentais, previstos na
Constituição. O papel da parte, no juizado, por meio de sua partici-
pação efetiva, é essencial para o respeito e à conquista da cidadania. Ao
Estado cabe ofertar ao cidadão dignidade suficiente para ser cidadão e,
desta forma, cabe ao cidadão, quando se sentir subtraído em seu direito
de participar do processo, seja perguntando, questionando, tirando dú-
vidas, conversando (despachando) sobre o seu processo com o juiz, com
o funcionário do cartório (serventuário da justiça), erguer a voz e exigir
sua condição de cidadão.

266
LU I Z A N TÔ N I O R E I S J U N I O R , M A U R I C I O P I R E S G U E D E S , T E L S O N P I R E S ,
VA N E S S A V E L A S C O, H E R N A N D E S B R I TO R E I S ( O R G . )

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Notamos que Juizado Especial, visando se tornar um espaço de acesso


à justiça para cidadão, tem procurado trazer uma maior proximidade deste
com o poder judiciário. Dispensa a lei o patrocínio de advogado nas causas
com valor inferior a 20 salários mínimos, e o artigo 14 da Lei 9.099/95
preceitua os princípios da simplicidade e informalidade quanto à elaboração
da peça inicial. Assim, entende-se que o Juizado deve estar para além das
questões meramente burocráticas, pois o cidadão busca muito mais do que
a solução de seus conflitos, o que almeja é um crescimento individual, uma
conscientização de quais são os seus direitos e deveres dentro da sociedade.
Neste sentido, o direito à informação é basilar para concretização de
uma ordem jurídica justa e do efetivo acesso à justiça, sendo imprescindí-
vel a participação dos Operadores do Direito na busca incansável à imple-
mentação de tais princípios, sabendo-se que sem informação e transpa-
rência, o povo não exerce sua cidadania.
Torna-se claro que, se o cidadão, ao ter seus direitos ameaçados/vio-
lados, não tiver a quem reclamar, e se, ao reclamar, não tiver acesso efetivo
a uma justiça que lhe garanta a exata compreensão de seus direitos, de que
lhe adiantarão leis democráticas?
A efetividade do direito à informação tem sido um dos obstáculos ao
acesso à justiça, pois quando falta ao cidadão conhecimento de seus direi-
tos, fica privado de reivindicá-los de forma correta.
O cidadão desinformado não tem preservado o seu Direito à Digni-
dade, almejado no bojo da Carta Magna. É necessário fazer dos juizados
especiais cíveis, um local onde cidadão possa buscar respostas jurídicas
satisfatórias ou um encaminhamento seguro, com a certeza de que ao sair
dali terá se tornado um cidadão melhor.
A Lei 9.099/95 tem buscado na democratização da justiça uma des-
burocratização do processo, visando à efetividade da prestação jurisdicio-
nal, não de cunho quantitativo, mas qualitativo, resgatando o fundamento
do exercício da cidadania.
A informação tornou-se ponto de partida e de chegada para o efetivo
alcance do direito ao acesso à justiça, princípio máximo previsto na Cons-
tituição Federal de 1988, em seu artigo 5°, inciso XXXV, a concretizar o
verdadeiro Estado Democrático de Direito.

267
DIMENSÕES JURÍDICAS DAS POLÍTICAS PÚBLICAS – VOL. 1

Conclui-se, portanto, que para a efetivação desses direitos, faz-se


mister que os juristas reconheçam que as técnicas processuais se devem às
funções sociais. Ora, manter o direito, sem efetivá-lo com a instrumenta-
lidade processual, é o mesmo que não reconhecê-lo existente.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ANDRIGHI, Fátima Nancy. A democratização da justiça: a lei


9.099/95 perspectiva da justiça no terceiro milênio. Revista dos Tri-
bunais, São Paulo, n°. 748, fev. 1998.

BENETI, Sidnei Agostinho. Da Conduta do Juiz. São Paulo: Saraiva,


2006

CAPPELLETTI, Mauro. Problemas de Reforma do Processo nas


Sociedades Contemporâneas. Revista Forense, v. 318, abr/maio/
junho. 1992.

CAPPELLETTI, Mauro; GARTH, Bryan. Acesso à Justiça. Trad. e


ver. por Ellen Gracie Northfleet. Porto Alegre: Sergio Antônio Fa-
bris, 1988.

CARVALHO apud ROCHA. Fellippe Boring. Juizados Especiais Cí-


veis: aspectos polêmicos da Lei 9.099, de 26/9/95. 3. ed. Rio de
Janeiro: Lúmen Júris, 2003, prefácio.

CUNHA, Márcia. Judiciário e Responsabilidade Social: Ações Afirma-


tivas. Revista da AMAERJ. Justiça e Igualdade. v. 2, n. 9, jul./
ago., p. 35, 2003.

FERNANDES FILHO, José. Texto: Juizados Especiais: dez anos de


aprendizado. Disponível em: ww.tj.ms.gov.br/juizados/doutrina/
DTR_20050607163922.pdf . Acesso em: 26 de junho de 2007.

FROSSARD, Denise. Justiça e Comunicação. Revista da AMAERJ.


Fórum: Debate sobre a Justiça e Cidadania, Rio de Janeiro, n. 12,
Jan/Out., ano 03, p. 26, 2002.

GAULIA, Cristina Tereza. Juizados Especiais Cíveis: o Espaço do Ci-


dadão no Poder Judiciário. Rio de Janeiro: Renovar, p. 126, 2005.

268
LU I Z A N TÔ N I O R E I S J U N I O R , M A U R I C I O P I R E S G U E D E S , T E L S O N P I R E S ,
VA N E S S A V E L A S C O, H E R N A N D E S B R I TO R E I S ( O R G . )

HERKENHOFF, João Baptista. O Direito Processual e o Resgate do


Humanismo. Rio de Janeiro: Thex, p. 22, 1997.

SANTOS, Milton. Espaço do Cidadão. 4. ed. São Paulo: Nobel, p.


7-8, 1998.

SARAMAGO, José. Da justiça à democracia, passando pelos sinos.


Le Monde Diplomatique, n. 576, p. 3, Mars 2002.

SURGIK, Aloísio. O Judiciário e o Povo. In: LYRA, Doreodó Araújo


(org.). Desordem e Processo: estudos sobre o direito e home-
nagem a Carlos Lyra. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris, p. 124,
1986.

269
A PROPAGAÇÃO
DESCARACTERIZADA DOS DIREITOS
HUMANOS PARA A NEGAÇÃO​
SELETIVA DE DIREITOS.
Francisca Alynne Ribeiro Rolim

“Direitos Humanos nunca vão à casa da vítima porque só prote-


gem os bandidos”, esta afirmação é um exemplo de frases ditas pelo
senso comum que distorcem o conceito e propósito da Declaração dos
Direitos Humanos em sua real atribuição. Quando se fala em direi-
tos humanos, por desconhecimento de alguns, ou por desonestidade
intelectual de outros, há uma divisão de opiniões, que em alguns ca-
sos, tendem a ignorar à importância da atuação desta lei e de seus de-
fensores. Este trabalho tem o objetivo de reforçar a importância da
declaração dos Direitos Humano, esclarecendo que vícios em frases,
como “direitos dos manos”, com o intuito de afirmar que só protegem
criminosos ou apenados, só fazem um desserviço de propagação da
desinformação que minimizam a vida do outro, sobretudo, dos grupos
minoritários, e que a educação é o caminho para esclarecer o conceito
equivocado que é propagado por muitos.
A​Declaração Universal dos Direitos Humanos foi adotada pela Or-
ganização das Nações Unidas em 10 de dezembro de 1948. Ela representa
o reconhecimento dos direitos básicos e a liberdade fundamental de todo
o ser humano, ela condena a escravidão e a tortura, defende a educação
gratuita, entre outras proteções aos direitos que no total somam 30 arti-
gos. A declaração dos Direitos Humanos foi responsável pelos avanços na

270
LU I Z A N TÔ N I O R E I S J U N I O R , M A U R I C I O P I R E S G U E D E S , T E L S O N P I R E S ,
VA N E S S A V E L A S C O, H E R N A N D E S B R I TO R E I S ( O R G . )

defesa de direitos em diversos países, mas por que essa declaração incomo-
da tanta gente?
A liberdade de expressão e religiosa, a educação, o trabalho, a pro-
priedade privada, a dignidade e o direito à vida são direitos inalienáveis
de qualquer indivíduo, sendo inadmissível a violação, e é papel dos
direitos humanos resguardar esses direitos. No entanto, num discurso
equivocado de alguns, o que se espalha é que os Direitos Humanos só
servem para proteger “bandidos” fazendo com que o conceito direitos
humanos sejam deturpados e seus defensores sejam hostilizados, de-
monstrando que não há uma educação voltada para o esclarecimento
e o conhecimento dessa declaração universal que se dispõe a preservar
e a valorizar a vida. “Sob perspectiva de emancipação, as contradi-
ções que perpassam os Direitos Humanos tornam-se evidentes, tanto
porque o conceito de sujeito de direito tem servido, no plano da re-
gulação, para o exercício legal da violência e da coação de indivíduos e
coletividades” (CHAUÍ, 2013, p. 31). Com isso, iniciar uma educação
voltada para os direitos humanos desde cedo é muito importante para
compreender tais conceitos que defendem à vida, à liberdade e os di-
reitos de todos sem distinções, aniquilando a relativização da violência
seletiva e compreendendo que direitos devem ser dados a todos inde-
pendentemente da situação que o outro seja ou esteja.
Por fim, este texto irá trazer questionamentos de como os direitos
humanos se espalham no senso comum e como podemos desconstruir
esses conceitos desviados que agridem e banalizam todo um trabalho de
preservação e valorização da vida de todos. E como a educação pode tra-
zer a compreensão de que à manutenção dos direitos fundamentais, que
muitos ignoram, seja por desconhecimento ou por estar em condições de
privilégios, é importante. A pesquisa bibliográfica foi a metodologia utili-
zada para a elaboração deste trabalho.

Por que Direitos Humanos?

O​primeiro documento que traz noções de direitos humanos foi


a Carta Magna assinada pelo rei João Sem-Terra em 1215, contudo,
barões e bispos da Inglaterra obrigaram ao rei assinar este documento
que limitava os seus poderes. Os direitos humanos nasceram para limi-

271
DIMENSÕES JURÍDICAS DAS POLÍTICAS PÚBLICAS – VOL. 1

tar poderes governamentais de invadir a esfera individual. O​ principal


fundamento dos Direitos Humanos é a garantia da dignidade humana.
Dito isso, pode-se compreender que toda vida importa e que todos
os direitos precisam ser garantidos e preservados, no entanto, Santos
(2013) afirma que a grande maioria da população mundial não é su-
jeito de direitos. Os Direitos Humanos existem para que a sociedade
seja mais justa e melhor para todos. No entanto, o que deveria ser
simples de entender para que se tenha todo apoio popular, essa decla-
ração sofre constante ataques e discursos de negação que certamente à
falta de educação reforça. Para iniciar uma melhor reflexão à respeito,
“deve-se pois começar por perguntar-se se os direitos humanos servem
eficazmente a luta dos excluídos, dos explorados, dos discriminados
ou se, pelo contrário, a torna mais difícil”. (SANTOS, 2013, p. 43).
No artigo Educação em Direitos Humanos: para uma cultura de paz,
os autores falam que a educação para a cidadania e direitos humanos
produziu-se pouco em termo de pedagogia e didática e menos ainda
para a educação, além de verifica-se uma grande carga ideológica em
seu material teórico, o que Gorczevski e Tauchen (2008) classificou
como “um vazio de amor e humanidade”.
Certamente, é preciso reforçar que os Direitos Humanos são declara-
dos para proteger os indivíduos da violência, do autoritarismo e abuso do
Estado. A promoção da igualdade e da dignidade humana está presente na
Declaração do Direitos Humanos e ter o conhecimento dessa declaração
pode fortalecer o respeito aos direitos humanos e às liberdades individuais.
Desde o nascimento da Organização das Nações Unidas, em
1945, o conceito de direitos humanos foi universalizado, alcançando
uma grande importância na cultura jurídica internacional. Adotada e
proclamada pela assembleia geral da ONU, em 1948, com o objetivo
de promover e estimular o respeito dos direitos humanos para todos e
em resposta aos horrores da segunda guerra mundial, ​a Declaração dos
Direitos Humanos ampliou os direitos de todos de forma universal,
sem qualquer exceção.
Ainda que esses direitos sejam violados, não se pode negar que a decla-
ração foi um marco em defesa da dignidade humana e ao ser adotada é um
grande passo nesse longo caminho a ser percorrido na garantia dos Direitos
Humanos a todos. E assim, os direitos assegurados na declaração, são:

272
LU I Z A N TÔ N I O R E I S J U N I O R , M A U R I C I O P I R E S G U E D E S , T E L S O N P I R E S ,
VA N E S S A V E L A S C O, H E R N A N D E S B R I TO R E I S ( O R G . )

• L iberdade de pensamento, palavra e crença e de viverem a salvo


do temor;
• Dignidade;
• De insurgir-se contra a tirania e a opressão;
• Igualdade de direitos (Homens e mulheres);
• Vida;
• Liberdade de ser;
• Liberdade de ir e vir;
• Segurança pessoal e aos ditos da lei e da justiça;
• Presunção de inocência até que se comprove a culpa;
• Asilo político;
• Reunir-se para discutir ideias;
• Organizar-se em associações pacífica e em sindicato;
• Nacionalidade;
• Propriedade;
• Participar da vida política do seu país;
• Voto para a escolha de representantes;
• Trabalho e proteção contra o desemprego;
• Igual remuneração por igual trabalho;
• Desfrutar de repouso e lazer. ​

Fonte: (Direitos Humanos e Geração de paz, p 101. Fundação Demócrito Rocha).

Os direitos humanos representam as condições necessárias para


uma vida digna. Para Demo (2001) os Direitos Humanos são resul-
tados da cidadania, entendida este como a descoberta conquistada do
direito ter direito.
No Brasil, a história dos Direitos Humanos está ligada com a história
das constituições brasileira. ​Nas primeiras constituições, os direitos não
eram absolutos porque eram limitados. Na​constituição​ de 1824 surgiu a
garantia​dos direitos liberais e as tentativas de reconhecimento dos direi-
tos civis e individuais, estruturado na liberdade, na segurança individual
e na propriedade privada. Na constituição de 1891, a primeira na forma
de governo republicano, garantiu o sufrágio direto, mas ficando fora des-
se exercício político os​mendigos, ​os analfabetos e os religiosos. Com a
constituição de 1934 houve um resgate dos Direitos Humanos que foram
desrespeitados na revolução de 1930. Na de 1937, com o Estado Novo, os

273
DIMENSÕES JURÍDICAS DAS POLÍTICAS PÚBLICAS – VOL. 1

direitos humanos eram quase inexistentes sendo​recuperado em 1946 com


a nova constituição que durou até 1967. Um momento que ficou marcado
por episódios de graves desrespeitos aos direitos humanos, onde muitos
direitos foram feridos, como as restrições ao direito de reunião, ​além de
outros, foi no regime militar, e após esse período, foi promulgada a cons-
tituição de 1988, que dura até os dias atuais.
Finalmente, a garantia dos direitos humanos veio com a constituição
de 1988, nela vêm os direitos civis, políticos, econômicos, sociais e cul-
turais dos cidadãos, em que, no seu 1º artigo vem estabelecido o princí-
pio da cidadania, da dignidade da pessoa humana e os valores sociais do
trabalho e no 5º estabelece o direito à vida, à privacidade, à igualdade, à
liberdade e outros importantes direitos fundamentais, sejam eles indivi-
duais ou coletivos.
Com o objetivo de garantir a cidadania e a dignidade humana, a
constituição de 1988 defende princípios, como: igualdade entre gêneros;
promoção do bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, gênero,
idade ou cor; direito de acesso à saúde, à previdência, à assistência social,
à educação, à cultura e ao desporto, entre outros. Com isso, reivindicar
e defender a aplicabilidade dos direitos humanos não é praticar injustiça,
como muitos acreditam, é objetivar o bem comum a todos, valorizando
cada vida.

Por que os Direitos Humanos são mal vistos?

Como consequência, a ideia de que os direitos humanos foram cria-


dos para defender criminosos aumenta mais ainda a sua reprovação e a
deturpação do seu conceito e dos motivos que levaram a se pensar em
direitos humanos. Mesmo sabendo que ela também ampara as vítimas e
que foi feita para proteção de todos, ainda há uma propagação errada em
relação ao seu papel na sociedade, fazendo com que uma parte da popu-
lação defenda que “bandido bom é bandido morto”. Para Gorczevski;
Tauchen (2018), o problema é que modernamente estamos assistindo a
uma inflação de Direitos Humanos de duvidosa justificação – e inflação
tem como consequência a desvalorização.
A distorção do conceito começou no regime militar. Na época,
movimentos e entidades sociais lutavam pelos direitos dos presos e

2 74
LU I Z A N TÔ N I O R E I S J U N I O R , M A U R I C I O P I R E S G U E D E S , T E L S O N P I R E S ,
VA N E S S A V E L A S C O, H E R N A N D E S B R I TO R E I S ( O R G . )

perseguidos políticos, e com isso, passou - se a associar os Direitos


Humanos com direitos de criminosos. No período que o Brasil esteve
sob o regime ditatorial, os direitos dos cidadãos foram massacrados em
nome do Estado opressor. A polícia representava o Estado que usava a
repressão para controlar o indivíduo, e com isso, o uso da violência,
por parte da polícia, era subentendido que eles estavam protegendo a
sociedade das ações de quem agia contra ela, e com isso, o uso da força
era legitimada, como ainda é nos dias de hoje. A justificativa é, não
importa o motivo, mas se apanhou, está preso ou levou tiro da polícia,
foi porque mereceu.
Por certo, é que o Direitos Humanos está relacionado aos direi-
tos básicos, como: direito à vida, à moradia, à alimentação, à saúde, à
igualdade, mas esses direitos são feridos há tempos e isso parece não
incomodar. “ O indivíduo possui uma dignidade absoluta e irredutível
que tem que ser defendida da sociedade ou do Estado” (SANTOS,
1995, p. 112), no entanto, algumas pessoas, que não tem conhecimen-
to do seu papel, tratam os direitos humanos de forma seletiva, pois
defendem para uns e condenam para outros e para justificarem seus
discursos de seleção, escolhem distorcer dizendo que Direitos Huma-
nos foi criado para defender criminosos e discurso do tipo precisam
ser descontruídos, Piosevan (2009) nos convida a assumir o risco de
romper com essa cultura de naturalização e banalização e trivialização
das desigualdades e exclusões.
Contudo, as redes sociais que trouxe a modernidade e a agilidade
nas informações, ao mesmo tempo, deixou mais explícitas todos os
tipos de discursos, e com isso, também ampliou a propagação da desin-
formação. É comum presenciar opiniões, de notável desconhecimento,
à respeito dos direitos humanos aliado ao discurso de ódio, vindo até
de pessoas que tem a obrigação de conhecer e defender o verdadeiro
conceito, como parlamentares e influenciadores digitais. A propaga-
ção tendenciosa dos Direitos Humanos atrai mais desconhecidos que
compram a ideia errada, e que, por conveniência, saem propagando de
forma errônea.
As imagens a seguir, retiradas de redes sociais, mostram como é fácil
propagar um discurso de ódio, e com isso, atrair inúmeros simpatizantes e
novos propagadores com o conceito corrompido.

275
DIMENSÕES JURÍDICAS DAS POLÍTICAS PÚBLICAS – VOL. 1

Figura 1: Retirada de páginas sociais. Imagens e nomes preservados. ​

Publicações do tipo recebem centenas de likes​e comentários de apoio,


e com isso, se cria uma legião de condenadores dos Direitos Humanos.
Certo seria o banimento de tais discursos. “A violência tem caráter instru-
mental e, no mundo contemporâneo, o seu alcance viu-se multiplicação
por técnica” (LAFER, 1997, p. 61).

Imagem retirada do texto Contra as Políticas Públicas Anti-Direitos Humanos, 2019.

Quando surge um noticiário relatando que um presidiário foi morto,


ou na prática de um delito sofre violências físicas, entre outros, há uma co-
memoração em massa por aqueles que defendem que o Direitos Humanos
devem servir somente para “Humanos Direitos”. Argumento do tipo de-

276
LU I Z A N TÔ N I O R E I S J U N I O R , M A U R I C I O P I R E S G U E D E S , T E L S O N P I R E S ,
VA N E S S A V E L A S C O, H E R N A N D E S B R I TO R E I S ( O R G . )

fendem que somos diferentes perante a lei e que uns merecem tratamentos
diferenciados, isso é exemplo de segregação.

Imagem retirada do texto A conspiração contra os Direitos Humanos, 2017.

Consequentemente, as pessoas influenciadas pelo discurso de ódio


acreditam que à falta de punição aumenta a violência e estimula a “margi-
nalidade”, e junto a esse discurso vem a legitimidade e à defesa da punição
em forma de agressão física. No entanto, nos dados do sistema prisional,
segundo a matéria “7​Clichês contra os Direitos Humanos” desconstruí-
dos por colunistas do Justificando, ​o Brasil é o 4º​país​que mais prende no
mundo e, segundo os dados do Ministério da Justiça, em 2014 existiam 607
mil apenados, certamente, esses dados atualizados vão mostrar números até
maiores. Então, não é falta de punição, não é falta de “peia” que aumenta a
violência na sociedade, esse aumento vai além de outras questões.
Sendo assim, exaltar a violação dos Direitos Humanos de alguns, seja
qual for o motivo, é defender a desigualdade social, a discriminação e a
violência às minorias, onde quem acaba mais sofrendo são os negros das
periferias. O​secretário-geral das Nações Unidas, Ban Ki-moon (2016),
defendeu que é preciso ter “espírito para combater o extremismo, inter-
romper o desrespeito às leis humanitárias internacionais e defender grupos
da sociedade civil que enfrentam medidas cada vez mais duras que os im-
pedem de exercer seu papel vital. ”

Por que defender os Direitos Humanos?

Simplesmente porque​os Direitos Humanos são direitos básicos,


como: viver, comer, ir e vir com segurança, moradia, entre outros, que são

277
DIMENSÕES JURÍDICAS DAS POLÍTICAS PÚBLICAS – VOL. 1

fundamentais para o indivíduo viver dignamente. São direitos para todos,


independentemente, de raça, cor, sexo, religião e classe social, de acordo
com a Piovesan (2009), os direitos humanos se inspiram, de toda maneira,
nesta dupla vocação: afirmar a dignidade humana e prevenir o sofrimen-
to humano. Os Direitos Humanos são fundamentais para os milhares de
pessoas marginalizadas que são assistidas na ausência do estado, é a defesa
da justiça, da igualdade e a busca de uma sociedade melhor. Defender os
Direitos Humanos é lutar contra a intolerância religiosa, o racismo e a
discriminação de qualquer grupo social. É defender escola, saúde, comida,
trabalho e moradia para todos.
Conforme o do discurso de ódio ganha espaço, inflama mais ainda o
aumento da violência a determinados grupos, sendo assim, é muito rele-
vante o papel dos Direitos Humanos ao mediar conflitos protegendo os
mais desassistidos. O secretário-geral​das Nações Unidas, Ban Ki-moon
(2016), no vídeo Direitos Humanos sob ataque, Manifeste-se! Reforçou
sobre à importância da defesa dos direitos humanos “Em​um momento de
múltiplos conflitos, crescentes necessidades humanitárias e aumento do
discurso de ódio”. Ban nos lembra que o reconhecimento dos “direitos
iguais e inalienáveis de todos os membros da família humana é a base da
liberdade, da justiça e da paz no mundo’”. Percebe-se que​é uma crítica
a todo discurso de ódio em relação à atuação dos Direitos Humanos pois
é preciso respeito, dignidade e segurança para todos. “​Defender​direitos
humanos é do interesse de todos. O respeito aos direitos humanos sig-
nifica bem-estar para cada indivíduo, estabilidade para cada sociedade e
harmonia para nosso mundo interconectado”, Ki-moon (2016).
Diversas campanhas mundiais reforçam a promoção dos direitos hu-
manos, dentre elas, a campanha Global “Manifeste-se pelo direito de al-
guém hoje” pois é preciso compreender que ao defender o direito de al-
guém está, acima de tudo, defendendo o seu direito. Quando se deseja a
ressocialização de um detento, além de defender que o outro tenha uma
chance, ao mesmo tempo se defende uma sociedade mais saudável e boa
para todos. A cada detento ressocializado, com chances no mercado do
trabalho, aposta-se na diminuição da violência, como furtos e assassinatos,
assustam a sociedade.
Em resumo, pensar em si e no próximo é defender os direitos huma-
nos. Ao permitir que o outro não tenha acesso aos direitos fundamentais,

278
LU I Z A N TÔ N I O R E I S J U N I O R , M A U R I C I O P I R E S G U E D E S , T E L S O N P I R E S ,
VA N E S S A V E L A S C O, H E R N A N D E S B R I TO R E I S ( O R G . )

legitima-se que o seu um dia seja negado, é um efeito dominó que che-
gará, uma hora ou outra, a todos. “Trata – se do homem, como sujeito
dotado de necessidades, desejos, aspirações, sentimento e razão. Não é
somente um ser privado e um ser social, é, também, um animal políti-
co”. (MBAYA, 1997, p.20). A negação dos direitos essenciais promove
a desigualdade que pode ser determinante para o aumento da violência.
O aumento da violência é exemplo de que o direito do outro está sendo
negado e ele vai tentar conseguir de qualquer maneira, com isso, todos nós
nos tornamos vítimas.
Deve-se ressaltar como a educação deveria agir nesse processo de
esclarecimento e defesa dos direitos humanos. Gorczevski;Tauchen
(2008) defendem uma educação complementar à educação geral: uma
educação para os direitos humanos. Para eles, “a Educação em Direitos
Humanos é essencialmente a formação de uma cultura de respeito à
dignidade humana, através da promoção e da vivência de atitudes, há-
bitos, comportamentos e valores como igualdade, solidariedade, coo-
peração, tolerância e paz”.
Assim sendo, é preciso reivindicar transformações sociais e democrá-
ticas que implicam à aplicação dos direitos a todas as pessoas com respeito
e igualdade. Entendendo esses conceitos, veremos que é muito simples o
verdadeiro conceito dos Direitos Humanos e como é importante todos
defendê-los.

Considerações finais

A​Declaração Universal dos Direitos Humanos diz que “todas as pes-


soas nascem livres e iguais em dignidade e direito”. Ter essa compreensão
e reconhecer que dignidade da pessoa, independentemente de quem ela
seja, é a construção de uma sociedade plena de igualdade e paz, a paz que
todos buscam.
Os indivíduos exerciam, plenamente, a sua cidadania com liberdade
justiça e solidariedade. Lutar pelos direitos humanos deveria ser um prazer
unânime, pois, como dizia Ki-moon​(2016), “Onde quer que estejamos,
cada um de nós pode fazer a diferença pelos direitos humanos - nosso
bairro, escola, trabalho (...). Juntos, vamos nos manifestar pelo direito de
alguém. Hoje, amanhã e todos os dias”. O benefício é coletivo!

279
DIMENSÕES JURÍDICAS DAS POLÍTICAS PÚBLICAS – VOL. 1

No​entanto, a nossa sociedade deforma os direitos humanos defenden-


do a sua aplicabilidade de modo seletivo devido ao seu conceito ser negati-
vamente propagado. É importante reforçar que os dois princípios maiores
dos Direitos Humanos são a dignidade da pessoa humana e o direito à vida,
mesmo que a vida seja de uma pessoa que esteja à margem da lei.
Ao cometer um crime, o indivíduo deve responder por ele, mas, ele
tem o direito de cumprir a sua pena de forma digna e com a garantia de
que a sua vida será preservada. A lei deve ser cumprida sem ferir os direi-
tos humanos. Os Direitos Humanos defendem um sistema penitenciário
humanizado, e isso incomoda, reforçando as críticas negativas.
Como já citado, no período da ditadura militar os Direitos Hu-
manos foram severamente violados com prisões arbitrárias, torturas,
assassinatos e ocultação de corpos. Um caso dessa época, conhecido
mundialmente, foi do Frei Tito de Alencar, preso e barbaramente tor-
turado e que deixou profundas sequelas que mais à frente o matou.
Matou primeiro a alma e logo depois matou o corpo. Tito escreveu um
documento que denunciava os maus-tratos na prisão do Brasil. Esse
documento circulou o mundo todo e tornou-se um símbolo da luta
pelos Direitos Humanos.
Salienta-se que a dignidade humana também está alinhada à diver-
sidade que rodam as nossas vidas. É preciso celebrar todas as vidas com
dignidade, cuidado e respeito. A dignidade humana é o restabelecimento
da justiça, da igualdade, da ética e do bem estar social.
Por fim, a diretora-geral da organização das Nações Unidas para Edu-
cação, a Ciências e a Cultura UNESCO), Irina Bokova, traz uma reflexão
que nos impulso a pensar do porquê defender os direitos humano, Bokova
(2016), declara: “ Todos os anos, o dia dos Direitos Humanos oferece
uma oportunidade para que todos renovem o espírito da longa luta da hu-
manidade por direitos e dignidade, assim como, para se mobilizar contra
desafios antigos e novos, na forma de pobreza, desigualdade, violência,
exclusão e discriminação”.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

7 Clichês sobre Direitos Humanos que precisam ser desconstruídos. Prag-


matismo Político, 2017. Disponível em: https://www.pragmatismo-

280
LU I Z A N TÔ N I O R E I S J U N I O R , M A U R I C I O P I R E S G U E D E S , T E L S O N P I R E S ,
VA N E S S A V E L A S C O, H E R N A N D E S B R I TO R E I S ( O R G . )

politico.com.br/2015/10/7-cliches-sobre-direitos-humanos-que-
-precisam-ser-desconstruidos.html > Acesso: 20 de Mar de 2020.

A conspiração contra os Direito Humanos. Blog do Ze Freitas, 2017.


Disponível em: <http://blogdozefreitas.com.br/blog/a-conspiracao-
-contra-os-direitos-humanos > Acesso em: 23 de Mar de 2020.

DEMO, Pedro. Políticas Públicas de Direitos Humanos. UnB, Bra-


sília, 2001. -anos/?gclid=Cj0KCQjw3qzzBRDnARIsAECmryq-
g87uazxk4LUwiy6Arunb8nyjVXHR

DIREITOS Humanos e Geração de Paz. Universidade Aberta do Nor-


deste. Fundação Demócrito Rocha.

GORCZEVSKI, Clovis; TAUCHEN Gionara. Educação em Direitos


Humanos: para uma cultura de paz. Educação, Porto Alegre, v.
31, n.1, p. 66-74, jan./abr. 2008.

HOJE na história: Declaração dos Direitos Humanos faz 70 anos. Gele-


des, 2018. Publicado em 10 de dezembro de 2018. Disponível em:
<https://www.geledes.org.br/hoje-na-historia-declaracao-dos-di-
reitos-humanos-faz-70> Acesso em: 25 de Mar de 2020.

MBAYA, Etienne-Richard. Gênese, evolução e universidade dos di-


reitos humanos frente à diversidade de culturas. Estudos avan-
çados , 1997.

NAÇÕES Unidas Brasil. ONU lembra importância de defender


direitos humanos frente a discurso de ódio. Publicado em
09/12/2016. Disponível em: <https://nacoesunidas.org/onu-lembra-
-importancia-de-defender-direitos-humanos-frente-a-dis cursos-
-de-odio/ > Acesso em 21 de Mar de 2020.

PAISANO Bruno. Por que defender direitos humanos?. Medium,


2016. Disponível em: <https://medium.com/@brunupaisanu/por-
-que-defender-direitos-humanos-3634c666880f > Acesso em: 25
de Mar de 2020.

PIOVESAN Flávia. Direitos Humanos: Desafios e Perspectivas


contemporâneas. Ver. TST, Brasília, vol. 75, n° 1, jan/mar 2009.

281
DIMENSÕES JURÍDICAS DAS POLÍTICAS PÚBLICAS – VOL. 1

SAVY Renato. A Deturpação do conceito de Direitos Humanos.


Diário de aço, publicado em 25 de Março de 2017. Disponível em:
<https://www.diariodoaco.com.br/noticia/0048965-a-deturpacao-
-do-conceito-de-direitos-huma nos ​> Acesso em: 21 de Mar de
2020.

SANTOS. Boaventura de Souza. Uma concepção multicultural de


Direitos Humanos. Lua Nova, nº 39, 1997.

SANTOS, Boaventura de Sousa; CHAUÍ, Marilena. Direitos Huma-


nos, Democracia e desenvolvimento. São Paulo: Cortez, 2013.

SOUZA Isabela. A evolução dos Direitos Humanos no Brasil. Po-


litize, 5 de maio  de 2017. Disponível em: <https://www.google.
com/search?q=cria%C3%A7%C3%A3o+dos+direitos+huma-
nos+ no+brasil&oq=cria%C3%A7%C3%A3o+dos+d&aqs=chro-
me.4.69i59j69i57j0l6.17683 j1j7&sourceid=chrome&ie=UTF-8>
Acesso em: 20 de Mar de 2020.

282
AS DISTINTAS DIMENSÕES DE
DIREITOS FUNDAMENTAIS
Alexsandro de Morais Rodrigues49

INTRODUÇÃO

Os direitos fundamentais são direitos inerentes a pessoa humana ga-


rantidos no texto da Constituição Federal, no entanto, tais direitos pos-
suem distintas fontes, assim como, prescrevem distintas maneiras de in-
tervenção estatal na esfera individual de cada pessoa humana destinatária
destes direitos.
Os direitos fundamentais são fruto de um processo histórico de ne-
cessidades humanas que surgiram em períodos distintos da história, ne-
cessidades, que através da filosofia ou ciência, foram debatidos e consi-
derados de suma importância. Reconhecida a supra importância destas
necessidades, as mesmas foram incorporadas ao texto jurídico, garantindo
assim, que tais necessidades fossem garantidas às pessoas, se tornando di-
reitos fundamentais intrínsecos a estas pessoas.
O surgimento de necessidades fundamentais, posteriormente reco-
nhecidas como direitos fundamentais se manifesta em contextos distintos,
podendo ser influenciadas pela necessidade humana de liberdade perante
o Estado ou pela necessidade humana e social de presença do Estado.

49 Advogado, pós graduando em direito penal e processo penal pela Fundação Escola Su-
perior do Ministério Público e pós graduando em docência do ensino superior pelo Centro
Universitário Ritter dos Reis.

283
DIMENSÕES JURÍDICAS DAS POLÍTICAS PÚBLICAS – VOL. 1

Assim como, os avanços tecnológicos são grandes influenciadores


do meio de vida humano, assim gerando novas necessidades primordiais,
como meios de transporte mais tecnológicos para garantir o bem estar
social.
Neste sentido, as origens de tais direitos vão dos jusnaturalismo ao so-
cialismo, assim como, a preocupação com o meio ambiente à paz, sempre
havendo deliberações sobre a necessidade de implementar a garantia de
tais necessidades como direitos fundamentais.
Assim, há de se tratar os direitos fundamentais como fruto de suces-
sivas conquistas históricas do homem como pessoa humana, da sociedade
e do direito. Através de tais conquistas históricas, se garante direitos e ga-
rantias fundamentais a pessoa humana, sendo esta condição suficiente para
ser destinatário de direitos fundamentais, independentemente de classe
social, sexo ou gênero.
Desta forma, os direitos fundamentais se originaram através de di-
versos marcos históricos em períodos de distintas necessidades humanas,
necessidades estas de tamanha importância que sua garantia foi positivada
dentro do texto legal.
As distintas dimensões de direitos fundamentais se caracterizam por
diferentes fontes, assim como diferentes objetivos, tais como os direitos
de primeira dimensão também chamados de negativos, prezando pela não
interferência estatal.
Os direitos da segunda dimensão, os quais reconheciam a necessidade
da intervenção estatal em cunho assistencial reconhecidos em outro pe-
ríodo histórico e influenciados por doutrina distinta.
Por fim, os direitos da terceira dimensão, como direitos de alto ní-
vel altruísta, prezando pelo progresso da humanidade através de diversos
meios jurídicos e sociais a aqui serem explanados.
Assim, tais direitos reconhecidos pelo Estado como necessidades
humanas fundamentais são inalienáveis, imprescritíveis, irrenunciáveis e
universais, inerentes a pessoa que devem ser garantidos pelo Estado de
maneira positiva ou negativa nos exatos termos em que foram positivados
no texto constitucional. Os direitos fundamentais são o básico necessá-
rio reconhecido pela sociedade para a existência digna da pessoa humana,
onde é imposto ao Estado que garanta tais direitos conquistados histori-
camente.

284
LU I Z A N TÔ N I O R E I S J U N I O R , M A U R I C I O P I R E S G U E D E S , T E L S O N P I R E S ,
VA N E S S A V E L A S C O, H E R N A N D E S B R I TO R E I S ( O R G . )

Portanto a ideia de dimensões de direitos fundamentais, também cha-


madas pela doutrina de gerações de direitos fundamentais, traz a ideia da
conquista gradativa de tais direitos através de conflitos e debates protago-
nizados pela sociedade onde esta exigia prestações ou abstenções que sem
as quais o bem estar social e a ordem estariam comprometidos.
Primeiramente, passando-se pelos direitos da primeira dimensão,
com a demanda de liberdade da pessoa humana em face ao Estado, sendo
o foco de tais direitos o indivíduo como pessoa humana e livre. Posterior-
mente com o surgimento dos direitos sociais com a demanda de prestações
estatais aos indivíduos e o Estado como garantidor da igualdade, onde o
foco de tais direitos seria a sociedade em si. Por fim as demandas altruístas
dos direitos difusos, visando não apenas o indivíduo ou a sociedade como
seu sujeito, mas sim a humanidade como um todo como seu núcleo.
Desta forma, o presente artigo visa observar os direitos fundamentais
de primeira, segunda e terceira dimensão, assim como suas origens em
correlação com o contexto histórico em que surgiram. Também, serão
analisadas as características dos direitos fundamentais, negativos, positivos
e difusos, observando como estes se relacionam e quais princípios e ver-
tentes impulsionaram sua positivação

1. DIREITOS FUNDAMENTAIS

A Constituição Federal brasileira de 1988 foi um marco dentro do


direito brasileiro no que se refere a instituição e garantia de direitos fun-
damentais à pessoa humana. O constituinte trouxe dentro do corpo da
Constituição Federal, exatamente em seu Título ll uma série de direitos e
garantias fundamentais aos indivíduos a ela vinculados.
A preocupação do Constituinte foi tamanha em garantir uma Cons-
tituição cidadã garantidora de direitos, que, o mesmo, elencou os direi-
tos fundamentais em capítulos, sendo estes: direitos políticos e partidos
políticos, direitos de nacionalidade, direitos sociais, direitos individuais
e coletivos.
Para (PEREIRA 2018), os direitos fundamentais podem ser observa-
dos de distintas formas, não apenas de maneira positiva devido a sua alta
complexidade oriunda da evolução histórica de tais direito que tiveram
seu alcance e reconhecimento ampliados gradualmente.

285
DIMENSÕES JURÍDICAS DAS POLÍTICAS PÚBLICAS – VOL. 1

No entanto, SARLET (2012) vai mais adiante pondo em questão a


origem das gerações destes direitos, devido a instituição de direitos funda-
mentais no texto das primeiras constituições gerar o questionamento de
onde vieram as chamadas gerações de tais direitos, também chamadas de
dimensões de direitos fundamentais.
Para o autor, a instituição de direitos fundamentais ao decorrer da
história, se deu devido às transformações sociais, sendo que a instituição
de diferentes direitos fundamentais é profundamente conectada ao reco-
nhecimento de novas necessidades do ser humano.
O desenvolvimento da sociedade, assim como suas transformações ge-
raram novas necessidades primordiais, necessidades as quais, deve o Estado
tutelar juridicamente, garantindo ao indivíduo que tais exigências fossem
asseguradas por direito a estes, devido a sua fundamental importância.
No entendimento do autor, o emaranhado de transformações que
gerou novas necessidades humanas a serem asseguradas pelo direito, são
a evolução do Estado liberal ao Estado moderno, as mutações dentro das
indústrias, processos de descolonização, entre outros. Ingo Sarlet conclui
que os direitos fundamentais passaram por um processo histórico, até
atingir o momento de seu reconhecimento, passando primeiramente pela
fase pré histórica até o século XVl.
Em momento seguinte, atingindo uma fase intermediária, durante
a elaboração de doutrinas jusnaturalistas que sustentavam a existência de
tais direitos como direitos naturais do homem, inalienáveis e preexistentes
do homem face ao Estado.
E por fim, SARLET (2012) entende que a fase de constitucionali-
zação, onde houveram demasiadas declarações de direitos em 1976, que
ocasionaram o adentramento de tais direitos dentro do corpo de Consti-
tuições escritas.
No entanto, (PINHO 2015) vai além do mero adentramento de tais
direitos no texto constitucional e avança ao discorrer sobre a devida ga-
rantia de tais direitos, não bastando o reconhecimento dos direitos fun-
damentais com a mera positivação destes no texto constitucional, deve o
Estado primordialmente atuar com visando a concretização destes direitos
de maneira natural, garantindo-os sempre através de seus servidores, pois
a devida garantia de tais direitos não é de interesse apenas do indivíduo e
sim de toda a sociedade.

286
LU I Z A N TÔ N I O R E I S J U N I O R , M A U R I C I O P I R E S G U E D E S , T E L S O N P I R E S ,
VA N E S S A V E L A S C O, H E R N A N D E S B R I TO R E I S ( O R G . )

Desta forma, é possível observar que a instituição de direitos funda-


mentais passou por um multifásico processo histórico de reconhecimento,
uma fase de questionamento e uma fase de positivação de tais direitos. A
evolução dos direitos fundamentais resta conectada a evolução do Estado,
constitucional moderno, onde o fator determinante foi o reconhecimento
de tais direitos ao homem.
Sendo estes direitos posteriormente classificados como preexistentes
e inalienáveis, uma proteção máxima à dignidade da pessoa humana e seus
direitos que em período seguinte, tomaram forma dentro do corpo das
constituições escritas.
Assim, os direitos fundamentais não surgiram em um único mo-
mento, e sim em momentos distintos, devido à fragmentação em perío-
dos em que os direitos fundamentais foram reconhecidos, estes, costu-
mam ser divididos pela doutrina na forma de gerações ou dimensões de
direitos fundamentais.
Também, SARLET (2012) traça um paralelo de maneira destacada
entre a evolução no âmbito filosófico e o processo gradual do reconheci-
mento de direitos fundamentais, com sua consequente positivação dentro
do corpo da Constituição, no fim do século XVlll.
É possível identificar que, muito embora os direitos fundamentais
não tenham sido constatados em períodos históricos anteriores, teria
sido a filosofia e seu avanço desde então, que possibilitou ao homem a
identificação de suas necessidades naturais. Necessidades as quais, foram a
chave para que posteriormente influenciaram pensadores que contribuíram
para incorporar no direito tais necessidades, como direitos fundamentais a
serem resguardados pelo Estado.
De acordo com o autor, valores primordiais do homem como a liber-
dade, igualdade e dignidade da pessoa humana, posteriormente instituídos
como direitos fundamentais, tem sua origem dentro da filosofia clássica, as-
sim como na religião cristã. É importante salientar que o processo histórico
que antecedeu a constitucionalização dos direitos fundamentais, é o resultado
de um debate ininterrupto a capacidade estatal de reconhecer direitos dentro
do direito positivo. Também, a religião, tanto quanto a filosofia, contribuíram
para o reconhecimento de direitos fundamentais, pois conforme herdado do
antigo testamento, o homem é o ápice da criação divina, à imagem do cria-
dor, o que trouxe, na época, a ideia de igualdade e dignidade entre os homens.

287
DIMENSÕES JURÍDICAS DAS POLÍTICAS PÚBLICAS – VOL. 1

Ademais, sobre o longo processo de positivação dos direitos funda-


mentais dentro da esfera do direito positivo, é possível identificar os an-
tecedentes dos direitos fundamentais no texto das declarações do século
XVlll. Os direitos fundamentais como hoje reconhecidos e positivados,
advém de um longo processo onde seus primórdios encontram-se dentro
de declarações de direitos.
Desta forma, o direito positivo, acompanhou paralelamente tais de-
clarações, progressivamente recepcionando direitos fundamentais, assim
como deveres individuais e liberdades individuais em face do Estado.
Para SARLET (2012), tal fenômeno é visualizado claramente dentro
do texto da Magna Charta Libertatum, tal documento seria um pacto fir-
mado entre no ano de 1215 pelos bispos barões ingleses e Rei João Sem-
-Terra, no século Xlll. Outrossim, o presente pacto, não possuía o nobre
condão de garantir liberdades a todo e qualquer indivíduo, de acordo com
o contexto histórico, é clara a intenção de garantir a apenas os ingleses
nobres privilégios feudais.
Assim, Ingo Sarlet salienta que muito embora tal pacto visasse ape-
nas um público determinado e seleto, o mesmo, serviu como exemplo às
demais camadas da população, mostrando a existência de alguns direitos,
como liberdades civis, a título de exemplo o Autor cita o habeas corpus, o
direito à propriedade e o devido processo legal.
Ante o exposto, fica visível que, muito embora o solene documen-
to supracitado tenha sido um marco para o reconhecimento de direitos
fundamentais e liberdades individuais clássicas, o mesmo visava apenas
os ingleses nobres do período, garantindo a estes, direitos fundamentais.
Valor de tal pacto não se limita a tal fenômeno, pois o mesmo, de-
monstrou a possibilidade de existência de direitos e garantias fundamen-
tais ao indivíduo oponíveis ao Estado, alertando todo o liame social de tal
possibilidade, até então inviável. Portanto, os direitos, garantias e liber-
dades individuais expressas na Magna Charta, influenciaram de maneira
imperiosa o ulterior aperfeiçoamento e reconhecimento de direitos, ga-
rantias e liberdades dentro do corpo das constituições modernas.
Assim, muito embora os direitos fundamentais sejam reflexo das ne-
cessidades humanas dentro do âmbito social, tal âmbito sofre mudanças
originadas dentro da própria sociedade. Assim, os direitos fundamentais
desde seu reconhecimento, passaram por diversas mutações históricas, so-

288
LU I Z A N TÔ N I O R E I S J U N I O R , M A U R I C I O P I R E S G U E D E S , T E L S O N P I R E S ,
VA N E S S A V E L A S C O, H E R N A N D E S B R I TO R E I S ( O R G . )

bre sua eficácia, titularidade, efetivação e eficácia, tais mutações ao decor-


rer do tempo, tornaram possível separar e classificar direitos fundamentais
de acordo com sua origem e objetivo.
A doutrina entende razoável a classificação de direitos fundamentais
em gerações de direitos fundamentais, termo muito questionado pela
doutrina por trazer a ideia de evolução e substituição. No entanto, o ter-
mo possui críticas fundadas, sendo adequada a utilização de outro termo,
conforme leciona Sarlet:

Costuma-se, nesse contexto marcado pela autêntica mutação his-


tórica experimentada pelos direitos fundamentais, falar da existên-
cia de três gerações de direitos, havendo, inclusive, quem defenda
a existência de uma quarta até mesmo de uma quinta e sexta gera-
ções. Num primeiro momento, é de ressaltar as fundadas críticas
que vem sido dirigidas contra o próprio termo “gerações” por parte
da doutrina alienígena e nacional. Com efeito, não há como negar
que o reconhecimento progressivo de novos direitos fundamentais
tem o caráter de um processo cumulativo de complementariedade,
e não de alternância, de tal sort, o uso da expressão “gerações” pode
ensejar falsa impressão da substituição gradativa de uma geração por
outra , razão pela qual há quem prefira o termo “dimensões” dos
direitos fundamentais, posição esta que aqui optamos por perfilhar,
na esteira da mais moderna doutrina. (SARLET,2012,p.31)

Assim, se faz necessária a explanação das dimensões de direitos fun-


damentais, suas características, focos, assim como os custos de tais direitos
a aqueles vinculados ao Estado como garantidor de tais direitos. Muito
embora tais direitos sejam necessidades humanas conforme convenciona-
do em coletivo, a garantia de muitos dos mesmos, poderá acarretar maior
tributação aos indivíduos como contribuintes compulsórios.

2. DIREITOS FUNDAMENTAIS DA PRIMEIRA DIMENSÃO

Muito embora os direitos fundamentais sejam fruto de demasiados


processos ao decorrer da história, a primeira geração ou dimensão destes
se caracteriza de maneira singular, ao focar, especificamente, no indivíduo
e sua soberania.

289
DIMENSÕES JURÍDICAS DAS POLÍTICAS PÚBLICAS – VOL. 1

A primeira dimensão de direitos fundamentais, possui vínculo com


as teorias jusnaturalistas já citadas dos séculos XVlll e XVll, tais direitos
garantem o indivíduo como soberano e responsável por si e seu patrimô-
nio, não podendo o Estado nele intervir. É possível identificar tais direitos
como direitos negativos, como doutrinariamente chamados, pois não de-
mandam uma atuação estatal positiva para garanti-los, são preexistentes ao
Estado e existem independentemente dele.
Assim, os direitos fundamentais de primeira geração muitas vezes não
demandam recursos públicos para sua garantia, visto que apenas exigem
não interferência do Estado, sendo possível dizer, que por não requererem
nada ao Estado, o administrador público, nada poderá exigir contrapresta-
ções pela garantia de tais direitos. Tais direitos seriam, os direitos de liber-
dade, tanto individual, religiosa, política, quanto as civis clássicas, assim
como, vida, segurança, propriedade, igualdade perante a lei e liberdade de
expressão e coletiva.
Neste sentido, entende o autor BONAVIDES (2006), que muito
embora os direitos fundamentais da primeira dimensão estejam positiva-
dos dentro do texto das constituições, este sofre alterações em seu teor
para que assim se adeque a realidade daquele Estado. Através de tais alte-
rações adaptativas dos direitos fundamentais dentro dos textos legais, se
caracteriza claramente a existência da característica da cumulatividade de
dimensões de direitos fundamentais do ocidente.
SARLET (2012), complementa o pensamento do Autor ao dizer
que muito embora tais direitos se adequem a realidade do Estado ao
qual foram positivados, os direitos fundamentais de primeira dimensão
possuem origem e resquícios do sistema constitucional francês e seu
pensamento liberal-burguês característico do século XVlll, pois são
direitos que visam a garantia do indivíduo perante o Estado. O caráter
individualista de tais direitos, para o autor, determina até onde o Esta-
do pode intervir dentro da liberdade dos indivíduos a ele vinculados,
fortalecendo a autonomia privada para que esta possa prosperar, caso
em conflito com a opressão estatal.
Fica exposto o intuito de tais direitos de garantir o indivíduo, sendo
este o foco dos direitos negativos, são direitos de oposição ao Estado, que
garantem ao indivíduo o poder de resistir à pretensão Estatal injusta.
Nas palavras de Rodrigo Pinho:

290
LU I Z A N TÔ N I O R E I S J U N I O R , M A U R I C I O P I R E S G U E D E S , T E L S O N P I R E S ,
VA N E S S A V E L A S C O, H E R N A N D E S B R I TO R E I S ( O R G . )

Direitos individuais são limitações impostas pela soberania popu-


lar aos poderes constituídos, para resguardar direitos indispensáveis
à pessoa humana. Esses direitos recebem tutela constitucional na
medida em que se inserem no texto da Constituição, devem ser
formalmente reconhecidos e concretizados no cotidiano do ci-
dadão. Após as grandes revoluções burguesas do final do século
XVIII, o indivíduo passou a ser considerado como uma pessoa hu-
mana detentora de direitos e não mais como mero súdito. O indi-
víduo passou a ser considerado como um sujeito de direitos e não
como mero integrante de um corpo social. (PINHO,2018,P.101)

Fruto da influência jusnaturalista supracitada, os direitos à liberdade,


à propriedade e à vida, possuem destaque dentre os direitos fundamentais
de primeira geração, vulgo, direitos negativos. Em segundo momento,
respeitado o grau elevado dos direitos à liberdade, à vida e a propriedade,
passa-se a observar outros direitos, tais como, direito de liberdade de ex-
pressão, tanto individual, quanto coletiva, direito a empresa, à livre mani-
festação, reuniões, entre outros.
Vale ressaltar, que direitos de relevante destaque dentro de uma de-
mocracia saudável, como direito a voto e a capacidade eleitoral passiva, são
direitos naturalmente oriundos da primeira dimensão, visto seu caráter
negativo, resguardando o indivíduo, conforme entende SARLET (2012)
Assim, os direitos de primeira dimensão, são aqueles que exigem ao
Estado não intervenção, uma não ação, respeitando a autonomia indivi-
dual, tais direitos civis e políticos garantem ao indivíduo ferramentas em
face à pretensão estatal.
LEITE (2011) diz que os direitos fundamentais de primeira dimen-
são, não apenas exigem uma não ação estatal, mas também traçam uma
limitação orientada não apenas pelo direito positivo, mas também pelos
direitos naturais dos indivíduos, o quais devem guiar a atuação estatal.
Entende o autor, que são direitos que possibilitam ao ordenamento jurí-
dico limitar a atuação do administrador público em face os administrados,
devido a relação desigual entre estes, uma relação vertical estando o Estado
em posição privilegiada em relação ao indivíduo vulnerável.
Tal forma de garantir a liberdade individual tem origem dentro da
ideia de transformação do Estado absoluto ao Estado liberal, onde o Es-

291
DIMENSÕES JURÍDICAS DAS POLÍTICAS PÚBLICAS – VOL. 1

tado não deveria possuir tamanho poder a ponto de interferir na esfera


individual. Caberia ao Estado, a não interferência e apenas garantir aos
indivíduos direitos fundamentais de primeira dimensão, garantia tal, que
se dá primordialmente através da não interferência nas relações privadas e
no patrimônio dos indivíduos.
A limitação do Estado na prestação de tais direitos deveria ser apenas
negativa, se abstendo de intervir nas relações, assim como de interferir,
tanto no modo como se dão as relações ou nos valores frutos de tais rela-
ções conclui LEITE (2011).
Portanto, o administrador público, deveria respeitar a pacta sunt ser-
vanda, não interferindo nas relação entre os indivíduos ou em seu patri-
mônio, pois tais ingerências seriam claramente uma violação a direitos
fundamentais de primeira dimensão, os quais são apenas garantidos pelo
Estado, através de sua não intervenção nas relações privadas, sendo os in-
divíduos soberanos sob si mesmos.

3. DIREITOS FUNDAMENTAIS DA SEGUNDA DIMENSÃO

Os Direitos fundamentais da segunda dimensão, são também chama-


dos de direitos sociais e coletivos, são fruto do Estado social, onde o Es-
tado deve além de garantir as liberdades positivas, deverá garantir direitos
prestacionais e sociais aos indivíduos.
No entendimento de MARMELSTEIN (2019) não há de se falar em
importância mais acentuada de uma dimensão de direitos fundamentais
sob outra, pois todos os direitos fundamentais possuem supra importância.
Assim, apenas sendo possível observar tais direitos como indivisíveis e
interdependentes, pois os direitos fundamentais são interligados, pois não
basta proteger a liberdade do indivíduo sem garantir a este, a possibilidade
e condições de usufrui-la plenamente.
Desta forma, ao contrário dos direitos fundamentais de primeira ge-
ração, os quais exigiam do Estado uma não conduta, um não agir dentro
de sua esfera individual, os direitos fundamentais da segunda dimensão
são considerados direitos positivos, pois os mesmos, demandam do Estado
a prestação de direitos.
Tais direitos com vertente do Estado social, trazem que o administra-
dor público deverá garantir aos indivíduos direitos como, à saúde, à previ-

292
LU I Z A N TÔ N I O R E I S J U N I O R , M A U R I C I O P I R E S G U E D E S , T E L S O N P I R E S ,
VA N E S S A V E L A S C O, H E R N A N D E S B R I TO R E I S ( O R G . )

dência social, ao trabalho, ao lazer, à segurança, à proteção à maternidade


e à infância e assistência aos desamparados, entre outros elencados no rol
do Art. 6° da Constituição, BRASIL (1988).
Assim, fica claro o objetivo de tais direitos de atingirem a igualdade
social, acabando com as desigualdades naturais humanas, através da inter-
venção estatal na liberdade individual e econômica dos mesmos.
Os direitos fundamentais da segunda dimensão podem ser encontra-
dos no Art. 6° da Constituição Federal de 1988, introduzidos pelo consti-
tuinte com o Intuito de reduzir as desigualdades sociais através do Estado,
ao contrário dos direitos de primeira dimensão, que determinam a resolu-
ção questões sociais através da não intervenção estatal.
Portanto, ao contrário dos direitos de primeira dimensão, os quais
que para serem garantidos se faz necessária a não intervenção estatal, e
portanto, o não dispêndio de recursos por parte do Estado, os direitos
positivos exigem uma prestação.
Para SARLET (2012), tais direitos decorrem do impacto da indus-
trialização dentro da sociedade como um todo, o qual gerou inúmeras
situações às quais, tanto a população quanto o Estado não estariam prepa-
rados. O autor também ressalta a relação com teorias socialistas e tese de
que, os direitos fundamentais de primeira geração, muito embora pregas-
sem a liberdade e igualdade, os mesmo por si só, não seriam suficientes
para garantir de maneira eficaz tais direitos.
Neste sentido, apenas pregar a liberdade e igualdade não sendo sufi-
ciente para garantir tais direitos, LEWANDOWSKI (2003), diz que para
a devida garantia desses direitos o Estado deve abandonar sua postura não
intervencionista, como pregado pelos direitos da primeira dimensão e a
doutrina libera, devendo o Estado através de uma visão macroscópica ob-
servar os anseios e necessidades sociais e atuar de maneira positiva, pois
assim poderá garantir aos indivíduos que necessitam direitos econômicos,
sociais e culturais de fato.
No século XlX existiram movimentos influenciados pela crise social
existente no período, a reivindicação de um rol de direitos, os quais os
reivindicadores, atribuem o dever de garanti-los ao ente estatal. O autor
realça que não havia mais uma exigência negativa em face ao Estado, mas
sim uma positiva, onde a intervenção dentro da esfera individual se justi-
ficaria pelo dever de alcançar o bem estar social.

293
DIMENSÕES JURÍDICAS DAS POLÍTICAS PÚBLICAS – VOL. 1

Assim, nasceu a ideia de liberdade mitigada, pois não tratava mais de


liberdade oponível ao Estado, e sim uma liberdade regulamentada pelo
Estado, de acordo com a ideia de atingir o bem comum. Teriam sido tais
direitos fundamentais, já implementados nas Constituições Francesas de
1793 e 1848, assim como na Constituição do Brasil de 1824, assim como
na Constituição alemã de 1849.
SARLET (2012) entende tais direitos, como direitos prestacionais, os
quais obrigam ao Estado agir de maneira a satisfazer as necessidades dos in-
divíduos a ele vinculados, tais como, saúde, educação, trabalho, entre outros.
Neste sentido, havendo do Estado responsável pela garantia de tais
direitos, poderiam estes serem exigidos através do judiciário, nas palavras
o autor MARMELSTEIN:

Da constatação de que os direitos econômicos, sociais e culturais


são direitos verdadeiramente fundamentais surge uma intrigante
discussão em torno da possibilidade de efetivação desses direitos
através do Poder Judiciário. Será, por exemplo, que o direito à
saúde, previsto na Constituição e em diversos tratados internacio-
nais, teria a força de permitir que o Judiciário obrigue o poder
público a fornecer medicamentos vitais a pacientes carentes, mes-
mo não existindo previsão legal ou orçamentária? (MARMELS-
TEIN,2019,P.200)

Tal exigência prestacional em face do administrador público, revela


uma transformação da ideia de liberdades, de liberdades abstratas apenas
garantidas pelos próprios indivíduos, à concretas.
Portanto, é possível identificar que os direitos fundamentais de se-
gunda dimensão surgiram em um contexto em que se fazia necessária
a ingerência do Estado para regular relações entre particulares desiguais,
necessitando da aplicação de justiça social, a qual só poderia ser atingida
através do Estado.
Também, é possível visualizar a mudança de senso crítico individual,
onde muito embora através dos direitos de primeira dimensão, em tese, seja
possível a atingir um estado de bem estar social, a pressão existente devido
à desigualdade, gerou a necessidade de interferência do Estado. Os direitos
sociais, garantem aos indivíduos, a prestação de serviços essenciais para sua

294
LU I Z A N TÔ N I O R E I S J U N I O R , M A U R I C I O P I R E S G U E D E S , T E L S O N P I R E S ,
VA N E S S A V E L A S C O, H E R N A N D E S B R I TO R E I S ( O R G . )

subsistência digna, garantidos pelo Estado, uma vez que reconhecidos tais
direitos, assim como delegado ao Estado o dever de suprir tais necessidades.
Para SARLET (2012), muito embora reconhecida amplamente a im-
periosidade dos direitos sociais de segunda dimensão, estes, apenas foram
amplamente introduzidos em um número considerável de constituições
dos Estados, após o segundo pós guerra. Apenas após o reconhecimento
de tais direitos dentro de pactos internacionais em grande número, sendo
os direitos sociais amplamente aceitos em tal período, devido seu vínculo
com a ideia de igualdade.
Também, o autor entende que, as tamanhas deliberações sobre tais
direitos que geraram a elaboração de pactos internacionais, assim como,
estes serem reconhecidos dentro de constituições, se dá pelo seu irrefutá-
vel elo com a ideia de bem estar social guiado pelo ente estatal. Direitos
de segunda dimensão, não se baseiam apenas em direitos sociais prestacio-
nais, englobando também, liberdades sociais, como a liberdade de sindi-
calização, greve e direitos fundamentais dos trabalhadores, tais como férias
e um salário mínimo por seu labor.
Assim, os direitos da segunda dimensão, não se limitam a direitos
prestacionais, pois seriam um marco, por reconhecer o indivíduo parte
da sociedade como sujeito de direitos e detentor de necessidades. Desta
forma, criando distinção entre tais direitos e os direitos difusos, pois os
direitos da segunda dimensão observam o indivíduo em si, de maneira in-
divisível, muito embora trata-se de direitos sociais, o bem estar social não
obstem a garantia de bem estar a indivíduos detentores de necessidades
específicas, muitas vezes, os menos favorecidos.
Portanto, conclui o autor SARLET (2012), que o estado de bem estar
social, objeto principal dos direitos positivos, não poderia ser alcançado
através apenas de meios não intervencionistas, mas observando de manei-
ra detalhada as necessidades sociais, como da classe trabalhadora em rela-
ção a classe empregadora e sua desigualdade de poder, para assim intervir,
nas medidas e proporções necessárias para a garantia do bem estar social.

4. DIREITOS FUNDAMENTAIS DA TERCEIRA DIMENSÃO

Os direitos fundamentais da terceira dimensão, também chamados de


direitos de fraternidade, decorrem da ideia de coletividade humana como

295
DIMENSÕES JURÍDICAS DAS POLÍTICAS PÚBLICAS – VOL. 1

um todo, objetivando resguardar a existência de bens de suma importân-


cia a todos. São direitos como os de proteção ao meio ambiente, à garantia
de vida saudável e qualidade de vida a todos, através de imposições restri-
tivas que visem a garantia do meio ambiente como bem comum à huma-
nidade e seus objetivos altruístas em prol da humanidade.
Tais direitos são chamados de direitos difusos, pois ao contrário dos
direitos negativos em que o foco descansava sobre o indivíduo e sua liber-
dade e os direitos positivos, os quais são centrados nas prestações estatais,
os direitos de fraternidade visam garantir o bem da humanidade em si, de
todos os seres humanos.
Para LINHARES (2016), muito embora o destinatário de tais direi-
tos seja o ser humano, não se confundem com as gerações antes citadas,
visto que tais direitos tutelam todos os seres humanos, independentemen-
te de suas ambições individuais.
Para o Autor, são direitos relativamente jovens e de conteúdo diver-
sificado, tutelando o bem estar da humanidade como um todo, como por
exemplo em situações de embate entre condutas sustentáveis e condutas
de cunho unicamente financeiro com potencial de violar o bem comum,
agindo na regulação entre o desenvolvimento econômico e a proteção do
meio ambiente. São considerados direitos universais e de extremo huma-
nismo ideológico prático, devido à garantia de proteção não a indivíduos
específicos, grupos ou até mesmo Estados, mas sim a todos.
Seriam direitos da terceira dimensão, direitos como ao desenvolvi-
mento sustentável, à paz, ao meio ambiente sustentável e equilibrado, ao
equilíbrio entre os homens e a manutenção do patrimônio natural.
Para SARLET (2012) é importante destacar uma característica dos
direitos fundamentais da terceira geração, a não vinculação ao homem
individual, pois este, não é o titular de tais direitos, sendo os titulares, ao
coletivo em larga escala, como família, povos e até mesmo nações. São di-
reitos difusos, aqueles que englobam as novas necessidades humanas gera-
das através das questões sociais até então debatidas entre líderes mundiais,
como o desenvolvimento humano, a autodeterminação dos povos e paz.
Para o autor, são chamados de direitos de fraternidade, devido a seu
caráter transindividual, pois estes determinam esforços humanos em con-
junto, em escala mundial para seu adimplemento. No entanto, tais direi-
tos de fraternidade, muito embora de suma importância à humanidade

296
LU I Z A N TÔ N I O R E I S J U N I O R , M A U R I C I O P I R E S G U E D E S , T E L S O N P I R E S ,
VA N E S S A V E L A S C O, H E R N A N D E S B R I TO R E I S ( O R G . )

como um todo, não se encontram, em grande parte, positivados, outros-


sim, há um processo constante de implementação de tais direitos no corpo
de constituições modernas. Tal positivação se dá, devido ao grande reco-
nhecimento que tais direitos possuem em âmbito internacional, contando
com inúmeros tratados e documentos acordados neste sentido.
Por fim, SARLET (2012) conclui traçando um paralelo entre os di-
reitos negativos e os direitos de fraternidade, visto que os direitos de fra-
ternidade visam a garantia da humanidade e seu desenvolvimento, prote-
gendo o patrimônio humano. Destacam-se dentre tais direitos, os direitos
à qualidade de vida e ao meio ambiente, devido a sua complexidade, visto
que, restam vinculados ao princípio da dignidade da pessoa humana e a
proteção da vida como um todo.
Assim, para o autor seria possível tratar tais direitos como direitos
de defesa, assim como os da primeira geração de direitos fundamentais,
descansando em tais deveres o condão de proteger a liberdade humana em
sentido amplo.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Foram observados os direitos fundamentais de diversas dimensões,


assim como seu surgimento através das necessidades sociais em seu con-
texto histórico, logo após deliberado seu reconhecimento como necessi-
dades fundamentais humanas, através da filosofia e religião.
Primeiramente, através da doutrina jusnaturalista, passou-se pelo re-
conhecimento dos direitos fundamentais de primeira dimensão, chama-
dos de direitos negativos, devido a seu viés defensivo e distante do ente
estatal, visando tais direitos a não intervenção do Estado.
A análise de tais direitos negativos se fez fundamental para melhor
ilustrar suas repercussões na ordem jurídica, uma vez que, os direitos fun-
damentais de primeira dimensão prezam pela não intervenção estatal, as-
sim não demandando o Estado.
Portanto, observou-se que os direitos negativos derivam primordial-
mente do ser humano em si, sendo estes direitos anteriores ao Estado e
inalienáveis, são os direitos que demandam menor intervenção estatal na
esfera privada do indivíduo como pessoa humana, devido a seu caráter
defensivo

297
DIMENSÕES JURÍDICAS DAS POLÍTICAS PÚBLICAS – VOL. 1

Após, passou-se a análise dos direitos fundamentais de segunda dimen-


são, os quais surgiram devido às demandas sociais geradas pela industrializa-
ção e influências socialistas do período. Ao contrário dos direitos da primei-
ra dimensão, os quais não demandam ao Estado prestações, e por isso são
chamados de negativos, os direitos da segunda dimensão geram ao Estado
o dever de adimplir obrigações prestacionais, tais como serviços públicos.
Compreende-se que os direitos da segunda dimensão trazem ao Es-
tado o dever de garantir a justiça social, outorgando a este, deveres como
o fim da desigualdade social e a prestação de serviços a fim de garantir
direitos como saúde, à segurança, proteção dos desamparados, entre ou-
tros. Ante a análise dos direitos fundamentais da segunda dimensão frente
ao contexto de seu surgimento e a reivindicação de prestações ao Estado,
passasse a existir um Estado muito mais atuante perante o âmbito social.
Por fim, foram analisados os direitos fundamentais da terceira dimen-
são, chamados de direitos difusos ou direitos de fraternidade, os quais o
foco não é o indivíduo ou sociedade especifica, mas sim a garantia da
humanidade.
Foi observado que, tais direitos são de extremo altruísmo ideológico
em face à humanidade, pois esses direitos visam a prosperidade humana,
através da preservação do meio ambiente, qualidade de vida, paz, entre
outros direitos. Foi observado, que muito embora tais direitos visem ob-
jetivos comuns entre todos, ainda não se encontram totalmente garantidos
dentro do corpo das constituições, ainda havendo um processo de positi-
vação de tais direitos de fraternidade ainda em andamento, neste sentido,
são necessários maiores estudos a respeito.
Portanto, ante todo o exposto, observa-se os direitos fundamentais
como conquistas históricas que se deram através de um processo histórico
gradual, onde tais direitos passaram pela fase de reconhecimento, discus-
são filosófica e cientifica, positivação no texto legal, baixa normatividade,
e por fim, tiveram vigência plena no ordenamento jurídico.
Assim como, tais direitos se complementam, onde através da apli-
cação cumulativa de tais direitos se garante ao indivíduo liberdade, pro-
priedade, direitos políticos, assim como demais direitos de primeira di-
mensão. Também, não bastante a mera previsão de tais direitos no texto
jurídico, os direitos sociais e prestacionais tendem a garantir ao indivíduo
os meios para o devido gozo de tais direitos, possibilitando a este que al-

298
LU I Z A N TÔ N I O R E I S J U N I O R , M A U R I C I O P I R E S G U E D E S , T E L S O N P I R E S ,
VA N E S S A V E L A S C O, H E R N A N D E S B R I TO R E I S ( O R G . )

cance plena liberdade, adquira patrimônio e exerça seus direitos políticos


com perfeição.
Por fim, não bastante a liberdade individual e a garantia de direitos
sociais aos indivíduos, a sociedade moderna explicitou a necessidade de
proteger e garantir os direitos difusos, como o meio ambiente, paz e de-
senvolvimento.
Os direitos fundamentais objetivam garantir à pessoa humana suas
liberdades individuais intrínsecas, os direitos sociais prestacionais neces-
sários e a proteger do desenvolvimento sustentável e ao progresso da hu-
manidade como um todo, para assim viabilizar e proteger a dignidade da
pessoa humana.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRAFICAS

BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. São Paulo:


Editora Malheiros, 2006.

BRASIL, Constituição Federal, 1988.

LEITE, Carlos Henrique Bezerra. Eficácia Horizontal dos direitos fun-


damentais na relação de emprego. Termo In: Revista Brasileira de
Direito Constitucional. Disponível em: http://esdc.com.br/seer/
index.php/rbdc/article/view/238/231. Acesso em: 17 ago. 2019.

LEWANDOWSKI, Henrique Ricardo, A Formação da Doutrina dos


Direitos Fundamentais. Termo In Revistas USP. Disponível em:
file:///C:/Users/alexs/Downloads/67595-Texto%20do%20arti-
go-89020-1-10-20131125.pdf. Acesso em 11.08.2020

LINHARES et alli, Democracia e direitos fundamentais: uma ho-


menagem aos 90 anos do professor Paulo Bonavides. São Paulo:
Atlas, 2016.

PEREIRA, Jane Reis Gonçalves. Interpretação Constitucional e Di-


reitos Fundamentais. Rio de Janeiro, 2018.

PINHO, Rodrigo Cesar Rebello. Direito Constitucional: Teoria Ge-


ral da Constituição e Direitos Fundamentais. São Paulo, Saraiva Jur,
2018.

299
DIMENSÕES JURÍDICAS DAS POLÍTICAS PÚBLICAS – VOL. 1

PINHO, Rodrigo Cesar Rebello. Direito Constitucional: Teoria Ge-


ral da Constituição e Direitos Fundamentais. São Paulo, Saraiva Jur,
2015.

MARMELSTEIN, Curso de Direitos Fundamentais / George – 8.


ed. – São Paulo: Atlas, 2019.

SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais: uma


teoria geral dos direitos fundamentais na perspectiva constitucional.
Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2012.

300
A LEGISLAÇÃO AMBIENTAL
BRASILEIRA EM BUSCA DE
EFETIVIDADE
Ana Keuly Luz Bezerra50

INTRODUÇÃO

O homem, durante sua evolução histórico-econômica, comportou-


-se coerente com a visão antropocêntrica clássica e, por conseguinte, dis-
pôs de todos os bens naturais da forma como melhor lhe aprouvesse. O
homem como centro de tudo foi durante muito tempo, paradigma para
justificar a intervenção humana no meio ambiente.
O desequilibro dos oceanos, da fauna e flora, a rápida industrializa-
ção, a falta de planejamento urbano cumulado com o crescimento das
populações nas cidades e a necessidade de novas fontes de obtenção de
energia são fatores que têm fomentado o avanço dos impactos negativos
do homem sobre a natureza, que, na maioria das vezes, extrapolam o con-
ceito geopolítico de território e as limitações de soberania, exigindo assim
do direito e do Estado intervenção, na tentativa de minimizar os danos,
que mesmo sendo provocado por alguns, são sentidos por todos.
Por conta disso, o meio ambiente encontra-se na pauta do dia, fazen-
do com que o direito ambiental se revele como um dos ramos da ciência
do direito que tem chamado a atenção dos operadores e da academia jurí-

50 Doutora em Desenvolvimento e Meio Ambiente, Docente do Instituto Federal do Piauí


e Docente Colaboradora do Programa de Pós-graduação em Desenvolvimento e Meio Am-
biente da UFPI, Advogada.

301
DIMENSÕES JURÍDICAS DAS POLÍTICAS PÚBLICAS – VOL. 1

dica, exatamente por envolver relações de caráter público e privado. A tu-


tela jurídica do meio ambiente, evita que a sua degradação possa ameaçar
não só o bem-estar, mas a qualidade da vida humana e, por conseguinte,
a sobrevivência do homem.
Nos últimos anos, as políticas de proteção ambiental têm fomentado
discussões e reflexões em várias esferas da sociedade sobre sua forma de sus-
tentabilidade para futuras gerações. Neste sentido, o estudo da forma como
as questões ambientais estão sendo enfrentadas pelos operadores do direito
aponta para aquilo que vem sendo objeto de luta da sociedade em prol do
meio ambiente, visto que representam às necessidades da população.
Uma vez que, se tem conhecimento dos problemas ambientais que
acometem a sociedade, é preciso verificar se os mecanismos de coibi-los
ou resolvê-los já existem, ou não. E no caso de existência, porque mesmo
diante dos anteparos legais, estes problemas ambientais persistem.
Diante das diversas investidas aos recursos naturais, a poluição, que
podem afetar a vida humana, o direito ambiental tem potencial de modi-
ficar essa realidade dentro da ordem jurídica brasileira, para isso precisa-
-se de juízes competentes que compreendam a complexidade da questão
ambiental e tenha efetividade nas suas decisões, de uma sociedade que
demanda também por bens coletivos, não só os individuais, e da admi-
nistração pública com a implementação de políticas públicas comprome-
tidas não com o formalismo da legislação ambiental, mas buscando uma
gestão eficiente.
O direito ao meio ambiente equilibrado é assegurado pela Consti-
tuição como um direito fundamental, que está diretamente relacionado
com o direito à vida das presentes e futuras gerações. Entretanto, mesmo
o Brasil dispondo de uma vasta legislação ambiental infra-constitucional,
isso não tem sido suficiente para a efetiva proteção ao meio ambiente, pois
percebe-se um distanciamento entre o que está positivado nas leis e a rea-
lidade prática (BEZERRA et al. 2016). As normas jurídicas existem, falta
então concretizá-las, mas para tanto, é indispensável a conscientização da
sociedade de que o homem não é o dono da natureza, mas sim, parte dela,
aliada à conscientização e sensibilização dos intérpretes legais quando da
aplicação da legislação aos casos concretos.
Dentro deste contexto é relevante analisar o significado de direitos
fundamentais, segundo Sarlet (2001, p. 75):

302
LU I Z A N TÔ N I O R E I S J U N I O R , M A U R I C I O P I R E S G U E D E S , T E L S O N P I R E S ,
VA N E S S A V E L A S C O, H E R N A N D E S B R I TO R E I S ( O R G . )

A ideia de que os direitos fundamentais integram um sistema no


âmbito da Constituição foi objeto de recente referência na doutri-
na pátria, com base no argumento de que os direitos fundamentais
são, em verdade, concretizações do princípio fundamental da dig-
nidade da pessoa humana, consagrado expressamente em nossa Lei
Fundamental.

Buscando a concretização do direito ao meio ambiente como direito


fundamental, é imperiosa a necessidade da efetividade da legislação am-
biental. É preciso haver punição sempre que haja o uso irresponsável e
inconsequente do desenvolvimento tecnológico que provoque sequelas ao
meio ambiente. O Brasil dispõe de grande arsenal de atos normativos que
regulamentam a questão ambiental, contudo, há evidentes dificuldades
em sua aplicação da maneira, como se apresentam os dispositivos legais.
Sobre o tema, pronunciou-se Prado (2012, p.91) da seguinte forma:

As leis ambientais, mormente no Brasil, são em sua maioria, ex-


cessivamente prolixas, casuísticas, tecnicamente imperfeitas, quase
sempre inspiradas por especialistas do setor afetado, leigos em Di-
reito, ou quando muito de formação jurídica não específica, o que
as tornam de difícil aplicação, tortuosas e complexas (...).

Prado (2012) atribui imperfeições as leis ambientais e a dificuldade


de aplicação destas ao fato de serem elaboradas por leigos do direito,
sendo sobretudo, baseadas em especialistas das áreas afetadas, e que estes
fatores podem constituir-se entre as causas para a inefetividade da legis-
lação ambiental brasileira. O estado atual do direito ambiental no Brasil
e a nível global, resulta na impossibilidade de se falar em efetividade
e muitos menos em sua eficiência, daí a importância de determinar as
principais causas e seus efeitos a partir do estudo junto aos operadores
do direito, com a finalidade de se conhecer a magnitude do problema e
propor possíveis soluções.
Sustenta-se ainda de acordo com Chacón (2016) que a legislação am-
biental tem experimentado um crescimento significativo tanto no direito
interno dos Estados quanto no direito internacional através de declarações
ou tratados bilaterais, regionais e globais vinculantes. Apesar disso, os pro-
blemas ambientais aumentaram em quantidade e severidade, o que mostra

303
DIMENSÕES JURÍDICAS DAS POLÍTICAS PÚBLICAS – VOL. 1

que o direito ambiental e a multiplicação de suas normas não conseguiram


resolver os problemas ambientais.
Seja por simples desconhecimento dessa legislação pela sociedade,
seja pelo descaso dos gestores para com ela, ou seja, pela sua má interpre-
tação e aplicação no caso concreto pelos operadores do direito51, o que se
verifica na prática, é a completa falta de efetividade de grande parte dos
normativos legais de proteção ao meio ambiente, causando uma sensação
de completo abandono às causas ambientais.
O presente estudo tem como objetivo analisar os avanços na efetivi-
dade da legislação ambiental brasileira. Sabe-se que, para tornar efetivo o
direito fundamental ao meio ambiente ecologicamente equilibrado é pre-
ciso um olhar para a aplicação da legislação ambiental e para a força que as
decisões decorrentes dessa aplicação, ocupam na atividade jurisdicional do
Estado, considerando ainda que o sistema jurídico carece de uma teoria
adequada da vigência de normas.

2 LEGISLAÇÃO AMBIENTAL BRASILEIRA

2.1 Histórico do Processo Legislativo Ambiental


Brasileiro

Inicialmente, é importante tratar do conceito de “meio ambiente”,


que foi adotado pelo direito brasileiro e por vários outros países, além de
instrumentos internacionais. A expressão “meio ambiente” revela-se re-
dundante, e isso se deve ao fato de que “meio” e “ambiente” são sinôni-
mos, haja vista que ambos significam aquilo que envolve, o entorno onde
se vive (MACHADO, 2014).
Antunes (2008, p. 9) explica que “meio ambiente compreende o
humano como parte de um conjunto de relações econômicas, sociais e

51 O termo “operador”, antes de tudo, refere-se ao profissional graduado em direito, que é


o responsável pela gestão do sistema jurídico. Contudo, operar o direito não consiste apenas
no praticar da ciência dogmática apreendida ao longo do bacharelado tampouco na captação,
deveras equívoca, dos conteúdos transmitidos meramente lastreados nos textos legais, sendo
lícito asseverar que a válida operação do direito incide na relação de complementaridade que
esta ciência preenche para com as demais no desvelar do progresso social citado (BRAGA,
2010). Fizeram parte deste estudo cinco categorias de operadores do direito: os juízes, promo-
tores de justiça, procuradores federais, advogados e defensores públicos.

304
LU I Z A N TÔ N I O R E I S J U N I O R , M A U R I C I O P I R E S G U E D E S , T E L S O N P I R E S ,
VA N E S S A V E L A S C O, H E R N A N D E S B R I TO R E I S ( O R G . )

políticas que se constroem a partir da apropriação dos bens naturais que,


por serem submetidos à influencia humana, transformam-se em recursos
essenciais para a vida humana em quaisquer se seus aspectos”.
Meio ambiente não se confunde com Ecologia, que segundo Soares
(2003, p.2-4) refere-se a “um ramo da biologia no qual os seres vivos são
estudados na sua interação recíproca com outros seres vivos e na depen-
dência destes em relação ao mundo inorgânico que os cerca”. Explica o
autor que por conta da concepção rigorosa de ciência do habitat, a ecologia
não tem nenhuma vinculação com a ética e o Direito, pois nesses campos
prevalece o comportamento livre do homem, o que é inexistente no mun-
do da ecologia. Apesar de o conceito de meio ambiente ser menos preciso
que ecologia, é ele que alcança a proteção jurídica (SOARES, 2003).
De acordo com Leff (2006, p.38), “o ambiente não é a ecologia, mas
a complexidade do mundo”. Com esta afirmação, o autor propõe uma
reflexão sobre o fenômeno ambiental, deslocando-o das ciências naturais,
um lugar tantas vezes reforçado pelas visões biologizantes que preponde-
ram neste campo. Em outras palavras, a via hermenêutica por ele escolhi-
da e, consequentemente, a ruptura da dicotomia sujeito-objeto em que
essa implica, torna esta reflexão um empreendimento que reposiciona não
apenas o ambiente enquanto alteridade, mas, sobretudo o sujeito que o
conhece e seu modo de conhecer.
A concepção jurídica de meio ambiente engloba não apenas o con-
junto, mas todos os fatores envolvidos. Do mesmo modo, como é um
bem de vida, seu conteúdo acaba sendo variável no tempo e no espaço.
Hão que ser verificadas as leis e as interações que permitem o equilíbrio
entrópico sem o qual não há vida. Trata-se da ideia de macrobem defendi-
da por Leite (2003, p. 79) que destaca que “o bem ambiental (macrobem)
um bem de interesse público, afeto à coletividade, entretanto a título au-
tônomo e como disciplina autônoma”.
Percebe-se, por conseguinte, que o meio ambiente envolve várias di-
mensões, não apenas o natural. Destaca Silva (2015) que a doutrina clás-
sica aponta três aspectos, quais sejam, natural ou físico, artificial ou cons-
truído e cultural. Já o meio ambiente do trabalho, para o mesmo autor,
estaria inserido dentro do artificial.
O meio ambiente natural ou físico de acordo com Fiorillo (2008,
p. 20): “é constituído pela atmosfera, pelos elementos da biosfera, pelas

305
DIMENSÕES JURÍDICAS DAS POLÍTICAS PÚBLICAS – VOL. 1

águas, pelo solo, pelo subsolo, pela fauna e flora. Concentra o fenômeno
da homeostase, consistente no equilíbrio dinâmico entre os seres vivos e
o meio em que vivem”.
As primeiras normas ambientais deram um enfoque utilitarista da
natureza, na medida em que era considerada como um bem inesgotável.
A Lei 6.938/81, que dispõe sobre a Política Nacional do Meio Ambiente
e criou o Sistema Nacional do Meio Ambiente, definia o meio ambiente
como “o conjunto de condições, leis, influências e interações de ordem
física, química e biológica, que permite, abriga e rege a vida em todas as
suas formas”. Essa conceituação foi muito inovadora para a sua época,
por estender a proteção jurídica a todos os elementos da natureza de uma
forma interativa e global.
Somente a partir de 1981, com a promulgação da Lei nº 6.938/81,
ensaiou-se o primeiro passo em direção a um paradigma jurídico-econô-
mico que holisticamente tratasse e não maltratasse a terra, seus arvoredos
e os processos ecológicos essenciais a ela associados. Mas nunca um dia o
homem teria imaginado que a água, as plantas, o ar, enfim os bens natu-
rais poderiam tornar-se escassos (SÉGUIN, 2006). Neste sentido que a
Lei Fundamental de 1988 atribuiu ao meio ambiente uma configuração
jurídica diferenciada, ao classificá-lo como direito de todos e bem de uso
comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, atribuindo a esse
bem um dimensionamento muito mais significativo.
O ambiente artificial, consoante Fiorillo (2008, p. 21) é compreen-
dido “pelo espaço urbano construído, consistente no conjunto de edifi-
cações, e pelos equipamentos públicos”. Seu estudo retroage ao inicio da
vida humana e da conseqüente necessidade de a natureza adequar-se à
convivência entre os homens. Na visão de Barros (2008, p. 144), “é aquele
estruturado através da cidade e a possibilidade de nela se viver com quali-
dade de vida, contexto que é disposto através da lei”.
Entretanto, o enfoque do direito ao meio ambiente artificial é, real-
mente, as cidades, que é o espaço onde atualmente habita a maior parte
da população brasileira e mundial, cabendo por isso ao poder público pro-
mover o acesso ao lazer, à infraestrutura urbana, à moradia, ao saneamento
básico, aos serviços públicos e ao transporte. É nesse contexto que a Carta
Magna estabelece o direito às cidades sustentáveis, o que deve ser feito por
meio de uma política urbana apropriada e participativa, nos moldes do que

306
LU I Z A N TÔ N I O R E I S J U N I O R , M A U R I C I O P I R E S G U E D E S , T E L S O N P I R E S ,
VA N E S S A V E L A S C O, H E R N A N D E S B R I TO R E I S ( O R G . )

determinam os artigos 182 e 183, o Estatuto da Cidade (Lei 10.257/01) e


Estatuto da Metrópole (Lei 13.089/2015).
O meio ambiente do trabalho é o local onde se desenvolve boa parte
da vida do trabalhador, cuja qualidade de vida está, por conseguinte, em
última vinculação com a qualidade daquele ambiente. No entender de
Silva (2015), “é um ambiente que se insere no artificial, merecendo um
tratamento especial” (p.23).
Percebe-se que o meio ambiente de trabalho é consequencia do direi-
to à saúde, que se revela nas Constituições modernas como direito funda-
mental do trabalhador (LESSO, 2008). Ainda na mesma linha, manifes-
ta-se Séguin (2006, p. 43) no sentido de que o meio ambiente do trabalho
“faz a relação entre a ocupação do individuo e as doenças decorrentes
dos riscos ambientais assumidos no processo de produção, objetivando
preveni-las, com a utilização de recursos de engenharia e da medicina,
preservando o meio ambiente e a saúde do trabalhador”.
Como se vê, o ambiente trabalhista está vinculado à questão de se-
gurança e saúde do trabalhador, refletindo nos graus de periculosidade
e insalubridade, conforme legislação específica de cada país. A discus-
são em torno de meio ambiente do trabalho, entretanto, não vem ocu-
pando a devida importância entre os operadores do direito do trabalho,
uma vez que o discurso centra-se na visão patrimonialista da ambiência
(BELCHIOR, 2011).
A proteção jurídica do meio ambiente brasileiro se iniciou, a partir da
legislação infraconstitucional, focando-se inicialmente apenas na proteção
do meio ambiente natural. As primeiras normas civis e administrativas de
cunho ambiental, foram importadas de Portugal, país que já detinha leis
ambientais por motivos econômicos em virtude da escassez dos recursos
de bens, de modo especial os não renováveis (TEIXEIRA, 2003).
A primeira lei florestal brasileira foi o “Regimento sobre o Pau-Bra-
sil” que trouxe inúmeras regras sobre a exploração, o corte e a venda desta
madeira, inclusive com normas de cunho penal, erigida pelos legisladores
portugueses como um bem comum dos habitantes daquela ilha que, no
caso, seria o Brasil (WAINER, 1999).
Com a transição para o regime republicano, o meio ambiente passa a
ser tratado como uma vertente do direito administrativo. Explica Moraes
(2006) que isso se deve porque a implementação do meio ambiente “co-

307
DIMENSÕES JURÍDICAS DAS POLÍTICAS PÚBLICAS – VOL. 1

meçou como regra secundária nas autorizações e licenças outorgadas, de


forma a confundir a regra ambiental como mais um requisito ao licencia-
mento, como se fosse uma variante do Direito Administrativo” (p. 13).
Instrumento normativo de suma importância foi o Código Civil de
1916, que fazia algumas referências ao meio ambiente, não como objeto
autônomo, mas como limitações administrativas ao uso e ao gozo do di-
reito de propriedade.
Em 10 de julho de 1934, foi editado o Decreto n. 24.643, intitulado
de Código das Águas, que ainda está em vigor. No mesmo ano, criou-se
o Decreto n. 23.793, trazendo à baila o Código Florestal Brasileiro, que
teve nova redação dada pela Lei 12.651/2012.
Já em 1967, houve a elaboração de dois Decretos-lei: um que trata
da proteção e estímulo da pesca, Decreto-lei n. 221, de 28 de fevereiro
(Código de Pesca); e outro que cuida da mineração, Decreto-lei n. 227
(Código da Mineração). Em ambos, encontra-se uma preocupação com a
poluição ambiental e com seus impactos negativos.
Na década de 1970, sob influência da Conferência das Nações Uni-
das para o Ambiente Humano, em Estocolmo na Suécia, foi criada a Se-
cretaria Especial do Meio Ambiente – SEMA, por meio do Decreto n.
73.03.0 de 30 de outubro de 1973, objetivando, segundo Pimenta (2008,
p.44), “a prática de políticas públicas sobre a questão ambiental (a poluição
industrial e a proteção da natureza), e a conscientização da população a
evitar ações depredatórias”.
Em 1981, a Secretaria Especial do Meio Ambiente, órgão do Exe-
cutivo Federal, cria a Política Nacional do Meio Ambiente, por meio da
Lei n. 6.938/81. Referida norma deu luz, ainda, ao Sistema Nacional do
Meio Ambiente (SISNAMA), ao Cadastro Técnico Federal de Atividades
e Instrumentos para a Defesa Ambiental, ao Sistema Nacional de Infor-
mações sobre o Meio Ambiente (SINIMA) e ao Conselho Nacional do
Meio Ambiente (CONAMA), este último com poderes de regulamentar
e estabelecer padrões do meio ambiente.
A Lei 6.938/81 é, sem dúvida, a norma infraconstitucional de maior
importância no que concerne à tutela ambiental. Referida lei vem sofren-
do algumas alterações, além de resoluções e regulamentos que estão sen-
do editados pelos órgãos ambientais, como no caso do CONAMA, por
exemplo.

308
LU I Z A N TÔ N I O R E I S J U N I O R , M A U R I C I O P I R E S G U E D E S , T E L S O N P I R E S ,
VA N E S S A V E L A S C O, H E R N A N D E S B R I TO R E I S ( O R G . )

Já como reflexo da Constituição de 1988, que veio a tutelar de forma


inédita o meio ambiente como direito, além das garantias e deveres a ele
inerentes, e da ECO-92, realizada no Rio de Janeiro em 1992, surgem
inúmeras leis52, visando concretizar o sentimento do constituinte e am-
pliando a proteção do meio ambiente, contemplando todas as suas verten-
tes: natural, física, cultural e do trabalho.
Os preceitos inscritos no art. 225 da Carta Política traduzem, na con-
creção de seu alcance, a consagração constitucional, em nosso sistema de
direito positivo, de uma das mais expressivas prerrogativas asseguradas às
formações sociais contemporâneas. Essa prerrogativa, que se qualifica por
seu caráter de metaindividualidade, consiste no reconhecimento de que
todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado.
Trata-se, consoante o que já proclamou o Supremo Tribunal Federal
(RTJ 158/205-206, Rel. Min. CELSO DE MELLO), com apoio em douta
lição expendida por Lafer (1995), de um típico direito de terceira geração53

52 Eis algumas normas infraconstitucionais que tutelaram aspectos do meio ambiente nos
últimos anos: Lei 9.605/1998 que reordena a legislação ambiental quanto às infrações e
punições. Concede à sociedade, aos órgãos ambientais e ao Ministério Público mecanismo
para punir os infratores do meio ambiente; Lei 10.308/2001 que dispõe sobre a seleção de
locais, a construção, o licenciamento, a operação, a fiscalização, os custos, a indenização, a
responsabilidade civil e as garantias referentes aos depósitos de rejeitos radioativos; Lei n.
11445/2007 que criou a Política Nacional do Saneamento Básico; Lei n. 11.460/2007 que
dispõe sobre o plantio de organismos geneticamente modificados em unidades de conser-
vação; Lei 12.305/2010 - Institui a Política Nacional de Resíduos Sólidos (PNRS) e altera a
Lei 9.605/1998 - Estabelece diretrizes à gestão integrada e ao gerenciamento ambiental
adequado dos resíduos sólidos; Lei 13.123/2015 que dispõe sobre o acesso ao patrimônio
genético, sobre a proteção e o acesso ao conhecimento tradicional associado e sobre a
repartição de benefícios para conservação e uso sustentável da biodiversidade. Legislação
disponível em: <WWW.planalto.gov.br.br>. Acesso em 24 fev. 2018.
53 Nas palavras de Novelino (2010): Os direitos fundamentais não surgiram simultanea-
mente, mas em períodos distintos conforme a demanda de cada época, tendo esta consa-
gração progressiva e sequencial nos textos constitucionais dado origem à classificação em
gerações. Como o surgimento de novas gerações não ocasionou a extinção das anterio-
res, há quem prefira o termo dimensão por não ter ocorrido uma sucessão desses direitos:
atualmente todos eles coexistem. Os direitos fundamentais de primeira dimensão são os
ligados ao valor liberdade, são os direitos civis e políticos. São direitos individuais com cará-
ter negativo por exigirem diretamente uma abstenção do Estado, seu principal destinatário.
Ligados ao valor igualdade, os direitos fundamentais de segunda dimensão são os direitos
sociais, econômicos e culturais. São direitos de titularidade coletiva e com caráter positivo,

309
DIMENSÕES JURÍDICAS DAS POLÍTICAS PÚBLICAS – VOL. 1

(ou de novíssima dimensão), que assiste, de modo subjetivamente indeter-


minado, a todo o gênero humano, circunstância essa que justifica a especial
obrigação – que incumbe ao Estado e à própria coletividade (MACHADO,
2014) – de defendê-lo e de preservá-lo em benefício das presentes e futuras
gerações, evitando-se, desse modo, que irrompam, no seio da comunhão
social, os graves conflitos intergeneracionais marcados pelo desrespeito ao
dever de solidariedade na proteção da integridade desse bem essencial de
uso comum de todos quantos compõem o grupo social.
Cabe assinalar, que os direitos de terceira geração (ou de novíssima di-
mensão), que materializam poderes de titularidade coletiva atribuídos, ge-
nericamente e de modo difuso, a todos os integrantes dos agrupamentos
sociais, consagram o princípio da solidariedade e constituem, por isso mes-
mo, ao lado dos denominados direitos de quarta geração (como o direito ao
desenvolvimento e o direito à paz), um momento importante no processo
de expansão e reconhecimento dos direitos humanos, qualificados estes,
enquanto valores fundamentais indisponíveis, como prerrogativas impreg-
nadas de uma natureza essencialmente inexaurível (LAFER, 1995).
Bonavides (1993, p. 481), confere particular ênfase, dentre os direitos
de terceira geração (ou de novíssima dimensão), ao direito a um meio am-
biente ecologicamente equilibrado:

Com efeito, um novo polo jurídico de alforria do homem se acres-


centa historicamente aos da liberdade e da igualdade. Dotados de
altíssimo teor de humanismo e universalidade, os direitos da ter-
ceira geração tendem a cristalizar-se neste fim de século enquanto
direitos que não se destinam especificamente à proteção dos in-
teresses de um indivíduo, de um grupo ou de um determinado
Estado. Têm primeiro por destinatário o gênero humano mesmo,
num momento expressivo de sua afirmação como valor supremo

pois exigem atuações do Estado. Os direitos fundamentais de terceira geração, ligados ao


valor fraternidade ou solidariedade, são os relacionados ao desenvolvimento ou progresso,
ao meio ambiente, à autodeterminação dos povos, bem como ao direito de propriedade
sobre o patrimônio comum da humanidade e ao direito de comunicação. São direitos tran-
sindividuais, em rol exemplificativo, destinados à proteção do gênero humano. Por fim, in-
troduzidos no âmbito jurídico pela globalização política, os direitos de quarta geração com-
preendem os direitos à democracia, informação e pluralismo.

310
LU I Z A N TÔ N I O R E I S J U N I O R , M A U R I C I O P I R E S G U E D E S , T E L S O N P I R E S ,
VA N E S S A V E L A S C O, H E R N A N D E S B R I TO R E I S ( O R G . )

em termos de existencialidade concreta. Os publicistas e juristas já


os enumeram com familiaridade, assinalando-lhes o caráter fasci-
nante de coroamento de uma evolução de trezentos anos na estei-
ra da concretização dos direitos fundamentais. Emergiram eles da
reflexão sobre tema referentes ao desenvolvimento, à paz, ao meio
ambiente, à comunicação e ao patrimônio comum da humanidade.

A preocupação com a preservação do meio ambiente – que hoje trans-


cende o plano das presentes gerações, para também atuar em favor das
gerações futuras (MACHADO, 2014) – tem constituído, por isso mes-
mo, objeto de regulações normativas e de proclamações jurídicas, que,
ultrapassando a província meramente doméstica do direito nacional de
cada Estado soberano, projetam-se no plano das declarações internacio-
nais, que refletem, em sua expressão concreta, o compromisso das Nações
com o indeclinável respeito a esse direito fundamental que assiste a toda a
Humanidade.
O direito à integridade do meio ambiente constitui prerrogativa jurí-
dica de titularidade coletiva, refletindo, dentro do processo de afirmação
dos direitos humanos, a expressão significativa de um poder deferido, não
ao indivíduo identificado em sua singularidade, mas, num sentido verda-
deiramente mais abrangente, atribuído à própria coletividade social.
O reconhecimento desse direito de titularidade coletiva, tal como se
qualifica o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, consti-
tui, portanto, especialmente em sua interconexão com o direito à vida e à
saúde, como precedentemente enfatizado, uma realidade a que não mais
se mostram alheios ou insensíveis os ordenamentos positivos consagrados
pelos sistemas jurídicos nacionais e, também, as formulações normativas
proclamadas no plano internacional, como assinalado por autores emi-
nentes (REZEK, 1989).
A Constituição da República, ao dispor sobre a proteção ao meio
ambiente ecologicamente equilibrado, por ela própria reconhecido como
“bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida” (CF,
art. 225,“caput”), instituiu, entre nós, verdadeiro “Estado de Direito
Ambiental” fundado em bases constitucionais (AMADO, 2011).
É oportuno destacar também, algumas hipóteses levantadas e defendidas por
Belchior (2011), que devem ocupar a pré-compreensão dos operadores do

311
DIMENSÕES JURÍDICAS DAS POLÍTICAS PÚBLICAS – VOL. 1

direito ao pensar a legislação ambiental e sua aplicação ao caso concreto.


Neste contexto, ressaltam-se: o conceito de bem ambiental como con-
globante; uma ordem jurídico-ambiental repleta de conceitos jurídicos
obscuros e indeterminados, que demanda delimitação e preenchimento
pelo intérprete; ordenamento jurídico brasileiro com visão antropocên-
trica alargada e intergeracional do meio ambiente; crise ambiental que
ora se enfrenta que fortalece a sociedade de risco; direito fundamental
ao meio ambiente ecologicamente equilibrado como condição para exis-
tência dos demais direitos, devendo ter um peso maior em relação aos
demais no caso concreto; a construção de um Estado de Direito Am-
biental por meio de um raciocínio jurídico dialético com predominância
indutiva, que tem como tripé axiológico fundamental: justiça, segurança
jurídica e sustentabilidade.
Com base nas premissas levantadas no estudo realizado por Belchior
(2011), resta evidente a necessidade (e até a emergência) de uma nova
lente para ver a ordem jurídica, ou seja, é mister uma nova forma de inter-
pretar a legislação ambiental, objetivando efetivar o meio ambiente sadio
por meio da captação de um sentido que seja compatível com a realidade
social no momento de sua aplicação.

2.2 A Importância da Jurisdição Ambiental para a


Efetividade da Proteção ao Meio Ambiente

A proteção jurídica do meio ambiente é uma exigência já reconheci-


da. A evolução normativa que continua e intensamente se desenvolve vem
delimitada por um imperativo fundamental de sobrevivência e de solida-
riedade: a responsabilidade pela preservação da natureza e, consequente-
mente, da vida para as presentes e futuras gerações (MEDEIROS, 2004).
A Constituição de 1988 dispõe sobre os deveres do poder público e
da sociedade para com o meio ambiente, sem contudo, deixar de men-
cionar que restou efetuada a repartição das competências entre União,
Estados e Municípios, de forma a propiciar maior eficiência à defesa do
meio ambiente.
No art. 5º, LXXIII, o texto constitucional dispõe acerca da ação po-
pular como instrumento de proteção de atos lesivos ao meio ambiente,
destacando que qualquer cidadão é parte legítima para deduzir pretensão

312
LU I Z A N TÔ N I O R E I S J U N I O R , M A U R I C I O P I R E S G U E D E S , T E L S O N P I R E S ,
VA N E S S A V E L A S C O, H E R N A N D E S B R I TO R E I S ( O R G . )

jurisdicional que tenha por escopo a tutela do meio ambiente, legitimando


o cidadão a também atuar na defesa do meio ambiente.
A Carta Magna prevê ainda a inserção da proteção do meio ambiente
enquanto parâmetro a ser observado no desenvolvimento das atividades eco-
nômicas e reconhece no art. 186, II, a proteção do meio ambiente entre as
metas a serem alcançadas para que a propriedade cumpra sua função social.
A jurisdição54 constitucional e infraconstitucional exerce papel rele-
vante para a concretização da proteção ao meio ambiente, principalmente,
nos dias atuais. Contudo, a simples previsão do direito fundamental ao
meio ambiente ecologicamente equilibrado no texto constitucional e na
legislação correlata, não significa sua efetiva garantia, por isso é possível
afirmar que a demanda judicial é um dos meios para a tutela dos direitos
ambientais, sendo este seu objeto, quando for a ordem jurídica subjetiva
aquela ameaçada ou violada.
O Supremo Tribunal Federal tem o status de guardião da constitui-
ção, desempenhando importante papel para dar efetividade à proteção
ambiental consagrada no texto constitucional, quando julga nas ações que
lhes são submetidas e que afrontam a ideia de desenvolvimento sustentável
e de preservação do meio ambiente positivados pelo legislador constituin-
te de 1988.
No entanto, Streck (2009, p, 102-103) traz importantes reflexões em
relação a esse papel que o Poder Judiciário tem desenvolvido:

A experiência de inúmeras nações tem apontado para o fato de


que o Estado Democrático de Direito não pode funcionar sem
uma justiça constitucional. Guardadas as especificidades dos vá-
rios países, a justiça constitucional é condição de possibilidade
do Estado Democrático de Direito, questão que vem à tona des-
de o momento em que se passa a entender que as normas cons-
titucionais são normas dotadas de eficácia, quando se abandona
o conceito de Constituição no seu sentido meramente formal e
pragmático.

54 Dá-se o nome de jurisdição (do latim juris, «direito», e dicere, «dizer») ao poder que
detém o Estado para aplicar o direito ao caso concreto, com o objetivo de solucionar os
conflitos de interesses e, com isso, resguardar a ordem jurídica e a autoridade da lei.

313
DIMENSÕES JURÍDICAS DAS POLÍTICAS PÚBLICAS – VOL. 1

Os operadores do direito têm o papel de adequar a jurisdição ambien-


tal com os valores materiais que pedem uma interpretação “justa” da nor-
ma ambiental. Logo, os operadores do direito realizam força normativa
da legislação ambiental imprimindo nas suas decisões a integração entre
a norma e os valores, costumes e circunstancias fáticas do caso, tornando
efetivo o exercício do direito.
A posição dos tribunais no sistema jurídico é determinada preponde-
rantemente pela distinção entre legislação e jurisdição. Os Tribunais são
um lado dessa distinção; do outro lado encontramos a legislação. A pró-
pria distinção é vista como um instrumento de autodisciplina do sistema
jurídico, com base em uma tradição que remonta à antiguidade. Ela im-
pede que todas as questões jurídicas sejam decididas a partir de um ponto,
a partir de um centro, que poderia servir simultaneamente de ponto de
interferência a interesses sociais (LUHMANN, 1990).
A diferenciação de um sistema jurídico autoconstituinte encontra um
respaldo organizacional na diferenciação de legislação e jurisdição. Isso
pode acarretar algumas conseqüências, dentre elas a ampliação dos funda-
mentos da vigência do direito. A jurisdição é neutralizada politicamente
como função nuclear do sistema jurídico. Mas isso não significa que ela
estaria condenada a ineficácia em questões de transformação do Direito.
O contrário é verdadeiro: justamente por não poderem ser responsabili-
zados politicamente pelas conseqüências das suas decisões, os Tribunais
ficam excluídos da participação na ação política, mas são por isso mes-
mo favorecidos na sua participação na transformação do Direito, sobre-
tudo em áreas nas quais o legislador demonstra ser relativamente inativo
(LUHMANN, 1990).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A vista de todo o exposto, é possível afirmar que para o efeito de uma


efetivação da legislação ambiental, é necessário articulação entre os opera-
dores do direito e os outros atores sociais envolvidos nas questões ambien-
tais, necessitando desde logo atentar para uma adequada compreensão do
sentido e alcance de tal direito e dos seus efetivos pontos de contato com
a legislação ambiental, preservando sua autonomia e o concretizando de
modo fundamentado.

314
LU I Z A N TÔ N I O R E I S J U N I O R , M A U R I C I O P I R E S G U E D E S , T E L S O N P I R E S ,
VA N E S S A V E L A S C O, H E R N A N D E S B R I TO R E I S ( O R G . )

De todo modo, longe de esgotar aqui as possibilidades, o que se bus-


cou foi manter um diálogo crítico sobre a efetividade da legislação am-
biental e propor mais algumas questões para reflexão e discussão sobre tão
delicado e mesmo complexo tema.
Ciente de que ainda se está distante de construir um modelo sóli-
do e cooperativo de efetivação da legislação ambiental, o que se busca
ao invés de apostar em modelos de interpretação da legislação, é privi-
legiar formulas dialógicas (até mesmo recorrendo à conciliação e me-
diação) e que impliquem menor resistência por parte dos operadores
do direito.
Por tudo isso, estamos convictos de que, para que progridamos na
promoção da cooperação jurídica e na garantia da efetividade da legisla-
ção ambiental, faz-se necessário reconhecer a importância da atuação do
Poder Judiciário nessa seara, a fim de que a jurisprudência seja formada
de modo responsável, consciencioso e comprometido com os prolatados
ideais, e, assim, com o adequado emprego das medidas estruturantes aqui
sugeridas, se possa pavimentar esse longo caminho de progresso e evolu-
ção que ainda temos que percorrer.

REFERÊNCIAS

AMADO, Frederico Augusto Di Trintade. Direito Ambiental Esque-


matizado. 2. ed. São Paulo: Método, 2011

ANTUNES, Paulo de Bessa. Direito ambiental. 11.ed. Rio de Janeiro:


Lúmen Juris, 2008.

BARROS, Wellington Pacheco. Curso de direito ambiental. 2.ed. São


Paulo: Atlas, 2008.

BELCHIOR, Germana Parente Neiva. Hermenêutica jurídica am-


biental. São Paulo: Saraiva, 2011.

BEZERRA; Ana Keuly Luz; MOITA NETO, José Machado; SOARES,


Francílio Rodrigues. “Laudato Si”: Uma análise da encíclica do Papa
Francisco à luz da legislação ambiental brasileira. Revista Direitos
Culturais, Santo Angelo, v.11, n. 24, p.1-165, maio/ago. 2016.

315
DIMENSÕES JURÍDICAS DAS POLÍTICAS PÚBLICAS – VOL. 1

BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional.4.ed. São


Paulo: Malheiros, 1993

BRASIL. Constituição Federal de 1988. Disponível em: < http://


www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao.htm>.
Acesso em 26 fev. 2018.

BRASIL. Lei nº. 6.938 de 31 de agosto de 1981. Dispõe sobre a Política


Nacional do Meio Ambiente, seus fins e mecanismos de formulação
e aplicação, e dá outras providências. Disponível em: < http://www.
planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l6938.htm> Acesso em 26 fev. 2018.

CHACÓN, Mario Peña. El camino hacia la efectividad del derecho am-


biental. Revista de Direito Ambiental. v. 83/2016, p.39-56, jul-
-set/2016.

FIORILLO, Celso Antonio Pacheco. Curso de direito ambiental bra-


sileiro. 9.ed. São Paulo: Saraiva, 2008.

LAFER, Celso. Desafios: ética e política. São Paulo: Siciliano, 1995.

LEFF, Enrique. Epistemologia ambiental. Tradução de Sandra Valen-


zuela. 4.ed. São Paulo: Cortez, 2006.

LEITE, José Rubens Morato; AYALA, Patryck de Araújo. Direito am-


biental na sociedade de risco. 2.ed. Rio de Janeiro: Forense, 2004.

LESSO, Luciano Arlindo. Direito humano a um meio ambiente de tra-


balho ecologicamente equilibrado: um direito de todos os seres hu-
manos trabalhadores. Revista LTr, v. 72, n.2, fev. 2008, p. 209-219.

LUHMANN, Niklas. A posição dos tribunais no sistema jurídico. Re-


vista Ajuris, Porto Alegre, n.49, 1990.

MACHADO, Paulo Affonso Leme. Direito Ambiental Brasileiro.22.


ed. São Paulo: Malheiros, 2014.

MEDEIROS, Fernanda Luiza Fontoura de. Meio ambiente: direito de


dever fundamental. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2004.

MORAES, Luís Carlos Silva de. Curso de direito ambiental. 2.ed. São
Paulo: Atlas, 2006.

316
LU I Z A N TÔ N I O R E I S J U N I O R , M A U R I C I O P I R E S G U E D E S , T E L S O N P I R E S ,
VA N E S S A V E L A S C O, H E R N A N D E S B R I TO R E I S ( O R G . )

NOVELINO, Marcelo. Direito constitucional. 4.ed. São Paulo: Mé-


todo, 2010.

PIMENTA, Eduardo Salles. O ambiente e a legislação brasileira. In:


ARAUJO, Gisele Ferreira de (org.). Direito ambiental. São Paulo:
Atlas, 2008.

PRADO, Luiz Regis. Direito Penal do Ambiente. 3. ed. São Paulo:


RT, 2012.

REZEK, José Francisco. Direito Internacional Público. São Paulo:


Saraiva, 1989.

SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. 2.ed.


Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001.

SÉGUIN, Elida. O direito ambiental: nossa casa planetária. 3.ed. Rio


de Janeiro: Forense, 2006.

SILVA, José Afonso da. Direito ambiental constitucional. 6.ed. São


Paulo: Malheiros, 2015.

SOARES, Guido Fernando Silva. Proteção internacional do meio


ambiente. São Paulo: Manole, 2003.

STRECK, Lenio Luiz. Verdade e consenso: constituição, hermenêuti-


ca e teorias discursivas. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009.

TEIXEIRA, Sálvio de Figueiredo. A criação e a realização do direito


na decisão judicial. Rio de Janeiro: Forense, 2003.

WAINER, Ann Helen. Legislação ambiental brasileira. 2.ed. Rio de


Janeiro: Forense, 1999.

317
A LIVRE MANIFESTAÇÃO DO
PENSAMENTO E O DIREITO À
IMAGEM: UMA ANÁLISE DA COLISÃO
DE DIREITOS FUNDAMENTAIS NO
ÂMBITO DA INTERNET
Duane Daisy Duarte de Alencar

INTRODUÇÃO

O presente trabalho mostra o estudo do atrito entre direitos funda-


mentais ocorridos na internet, de forma mais precisa, abordando a intimi-
dação sistemática no Brasil e os aspectos jurídicos que englobam o tema.
O marco civil da Internet é considerado por algumas pessoas como
a constituição da internet, ele serviu para regulamentar alguns assuntos,
dentre eles, a responsabilidade dos provedores de conteúdo e serviço, no
entanto mostra-se insuficiente para lidar com outros problemas decorren-
tes do avanço tecnológico.
O principal tipo de pesquisa adotado neste trabalho é o método bi-
bliográfico, apoiando-se em estudos anteriores, como livros, teses, enten-
dimentos jurisprudenciais, e artigos já publicados, que contribuam com o
desenvolvimento do tema. Assim, também foram utilizados os seguintes
métodos: dedutivo e dialético.
Serão mostrados os aspectos gerais do Marco Civil da internet, as dis-
posições do CC que preceituam sobre o direito à imagem e a colisão desses
direitos no âmbito da internet. Será abordada a evolução histórica dos direi-
tos da personalidade, o direito à imagem, a evolução histórica, conceituação

318
LU I Z A N TÔ N I O R E I S J U N I O R , M A U R I C I O P I R E S G U E D E S , T E L S O N P I R E S ,
VA N E S S A V E L A S C O, H E R N A N D E S B R I TO R E I S ( O R G . )

da liberdade e direito à liberdade de expressão. O tabalho tem como fina-


lidade analisar a colisão entre o direito de informação e o direito à imagem
e como são resolvidos esses conflitos no contexto do Brasil e no mundo.
A constituição Federal de 1988 garantiu o direito à liberdade de ex-
pressão, no entanto estabeleceu limites nos quais esse direito deve ser
exercido. São eles: a vedação ao anonimato, direito de resposta e a prote-
ção aos direitos da personalidade, como por exemplo, o direito à imagem.
A CF também preceituou que caso haja violação a esses direitos caberá
indenização por danos morais e materiais.
O ideal seria que o direito à livre manifestação de pensamento coa-
dunasse com os direitos da personalidade, porém o abuso na utilização
daqueles direitos faz com que isso não seja possível.
A liberdade de manifestação de pensamento ganhou uma força, ja-
mais vista antes, com a democratização da internet. O direito à liberdade
é o um direito fundamental para manutenção de uma democracia, no en-
tanto é necessária uma regulamentação para que o direito à liberdade de
uns não interfira no direito de outras pessoas.
Apesar da necessidade de evitar danos aos direitos da personalidade
na internet, restringir a liberdade de manifestação de pensamento é algo
bastante delicado. Tendo em vista que o Brasil já enfrentou uma censura
à liberdade de expressão na época da ditadura militar de 64, qualquer res-
trição à liberdade pode ser interpretada como uma afronta à democracia.
O que foi observado é o que o direito ainda não acompanhou a re-
volução tecnológica. O Brasil tentou regulamentar a internet através do
Marco Civil da Internet, no entanto, ele ainda demonstra-se insuficiente
para resolver vários problemas ocasionados na internet.
Desse modo, será apresentado como são resolvidos os conflitos entre
os direitos fundamentais na internet, sobre as dificuldades de regulamen-
tá-la, além das dificuldades de aplicar sanções em ambientes virtuais, em
virtude do anonimato.

1. A COLISÃO ENTRE DIREITOS FUNDAMENTAIS:


LIBERDADE VERSUS IMAGEM

Os direitos da personalidade surgiram com o desenvolvimento das


sociedades modernas, em contextos diversos, envolvendo o homem e sua

319
DIMENSÕES JURÍDICAS DAS POLÍTICAS PÚBLICAS – VOL. 1

constante evolução. Eles têm como propósito a preservação da dignidade


humana e a busca de uma justiça pautada na valorização do homem e de
seus valores, seus sentimentos, sua percepção e suas ações.
Cada direito se configura como uma conquista na proteção da digni-
dade do homem que compõe uma determinada sociedade e que está em
constante criação e destruição de paradigmas. Nessa perspectiva, são bus-
cadas novas formas de se analisar o direito e de se instrumentalizar uma
proteção efetiva dos cidadãos diante dos detentores do poder.
O conflito de normas constitucionais é corriqueiro, diante da diver-
sidade ideológica emergente do princípio do Estado Democrático de Di-
reito. Os casos mais frequentes de colisão entre princípios constitucionais
envolvem o direito de livre expressão e os direitos da personalidade. Os
direitos da personalidade visam a proteger a vida privada e a não exposição
da imagem, enquanto o direito à liberdade de expressão visa a garantir o
acesso à informação.
Um dos maiores desafios na solução desses conflitos é buscar soluções
que não atinjam o direito à liberdade de expressão, tendo em vista que esse
direito fora conquistado dentro em um ambiente histórico onde o Brasil
enfrentava a censura massificada. Essa censura foi implantada durante a
ditadura militar que atingiu diretamente a liberdade individual do cidadão
brasileiro, que se viu sem voz em um contexto que causava, principalmen-
te, a revolta daqueles que, aos poucos perdiam todos os seus direitos.

1.1. A LIBERDADE E O DIREITO DE IMAGEM

De acordo com Locke (2004), a liberdade é um direito inerente ao


homem. O estado deve proteger e garantir esse direito a todos, todavia o
estado deve conciliar o direito de exercício da liberdade com o direito de
terceiros, para que estes também desfrutem da liberdade.
Mill (2010) tem uma concepção divergente de Locke, pois aquele
considera que o direito à liberdade não é um direito natural. John é cri-
ador do princípio do dano, que defende que o homem não deve interferir
na liberdade de outrem, senão para defender-se. O princípio do dano val-
oriza o respeito ao individualismo e defende que os limites da liberdade
de expressão são estabelecidos pelo princípio do dano, pois as pessoas não
devem expressar ideias que possam provocar danos aos outros.

320
LU I Z A N TÔ N I O R E I S J U N I O R , M A U R I C I O P I R E S G U E D E S , T E L S O N P I R E S ,
VA N E S S A V E L A S C O, H E R N A N D E S B R I TO R E I S ( O R G . )

John Mill preocupava-se com a pluralidade de pensamento e defen-


dia o direito das minorias expressarem seus pensamento. Ele temia que
o Estado interferisse na liberdade individual dos seus membros, a ponto
de haver uma tirania da maioria, em que estes impusessem limitações às
classes minoritárias. Mill (2010) afirma:

Se todos os seres humanos, menos um, tivessem uma opinião, e


apenas uma pessoa tivesse a opinião contrária, os restantes seres
humanos teriam tanta justificação para silenciar essa pessoa, como
essa pessoa teria justificação para silenciar os restantes seres huma-
nos, se tivesse poder para tal.

Dessa forma, fica demonstrado a importância da pluralidade de pen-


samento e da ponderação do Estado ao limitar a liberdade de seus inte-
grantes, pois são necessárias para o desenvolvimento da sociedade e do
próprio ser humano. Marx (2012), ao conceituar a liberdade, pretendeu
fazer uma crítica ao modelo econômico adotado. De acordo com ele, só
quem detinha o direito à liberdade eram os burgueses, pois estes possuíam
o poder financeiro.
A liberdade de comunicação do pensamento é uma das mais remo-
tas necessidades do homem, visto que Aristóteles já dizia que “o homem
é um ser social”, dessa forma, ele tem a necessidade de viver em socie-
dade e consequentemente de interagir com os outros, compartilhando
suas ideias.
A livre manifestação do pensamento é um direito consagrado na
CRFB de 1988, como sendo fundamental e de primeira geração, ou seja,
exige-se do Estado que não intervenha sobre a liberdade dos indivíduos.
Esse direito é imprescindível para a manutenção da democracia, visto que,
ao vedar essa prática, a censura e opressão tomam seu lugar. Desse modo,
um governo, ao não permitir que os cidadãos de uma determinada socie-
dade possam expressar um pensamento diferente dos seus governantes,
acaba por monopolizá-los. Um fato que comprova a importância desse
direito para a democracia é que, em todos os governos ditatoriais no Bra-
sil, a livre manifestação de pensamento era vedada. Britto (2006) afirma
que “democracia é o princípio dos princípios da Constituição de 1988.
Valor dos valores, ou valor-continente por excelência. Aquele que mais

321
DIMENSÕES JURÍDICAS DAS POLÍTICAS PÚBLICAS – VOL. 1

se faz presente na ontologia dos outros valores, repassando para eles a sua
própria materialidade”.
Nesse diapasão, nota-se que a democracia é preceito fundamental.
Por meio dela é que são garantidos outros direitos fundamentais. A de-
mocracia garante a liberdade de expressão e vedá-la não só ofenderia este
direito, mas também o princípio do Estado Democrático de Direito, oca-
sionando assim o detrimento de valores, princípios e normas constitucio-
nais. Bobbio (2004) demonstra que:

Sem direitos do homem reconhecidos e efetivamente protegidos não


existe democracia, sem democracia não existem as condições míni-
mas para a solução pacífica dos conflitos que surgem entre os indiví-
duos, entre grupos e entre as grandes coletividades tradicionalmente
indóceis e tendencialmente autocráticos que são os Estados.

A Constituição de 1988 assegura o livre pensamento como um direito


essencial à dignidade do ser humano, porém este é passível de restrições,
pois nenhum direito ou princípio é absoluto. Destarte, este direito deve
ser usado com cautela, pois os limites são estabelecidos pelo próprio cons-
tituinte, que visa proteger a dignidade da pessoa. A Constituição Federal
no seu art. 5, inciso X já assegura que “são invioláveis a intimidade, a vida
privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indeniza-
ção pelo dano material ou moral decorrente de sua violação”.
O exercício do direito à livre manifestação de pensamento não pode
violar a vida privada, à honra e à imagem das outras pessoas, exigindo-se a
sua utilização de forma harmônica. Além disso, caso haja abuso do poder,
o infrator deverá indenizar àquele que teve os seus direitos feridos.
A nível internacional, a Corte Europeia de Direitos Humanos tem
como principal objetivo garantir a aplicação da Convenção Europeia de
Direitos Humanos, qual traz em seu conteúdo o Direito ao respeito à vida
privada e familiar. Casos que chegam à Corte Suprema com o argumento
de violação do Direito à vida privada.
A Declaração Universal dos Direitos do Homem surge como marco
inicial dos direitos do homem, proporcionando uma proteção ampla e
irrestrita a estes, sendo, também, o primeiro texto a tratar da preservação
da imagem.

322
LU I Z A N TÔ N I O R E I S J U N I O R , M A U R I C I O P I R E S G U E D E S , T E L S O N P I R E S ,
VA N E S S A V E L A S C O, H E R N A N D E S B R I TO R E I S ( O R G . )

O Pacto Internacional Sobre os Direitos Civis e Políticos também


pode ser citado como importante marco para a matéria em questão, pois
estabelece que toda pessoa terá direito à liberdade de expressão, de re-
ceber e de difundir informação, desde que respeitada a reputação das
demais pessoas.
Cifuentes (2008 apud Neto, 2018) discorre que, na Alemanha,
um dos primeiros casos de proteção à imagem ocorreu em 1898,
quando teve o entendimento da abusividade em uma captação da
imagem de uma jovem em trajes de banho, imagem essa que, poste-
riormente, fora reproduzida em medalhões, cigarreinas e em diversos
outros objetos.
Outro momento importante e que explica a rigorosidade na prote-
ção à imagem se trata da captação da máscara mortuária de Otto Von
Bismarck, que desencadeou a produção de leis que passaram a estabelecer
condutas a serem punidas, além de determinar também exceções à refe-
rida proteção.
Netto (2005), em seu trabalho entitulado A Proteção ao Direito à
Imagem e a Constituição Federal, faz uma apresentação de como o direi-
to à imagem é disposto nos diversos países do mundo. Abaixo segue um
breve resumo do que tratara o autor em sua obra.
O Direito à imagem na Alemanha encontra-se disciplinado na Lei
do Autor, de 1907, assim como na Lei de setembro de 1965, tendo, como
principal característica a proibição da divulgação da imagem sem o con-
sentimento do ofendido. No entanto, no caso citado, cabem exceções,
sendo algumas delas o aparecimento do retrato como mero acessório de
uma paisagem, de uma multidão, de um razoável número de pessoas, as-
sim como a confecção sem encomenda, devendo a divulgação e exposição
servir a um interesse artístico superior.
A primeira jurisprudência alemã sobre o caso outorgou uma indeni-
zação pela violação de direitos da personalidade, tendo como base a inter-
pretação constitucional. A situação tratava da utilização da fotografia de
um cavaleiro durante uma competição da qual o mesmo fazia parte. A foto
que mostrava o cavaleiro correndo no seu cavalo foi utilizada para a pro-
paganda de um remédio. Afirmou-se que caberia ao fotografado decidir
se daria ou não publicidade à sua imagem, qual fazia parte do seu direito
de autodeterminação.

323
DIMENSÕES JURÍDICAS DAS POLÍTICAS PÚBLICAS – VOL. 1

O direito de imagem possibilita a exploração pecuniária, integra o


patrimônio do indivíduo, fato que gera diversos efeitos no âmbito indivi-
dual e coletivo. No entanto, tal exploração é limitada pela moral e pelos
bons costumes, assim como pela dignidade da pessoa humana, que não
podem ser violados, podendo resultar, para aquele que sentiu ofendido, a
pretensão de indenização. Logo, o indivíduo tem direito a manter a sua
individualidade, a sua privacidade e a imagem, podendo ser reproduzida
somente mediante autorização prévia de seu titular, sob o pressuposto de
proteção à idoneidade moral desse.
Constitui, também, ilícito, além do uso não consentido, o uso que
extrapola os limites contratuais estabelecidos ou não condizentes com a
sua atividade. Além de que, na divulgação da imagem, são proibidas ações
que atinjam a honra, à reputação, à intimidade de outrem, dentre outros
princípios. Quuanto ao tema, Bittar (2015) esclarece:

O direito à imagem estende-se a todas as pessoas, mesmo fa-


mosas e conhecidas e em especial quanto a estas, que devem ter
respeitados seus dotes físicos integralmente, ou em um ou em
alguns de seus aspectos mais marcantes, que são, assim, protegi-
dos, visto que comum no meio artístico, ou político, o destaque
de algum elemento característico (lembrando-se das atrizes que
se celebrizaram pelo busto, pelos quadris, pelas per- nas e por
outros componentes). Daí, em se tratando de atrizes e modelos,
o atentado assume proporções maiores, em vista do alto poder
atrativo de sua imagem, em face da pronta identificação com o
seu público. Também os políticos e personalidades públicas se
incluem nessa relação.

Alguns dos temas em debate relativos à matéria tratada são aqueles re-
ferentes às caricaturas e às fotos instantâneas feitas em multidões. Quanto
à caricatura, deve haver o consentimento expresso do indivíduo retratado.
Já as fotos realizadas em meio a multidões, estas são lícitas, desde que não
exista nenhum tipo de destaque da pessoa e estejam dentro das hipóteses
de permissão. O direito à imagem também sofre limites, estabelecidos
pelas exigências da coletividade. Como, por exemplo, serviços de política,
fins científicos, didáticos ou culturais.

3 24
LU I Z A N TÔ N I O R E I S J U N I O R , M A U R I C I O P I R E S G U E D E S , T E L S O N P I R E S ,
VA N E S S A V E L A S C O, H E R N A N D E S B R I TO R E I S ( O R G . )

1.1.1. COLISÃO ENTRE OS DIREITOS DA


PERSONALIDADE E OS CRITÉRIOS PARA RESOLUÇÃO
DE CONFLITOS

A colisão entre direitos fundamentais ocorre quando uma norma au-


toriza determinada atitude, mas outra norma proíbe, ou quando o direito
positivado por uma norma é exercido de forma abusiva, na qual há viola-
ção de outro preceito fundamental. Conforme Marmelstein (2019, p.18)
“Os direitos fundamentais são normas jurídicas, intimamente ligadas à
ideia de dignidade da pessoa humana e de limitação do poder, positivadas
no plano constitucional de determinado Estado Democrático de Direito”.
Desse modo, cada Estado seleciona quais direitos merecem ser considera-
dos direitos fundamentais, com base na sua importância axiológica.
Conforme Marmelstein (2019), a dignidade da pessoa humana está
diretamente ligada aos direitos fundamentais, porém só são considerados
direitos humanos aqueles positivados na constituição. Pode haver outros
valores importantes inerentes a dignidade da pessoa humana e que ainda
foram não positivados; porém, nesses casos, não seriam direitos funda-
mentais e sim direitos do homem.
De acordo com Alexy (2012), o que faz com que um enunciado de
uma constituição seja uma disposição fundamental são seus aspectos ma-
teriais, estruturais e/ou formais. Ele divide a concepção de norma em três
níveis: o primeiro nível considera que direitos fundamentais são aqueles
que estão positivados no título direitos fundamentais da constituição, en-
quanto isso, o segundo nível atribui que além da positivação das normas
na constituição, elas só devem ser positivadas se forem corretas, se para
atribuição de normas fundamentais for possível uma correta fundamen-
tação. No terceiro nível há uma solução elaborada por Müller, em que
para atribuição de uma norma como direito fundamental, seria necessário
dados linguísticos e com precedência em relação a outros elementos con-
cretizadores.
Os direitos fundamentais estão diretamente ligados a dignidade hu-
mana, porém nem todos direitos inerentes a dignidade da pessoa humana
são direitos fundamentais. Conforme Marmelstein (2019) os direitos fun-
damentais e os direitos do homem são normas ligadas à dignidade da pes-
soa humana e à limitação do poder. Os direitos fundamentais são aqueles

325
DIMENSÕES JURÍDICAS DAS POLÍTICAS PÚBLICAS – VOL. 1

direitos positivados pela Constituição, enquanto os direitos do homem,


são valores importantes que ainda não foram positivados pela constituição,
no entanto, pode ser que eles sejam positivados em algum momento.
Destarte, os direitos não positivados na Constituição, mas que estão
atrelados à dignidade da pessoa são considerados direitos do homem. É
importante ressaltar que o princípio da dignidade humana é critério para
a escolha de quais direitos devem ser positivados pela constituição.
As normas de direitos fundamentais geralmente caracterizam-se pelo
caráter principiológico, em que possuem forte conteúdo axiológico. No
entanto, há normas no ordenamento da Constituição Federal de 1988 que
se caracterizam como regras.
Mister se faz a distinção entre regras e princípios, para que haja a
compreensão de como são resolvidos os atritos entre as regras e as coli-
sões entre princípios. Há várias formas de distinguir essas duas espécies
de normas, Alexy (2012, p.87) fala o seguinte sobre o critério da gene-
ralidade usado para distinguir essas normas “Princípios são normas com
grau de generalidade relativamente alto, enquanto o grau de generalidades
das regras é baixo”. De acordo com o critério da generalidade, princípios
possuem um grau de abstração mais elevado e regras possuem um grau de
abstração menor. Em virtude disso, as regras podem ser aplicadas de forma
direta ao caso concreto, enquanto os princípios não.
O ordenamento jurídico brasileiro aderiu à ideia de que se há colisão
entre duas regras, elas não podem ser utilizadas juntas. O conflito entre
regras é solucionado através da interpretação das normas, em que uma
norma deve prevalecer sobre a outra. O método utilizado para resolver a
colisão entre princípios é divergente do usado para resolver o conflito en-
tre regras. Tendo em vista que o objeto de conflito são bens que possuem
natureza fundamentalista e amparo legal na Constituição, o intérprete de-
verá ter mais cautela na resolução dos conflitos envolvendo princípios, do
que nos casos que envolvem colisão de regras infraconstitucionais. Segun-
do Alexy (2012, p. 93):

As colisões entre princípios devem ser solucionadas de forma com-


pletamente diversa. Se dois princípios colidem com o que ocorre,
por exemplo, quando algo é proibido de acordo com um princípio
e, de acordo com o outro, permitido-, um dos princípios terá que

326
LU I Z A N TÔ N I O R E I S J U N I O R , M A U R I C I O P I R E S G U E D E S , T E L S O N P I R E S ,
VA N E S S A V E L A S C O, H E R N A N D E S B R I TO R E I S ( O R G . )

ceder. Isso não significa, contudo, nem que o princípio cedente


deva ser declarado inválido, nem que nele deverá ser introduzi-
da uma cláusula de exceção. Na verdade, o que ocorre é que um
dos princípios tem precedência em face do outro sob determinadas
condições. Sob outras condições a questão da precedência pode ser
resolvida de forma oposta (...).

A maneira de solucionar conflitos entre princípios é menos radical do


que resolução de atrito entre regras, visto que, mesmo que um princípio
prevaleça sobre outro da mesma natureza jurídica, este não deve ser consi-
derado inválido. Um fato a ser analisado, é que a prevalência de um prin-
cípio sobre outro deve ser estabelecida analisando as condições do caso
concreto, pois nenhum valor tem prevalência sobre outro antes da análise
do conflito das normas.
O ideal seria que os princípios fundamentais lograssem êxito em sua
integralidade, que coexistissem em harmonia. O intérprete ao adotar uma
medida, deve tentar conciliar os princípios e dar efetividade a ambos. Po-
rém, se não for possível ele deverá fazer o sopesamento.
Aplicada a técnica de ponderação com a mitigação de princípio, o
intérprete deve ter o cuidado de restringir o mínimo e procurar conferir
a maior efetividade possível ao princípio que se sobressai. Dessa forma,
o sopesamento é necessário para dirimir conflitos entre os direitos funda-
mentais, na qual se encarregará de escolher qual direito deve prevalecer e
qual deve ceder.
Apesar do critério da ponderação ser bastante utilizado, não só no
Brasil, mas no mundo, afim de resolver a colisão entre normas constitu-
cionais, há duras críticas a esse método. De acordo com Habermas (1996,
p.315-316 apud Alexy, 2012, p.576):

E o sopesamento de direitos fundamentais não ameaçaria apenas a


sua força em geral. Ele implicaria também o risco de que os direi-
tos fundamentais fossem vítimas de “juízos irracionais”,’ pois não
haveria nenhum parâmetro racional para esse sopesamento: “como
faltam parâmetros racionais para tanto, o sopesamento é realiza-
do ou de forma arbitrária ou irrefletida, baseado em standards e
hierarquias sedimentados”. Em resumo: em primeiro lugar, os di-
reitos fundamentais são flexibilizados, ao serem transformados em

327
DIMENSÕES JURÍDICAS DAS POLÍTICAS PÚBLICAS – VOL. 1

mandamentos de otimização; depois, ficam ameaçados de desapa-


recer no turbilhão do sopesamento irracional

Destarte, um dos principais problemas do critério da ponderação é


que a decisão sobre qual direito deve prevalecer fica a critério dos intér-
pretes, visto que não há parâmetro, podendo gerar insegurança jurídica ou
tratamento desigual.

CONCLUSÕES OU CONSIDERAÇÕES FINAIS

Com o presente estudo, buscou-se entender a problemática do tema


“a colisão de direitos fundamentais ocorridos no âmbito da internet”.
O intuito do trabalho foi mostrar a problemática do abuso da livre mani-
festação de pensamento na internet, que muitas vezes fere direitos igual-
mente protegidos pela Constituição da República Federativa do Brasil
e a necessidade de responsabilização pelos danos causados, em virtude
dessa prática.
Demonstrou-se que a liberdade é imprescindível para garantia da pró-
pria democracia e de outros direitos constitucionais, com o alerta de que
esses direitos devem ser exercidos de forma harmônica. Enfatizou-se a ne-
cessidade de valorização da livre manifestação do pensamento, conquista-
da durante a Revolução Francesa, ressaltando-se que o direito à liberdade,
por si só, não se mostra suficiente para regulamentar as relações entre os
homens, pois liberdade dos mais fracos seria devorada pela liberdade dos
mais fortes.
O conflito de normas constitucionais é corriqueiro, diante da diver-
sidade ideológica emergente do princípio do Estado Democrático de Di-
reito. Os casos mais frequentes de colisão entre princípios constitucionais
envolvem o direito de livre expressão e os direitos da personalidade.
Ao longo da pesquisa apresentada, ficou evidente que um dos maiores
desafios na solução desses conflitos é buscar soluções que não atinjam o
direito à liberdade de expressão.
Nesse sentido, a colisão entre direitos fundamentais ocorre quando
uma norma autoriza determinada atitude, mas outra norma proíbe ou
quando o direito positivado por uma norma é exercido de forma abusiva,
na qual há violação de outro preceito fundamental.

328
LU I Z A N TÔ N I O R E I S J U N I O R , M A U R I C I O P I R E S G U E D E S , T E L S O N P I R E S ,
VA N E S S A V E L A S C O, H E R N A N D E S B R I TO R E I S ( O R G . )

O atrito entre regras é resolvido de forma diversa do conflito entre


princípios, visto que, como já foi abordado, dependendo do caso concre-
to essas normas são aplicadas de modo diverso. Conforme ensina Alexy
(2012, p.92) “Um conflito entre regras somente pode ser solucionado se
introduz, em uma das regras, uma cláusula de exceção que elimine o con-
flito, ou se pelo menos uma das regras for declarada inválida. (...)”.
Logo, no conflito entre duas regras, elas não poderão ser ponderadas
e utilizadas de forma parcial, é necessário escolher uma regra para aplicar
no caso concreto. Um método eficaz para escolher qual norma deve ser
utilizada é inserir uma cláusula de exceção.
O conflito entre valores fundamentais deve ser resolvido através do so-
pesamento, a fim de definir qual valor tem um peso maior no caso concreto.
Um fato a ser analisado é que a restrição de um princípio só deve ser feita
na medida certa, não deve haver uma restrição maior do que a necessária.
O princípio da proporcionalidade é utilizado justamente para que
não haja restrição abusiva de um direito fundamental. Sobre o tema, Mar-
melstein (2019) ensina que o princípio da proporcionalidade é critério
para determinar se a lei que limita determinado princípio é válida. Desse
modo, ela é um importante para verificar se determinada lei, que restin-
gue algum direito fundamental é legítima.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ALEXY, Robert. Teoria dos Direitos Fundamentais. Tradução de


Virgílio Afonso da Silva. 2ª edição. 2ª tiragem. Malheiros Edi-
tores 2012.

BITTAR. Carlos Alberto. Os Direitos da Personalidade. 8ed. São


Paulo: Saraiva, 2015.

BOBBIO, Noberto, 1992.A era dos direitos/ Noberto Bobbio; tra-


dução de Carlos Nelson Coutinho; apresentação de Celso La-
fer. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004.

BRASIL. Código Civil. Lei n° 10406, de 10 de janeiro de 2002.

BRASIL. Código de Processo Civil. Lei nº 13.105, de 16 de março


de 2015.

329
DIMENSÕES JURÍDICAS DAS POLÍTICAS PÚBLICAS – VOL. 1

BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federa-


tiva do Brasil. Brasília: Senado Federal, 1988.

DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério/ Ronald Dworkin:


tradução e notas Nelson Boeira. São Paulo: Martins Fontes,2002.

GAGLIANO, Pablo Stolze, PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Novo cur-


so de direito civil: responsabilidade civil, v.3. São Paulo: Saraiva
educação, 2019.

GAGLIANO, Pablo Stolze, PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Novo cur-


so de direito civil: parte geral, v.1.São Paulo: Saraiva, 2018.

GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito civil brasileiro: responsa-


bilidade civil, v.4. São Paulo: Saraiva, 2016.

MAIA, Daniel. Liberdade de expressão nas redes socais. Rio de Ja-


neiro: Lumen Juris,2016. MARMELSTEIN, George. Curso de
Direitos Fundamentais, 8ª edição. São Paulo: Atlas, 2019

Mill, Jonh Stuart. Sobre a liberdade. Tradução Ari R.Tank Brito .São
Paulo.Heda. 2010

NETTO, Domingos. A Proteção ao Direito à Imagem e a Cons-


tituição Federal. Disponível em: file:///C:/Users/usuario/Down-
loads/442-1637-1-PB.pdf. Acesso em: 22 de maio de 2019.

330
O ACESSO À ÁGUA E A VIOLAÇÃO
DE DIREITOS FUNDAMENTAIS DE
PESSOAS VULNERÁVEIS NO CURSO
DA PANDEMIA DA COVID-19 NO
BRASIL
Rogers Alexander Boff55
Valéria Koch Barbosa56

INTRODUÇÃO

A população mundial foi surpreendida, em 2019, com a eclosão


do vírus Sars-CoV-2, denominado COVID-19, o qual pode acarre-
tar síndrome respiratória aguda e até mesmo a morte. A partir de então,
começaram as notícias acerca da velocidade com que o vírus é capaz de
se propagar e, ao mesmo tempo, o alto índice de mortalidade que pode
acarretar. No Brasil, as preocupações com a notícia de que a humanidade
passaria a enfrentar uma pandemia surgiram, de maneira mais acentuada,
em 2020, quando o Ministério da Saúde passou a divulgar orientações
advindas da Organização Mundial de Saúde (OMS) como forma de pre-
venção ao contágio.

55 Mestrando em Psicologia pela Universidade Feevale. Especialista em Direito de Família e


Sucessões pela Faculdade de Direito Prof. Damásio de Jesus (FDDJ). Advogado.
56 Doutora e Mestre em Qualidade Ambiental pela Universidade Feevale. Docente do Cur-
so de Direito da Universidade Feevale. Advogada.

331
DIMENSÕES JURÍDICAS DAS POLÍTICAS PÚBLICAS – VOL. 1

O vírus acarretou a necessidade de distanciamento social, com a


recomendação de que as pessoas evitassem aglomerações, além de te-
rem uma rotina de higiene, com frequente lavagem das mãos e uso
de álcool em gel. Nesse contexto, as pessoas vulnárveis foram as mais
afetadas e, em se tratando do Brasil, em que uma parcela da população
não dispõe de saneamento básico, além da existência de um signifi-
cativo número de pessoas em situação de rua, a violação de Direitos
Fundamentais ficou evidenciada.
É nessa perspectiva que se aborda o tema do presente artigo, o qual
objetiva apontar, especificamente, a violação do Direito Humano à água
sob o viés dos Direitos Fundamentais elencados na Constituição da
República Federativa do Brasil. Trata-se de uma pesquisa exploratória,
que, com base no metódo dedutivo e com revisão bibliográfica na doutri-
na e também amparo em notícias veiculadas, tem o condão de fomentar o
debate acerca das várias implicações decorrentes da vulnerabilidade social
a que muitos cidadãos brasileiros estão expostos, com foco em um dos
direitos mais básicos e garantidor da própria vida: a água.

1. A VIOLAÇÃO DE DIREITOS FUNDAMENTAIS COMO


COROLÁRIO DA FALTA DE ACESSO À ÁGUA

Os debates acerca do acesso à água datam de longos anos e têm


se acirrado no Brasil, em especial, com o advento da pandemia da
COVID-19. As reflexões eclodiram com mais ênfase em decorrência
do fato de que, entre as orientações da Organização Mundial de Saúde
(OMS) no combate à disseminação do vírus Sars-CoV-2, consta a ne-
cessidade de lavar com frequência as mãos. A problemática que daí
advém está centrada no seguinte questionamento: como podem os ci-
dadãos de zonas de precariedade lavar as mãos se não há acesso à água?
Isso porque a inexistência desse acesso é uma realidade que afeta uma
parcela da população brasileira (SILVA, 2016) e que ficou realçada com
a pandemia da COVID-19.
Consoante dados da Nota Técnica – agosto de 2020, do Fundo
das Nações Unidas para a Infância (UNICEF), bem como levando
em conta as informações do Programa Conjunto de Monitoramento
da Organização Mundial de Saúde (OMS) e do Fundo das Nações

332
LU I Z A N TÔ N I O R E I S J U N I O R , M A U R I C I O P I R E S G U E D E S , T E L S O N P I R E S ,
VA N E S S A V E L A S C O, H E R N A N D E S B R I TO R E I S ( O R G . )

Unidas para a Infância (UNICEF), “[...] 15 milhões de brasileiros


residentes em áreas urbanas não têm acesso à água gerenciada de for-
ma segura. [...]. Mais de 100 milhões de pessoas não possuem aces-
so ao esgotamento sanitária seguro”. Além disso, insta realçar que
as populações mais atingidas são as das regiões Norte e Nordeste
do país, bem como cidadãos de baixa renda em aldeias indígenas
e periferias urbanas, “[...] assentamentos informais e favelas, onde
vivem aproximadamente 13 milhões de brasileiros”. Soma-se a esse
cenário a escassez de serviços básicos de saúde, fator que potencial-
iza as chances de propagação de doenças (FUNDO DAS NAÇÕES
UNIDAS PARA A INFÂNCIA, 2020, p. 2). Essa escassez não está
em consonância com as regras da Carta Cidadã, em especial, os ar-
tigos 196 e seguintes, os quais apontam que é “[...] dever do Estado
atuar na promoção da saúde de seus habitantes, por meio de políticas
sociais e econômicas capazes de reduzir o risco de doenças, além de
garantir o acesso universal e igualitário às ações e serviços de pro-
moção, proteção e recuperação da saúde” (SANTIN, 2015, p. 498).
Nesse sentido, a falta de acesso à água potável compromete a promoção
da saúde. Apesar de tal acesso ser um direito humano essencial, ainda se
questiona, no Brasil, se deve fazer parte do rol dos Direitos Fundamen-
tais, tanto é que tramita a proposta à Emenda à Constituição nº 4, de 2018
(BRASIL, 2020). A esse respeito, Maia (2017) explica que a principal
referência legal no País é a Carta Magna de 1988, que coloca a água no status
constitucional. Em nível internacional, a Organização das Nações Unidas
(ONU), por meio da Resolução A/RES/64/292, deixou cristalino que o
acesso à água potável é um Direito Fundamental e universal, o qual é indis-
pensável à vida digna como “[...] condição para o gozo pleno da vida e dos
demais direitos humanos” (UNITED NATIONS, 2010).
Segundo Maia (2017), é preocupante problema a falta ou a insuficiên-
cia de água com qualidade, em especial, para a população vulnerável. As-
sim, o não reconhecimento do direito autônomo de acesso à água potável,
somado a outros fatores, como as vulnerabilidades hídrica e social, bem
como as desigualdades no que diz respeito ao abastecimento de água, con-
stitui desafio para a implementação desse direito.
O acesso à água, que abarca também a sua qualidade, está relaciona-
do ao direito à Dignidade da Pessoa Humana. Nessa direção, há fatores

333
DIMENSÕES JURÍDICAS DAS POLÍTICAS PÚBLICAS – VOL. 1

a serem considerados, entre eles, a quantidade de água, que deve ser


suficiente para a sobrevivência, devendo-se dar prioridade de acesso aos
humanos em caso de escassez. Além disso, o mínimo necessário à sobre-
vivência deve ser gratuito (SILVA, 2016, online). Essa ideia é reforçada
por Arsky, Santana e Pereira (2013, p. 159-160) ao dizerem que “O
direito humano à água prevê que todos tenham água suficiente, segura,
com características físico-químicas aceitáveis e acessíveis física e eco-
nomicamente para os usos pessoais e domésticos”. Ademais, efatizam os
autores que o acesso à água é um direito de todo brasileiro e, nesse sen-
tido, é “[...] dever do Estado atuar, de forma direta ou indireta, na oferta
de soluções apropriadas [...] na perspectiva da consolidação do acesso à
água como direito humano fundamental”.
Importante referir que o direito à água integra o grupo de di-
reitos econômicos, sociais e culturais, e o seu fornecimento deve se
dar “[...] sem qualquer tipo de discriminação. O fato de reconhecer
a água como um direito humano implica seguir a lógica dos direitos
e não as regras restritas do mercado”. Nesse viés, “A quantidade de
água disponível para cada pessoa deve corresponder às diretrizes da
Organização Mundial de Saúde (OMS), não descartada a possibili-
dade de que alguns indivíduos necessitem de recursos de água adi-
cionais em razões de saúde, de condições de trabalho e do clima [...]”
(COSTA, 2013, p. 149-150).
A essencialidade da água evidencia-se com a constatação de que, “[...]
sem o acesso a uma quantidade mínima de água potável, os outros direitos
a ela intrínsecos, tais como os direitos à vida e a um nível adequado para
a saúde e bem estar, tornam-se inatingíveis” (SILVA, 2016, online). Dessa
forma, não ter acesso à água coloca em risco Direitos Fundamentais con-
sagrados na Constituição Federal de 1988, como a vida, a saúde, a integri-
dade física e a dignidade, esta que, por seu turno, pressupõe condições que
garantam qualidade de vida.
Em consequência de o Brasil ter ratificado os Tratados e os Acor-
dos Internacionais que concebem a água como direito humano, passou
a assumir um conjunto de obrigações “[...] devendo assim dispor de
todos os instrumentos necessários para alcançar este direito a toda a
população do território nacional, valendo-se dos poderes do Executi-
vo, Legislativo e Judiciário, nas esferas federal, estaduais e municipais”

334
LU I Z A N TÔ N I O R E I S J U N I O R , M A U R I C I O P I R E S G U E D E S , T E L S O N P I R E S ,
VA N E S S A V E L A S C O, H E R N A N D E S B R I TO R E I S ( O R G . )

(COSTA, 2013, p. 150). É nessa perspectiva que se baseia a Política


Nacional de Recursos Hídricos, Lei nº 9.433/1997, ou seja, “[...] no
fundamento de que a água é um bem de domínio público que, em
situações de escassez, deve ser utilizado prioritariamente para o con-
sumo humano e dessedentação animal [...]”, conforme as previsões
do seu artigo 1º, incisos I e III. Essa legislação contempla também
um dos mais relevantes Princípios de Direito Ambiental, qual seja, o
Princípio da Equidade Intergeracional, preconizando que é um dos
objetivos da política em comento “[...] assegurar à atual e às futuras
gerações a necessária disponibilidade de água, em padrões de qualidade
adequados aos respectivos usos”, consoante o teor do art. 2º, inciso I,
da referida Lei (ARSKY; SANTANA; PEREIRA, 2013, p. 159).
Nesse desiderato, compete mencionar a Política Nacional de Sanea-
mento Básico (Lei nº 11.445/2007), a qual considera o abastecimento de
água como um serviço a ser prestado e universalizado, com segurança,
qualidade, regularidade e continuidade à luz do que está estabelecido
no artigo 2º, incisos I e XI (BRASIL, 2020). Por conseguinte, violar o
direito humano à água “[...] é, sobretudo, uma grave dívida social para
com os pobres em situação de extrema vulnerabilidade [...]” (MAIA,
2017, p. 316), privando-os da vida, da saúde, da integridade física, entre
outros direitos.
Com o advento da pandemia da COVID-19, a falta de acesso à água
em zonas de precariedade e vulnerabilidade impossibilitou – e ainda tem
impossibilitado – a lavagem das mãos como forma mínima de prevenção
da doença, conforme as orientações da Organização Mundial de Saúde
(OMS) e do Ministério da Saúde, potencializando as chances de contágio
e afetando um dos Direitos Fundamentais previstos na Carta Cidadã, qual
seja, o direito à saúde. Reitera-se que, “[...] sem saúde nem mesmo a vida
e a dignidade estão protegidas. Por isso, o direito de todos à saúde foi uma
das grandes conquistas sociais trazidas pela Constituição de 1988 [...]”
(ANJOS FILHO; RODRIGUES, 2020, p. 277).
Sem acesso à água, o direito à vida – o mais relevante de todos – está
violado. Trata-se do “[...] mais fundamental de todos os direitos, já que
se constitui em pré-requisito à existência e exercício de todos os demais
direitos” (MORAES, 2014, p. 34). Sublinha-se que o direito à vida deve
abranger não apenas a subsistência física, mas também que esta seja reves-

335
DIMENSÕES JURÍDICAS DAS POLÍTICAS PÚBLICAS – VOL. 1

tida de qualidade, o que remete à concepção do mínimo existencial. Para


Rissi (2017, p. 100), “As condições básicas para existência humana, som-
adas aos elementos necessários ao exercício da sua dignidade, é que con-
figuram o núcleo do mínimo existencial”.
Não se deve olvidar, nesta análise, que o ordenamento jurídico
pátrio tem como Princípio norteador do Estado Democrático de Di-
reito a Dignidade da Pessoa Humana (artigo 1º, inciso III), que implica
“[...] nem mais nem menos do que uma vida saudável” (SARLET,
2013, p. 37). Rissi (2017, p. 100) assevera que a dignidade “[...] não
está sujeita à aferição quantitativa, tendo em vista que a garantia efetiva
de uma existência digna ultrapassa o limite da mera sobrevivência físi-
ca”. Assim, viver significa, de acordo com o Texto Supremo, ter uma
vida digna, com qualidade, com os direitos sociais previstos no artigo
6º efetivamente consubstanciados. Ocorre que uma breve análise dos
reflexos da pandemia da COVID-19, ainda que sem esmiuçar os seus
detalhes, permite afirmar que muitos desses direitos foram violados,
em especial, em relação às pessoas que vivem em zonas de precariedade
e vulnerabilidade social.

2. O AGRAVAMENTO DA VULNERABILIDADE SOCIAL


DAS PESSOAS EM ZONAS DE PRECARIEDADE ANTE
A AUSÊNCIA DO ACESSO À ÁGUA DURANTE A
PANDEMIA DA COVID-19

A pandemia da COVID-19 alastrou-se de forma rápida no Brasil,


trazendo polêmicas em torno de questões políticas e dos encaminha-
mentos realizados tanto no que tange à prevenção quanto à prestação
de atendimento aos acometidos pelo vírus. Independentemente de
dissensos, o fato é que os segmentos vulneráveis da população sof-
reram e têm sofrido as agruras da doença em decorrência da falta de
acesso à água, entre tantos outros problemas que aqui poderiam ser
apontados.
Conforme se observa a seguir, até 28 de agosto de 2020, o Brasil pos-
suía 3.804.803 de casos confirmados e 119.504 óbitos em consequência
da COVID-19 (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2020, online).

336
LU I Z A N TÔ N I O R E I S J U N I O R , M A U R I C I O P I R E S G U E D E S , T E L S O N P I R E S ,
VA N E S S A V E L A S C O, H E R N A N D E S B R I TO R E I S ( O R G . )

Fonte: Ministério da Saúde, 2020.

Como se referiu, “A principal contribuição dos serviços de sanea-


mento para a resposta emergencial à Covid-19 é dada por meio da pro-
moção de boas práticas de higiene”. Nesse sentido, uma das mais rele-
vantes medidas para evitar a infecção pelo vírus é a lavagem frequente das
mãos, porém isso exige “[...] acesso contínuo a serviços de saneamento e
higiene de qualidade nos domicílios, estabelecimentos de saúde, locais de
trabalho, escolas e espaços públicos. Atenção especial deve ser dada a áreas
densamente povoadas e com altos índices de pobreza [...]” (FUNDO
DAS NAÇÕES UNIDAS PARA A INFÂNCIA, 2020, p. 2). De acor-
do com Jubilut et al (2020, p. 13), “Isso gera um impacto desproporcio-
nal das implicações do vírus, principalmente em grupos e indivíduos que
se encontram em situação de vulnerabilidade”, em especial, indígenas,
população afrodescendente, migrantes e trabalhadores informais. Esses
últimos, de acordo com Bardi et al (2020, p. 499 e 501), são afetados pela
impossibilidade de lavar as mãos com frequência, uma vez que não têm
a chance de optar por trabalhar em casa e, buscando o sustento nas ruas,
em geral, ficam sem condições de ter acesso à água. Desse modo, a pan-
demia da COVID-19 atingiu – e tem atingido – as pessoas de maneiras
distintas, pois “[...] aqueles que têm domínio sobre os meios de produção
atravessam a tempestade com menos sacrifícios e de forma mais protegida
do que aqueles que vivem da venda precarizada e informal da sua força de
trabalho – os pobres [...]”.
Em relação aos indígenas, o acesso a direitos sanitários é crítico, já que
“[...] enfrentam dificuldades arraigadas, estigmatização e discriminação,
incluindo acesso precário a cuidados de saúde e outros serviços essenciais”

337
DIMENSÕES JURÍDICAS DAS POLÍTICAS PÚBLICAS – VOL. 1

(JUBILUT, 2020, p. 14). A Secretaria Especial de Saúde Indígena emitiu


orientação e cuidados para prevenção do contágio do novo coronavírus,
mesmo assim, as comunidades estão em situação de vulnerabilidade em
face da inexistência de água disponível e de saneamento básico (BARDI
et al, 2020, p. 502).
O contexto de vulnerabilidade relacionado à água ao qual muitos
brasileiros estão expostos é atestado com a informação de que 35 mil-
hões deles não possuem acesso à água potável, bem como 100 milhões
têm moradias que nem sequer possuem conexão com a rede de coleta
e tratamento de esgoto. Essa situação, “Além de servir para a expansão
de doenças relacionadas à veiculação hídrica [...]”, impede que as pessoas
procedam à higienização com a lavagem das mãos. Nesse viés, segundo
constatação da Secretaria de Política Econômica (SPE), “[...] em algumas
regiões do Brasil, os moradores perdem a vida para a covid-19 por falta
de condições mínimas de coleta de esgoto e abastecimento de água, entre
outros fatores”. A título de exemplo, na região metropolitana de Belém,
mais de 900 mil pessoas não recebem água tratada em seus domicílios. Já
na região metropolitana de Manaus, 528 mil cidadãos vivem sem acesso à
água potável (PORTAL SANEAMENTO BÁSICO, 2020, online).
O viés de gênero e racial também está presente na disseminação do
novo coronavírus, tendo em vista que a pandemia afeta tanto afrodescen-
dentes quanto homens e mulheres de maneiras distintas. É possível ex-
emplificar a vulnerabilidade das mulheres no curso da pandemia com o
fato de que, em assentamentos informais, elas têm grande representativi-
dade, e a falta de acesso à água e a condições de higiene impede que aten-
dam a necessidades que lhes são peculiares, como, por exemplo, a higiene
menstrual (FUNDO DAS NAÇÕES UNIDAS PARA A INFÂNCIA,
2020, p. 2).
No que concerne a questões raciais, destaca-se que, de acordo com
os dados coletados na cidade de São Paulo, “[...] entre os brasileiros in-
fectados pela Covid-19, os negros têm 62% mais chances de morrer da
doença do que os brancos” (FUNDO DAS NAÇÕES UNIDAS PARA
A INFÂNCIA, 2020, p. 3). Um estudo realizado levando em conta da-
dos do Ministério da Saúde apontou que, em cerca de uma quinzena, no
mês de abril de 2020, aumentou cinco vezes o número de pessoas negras
que morreram em decorrência da COVID-19, realidade essa que diferiu

338
LU I Z A N TÔ N I O R E I S J U N I O R , M A U R I C I O P I R E S G U E D E S , T E L S O N P I R E S ,
VA N E S S A V E L A S C O, H E R N A N D E S B R I TO R E I S ( O R G . )

da população branca, em que o número de mortes e hospitalizações trip-


licou. Portanto, o que se verifica é que “A questão central é o racismo
e a forma como ele opera [...]”, com as suas nuances de exclusão e falta
de acesso a direitos básicos como a água (FARIAS; LEITE JUNIOR,
2020, online).
Por sua vez, o cenário da rede escolar também deixou escancarada
uma realidade não muito otimista para lidar com a propagação do novo
coronavírus, pois “[...] 39% das escolas no Brasil não dispõem de estrutu-
ras básicas para lavagem das mãos”. Além das disparidades entre as regiões
do país e entre escolas públicas e privadas, há situações que demonstram
o quanto o abastecimento de água é escasso, podendo comprometer, por-
tanto, a saúde dos alunos. A título de exemplo, tem-se o estado do Ama-
zonas, no qual somente 19% das escolas públicas possuem acesso ao abas-
tecimento de água, ao passo que, em alguns estados do Norte, uma taxa
inferior a 10% das escolas tem acesso a serviços de esgoto. A situação é
ainda mais grave no Acre, em Rondônia e no Amapá, em que, respecti-
vamente, 9%, 6% e 5% das escolas públicas têm acesso à rede pública de
esgoto. Não se pode deixar de mencionar também que, em 2017, vários
estabelecimentos de saúde – 74,5% – não contavam com serviços de es-
gotamento sanitário, frisando-se que 1,3% não possuía nenhum acesso
(FUNDO DAS NAÇÕES UNIDAS PARA A INFÂNCIA, 2020, p. 3).
A falta de acesso à água atinge também a população em situação de rua,
a qual “[...] figura como um dos grupos mais vulneráveis da sociedade bra-
sileira em qualquer momento, mais ainda em situação de crise sanitária [...]”
(BARDI et al, 2020, p. 501). Conforme enfatiza Casazza (2020, online), as
pessoas em situação de rua “[...] não ocupam postos de trabalho e não pos-
suem vínculos sociais que ajudem em seu sustento. Destituídas de direitos,
sobrevivem nas ruas, em condições de extrema pobreza, não têm moradia
e menos ainda água encanada”. Nesse passo, recente estudo realizado pelo
Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada – IPEA – demonstrou que “A
população em situação de rua cresceu 140% a partir de 2012, chegando a
quase 222 mil brasileiros em março deste ano, e tende a aumentar com a
crise econômica acentuada pela pandemia da Covid-19” (INSTITUTO
DE PESQUISA ECONÔMICA APLICADA, 2020, online).
As comunidades carentes que vivem na periferia das grandes cidades
brasileiras “[...] também sofrem com formas precarizadas de abastecimen-

339
DIMENSÕES JURÍDICAS DAS POLÍTICAS PÚBLICAS – VOL. 1

to de água e com um conjunto de outros fatores que tornam esses espaços


potenciais focos de disseminação do novo coronavírus”. O saneamen-
to básico e o abastecimento de água para a área onde essas comunidades
vivem “[...] não têm sido prioridade dos poderes públicos, e a config-
uração de provimento destas redes sofre descontinuidade, falta de ma-
nutenção e problemas de operação. Assim, [...] o abastecimento de água é
também marcado pela desigualdade sócio-espacial [...]”. Cabe frisar que a
qualidade da água fica comprometida com o abastecimento intermitente,
favorecendo a contaminação por doenças de veiculação hídrica. Como
a água está disponível poucas vezes ao dia ou tão somente na “bica” das
comunidades, o seu armanezamento ocorre de forma inadequada e, desse
modo, compromete a potabilidade (CASAZZI, 2020, online).
Nesse contexto em que uma parcela da sociedade não tem condições
dignas de higiene, reitera-se que as pessoas que vivem em zonas de pre-
cariedade e vulnerabilidade não conseguem seguir uma das principais
recomendações da Organização Mundial de Sáude (OMS) para evitar a
propagação do novo coronavírus, qual seja, lavar as mãos com frequência
(FARIAS; LEITE JUNIOR, 2020, online), evidenciando a extrema rele-
vância de políticas públicas que garatam o acesso democrático à água.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A pobreza e a ausência de políticas públicas efetivas para darem con-


ta das mazelas enfrentadas pela população é uma realidade histórica no
Brasil. O país conta com uma série de grupos vulneráveis, os quais são
marcados não apenas pela miséria, como também pelo preconceito,
pelo tratamento desigual e pelo descaso. Toda essa realidade ficou ainda
mais visível com a pandemia da COVID-19, principalmente, diante das
recomendações de uma higiene adequada, com a constante lavagem das
mãos para evitar a disseminação do novo coronavírus. De pronto, não foi
necessária uma análise pormenorizada das vicissitudes socias para se con-
statar que as pessoas vulneráveis não tinham como lavar as mãos, pois não
possuem acesso à água.
Os números do avanço contínuo da epidemia não só trouxeram pâni-
co à população brasileira, como também evidenciaram, mais uma vez, a
precariedade das políticas públicas e o descaso dos governantes em relação

340
LU I Z A N TÔ N I O R E I S J U N I O R , M A U R I C I O P I R E S G U E D E S , T E L S O N P I R E S ,
VA N E S S A V E L A S C O, H E R N A N D E S B R I TO R E I S ( O R G . )

às pessoas vulneráveis. Além disso, a epidemia fez emergir dois grandes


grupos: de um lado, brasileiros solidários com as mazelas de seus semel-
hantes e, de outro, pessoas indiferentes às dificuldades enfrentadas pelos
desfavorecidos.
Muitas reflexões podem ser empreendidas a partir da vivência des-
sa pandemia e, sob o ponto de vista jurídico, uma delas está centrada
na violação dos Direitos Fundamentais assegurados na Constituição da
República Federativa do Brasil de 1988 em decorrência da falta de acesso
à água. Sem esse acesso, a vida fica comprometida, a saúde resta prejudi-
cada, a qualidade de vida se perde e, consequentemente, um dos pilares
do Estado Democrático de Direito é afrontado, qual seja, a Dignidade da
Pessoa Humana.
Não há dúvidas, diante dos breves apontamentos ora expostos, de
que as pessoas que vivem em zonas de precariedade e vulnerabilidade
social vivenciaram – e ainda têm vivenciado – a pandemia de forma dif-
erente em relação àquelas que são parte dos segmentos privilegiados do
tecido social. A água, um dos direitos humanos mais básicos, cuja dis-
tribuição deve ser universal e gratuita, é a prova de que a igualdade não
tem operado no contexto social brasileiro e, nesse sentido, urge a im-
plantação de novas políticas públicas voltadas à promoção da Dignidade
da Pessoa Humana, a partir da qual estarão igualmente assegurados os
demais direitos fundamentais.

REFERÊNCIAS

ANJOS FILHO, Robério Nunes dos; RODRIGUES, Geisa de Assis.


Notas sobre o direito ao desenvolvimeno no Brasil: saúde, educação
e renda em tempos de COVID-19. In: CUNHA, Rogério Sanches.
(Coord.). Atualidades do Direito – Obra em Homenagem ao Pro-
fessor Luiz Flávio Gomes. Salvador: JusPodivm, 2020.

ARSKY, Igor da Costa; SANTANA, Vitor Leal; PEREIRA, Cla-


ra Marinho. Acesso à água no semiárido: a água para o consu-
mo humano. In: CONTI, Irio Luiz; SCHROEDER, Edni Oscar.
(Org.). Convivência com o Semiárido Brasileiro: Autonomia
e Protagosnismo Social. Brasília: IABS, 2013. Livro disponível para

341
DIMENSÕES JURÍDICAS DAS POLÍTICAS PÚBLICAS – VOL. 1

E-book. Disponível em: <http://plataforma.redesan.ufrgs.br/biblio-


teca/mostrar_bib.php?COD_ARQUIVO=17909>. Acesso em: 23
ago. 2020.

BARDI, Giovanna et al. Pandemia, desigualdade social e necropolítica


no Brasil: reflexões a partir da terapia ocupacional social. Revista
Interinstitucional Brasileira de Terapia Ocupacional, Rio de
Janeiro, v. 4, n. 2, p. 496-508, 2020. Disponível em: <https://revis-
tas.ufrj.br/index.php/ribto/article/view/34402/pdf>. Acesso em: 03
ago. 2020.

BRASIL. Lei nº 11.445, de 5 de janeiro de 2007. Estabelece as diretrizes


nacionais para o saneamento básico; cria o Comitê Interministerial
de Saneamento Básico; altera as Leis nos 6.766, de 19 de dezembro
de 1979, 8.666, de 21 de junho de 1993, e 8.987, de 13 de fevereiro
de 1995; e revoga a Lei nº 6.528, de 11 de maio de 1978. Disponível
em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2007/
lei/l11445.htm>. Acesso em: 23 ago. 2020.

BRASIL. Lei nº 9.433, de 8 de janeiro de 1997. Institui a Política Na-


cional de Recursos Hídricos, cria o Sistema Nacional de Gerencia-
mento de Recursos Hídricos, regulamenta o inciso XIX do art. 21
da Constituição Federal, e altera o art. 1º da Lei nº 8.001, de 13 de
março de 1990, que modificou a Lei nº 7.990, de 28 de dezembro de
1989. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/
L9433.htm>. Acesso em: 23 ago. 2020.

BRASIL. Senado Federal. Proposta de Emenda à Constituição nº 4,


de 2018. Disponível em: <https://www25.senado.leg.br/web/ativi-
dade/materias/-/materia/132208>. Acesso em: 23 ago. 2020.

CASAZZI, Ingrid Fonseca. O acesso à água e os excluídos da prenvenção


à Covid-19. Fiocruz. Data de publicação: 11 maio 2020. Disponível
em: <http://coc.fiocruz.br/index.php/pt/todas-as-noticias/1789-o-
-acesso-a-agua-e-os-excluidos-da-prevencao-a-covid-19.html#.
X0vvW3lKjIU>. Acesso em: 30 ago. 2020.

CONTI, Irio Luiz; SCHROEDER, Edni Oscar. (Org.). Convivência


com o Semiárido Brasileiro: Autonomia e Protagosnismo Social.

342
LU I Z A N TÔ N I O R E I S J U N I O R , M A U R I C I O P I R E S G U E D E S , T E L S O N P I R E S ,
VA N E S S A V E L A S C O, H E R N A N D E S B R I TO R E I S ( O R G . )

Brasília: IABS, 2013. Livro disponível para E-book. Disponível em:


<http://plataforma.redesan.ufrgs.br/biblioteca/mostrar_bib.php?-
COD_ARQUIVO=17909>. Acesso em: 23 ago. 2020.

COSTA, Jales Dantas da. Direito Humano à água. In: CONTI, Irio
Luiz; SCHROEDER, Edni Oscar. (Org.). Convivência com o
Semiárido Brasileiro: Autonomia e Protagosnismo Social. Bra-
sília: IABS, 2013. Livro disponível para E-book. Disponível em:
<http://plataforma.redesan.ufrgs.br/biblioteca/mostrar_bib.php?-
COD_ARQUIVO=17909>. Acesso em: 23 ago. 2020.

CUNHA, Rogério Sanches. (Coord.). Atualidades do Direito – Obra


em Homenagem ao Professor Luiz Flávio Gomes. Salvador: JusPo-
divm, 2020.

FARIAS, Magno Nunes; LEITE JUNIOR, Jaime Daniel. Vulnerabi-


lidade Social e COVID-19: considerações a partir da terapia ocu-
pacional social. Cadernos Brasileiros de Terapia Ocupacional/
Brazilian Journal of Occupational Therapy, Preprint, 2020.
Disponível em: <https://preprints.scielo.org/index.php/scielo/pre-
print/view/494/626>. Acesso em: 30 ago. 2020.

FERRAZ, Carolina Valença; LEITE, Glauber Salomão. (Coord.). Di-


reito à diversidade. São Paulo: Atlas, 2015.

FUNDO DAS NAÇÕES UNIDAS PARA A INFÂNCIA (UNICEF).


O papel fundamental do saneamento e da promoção da hi-
giene na resposta à Covid-19 no Brasil. Nota Técnica – Agosto
de 2020. Disponível em: <https://www.unicef.org/brazil/sites/uni-
cef.org.brazil/files/2020-08/nota-tecnica-saneamento-higiene-na-
-resposta-a-covid-19.pdf>. Acesso em: 29 ago. 2020.

INSTITUTO DE PESQUISA ECONÔMICA APLICADA (IPEA). Po-


pulação em situação de rua cresce e fica mais exposta à Covid-19.
Disponível em: <https://www.ipea.gov.br/portal/index.php?option=-
com_content&view=article&id=35811>. Acesso em: 30 ago. 2020.

JUBILUT, Liliana Lyra et al. Direitos Humanos e COVID-19 – Im-


pactos em Direitos e para Grupos Vulneráveis. Santos: Grupo

343
DIMENSÕES JURÍDICAS DAS POLÍTICAS PÚBLICAS – VOL. 1

de Pesquisa “Direitos Humanos e Vulnerabilidades” da Universida-


de Católica de Santos, 2020. Disponível em: <https://www.unisan-
tos.br/wp-content/uploads/2020/06/Direitos-Humanos-e-Covid-
-19-Impactos-em-Direitos-e-para-Grupos-Vulner%C3%A1veis.
pdf >. Acesso em: 30 ago. 2020.

MAIA, Ivan Luis Barbalho. O acesso à água potável como direito humano
fundamental no direito brasileiro. Revista do CEPEJ, Salvador, v.
20, p. 301-338, jul.-dez. 2017. Disponível em: <https://portalseer.
ufba.br/index.php/CEPEJ/article/view/27165/16363>. Acesso em:
23 ago. 2020.

MINISTÉRIO DA SAÚDE. COVID-19 Painel Coronavírus. Dis-


ponível em: <https://covid.saude.gov.br/>. Acesso em: 29 ago. 2020.

MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 30. ed. São Paulo:


Atlas, 2014.

PORTAL SANEAMENTO BÁSICO. Covid-19 e o novo cenário


do saneamento. Disponível em: <https://www.saneamentobasico.
com.br/covid-19-cenario-saneamento/>. Acesso em: 29 ago. 2020.

PORTAL SANEAMENTO BÁSICO. Mortalidade por covid-19 é


maior em capitais onde serviços de saneamento básico são
piores, aponta Ministério da Economia. Disponível em: <ht-
tps://www.saneamentobasico.com.br/mortalidade-covid-19-sanea-
mento-basico/>. Acesso em: 29 ago. 2020.

RISSI, Rosmar. Teoria do mínimo existencial: direitos fundamentais


sociais e democracia. Curitiba: Juruá, 2017.

SANTIN, Janaína Rigo. O idoso e o direito à saúde: evolução histórica e


novas perspectivas. In: FERRAZ, Carolina Valença; LEITE, Glau-
ber Salomão. (Coord.). Direito à diversidade. São Paulo: Atlas,
2015.

SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade (da pessoa) humana, mínimo exis-


tencial e justiça constitucional: algumas aproximações e alguns de-
safios. Revista do CEJUR/TJSC: Prestação Jurisdicional, Flo-
rianópolis, v. 1, n. 1, p. 29-44, dez. 2013. Disponível em: <https://

344
LU I Z A N TÔ N I O R E I S J U N I O R , M A U R I C I O P I R E S G U E D E S , T E L S O N P I R E S ,
VA N E S S A V E L A S C O, H E R N A N D E S B R I TO R E I S ( O R G . )

revistadocejur.tjsc.jus.br/cejur/article/view/24/28>. Acesso em: 29


ago. 2020.

SILVA, Thalita Veronica Gonçalves e. O direito humano de acesso à


água potável e ao saneamento básico. Análise da posição da Cor-
te Interamericana de direitos humanos. In: MINISTÉRIO PÚ-
BLICO FEDERAL. Projetos Qualidade da Água e Conexão
Água. Disponível: <http://www.mpf.mp.br/atuacao-tematica/ccr4/
dados-da-atuacao/projetos/qualidade-da-agua/boletim-das-aguas/
artigos-cientificos/o-direito-humano-de-acesso-a-agua-potavel-e-
-ao-saneamento-basico-analise-da-posicao-da-corte-interamerica-
na-de-direitos-humanos/view>. Acesso em: 23 ago. 2020.

UNITED NATIONS. Resolution adopted by the General Assem-


bly on 28 July 2010. Disponível em: <https://www.un.org/ga/
search/view_doc.asp?symbol=A/RES/64/292>. Acesso em: 23 ago.
2020.

345
DIREITOS FUNDAMENTAIS
SOCIAIS: PANORAMA HISTÓRICO,
FUNDAMENTO TEÓRICO E
EFETIVIDADE
Raquel Braz Scarpe Morgan57

INTRODUÇÃO

Este trabalho busca rememorar as origens históricas, os fundamentos


teóricos e as controvérsias acerca da efetividade dos direitos sociais. Para
tanto, a metodologia adotada será a revisão bibliográfica.
Na primeira sessão, serão analisados os fatos históricos que marca-
ram o reconhecimento dos direitos sociais como objeto de tutela jurídica.
Em seguida, serão examinados as construções teóricas que deram emba-
samento para as escolhas políticas em torno da tutela dos direitos sociais.
Finalmente, serão explorados alguns apontamentos críticos a respeito da
efetividade destes direitos.
Considerando que o empoderamento do Poder Judiciário encon-
trou solo fértil no pensamento neoconstitucionalista, as controvérsias
sobre a tutela dos direitos sociais estão conectadas ao debate sobre ati-
vismo judicial, notadamente quanto a conflitos envolvendo a Adminis-
tração Púbica.

57 Mestre em Justiça Administrativa pela Universidade Federal Fluminense (PPGJA/UFF,


2020). Advogada.

346
LU I Z A N TÔ N I O R E I S J U N I O R , M A U R I C I O P I R E S G U E D E S , T E L S O N P I R E S ,
VA N E S S A V E L A S C O, H E R N A N D E S B R I TO R E I S ( O R G . )

1. PANORAMA HISTÓRICO

O estudo sobre direitos fundamentais encontra origem no constitu-


cionalismo americano setecentista. Trata-se de teoria essencialmente ba-
seada na ideia de um Estado limitado pelo Direito, cujos pressupostos são
a limitação do poder político e a supremacia do direito. Além disso, tem
como uma de suas características principais a existência de uma Consti-
tuição que, refletindo consensos mínimos da sociedade que se está a fun-
dar, é normativamente forte e capaz de entrincheirar direitos e garantias
mínimos dos cidadãos contra o poder estatal.
Para proteger esta Constituição, foi preciso elevar um dos Poderes esta-
tais como aquele vocacionado para sua tutela, ou seja, para ser o guardião da
supremacia das normas constitucionais. Este múnus foi atribuído ao Poder
Judiciário, cujo órgão de cúpula é a Suprema Corte americana. Isto porque
o Poder Judiciário foi considerado pelo constitucionalismo americano como
o Poder menos perigoso (the least dangerous branch) (HAMILTON; JAY; MA-
DISON, 1840, vol. 3, p. 155-156), já que não possui a espada – como o
Executivo – nem a chave do cofre ou o poder de ditar normas obrigatórias
a todos – como o Legislativo (BRANDÃO, 2017, p. 39).
Neste contexto é que, em 1803, foi julgado o emblemático caso de
Marbury v. Madison. Mesmo sem existir previsão de controle de constitucio-
nalidade na Constituição americana, os cenários de desconfiança em rela-
ção aos Poderes estatais – principalmente o Legislativo e o Executivo, e de
necessidade de se afirmar a supremacia do texto constitucional permitiram
à Suprema Corte declarar inconstitucionais normas que, de acordo com sua
interpretação, fossem inconstitucionais (BARROSO, 2016, p. 26).
Ao contrário do que ocorreu nos Estados Unidos, o constituciona-
lismo europeu do século XIX teve como nota distintiva a confiança de-
positada no Parlamento – e a desconfiança no Poder Judiciário, que na
Europa oitocentista era composto por aristocratas e membros da Corte
escolhidos pelo monarca –, instituição que, naquele contexto histórico,
encarnava a vontade nacional. A necessidade de ruptura com o antigo re-
gime, especialmente notada na França, levou ao fortalecimento do Le-
gislador recém-dotado de legitimidade democrática, ao qual competiria,
com exclusividade, a criação do direito, enquanto aos demais Poderes caberia
apenas a aplicação da lei (BRANDÃO, 2017, p. 54-55).

347
DIMENSÕES JURÍDICAS DAS POLÍTICAS PÚBLICAS – VOL. 1

Neste sentido, a Constituição, na qualidade de diploma normativo


editado pelo Legislativo, era vista na Europa muito mais como documen-
to político do que jurídico. E é justamente por isso que o controle de
constitucionalidade feito pelo Judiciário era visto como um discurso anti-
democrático. Afinal, os magistrados da França pré-revolucionária repre-
sentavam uma casta destituída de legitimidade democrática, de modo que
não lhe seria dado opor-se à vontade nacional encarnada nos atos editados
pelo Parlamento (SOUZA NETO; SARMENTO, 2012, p. 61-62).
Em breves linhas, na Europa do século XIX até meados do XX havia
um Estado Legislativo de Direito, no qual havia a supremacia da lei, e não
da Constituição, e dentro do qual o juiz atuava apenas como a boca que pro-
nuncia as sentenças lei, seres inanimados que não podem moderar nem sua força nem
seu rigor (MONTESQUIEU, 1997, p. 208). Decidir não era, portanto,
um ato de vontade: era apenas revelar uma decisão previamente tomada
pelo legislador.
Barcellos (2011, p. 18), esclarecendo o pensamento de García de
Enterría (1985, p. 56-60), nos lembra que, até meados do século XX, a
Europa a Constituição era uma norma dirigida basicamente aos poderes
constituídos e principalmente ao Legislativo, cabendo a este sua interpre-
tação e implementação, de modo que a Constituição não era uma norma
jurídica como as demais; o acesso a ela não estava franqueado aos indiví-
duos e ao juiz.
Paralelamente, são gestadas as demandas sociais pelo reconheci-
mento de direitos sociais, podendo-se indicar a primeira revolução in-
dustrial como marco histórico, sob o impacto da proletarização, da con-
centração de renda, das doutrinas socialistas e da constatação de que a
consagração formal de liberdade e igualdade não gerava a garantia do seu
efetivo gozo, eclodiram ao longo do século XIX amplos movimentos
reivindicatórios. Tais movimentos políticos culminaram no reconheci-
mento de direitos denominados prestacionais, atribuindo-se ao Estado
comportamento ativo na realização da justiça social (BARTOLOMEI et
al., 2003, p. 185; SARLET, 2012, p. 263; BONAVIDES, 2014, p. 44;
BOBBIO, ano, p. 46).
Em 1919 é editada a Constituição de Weimar, símbolo do constitu-
cionalismo social (SOUZA NETO; SARMENTO, 2012, p. 97), que
representou a superação do constitucionalismo liberal – conhecido por

348
LU I Z A N TÔ N I O R E I S J U N I O R , M A U R I C I O P I R E S G U E D E S , T E L S O N P I R E S ,
VA N E S S A V E L A S C O, H E R N A N D E S B R I TO R E I S ( O R G . )

proteger as liberdades privadas em face do Estado, cujo poder é limitado


pelo Direito. Com a designação social, o constitucionalismo ganha novos
tons, mais próximos da isonomia material – além da formal – e das pres-
tações estatais positivas – além de abstenções.
O ideário social trazidos pelo diploma de Weimar, porém, não resis-
tiu à ascensão nazifascista. O fim da Segunda Guerra Mundial, por sua
vez, foi encarado como marco histórico a partir do qual os direitos sociais
passaram a ser sistematizados nas Constituições dos Estados nacionais em
geral. No contexto do segundo pós-guerra, os ordenamentos jurídicos
ocidentais, em sua maioria, tenderam a garantir internamente direitos
fundamentais, dando-lhes sentido concreto, relevância e normatização
(BARTOLOMEI et al., 2003, p. 185).
Esta transição significa que a Constituição já não é somente norma ju-
rídica, mas norma jurídica dotada de superioridade hierárquica (BARCE-
LLOS, 2011, p. 18), fundamento de validade para todas as demais normas
do ordenamento jurídico. Ela não se limita mais a organizar a estrutura do
Estado: passa também a veicular consensos mínimos, definindo direitos
fundamentais. Opera-se neste momento histórico do segundo pós-guerra
uma transição, na Europa, do Estado legislativo de Direito para o Estado
constitucional e democrático de Direito: a supremacia da lei é substituída
pela supremacia da Constituição.
Neste contexto é que ganhou vulto o debate acerca da força norma-
tiva dos princípios, e, em particular, do princípio da dignidade da pessoa
humana. Tal princípio ganhou força jurídica, passando a figurar em docu-
mentos internacionais, como a Declaração dos Direitos Humanos (1948),
e em Constituições como a italiana (1947), a alemã (1949), a portuguesa
(1976), a espanhola (1978) e a brasileira (1988) – nesta última, previsto no
art. 1º, III, como um dos fundamentos da República (BARROSO, 2018,
p. 152).
Neste ponto, compete justificar a relação íntima entre os direitos
fundamentais e a democracia (SOUZA NETO; SARMENTO, 2012,
p. 36). O regime democrático é sim definido como governo da maioria,
mas não só. Devem também estar presentes o respeito às regras do jogo
político majoritário (processo eleitoral de acesso aos cargos políticos) e aos
direitos fundamentais, sobretudo das minorias sub-representadas. Neste
sentido, se não houver respeito aos direitos fundamentais das minorias,

349
DIMENSÕES JURÍDICAS DAS POLÍTICAS PÚBLICAS – VOL. 1

não teremos governo democrático, e sim ditatorial (SOUZA NETO;


SARMENTO, 2012, p. 179).
Cumpre pontuar que os direitos fundamentais, em geral, não foram
contemplados de forma homogênea nas ordens constitucionais posteriores
à Segunda Grande Guerra. É dizer, a questão dos direitos fundamentais
sociais enfrenta desafios no direito comparado que não necessariamen-
te se apresentam na realidade brasileira. A própria existência de direitos
fundamentais sociais é questionada em países cujas Constituições não os
preveem de maneira expressa ou não lhes atribuem eficácia plena. Seria
este, por exemplo, o caso da Alemanha, cuja Constituição Federal pratica-
mente não contém direitos fundamentais de maneira expressa (ALEXY,
2008, p. 500; STF, STA 175 AgR/CE, 2010, DJe-076 30/04/2010), e de
Portugal, que diferenciou o regime constitucional dos direitos, liberdades
e garantias do regime constitucional dos direitos sociais (STA 175 AgR/
CE, 2010, DJe-076 30/04/2010).
Tais diferenças na disciplina dos direitos sociais entre as diversas or-
dens constitucionais demonstra o caráter histórico dos direitos fundamen-
tais. Ao enfrentar a jusfundamentalidade dos direitos sociais, é preciso ter
em conta os diversos contextos sociais caracterizadas por lutas em defesa
de novas liberdades contra velhos poderes (BOBBIO, 2004, p. 9).
Sendo direitos históricos, nasceram e se desenvolveram de modo
gradual, bem como continuam a sofrer modificações de acordo com os
avanços e retrocessos políticos e econômicos. Isto quer significar que as
definições de direitos sociais propostas pelos diplomas normativos não são
o ponto de partida do debate acerca dos problemas reais em torno de sua
concretização.
Segundo Bobbio (2004, p. 13), não existem direitos fundamentais
por natureza: “o que parece fundamental numa época histórica e numa
determinada civilização não é fundamental em outras épocas e em outras
culturas.” Neste sentido, o caráter contingente e histórico dos direitos
fundamentais nos leva à razoável conclusão de que novas pretensões, hoje
sequer imagináveis, poderão surgir na medida em que se transformarem
os contextos econômicos, políticos e culturais (BOBBIO, 2004, p. 5-6).
Diante do exposto, já se pode afirmar que o reconhecimento da jus-
fundamentalidade dos direitos sociais foi um processo histórico – antes de
filosófico – que teve por marco o segundo pós-guerra. A segunda metade

350
LU I Z A N TÔ N I O R E I S J U N I O R , M A U R I C I O P I R E S G U E D E S , T E L S O N P I R E S ,
VA N E S S A V E L A S C O, H E R N A N D E S B R I TO R E I S ( O R G . )

do século XX foi palco da ascensão e declínio do Estado de bem-estar


sócia, e esta mudança ecoou, ainda que tardiamente, no Brasil, com a
Constituição de 1988.

2. FUNDAMENTO TEÓRICO

A jusfundamentalidade dos direitos sociais pode ser encarada tanto


sob a ótica axiológica quanto sob a lente da positivação. Isto é, os direitos
sociais podem ser reconhecidos como tais em um plano ético-filosófico,
por meio de um discurso que defenda sua relevância valorativa, e, portan-
to, fundamendalidade material, ou em um plano jurídico-formal, através
de sua positivação em documentos internacionais e nos textos constitu-
cionais, sendo tratados como formalmente fundamentais (PEREIRA, 2015,
p. 2093).
No Brasil, a positivação dos direitos sociais na Constituição de 1988
trouxe certo grau de previsibilidade em relação às decisões judiciais que os
declaram, uma vez que, por estarem amplamente positivados no texto cons-
titucional, a criatividade judicial no reconhecimento destes direitos ficou
limitada ao que foi efetivamente positivado (PEREIRA, 2015, p. 2100).
Ocorre que a Constituição de 1988 é pródiga em direitos sociais e
não pormenoriza o alcance e os limites das prestações estatais, cabendo,
em regra, ao legislador infraconstitucional delimitar os parâmetros espe-
cíficos para o fornecimento de bens e serviços sociais. Porém, nem sempre
o Legislativo atua neste sentido, surgindo, então, a seguinte indagação:
em que medida o Judiciário pode extrair direitos a prestações diretamente
de cláusulas constitucionais e determinar, de forma coercitiva, sua imple-
mentação pelo Estado? (PEREIRA, 2015, p. 2100).
Afirmar que todo direito constitucional é fundamental implica redu-
zir a importância da categoria jusfundamentalidade, uma vez que, por este
raciocínio, todo e qualquer direito seria fundamental. A noção de direitos
fundamentais foi desenvolvida com o intuito de conferir a um grupo espe-
cífico de direitos uma tutela diferenciada, especial. Neste sentido, é possível
visualizar dois níveis de direitos fundamentais na Constituição de 1988:
i) aqueles direitos fundamentais de imposição obrigatória, diretamente
vinculados à materialização do seu núcleo e identificados como mínimo
existencial; e ii) os demais, consagrados normativamente pelo constituinte

351
DIMENSÕES JURÍDICAS DAS POLÍTICAS PÚBLICAS – VOL. 1

de 1988 e ligados, ainda que em grau menos intenso, à dignidade da pes-


soa humana, mas que podem se submeter à concretização realizada pelo
legislador e pelo administrador público (FONTE, 2015, p. 129).
Em consonância com a categorização dos direitos fundamentais se-
gundo gerações ou dimensões, os direitos sociais são definidos por Krell
(1999, p. 240) não como direitos contra o Estado, mas sim direitos por meio
do Estado, exigindo-se do Poder Público certas prestações materiais. O
Estado, por meio de leis, de atos administrativos e da criação real de ins-
talações de serviços públicos, deve definir, executar e implementar, con-
forme as circunstâncias, as políticas públicas (educação, saúde, assistência,
previdência, trabalho, habitação) que facultem o gozo efetivo dos direitos
constitucionalmente protegidos.
Nesta linha intelectiva, os direitos prestacionais teriam baixa deter-
minabilidade normativa, dependendo, em muitos casos, da concretização
legislativa, e seriam dispendiosos, razão pela qual estariam na dependência
da reserva orçamentária e da existência de recursos financeiros disponí-
veis. Todavia, esta posição não mais se sustenta na medida em que, em
maior ou menor grau, todos os direitos dependem de recursos financei-
ros do Estado para se mostrarem efetivos (HOLMES; SUNSTEIN, 2019,
posição 624). Ademais, quanto ao conteúdo, existem direitos de defesa
que também dependem da atuação do legislador, a exemplo do direito à
greve disposto no art. 9º, § 1º, CRFB (OLSEN, 2006, p. 36). Contudo,
esta dicotomia deve ser problematizada.
A concepção tradicional foi desmistificada na obra de Holmes e Suns-
tein intitulada The cost of rights – why Liberty Depends on Taxes, na qual os
autores constatam que direitos de qualquer espécie custam dinheiro, e que
todos os direitos reclamam o uso do tesouro público. Neste sentido, é fala-
ciosa a tese de que há direitos sem custos, e de que há direitos que exigem
abstenções estatais absolutas (FONTE, 2015, p. 137; HOLMES; SUNS-
TEIN, 2019, posição 623).
Holmes e Sunstein nos alertam sobre o forte apelo moral desta distin-
ção, e isso porque os partidários conservadores da distinção entre direitos
positivos e negativos defendem que direitos de bem-estar são potencial-
mente infantilizadores e só podem ser exercidos com base em recursos
distribuídos gratuitamente pelo governo. Acrescentam que os direitos li-
berais clássicos, em contraposição, são exercidos de forma autônoma e à

352
LU I Z A N TÔ N I O R E I S J U N I O R , M A U R I C I O P I R E S G U E D E S , T E L S O N P I R E S ,
VA N E S S A V E L A S C O, H E R N A N D E S B R I TO R E I S ( O R G . )

melhor maneira norte-americana por indivíduos fortes e autossuficientes


que desprezam o paternalismo e as esmolas do governo (SUNSTEIN;
HOLMES, 2019, posição 502).
Não obstante, só a partir do segundo pós-guerra os direitos funda-
mentais emergiram como objeto de estudo jurídico, em reação às violências
perpetradas, sob o manto da legalidade, pelos regimes totalitários. Ges-
tou-se, a partir de então, uma mudança de paradigma em torno da força
normativa da Constituição, em processo histórico, político e filosófico que
ficou conhecido como virada kantiana, considerada o marco epistemológi-
co de ascensão do pós-positivismo.
O pós-positivismo pode ser definido como uma mudança de leitu-
ra da Constituição e das leis marcada pelo viés moral, mas sem recorrer
a categorias metafísicas. Trata-se de um conjunto de ideias que incluem
a reentronização dos valores na interpretação jurídica, com o reconhe-
cimento de normatividade aos princípios e de sua diferença qualitativa
em relação às regras; a reabilitação da razão prática e da argumentação
jurídica; a formação de uma nova hermenêutica e, principalmente, o de-
senvolvimento de uma teoria dos direitos fundamentais edificada sobre
a moldura normativa, fortemente conectada com a Filosofia política e a
Filosofia moral (MAIA; DINIZ, 2006).
Em que pesem as controvérsias acerca da conceituação (ROESLER,
2009, p. 52), o importante é entender que se tratou de um processo his-
tórico vivido na Europa a partir do segundo pós-guerra caracterizado pela
absorção de normas de elevado teor axiológico nas Constituições – nor-
mas estas dotadas de cogência extraída do próprio texto constitucional,
sem necessidade de interposição legislativa. Tal processo também é co-
nhecido por constitucionalização da ordem jurídica, e abriu espaço para
o desenvolvimento de novas teorias, em adequação à nova realidade e em
substituição ao método formalista de subsunção do fato à norma, próprio
do positivismo jurídico (SARMENTO, 2009, p. 2-4).
Não obstante, impende destacar que a construção epistemológica
pós-positivista, por meio da qual todos os direitos fundamentais se
elevam de uma fonte principiológica unívoca consistente na digni-
dade da pessoa humana, é passível de críticas tendentes a demonstrar
não só que tal abstratização acaba mitigando a força das lutas sociais
em prol da concretização de direitos, mas também que pode funcio-

353
DIMENSÕES JURÍDICAS DAS POLÍTICAS PÚBLICAS – VOL. 1

nar como um desonerador argumentativo na tomada de decisão por


parte do Judiciário.
Ora, o reconhecimento dos princípios como normas jurídicas e o re-
conhecimento da força normativa da Constituição se deram no mesmo
contexto em que o Judiciário foi elevado ao intérprete final da Consti-
tuição. E o Poder Judiciário, empoderado, apropriou-se do discurso neo-
constitucionalista do pós-1988, passando a ostentar capital institucional
para decidir questões que nunca antes ele teve poder para decidir. Assim, o
Judiciário se viu à vontade para tomar decisões que inteferem diretamente
na esfera de poder das instâncias politicas majoritárias.
Identificando esta tendência, Sundfeld (2014, p. 220) adverte que
não basta a invocação de princípios jurídicos para justificar a inter-
venção judicial em escolhas administrativas, sendo necessário que o
julgador considere as consequências de sua decisão. O autor aduz ainda
à elasticidade semântica dos princípios e sua repercussão na elaboração
das decisões, questionando a maneira como os princípios são utiliza-
dos para desonerar, argumentativamente, o autor da decisão (SUND-
FELD, 2014, p. 211).
Sarmento (2009) aponta cinco efeitos do neoconstitucionalismo na
ordem jurídica: i) a conquista da força normativa dos princípios ii) a supe-
ração do positivismo jurídico, no sentido de que o método subsuntivo não
é mais suficiente para a aplicação do Direito; iii) a abertura dos métodos
de interpretação e aplicação do direito, ganhando relevo a ponderação,
a tópica e o método hermenêutico concretizador; iv) o surgimento do
pós-positivismo, caracterizado, grosso modo, pela reaproximação entre
direito e moral; e v) o processo de irradiação das normas constitucionais
por todo o ordenamento jurídico – processo este denominado filtragem
constitucional.. Em outras palavras, trata-se da constitucionalização do
direito, processo por força do qual não é mais possível interpretar e aplicar
o direito sem interpretar e aplicar a Constituição.

3. EFETIVIDADE

Uma Constituição pode ser caracterizada por guardar um conteúdo


baseado primordialmente em normas de organização do exercício do po-
der político (normas de organização) e normas de definição de direitos

354
LU I Z A N TÔ N I O R E I S J U N I O R , M A U R I C I O P I R E S G U E D E S , T E L S O N P I R E S ,
VA N E S S A V E L A S C O, H E R N A N D E S B R I TO R E I S ( O R G . )

fundamentais (normas definidoras de Direito). (SOUZA NETO; SAR-


MENTO, 2012, p. 14-15).
O direito público subjetivo, por sua vez, pode ser entendido como o
poder jurídico concedido por força do direito público a um indivíduo para poder exigir
do Estado, para fins de satisfação de seus próprios interesses, um determinado com-
portamento (MAURER, 2012, p. 160). Este conceito guarda um sentido
de valorização do individuo frente ao Estado, que, por seu turno, deve
respeito ao elenco de direitos constitucionalmente garantidos ao cidadão.
O direito público subjetivo imprime, portanto, de modo prático, direi-
tos de natureza pública cujo polo passivo é ocupado pelo Estado e cujo
adimplemento pode ser exigido perante os tribunais (sindicabilidade ou
justiciabilidade) (GALDINO, 2002, p. 146-157).
Maurer (2012, p. 162) aduz ainda que figura como pressuposto do di-
reito subjetivo a obrigação jurídica que corresponde para a outra pessoa, obrigação
esta que se baseia numa disposição jurídica objetiva. Isto quer significar
que a todo direito subjetivo corresponde um dever jurídico, que pode ou
não ser adimplido pela outra parte. Em contraposição, o direito potestati-
vo é um poder jurídico ao qual não corresponde um dever da outra parte,
para quem não há escolha senão submeter-se.
O direito público subjetivo tem por fundamento uma Administração
Pública orientada pelo interesse público. Neste sentido, Maurer (2012, p.
163) aponta que existe um direito público subjetivo na medida em que
uma norma imperativa não só serve ao interesse público, como também
ao interesse particular do cidadão. Em outras palavras, um direito público
subjetivo nasce somente se a vantagem ou proveito favorável ao cidadão
tenha sido querida e buscada legalmente.
Trata-se da interposição legislativa, por meio da qual uma norma cons-
titucional de eficácia contida adquire densidade normativa e passa a veicular,
concretamente, direitos e deveres. Direitos estes subjetivos, porque podem,
de um lado, ser reclamados, mas, de outro, também podem ser frustrados.
Até as normas de eficácia limitada, que podem futuramente ser restringidas
por legislação infraconstitucional, são alcançadas por esta ideia.
Em um exercício interpretativo, até as normas de eficácia plena o
são, se considerarmos que precisam ter seu alcance e limite regulamen-
tados para sejam racionalmente aplicadas. Exemplo notório é o direito
à saúde, definido genericamente nos arts. 6º e 196, CRFB como direito

355
DIMENSÕES JURÍDICAS DAS POLÍTICAS PÚBLICAS – VOL. 1

social e direito de todos e dever do Estado, respectivamente, mas que


nem por isso quer significar “direito a tudo”. Neste sentido, a Lei nº
12.401/2011 introduziu a definição do conceito de assistência terapêu-
tica integral: consiste na dispensação de medicamentos e produtos que
estejam em conformidade com os Protocolos Clínicos e Diretrizes Te-
rapêuticas (PCDT) do SUS, e na oferta de procedimentos terapêuticas
inscritos nas tabelas do SUS.
Por outro lado, retomando a teorização de Maurer acerca da condição
de existência de um direito público subjetivo, qual seja, a intermediação
legislativa, é possível sustentar que os comandos constitucionais do Título
II (Dos direitos e garantias fundamentais), no que toca os direitos sociais, não
possuiriam eficácia plena, a despeito do art. 5º, § 1º, CRFB.
Estudos já apontaram a relação direta entre a positivação dos direi-
tos sociais e o consequente direito à sua reclamação perante o Judiciário.
Consoante trabalho realizado por Olsen (2006, p. 45), o direito funda-
mental à saúde, por exemplo, teria na Constituição de 1988 uma disci-
plina que lhe permite atribuir tanto posições jurídicas inerentes a direitos
prestacionais em sentido estrito – v.g. direito ao tratamento hospitalar e a
medicamentos – como a prestação em sentido amplo – v.g. direito à edição
de leis que regulamentem o SUS.
O embate doutrinário acerca do conteúdo normativo da Constitui-
ção tem como principal ponto de controvérsia os limites da exigibilidade
das normas veiculadoras de direitos fundamentais. Explica-se. Consoante
as lições trazidas por Virgílio Afonso da Silva, a tese tradicional de cate-
gorização entre normas de eficácia plena, contida e limitada é rebatida
sob a premissa de que todos os direitos fundamentais seriam passíveis de
restrição (SILVA, 2006, p. 16).
Segundo o autor, a crença na eficácia plena de todas as normas vei-
culadoras de direitos fundamentais solidificou a ideia de que não é nem
necessário nem possível agir para desenvolver sua eficácia, pois, se esta é
plena, nada mais precisa ser feito. Ao revés, mitigando-se esta ideia, torna-
-se possível exigir, por exemplo, ações que criem as condições não apenas
de uma imprensa livre, mas de uma imprensa livre, plural e democrática
(SILVA, 2006, p. 34).
A restrição passível de se abater sobre os direitos fundamentais é especial-
mente visível quanto aos direitos sociais. Em razão da dependência de recur-

356
LU I Z A N TÔ N I O R E I S J U N I O R , M A U R I C I O P I R E S G U E D E S , T E L S O N P I R E S ,
VA N E S S A V E L A S C O, H E R N A N D E S B R I TO R E I S ( O R G . )

sos econômicos para a sua efetivação, assumiu-se que as normas que consa-
gram direitos sociais teriam a feição de normas programáticas, dependentes,
portanto, da formulação de políticas públicas para se tornarem exigíveis.
Dizer, por exemplo, que a norma inscrita no art. 196, CRFB con-
substancia tão somente norma programática – incapaz de produzir efeitos
concretos, apenas indicando diretrizes a serem observadas pelo poder públi-
co – significaria negar a força normativa da Constituição. Não obstante, o
mesmo dispositivo constitucional informa que o direito à saúde será garan-
tido por meio de políticas sociais e econômicas, permitindo ao intérprete
concluir que a própria evolução da medicina e as oscilações do jogo polí-
tico-eleitoral implicar-lhe-ia um viés programático. Isto porque sempre há
uma nova descoberta, um novo exame, um novo prognóstico ou procedi-
mento cirúrgico, uma nova doença ou a volta de uma doença supostamente
erradicada, bem como há alterações de agenda política, de acordo com os
ciclos de poder (STF, STA 175 AgR/CE, 2010, DJe 30/04/2010).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O constitucionalismo americano, marcado pela macrocefalia do Ju-


diciário, e o constitucionalismo europeu, enaltecedor do Legislativo, re-
presentaram os dois eixos teóricos sobre a efetivação da vontade popular.
Cada um à sua maneira, procuraram resolver o problema em torno da
interpretação e a da aplicação da Constituição.
O curso da História mostrou que a interpretação formalista da norma
jurídica não é suficiente para concretizar a justiça. E esta afirmação se jus-
tifica pelos excessos cometidos durante a Segunda Guerra Mundial, que
tiveram como resposta a ascensão do pós-positivismo ou constitucionali-
zação da ordem jurídica: estas expressões significaram, em breves linhas,
a mudança de leitura do ordenamento jurídico, que passou a ser encarado
pelo viés axiológico, com o reconhecimento da normatividade dos prin-
cípios (MAIA; DINIZ, 2006).
Neste ínterim, ganharam espaço como objeto privilegiado de tutela
jurídica os direitos sociais, e o argumento fundamental para a proteção
da saúde, do trabalho, da moradia, da educação, por exemplo, redun-
dou da proteção da dignidade da pessoa humana, princípio-base do da
ordem jurídica. Impende destacar, contudo, que este raciocínio mitiga

357
DIMENSÕES JURÍDICAS DAS POLÍTICAS PÚBLICAS – VOL. 1

a força das lutas sociais em prol da concretização de tais direitos. Ora,


direitos que são, não constituem atributos inatos, antes, são produto de
reivindicação social.
Este foi, em síntese, o processo político inaugurado com o fim da
Segunda Grande Guerra: ascensão e declínio, na Europa, do Estado de
bem-estar social; complexificação das relações capitalistas de trabalho; ex-
pansão e esgotamento de um novo autoritarismo como modo de gover-
nar; erupção de movimentos sociais; e difusão do neoconstitucionalismo
como novo paradigma para as ordens constitucionais ocidentais. Esta mis-
celânea de influências refletiu na redação da Constituição de 1988, que se
apresentou pródiga em direitos fundamentais.
No Brasil, o problema da concretização de direitos sociais foi histori-
camente enfrentado pela via judicial, em movimento de empoderamento
do Judiciário – que se outorgou a qualidade de intérprete final da Cons-
tituição. Para tanto, delimitou no caso concreto o alcance de normas cons-
titucionais veiculadoras de direitos sociais, o que causou, a longo prazo,
a fragilização dos arranjos administrativos voltados para implementação
de equipamentos sociais (produtos e serviços de saúde, de educação, de
saneamento básico, de moradia, etc.). Isto porque as decisões administra-
tivas neste sentindo não raro foram neutralizadas pela pena do magistrado,
por meio de decisões liminares concedendo tutelas provisórias contra a
Fazenda Pública, sem, no entanto, considerar as consequências práticas
da decisão.
O cenário consolidado desde a promulgação da Constituição de 1988
evidenciou que esta relação desarmônica entre Poderes mais prejudica que
tutela direitos sociais, uma vez que, por se tratar de questões de fundo co-
letivo, precisam ser pensadas com um olhar coletivo, e não simplesmente
pela visão de túnel do caso concreto.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ALEXY, Robert. Teoria dos Direitos Fundamentais. Tradução Vir-


gílio Afonso da Silva. São Paulo: Malheiros Editores, 2008.

BARCELLOS, Ana Paula de. A eficácia dos princípios constitucio-


nais: o princípio da dignidade da pessoa humana. 3ª ed. revista
e atualizada. Rio de Janeiro: Renovar, 2011.

358
LU I Z A N TÔ N I O R E I S J U N I O R , M A U R I C I O P I R E S G U E D E S , T E L S O N P I R E S ,
VA N E S S A V E L A S C O, H E R N A N D E S B R I TO R E I S ( O R G . )

BARROSO, Luís Roberto. O controle de constitucionalidade no


direito brasileiro: exposição sistemática da doutrina e análise
crítica da jurisprudência. 7. ed. rev. e atual. – São Paulo: Saraiva,
2016.

BARTOLOMEI, Carlos Emmanuel Fontes; CARVALHO, Mariana Si-


queira de & DELDUQUE, Maria Célia. A Saúde é um Direito!
In Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 27, n. 65, p. 184-191, set./
dez. 2003.

BOBBIO, Norberto. A Era dos Direitos. Tradução Carlos Nelson


Coutinho; apresentação de Celso Lafer. Nova ed. Rio de Janeiro:
Elsevier, 2004. 7ª reimpressão.

BRANDÃO, Rodrigo. Supremacia judicial versus diálogos consti-


tucionais: a quem cabe a última palavra sobre o sentido da
constituição? Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2017.

ENTERRÍA, Eduardo García de. La Constitución como norma y el


Tribunal Constitucional. 3. Ed., 1985.

FONTE, Felipe de Melo. Políticas públicas e direitos fundamentais.


2. ed. – São Paulo: Saraiva, 2015.

GALDINO, Flávio. O Custo dos Direitos. In Legitimidade dos direitos


humanos / organizador Ricardo Lobo Torres – Rio de Janeiro: Re-
novar, 2002. p. 139-22.

HAMILTON, Alexander; JAY, John; MADISON, James. O Federa-


lista. Vol. 3. Rio de Janeiro: Typ. Imp. e Const. de J. Villeneuve
e Comp., 1840. Disponível em: <https://bit.ly/35rHoQR>. Acesso
em 21 mar. 2020.

HOLMES, Stephen; SUNSTEIN, Cass R. O custo dos direitos [livro


eletrônico]: por que a liberdade depende dos impostos. Tra-
dução de Marcelo Brandão Cipolla. -- São Paulo : Editora WMF
Martins Fontes, 2019.

KRELL, Andreas Joachim. Realização dos direitos fundamentais


sociais mediante controle judicial da prestação dos serviços

359
DIMENSÕES JURÍDICAS DAS POLÍTICAS PÚBLICAS – VOL. 1

públicos básicos: uma visão comparativa. In Revista de infor-


mação legislativa, v. 36, n. 144, out./dez. 1999, p. 239-260.

MAIA, Antônio Cavalcanti. DINIZ, Antônio Carlos. Pós-positivis-


mo. In: BARRETTO, Vicente de Paula (Coord.). Dicionário de
Filosofia do Direito. São Leopoldo – Rio de Janeiro: UNISINOS;
Renovar, 2006.

MAURER, Hartmut. Derecho administrativo alemán. Instituto de


Investigaciones Jurídicas. Serie: Doctrina Jurídica, n. 637. Uni-
versidad Nacional Autónoma de México. México, 2012.

MONTESQUIEU, Charles de Secondat, Baron de. Do espírito das


leis. Vol. 1. São Paulo: Editora Nova Cultural Ltda., 1997.

OLSEN, Ana Carolina Lopes. A eficácia dos direitos fundamentais


sociais frente a reserva do possível. Dissertação (mestrado) - Uni-
versidade Federal do Paraná, Setor de Ciências Jurídicas, Programa
de Pós-Graduação em Direito. Defesa: Curitiba, 2006. Disponível
em: <https://bit.ly/2zpqUsW>. Acesso em 28 Ag. 2018.

PEREIRA, Jane Reis Gonçalves. Direitos sociais, Estado de Direito


e desigualdade: reflexões sobre as críticas à judicialização dos
direitos prestacionais. In Revista Quaestio Iuris, vol. 8, n. 3, Rio
de Janeiro, 2015, p. 2080-2114.

ROESLER, Claudia Rosane. O papel de Theodor Viehweg na fun-


dação das teorias da argumentação jurídica. Revista Eletroni-
ca Direito e Política, Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em
Ciência Juridica da UNIVALI, Itajaí, v.4, n.3, 3º quadrimestre de
2009.

SARMENTO, Daniel. O neoconstitucionalismo no Brasil: riscos


e possibilidades. In George Salomão Leite; Ingo Wolfgang Sarlet.
(orgs.), Direitos Fundamentais e Estado Constitucional. Estudos em
homenagem a J. J. Gomes Canotilho, São Paulo; Coimbra: Editora
Revista dos Tribunais; Coimbra Editora, 2009, pp. 9-49.

SILVA, Virgílio Afonso da. O Judiciário e as políticas públicas: en-


tre transformação social e obstáculo à realização dos direi-

360
LU I Z A N TÔ N I O R E I S J U N I O R , M A U R I C I O P I R E S G U E D E S , T E L S O N P I R E S ,
VA N E S S A V E L A S C O, H E R N A N D E S B R I TO R E I S ( O R G . )

tos sociais. In: Cláudio Pereira de Souza Neto & Daniel Sarmento,
Direitos sociais: fundamentação, judicialização e direitos sociais em
espécies, Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008. P. 587-599.

SOUZA NETO, Cláudio Pereira de; SARMENTO; Daniel. Direito


constitucional: teoria, história e métodos de trabalho. 1. ed.
Belo Horizonte: Fórum, 2012.

STF. Agravo Regimental na Suspensão de Tutela Antecipada nº


175/CE. Relator: Ministro Gilmar Mendes. DJ: 30/04/2010. Dis-
ponível em: <https://bit.ly/2KLc9Vb>. Acesso em: 19 jul 2019.

SUNDFELD, Carlos Ari. Direito Administrativo para céticos. 2. ed.


rev. e ampl. São Paulo: Malheiros Editores, 2014.

TELLES, Vera da Silva. Direitos sociais: afinal do que se trata? Revis-


ta USP, n. 37, p. 34-45, 30 maio 1998.

WILLEMAN, Marianna Montebello. Desconfiança institucionali-


zada, democracia monitorada e Instituições Superiores de
Controle no Brasil. Revista de Direito Administrativo, Rio de Ja-
neiro, v. 263, p. 221-250, maio/ago. 2013.

361
A IMPORTÂNCIA DAS POLÍTICAS
PÚBLICAS NO CONTEXTO
BRASILEIRO PARA A MANUTENÇÃO
DO ESTADO DE BEM ESTAR SOCIAL
Rafael Pimentel 58
Sabrina Cassol59
Danilo Scramin Alves60
Fabiana David Carles61

INTRODUÇÃO

A temática abordada no presente artigo foi pensada e desenvolvida


com o objetivo central de apresentar um olhar crítico sobre o descasso

58 Especialista em Direito do Trabalho e Processo do Trabalho, Especialista em Direito Cons-


titucional e em Direito Penal e Processual Penal, Mestre em Direito Constitucional pela UNB.
Docente de Direito no Instituto Federal do Acre – IFAC, Delegado de Polícia Civil.
59 Professora de Direito da UFAC – Universidade Federal do Acre. Doutoranda em Direito
pela Universidade de Brasília – UnB. Mestre em Direito e Especialista em Direito Processual
Civil pela Universidade de Santa Cruz do Sul - UNISC; Advogada.
60 Doutorando em Ciência Jurídica pela Universidade do Vale do Itajaí/UNIVALI, Mestre em
Direito pela Universidade de Marília. Especialista em Direito e Processo do Trabalho pela
Universidade Anhanguera e em Gastronomia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio
Grande do Sul. Bacharel em Direito pelo Centro Universitário Uninorte. Analista Processual
do Ministério Público do Estado do Acre e Professor do Centro Universitário Uninorte.
61 Doutora em Filosofia do Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-
-SP), é professora adjunta do Curso de Bacharelado em Direito da Universidade Federal do
Acre – Campus Floresta.

362
LU I Z A N TÔ N I O R E I S J U N I O R , M A U R I C I O P I R E S G U E D E S , T E L S O N P I R E S ,
VA N E S S A V E L A S C O, H E R N A N D E S B R I TO R E I S ( O R G . )

com a “questão” da inexistência, ou mesmo inefetividade das políticas


públicas na sociedade brasileira, pretendendo-se abrir espaço para uma
reflexão interdisciplinar acerca do assunto capaz de instigar novos ques-
tionamentos, análises e contribuições no tratamento das demandas sociais
pela implementção de políticas públicas efetivas.
Com base na perspectiva acima apresentada desenvolveu-se um es-
tudo voltado para as discussões e concepções sobre o tema no âmbito de
diversas àreas da literatura ao estabelecer sinergias entre a Filosofia, a So-
ciologia e o Direito, diálogo este fundamental para dar subsídios a pro-
blemática objeto da presente analise, qual seja: seriam as políticas públicas
essenciais a garantia do estado de bem estar social?
Com efeito, enquanto hipóteses de desenvolvimento da pesquisa pau-
tou-se na experimentação teórica que pôs-se a averigar se as políticas pú-
blicas são o caminho para a manutenção e devida estruturação do estado
de bem estar social. Logo, utilizou-se como instrumentos metodológicos
obras que tratam do assunto direta e indiretamente, conjuntamente com
legislações específicas do tema. Enquanto método de desenvolvimento do
raciocínio científico verificou-se ser o dialético o mais adequado.
A breve pesquisa inaugura a discussão apresentando a face do desen-
volvimento das políticas públicas no Brasil, para então, delimitar a forma e
demandas que as caracterizam e os objetivos a serem alcançados. Por fim,
apresenta o caminho teórico que coloca as políticas públicas na condição
de materilizadoras da justiça social e consequente garantidoras do estado
do bem estar social.

1. O ESTADO BRASILEIRO E O DESENVOLVIMENTO


DAS POLÍTICAS PÚBLICAS

A face comunitária e social do ser humano é um aspecto que de sua


natureza não pode ser desvinculado. Em verdade, é possível declarar, com
o endosso da sociologia, da filosofia e, certamente, do Direito, que o cor-
po social é um dos fundamentos básicos daquilo que define o indivíduo
enquanto ser, em realidade e racionalidade, como afirmaria Hegel nos
princípios mais básicos de seus estudos filosóficos.
Como pode-se compreender do que o autor alemão descreve em seus
“Princípios da Filosofia do Direito” (HEGEL, 1997, p. 44), o ser alcança

363
DIMENSÕES JURÍDICAS DAS POLÍTICAS PÚBLICAS – VOL. 1

sua liberdade na determinação em um domínio exterior. Neste sentido, o


ser livre deixa a abstração e alcança a concretude por meio da emancipação
do indivíduo no corpo social, numa síntese do sujeito para com o todo,
representado na comunidade que este ocupa.
A necessidade da formação de comunidades e grupos comunitários
amplos, devido aos benefícios de seguridade, de produção de mercadorias
e de trabalho, não excluiu, todavia, a carência de normas para a regula-
mentação devida das atividades exercidas dentro do contexto das diversas
interações sociais. Destarte, o que ocorreu no desenvolvimento das so-
ciedades ao redor do globo foi o surgimento de pactos sociais, expressos
ou implícitos, fundamentados em costumes e práticas ou alicerçados em
estatutos formalmente estabelecidos.

Chamamos de comunidade a uma relação social na medida em


que a orientação da ação social – seja no caso individual, na media
ou no tipo ideal – baseia-se em um sentido de solidariedade: o
resultado de ligações emocionais ou tradicionais dos participantes.
A relação social de sociedade, por outro lado, é o resultado da re-
conciliação e de um equilíbrio de interesses motivados por juízos
racionais, quer de valores, quer de fins. (WEBER, 2008, p. 71)

Estes pactos sociais, por sua vez, passaram por extenso desenvolvi-
mento, acompanhando a evolução das entidades sociais, de modo que
assumiram diversas formas e aplicações. Tanto como ocorreu com as ins-
tituições internacionais, o Estado brasileiro sofreu profundas mudanças,
principalmente no que se refere ao nível de intervenção das organizações
públicas para a efetivação e manutenção dos direitos sociais, tratando pri-
mordialmente daqueles considerados fundamentais a todo e qualquer in-
divíduo componente da sociedade brasileira.

Cada ordenamento jurídico pode ser visto como a expressão his-


tórica das concepções de justiça dominantes em uma determinada
sociedade. Isto é, os cidadãos e os juristas têm uma noção do que é
devido nas relações entre particulares (justiça comutativa), daquilo
que a comunidade deve aos particulares (justiça distributiva) e da-
quilo que estes devem à comunidade (justiça social). Em suma, as
idéias centrais sobre o que a justiça exige, nas suas várias espécies,

364
LU I Z A N TÔ N I O R E I S J U N I O R , M A U R I C I O P I R E S G U E D E S , T E L S O N P I R E S ,
VA N E S S A V E L A S C O, H E R N A N D E S B R I TO R E I S ( O R G . )

apresentam-se, de um modo mais ou menos explícito, no direito


positivo de cada comunidade. (BARZOTTO, 2003, p.14)

Dentre todas as ações que as instituições governamentais adotam para


atingir esse fim, é de extrema importância destacar o planejamento e apli-
cação das políticas públicas. Nesta parcela de seu cenário de atuação, o
Estado – determinado pelo pacto social como responsável pela adminis-
tração dos interesses do corpo coletivo – atua diretamente em questões
relativas ao seu dever de prestação plena e devida dos direitos essenciais.
Desta maneira, firma-se como competência da Administração Pública a
efetivação das ações sociais, protegendo de forma mais eficiente os direitos
e as garantias fundamentais da pessoa humana. As políticas públicas cons-
tituem, deste modo, modelos de ações sociais voltados para a compensa-
ção e harmonização de um ou mais contextos sociais específicos. Como
define Weber (2008):

A ação social (incluindo tanto a omissão como aquiescência) pode


ser orientada para as ações passadas, presentes ou futuras de outros.
Assim, pode ser causada por sentimentos de vingança de males do
passado, defesa contra perigos do presente ou contra ataques futu-
ros. Os outros podem ser indivíduos conhecidos ou desconheci-
dos, ou podem constituir uma quantidade indefinida. (WEBER,
2008, p. 37)

A execução destas políticas públicas é um requisito necessário para a


atividade administrativa estatal, consistindo em meio de ação não só re-
comendado como exigido nas normativas legais. A Lei 12.593/2012, que
instituiu o plano plurianual da União e possuía sua aplicabilidade dirigida
ao período compreendido entre os anos de 2012 e 2015 é um exemplo
disto: o texto legal determinou e definiu os meios de execução de políti-
cas públicas, afirmando, no artigo 3º, que o planejamento governamental
definidor das diretrizes, objetivos e metas para a implementação e a ges-
tão das políticas públicas deve priorizar o desenvolvimento sustentável e
as diretrizes adotadas devem ter como finalidade a “garantia dos direitos
humanos e a redução das desigualdades sociais, regionais, étnico-raciais e
de gênero” (art.4, I), promover bens e serviços à sociedade, além de in-
centivar e valorizar a educação.

365
DIMENSÕES JURÍDICAS DAS POLÍTICAS PÚBLICAS – VOL. 1

Desta maneira, se a existência do Estado social está profundamen-


te ligada à efetivação dos direitos individuais e coletivos, então a atuação
administrativa por meio de ações de políticas públicas não é só fenômeno
extraordinário, mas deve possuir teor de prática constante no exercício das
atividades estatais.

2. A APLICAÇÃO DAS AÇÕES SOCIAIS DE POLÍTICAS


PÚBLICAS

Uma vez observada a intrínseca relação de dependência da administra-


ção estatal para com as políticas públicas, é preciso compreender como os
direitos declarados constitucionalmente são garantidos via instituição destas
ações sociais. Para tanto, é necessário entender também como os objetivos
firmados constitucionalmente enquanto princípios essenciais para o funcio-
namento equitativo e produtivo da sociedade aplicam-se na prática.
Como pode-se deduzir por meio de uma célere observação, os serviços
nominados como políticas públicas são exercidos por meio da administra-
ção pública, e isto se dá por intermédio de programas e ações direciona-
dos a uma determinada comunidade. Estas ações podem manifestar-se de
distintos modos, mediante políticas sociais de prevenção e repressão à cri-
minalidade, ligadas ao desenvolvimento científico e avanço no saneamento
básico ou com fins de melhora nas instituições de ensino e investimentos
educacionais. É correto dizer que as políticas públicas ainda se estendem
por diversas outras áreas da gestão estatal, como ferramenta de garantia do
cumprimento destes deveres básicos da administração pública.
Estes bens e serviços prestados pelo Estado efetivam-se por intermé-
dio dos governantes, pessoas, organizações e instituições públicas e priva-
das encarregadas de assegurar o bem social e os direitos relacionados na
Constituição Federal. Estes atores estatais têm o dever de cumprir o que
dispõem a lei e criar, elaborar e instituir programas e ações destinadas a
asseverar os direitos individuais, coletivos, difusos e transindividuais.

A sociedade brasileira, no seu elenco de direitos fundamentais


constitucionais, explicitou uma determinada teoria dos bens que
são devidos, por justiça, aos seus membros. Alguns bens são devi-
dos todos, em virtude da absoluta necessidade para a plena reali-

366
LU I Z A N TÔ N I O R E I S J U N I O R , M A U R I C I O P I R E S G U E D E S , T E L S O N P I R E S ,
VA N E S S A V E L A S C O, H E R N A N D E S B R I TO R E I S ( O R G . )

zação humana (justiça social). Outros, são devidos em virtude da


posse de uma determinada qualidade (justiça distributiva). Outros
ainda, dizem respeito às trocas entre os particulares (justiça comu-
tativa). (BARZOTTO, 2003, p. 14)

Desta maneira, a política torna-se pública pois dedica-se a alterar uma


relação social existente, atuando em diversos campos institucionais para
produzir efeitos práticos àqueles atingidos por ela. Aplicada por entes esta-
tais, busca gerar modificações no status quo, a fim de garantir um resultado
contínuo na seara dos direitos sociais e fundamentais. Por conseguinte,
observa-se que por políticas públicas entende-se um conjunto de ações
que resulta de decisões, princípios, diretrizes, objetivos e normas para o
funcionamento de um ou mais aspectos de uma comunidade de determi-
nada área.

2.1. O objetivo da criação e instituição das políticas


públicas

Percebe-se que as políticas públicas se tratam de escolhas, uma vez


que culminam em distintos interesses de diferentes classes sociais, que exi-
gem do poder público ações que venham a dar o devido cumprimento aos
seus direitos fundamentais. Desta maneira, estas ações são os fragmentos
que almejam a harmonização dos serviços públicos e privados dos quais
desfruta o Estado para exercer seus objetivos primordiais e relevantes. As-
sim, as escolhas dos objetivos pela Administração Pública levam em consi-
deração a garantia dos interesses coletivos. Como afirma Barzotto (2003),
a respeito da Justiça Social – aspecto importante das políticas públicas,
abordado com maior detalhamento no seguimento do presente estudo – é
necessário compreender as nuances do campo de atuação das ações sociais
dos entes governamentais.

A ação do ser humano como animal social está sempre marcada


pela idéia do dever: viver em sociedade é viver em débito. Todos
devem algo a alguém, por razões distintas. Por isso, deve-se exa-
minar das razões que fundamentam os vários deveres de justiça.
(BARZOTTO, 2003, p. 10)

367
DIMENSÕES JURÍDICAS DAS POLÍTICAS PÚBLICAS – VOL. 1

Uma vez observados estes requisitos, a legalidade e os demais prin-


cípios constitucionais relativos à administração, as políticas públicas serão
postas em discussão, de forma que serão também debatidos os critérios
de escolha das atividades que serão necessariamente desenvolvidas na co-
munidade. A elaboração das políticas públicas deve também obedecer a
procedimentos e critérios de ordem social e financeira, além do dever que
a administração possui de verificar a sua urgência, pois elas podem benefi-
ciar ou prejudicar a sociedade, a depender de como são executadas.
Na avaliação de uma ação deste tipo, os princípios gerais de interpre-
tação do Direito aplicam-se de modo similar ao que ocorre na interpreta-
ção de outros textos normativos. Em verdade, nas proposições de políticas
públicas, os princípios desempenham função primordial, com enfoque no
princípio da legalidade, que é a base do Estado democrático de Direito,
garantidor de todas as demandas jurisdicionais. Com semelhante impor-
tância, o princípio do respeito à dignidade humana também assume um
papel relevante, uma vez que, regendo os demais princípios, tem como
objetivo a preservação do ser humano, compreendendo a sua concepção,
nascimento e morte.
Devido à necessidade de uma complexa análise técnica do teor deste
tipo de ação, para o planejamento, construção e aplicação das políticas pú-
blicas é preciso realizar audiências públicas, previamente estabelecidas no
plano diretor ou contidas no Estatuto da Cidade de cada estado.

3. AS POLÍTICAS PÚBLICAS E O ESTADO DE BEM ESTAR


SOCIAL

A aplicação de políticas públicas na condução e administração dos


interesses, direitos e deveres do corpo social por parte dos entes estatais
é fundamental para a seguridades dos direitos fundamentais e garantias
essenciais à vida em comunidade. Entretanto, é importante ressaltar tam-
bém a indispensabilidade destas ações – cujo fim é a transição do dever-ser
para o ser de fato – no que tange à existência do próprio Estado de Bem
Estar Social.
Nesta forma de administração pública, o Estado designa para si a respon-
sabilidade de atuar enquanto garantidor dos interesses coletivos, de modo que
passa a ser responsabilidade das instituições do poder público a efetivação dos

368
LU I Z A N TÔ N I O R E I S J U N I O R , M A U R I C I O P I R E S G U E D E S , T E L S O N P I R E S ,
VA N E S S A V E L A S C O, H E R N A N D E S B R I TO R E I S ( O R G . )

direitos fundamentais expressadas no corpo de seus textos normativos, como


ocorre com o Estado brasileiro, no que refere-se aos princípios normativos,
fundamentalmente gerados na Carta Magna nacional.
O cumprimento da natureza do Estado de Bem Estar Social deve, to-
davia, ser firmado em condições técnicas efetivas, para que se promovam
os objetivos constitucionais almejados. Desta forma, as alternativas ava-
liadas pelo Estado para alcançar a emancipação do corpo social ocorrem
por intermédio de ações ou demandas sociais que podem ser instituídas
somente pelo Estado ou pelo compartilhamento de deveres públicos com
a iniciativa privada ou com o Terceiro Setor. Cada um destes aspectos da
ação Estatal por meio de políticas públicas compõem um fator importante
do Estado de Bem Estar Social, que se trata da concretização dos princí-
pios normativos por intermédio da atuação direta das entidades públicas
no campo das dinâmicas sociais.

3.1. O conceito de justiça social na formação do estado


de bem estar social

Neste contexto, a produção de políticas públicas no Estado que in-


tenta efetivar os direitos fundamentais ambiciona, em níveis maiores ou
menores – a depender da modalidade de ação social e também sua ampli-
tude – atingir igualdade de direitos entre os distintos indivíduos que fazem
parte do corpo comunitário, por meio de efeitos do que entende-se por
Justiça Social. Esta se trata de um conceito que parte de uma noção aristo-
télica de justiça, no que se refere à estruturação da igualdade de condições
entre os indivíduos que formam determinada comunidade.
Aristóteles define em sua “Ética à Nicômaco” (ARISTÓTELES,
1991, p. 96), a justiça como a ação ou impulso de desejar aquilo que é jus-
to e trata em termos mais específicos desta ideia, de modo que afirma que
o desígnio do homem justo é a garantia da felicidade dos componentes
da sociedade política: a lei justa se baseia na proteção e condução do bem
comum daqueles que se prestam ao seu regimento.

Essa forma de justiça é, portanto, uma virtude completa, porém


não em absoluto e sim em relação ao nosso próximo. (...) E ela é
a virtude completa no pleno sentido do termo, por ser o exercício

369
DIMENSÕES JURÍDICAS DAS POLÍTICAS PÚBLICAS – VOL. 1

atual da virtude completa. É completa porque aquele que a possui


pode exercer sua virtude não só sobre si mesmo, mas também so-
bre o seu próximo, já que muitos homens são capazes de exercer
virtude em seus assuntos privados, porém não em suas relações
com os outros. (ARISTÓTELES, 1991, p. 96-97)

Ainda tratando desta forma do conceito de Justiça, Barzotto


(2003) afirma que

No tocante à justiça social, o ser humano é considerado como pes-


soa humana que é membro de uma comunidade específica. O ser
humano é considerado “em comum” (Tomás de Aquino) e não na
sua singularidade. Isto é, não é X como contratante ou vítima (jus-
tiça comutativa) ou como portador de uma qualidade específica
que o torna destinatário de um bem ou encargo (justiça distributi-
va), mas é X simplesmente na sua qualidade de pessoa humana que
é considerado como titular de direitos e deveres na ótica da justiça
social. (BARZOTTO, 2003, p. 8)

Assim, a Justiça Social consiste justamente na consideração do ser hu-


mano em igualdade de condições com seus semelhantes, de modo que
os preceitos essenciais, aqueles direitos considerados primordiais, não lhe
são devidos apenas enquanto ofendido, enquanto indivíduo desprovido
de condições ideais de convívio social, mas enquanto pessoa dotada de
direitos tanto quanto aqueles que o circundam no contexto comunitário.
Neste sentido, considera-se a Justiça Social como um preceito fundamen-
tal na avaliação dos interesses individuais e coletivos.
Desta maneira, é possível construir a ideia de que as ações de políticas
públicas, dentro do Estado do Bem Estar Social e do contexto de apli-
cação da Justiça Social, nada mais são do que o diálogo das necessidades
do indivíduo para com a comunidade que o rodeia, o que, frente à noção
de que as políticas públicas são ações sociais exclusivas do Estado, gera a
compreensão de que cabe também ao cidadão, na expressão de seus inte-
resses, contribuir para a formulação de meios mais efetivos na construção
de ferramentas para a garantia dos requisitos fundamentais da vida em so-
ciedade.

370
LU I Z A N TÔ N I O R E I S J U N I O R , M A U R I C I O P I R E S G U E D E S , T E L S O N P I R E S ,
VA N E S S A V E L A S C O, H E R N A N D E S B R I TO R E I S ( O R G . )

A justiça social, por sua vez, trata das relações do indivíduo com a
comunidade. (...) Deste modo, a justiça social, ao tratar daquilo que é
devido à comunidade, não faz nada além de determinar quais são os
deveres em relação a todos os membros da comunidade. Assim, os de-
veres de proteção ao meio ambiente, no direito ambiental, dizem res-
peito, diretamente, àquilo que o indivíduo deve à comunidade como
um todo, mas indiretamente, a todos os membros da comunidade.
Não faz sentido, dizer que, por um dever em relação a X ou Y, como
particulares, uma floresta não pode ser destruída. Mas é perfeitamente
correto afirmar que isto é devido também a X ou Y como membros
da comunidade, pois no limite, os deveres de direito ambiental têm
como sujeito titular de direitos cada um dos membros que integram a
comunidade. Assim, a justiça social, ao regular as relações do indiví-
duo com a comunidade, não faz mais do que regular as relações do in-
divíduo com outros indivíduos, considerados apenas na sua condição
de membros da comunidade. (BARZOTTO, 2003, p. 6)

Desta forma, a Justiça Social atua no que Barzotto (2003, p. 7) classi-


fica como “reconhecimento”, ou seja, a prática de considerar os indivíduos
componentes da sociedade enquanto sujeitos de direito, seres que possuem
fim em si mesmos; neste sentido, a Justiça Social classifica-se como forma
de identificação mútua dos sujeitos e da coletividade como um todo, enten-
dendo cada ser enquanto dotado de certas prerrogativas essenciais. Assim, o
ser não é pessoa de direito devido sua possível condição de ofendido – seja
pelo contexto em que vive, seja por uma ofensa de direito dada por outro
cidadão – mas porque a sua convivência em sociedade lhe outorga esta con-
dição de igualdade para com seus semelhantes. A sua existência na comuni-
dade é o que sintetiza a sua dignidade e suas garantias fundamentais.
A Justiça Social só alcança racionalidade e realidade na dinâmica das
relações sociais. É nos vínculos comunitários que o ser constrói os seus
direitos e deveres, neste ponto implicando numa responsabilidade que
conversa diretamente com os direitos de seus concidadãos. Aí entra a fi-
gura do Estado de Bem Estar Social, enquanto mediador dos interesses e
assegurador das condições básicas da vida coletiva, cumprindo com seus
objetivos por meio da aplicação de Políticas Públicas, direcionadas aos di-
versos contextos sociais específicos, almejando sempre a harmonização
das realidades comunitárias.

371
DIMENSÕES JURÍDICAS DAS POLÍTICAS PÚBLICAS – VOL. 1

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Apesar de ser um pequeno recorte dentro de um mar de demandas


e possibilidades o singelo estudo propôs-se a clarificar o fato de que as
políticas públicas são indispensáveis para a efetivação do estado de bem
estar social.
Logo, constatou-se que apesar de ser recorrentemente celebrado o
fato do estado brasileiro ser uma nação que garante o bem estar social,
ao menos por ora tem-se apenas o desenho de um ideal objeto orgulho
infundado – ouso afirmar dissimulado – daqueles que detem o poder de
direção nas mãos.
Não obstante, a dinâmica de funcionamente e administração da so-
ciedade brasileira funda-se muito mais na proclamação de direitos capazes
de caracterizá-la como uma sociedade plena em Justiça Social do que vol-
tar a ação governamental para garantir a efetiva prestação dos já “assegura-
dos” direitos fundamentais.
Por derradeiro, o cenário com o qual se depara pode ser comparado a
uma ideia de esquizofrenia político-social dada a inexistência de aderencia
com a realidade.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ALEXY, Robert. Teoria dos Direitos Fundamentais. Trad. Virgílio


Afonso da Silva. São Paulo: RT, 1973.

ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco e Poética. São Paulo: Nova Cul-


tural, 1991;

BARZOTTO, Luis Fernando. Justiça Social-Gênese, estrutura e aplica-


ção de um conceito. Revista Jurídica da Presidência, v. 5, n. 48,
2003. Disponível em: < https://revistajuridica.presidencia.gov.br/in-
dex.php/saj/article/view/747>. Acesso em 03 set. 2020.

BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa


do Brasil. Brasília, DF: Senado Federal, 1988. Disponível em: <https://
www.google.com.br/search?q=constitui%C3%A7%C3%A3o+fede-
ral+em+pdf&ie=utf-8&oe=utf-8&client=firefox-b&gws_rd=cr&ei=eh-
VoWbSUKoOBwgSo7YjYDQ>. Acesso em: 02 set. 2020.

372
LU I Z A N TÔ N I O R E I S J U N I O R , M A U R I C I O P I R E S G U E D E S , T E L S O N P I R E S ,
VA N E S S A V E L A S C O, H E R N A N D E S B R I TO R E I S ( O R G . )

BRASIL. Lei nº 12.593, de 18 de janeiro de 2012. Cria a Lei que ins-


titui o Plano Plurianual da União, e dá outras providências.
Brasília, DF: Senado Federal, 2012. Disponível em: < http://www.
planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2011-2014/2012/Lei/L12593.htm>.
Acesso em 02 set. 2020.

FREY, Klaus. Políticas públicas: um debate conceitual e reflexões refe-


rentes à prática da análise de políticas públicas no Brasil. Planeja-
mento e políticas públicas, n. 21, 2009. Disponível em:< http://
desafios2.ipea.gov.br/ppp/index.php/PPP/article/view/89>. Acesso
em 02 set. 2020.

HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. Princípios da filosofia do direito.


São Paulo: Martins Fontes, 1997;

HÖFLING, Eloisa de. Estado e políticas (públicas) sociais. Cadernos


Cedes, v. 21, n. 55, p. 30-41, 2001. Disponível em:< https://www.
scielo.br/scielo.php?pid=S0101-32622001000300003&script=sci_
arttext&tlng=pt>. Acesso em 02 set. 2020.

SARMENTO, Daniel. Dignidade da pessoa humana: conteúdo, tra-


jetórias e metodologia / Daniel Sarmento. Belo Horizonte: Fórum,
2016.

SARMENTO, Daniel. Direitos fundamentais e relações privadas.


Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2004.

SOUZA, Celina. Políticas públicas: uma revisão da literatura. Sociolo-


gias, n. 16, p. 20-45, 2006. Disponível em:< https://www.scielo.br/
scielo.php?pid=S1517-45222006000200003&script=sci_arttext>.
Acesso em 01 set. 2020.

WEBER, Max; DELAUNAY, Gerard Georges; FRIAS, Rubens Eduar-


do Ferreira. Conceitos básicos de sociologia. São Paulo: Centau-
ro, 2008;

373
TRÁFICO DE MULHERES NA
AMAZÔNIA: A IMPORTÂNCIA DA
GARANTIA E EFETIVAÇÃO DOS
DIREITOS HUMANOS FRENTE AO
COMBATE E ENFRENTAMENTO AO
TRÁFICO DE MULHERES NA REGIÃO.
Tânia Nunes Esashika62
Thirso Del Corso Neto63
Ygor Felipe Távora da Silva64

Introdução

Pensar na Amazônia nos remete a pensar em riquezas naturais, vastos


recursos hídricos, florestas exuberantes e grande biodiversidade, porém
esta região de grandes riquezas e vasta extensão territorial também é ce-
nário de um dos crimes mais repulsivos, o tráfico de seres humanos. Este
artigo aborda as problemáticas referentes ao tráfico internacional de mu-
lheres na Amazônia, tema relevante aos Direito Humanos e às Relações
Internacionais, expondo o conceito do crime, evolução, intensificação ao

62 Graduanda pela Universidade do Estado do Amazonas.


63 Mestre em Direito Ambiental pela Universidade do Estado do Amazonas, Pós-graduado
em Direito Penal e Processual Penal pela Faculdade ESBAM.
64 Doutor em Geografia pela Universidade Federal de Goiás, Mestre em Direito Ambiental
pela Universidade do Estado do Amazonas, Pós-graduado em Direito do Trabalho e Processo
do Trabalho e Direito Previdenciário pelo Centro Universitário CIESA.

3 74
LU I Z A N TÔ N I O R E I S J U N I O R , M A U R I C I O P I R E S G U E D E S , T E L S O N P I R E S ,
VA N E S S A V E L A S C O, H E R N A N D E S B R I TO R E I S ( O R G . )

longo dos anos, principais causas que facilitam a efetivação do crime na


região, a utilização da região amazônica como principal rota nacional e
internacional do tráfico de pessoas no Brasil e a interface do tema com os
direitos humanos.
Impulsionado por diversos fatores, como a globalização, pobreza,
vasta extensão territorial e falta de investimentos em políticas públicas,
que o crime se expandiu na Amazônia, envolvendo principalmente o co-
mércio internacional de mulheres. É neste contexto, neste outro lado da
Amazônia exuberante, que poucos observam que este estudo se direciona,
ao demonstrar um crime tão recorrente, porém com pouca notoriedade.
Neste sentido é importante destacar que existe uma carência de estu-
dos e estatísticas precisas acerca do delito. O descaso de muitos governos
com a situação do tráfico na região faz com que haja dados desatualizados
e imprecisos, o que dificulta a compreensão e o combate ao crime na re-
gião. Desta forma este estudo busca de forma relativa informar acerca do
fenômeno na Amazônia, não especificamente quantificar ou mensurar a
ocorrência do delito.
O embasamento e formulação do conteúdo exposto efetivaram-se
através do método qualitativo, descritivo, indutivo e dedutivo, com a
utilização de doutrinas, legislações, jurisprudências e artigos científicos.
A metodologia utilizada foi à bibliográfica, que consiste na exposição do
pensamento de vários autores (Ligia Simonian, Marcel Hazeu e Damásio
de Jesus) que escreveram acerca do tema escolhido.
O artigo foi desenvolvido em quatro tópicos, o primeiro capítulo está
direcionado ao conceito de Tráfico de Pessoas, traçando as principais ca-
racterísticas que envolvem o crime, trazendo a sua definição e como o
delido é efetivado no Brasil. O segundo capítulo está voltado ao Tráfico
de Mulheres na Amazônica, onde se expõe os fatores históricos e geográ-
ficos que contribuíram para a comercialização e exploração da mulher no
ambiente local. Apresentando ainda ao final do capitulo como ocorre o
tráfico de pessoas na região.
No terceiro capítulo é apresentado as principais causas que facilitam a
efetivação do tráfico de mulheres na Amazônia, quais sejam, globalização,
pobreza, discriminação, violência doméstica, vasta amplitude territorial
atrelada a falta de fiscalização e investimentos e o turismo sexual. Expon-
do ainda com base nos dados da PESTRAF – Pesquisa sobre Tráfico de

375
DIMENSÕES JURÍDICAS DAS POLÍTICAS PÚBLICAS – VOL. 1

Mulheres, Crianças e Adolescentes para fins de Exploração Sexual Co-


mercial e ENAFRON - Diagnóstico sobre o Tráfico de Pessoas nas áreas
de fronteira, a utilização constante da região amazônica como principal
rota nacional e internacional do tráfico de pessoas no Brasil, principal-
mente nas áreas de fronteiras.
No quarto capitulo demonstra-se um panorama acerca da importância
da garantia dos direitos humanos e do princípio da dignidade da pessoa hu-
mana frente ao combate e enfrentamento ao Tráfico de Pessoas na região
Amazônica. Já na conclusão aponta-se a necessidade de promover a efetiva-
ção das políticas públicas em relação à prevenção e combate ao crime.
Através deste estudo, busca-se apontar a incidência do tráfico de
mulheres na região amazônica, um crime deplorável, que comercializa
seres humanos, viola direito humanos fundamentais e expões mulheres a
situações humilhantes e degradantes. Com intuito principal de produzir
uma reflexão acerca do problema, espera-se uma maior promoção e efe-
tivação dos direitos humanos, levando em consideração as peculiarida-
des da região, principalmente no tocante a criação de políticas públicas
voltadas à prevenção, proteção e resgate das mulheres vítimas do tráfico
na Amazônia.

1. TRÁFICO DE PESSOAS NO BRASIL

O tráfico de pessoas é o recrutamento, transferência, transporte, alo-


jamento ou o acolhimento de pessoas, recorrendo à ameaça ou uso da for-
ça ou a outras formas de coação, ao rapto, à fraude, ao engano, ao abuso de
autoridade ou à situação de vulnerabilidade ou à entrega ou aceitação de
pagamentos ou benefícios para obter o consentimento de uma pessoa que
tenha autoridade sobre outra para fins de exploração. A exploração com-
preende, pelo menos, a exploração da prostituição de outrem ou outras
formas de exploração sexual, o trabalho ou serviços forçados, a escravatura
ou práticas análogas à escravatura ou o transplante de órgãos.
O conceito acima exposto foi extraído do art. 3° do Protocolo Adi-
cional à Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado
Transnacional Relativo à Prevenção, Repressão e Punição do Tráfico de
Pessoas, em Especial Mulheres e Crianças, adotado em Nova York em 15
de novembro de 2000, o chamado “Protocolo de Palermo”.

376
LU I Z A N TÔ N I O R E I S J U N I O R , M A U R I C I O P I R E S G U E D E S , T E L S O N P I R E S ,
VA N E S S A V E L A S C O, H E R N A N D E S B R I TO R E I S ( O R G . )

A comercialização de pessoas se intensificou ao logo dos nos anos,


de acordo com o mais recente Relatório Global sobre Tráfico de Pes-
soas divulgado pelo Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime
(UNODC), o número de casos atingiu um recorde em 13 anos: enquan-
to, em 2003, menos de 20 mil casos foram registrados; em 2016, o núme-
ro subiu para mais de 25 mil. (ONU, 2019)
Damásio de Jesus afirma que o Brasil seja um dos principais países da
América Latina a contribuir para o tráfico internacional de pessoas, sendo
cerca de 75 mil mulheres e crianças brasileiras traficadas para a Europa. O
Brasil passou de país de destino, para país fornecedor do tráfico humano,
especialmente mulheres e crianças (JESUS, 2003).
Trata-se de um crime frequente com uma alta incidência, porém
com visibilidade no país, principalmente no tocante a região norte. Há
ainda uma ausência de dados oficiais e estáticas acerca do crime, a única
pesquisa abrangente realizada foi a PESTRAF - Pesquisa sobre Tráfico de
Mulheres, Crianças e Adolescentes para Fins de Exploração Sexual Co-
mercial no Brasil, realizada no ano de 2000. A carência de informações
acerca do crime dificulta seu enfrentamento e expõe o descaso do governo
em relação ao delito.
Existem diversas modalidades de Tráfico de pessoas, com a globaliza-
ção no cenário mundial e regional o crime se sofisticou e evoluiu, atual-
mente ocorre das mais variadas formas e para diversos fins, trafico para
fins servidão ou trabalho em condições análogas a de escravo, remoção de
órgãos, tecidos ou partes do corpo e adoção ilegal são exemplos.
De acordo com dados do Sistema Nacional de Estatísticas de Segu-
rança Pública e Justiça Criminal, no Acre, Amazonas, Roraima, Pará e
Amapá, a modalidade da exploração sexual foi a mais incidente, apesar de
não haver estatísticas oficiais que demonstrem este dado. Particularmente
no Acre, os atores estratégicos deram destaque ao tráfico para fins de ex-
ploração sexual de crianças e adolescentes. O Amazonas é o estado na área
de fronteira que mais registrou ocorrências de tráfico de pessoas para fins
de exploração sexual. (ENAFRON, 2002)
Entre os países sul-americanos, as vítimas brasileiras em sua maio-
ria são originárias principalmente das comunidades pobres da região
norte do Brasil, fatores como ser uma região que faz fronteira com 07
países, possui vasta extensão territorial, pouca fiscalização, poucos in-

377
DIMENSÕES JURÍDICAS DAS POLÍTICAS PÚBLICAS – VOL. 1

vestimentos, tornam a ocorrência do tráfico de pessoas mais frequente


na Amazônia.

2. TRÁFICO DE MULHERES NA REGIÃO AMAZÔNICA

2.1 – CONTEXTO HISTÓRICO

A ocupação histórica da Amazônia e as políticas de investimentos


pensadas e aplicadas na região a tornaram vulnerável para a exploração
de seres humanos. Neste sentido é importante frisar de que maneira o
contexto histórico de desenvolvimento na Amazônia contribuiu para a
incidência do Tráfico de Pessoas na região.
As primeiras demonstrações do fenômeno do tráfico humano na re-
gião amazônica ocorreram durante o período de colonização, sob a tutela
de invasões portuguesas, espanholas e, em menor grau, inglesa, francesa e
holandesa, neste regime ocorreu à captura de mais de 300.000 indígenas,
para escravidão, seguido do tráfico de 1/3 destes para fins laborais (RI-
BEIRO, 1995).
Após o período de colonização na região, a partir dos governos de
Getulio Vargas em 1930 a Floresta Amazônica tornou-se lugar da espe-
rança, riqueza e alternativa. Incentivou-se a ocupação da região através
das atividades agrícolas, mineradoras e do extrativismo vegetal. Os di-
versos governos que sucederam Vargas investiram em políticas públicas
para o desenvolvimento e a ocupação da região, podem ser destacadas:
a) construção de estradas (final dos anos 50 até 70); b) implementação de
campanhas de colonização agrícola (sobretudo, durante a década de 70),
trazendo populações do sul do país para a região; c) construções de Usinas
Hidrelétricas (década de 80), d) fortalecimentos de áreas comerciais (dé-
cada de 90). (HAZEU, 2002).
Ter em mente o que estes projetos e políticas públicas, produziram
sobre a Amazônia é importante para compreender a falta de investimentos
políticos e econômicos reais no crescimento da região e melhoria da qua-
lidade de vida de suas populações. (OSSAME, 1998).
É notório que esses projetos de desenvolvimento não beneficiaram
a população local, as estratégias de desenvolvimento não atenderam os
interesses dos agricultores familiares, índios, seringueiros, extrativistas,

378
LU I Z A N TÔ N I O R E I S J U N I O R , M A U R I C I O P I R E S G U E D E S , T E L S O N P I R E S ,
VA N E S S A V E L A S C O, H E R N A N D E S B R I TO R E I S ( O R G . )

ribeirinhos e moradores das periferias urbanas da região, apenas estimula-


ram à migração desordenada de outras regiões bem mais povoadas para o
Norte e em seguida um crescente desemprego. Foram projetos de desen-
volvimento sem benefícios econômicos e sociais locais, que trouxeram à
fraca presença de políticas sociais básicas e incentivaram a intensa explora-
ção dos trabalhadores.
No que se refere à exploração e o tráfico de mulheres, a migração de
milhares de homens para a Amazônia para a realização dos projetos de
desenvolvimentos foi um dos principais fenômenos que favoreceu a cul-
tura permissiva a exploração, prostituição e tráfico de mulheres na região.
Neste sentido, Hazeu, conclui que:

Na Amazônia, a mulher sempre foi percebida em segundo plano.


Os programas de desenvolvimento, os investimentos, as políticas
sócio econômicas sempre foram direcionados para o agronegócio e
mineração, que procuram trabalhadores masculinos. A presença da
mulher e as questões da sua sobrevivência foram consideradas uma
consequência do trabalho masculino. Nesta lógica, as mulheres
migraram para dentro da Amazônia atrás dos homens pioneiros.
(2006, p.5)

Nesta dinâmica as mulheres migraram para Amazônia atrás dos se-


ringueiros, garimpeiros, trabalhadores de construção, marinheiros e ca-
minhoneiros para ocupar os serviços por eles desejados: trabalhadoras
domésticas, prostitutas e/ou para um eventual casamento, muitas vezes
através de aliciadores e traficantes.
Após o término da implantação dos grandes projetos na Amazônia,
tanto os homens trabalhadores quanto as mulheres que migraram para a
região voltaram a viver em uma realidade sem perspectivas locais, pois as
riquezas geradas na região não foram investidas para o seu desenvolvimen-
to, tampouco para os seus habitantes.
Neste contexto histórico é perceptível que os projetos de desenvol-
vimento da Amazônia contribuíram para a incidência do tráfico e explo-
ração de pessoas na região, que inicialmente foi marcada pela prática do
Tráfico Humano para fins de escravidão, quando colonizadores através da
intervenção arbitrária transformavam os homens-livres da floresta amazô-

379
DIMENSÕES JURÍDICAS DAS POLÍTICAS PÚBLICAS – VOL. 1

nica em escravos. Até posteriormente através da implementação de gran-


des projetos de infraestrutura ser cenário para a exploração de homens
(que trabalhavam em condições análogas a de escravo) e mulheres que
foram levadas a região amazônica para atender as necessidades destes ho-
mens que migram para região em busca dos empregos oferecidos.

2.2 – CONTEXTO ATUAL

Fatores como isolamento geográfico, precária infraestrutura de con-


trole das fronteiras, a falta de fiscalização e permanente dinâmica migra-
tória na região, são elementos que tornam a Amazônia vulnerável a inci-
dência do crime.
A história da mulher no contexto amazônico imprimiu na cultura
regional a naturalidade em que ela é inserida na realidade de exploração
sexual como caminho de auto-sustentação e até de realização pessoal.
(HAZEU, 2002).
Com a relativa decadência do mercado de sexo na região, pela dimi-
nuição das atividades que geraram circulação de dinheiro e pessoas, au-
mentou a pressão na busca de oportunidades no exterior. Fatores como a
exclusão social, pobreza, instabilidade, desigualdade social, baixa escola-
ridade, desemprego, dificuldade econômica, violência familiar, tornam as
mulheres da região amazônica vulneráveis e consequentemente alvos das
redes de tráfico.
O tráfico se inicia com o aliciamento e recrutamento da vítima,
geralmente os aliciadores são pessoas próximas que observam a situa-
ção de dificuldade em que a vítima se encontra e apresentam promessas
irrecusáveis de emprego no exterior. As vítimas são mulheres e adoles-
centes oriundas comunidades pobres, com baixa escolaridade, poucos
recursos e oportunidades, que enxergam na oferta do aliciador uma
solução fácil.
Acreditando que em poucos meses poderá retornar para o Brasil com
experiência e uma boa quantidade de dinheiro guardado, muitas mulheres
aceitam a oferta e entregam seus documentos pessoais e passaporte aos ali-
ciadores, que as conduzem para o local de partida e é ao longo do trajeto
que muitas mulheres descobrem que na verdade estão sendo vítimas de
uma rede de tráfico de exploração sexual de mulheres.

380
LU I Z A N TÔ N I O R E I S J U N I O R , M A U R I C I O P I R E S G U E D E S , T E L S O N P I R E S ,
VA N E S S A V E L A S C O, H E R N A N D E S B R I TO R E I S ( O R G . )

Existem duas formas de enganar a vítima, a primeira é a oferta de um


emprego comum, sem envolvimento sexual, neste caso a vítima é total-
mente enganada. A segunda forma a vítima já está envolvida com a pros-
tituição e aceita exercer a atividade no exterior, porém não estão cientes
das condições desumanas a que serão submetidas. Ressalta-se que a pessoa
que viaja com intuito de se prostituir também é enganada, pois as condi-
ções definidas para o trabalho antes da viajem são totalmente diferentes
das que se concretizam.
Neste sentido elucida Damásio E. de Jesus:

Requisito central no tráfico é a presença do engano, da coer-


ção, da dívida e o propósito de exploração. Por exemplo, a vítima
pode ter concordado em trabalhar na indústria do sexo, mas não
em ficar em condições semelhantes à escravidão. O tipo de ati-
vidade que a vítima se engajou, lícita ou ilícita, moral ou imoral,
não se mostra relevante para determinar se seus direitos foram
violados ou não. (2003)

Nos locais de exploração às vítimas são informadas que terão que


se prostituir para pagar as despesas com passaporte, viagem, além de ali-
mentação e moradia, porém esta dívida se torna cada vez maior, com
valores exorbitantes se tornando assim impossível seu pagamento, obri-
gando as vítimas a se submeterem a situações degradantes e humilhantes
para sobreviver.
A realidade de quem acaba explorada no mercado do sexo fora do seu
país, revela-se dura: vida de clandestinidade, com passaporte retido, sem
possibilidade de fuga; desconhecimento do idioma local, cobrança abu-
siva das despesas com passagem; alimentação e moradia, de maneira que
estejam sempre em dívida com o explorador. Além da jornada de 10 a 13
horas de trabalho diário, mesmo doente, sem poder recusar cliente; incen-
tivo ao consumo de drogas, principalmente álcool e cocaína, tornando as
prisioneiras do vício, além de ameaças e violência física (Cartilha Tráfico
de Pessoas, 2012,).
Nota-se que as mulheres que são vítimas do tráfico para fins de explo-
ração sexual na região amazônica, em sua maioria, são pessoas que buscam
melhores condições de vida, a falta de oportunidade faz com que o tráfico

381
DIMENSÕES JURÍDICAS DAS POLÍTICAS PÚBLICAS – VOL. 1

na região se torne muito mais fácil, à baixa escolaridade e pouca instrução


das vítimas, principalmente jovens das comunidades ribeirinhas amazôni-
cas, torna o tráfico mais frequente.

2.2.2. - COMO OCORRE O TRÁFICO NA AMAZÔNIA?

Na região o crime ocorre em circuitos diferentes, o tráfico interno


está caracterizado por rotas interestaduais e intermunicipais na região, no
qual as mulheres e jovens circulam entre as capitais, municípios de estra-
das, portos ou grandes empreendimentos e locais de festivais na região
norte ou mulheres e jovens que saem da Amazônia em direção do sul e
nordeste do Brasil.
O tráfico internacional ocorre nas fronteiras da Amazônia (Amapá/
Guyana Francesa, Roraima/Venezuela, Acre/Bolívia e Rondônia/Bolívia) no
qual mulheres e meninas brasileiras são levadas à prostituição nos municípios
ao outro lado da fronteira nacional, nas proximidades do Brasil. O tráfico
transcontinental é caracterizado pela saída do Brasil em direção a outros con-
tinente, o destino mais frequente é Europa (Holanda, Alemanha e Espanha)
e é realizado via rotas que passam por municípios do nordeste, centro-oeste,
sudeste, ou ainda via países de transição como Suriname. (Oliveira, 2010).

3. PRINCIPAIS CAUSAS DO TRÁFICO DE MULHERES NA


AMAZÔNIA

O tráfico de mulheres na Amazônia é um crime que cresce expo-


nencialmente, trata-se de um delito complexo, pois não possui um modus
operandi, são diversas as formas, os fatores e causas que contribuem para a
incidência do tráfico de mulheres no contexto amazônico, dentre os quais
se destacam:
Globalização: com o processo cada vez mais acelerado da globaliza-
ção, um mesmo país pode ser ponte de partida, de chegada ou servir de li-
gação entre outras nações no tráfico de pessoas (OIT, 2006). Nesta esteira
de pensamento Thaís de Camargo Rodrigues elucida:

Hoje a globalização põe à disposição dos traficantes de pessoas to-


das as suas ferramentas utilizadas para fins lícitos, como a revolução

382
LU I Z A N TÔ N I O R E I S J U N I O R , M A U R I C I O P I R E S G U E D E S , T E L S O N P I R E S ,
VA N E S S A V E L A S C O, H E R N A N D E S B R I TO R E I S ( O R G . )

dos meios de comunicação e a facilidade de transpor fronteiras.


O tráfico é tratado como um negócio qualquer, e suas vítimas se
transformaram em commodities. Os traficantes buscam suas mer-
cadorias em ambientes vulneráveis, e as vendem nos mercados mais
promissores. (2012)

A globalização, portanto contribui para a incidência do tráfico de


mulheres tornando viável a estruturação do crime organizado devido à
agilidade nas comunicações e do comercio entre países, com isto, a região,
principalmente nas áreas de fronteira recebem baixa fiscalização, ficando
desprotegidas, favorecendo ainda mais a ocorrência do delito.
Pobreza: Segundo a OIT, a pobreza é um fator determinante para o
crime, tendo em vista que a maioria esmagadora das vítimas possui difi-
culdades financeiras e pertencem a comunidades, neste contexto a pobre-
za contribui diretamente para a incidência do crime na Amazônia, pois
favorece a ida de muitas mulheres a trajetória de prostituição, turismo se-
xual até ocorrer o tráfico em si. A pobreza torna as mulheres vulneráveis e
faz com que estas se submetam às ações dos traficantes por força da neces-
sidade de sobrevivência em razão da falta de perspectivas de vida futura.
Vulnerabilidade: é uma situação, em que se encontra uma pessoa ou
um grupo que, nesse caso, por questões sociais e institucionais, não tem
seus direitos fundamentais respeitados. A vulnerabilidade seja social, cul-
tural ou econômica favorece o ataque das organizações criminosas no ali-
ciamento de pessoas que buscam melhores condições de vida.
Violência Doméstica: A violência doméstica, física, psicológica e se-
xual, são fatores de grande relevância para a ocorrência do delito é a como
já citado mulheres que vivem em situação de extrema pobreza se tornam
vulneráveis, principalmente mediante a um quadro de violência. Nesse
viés as mulheres vivem em ambiente insuportável e são impelidas a buscar
novas oportunidades e é nesse cenário na busca por melhores condições
de vida que acabam se tornando vítimas de redes de tráfico.
Turismo Sexual: O turismo sexual é uma das principais causas do trá-
fico de mulheres na região amazônica, pois é durante o turismo ecológico,
financiado pelo próprio Estado, que mulheres e adolescentes, são ofere-
cidas como mercadoria para os turistas. É notório que durante os gran-
des festivais culturais na Amazônia com grande número de turistas, como

383
DIMENSÕES JURÍDICAS DAS POLÍTICAS PÚBLICAS – VOL. 1

no caso das festas Temáticas dos Bois em Parintins-Amazonas, ocorre a


maior parte do aliciamento e recrutamento de mulheres e meninas para o
trajeto da prostituição, exploração sexual e consequentemente o tráfico.
Neste contexto Márcia Maria de Oliveira nos informa que:

Em Manaus, foram identificadas muitas rotas intermediadas pelos


famosos “hotéis de selva” e pelas festas temáticas. O grande projeto
de “turismo ecológico”, amplamente divulgado e financiado pelo
atual governo do estado continua sendo estratégia para o “turismo
sexual” facilitando as rotas para o tráfico das meninas aliciadas. Há
situações de aliciamento em comunidades indígenas e ribeirinhas,
especialmente aquelas que se localizam nas proximidades de ga-
rimpos ou de fronteiras internacionais: Colômbia, Peru, Guiana
Francesa e Venezuela. (Oliveira, 2010).

As vítimas são procuradas pelo “turista sexual”, que pode interes-


sar-se por mulheres ou adolescentes locais e que, ao retornar ao seu país
de origem, mantém o elo com o “agente” com quem ajustou o “pacote
turístico” e com a vítima até que ela seja enviada ao seu encontro ou,
retornando em “férias”, a leve consigo. Uma vez no país de destino, al-
gumas vítimas são mantidas confinadas sob o disfarce de um casamento
ou de uma relação estável, enquanto outras são colocadas no mercado do
sexo local.”(OIT, 2006).
Muitas meninas e mulheres que embarcam no retorno dos turistas
das grandes festas, nunca mais retornam aos seus familiares. Diferente-
mente dos migrantes econômicos que remetem remessas frequentes a seus
familiares, essas meninas e mulheres jamais enviam qualquer remessa nem
notícias sobre seus trabalhos ou casamento. Quando retornam, o que é
muito raro, em geral, tentam não tocar no assunto ou criam fantasias para
disfarçar os dissabores vividos na prostituição em terra estrangeira. (Már-
cia Maria de Oliveira, 2010)
O turismo sexual na Amazônia, portanto, apresenta ligações diretas
com o trafico de mulheres na medida em que pessoas de outras localida-
des, ao visitarem a região, podem recorrer a esquemas fraudulentos para
convencer uma pessoa a deslocar-se a troco de promessas de um trabalho
condigno e bem remunerado ou até mesmo casamento.

384
LU I Z A N TÔ N I O R E I S J U N I O R , M A U R I C I O P I R E S G U E D E S , T E L S O N P I R E S ,
VA N E S S A V E L A S C O, H E R N A N D E S B R I TO R E I S ( O R G . )

Além disso, vasta amplitude territorial, dificuldade de acesso, e à falta


de investimento em políticas públicas governamentais voltadas ao com-
bate ao tráfico de mulheres na Amazônia, são elementos que contribuem
relevantemente para a incidência do delito na região.

3. A IMPORTÂNCIA DA GARANTIA DIREITOS HUMANOS


FRENTE O COMBATE AO TRÁFICO DE MULHERES

Quando pensamos em combate ao Tráfico de Pessoas na Amazônia


é imprescindível posicionar a garantia dos direitos humanos como eixo
central para o enfrentamento ao crime, seja em relação à prevenção, a re-
pressão do crime ou a proteção das vítimas. As medidas de enfrentamento
ao tráfico de pessoas devem respeitar e proteger os direitos humanos e dig-
nidade das pessoas afetadas. A prevenção do tráfico de pessoas, proteção
e assistência às vítimas, além da criminalização, punição e reparação são
essenciais frente ao combate ao crime.
Um dos principais instrumentos internacionais no que se refere ao en-
frentamento do tráfico de pessoas através da garantia dos direitos humanos
são os “Princípios e Diretrizes Recomendados sobre Direitos Humanos
e Tráfico de Pessoas”, documento apresentado pelo Alto Comissariado
das Nações Unidas para os Direitos Humanos ao Conselho Econômico
e Social, em maio de 2002. O documento destaca a necessidade de se-
guir recomendações para o combate e enfrentamento ao tráfico de pessoas
como a promoção e proteção dos direitos humanos, a identificação das ví-
timas e responsáveis pelo tráfico humano, assegurar parâmetros normati-
vos adequados, apoio e proteção às pessoas traficadas, prevenção ao tráfico
e cooperação e coordenação entre Países, Estados e regiões. (PIOSEVAN;
KAMIMURA, 2019).
No Brasil um grande avanço quanto ao combate e enfrentamento ao
crime se deu através da adoção do Protocolo de Palermo, incorporado
no ordenamento jurídico através do Decreto nº 5.017, de 12 de março de
2004, com a adesão deste protocolo houve um avanço significativo quanto
à necessidade de estimular medidas de enfrentamento ao Tráfico de Pes-
soas, bem como ao apoio assistencial as vítimas do crime, posteriormente
ocorreu ainda criação da Politica Nacional de Enfrentamento ao Tráfico e
dos Planos Nacionais de Enfrentamento ao Tráfico.

385
DIMENSÕES JURÍDICAS DAS POLÍTICAS PÚBLICAS – VOL. 1

Na Amazônia a regulamentação da política pública de enfrentamento


e combate ao tráfico de pessoas deu-se, principalmente, através da Política
Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas - PNETP e pelos Pla-
nos Nacionais de Enfretamento ao Tráfico de Pessoas
Na região Amazônica a existência de políticas públicas voltadas a ga-
rantias dos direitos humanos para o combate ao tráfico de mulheres na
região é de extrema importância, pois a desigualdade social causa vulne-
rabilidade social por não garantir direitos básicos (saúde, emprego, lazer,
educação etc.), é em situações carência e sem perspectivas de vida de que
muitas mulheres e jovens entram nos esquemas de tráfico.
A falta de investimentos do Estado agrava a situação de pobreza das
famílias, com desestruturação familiar, crianças e adolescentes são expos-
tas ao abandono, trabalho infantil, exploração sexual através de porno-
grafia, turismo sexual e prostituição, até o se tornarem vítimas do tráfico
humano. É diante da ausência de assistência social que as organizações
criminosas atuam apresentando através de propostas de emprego, uma
forma de “ajudar” as mães de famílias e adolescentes ao qual o Estado não
prestou o devido apoio.
As vítimas do tráfico humano são submetidas à condições desu-
manas e inimagináveis, são forçadas a realizarem trabalhos de qualquer
natureza, sendo a prostituição o principal entre eles, são estupradas, vio-
lentadas e drogadas pelos criminosos, são postas como mercadorias, a
pessoa traficada torna-se uma peça, o tráfico rouba das vítimas sua con-
dição de ser humano.
Além disto, as vítimas ainda sofrem com o preconceito da sociedade,
sendo vistas como culpadas pelo que lhes ocorreu. É nesse contexto que
a efetivação dos direitos humanos é de extrema importância, pois muitas
vezes, sem o devido apoio as vítimas possuem receio de procurar ajuda,
pois correm o risco de sofrerem represálias das redes de tráfico da qual
foram resgatadas.
Combater o tráfico na Amazônia implicar em pensar no desenvol-
vimento da região, com a elaboração de programas que invistam na po-
pulação local, focando nas especificidades de cada região, promovendo
de campanhas e ações de conscientização acerca do crime nas áreas de
vulnerabilidade, ampliar a circulação de materiais informativos sobre o
tráfico humano principalmente nas áreas de fronteiras, promover ação

386
LU I Z A N TÔ N I O R E I S J U N I O R , M A U R I C I O P I R E S G U E D E S , T E L S O N P I R E S ,
VA N E S S A V E L A S C O, H E R N A N D E S B R I TO R E I S ( O R G . )

integrada com a gestão pública municipal e estadual acerca do enfrenta-


mento ao tráfico.
Priorizar a repressão aos crimes de tráfico de pessoas e exploração
sexual, por meio da criação de políticas e de ações institucionais que re-
conheçam a prioridade do tema, a efetivação dos direitos trabalhistas e
identificação de violações de direitos e casos de tráfico de pessoas para fins
de exploração sexual. Promover, criação de programas de formação con-
tinuada para os atores governamentais (segurança pública, justiça crimi-
nal, saúde, assistência social, educação, políticas para mulheres, direitos de
criança e adolescente, direitos humanos) sobre enfrentamento ao delito.
Portanto a garantia e a efetivação dos direitos humanos frente ao
combate e enfrentamento ao tráfico de mulheres na região Amazônica
são de extrema relevância, pois o Tráfico de Mulheres na região está
atrelado, como já foi exposto, em grande parte em questões envolvendo
desemprego, baixa escolaridade, pobreza, falta de oportunidades e desi-
gualdade social, e é nesse viés que a garantia dos direitos fundamentais
para toda a população da região, em especial as mulheres em situação
de vulnerabilidade, surge como um dos importantes meios de enfrenta-
mento ao tráfico na região.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O Tráfico Internacional de Mulheres na Amazônia é um fenômeno


lesivo, é um crime extremamente complexo que ultrapassa fronteiras. O
combate ao ilícito é muito difícil, pois os dados são imprecisos e o delito
possui pouca visibilidade. Na região amazônica deve se levar em consi-
deração as peculiaridades do local, a ausência de políticas públicas e de
serviços sociais básicos como o acesso à educação levam ao aumento da
vulnerabilidade das mulheres perante as redes de tráfico.
Através da garantia dos direitos humanos e oportunidade de uma vida
digna (através do acesso a um trabalho, à saúde, à educação, à habitação
e à alimentação, por exemplo), a incidência do tráfico de mulheres na
região irá diminuir drasticamente, atrelada a implementação de políticas
públicas e campanhas de prevenção e conscientização, principalmente nos
locais de difícil acesso e nas comunidades ribeirinha, voltadas a instrução
e prevenção acerca do delito, para que não ocorram novos casos e para que

387
DIMENSÕES JURÍDICAS DAS POLÍTICAS PÚBLICAS – VOL. 1

as mulheres em situação de vulnerabilidade não se tornem alvo fácil das


redes de tráfico.
Destarte, o enfrentamento e combate ao tráfico na Amazônia requer
uma série de investimentos em nível local e estadual para reforçar o cumpri-
mento das políticas públicas e a aprimorar legislação existente em combate
ao crime, pautando reuniões e campanhas diretamente ligadas a conscienti-
zação da ocorrência do crime para que não surjam novos casos, assim como
o esforço dos atores sociais envolvidos no enfrentamento ao delito.

REFERÊNCIAS

ENAFRON. Diagnóstico sobre o Tráfico de Pessoas nas áreas de


fronteira. SNJ, São Paulo, 2012.

HAZEU. Marcel; FIGUEIREDO. Danielle Lima de. Migração e tráfi-


co de seres humanos para Suriname & Holanda. Belém: Txai/
Emaús, 2006.

HAZEU. Marcel. Tráfico de mulheres crianças e adolescentes para


fins de exploração sexual comercial no Brasil: Amazônia: Re-
latório de pesquisa/ TXAI, Movimento República de Emaús; Org. e
coord. Marcel Hazeu. Belém, 2002.

JESUS. Damásio E. de. Tráfico Internacional de Mulheres e Crian-


ças. Brasil: aspectos regionais e nacionais. São Paulo: Editora Sarai-
va, 2003.

LEAL. Maria Lúcia; LEAL, Maria de Fátima. Pesquisa Sobre Tráfico


de Mulheres, Crianças e Adolescentes parafins de Exploração
Sexual Comercial – PESTRAF. Relatório Nacional. Brasília:
CECRIA, 2002. ISBN 85-7062-364-x.

OLIVEIRA. Márcia, TRÁFICO INTERNACIONAL DE MU-


LHERES NA AMAZÔNIA: DESAFIOS E PERSPECTI-
VAS, 2010.

ONU BRASIL. Número de casos de tráfico de pessoas atinge recorde em


13 anos, indica relatório. Disponível em:<https://nacoesunidas.org/

388
LU I Z A N TÔ N I O R E I S J U N I O R , M A U R I C I O P I R E S G U E D E S , T E L S O N P I R E S ,
VA N E S S A V E L A S C O, H E R N A N D E S B R I TO R E I S ( O R G . )

numero-de-casos-de-trafi co-de-pessoas-atinge-recorde-em-13-a-
nos-indica-relatorio/>.

UNODC. Relatório global sobre tráfico de pessoas - perfil de país Amé-


rica do Sul. Disponível em: <https://www.unodc.org/lpo-brazil/pt/
trafi co-depessoas/ publicacoes.html>.

OSSAME. Ana Célia. Prostituição seduz meninas. Jornal A Crítica,


Manaus, p.A4, 13 set. 1998.

PESTRA. Pesquisa Sobre Tráfico de Mulheres, Crianças e Adoles-


centes parafins de Exploração Sexual Comercial – PESTRAF.
Relatório Nacional. Brasília: 2002.

PIOSEVAN. Flávia; KAMIMURA. Akemi. Tráfico de pessoas sob a


perspectiva de direitos humanos: prevenção, combate, prote-
ção às vítimas e cooperação internacional. Revista do Tribunal
Regional Federal da 3ª Região. Edição Especial. ISSN 1982-1506.

PROTOCOLO DE PALERMO, 2000. Marco legal. Disponível em: ht-


tps://www.unodc.org/lpo-brazil/pt/crime/marco-legal.html.

RIBEIRO. Darcy. O povo brasileiro: formação e sentido do Brasil. São


Paulo: Global Editora e distribuidora ltda, 1995.

RIVABEM. Fernanda Schaefe. A Dignidade da Pessoa Humana


como Valor-Fonte do Sistema Constitucional Brasileiro. Pa-
raná: 2006. Disponível em: <http://revistas.ufpr.br/direito/article/
view/7004/4982>. Acesso em: 11 out. 2017.

Repórter Brasil – Organização de Comunicação e Projetos Sociais,


CARTILHA DO TRÁFICO DE PESSOAS, 2012.

RODRIGUES. Thaís de Camargo. O Tráfico Internacional de Pes-


soas para Fim de Exploração Sexual e a Questão do Consen-
timento. 2012. 204 f. il. Dissertação (Mestrado em Direito). Uni-
versidade de São Paulo, São Paulo,2012, 204 p. p. 58. OIT. Tráfico
de pessoas para fins de exploração sexual, Brasília: OIT, 2006.p.12:Il.
ISBN 92-2-817384-X.disponível em: http://www.oitbrasil.org.br/
sites/default/files/topic/tip/pub/trafico_de_pessoas_384.pdf>.

389
DIMENSÕES JURÍDICAS DAS POLÍTICAS PÚBLICAS – VOL. 1

SIMONIAN. Ligia T. C. Mulheres da floresta amazônica entre tra-


balho e a cultura. Belém: UFPA/NAEA, 2001.

Tráfico de Mulheres: Política Nacional de enfrentamento, Brasí-


lia: Secretaria de Políticas para Mulheres, Presidência da República,
2011.p. 14 Disponível em: <https://www12.senado.leg.br/institu-
cional/omv/entenda-a-violencia/pdfs/trafico-de-mulheres-politica-
-nacional-de-enfrentamento>.

390
A VIOLAÇÃO DOS DIREITOS DA
PERSONALIDADE DOS MENORES EM
SITUAÇÃO DE CUMPRIMENTO DE
MEDIDAS SOCIOEDUCATIVAS
Maria das Dores Lopes da Silva Ferreira Félix65
Flávio Gutenberg de Oliveira66

INTRODUÇÃO

Ao longo dos anos, as medidas socioeducativas de restrição de liberdade


e violação dos direitos dos menores são assunto que ganharam espaço para
serem pautados e debatidos em vários espaços da sociedade brasileira. O
Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA (Lei n° 8.069/90), norma que
estabelece, em nosso país, os critérios e parâmetros para o atendimento de
todas as crianças e adolescentes, garante-lhes os direitos próprios de cida-
dão, com prioridade absoluta e respeito à condição peculiar de pessoas em
idade de desenvolvimento físico e mental. Em face desses princípios, esta
lei é tachada de “lei de primeiro mundo”, numa expressão usual daqueles
que, verdadeiramente, não conseguem apreender a noção básica de direitos
humanos e não se debruçam sobre o ECA para uma análise acurada de seus
preceitos, numa visão interdisciplinar. O Estatuto é um dos mais legítimos

65 Técnica em controle ambiental pelo IFRN/CNAT, bacharelanda em Direito-UFRN, educa-


dora popular
66 Engenheiro civil, mestre em engenharia química, especialista em geoprocessamento, ba-
charelando em Direito-UFRN, professor de ensino no nível técnico e tecnológico

391
DIMENSÕES JURÍDICAS DAS POLÍTICAS PÚBLICAS – VOL. 1

instrumentos de democracia participativa e outorga ao universo infanto-


-juvenil direitos imprescindíveis a uma vida digna e saudável, preservando
assim os direitos da personalidade do indivíduo em questão. Em seus ats.
53 e 54 dispõe sobre o acesso à educação, à saúde, à convivência familiar
e comunitária, ao lazer, à liberdade. Em países como o nosso é necessário
que se diga o óbvio: criança tem direito de brincar, estudar e expressar suas
opiniões. Isso não precisa estar expresso em leis ditas de “primeiro mun-
do”. Em países de primeiro mundo tais direitos são inerentes à condição de
seres humanos em desenvolvimento. Por consequência, o ECA existe para
atender a necessidades de sociedades como a nossa. Mesmo assim é visível
a forma de desvio na aplicação de medidas socioeducativa “sansões negati-
vas” em relação aos menores, sendo elas maus tratos, privação de direitos,
despersonalização do sujeito, acontecendo uma verdadeira “morte do eu”
quando são submetidos ao regime de regras impostas por instituições de
internação, tendo em vista que a formalidade pregada pelo ECA não cor-
responde aos desmandos e negligência do corpo dirigente dessas institui-
ções. As unidades de internação, não cumprem o seu papel, preferindo
segregar os adolescente e jovens infratores, escondendo-os dos olhos da
comunidade e condenando-os a crer que, para eles não há perspectivas,
possibilidades ou esperança. Reforça-se, assim, a realidade da exclusão à
qual foram submetidos desde a vida intrauterina e reafirma-se a terrível
teoria dos “três pês” (pobre, preto e prostituta) (GONÇALVEZ,2008) e,
pior, atribui-se à lei a responsabilidade pela não recuperação dos infratores.
A privação de liberdade por si só já é pesada, sansão para uma pessoa diante
de sua necessidade natural de ser livre, e se torna mais aguda quando se trata
de adolescentes e jovens, pelo perfil psicológico que caracteriza esta fase do
desenvolvimento humano. Multiplica-se tal peso quando a segregação se
dá em um ambiente destrutivo, opressor e alienante, como se mostram as
unidades de internação.
Resta-nos lançar mão de instrumentos extrajudiciais para buscar re-
verter a realidade cruel dos centros de internação, visando a resguardar
principalmente o direito à dignidade, os direitos da personalidade, assim
como considerar a autonomia do indivíduo para ser transformador e pro-
tagonista de sua própria história.
Não podemos continuar varrendo o “lixo social” para baixo de nos-
sos tapetes. O Brasil tornou-se conhecido e respeitado perante a comuni-

392
LU I Z A N TÔ N I O R E I S J U N I O R , M A U R I C I O P I R E S G U E D E S , T E L S O N P I R E S ,
VA N E S S A V E L A S C O, H E R N A N D E S B R I TO R E I S ( O R G . )

dade internacional por ter a lei mais adequada ao tratamento de crianças e


adolescentes, entretanto não consegue aplicá-la.
No presente estudo se busca refletir sobre o mundo social em que se
insere a aplicação de medidas socioeducativas a menores e de que modo
a submissão desses jovens em conflito com a lei pode afetar seus direitos
da personalidade. De acordo com o Estatuto da Criança da Criança e do
Adolescente (ECA, 1990), o modo de se comportar desses adolescentes
foi definido como “conduta descrita como crime ou contravenção penal”.
Através da presente investigação procurou-se abordar as particularidades
dos instrumentos de controle e coerção das institucionais totais, às quais
esses jovens estão submetidos. Através de uma análise de depoimentos dos
jovens submetidos a medidas socioeducativas, fez-se necessária uma pro-
blematização acerca da violação dos direitos da personalidade dos menores
com desvio de conduta e em cumprimento de medida, no contexto de
privação de direitos.
O presente estudo é fruto de uma pesquisa teórico conceitual, alicer-
çada em revisão bibliográfica; análise de entrevista de jovens em situação
de cumprimento de medida socioeducativa de Internação no Centro de
Atendimento Socioeducativo CASE-Pitimbú, localizado no Distrito de
Pitimbu – Parnamirim/RN. Sendo de grande relevância para a sociedade
brasileira, pois as áreas abordadas levam em consideração a institucionali-
zação de adoloescentes e jovens e como esse fator pode corroborar para a
restrição e degeneração dos direitos fundamentais, com ênfase na violação
de diretos da personalidade.

1. AS INSTITUIÇÕES TOTAIS: CENTROS DE


RESSOCIALIZAÇÃO DE MENORES

As instituições, quando estudadas de forma mais aprofundada, são


denominadas instituições totais segundo Goffman (GOFFMAN, 1974),
são caracterizadas primordialmente por serem estabelecimentos fechados,
em funcionamento sob regime de internação, onde um grupo de indi-
víduos internados ficam subordinados a outro grupo menor que regem
autoritariamente a instituição. Algumas das especificações dessas insti-
tuições totais foram o alicerce para o surgimento de outras instituições:
orfanatos, reformatórios para menores infratores, como colégios internos,

393
DIMENSÕES JURÍDICAS DAS POLÍTICAS PÚBLICAS – VOL. 1

dando continuidade ao discurso de re-socialização dos indivíduos. Com


o conhecimento adquirido com a análise institucional, é de se perceber
a real e complexa relação de poder entre os sujeitos que se arranjam em
torno dessas instituições.
Sendo que o ser humano age de forma difusa, de formas variadas na
esfera da vida, possuindo certo nível de autonomia, tendo várias coparti-
cipações, e são sujeitos a diferentes autoridades em voga no plano de vida
em sociedade racional. Ao serem submetidos à inserção em uma institui-
ção social, sua autonomia é reduzida, passa a agir de forma restritiva a um
mesmo local, com um grupo de pessoas semi-homogêneo de comporta-
mentos parecidos e sob supervisão e tratamento, regras iguais para o feito
das atividades, obrigações e deveres impostos, na busca de um comporta-
mento padrão de ordem.
Nessa perspectiva, a instituição social pode se organizar de modo a
prestar assistência aos indivíduos (confinados, limitados), quando essa ins-
tituição social se organiza de modo a atender indivíduos (que se encon-
tram em internação) possuidores de condições similares, reservando-os,
por um período de tempo, da vida em “sociedade comum”. A esse indi-
viduo é imposta uma vida fechada sob o controle e a administração formal
e bem rígida (corpo gerenciador, administrativo), que deliberam ações de
caráter procedimental e visam cumprir as regras da instituição, apresenta
características como a restrição, fechamento, poder sob o outro, o que vai
caracterizar o aspecto de “instituição total” (GOFFMAN, 1974).
A dimensão de totalidade da instituição que atua sob os confinados
é de tal maneira que sua identidade, sua personalidade, sua autonomia e
sua autenticidade, no âmbito pessoal e social são radicalmente afetadas e
suprimidas. Esse aspecto pode ser verificado nos Centros de Atendimento
Socioeducativo, que particulariza o processo de involução até certo pon-
to, ele fala sobre o mundo do internado. Quando o individuo chega para a
internação, passa da condição de sujeito ativo na construção de seus laços
pessoais e sociais e passa para a condição de sujeito passivo, de paciente
sendo suprimidas sua concepção de si mesmo e a cultura de formação do
indivíduo, vivenciada anteriormente na sociedade aberta em seio fami-
liar, é nesse momento de transição que acontece a “mortificação do eu”,
esse sentimento decorre da privação do seu papel na vida civil, privação
de liberdade, campo de ação e autonomia, de informações (PARCELLE,

394
LU I Z A N TÔ N I O R E I S J U N I O R , M A U R I C I O P I R E S G U E D E S , T E L S O N P I R E S ,
VA N E S S A V E L A S C O, H E R N A N D E S B R I TO R E I S ( O R G . )

2002). É submetido a adequação e enquadramento em regras de condutas


e bom convívio, causando assim uma grande insegurança pessoal, de per-
da de privacidade e intimidade.
Nessa inserção em um novo modelo social mais restrito, o sujeito é
obrigado a submeter-se a formas de se organizar pessoalmente que podem
ser regras formais, deliberadas pela administração, ou informais, de acor-
do com as vivências e costumes da nova sociedade. Tais regras garantem
a sobrevivência e o sistema de privilégios dento da instituição. As regras
impostas pela instituição e os afazeres diários são um modelo a ser segui-
do, são recomendações a serem seguidas pois, se bem aceitas, garantem
recompensas e alguns privilégios, ou se houver uma contradição, resultará
em punição, sendo as mais comuns punição física, tortura e privação.
No contexto da nova realidade social, o “ajuste primário” faz parte
do processo de adaptação do interno, que ocorre quando ele cumpre as
regras e coopera com as atividades necessárias. O “ajuste secundário” é
feito de forma contrária às regras institucionais. Os benefícios proibidos
são geralmente obtidos de forma aleatória e ilegal (GOFFMAN, 1974).
Um exemplo nos dias de hoje é a entrada de entorpecentes nos Centros de
Atendimento Socioeducativos, nos quais os menores se utilizam de meios
ilícitos para obtenção de satisfações proibidas. O socioeducandos chegam
ao Centro de socioeducação com ideias próprias e concretizadas, cons-
truidas em cima de suas vivências e interações sociais e na ​​ vida familiar.
Após entrar, ele é privado do suporte fornecido por tais realçoes. Então,
se inicia uma sequência de rebaixamento, autodepreciação, degradação,
humilhação e mortificação do seu “EU” (PARCELLE, 2002). Começa a
passar por mudanças progressivas que ocorrem nas crenças que tem a seu
respeito e a respeito dos outros que são significativas para ele. Sua identi-
dade vai sendo mortificada.
A primeira mutilação do eu: a barreira entre o internado e o mun-
do externo. A entrada brusca na rotina institucionalizada integralmente
impede necessariamente o desempenho do seu papel de socioeducando.
Uma ruptura inicial profunda com os papeis anteriores: inexistência da
visita familiar nos primeiros 15 dias. Outra forma de mortificação: de-
formação pessoal: deixar aquilo que fazia parte de um “estojo de iden-
tidade” para o controle da aparência pessoal, e veste um novo uniforme,
abandonando seus pertences pessoais (roupas, objetos particulares), ocorre

395
DIMENSÕES JURÍDICAS DAS POLÍTICAS PÚBLICAS – VOL. 1

também a desfiguração pessoal: perda de um sentido de segurança pessoal.


A título de exemplo há coerção, agressão física e psicológica, tudo isso
podendo levar os internados a sentirem que estão num ambiente que não
garante sua integridade física, e que não têm controle sob si.
A exposição contaminadora: “os territórios do eu” são violados; a
fronteira que o indivíduo estabelece entre o seu ser e o ambiente é inva-
dida. Isso ocorre de várias maneiras, podendo ser exemplificadas como:
alimentação forçada ou restrita, coerção (tipo físico). A contaminação por
contato interpessoal: relação obrigatória com pessoas – mistura com gru-
pos étnicos, etários e raciais diferentes (de repente, o personagem pode ter
se exposto a contaminação interpessoal ao entrar em contato com pessoas
em condições de saúde diferente da dele, inicialmente). Em contraponto,
a entrada voluntária no processo de mortificação do eu já começa antes da
entrada propriamente dita na instituição, ou seja, o eu já é parcialmente
modificado, mas o que vai realmente marcar esse processo é o momento
da entrada na instituição.
Os mecanismos de adaptação são as respostas que o interno dá para
as ordens impostas pela instituição, pode-se dar através de mecanismos
de ajustamento primário ou secundário ou por uma junção dos dois ao
longo da sua permanência no internato (PARCELLE, 2002). Alguns me-
canismos de sobrevivência e aceitação da nova realidade: o afastamento da
nova realidade situacional (deixar de exercer intencionalmente as regras e
acontecimentos), a intolerância (não cooperar e desafiar a instituição), o
papel colonizador da instituição (faz com que o indivíduo acredite que a
vida dentro da instituição é aceitável e mais segura em relação aos aconte-
cimentos desordenados da sociedade externa), o convertimento (aceitação
da interpretação oficial e representação do papel de internado perfeito), a
viração (consiste na convenção de diferentes táticas tentando evitar dor
física e psicológica), a imunização (o ambiente da instituição passa a ser
habitual, rotineiro, de costume, tendo suas ações justificadas com a aceita-
ção). Esses meios impostos contribuem para degradar gradualmente a real
vontade do indivíduo, sendo que essa reorganização pessoal e essa morti-
ficação do eu causam um estado de insegurança, de angustia, de fracasso,
de impotência diante da situação posta.
Sendo incorporado o pensamento de dever cumprir o tempo de in-
ternação e as penas impostas, e o medo do retorno à sociedade diante

396
LU I Z A N TÔ N I O R E I S J U N I O R , M A U R I C I O P I R E S G U E D E S , T E L S O N P I R E S ,
VA N E S S A V E L A S C O, H E R N A N D E S B R I TO R E I S ( O R G . )

da ideia de não aceitação social haja vista que antes do confinamento o


internado vivera em uma realidade totalmente diferente da realidade ins-
titucional, ciente que ao retornar para a sociedade a sua realidade e suas
vivencias não serão as mesmas de antes, com a falta de contato com a so-
ciedade externa e as notícias, passa a se desatualizar dos hábitos atuais que
a sociedade poderá exigir-lhe.
A organização formal é alicerçada em contradições, a diferença está
nas práticas que internamente se faz e no discurso do que se faz , o que se
prega é diferente do que é feito na pratica.
A ruptura com as barreiras e a junção de três esferas da vida em um
único ambiente: trabalho (ou estudo), moradia e lazer, que através de re-
gras são realizados de forma coletiva sob a supervisão de um grupo de fun-
cionários, é de se perceber o ambiente hostil e de constante medo. Nessa
conjectura é possível observar opressores e oprimidos. Os opressores são a
equipe dirigente, que tem a função de modelar o comportamento; o gru-
po dos internados são os objetos ou sujeitos passivos de serem modelados.
A restrição de conhecimento e informações forma dois mundos sociais e
culturais: a separação entre a equipe dirigente e o internado é consequên-
cia da gestão burocrática de seres humanos. Outro aspecto é o desenvol-
vimento do trabalho dentro das instituições totais, que se caracteriza em
ser semelhante à escravidão, pois é um trabalho imposto ao internado, que
está sujeito em tempo integral às necessidades da instituição. Nem é de se
comparar a relação de trabalho na sociedade aberta.

2. A REALIDADE SOCIAL DENTRO DOS CENTRO DE


ATENDIMENTO SOCIOEDUCATIVO

Os Centros de Atendimento Socioeducativo têm a missão de


promover a reabilitação de jovens que tenham cometido algum tipo de
ato infracional. São jovens que, situados entre os 13 e os 21 anos de idade,
na efervescência juvenil portanto, se veem, de um momento para o outro,
privados de sua liberdade, retirada pelo Estado em nome de uma tutela
necessária à proteção social (PARCELLE, 2002). Não é somente essa per-
da momentânea da liberdade e da consequência psicossocial a que isso
poderá dar causa, também as condições a que são submetidos são, como
regra geral, totalmente insalubres e promíscuas.

397
DIMENSÕES JURÍDICAS DAS POLÍTICAS PÚBLICAS – VOL. 1

O Estatuto da Criança e do Adolescente entrou em vigência em 1990,


através da lei no 8.069 daquele mesmo ano, vindo a substituir, no ordena-
mento jurídico nacional, o antigo Código de Menores, Lei 6.697/1979.
O ECA, como mais comumente referido, veio com o intuito inovador de
revolucionar o direito infanto-juvenil, aplicando o princípio da Proteção
Integral, com vistas a dar a esses jovens uma proteção integral, por meio
de assegurar-lhes direitos próprios e especiais dada a sua condição peculiar
de pessoa humana em desenvolvimento, necessitada de tutela diferenciada
daquela dada aos adultos – especializada e integral.
Jurídica e socialmente, o ECA está embasado na Convenção Interna-
cional sobre os Direitos da Criança e Adolescentes, da Assembleia Geral
da ONU, cujo texto o Estado brasileiro adotou em sua integralidade67. O
ECA passou a vigorar sobre o que já existe de forma geral e está garantido
na Constituição Federal cidadã, em seu art. 5o, o direito à vida e à saúde,
à educação e à liberdade, ao respeito e à dignidade, à convivência familiar
e comunitária, à cultura, ao lazer e ao esporte, à profissionalização e à
proteção no trabalho.
Com o estatuto, tendo entrado em vigor a doutrina da proteção inte-
gral, as crianças e adolescentes são vistas como sujeitos de direito e carece-
dores de terem os seus direitos atendidos de formas prioritárias, porque se
encontram em especial estado de desenvolvimento, e os princípios cons-
titucionais acima devem ter eficácia material, não apenas garantia formal.
A ideia de pessoa, e decorrentemente os direitos da personalidade,
são proclamados no começo do novo Código Civil brasileiro. O Código,
embora não defina o que seja pessoa, compreende-se que esta é o indiví-
duo na sua dimensão ética, enquanto é e enquanto deve ser, e da pessoa
se originam todos os valores, sendo aquela o principal fundamento do or-
denamento jurídico; daí se pode afirmar que os direitos da personalidade
correspondem às pessoas humanas em cada sistema básico de sua situação
e atividades sociais (REALE, 2004). Este tipo de comunicação não exclui
os jovens sujeitos a medidas socioeducativas, pelo contrário, é imprescin-
dível a inclusão dessa categoria de cidadão no sistema de tutela jurídica da
figura da personalidade.

67 1 A Convenção foi recepcionada no ordenamento jurídico nacional através do Decreto No


99.710, de 21.11.1990.

398
LU I Z A N TÔ N I O R E I S J U N I O R , M A U R I C I O P I R E S G U E D E S , T E L S O N P I R E S ,
VA N E S S A V E L A S C O, H E R N A N D E S B R I TO R E I S ( O R G . )

O importante é saber que cada direito da personalidade tem como


correspondente um valor fundamental, valor este que é condição essencial
daquilo que somos, daquilo que sentimos, daquilo que percebemos ou
pensamos e do modo como agimos. Ora, não há como ou por que excluir
desse modo de sentir ou perceber o jovem submetido ao sistema socioe-
ducativo, pois malgrado sua submissão a um sistema coercitivo, o Estado
não pode suprimir sua dignidade.
Não somente a personalidade, mas também a dignidade é atributo
indissociável do ser humano. Ambas são características que marcam in-
trinsicamente a espécie humana e devem ser preservadas, notadamente
mais em um indivíduo imergindo na formação de sua personalidade. É
fundamental que sejam tomadas como balizas distinguíveis, colocadas em
um grau de estima absolutamente diferenciado, uma vez que a nenhum
outro valor que se deseje resguardar poderá ser feita igual consideração,
quer seja por parte da sociedade ou do Estado.
O ECA não acrescenta mais do que a própria Constituição Federal
não estabeleça de modo principiante. Já em seu primeiro artigo, nossa
Constituição declara que a cidadania, a dignidade da pessoa humana, en-
tre outros, são fundamentos do Estado Democrático do Direito.
A pessoa humana, enquanto titular de seus direitos básicos, deve re-
ceber do próprio Estado a garantia especial de sua tutela, então, os direitos
se constituem em faculdades sem as quais a pessoa seria inconcebível. Em
suma, são direitos da personalidade os a ela inerentes, como um atributo
essencial à sua constituição, de conformidade com o estabelecido para to-
dos os indivíduos que compõem a comunidade (SIQUEIRA, 2010).
Passados 30 anos desde a entrada em vigor do ECA, o que efetiva-
mente mudou? A assistência integral preconizada no texto normativo de
fato existe ou apenas o formalismo tem prevalecido?
Em nosso ordenamento jurídico vivenciamos a controvérsia da igual-
dade formal e da igualdade material, sendo que esses adolescente e jovens
internados nesses Centros de Atendimento Socioeducativo, mesmo am-
parados pelo ECA, não dispõem de uma educação formal e cursos pro-
fissionalizantes, imprescindíveis para que, quando saírem da instituição,
tenham condições de lutar por uma vaga em um mercado de trabalho que
é competitivo. São jovens que cometeram infrações graves, muitos vivem
duras realidades, difíceis de mudar se não tiverem ajuda.

399
DIMENSÕES JURÍDICAS DAS POLÍTICAS PÚBLICAS – VOL. 1

3. RELATOS PESSOAIS DE INTERNOS

A seguir expõe-se, de modo sintético, alguns relatos coletados de in-


ternos, segundo relatório analisado por nós, nos quais se pode ver o retrato
das causas principais que levaram tais jovens ao CASE-Pitimbú, que está
localizado no município de Parnamirim/RN, sendo responsável pela in-
ternação de socioeducandos do sexo masculino. São relatos às vezes pun-
gentes, cujo teor pode e deve ser levado na orientação de implantação de
atitudes de ressocialização destes jovens. Cumpre citar que tais relatos são
oriundos de uma oficina de comunicação realizada, CASE-Pitimbú, em
26 de junho de 2017, na qual se levou a termo a produção de texto.

A.F. 17 anos:

“ Eu moro com minha mãe que é costureira e meu pai que é pe-
dreiro. Tenho um irmão estudei até a 7ª. Série. estou preso por
assalto a mão armada e tráfico de drogas. Já fui preso várias vezes.
A gente fica a maioria do tempo dentro da cela, as vezes joga bola,
aqui não tem muito o que fazer, ai... a gente assiste . Aqui não
tem muita estrutura boa, mas é o jeito ficar aqui pra se re-
cuperar. Aqui dentro é de um jeito, lá fora é outro. Tenho,
vontade real de mudar, estudar , trabalhar , a pessoa sonha
em sair daqui e tem vontade de mudar, mas a própria so-
ciedade não deixa. A mudança e recuperação eu sei que de-
pende do meu esforço e da contribuição da sociedade, acei-
tando a gente de novo. Eu sei que vou sair daqui e vou ser
um homem de futuro e de bem.” (grifo nosso)

K.R. 19 anos:

“A razão pela qual entrei no CASE-Pitimbú foi porque entrei em


contato com as pessoas erradas. Tudo começou com os meus co-
legas de rua: mandaram-me sair para roubar coisas e tomar droga;
depois caí na tentação e comecei a fazer algumas coisas erradas,
mas não queria saber de nada, fazia tudo sem pensar.

Teve um dia que vi um dos meus inimigos, trocamos tiros e eu o


acertei na cabeça. Foi quando a polícia estava prestes a me matar.

400
LU I Z A N TÔ N I O R E I S J U N I O R , M A U R I C I O P I R E S G U E D E S , T E L S O N P I R E S ,
VA N E S S A V E L A S C O, H E R N A N D E S B R I TO R E I S ( O R G . )

Dez dias depois, fui à delegacia de menores, e me transferiram para


a central de triagem para aguardar minha sentença. Após 45 dias,
fui transferido para CASE-Pitimbú. Tenho dez meses e fugi duas
vezes. Em um delas, voltei com um por porte ilegal de armas.

Quando eu era pequeno. Eu ia de casa para a escola, era o


único que costumava sair para brincar com os amigos e
fazer coisas erradas. Muitas vezes presenciei agressões na
minha família e depois fugi de casa. Depois de um tempo,
eles me pegaram e me levaram para casa, mas eu fugi de
novo. Morei com meu tio, ouvi várias sugestões e orien-
tações, mas não tinha como, estava de volta à estrada com
más companhias. O crime atrasou muito minha vida.” (gri-
fo nosso)

J.F. 16 anos:

“Não conheço meu pai (...) Minha mãe me criou com outros três
irmãos, e sobrevivemos com a ajuda do pai dela. Minha mãe co-
nheceu outra pessoa que me criou. Vivemos tranquilamente em
casa porque o pai que me criou foi criado por uma irmã mais ve-
lha rígida, que nos criou assim. Ele não gosta muito de mim por-
que não sou seu filho legal. Ele gosta dos outros três. No Dia das
Crianças, meus irmãos receberam presentes, mas eu não, ele não
me deu e minha mãe comprou para mim.

Fiquei muito inconformado e perturbado com a vida, co-


mecei a pular a cerca de casa para brincar na rua, então fui
espancado pelo meu padrasto. Nos fins de semana, ele leva-
va meus irmãos para passear e depois me deixava tancado
em casa. Meus irmãos contavam tudo que eu fazia de tei-
mosia e meu padrasto e ele me espancava até eu não aguen-
tar.” (grifo nosso)

N.C. 15 anos:

“Comecei a estudar e a trabalhar aos oito anos. Quando meus


pais começaram a brigar e a se machucar fisicamente, eu
sofri muito. Eu tenho um irmão e lembro que ele tinha

401
DIMENSÕES JURÍDICAS DAS POLÍTICAS PÚBLICAS – VOL. 1

muito medo. A casa em que morávamos era de papelão e


restos de maderite, quando chovia ficava tudo alagado. Eu
me lembro que por causa do meu pai que ficava bebado o dia todo
e batia na gente, eu e meu irmão tivemos que nos mudar para casa
de minha avó. Depois de chegar, parei de fazer as coisas que fazia
antes, de xingar as pessoas, me levaram para a igreja, ela me botou
na escola. Depois que entrei aqui sinto muitas saudades da
minha mãe, do meu irmão, da minha avó, dos colegas do
meu bairro. (grifo nosso)

F.A. 18 anos:

“Moro no morro de Mãe Luiza. Eu matei um cara para me vingar


da morte do meu pai. A minha familia nunca aceitou isso e quer
que a vingaça a vingança volte, e eu fui lá e matei. É um jogo de
sobrevivência, morte ou morte. Quando ele me viu, ficava tirando
onda com a minha cara e vivia andando de ‘patota’ com os amigos.
Eu esperei ele tá sozinho e voltei ao local, antes que ele sacasse a
arma, atirei na cabeça, e dei três tiro no peito. Hoje estou aqui no
CASE-Pitimbu, Cumprindo pelo o que eu fiz. Mas o meu pai foi
vingado.

Aqui, só quem quer pode realmente se recuperar. A estru-


tura não é boa, as celas estão quebrados, só a sala do di-
retor que é limpa e bonita. Aqui, precisamos de cursos de
informática e outros cursos para que possa aprender algo.
Quando sair daqui, não queria estar de bobeira na rua. Mas
eu quero sair. Às vezes, o povo fala que “você mata pra ser
o bichão”. Não é assim a gente mata para se defender e de-
fender a familia”. (grifo nosso)

R. 18 anos:

“Meu pai e minha mãe são muito bons para mim. Meu pai é me-
cânico e minha mãe é costureitra. Quando eu era criança, saía
para roubar frutas nos sítios de outras pessoas. Minha mãe
me batia, não achava certo o que eu fazia. Gosto de jogar bi-
loca na rua, de andar de bicicleta ... Minha casa é um barraco,
tem um quarto e uma cozinha, o banheiro é fora. Minha

402
LU I Z A N TÔ N I O R E I S J U N I O R , M A U R I C I O P I R E S G U E D E S , T E L S O N P I R E S ,
VA N E S S A V E L A S C O, H E R N A N D E S B R I TO R E I S ( O R G . )

infância foi infeliz e sofri muito. Na escola, falei que ia, mas não
ia. Trabalhei de boia fria. Era distante onde eu trabalhava e
eu queria comprar uma moto, comecei a roubar, fui pego”
(grifo nosso)

W.J. 19 anos:

“Eu nasci antes do tempo e tive muitos problemas de saúde,


tive que passar por várias operações. Meus pais cuidaram muito
de mim. Minha casa é bem organizada e muito boa, e meus pais
sempre me deram tudo. Eu nunca fui maltatado em minha in-
fância. Quando era pequeno não tinha punição, era apenas sentar
e conversar. Eu amo minha familia. Eles não me culpam por eu
está aqui.

Eu estudei em escola particular. Eu reprovei algumas vezes. Desisti


de ir para a aula. Sob a influência de meus amigos, fiquei viciado
em drogas. Para ganhar confiança, tive que fazer o que eles pedi-
ram. Eu até matei uma pessoa. Estou aqui porque fiz uma saidinha
de banco. Eu via algumas eles fazendo isso e eu queria ser famoso.
Depois de vários roubos e fui condenado e preso. Usei todo tipo de
droga, mas não sou viciado.

O CASE- Pitimbu é a porta para o inferno e para o presí-


do. Aqui no meio dessa mata é dificil para as famílias nos
visitarem, a estrutura não é boa, as celas estão quebadras
e sujas, a comida é um lixo, aqui trata a gente feito bicho.
Tenho saudades de tá livre, da minha família. Tenho vergonha
do que fiz. Mas, estou muito orgulhoso porque paguei parte da
minha dívida. Depois, pretendo trabalhar, ser honesto e ser um
bom cidadão. Deixar os pais orgulhosos.” (grifo nosso)

3.1 Considerações sobre os relatos

Não se pretende assumir uma posição de vitimismo aqui, mas a cri-


tica que se faz é que a sociedade fecha os olhos a um grave problema so-
cial, preferindo o caminho fácil de criminalizar pessoas que têm todo um
potencial de recuperação e integração à sociedade de forma produtiva.
Nos relatos pessoais coletados de internos, podemos ver uma afirmação

403
DIMENSÕES JURÍDICAS DAS POLÍTICAS PÚBLICAS – VOL. 1

comum a todos os internos: a consciência dos delitos praticados e o de-


sejo de reintegração social. Não se observa um sentimento de revolta ou
indignidade insurgindo contra a internação, mas há plena consciência dos
malefícios a que se submetem por uma conduta reprovável antecedente.
Não há, nos casos relatados, uma situação doméstica uniforme, mas
como é notório, o fator social e econômico familiar adverso está signi-
ficativamente presente na quase totalidade (6 dos 7) dos casos citados.
Curiosamente, apenas dois dos entrevistados apontaram conflito domés-
tico como condição pré-existente a seu ingresso, que somos tendentes
a acreditar que isso pode se configurar como fator influente na inserção
desses jovens em práticas reiteradas conflituosas com a lei. Por outro lado,
em uma quase unanimidade o relato da influência de amigos na inserção
da prática dessas condutas, inclusive se constituindo a prática de delitos
em fator de autoafirmação perante o seu grupo. O eu do jovem, ainda
em processo de consolidação, é extremamente dependente da aprovação
dos integrantes de seu grupo, e seu ingresso na instituição total tem poder
de destruí-lo, mudando sua personalidade e intensificando o sentimento
de inconformismo e revolta social, canalizando o potencial construtivo
do jovem para um caminho de autodestruição e de agressão à sociedade
que o cerca, a partir de uma inadequação ou não aplicação dos proces-
sos educativos de ressocialização que são o objetivo cerne dos Centros de
Atendimento Socioeducativo, como instrumento de materialização das
políticas estabelecidas no ECA, que abraça o jovem em conflito como
um ser dotado de personalidade frágil, ainda em consolidação, e portanto
merecedor de cuidados especiais.
Desse modo vale ressaltar o seguinte questionamento: como a institu-
cionalização de adolescentes em conflito com a lei pode afetar seus direitos
da personalidade? Ademais, quais as consequências que a perda tempo-
rária da liberdade poderá ocasionar a sua personalidade? Até que ponto a
privação de liberdade ajuda na recuperação deles? Que oportunidades são
dadas para que trilhem o caminho da cidadania? Enfim, como funcionam
os Centros de Socioeducação?
Esse trabalho não pretende responder a tais questionamentos, mas
deixá-los como pontos de reflexão imprescindíveis para nortear a conduta
dos que integram a gestão do sistema socioeducativo de menores. Cumpre
lembrar que a personalidade é um valor a ser preservado, entendida que

404
LU I Z A N TÔ N I O R E I S J U N I O R , M A U R I C I O P I R E S G U E D E S , T E L S O N P I R E S ,
VA N E S S A V E L A S C O, H E R N A N D E S B R I TO R E I S ( O R G . )

é como um valor ilimitado a ser tutelado, e desse modo os adolescentes


e jovens em situação de cumprimento de medida socioeducativa não se
dissociam desse caráter. A visão constitucional permite uma leitura que é
ampliativa dos direitos da personalidade. Isso implica que a sua não rea-
lização no mundo fático se afigura como desrespeito aos direitos funda-
mentais desses jovens precarizados. Vale destacar que, abrangendo todas
as projeções da personalidade, os direitos de cada indivíduo são contem-
plados no artigo 1º, III da Carta Federal do Brasil (BRASIL, 1988). A
consagração da dignidade da pessoa humana implica em se ter uma vida
digna mesmo para um jovem interno no sistema de ressocialização, tendo
como pressuposto necessário o respeito a todos os aspectos físicos, psíqui-
cos e intelectuais envolvidos.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Pelo exposto acima, é preciso apresentar alguns entraves comuns das


instituições totais: o castigo exagerado não re-socializa, nem recupera
ninguém, o sujeito internado fica sem autonomia, alienado do mundo
exterior, muitas vezes são encontrados em situação desumana, sujos e sem
noção do externo, ficam trancados sob o medo constante, tendo todo seu
universo pessoal reduzido a mandos e desmandos de terceiros, às barreiras
que as instituições totais colocam entre o internado e o mundo externo.
Assinalam a primeira mutilação do eu, a perda de um sentido de segurança
pessoal comum, e constitui um fundamento para a angústia e o desfigu-
ramento. Apresenta a perda de decisão pessoal, controle da vida diária de
um espaço restrito e com pouco recurso.
O individuo é antes de tudo um ser que precisa ser reconfigurado,
pois está sem direitos, submetido ao poder da instituição onde os casti-
gos, que são severos e desumanos, são definidos como consequência de
desobediência a regras estabelecidas pelos profissionais que ali estão, re-
gras que têm intuito de controlar e manter a ordem e o funcionamento
do estabelecimento. Os internos passam a ser objetos de lucro. Ao sair
da instituição, o sujeito já não tem condições de conviver com as pessoas
consideradas normais. As marcas deixadas são cruéis, dolorosas e trau-
matizantes. É de grande valia a promoção e garantia e defesa dos direitos
humanos, dos direitos da personalidade do individuo, o combate à discri-

405
DIMENSÕES JURÍDICAS DAS POLÍTICAS PÚBLICAS – VOL. 1

minação e à exclusão social dos sujeitos em processo de re-socialização e


a adoção de modelos mais humanos de tratamento visando a reabilitação
e reinserção social.
Sendo assim se faz necessário que haja uma efetivação plena da apli-
cação dos dispositivos contidos na Lei 8.069/90, por parte dos dirigentes
das instituições a que competem aplicar as medidas de ressocialização, ga-
rantindo assim a eficácia e a proteção dos direitos da personalidade desses
sujeitos. Em concordância com o pensamento do educador Paulo Freire
de que “é fundamental diminuir a distância entre o que se diz e o que se
faz, de tal forma que, num dado momento, a tua fala seja a tua prática”
(FREIRE, 1996).

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BRASIL. Lei n. 8.069, de 13 de julho de 1990. Dispõe sobre o Estatuto


da Criança e do Adolescente e dá outras providências. Disponível
em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/l8069.htm. Acesso
em: 05 jun. 2020.

BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federati-


va do Brasil.

Brasília, DF: Senado Federal: Centro Gráfico, 1988

FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia: saberes e necessários à prá-


tica educativa. São Paulo: Paz e Terra, 1996 (Coleção Leitura).

GOFFMAN, Erving. Manicômios, Prisões e Conventos. Tradução


de Dante Moreira Leite. São Paulo: Perspectiva, 1974. p. 13-108.

GONÇALVEZ, W. Audiência Pública n° 0604/08: discurso de maio


de 2008. Brasília, DF: Câmara dos Deputado – DETAQ, 2008.
Disponível em: https://www.camara.leg.br/internet/sitaqweb/Tex-
toHTML.asp?etapa=11&nuSessao=0604/08. Acesso em: 06 set.
2020.

PARCELLE, Eugênio. Um olhar sobre o CEDUC: Lei x realidade


numa instituição de provação de liberdade. Natal: TerrAmar,
2002.

406
LU I Z A N TÔ N I O R E I S J U N I O R , M A U R I C I O P I R E S G U E D E S , T E L S O N P I R E S ,
VA N E S S A V E L A S C O, H E R N A N D E S B R I TO R E I S ( O R G . )

REALE, Miguel. Os direitos da personalidade. Artigo eletrônico.


2004. Disponível em: http://www.miguelreale.com.br/artigos/dir-
pers.htm. Acesso em: 17 jan. 2020.

SIQUEIRA, Alessandro Marques de. Direitos da personalidade. In:


Âmbito Jurídico, Rio Grande, XIII, n. 80, out. 2010. Disponível
em: http://www.ambito-juridico.com.br/site/index.php?n_link=re-
vista_artigos_leitura&artigo_id=8509. Acesso em 17 jan. 2020.

407
O DIREITO AO LIVRE EXERCÍCIO DOS
CULTOS FRENTE AS LIMITAÇÕES
DECORRENTES DA PANDEMIA
CAUSADA PELO COVID-19
Hilzemara de Oliveira Alcântara68
Erivaldo Cavalcanti e Silva Filho69

INTRODUÇÃO

Desde os tempos mais remotos a religião sempre foi alvo de grandes


discussões polêmicas e até mesmo guerras, dividindo povos e nações in-
teiras.
A luta pelo direito de exercer livremente o culto religioso, fez com
que o homem buscasse a garantia e proteção desse direito, o que ao lon-
go do tempo foi conquistado, entretanto, mesmo estando garantidos pela
lei, tais direitos não são absolutos, o que foi possível evidenciar no con-
texto atual que vivemos, diante do avanço da pandemia provocada pelo
covid-19. “Um direito fundamental vai até onde começa outro e, diante de eventual
colisão, ponderando interesses, um deverá prevalecer em face do outro, se não for pos-
sível harmonizá-los.” (LENZA, 2015, p. 1670).

68 Acadêmica do Curso de Direito da Universidade do Estado do Amazonas/UEA (Tefé-AM).


69 Prof. Doutor Permanente da Universidade do Estado do Amazonas (UEA). Professor dos
Programas de Mestrado em Direito Ambiental da Universidade do Estado do Amazonas
(PPGDA-UEA) e do Mestrado em Constitucionalismo e Direitos na Amazônia da Universida-
de Federal do Amazonas (PPGD-UFAM). Membro do Grupo de Estudos de Direito de Águas
(GEDA).

408
LU I Z A N TÔ N I O R E I S J U N I O R , M A U R I C I O P I R E S G U E D E S , T E L S O N P I R E S ,
VA N E S S A V E L A S C O, H E R N A N D E S B R I TO R E I S ( O R G . )

O tema proposto visa analisar precisamente o direito ao livre exer-


cício dos cultos religiosos, garantidos pela Constituição Federal em seu
artigo 5º, inciso VI, abordando pontos específicos como a importância
do direito à liberdade religiosa para o ser humano enquanto cidadão, visto
que a religião é algo muito presente no cotidiano do homem, desde seu
nascimento até a morte.
Tendo em vista o cenário atual e à medida que direitos fundamentais
foram limitados, em decorrência do problema de saúde que atinge o mun-
do, é de extrema importância compreender e buscar soluções para que os
direitos fundamentais possam se harmonizar à liberdade religiosa.
Diante do fato de vivermos em um país onde a prática religiosa é algo
tão significativo para cada individuo, restringir uma das suas liberdades
básicas poderia contradizer o principío da dignidade da pessoa humana,
visto que a liberdade religiosa está intimamente relacionada às escolhas
pessoais de cada ser humano.
Por se tratar de uma liberdade inviolável, entende-se que o estado não
poderia intervir na maneira que cada pessoa exterioriza sua crença, no en-
tanto, as determinações estabelecidas pelos decretos durante a pandemia
limitaram o livre exercicio dos cultos, proibindo as reuniões presenciais
nos templos religiosos, como forma de conter o avanço da pandemia.
Convêm, aqui, ressaltar que as limitações ocorreram como forma de
preservar a saúde da coletividade, bem como o direito constitucional à
vida e à saúde, portanto evitando uma possível desestruturação da ordem
pública.
Com base nas considerações apresentadas, busca-se analisar a limita-
bilidade do direito à liberdade religiosa e suas manifestações, quando estas
conflitam com outros direitos individuais, diante de um cenário crítico na
saúde que atinge a coletividade. Para isso foi utilizado o método dedutivo
partindo de argumentos gerais para argumentos particulares.
Com o intuito de buscar respostas para a questão formulada, o presen-
te artigo foi dividido em quatro capítulos. O primeiro capítulo fará breves
apontamentos sobre fé, crença e culto, a sua importância para o homem
enquanto ser religioso e sua relação com o principio da dignidade da pessoa
humana. Nos capítulos seguintes será realizado uma exposição do conteúdo
jurídico acerca do direito a liberdade religiosa e suas manifestações. Por fim
serão estabelecidas as considerações pertinentes sobre o assunto.

409
DIMENSÕES JURÍDICAS DAS POLÍTICAS PÚBLICAS – VOL. 1

1. BREVES APONTAMENTOS SOBRE FÉ, CRENÇA E


CULTO E A SUA RELAÇÃO COM A DIGNIDADE DA
PESSOA HUMANA

1.1 O VALOR DA FÉ, CRENÇA E CULTO PARA O HOMEM


ENQUANTO SER RELIGIOSO

Impulsionado sobretudo pelo anseio de conhecer a si mesmo, sua


existência, e obter respostas para as aspirações do seu coração, o homem
tornou-se um ser religioso, que nunca se satisfaz plenamente com as res-
postas obtidas no plano terrestre, acreditando que essa inclinação para a
prática religiosa é inerente a sua condição humana. “O pensamento secular
trata a questão religiosa como se fosse um campo “opcional” às pessoas, como se elas
não tivessem esta inclinação “religiosa” natural que serve de pano de fundo para a
interpretação de tudo aquilo que aprende.” (PORTELA, 2012, p. 136).
Levando em consideração o que foi dito pelo autor citado no pará-
grafo anterior, o homem pode ser considerado um “Ser Religioso”, uma
vez que suas escolhas são construídas a partir de sua natureza religiosa, e
por esse motivo o exercício habitual da fé e sua prática através dos culto é
tão importante, pois a comunhão com outras pessoas que compartilham
da mesma fé, fortalece o espirito e faz com que enfrentem com ânimo,
situações dificéis como a que aconteceu durante a pandemia.
As manifestações religiosas, através dos cultos, servem de apoio para a
vida social do homem, fazendo com que ele experimente sentimentos que
seriam impossíveis de serem vivenciados se estivesse a sós.
A esse respeito Durkheim defende que:

No seio de uma assembléia que uma paixão comum inflama, tor-


namo-nos suscetíveis de sentimentos e atos de que seríamos inca-
pazes, quando reduzidos a nossas simples forças; e, quando a as-
sembléia é dissolvida, quando novamente sós, recaímos em nosso
nível ordinário, podemos avaliar então a altura que forâmos eleva-
dos acima de nós mesmos. (DURKHEIM, 1996, p. 214-215)

De acordo com o autor, para os membros de uma determinada reli-


gião, estar reunidos “no seio de uma assembléia”, não se trata de um sim-

410
LU I Z A N TÔ N I O R E I S J U N I O R , M A U R I C I O P I R E S G U E D E S , T E L S O N P I R E S ,
VA N E S S A V E L A S C O, H E R N A N D E S B R I TO R E I S ( O R G . )

ples encontro em um lugar de adoração, mas de estar em um local onde


experiências fenomenais são vividas através do exercício da fé e do cultivo
dos relacionamentos.
Para precisar ainda mais a questão da importância da religião para o
homem, Silva traz a seguinte colocação:

A religião não é apenas sentimento sagrado puro. Não se realiza


na simples contemplação do ente sagrado, não é simples adoração
a Deus. Ao contrário, ao lado de um corpo de doutrina, sua ca-
racteristica básica se exterioriza na prática dos ritos, no culto, com
suas cerimônias, manifestações, reuniões, fidelidades aos hábitos,
às tradições, na forma indicada pela religião escolhida. (SILVA,
2005, p. 249)

Como um meio constituído para a prática religiosa, frequentar os cul-


tos constantemente no ambiente destinado para isso, é de grande impor-
tância para instruir, ensinar e levar as pessoas a estarem em comunhão uns
com os outros e principalmente com Deus.
A prática de determinada religião para o ser humano, permite que
ele esteja intimamente conectado a um Ser Superior, que o salvará e irá
proporciona-lhe uma vida na eternidade. É Por meio da prática religiosa
que o homem mantém um relacionamento espiritual com Deus, sendo de
extrema importância a garantia da liberdade religiosa e, por conseguinte, a
dignidade da pessoa humana (SANTOS JÚNIOR, 2015).
Diante dessa perspectiva, deve-se reconhecer a importância para o
ser humano em exercer a sua fé através da realização dos cultos e demais
manifestações religiosas, que em meio a pandemia sofreram um grande
impacto, uma vez que a comunhão e os rituais tem grande valor espiritual
para o homem.

1.2 O LIVRE EXERCÍCIO DO CULTO E SUA RELAÇÃO


COM O PRINCIPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA
HUMANA

A liberdade Religiosa e suas manifestações, dentre elas o livre exer-


cício do culto, é garantida pela Constituição Federal da República, que
dispõe em seu o artigo 5º, inciso VI: “É inviolável a liberdade de consciência e

411
DIMENSÕES JURÍDICAS DAS POLÍTICAS PÚBLICAS – VOL. 1

de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma
da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias.” (Brasil, 1988).
De igual modo o artigo 18 da Declaração Universal dos Direitos Hu-
manos discorre:

“Toda pessoa tem direito à liberdade de pensamento, consciên-


cia, religião; este direito inclui a liberdade de mudar de religião
ou crença e a liberdade de manifestar essa religião ou crença, pelo
ensino, pela prática, pelo culto e pela observância, isolada ou co-
letivamente, em público ou em particular”. (DECLARAÇÃO
UNIVERSAL DOS DIREITOS HUMANOS, 1948).

Esse direito passou a ser garantido constitucionalmente a partir da


Constituição da República, de 1891, onde no art. 72, § 3º, foram con-
sagradas as liberdades de crença e de culto, e estabelecido que “todos os
indivíduos e confissões religiosas podem exercer pública e livremente o
seu culto, associando-se para esse fim e adquirindo bens, observadas as
disposições do direito comum”, sendo essa previsão adotada por todas as
outras constituições.
No que se refere à proteção aos direitos humanos, esta foi consagrada
na dignidade da pessoa humana, um dos Fundamentos da República Fe-
derativa do Brasil e pilar para sustentação da liberdade religiosa.
A liberdade individual de cada pessoa de poder escolher não somente
a crença que lhe aprouver, mas também o direito de cultuar da forma que
desejar, está inserido no âmbito de proteção do princípio da dignidade da
pessoa humana, por se tratar de algo tão particular e que provém da na-
tureza do homem. Para o indivíduo a prática do culto tem relação direta
com a maneira de como ele exterioriza sua crença, podendo ser realizada
através de rituais ou cerimônias, em locais públicos ou particulares.
Como fundamento da República Federativa do Brasil, o princípio
da dignidade da pessoa da humana, consagrou nosso Estado como uma
organização centralizada no ser humano, e não em qualquer outro refe-
rencial. A causa de ser do Estado brasileiro não se baseia na propriedade,
em grupos, em alianças, em organizações religiosas, muito menos no pró-
prio Estado, como é acontece nos regimes totalitários, mas sim no próprio
homem (PAULO e ALEXANDRINO, 2017).

412
LU I Z A N TÔ N I O R E I S J U N I O R , M A U R I C I O P I R E S G U E D E S , T E L S O N P I R E S ,
VA N E S S A V E L A S C O, H E R N A N D E S B R I TO R E I S ( O R G . )

Por se tratar de um princípio fundado na pessoa humana, não faz


sentido as pessoas terem liberdade para declarar sua religião embora não
a tenham para praticá-la, logo, restringir o direito de cultuar viola esse
fundamento ético para a República Federativa do Brasil, constituída em
Estado Democrático de Direito.
Diante do exposto, e sob a ótica da dignidade da pessoa humana, é
possível verificar o quanto os valores considerados essenciais para a vida do
indivíduo devem ser respeitados, caso contrário atingem diretamente sua
honra, e cabe ao estado a defesa desses valores, não se omitindo quando
existir uma possível ameaça de violação, já que a liberdade religiosa deriva
da dignidade da pessoa humana.

2. LIMITABILIDADE DO DIREITO AO LIVRE EXERCÍCIO


DO CULTO.

O artigo 12, §3 da Convenção Americana de Direitos Humanos


(Pacto de São José da Costa Rica), dispõe, in verbis:

§3 A liberdade de manifestar a própria religião e as próprias crenças está


sujeita apenas às limitações previstas em lei e que se façam necessárias
para proteger a segurança, a ordem, a saúde ou a moral públicas ou
os direitos e as liberdades das demais pessoas. (CONVENÇÃO
AMERICANA DE DIREITOS HUMANOS, 1969).

Nesse mesmo sentido o artigo 29, §2 da Declaração Universal dos


Direitos Humanos discorre:

§2 No exercício de seus direitos e liberdades, todo ser humano estará


sujeito apenas às limitações determinadas pela lei, exclusivamente
com o fim de assegurar o devido reconhecimento e respeito dos
direitos e liberdades de outrem e de satisfazer as justas exigências
da moral, da ordem pública e do bem-estar de uma sociedade
democrática. (DECLARAÇÃO UNIVERSAL DOS DIREI-
TOS HUMANOS, 1948).

Embora, o direito a liberdade religiosa esteja garantido, não somente


pela legislação brasileira, mas também pela legislação internacional, sendo

413
DIMENSÕES JURÍDICAS DAS POLÍTICAS PÚBLICAS – VOL. 1

considerado um direito humano inviolável pelas convenções internacio-


nais, como a Declaração Universal dos Direitos Humanos e Pacto de San
José da Costa Rica, possui algumas limitações ao conflitar com outros
direitos também consagrados na legislação pátria.
Nesse mesmo sentido, Moraes afirma que:

Os direitos e garantias fundamentais consagrados pela Constitui-


ção Federal, portanto, não são ilimitados, uma vez que encontram
seus limites nos demais direitos igualmente consagrados pela Car-
ta Magna (Princípio da relatividade ou convivência das liberdades
públicas). (MORAES, 2016, p. 93)

Logo que foi evidenciada a necessidade de medidas restritivas para


conter o avanço do contágio pelo vírus covid-19, os governos, da esfe-
ra federal, estadual e municipal, passaram a determinar limites através de
decretos, aos direitos fundamentais dentre eles o direito ao livre exercício
do culto.
Por se tratar de uma crise de saúde pública, ou seja, um estado de
emergência, o poder público pode restringir alguns direitos em detrimen-
to de outros, como disposto no art. 12, §3 da Convenção Americana de
Direitos Humanos, mencionado anteriormente, pois é necessário que di-
reitos também consagrados pela constituição, como a vida e a saúde, te-
nham a proteção necessária.
Nesse sentido, a própria constituição esclarece em seu art. 5°, inciso
VIII, que “ninguém será privado de direitos por motivo de crença religiosa ou
de convicção filosófica ou política, salvo se as invocar para eximir-se de obrigação
legal a todos imposta e recusar-se a cumprir prestação alternativa, fixada em lei”.
(Brasil, 1988).
Apesar dos decretos aparentarem violação à norma constitucional,
por restringirem o livre exercício dos cultos, o estado pode sim interferir
nas escolhas individuais de cada pessoa, quando observada à possibilidade
de desestruturação da ordem pública, principalmente quando estas esco-
lhas individuais se afastam do bem-estar coletivo.
Apoiado no entendimento de doutrinadores, Clodoaldo Moreira dos
Santos Júnior discorre:

414
LU I Z A N TÔ N I O R E I S J U N I O R , M A U R I C I O P I R E S G U E D E S , T E L S O N P I R E S ,
VA N E S S A V E L A S C O, H E R N A N D E S B R I TO R E I S ( O R G . )

“Os direitos fundamentais devem ser entendidos como princípios,


ou seja, não são absolutos haja vista que são passíveis de restrições.
Como os princípios são dotados de relatividade, no caso de colisão,
deve-se fazer a ponderação entre eles e aplicar o mais adequado ao
caso concreto”. (SANTOS JÚNIOR, 2015, p. 29)

Embora seja um direito fundamental do ser humano, limitar os cul-


tos religiosos durante a pandemia, foi uma das formas encontradas para
assegurar o bem comum, logo, as restrições que ocorreram no ápice da
pandemia são legitimas.

3. HARMONIZAÇÃO DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS

A limitação ao direito de cultuar durante o período da pandemia, está


em perfeita consonância com o conceito clássico de que os direitos funda-
mentais não dispõem de caráter absoluto, e por esse motivo são restringi-
dos por outros direitos igualmente fundamentais, uma vez que deve haver
um equilíbrio recíproco entre os direitos fundamentais, onde um direito
fundamental não inviabilize outro direito garantido constitucionalmente.
Convém lembrar que nem mesmo o direito à vida, enumerada pri-
meiramente no artigo 5º da constituição, é absoluto, porquanto na própria
Carta Magna existem várias exceções a esse direito, como a possibilidade
de pena de morte em caso de guerra declarada. Isso demonstra que não
existe hierarquia de direitos, visto que todos gozam da mesma proteção
juridica, ainda que o direito a vida seja essencial para que os demais direi-
tos possam existir.
A questão, sem dúvidas, envolve uma aparente colisão de direitos
fundamentais, uma vez que tanto a vida como a liberdade religiosa en-
contram amparo na Constituição Federal, sendo consideradas garantias
fundamentais.
Diante dessa situação surgem questionamentos que dividem opiniões,
uma vez que não exite hierarquia de direitos fundamentais, qual deve pre-
valecer o direito a vida, diante de um risco eminente de contágio coletivo
ou o direito de culto?
De acordo com Moraes, “o direito à vida é o mais fundamental de todos os
direitos, já que se constitui em pré-requisito à existência e exercício de todos os demais

415
DIMENSÕES JURÍDICAS DAS POLÍTICAS PÚBLICAS – VOL. 1

direitos” (MORAES, 2016, p. 97). Logo, é evidente que na prevalência de


direitos, o direito à vida se sobressai a qualquer outro, uma vez que sem ela
era impossível exercer os demais.
Diante do atual momento vivenciado pela humanidade é essencial
que os direitos fundamentais sejam harmônicos entre si, não existindo mi-
tigação de um em face de outro, pois o maior interesse para humanidade
atualmente é a preservação da vida.
Diante do exposto, levando em consideração o momento histórico
vivido pela humanidade e com o intuito de minimizar os efeitos da pan-
demia, as limitações determinados pelo poder público, são legitimas, visto
que o direito fundamental conflitante com os demais direitos é a vida e
no juízo de proporcionalidade ela deve prevalecer sobre os demais direitos
fundamentais, e isso inclui o direito de qualquer individuo exercer livre-
mente o culto.

4. SOLUÇÕES APONTADAS PELA DOUTRINA QUANDO


DIREITOS FUNDAMENTAIS COLIDEM.

A orientação das autoridades assim que foram noticiados os primeiros


casos de contágio pelo virus no país, foi de que toda população deveria
se isolar socialmente e evitar contato fisico, em decorrêcnia do vírus ser
extremamente contagioso, logo em seguida determinações instituídas por
meio de decretos foram surgindo, e direitos sendo restringidos.
Contudo, como foi explicitado anteriormente, os direitos fundamen-
tais não são absolutos, e acabam colidindo entre si, e no caso de colisão
entre os direitos deve-se avaliar ambos e verificar a relevância que cada um
possui no caso concreto.
Sobre a colisão dos direitos fundamentais explica Masson:

(...) os direitos fundamentais entram em colisão entre si, ou podem


colidir com outros valores protegidos constitucionalmente. Trata-
-se da denominada colisão de direitos fundamentais, “fenômeno
que emerge quando o exercício de um direito fundamental por
parte de um titular impede ou embaraça o exercício de outro direi-
to fundamental por parte de outro titular, sendo irrelevante a coin-
cidência entre os direitos envolvidos”. (MASSON, 2020, p. 254)

416
LU I Z A N TÔ N I O R E I S J U N I O R , M A U R I C I O P I R E S G U E D E S , T E L S O N P I R E S ,
VA N E S S A V E L A S C O, H E R N A N D E S B R I TO R E I S ( O R G . )

A pandemia gerada pelo novo corona vírus, provocou essa colisão de


alguns direitos fundamentais, dentre eles o livre exercício do culto, que en-
trou em choque com outros direitos, suscitando o questionamento de qual
deles tem maior valor e é mais relevante para o homem, pois mesmo tendo
a mesma hierarquia, analisando o caso concreto, um deles prevalecerá.
Como visto anteriormente na colisão dos direitos fundamentais du-
rante a pandemia, alguns foram limitados e para justificar essa limitação
utiliza-se o princípio da proporcionalidade. É salutar que se observe que
a proporcionalidade é fundamental para demonstrar a legalidade das leis e
dos atos normativos que restringem direitos fundamentais, sendo essencial
para legitimar decisões. “O princípio da proporcionalidade é utilizado, também,
com frequência, como instrumento de ponderação entre valores constitucionais con-
trapostos, aí incluídas as colisões de direitos fundamentais e as colisões entre estes e
interesses coletivos.” (BARROSO, 2010, p.298).
Para compreender essa posição doutrinária, Gilmar Mendes se mani-
festa no sentido de que:

Os princípios são espécies de normas que exigem a realização de


algo, da melhor forma possível, de acordo coma as possibilidades
fáticas e jurídicas (razão pela qual os princípios são chamados de
mandados de otimização). Assim, os princípios são determinações
no sentido de que certo bem jurídico será satisfeito e protegido na
maior medida que as circunstâncias permitirem. Observe-se, en-
tão, que um princípio poderá ser aplicado em graus diferenciados,
conforme as peculiaridades de cada caso. (GILMAR MENDES,
2015, p.183 apud MASSON, 2020, p. 254)

Os direitos fundamentais, aparecem na maioria das vezes como prin-


cípios e numa eventual colisão desses princípios, deve-se buscar a pon-
deração entre eles, aplicando a cada um deles critérios orientadores em
extensões variadas, conforme a relevância que deve ser demonstrada no
caso concreto, lembrando que não se admite a exclusão de nenhum de-
les do ordenamento jurídico (MENDES, 2015, p. 183 apud MASSON,
2020, p. 255).
Nesse sentido, diante da ocorrência de um conflito entre direitos
fundamentais, aparentemente não existe uma norma específica para so-

417
DIMENSÕES JURÍDICAS DAS POLÍTICAS PÚBLICAS – VOL. 1

lucioná-los, visto que se trata de principios constitucionais e não exis-


te hierarquia entre eles, pois todos possuem o mesmo prestigio dentro
do ordenamento juridico brasileiro, a solução razoável para as colisões de
direitos fundamentais seria a utilização da hermenêutica constitucional,
oportunizada aos julgadores, para que efetuem uma escolha justa.
Nota-se, portanto, que a árdua tarefa de interpretar cuidadosamente
a norma, e tentar solucionar os conflitos, compete ao julgador, que deve
analisar o caso concreto, balancear os direitos fundamentais e por fim de-
terminar qual deverá prevalecer, fundamentando suas decisões em prin-
cípios orientadores dos direitos fundamentais, utilizando técnicas como a
ponderação dos bens jurídicos envolvidos.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Demonstrar a necessidade que o ser humano religioso possui em exer-


citar sua fé, evidencia a importância de garantir a efetividade da proteção
constitucional ao direito do indivíduo de exercer plenamente suas con-
vicções religiosas, uma vez que a religião é um componente indispensável
para o homem, e consagrada no principio da dignidade da pessoa humana.
O direito à participação em cultos religiosos, foram limitados através
dos decretos que reconheceram o estado de emergência na saúde pública
e determinaram a interrupção dos cultos, como forma de prevenção. É
sabido que em um Estado Democrático de Direito, o poder é limitado e
vinculado estritamente aos preceitos legais vigentes, e no período da pan-
demia os decretos foram as regras legais para orientar a população.
A problemática demonstrou que embora a liberdade religiosa e suas
manifestações, estejam consagradas no principio da dignidade humana e
assegurada pela Constituição, não possuem caráter absoluto, visto que há
uma relativização desses direitos diante das circunstâncias concretas, de-
vendo-se utilizar um juizo de ponderação de interesses para indicar qual
deles possui o maior peso.
É importante salientar que assim como a liberdade religiosa, o direito
a vida e a saúde, possuem a mesma proteção juridica e não existe qualquer
diferença hierarquica entre eles, porém a vida mesmo não sendo superior
aos outros direitos fundamentais, é imprescindíevel para a obtenção dos
demais direitos.

418
LU I Z A N TÔ N I O R E I S J U N I O R , M A U R I C I O P I R E S G U E D E S , T E L S O N P I R E S ,
VA N E S S A V E L A S C O, H E R N A N D E S B R I TO R E I S ( O R G . )

Nessa linha de entendimento, usando como critério o fato de que ne-


nhum direito é absoluto, a colisão destes direitos deve ser resolvida através
de uma ponderação de interesses à luz do caso concreto, harmonizando-se
a sua coexistência.
Na condição, de que o direito à vida e à saúde, predomina sobre o
direito à liberdade religiosa, sobretudo, quando se vê a velocidade e leta-
lidade do Covid 19, pode-se avaliar que, descumprir as restrições legais,
apresentava grande risco à coletividade.
Ante o exposto, , no âmbito da ponderação de direitos, fica evidente
que em meio as adversidades causadas pela pandemia, o direito à vida deve
imperar frente aos outros direitos fundamentais, ficando o poder público
incubido de preservar e proteger a vida humana. Nesse sentido, a vida não
deve ser relativizada, uma vez que é indispensável para o exercício dos
demais direitos fundamentais.
Por isso, é importante reconhecermos que as limitações ao direito cons-
titucional da liberdade de cultuar não seria ilícita, haja vista que os valores
constitucionais em choque possuem a mesma hierarquia. Deste modo na
análise do caso concreto, foi evidenciado que a vida possui uma importância
superior a todos os outros direitos, em especial à liberdade religiosa e o livre
exercício do culto que não se sobrepõe a dignidade da pessoa humana, uma
vez que a vida é o direito primordial da existência humana.

REFERÊNCIAS

BARROSO, Luís Roberto. Curso de Direito Constitucional Con-


temporâneo: os Conceitos Fundamentais e a Construção do
Novo Modelo. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2010.

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. 1988.

DURKHEIM, Émile. As Formas Elementares da Vida Religiosa.


Trad. Paulo Neves. São Paulo: Martins Fontes, 1996.

LENZA, Pedro. Direito Constitucional Esquematizado. 19. ed. rev.


São Paulo: Saraiva, 2015.

MASSON, Nathalia. Manual de Direito Constitucional. 8. ed. rev.


ampl. e atual. Salvador: JusPODIVM, 2020.

419
DIMENSÕES JURÍDICAS DAS POLÍTICAS PÚBLICAS – VOL. 1

MORAES, Alexandre. Direito Constitucional. 32. ed. rev. e atual.


São Paulo: Atlas, 2016.

ORGANIZAÇÃO DOS ESTADOS AMERICANOS. Convenção


Americana de Direitos Humanos (“Pacto de San José de Costa
Rica”). 1969. Disponível em https://www.cidh.oas.org/basicos/por-
tugues/c.convencao_americana.htm. Acesso em 18 mai. 2020.

ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Declaração Universal


dos Direitos Humanos. 1948. Disponível em http://www.dhnet.
org.br/direitos/deconu/textos/integra.htm. Acesso em 18 mai. 2020.

PAULO Vicente, ALEXANDRINO Marcelo. Direito Constitucional


Descomplicado I. 16. ed. rev. atual. e ampl. Rio de Janeiro: Fo-
rense; São Paulo: MÉTODO, 2017.

PORTELA NETO, Francisco Solano. O que estão ensinando aos


nossos filhos? 1. ed. São Paulo: Editora Fiel, 2012.

SANTOS JÚNIOR, Clodoaldo Moreira dos. Direito à Liberdade Re-


ligiosa: Evolução Histórica e Questões Hodiernas no Ordena-
mento Jurídico Brasileiro. Tese (Doutorado em Ciências da Re-
ligião) - Pontifícia Universidade Católica de Goiás, Goiânia, 2015.
Disponível em: http://tede2.pucgoias.edu.br:8080/handle/tede/780.
Acesso em: 05 jun. 2020.

SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 25


ed. Rev e atual. São Paulo: Malheiros Editores, 2005.

420
O IMPACTO DO CONHECIMENTO
JURÍDICO A RESPEITO DA LEI DOS
USUÁRIOS DOS SERVIÇOS PÚBLICOS
Wilmara Batista Silva Aires70
Ronny Cesar Camilo Mota71

INTRODUÇÃO

O direito à saúde refere-se a um dos direitos indispensáveis ao ser hu-


mano. O modelo universal e gratuito ofertado atualmente no Brasil, de-
corre de um vasto contexto de movimentos sociais e mudanças legislativas
para garantir que todos, indistintamente, pudessem usufruir deste acesso.
O Ministério da Saúde (MS) é o órgão responsável, na esfera nacional
brasileira, para gerir e coordenar as ações no âmbito do Sistema Único
de Saúde (SUS). Este sistema, por sua vez, é executado nas competências
estaduais e municipais, com o principal objetivo de assegurar, mediante
princípios e diretrizes estabelecidos, o direito constitucional de acesso aos
serviços de qualidade em saúde.
Quanto à esta acessibilidade, considera-se que as condições e as ma-
neiras de execução dos serviços, são determinantes para qualidade em que
são ofertados aos usuários. Dessa forma, estabelece-se uma relação entre
o direito à saúde, positivado nas Leis e Atos Normativos, ante ao que é

70 Acadêmica do curso de Direito, do UniCathedral – Centro Universitário Cathedral.


71 Mestre em Direito, Relações Internacionais e Desenvolvimento (PUC/GO). Coordenador
do Curso de Direito, Professor de Graduação e Pós-Graduação do UniCathedral - Centro do
Universitário Cathedral.

421
DIMENSÕES JURÍDICAS DAS POLÍTICAS PÚBLICAS – VOL. 1

ofertado na prática pelos profissionais aos pacientes, a partir do primeiro


momento em que se encontram.
Assim, tem-se como tema proposto O impacto do Conhecimento
Jurídico a respeito da Lei dos Usuários dos Serviços Públicos. Consi-
dera-se a análise desse impacto no primeiro atendimento ao paciente,
prestado pelos profissionais atuantes nas Unidades de Saúde da Família,
tendo em conta o município de Pontal do Araguaia-MT, e busca-se res-
ponder o seguinte questionamento: De que maneira o conhecimento
dos profissionais, atuantes nas unidades de saúde da família de Pontal
do Araguaia-MT, no que concerne aos direitos positivados na Lei dos
Usuários dos Serviços Públicos, pode influenciar no primeiro atendi-
mento prestado ao paciente?
Nesse contexto, analisam-se os conceitos pertinentes aos princípios
e diretrizes fundamentados em Pactos, Leis gerais e específicas, que nor-
teiam a prática humanizada em serviço para que o usuário, isto é, o pa-
ciente, tenha efetivamente assegurado o seu direito de acesso aos serviços
públicos de qualidade em saúde.
Nessa perspectiva, esse trabalho objetiva analisar se o conhecimen-
to dos profissionais, atuantes nas Unidades de Saúde da Família do mu-
nicípio de Pontal do Araguaia-MT, a respeito da Lei dos Usuários dos
Serviços Públicos, pode interferir na qualidade do primeiro atendimento
prestado ao paciente.
O estudo aborda a saúde como direito fundamental e a prestação de
serviços de qualidade, enquanto dever do Estado. Diante das questões im-
pelidas, a forma de abordagem de pesquisa é a qualitativa, uma vez que
analisam-se os dados coletados para verificar se os profissionais conhecem
a lei em análise e se este conhecimento jurídico pode influenciar na quali-
dade do primeiro atendimento ofertado aos pacientes.
Quanto aos objetivos, alia-se à pesquisa a exploratória, buscando uma
maior familiarização com o problema a partir dos dados coletados em
pesquisa de campo e, bibliográfica, tendo como base Constituição Fe-
deral (CF/1988) e Lei 13.460/17 num caráter geral e sua efetividade no
contexto local de pesquisa. No campo doutrinário, atrela-se os conceitos
da Política Nacional de Humanização do Ministério da Saúde, enquanto
norteador para efetivação dos Princípios de organização do Sistema Único
de Saúde (SUS).

422
LU I Z A N TÔ N I O R E I S J U N I O R , M A U R I C I O P I R E S G U E D E S , T E L S O N P I R E S ,
VA N E S S A V E L A S C O, H E R N A N D E S B R I TO R E I S ( O R G . )

Sendo assim, apesar dos vários dispositivos legais e administrativos,


existem relatos a respeito da fragilidade do atendimento prestado aos pa-
cientes no contexto da saúde pública no Brasil. Dessa forma, esta pesquisa
é importante, uma vez que, partindo de uma situação problema atual no
cenário brasileiro, traz contribuições teóricas e práticas ao analisar bases
jurídicas e administrativas gerais e específicas, para aplicação numa reali-
dade prática particular, qual seja, para profissionais de saúde que convivem
e executam os serviços públicos em Unidades de Saúde da Família, do
município de Pontal do Araguaia-MT.

1. SAÚDE COMO DIREITO

A temática envolvendo os Direitos Humanos decorre de um rico


contexto histórico e social. Compreender sobre estes direitos é entender
que suas concepções são inerentes ao ser humano, e que sua dignidade
deve ser preservada em todas as suas relações com a sociedade, levando-o
ao exercício pleno da cidadania nos aspectos político, social e econômico.
Dessa forma, o direito à vida, à liberdade, saúde, trabalho, moradia, edu-
cação, cultura, lazer, participação social são questões fundamentais para
proporcionar qualidade de vida ao homem, onde quer que esteja.
Nessa perspectiva, o direito à saúde, numa abordagem específica, é
reconhecido como uma das condições essenciais para que o ser huma-
no se desenvolva de forma digna. Assim, após o advento da Constituição
Federal de 1988(CF/88), houve a determinação da saúde como direito
conferido a todas as pessoas, sendo obrigatória ao Estado a sua efetivação,
nos termos do artigo 196 da CF/88
A saúde pública no Brasil é, atualmente, exercida em caráter gratuito
e universal. Mas, nem sempre foi assim, pois antes da promulgação da
Constituição da República Federativa do Brasil em 1988, o acesso era
limitado e exerciam este direito somente aqueles vinculados aos Institutos
de Previdência que, por último, foi chamado de Instituto Nacional de
Assistência Médica da Previdência Social (INAMPS), e seus dependen-
tes familiares. Tal situação gerou ocorrência de vários movimentos sociais
que tinham como objetivo a universalização e a democratização do direito
ao acesso à saúde.

423
DIMENSÕES JURÍDICAS DAS POLÍTICAS PÚBLICAS – VOL. 1

A assistência à saúde desenvolvida pelo INAMPS beneficiava ape-


nas os trabalhadores da economia formal, com “carteira assinada”,
e seus dependentes, ou seja, não tinha o caráter universal que pas-
sa a ser um dos princípios fundamentais do SUS. Desta forma, o
INAMPS aplicava nos estados, através de suas Superintendências
Regionais, recursos para a assistência à saúde de modo mais ou
menos proporcional ao volume de recursos arrecadados e de bene-
ficiários existente. (Ministério da Saúde, 2002, p.11).

Assim, no âmbito social, o direito à saúde deve ser objeto de políti-


cas públicas capazes de efetivá-lo, minimizando as desigualdades e, conse-
quentemente, gerando reflexos, na seara econômica. Surge então, o Sistema
Único de Saúde (SUS), previsto a partir da Constituição da República Fe-
derativa Brasileira, sendo regulamentado pela Lei 8.080 de 19 de setembro
de 1990 – a Lei Orgânica da Saúde. O SUS, vinculado ao Ministério da
Saúde, é regido pelos princípios da universalidade, integralidade e equidade.
Assim, respectivamente, todos, sem nenhuma distinção, tem direito de
acesso aos serviços de saúde, devendo ser ofertado de maneira integral, ou
seja, de maneira a atender as necessidades de saúde daquele que procura o
serviço em todos os níveis de complexidade. Este acesso, portanto, deve ser
equânime, de forma a ofertar oportunidade conforme as especificidades fí-
sicas, mentais e sociais de cada pessoa, compreendendo suas diferenças e, de
maneira resolutiva e eficaz, promovendo ações que alcancem a justiça social.
A constitucionalização deste direito, gerou a criação de mecanismos
administrativos e legais com o objetivo de gerar na prática, qualidade de
vida às pessoas. E, nesse aspecto, não basta que o serviço seja ofertado pelo
Estado, é necessário que sua oferta seja de qualidade e que garanta àquele
que o procura, a solução para a sua necessidade, observando o usuário não
só com o objetivo de curá-lo, mas principalmente, de evitar que ele adoeça.
Isso envolve, através de uma boa relação profissional x paciente, conhecer as
condicionantes socioambientais, sanitárias e econômicas que o usuário está
inserido, que podem determinar o seu processo saúde-doença.
Nesse sentido, compreender a qualidade do serviço a ser ofertada,
implica direcionar o olhar aos profissionais de saúde envolvidos no con-
texto de execução dos trabalhos, logo no primeiro contato com o pa-
ciente. Necessário verificar se estão conscientes da missão, que também a

4 24
LU I Z A N TÔ N I O R E I S J U N I O R , M A U R I C I O P I R E S G U E D E S , T E L S O N P I R E S ,
VA N E S S A V E L A S C O, H E R N A N D E S B R I TO R E I S ( O R G . )

eles compete, na busca incessante de contribuir com a melhora da saúde


pública no Brasil.

1.1. HUMANIZAÇÃO DOS SERVIÇOS DE SAÚDE

Com o objetivo de gerar efeitos práticos aos princípios regulamenta-


dores do SUS, o Ministério da Saúde criou em 2003 a Política Nacional
de Humanização (PNH), que objetiva melhorar a qualidade da saúde pú-
blica prestada pelos profissionais no Brasil.
Humanizar é, nesse sentido, acolher o indivíduo olhando-o como
um todo a ser avaliado. É compreender que o paciente é um ser humano
dotado de direitos, e que independente de suas crenças, escolhas ou con-
dições financeiras, deve ser tratado com respeito, preservando a sua dig-
nidade. Na prática, isso significa também que deixar o paciente ciente de
onde e quando ocorrem os serviços, e para onde será encaminhado caso
seja necessário, é imprescindível.

Com uma escuta qualificada oferecida pelos trabalhadores às necessi-


dades do usuário, é possível garantir o acesso oportuno desses usuários
a tecnologias adequadas às suas necessidades, ampliando a efetivida-
de das práticas de saúde. Isso assegura, por exemplo, que todos sejam
atendidos com prioridades a partir da avaliação de vulnerabilidade,
gravidade e risco. (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2013, p. 8).

Resolutividade é um dos principais resultados de um atendimento


humanizado. Para tal, a humanização deve existir logo no primeiro con-
tato com o paciente, acolhendo-o desde a recepção até os próximos dire-
cionamentos dentro da Rede de Atenção à Saúde.
E além, humanizar é compreender o lugar do outro e os motivos pe-
los quais buscou o serviço de saúde, tornando o paciente ativo no processo
de qualificação destes serviços.

1.2. CONTEXTUALIZAÇÃO DA LEI DOS USUÁRIOS DOS


SERVIÇOS PÚBLICOS

Com o objetivo de proteção dos direitos e de impulsionar a participa-


ção social no processo de qualificação dos serviços ofertados pela Admi-

425
DIMENSÕES JURÍDICAS DAS POLÍTICAS PÚBLICAS – VOL. 1

nistração Pública, foi criada a Lei 13.460, de 26 de junho de 2017 – a Lei


dos Usuários dos Serviços Públicos.
Trata-se de uma Lei geral que, além de definir quem é o usuário, traz
em seu texto o que é o serviço público, uma das temáticas muito discuti-
das no âmbito do Direito Administrativo brasileiro. Assim, conforme art.
2º, incisos I e II da referida Lei:

Art. 2º Para os fins desta Lei, consideram-se:

I – usuário - pessoa física ou jurídica que se beneficia ou utiliza,


efetiva ou potencialmente, de serviço público;

II – serviço público – atividade administrativa ou de prestação di-


reta ou indireta de bens ou serviços à população, exercida por ór-
gão ou entidade da administração pública. [...]. (BRASIL, 2017).

Importante considerar que a referida Lei surgiu em decorrência de


uma omissão legislativa, que gerou anos de discussão e tramitação no
Congresso Nacional, pois discutiu-se a necessidade da criação de uma
norma específica para tutelar o direito daqueles que utilizam o serviço pú-
blico, ainda que indiretamente, pois a eficiência na prestação dos serviços
é um dever constitucional atribuído ao Estado.
Todavia, ainda que com amparo constitucional, na prática, a presta-
ção dos serviços por parte dos agentes públicos, não raramente, é relatada
como ineficiente, gerando um descrédito para aqueles que em algum mo-
mento precisam se valer dos serviços ofertados.

Assim, a descrença nos serviços estatais deve-se, em parte, à de-


ficitária regulamentação capaz de garantir direitos básicos e me-
canismos de controle a serem utilizados pelos cidadãos. Nessa or-
dem de ideias, buscou-se superar tal fato através da recente Lei nº
13.460/2017, publicada em 26 de junho de 2017. (SANTOS, 2017,
p.2).

Nessa perspectiva, esta lei traz como se dá sua aplicabilidade jurídi-


ca, a forma de participação do usuário no processo de qualificação e, os
princípios que nortearão as atividades ofertadas pelo Estado e executadas
pelos agentes públicos, assegurando, os direitos, deveres dos usuários, e até

426
LU I Z A N TÔ N I O R E I S J U N I O R , M A U R I C I O P I R E S G U E D E S , T E L S O N P I R E S ,
VA N E S S A V E L A S C O, H E R N A N D E S B R I TO R E I S ( O R G . )

mesmo, a forma de atendimento a ser prestado a eles por parte dos agentes
públicos, nos termos do art. 5º, inciso I da referida Lei.
Partindo desses conceitos, a saúde, enquanto atividade ofertada pelo
Estado, é um serviço público e, assim sendo, esta Lei, se aplica às relações
entre os pacientes, sendo definidos como usuários, e os profissionais, os
agentes públicos que exercem o atendimento, levando em consideração as
diretrizes previstas na Lei.
Ante ao exposto, é possível correlacionar as diretrizes da Lei
13.460/2017 com a Política Nacional de Humanização e com a Lei Orgâ-
nica da Saúde, que regulamenta o SUS.

2. ANÁLISE E DISCUSSÃO DOS RESULTADOS

2.1 O DIREITO NA PRÁTICA EM SAÚDE

Como proposto, a pesquisa de campo realiza-se entre os profis-


sionais que atuam nas Unidades de Saúde da Família do município de
Pontal do Araguaia-MT. No referido município, existem duas unida-
des de saúde da família que são compostas por médicos, enfermeiros,
técnicos em enfermagem, auxiliares de limpeza, odontólogos e agentes
comunitários de saúde.
Como público-alvo da pesquisa, selecionam-se os profissionais que
realizam o primeiro contato com o paciente, sendo este contato podendo
ser no domicílio do paciente, como ocorre com os Agentes Comunitá-
rios de Saúde, até a recepção do usuário na unidade de saúde pela equipe
de enfermagem e, posteriormente, equipe médica. Ao todo são dezenove
profissionais cadastrados nas duas unidades, sendo que a pesquisa alcançou
dezessete destes, correspondendo em relação aos cadastrados, 89,5% dos
profissionais.
A referida pesquisa realiza-se em três fases, sendo a primeira, a apli-
cação de um questionário semiestruturado composto por cinco perguntas
que buscam, essencialmente, saber se os profissionais conhecem a Lei dos
Usuários dos Serviços Públicos (Lei nº 13.460/2017). A segunda, corres-
ponde a uma intervenção educativa, na modalidade de palestra, para estes
profissionais, abordando a referida Lei e sua aplicação prática na rotina dos
serviços públicos, e no caso, nos serviços públicos de saúde, especifica-

427
DIMENSÕES JURÍDICAS DAS POLÍTICAS PÚBLICAS – VOL. 1

mente nas unidades pesquisadas. Por fim, a terceira fase, em que se aplica
novamente o questionário semiestruturado para verificar se a intervenção
educativa contribuiu para a construção do conhecimento jurídico destes
profissionais na prática dos seus serviços.
Na primeira fase da pesquisa, ou seja, antes da intervenção, verifica-se
conforme a tabela 1 em anexo, que apenas dois profissionais (11,77%) afir-
mam conhecer muito a Lei em discussão, entretanto, quando questionados
a respeito de algum princípio ou diretriz que a fundamenta, nenhum deles
sabe responder, e apesar de dizerem que a conhecia, demonstram em ações,
desconhecimento a respeito desta temática. O resultado se confirma quan-
do verifica-se que nove (52,9%) dos dezessete, configurando a maioria dos
entrevistados não conhece nada a respeito da Lei, demonstram, contudo,
interesse em conhecê-la, saber do que se trata, e principalmente, quais as
suas possíveis influências na prática dos trabalhos em saúde.
Após a intervenção educativa, resultado diferente se observa, reve-
lando que oito profissionais (47,05%) passam a conhecer em profundi-
dade a Lei, sendo inclusive capazes de citar princípios e diretrizes que
a fundamenta, tais como, cortesia, respeito, efetividade e continuidade
dos serviços prestados. Outros cinco (29,41%) afirmam conhecê-la, mas
não a ponto de se sentirem capazes o suficiente para discutirem sobre ela.
É importante considerar que, dos dezessete profissionais entrevistados na
primeira fase, quatro (23,5%) não opinaram após a intervenção, alguns
por estarem de férias e/ou licença, e outros por decidirem não participar.
A Lei dos Usuários dos Serviços Públicos – Lei nº 13.460/2017, é
também conhecida como o Código de Defesa dos Usuários dos Serviços
Públicos, e, antes que seja falado sobre sua eficácia é necessário saber se ela
é conhecida por aqueles a quem se destina. Nesse sentido, resta claro que
os profissionais não sabem da existência desta Lei e, então, a intervenção
realizada contribui para trazer clareza a respeito de sua existência e, da
necessidade de realizar mais ações que tragam conteúdo jurídico para a
prática do trabalho em saúde.

3.2 CONHECER PARA HUMANIZAR

A saúde e o acesso à saúde são direitos fundamentais, executados atra-


vés de serviços de qualidade de prestação positiva do Estado que as realiza

428
LU I Z A N TÔ N I O R E I S J U N I O R , M A U R I C I O P I R E S G U E D E S , T E L S O N P I R E S ,
VA N E S S A V E L A S C O, H E R N A N D E S B R I TO R E I S ( O R G . )

enquanto dever, conforme art. 37 da Constituição da República Federa-


tiva Brasileira de 1988. Nesse sentido, não basta que o texto se mantenha
apenas escrito, é necessário profundamente que ele vá além das letras e
alcance a prática, cumprindo, portanto, a função social da norma. Assim,
quanto aos agentes promotores dos serviços de saúde, se faz necessário
conhecer a Lei e, o que ela de fato diz para que alcance os objetivos que
nortearam sua criação e então, produza os efeitos inicialmente almejados
pelo legislador.
O art. 5º, inciso I da Lei dos Usuários dos Serviços Públicos –
13.460/2017, traz as diretrizes do atendimento do usuário em todo o mo-
mento em que ele necessita do serviço. Contudo, o primeiro atendimento
é marcado pela forma como este paciente é recebido, seja na unidade de
saúde ou até mesmo durante o atendimento em sua residência quando
visitados pelos Agentes Comunitários de Saúde (ACS).
A cortesia, urbanidade e respeito, vão além de apenas sorrisos, elas
requerem empatia, clareza das informações prestadas e ainda, uma escuta
qualificada das necessidades que o paciente apresenta, conceitos que coa-
dunam com a Política Nacional de Humanização, proposta pelo Ministé-
rio da Saúde desde 2003.
Durante a primeira fase de execução da pesquisa, quando pergun-
tados se o conhecimento da Lei 13.460/17 pode influenciar no primeiro
atendimento ao paciente, seis profissionais (35,29%) acreditam que pode
sim influenciar, de forma a conhecer os direitos e deveres do paciente.
Contudo, a maioria (64,70%), correspondente a onze profissionais, con-
forme tabela 2 em anexo, não sabe responder, pois não a conhece, mas
demonstram-se solícitos a conhecê-la.
Na fase posterior à intervenção da pesquisa, e após conhecer a Lei,
a maioria, correspondente a 13 profissionais (76,47%), afirma com vee-
mência que a Lei pode sim influenciar no primeiro atendimento prestado
pelo profissional de saúde ao paciente que procura o serviço. Ademais,
respondem com propriedade que o conhecimento a esse respeito pode
trazer melhora em sua forma de atender e acolher o usuário, deixando
claro a responsabilidade do profissional nesse procedimento, de forma a
resguardar os direitos do usuário, tratando-o com carinho, empatia, edu-
cação, prestando orientações claras, e também, deixando-os alerta quanto
aos deveres do paciente.

429
DIMENSÕES JURÍDICAS DAS POLÍTICAS PÚBLICAS – VOL. 1

Ainda neste contexto, os profissionais são questionados quanto à pos-


sibilidade do conhecimento desta lei produzir influência na forma como
o profissional atende o paciente, ou seja, se poder contribuir para a hu-
manização do atendimento ofertado ao usuário. Na primeira fase, ape-
sar de dois participantes responderem negativamente (11,77%), quinze
(88,23%) acreditam que o conhecimento a respeito desta Lei pode con-
tribuir para um atendimento humanizado. Após a intervenção educativa,
ainda que quatro (23,5%) profissionais tenham deixado de participar, tre-
ze deles (76,47%) respondem positivamente a esta questão, confirmando
o resultado, como se verifica na tabela 3 em anexo.

3.3 A ROTINA DE ATENDIMENTO NAS UNIDADES DE


SAÚDE DA FAMÍLIA ANTES E APÓS O CONHECIMENTO
DA LEI DOS USUÁRIOS DOS SERVIÇOS PÚBLICOS

Quando um usuário procura o serviço de saúde, isto é, uma unidade


de saúde da família é preciso que a rotina de atendimento esteja definida.
Dessa forma, entende-se por rotina, o fluxograma de atendimento dentro
da unidade, desde a chegada do paciente até os encaminhamentos poste-
riores no tocante a exames, especialidades, de acordo com a necessidade
do paciente.
No município pesquisado, verifica-se que há um fluxograma defini-
do em rotina pois, a maioria dos profissionais responde positivamente a
esta questão antes e após a intervenção, sendo 88,23% e 70,58%, respec-
tivamente, conforme tabela 4 em anexo. Relatam que o paciente chega,
é atendido pelo técnico em enfermagem ou enfermeiro que, por sua vez,
realizam a triagem e coletam informações básicas como peso, pressão ar-
terial e temperatura. Após, os dados são registrados em seu prontuário/
ficha e, de acordo com a ordem de chegada, o paciente aguarda atendi-
mento médico. Caso ele esteja em busca de outro serviço, como vacinas,
por exemplo, ele já é direcionado para a sala de vacinação.
É importante considerar que as estratégias de saúde da família
correspondem à porta de entrada para a Atenção Primária à Saúde (APS).
É por ela que o paciente entra na rede de serviços, sendo capaz de atender
a maioria das necessidades de saúde na vida de uma pessoa, uma vez que
seu principal objetivo é a promoção da saúde e a prevenção de doenças.

430
LU I Z A N TÔ N I O R E I S J U N I O R , M A U R I C I O P I R E S G U E D E S , T E L S O N P I R E S ,
VA N E S S A V E L A S C O, H E R N A N D E S B R I TO R E I S ( O R G . )

A atenção primária à saúde (APS) é geralmente o primeiro ponto


de contato, oferecendo atendimento abrangente, acessível e ba-
seado na comunidade, que pode atender de 80% a 90% das ne-
cessidades de saúde de uma pessoa ao longo de sua vida. Na sua
essência, a APS cuida das pessoas e não apenas trata doenças ou
condições específicas. (OPAS, 2019)

Nesse sentido, deve ser feita uma escuta profissional realmente qua-
lificada, centrada nas reais necessidades do paciente e de sua família, in-
vestigando suas condições e hábitos de vida e, então, podendo identificar
os determinantes e condicionantes para a construção do processo saúde e
doença do paciente que o procura.
Por esta razão, o acolhimento deve ser desde a recepção do paciente
na unidade, recebendo-o com empatia, cordialidade, respeito e com pro-
fissionais dispostos a olhar holisticamente, de maneira humanizada, isto é,
como um todo a ser observado, e isso inclui conhecer suas particularida-
des e seus direitos. Tais diretrizes constam inclusive na Lei dos Usuários
dos Serviços Públicos, dados que confirmam que ela deve ser aplicada na
rotina dos serviços públicos de Saúde.
Neste contexto, quando perguntados se o fluxograma de atendimen-
to nas unidades de saúde do município pesquisado está de acordo com a
Lei dos Usuários dos Serviços Públicos, antes da intervenção, como visto
na tabela 5 em anexo, três profissionais (17,64%) dizem que está.A maio-
ria (70,58%), por não conhecer a Lei não sabe dizer e, dois profissionais
(11,77%) dizem que não.
Após a intervenção, dados relevantes precisam ser considerados uma
vez que, durante toda a execução da pesquisa e, através dos relatos dos pro-
fissionais durante a entrevista, verifica-se que há efetividade e continuida-
de no atendimento ofertado ao paciente, na maioria das vezes. O acesso
aos serviços é rápido e os pacientes acabam conhecendo essas formas de
acesso e alcançam a solução para o que procuram.
Por esse motivo, após conhecerem a Lei mediante a intervenção, doze
profissionais (70,58%), afirmam que o fluxograma de atendimento está
de acordo com os preceitos da Lei em análise. Entretanto, relatam neces-
sidade de melhora nesse atendimento, uma vez que, o primeiro contato
com o paciente apresenta fragilidades em decorrência, principalmente, do

431
DIMENSÕES JURÍDICAS DAS POLÍTICAS PÚBLICAS – VOL. 1

acúmulo de funções, especialmente na equipe de enfermagem (técnicos


e enfermeiros), que além de fazer a triagem do paciente, tem que se orga-
nizar para resolver burocracias administrativas antes do atendimento em
si, tais como: preenchimentos de fichas, solicitação de documentos, entre
outras atribuições.
Segundo os profissionais, deveria haver uma recepcionista para, além
receber o paciente num primeiro momento, solicitar suas documentações,
preencher fichas caso necessário, identificar o que o paciente procura e já
encaminhá-lo para o serviço necessário. Como isso não ocorre, na prática
o atendimento resulta em algo metódico, rotineiro e rápido, o que, segun-
do eles, acaba comprometendo a qualidade.
É necessário considerar que o paciente não deixa de ser atendido, mas
o profissional é que tem que se desdobrar para cumprir funções múltiplas.
Na prática do município pesquisado, observa-se ao final da pes-
quisa um ponto altamente relevante, a ouvidoria está em fase final de
implantação, e, segundo os profissionais, tal fato trará efetividade aos
canais de avaliação dos serviços ofertados. Certamente, o conhecimen-
to a respeito da Lei dos Usuários dos Serviços Públicos auxiliará neste
processo.

CONCLUSÕES OU CONSIDERAÇÕES FINAIS

O atual acesso à saúde no Brasil decorre de movimentos sociais e


transformações legislativas que, ao longo do contexto histórico, resultou
em um sistema gratuito e universal, o Sistema Único de Saúde (SUS),
gerido pelo Ministério da Saúde.
Os conceitos acerca dos Direitos Humanos consolidaram o enten-
dimento da saúde enquanto direito inerente ao homem e constitucional-
mente assegurado, levando, então, à necessidade de compreender a eficá-
cia dos textos normativos postos no ordenamento jurídico vigente, ante à
realidade posta na prática dos serviços em saúde, já que, a qualidade desses
serviços é imprescindível para efetivar a função social da norma.
Sabe-se, como demonstrado, que ainda que com diversas Leis e atos
normativos, a saúde pública no Brasil, enquanto serviço prestado pelo Es-
tado, é alvo de questionamentos quanto à qualidade do atendimento pres-
tado ao paciente, logo no primeiro contato.

432
LU I Z A N TÔ N I O R E I S J U N I O R , M A U R I C I O P I R E S G U E D E S , T E L S O N P I R E S ,
VA N E S S A V E L A S C O, H E R N A N D E S B R I TO R E I S ( O R G . )

Partindo desse entendimento, esta pesquisa permite verificar, de que


maneira o conhecimento a respeito da Lei dos Usuários dos Serviços Pú-
blicos pode influenciar no primeiro atendimento prestado pelos profissio-
nais de saúde, atuantes nas unidades de saúde da família no município de
Pontal do Araguaia-MT.
Nessa esteira, constata-se que 64,7% dos profissionais atuantes nas
unidades de saúde da família, alvo da pesquisa, não sabiam dizer sobre
as possíveis influências do conhecimento da Lei em questão no primeiro
atendimento, pois sequer a conheciam. Entretanto, a partir da interven-
ção, 76,4% não apenas souberam de sua existência, como também pude-
ram opinar com segurança acerca das maneiras como ela pode contribuir
para a prática do serviço em saúde.
Dessa forma, este estudo permite verificar através dos resultados já
mencionados, que o conhecimento por parte dos profissionais de saúde
quanto ao conteúdo jurídico destinado a esta seara, confere-lhes cons-
ciência quanto ao dever de abordar o paciente, logo no primeiro contato,
com cortesia, educação e acima de tudo, cientes dos direitos e deveres
destinados aos usuários do serviço de saúde, trazendo, então, atendimento
humanizado e resolutivo.
Observa-se outro fator interessante, o fluxograma de atendimento aos
usuários nas unidades de saúde do município de Pontal do Araguaia-MT
é bem definido e permite que os pacientes conheçam os caminhos a serem
percorridos dentro da Rede de Atenção à Saúde e, este fator fica, ainda,
mais evidente a partir do conhecimento da Lei dos Usuários dos Serviços
Públicos, permitindo, ainda, que estes profissionais verifiquem os pontos
de fragilidade no atendimento e suas possíveis causas, como por exemplo,
a necessidade de adicionar recepcionistas para dirimir o acúmulo funcio-
nal em algumas equipes.
Assim, verifica-se que o conhecimento jurídico da Lei em pesquisa
gera vantagens na qualidade da prática dos serviços em saúde. Nesse senti-
do, revela-se a necessidade de agregar e de promover ações que estimulem
a junção do Direito enquanto ciência, ao conhecimento dos profissionais
de saúde.
Isto posto, é claro que ato de conhecer uma Lei não tornam resol-
vidos todos os problemas enfrentados na saúde pública brasileira. Con-
tudo, o ato de conhecer, ainda que pareça simples, atrelado à educação

433
DIMENSÕES JURÍDICAS DAS POLÍTICAS PÚBLICAS – VOL. 1

jurídica em saúde, gera profissionais capazes de realizar um atendimento


mais técnico, menos omisso, certamente resolutivo, e, portanto, mais
humano.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BRASIL. Lei nº 13.460, de 26 de junho de 2017. Dispõe sobre partici-


pação, proteção e defesa dos direitos do usuário dos serviços públicos
da administração pública. Disponível em: <http://www.planalto.gov.
br/ccivil_03/_ato2015-2018/2017/Lei/L13460.htm>. Acesso em: 22
set 2019.

_______. Ministério da Saúde. Política Nacional de Humanização do


Atendimento no SUS. Brasília: Ministério da Saúde, 2013. Dis-
ponível em: <http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/politica_na-
cional_humanizacao_pnh_folheto.pdf>. Acesso em: 22 set de 2019.

_______. Ministério da Saúde. O Sistema Público de Saúde Brasi-


leiro. In: SEMINÁRIO INTERNACIONAL TENDÊNCIAS
E DESAFIOS DOS SISTEMAS DE SAÚDE NAS AMÉRICAS,
2002, São Paulo, Brasil. Disponível em: <http://bvsms.saude.gov.br/
bvs/publicacoes/sistema_saude.pdf>. Acesso em: 23 set 2019.

_______. Lei n°8.080, 19 de setembro de 1990. Dispõe sobre as con-


dições para a promoção, proteção e recuperação da saúde, a organi-
zação e o funcionamento dos serviços correspondentes e dá outras
providências. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/
leis/L8080.htm>. Acesso em: 22 de set de 2019.

_______. Constituição da República Federativa do Brasil. de 5 de


outubro de 1988. Brasília. Disponível em: http://www.planalto.gov.
br/ccivil_03/constituicao/constituicaocompilado.htm. Acesso em:
22 Set 2019.

ORGANIZAÇÃO DOS ESTADOS AMERICANOS. Pacto São


José da Costa Rica. In:biblioteca virtual de Direitos Humanos,
Universidade de São Paulo, USP. Disponível em:http://www.direi-
toshumanos.usp.br/dh/index.php/Declara%C3%A7%C3%A3o-

434
LU I Z A N TÔ N I O R E I S J U N I O R , M A U R I C I O P I R E S G U E D E S , T E L S O N P I R E S ,
VA N E S S A V E L A S C O, H E R N A N D E S B R I TO R E I S ( O R G . )

-Universal-dosDireitos-Humanos/declaracao-universal-dos-direi-
tos-humanos.html. Acesso em 21 set de 2019.

ORGANIZAÇÃO PAN-AMERICANA DA SAÚDE – BRASIL.


Atenção Primária à Saúde. Folha Informativa, Brasília, jan. 2019.
Disponível em:https://www.paho.org/bra/index.php?option=com_
content&view=article&id=5858:folha-informativa-atencao-pri-
maria-de-saude&Itemid=843. Acesso em: 30 jan. 2020.

SANTOS, Júlio César Sousa. A Tutela dos Direitos dos Usuários


dos Serviços Públicos: Breves Apontamentos Sobre a Lei nº
13.460/2017. FIDES, Natal-RN, v. 8, n.2, jul./dez. 2017.

435
DIMENSÕES JURÍDICAS DAS POLÍTICAS PÚBLICAS – VOL. 1

ANEXOS

Tabela 1 - Questão 1: Você conhece a Lei dos Usuários dos Serviços Públicos –
Lei nº 13.460/2017?

ANTES DA INTERVENÇÃO PÓS INTERVENÇÃO

Nº DE % Nº DE %
PROFISSIONAIS PROFISSIONAIS

Sim, Sim,
conheço 02 11,76 conheço 08 47,05
muito muito

Sim, mas Sim, mas


conheço 06 35,29 conheço 05 29,41
pouco pouco

Não, não Não, não


conheço conheço
09 52,9 0 0,0
nada a nada a
respeito respeito

Não
04 23,5
opinaram*

99,95 99,97
Total 17 17
100 100

Fonte: Instrumento da coleta de dados da pesquisa - Questionário semiestruturado

* Tomando por base, a população de 17 profissionais. Sendo que 04, não opinaram na
etapa pós intervenção.

436
LU I Z A N TÔ N I O R E I S J U N I O R , M A U R I C I O P I R E S G U E D E S , T E L S O N P I R E S ,
VA N E S S A V E L A S C O, H E R N A N D E S B R I TO R E I S ( O R G . )

Tabela 2 - Questão 2: Você acredita que esta lei pode influenciar no primeiro atendimento
prestado ao paciente?

ANTES DA INTERVENÇÃO PÓS INTERVENÇÃO

Nº DE % Nº DE %
PROFISSIONAIS PROFISSIONAIS

Não 0 0,0 Não 0 0,0

Não sei,
Não sei, pois não
pois não 11 64,70 0 0,0
conheço a Lei
conheço a
Lei

Sim, Sim, de que


06 35,29 13 76,47
de que maneira?
maneira?

Não opinaram* 04 23,5

99,99 99,97
Total 17 17
100 100

Fonte: Instrumento da coleta de dados da pesquisa - Questionário semiestruturado

* Tomando por base, a população de 17 profissionais. Sendo que 04, não opinaram na
etapa pós intervenção.

437
DIMENSÕES JURÍDICAS DAS POLÍTICAS PÚBLICAS – VOL. 1

Tabela 3 - Questão 3: O conhecimento dos profissionais a respeito dos direitos


dos usuários dos serviços públicos de saúde, pode contribuir para a humanização
do atendimento prestado, logo no primeiro contato com o paciente?

ANTES DA INTERVENÇÃO PÓS INTERVENÇÃO

Nº DE % Nº DE %
PROFISSIONAIS PROFISSIONAIS

Não 02 11,77 Não 0 0,0

15 88,23 Sim 13 76,47


Sim

Não
04
opinaram* 23,5

99,99 99,97
Total 17 17
100 100

Fonte: Instrumento da coleta de dados da pesquisa - Questionário semiestruturado

438
LU I Z A N TÔ N I O R E I S J U N I O R , M A U R I C I O P I R E S G U E D E S , T E L S O N P I R E S ,
VA N E S S A V E L A S C O, H E R N A N D E S B R I TO R E I S ( O R G . )

Tabela 4 - Questão 4: O fluxograma de atendimento nas unidades de saúde da


família, está definido?

ANTES DA INTERVENÇÃO PÓS INTERVENÇÃO

Nº DE % Nº DE %
PROFISSIONAIS PROFISSIONAIS

Não 02 11,77 Não 01 5,88

15 88,23 Sim 12 70,58


Sim

Não
04
opinaram* 23,5

99,99 99,97
Total 17 17
100 100

Fonte: Instrumento da coleta de dados da pesquisa - Questionário semiestruturado

* Tomando por base, a população de 17 profissionais. Sendo que 04, não opinaram na
etapa pós intervenção.

439
DIMENSÕES JURÍDICAS DAS POLÍTICAS PÚBLICAS – VOL. 1

Tabela 5 - Questão 5: O fluxograma de atendimento ao paciente nas unidades de saúde


da família em Pontal do Araguaia, está de acordo com os princípios e diretrizes da Lei
dos Usuários dos Serviços Públicos?

ANTES DA INTERVENÇÃO PÓS INTERVENÇÃO

Nº DE % Nº DE %
PROFISSIONAIS PROFISSIONAIS

Não 02 11,77 Não 01 5,88

Não sei,
Não sei,
pois não
pois não 12 70,58 0 0,0
conheço a
conheço a
Lei
Lei

Se Sim,
cite ao Sim,
menos um de que
03 17,64 12 70,58
princípio maneira?
e uma
diretriz.

Não
04
opinaram* 23,5

99,99 99,97
Total 17 17
100 100

Fonte: Instrumento da coleta de dados da pesquisa - Questionário semiestruturado

* Tomando por base, a população de 17 profissionais. Sendo que 04, não opinaram na
etapa pós intervenção.

440
O DIREITO AO SANEAMENTO
BÁSICO COMO DIREITO
FUNDAMENTAL E SOCIAL E O
MÍNIMO EXISTENCIAL
Viviane Cristina Martiniuk72

1. INTRODUÇÃO

A questão do saneamento básico vem desde a antiguidade, onde a


própria natureza se encarregava de reciclar os dejetos deixados pelo ho-
mem. Hoje, com o crescimento populacional e industrialização de bens
de consumo, a natureza já não consegue exercer seu papel e ainda aca-
ba sendo agredida pela quantidade enorme de dejetos e lixos produzidos
(NIRAZAWA; OLIVEIRA, 2018).
Isso sugere que a natureza já não cumpre seu papel de reciclar os de-
jetos deixados pelo homem e o homem por sua vez, não consegue resol-
ver os problemas de infraestrutura em Saneamento Básico (MADEIRA,
2010).
Os esforços tanto do âmbito federal como estadual estão longe de
garantir o direito ao saneamento básico no Brasil e os desafios se colocam
em diversas dimensões, principalmente a política-ideológica, como tam-
bém institucional, de financiamento, de gestão, da matriz tecnológica,
da participação e controle social, dentre outras. Também a tradição tec-

72 Mestranda em Direitos Coletivos e Difusos pela Universidade Metodista de Piracicaba –


UNIMEP. Professora universitária e Advogada

441
DIMENSÕES JURÍDICAS DAS POLÍTICAS PÚBLICAS – VOL. 1

no-burocrática da formulação e implementação de políticas públicas no


Brasil, o patrimonialismo, as fragilidades do aparato estatal, a corrupção e
o recuo dos movimentos sociais contestatórios ocorridos na última década
vêm influenciando no avanço de um projeto político-social vinculado aos
princípios da universalidade e da igualdade.
Assim, a definição da natureza das ações de saneamento básico se re-
laciona com a disputa que se dá no seio da sociedade entre projetos sociais,
que podem, minimamente, ser representados por dois: um deles consi-
dera o saneamento básico como um direito social, integrante de políti-
cas sociais promotora de justiça socioambiental, cabendo ao Estado a sua
promoção; o outro projeto, de cunho neoliberal, o saneamento básico é
uma ação de infraestrutura ou um serviço, submetido a mecanismos de
mercado, quando não se constitui na própria mercadoria.
O saneamento básico é direito fundamental e assegurado a todos atra-
vés da Política Nacional de Saneamento Básico, pela Lei 11.445/2007, e,
agora por meio da Lei nº 14.026, de 15 de julho de 2020, a chamada Lei
do Marco Regulatório do Saneamento Básico, referindo-se ao abasteci-
mento de água potável, esgoto sanitário, limpeza e manejo de resíduos
sólidos e drenagem das águas pluviais urbanas, serviços estes, oferecidos
por empresas públicas estaduais em maioria, tarifados com valor suficiente
para garantir novos investimentos e manutenção, cobrir custos e atender
toda população.
Tudo para garantir o acesso ao saneamento básico, pois é o que torna
possível assegurar ao ser humano o mínimo existencial e condições de
vida digna, fator determinante da qualidade de vida da população, haja
vista que 80% das doenças de origem hídrica estão relacionadas ao consu-
mo de água contaminada (SOUZA, 2014).
Ao argumentar em processo [REsp nº 1533878, de 19/08/2015], o
ministro Humberto Martins declarou:

Sem o mínimo existencial necessário, cessa a possibilidade de


sobrevivência do homem e desaparecem as condições iniciais
da liberdade. A dignidade humana e as condições materiais da
existência não podem retroceder aquém de um mínimo, do
qual nem os prisioneiros, os doentes e os indigentes podem
ser privados.

442
LU I Z A N TÔ N I O R E I S J U N I O R , M A U R I C I O P I R E S G U E D E S , T E L S O N P I R E S ,
VA N E S S A V E L A S C O, H E R N A N D E S B R I TO R E I S ( O R G . )

Frente ao que parece então um “jogo” político na sociedade, o


fenômeno da judicialização das políticas públicas ambientais vem se
tornando cada vez mais acentuado, fazendo com que um poder até
então despretensioso desse lugar a um poder protagonista e fundamen-
tal, responsivo nas demandas públicas, tornando-a as “portas da espe-
rança” para a sociedade que busca respostas a seus dilemas (CUNHA;
SILVA; GOMES, 2017).
E por fim, este trabalho trará à luz o conhecimento acerca das pri-
meiras impressões sobre o novo marco regulatório do saneamento básico,
item imprescindível à vida digna do ser humano, como ente de reconhe-
cimento da dignidade e direitos iguais e inalienáveis, o que constitui o
fundamento da liberdade, da justiça e da paz.

2. DIREITOS FUNDAMENTAIS

2.1 Uma Abordagem

Não dá para realizar este trabalho acerca do acesso ao Saneamento


Básico, sem antes fazer menção, ainda que superficial, acerca dos Direitos
Fundamentais, intimamente ligado aos Direitos Humanos.
E quando se fala em direitos humanos se está abrangendo de uma
forma ampla todos os direitos que garantem ao homem uma sobrevivên-
cia digna e que haja uma convivência pacífica e igualitária entre todos os
pertencentes a determinado Estado. Ainda, sobre o assunto, pode-se dizer
que, no entendimento de Konrad Hesse (1991), os direitos fundamentais
têm a finalidade de manter os pressupostos elementares de uma vida na
liberdade e na dignidade da pessoa humana.
Todavia, o conceito não é indissociável da acepção positivista de
direitos fundamentais, aos quais seriam aqueles que o direito vigente
qualifica como tais. E os direitos fundamentais estão intrinsecamente
ligados à dignidade humana, os quais estão definidos nos textos le-
gais. Pode-se ainda referir que muitas vezes os textos constitucionais
utilizam a expressão direitos humanos e direitos fundamentais como
sinônimos.
Diante disso, quer dizer que a universalidade, a inviolabilidade e a
limitabilidade dos direitos fazem parte da sua evolução. Ressalta-se que

443
DIMENSÕES JURÍDICAS DAS POLÍTICAS PÚBLICAS – VOL. 1

os direitos fundamentais nasceram a partir do processo de positivação dos


direitos humanos, a partir do reconhecimento, pela legislação positiva dos
direitos inerentes a pessoa humana.
Segundo Sarlet (2005 apud Siqueira; Piccirillo, 2013, p. 35-36),

[...] o termo direitos fundamentais se aplica para aqueles direitos


do ser humano reconhecidos e positivados na esfera do direi-
to constitucional positivo de determinado Estado, ao passo que
a expressão direitos humanos guardaria relação com os docu-
mentos de direito internacional, por referir-se àquelas posições
jurídicas que se reconhecem ao ser humano como tal, indepen-
dentemente de sua vinculação com determinada ordem cons-
titucional, e que, portanto aspiram à validade universal, para
todos os povos e tempos, de tal sorte que revelam um inequí-
voca caráter supranacional (SALERT, 2005, apud SIQUEIRA;
PICCIRILLO, 2013, p. 35-36).

Confirma-se, portanto, que não interessa a designação que se uti-


liza para designar os direitos. O que realmente importa é o reconheci-
mento pelos ordenamentos jurídicos e sua efetivação pelo Estado.
Assim, os direitos fundamentais percutiram sua marcha evolucionista,
vindo a tutelar os valores da “solidariedade” e “fraternidade”, asseguran-
do a perpetuação da espécie e garantir um ambiente saudável e pacífico
estendendo as novas gerações novos direitos que viabilizem plenas condi-
ções de existência digna.

2.2 Natureza Jurídica dos Direitos Fundamentais

Ao trazer à baila este assunto acerca dos Direitos Fundamentais, é


mister conceituar a sua a natureza jurídica, pois esta possui caráter de nor-
ma positiva constitucional e com eficácia plena e imediata. Diante disso,
é necessário elencar as características dos direitos fundamentais quais são
a historicidade, inalienabilidade, imprescritibilidade, irrenunciabilidade,
universalidade e limitabilidade.
Para Luiz Roberto Barroso (2009), os direitos fundamentais pos-
suem natureza de normas constitucionais definidoras de direitos sub-
jetivos que investem seus beneficiários em situações jurídicas imedia-

444
LU I Z A N TÔ N I O R E I S J U N I O R , M A U R I C I O P I R E S G U E D E S , T E L S O N P I R E S ,
VA N E S S A V E L A S C O, H E R N A N D E S B R I TO R E I S ( O R G . )

tamente desfrutáveis, a serem executadas por prestações positivas ou


negativas, exigíveis do Estado ou de outro eventual destinatário da
norma. E ainda de acordo com o autor, “por direito subjetivo, […]
entende-se o poder de ação, assente no direito objetivo, e destinado à
satisfação de um interesse”.
Ressalta Ferreira Filho (2010) que que os direitos fundamentais, dada
sua alta dimensão valorativa, são recorrentemente tidos como princípios,
apesar de referida natureza não ser uma regra.

2.3 Direitos Fundamentais e Dignidade da Pessoa


Humana.

No entendimento de Barroso (2009), a dignidade da pessoa hu-


mana é o valor e o princípio subjacente ao grande mandamento, de ori-
gem religiosa, do respeito ao próximo. Todas as pessoas são iguais e têm
direito a tratamento igualmente digno. A dignidade da pessoa humana é
a ideia que informa, na filosofia, o imperativo categórico kantiano, dando
origem a proposições éticas superadoras do utilitarismo: a) uma pessoa
deve agir como se a máxima da sua conduta pudesse transformar-se em
uma lei universal; b) cada indivíduo deve ser tratado como um fim em si
mesmo, e não como um meio para a realização de metas coletivas ou de
outras metas individuais. As coisas têm preço; as pessoas têm dignidade.
Do ponto de vista moral, ser é muito mais do que ter. O princípio da
dignidade humana identifica um espaço de integridade a ser assegurado a
todas as pessoas por sua só existência no mundo.
Sarlet (2012), entende que há variabilidade do conteúdo em digni-
dade de cada direito fundamental, que seguramente não é o mesmo, por
exemplo, no direito à vida e no direito ao 13º salário ou no direito de livre
manifestação do pensamento e no direito de os trabalhadores terem parti-
cipação nos lucros da empresa.
Deste bordo, explicitando o grau de vínculo entre direitos funda-
mentais e dignidade da pessoa humana, elucida Robert Alexy (2015)
que há situações em que esta última cede lugar a uma posição preva-
lecente de outros princípios, como pode ocorrer, por exemplo, sob
determinadas condições, com relação ao princípio da proteção da co-
munidade estatal.

445
DIMENSÕES JURÍDICAS DAS POLÍTICAS PÚBLICAS – VOL. 1

3. O SANEAMENTO BÁSICO COMO MÍNIMO


EXISTENCIAL E DE POLÍTICAS PÚBLICAS

3.1 Saneamento básico como Direito Fundamental de


3ª Dimensão

Ao elucidar os Direitos Fundamentais e suas dimensões, pode-


mos descrevê-los da seguinte ótica: (i) Direitos de Primeira Dimen-
são, são aqueles ligados ao valor liberdade, são os direitos civis e po-
líticos. São direitos individuais com caráter negativo por exigirem
diretamente uma abstenção do Estado, seu principal destinatário. (ii)
Direitos de Segunda Dimensão, aqueles ligados ao valor da igualda-
de, que são os direitos sociais, econômicos e culturais. São direitos
de titularidade coletiva e com caráter positivo, pois exigem atuações
do Estado.
E por fim (iii), os direitos fundamentais de terceira geração, ligados
ao valor fraternidade ou solidariedade, aqueles relacionados ao desenvol-
vimento ou progresso, ao meio ambiente, à autodeterminação dos povos,
bem como ao direito de propriedade sobre o patrimônio comum da hu-
manidade e ao direito de comunicação. São direitos transindividuais, em
rol exemplificativo, destinados à proteção do gênero humano.
Nesta via, surgiram outras gerações73, mas este trabalho visa analisar
apenas aquilo a que se refere à questão da água e saneamento básico como
direito fundamental a todo o homem.
Diante disso, essa Terceira Dimensão tem relação com os direitos
de fraternidade ou de solidariedade, assim como, o direito ao meio am-
biente equilibrado, qualidade de vida e melhoria do ser humano, paz e
autodeterminação dos povos, uma vez que o Estado começou, então, a
acastelar outros direitos, decorrentes visando, portanto, uma sociedade
plural e acostumada à proteção de Direitos Individuais.
Paulo Bonavides (2014) compreende que esses direitos têm por des-
tinatário o próprio gênero humano, de onde se destaca 02 (dois) dos

73 A teoria das gerações foi desenvolvida por Karel Vasak por meio de (i) um texto publi-
cado em 1977, bem como (ii) por uma palestra proferida em 1979. Tal palestra foi fruto de
uma Conferência no Instituto Internacional de Direitos Humanos de Estrasburgo (França)
– 1979: Pelos Direitos Humanos da Terceira Geração: os direitos de solidariedade.

446
LU I Z A N TÔ N I O R E I S J U N I O R , M A U R I C I O P I R E S G U E D E S , T E L S O N P I R E S ,
VA N E S S A V E L A S C O, H E R N A N D E S B R I TO R E I S ( O R G . )

direitos de fraternidade, quais sejam, o (i) meio ambiente e a (ii) saúde,


que possuem relação direta com o tema em comento.
Na mesma vertente, Flávia Piovesan (2016) ressalta que os Direitos
Fundamentais podem ser classificados em 03 (três) categorias, quais se-
jam, (i) a dos direitos expressos na Constituição; (ii) direitos expressos
em tratados internacionais a qual o país for signatário e (iii) direitos im-
plícitos nas regras de garantia.
Jorge Miranda (1983, p. 50-51), observando em demasia o tema
proposto, aponta algumas razões para que não seja adotada a termino-
logia  “direitos do homem”, mas sim,  “direitos fundamentais”, dentre
as quais se destaca o fato de que os direitos fundamentais presentes na
boa parte das Constituições dos Século XX não se reduzem à direitos
impostos pelo Direito Natural.
Diante disso, entende-se que tal direito é imperiosos a todos os seres
humanos, tal como o direito à vida, por exemplo, e este da qual trazemos
à baila, compreendido de uma maneira totalmente ampla, o saneamen-
to básico, tal qual a água, indispensável à vida, tem-se que considerá-lo
como constante dentro da expressão que é o Direito Humano.

3.2 Conceito de Saneamento Básico

Quando o assunto é saneamento básico, é mister fazer um apanhado


histórico acerca da tem ética e neste sentido, Madeira (2010) ressalta que
desde a antiguidade, quando os pequenos agrupados começaram a tomar
forma de cidade, o esgoto demonstrou ser uma preocupação.
Para Nirazawa e Oliveira (2018), saneamento básico é um conjunto
de medidas auxiliadoras da preservação do meio ambiente ou modificação
de situações deste, com tendência de prevenir doenças e promover uma
boa saúde, melhorando o bem-estar da humanidade na busca da produti-
vidade de cada indivíduo que objetiva atividade econômica.
Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS, 2018), o sanea-
mento básico tem por objetivo tornar o ambiente salubre para o homem,
através do controle dos caracteres do meio onde vive, promovendo bem-
-estar físico mental e social. Para isto, abrange os serviços de abastecimen-
to de água ás populações; coletas, tratamento e disposição adequada de
água residual vindas de esgotos, resíduos líquidos industriais e agrícolas;

447
DIMENSÕES JURÍDICAS DAS POLÍTICAS PÚBLICAS – VOL. 1

coleta, transporte e destinação adequada de resíduos sólidos, produtos de


atividades domésticas, comerciais, industriais e públicas; coleta de águas
pluviais e controle de empoçamentos e inundações.
Para assegurar o direito ao saneamento básico a todos, as políticas
públicas de saneamento básico se fazem necessárias, garantindo a saúde
não apenas em seu sentido estrito (reparação, prevenção e promoção da
incolumidade física dos indivíduos), mas em sua concepção ampla de
bem-estar (integridade física, mental e social) na sua integração com a
cidade e o meio ambiente (MOURA; JULIO, 2017; ALMEIDA FI-
LHO, 2011).
Faz-se necessário então enfatizar que a eficiência, a qualidade e uni-
versalidade dos serviços de Saneamento Básico são fundamentais para a
qualidade de vida da população, uma vez que aí se reflete as questões de
saúde e bem-estar do ser humano.

3.3 Fatores determinantes de Políticas Públicas

A dignidade da pessoa humana é afetada pelo problema do saneamen-


to básico no que diz respeito ao meio natural. Diante disso, a qualidade
ambiental deveria ser considerada como elemento integrante do princípio
da dignidade da pessoa humana, sendo fundamental ao desenvolvimento
do ser humano e ao bem-estar existencial.
O saneamento básico, regulado pela Lei 11.445, de 2007, da Polí-
tica Nacional de Saneamento Básico, e agora pela Lei  nº 14.026, de 15
de julho de 2020, a chamada Lei do Marco Regulatório do Saneamento
Básico, diz respeito ao serviço de água e saneamento prestado pelo Esta-
do, ou empresa concessionária do serviço público aos integrantes de de-
terminada comunidade, especialmente no que se refere ao abastecimento
de água potável, ao esgotamento sanitário, a limpeza urbana e manejo de
resíduos sólidos e a drenagem e manejo das águas pluviais urbanas (SAR-
LET; FENSTERSEIFER, 2011).
Conforme o IPEA (2010), o acesso aos serviços adequados de água e
esgoto é um importante determinante das condições de vida da população
e da salubridade do meio ambiente. A oferta insuficiente de água configu-
ra-se em enorme problema socioambiental, sobretudo para os Municípios
do semiárido brasileiro, devido ao fenômeno da seca, causada pela con-

448
LU I Z A N TÔ N I O R E I S J U N I O R , M A U R I C I O P I R E S G U E D E S , T E L S O N P I R E S ,
VA N E S S A V E L A S C O, H E R N A N D E S B R I TO R E I S ( O R G . )

junção de fatores como o baixo índice pluviométrico e a irregularidade da


distribuição das chuvas durante o ano.
A associação dessas características com um sistema adequado de sa-
neamento básico é um indicativo de saúde primordial, já que em relação
ao abastecimento de água e saneamento, aproximadamente 80% de todas
as doenças de origem hídrica e mais que um terço das mortes em países
desenvolvimento é causado pelo consumo de água contaminada e que,
excretos humanos e esgotos são importantes fatores de deterioração da
qualidade da água (HESPANHOL, 2006).

3.4 Saneamento quase de (in)existente

Para que um país possa ser chamado de desenvolvido é necessário ter


o mínimo existencial acerca do saneamento básico em todo seu território.
Todavia na prática, existem divergências.
Nessa linha, o Brasil adotou a meta de universalizar o acesso aos ser-
viços de saneamento como um direito social até 2030, conforme o Pla-
no Nacional de Saneamento Básico (PlanSab) com alicerces na Lei no
11.445/2007 – Lei do Saneamento (Brasil, 2007) e agora, de forma mais
ampla por meio da Lei nº 14.026, de 15 de julho de 2020, a chamada Lei
do Marco Regulatório do Saneamento Básico.

3.5 Saneamento e Saúde

 Falar de saúde, é falar de um direito fundamental de todas as gerações,


pois saúde é vida e esta se relacionada à simbiótica do ser humano e aos
direitos sociais., não sendo jamais prestada de olhos vedados, pois deve
ser acompanhado de políticas públicas.
A definição de saúde é dada por Almeida Filho (2011), quando o sim-
ples estado de ausência de doença é substituído por estado de bem-estar
físico, mental e social, dando legitimidade aos movimentos que defendem
a “saúde para todos” e englobando a qualidade de vida.
A água é fator imprescindível à vida e manutenção da saúde. Sua qua-
lidade e oferta condicionam saúde e bem-estar aos seres vivos e, quando
contaminada, traz consigo variados agentes nocivos causadores de enteri-
tes e diarreias infantis, responsáveis pelo índice de mortalidade infantil no

449
DIMENSÕES JURÍDICAS DAS POLÍTICAS PÚBLICAS – VOL. 1

país. Em um determinado estudo realizado pela Fundação Nacional da


Saúde (FUNASA) afirma que:

[…] a disponibilidade de recursos hídricos no nosso país é bastan-


te comprometida, do ponto de vista sanitário, em regiões onde o
desenvolvimento se processou de forma desordenada, provocando
a poluição das águas pelo lançamento indiscriminado de esgotos
domésticos, despejos industriais, agrotóxicos e outros poluentes.

As crianças acabam sendo as mais afetadas pelos contextos sanitários.


A falta ou a precariedade destes serviços culminam em morbimortalidade
devido a doenças infectoparasitárias e diarreicas e, combinadas com a in-
segurança habitacional, agravam e impactam negativamente a sobrevivên-
cia e desenvolvimento infantil (RAUPP et al., 2019).
A Organização Mundial de Saúde (OMS) refere que mais de 980 mi-
lhões de pessoas no mundo estariam parasitadas pelo nematoide Ascaris
lumbricoides, diagnosticadas por exames coproparasitológicos ou de fezes.
Os sintomas dependem do número de parasitas habitando o corpo do hos-
pedeiro e pode culminar em bloqueio da luz do intestino delgado, com
quadro mais evolutivo se o parasitado for uma criança (SILVA et al., 2011).
Dentre os vários conflitos que afligem o país a respeito do saneamento
básico, a escassez dos recursos hídricos e de água própria para consumo
coexiste. De todas as necessidades humanas o consumo de água é a mais
importante, sabemos que durante toda a história o homem sempre procu-
rou fixar seu local de moradia próximo a rios, lagos, lagoas, ou seja, onde
havia água em abundância para sua sobrevivência, de seus animais, e para
manter a agricultura, logo, notamos que as primeiras cidades a se desen-
volverem foram, também, ao redor de grandes rios (NUVOLARI, 2011).
Todavia, houve a necessidade de implantar padrões para manter a saú-
de da população que foi crescendo em quantidade e diversificando suas
atividades laborais, utilizando cada vez mais os recursos naturais. Viver em
um ambiente salubre se resumia, e até hoje pode assim ser definido, em ter
acesso aos serviços de saneamento básico, educação e saúde de qualidade
(SILVA et al., 2011; NUVOLARI, 2011).
Então, para garantir serviços de qualidade neste novo modelo estru-
tural, criaram-se os indicadores, que são um mecanismo de avaliação. O

450
LU I Z A N TÔ N I O R E I S J U N I O R , M A U R I C I O P I R E S G U E D E S , T E L S O N P I R E S ,
VA N E S S A V E L A S C O, H E R N A N D E S B R I TO R E I S ( O R G . )

principal Indicador na área ambiental é o Indicador de Salubridade Am-


biental (ISA), elaborado pelo Conselho Estadual de Saneamento do Es-
tado de São Paulo (CONESAN) em 1999. Ele é calculado a partir da
média ponderada de subindicadores relacionados à salubridade ambiental,
incluindo indicadores ligados ao saneamento e às questões sociais e de
saúde. Ele demonstra a importância das pesquisas sobre a situação de sa-
lubridade e permite verificar quais serviços merecem receber intervenções
imediatas e quais necessitam de investimento tanto econômico quanto
técnico nos sistemas municipais (LIMA; ARRUDA; SCALIZE, 2019).
Neste contexto, a água, o desenvolvimento econômico e a saúde es-
tão interligadas, e uma das grandes falhas da economia no século XX foi à
in capacidade de distribuí-la adequadamente com o saneamento satisfató-
rio para toda a população. Essa falha causa entre 5 milhões e 10 milhões de
mortes de pessoas, por ano, por doenças relacionadas à qualidade da água
e às más condições sanitárias (TUNDISI, 2009).

3.6 O saneamento básico como agente ambiental

O dever de conservar e preservar o meio ambiente comunga a obri-


gação de fazer o necessário com relação a restauração de determinadas
áreas e, quando se trata de recursos hídricos e abastecimento, a água se
configura um patrimônio da humanidade, de domínio público e uso cole-
tivo, dotado de regime jurídico próprio, configurando-se como um direi-
to fundamental. E, portanto, se entende que o saneamento básico e meio
ambiente são conceitos que estão intimamente ligados, pois implicam di-
retamente na saúde e na qualidade de vida da população.
Para Pompeu (2009) e Sirvinskas (2013), o saneamento básico está
relacionado ao controle e distribuição dos recursos básicos (abastecimen-
to, tratamento e distribuição de água, esgoto sanitário, coleta e destino
adequado do lixo, limpeza pública) levando em consideração o bem-estar
físico, mental ou social dos indivíduos. O saneamento garante a preserva-
ção do meio ambiente, com o destino adequado dos resíduos nos aterros
sanitários, ou na coleta seletiva, abastecimento e tratamento da água e ma-
nutenção dos sistemas de esgotos. 
Para a perspectiva prestacional do saneamento básico em relação ao meio
ambiente, vincula-se na ideia de que para a efetivação desses direitos funda-

451
DIMENSÕES JURÍDICAS DAS POLÍTICAS PÚBLICAS – VOL. 1

mentais é necessário que haja a intervenção do Estado, no sentido de realizar


a prestação material. Assim, o Estado atua como promotor desses direitos.
Estes sistemas artesanais de captação de água são de iniciativa da própria
população e é a principal fonte de abastecimento de água para consumo hu-
mano. Tais sistemas contrariam o principal indicador de desenvolvimento
no que se refere ao uso de recursos hídricos. O abastecimento de água po-
tável é um indicador de desenvolvimento de um país, inclusive pela estreita
relação que há entre água potável e saúde pública (NAIME, 2011).
Ademais, com o advento da pandemia do novo coronavírus, eviden-
ciou-se a importância de ter acesso à água potável para se prevenir contra
a Covid-19, além de outras doenças, haja vista que uma das principais
medidas mais recomendadas para conter o avanço da doença foi a lavagem
adequada e constante das mãos.  
Dessa forma, o saneamento básico promove hábitos higiênicos e con-
trola a poluição ambiental, melhorando, assim, a qualidade de vida da po-
pulação.
Portanto, a solução para a melhoria da qualidade ambiental destes pe-
quenos municípios é a proposição de sistemas de tratamento de esgotos
sanitários domésticos eficientes, porém de baixos custos de implantação e
manutenção. E também processos de educação ambiental inclusivos que
resultem em maciça mobilização social (NAIME, 2011).
O saneamento básico atua como um campo de atuação adequado ao
combate da pobreza e da degradação do ambiente, de modo que a efetivi-
dade dos serviços de abastecimento de água e de esgoto sanitário integra
o rol dos direitos fundamentais sociais, como o direito à saúde, o direito
ao ambiente, incluindo o direito à água, essencial a dignidade humana
(SARLET; FENSTERSEIFER, 2011, p. 117).

3.7 O marco regulatório do saneamento básico

Sancionado em 15 de julho de 2020, a Lei nº 14.026, a chamada Lei


do Marco Regulatório do Saneamento Básico, tem como principal obje-
tivo universalizar e qualificar a prestação dos serviços no setor, destacando,
portanto, a de alcançar a universalização até 2033, garantindo que 99% da
população brasileira tenha acesso à água potável e 90% ao tratamento e a
coleta de esgoto.

452
LU I Z A N TÔ N I O R E I S J U N I O R , M A U R I C I O P I R E S G U E D E S , T E L S O N P I R E S ,
VA N E S S A V E L A S C O, H E R N A N D E S B R I TO R E I S ( O R G . )

A expectativa é que a universalização dos serviços de água e esgoto


reduza em até R$ 1,45 bilhão os custos anuais com saúde, segundo dados
da Confederação Nacional da Indústria (CNI). Além disso, a cada R$
1 investido em saneamento, deverá ser gerada economia de R$ 4 com a
prevenção de doenças causadas pela falta do serviço, de acordo com a Or-
ganização Mundial da Saúde (TRATA BRASIL, 2020).
O documento se transformou em sinônimo de avanço para a agen-
da ambiental urbana do país. Uma demonstração de preocupação com
os cidadãos que vivem nas cidades; e que vivem nas cidades sem condi-
ções mínimas, tanto de saúde, quanto de meio ambiente. Também, como
agente ambiental, o novo marco regulatório também prevê acabar com os
lixões a céu aberto em todo o país, desde que haja planos municipais para
a erradicação.
A nova legislação extingue esse modelo, transformando-o em con-
tratos de concessão com a empresa privada que vier a assumir a estatal, e
torna obrigatória a abertura de licitação, envolvendo empresas públicas e
privadas, porém, para aqueles contratos de programa que estão vigorando,
estes serão mantidos e, até março de 2022, poderão ser prorrogados por 30
anos. No entanto, esses contratos deverão comprovar viabilidade econô-
mico-financeira, ou seja, as empresas devem demonstrar que conseguem
se manter por conta própria — via cobrança de tarifas e contratação de
dívida (AGÊNCIA SENADO, 2020).
Importante ressaltar que a regulação do saneamento básico vai ficar
a cargo da ANA (Agência Nacional de Águas), mas o texto não elimina
as agências reguladoras de água locais. O marco regulatório exige que os
municípios e os blocos de municípios implementem planos de saneamen-
to básico e a União poderá oferecer apoio técnico e ajuda financeira para
a tarefa. O apoio, no entanto, estará condicionado a uma série de regras,
entre as quais, a adesão ao sistema de prestação regionalizada e à concessão
ou licitação da prestação dos serviços, com a substituição dos contratos
vigentes.
As diretrizes da nova legislação tornam ilimitada a participação da
União em fundos de apoio à estruturação de parcerias público-privadas
(PPPs), para facilitar a modalidade para os estados e municípios. Atual-
mente, o limite de participação do dinheiro federal nesses fundos é de R$
180 milhões (AGÊNCIA SENADO, 2020). 

453
DIMENSÕES JURÍDICAS DAS POLÍTICAS PÚBLICAS – VOL. 1

E, para melhorar a articulação institucional entre os órgãos federais


que atuam no setor, será criado o Comitê Interministerial de Saneamento
Básico (CISAB), colegiado que, sob a presidência do Ministério do De-
senvolvimento Regional, terá a finalidade de assegurar a implementação
da política federal de saneamento básico e de coordenar a alocação de re-
cursos financeiros.

4. MATERIAIS E MÉTODOS

Trata-se de um trabalho de revisão de literatura, com análise de ar-


tigos levantados nas bases de dados científicos da sCielo, Instituto Trata
Brasil, Agência Senado, Organização Mundial da Saúde, Organização das
Nações Unidas, dentre a farta doutrina existente nas bibliotecas virtuais e
físicas a disposição dos pesquisadores.
Os artigos e demais dados levantados foram minuciosamente revisa-
dos e separados para descrever cada capítulo deste, objetivando a exposição
da problemática apresentada.

5. DISCUSSÕES E RESULTADOS

O saneamento básico é direito fundamental destacado pela Consti-


tuição Federal, ao proteger o meio ambiente ecologicamente equilibrado,
garantir os direitos sociais à saúde e moradia digna e colocar a dignidade
da pessoa humana como fundamento do Estado Democrático Brasileiro.
Todavia, há, uma clara negação aos direitos sociais à saúde e moradia,
a par da vergonhosa situação de indignidade da pessoa humana, em con-
traste com a proteção constitucional que lhe são conferidas.
Para Granzieira e Dallari (2005), os grandes centros urbanos apresen-
tam sistemas de abastecimento de água e captação e tratamento dos esgo-
tos, porém, a desorganização e a falta, de correta implementação desses
sistemas, ou até mesmo a falta de um sistema padrão pode causar sérios
impactos na qualidade e quantidade dos recursos hídricos e consequente-
mente na saúde pública.
Por isto é necessário a implantação permanente de programas de
educação ambiental sistematizados tanto na rede pública de ensino quan-
to particular. Estes procedimentos possibilitam a transformação huma-

454
LU I Z A N TÔ N I O R E I S J U N I O R , M A U R I C I O P I R E S G U E D E S , T E L S O N P I R E S ,
VA N E S S A V E L A S C O, H E R N A N D E S B R I TO R E I S ( O R G . )

na através de processos de aprendizagem permanente e multidisciplinar


(NAIME, 2011).
A Lei 11.445/2007 sempre prezou pela necessidade de planejamento
para o saneamento, através da obrigatoriedade de planos municipais de
abastecimento de água, coleta e tratamento de esgotos, drenagem e mane-
jo de águas pluviais e limpeza urbana, e manejo de resíduos sólidos. Esses
planos são obrigatórios para que possam ser estabelecidos contratos de de-
legação da prestação de serviços e para que possam ser acessados recursos
do governo federal (OGU, FGTS e FAT), sendo que o prazo final para sua
elaboração termina em 2017.
Reforçou a participação e o controle social, através de diferentes me-
canismos como: audiências públicas, definição de conselho municipal res-
ponsável pelo acompanhamento e fiscalização da política de saneamento,
sendo que a definição desse conselho também é condição para que que
possam ser acessados recursos do governo federal. Todavia, a falta da efe-
tividade do direito ao saneamento básico cria, para a população, a necessi-
dade de recorrer ao judiciário.
O poder judiciário, por sua vez, leva com seriedade os direitos sociais,
tratando como autênticos os direitos fundamentais. A via jurisdicional
torna-se então, um dos principais instrumentos para a efetivação desses
direitos, elevando a questão a um patamar de verdadeira complexidade,
polêmica e de múltiplas faces (SILVEIRA, 2016).
Souza (2014, p. 44) pontua que o saneamento básico, em sentido
lato, abrange um conjunto de ações que o homem estabelece para man-
ter ou alterar o ambiente, no sentido de controlar doenças, promovendo
saúde, conforto e bem-estar. Incorpora, pois, políticas de abastecimento
d´água, esgotamento sanitário, sistemas de drenagem, coleta e tratamen-
to dos resíduos sólidos. Reflete e condiciona diretamente a qualidade de
vida determinada historicamente através de políticas públicas envolvendo
aspectos socioeconômicos e culturais e mantendo uma interface com as
políticas de saúde, meio ambiente e desenvolvimento urbano.
Com o advento da Lei nº 14.026, de 15 de julho de 2020 ou marco
regulatório do saneamento básico marco legal, eis, portanto, a obrigato-
riedade da regulação da prestação dos serviços de saneamento, visando a
garantia do cumprimento das condições e metas estabelecidas nos contra-
tos, a prevenção e a repressão ao abuso do poder econômico, reconhecen-

455
DIMENSÕES JURÍDICAS DAS POLÍTICAS PÚBLICAS – VOL. 1

do que os serviços de saneamento são prestados em caráter de monopólio,


o que significa que os usuários estão submetidos às atividades de um único
prestador.

6. CONSIDERAÇÕES FINAIS

O saneamento básico é uma questão antiga e até uma utopia a ser al-
cançada. Com aumento populacional, a natureza já não consegue exercer
o papel de reciclar os dejetos deixados pelo homem e o homem, por sua
vez, não consegue resolver os problemas de infraestrutura em saneamento
básico. Percebe-se que além de serviço essencial para a população, deve ser
reconhecida como elemento integrante da dignidade da pessoa humana,
sendo fundamental ao desenvolvimento do ser humano e ao bem-estar
existencial.
Embora sempre assegurado pela Lei 11.445/2007 e constar na Cons-
tituição Federal, na prática, o saneamento básico, item primordial a vida
humana, inexiste em muitas localidades brasileiras ainda nos dias de hoje.
Para o oferecimento de prestação de serviços de saneamento básico,
há a necessidade de recursos sejam eles materiais, humanos e tecnológicos,
vez que há de se considerar a execução das obras voltadas a esses serviços
e diante disso, há a necessidade de grandes investimentos, os quais reque-
rem sensibilidade e vontade política daqueles que ocupam o governo, pois
lideram e liberam os recursos financeiros necessários.
As justificativas sobre os investimentos voltados ao saneamento básico
estão voltadas nas áreas mais habitadas, onde os problemas sempre são os
maiores e podem serem desprovidos de forma parcial ou até mesmo total
desses serviços de infraestrutura urbana, pois sempre insurgirão dificulda-
des técnicas e também operacionais e tudo isso será uma responsabilidade
atribuída aos municípios, por meio de gestão e, talvez, a necessidade de se
prever o futuro em detrimento dessas áreas. E, diante disso, fatos e deses-
perançada, a população recorre ao Poder Judiciário como forma de fazer
valer seus direitos primordiais e esse fenômeno da judicialização das políti-
cas públicas ambientais acaba tornando essa esfera um poder protagonista
e fundamental, responsivo nas demandas públicas.
Então, o caminho da resolutiva para as questões judiciais sobre o tema
pode ser a imersão dos operadores do direito no conceito de saneamento

456
LU I Z A N TÔ N I O R E I S J U N I O R , M A U R I C I O P I R E S G U E D E S , T E L S O N P I R E S ,
VA N E S S A V E L A S C O, H E R N A N D E S B R I TO R E I S ( O R G . )

básico e políticas públicas, utilizando dos instrumentos constitucionais já


existentes e criando novos instrumentos.
As políticas já normatizadas e institucionalizadas como leis infracons-
titucionais oferecem espaço para argumentação judiciária e para o crivo
do judiciário, gerando grande número de ações em que se pede o cumpri-
mento do dever do Estado como provedor da saúde, segurança e bem-es-
tar dos cidadãos.
Com o advento da Lei nº 14.026, de 15 de julho de 2020, conheci-
da como marco regulatório do saneamento básico marco regulatório as
diretrizes previstas servirão de referência para a ANA na elaboração das
normas de regulação dos serviços públicos de saneamento básico. Dentre
vários aspectos há a articulação com as políticas públicas, como de desen-
volvimento urbano e regional, combate à pobreza, proteção ambiental e
promoção da saúde; o estímulo à pesquisa, ao desenvolvimento e à utili-
zação de tecnologias apropriadas; e a seleção competitiva do prestador dos
serviços.
O dispositivo também prevê o sistema de saneamento com prestação
de serviço regionalizada, para abranger mais de um município, onde o
serviço poderá ser estruturado por regiões metropolitanas, por unidades
regionais, instituídas pelos estados e constituídas por municípios não ne-
cessariamente limítrofes, e por blocos de referência criados pelos municí-
pios de forma voluntária para gestão associada dos serviços.
Dentre os desafios da nova legislação regulatória, há as metas de ex-
pansão e de qualidade na prestação dos serviços, as possíveis fontes de re-
ceitas alternativas e a repartição de riscos entre as partes, prestadores e
municípios.
Portanto, por meio deste trabalho procurou-se evidenciar a impor-
tância do tema, os estudos realizados recentemente e as questões judiciá-
rias que a população enfrenta para que seu direito à vida digna prevaleça.
Seria gratificante poder dizer que este culminou com a resolutiva acerca
do tema, e que o caminho para o acesso a um direito fundamental do ser
humano é curto e simples.
Os Direitos Fundamentais sociais têm função primordial, quiçá, im-
portante na estruturação da dignidade da pessoa humana, justiça social,
igualdade formal e material, com objetivos de erradicar a pobreza e pro-
mover o bem-estar social e ambiental de todos os cidadãos.

457
DIMENSÕES JURÍDICAS DAS POLÍTICAS PÚBLICAS – VOL. 1

E fazendo menção ao direito ao saneamento básico, eis a sua vincu-


lação ao rol desses Direitos e Garantias Fundamentais Sociais, garantia do
mínimo existencial como fator primordial da Dignidade da Pessoa Hu-
mana, franqueando o acesso à água potável, ao um meio ambiente equi-
librado e decente, e, acima de tudo, saneamento, de forma geral como
essencial: direito humano pleno a fim de que cada pessoa desfrute, de uma
vez por toda, de toda dignidade que lhe é conferida.

7. REFERÊNCIAS

ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais. Tradução de Vir-


gílio Afonso da Silva. 2. ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2015.

ALMEIDA FILHO, N. O que é saúde? São Paulo/ SP, editora FIO-


CRUZ, pág. 160, 2011.

BARROSO, Luís Roberto.  Curso de Direito Constitucional con-


temporâneo: os conceitos fundamentais e a construção do novo
modelo. São Paulo: Saraiva, 2009.

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Pre-


sidência da República, Casa Civil, Subchefia para Assuntos
Jurídicos. Brasília, 5 out. 1988. Disponível em: <http://www.pla-
nalto.gov.br/ccivil_03/ Constituicao/Constituicao.htm. Acesso em:
20 ago. 2020.

BRASIL. Lei nº. 11.445, de 05 de janeiro de 2007. Estabelece diretri-


zes nacionais para o saneamento básico; altera as Leis nos 6.766,
de 19 de dezembro de 1979, 8.036, de 11 de maio de 1990, 8.666,
de 21 de junho de 1993, 8.987, de 13 de fevereiro de 1995; revoga
a Lei no 6.528, de 11 de maio de 1978; e dá outras providências.
Presidência da República, Casa Civil, Subchefia para As-
suntos Jurídicos. Brasília, 19 set. 1990. Disponível em: <http://
www.planalto.gov.br/ccivil_03/ Leis/L8078.htm>. Acesso em: 20
ago. 2020.

BRASIL. Fundação Nacional da Saúde. Saneamento para Promo-


ção da Saúde. Assessoria de Comunicação. Publicação: Sex, 21 Jul

458
LU I Z A N TÔ N I O R E I S J U N I O R , M A U R I C I O P I R E S G U E D E S , T E L S O N P I R E S ,
VA N E S S A V E L A S C O, H E R N A N D E S B R I TO R E I S ( O R G . )

2017.Disponível em: http://www.funasa.gov.br/a-funasa1. Acesso


em 01 set. 2020.

CUNHA, B. P.; SILVA, J. I. A.; GOMES, I. R. F. D. Políticas públicas


ambientais: judicialização e ativismo judiciário. Revista eletrônica
de la Faculdad de Derecho, nº 42, pág. 211-46, 2017, disponível em
http://dx.doi.org/10.22187/rfd201718, acesso em: 06 Jan. 2020.

FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Curso de Direito Constitu-


cional. 38. ed. São Paulo: Saraiva, 2012.

GRANZIERA, Maria Luiza Machado; DALLARI, Sueli Gandolfi. Di-


reito Sanitário e Meio Ambiente. In: PHILIPPI Jr, Arlindo; ALVES,
Alaôr Caffé. Curso Interdisciplinar de direito ambiental. Barueri:
Manole, 2005.

HESPANHOL, 2006, p. 271 HESPANHOL, Ivanildo. Água e sanea-


mento básico. In: REBOUÇAS, Aldo da Cunha; BRAGA, Bene-
dito; TUNDISI, José Galizia (Orgs.). Águas doces no Brasil: capital
ecológico, uso e conservação. 3. ed. São Paulo: Escrituras, 2006.

HESSE, Konrad. A força normativa da Constituição. Tradução de


Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris Edi-
tor, 1991.

IPEA. INSTITUTO DE PESQUISA ECONÔMICA APLICADA.


Objetivos de Desenvolvimento do Milênio: Relatório Nacional de
Acompanhamento. Brasília: IPEA, mar., 2010.

LIMA, A. S. C.; ARRUDA, P. N.; SCALIZE, P. S. Indicador de sa-


lubridade ambiental em 21 municípios do Estado de Goiás
com serviços públicos de saneamento básico operados pelas
prefeituras. Rev. Eng. Sanitária Ambiental, vol. 24 nº 3, pág. 439-
452, Goiânia-GO, 2019.

MADEIRA, R. F. O setor de saneamento básico no Brasil e as


implicações do marco regulatório para a universalização do
acesso. Revista do BNDES, pág. 123-154, 2010.

459
DIMENSÕES JURÍDICAS DAS POLÍTICAS PÚBLICAS – VOL. 1

MENDES, J. Economia: fundamentos e aplicações. São Paulo: Prentice


Hall, 2004.

MIRANDA, Jorge. Manual de Direito Constitucional. Tomo IV,


Coimbra: Coimbra Editoras, 1983.

MOURA, E.A.C.; JULIO, J.S. Interfaces entre o direito à saúde e


o saneamento básico na noção de bem-viver do constitucio-
nalismo latino-americano. Rev. Direito Ambiental e Sociedade,
vol. 7, nº 3, pág. 155-170, 2017.

NAIME, Roberto. Direito ambiental e saneamento. Disponível em:


https://www.ecodebate.com.br/2011/09/26/direito-ambiental-e-sa-
neamento-artigo-de-roberto-naime. Acesso em 12 abr. 2020

NIRAZAWA, A.N.; OLIVEIRA, S. V. W. B. Indicadores de Sanea-


mento: uma análise das variáveis para elaboração de indicadores
municipais. Rev. De Administração Pública, vol. 52, nº 4, pág. 753-
76, Rio de Janeiro/RJ, 2018.

NUVOLARI, A. Esgoto sanitário: coleta, transporte, tratamento e


reuso agrícola. 2º edição, São Paulo, ed. Blucher, 2011.

PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e o Direito Constitucional


Internacional. São Paulo: Saraiva, 2016.

POMPEU, Cid Tomanik. Direito de Águas no Brasil. Editora Revista


dos Tribunais, 2009.

RAUPP, L. et al. Saneamento básico e desigualdades de cor/raça


em domicílios urbanos com a presença de crianças menores
de 5 anos, com foco na população indígena. Rev. Caderno Saú-
de Pública, Vol. 35, pág. 1-14, 2019.

SARLET, Ingo Wolfgang; FENSTERSEIFER, Tiago. Direito Cons-


titucional Ambiental: estudos sobre a Constituição, os Direitos
Fundamentais e a proteção do ambiente. São Paulo: Revista dos Tri-
bunais, 2011.

460
LU I Z A N TÔ N I O R E I S J U N I O R , M A U R I C I O P I R E S G U E D E S , T E L S O N P I R E S ,
VA N E S S A V E L A S C O, H E R N A N D E S B R I TO R E I S ( O R G . )

SARLET, Ingo Wolfgang.  Eficácia dos direitos fundamentais: uma


teoria geral dos direitos fundamentais na perspectiva constitucional.
11. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2012.

SAUDE, Organização Mundial da (OMS). Diretrizes sobre Saneamento


e Saúde. Genebra: Organização Mundial da Saúde; 2019. Disponível
em: http://apps.who.int/íris Acesso em: 12 mai. 2020

SENADO. Senado aprova novo marco legal do saneamento básico.


Agência Senado: da Redação, Brasília – DF, 24/06/2020. Disponível
em: https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2020/06/24/se-
nado-aprova-novo-marco-legal-do-saneamento-basico. Acesso em:
12 set. 2020.

SILVA, J. C. et al. Parasitismo por Ascaris lumbricoides e seus as-


pectos epidemiológicos em crianças do Estado do Maranhão.
Rev. Brasileira de Medicina Tropical, Vol. 44, nº 1, pág. 100-102,
2011.

SILVEIRA, F. A. A. S. da.  Judicialização de políticas públicas na


área da saúde: uma análise crítica. Rev. Conteúdo Jurídico, Bra-
sília-DF: 2016. Disponível em:  https://conteudojuridico.com.br/
consulta/Artigos/46207/judicializacao-de-politicas-publicas-na-a-
rea-da-saude-uma-analise-critica. Acesso em: 06 set 2019.

SIQUEIRA, Dirceu Pereira; PICCIRILLO, Miguel Belinati. Direitos


fundamentais: a evolução histórica dos direitos humanos, um lon-
go caminho. In: Âmbito Jurídico, Rio Grande, XII, n. 61, fev. 2013.

SOUZA, M. F. M. O saneamento básico e suas implicações no


meio ambiente e na saúde humana. Paraná/ SC: Medianeira,
2014.

STJ. RECURSO ESPECIAL: REsp 1533878 RJ 2015/0117605-4. Re-


lator Ministro Humberto Martins. REsp 1.185.474/SC, Rel. Min.
Humberto Martins, j. 20.04.2010. DJ. 19/08/2018. Disponível em:
http://www.stj.jus.br/sites/portalp/SiteAssets/ documentos/noticias/
RESp1533878.pdf. Acesso em: 12 set. 2020.

461
DIMENSÕES JURÍDICAS DAS POLÍTICAS PÚBLICAS – VOL. 1

TRATA BRASIL. Dia mundial da saúde: Como a falta de saneamen-


to afeta a saúde da população? Acesso em: http://www.tratabra-
sil.org.br/blog/2020/04/07/dia-mundial-da-saude-como-a-falta-de-
-saneamento-afeta-a-saude-da-populacao/Organização Mundial da
Saúde. Disponível em 20 ago. 2020.

462
ARTIGOS – DIREITO SOCIAIS

463
O DIREITO À ALIMENTAÇÃO
E A PROBLEMÁTICA DE SUA
EFETIVIDADE
Túlio Almeida Rocha Pires74

INTRODUÇÃO

A problemática circunda o questionamento: existe efetividade do di-


reito alimentar no Brasil? Diante de uma revisão de trabalhos correlatos
ao tema da segurança alimentar no Brasil, a hipótese firmada inicialmente
era a de que tal direito era inefetivo em pequenos locais, grupos isolados
e específicos, o que durante da pesquisa deu lugar a uma realidade mais
abrangente de sua inefetividade, enquanto cumprimento de sua função
social.
O objetivo desta pesquisa consistiu em investigar o direito alimentar
em âmbito nacional, traçando um delineamento com base em sua evolu-
ção histórica, social e jurídica. A metodologia assumiu a forma de uma re-
visão sistemática da literatura por meio de pesquisa bibliográfica de livros
e artigos relacionados ao tema.
A pesquisa trará apontamentos sobre características que importam ao
direito alimentar, como a universalidade, cultura e cidadania como forma
de inclusão social, e a requisição do cumprimento de preceitos normati-
vos, em face do Estado. Se observará a gênese do povo brasileiro, com-
preendendo as raízes da pobreza, as marcas da exclusão social trazidas por
ela, que são fatores determinantes na qualidade de vida dos indivíduos,

74 Graduando em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais

465
DIMENSÕES JURÍDICAS DAS POLÍTICAS PÚBLICAS – VOL. 1

sobretudo, referindo-se à aquisição de alimentos e, em face disso, a neces-


sidade do debate acerca da inclusão social.
Finalmente, se estudará a problemática da efetividade do direito ali-
mentar, trabalhando o conceito de efetividade em correlação com a rea-
lidade empírica da situação dos indicadores pertinentes à segurança ali-
mentar e sua satisfação plena. Compreendendo então que é evidente a
configuração de que a problemática da efetividade do direito alimentar
possui uma multiplicidade de causas.

1 Interfaces legislativas do direito alimentar

Traduzindo o entendimento da expressão “Direito Alimentar” de


modo a não se confundir com o direito que assegura à pessoa humana o
acesso ao alimento em si, ou seja, o acesso a aquilo que é consumido pelos
seres vivos com fins energéticos e nutricionais. Em determinação expressa
pela Declaração Universal dos Direitos Humanos, artigo XXV, 1, obser-
va-se que “todo ser humano tem direito a um padrão de vida capaz de
assegurar-lhe, e a sua família, saúde e bem-estar, inclusive alimentação[...]
(ONU,1948).
O Pacto Internacional Sobre Direitos Econômicos, Culturais e So-
ciais, garante o direito à alimentação, e acrescenta que deve ser assegu-
rada à toda pessoa o direito de não passar fome, normatizando em seus
artigos 11, 12 e incisos. O Direito Alimentar é conceituado como aquele
direito que garante ao indivíduo o acesso permanente ao alimento, ou
seja, a comida, “[...] aquilo que é consumido pelos seres vivos com fins
energéticos e nutricionais” (ZIEGLER, 2013, p. 32), bem como os ele-
mentos tradicionais que tangenciam a alimentação, daí sua ligação com o
Direito à Cultura.
Dessa forma, os ritos tradicionais de grupos étnicos regionais, devem
ser igualmente preservados, considerando o direito à cultura assegurado
à pessoa humana. O sociólogo Jean Ziegler (2013) menciona tal direito
como aquele que põe a salvo a qualidade de vida física e psíquica. Confor-
me autor supramencionado, ele se define como:

[...] o direito a ter acesso regular, permanente e livre, diretamente


ou por meio de compras monetárias, a um alimento qualitativo e

466
LU I Z A N TÔ N I O R E I S J U N I O R , M A U R I C I O P I R E S G U E D E S , T E L S O N P I R E S ,
VA N E S S A V E L A S C O, H E R N A N D E S B R I TO R E I S ( O R G . )

quantitativamente adequado e suficiente, que corresponda às tra-


dições do povo de que é originário o consumidor e que lhe assegu-
re uma vida psíquica e física, individual e coletiva, livre de angústia,
satisfatória e digna. (ZIEGLER, 2013, p. 31).

Os Direitos Sociais, também chamados de direitos de igualdade, ti-


dos como Direitos Humanos de segunda geração, perfazendo o ideário
da busca pela igualdade social. Segundo Ferreira Filho (2013), o Estado
figura como sujeito passivo frente aos direitos sociais, sendo responsável
por assegurá-los à sociedade.
O Direito Alimentar emerge indiretamente pela primeira vez no Bra-
sil na Constituição outorgada de 1824. Considerando que para a efetivação
do direito à saúde expressamente normatizado, seria necessário promover
à sociedade a adequada alimentação, pressuposto para a instauração do di-
reito à saúde, reafirmando seu caráter fundamental. (SIQUEIRA, 2015).
Conforme Dirceu Siqueira (2015), foi a Constituição de 1988 que
trouxe destaque definitivamente para o Direito à Alimentação, quando o
artigo 6º foi alterado pela Emenda Constitucional nº 64 de 04 de fevereiro
de 2010, incluindo expressamente o Direito à Alimentação no rol dos Di-
reitos Sociais no texto constitucional, e atribui responsabilidades em seu
artigo 227. Assim dispôs a Carta Magna:

Art. 6º São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação[...]


(Redação dada pela Emenda Constitucional nº 90, de 2015) [...]

Art. 227- É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar


à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o
direito à vida, à saúde, à alimentação[...] (BRASIL, 1988).

Em face disso, observa-se que ele podia ser assegurado mesmo antes
da previsão expressa do direito alimentar na Constituição de 1988, como
medida fundamental para concretizar dispositivos até então vigentes.

1.1 O direito à saúde e a segurança alimentar

A saúde, entendida pela Constituição da Organização Mundial da


Saúde (OMS, 1946) “[...] um estado de completo bem-estar físico, men-

467
DIMENSÕES JURÍDICAS DAS POLÍTICAS PÚBLICAS – VOL. 1

tal e social, e não apenas a ausência de doenças [...]”, é antecedida pelo


acesso à alimentação adequada.
Dessa forma, mesmo sem a devida menção expressa do Direito Ali-
mentar nos textos constitucionais até o advento da EC 64/2010, ele per-
manecia garantido sendo indispensável para a concretização do Direito
à Saúde, tendo em vista que é por meio do alimento que se constitui a
energia vital do humano. Assim entende Siqueira, mencionando que:

[...] a alimentação sempre esteve ligada à ideia de saúde, afinal, de


sua adequação deriva o bem-estar do indivíduo, e ao revés, sua es-
cassez pode vir a colocar em risco a sobrevivência humana. [...] A
importância da boa alimentação para os indivíduos está no fato de
que ela os influencia no trabalho, nos estudos, no lazer, na autoes-
tima, na longevidade, entre outras coisas, tornando-se fundamen-
tal para a sobrevivência, o crescimento físico, o desenvolvimento
mental, o desempenho, a produtividade, a saúde e o bem-estar.
(SIQUEIRA, 2015, p.6).

Interpretando conjuntamente os dispositivos constitucionais, se chega


à conclusão de que para se garantir os direitos estabelecidos até então (se-
jam eles o Direito à Saúde, o Direito à sua Subsistência e a de sua família,
a assistência à maternidade, à infância, Direito ao salário mínimo, entre
outros) a instituição do Direito Alimentar funcionava como uma instância
pressuposta à concretização dessas garantias. (SIQUEIRA, 2015).
O conceito de segurança alimentar começa a ser cunhado com o de-
senrolar do advento da segunda guerra mundial, momento a partir do qual
a Europa se viu sem condições de produzir e fornecer seu próprio alimen-
to à população. Assim sendo, a segurança alimentar é uma ideia dotada de
três interfaces subjacentes, dessa forma deve ser observada sob os prismas
da quantidade, da qualidade e da regularidade no fornecimento dos ali-
mentos. (BELIK, 2003).

1.2. Universalidade, cultura e cidadania

O caráter universal dos direitos humanos e fundamentais emerge


estabelecendo condições ideais para a promoção da dignidade da pessoa

468
LU I Z A N TÔ N I O R E I S J U N I O R , M A U R I C I O P I R E S G U E D E S , T E L S O N P I R E S ,
VA N E S S A V E L A S C O, H E R N A N D E S B R I TO R E I S ( O R G . )

humana. A universalidade diz que, considerando condições básicas para a


vida humana, estas devem ser atendidas integralmente, sem serem tolhi-
das ou rebaixadas. Siqueira menciona que “[...] este princípio está ligado
diretamente à vida humana [...] não se admitindo restrição alguma, ainda
mais se tal restrição for oriunda de ato estatal.” (SIQUEIRA, 2015, p.18).
A importância da cidadania aparece na característica que coloca o sujei-
to diante do aparelho estatal interferindo em suas decisões, fiscalizando sua
atuação. No Brasil, a postura da sociedade perante o Estado possui profun-
das raízes colonialistas, impondo à parcela da sociedade severa dificuldade
de articulação em face deste ente, conforme o antropólogo Darcy Ribeiro:

[...] formando a linha mais ampla do losango das classes sociais


brasileiras, fica a grande massa das classes oprimidas [...] são os en-
xadeiros, os boias-frias, os empregados na limpeza, as empregadas
domésticas, as pequenas prostitutas, quase todos analfabetos e in-
capazes para reivindicar. (RIBEIRO, 2015, p. 157).

Além de intrinsecamente ligado à cidadania e a dignidade da pessoa


humana, o direito alimentar associa-se a cultura de um povo. A cultura,
conforme artigo 215 da Constituição da República de 1988 é direito as-
segurada a todos pelo Estado, devendo ser respeitadas as manifestações
culturais nacionais, bem como a dos povos indígenas e afro-brasileiros e
de outros povos participantes do processo civilizatório nacional.
Relembrando as diferentes matrizes que permitiram a construção do
povo Brasileiro (sejam elas as matrizes lusitana, tupi, guaranítica, as matri-
zes africanas majoritariamente provenientes da costa ocidental da África,
e assim por diante), assim como a “empresa escravista” (RIBEIRO, 2015,
p. 89), assim chamada por Darcy Ribeiro, aquilo que funcionou como
um dos mecanismos fundadores da sociedade proporcionando uma mes-
cla étnica e cultural totalmente nova, gerando uma configuração social
única, utilizando-se da coerção, violência e apropriação de seres humanos.
Conforme Ribeiro:

O negro escravo, enculturado numa comunidade africana, perma-


nece, ele mesmo, na sua identidade até a morte. [...] O brasilíndio
como o afro-brasileiro existiam numa terra de ninguém, etnica-

469
DIMENSÕES JURÍDICAS DAS POLÍTICAS PÚBLICAS – VOL. 1

mente falando, e é a partir dessa carência essencial, para livrar-se da


ninguendade de não índios, não europeus e não negros, que eles se
veem forçados a criar a sua própria identidade étnica: a brasileira.
(RIBEIRO, 2015, p. 99).

Muitos elementos originários dos povos que viviam na então chamada


ilha Brasil como das demais matrizes, sucumbiram, considerando a em-
presa escravista a que foram submetidos, da qual saíam pela via da morte
ou da fuga que, possivelmente, culminaria em morte (RIBEIRO, 2015).
Atualmente à cultura está assegurada em âmbito nacional pela Constitui-
ção Federal vigente, além de outros instrumentos a nível de direito in-
ternacional, como na Declaração Universal dos Direitos Humanos, entre
outros diplomas normativos.
A cultura liga-se ao contexto do direito alimentar tendo em vista que
ele se caracteriza, entre outras coisas, pelo acesso à alimentos que “[...]
correspondam às tradições do povo de que é originário o consumidor.”
(ZIEGLER, 2013, p. 31).
Para compreender a problemática da efetividade do direito alimentar, se
tece um panorama da formação do Brasil para aclarar a dimensão da exclusão
social registrada na sociedade, a estrutura social que funda o país, sua (in)ca-
pacidade reivindicatória em face da máquina pública (pela via da cidadania).

2 A exclusão social e o direito à alimentação

A exclusão social caracteriza-se por um processo onde demarcam-se


diversos traços indicadores da pobreza, se referindo à dificuldade de rea-
lização do acesso a direitos e serviços básicos, como por exemplo o acesso
à saúde (LEMOS, 2007), impedimento para promoção da igualdade na
sociedade. Na impossibilidade de obter aquilo que se busca, parcela da
população fica relegada à exclusão (excluída do acesso a garantias básicas
para manter inclusive a saúde, a dignidade da pessoa humana, a própria
vida), necessitando do debate acerca da inclusão social, em contraste com
a exclusão preexistente, baseando-se num ideal de justiça social, igualdade
e respeito a diversidade humana.
De acordo com Rossana Teresa Curioni, a ideia de inclusão social baseia-
-se na preocupação com a defesa da igualdade de oportunidade para todos,

470
LU I Z A N TÔ N I O R E I S J U N I O R , M A U R I C I O P I R E S G U E D E S , T E L S O N P I R E S ,
VA N E S S A V E L A S C O, H E R N A N D E S B R I TO R E I S ( O R G . )

bem como o acesso a bens e serviços públicos (CURIONI, 2004). Nesse


sentido, a fim de que se diminua (e até mesmo acabe) na sociedade brasi-
leira características próprias da pobreza, a Constituição de 1988 estabeleceu
em seu artigo 3º, III, a erradicação da marginalização da pobreza e redução
das desigualdades sociais e regionais, além de promover o bem de todos sem
preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de
discriminação, objetivos fundamentais da república (BRASIL, 1988).
Diante de tais dispositivos constitucionais, imbuídos de ideais de
igualdade social e garantia de direitos fundamentais, permanecem inde-
léveis marcas excludentes, opressoras e escravistas, marcas que estão pre-
sentes desde a gênese brasileira a partir de uma sistemática colonizadora
exploratória.
Não é um desafio fácil, contudo, no mínimo, o povo brasileiro se vê
diante de um substrato normativo que o apoia na garantia de seus direi-
tos básicos, como saúde, alimentação, educação e, a partir disso, o caráter
esclarecedor, declaratório e orientador de determinados diplomas norma-
tivos referentes a direitos humanos são fundamentais para a promoção da
cidadania de um povo que se vê marcado por registros de pobreza e baixas
condições de vida desde o início de sua formação étnica como brasileiros.
Nesse sentido, Ribeiro (2015) assevera que ainda após a abolição da
escravatura recai sobre determinadas classes menos favorecidas o legado da
sobrevivência em condições precárias, vide:

Depois da abolição da escravatura, continuaram atuando sobre o


negro livre, como fatores de redução de sua expansão demográfica,
as terríveis condições de penúria a que ficou sujeito. Basta consi-
derar a miserabilidade das populações brasileiras das camadas mais
pobres, dificilmente suportável por qualquer grupo humano, e que
afeta ainda mais duramente os negros, para se avaliar o peso desse
fator. (RIBEIRO, 2015, p. 174).

2.1 A industrialização, o neoliberalismo e o direito


alimentar

Quando a alimentação deixa de ser vista como uma forma do exer-


cício inato de uma necessidade intrínseca da existência humana, um

471
DIMENSÕES JURÍDICAS DAS POLÍTICAS PÚBLICAS – VOL. 1

exercício da cultura, um exercício da conservação da saúde orgânica para


manter, a priori, a sobrevivência, ela perde a sua essência e passa a ser pro-
duzida pelo que João Pedro Stédile (2013) chama de um modelo predador
e destruidor da biodiversidade do planeta, ao promover a agricultura e a
praticá-la sem agricultores, uma vez que a tendência do oligopólio75 in-
dustrial formata a produção em monoculturas, substituindo a cobertura
original do solo por extensas plantações de um único tipo, impedindo o
aumento do trabalho no meio rural.
Nesse sentido, Lemos (2007) ilumina o debate à medida em que pro-
põe a industrialização como fator de elevação da produtividade para a acu-
mulação de capital, deparamo-nos assim com a ideia de que a elevação da
produção não está necessariamente ligada à promoção do acesso de todos
à um alimento qualitativamente e quantitativamente adequado, mas a ló-
gica se transforma a medida em que a produtividade é colocada em função
da acumulação do capital. Vide:
A elevação de produtividade, por sua vez, depende da acumulação de
capital. Esta concepção de desenvolvimento está em concordância com a
escola clássica, principalmente na linha de pensamento de Adam Smith,
Thomas Malthus e David Ricardo. No geral estes pensadores concordam
que o acúmulo de capital se constitui na fonte fundamental para o cresci-
mento. Mas queremos demonstrar neste trabalho que isso não implicará,
necessariamente, em melhoria dos padrões de vida generalizados da socie-
dade. (LEMOS, 2007, p. 25).
Num primeiro momento, percebe-se que a industrialização, acom-
panhada pelos avanços tecnológicos, tem o condão de elevar a produtivi-
dade das lavouras ampliando o acesso a alimentos e produtos alimentícios.
Contudo, não obstante ao horizonte próprio do direito à alimentação, tal
processamento deve ocorrer considerando o objetivo de fornecer o ali-

75 De acordo com o professor Jean Ziegler em sua obra Destruição em massa: a geopolítica
da fome (2015), a palavra oligopólio é usada para “[...] melhor caracterizar o funcionamento
dos mercados em que um número muito pequeno (oligo, em grego) de ofertantes (vende-
dores) se contrapõe a um grande número de demandantes (compradores)”. (ZIEGLER, 2015,
p. 153). Ziegler é vice-presidente do Comitê Consultivo de Direitos Humanos das Nações
Unidas, e demonstra em sua obra como a sistemática industrial vigente retira da plantação
a figura do agricultor, colocando-a em pertencimento de poucos detentores da propriedade
privada ou de um restrito grupo empresarial.

472
LU I Z A N TÔ N I O R E I S J U N I O R , M A U R I C I O P I R E S G U E D E S , T E L S O N P I R E S ,
VA N E S S A V E L A S C O, H E R N A N D E S B R I TO R E I S ( O R G . )

mento adequado, isto é, o alimento deve ser produzido sempre ligado à


ideia de saúde, sob pena de não se incorporarem nas disposições do Sis-
tema Nacional de Segurança Alimentar - SISAN, entendo o conceito de
produto alimentício, aquele não destinado propriamente à manutenção da
saúde e nutrição.
O horizonte da saúde não pode ser perdido, seguindo o que é norma-
tizado pelo diploma supracitado dizendo que “[...] a alimentação adequa-
da é direito fundamental do ser humano, inerente à dignidade da pessoa
humana e indispensável à realização dos direitos consagrados na Consti-
tuição Federal” (BRASIL, 2006).
Ainda sobre a sistemática industrial mas entrando nas marcas articu-
ladas pelo neoliberalismo, aqui entendido de acordo com os postulados de
Marilena Chauí, se caracterizando como uma operação76 antidemocrá-
tica, porque tem como trunfo não a privatização das empresas, mas sim
a privatização dos direitos sociais (CHAUÍ, 2019), dentre os quais se faz
presente o direito alimentar, conforme o artigo 6º, caput, da Constituição
da República de 1988. Dessa maneira a sistemática industrial é inserida
na ideologia econômica neoliberal demarcando sua inter-relação, cor-
rompendo tais direitos, tendendo a transformá-los em serviços e bens de
consumo negociados no mercado, desnaturando a essência da alimentação
como direito que é. Conforme Chauí:

O movimento do capital transforma toda e qualquer realidade em


objeto do e para o capital, convertendo tudo em mercadoria, insti-
tuindo um sistema universal de equivalências próprio de uma for-
mação social baseada na troca pela mediação de uma mercadoria
universal abstrata, o dinheiro. (CHAUÍ, 2019, p. 1).

76 De acordo com a professora Marilena Chauí (2019) em seu texto Neoliberalismo: a nova
forma do totalitarismo, se utiliza a expressão operações como “estratégias balizadas pelas
ideias de eficácia e de sucesso no emprego de determinados meios para alcançar o objetivo
particular que a define. É regida pelas ideias de gestão, planejamento, previsão, controle e
êxito” (CHAUÍ, 2019, p. 1), denota ainda o registro de uma sistemática militarizada, e a ser-
viço de interesses de organizações instrumentalizadas em favor de interesses particulares
restritos. Chauí explica, “uma organização se define por sua instrumentalidade, fundada nos
pressupostos administrativos da equivalência. Está referida ao conjunto de meios particula-
res para obtenção de um objetivo particular.” (CHAUÍ, 2019, p. 1).

473
DIMENSÕES JURÍDICAS DAS POLÍTICAS PÚBLICAS – VOL. 1

O que se aprecia nos parágrafos anteriores não é a necessidade da pro-


dução de alimentos em grande escala, uma vez que esta é evidente tendo
em vista a quantidade de pessoas que necessitam de alimento (na siste-
mática do capital, entendidas como compradores), porém, aprecia-se a
lógica produtiva na dinâmica do oligopólio que repousa sobre as propostas
econômicas neoliberais. Assim sendo, à medida em que a alimentação é
inserida nessa sistemática, transformada em objeto do capital, produzida
no contexto de pura mercadoria, ela é desnaturada em sua essência de
direito social.
O presente texto tem como escopo a análise do direito alimentar in-
serido no rol normativo dos direitos sociais, e a problemática da sua efi-
cácia. E em face dos conceitos de cultura, cidadania, exclusão social, em
face dos conceitos de direito e segurança alimentares, desvela-se a direção
inversa em que seguem os atributos neoliberais na agenda que busca a efe-
tividade do direito alimentar e outros direitos sociais.

3 A problemática da efetividade do direito à


alimentação

A partir das reflexões teóricas versadas até aqui, é possível situar o


direito alimentar no seu contexto dentro do rol dos direitos sociais, sua
ligação com a cultura, com os registros de exclusão social trazidos pela
pobreza e a necessidade do exercício ativo da cidadania.
Continuando, o professor Ingo Wolfgang Sarlet (2015) conceitua
uma diferenciação entre eficácia jurídica e eficácia social, na qual a pri-
meira preocupa-se com a executoriedade da norma como forma de apli-
cação, e a outra, com a concreta satisfação de sua função social, ou seja, a
realização dos institutos jurídicos na realidade natural, coincidindo com a
noção de efetividade do direito. (SARLET, 2015).
Sarlet preleciona que o caminho da eficácia jurídica para o tema,
ou seja, optar pela execução da norma, implica em prezar pela sua efeti-
vação. Contudo, isso não significa dizer que os destinatários da norma
agirão conforme sua função social, conforme o que determina a medida
jurídica de aplicação no caso concreto. A efetividade jurídica, então, é
encarada como “possibilidade, e não efetividade”. (SARLET, 2015, p.
245). Tomando-se como ideia pura de efetividade, entendida como a

4 74
LU I Z A N TÔ N I O R E I S J U N I O R , M A U R I C I O P I R E S G U E D E S , T E L S O N P I R E S ,
VA N E S S A V E L A S C O, H E R N A N D E S B R I TO R E I S ( O R G . )

concreta satisfação do direito, a noção de efetividade social supramen-


cionada, “[...] a real obediência e aplicação no plano dos fatos [...]”
(SARLET, 2015, p. 245).
Tendo em vista que o direito à alimentação é exercido diretamen-
te ou por meio de compras monetárias (ZIEGLER, 2015) a situação do
trabalho atrela-se fundamentalmente com a segurança alimentar, ou seja
o acesso permanente ao alimento qualitativamente e quantitativamente
adequado, o que é garantido pelo Pacto Internacional Sobre Direitos Eco-
nômicos, Sociais e Culturais, o Sistema Nacional de Segurança alimentar,
e assim por diante.
Nesse sentido, de acordo com pesquisas realizadas no ano de 2017 no
âmbito da segurança alimentar e os cenários sociodemográficos no Brasil,
a ausência de vínculo empregatício é um dos fatores determinantes para
a concretização da insegurança alimentar. Em especial destaca-se a meta-
-análise da qual se extrai o fragmento abaixo, que demonstra como sendo
as famílias mais vulneráveis na sua tentativa do exercício de seu direito,
como sendo àquelas em que se associa a baixa renda familiar, e a ausência
do vínculo empregatício, além de evidenciar a marca da exclusão social
trazida pela pobreza e pela baixa renda, também denota a correlação do
impedimento do exercício pleno do direito à alimentação adequada com a
ausência do vínculo empregatício.
Nela conclui-se que “[...] as populações em iniquidades sociais do
presente estudo, assumidas como as de maior grau de pobreza, apresen-
taram maiores chances de insegurança alimentar moderada e grave, jus-
tificando o contexto de vulnerabilidades do ponto de vista da segurança
alimentar e nutricional [...] associado à pobreza. Estudos de abrangência
nacional, semelhantemente, têm indicado maior prevalência de insegu-
rança alimentar moderada e grave entre as famílias mais pobres. [...] Os
resultados do presente estudo somam-se aos de revisão anterior que siste-
matizou a relação da insegurança alimentar com indicadores sociais, como
menor renda e escolaridade, ausência de vínculo empregatício e sanea-
mento básico”. (BEZERRA; OLINDA; PEDRAZA, 2017, p. 1).
De acordo com os indicadores do IBGE (2020) o Brasil atingiu a
marca de 11,9 milhões de desempregados em 2019, o que pode piorar
em face da pandemia da doença Covid-19, podendo ser objeto de apura-
ções futuras. Dessa forma, no que interessa ao presente trabalho, é que a

475
DIMENSÕES JURÍDICAS DAS POLÍTICAS PÚBLICAS – VOL. 1

presença de mais de onze milhões de desempregados possui afetação di-


reta com a eficácia do direito alimentar além de tal direito sofrer os efei-
tos das políticas econômico-financeiras tendo em vista que é também
exercido mediante compras monetárias, assim resta ao trabalhador, por
sua vez, relegado à pobreza e à exclusão social que já lhe são costumeiras,
lidar com a insegurança alimentar deixada pela situação de desemprego,
conforme Chauí:

Social e economicamente, ao introduzir o desemprego estrutural


e a terceirização toyotista do trabalho, dá origem a uma nova clas-
se trabalhadora denominada por alguns estudiosos com o nome
de precariado para indicar um novo trabalhador sem emprego está-
vel, sem contrato de trabalho, sem sindicalização, sem seguridade
social, e que não é simplesmente o trabalhador pobre, pois  sua
identidade social não é dada pelo trabalho nem pela ocupação, e
que, por não ser cidadão pleno, tem a mente alimentada e mo-
tivada pelo medo, pela perda da autoestima e da dignidade, pela
insegurança. (CHAUÍ, 2019, p. 1).

Ainda denotando a função fundamental da renda e emprego para a


efetividade do direito alimentar, outro levantamento, este realizado em
2018, considera que:

[...] o impacto de fatores como queda dos salários, desemprego,


inflação dos preços e sazonalidade dos alimentos e desaceleração
econômica, que têm sido associados ao aumento da insegurança
alimentar em diversos contextos. (SANTOS, et al, 2018).

Há apenas seis anos o Brasil saía do Mapa Mundial da Fome e é para


lá que o país parece estar retornando. Em 2017 os indicadores sociais do
IBGE (2020) acusaram que a pobreza no país passou da marca de 25,7%
para 26,5%, e a extrema pobreza de 6,6% para 7,4%, e diante de tais re-
gistros o Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional-Con-
sea foi extinto em 1° de janeiro de 2019 por força da medida provisória
870. Em nota prestada à Comissão de Direitos Humanos e Minorias da
Câmara dos Deputados, a ex-presidente do Consea, Elisabetta Recine,
assevera que:

476
LU I Z A N TÔ N I O R E I S J U N I O R , M A U R I C I O P I R E S G U E D E S , T E L S O N P I R E S ,
VA N E S S A V E L A S C O, H E R N A N D E S B R I TO R E I S ( O R G . )

[...] acabar com a fome não é oferecer qualquer tipo de comi-


da. Tem que oferecer alimentos produzidos de maneira limpa,
justa, promovendo o desenvolvimento econômico e social. A
fome é a ponta de um iceberg de violações de direitos. (VALA-
DARES, 2019).

Declaração que se encontra em conformidade com as diretrizes do


Sistema Nacional de Segurança Alimentar. Nesse sentido, o estudo publi-
cado pela revista Brasileira de Estudos Regionais e Urbanos, 2018, aponta
de maneira cirúrgica a incidência da insegurança alimentar forte (AIF) em
ocasiões em que se verificam a baixa renda familiar, a informalidade no
trabalho, a baixa escolaridade dos indivíduos e características especiais de
determinadas regiões em que vivem. Em números, o respectivo estudo
aponta que:

É possível observar que 16,68% das pessoas que residem na região


Norte encontram-se na categoria de Insegurança Alimentar For-
te, seguida pela região Nordeste, com um porcentual de 15,60%,
porém, em número absoluto, o Nordeste registra um volume de
pessoas na categoria de Insegurança Alimentar Forte bem maior
do que a região Norte. Já as regiões com menor proporção de IAF
no país são as regiões Sudeste, Sul e Centro-Oeste, com um por-
centual de 4,56%, 4,57% e 5,51%, respectivamente, e, em termos
quantitativos, a região Centro-Oeste é a que possui menor quanti-
dade de pessoas nesta categoria [...] Portanto, verifica-se que 30%
das pessoas que recebem até um quarto de salário mínimo pos-
suem redução quantitativa de alimentos, mas é na faixa de mais de
um quarto do salário mínimo até um salário mínimo em que se
encontram o maior número de pessoas (9.628.898) que têm Inse-
gurança Alimentar Forte. (PONTES; BARBOSA; OLIVEIRA;
ABDALLAH, 2018, p. 1).

Em vista dos argumentos ora versados, verifica-se que a problemática


da efetividade do direito alimentar apresenta-se de maneira mais aguda
nas regiões norte e nordeste, que possuem um percentual de pessoas em
insegurança alimentar forte de 16,68% e 15,60% respectivamente.

477
DIMENSÕES JURÍDICAS DAS POLÍTICAS PÚBLICAS – VOL. 1

CONCLUSÃO

É evidente, diante das discussões apresentadas, a configuração


de que a problemática da efetividade do direito alimentar possui uma
multiplicidade de causas. Ao longo do trabalho foi possível perceber que
a ausência de efetividade deste direito para certas populações que, à mar-
gem, não conseguem ter o acesso a alimentos qualitativamente e quanti-
tativamente adequados (como normatiza o artigo 3º do Sistema Nacional
de Segurança Alimentar) revela uma realidade de negligências históricas
e sociais.
Pode-se concluir ainda que, a implantação de políticas públicas, ape-
sar de não terem erradicado o problema da efetividade do direito alimen-
tar no Brasil, foram fundamentais para a sua diminuição, tendo em vista
os dados ora apresentados, se discute aqui um problema multifatorial, que
possui raízes históricas, sociológicas, culturais, jurídicas, etc. Dessa ma-
neira, se propor a resolver, ou minimamente discutir meios para a resolu-
ção da problemática da efetividade do direito alimentar, passa por discutir
a própria dignidade da pessoa humana, e as condições de vida do indi-
víduo como um todo, ainda com a implantação das políticas públicas, é
necessário que se estabeleça condições formais de trabalho, tendo em vista
a incidência da insegurança alimentar em lares onde os indivíduos per-
manecem na informalidade, com fins de que se assegure uma renda capaz
de promover a alimentação das famílias, e garantir outros direitos básicos,
tendo em vista que a falta da alimentação (que é um direito que garante di-
reitos, a princípio, a própria vida) denota uma precariedade que se estende
além da alimentação em si, o que não pode deixar de ser registrado aqui.
Os índices de insegurança alimentar forte nos domicílios demons-
tram uma realidade trágica e atual, demandando de maneira urgente o
cumprimento da função social do direito à alimentação, seja pela melhor
distribuição da renda, seja por políticas de proteção salarial e direitos tra-
balhistas, pela ação do ministério público na defesa dos interesses coleti-
vos, ou na orientação das populações afetadas pelo não alcance do direito
alimentar, respeitando a dignidade da pessoa humana. Percebendo, por
fim, a urgência da temática, ainda num grande país agroexportador do
século XXI, território oriundo da exploração e marginalização humanas,
que subsiste com sério registro excludente até a contemporaneidade.

478
LU I Z A N TÔ N I O R E I S J U N I O R , M A U R I C I O P I R E S G U E D E S , T E L S O N P I R E S ,
VA N E S S A V E L A S C O, H E R N A N D E S B R I TO R E I S ( O R G . )

REFERÊNCIAS

BELIK, Walter. Perspectivas para segurança alimentar e nutricional no


Brasil. Saúde e Sociedade, São Paulo, v. 12, n. 1, p. 12-20, 2003.
Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttex-
t&pid=S0104-12902003000100004&lng=en&nrm=iso. Acesso em:
26 fev. 2020.

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Nós, represen-


tantes do povo brasileiro, reunidos em Assembléia Nacional Cons-
tituinte para instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar
o exercício dos direitos sociais [...]. Diário Oficial da União: seção
1, Brasília, ano 126, n. 191-A, 5 out. 1988. Disponível em: http://
www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm.
Acesso em: 22 fev. 2020.

BRASIL. Decreto n. 591, de 6 de julho de 1992. Atos Internacio-


nais. Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Cul-
turais. Promulgação. Brasília, DF, Presidência da República, 6 jul.
1992. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decre-
to/1990-1994/d0591.htm. Acesso em: 22 fev. 2020.

BRASIL. Decreto Lei n. 986 de 1969. Institui normas básicas


sobre alimentos. Brasília, DF: Ministros da Marinha de Guerra do
Exército e da Aeronáutica Militar, 21 out., 1969. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Decreto-Lei/Del0986.htm.
Acesso em: 28 mar. 2020.

BRASIL. Lei nº 11.346, de 15 de setembro de 2006. Cria o Sistema


Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional – SISAN com vistas
em assegurar o direito humano à alimentação adequada e dá outras
providências. Brasília, DF, Presidência da República, 15 set., 2006.
Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2004-
2006/2006/Lei/L11346.htm. Acesso em: 26 fev. 2020.

CHAUÍ, Marilena de Souza. Neoliberalismo: a nova forma do tota-


litarismo. [S.l]: A Terra é Redonda, 2019. Disponível em: https://
aterraeredonda.com.br/neoliberalismo-a-nova-forma-do-totalita-
rismo/. Acesso em: 24 mar. 2020.
479
DIMENSÕES JURÍDICAS DAS POLÍTICAS PÚBLICAS – VOL. 1

CURIONI-MERGULHÃO, Rossana Teresa; HADAD, R. B. ; AL-


VES, R.C. . Pessoas portadoras de deficiências: inclusão social no
aspecto educacional. Uma realidade? In: ARAÚJO, Luiz Alberto
David. (Org.). Direito da pessoa portadora de deficiência: uma
tarefa a ser completada. Bauru-SP: Centro de Pós-Graduação - ITE,
2004.

INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATISTICA -


IBGE. Painel de indicadores. Brasília, DF, Instituto Brasileiro de
Geografia e Estatística, 2020. Disponível em: https://www.ibge.gov.
br/indicadores#desemprego. Acesso em: 09 abr. 2020. 

LEMOS, José de Sousa Jesus. Mapa da exclusão social no Brasil:


radiografia de um país assimetricamente pobre. Fortaleza: [s.n.],
2007. Disponível em: http://repositorio.ufc.br/bitstream/riu-
fc/5790/1/2008_liv_jjslemos.pdf. Acesso em: 13 mar. 2020.

  ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DA SAÚDE – OMS. Constituição


da Organização Mundial da Saúde. New York, OMS/WHO,
22 jul., 1946. Disponível em: http://www.direitoshumanos.usp.br/
index.php/OMS-Organiza%C3%A7%C3%A3o-Mundial-da-
-Sa%C3%BAde/constituicao-da-organizacao-mundial-da-saude-
-omswho.html. Acesso em: 24 fev. 2020.

ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS - ONU. Declaração


universal dos direitos humanos. Paris, FRA: Assembleia Geral das
Nações Unidas, 1948. Disponível em: https://www.ohchr.org/EN/
UDHR/Pages/Language.aspx?LangID=por. Acesso em: 13 fev. 2020.

PONTES, Raquel Pereira; BARBOSA, Márcio Nora; OLIVEIRA,


Cristiano Aguiar de; ABDALLAH, Patrizia Raggi. Quem passa
fome no Brasil? Uma análise regional dos determinantes da insegu-
rança alimentar forte nos domicílios brasileiros. Revista Brasileira
de Estudos Regionais e Urbanos, Porto Alegre, v. 12, n. 2, dez.
2018. Disponível em: https://www.revistaaber.org.br/rberu/article/
view/320/239. Acesso em: 23 abr. 2020.

RIBEIRO, Darcy. O povo brasileiro: a formação e o sentido do Brasil.


3. ed. São Paulo: Global, 2015.

480
LU I Z A N TÔ N I O R E I S J U N I O R , M A U R I C I O P I R E S G U E D E S , T E L S O N P I R E S ,
VA N E S S A V E L A S C O, H E R N A N D E S B R I TO R E I S ( O R G . )

SANTOS, Taíse Gama dos et al. Tendência e fatores associa-


dos à insegurança alimentar no Brasil: Pesquisa Nacional por
Amostra de Domicílios 2004, 2009 e 2013. Cadernos de
Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 34, n. 4, mar., 2018. Dispo-
nível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pi-
d=S0102-311X2018000405006&lng=pt&nrm=iso. Acesso em: 14
abr. 2020.

SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais: uma


teoria geral dos direitos fundamentais na perspectiva constitucional.
12. ed. rev., atual. e ampl. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2015.

SIQUEIRA, Dirceu Pereira. Teoria geral do direito à alimentação:


cultura, cidadania e legitimação. São Paulo: editora Boreal, 2015.

STÉDILE, João Pedro. [Prefácio]. In: SROUR, Robert Henry. Des-


truição em massa: geopolítica da fome. São Paulo: Elsevier: Cam-
pus, 2013.

VALADARES, Pablo. O curto caminho de volta ao mapa da fome.


Brasília: Comissão de direitos humanos e minorias, Câmara dos De-
putados, 25 abr. 2019. Disponível em: https://www2.camara.leg.br/
atividade-legislativa/comissoes/comissoes-permanentes/cdhm/noti-
cias/o-curto-caminho-de-volta-ao-mapa-da-fome. Acesso em: 18
ago. 2019. 

VILLAS BÔAS, Bruno. Brasil tem 13,4 milhões de desempregados no 1º


trimestre, indica IBGE. Valor Econômico, Rio de Janeiro, 30 abr.,
2019. Disponível em:  https://www.valor.com.br/brasil/6232765/
brasil-tem-134-milhoes-de-desempregados-no-1-trimestre-in-
dica-ibge. Acesso em: 18 ago. 2019. 

ZIGLER, Jean. Destruição em massa geopolítica da fome. São Pau-


lo: Cortez, 2013.

481
A JUDICIALIZAÇÃO DA SAÚDE SOB
A ÓTICA DO SUPREMO TRIBUNAL
FEDERAL (STF)
Michelle Marinho do Nascimento77
Gláucia Maria de Araújo Ribeiro78

INTRODUÇÃO

O termo saúde é definido pela Organização Mundial de Saúde (OMS)


não só como a ausência de doença, mas como a situação de perfeito bem-
-estar físico, mental e social (SEGRE; FERRAZ, 1997).
A Constituição Federal de 1988 em seu artigo 196 prevê que a saúde
é direito de todos e dever do Estado. A lei n° 8.080/90 estabeleceu a estru-
tura e o modelo operacional do Sistema Único de Saúde (SUS), propondo
a sua forma de organização e funcionamento.
Conforme determina a Carta Magna, o Estado tem o dever de ofere-
cer um atendimento integral, com prioridade para as atividades preventi-
vas, sem prejuízo dos serviços assistenciais.
No entanto, a interpretação de que o direito à saúde significa que o
SUS deve garantir tudo para todos, tem contribuído para o crescente fe-
nômeno da judicialização, uma vez que o cidadão tem a concepção de que
tudo deve ser ofertado pelo Estado por ter direito.

77 Bacharelanda em Direito pela Universidade do Estado do Amazonas.


78 Professora de Direito Administrativo da Universidade do Estado do Amazonas. Doutora
em Saúde Coletiva pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ-2018).

482
LU I Z A N TÔ N I O R E I S J U N I O R , M A U R I C I O P I R E S G U E D E S , T E L S O N P I R E S ,
VA N E S S A V E L A S C O, H E R N A N D E S B R I TO R E I S ( O R G . )

A judicialização da saúde é uma questão ampla e diversa de reclame


de bens e direitos nas cortes: são insumos, instalações, medicamentos, as-
sistência em saúde, entre outras demandas a serem protegidas pelo princí-
pio do direito à saúde (DINIZ, et. al, 2013).
Dessa forma, a judicialização a ser debatida neste trabalho esta relaciona-
da à intervenção do Judiciário na efetividade do direito social à saúde, sendo
que a saúde é direito de todos e não apenas de um individuo em particular.
Será analisada a decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) no Re-
curso Extraordinário (RE) 657718, em que foi debatida a possibilidade ou
não do fornecimento pelo Estado de medicamentos que ainda não estão
registrados na Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA). Rela-
cionando-a com a teoria do mínimo existencial, teoria da reserva do pos-
sível e a teoria utilitarista. Para tanto, serão trazidos estudos doutrinários e
pesquisa jurisprudencial sobre o tema.
Ressalta-se a importância do tema a ser debatido por ser um direito
previsto na Constituição e reconhecido como direito de todos e dever
do Estado, devendo ser interpretado de acordo com o princípio da dig-
nidade da pessoa humana, constituindo a preservação e tutela do direito
à saúde algo que deveria ser visto como intocável, vez que está ligado in-
separavelmente ao direito à vida, considerado em todos os seus aspectos.
Contudo, a limitação de recursos pelo poder público e a definição do que
é prioridade de gasto, de acordo com a capacidade financeira do Estado e
as necessidades de saúde da população, torna necessário o estabelecimento
de critérios para ser dada a máxima efetividade possível ao direito à saúde.
Portanto, ao debater a decisão do STF que desobriga o Estado de
fornecer medicamentos não registrados na ANVISA por decisão judicial,
busca-se entender os fundamentos que foram utilizados para chegar a tal
decisão e como isso afeta o direito do cidadão a ter acesso à saúde.

1. O DIREITO A SAÚDE E O MÍNIMO EXISTENCIAL

O Direito à Saúde é reconhecido como um Direito Humano fun-


damental e encontra-se categorizado no que se convencionou chamar de
Direitos Sociais ou Direitos Humanos de segunda geração. A Constitui-
ção de 1988, em seu artigo 6°, declara expressamente a saúde como um
Direito Social. (AITH, 2006)

483
DIMENSÕES JURÍDICAS DAS POLÍTICAS PÚBLICAS – VOL. 1

É um direito de cunho positivo que se manifesta na segurança jurí-


dica do individuo, conduzindo ao seu reconhecimento como direitos a
prestações, tendo como finalidade proteger a liberdade da pessoa humana
na sociedade, o que permite dizer que os direitos fundamentais sociais são
garantidos pelos serviços públicos. (CARDOSO; CUNHA, 2016)
A regulamentação do Sistema Único de Saúde (SUS) foi uma autên-
tica garantia constitucional do direito fundamental à saúde, com o obje-
tivo de garantir o acesso às ações e serviços de saúde, visando diminuir
as desigualdades diante da defesa da igualdade material. A Lei do SUS,
Lei n. 8.080/1990, tem importante papel ao traçar as atribuições e objeti-
vos do sistema, ressaltando fatores determinantes da saúde para um bom
fornecimento de assistência as pessoas, dando prioridade e concretizando
os princípios delineados na Lei. No entanto, as premissas delineadas na
Lei nem sempre são cumpridas de forma plena, esbarrando num limite
orçamentário variável diante do surgimento de novas necessidades. (RI-
BEIRO, 2018)
No caso de haver qualquer desrespeito no tocante à concretização
ao menos do núcleo essencial de determinado direito fundamental social,
o poder Judiciário deve ser acionado para intervir, pois, pelo caráter de
indispensabilidade dos referidos direitos, eles gozam de proteção jurisdi-
cional. (SOUZA, 2013)
Evidencia-se os casos de pacientes que não são contemplados com a
política pública de distribuição gratuita de medicamentos, porque os fár-
macos dos quais necessitam, para tratamento ou prevenção de moléstias,
não estão inseridos nas listas do Ministério da Saúde, ou estão na lista do
SUS, mas, por problemas administrativos do ente responsável, o acesso é
interrompido. Ou seja, o Poder Público tem provido o acesso à saúde, mas
não de forma plena e integral, conforme determina a Constituição Fede-
ral, sendo essa a principal questão a ser debatida. (HIGUTI, s. d.)
A legislação pátria defende o acesso universal, através do SUS, aos ser-
viços de saúde, ou seja, a todos os cidadãos, independente da sua condição
social. No entanto, o Estado não consegue suprir a demanda de maneira
eficiente, razão pela qual o usuário pleiteia no Judiciário, por exemplo, o
direito de obter um medicamento que não conseguiu adquirir via admi-
nistrativa, por se tratar de uma medicação escassa ou de alto valor para os
cofres públicos. (MIRANDA, s. d.)

484
LU I Z A N TÔ N I O R E I S J U N I O R , M A U R I C I O P I R E S G U E D E S , T E L S O N P I R E S ,
VA N E S S A V E L A S C O, H E R N A N D E S B R I TO R E I S ( O R G . )

É importante frisar que a Constituição de 1988 definiu a saúde como


um direito fundamental, isto significa que qualquer cidadão pode exigir esse
direito mediante ação judicial. A intervenção do Poder Judiciário, median-
te determinações à Administração Pública para que forneça gratuitamente
medicamentos em uma variedade de hipóteses, procura realizar a promessa
constitucional de prestação universalizada do serviço de saúde.
Por fim, ao afirmar que o direito a saúde é um direito social funda-
mental vincula-se ao mínimo existencial, que pode ser descrito como o
conjunto de prestações materiais indispensáveis para assegurar a cada pes-
soa uma vida digna, à reserva do financeiramente possível, que se trata da
obrigação do Estado de alocar os recursos públicos de forma a implemen-
tar os direitos fundamentais. E que, portanto é necessária para assegurar
a efetividade e eficácia do direito à saúde, bem como também à interven-
ção jurisdicional no tema, já que por vezes entram em conflito direitos
fundamentais e princípios constitucionais e a mesma entrará em cena de
forma relevante para tentar assegurar um equilíbrio entre valores consti-
tucionais diversos, mas imprescindíveis, enquanto guardiã dos mesmos.
(SANTOS, 2014)
O mínimo existencial tem um aspecto prestacional a título de direito
social frente ao Estado, no entanto, deve-se questionar se esse mínimo é
suficiente para cumprir os objetivos do Estado Democrático de Direito.
Ou se a limitação de recursos não desrespeita o mínimo existencial à saú-
de, vez que o que se deve considerar é a essencialidade do direito e a sua
condição de obrigação prioritária do Estado. Consiste, então, em um pa-
drão mínimo de efetivação dos direitos fundamentais sociais pelo Estado.
A atuação do Estado necessita de uma ação e padrão mais uniforme
ao executar os direitos sociais com intuito de assegurar o mínimo existen-
cial, evitando que a falta de vontade de política e medidas parciais sejam
adotadas produzindo categorias variadas de oferecimento de prestações de
conteúdo universal. (GUERRA, 2006)
Os direitos fundamentais sociais só podem sofrer restrições quando
estas não violarem o mínimo existencial, ou seja, o núcleo essencial des-
ses direitos. Visto que mesmo com limitação orçamentária dos recursos
públicos, não cabe à Administração, por meio do poder discricionário,
fazer escolhas no tocante a concretizar ou não o mínimo existencial de
determinado direito fundamental, em razão de que estes são considera-

485
DIMENSÕES JURÍDICAS DAS POLÍTICAS PÚBLICAS – VOL. 1

dos pilares da existência humana digna, razão pela qual não podem ser
esquecidos.
Em suma, o mínimo existencial surgiu para proteção dos cidadãos
por meio da efetivação de uma parcela das garantias constitucionais
aptas a proporcionar ao ser humano uma vida com dignidade, frente
a todo o descaso que o Estado tem com as necessidades mais urgentes
dos cidadãos.
Portanto, o direito ao mínimo existencial não possui positivação au-
tônoma na Constituição Federal de 1988, mas pode ser extraído de inú-
meras normas constitucionais contidas nos artigos 1º, 3º, 5ºe 6º. Trata-se
de direito implícito inerente à condição humana digna e fundamentado
na liberdade.
Sendo necessário que se reconheça certos direitos subjetivos a presta-
ções ligados ao mínimo necessário para a existência digna do indivíduo, e
não somente para sua subsistência. Sem a garantia desse mínimo impres-
cindível para a existência humana, há uma afronta direta ao direito consti-
tucional à vida e, mais que isso, a uma vida com dignidade, base de todos
os direitos fundamentais e humanos. Não é possível, no entanto, elencar
taxativamente os elementos que compõem o Mínimo Existencial de cada
direito, sendo necessária uma análise cautelosa do caso em concreto e do
direito fundamental em questão.

2. A TEORIA DA RESERVA DO POSSÍVEL

Como já mencionado em linhas pretéritas quando o direito à saúde


não é efetivado através de politicas públicas e prestado regularmente pelo
Estado, o cidadão pode recorrer ao Judiciário para garantir esse direito.
Todas essas demandas relacionadas à área de saúde apresentam novos di-
lemas a serem apreciados pelo Judiciário e pelos operadores do Direito,
especialmente no que tange à reserva do possível.
É fundamental definir que a reserva do possível é um elemento exter-
no, com a capacidade de reduzir ou até delimitar o acesso do cidadão a um
direito fundamental social específico, devido à limitação orçamentaria do
Estado. Significa dizer que a execução dos direitos sociais está vinculada a
quantidade de recursos disponíveis, ou seja, corre-se o risco de ao priori-
zar um direito específico, impossibilitar a prestação de outros.

486
LU I Z A N TÔ N I O R E I S J U N I O R , M A U R I C I O P I R E S G U E D E S , T E L S O N P I R E S ,
VA N E S S A V E L A S C O, H E R N A N D E S B R I TO R E I S ( O R G . )

Essa teoria é utilizada no Brasil como condicionante da efetivação dos


direitos fundamentais sociais frente à limitação do Estado em dispor de
recursos financeiros suficientes para implementá-los.
Todos os direitos fundamentais implicam em algum custo, não se li-
mitando apenas aos direitos de cunho social prestacional. Porém, aqueles
direitos que não implicam em uma prestação por parte do Estado possuem
neutralidade econômica e, portanto, sua efetivação não depende de dis-
pêndio de dinheiro público, ao menos não de forma direta. Porém, em se
tratando dos direitos sociais a prestações, sua efetivação depende da aloca-
ção direta de recursos financeiros, que é caso do direito à saúde.
A reserva do possível teve origem em uma decisão do Tribunal Cons-
titucional Alemão e, embora de modo modificado, foi recepcionada no
Brasil pelo meio judicial e doutrinário como três formas de limitação: fáti-
ca, jurídica e de razoabilidade. O limite fático consiste na possibilidade fi-
nanceira do Estado, ou seja, se o Estado possui recursos para prestar aquele
direito. A limitação jurídica reside na capacidade de o Estado, mesmo
possuindo meios financeiros, poder dispor dos recursos existentes. Desse
modo, o ente público, além de possuir a capacidade material (limite fático)
deverá ter a possibilidade jurídica de disposição desses bens. Isso significa
que o gasto com o direito prestacional deverá estar previsto no orçamento
público anual. Neste caso, mesmo tendo a Administração Pública possi-
bilidade financeira de prestar o direito, se o gasto não estiver previsto em
Lei Orçamentária, não poderá dispor daquele valor. Além disso, o pedido
deve observar a razoabilidade, ou seja, deve ser razoável que o indivíduo
exija do Estado a prestação daquele direito social. (GLOECKNER, 2013)
As decisões judiciais referentes à saúde muitas vezes são limitadas pela
chamada reserva do possível que leva em consideração o custo financeiro
e orçamentário da efetivação deste direito para os cofres públicos.
Há o entendimento na doutrina de que a reserva do possível também
possa atuar como garantia dos direitos fundamentais. Um exemplo seria a
hipótese de conflito entre direitos em que haja a invocação da indisponi-
bilidade de recursos com a intenção de salvaguardar o núcleo essencial de
outro direito fundamental.
Dessa forma, os direitos sociais são atribuídos ao cidadão individual-
mente, titular do direito por excelência, ainda mais em se tratando de di-
reito essencial como a saúde. A titularidade individual, todavia, não exclui

487
DIMENSÕES JURÍDICAS DAS POLÍTICAS PÚBLICAS – VOL. 1

uma simultânea titularidade coletiva. Os direitos sociais têm como meta


imediata tutelar interesse individual com base na dignidade da pessoa e
não no interesse coletivo, ainda que este também possua relevância e im-
plique em um conjunto de direitos e deveres.
No julgamento do Recurso Extraordinário 657.718/MG o Supremo
Tribunal de Federal (STF) discutiu a obrigatoriedade do Estado de fornecer
medicamento que não tem registro na ANVISA. A tese fixada pela Supre-
ma Corte é de que o ente público não pode ser obrigado a fornecer medi-
camentos experimentais e que a ausência de registro na ANVISA impede,
como regra geral, o fornecimento de medicamento por decisão judicial.
É controverso a razoabilidade das demandas por saúde que possam
impor ao Poder Público a obrigação de custear medicamentos não re-
gistrados na ANVISA, medicamentos cuja eficácia e segurança não foi
comprovada, medicamentos e tratamentos experimentais não aprovados,
medicamentos de um determinado laboratório, medicamentos que não
constam das listas oficiais, bem como condená-lo a obrigações genéricas,
ou seja, o fornecimento de todo e qualquer medicamento do qual o pa-
ciente venha precisar.
Cabe mencionar que a Agência Nacional de Vigilância Sanitária
(ANVISA) é o órgão responsável pelo registro de medicamentos, pela
autorização de funcionamento dos laboratórios farmacêuticos e demais
empresas da cadeia farmacêutica, e pela regulação de ensaios clínicos e de
preços, por meio da Câmara de Regulação do Mercado de Medicamentos
(CMED). É responsável, junto com os estados e municípios, pela inspeção
de fabricantes e pelo controle de qualidade de medicamentos, realizando
a vigilância pós-comercio.
O registro de um novo medicamento só ocorre quando sua eficácia e
segurança são comprovadas por meio da apresentação, pelo fabricante, dos
resultados de ensaios clínicos realizados. Essa medida visa garantir que os
medicamentos disponíveis sejam capazes de fazer o que se propõem e que
sua ação não causará dano aos seres humanos.
No entanto, a ausência de registro de um medicamento não implica
em insegurança no seu uso, na ausência de efeitos ou efeitos adversos,
tendo em vista, que o registro de um medicamento na ANVISA depende
do requerimento do fabricante, que em razão da falta de viabilidade eco-
nômica não solicita o registro. Assim pode-se perfeitamente argumentar

488
LU I Z A N TÔ N I O R E I S J U N I O R , M A U R I C I O P I R E S G U E D E S , T E L S O N P I R E S ,
VA N E S S A V E L A S C O, H E R N A N D E S B R I TO R E I S ( O R G . )

que, em alguns casos, tampouco é imprescindível que o medicamento te-


nha registro na ANVISA, pois o trâmite para esse registro é demorado e
cercado de burocracia e, na maioria das vezes, o medicamento já se en-
contra registrado em órgãos similares localizados nos EUA e na União
Europeia.
Ainda assim, o registro do medicamento na ANVISA é uma etapa
importante da incorporação da droga no nosso país, entretanto, não signi-
fica falta de eficácia ou segurança no uso do medicamento, e tal fato não
pode, por si só, obstar o deferimento do pleito.
Com todas as etapas de testes anteriores ao registro de um medica-
mento pela ANVISA tornam o processo lento e burocrático, pode-se criar
um descompasso responsável pelo grande atraso do país no tocante ao re-
gistro de drogas que há muito tempo já se encontram registradas nos dois
órgãos principais estrangeiros como o FDA (Food and Drug Administra-
tion) dos Estados Unidos e o Emea (União Européia). (CASTRO, 2012)
Seguindo esse critério o STF no julgamento do RE 657.718 esta-
beleceu a concessão judicial de medicamento sem registro sanitário, ex-
cepcionalmente, em caso de mora irrazoável da ANVISA em apreciar o
pedido. Baseando-se na Lei n. 13.411/2016 que estabelece os prazos para o
registro dos medicamentos, em que os prazos máximos para decisão final
nos processos de registro variam de 60 dias a 365 dias, dependendo da ca-
tegoria, podendo ser prorrogados por até um terço do prazo original, uma
única vez. No entanto, para que o Estado seja condenado judicialmente
a fornecer um medicamento sem registro sanitário é necessário que haja
a comprovação efetiva do preenchimento cumulativo de três requisitos
definidos pela Corte Suprema, voltados a assegurar tanto a segurança e a
eficácia do medicamento, quanto à efetiva necessidade de sua dispensação,
quais sejam: (i) a existência de pedido de registro do medicamento no
Brasil, exceto no caso de medicamentos órfãos para enfermidades raras
e ultrarraras; (ii) a existência de registro do medicamento em renomadas
agências de regulação no exterior; e, (iii) a inexistência de substituto tera-
pêutico com registro no Brasil (Info 941, STF)79.
A decisão ressaltou o entendimento da inexistência de direito absolu-
to, inclusive o direito à saúde, baseou-se na prevalência do interesse cole-

79 Disponível em: http://www.stf.jus.br/arquivo/informativo/documento/informativo941.


htm. Acesso em: 20 jul.2020.

489
DIMENSÕES JURÍDICAS DAS POLÍTICAS PÚBLICAS – VOL. 1

tivo bem como os princípios previstos no art. 37 da Constituição Federal,


como a probidade e a razoabilidade, enfatizando a competência do admi-
nistrador para gerir de maneira proba e razoável os recursos disponíveis.
O Ministro relator destacou que o registro ou cadastro, conforme
preconiza o art. 12 da Lei n. 6.360/1976, é uma condição essencial para
fins de monitoramento da segurança, eficácia e qualidade terapêutica do
produto, a fim de afastar a insegurança quanto à utilização de um medi-
camento, sendo que a inobservância do preceito configura conduta ilegal.
Diante disso, o poder Judiciário não poderia colocar em risco a vida
de um cidadão em particular, diante da argumentação de garantir o direito
à saúde, ao obrigar o Estado a fornecer um medicamento sem registro na
ANVISA e sem a devida segurança técnica quanto a sua eficácia.
É claro que a pretensão na área da saúde deve sempre observar a ra-
zoabilidade, é certo que não há como o Estado deferir toda pretensão de
direito social postulada. Portanto, devem ser atendidos apenas os pedidos
que estiverem dentro dos limites do razoável. Isso significa dizer que a
pretensão deve estar de acordo com aquilo que o indivíduo pode exigir da
sociedade. Este é o critério limitador ao qual se deve dar prevalência na
solução da alocação do dinheiro público nas ações que tenham por pre-
tensão o direito à saúde.

3. TEORIA UTILITARISTA

A teoria moral utilitarista tem como núcleo a ideia de que a ação


correta é aquela que proporciona resultado ótimo em termos de maximi-
zação do bem ou utilidades. O utilitarismo aduz que o valor moral de uma
ação, da instituição de uma lei ou até mesmo de uma conduta é sustentada
pela eficácia na promoção da felicidade, acumulada por todos os cidadãos.
(FREITAS; ZAMBAM; 2015)
Justifica que para a ponderação da moralidade dos atos humanos se
deva sempre levar em conta as consequências, os resultados das ações, se
proporcionando o “maior bem-estar para o maior número possível de
pessoas”, ou seja, a maximização do bem-estar. Isto pode significar que,
quando são defrontadas duas ou mais opções, dever-se-ia pesar cada uma
delas e escolher aquela que trouxesse mais benefícios e na qual fossem
eliminados, evitados ou minimizados o dano, o sofrimento, a dor, ou

490
LU I Z A N TÔ N I O R E I S J U N I O R , M A U R I C I O P I R E S G U E D E S , T E L S O N P I R E S ,
VA N E S S A V E L A S C O, H E R N A N D E S B R I TO R E I S ( O R G . )

seja, tudo o que for considerado em oposição ao “bem”, à “felicidade” do


maior número de pessoas envolvidas. (MILL, 2000 apud FORTES, 2008)
O utilitarismo é chamado de consequencialista, em razão de que é a
partir da avaliação de cada caso concreto e os efeitos das ações, que será
analisado se tal conduta é eticamente reprovável a partir do critério da
utilidade. Sugere que as ações humanas devem seguir o princípio da uti-
lidade, consistente na consideração da quantidade de prazer e dor que as
ações provocam aos indivíduos. As ações devem considerar todos os inte-
resses de maneira que nenhum contra interesse deva ser desconsiderado,
ou tenha preponderância sobre o outro. Ademais, o número de pessoas
atingidas pelas ações são objetos de análise. Procura-se sempre promover
a maior quantidade de prazer possível ao maior número de indivíduos, ao
passo que se evita o desprazer numa proporção inversa. (COING apud
GERALDO, 2008)
Baseando-se no princípio utilitarista podemos concluir que a decisão
do STF no julgamento do RE 657.718, quanto a não obrigatoriedade do
ente público de fornecer medicamentos de alto custo sem registro sanitá-
rio na ANVISA, buscou priorizar que os recursos públicos destinados à
saúde proporcionassem mais saúde ao maior número de pessoas, para que
ocorresse a maximização do bem-estar ou da saúde geral.
Deve-se considerar que o princípio utilitarista defende que o dever do
Estado é dá proteção as necessidades do coletivo, mesmo que à custa dos
interesses individuais. O que faz com que essas decisões tornem-se con-
trárias a aplicação de recursos em atividades custosas, mas que dão baixa
cobertura populacional, como é o caso de medicamentos de alto custo.
A Corte Suprema entende que ao atender a um único indivíduo,
compromete políticas de universalização do serviço de fornecimento de
medicamentes, prejudicando os cidadãos em geral, debilitando investi-
mentos nos demais serviços de saúde e em outras áreas.
Enfim, ao decidir que o Estado não é obrigado a fornecer medica-
mento sem registro na ANVISA, buscou-se garantir o bem-estar social
coletivo e não somente de um individuo. Podemos afirmar que o STF
adotou na decisão desse recurso extraordinário a teoria utilitarista que
concebe o direito à saúde apenas, segundo seu aspecto coletivo. Nota-se
que o utilitarismo defende que a sociedade atenderia a exigência de justiça
quando suas instituições mais importantes estivessem planejadas de modo

491
DIMENSÕES JURÍDICAS DAS POLÍTICAS PÚBLICAS – VOL. 1

a conseguir o maior saldo liquido de satisfação obtida a partir da soma das


participações individuais de todos os seus membros.
Assim, segundo a visão utilitarista quando o Judiciário fornece me-
dicamentos sem previsão em lei orçamentária trata com injustiça àqueles
já beneficiados pelas políticas públicas, visto que, a concessão de medica-
mentos dispendiosos ultrapassa os limites do possível, do razoável, para
a Administração Pública, ao passo que também há injustiça quando um
paciente necessita de um tratamento médico específico o qual não está al-
bergado pelas políticas de saúde existentes. O mesmo Estado que fornece
medicamentos é também o Estado que libera, judicialmente, um medica-
mento de elevado valor.
Portanto, ao entender que a assistência farmacêutica ao cidadão deva
ter uma orientação fundamentalmente de natureza utilitarista, busca-se
a primazia do interesse coletivo sobre os individuais. Garantindo que o
maior número de cidadãos tenham acesso à saúde, tendo em vista, que os
gastos elevados com a compra de medicamentos de alto custo pela Admi-
nistração Pública para atender apenas um cidadão lesa o coletivo, já que
esses milhares de reais vão deixar de ser investidos nas políticas básicas de
saúde em beneficio de centenas de indivíduos.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A garantia fundamental do direito à saúde é o principio da dignidade


da pessoa humana, mesmo quando se fala em fornecimento de medica-
mentos de alto custo, ou seja, é um principio prima facie. No entanto, a
reserva do possível tem sido usada como justificativa para que o interesse
coletivo se sobreponha sobre o individual.
Assim, o STF no julgamento do RE 657718 buscou repensar a con-
cessão de medicamentos de alto custo, tendo em vista o grande número
de demandas que pleiteiam medicamentos que não estão inseridos na lista
do SUS e que muitas das vezes não possuem registro na ANVISA, vem
gradativamente aumentando, visando o atendimento das necessidades te-
rapêuticas dos pacientes que não conseguiram via administrativa.
Enfatiza-se que o objetivo maior do Estado é sempre concretizar in-
tegralmente os direitos fundamentais sociais, pois estes são indispensáveis
para a vida humana digna. Não sendo possível, em razão de ausência de

492
LU I Z A N TÔ N I O R E I S J U N I O R , M A U R I C I O P I R E S G U E D E S , T E L S O N P I R E S ,
VA N E S S A V E L A S C O, H E R N A N D E S B R I TO R E I S ( O R G . )

recursos, invocando-se nesse caso a Reserva do Possível, pelo menos o


Mínimo Existencial de cada um desses direitos dever ser garantido, por-
que possui prioridade nas destinações orçamentárias. Enfim, a Reserva
do Possível pode conviver pacificamente com o Mínimo Existencial, pois
este atua como um limite para a invocação daquela, ou seja, a Reserva do
Possível só poderá ser invocada quando realizado o juízo da proporciona-
lidade e da garantia do Mínimo Existencial com relação a todos os direitos
em questão.
Em síntese, as decisões já tomadas pelo STF relacionadas ao direito à
saúde buscam estabelecer critérios para aplicação do direito pelos juízes e
tribunais no território nacional. Não se trata de torná-lo estagnado, pois
as cortes, diante de um novo contexto social, podem rever e superar seus
precedentes, mas de garantir que todos os litigantes tenham um acesso a
uma decisão mais homogênea, quando estiverem em casos similares.
Portanto, a decisão da Suprema Corte no RE 657718 limitou as de-
cisões relacionadas ao tema para que a Administração Pública não seja
condena ao custeio de tratamentos implausíveis, por serem inacessíveis,
com medicamentos experimentais ou de eficácia duvidosa por não terem
registro sanitário na ANVISA.

REFERÊNCIAS

AITH, Fernando Mussa Abujamra. Teoria Geral do Direito Sanitá-


rio Brasileiro. 2006. Tese apresentada a Universidade de São Paulo.
Faculdade de Saúde Pública. Departamento de Serviços de Saúde
Pública para obtenção do grau de Doutor. São Paulo, s.n; 2006. 458
p. Disponível em: <https://teses.usp.br/teses/disponiveis/6/6135/
tde-23102006-144712/publico/TeseFernandoAith.pdf> Acesso em
14/04/2020.

BRASIL. [Constituição (1988)]. Constituição da República Fede-


rativa do Brasil. Brasília, DF: Presidência da República, [2016].
Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/
constituicao.htm>. Acesso em 09/04/2020.

BRASIL. Lei 8.080 (Lei Orgânica da Saúde), de 19 de setembro


de 1990. Dispõe sobre as condições para a promoção, proteção e

493
DIMENSÕES JURÍDICAS DAS POLÍTICAS PÚBLICAS – VOL. 1

recuperação da saúde, a organização e o funcionamento dos serviços


correspondentes e dá outras providências. Brasília: Senado Federal,
1990. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/
l8080.htm>. Acesso em: 09/04/2020.

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Informativo de Jurisprudência


n° 941/STF. Disponível em: < http://www.stf.jus.br/arquivo/infor-
mativo/documento/informativo941.htm>. Acesso em: 20/07/2020.

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário 657718/


MG – Minas Gerais.

Repercussão geral no Recurso Extraordinário. Administrativo. O Esta-


do não pode ser obrigado a fornecer medicamentos experimentais.
A ausência de registro na Agência Nacional de Vigilância Sanitária
(ANVISA) impede, como regra geral, o fornecimento de medica-
mento por decisão judicial. Relator: Min. Marco Aurélio, red. p/
o ac. Min. Roberto Barroso, julgamento em 22.5.2019. Disponível
em: <http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticiaNoticiaStf/anexo/
RE657718.pdf>. Acesso em 09/04/2020.

CARDOSO, Itala Lopes; CUNHA, Jarbas Ricardo Almeida. O míni-


mo existencial do direito à saúde no SUS: o caso do Programa
Saúde da Família. Revista Cadernos Ibero-Americanos de Direito
Sanitário. 2016 out/dez, 5(4):9-26.

CASTRO, Ione Maria Domingues de. Direito à saúde no âmbito do


SUS: um direito ao mínimo existencial garantido pelo Judi-
ciário? São Paulo: I. M.D. 2012. Tese apresentada a Faculdade de
Direito da Universidade de São Paulo. São Paulo: s.n. 2012. p.366.
Disponível em: <https://teses.usp.br/teses/disponiveis/2/2139/tde-
02102012-162450/publico/IONE_MARIA_DOMINGUES_DE_
CASTRO_TESE_17_01_2012.pdf>. Acesso em 10/07/2020.

DINIZ, Debora; MACHADO, Teresa Robichez de Carvalho; PENAL-


VA, Janaina. A judicialização da saúde no Distrito Federal,
Brasil. Temas Livres. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/csc/
v19n2/1413-8123-csc-19-02-00591.pdf. Acesso em 10/04/2020.

494
LU I Z A N TÔ N I O R E I S J U N I O R , M A U R I C I O P I R E S G U E D E S , T E L S O N P I R E S ,
VA N E S S A V E L A S C O, H E R N A N D E S B R I TO R E I S ( O R G . )

FORTES, Paulo Antonio de Carvalho. Reflexão bioética so-


bre a priorização e o racionamento de cuidados de saú-
de: entre a utilidade social e a eqüidade. Cad. Saúde
Pública, Rio de Janeiro, v.24, n.3, p.696-701, mar. 2008. Dispo-
nível em <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&-
pid=S0102-311X2008000300024&lng=pt&nrm=iso>Acesso em:
28/07/2020.

FREITAS, Franchesco Maraschin de; ZAMBAM, Neuro José. O uti-


litarismo e o princípio responsabilidade para o desenvolvi-
mento sustentável. Revista Direito Ambiental e sociedade, v. 5,
n. 2, 2015 (p. 28-53). Disponível em: < http://www.ucs.com.br/etc/
revistas/index.php/direitoambiental/article/view/3777>. Acesso em
29/07/2020.

GERALDO, Pedro Heitor Barros. O utilitarismo e suas críticas:


uma breve revisão. Anais do XIV Congresso, 2008. Disponível
em: <http://www.publicadireito.com.br/conpedi/manaus/arquivos/
anais/XIVCongresso/170.pdf>. Acesso em: 28/02/2020.

GLOECKNER, Joseane Ledebrum. A reserva do possível como li-


mite à efetividade do direito fundamental à saúde. A&C: Re-
vista de Direito Administrativo & Constitucional. – Belo Horizonte,
ano 13, n. 51, (jan./mar.2013). p. 233-250. ISSN 1516-3210.

HIGUTI, Mônica Adriana; OLIVEIRA, Lucas P. O. A judicialização


de medicamentos sem registro na ANVISA. Revista Científi-
ca do Curso de Direito. Centro Universitário FAG. Disponível em:
<https://www.fag.edu.br/upload/revista/direito/5c8ff4114aa9b.pdf>.
Acesso em 15/07/2020.

MIRANDA, Débora Lopes; PEREIRA, Rubens de Lyra. Acesso à saú-


de a um mínimo existencial. Diponível em <https://semanaaca-
demica.org.br/system/files/artigos/artigo_acesso_a_saude_2.pdf>.
Acesso em 11/04/2020.

RIBEIRO, Janiny Karla Pereira da Câmara – A efetividade do direito


fundamental à saúde no âmbito da administração pública em

495
DIMENSÕES JURÍDICAS DAS POLÍTICAS PÚBLICAS – VOL. 1

face da democracia deliberativa; 1ª edição. Natal – RN. Editora


Motres, 2018. 150p.

SANTOS, Patrícia Brandão. Direito à saúde em contrapartida à re-


serva do financeiramente possível: a importância da atuação
jurisdicional na concretização desse direito fundamental.
2014. Dissertação apresentada à Escola de Ciências Jurídicas da Uni-
versidade Federal do Estado do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: s.n.,
2014. 54p. Disponível em: <unirio.br/ccjp/arquivos/tcc/monogra-
fia-final-patricia-brandao-dos-santos>. Acesso em 11/07/2020, as
11:44h.

SEGRE, Marco; FERRAZ, Flávio Carvalho. O conceito de saúde.


Revista de Saúde Pública, v. 31, n. 5, p. 538-42, 1997.

SOUZA, Lucas Daniel Ferreira de. Reserva do possível e o mínimo


existencial: embate entre direitos fundamentais e limitações
orçamentárias. Revista da Faculdade de Direito Sul de Minas,
Pouso Alegre, v. 29, n.1:205-226, jan./jun. 2013. Disponível em:
<https://www.fdsm.edu.br/adm/artigos/86a7cb9df90b6d9bbd-
8da70b5f295870.pdf>. Acesso em 11/06/2020.

496
A NECESSÁRIA CRIAÇÃO DE
POLÍTICAS MUNICIPAIS PARA
ATENÇÃO ÀS PESSOAS PORTADORAS
DO TRANSTORNO DE ACUMULAÇÃO
COMPULSIVO
Natália Rossi Doro80

INTRODUÇÃO

Um dos grandes problemas enfrentados pelos Municípios é o enfren-


tamento dos casos de transtorno de acumulação de seus cidadãos.
A acumulação compulsiva envolve inúmeros prejuízos sociais, sani-
tários, ambientais e assistenciais e afetam tanto aos acumuladores quanto
aos demais indivíduos que acabam sendo diretamente envolvidos ou in-
diretamente afetados pelas consequencias decorrentes do dito transtorno,
que afetam seu bem-estar ou sua saúde.
O transtorno de acumulação compulsiva representa um grave e com-
plexo problema de saúde pública e cuja solução definitiva ainda não foi
encontrada, mas será discutida neste artigo com o objetivo de contribuir
na elaboração de políticas públicas eficazes para o caso.
É inquestionável a demanda por ações e/ou pela elaboração de
estratégias efetivas para combate aos efeitos causados e resultados

80 Advogada inscrita na OAB/PR. Graduada no curso de Direito pela UNICURITIBA. Pós-gra-


duada pela PUC/PR. Atuante na elaboração de políticas públicas junto à Câmara Municipal
de Curitiba.

497
DIMENSÕES JURÍDICAS DAS POLÍTICAS PÚBLICAS – VOL. 1

decorrentes da acumulação compulsiva, que pode ser de objetos, de coisas


quebradas, lixo, ou de animais.
É imprescindível que o Poder Público crie alternativas e planos de
cuidado integrados e multidisciplinares entre os setores da Conservação
Pública e da Assistência Social, Saúde, Limpeza e, até mesmo para que
sejam diminuídos ou evitados os casos de recidiva do transtorno.
Um dos maiores desafios encarados no enfrentamentos dos re-
sultados da problemática causada pelo transtorno de acumulação é o
reconhecimento do indivíduo que necessita de atenção e tratamento
para o seu caso.
Os indivíduos que sofrem de transtorno de acumulação compulsiva,
via de regra, possuem muita dificuldade de admitir sua condição psíquica
e não buscam atendimento junto ao Sistema Único de Saúde (SUS), o
que impede a correta aplicação dos princípios deste Sistema, quais sejam:
Universalidade, Integralidade e Equidade.
Contudo, apesar da alta necessidade de atenção aos portadores deste
tipo de transtorno, não existem políticas públicas capazes de atender a de-
manda existente. A este propósito, inclusive, vale dizer que existe muito
pouca doutrina ou estudo sobre o tema, que carece de maior atenção.
Segundo a pesquisa aqui elaborada, foi possível verificar que a maior
incidência de estudos e elaboração de textos, artigos ou doutrina propri-
amente dita, em sua maioria foi elaborada em língua estrangeira e elabo-
ração de pesquisas no exterior.
Segundo o levantamento realizado no artigo elaborado para a Re-
vista de Enfermagem UFPE Online, com o tema “IDENTIFICAÇÃO
E CUIDADOS NO TRANSTORNO DE ACUMULAÇÃO”, ex-
traiu-se que:

“Na busca de resposta para a questão norteadora, foram selecio-


nadas apenas 11 publicações, excluindo-se nove estudos pré-sele-
cionados. Quanto ao ano de publicação, percebe-se expressividade
numérica no ano de 2014, com sete artigos publicados, seguido do
ano de 2013, com três publicações. Nos anos seguintes, ocorreu
a diminuição gradativa dos artigos: em 2015 evidencia-se apenas
um artigo e, em 2016, não foram encontradas publicações que se
adequassem aos parâmetros propostos.

498
LU I Z A N TÔ N I O R E I S J U N I O R , M A U R I C I O P I R E S G U E D E S , T E L S O N P I R E S ,
VA N E S S A V E L A S C O, H E R N A N D E S B R I TO R E I S ( O R G . )

Durante a fase de coleta de dados, nos estudos pré-selecionados,


destaca-se que foram encontrados, somente, dois artigos no idioma
português. Tal situação reforça a ideia de que a temática é relativa-
mente nova no Brasil. Em relação à metodologia, predominaram
pesquisas de caráter qualitativo.” (Gargiulo MS, Cicolella DA,
Normann KAS et al., 2017, p. 5031)

Pois bem, trata-se de uma questão de Saúde Pública, e diga-se ainda


mais, uma questão ligada do conceito de Saúde Única (“One Helth” –
OH), partindo-se do princípio de que o estado sanitário dos humanos está
diretamente ligado à saúde dos animais e ao meio ambiente equilibrado.
No cenário atual, o entendimento é o de que o conceito de Saúde
Única ultrapasse o quesito da saúde física humana, buscando uma propos-
ta de Bem-Estar Único.
Busca-se, portanto uma referência de bem-estar psicológico do ser
humano que esteja diretamente ligado ao bem-estar e saúde dos animais
(Wouk, Biondo, 2012), que também são objeto de acumulação.
Diante disso, imperiosa a implantação de uma política pública espe-
cífica para atendimento de casos de acumulação compulsiva, valorizando
os usuários do Sistema Único de Saúde em todas as suas particularidades.

1. O TRANSTORNO DE ACUMULAÇÃO COMPULSIVA

O transtorno de acumulação compulsiva é caracterizado pela perma-


nente resistência do indivíduo em se desfazer de pertences, associada ao
sofrimento de seu potencial descarte, bem como à baixa percepção dos re-
sultados e das consequências negativas das situações de acúmulo (Stumpfa
BA, Harab C, Rocha FL , 2018, p.55).
A identificação da situação de acúmulo ocorre quando há um grande
acúmulo de objetos (roupas, papéis, livros), (embalagens de comida va-
zias), resíduos (embalagens de comida vazias) ou animais em um mesmo
local. Porém, não basta apenas esta concentração. É necessário que tam-
bém se identifique uma dificuldade de manutenção de higiene e organi-
zação e que o ambiente se torne insalubre, trazendo riscos potenciais à
saúde dos indivíduos ou de toda a comunidade que se encontra aos seus
arredores.

499
DIMENSÕES JURÍDICAS DAS POLÍTICAS PÚBLICAS – VOL. 1

Antigamente, este tipo de transtorno não era reconhecido como um


tipo específico, tendo sido embutido nos conceitos do Transtorno Ob-
sessivo Compulsivo (TOC), justamente por se incluir nos conceitos de
obsessão e compulsão. Atualmente, todavia, esse assunto tem sido cada
vez mais estudado e identificado, mas ainda carece de muita atenção e
de regulamentação para que possa ser entendido como “doença” pela so-
ciedade e para que possa receber o tratamento adequado, em termos de
multidisciplinariedade.
A principal diferença entre o Transtorno de Acumulação (TA) e o
Transtorno Obsessivo Compulsivo (TOC) reside no sofrimento ou an-
gústia que o indivíduo sente ao se desfazer de qualquer um dos itens de
seu apego, além da frequente sensação de necessidade de se adquirir no-
vos pertences no caso do perdimento de algum. O entulhamento de itens
em cômodos ou ambientes, inutilizando esses locais para a finalidade a
que inicialmente se destinavam também é característica dominante desse
transtorno.
Vale lembrar que, em que pese esses transtornos possam ser indivi-
dualmente identificados, eles também podem ser complementares e con-
comitantemente identificados em um mesmo indivíduo, dada a corres-
pondência de seus sintomas.
A questão da acumulação implica, também, em uma crescente di-
ficuldade do indivíduo em se relacionar com outras pessoas, pois, mui-
tas vezes, parentes ou amigos realizam críticas ou questionamentos que
geram afastamento dos indivíduos de seu vínculo social e implicam em
maior acúmulo, inserindo-se em um ciclo vicioso (quanto mais se afasta
do vínculo social, mais acumula, e quanto mais acumula, mais se afasta do
vínculo social).
O estudo apresentado pela Scientific Journal of Sociedade Brasileira
de Geriatria e Geontologia afirma que:

“O isolamento social, por sua vez, facilita o aumento da acumulação. O


TA causa riscos à saúde e à segurança dos indivíduos, especialmente dos
idosos, uma vez que leva a condições de higiene precárias, infestações de
animais, risco de quedas, risco de ferimentos graves ou morte decorrente de
soterramentos sob avalanches de objetos e incêndios.” (Stumpfa BA, Harab
C, Rocha FL , 2018, p.55)

500
LU I Z A N TÔ N I O R E I S J U N I O R , M A U R I C I O P I R E S G U E D E S , T E L S O N P I R E S ,
VA N E S S A V E L A S C O, H E R N A N D E S B R I TO R E I S ( O R G . )

Quanto à incidência e o perfil dos indivíduos, segundo o estudo


apresentado no artigo elaborado para a Revista de Enfermagem da UFPE
Online, mostra-se que:

“O TA afeta ambos os gêneros e está associado às adversidades


substanciais, porém, algumas pesquisas sugerem maior incidên-
cia em homens. Pode ser observado em diferentes culturas e com
variação de idade para o início de sinais e sintomas. A prevalên-
cia estimada é de 2% a 6% na população em geral, apresentando
maior gravidade em idosos. Estudos indicam piora progressiva do
transtorno com o passar do tempo e da idade. Tipicamente, a de-
sabilidade funcional aumenta na quarta ou quinta década de vida,
ficando mais acentuada com os idosos.

A ajuda de familiares ou amigos, na organização dos objetos, pode


minimizar a desabilidade dos espaços da casa e mascarar a gravida-
de do transtorno. A deficiência do insight do indivíduo acumu-
lador e o desconhecimento pelos profissionais também acarretam
uma subnotificação da doença. Impacta diretamente familiares e
vizinhos, pois, algumas vezes, a desorganização é tão grande que
pode prejudicar a comunidade ao redor, tornando-se um problema
de saúde pública significativo.

A sujidade no domicílio é um dos marcadores de grau mais severo e


a doença pode ser onerosa para vigilância em saúde. Além de todas
as implicações clínicas que o transtorno acarreta, há a presença de
problemas ocupacionais, como faltas frequentes ao trabalho devi-
do à exacerbada preocupação com a perda dos itens acumulados.”
(Gargiulo MS, Cicolella DA, Normann KAS et al., 2017, p. 5031)

Deste mesmo estudo, podemos extrair a informação de que a origem


do transtorno de acumulação se deu pela evolução do comportamento de
alguns animais, em especial dos roedores, que têm por característica de
sua espécia colecionar e/ou acumular comida, tendo este tipo de transtor-
no, sido reconhecido como patologia em humanos, e assim nomeado pela
primeira vez, apenas no ano de 1960.
Atualmente esse tipo de transtorno é um pouco mais conhecido, já
tendo sido objeto de algumas reportagens e de alguns programas televisivos.

501
DIMENSÕES JURÍDICAS DAS POLÍTICAS PÚBLICAS – VOL. 1

Segundo o artigo médico publicado no Scientific Journal of Socieda-


de Brasileira de Geriatria e Gerontologia:

“O TA é um transtorno mental grave ainda pouco estudado, com


prevalência de 1,5 a 2,1% na população em geral, podendo ser
maior que 6% em idosos, curso crônico e progressivo. Foi re-
centemente incluído no DSM-5 como entidade nosológica in-
dependente. Acarreta custos importantes para a sociedade devido
aos riscos à saúde e à segurança dos indivíduos, especialmente
os idosos. Estudos indicam a participação de fatores genéticos,
familiares, cognitivos e de experiências traumáticas na etiologia
do TA. A abordagem terapêutica mais estudada até o momento
foram as psicoterapias, mas os resultados mostram efeito peque-
no. Os estudos farmacológicos existentes são muito incipientes,
não permitindo conclusões de eficácia.” (Stumpfa BA, Harab C,
Rocha FL, 2018, p.63)

As categorias de acumuladores identificadas até o momento são: a)


Acumuladores Compulsivos; b) Acumuladores Colecionadores e; c) Acu-
muladores de animais, que serão adiante especificadas:

1.1. Dos Acumuladores Compulsivos

A acumulação compulsiva gera um comportamento usualmente re-


petitivo, em razão do sentimento de que o indivíduo tem de que pode vir
a precisar dos objetos no futuro, o que impossibilita seu descarte.
O acumulador acaba por criar vínculos emocionais com os objetos,
o que os impede de se desfazer deles, tornando os ambientes ou cômodos
onde vivem completamente desorganizados e inabitáveis.
Segundo a Revista CES de Psicologia:

“Acumuladores compulsivos, normalmente, encontram dificulda-


des na organização de seu espaço físico, tornando o seu ambiente
de convívio praticamente inabitável. Trata-se de sujeitos que per-
deram o senso de autocontrole, tornando impossível a classificação
e organização de seus itens (Pertusa et al., 2010; Lima, 2011), pos-
sivelmente em virtude de déficits cognitivos relacionados à aten-

502
LU I Z A N TÔ N I O R E I S J U N I O R , M A U R I C I O P I R E S G U E D E S , T E L S O N P I R E S ,
VA N E S S A V E L A S C O, H E R N A N D E S B R I TO R E I S ( O R G . )

ção e organização espacial (Grisham et al., 2007; APA, 2013b).


Os acumuladores cuja principal característica compreenda o con-
sumismo compulsivo obtêm mais satisfação no acúmulo propria-
mente dito do que na possibilidade de desfrutar dos objetos adqui-
ridos (Lima, 2011).” (Schmidt, D.R., Della Méa,C.P. &Wagner,
M.F.(2014), p. 35).

Trata-se, pois, de uma desordem comportamental patológica, geral-


mente associada à traumas decorrentes de privação material.

1.2. Acumuladores Colecionadores

Segundo o artigo publicado na Revista de Enfermagem Online da


UFPE, assim pode ser caracterizado o Acumulador Colecionador:

“Pode haver a presença de alguns eventos de infância em comum


nos sujeitos com comportamento de acumular, como o uso da
disciplina física e a presença de transtornos psiquiátricos por par-
te dos pais. Evidências indicam que os indivíduos que vivencia-
ram situações de trauma na infância desenvolvem sintomas mais
precocemente quando comparados aos que possuem o mesmo
diagnóstico sem traumas. Normalmente, a dificuldade em se
desfazer de objetos e a desorganização consistem nos primeiros
sintomas apresentados, seguidos da necessidade de aquisição de
novos objetos e, por fim, do reconhecimento do sintoma como
disfuncional.

No entanto, o acumulador colecionador consegue manter um ní-


vel de organização maior relacionado ao ambiente onde vive. A di-
ferença entre colecionadores e acumuladores colecionadores reside
no fato de que os primeiros escolhem objetos específicos e des-
fazem-se de suas coleções, por dinheiro ou troca. Acumuladores
compulsivos seriam os indivíduos para os quais a obtenção de obje-
tos desnecessários torna-se um comportamento repetitivo, consti-
tuindo uma forma de investimento, em uma tentativa de preservar
o valor afetivo subjacente às coisas.” (Gargiulo MS, Cicolella DA,
Normann KAS et al., 2017, p. 5032)

503
DIMENSÕES JURÍDICAS DAS POLÍTICAS PÚBLICAS – VOL. 1

1.3. Acumuladores de Animais

Outro tipo de acumulação que gera grande problema para a questão


da Saúde Pública é o transtorno relacionado ao acúmulo de animais.
A acumulação de animais geralmente é caracterizada por uma exces-
siva concentração de animais em um mesmo local.
Associado ao acúmulo, ficam evidentes a incapacidade do indivíduo
de manter o saneamento básico do ambiente, além da falta de segurança
ou de espaço suficiente para o bem-estar dos animais e da dificuldade de
prover a alimentação e a assistência médico-veterinária destes.
Nesses casos, também resta evidente a obsessão do indivíduo acumu-
lador pelo crescente número de animais e da dificuldade de encaminhá-
-los para adoção.
A questão sanitária nesses casos é ainda mais grave, já que os animais
geram dejetos diariamente. Assim, a falta de cuidados com a higiene e
limpeza trazem, além do mau cheiro, a disseminação de doenças e a infes-
tação de animais.
Segundo a Revista CES de Psicologia:

“Esses sujeitos desenvolvem a crença de que ninguém pode cuidar


tão bem de um animal quanto eles mesmos. No entanto, muitas
vezes, as condições desse cuidado apresentam-se inadequadas, em
virtude da quantidade de animais acumulados, comprometendo a
própria saúde (Patronek & Nathanson, 2009).” (Schmidt, D.R.,
Della Méa,C.P. &Wagner, M.F.(2014), p.36)

De acordo com os estudos até aqui trazidos, verifica-se que o ape-


go aos animais acumulados não permite que os indivíduos acumuladores
dêem a devida destinação aos animais que possuem, sejam eles vivos (me-
diante doação), sejam eles mortos.
Os corpos de animais que vieram à óbito, em alguns casos, também
são objeto de apego e por essa razão não são retirados do local de acúmulo,
o que traz à tona as graves implicações na Saúde Pública. Justamente em
virtude disso, entende-se que esta categoria é a mais sensível no quesito
da acumulação.

504
LU I Z A N TÔ N I O R E I S J U N I O R , M A U R I C I O P I R E S G U E D E S , T E L S O N P I R E S ,
VA N E S S A V E L A S C O, H E R N A N D E S B R I TO R E I S ( O R G . )

2. DA ELABORAÇÃO DE UMA POLÍTICA PÚBLICA


MUNICIPAL DE ATENÇÃO ÀS PESSOAS PORTADORAS
DO TRANSTORNO DE ACUMULAÇÃO COMPULSIVA

A Constituição Federal prevê em seu artigo 3º os objetivos funda-


mentais para a República Federativa do Brasil, sendo um deles “promover
o bem de todos” (BRASIL, 1988).
Além disso, o art. 225 do mesmo diploma legal determina que: “To-
dos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum
do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à co-
letividade o dever de defendê-lo e preservá- lo para as presentes e futuras gerações.”
(BRASIL, 1988)
Pois bem, para a elaboração de uma política de atenção às pessoas
portadoras do transtorno de acumulação compulsiva, entende-se ser
necessário, dentro dos princípios mais comezinhos de direito, a garantia da
atenção integral à saúde, promovendo às pessoas portadoras do transtorno
aqui estudado melhorias em seu bem-estar físico, mental e social, com
atendimento especializado nos mais diversos setores.
A adoção de medidas de redução dos riscos sanitários e ambientais,
prevenindo a transmissão de doenças e a garantia de proteção da saúde
do indivíduo acometido, de seus animais e da comunidade do entorno
também necessita de previsão legal e de indicação dos setores abrangidos,
estabelecendo-se quais serão as medidas de intervenção necessárias aos
casos de forma interdisciplinar, intersetorial e integrada.
Uma das medidas de prevenção para esse tipo de caso é, sem sombra
de dúvidas, o investimento do Poder Público na formação e educação per-
manente de profissionais e gestores para planejamento e execução de ações
e serviços necessários ao atendimento às pessoas em situação de acúmulo.
O setor de Ação Social de cada Município, assim como o Setor de
Saúde devem promover o engajamento da família e da comunidade próxi-
ma para que as pessoas em situação de acúmulo recebam o apoio psicológico
necessário, visando o reestabelecimento e fortalecimento de seus vínculos
sociais e comunitários, pois, como já mencionado anteriormente, o afasta-
mento da comunidade acaba por piorar a situação de acúmulo e vice-versa.
Necessário, também, proporcionar o acesso das pessoas em situação
de acúmulo e vulnerabilidade social aos benefícios assistenciais e aos pro-

505
DIMENSÕES JURÍDICAS DAS POLÍTICAS PÚBLICAS – VOL. 1

gramas de transparência de renda, na forma da legislação específica, pro-


porcionando condições financeiras para sua manutenção saudável.

2.1. Do Grupo de Atenção à Pessoas em Situação de


Acúmulo Compulsivo

Uma sugestão para o atendimento dos indivíduos caracterizados


como acumuladores seria a criação de um Grupo de Atenção à Pessoas
em Situação de Acúmulo Compulsivo, que poderia ser composto por ao
menos um profissional oficial de cada setor, a saber:

I - Representante da Área de Saúde Mental, preferencialmente um


médico psiquiatra ou psicólogo;

II – Representante do setor de Assistência Social;

III - Representante do setor de Vigilância Sanitária;

IV - Representante do setor de Atenção Primária da Secretaria de


Saúde;

V - Representante do setor de Unidade de Vigilância em Zoono-


ses;

VI - Representante do setor de Monitoramento e Proteção Ani-


mal, no caso de acúmulo de animais, se houver;

VII - Representante do setor de Limpeza Pública / Meio Ambi-


ente;

VIII - Membros da sociedade civil que desejem contribuir volun-


tariamente na execução dos objetivos da Política Pública de Aten-
ção aos indivíduos com transtorno de acumulação.

O grupo em questão seria o responsável por fiscalizar, identificar, di-


agnosticar, avaliar, definir as estratégias de intervenção, monitorando e
encaminhando as providências devidas, buscando a redução dos riscos
inerentes aos casos de Pessoas em Situação de Acúmulo Compulsivo em
cada Município e buscando a análise individualizada de cada caso.
Os números de ocorrências de casos de acumulação compulsiva, em
que pese sejam bastante consideráveis, ainda são passíveis de atendimento

506
LU I Z A N TÔ N I O R E I S J U N I O R , M A U R I C I O P I R E S G U E D E S , T E L S O N P I R E S ,
VA N E S S A V E L A S C O, H E R N A N D E S B R I TO R E I S ( O R G . )

individualizado, como demonstra o estudo realizado no Município de


Curitiba, entre setembro de 2013 e abril de 2015, e que foi publicado no
Caderno de Saúde Pública, vol.33, no.2, Rio de Janeiro, 2017, Epub Mar
30, 2017, que assim descreveu em seu resumo:

“Do total de 226 denúncias, 113 (50%) foram confirmadas como casos de
acúmulo compulsivo, representando uma taxa geral de 6,45 casos por 100
mil habitantes em Curitiba, dos quais 48 (42,5%) envolviam acumulado-
res de objetos, 41 (36,3%) acumuladores de animais e 24 (21.2%) acu-
muladores de animais e objetos. Foi identificada uma correlação positiva sig-
nificativa (p < 0,01) entre os casos identificados e a densidade populacional
do bairro e em todos os estratos populacionais analisados (total e por gênero
e idade), e uma correlação negativa significativa (r = -0,2; p = 0,03) com
renda média do bairro. Foi encontrado um cluster espacial de cases na região
norte da cidade (OR = 8,57; p < 0,01). Os casos de acúmulo compulsivo
mostraram-se relativamente frequentes em Curitiba e estiveram associados
diretamente a padrões de distribuição populacional e inversamente à renda
média do bairro.” (CUNHA GR, et alii., 2017)

CONCLUSÕES

Diante do estudo realizado, é possível verificar que o tema das pes-


soas portadoras do Transtorno de Acumulação Compulsivo, apesar de ser
extremamente atual e relevante ainda é menosprezado e pouco estudado.
O Poder Público, no uso de suas atribuições e de seus deveres deveria
direcionar esforços para a elaborações de Políticas Públicas de Atenção à
Pessoas Portadoras do Transtorno de Acumulação Compulsivo, articu-
lando ações de promoção e assistência à saúde, visando o bem-estar físico,
mental e social das pessoas em situação de acúmulo e de todos os que nela
estão direta ou indiretamente envolvidos, como familiares ou vizinhos.
A criação e a manutenção de um banco de dados dos casos de pessoas
em situação de acúmulo é uma medida essencial para controle e contabi-
lização do número de casos identificados, bem como das estimativas de
regressão dos mesmos e dos índices conforme as características dos in-
divíduos acometidos pelo transtorno.
É de extrema importância estabelecer estratégias de fortalecimento
com o cuidado ampliado e integral às pessoas em situação de acúmulo,

507
DIMENSÕES JURÍDICAS DAS POLÍTICAS PÚBLICAS – VOL. 1

o que pode ser realizado por meio de reuniões periódicas para discussão
conjunta dos casos atendidos, considerando as particularidades de cada
sujeito, convidando os órgãos ou entidades públicas envolvidos no atendi-
mento dos casos de pessoa em situação de acúmulo que serão discutidos;
Imprescindível, ainda, a realização de atividades que contribuam para
o processo de educação permanente, tanto dos profissionais de saúde e de
outros órgãos envolvidos no atendimento dos casos.
Nos casos de situação de acúmulo de animais, é imperioso desenvolver
ações e metas visando a redução dos riscos e a manutenção dos animais em
condições adequadas de alojamento, alimentação, saúde, higiene e bem-es-
tar, bem como, promovendo a redução gradativa do número de animais em
consonância com o sujeito, à medida que o vínculo é reestabelecido.
Nos casos de situações de acúmulo de objetos, o ideal seria o desen-
volvimento de ações e metas acordadas visando a redução dos riscos e a
manutenção de um ambiente saudável, promovendo gradualmente a des-
tinação adequada dos dejetos, em consonância com o sujeito à medida que
o vínculo é reestabelecido.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ALMEIDA R, RIBEIRO O. Síndrome de Dyógenes: revisão siste-


mática da literatura. Rev port saúde pública. 2012 Sept;30(1):89-
99. DOI: 10.1016/j.rpsp.2012.03.004.

AMERICAN PSYCHIATRIC ASSOCIATION. Manual diagnósti-


co e estatístico de transtornos mentais: DSM-5. 5th ed. Porto
Alegre: Artmed; 2014.

BLOCH MH, et alii. Meta-analysis: hoarding symptoms associated


with poor treatment outcome in obsessive-compulsive disor-
der. Mol psyc. 2014 June;19(9):1025-30. DOI: 10.1038/mp.2014.50

CUNHA GR, et alii. Frequência e distribuição espacial do acúmulo


compulsivo de animais e objetos em Curitiba, Paraná, Brasil. Termo
In: Cad. Saúde Pública vol.33 no.2 Rio de Janeiro 2017 Epub Mar
30, 2017. Disponível em: https://www.scielo.br/scielo.php?scrip-
t=sci_arttext&pid=S0102-311X2017000205013&lng=en&tlng=en .
Acesso em: 18/08/2020.

508
LU I Z A N TÔ N I O R E I S J U N I O R , M A U R I C I O P I R E S G U E D E S , T E L S O N P I R E S ,
VA N E S S A V E L A S C O, H E R N A N D E S B R I TO R E I S ( O R G . )

GARGIULO MS, CICOLELLA DA, NORMANN KAS et alii.


IDENTIFICAÇÃO E CUIDADOS NO TRANSTORNO DE
ACUMULAÇÃO. Termo In: Revista de Enfermagem UFPE
On Line. Disponível em: https://periodicos.ufpe.br/revistas/revis-
taenfermagem/article/view/15213 . Acesso em 14/08/2020

PATRONEK, G. J. & NATHANSON, J. N. (2009). A theoretical


perspective to inform assessment and treatment strategies
for animal hoarders. Termo In: Clinical Psychology Review,
29(3), 274-81. Disponível em: http://www.sciencedirect.com/scien-
ce/article/pii/S0272735809000087. Acesso em: 14/08/2020

REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL. Constituição Da Repú-


blica Federativa Do Brasil De 1988, 1988.

SAMUELS JF, et alii. Hoarding in obsessive-compulsive disorder:


results from the OCD collaborative genetics study. Behav Res
Ther. 2007 Apr; 45(4):673-86. DOI: 10.1016/j.brat.2006.05.008

SCHMIDT, DR, DELLA MÉA, CP, WAGNER, MF. Transtorno da


Acumulação: características clínicas e epidemiológicas. Ter-
mo In: Revista CES Psicología. Disponível em: http://www.scielo.
org.co/pdf/cesp/v7n2/v7n2a04.pdf . Acesso em: 14/08/2020

STUMPFA BA, HARAB C, ROCHA FL. Transtorno De Acumu-


lação: Uma Revisão. Termo In: Scientifc Journal of Sociedade
Brasileira de Geriatria e Gerontologia. Disponível em: http://www.
ggaging.com/details/449/pt-BR . Acesso em: 18/08/2020.

WOUK AF, BIONDO AW. Uma Saúde, Uma Medicina, Um


Bem-Estar. Revista Clínica Veterinária.2012;100:28-9.

509
TERRITORIALIZAÇÕES FEMININAS:
EXPERIÊNCIA DE ESTÁGIO
CURRICULAR EM SERVIÇO SOCIAL
EM UM CENTRO DE REFERÊNCIA DE
ASSISTÊNCIA SOCIAL
Desirre Vitória de Morais Mariano81
Ângela Maria Pereira da Silva82

INTRODUÇÃO

O presente artigo83 expressa o resultado de um processo de trabalho,


realizado durante o estágio em Serviço Social em um Centro de Refe-
rência de Assistência Social (CRAS) situado na Região Metropolitana de
Porto Alegre no Rio Grande do Sul no transcorrer do ano de 2017. Segun-
do as Orientações Técnicas para os CRAS, esses são “unidades públicas e
estatais descentralizadas da política de assistência social, responsáveis pela
organização e oferta de serviços da proteção social básica” tendo como

81 Assistente Social, graduada pela ULBRA/Canoas em 2018/1, atualmente, residente mul-


tiprofissional em saúde comunitária também pela ULBRA/Canoas.
82 Assistente Social. Mestre em Serviço Social. Doutoranda em Educação. Especialista em
Saúde Pública com ênfase em Saúde da Família e docente responsável pela coordenação do
Projeto de Pesquisa intitulado Saúde na escola: o enfrentamento das violências na Univer-
sidade Luterana do Brasil/Canoas
83 Fruto do Trabalho de Conclusão de Curso apresentado para o curso de graduação em
Serviço Social/Ulbra – Campus Canoas em 2018/1.

510
LU I Z A N TÔ N I O R E I S J U N I O R , M A U R I C I O P I R E S G U E D E S , T E L S O N P I R E S ,
VA N E S S A V E L A S C O, H E R N A N D E S B R I TO R E I S ( O R G . )

objetivo atuar “nas áreas de vulnerabilidade e risco social dos municípios e


DF” (MINISTÉRIO DO DESENVOLVIMENTO SOCIAL E COM-
BATE À FOME, 2009, p.9).
O projeto de intervenção executado neste serviço tinha como obje-
tivo compreender quais as representações para seis mulheres participan-
tes de um grupo de serviço de convivência e fortalecimento de vínculos
acerca do protagonismo feminino. Essas mulheres, além de assumirem a
função de cuidadoras, também eram as principais responsáveis pelo acesso
de suas famílias às políticas públicas e sociais (principalmente aquelas que
estão descritas como condicionalidades para o Programa Bolsa Família,
como a saúde, educação, e a própria política de assistência social).
Em relação aos programas de transferência de renda, o Brasil torna-se
pioneiro, sendo o primeiro programa o “Bolsa Escola”, que tinha como
condicionalidade a frequência escolar dentro de famílias pobres, iniciado
em “Campinas e Brasília” e em 2002 estendido ao restante do país. Em
2003 ocorre a unificação do Bolsa Escola, “Bolsa Alimentação, Auxílio-
-gás e Cartão- Alimentação” no Programa Bolsa Família (FERNANDES
E HELLMANN, 2016, p.289). 
O Programa Bolsa Família amplia as condicionalidades para que haja
a transferência de renda, articulando três políticas de acesso a direitos
(educação, saúde e assistência social). Nesse sentido, torna obrigatório a
pesagem, vacinação e o acompanhamento de gestantes pela saúde, crian-
ças e adolescentes de 6 a 15 anos com no mínimo 85% de frequência, e
de 16 a 17 anos no mínimo 75% de frequência na política de educação,
a atualização do Cadastro Único para Programas Sociais e o acompanha-
mento das famílias pela Assistência Social (BRASIL, 2015). 
Neste contexto, o Estado regula as relações sociais das famílias por
meio das condicionalidades, também exerce determinado controle, con-
siderando que para receber o benefício o acesso a esses direitos é obriga-
tório. Frente ao crescente número de famílias monoparentais, geralmente
chefiadas por mulheres, é importante termos clareza que esse segmento se
torna o principal demandatário desses programas governamentais, sendo
que essas mulheres eram as principais provedoras de renda advindo de
trabalhos informais e do valor recebido do Bolsa Família.
Visto que, por vezes, a realidade de áreas periféricas não permite o
acesso dessas famílias às políticas, sendo necessária a intervenção de as-

511
DIMENSÕES JURÍDICAS DAS POLÍTICAS PÚBLICAS – VOL. 1

sistentes sociais junto a rede (assistência social, saúde e educação) para


que estratégias sejam articuladas à população usuária. Aspectos que foram
constatados no cotidiano de trabalho do respectivo CRAS, uma vez que
as mulheres é que recorrem aos atendimentos ofertados nesse serviço para
si mesmas e em decorrência de demandas por parte de seus filhos, pessoas
idosas e pessoas com deficiência, membros de suas famílias.
O projeto de estágio denominado como “O protagonismo das mu-
lheres nas famílias e a importância do fortalecimento de vínculos” contri-
buiu sobremaneira para que essas usuárias pudessem visualizar a impor-
tância de seus papéis dentro de suas famílias e perante as instituições que
acessavam, bem como, a apreensão sobre a história das mulheres no Brasil
e a construção da cultura patriarcal, que ainda hoje cerceia o acesso das
mulheres aos direitos humanos.

1. BREVE HISTÓRIA DAS MULHERES NO BRASIL:


VIOLÊNCIA, RESISTÊNCIA E A BUSCA POR DIREITOS

Historicamente, a subalternização da figura feminina no Brasil vem


sendo construída desde o período colonial, considerando que uma das
primeiras manifestações foi a materialização do pecado pelo corpo, onde
os colonizadores preocupavam-se muito mais com a nudez feminina,
sendo que nesse contexto a mulher se opunha ao ter que “vestir roupas
moralizadas pelos costumes” trazidos pelos portugueses (BASEGGIO e
SILVA, 2015, p.22).
A inferiorização das mulheres associava-se muito as suas caracterís-
ticas físicas (atributos sexuais), enfatizando que “a mulher é um homem
incompleto” (BEAUVOIR, 1970, p.10), que o homem é perfeito em to-
das as suas características e que “há um tipo humano absoluto que é o
masculino”.
Outra forma manifesta de inferiorização da mulher fora o uso da vio-
lência, visto que, na vinda para o Brasil, os portugueses deixaram suas
famílias noutro continente, o que resultou “na caça às mulheres indígenas,
arrancadas à força de suas aldeias, de seus maridos e filhos para o mundo
do colonizador” (MIRANDA, 2003, p.8), já que com o passar do tempo
suas colônias estavam praticamente vazias, e não haviam mulheres para
procriar.

512
LU I Z A N TÔ N I O R E I S J U N I O R , M A U R I C I O P I R E S G U E D E S , T E L S O N P I R E S ,
VA N E S S A V E L A S C O, H E R N A N D E S B R I TO R E I S ( O R G . )

Em seguida, inicia-se a exploração dos territórios africanos e a chega-


da dos escravos negros ao Brasil em “1540, aproximadamente” (FILHO,
1946, p.41), e sobre as mulheres negras foram atribuídos os cuidados do-
mésticos e maternos, o que as mantinham dentro das casas dos senho-
res, inclusive vulneráveis aos seus assédios (BASEGGIO e SILVA, 2015,
p.22). Neste período, esses autores (2015, p.23) nos trazem que “a coloni-
zação realizada por homens, quase sem mulheres brancas, fez com que as
negras, junto com as índias fossem responsáveis por multiplicarem a mão
de obra colonial”. Assim como as índias já haviam sido capturadas de suas
tribos, as negras, ao serem submetidas à escravidão, também serviram à
procriação.
A mulher europeia chegou ao Brasil após o início da colonização, e
estas vinham “bem vestidas, com seus espartilhos apertados, e com um
sorriso no rosto” (BASEGGIO e SILVA, 2015, p.24), pois, esta era a for-
ma correta em que a mulher branca deveria portar-se em sociedade. So-
friam muito ao ter uma vida restrita onde as principais atribuições eram
os cuidados maternos, além de terem convívio direto com escravas e amas
que por vezes eram também as mães dos filhos dos senhores de enge-
nho. Em todos estes contextos, às mulheres cabiam a procriação para a
expansão populacional das colônias, não tinham poder sobre seus corpos
e tão pouco sobre sua sexualidade, podendo ser classificadas conforme o
grupo étnico e social que pertenciam. Dessa forma, a abordagem grupal
nos levou a retomar o passado, além dos acontecimentos do presente com
relação a regulação do corpo, sexo e sexualidade das mulheres na nossa
sociedade.
Haja vista, que as violações dos direitos das mulheres eram bastante
perceptíveis, através de regras e imposições, como por exemplo, “a con-
cepção de virgindade antes do casamento” à partir do ano de 1600 (BA-
SEGGIO E SILVA, 2015, p.25), a repressão de toda e qualquer vontade
expressa pela mulher que pudesse gerar situações consideradas conflituosas
para a época e que pudessem desestruturar a família colonial (PRIORE E
PINSKY, 2011, p.45), ou, até mesmo os enlaces matrimoniais, que eram
vistos como negócios vantajosos, “mais do que um aceite entre esposos”,
objetivando a rentabilidade para as famílias ou o acúmulo dos bens (en-
tre a elite) onde as famílias “impunham à mulher a condição de aceitar”
(PRIORE E PINSKY, 2011, p.258).

513
DIMENSÕES JURÍDICAS DAS POLÍTICAS PÚBLICAS – VOL. 1

A construção dessa cultura patriarcal afirmava que a mulher deve-


ria receber ordens do homem pelo simples fato de ter em si a “essência
de Eva” (PRIORE e PINSKY, 2011, p.46). Justificavam isso através das
histórias bíblicas, onde Eva é a primeira pessoa corrompida pelo mal e res-
ponsável por seduzir seu parceiro, condenando a humanidade ao martírio
eterno. Portanto, a mulher que descende de Eva deveria apenas se subme-
ter ao homem para que este não se tornasse influenciável.
Para que o mundo pudesse finalmente enxergar as demandas que
afligiam o contexto das mulheres, muitas lutas foram travadas no passar
do tempo. Mulheres importantes, e que tiveram um papel de destaque
ficaram marcadas na história como exemplos de superação. Conforme
Duarte (2012)84, um desses exemplos é a brasileira Nísia Floresta Augus-
ta, que viveu entre 1810 e 1885, conhecida como a pioneira do feminismo
brasileiro, tendo grande participação na imprensa do país, onde através da
escrita trazia seu posicionamento sobre a forma como as mulheres estavam
sendo tratadas na época.
Mesmo frente a esta realidade decorrente da reprodução da cultu-
ra patriarcal, as mulheres passaram a lutar por alguns direitos, como por
exemplo, a conquista do direito ao voto em 1932, maior autonomia sobre
a sexualidade com a chegada dos métodos contraceptivos na década de
1960 e a primeira delegacia da mulher em 1985.
A Declaração Universal dos Direitos Humanos em 1948 e a Cons-
tituição Federal de 1988, representam marcos de proteção ao segmento
feminino. Essas leis, mesmo sendo destinadas a todas as pessoas, não con-
seguiam garantir os direitos a alguns segmentos sociais, que ainda eram as
principais vítimas de violência e discriminação, sendo necessário estabe-
lecer algumas normatizações específicas.
Diante disso, temos a Lei nº 11.340 de agosto de 2006, ou Lei Maria
da Penha, um importante marco para a proteção e garantia de direitos das
mulheres brasileiras, considerando a sua especificidade, principalmente
em relação a tipificação das formas de violência, caracterizando-as e es-
clarecendo suas manifestações como violência patrimonial, sexual, física,
moral, psicológica e institucional.

84 Disponível em: http://litcult.net/2012/07/06/nisia-floresta-brasileira-augusta-pioneira-


-do-feminismo-brasileiro-sec-xix/#topAcesso em: mar. 2018.

514
LU I Z A N TÔ N I O R E I S J U N I O R , M A U R I C I O P I R E S G U E D E S , T E L S O N P I R E S ,
VA N E S S A V E L A S C O, H E R N A N D E S B R I TO R E I S ( O R G . )

Há que se ressaltar, também a importância da Lei Orgânica da Assis-


tência Social de 1993 e do advento do Sistema Único de Assistência Social
(2004), visto que é através da Política de Assistência Social que se busca
a emancipação das mulheres e a ruptura com a cultura patriarcal em suas
vidas por meio dos programas de transferência de renda e dos serviços de
convivência e fortalecimento de vínculos familiares e comunitários.
Nesta perspectiva, o campo de estágio em Serviço Social junto a um
Centro de Referência de Assistência Social (CRAS) nos proporcionou
trabalharmos essa temática de forma a destacar a construção histórica
como consequência aos processos presentes na atualidade, em especial, no
que se refere às mulheres em situação de vulnerabilidade. Através dos re-
latos partilhados durante os encontros do grupo de mulheres, foi possível
analisar o perfil das mesmas e sua historicidade, além de reconhecermos as
expressões da questão social85 e de que forma estas se manifestam em suas
vidas, salientando, nesse contexto, a importância do exercício do assisten-
te social nas instituições da política de assistência social, como os Centros
de Referência da Proteção Social Básica.

1.1. A IMPORTÂNCIA DO ESTÁGIO CURRICULAR NAS


ESTRATÉGIAS PARA O EMPODERAMENTO FEMININO
EM TERRITÓRIO DE FEMINIZAÇÃO DA POBREZA

A partir do respectivo projeto de intervenção do estágio em Serviço


Social, observamos que a maior parte das mulheres acompanhadas pelo
CRAS viviam em situação de vulnerabilidade social, sendo que muitas es-
tavam em descumprimento com as condicionalidades do Programa Bolsa
Família, em decorrência do trabalho infantil, não adesão ao Pré-natal ou
atraso nas vacinações de seus filhos. Algumas também eram detentoras do
Benefício de Prestação Continuada.
Para este projeto utilizamos a abordagem grupal como instrumento
de trabalho, o que, segundo Afonso, define-se como “um conjunto de
pessoas unidas entre si porque se colocam objetivos e/ou ideais em co-

85 A Questão Social é o objeto de intervenção genérico do Serviço Social, resul-


tado no conflito entre capital e trabalho, e que origina as chamadas expressões
da questão social representados por um conjunto de desigualdades da sociedade
capitalista madura (IAMAMOTO, 2013).

515
DIMENSÕES JURÍDICAS DAS POLÍTICAS PÚBLICAS – VOL. 1

mum e se reconhecem interligadas por esses objetivos e/ou ideais” (2002,


p.19), considerando o vínculo que já havia sido formado com as usuárias
durante o primeiro semestre de estágio não curricular. No decorrer dos
encontros, constatamos o fato de que em um grupo (que neste caso é
denominado como “Ser Criança” e faz parte do serviço de convivência e
fortalecimento de vínculos de 0 a 6 anos) para responsáveis e seus filhos,
apenas as mulheres (mães dessas crianças) compareciam, ou seja, nenhum
homem frequentava este serviço.
Assim, reconhecemos as condições de vida dessas mulheres, inicial-
mente através de atendimentos individuais e visitas domiciliares onde fi-
cou perceptível que estas eram as principais provedoras e cuidadoras, e
também as responsáveis pelo acesso do restante da família às políticas pú-
blicas e sociais, principalmente àquelas que estão descritas nas condicio-
nalidades do Programa Bolsa Família. Mesmo assim, os homens seguiam
como protagonistas do âmbito doméstico, sendo que todas as atividades
eram feitas em torno da sua vontade e as mulheres e crianças deveriam
obedecê-los, por vezes pelo medo de uma conduta violenta.
Neste contexto, destacamos a chamada feminização da pobreza, que
se tornou um fenômeno crescente em decorrência do aumento de famílias
monoparentais chefiadas por mulheres, o que no Brasil representam cerca
de 87,4% das famílias (BRASIL, 2014, n.p.)86, além dos salários desiguais
e da violência doméstica e familiar contra as mesmas. A chamada femi-
nização da pobreza, segundo Duque - Arrazola (2009, p.231), é fruto do
“agravamento da pobreza que tem afetado sobremaneira as mulheres da
classe trabalhadora ou classes subalternas, em especial a das camadas mais
empobrecidas”.
Este grupo era composto por mulheres, com idades entre 19 e 40
anos, residentes de bairros periféricos do município situado na Região
Metropolitana de Porto Alegre/RS. Boa parte destas ocupavam residên-
cias em invasões e eram mães de em média 2 filhos com idades inferiores
a 6 anos. Nenhuma das seis participantes haviam concluído o ensino
fundamental, sendo que uma delas era não alfabetizada. Apenas duas
já haviam ingressado no mercado formal de trabalho, e no período em

86 Disponível em: http://www.brasil.gov.br/economia-e-emprego/2014/10/mais-


-mulheres-assumem-a-chefia-das-familias-revela-pesquisa-do-ibge. Acesso em:
mai. 2018.

516
LU I Z A N TÔ N I O R E I S J U N I O R , M A U R I C I O P I R E S G U E D E S , T E L S O N P I R E S ,
VA N E S S A V E L A S C O, H E R N A N D E S B R I TO R E I S ( O R G . )

que estavam frequentando o grupo trabalhavam informalmente (princi-


palmente como recicladoras) ou estavam desempregadas utilizando de
algum benefício assistencial.
O estágio curricular em Serviço Social proporcionou ampliar a vi-
são quanto às demandas advindas de territórios tidos como hostis, conhe-
cendo as características das usuárias que frequentavam o serviço e refor-
mulando estratégias à valorização, ampliação e manutenção das políticas
públicas, garantindo às usuárias a efetivação de seus direitos através dos
programas e projetos dispostos nessas políticas.

1.1.1. O PROCESSO DE TRABALHO DO ASSISTENTE


SOCIAL NA PROTEÇÃO SOCIAL BÁSICA DA POLÍTICA
DE ASSISTÊNCIA SOCIAL, EM UM CONTEXTO DE
FEMINIZAÇÃO DA POBREZA

Durante essa experiência, o processo de trabalho, que segundo Lopes,


define-se como “todo processo de transformação de um objeto em um
produto determinado, através da atividade humana e com a utilização de
instrumentos”, sendo que “é no processo de trabalho que os seres huma-
nos estabelecem relações, uma vez que não vivem isolados” (2010, p.23), é
desenvolvido pelos/as assistentes sociais na proteção social básica da política
de assistência social, tendo o dever de promover o atendimento integral às
famílias que estão em situação de vulnerabilidade social, identificando as
suas demandas e carências, onde, neste caso, fora enfatizado o acolhimento
às mulheres que requerem atendimento e orientação deste CRAS.
Sobre a Política de Assistência Social, destaca-se o ano de 2003, onde
foi realizada a IV Conferência Nacional de Assistência Social, com o ob-
jetivo de reunir estados e seus municípios na discussão sobre seu rumo no
país. Sendo aprovado nesta mesma conferência o Sistema Único de Assis-
tência Social (SUAS), considerado como uma “iniciativa urgente se tra-
tando da organização e gestão da Política de Assistência Social” (MINIS-
TÉRIO DA ASSISTÊNCIA SOCIAL/CONSELHO NACIONAL DE
ASSISTÊNCIA SOCIAL, 2003, p.23). Em 2004 foi aprovada a Política
Nacional de Assistência Social (PNAS) e a  Norma Operacional Básica
do Sistema Único de Assistência Social (NOB-RH/SUAS). Juntamente,
ocorre a implementação e a organização do trabalho nos Centros de Re-

517
DIMENSÕES JURÍDICAS DAS POLÍTICAS PÚBLICAS – VOL. 1

ferência de Assistência Social (CRAS), que segundo a normatização, são


unidades territorializadas, localizadas em:

Áreas de vulnerabilidade social, que abrangem um total de até


1.000 famílias/ano. Executa serviços de proteção social básica, or-
ganiza e coordena a rede de serviços socioassistenciais locais da po-
lítica de assistência social. O CRAS atua com famílias e indivíduos
em seu contexto comunitário, visando a orientação e o convívio
sociofamiliar e comunitário. Neste sentido é responsável pela ofer-
ta do Programa de Atenção Integral às Famílias (2004, p.35).

Diante disso, o objeto de trabalho do Serviço Social, nessa conjuntu-


ra foi a fragilização do papel social feminino em decorrência da perpetua-
ção da cultura patriarcal, e para isso, potencializamos o alcance das ações
e políticas sociais, promovendo apoio para mantê-las no PAIF (Serviço de
Proteção e Atendimento Integral à Família), e nos Serviços de Convivên-
cia e Fortalecimento de Vínculos, por exemplo.
Este projeto de intervenção privilegiou o desenvolvimento de estraté-
gias que pudessem mostrar a essas mulheres a real importância da sua par-
ticipação familiar e comunitária, articulando juntamente com o serviço
de convivência o fortalecimento de vínculo das mesmas com seus filhos/as
pela inter-relação estabelecida com uma das técnicas de referência.
Foram empregados diversos meios para que pudessem ser explicitados
os principais direitos destinados às mulheres, como, vídeos, materiais in-
formativos ilustrados, jogos, entre outros, e durante encontros quinzenais,
as atividades utilizadas visavam principalmente informações que fossem
compreendidas e favorecessem o acesso aos serviços e bens sociais. Estes
encontros proporcionaram muitos conhecimentos ao grupo através de di-
versos assuntos abordados, como os direitos humanos, a Constituição Fe-
deral de 1988 e a Lei Maria da Penha, além dos questionamentos trazidos
que acabaram inseridos no planejamento, tendo como produto a apreen-
são das informações por estas usuárias e consequentemente o processo
reflexivo sobre as suas realidades, considerando que estas se desconheciam
detentoras de direitos.
As atividades ocorreram em 2017, totalizando 6 encontros grupais e
alguns atendimentos individuais e por contato telefônico, que se davam,

518
LU I Z A N TÔ N I O R E I S J U N I O R , M A U R I C I O P I R E S G U E D E S , T E L S O N P I R E S ,
VA N E S S A V E L A S C O, H E R N A N D E S B R I TO R E I S ( O R G . )

em sua boa parte, por demanda espontânea das usuárias, principalmente


em relação a outros serviços de convivência em que seus familiares parti-
cipavam ou a procura por benefícios sociais (alimentos, principalmente).
Durante este processo, os educadores, oficineiros e a técnica de referên-
cia dos Serviços de Convivência e Fortalecimento de Vínculos desempe-
nhavam atividades junto às crianças enquanto era desenvolvido o trabalho
com as mulheres.
O principal objetivo estava centrado na dimensão pedagógica, uma
vez que essas informações sobre os mecanismos de proteção às mulhe-
res, problematizavam a naturalização da inferiorização da mulher como
uma construção histórica e cultural. Portanto, pensar estratégias a partir
do perfil do público com quem se está trabalhando é essencial, para que a
informação chegue de forma compreensível e possa ser materializada em
direitos sociais.
As usuárias foram receptivas à proposição, considerando que elas es-
tariam em evidência como mulheres, e provavelmente, este destaque não
estava presente em seus cotidianos de vida familiar e comunitária. Tam-
bém, não foi estabelecido um ambiente de cobranças ou de culpabiliza-
ção, mas de informações e troca de experiências deixando-as à vontade
para participarem.
Durante esses encontros, um dos momentos mais significativos foi
quando tratamos sobre a história das mulheres no Brasil, pois falamos
também sobre algumas mulheres importantes e sobre como contribuíram
positivamente para a construção da sociedade. Debatemos sobre alguns
aspectos culturais que ainda prejudicam as mulheres pelo mundo a fora,
para que as usuárias pudessem compreender que existem diversas realida-
des, além da que elas conhecem, ampliando a compreensão destas quanto
a totalidade dos fenômenos. Após, assistimos ao curta-metragem “Acorda
Raimundo, Acorda”, que inverte os papéis pré estabelecidos entre ho-
mem e mulher, e que gerou um momento reflexivo entre as usuárias sobre
como os companheiros agiriam se trocassem de lugar com elas.
Essas mulheres enfrentam nos seus cotidianos de vida vários impedi-
tivos para a sua emancipação, desde dificuldades financeiras, emocionais,
educacionais, socioculturais, afetivas, habitacionais e até sofrimento psí-
quico. A vulnerabilidade social dessas famílias, geralmente deflagra a po-
breza extrema e a desigualdade de gênero que afeta a vida dessas mulheres,

519
DIMENSÕES JURÍDICAS DAS POLÍTICAS PÚBLICAS – VOL. 1

visto que tais famílias podem estar mais expostas a riscos devido a regu-
lação social, a ausência de proteção e consequentemente de desamparo.
Outro destaque foi a atividade voltada a violência doméstica em que
as usuárias puderam compartilhar suas experiências de vida, de forma que,
aos poucos, compreenderam juntas que estas manifestações iam além da
forma física, o que facilitou a interpretação das diferentes formas de vio-
lência que constam na Lei Maria da Penha. Também, conversamos sobre
a Constituição Federal de 1988, esclarecendo que esta é nossa lei maior e
que deveria ser suficiente para a proteção de todos/as, mas, infelizmente,
alguns segmentos sociais ainda sofrem diversas violências, preconceitos, e
no caso destas mulheres, a reprodução da cultura patriarcal.
A mudança de comportamento das usuárias durante os processos
reflexivos foi bastante perceptível, principalmente quanto a relação entre
elas mesmas. Estas passaram a ouvir o que as outras tinham a dizer de for-
ma mais atenta e respeitosa (sem julgamentos ou comentários pejorativos,
e que eram muito recorrentes no início do grupo). A partir de atitudes
positivas, pode-se perceber que estavam desenvolvendo empatia por expe-
riências vividas pelas outras participantes e passaram a procurar o serviço
quando entendiam que algo não estava bem com as demais. Passaram a
estabelecer cuidados com os filhos umas das outras, conseguiram iniciar
processos reflexivos sobre a reprodução de comportamentos machistas
que estavam muito presentes em seus cotidianos de vida (principalmente
em relação aos pré-julgamentos que faziam às mulheres que sofriam al-
gum tipo de violência, mesmo que todas elas também já tivessem sofrido).
A experiência de estágio proporcionou um excelente exercício, onde
o projeto de intervenção prosseguiu pela equipe trabalhadora do CRAS,
visto que as mulheres aderiram a proposta desde o início.

CONCLUSÕES

Neste caso, os encontros com as usuárias foram intensos e a continui-


dade desse grupo possibilitou que a equipe técnica pudesse se apropriar
desse instrumento e prosseguisse debatendo sobre a cultura patriarcal e
suas repercussões nas famílias incluídas nos serviços do CRAS. O pro-
cesso grupal proporcionou a transformação de questões entendidas como
individuais em vivências coletivas. Evidencia-se que este projeto semeou

520
LU I Z A N TÔ N I O R E I S J U N I O R , M A U R I C I O P I R E S G U E D E S , T E L S O N P I R E S ,
VA N E S S A V E L A S C O, H E R N A N D E S B R I TO R E I S ( O R G . )

questionamentos que contribuíram para instigar a apreensão de conheci-


mento por parte destas usuárias sobre seus direitos, inclusive sobre aqueles
que nem ao menos eram reconhecidos por elas.
No entanto, para que essas mulheres rompam com os ciclos pater-
nalistas e reconheçam seus espaços de poder é preciso novas estratégias e
ações programáticas nos serviços da assistência social. As políticas públicas
e sociais devem viabilizar a igualdade e a emancipação dos diversos sujeitos
ao invés de contribuir com a reprodução das relações sociais, sendo que,
no campo de estágio, muitas vezes, era perceptível. A criação desse espaço
favoreceu a democratização de conhecimentos e trocas de experiências,
contribuindo para o fortalecimento das relações entre as próprias mulhe-
res nos encontros do grupo.
Infelizmente, o processo de sucateamento das políticas públicas que
vem se estabelecendo desde 2016 com a Emenda Constitucional 95 que
limita “por 20 anos os gastos públicos” (SENADO, 2016, n.p)87 interfe-
rindo também nos orçamentos da seguridade social, atinge diretamente a
manutenção das estratégias previstas na política de assistência social no país.
Feitas tais considerações, sabemos que todas as mudanças estão con-
dicionadas aos inícios e este projeto tinha também como objetivo incen-
tivar outros para que possam dar continuidade a esta caminhada. Romper
com as expressões da questão social em um cenário de desvalorização das
políticas públicas e sociais é um grande desafio para os/as assistentes so-
ciais, ainda assim, seguimos pautados/as sobre uma perspectiva crítica que
questiona a realidade, e se mantém sempre em busca da efetivação dos
direitos, a frente de um sistema que nos desafia cotidianamente.

REFERÊNCIAS

AFONSO, Lúcia (org.). Oficinas em dinâmica de grupo — /um mé-


todo de intervenção psicossocial. Belo Horizonte: Edições do
Campo Social, 2002.

BASEGGIO, Julia Knapp. SILVA, Lisa Fernanda Meyer. As Condições


Femininas no Brasil Colonial. Publicação Uniasselvi. 2015.

87 Disponível em: <https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2016/12/15/promulgada-


-emenda-constitucional-do-teto-de-gastos>. Acesso em. Ago. 2020

521
DIMENSÕES JURÍDICAS DAS POLÍTICAS PÚBLICAS – VOL. 1

Disponível em: <https://publicacao.uniasselvi.com.br/index.php/


HID_EaD/article/viewFile/1379/528>. Acesso em: 10/10/2017

BEAUVOIR, Simone. O Segundo Sexo: Fatos e Mitos. São Paulo.


Librairie Gallimard. 1970. Disponível em: <http://aempreendedo-
ra.com.br/wp-content/uploads/2018/02/Livro-O-segundo-Sexo-1.
pdf>. Acesso em: 05/04/2018.

BRASIL. Bolsa Família: Transferência de Renda e Apoio a Família no


Acesso à Saúde, à Educação e à Assistência Social. Brasília. 2015.
Disponível em: <http://www.mds.gov.br/webarquivos/publicacao/bol-
sa_familia/Cartilhas/Cartilha_PBF_2015.pdf>. Acesso em: abr. 2018.

BRASIL. Brasileiras estudam mais, ganham menos e aumentam


atuação como chefe da família. Governo do Brasil. 2017. Dis-
ponível em: <http://www.brasil.gov.br/cidadania-e-justica/2017/03/
brasileiras-estudam-mais-ganham-menos-e-aumentam-atuacao-
-como-chefe-da-familia>. Acesso em: 07/06/2018.

DUARTE, Constância Lima. Nísia Floresta Brasileira Augusta: Pio-


neira do Feminismo Brasileiro – Séc. XIX. 1997. LITCULT.
Disponível em <http://litcult.net/nisia-floresta-brasileira-augus-
ta-pioneira-do-feminismo-brasileiro-sec-xix/#top>. Acesso em:
02/11/2017.

DUQUE- ARRAZOLA, L. S. O sujeito feminino nas políticas de


assistência social. In: Mota, A. E. O Mito da Assistência Social:
ensaios sobre o Estado, Política e Sociedade. São Paulo: Cortez,
2009.

FERNANDES, Rosa M. C. HELLMANN, Aline. Dicionário crítico:


política de assistência social no Brasil. Porto Alegre: Ed. UFR-
GS, 2016. 320 p.; il. (Coleção CEGOV: Transformando a adminis-
tração pública)

FILHO, Luiz Vianna. O Negro na Bahia. Senado. 1946. Dispo-


nível em <http://www2.senado.leg.br/bdsf/bitstream/handle/
id/92306/O%20negro%20na%20Bahia.pdf?sequence=3>. Acesso
em: 10/10/2017.

522
LU I Z A N TÔ N I O R E I S J U N I O R , M A U R I C I O P I R E S G U E D E S , T E L S O N P I R E S ,
VA N E S S A V E L A S C O, H E R N A N D E S B R I TO R E I S ( O R G . )

IAMAMOTO, Marilda Villela. O Serviço Social na Contempora-


neidade: Trabalho e Formação Profissional. 24º E.d. São Paulo.
Cortez. 2013.

LOPES, Maria Suzete Muller. Processo de trabalho no Serviço So-


cial. Canoas: Ed. ULBRA, 2010.

MINISTÉRIO DA ASSISTÊNCIA SOCIAL/CONSELHO NACIO-


NAL DE ASSISTÊNCIA SOCIAL. Relatório da VI Conferên-
cia Nacional de Assistência Social. Brasília. 2003.

MINISTÉRIO DO DESENVOLVIMENTO SOCIAL E COMBATE


À FOME. Orientações Técnicas: Centro de Referência de As-
sistência Social – CRAS/ – 1. ed. – Brasília. 2009. 72 p.

MINISTÉRIO DO DESENVOLVIMENTO SOCIAL E COMBATE


À FOME/SECRETARIA NACIONAL DE ASSISTÊNCIA SO-
CIAL. Política Nacional de Assistência Social/PNAS. 2004.

MIRANDA, Janira Sodré. Mulheres Indígenas, Igreja e Escravidão


na América Portuguesa. 2003. Disponível em <http://muka-
mukaupataxo.art.br/IMG/pdf/mulheres_indigenas.pdf>. Acesso em:
15/10/2017.

PRIORE, Mary Del (org). PINSKY, Carla Bassanezi (coord. de textos).


História das Mulheres no Brasil. 10º E.d. São Paulo. Contexto.
2011.

523
DA IDEALIZAÇÃO CONSTITUCIONAL
À REALIDADE: UMA ANÁLISE
DA SITUAÇÃO DA EDUCAÇÃO
FUNDAMENTAL BRASILEIRA
CONFORME O IDEB (2017)
Carolina Polvora Bica 88

INTRODUÇÃO

A pesquisa89 parte de um amparo teórico-normativo com objetivo


de compreender a disposição da educação como direito e se a situação
da educação básica brasileira e gaúcha das escolas privadas é de melhor
qualidade do que na rede pública. Para tanto foi feita a apresentação de
teoria, das determinações regulatórias e o estudo de dados do Ideb do ano
de 2017 (INEP, 2017).
Observou-se que direito à educação do cidadão é um dever estatal. O
direito à educação tem amparo regulatório desde a Constituição (CF/88)
(BRASIL, 1988), passando pela Lei de Diretrizes e Bases (LDB) (BRA-

88 Mestranda do Curso de Direito da Universidade Federal de Pelotas – UFPel (Mestrado


em Direito da UFPel)
89 O presente artigo é produto de uma pesquisa maior realizada junto ao Mestrado em
Direito da Universidade Federal em Pelotas, que se encontra em progresso. Nessa proble-
mática mais abrangente se buscará averiguar se o contribuinte de Imposto de Renda Pessoa
Física (IRPF) é impelido pela situação da educação pública a contratar o serviço de educação
básica privada (de primeira a nona séries do ensino fundamental) para seus dependentes ao
invés de dispor da educação pública fundamental.

5 24
LU I Z A N TÔ N I O R E I S J U N I O R , M A U R I C I O P I R E S G U E D E S , T E L S O N P I R E S ,
VA N E S S A V E L A S C O, H E R N A N D E S B R I TO R E I S ( O R G . )

SIL, 1996) e com metas colocadas no Plano Nacional de Educação (PNE)


(BRASIL, 2014). Conforme a teoria de base sentiana (SEN, 1993, 2000,
2011), a educação permite que o sujeito desenvolva suas capacidades, sua
liberdade e autonomia. O Estado vinculado como principal vetor de ga-
rantia do direito social à educação pela asseguração de políticas públicas
(SEN, 2000). O direito à educação é um catalizador entre a liberdade
humana e o desenvolvimento da sociedade (NERY, 2013).
Isso é o que também defende Freire (2003) de que o sujeito seguir a
sua própria razão com objetivo de se autorrealizar. Para isso devem-lhe ser
proporcionados os meios. Para Oliveira (2009, p.85), mesmo após a CF/88
e a ampla regulamentação do direito à educação “nenhuma qualidade de
ensino vem sendo assegurada”, nem no âmbito público, nem no privado.
Mais de uma década depois do estudo de Oliveira (2009), seria a si-
tuação da educação ainda tão escabrosa? Para verificar a situação da edu-
cação básica atual partiu-se de um respaldo teórico de doutrina (Freire,
2003; Nery, 2013; Oliveira, 2009; Sen, 1993, 2000, 2011) e de normas
(BRASIL, 1988; 1996; 2014). Restou estabelecido o direito à educação
fundamental como essencial.
Porém, quando feito o confronto das premissas teórico-normativas
observa-se que, segundo o Ideb de 2017 não estão sendo alcançadas as me-
tas propostas. Os anos finais da educação básica estão em situação ainda
mais crítica do que dos anos iniciais. Isso tanto na rede de educação pú-
blica quanto na privada. Apesar disso, a educação privada ainda tem maior
Ideb do que a pública, daí se afirmar que sua qualidade é maior. O estudo
sinaliza para o fato de que o Estado não está cumprindo com seu dever.
Com tais conclusões se dará continuidade ao estudo junto ao Mestrado
em Direito da Universidade Federal de Pelotas.

METODOLOGIA

O recorte realizado no presente trabalho traz a hipótese de que a edu-


cação básica privada brasileira e gaúcha é de melhor qualidade do que a
pública.
Pretendeu-se responder aos seguintes problemas: a educação é um
direito social? É dever do Estado prestar um serviço de educação de quali-
dade? Qual a situação da educação pública fundamental brasileira confor-

525
DIMENSÕES JURÍDICAS DAS POLÍTICAS PÚBLICAS – VOL. 1

me o último estudo realizado pelo Inep em 2017? E a educação gaúcha? A


educação privada mostrou-se melhor do que a pública?
O método empregado foi o hipotético-dedutivo. O procedimento bi-
bliográfico-descritivo. Foi feita a análise descritiva e qualitativa de dados.

REFERENCIAL TEÓRICO

Parte-se da premissa colocada por Sen (2011) de que a consecução


do direito à educação é necessária para o desenvolvimento completo da
pessoa. A abordagem adotada é principalmente normativista, mas enten-
deu-se importante o respaldo teórico transdisciplinar, o qual se buscou na
obra de Sen (1993; 2000; 2011), Freire (2003) e Nery (2013).
Para tais autores, a educação deve ser libertadora. Para Sen (2000),
o direito social à educação possibilita o desenvolvimento das capacidades
e retira o sujeito da pobreza absoluta (SEN, 2000, p. 17). Para tanto, as
“oportunidades sociais” – que para Sen são liberdades instrumentais -,
devem ser garantidas.
No que tange à educação básica fundamental, o autor elenca motivos
para a sua crucial relevância: a melhoria na qualidade de vida de quem sabe
ler e escrever, o que possibilita o acesso à informação e a comunicação. O
analfabeto é prisioneiro da própria ignorância. Ele também afasta os indi-
víduos da vida política e diminui a capacidade de decisão na esfera social. E
a educação básica está relacionada à questão de saúde básica (SEN, 2011).
Assim, se faz a relação da educação com a dignidade da pessoa humana e
a possibilidade de autorrealização pelo autodesenvolvimento e autonomia
para que seja possível que haja efetivação das capacidades (NERY, 2011;
SEN, 1993).
Para Freire (2003, p.40): “A educação é sempre umacerta teoria do
conhecimento posta em prática [...]”. E Freire (2003, p.79) diz que “[...]
o conhecimento é processo que implica na ação-reflexão do homem sobre
o mundo”. Em que pese as possíveis interpretações sobre a teoria da edu-
cação, o que parece de comum acordo é que ela está entre as necessidades
básicas do cidadão.
A definição legal de educação, posta na Lei de Diretrizes e Bases da
Educação (LDB) (Lei 9.394/96) abarca o sentido de conhecimento como
processo em seu artigo estreante. “Observa-se, assim, que a educação é o

526
LU I Z A N TÔ N I O R E I S J U N I O R , M A U R I C I O P I R E S G U E D E S , T E L S O N P I R E S ,
VA N E S S A V E L A S C O, H E R N A N D E S B R I TO R E I S ( O R G . )

pressuposto para o atingimento dos objetivos fundamentais preceituados


no artigo 3º da CF; é pela educação que construiremos de fato uma so-
ciedade solidária.” (OLIVEIRA, 2009, p. 82). Sen (2011) tem posiciona-
mento no sentido de que a educação majoritariamente pública deve pre-
valecer, mesmo que se defenda a possibilidade de prestação de educação
pela iniciativa privada que deve ser uma opção ao cidadão.
O direito social à educação tem previsão constitucional no art. 6º,
caput. É competência privativa da União legislar sobre as diretrizes e bases da
educação nacional conforme o art. 22, inciso XXIV. O acesso à educação
é de competência comum de todos os entes federados consoante o art.
23, inciso V. Ainda é concorrente a legislação sobre educação, expressa
no art. 24, inciso IX. Já a educação pública fundamental, fica a cargo pre-
dominantemente dos municípios nos termos do art.30, inciso VI, bem
como no art. 211 da CF/88, o qual estabelece um regime colaborativo
(BRASIL, 1988).
De modo específico sobre a educação fundamental, cabe mencio-
nar que a CF/88 estabelece no art. 210 que para garantir uma formação
“básica comum” serão estabelecidos “conteúdos mínimos” para o ensino
fundamental. Sendo que o art. 214 afirma que “o plano nacional de edu-
cação” terá duração de uma década e como objetivos visará, por exemplo,
a universalização do atendimento escolar.
Para Oliveira (2009) o plano educacional traçado pela Constituição
já teria início no preâmbulo desta, estando presente entre os princípios
fundamentais e objetivos da República. Destaca a necessidade da educa-
ção para a observação da cidadania e para o funcionamento dos Poderes
democráticos (OLIVEIRA, 2009).
Constitucionalmente, o dever do Estado é disciplinado nos arts. 208 e
no 227 da CF/88. Nesse a responsabilidade quanto à educação das crian-
ças e jovens também é da família e da sociedade. Conforme determinado
constitucionalmente, a LDB foi criada com intuito de traçar normas ge-
rais sobre o direito à educação. Ressalta-se que o projeto tramitou desde
antes da promulgação da CF/88, na Assembleia Nacional Constituinte,
até 1996, quando da edição da lei (NALÚ, 2001).
No período de 1988 até 1996, os debates acerca do direito à educa-
ção se prolongaram, mas com a CF/88 finalmente promulgada, tornou-se
inevitável a elaboração de uma norma geral acerca da implementação e

527
DIMENSÕES JURÍDICAS DAS POLÍTICAS PÚBLICAS – VOL. 1

consecução do direito educacional que estivesse adequada aos novos ob-


jetivos constitucionais. O projeto de 1988 fundara-se na busca da univer-
salização da educação básica e da garantia da qualidade da educação a ser
disponibilizada a todos (NALÚ, 2001).
Nos quase dez anos em que o projeto de LDB tramitou, observou-se
a existência de um conflito entre publicistas e privatistas, aqueles defenso-
res da escola pública e esses do ensino privado e a limitação do Estado na
gestão das escolas públicas. Por fim, a LDB foi editada como uma norma
geral que trata acerca da implementação e consecução do direito educa-
cional no Brasil e prevê investimentos nas escolas públicas devendo haver
a “priorização financeira do ensino fundamental” (NALÚ, 2001).
A educação fundamental está regulamentada na LDB do art. 32 ao
34, os quais determinam que “O ensino fundamental obrigatório, com
duração de 9 (nove) anos, gratuito na escola pública, iniciando-se aos 6
(seis) anos de idade, terá por objetivo a formação básica do cidadão [...]”
(BRASIL, 1996).
Já a iniciativa privada, quando oferecer o serviço de educação deve
obedecer aos parâmetros constitucionais postos no art. 209 da CF/88: “O
ensino é livre à iniciativa privada desde que atendidas determinadas condi-
ções, tais como: o cumprimento das normas gerais da educação nacional e
a autorização e avaliação de qualidade pelo poder público” (OLIVEIRA,
2009, p. 85).
E, como determinado na LDB as escolas privadas, podem coexis-
tir com as escolas públicas, porém, desde que obedecidas as premissas
legais. No Art. 7º da LDB está expresso que, “o ensino é livre” se ob-
servadas as normas gerais, houver autorização para o funcionamento do
estabelecimento e avaliação do ensino. Ressalta-se por ser mais relacio-
nado com o enfoque da temática o mesmo preceito legal, no seu inciso
III, faz ressalva ao autofinanciamento em conformidade com o que dita
o art. 213 da CF/88.
Esse determina que, quando não houver finalidade lucrativa, recursos
públicos podem ser empregados em determinadas instituições de ensino.
Isso desde que seja comprovado a não-lucratividade e a retroalimentação
na educação quando houver excedente de recursos. Há ainda a possibi-
lidade de criação de bolsas de ensino. Portanto, há a separação estanque
entre o financiamento da educação pública fundamental e a privada.

528
LU I Z A N TÔ N I O R E I S J U N I O R , M A U R I C I O P I R E S G U E D E S , T E L S O N P I R E S ,
VA N E S S A V E L A S C O, H E R N A N D E S B R I TO R E I S ( O R G . )

Sobre o Plano Nacional de Educação (PNE) está em vigência a Lei


13.005/14 conforme determinado no art. 214 da CF/88. No PNE estão
estabelecias vinte metas para a educação, que estão de acordo com as di-
retrizes do art. 2º da lei. Destaca-se as que se referem à educação funda-
mental de modo mais direto, quais sejam, as de número dois, cinco e sete.

RESULTADOS E DISCUSSÃO

Será aqui feita a análise de dados para averiguar qual a situação da


educação pública e da privada de primeira até a nona no Brasil e no estado
do Rio Grande do Sul de acordo com a coleta de informações oficiais
nacionais mais recentes do Índice de Educação Básica (Ideb) vinculado ao
Instituto Nacional Anísio Teixeira (Inep).
Sobre o Ideb, principal índice em que se baseia a pesquisa, informa-se
que ele foi criado por Fernandes (2007, p.5) e: “[...] combina [...]: a) indica-
dores de fluxo (promoção, repetência e evasão) e b) pontuações em exames
padronizados obtidas por estudantes ao final de determinada etapa do sistema
de ensino (4ª e 8ª séries do ensino fundamental e 3º ano do ensino médio)”.
Agora serão descritos e analisados os dados constantes no Resumo
Técnico do Ideb, especificamente em relação ao ano de 2017, pois estes
foram os resultados obtidos mais recentemente. O Ideb busca avaliar tanto
o conhecimento dos alunos, conforme avaliação no Sistema de Avaliação
da Educação Básica (Saeb), quanto ao fluxo escolar. A combinação destas
grandezas é o diferencial do índice ora estudado. “[...] o que se deseja é
que as crianças passem de ano e aprendam” (INEP, 2017, p.8).
Conforme o Resumo Técnico (INEP, 2017), considerando o total
de redes de ensino, houve melhoria no desempenho dos estudantes e su-
peração em 0,3 do índice, alcançando-se 5,8 pontos, sendo que todos os
estados estão evoluindo (INEP, 2017, p. 12). O Rio Grande do Sul foi um
dentre os únicos três estados – junto com Amapá e Rio de Janeiro – a não
alcançar a sua meta mesmo sendo ela superior à média nacional (INEP,
2017, p. 11-12).
Os dados de 2017 mostram evolução do Ideb em todos os estados em
relação ao ano de 2015. O Rio Grande do Sul fica entre dois grupos sen-
do que São Paulo desponta com o melhor índice e o Amapá com o pior
(INEP, 2017, p. 12-13).

529
DIMENSÕES JURÍDICAS DAS POLÍTICAS PÚBLICAS – VOL. 1

A rede pública também melhorou. Porém, “Sem a rede privada, o


Ideb do Brasil, nos Anos iniciais, é 0,3 ponto inferior.” (INEP, 2017,
p.14). Mesmo assim, foi superada a meta e o valor alcançado no Ideb em
2017 foi de 5,7. O Rio Grande do Sul não alcançou o seu objetivo. Sobre
a rede pública destaca-se que: “Considerando-se todas as escolas públicas,
71,0% dos municípios alcançaram a meta proposta para 2017” (INEP,
2017, p.14). Ainda:

A rede estadual detém, aproximadamente, 17% da matrícula nos anos


iniciais quando comparado com o total da rede pública. Os resultados
observados são consistentes e mostram uma evolução positiva, supe-
rando a meta proposta e atingindo um valor igual a 6,0, em 2017. Ape-
sar de apresentarem evolução no Ideb, três estados não conseguiram
atingir a meta proposta para 2017: Amapá, Paraná e Rio Grande do
Sul. Já Maranhão e Rio de Janeiro não atingirem a meta proposta e
tiveram uma redução do Ideb em 2017. (INEP, 2017, p. 17)

Na rede estadual, o Rio Grande do Sul tinha como meta o índice


de 5,8 em 2017, porém só alcançou 5,7. Em nível de Brasil, quase 75%
dos estados atingiu a meta do Ideb, nos anos iniciais em 2017. Em relação
à rede pública municipal, ainda quanto aos anos iniciais, se observa que
mais de 80% (oitenta por cento) dos alunos estão matriculados nesta rede
de ensino, ou seja, mais de 5.000 (cinco mil) municípios. A melhoria do
índice do Ideb se deu em todas as regiões, indo de 3,7 até mais de 6,0
(INEP, 2017, p.18).
Neste contexto, “[...] 69,9% das redes municipais dos municípios
brasileiros conseguiram atingir a meta proposta para o Ideb nos anos ini-
ciais do ensino fundamental em 2017.” (INEP, 2017, p.19-21). Obser-
va-se que no estado do Rio Grande do Sul, o IDEB foi calculado em 354
(trezentos e cinquenta e quatro) municípios. Desse total, um ficou com o
índice até 3,7; 57 (cinquenta e sete) atingiram 3,8 a 4,9 pontos; 144 (cento
e quarenta e quatro), 5,0 a 5,9 pontos e 152 (cento e cinquenta e dois) 6,0
pontos ou mais. Ou seja, 42,9% dos municípios apresenta um índice de
Ideb acima de 6,0 (INEP, 2017, p. 23).
No Brasil, - somente - 11.777 (onze mil, setecentos e setenta sete)
escolas, em um total de 184,1 (cento e oitenta e quatro mil e cem), atin-

530
LU I Z A N TÔ N I O R E I S J U N I O R , M A U R I C I O P I R E S G U E D E S , T E L S O N P I R E S ,
VA N E S S A V E L A S C O, H E R N A N D E S B R I TO R E I S ( O R G . )

giram um índice igual ou maior do que 6,0 no Ideb. Já quase 10% (dez
por cento) do total, mais do que o número que atinge a meta, portanto,
fica abaixo de 3,7 (INEP, 2017, p.24). Já quanto às escolas particulares nos
anos iniciais de ensino:

A rede privada participa com 18% das matrículas nos anos iniciais
do ensino fundamental no país. Apesar de apresentar um Ideb 1,6
ponto superior ao observado na rede pública, a rede privada não
alcançou a meta proposta para 2017. Entretanto, em 15 unidades
da federação a rede privada obteve um Ideb igual ou superior a 7,0
e 16 atingiram a meta. (INEP, 2017, p. 28)

Observa-se que o meta do Ideb para o Rio Grande do Sul para 2017
da rede privada (Anos iniciais) era de 7,1. Foi atingido 7,4. Comparan-
do-se com a meta total para os anos iniciais, para o ano de 2017, tinha-
-se 5,9 e atingiu-se] 5,8. Logo, o estado ficou abaixo da média. A rede
pública (tanto municipal quanto estadual) tinha estipulada a meta para
o Rio Grande do Sul de 5,7. Foi atingido o índice de 5,6 (INEP, 2017).
Também abaixo. Reporta-se que o próprio “Resumo Técnico” traz após
brevíssima análise da educação privada o comparativo: “[...] a evolução do
desempenho do Ideb da rede pública nos anos iniciais foi bastante expres-
siva nessas sete edições, resultando numa proporção superior a 70% dos
municípios classificados no intervalo “Maior que 0,71” em 2017.” (INEP,
2017, p. 30).
Já quanto aos anos finais do ensino fundamental da educação básica,
no total de redes de ensino houve aumento do Ideb, porém abaixo do
esperado e a meta não foi atingida. No Rio Grande do Sul, a meta para o
ano de 2017 era 5,3 e foi alcançado o índice de 4,6.
A rede pública também fica abaixo da rede privada nos anos finais do
ensino, sem ela o índice diminui em 0,3. De qualquer modo não alcança
a meta. Para os anos finais do ensino fundamental na rede pública a meta
do Rio Grande do Sul era de 5,1; atingiu-se 4,4; assim, como a maioria
dos estados brasileiros, não alcançou a meta. Assim, levando-se em consi-
deração todas as escolas da rede pública, apenas nove estados atingiram a
meta proposta: “[...] em 22 estados, menos da metade de seus municípios
alcançaram a meta proposta para o ano de 2017” (INEP, 2017, p. 36).

531
DIMENSÕES JURÍDICAS DAS POLÍTICAS PÚBLICAS – VOL. 1

A rede pública nos anos finais apresenta pouca melhora nos índices do
Ideb, ainda que constante. Porém, abaixo dos anos iniciais. De se salien-
tar que os estados que apresentam bons índices iniciais conseguem man-
ter o desempenho nos anos finais do ensino fundamental da rede pública
(INEP, 2017, p. 37).
No Rio Grande do Sul foi calculado o Ideb em 458 (quatrocentos e
cinquenta e oito) municípios. Desses, 12 (doze) atingiram o índice de 3,4;
163 (cento e sessenta e três), 226 (duzentos e vinte e seis) entre 3,5 a 4,4; e
57 (cinquenta e sete) entre 4,5 a 5,4; e, entre 5,5 ou mais. Ou seja, 49,3%
dos municípios gaúchos restaram com o índice entre 4,5 a 5,4 (INEP,
2017, p.40). Já os anos iniciais, como já exposto, 42,9% dos municípios
atingiram o índice de 6,0 ou mais (INEP, 2017, p. 23).
Quanto à rede como meta atingir o percentual de 4,8. Obteve 4,5.
O Rio Grande do Sul apresenta índice mais grave, com meta em 5,0 e
consecução de 4,3. Somente em 1/4 (25,6%) dos municípios brasileiros a
meta proposta para a rede estadual fundamental nos anos finais foi atingida
(INEP, 2017, 43-44).
Para a rede pública municipal, anos finais, a proporção quase se man-
tém: só 26,8% dos municípios atingiram a meta. Observa-se que, como
mencionado, nos anos iniciais essa proporção foi de 69,9% (INEP, 2017,
p.21). Além disso, há enorme desigualdade entre as regiões e, “No sul,
6,4% das escolas estão com Ideb menor ou igual a 3,4.” (INEP, 2017,
p.45). Nesta região, no Rio Grande do Sul, foram avaliadas 975 escolas
públicas da rede municipal em seus anos finais. Dessas, 93 (noventa e três)
obtiveram Ideb de até 3,4; 324 (trezentos e vinte e quatro) de 3,4 a 4,4;
410 (quatrocentos e dez) de 4,5 a 5,4; 148 (cento e quarenta e oito), 5,5 ou
mais. Verifica-se assim que 50,6% das escolas da rede pública municipal
nos anos finais têm Ideb de 4,5 a 5,4 (INEP, 2017, p.46). Quanto à rede
privada nos anos finais:

A rede privada participa com pouco mais de 14,9% das matrículas


nos anos finais do ensino fundamental. A diferença no desempe-
nho no Ideb entre a rede privada e a rede pública é maior nos anos
finais (2,0 pontos) quando comparada aos anos iniciais (1,6 ponto).
[...] O conjunto das escolas particulares não atingiu a meta propos-
ta para 2017. (INEP, 2017, p. 46)

532
LU I Z A N TÔ N I O R E I S J U N I O R , M A U R I C I O P I R E S G U E D E S , T E L S O N P I R E S ,
VA N E S S A V E L A S C O, H E R N A N D E S B R I TO R E I S ( O R G . )

A meta do Ideb para as escolas dos anos finais da rede privada era de
7,0, somente foi atingido o índice de 6,4. No Rio Grande do Sul, a meta
era de 7,2; o Ideb alcançado foi de 6,7. Compilaram-se os dados acima
apresentados nas seguintes tabelas:

Tabela 1 - Análise Ideb – Brasil – 2017

Rede de Anos iniciais Anos finais


ensino Meta Ideb obtido Meta Ideb obtido
Total 5,5 5,8 5,0 4,7
Estadual 5,6 6,0 4,8 4,5
Municipal 5,1 5,6 4,6 4,3
Privada 7,2 7,1 7,0 6,4
Pública 5,2 5,5 4,7 4,4
Fonte: elaborada pela autora com base em INEP, 2017

Consoante a tabela acima, se pode averiguar que Ideb brasileiro


total, nos anos iniciais, atinge a meta quando considerado em conjun-
to com o índice da educação privada, que eleva o Ideb total em 0,3 em
relação ao Ideb da rede pública. Isso também se observa nos anos finais.
Mesmo a educação privada não tendo alcançado a meta do Ideb, ela man-
tém-se acima da educação pública em 2,0. Na tabela a seguir estão os
dados referentes ao estado do Rio Grande do Sul:

Tabela 2 - Análise Ideb – Rio Grande do Sul – 2017

Rede de Anos iniciais Anos finais


ensino Meta Ideb obtido Meta Ideb obtido
Total 5,9 5,8 5,3 4,6
Estadual 5,7 5,8 5,0 4,3
Pública* 5,6 5,7 5,1 4,4
Privada 7,1 7,4 7,2 6,7
*Federal, estadual e municipal.
Fonte: elaborada pela autora com base em INEP, 2017

Enquanto nos anos iniciais do ensino fundamental, no Rio Grande


do Sul, a meta do Ideb é atingida nas redes estadual e privada, nos anos

533
DIMENSÕES JURÍDICAS DAS POLÍTICAS PÚBLICAS – VOL. 1

finais isso não se repete. Havendo assim uma piora nos índices nos anos
finais do ensino fundamental.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Como visto, conforme os ditames constitucionais e legais, o Estado


tem papel crucial no exercício e na defesa da educação sendo que, mesmo
sendo possível a atuação da iniciativa privada é vedada - e desaconselhada
- a transferência total do serviço aos particulares. Pois, em um país em que
reina a pobreza a privatização absoluta da prestação dos direitos sociais só
aumentaria ainda mais a abissal desigualdade social já existente.
Daí se depreender que o direito à educação fundamental, direito so-
cial que é, além de ser uma meta prevista na CF/88 a ser cumprida pelo
Estado possui legislação no sentido de dar azo à sua realização de forma
plena, ou seja, em quantidade e qualidade necessárias para atender a po-
pulação.
Nesses termos, a educação deve ser de qualidade e para todos. Ocorre
que a realidade vai de encontro às determinações constitucionais e legais.
Analisando os dados colhidos, em seu conjunto, verifica-se que a escola bra-
sileira fundamental como um todo está abaixo de um mínimo de qualidade
esperado. A escola pública mais ainda do que a privada. Mesmo porque as
metas que se pretende obter são diferenciadas conforme a rede – o Ideb ser
alcançado pela rede privada é em média 1,5 maior. Destaca-se que as séries
iniciais do ensino fundamental privado obtiverem os melhores resultados.
Pode-se assim afirmar que há desigualdades entre as redes de ensino
estatais e particulares sendo que essas possuem maior qualidade tanto no
cenário brasileiro quanto no estado do Rio Grande do Sul. Nesse, ainda
se verifica uma pior qualidade do ensino conforme o Ideb do ano de 2017.
Tais observações possibilitam que se continue a pesquisa que está sendo
realizada no Mestrado em Direito da Universidade Federal de Pelotas,
agora firmemente ancorada em fatos de realidade.

REFERÊNCIAS

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988.


Brasília, DF: Presidência da República. Disponível em: <http://

534
LU I Z A N TÔ N I O R E I S J U N I O R , M A U R I C I O P I R E S G U E D E S , T E L S O N P I R E S ,
VA N E S S A V E L A S C O, H E R N A N D E S B R I TO R E I S ( O R G . )

www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm>.
Acesso em 04 mar 2020.

BRASIL. Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, LDB.


9.394/1996. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/
leis/l9394.htm> Acesso em: 23 fev 2020.

BRASIL. Plano Nacional de Educação, PNE. 13.005/14. Disponível


em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2014/
lei/l13005.htm> Acesso em 05 mar 2020.

FERNANDES, Reynaldo. Índice de Desenvolvimento da Educação


Básica (Ideb) / Reynaldo Fernandes. – Brasília: Instituto Nacional
de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira, 2007.

FREIRE, Paulo. Pedagogia da Indignação: cartas pedagógicas e


outros escritos. São Paulo: UNESP, 2003.

INEP. Resumo Técnico Ideb 2005-2007. Brasília, Inep, 2017. Dis-


ponível em: <http://download.inep.gov.br/educacao_basica/portal_
ideb/planilhas_para_download/2017/ResumoTecnico_Ideb_2005-
2017.pdf> Acesso em 22 fev 2020.

OLIVEIRA, Antonia Teresinha de. O Estado como agente educacio-


nal na Constituição de 1988. 2009. 187 f. Tese (Doutorado em
Direito) - Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo,
2009.

NALÚ, Farenzena. Diretrizes da política de financiamento da


educação básica brasileira: continuidades e inflexões no or-
denamento constitucional-legal (1987-1996) – Tese (doutora-
do) – Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Faculdade de
Educação. Programa de Pós-Graduação em Educação. Porto Alegre:
UFRGS, 2001.

NERY, Sebastiao Araújo. Educação Infantil Como Direito Funda-


mental à Formação da Criança: Contornos do Conteúdo do
Direito Exigível. – Tese (doutorado) – Universidade do Estado do
Rio de Janeiro. Programa de Pós-Graduação em Direito. Rio de Ja-
neiro: UERJ, 2013

535
DIMENSÕES JURÍDICAS DAS POLÍTICAS PÚBLICAS – VOL. 1

SEN, Amartya. A ideia de justiça. Tradução de Denise Bottiman. São


Paulo: Companhia das Letras, 2011.

SEN, Amartya. Desenvolvimento como Liberdade. Tradução de


Laura Teixeira Motta. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.

SEN, Amartya. O desenvolvimento como expansão de capacida-


des. Lua Nova, São Paulo, n. 28-29, p. 313-334, 1993.  Disponível
em: <http://www.scielo.br/>. Acesso em 30 jun 2020.

536
VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER
NO CONTEXTO DA PANDEMIA DE
COVID-19
Larissa Puhl Bif90

INTRODUÇÃO

A pandemia de Covid-19 trouxe consigo uma série de restrições e


alterações na rotina de toda a população mundial. Visando a prevenção
do avanço da transmissão da doença por diversos países, medidas de con-
tenção social foram recomendadas pela Organização Mundial da Saúde
(OMS) no combate à pandemia, entre as principais propostas destacam-se
o isolamento dos casos suspeitos e o distanciamento social, estratégias que
foram adotadas com o objetivo de evitar a sobrecarga dos serviços de saúde
e controlar a evolução do número de casos da doença.
Dessa forma, as medidas de quarentena desencadearam alterações re-
pentinas no cotidiano das famílias e da socidade em geral, o que ocasio-
nou o surgimento de novos pontos de tensionamento e estresse. Além do
mais, diversas pesquisas comprovam que crises com grandes proporções
são acompanhadas do crescimento de casos de violência intrafamiliar.
Nesse interim, as mulheres encontram-se expostas ao perigo, na
medida em que estão sujeitas ao isolamento social, sendo obrigadas a se
recolherem ao ambiente doméstico, oportunidade em que houve a in-

90 Especialista em Análise Criminal pela Universidade Católica de Brasília (UCB). Graduada


em Direito pelo Centro Universitário Luterano de Palmas (CEULP/ULBRA). Cursa Especializa-
ção em Direito Civil e Processo Civil pela Faculdade ITOP.

537
DIMENSÕES JURÍDICAS DAS POLÍTICAS PÚBLICAS – VOL. 1

tensificação da violência de gênero, visto que mulheres de diversas idades


e condições econômicas permanecem confinadas com parceiros agressi-
vos, os quais conseguem exercer maior controle e manipulação sobre elas,
frente a sensação de impunidade provocada pelo cenário atual.
Por meio de presente trabalho será demonstrada a relação entre o iso-
lamento social durante a pandemia de COVID-19 e o aumento dos regis-
tros de violência doméstica e familiar contra a mulher, através da análise
das condições que intensificaram a violência de gênero durante o confi-
namento, trazendo dados publicados recentemente, que demonstram o
crescimento incipiente de registros de violência.

1. VIOLÊNCIA DOMÉSTICA EM TEMPOS DE COVID-19

A doença infecciosa causada pelo novo coronavírus resultou na pan-


demia de Covid- 19, a qual foi declarada pela Organização Mundial da
Saúde no dia onze de março de 2020 (ORGANIZAÇÃO PAN-AMER-
ICANA DA SAÚDE, 2020). Após esse marco, o número de pessoas con-
taminadas pelo coronavírus expandiu-se significativamente, e infelizmente,
acompanhando os altos índices de crescimento, tem-se o que foi denomi-
nado de pandemia das sombras: o vultuoso aumento de casos de violência
doméstica contra a mulher durante o período de isolamento social.
Deve-se levar em consideração que antes mesmo da pandemia ser
instaurada por todo o território brasileiro, a violência de gênero já com-
preendia um grave problema social e de saúde pública, fator que se agravou
ainda mais na situação atual, onde houve a necessidade de serem adotadas
medidas de quarentena, distanciamento social por tempo prolongado, res-
trições nos deslocamentos, visando a prevenção e diminuição da taxa de
transmissão de Covid-19.
Em relação à necessidade de isolamento social e o consequente
aumento da violência doméstica:

Globalmente, assim como no Brasil, durante a pandemia da CO-


VID-19, ao mesmo tempo em que se observa o agravamento da
violência contra a mulher, é reduzido o acesso a serviços de apoio
às vítimas, particularmente nos setores de assistência social, saúde,
segurança pública e justiça. Os serviços de saúde e policiais são ge-
ralmente os primeiros pontos de contato das vítimas de violência

538
LU I Z A N TÔ N I O R E I S J U N I O R , M A U R I C I O P I R E S G U E D E S , T E L S O N P I R E S ,
VA N E S S A V E L A S C O, H E R N A N D E S B R I TO R E I S ( O R G . )

doméstica com a rede de apoio. Durante a pandemia, a redução na


oferta de serviços é acompanhada pelo decréscimo na procura, pois
as vítimas podem não buscar os serviços em função do medo do
contágio (VIEIRA; GARCIA; MACIEL, 2020).

Torna-se natural que a condição pela qual o mundo inteiro vem


enfrentando desencadeie na população uma sensação de insegurança, de
impotência frente a algo que foge do controle, a tensão se estendeu por to-
dos os seres humanos, desde aqueles que estão atuando na linha de frente,
combatendo os danos causadas pelo vírus e buscando desvendar todas as
incógnitas trazidas pelo mesmo, e por outro lado, assombrando ainda mais
os cidadãos que estão em suas casas, que se encontram isolados aguardan-
do uma “luz”, esperando ansiosamente pelo fim da pandemia.
Ocorre que uma parcela dessas pessoas que estão em casa cumprindo
o isolamento social, além de temer o adoecimento em virtude da conta-
minação pelo Covid-19, temem algo que atinge sua integridade de forma
muito mais profunda: a intensificação das situações de violência vivencia-
das por mulheres e meninas de diversas idades e condições econômicas.
A Organização Mundial da Saúde considerou a violência como um
problema de saúde pública. No contexto de violência durante a pandemia,
Campbell adverte:

A violência é um fenômeno social, complexo e multifatorial que


afeta pessoas, famílias e comunidades. A Organização Mun-
dial da Saúde (OMS) chama a atenção para a violência como
um problema de saúde pública. Em situações de pandemia, tais
como da COVID-19, os indicadores de países como China, Es-
panha e Brasil evidenciam que os casos de violência já existentes
se agravam e, ao mesmo tempo, emergem novos casos. Na China,
os números da violência doméstica triplicaram; na França houve um
aumento de 30% das denúncias e, no Brasil, estima-se que as denúncias
tenham aumentado em até 50%. A Itália, assim como os demais países,
também indicou que as denúncias de violência doméstica estão em
ascensão (CAMPBELL, 2020).

O cenário de violência doméstica e familiar contra a mulher possui


uma característica marcante, que é o fato de que na grande maioria dos

539
DIMENSÕES JURÍDICAS DAS POLÍTICAS PÚBLICAS – VOL. 1

casos as agressões e abusos partem dos cônjuges ou de alguém do seio


familiar da própria vítima. Nesse sentido, o isolamento social ocasionou
o aumento dos episódios agudos de violência, visto que as medidas de
contingência obrigam as vítimas a conviverem por longos períodos no
ambiente familiar, juntamente com seus agressores.

1.1. Fatores que Intensificaram a Violência Contra a


Mulher

Entre as condições que intensificaram a violência de gênero durante a


pandemia encontra-se o fato de que o cenário atual prejudica a liberdade
das vítimas em realizar a denúncia por conta própria, pois em decorrência
do isolamento social, os agressores estão sempre por perto, impossibilitan-
do as mulheres de se deslocarem até a rede de suporte ou terem acesso às
medidas de proteção e direitos sociais garantidos.
Dessa forma, os agressores exercem maior controle e poder sobre suas
vítimas, diante da sensação de impunidade ocasionada pelo difícil acesso
as redes de proteção. O confinamento oportuniza que as mulheres sejam
vigiadas e muitas vezes impedidas de ter contato com familiares e amigos,
dando margem à manipulação de seus atos por parte dos companheiros.
Em relação ao aspecto relacional entre os cônjuges:

No âmbito relacional, o maior tempo de convivência com o agres-


sor é crucial. Ademais, ao se reduzir o contato social da vítima
com amigos e familiares, reduzem-se as possibilidades de a mulher
criar e/ou fortalecer uma rede social de apoio, buscar ajuda e sair da
situação de violência. A convivência ao longo de todo o dia, espe-
cialmente entre famílias de baixa renda vivendo em domicílios de
poucos cômodos e grande aglomeração, reduzem a possibilidade
de denúncia com segurança, desencorajando a mulher a tomar esta
decisão (MARQUES et al., 2020).

Ponderoso quesito que auxilia de grande maneira no crescimento de


casos de violência doméstica é o impacto econômico negativo nas famí-
lias, o que gera preocupação e dificuldade em manter a subsistência do lar,
com a consequente redução da renda auferida, abalando as premissas de
masculinidade dos agressores. Ainda, em muitas vezes, esse fator instiga os

540
LU I Z A N TÔ N I O R E I S J U N I O R , M A U R I C I O P I R E S G U E D E S , T E L S O N P I R E S ,
VA N E S S A V E L A S C O, H E R N A N D E S B R I TO R E I S ( O R G . )

parceiros violentos a fazerem uso de álcool e drogas, o que acarreta maior


sensação de insegurança nas vítimas, tendo em vista a probabilidade de
ocorrer violência.
O tempo e a intensidade do confinamento também estão diretamente
relacionados com o aumento do risco de violência, constituindo fatores
que tendem a acrescer o nível de estresse psicológico no ambiente familiar,
resultando no agravamento da convivência confituosa ou violenta.
Outro ponto crucial que comumente ocorre dentro dos lares é sobre-
carga feminina com o trabalho doméstico, partindo da desigual divisão de
tarefas, onde as mulheres se dedicam de forma integral aos cuidados com
os filhos, idosos, doentes, e com as atividades diárias de limpeza e preparo
de comida. Devendo ser considerado que o fato de o homem encontrar-
-se dentro de casa não significa que a mesma terá ajuda nas tarefas diá-
rias, muito pelo contrário, a distribuição de atividades fica desarmônica,
a verdade é que ter mais uma pessoa dentro de casa durante o dia apenas
acarreta maiores responsabilidades e afarezes para as mulheres.
Levando em consideração que o trabalho doméstico aumenta na me-
dida em que mais pessoas passam o dia dentro de seus lares, a sobrecarga
diária suportada pelas mulheres reflete na reducão da capacidade de evitar
o conflito com seu agressor, na medida em que a mesma fica mais exposta
a violência psicológica e a possibilidade de coerção sexual.
A depedência financeira constitui grave condição de vulnerabilidade,
a qual pode ser visualizada principalmente nas classes menos favorecidas,
onde a maioria das pessoas sobrevive do trabalho informal. Marques et al.
demonstram de forma clara a aflição sentida pelas vítimas, sentimento que
muitas vezes acaba sendo a causa pela qual não buscam ajuda, e infeliz-
mente o ciclo da violência continua sem ser interrompido:

O medo da violência também atingir seus filhos, restritos ao domicí-


lio, é mais um fator paralisante que dificulta a busca de ajuda. Por fim,
a dependência financeira com relação ao companheiro em função da
estagnação econômica e da impossibilidade do trabalho informal em
função do período de quarentena é outro aspecto que reduz a possibi-
lidade de rompimento da situação (MARQUES et al., 2020).

Nesse sentido, o Ministério da Saúde, em parceria com a Fundação


Oswaldo Cruz (Fiocruz), divulgou uma cartilha denominada “”Saúde

541
DIMENSÕES JURÍDICAS DAS POLÍTICAS PÚBLICAS – VOL. 1

Mental e Atenção Psicossocial na Pandemia COVID-19: violência do-


méstica e familiar na COVID-19” (2020), a qual foi elaborada visando a
orientação quanto a saúde mental e atenção psicossocial durante o período
de pandemia, oferecendo subsídio aos profissionais da rede de proteção e
cuidado às pessoas em situação de violência, como também aos gestores
envolvidos nas respostas à COVID-19. Na mencionada cartilha, outro
importante fator foi destadado:

Deve-se considerar que as diferenças sociais como cor da pele,


classe social, orientação sexual, identidade de gênero e idade, deixam
algumas mulheres mais suscetíveis à violência. Além disso, a falta de
recursos financeiros e o acesso restrito aos serviços de saúde difcultam
o afastamento do agressor e o rompimento do ciclo da violência
(BRASIL, 2020).

Conforme a cartilha ressaltou, existem determinadas condições que


deixam algumas mulheres mais suscetíveis à violência, pondendo-se ci-
tar também grupos de mulheres de baixa renda, minorias, indígenas, mi-
grantes e refugiadas, as que possuem deficiência, que cumprem medidas
de restrição de liberdade, LGBTI, e mulheres em situação de rua, as quais
ficam ainda mais expostas ao adoecimento e à violência.
Ainda, o estudo divulgado pelo Ministério da Justiça (2020) estima
que um terço das mulheres, no mundo, vivenciarão violência física e/ou
sexual em algum momento da vida, enfatizando ser fundamental que os
profissionais das redes de proteção e cuidado às pessoas em situação de
violência estejam cientes dos riscos do aumento do número de casos du-
rante a pandemia, informando que os profissionais desempanham papel
essencial na identifcação e acompanhamento desses casos.

1.2. Registros de Violência de Gênero

O Fórum Brasileiro de Segurança Pública divulgou no dia 20 de abril


de 2020 uma pesquisa intitulada “Violência Doméstica Durante Pande-
mia de Covid-19”, a qual foi realizada nas redes sociais e registrou o au-
mento de incidência dos casos de violência doméstica e familiar durante o
período de isolamento social em decorrência da pandemia do coronavírus.

542
LU I Z A N TÔ N I O R E I S J U N I O R , M A U R I C I O P I R E S G U E D E S , T E L S O N P I R E S ,
VA N E S S A V E L A S C O, H E R N A N D E S B R I TO R E I S ( O R G . )

A pesquisa foi realizada em parceria com a empresa de análise de da-


dos Decode, contando com o monitoramento da rede social Twitter, na
busca de postagens contendo relatos de brigas de casais vizinhos. Confor-
me o estudo:

Tendo em vista a difculdade que mulheres encontram para fazer


denúncias de violência por conta própria nesse cenário, a percep-
ção de agentes externos sobre os episódios e a possibilidade de que
eles denunciem possíveis crimes se torna fundamental para asse-
gurar às vítimas as medidas de proteção necessárias. Dados de co-
mentários de usuários em redes sociais fornecem evidências de que
terceiros, principalmente vizinhos, muitas vezes notam casos de
brigas e violência (FBSP, 2020).

Ao total, foram coletadas 52.315 menções contendo algum indicativo


de briga, das quais 5.583 relataram violência. Ainda, os dados desagrega-
dos por mês indicam um aumento de 431% entre fevereiro e abril, ou seja,
os relatos de brigas de casal com indícios de violência doméstica aumen-
taram quatro vezes.

Fonte: Decode; Fórum Brasileiro de Segurança Pública.

O estudo apresenta um gráfico denominado “Percentual de frequên-


cia dos relatos de brigas de casal no Twitter – Ordenada por mês”, na qual
constatou-se que 10% dos relatos se deram no mês de fevereiro, 37% em
março e 53% em abril, ressaltando-se que mais da metade das publicações
foram realizadas apenas no mês de abril.

543
DIMENSÕES JURÍDICAS DAS POLÍTICAS PÚBLICAS – VOL. 1

Ao final, foram apresentadas linhas de atuação para o enfrenta-


mento do grave problema exposto pelo estudo, entre as sugestões estão:

Diversifcar os canais possíveis para denúncias das mulheres: tele-


fone, online, mas também em serviços essenciais, como farmácias
e supermercados, que não estão fechados por conta da pandemia;
Criação de canais nos quais vizinhos e familiares possam denun-
ciar, com o desenvolvimento de protocolos de verifcação destas
denúncias que não coloquem as mulheres em maior risco; Criação
de campanhas de divulgação dos serviços destinados à proteção das
mulheres, mas também encorajando a sociedade a olhar para esse
problema e denunciar casos de violência; Garantia de resposta rá-
pida das autoridades para a proteção da mulher, seja para retirar o
autor de violência de dentro de casa ou para colocar a mulher em
local seguro, como um quarto de hotel, pelo período que durar o
isolamento social; Reforçar a articulação das redes locais de prote-
ção à mulher, em especial as que envolver setor público e sociedade
civil organizada; Preparar estabelecimentos comerciais, por meio
de campanhas educativas e outros, para lidarem com mulheres víti-
mas de violência, seja prestando informação, seja prestando apoio,
colocando-as em contato com autoridades; Criação de campanhas
voltadas para condomínios residenciais, para que os vizinhos se
solidarizem e interfiram caso presenciem situações de violência
(FBSP, 2020).

As propostas sugeridas foram elaboradas frente as evidências trazidas


pelo estudo, bem como pelas experiências de enfrentamento adotadas por
outros países, sendo linhas de atuação que podem ser implantadas imedia-
tamente, ou ainda, em momento posterior à crise.

1.3. Linhas de Atuação para o Enfrentamento do


Problema

Várias são as estratégias sugeridas para o enfrentamento da violência


doméstica e familiar contra a mulher no contexto da pandemia, as quais
são válidas e se complementam entre si. Considera-se de fundamental im-
portância a mobilização do Estado e da sociedade em geral na busca de

544
LU I Z A N TÔ N I O R E I S J U N I O R , M A U R I C I O P I R E S G U E D E S , T E L S O N P I R E S ,
VA N E S S A V E L A S C O, H E R N A N D E S B R I TO R E I S ( O R G . )

garantir as mulheres em situação de violência o direito a uma rápida e


efetiva resposta, fornecendo acesso à rede de suporte e proteção.
Ante a percepção do vultuoso aumento de casos de violência durante
o período de isolamento social, várias iniciativas têm sido implementadas
pela sociedade civil organizada, com o objetivo de fornecer suporte às
vítimas de violência durante a pandemia. Nesse sentido, pode-se citar:

O Mapa do Acolhimento, plataforma que conecta mulheres que


sofreram violência a advogadas e psicólogas voluntárias, lançou o
#TôComElas, iniciativa para reunir voluntárias dispostas a apoiar
no contato com os serviços já mapeados. Já os Institutos Justiça de
Saia, Bem Querer Mulher e Nelson Willians lançaram a força-ta-
refa Justiceiras, reunindo voluntárias para oferecer orientação jurí-
dica, psicológica e assistência social gratuitas às vítimas de violência
em todo o Brasil por whatsapp e telefone (FBSP, 2020).

Ainda, com o intuito de facilitar a realização de denúncias por parte


das vítimas que encontram-se confinadas com os agressores, algumas pla-
taformas digitais e canais de comunicação encontram-se a disposição, sen-
do que a notificação também pode ser realizada por familiares, vizinhos,
ou até mesmo terceiros que identificarem situação de violência.

Para contornar essas dificuldades e acolher as denúncias de violên-


cia doméstica e fami-liar, o MMFDH lançou plataformas digitais
dos canais de atendimento da ONDH: o apli-cativo Direitos Hu-
manos BR e o site ouvidoria.mdh.gov.br, que também poderão
ser aces-sados nos endereços disque100.mdh.gov.br e ligue180.
mdh.gov.br. Por meio desses canais, vítimas, familiares, vizinhos,
ou mesmo desconhecidos poderão enviar fotos, vídeos, áudios e
outros tipos de documentos que registrem situações de violên-
cia doméstica e outras violações de direitos humanos (VIEIRA;
GARCIA; MACIEL, 2020).

Aproveitando as experiências de enfrentamento adotadas por outros


países, bem como as ações que estão sendo realizadas por instituições go-
vernamentais e não governamentais no Brasil, entende-se ser fundamental
a garantia do funcionamento em tempo integral do Ligue 180, Disque 100

545
DIMENSÕES JURÍDICAS DAS POLÍTICAS PÚBLICAS – VOL. 1

(violação aos direitos humanos) e a opção do 190 que contata diretamente


a Polícia Civil.
Entre as linhas de atuação para o combate do grave problema apresen-
tado, sugere-se buscar a agilidade da instalação e manutenção das medidas
protetivas nos casos em que houver real necessidade, reforçar as campa-
nhas publicitárias que informam os direitos e garantias de mulheres em
situação de violência, sugerir que as vítimas de violência busquem meios
de fazer o distanciamento social acompanhadas de outros familiares, além
dos filhos e agressor, a intensificação de esforços para aumento das equi-
pes atuantes diretamente nas linhas de prevenção e resposta à violência, a
capacitação dos servidores da área da saúde para realizarem a identificação
das situações de risco, o fortalecimento e expansão das redes de apoio,
garantindo o funcionamento e eficiência dos abrigos para mulheres em
situação de violência.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Em decorrência da pandemia de COVID-19, diversas medidas re-


stritivas tiveram que ser adotadas visando a contenção e diminuição dos
índices de transmissão do coronavírus. O confinamento das famílias em
seus respectivos lares proporcionou o surgimento de condições que in-
tensificaram a violência de gênero, situação que já era gravemente crítica
antes mesmo do advento da pandemia.
O isolamento social ocasionou o aumento dos episódios agudos de vi-
olência, visto que as medidas de contingência obrigam as vítimas a con-
viverem por longos períodos no ambiente familiar, juntamente com seus
agressores. Dessa forma, o confinamento oportuniza que as mulheres sejam
vigiadas e muitas vezes impedidas de ter contato com familiares e amigos,
dando margem à manipulação de seus atos por parte dos companheiros.
Entre as condições que intensificaram a violência de gênero durante
a pandemia destacam-se o controle exercído pelos agressores, a sensação
de impunidade gerada pelo difícil acesso às redes de suporte e proteção,
o impacto econômico negativo nas famílias, a redução da renda auferida,
o tempo e a intensidade do confinamento, a sobrecarga feminina com o
trabalho doméstico, a dependência financeira e emocional, e o medo da
violência atingir os filhos.

546
LU I Z A N TÔ N I O R E I S J U N I O R , M A U R I C I O P I R E S G U E D E S , T E L S O N P I R E S ,
VA N E S S A V E L A S C O, H E R N A N D E S B R I TO R E I S ( O R G . )

Outros fatores que deixam algumas mulheres mais suscetíveis à vi-


olência são diferenças sociais como cor da pele, classe social, orientação
sexual, identidade de gênero e idade, minorias, indígenas, migrantes e re-
fugiadas, as que possuem deficiência, que cumprem medidas de restrição
de liberdade, e mulheres em situação de rua, as quais ficam ainda mais
expostas ao adoecimento e à violência.
Na pesquisa “Violência Doméstica Durante Pandemia de Covid-19”
divulgada pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, constatou-se que
houve um aumento de 431% entre fevereiro e abril 2020, constituindo
o aumento de incidência dos casos de violência doméstica e familiar du-
rante o período de isolamento social, ou seja, através da análise de 52.315
menções na rede social Twitter contendo algum indicativo de briga, 5.583
relataram violência, verificando-se que os relatos de brigas de casal com
indícios de violência doméstica aumentaram quatro vezes.
Entre as linhas de atuação para o enfrentamento do grave proble-
ma exposto no presente trabalho, sugere-se a intensificação de esforços
para aumento das equipes atuantes diretamente nas linhas de prevenção
e resposta à violência, contando com a ampla divulgação dos serviços de
suporte e proteção disponíveis, a capacitação dos servidores da área da
saúde para realizarem a identificação das situações de risco, o fortaleci-
mento e expansão das redes de apoio, garantindo o funcionamento e efi-
ciência dos abrigos para mulheres em situação de violência.
Porém, deve-se ter em mente que não existe solução eficiente a curto
prazo, na medida em que a educação, sensibilização e coscientização em
relação ao assunto apresenta-se como a melhor forma de enfrentamento,
constituindo solução primordial, através de investimentos em campanhas,
divulgação de cartilhas, em busca da educação para a vida, incentivando
a sociedade em geral a aprender o exercício da comunicação pacífica e o
hábito dos bons modos, o que deve ser trabalhado desde o princípio nas
instuições de ensino.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BRASIL. Ministério da Saúde. Fundação Oswaldo Cruz. Centro de Es-


tudos e Pesquisas em Emergências e Desastres em Saúde (CEPE-
DES/Fiocruz). Departamento de Estudos sobre Violência e Saúde

547
DIMENSÕES JURÍDICAS DAS POLÍTICAS PÚBLICAS – VOL. 1

Jorge Careli (Claves/Fiocruz). Programa de Investigação Epidemio-


lógica em Violência Familiar (PIEV-IMS/UERJ). Saúde Mental e
Atenção Psicossocial na Pandemia COVID-19: violência do-
méstica e familiar na COVID-19. 04 Set., 2020.

CAMPBELL, A. M. An Increasing Risk of Family Violence during the


Covid-19 Pandemic: Strengthening Community Collaborations to
Save Lives. Forensic Science International: Reports, 2020.

FÓRUM BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA – FBSP. Vio-


lência Doméstica Durante a Pandemia de Covid-19. Edição
I. São Paulo: FBSP, 2020. Disponível em: <https://forumseguran-
ca.org.br/wp-content/uploads/2018/05/violencia-domestica-covid-
-19-v3.pdf>. Acesso em: 04 set. 2020.

INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO DE FAMÍLIA - IBDFAM


(Minas Gerais). Crescem os números de violência doméstica no
Brasil durante o período de quarentena. 2020. Disponível em:
https://ibdfam.org.br/noticias/7234/Crescem+os+n%C3%BAme-
ros+de+viol%C3%AAncia+dom%C3%A9stica+no+Brasil+duran-
te+o+per%C3%ADodo+de+quarentena#. Acesso em: 04 set. 2020.

MARQUES, Emanuele Souza et al. A violência contra mulheres, crianças e ado-


lescentes em tempos de pandemia pela COVID-19: panorama, motivações
e formas de enfrentamento. Cad. Saúde Pública,  Rio de Janeiro,  v. 36, n.
4,  e00074420,    2020.   Available from <http://www.scielo.br/scielo.php?s-
cript=sci_arttext&pid=S0102-311X2020000400505&lng=en&nrm=iso>.
Acesso em:  22  Ago.  2020.  

ORGANIZAÇÃO PAN-AMERICANA DA SAÚDE. Folha informa-


tiva COVID-19. Escritório da OPAS e da OMS no Brasil. Dispo-
nível em: https://www.paho.org/pt/covid19. Acesso em: 04 set. 2020.

VIEIRA, Pâmela Rocha; GARCIA, Leila Posenato; MACIEL, Ethel


Leonor Noia. Isolamento social e o aumento da violência domésti-
ca: o que isso nos revela?. Rev. bras. epidemiol.,  Rio de Janeiro, 
v. 23,  e200033,    2020.   Available from <http://www.scielo.br/
scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1415- 790X2020000100201&l-
ng=en&nrm=iso>. Acesso em:  22  Ago.  2020.  

548
UM NOVO OLHAR SOBRE O
ORÇAMENTO PÚBLICO PARA A SUA
UTILIZAÇÃO COMO INSTRUMENTO
DE EFETIVAÇÃO DOS DIREITOS
SOCIAIS
Caroline Levergger Costa

INTRODUÇÃO

O presente estudo propõe um novo olhar sobre o orçamento público


brasileiro visando analisar a necessidade e da existência de institutos jurí-
dicos capazes de promover a utilização do próprio orçamento como um
instrumento de efetivação dos direitos sociais.
Não raras vezes surge na jurisprudência a alegação de que o caráter
finito dos recursos financeiros não é capaz de atender a vasta demanda
social na mesma proporção em que ela se faz necessária para garantir o
bem estar da população e ainda há a invocação por parte do Estado de
teorias como a da reserva do possível para atender as demandas sociais,
sobretudo diante da limitação orçamentária alçada à condição de escu-
do ou aparato estatal
Embora a mencionada tese mereça ser questionada e analisada com
cautela e ponderação, a realidade acima descrita conduz ao entendimento
de que não somente vivemos em uma sociedade com carência de efetiva-
ção dos direitos sociais, mas também que é imprescindível compreender
que a concretização de tais direitos fundamentais é indissociável de uma
discussão orçamentária.

549
DIMENSÕES JURÍDICAS DAS POLÍTICAS PÚBLICAS – VOL. 1

De nada adianta falar de direitos sociais sem conferir a devida atenção


ao montante de recursos financeiros estabelecidos pelo Estado para sua
realização.
Nesse contexto, parcela da doutrina critica a restrição de direitos à
possibilidade orçamentária e defende a necessidade de intervenção do
Judiciário nas escolhas orçamentárias e a imposição ao Poder Público
de determinadas prestações pelo Judiciário, o qual atuaria em confor-
midade com a Constituição Federal em interpretação teleológica da
norma.
Mas se por um lado o controle judicial propiciaria, na visão de parte
da doutrina, uma melhor concretização dos direitos outra parcela de juris-
tas questiona a legitimidade democrática e a judicialização da política com
as consequências dela advindas.
Não bastante, muito é debatido no ordenamento jurídico sobre este
agigantamento do Judiciário e na judicialização dos conflitos apontados
como primeira resposta à ineficiência do setor público, porém parece ficar
em segundo plano o debate sobre a necessidade ou a existência de méto-
dos alternativos para evitar que as demandas cheguem ao Judiciário, utili-
zando por exemplo o próprio orçamento público como um instrumento
de efetivação de direitos.
Por tais razões, em contramão à judicialização dos conflitos é que o
presente estudo procura analisar se há no atual ordenamento jurídico bra-
sileiro institutos jurídicos que possibilitam a utilização do orçamento pú-
blico como instrumento efetivador dos direitos sociais prestacionais ou se
faz necessária sua criação.
Para tanto, a pesquisa se inseriu em diversos ramos do direito como
o Direito Constitucional, Orçamentário, Administrativo e o Financeiro
e realizou uma abordagem de diversas correntes doutrinárias com base
na pesquisa bibliográfica e documental, além do exame de decisões dos
Tribunais Superiores brasileiros, de forma que foi utilizada como técnica
de pesquisa a revisão bibliográfica e como método procedimental o mo-
nográfico, para a realização de um estudo minucioso do tema aliado a um
pensamento crítico.
No primeiro capítulo é apresentado um breve histórico do orçamen-
to público no Brasil e no mundo, sendo traçados ainda quais são os con-
tornos gerais do atual orçamento público Brasileiro.

550
LU I Z A N TÔ N I O R E I S J U N I O R , M A U R I C I O P I R E S G U E D E S , T E L S O N P I R E S ,
VA N E S S A V E L A S C O, H E R N A N D E S B R I TO R E I S ( O R G . )

Posteriormente no segundo capítulo verifica-se quais os institutos


jurídicos ou diretrizes podem ser encontradas no atual ordenamento ju-
rídico brasileiro capazes de conduzir à utilização do próprio orçamento
público como um mecanismo promotor de direitos e ainda o que não
encontramos em nosso ordenamento, carecendo de aprimoração.
Por fim, a pesquisa discorre sobre orçamento participativo, orçamen-
to impositivo e a natureza jurídica da legislação orçamentária, apresen-
tando diversos posicionamentos do STF sobre a matéria, além de realizar
uma pequena análise comparativa entre as medidas adotadas pelo Brasil e
por outros países industrializados e em desenvolvimento, mais especifi-
camente, Dinamarca, Peru e Armênia, no que se refere ao planejamento
orçamentário.
Assim o estudo se preocupa, sobretudo, com um pensamento crítico
analisando conceitos e teorias gerais para posteriormente realizar análises
particularizadas sobre qual a resposta podemos extrair do atua ordena-
mento jurídico brasileiro sobre a problemática da efetivação dos direitos e
do planejamento orçamentário.

1. LINHAS GERAIS SOBRE O ATUAL ORÇAMENTO


PÚBLICO BRASILEIRO

O estudo do direito financeiro, mais especificamente das finanças pú-


blicas como uma matéria de relevância jurídica possui data recente, tendo
ocorrido a partir de meados do século XIX. Contudo, ao contrário do
que ocorreu com a maioria dos demais ramos do Direito Público que
também se solidificaram a partir dessa época, como por exemplo o direito
tributário e o direito administrativo, o direito financeiro não avançou de
modo significativo a partir de então, sobretudo no que se refere a desvin-
culação das ciências econômicas, possuindo ainda diretrizes de séculos an-
teriores que dificultam a resolução dos problemas da sociedade moderna.
Este ramo, portanto, vem se poiando em teorias que embora não jus-
tifiquem uma má gestão do dinheiro público acabam por provocar o des-
caso com a execução do orçamento, o que em terras brasileiras é agravado
ainda pela “cultura orçamentária de patrimonialismo histórico” onde o
orçamento é utilizado como mecanismo de manutenção de privilégios ao
invés de ser encarado como planejamento governamental.

551
DIMENSÕES JURÍDICAS DAS POLÍTICAS PÚBLICAS – VOL. 1

Embora existam divergências entre os relatos de doutrinadores o


embrião do que é considerado orçamento público foi encontrado inicial-
mente na Carta Magna outorgada pelo Rei João Sem Terra, mais preci-
samente em seu art. 12 que previa que exceto em situações excepcionais
nenhum tributo ou auxílio seria instituído pelo Reino, senão pelo Conse-
lho Comum, e nesse contexto, o orçamento primitivamente era encarado
como um instrumento de limitação do poder de tributar, disciplinador
das finanças públicas com a função de permitir um controle político dos
órgãos de representação sobre os órgãos de execução, conceito que ficou
conhecido como Orçamento Tradicional. (GIACOMONI, 2009, p. 64)
Nesse período, portanto a principal função do orçamento não era
o planejamento de qualquer atividade financeira, mas sim a proteção do
contribuinte do excesso de tributação.
Com o passar do tempo, o orçamento voltado para tal finalidade e
com participação maciça do Executivo deu lugar a um molde mais pró-
ximo dos dias atuais, segundo o qual se fazia necessário a aprovação das
despesas pelo Parlamento, contudo o orçamento moderno apenas surge
no final do século XIX quando o Estado se atentou às distorções econô-
micas e abandonando a filosofia liberal passou a fomentar programas de
desenvolvimento.
Desta época remonta o orçamento de desempenho que, embora te-
nha sido uma evolução significativa por além de se preocupar com os gas-
tos cuidar também do resultado obtidos com os gastos públicos, ainda
não possuía o caráter de planejamento de ações estatais vinculados a uma
peça orçamentária, só obtido com o que se convencionou chamar de orça-
mento-programa, espécie de orçamento adotado hoje no Brasil, contudo
advindo do final da década de 50, nos Estados Unidos da América sob o
nome de Planning Programming Budgeting System - PPBS (Sistema de Plane-
jamento Programação e Orçamento). (MOURA, 2016 p. 17-19)
Em solo pátrio a primeira Constituição a exigir a elaboração de um
orçamento formal foi a de 1824, posteriormente o regramento orçamen-
tário sofreu uma série de alterações em razão das diversas Constituições
subsequentes, ora atribuindo a competência orçamentária ao Executivo,
ora ao Legislativo e ainda ora conferindo a competência em matéria or-
çamentaria a ambos poderes em uma espécie de coparticipação, além de
demais alterações em sua matéria e a inserção de previsão de crime de

552
LU I Z A N TÔ N I O R E I S J U N I O R , M A U R I C I O P I R E S G U E D E S , T E L S O N P I R E S ,
VA N E S S A V E L A S C O, H E R N A N D E S B R I TO R E I S ( O R G . )

responsabilidade do Presidente à violação da Lei Orçamentária. (GIACO-


MONI, 2009, p. 40-45)
Conforme descrições histórico-doutrinárias outro marco ao desen-
volvimento do orçamento se deu com o advento da Lei 4.320/1964 e do
Decreto-Lei 200/1967 que introduziram o modelo de orçamento pro-
grama no Brasil consagrando a integração entre o orçamento e o plane-
jamento público. O orçamento-programa possuiu como característica a
vinculação do orçamento ao planejamento, sendo que devem ser obser-
vadas as necessidades e déficts sociais existentes antes de dividir receitas e
firmar despesas.
A Constituição de 1988, por sua vez, acabou por instituir de vez o
orçamento-programa em solo brasileiro regulamentando a matéria orça-
mentária. Não por acaso seu art. 174 estabelece ao Estado a função de
planejamento, ao passo que o Decreto 200/67 o apresenta como um prin-
cípio fundamental à atividade da Administração.
O planejamento possui como função a coordenação das atividades es-
tatais significando ainda a escolha de prioridades. É um processo político
de definição das bases sobre as quais repousaram a atividade do Estado.
Por tal razão, um Estado Orçamentário que autoriza a entrega de presta-
ções diversas como transporte, saúde, seguridade, educação, e fixa receitas
seja de ordem fiscal ou patrimonial, conseguindo orientar a promoção do
desenvolvimento econômico e da própria economia, corresponde a um
Estado de Planejamento.
Considerando o planejamento orçamentário imposto pela ordem
Constitucional a atual Carta Política através de seu art. 165 suscita que
o Congresso Nacional por meio de iniciativa vinculada e privativa do
Poder Executivo devem fixar três planejamentos orçamentários, saber:
a Lei Orçamentária Anual – LOA, o Plano Plurianual-PPA e a Lei de
Diretrizes Orçamentária – LDO, essas duas últimas não previstas na
Constituição anterior.
O Plano Plurianual, conforme leitura do texto constitucional, estabe-
lece objetos e metas governamentais de quatro em quatro anos, sendo sua
proposta realizada no segundo ano do mandato presidencial com validade
até o final do primeiro ano do próximo governo, descrito ainda como um
mecanismo de longo prazo de controle à estabilidade da economia e do
equilíbrio entre as diversas regiões do país.

553
DIMENSÕES JURÍDICAS DAS POLÍTICAS PÚBLICAS – VOL. 1

A Lei de Diretrizes Orçamentárias, por sua vez compatibiliza o PPA e


a LOA, ao passo que nos termos do art. 165, §2. da CF/88 a LDO orien-
tará a elaboração da LOA, tratará de metas e prioridades da administração
pública federal, de alterações na legislação tributária e estabelecerá políticas
para agencias financeiras oficiais de fomento. (BRASIL, CF, art. 165,§ 2.)
Portanto, quatro são suas atribuições principais: definição de metas e
prioridades do governo para cada exercício; estabelecer as regras que serão
observadas na elaboração e na execução do orçamento anual; dispor de
alterações no que pertine à legislação tributária e estabelecer a politica a
ser aplicada às agencias financeiras de fomento que nada mais são do que
os bancos públicos como o BNDES, BNB o Banco do Brasil e a Caixa
Econômica Federal, agências que em razão de seu poderio podem, com
mecanismos como empréstimos à empresas e organizações sociais, alavan-
car o desenvolvimento do país de forma social e econômica.
A lei em cometo ainda (LDO) avaliará os resultados de programas
custeados com a verba pública, observará o equilíbrio entre receitas e des-
pesas, a limitação de emprenho e o contingenciamento, devendo ser in-
tegrada ainda de um Anexo de Metas Ficais e Anexo de Riscos Fiscais
onde serão avaliados os riscos com potencialidade de afetar as contas pú-
blicas e os passivos contingenciais, informando o que pode ser feito, quais
providências podem ser tomadas caso as potencialidades se concretizem.
(BRASIL, LC n. 101/2000, art.4.)
Por fim, a Lei Orçamentária Anual é elaborada com base nas diretri-
zes do Plano Plurianual e ajustes fornecidos pela Lei de Diretrizes orça-
mentárias, abrange o orçamento fiscal, o investimento das empresas e da
seguridade social, nos termos do art. 165, §5. da CF/88, tendo validade
para o exercício financeiro seguinte.
A LOA é norma descritiva que estima receita e fixa despesa refletindo
o plano de trabalho do governo e a política econômico-financeira adotada.
Além do conteúdo constitucional, outra lei de extrema importância
para compor o cenário orçamentário da país diz respeito à Lei de Respon-
sabilidade Fiscal – LRF, a qual trata da questão orçamentária estabelecen-
do conteúdo de finanças públicas sob o enfoque da responsabilização na
gestão fiscal.
O planejamento estatal, portanto, se vale de leis orçamentárias para
determinar as receitas e despesas necessárias ao funcionamento do Estado

554
LU I Z A N TÔ N I O R E I S J U N I O R , M A U R I C I O P I R E S G U E D E S , T E L S O N P I R E S ,
VA N E S S A V E L A S C O, H E R N A N D E S B R I TO R E I S ( O R G . )

e como leis em sentido formal, a elaboração do orçamento, deve passar


pelo crivo do Poder Legislativo que deve discutir e aprovar as propostas
realizadas pelo Poder Executivo fazendo às vezes de uma espécie de ente
controlador e fiscalizador.
Porém, embora possa-se pensar que o Legislativo ostente posição pri-
vilegiada na dinâmica orçamentária, segundo descreve Amico (2016, p.
88), os parlamentares que veriam controlar os gastos do Executivo por
diversas vezes acabam por satisfazerem os seus interesses, em virtude de
apoio financeiro durante as campanhas políticas, de modo que o interesse
público sucumbe ao jogo de interesses políticos e as dotações orçamen-
tárias são direcionadas para setores que não visam suprir a necessidade
pública, de forma que a execução orçamentária se desvia de sua finalidade
precípua de atendimento à demanda social, impedindo a concretização de
direitos sociais conquistados no texto legal.
Não bastante, embora seja sabido no âmbito jurídico que boa parte
do orçamento da União Federal é predominantemente vinculado com a
existência de gastos obrigatórios previstos constitucionalmente e vincu-
lação de receitas, existem ainda falhas no próprio sistema orçamentário
que através de uma transmutação de institutos legais possibilitam a sua
inobservância.
O que aponta a doutrina como uma das falhas orçamentárias é a falta
de execução das despesas inicialmente previstas, por uma superestima de
despesas obrigatórias, ou seja, as despesas obrigatórias são calculadas sa-
bidamente a maior do que em verdade demandarão do Estado, a fim de
buscar um superávit primário, implicando em prejuízo para a população que
seria favorecida anteriormente com investimentos. (CONTI e SCAFF,
2011, p. 993)
A possibilidade de alteração demasiada da previsão orçamentária não
pela divergência entre o previsto e o efetivamente arrecadado, mas por
iniciativa estratégica para o alcance da meta fiscal ou promoções politico-
-partidárias para a realização de obras, deflagra uma situação de ausência
de segurança jurídica, além de descredito da população que passa a não
saber quais parcelas do orçamento serão de fato cumpridas e implementa-
das pelo governo.
Outra problemática no que tange ao orçamento público brasileiro
atual diz respeito à sua linguagem. Por se tratar de instrumento que pre-

555
DIMENSÕES JURÍDICAS DAS POLÍTICAS PÚBLICAS – VOL. 1

vê a aplicação dos recursos públicos obtidos através de toda a sociedade,


deveria o orçamento se revestir de clareza e transparência. Contudo, na
prática tal preceito se mostra de difícil observância já que exatamente
por desempenhar vários papéis o orçamento público possui uma lin-
guagem mais técnica e complexa, mais acessível a especialistas do que
a população em geral, verdadeira interessada no cumprimento da peça
orçamentária.
Por tal razão, diversas vezes, embora o texto constitucional preveja a
realização do orçamento com base em um planejamento voltado para uma
ação de resultado, o orçamento público atual é apontado como mera peça
contábil revestida da lei já que existem reiteradas distorções entre as suas
previsões e sua realização prática, ao mesmo tempo que seu instrumento
não goza de transparência e de clareza aptas a torna-lo acessível a toda
sociedade, sua maior interessada.

2. INSTITUTOS E TÉCNICAS JURÍDICAS PARA A


UTILIZAÇÃO DO PRÓPRIO ORÇAMENTO PÚBLICO
COMO INSTRUMENTO DE CONCRETIZAÇÃO DOS
DIREITOS SOCAIS PRESTACIONAIS.

A própria Constituição Federal de 1988 há mais de 20 anos já previu


regramentos no bojo de seu texto constitucional para a utilização do da
ordem financeira como um mecanismo de promoção de direitos, dentre
os quais a título de exemplo cita-se o art. 165 e seguintes que vislumbram
a adoção do orçamento-programa e mesmo o art. 170 que ao normatizar
sobre os princípios da ordem financeira refere os ditames de justiça social
e a asseguração da existência digna do indivíduo.
Contudo, conforme bem sintetiza Mariane Natal (2015, p.52) “não
basta um mero planejamento, deve ser um planejamento responsável, o
qual, com base no art. 1º, §1º da Lei de Responsabilidade Fiscal requer
um conjunto de ações transparentes.”
No Brasil no processo de realização de escolhas até meados do sécu-
lo XX sequer era voltado para atividade de planejar, não bastante falta à
sociedade uma cultura de debate orçamentário, correspondente a ciência
de que é necessário que a população participe das discussões a respeito de
orçamento público.

556
LU I Z A N TÔ N I O R E I S J U N I O R , M A U R I C I O P I R E S G U E D E S , T E L S O N P I R E S ,
VA N E S S A V E L A S C O, H E R N A N D E S B R I TO R E I S ( O R G . )

Tal situação é agravada ainda pela linguagem técnica e pouco acessível


do orçamento já apresentada anteriormente, contudo com o intuito de
promover a efetivação de direitos, sobretudo sociais, um dos institutos ju-
rídicos frequentemente trazidos à tona diz respeito à possibilidade de um
orçamento participativo.
O orçamento participativo seria caracterizado por quatro elementos,
sendo eles a delegação de poderes do Prefeito para Assembleia Regionais
e Temáticas, a combinação de diferentes elementos de participação com
conselheiros eleitos ou participação direta, a regulação realizada pelos pró-
prios participantes, portanto, autorregulação e o confronto entre a partici-
pação a as decisões técnicas. (AVRITZER, 2005, p. 56).
A experiência de um orçamento participativo, como bem coloca
Marcelo Minghelli, embora não traduza uma vinculação das escolhas
orçamentárias àquelas decididas pela comunidade, formalizam uma
pressão popular tendo em vista que confere maior publicidade ao orça-
mento, ao menos em tese, podendo constranger o governante a ter mais
responsividade, fazendo escolhas que priorizem a sociedade. (MIN-
GHELLI, 2009, p.116)
Embora não seja objeto da pesquisa estudar a fundo tal instituto,
esse mecanismo governamental no qual os cidadãos podem influenciar
ou decidir sobre orçamento público tem ganhado espaço no debate como
alternativas à concretização dos direitos sociais e tem sido aplicado em
solo brasileiro, demonstrando compatibilidade e harmonia com nosso or-
denamento, muito embora seja aplicado apenas na esfera municipal, até o
presente momento, em razão até mesmo das dificuldades de representati-
vidade e participação de inúmeras pessoas e em extenso território.
Retornando à analise quanto a existência de mecanismos que permi-
tam a utilização do próprio orçamento público como um instrumento de
concretização de direitos, no que se refere à legislação infraconstitucional,
a partir do desenvolvimento do estudo geral sobre o atual orçamento pú-
blico brasileiro realizado no tópico anterior, infere-se a existência de nor-
mas que visam a utilização do orçamento público como um instrumento
de concretização de direitos, promoção de desenvolvimento e redução de
desigualdades, como por exemplo as próprias leis orçamentárias (PPA,
LDO e LOA, além da Lei de Responsabilidade Fiscal), mas há na prática
uma transmutação ou subversão dos institutos jurídicos ali previstos para

557
DIMENSÕES JURÍDICAS DAS POLÍTICAS PÚBLICAS – VOL. 1

atender vontades diversas, de forma que a flexibilidade legal, inicialmente


prevista para propiciar uma atuação prática e realista no cumprimento do
orçamento que está sujeito a diversas variáveis, é utilizada como peça po-
lítica ou mesmo como estratégia para o cumprimento de metas fiscais em
detrimento da concretização de direitos sociais, impedindo que o próprio
orçamento público seja utilizado como instrumento efetivador de direitos,
em razão de suas falhas humanas e legislativas.
No debate entre a flexibilização das leis orçamentárias e a existência de
uma gestão orçamentária que garanta resultados e desempenho, a natureza
da legislação orçamentaria é apontada por diversos juristas como fator que
possibilita a subversão dos institutos legais previstas e impede que o orça-
mento público seja lançado a instrumento efetivador de direitos sociais.
Não há, contudo um consenso doutrinário quanto a natureza jurídica
do orçamento público, o qual por vezes é considerado lei apenas em sen-
tido formal, lei em sentido formal e material, ato administrativo ou ainda
ato condição em determinadas situações.
A discussão jurídica quanto à natureza da lei orçamentária é de
longa data tendo surgido inicialmente da divergência entre os juris-
tas alemães Hoennel e Laband. Para Hoennel o orçamento seria lei
material, mesmo que possuísse uma vigência limitada no tempo, já que
era fruto da atividade legiferante e a forma da lei traria em si mesma
seu conteúdo jurídico, conceito hoje já superado em razão da separação
da diferenciação entre lei em sentido formal e lei em sentido material.
(DANTAS, 2015, p. 5)
Em sentido contrário à teoria acima referida, Laband defendia que
o orçamento seria lei em sentido formal e que não poderia ser encarado
como uma lei em sentido material somente por se revestir de forma de lei.
Para o jurista o orçamento, portanto teria extrinsecamente a forma de lei
e quanto ao seu conteúdo seria mero ato administrativo.
Atualmente, apesar da ausência de consenso, ainda prevalece na dou-
trina pátria é a interpretação que considera o orçamento apenas lei em
sentido formal ou seja lei autorizativa não o enquadrando como lei im-
positiva ou material em razão da inexistência de obrigatoriedade em suas
previsões, não sendo apto, portanto à criação de direitos subjetivos.
Contudo, a doutrina moderna de até mesmo o Supremo Tribunal
Federal de forma reiterada vem apontando que a compreensão do orça-

558
LU I Z A N TÔ N I O R E I S J U N I O R , M A U R I C I O P I R E S G U E D E S , T E L S O N P I R E S ,
VA N E S S A V E L A S C O, H E R N A N D E S B R I TO R E I S ( O R G . )

mento como lei meramente autorizativa não se coaduna mais com o con-
junto de valores e diretrizes traçadas por nosso ordenamento, sobretudo
no panorama constitucional. O orçamento, portanto, deixa de ter caráter
meramente autorizativo passando a ter caráter determinante ou mesmo
impositivo.
O art. 174 da Constituição Federal estabelece que cabe ao Estado
exercer dentre outras funções a de planejamento e, no mesmo viés, o pla-
nejamento não é elaborado para indicar os rumos possível ao setor público,
mas para determiná-los. Tais considerações, apresentadas sob o contexto
da necessidade de concretização de direitos valendo-se da realização de
escolhas sobre a destinação da verba pública, delineada pela própria Cons-
tituição Federal e por diversas leis infraconstitucionais, trazem à tona a
realização de um orçamento impositivo, indicando este como outro insti-
tuto jurídico para a efetivação de direitos que utiliza o próprio orçamento
público. (MOURA, 2016, p.60)
Pelas razões acima já descritas a ordem constitucional e a própria na-
tureza do orçamento público brasileiro seriam ao menos em tese compa-
tíveis com o orçamento impositivo, bastando para a sua implementação o
cumprimento das disposições legais já previstas em solo pátrio, acrescido
de um aperfeiçoamento no tocante a imposição de obrigações.
Importante pontuar que não é objeto do presente trabalho defender
a aplicação de qualquer modelo orçamentário, de forma que não se alisa a
fundo os prós e contras do orçamento impositivo caso adotado em todo o
orçamento público brasileiro, contudo o que se verifica é que o orçamen-
to público impositivo se revela como outro instituto jurídico existente,
compatível (ao menos em tese) com os preceitos do ordenamento jurídico
brasileiro e que é frequentemente citado pelos juristas como uma modali-
dade que permitiria o uso do próprio orçamento para uma concretização
de direitos mais eficaz.
A criação de portais de transparência bem como a criação e a aprova-
ção da Lei de Responsabilidade Fiscal para florescer uma cultura de uma
disciplina fiscal também são mecanismos dentro do contexto orçamen-
tário para a concretização de direitos que já se encontra no ordenamento
jurídico pátrio.
No que se refere ao campo internacional, diversos outros países nos
últimos anos desenvolveram esforços para melhorar a gestão da coisa pú-

559
DIMENSÕES JURÍDICAS DAS POLÍTICAS PÚBLICAS – VOL. 1

blica e alcançar um equilíbrio financeiro e orçamentário, não podendo a


Brasil ficar alheio a tais experiências, sobretudo às experiências realizadas
por países industrializados e em desenvolvimento.
Um sistema de controle de desempenho com gestão de contratos,
prêmio nacional de qualidade, relatórios anuais e a preocupação com a
diminuição das despesas, porém com uma administração voltada para re-
sultados e melhoria dos serviços governamentais, foram medidas adota-
das pela Dinamarca, ao passo que o redirecionamento do orçamento para
atividades de erradicação da pobreza, análise de riscos e promessas bem
como a soma de esforços para também proporcionar a melhoria dos ser-
viços públicos foram medidas adotadas pelo Peru. (SAUAIA; BARBOSA
in SANTIAGO, 2014, p. 92-93)
Já a Armênia alcançou baixos índices inflacionários e estabilidade
cambial com a realização de reformas orçamentárias, maior transpa-
rência em suas despesas, maior arrecadação de tributos e uso eficiente
de recursos. Contudo, sua politica restritiva de gastos não solucionou a
problemática existente quanto à alocação de recursos públicos em gas-
tos fundamentais como saúde e educação, podendo comprometer seu
desenvolvimento econômico.(SAUAIA; BARBOSA in SANTIAGO,
2014, p. 95)
Note-se, portanto que diversas são as técnicas e os institutos existen-
tes para que se lance mão do orçamento público como um instrumento
promotor de direitos, sendo que alguns institutos já se encontram presen-
tes (senão de forma desenvolvida, ao menos em suas bases) no ordena-
mento jurídico brasileiro, ao mesmo tempo em que outros são estranhos
ao cenário nacional.
Desta forma, embora seja possível voltar olhar para o orçamento pú-
blico percebendo-o como um mecanismo de efetivação dos direitos so-
ciais, com as diretrizes jurídicas para tanto já previstas no atual ordena-
mento pelo menos em sua forma básica, constata-se que há muito ainda
o que aprimorar para existir de fato em solo pátrio um orçamento público
que seja instrumento de efetivação dos direitos sociais.
Cabe ao Estado uma mudança de atitude e à academia a desenvoltura
de cada vez mais pesquisas e estudos quanto a matéria a fim de que em
um futuro ainda que distante seja possível falar em uma real efetivação de
direitos em razão de um planejamento público e orçamentário eficaz.

560
LU I Z A N TÔ N I O R E I S J U N I O R , M A U R I C I O P I R E S G U E D E S , T E L S O N P I R E S ,
VA N E S S A V E L A S C O, H E R N A N D E S B R I TO R E I S ( O R G . )

CONCLUSÃO

O presente estudo procurou identificar se é necessário e se existe no


atual ordenamento jurídico brasileiro institutos jurídicos capazes de con-
duzir o próprio orçamento público como um instrumento efetivador de
direitos sociais.
Após as análises e apontamos realizados percebeu-se que desde a sua
criação e promulgação a própria Carta Magna brasileira, em seu texto,
institui a ordem financeira como um mecanismo de promoção de direi-
tos, de modo que é possível dizer que o mandamento constitucional sem-
pre previu a utilização do orçamento público voltado para uma promoção
de direitos ou conforme apresentado na pesquisa, uma ação de resultados.
Contudo, a pesquisa demonstrou de outro lado que não bastan-
te existam diversos mecanismos promotores da efetivação dos direitos
sociais através do próprio orçamento público, outros institutos exis-
tentes e aplicáveis para tal fim ainda carecem de adoção pela legislação
brasileira, sobretudo se comparado o orçamento público pátrio com as
medidas orçamentárias já em vigência em outros países industriais e
em desenvolvimento.
Ademais vigora ainda, no atual cenário orçamentário brasileiro, di-
versas falhas que possibilitam a transmutação de institutos previstos ou sua
inobservância, sendo a legislação utilizada estrategicamente para o alcance
de metas fiscais ou promoções político-partidárias, o que acaba desenvol-
vendo ausência de segurança jurídica, descrédito governamental e a inal-
cançabilidade dos objetivos inicialmente propostos.
Assim, por todo o exposto, conclui-se que embora exista no atual or-
denamento jurídico brasileiro as diretrizes para a utilização do próprio or-
çamento pública como um instrumento de efetivação dos direitos sociais,
sua colocação em prática, embora possível, exigirá muito mais do Estado
do que o que tem sido realizado.

REFERÊNCIAS

AMARAL, Gustavo. Direito, escassez & escolha: em busca de cri-


térios jurídicos para lidar com a escassez de recursos e as decisões
trágicas. Rio de Janeiro: Renovar, 2001

561
DIMENSÕES JURÍDICAS DAS POLÍTICAS PÚBLICAS – VOL. 1

______; MELO, Danielle. Há direitos acima dos orçamentos? In: SAR-


LET, Ingo Wolfgang; TIMM, Luciano Benetti. Direitos funda-
mentais: orçamento e reserva do possível. 2. ed., rev. e ampl.
Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2010.

AMICO, Carla Campos. Direitos fundamentais sociais e orçamento


público: das escolhas político-administrativas ao controle de
constitucionalidade concentrado. 203 f. Dissertação (Mestrado
em Direito) – Centro de Ciências Sociais Aplicadas.Universidade
Federal do Rio Grande do Norte. Natal: Repositório UFRN, 2016.

ANDERSON, 1995. Balanço do neoliberalismo. In.: Emir Sader & Pa-


blo Gentili (orgs.), Pós-neoliberalismo: as políticas sociais e o
Estado democrático. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1995.

AVRITZER, Leonardo. New public spheres in Brazil. In.: Revista


Direito GV. Rio de Janeiro: FGV, 2005.

BARROS, Maurício. Orçamento e Discricionariedade. In: CONTI,


José Mauricio; SCAFF, Fernando Facury (Coord.). Orçamentos
Públicos e Direito Financeiro. São Paulo: Editora Revista dos
Tribunais, 2011.

BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 23. ed. São


Paulo: Malheiros, 2008.

BRASIL. Constituição Federal de 1988. Promulgada em 5 de outu-


bro de 1988. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/
constituicao/constituicao.htm>. Acesso em: 31/08/2017.

______. Constituição da República Federativa do Brasil. 24 jan. 1967.


Disponível em:<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constitui-
cao/Constituicao.htm>. Acesso em: 2/10/2017.

______. Decreto-Lei n. 200. 24. fev. 1967. Dispõe sobre a organização


da Administração Federal, estabelece diretrizes para a Refor-
ma Administrativa e dá outras providencias. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/Del0200.htm>.
Acesso em: 28/09/2017.

562
LU I Z A N TÔ N I O R E I S J U N I O R , M A U R I C I O P I R E S G U E D E S , T E L S O N P I R E S ,
VA N E S S A V E L A S C O, H E R N A N D E S B R I TO R E I S ( O R G . )

______. Lei Complementar nº 101/2000, de 04 de mai. de 2000. Estabe-


lece normas de finanças públicas voltadas para a responsabili-
dade na gestão fiscal e dá outras providências.

______. Lei n. 4.320, de 17 de março de 1964. Estatui Normas Gerais


de Direito Financeiro para elaboração e controle dos orça-
mentos e balanços da União, dos Estados, dos Municípios e
do Distrito Federal. Brasília, DF, 23 mar. 1964. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L4320.htm>. Acesso
em: 08/09/2017.

BUCCI, Maria Paula Dallari. Políticas Públicas e Direito Adminis-


trativo. Brasília a. 34 n. 133 jan./mar, 1997.

CABALLERO HARRIET, Francisco Javier. Algunas claves para ou-


tra mundialización. Tradução livre. Santo Domingo: Fundación
Global Democracia y Desarrollo, 2009.

CHRISTOPOULOS, Basile Georges Campos. O orçamento públi-


co e a efetivação dos direitos sociais. In: Congresso Nacional do
Conpedi, XVIII, 2009, São Paulo – SP, Anais. São Paulo - SP, 2009.

CONTI, José Mauricio. Planejamento e responsabilidade fiscal. In:


SCAFF, Fernando Facury; CONTI, José Mauricio. Lei de Res-
ponsabilidade Fiscal: 10 anos de vigência – questões atuais.
Florianópolis: Conceito Editorial, 2010.

______. SCAFF, Fernando Facury, Orçamentos públicos e direito fi-


nanceiro - São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011.

CRUZ, Luiz Guilherme de O. Maia. Filosofia orçamentária: o exer-


cício da cidadania pela via do orçamento. Revista de Direito
da Associação dos Procuradores do Novo Estado do Rio de Janeiro,
Rio de Janeiro: Lumen Juris, n. 8, 2001.

DANTAS, Sarah Jéssica Aguiar Bezerra.Da (não) vinculação do orça-


mento publico: uma abordagem quanto à Natureza Jurídica
das Leis Orçamentárias. Floriano: GeECont, v. 2, n. 2, 2015.

563
DIMENSÕES JURÍDICAS DAS POLÍTICAS PÚBLICAS – VOL. 1

FARIA, Rodrigo Oliveira de. Natureza Jurídica do Orçamento e


Flexibilidade

Orçamentária. 288 f. Dissertação (Mestrado em Direito) . Universidade


de São Paulo. São Paulo: Biblioteca Digital –USP, 2009.

GALDINO, Flávio. O Custo dos Direitos. In: TORRES, Ricardo


Lobo (org.). Legitimação dos Direitos Humanos. Rio de Janeiro:
Renovar, 2002.

GIACOMONI, James. “Orçamento impositivo! É possível torná-


-lo realidade?”. Revista do Tribunal de Contas do Estado do Paraná,
Curitiba:[s.n], v. 145, jan./mar, 2003.

______. Orçamento Público. 6. ed. São Paulo: Atlas, 2000.

______. Orçamento Público, 14. ed. São Paulo: Atlas, 2007.

______. Orçamento Público. 14 ed. São Paulo: Atlas, 2009.

GONTIJO, Vander. Orçamento impositivo, contingenciamento e


transparência. Consultoria de Orçamento e Fiscalização Finan-
ceira da Câmara dos Deputados. Nota Técnica n. 01/2011. Brasília.
[S.I.]: Câmara Legislativa, 2011. Disponível em: <http://bd.camara.
leg.br/bd/handle/bdcamara/11312>. Acesso em: 02/10/2017.

HARADA, Kiyoshi. Direito Financeiro e Tributário. 19. ed. São Paulo:


Atlas, 2010.

KANAYAMA, Rodrigo Luis. Direito, política e consenso: a escolha


eficiente de políticas públicas. 218 f. Tese (Doutorado em Direi-
to) – Universidade Federal do Paraná. Curitiba: [s.n], 2012.

LOPES, José Reinaldo de Lima. Em torno da reserva do possível. In:


SARLET, Ingo Wolfgang; TIMM, Luciano Benetti. Direitos fun-
damentais: orçamento e reserva do possível. 2. ed., rev. e ampl.
Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2010.

______. Em torno da reserva do possível. In: SARLET, Ingo Wolfgang;


TIMM, Luciano Benetti (Orgs.). Direitos fundamentais: orçamento
e reserva do possível. Porto: Alegre: Livraria do Advogado, 2008.

564
LU I Z A N TÔ N I O R E I S J U N I O R , M A U R I C I O P I R E S G U E D E S , T E L S O N P I R E S ,
VA N E S S A V E L A S C O, H E R N A N D E S B R I TO R E I S ( O R G . )

MINGHELLI, Marcelo. Estado e Orçamento: uma cartografia jurídi-


co-política para a consolidação de um orçamento democráti-
co. Tese (Doutorado em Direito) –Universidade Federal do Paraná.
Curitiba: [s.n], 2009. Disponível em: <http://dspace.c3sl.ufpr.br/ds-
pace/bitstream/1884/19858/1/Marcelo.pdf>. Acesso em 20/10/2017.

MOURA, Caior Marrul. Orçamento Impositivo e a Constituição.


76 f. Monografia (Especialização em Direito). Instituto Brasileiro de
Direito Público. Brasília: IDP, 2016.

NASCIMENTO, Carlos Valder do. Lei complementar n. 101, de 4 de


maio de 2000. In: MARTINS, Ives Gandra da Silva; NASCIMEN-
TO, Carlos Valder do. Comentários à Lei de Responsabilidade
Fiscal. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 2011.

NATAL, Mariane. Reserva do possível: o dilema econômico na


concretização de direitos. Dissertação (Mestrado em Direito) –
Pontifícia Universidade Católica do Paraná. Curitiba: [s.n], 2015

SANTIAGO, Marcus Firmino. Desjudicialização do Debate sobre


Efetividade dos Direitos Sociais. SANTIAGO, Marcus Firmino
(Org.) Brasília: IDP, v. 2, 2014.

SANTOS, Rita de Cássia. Plano plurianual e orçamento público.3.


ed. rev. ampl. –

Florianópolis : Departamento de Ciências da Administração/ UFSC;


Brasília : CAPES:UAB, 2015.

SCHMIDT, João Pedro. Para entender as políticas: aspectos concei-


tuais e metodológicos. In: REIS, Jorge Renato; LEAL, Rogério
Gesta (Org.). Direitos sociais e políticas públicas: desafios contemporâ-
neos. Santa Cruz do Sul: EDINUSC, 2008.

SGARBOSSA, Luís Fernando. Crítica à teoria dos custos dos direitos.


Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2010.

SILVA, Lino Martins da. Contabilidade Governamental: um enfo-


que administrativo. 5. Ed. São Paulo: Editora Atlas, 2002.

565
DIMENSÕES JURÍDICAS DAS POLÍTICAS PÚBLICAS – VOL. 1

SILVA, Moacir Marques. A logica do planejamento público à luz da Lei


de responsabilidade fiscal. In: CONTI, José Mauricio; SCAFF, Fer-
nando Facury (coord.) Orçamentos públicos e direito financei-
ro. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011.

SLOMSKI, Valmor. As Despesas Públicas no Orçamento: Gasto


Público Eficiente e a Modernização da Gestão Pública. In:
CONTI, José Mauricio; SCAFF, Fernando Facury (Coord.). 2014,
p. 1003.

TEIXEIRA, Elenaldo Celso. O orçamento público como instru-


mento político. Cadernos do CEAS. Salvador: [s.n], nº 149, 1994.

TORRES, Ricardo Lobo. O orçamento na Constituição. Rio de Ja-


neiro: Renoar, 1995.

566
OS DIREITOS SOCIAIS E A POLÍTICA
PÚBLICA NA AGENDA DOS PODERES
Mariza Rios91
Thaís Durães Mol92

INTRODUÇÃO

O presente ensaio tem por objetivo fazer uma leitura crítica sobre a
permanente demanda de realização da política pública nas agendas dos
poderes executivo e judiciário buscando responder ao déficit de efetivida-
de da política pública no campo dos direitos humanos.
O desenvolvimento de um país não se dá somente através de aquisi-
ção de poder econômico, ou expansão territorial, vai muito além. A prin-
cipal característica do ponto de vista social, é igualdade entre os cidadãos,
uma qualidade de vida boa, bem como a paz na comunidade. Para que
isso tudo ocorre necessita-se de uma boa gestão e administração social por
parte dos governantes, do poder legislativo, executivo e judiciário.
Nesse contexto busca-se em primeiro lugar recuperar, sob o olhar da
construção e inclusão dos direitos sociais nas constituições nacionais no
rol dos direitos fundamentais sociais. O que, sem sobra de dúvidas, passa

91 Pesquisadora em Direitos Humanos, Jurisdição e Adoção de Políticas Públicas. Associada


ao grupo “Global Law Comparative Group: Economics, Biocentrism Innovation and Gover-
nance in the Anthropocene World”. Associada ao grupo de pesquisa “Ecologia Integral” da
Universidade UNISINOS, a partir de 2019. Professora da Escola Superior Dom Helder Câma-
ra. Professora visitante na Universidade Complutense de Madrid.
92 Graduanda em Direito pela Escola Superior Dom Helder Câmara (ESDHC).

567
DIMENSÕES JURÍDICAS DAS POLÍTICAS PÚBLICAS – VOL. 1

a questionar as funções públicas na construção e Realização de políticas


públicas capazes de impactar a relização desses direitos no que concerne
as suas obrigações com as políticas públicas, no Estado Democrático de
Direitos. Em seguida, se ocupa o texto do debate sobre possibilidades e
limites desses direitos quando de sua realização pelos poderes executivos
e judiciário e, por fim, acredita as autoras de que o caminho do diálogo
pode ser inovador para a realização dos direitos humanos de caráter social
e, por consequência da política pública. Por essa razão, o tipo escolhido de
pesquisa é jurídico sociológico qualitativo utilizando o método dedutivo.

1 A POLÍTICA PUBLICA COMO INSTUMENTO DE


REALIZAÇÃO DOS DIREITOS SOCIAIS FUNDAMENTAIS

1.1 Recuperando conceitos e funções:

A sociedade no capitalismo industrial era dividida por classes sociais


que ocupavam posições de denominação ou de subordinação na hierar-
quia social. Essa hierarquia se dava conforme a condição econômica de
cada pessoa. A consequência disso foram as inúmeras violações de direi-
tos e da dignidade da pessoa humana, dos direitos dos trabalhadores, por
exemplo, nas fábricas, os direitos das mulheres, das crianças, ou seja, havia
a ausência de Direitos a população e de Direitos Humanos. A classe que
mais sofria com estes fatos eram as de baixa renda.
O Estado como garantidor da sociedade, era omisso em relação a essa
população mais pobre, uma vez que favorecia quem mais poder econômi-
co tinha. Com o Estado brasileiro não foi diferente, seu caráter era elitista,
autoritário e centralizador, focado sempre na reprodução de capital e no
controle econômico. Mas, a segunda metade da década de 80, período da
redemocratização do pais, é perceptível, no campo legislativo, a inclusão
de direitos na Constituição Federal de 1988 que apontam para duas fren-
tes improntes no campo dos direitos humanos: inclusão de novos direitos
e, no campo de efetividade, a luta por realização desses direitos. Contudo,
nos dias atuais ainda é bem nítida , parte do estado, uma ineficiente atua-
ção publica no campo a relização da política pública .
Em síntese podemos afirmar que, se pôr uma devoção industrial,
se implantou um modelo predatório de negação de direitos, por outro, a

568
LU I Z A N TÔ N I O R E I S J U N I O R , M A U R I C I O P I R E S G U E D E S , T E L S O N P I R E S ,
VA N E S S A V E L A S C O, H E R N A N D E S B R I TO R E I S ( O R G . )

população começou a tomar consciência de seus direitos, e começaram as


movimentações sociais na luta para conquistarem seus direitos, os quais o
Estado não supria. É nesse movimento em que surge as lutas pelos Direi-
tos Sociais, forçando o Estado a atender as demandas sociais. Isso ocorre
através de novas formas de organização social e de exercício da cidadania,
uma vez que a população questionava o autoritarismo do Estado e a sua
omissão perante a população de baixa renda.
Os Direitos Sociais consistem em todos os direitos fundamentais, co-
letivos e difusos, e garantidores do básico para toda a sociedade de forma
igual. Ou seja, o direito social, busca solucionar todas as demandas da
comunidade, representadas pela desigualdade estrutural, que vem se per-
petuando desde os tempos antigos.
Diante dos problemas vividos pela sociedade, muitas pessoas buscaram
o enfrentamento ao Estado, e lutaram por uma vida mais digna. Graças a
vários movimentos sociais, presentes no mundo todo, atualmente possuí-
mos vários direitos sociais positivados em constituições nacionais e tratados
internacionais . A primeira previsão positivada destes direitos foi na Decla-
ração Universal dos Direitos Humanos em 1948 criada e proclamada pela
Assembleia Geral das Nações Unidas, e no Pacto Internacional dos Direitos
Econômicos, Sociais e Culturais (1966), que consistem em acordos que ser-
vem de base para a formulação da Constituição Federal do Brasil.
O Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais
(1966) traz em seu artigo 2º, §1º, é bastante ilustrativa dessa categoria de
direitos, segundo Maria Paula Dallari Bucci:

Artigo 2º §1º. Cada Estado Membro no presente Pacto compro-


mete-se a adotar medidas, tanto por esforço próprio como pela
assistência e cooperação internacionais, principalmente nos planos
econômico e técnico, até o máximo de seus recursos disponíveis,
que visem a assegurar, progressivamente, por todos os meios apro-
priados, o pleno exercício dos direitos reconhecidos no presente
Pacto, incluindo, em particular, a adoção de medidas legislativas.
(BUCCI, 2006, p. 6)

Com a criação deste pacto outros acontecimentos foram dando se-


guimento a proteção dos direitos humanos, como demonstra o autor Fla-

569
DIMENSÕES JURÍDICAS DAS POLÍTICAS PÚBLICAS – VOL. 1

vio Konder Comparato, em seu livro “A Afirmação Histórica dos Direi-


tos Humanos”:

Completava-se, assim, a segunda etapa do processo de institucio-


nalização dos direitos do homem em âmbito universal e dava-se
início à terceira etapa, relativa à criação de mecanismos de sanção
às violações de direitos humanos. Nesse particular, porém, a atua-
ção do Comitê de Direitos Humanos restringe-se aos direitos civis
e políticos e, ainda assim, sem que ele tenha poderes para formu-
lar um juízo de condenação do Estado responsável pela violação
desses direitos. Além disso, contrariamente ao que fora estipulado
na Convenção Européia de Direitos Humanos de 1950 2, a com-
petência do Comitê para receber e processar denúncias, mesmo
quando formuladas por Estados-partes, depende de reconheci-
mento expresso do Estado apontado como violador dos direitos
humanos. (COMPARATO, 2003, p.167)

Com a criação desse pacto e de outros, a Constituição Federal brasi-


leira de 1988 incorporou expressamente os Direitos Sociais. Em seu artigo
6º é definido quais são esses direitos, mas isso não significa que este rol é
taxativo, afinal a sociedade está em constantes mudanças, e com elas o
direito também. O artigo 6º da Constituição Federal diz: “Art. 6º São
direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a mora-
dia, o transporte, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à
maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta
Constituição.” (BRASIL, 1988).
Diariamente, a sociedade brasileira demanda novas legislações ou
previsões, para abarcar todos as situações possíveis, com a finalidade de
proteger o cidadão, e melhorar a qualidade de vida de todos. Isso mesmo
com os direitos de todos previstos e respaldados pela Constituição Federal.
Não se trata apenas da concessão de direitos quaisquer, mas sim de direitos
humanos e o ampliamento da democracia.
Contudo, afirmam Rios e Carvalho ( 2018,p. 271) que os direitos
fundamentais, igualdade e liberdade, para chegar ao ponto de equilíbrio
necessitam das forças sociais. Recuperar, portanto, no ambiente de reali-
zação dos direitos humanos, a força social que passa pelo fortalecimento

570
LU I Z A N TÔ N I O R E I S J U N I O R , M A U R I C I O P I R E S G U E D E S , T E L S O N P I R E S ,
VA N E S S A V E L A S C O, H E R N A N D E S B R I TO R E I S ( O R G . )

da participação, do processo democrático” fará a diferença do equilíbrio


entre os poderes executivo, judicial e social e, assim, o diálogo se aponta
como promissor na realização das políticas públicas.
Neste contexto, as políticas públicas entram a fim de suprir essas la-
cunas. Maria Paula Dallari Bucci (2006, p. 39) conceitua políticas públi-
cas como: “programas de ação governamental resultados de um conjunto
de processos (de planejamento de governo, orçamentário, legislativo, ad-
ministrativo e judicial), que objetiva coordenar os meios à disposição do
Estado para a realização de projetos social e politicamente determinados.”
Percebe-se, então, que as políticas públicas são vários conjuntos de
programas, ações e decisões tomadas pelos governos (nacionais, estaduais
ou municipais) com a participação, direta ou indireta, de entes públicos ou
privados que visam assegurar determinado direito de cidadania para vários
grupos da sociedade ou para determinado segmento social, cultural, étni-
co ou econômico. De forma a garantir os direitos de todos que estão pre-
vistos na constituição federal de 1988, principalmente os direitos sociais.
Nesse sentido, as políticas públicas se tornam um importante instru-
mento para a garantia dos direitos, das garantias fundamentais, dos direitos
humanos e do bem estar da população. Direitos humanos que, por sua
vez, em sua própria formulação trás limites que dificultam a realização
dos direitos coletivos e difusos. Desafio que vem sendo enfrentado pela
pesquisa jurídica da atualidade. Aqui vale recordar que os direitos huma-
nos trazem em sua essência o fortalecimento dos direitos individuais que
muitas vezes vão se contrapor aos direitos sociais e, por consequência,
enfraquecer a política pública (RIOS; CARVALHO, 2018).
Então, podemos afirmar que se tem um a conexão importante entre di-
reito e poderes no equilíbrio de sua realização pelo instrumento da política
pública cuja obrigatoriedade e competência recai sobre o poder executivo.
Por fim, para que haja políticas públicas eficientes, e que realmente
garanta os direitos sociais da população brasileira, é necessário que haja a
convergência de dialogo entre as próprias ações ou programas socias com
essa finalidade, e os três poderes. Maria Paula Dallari Bucci pontua essa
reflexão na passagem:

[...] A formulação das políticas públicas cabe, em regra, ao Poder


Executivo, dentro de marcos definidos pelo Poder Legislativo. En-

571
DIMENSÕES JURÍDICAS DAS POLÍTICAS PÚBLICAS – VOL. 1

tretanto, o debate judicial sobre a aplicação de políticas públicas é o


que se revela mais intrinsecamente jurídico, porque é onde se leva
a o limite a questão da vinculatividade, isto é, o poder de coerção
da norma jurídica, em relação ao direito, em especial aos direitos
sociais. E nesse debate se revela, como em nenhum outro, a ca-
racterística ontologicamente particular dos direitos sociais, cuja a
implementação justifica que se considere que o surgimento define
um novo paradigma no cenário jurídico. (BUCCI, 2006, p. 22).

Dessa amaneira, compreendido ser os direitos fundamentais sociais


parta importante da agenda dos poderes, executivo, judicial e social e que
sua realização está condicionada a formulação e realização de políticas pú-
blicas passamos a pensar estas políticas na agenda nos respectivos poderes.

1.2 A política pública nas agendas dos poderes

As Políticas Públicas são ações e programas, que tem como objetivo


principal o bem comum de toda a sociedade, bem como a diminuição
das desigualdades sociais. Esses precisam ser estruturados de maneira que
funcionem com efetividade na prática. Não basta que eles sejam apenas
planos no papel.
Para que isso ocorra as políticas devem ser devidamente planejadas,
ou seja, pensar em algo, ou soluções que sejam viáveis de ocorrer no dia-
-a-dia e através dos recursos financeiros do Estado. Pensando nisso cria-se
um ciclo pelo qual a criação dessas ações até a sua efetivação deve passar.
Esse ciclo perpassa por todos os atores políticos e privados, principalmente
pelo poder executivo e judiciário e com a participação da população.
Inicialmente é feito a formação da agenda, com as prioridades do po-
der público e o planejamento dos acontecimentos seguintes. Em uma re-
portagem acadêmica o engenheiro Danilo Andrade explica essa fase e as
outras fases:

São analisados nessa fase: a existência de dados que mostram a


condição de determinada situação, a emergência e os recursos dis-
poníveis. O reconhecimento dos problemas que precisam ser so-
lucionados de imediato ganha espaço na agenda governamental.
Entretanto, nem tudo que está na agenda será solucionado ime-

572
LU I Z A N TÔ N I O R E I S J U N I O R , M A U R I C I O P I R E S G U E D E S , T E L S O N P I R E S ,
VA N E S S A V E L A S C O, H E R N A N D E S B R I TO R E I S ( O R G . )

diatamente. Saiba que o planejamento é flexível e que a viabili-


zação de projetos depende de alguns fatores. São esses: Avaliação
do custo-benefício; Estudo do cenário local e suas necessidades;
Recursos disponíveis; A urgência que o problema pode tomar por
uma provável mobilização social; e a Necessidade política. Se-
gunda fase: É o momento em que deve ser definido o objetivo da
política, quais serão os programas desenvolvidos e as linhas de ação.
[...] Portanto, a segunda etapa é caracterizada pelo detalhamento
das alternativas já definidas na agenda. Organizam-se as ideias,
alocam-se os recursos e recorre-se à opinião de especialistas para
estabelecer os objetivos e resultados. Terceira fase:  processo de
tomada de decisão - Com as todas as alternativas avaliadas, na ter-
ceira fase se define qual será o curso de ação adotado. Quarta fase:
implementação da política. É o momento em que o planejamento
e a escolha são transformados em atos. É quando se parte para a
prática. O planejamento ligado à organização é transformado
em ação. São direcionados recursos financeiros, tecnológicos,
materiais e humanos para executar a política. Quinta fase: avalia-
ção. É um elemento crucial para as políticas públicas. A avaliação
deve ser realizada em todos os ciclos, contribuindo para o sucesso
da ação. Também é uma fonte de aprendizado para a produção de
melhores resultados. Nela se controla e supervisiona a realização
da política, o que possibilita a correção de possíveis falhas para
maior efetivação. Inclui-se também a análise do desempenho e dos
resultados do projeto. Dependendo do nível de sucesso da política,
o poder público delibera se é necessário reiniciar  o ciclo das
políticas públicas  com as alterações cabíveis, ou se simplesmente
o projeto é mantido e continua a ser executado. (DANILO, 2016)

Nesse sentido, percebe-se que esse processo de implementação de


políticas é longo, e demanda muito esforço dos entes, dos poderes e da
população, para que estes programas de fato funcionem para atender a
sociedade.
Para além desse processo, após elaborada as ações ou programas as
políticas públicas passam pelo controle e avaliação no âmbito do poder
legislativo e do poder executivo, apesar de não ser preponderante a ação do
poder legislativo. Quando uma política é formada e aprovada, ela pode vir

573
DIMENSÕES JURÍDICAS DAS POLÍTICAS PÚBLICAS – VOL. 1

a ser decreto, resoluções, portarias, contratos e convênios administrativos,


o que leva habitualmente a se creditar ao poder executivo o principal locus
de conformação de políticas, tendo esse poder um importantíssimo papel
na confirmação e efetivação das políticas públicas.
Pode-se conceituar as Políticas Públicas como programas de ação go-
vernamental visando a coordenar os meios a disposição do Estado e as
atividades privadas, para a realização de objetivos socialmente relevantes e
politicamente determinados. Políticas públicas são “ metas coletivas cons-
cientes” e, como tais, um problema de direito público, em sentido lato.
(BCCI, 2006, p. 241).
Aqui, vale recordar pensar que a Política Pública nos leva a pelo menos
quatro conexões necessárias. A primeiro se trata do direito e da política no
que concerne a realização dos direitos sociais, constituídas no campo da
política e incorporados nas Constituições e nas leis infraconstitucionais
em busca de efetividade. A segunda se trata da comunicação estrutural do
poder, a comunicação da administração pública com as realidades sociais,
com a relação privada, com os poderes legislativo e judicial. Nesse senti-
do, Dallari (2003, p.5) afirma que “a ordem jurídica soberana que tem
por fim o bem comum de um povo situado em determinado território”.
A terceira conexão, de nosso ponto de vista, obrigatória se dá no
campo do interesse público. o terreno das políticas públicas é o espa-
ço institucional da explicitação dos fatores reais de poder ativos. Aqui o
art. 37 da Constituição Federal é o iluminador, porque delimita os pode-
res da administração pública direta, indireta ou fundacional, de qualquer
dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios
à ordem de obediência dos princípios de legalidade, impessoalidade, mo-
ralidade, publicidade.
Sobre esse ponto assinala DALLARI: “ È impossível compreender-se
o Estado e orientar sua dinâmica sem o direito e a política, pois toda a fi-
xação de regras de comportamento se prende a fundamentos e finalidades,
enquanto a permanência de meios orientados para certos fins depende de
sua inserção em normas jurídicas.” (DALLARI, 2006.p.247). Portanto, é
crucial o diálogo e dinâmica entre a política, o direito e o poder público,
para garantir a efetividade do sistema.
A quarta conexão não poderia deixar de ser com a Ordem econômi-
ca delineada por Grau de forma surpreendente:

5 74
LU I Z A N TÔ N I O R E I S J U N I O R , M A U R I C I O P I R E S G U E D E S , T E L S O N P I R E S ,
VA N E S S A V E L A S C O, H E R N A N D E S B R I TO R E I S ( O R G . )

A contemplação nas nossas Constituições, de um conjunto de nor-


mas compreensivas de uma “ordem econômica”, ainda que com
o tal não formalmente referido, é expressiva de marcante transfor-
mação que afeta o direito, operada no momento em que deixa de
meramente prestar-se a harmonização de conflitos e a legitimação
de poder, passando a funcionar como instrumento de implemen-
tação de políticas públicas. (GRAU, 2010, p. 13).

Nesse sentido, o art. 3º, o parágrafo único do 4º e o art. 170, caput


(parcialmente) da Constituição de 1088, aborda que para o grau, são
diretrizes e não princípios propriamente ditos. Nesse contexto é que
aparece a dignidade da pessoa humana além do seu lugar primordial,
art. 1º como norma norteadora e princípio lógico de todo o texto. E,
por fim, também no artigo 170, caput, em que a dignidade ocupa o lu-
gar de diretriz asseguradora, consubstanciada na expressão “que todos
tenham vida digna”. Temos aqui a perfeita ordenação e interligação do
capitulo econômico da Constituição prestativos e iluminativos de todo
o texto constitucional.
Portanto, ressalta a importância do poder executivo uma vez que ele
deve executar e cumprir o que lhe é imposto pelo povo, por seus repre-
sentantes, por meio do Poder Legislativo, como expressão da soberania
popular e, ao poder judiciário, cabe o controle dos atos da administração
pública no sentido de que se ter um direito processualmente garantido ao
cidadão que perante sua negação abre-se o direito de pedir ao judiciário
proteção e garantia de materialidade.
Em síntese, compreendem as autoras de que o direito e política tem
uma relação definidora de possibilidades e limites de atuação dos poderes.
Sim, porque as demandas por direitos ocupam, em primeiro lugar, uma
agenda pública social onde a população representada ou não por institui-
ções como associações, clubes, sindicatos e ou movimentos sociais e , em
seguida, são tratados pelo poder legislativo e, por consequência, incluí-
dos no ordenamento jurídico nacional. Dessa maneira, seguem para uma
segunda agenda, a da política pública sob a responsabilidade do poder
executivo pela sua formulação, execução, realização e monitoramento .
Aqui é que se faz necessário as conexões acima elencadas cujo objetivo é
dar corpo e possibilidade de realização a política pública.

575
DIMENSÕES JURÍDICAS DAS POLÍTICAS PÚBLICAS – VOL. 1

Nessa paisagem, acreditam as autoras, que o processo de realização


dos direitos pelas políticas públicas requer um diálogo constante entre os
poderes - executivo, legislativo, judicial e social. Contudo, esse diálogo
ainda é um desafio que está sendo constituído experiências de baixa vi-
sibilidade. O que tem por consequência um substancial aumento de de-
manda levada ao poder judiciário e, muitas vezes, com decisão no campo
da obrigação de fazer do poder executivo. O que poderia ser minimizado
pelo caminho do diálogo entre os poderes que, ao ver das autoras, ainda se
apresenta como desafio.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

É necessário considerar que ao longo dos anos foram sendo


conquistados inúmeros direitos sociais, que por várias vezes eram
suprimidos pelos Estados conservados, nos tempos antigos. Atualmente,
essa supressão ocorre de várias formas diferentes, muitas vezes veladas,
outras escancaradas. Uma dessas formas, é a clara omissão do Estado
perante a população de baixa renda.
Ser um país desenvolvido no âmbito mundial e em um mundo glo-
balizado que vivemos hoje significa ter um poder econômico expansivo,
e que tenha um bom rendimento, conquista de territórios, ter presença e
destaque no mercado global. Para que tudo isso ocorra e um país receba
essa credibilidade é necessário que este Estado tenha uma sociedade sóli-
da, igual e que haja uma cooperação social.
A cooperação social quer dizer que todos daquela sociedade, terão as-
segurado o mínimo de direitos e garantias fundamentais. Isso ocorre, pois
quando as pessoas possuem uma boa qualidade de vida, de emprego e de
estabilidade, proporcionada principalmente pela boa gestão de seu Estado,
tudo flui, uma vez que a união e cooperação entre as pessoas para com o
crescimento do país.
É relevante ressaltar que quando estes fatores não estão presentes em
certa sociedade, somente com o efetivo cumprimento e realização de po-
líticas públicas é possível desenvolver um país. Deve ser observado e ga-
rantido a qualidade da criação dessa norma até a sua efetividade na prática.
Assim se pode conseguir e garantir bons resultados para haja o fim de
lacunas legais de direitos que o próprio Estado omiti da sociedade. Dessa

576
LU I Z A N TÔ N I O R E I S J U N I O R , M A U R I C I O P I R E S G U E D E S , T E L S O N P I R E S ,
VA N E S S A V E L A S C O, H E R N A N D E S B R I TO R E I S ( O R G . )

forma, a população estará mais amparada, com seus devidos direitos res-
peitados e resguardados, e a qualidade de vida da sociedade vai melhorar.
Em suma, é notório que toda essa situação poderia ser minimizada pelo
caminho do diálogo entre os poderes legislativo, executivo, judiciário e so-
cial. Ao ver das autoras essa evolução de mentalidade social, no Brasil, ainda
se apresenta como desafio. Nesse sentido, percebe-se que para que haja a
evolução do ordenamento brasileiro como um todo, é necessário mais in-
teração e integração entre o poder público, desde a eleição de um represen-
tante do povo até a concretização de políticas públicas, a fim de garantir os
direitos sociais e fundamentais, e se tornar um país desenvolvido.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRAFICAS

ANDRADE, Danilo. Conhença o ciclo das Políticas Públicas. In: Poli-


tize. Disponível em: <https://www.politize.com.br/ciclo-politicas-
-publicas/>. Acesso em: 5 de set. de 2020.

BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federati-


va do Brasil. Brasília: Senado Federal, Centro Gráfico, 1988. Aces-
so em 5 de set. de 2020.

BUCCI, Maria Paula Dallari. O conceito de política pública em direito.


In: BUCCI, Maria Paula Dallari (org.). Políticas públicas: refle-
xões sobre o conceito jurídico. São Paulo: Saraiva, 2006.

BUCCI, Maria Paula Dallari. Direito Administrativo e políticas pú-


blicas. São Paulo: Saraiva, 2006.

BUCCI. Maria Paula Dallari. Direitos humanos e políticas públicas,


2001. http://www.polis.org.br/uploads/831/831.pdf. Acesso em 5
de set. de 2020.

COMPARATO, Fábio Konder Comparato. A Afirmação Histórica


dos Direitos Humanos. São Paulo: Editora Saraiva, 2003.

ERUNDINA DE SOUSA, Luiza. Políticas públicas, direitos sociais e


papel do Estado. In: Vida Pastoral. Disponível em: <https://www.
vidapastoral.com.br/artigos/temas-sociais/politicas-publicas-direi-
tos-sociais-e-papel-do-estado/>. Acesso em: 5 de set. de 2020.

577
DIMENSÕES JURÍDICAS DAS POLÍTICAS PÚBLICAS – VOL. 1

GRAU, Eros. A ORDEM ECONOMICA NA CONSITUIÇÃO


DE 1988. 14ª ed. São Paulo: Malheiros, 2010.

RIOS Mariza ; CARVALHO Newton Teixeira. In: PINTO, João Ba-


tista Moreira (org.) DIREITOS HUMNAOS COMO PROJE-
TO DE SOCIEDADE. Caracterização e desafios. Belo Horizonte:
Editora Instituto DH, 2018, p. 259 a 282.

SERRANO NUNES JUNIOR, Vidal. Direitos Sociais. In: Enciclopé-


dia Jurídica da PUCSP. Disponível em: <https://enciclopediajuri-
dica.pucsp.br/verbete/54/edicao-1/direitos-sociais>. Acesso em: 5 de
set. de 2020.

578
POLÍTICAS PÚBLICAS E A GARANTIA
À SAÚDE AOS POVOS INDÍGENAS
Matheus Kawamata93
Maria Clara Giassetti94
Osvaldo Caetano Neto95

INTRODUÇÃO

Em primeiro, o direito à saúde constitui direito social fundamental,


preconizado no artigo 6º, caput, da Constituição Federal. O artigo 196,
também da Constituição, prevê que é direito de todos e dever do Estado
garantir mediante políticas sociais e econômicas a redução do risco de
doenças e outros agravos, bem como acesso universal e igualitário às ações
e serviços para sua promoção, proteção e recuperação.
As políticas públicas voltadas a esta área possuem igual importância,
porquanto visam produzir minimamente a igualdade, garantindo a digni-
dade a cada cidadão brasileiro.
Quando se fala em povos indígenas, por sua vez, todo o exposto até
então possui importância redobrada, visto que estes são mais suscetíveis a

93 Bacharel em Direito pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. Pesquisador de Direitos


Humanos e Direitos Indígenas.
94 Pós-graduanda em Direito Constitucional e Prática Processual Civil pelo Instituto Damá-
sio de Direito da Faculdade IBMEC/SP. Bacharel em Direito pela Universidade Presbiteriana
Mackenzie. Pesquisadora de Direitos Humanos.
95 Pós-graduando em Advocacia Empresarial pela Escola Brasileira de Direito. Bacharel em
Direito pela Universidade Presbiteriana Mackenzie.

579
DIMENSÕES JURÍDICAS DAS POLÍTICAS PÚBLICAS – VOL. 1

contrair doenças, em razão de seu sistema imunológico com maior vul-


nerabilidade em relação a doenças que habitam a sociedade não indígena.
Por isso, precisam de acesso à saúde de qualidade, principalmente vol-
tada ao sistema imunológico indígena, não pensando apenas a hospitais e
métodos convencionais, mas também a seus rituais e cultura própria.
A assistência à saúde é composta por saúde física e psicológica. Aqui,
deve-se ressaltar que a maior taxa de suicídio, no Brasil, é entre indígenas,
fato este que corrobora a demasiada omissão do Estado no reconhecimen-
to e garantias de políticas públicas.
Assim, o problema de pesquisa que se apresenta é: quais são as polí-
ticas públicas aplicadas aos povos indígenas brasileiros, no que diz respeito
ao sistema digno de saúde e, dentre as existentes, elas são efetivas?
O objetivo que se pretende alcançar, por sua vez, é demonstrar a ine-
ficácia das atuais políticas públicas voltadas à saúde dos povos indígenas.
Para tanto, a metodologia adotada na presente pesquisa é a bibliográ-
fica, pelo método dedutivo, com procedimento empírico observacional,
com análise de dados qualitativos e quantitativos.

1. DIREITO À SAÚDE E POLÍTICAS PÚBLICAS:


conceitualização

É certo que os direitos sociais, previstos no 6º artigo da Constituição


Federal de 1988, visam melhores condições de vida à sociedade. Enquanto
alguns direitos são assegurados pelo Estado por ação negativa, ou seja, sem
intervenção estatal, tantos outros necessitam de ação positiva.
O direito à saúde é composto por essas duas naturezas - interven-
ção estatal negativa e positiva -, uma vez que o Estado deve ser negativo
ao deixar de agir de forma a prejudicar a saúde da sociedade, ao mesmo
tempo que deve ser positivo ao adotar medidas com o fito de prevenção e
tratamento de doenças.
Além da previsão constitucional no artigo 6º, como mencionado, esse
direito encontra-se pormenorizado nos artigos 196 a 200 do mesmo Di-
ploma, com competência legislativa definida no artigo 23, da CF/88. O
âmbito de proteção deste direito é esculpido no artigo 196, CF:

A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido median-


te políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de

580
LU I Z A N TÔ N I O R E I S J U N I O R , M A U R I C I O P I R E S G U E D E S , T E L S O N P I R E S ,
VA N E S S A V E L A S C O, H E R N A N D E S B R I TO R E I S ( O R G . )

doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às


ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação.

Esse dispositivo tem especial importância à presente pesquisa, por-


quanto elenca os principais aspectos referentes ao direito fundamental es-
tudado. (BRANCO, 2018, p. 717/8) elucida que, “para além de direito
fundamental à saúde, há o dever fundamental de prestação de saúde por
parte do Estado”, ou seja, o dever deste desenvolver e aplicar políticas
públicas objetivando a redução de doenças e a promoção, proteção e re-
cuperação da saúde.
Impossível olvidar que o direito à saúde, além de se relacionar dire-
tamente à seguridade social, é pressuposto do direito à vida. Daí tamanha
sua importância. Isso porque, frequentemente, é em razão da saúde que a
vida é garantida.
Nesse ínterim ressalta-se, novamente, a necessidade de ações positivas
do Estado objetivando a garantia do direito à saúde à sociedade, ensejando
o surgimento das políticas públicas nesta discussão.
O conceito de políticas públicas sofreu modificações ao longo do
tempo, sendo compreendido atualmente como mecanismos de efetivação
da função estatal de promoção do bem-estar social. Mas não apenas. Polí-
ticas públicas são ramo científico, o qual visa ser força motriz das ações do
governo, analisando os problemas sociais e sugerindo diretrizes. Assim,
são um conjunto de ações, decisões, metas e planos governamentais - seja
em âmbito federal, estadual ou municipal -, visando o solucionamento
destes problemas e o interesse público, por meio de alterações implemen-
tadas na sociedade.
Na Europa, as políticas públicas nascem como desdobramento das teo-
rias sobre o papel do Estado. Nos Estados Unidos, por outro lado, têm ori-
gem nas ações governamentais, analisadas na ciência política, podendo seu
estudo ser subdividido em três etapas históricas: das instituições essenciais à
limitação da tirania; a virtude cívica das organizações locais para promoção
de um bom governo; e enquanto ciência voltada à orientação das decisões
governamentais, analisando suas opções por determinadas ações.
Assim, as políticas públicas surgem como braço das democracias.
Dentre os diversos modelos de formulação de análise de políticas pú-
blicas, (SOUZA, 2005) sintetiza como elementos principais das políticas

581
DIMENSÕES JURÍDICAS DAS POLÍTICAS PÚBLICAS – VOL. 1

públicas a distinção entre as pretensões governamentais e o que de fato é


feito; a abrangência (não se limitam a leis e regras); o planejamento, com
objetivos a serem alcançados; os impactos a curto prazo, em que pese ser
uma política de longo prazo; a necessidade de implementação, execução
e avaliação após sua proposição.

2. ESPECIFICIDADE DOS POVOS INDÍGENAS

No Brasil possuímos uma grande diversidade de sociedades, com


múltiplas formas de culturas e costumes, das quais destacamos as comu-
nidades indígenas que, conforme o último censo demográfico feito pelo
IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), em 2010, compõe-
-se de aproximadamente 896 mil pessoas, distribuídas entre 305 povos,
com 274 línguas diferentes (IBGE, 2010).
O primeiro ato normativo relacionado aos indígenas se deu apenas
em 1910, por meio do Decreto n° 8.072/1910. Nessa época existia o es-
tigma da comunidade indígena como povo não civilizado, ainda não in-
tegrado à cidadania brasileira. Tanto que, como alude Bernardes (2011), o
direito à saúde era concedido apenas aos indivíduos que já faziam parte do
desenvolvimento econômico nacional, através de trabalhos na agricultura.
Ao longo das últimas décadas, por meio de intensas mobilizações
indígenas, principalmente durante o processo constituinte, obteve-se a
conquista de diversas garantias jurídicas a estes povos. Com a promulga-
ção da Constituição Federal em 1988, foi implementado o Capítulo VIII
“dos Índios”, trazendo os artigos 231 e 232, com a intenção de romper
a visão integracionista e assimilacionista que vigorava até então. Os seus
textos dispõe sobre o reconhecimento aos indígenas de suas organizações
sociais, costumes, línguas, crenças e tradições, bem como direitos ori-
ginários sobre as terras que ocupam tradicionalmente, sendo um dever
da União demarcá-las e protegê-las. No mais, reconheceu-se capacidade
processual aos mesmos.
Ademais, constou na Constituição que o Ministério Público Federal
seria o responsável por defender judicialmente os direitos e interesses das
populações indígenas (art. 129, V, CF/88), enquanto compete à União
legislar sobre estes povos (art. 22, XIV). Contudo, em nenhum momento
foi abordada a questão da política de saúde indígena, apenas consolidava-

582
LU I Z A N TÔ N I O R E I S J U N I O R , M A U R I C I O P I R E S G U E D E S , T E L S O N P I R E S ,
VA N E S S A V E L A S C O, H E R N A N D E S B R I TO R E I S ( O R G . )

-se que seria dever do Estado sua garantia a todos os cidadãos brasileiros,
conforme exposto anteriormente.
Ainda, válido salientar que a última legislação especial, na qual se re-
gulamenta os direitos indígenas, foi o Estatuto do Índio, Lei nº 6.001 de
19 de dezembro de 1973, período em que os indígenas eram considerados
relativamente incapazes. O instituto da capacidade civil nunca foi posi-
tivado de fato, tendo em vista que, quando da promulgação do Código
Civil de 2002, ficou definido, conforme parágrafo único do art. 4ª que, “a
capacidade civil dos indígenas será regulamentada por legislação especial”,
fato este que nunca ocorreu.
No que tange a questão da saúde indígena, desde 1967, quando foi
criada a Fundação Nacional do Índio, em nenhum momento a situação
sanitária nas aldeias foi de fato satisfatória, tendo em vista os diferentes
órgãos e instituições governamentais nomeados como responsáveis pelo
atendimento aos indígenas (INSTITUTO SOCIOAMBIENTAL,
2018). Neste ponto, importante destacar que, em decorrência da preca-
riedade no sistema de atendimento aos indígenas, tais povos acabam sen-
do submetidos a situações de pobreza, violência, depressão e alcoolismo,
acarretando maior taxa de suicídio no meio indígena quando comparado
à sociedade brasileira em geral (BOTEGA, 2015).
Apenas em 1999 foi criada a Lei nº 9.836, a qual acrescentou novos
dispositivos à Lei nº 8.080/90, dispondo sobre “as condições para a pro-
moção, proteção e recuperação da saúde, a organização e o funcionamento
dos serviços correspondentes e dá outras providências” (Lei nº 9836/99).
A partir disto criou-se o Subsistema de Atenção à Saúde Indígena como
componente do Sistema Único de Saúde (SasiSUS).
O Subsistema (SasiSUS) foi criado de tal forma a constituir, através de
recursos da União - com contribuição dos respectivos Estados e Municí-
pios -, Distritos Sanitários voltados ao atendimento dos povos indígenas,
tendo como principais diretrizes a promoção, proteção e recuperação da
saúde indígena em sua mais ampla concepção, abarcando quesitos am-
bientais, biológicos e psicossociais, sem olvidar a importância das práticas
medicinais indígenas, de acordo com o perfil de cada comunidade (art. 2°
do Decreto 3.156/1999).
Foram estabelecidos 34 Distritos Sanitários Especiais Indígenas
(DSEIs), modelo de organização de serviços, destinado a um espaço etno-

583
DIMENSÕES JURÍDICAS DAS POLÍTICAS PÚBLICAS – VOL. 1

-cultural dinâmico, geográfico, populacional e administrativo bem deli-


mitado, ou seja, levaria em consideração a realidade local e especificidade
das culturas indígenas (ARAÚJO, 2006).
É demonstrado por Borges et al. (2016), quando estudado os casos de
anemia entre mulheres indígenas em idade reprodutiva, as quais, além de
demonstrarem média nacional em 4%, não possuíam resultados unifor-
mes entre todas as regiões do país, constatando-se a necessidade de estudo
aprofundado de diversas questões culturais, econômicas e sociais da po-
pulação estudada.
Neste ponto, é justificada a existência dos diversos Distritos Sanitá-
rios, responsáveis por atender comunidades específicas, com característi-
cas específicas, bem como coletar as respectivas informações. Contudo, a
prestação de serviços de saúde aos indígenas e a implantação dos DSEIs,
não se deu de forma efetiva, tendo em vista a falta de preparo específico
para lidar com estas comunidades.
A Fundação Nacional da Saúde (FUNASA), entidade vinculada ao
Ministério Público da Saúde, foi então intitulada como instituição res-
ponsável por gerir o Subsistema de Atenção à Saúde Indígena, sendo, du-
rante anos, alvo de denúncias ligadas ao desvio de recursos públicos que
deveriam ser direcionados para as aldeias, além da precariedade no atendi-
mento destas (INSTITUTO SOCIOAMBIENTAL, 2010).
Em 2010, através de exigências de diversos movimentos indígenas
para que a gestão de saúde passasse a ser administrada por uma secretaria
específica, diretamente vinculada ao Ministério da Saúde (INSTITUTO
SOCIOAMBIENTAL, 2010), criou-se a Secretaria Especial De Saúde
Indígena (SESAI), que seria responsável por coordenar e executar a Sa-
siSUS, com a intenção de implementar um novo modelo de gestão e de
atenção no âmbito deste Subsistema.
Por fim, o controle social se dá por meio do Conselho Distrital de
Saúde Indígena (Condisi), conforme Resolução nº 453 de 2012 que, na
teoria, deveria garantir a participação dos indígenas na gestão dos DSEIs,
contudo, na prática, houve grande tensão entre os gestores do Condisi e
os povos indígenas, o que impossibilitou a participação destes na gerência
do órgão (INSTITUTO SOCIOAMBIENTAL, 2010)
Desta forma, verificaram-se nítidas as tentativas ilusórias de criações
de diversos órgãos e instituições que seriam responsáveis pela garantia e

584
LU I Z A N TÔ N I O R E I S J U N I O R , M A U R I C I O P I R E S G U E D E S , T E L S O N P I R E S ,
VA N E S S A V E L A S C O, H E R N A N D E S B R I TO R E I S ( O R G . )

gerência da política de saúde indígena ao longo das últimas décadas, como


uma forma de demonstrar que algo estaria sendo feito a favor destas co-
munidades. Entretanto, pode-se notar a falta de preparo e organização do
Estado para lidar com a situação destes povos, tendo em vista sua especifi-
cidade, bem como a ausência da participação indígena nas tomadas de de-
cisões relativas aos mesmos. Finalmente, a anulação dos indígenas quando
da escolha dos participantes competentes a atuarem dentro dos referidos
órgãos e instituições.

3. AS ATUAIS POLÍTICAS PÚBLICAS VIGENTES NO PAÍS


SOBRE SAÚDE INDÍGENA

A Secretaria Especial de Saúde Indígena, nascida em 2010, adveio


no intuito de facilitar os processos de aplicação da Política Nacional de
Atenção à Saúde dos Povos Indígenas e implementar o subsistema criado
pela Lei 9.836/1999, sua gestão e distribuição de recursos, bem como o
estabelecimento de diretrizes gerais.
Sob a sua administração, atuam os DSEI’s, entendidos como unidades
gestoras e descentralizadas do Subsistema de Atenção à Saúde Indígena.
Normalmente definidos como espaços etno-culturais dinâmicos, com
objetivo de promoção de medidas racionalizadas e qualificadas de atenção
à saúde, a fim de reordenar a rede de saúde e as suas práticas sanitárias
através de atividades administrativo-gerenciais.
A distribuição destes espaços foi planejada conforme critérios
territoriais (não seguindo fronteiras entre estados e municípios). Os
Distritos são compostos por unidades básicas de saúde indígena, pó-
los-base (os quais hoje são 361) e casas de saúde indígena (CASAI)
(FUNASA, 2009).
Os serviços, segundo sua regulamentação, poderão ser prestados atra-
vés de ações dos agentes de saúde nas próprias comunidades, de maneira
periódica ou também através dos pólos-base, os quais são a primeira re-
ferência de saúde para seus agentes, que atuam nas próprias comunidades
indígenas ou dentro dos municípios de referência, sendo, neste caso, cor-
respondente à unidade básica de atendimento à saúde.
Quando necessária a realização de procedimentos de média ou alta
complexidade, os pacientes deverão ser encaminhados ao Sistema Único

585
DIMENSÕES JURÍDICAS DAS POLÍTICAS PÚBLICAS – VOL. 1

de Saúde, em localização geográfica referenciada pelo respectivo distrito,


preparados para os devidos cuidados.
Os pacientes direcionados à rede pública de saúde farão jus a serviços
de apoio, promovidos pelas Casas de Saúde Indígenas, as quais deverão ter
condições de receber os pacientes, prestando serviços de enfermagem 24
horas por dia, alojamento, alimentação, agendamento de consultas, além
de atividades de educação em saúde, produção artesanal e demais ativida-
des para os acompanhantes e pacientes (FUNASA, 2009).
Abordando o desenvolvimento destas políticas no atual cenário, a pro-
posta preliminar do Plano de Contingência da Saúde Indígena, apresenta-
da pelo Ministério da Saúde através do SESAI, ressalta a maior suscetibi-
lidade dos indígenas à contração de doenças respiratórias, principalmente
quanto aos Povos Indígenas Isolados e de Recente Contato (PIIRC), frisa
a necessidade de estados e municípios com comunidades indígenas tracem
os seus planos de contingência em conjunto com os DSEI’s (MINISTÉ-
RIO DA SAÚDE, 2020).
Foram elaborados três níveis de resposta baseados no Plano de Con-
tingência Nacional para Infecção Humana pelo novo Coronavírus: Aler-
ta, Perigo Iminente e Emergência em Saúde Pública.
Cabe ressaltar que as ações em todos os níveis, além da preocupação
em capacitar o sistema de saúde e seus agentes, a fim de que estes se façam
aptos ao tratamento do novo vírus, também se destacam pela importância
compreendida na comunicação de informações aos órgãos competentes
(entre órgãos e para com a população), bem como o diálogo do subsiste-
ma indígena com outras esferas da administração pública, a fim de que se
mantenha a eficiência nos tratamentos, “garantir a participação de repre-
sentação dos DSEI nos Centros de Operações de Emergências em Saú-
de Pública (COE-COVID 19) das unidades federadas e municípios [...]”
(MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2020).
Estabelece, ainda, que os DSEIs devem emitir alertas para a SESAI e
às secretarias Estaduais e Municipais de Saúde sobre a situação epidemio-
lógica da população indígena do SasiSUS, “traduzir para a língua indíge-
na, sempre que possível, materiais informativos sobre a doença e medidas
de prevenção” (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2020).
Outrossim, também com a intenção de evitar maior proliferação da
doença entre as comunidades, o Protocolo Sanitário de Entrada em Terri-

586
LU I Z A N TÔ N I O R E I S J U N I O R , M A U R I C I O P I R E S G U E D E S , T E L S O N P I R E S ,
VA N E S S A V E L A S C O, H E R N A N D E S B R I TO R E I S ( O R G . )

tórios Indígenas 13.08, os agentes de saúde, alocados nos DSEI’s, deverão


tomar cuidados especiais antes da entrada no território indígena, sendo
necessária a realização de testagem para COVID-19, e, caso não estejam
disponíveis os testes, medidas alternativas serão desempenhadas.
De acordo com a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB),
a taxa de mortalidade pela COVID-19 entre estes povos é o dobro da re-
gistrada para o resto da população brasileira.
Segundo dados da Fundação Oswaldo Cruz, informados já no pe-
ríodo pandêmico, 48% das mortes entre pacientes internados pelo CO-
VID-19 são indígenas, sendo a maior taxa de mortalidade quando com-
parada às demais populações - pardas, negra, amarela ou branca. Não
obstante, segundo estudo do Instituto Socioambiental (ISA), em parceria
com a Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), as Terras Indíge-
nas são as mais vulneráveis à coronavírus no Brasil.
Em decorrência de problemas de governança, gestão e controle da
política de saúde dos povos indígenas vislumbrou-se grande ofuscamento
de garantias mínimas a estas comunidades, tendo em vista diversos des-
vios de verbas públicas que deveriam ser investidas nos DESEI’s, ocorri-
dos desde a regulamentação do Subsistema de Atenção à Saúde dos Povos
Indígenas. Para exemplificar, trouxemos à tona algumas reportagens que
abordam as irregularidades por parte de órgãos competentes para gestão
da saúde indígena.
O Tribunal de Contas da União (TCU), em 2013, analisou diversas
denúncias, que versavam sobre as irregularidades de licitações finalizadas
e contratos derivados destas, tal como o contrato que decorreu do Pregão
Presencial 7/2013, que registrou preços para aluguel de veículos para a
sede e polos-base do Distrito Industrial Especial Indígena da Bahia, no va-
lor de R$ 17,4 milhões, contudo, o TCU apurou um valor adicional que
atingiu R$84,06 milhões, provindo de contratações feitas pelas unidades
participantes (TRIBUNAL DE CONTAS DA UNIÃO, 2016).
Apesar do exposto, o esquema de desvio de recursos públicos ocor-
ria antes mesmo da criação do SESAI, em 2007, conforme noticiado no
site “Povos Indígenas no Brasil”, ocorreu uma ação da Polícia Federal em
Roraima, chamada de “Operação Metástase”, na qual tiveram 35 man-
dados de prisão, tendo como alvo funcionários da FUNASA, dentre eles,
Ramiro Teixeira, na época, Coordenador da Fundação e apontado como

587
DIMENSÕES JURÍDICAS DAS POLÍTICAS PÚBLICAS – VOL. 1

chefe da quadrilha, que vinham desviando recursos públicos que deveriam


ser destinados ao atendimento sanitário das comunidades indígenas (INS-
TITUTO SOCIOAMBIENTAL, 2007).
No ano passado, em 2019, ocorreu a Operação Quíron, novamente
em Roraima e por desvio de verbas que deveriam ser direcionadas à saúde
indígena, destacamos aqui notícia apresentada pelo site do Conselho Indi-
genista Missionário (CIMI), no qual informa as denúncias feitas ao DSEI
de Roraima para apuração de corrupção, organização criminosa e lavagem
de dinheiro, o que revelou, através de investigações que, a empresa contra-
tada para fornecer e receber produtos hospitalares teria desviado recursos,
conforme inquérito, constatou-se que a empresa teria recebido cerca de
R$ 600 mil para investir em medicamentos e produtos hospitalares, po-
rém, foi constatado a chegada de apenas R$ 16 mil em produtos aos esto-
ques do DSEI (CONSELHO INDIGENISTA MISSIONÁRIO, 2019).
Estas incongruências permeiam as aldeias indígenas até os dias atuais,
durante a pandemia da COVID-19, o Presidente da República do Brasil,
sancionou o Projeto de Lei nº 1.142/2020, após quatro meses do vírus
chegar ao país, na qual previa-se medidas de proteção para as comunida-
des indígenas, tendo em vista serem grupos de extrema vulnerabilidade,
mas barrou 22 dispositivos da norma, dentre eles: o acesso das aldeias a
água potável, materiais de higiene, leitos hospitalares e unidades de terapia
intensiva (UTI), dentre outros direitos básicos a qualquer cidadão (SE-
NADO FEDERAL, 2020).
Tais vetos levaram a uma mobilização da Articulação dos Povos Indí-
genas do Brasil (APIB), uma associação nacional de entidades que repre-
sentam os povos indígenas que, juntamente com partidos políticos, dentre
eles PSB, PSOL, PC do B, Rede, PT e PDT, propuseram uma Ação de
Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) núme-
ro 709, formulando pedidos a fim de se criarem barreiras sanitárias nas
regiões em que se encontram povos em isolamento e de contato recen-
te, bem como, a instalação da Sala de Situação, para gestão de ações de
combate à pandemia quanto a estes povos, ainda solicitaram a retirada de
invasores das terras indígenas, como garimpeiros instalados ali de forma
ilegal, para evitar riscos de conflitos e maior contaminação nas aldeias e a
determinação de que os serviços do Subsistema Indígena de Saúde sejam
acessíveis a todos os indígenas aldeados, por fim, que houvesse a elabora-

588
LU I Z A N TÔ N I O R E I S J U N I O R , M A U R I C I O P I R E S G U E D E S , T E L S O N P I R E S ,
VA N E S S A V E L A S C O, H E R N A N D E S B R I TO R E I S ( O R G . )

ção de um Plano de Enfrentamento da COVID-19 para os Povos Indíge-


nas, juntamente com as comunidades afetadas.
No julgamento da ADPF 709, o Plenário do Supremo Tribunal Fe-
deral (STF), determinou que o Governo Federal adotasse medidas para
conter o avanço da COVID-19 nas comunidades indígenas, em decisão
cautelar os pedidos foram concedidos de forma parcial, apenas a questão
da desintrusão imediata não foi aceita, de momento, por entenderem que
os invasores devem ser removidos somente após a formulação do plano de
contingência, pela União (SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, 2020).
Nesse cenário, foram três os planos emergenciais apresentados pela
Câmara dos Deputados visando a população indígena. Projeto de Lei nº
1283/20, 1305/20 e 1299/20, de autoria, respectivamente, dos deputados
Patrus Ananias (PT-MG) Talíria Petrone (Psol-RJ) e Joenia Wapichana
(Rede-RR).
As propostas tangem o fornecimento de água potável; distribuição de
sabão, álcool gel, água sanitária e cesta básica; internet nas aldeias para evi-
tar deslocamentos; equipes multidisciplinares de atenção à saúde indíge-
na; e testes rápidos, exames, medicamentos, equipamentos em territórios
indígenas, além da criação de mecanismo, pela União, de financiamento
específico e mais recursos à atender a saúde indígena em casos de pande-
mia, emergência e calamidade pública.
No mês de agosto de 2020, o Congresso Nacional em deliberação a
respeitos dos vetos à PL 1142, acabou por derrubar 16 dos 22 vetos, sendo
garantido a disponibilidade de água potável, materiais de higiene, limpeza
e desinfecção, leitos hospitalares, UTIs, ventiladores e máquinas de oxi-
genação, materiais informativos e internet; planos de contingência para
indígenas isolados e de recente contato; a criação de planos emergenciais;
a inclusão dos povos indígenas nos planos emergenciais para atendimento
dos pacientes graves das Secretarias Municipais e Estaduais de Saúde; a
adoção, em áreas remotas, de mecanismos que facilitem o acesso ao auxílio
emergencial, benefícios sociais e previdenciários, de modo a possibilitar a
permanência de povos indígenas, quilombolas, pescadores artesanais e de
demais povos tradicionais em suas próprias comunidades, dentre outros
dispositivos (CONSELHO INDIGENISTA MISSIONÁRIO, 2020).
Nas palavras da deputada Joenia Wapichana a respeito dos resultados
destas conquistas: “É significante hoje o que estamos fazendo no Con-

589
DIMENSÕES JURÍDICAS DAS POLÍTICAS PÚBLICAS – VOL. 1

gresso Nacional. A derrubada de vetos vai servir para salvar vidas” (CON-
SELHO INDIGENISTA MISSIONÁRIO, 2020). Logo, é transparente
como os movimentos indígenas e a atuação destes no meio jurídico vem
causando efeitos e trazendo à tona necessidades antes já existentes, mas
apagadas pelos governos e pela sociedade no seu geral.

CONCLUSÕES OU CONSIDERAÇÕES FINAIS

Pode-se compreender, portanto, que o direito brasileiro, no que cer-


ne a garantia de saúde aos povos indígenas através de políticas públicas,
ainda é um tanto quanto precária e omissa, ou seja, não se dá de forma efe-
tiva, tendo em vista a posição em que os indígenas se encontram nos dias
de hoje e a grande necessidade de movimentos internos entre os mesmos,
com exigências legais, que deveriam estar sendo cumpridas de ofício.
De praxe, necessário se faz uma reorganização e reestruturação dos
órgãos responsáveis pelos cuidados à saúde indígena, regulamentando a
participação das comunidades no meio jurídico, principalmente no que
diz respeito ao planejamento e estrutura das políticas públicas voltadas às
mesmas. Desta forma, é essencial que não haja apenas a participação indí-
gena, mas também seja levado em consideração o seu direito consuetudi-
nário, ou seja, o direito que surge dos costumes de uma certa sociedade,
devendo ser respeitado os seus modos de vida, culturas e religiões.
Logo, apesar da regulamentação de um órgão especial voltada à saúde
indígena, no caso, o Sesai, criado em 2010, bem como os Subsistemas de
Atenção à Saúde Indígena do Sistema Único de Saúde (SasiSUS) instala-
dos em 34 distritos pelo país, resta nítido a falta de organização e com-
prometimento desses sistemas, levando em consideração que desde suas
criações, muitas das verbas que deveriam ser destinadas às comunidades,
são, na sua maioria, desviadas, o que por sua vez, só vem causando mais
caos e desigualdade entre as aldeias indígenas, deixando-as em situações
de pobreza e em condições sanitárias de precariedade.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ARAÚJO, Ana Valéria. Povos Indígenas e a Lei dos “Brancos”: o direito


à diferença. Brasília: Ministério da Educação, Secretaria de Educa-

590
LU I Z A N TÔ N I O R E I S J U N I O R , M A U R I C I O P I R E S G U E D E S , T E L S O N P I R E S ,
VA N E S S A V E L A S C O, H E R N A N D E S B R I TO R E I S ( O R G . )

ção Continuada, Alfabetização e Diversidade; LACED/Museu Na-


cional, 2006.

BERNARDES, Anita Guazzelli. Saúde indígena e políticas públicas: al-


teridade e estado de exceção. Interface, Comunicação saúde educa-
ção, v.15, n°36, p 153/164, jan/mar. 2011.

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1.988. Diá-


rio Oficial da União, Brasília, DF, 5 out. 1988. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.
htm>. Acesso em: 05 set. 2020.

BRASIL. Lei nº 9836, de 23 de setembro de 1999. . Brasília, DF, Dis-


ponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L9836.htm.
Acesso em: 5 set. 2020.

BRASIL. Resolução nº 453, de 10 de maio de 2020. . Brasília, Dis-


ponível em: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/cns/2012/
res0453_10_05_2012.html. Acesso em: 05 set. 2020.

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Adpf nº 709. Relator: Roberto


Barroso. Apagar. Brasília, 2020. Disponível em: http://www.stf.jus.
br/arquivo/cms/noticiaNoticiaStf/anexo/adpf709.pdf. Acesso em: 5
set. 2020.

BORGES et al. Anemia among indigenous women in Brazil: findings


from the First NationalSurvey of Indigenous People’s Health and
Nutrition. BMC Women’s Health (2016) 16:7

BOTEGA, Neury José. Crise Suicida: avaliação e manejo. Porto Alegre:


Artmed, 2015. p. 302

CALDAS, Ricardo Wahrendorff (org.). Políticas Públicas Conceitos e


Práticas. Belo Horizonte: Sebrae Mg, 2008. Disponível em: http://
www.mp.ce.gov.br/nespeciais/promulher/manuais/MANUAL%20
DE%20POLITICAS%20P%C3%9ABLICAS.pdf. Acesso em: 5
set. 2020.

CONSELHO INDIGENISTA MISSIONÁRIO. Covid-19: congresso


derruba vetos de Bolsonaro e garante acesso a água potável e mate-

591
DIMENSÕES JURÍDICAS DAS POLÍTICAS PÚBLICAS – VOL. 1

riais de higiene a indígenas e quilombolas. Congresso derruba vetos


de Bolsonaro e garante acesso a água potável e materiais de higiene
a indígenas e quilombolas. 2020. Disponível em: https://cimi.org.
br/2020/08/covid-19-congresso-derruba-vetos-bolsonaro-garan-
te-acesso-agua-potavel-materiais-higiene-indigenas-quilombolas/.
Acesso em: 20 ago. 2020.

CONSELHO INDIGENISTA MISSIONÁRIO. Em Roraima, Ope-


ração Quíron deflagra investigação da PF sobre desvios de
verbas da saúde indígena. 2019. Disponível em:https://cimi.org.
br/2019/08/em-roraima-operacao-quiron-deflagra-investigacao-da-
-pf-sobre-desvios-de-verbas-da-saude-indigena/. Acesso em: 05 de
set. 2020.

FUNASA. Política Nacional de Atenção à Saúde dos Povos Indígenas. Brasília:


Ministério da Saúde, Fundação Nacional de Saúde. 2002, 2° Edição

FUNASA. Lei Arouca: 10 anos de saúde indígena. Brasília: Ministério da


Saúde, Fundação Nacional de Saúde, 2009.

INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA. O


Brasil Indígena. 2010. Disponível em: https://indigenas.ibge.gov.
br/images/pdf/indigenas/folder_indigenas_web.pdf. Acesso em: 01
jan. 2010.

INSTITUTO SOCIOAMBIENTAL. Saúde Indígena. 2018. Dispo-


nível em: https://pib.socioambiental.org/pt/Sa%C3%BAde_Ind%-
C3%ADgena. Acesso em: 5 set. 2020.

MINISTÉRIO DA SAÚDE. Distritos Sanitários Especiais Indígenas


(DSEIs). Disponível em: https://www.saude.gov.br/secretarias-es-
taduais/685-institucional/secretarias/secretaria-especial-de-saude-
-indigena-sesai/46396-distritos-sanitarios-especiais-indigenas-d-
seis. Acesso em: 5 set. 2020.

MINISTÉRIO DA SAÚDE. Plano de Contingência Nacional Para


Infecção Humana Pelo Novo Coronavírus (Covid-19) em Po-
vos Indígenas. Brasília, DF, Disponível em: https://drive.google.

592
LU I Z A N TÔ N I O R E I S J U N I O R , M A U R I C I O P I R E S G U E D E S , T E L S O N P I R E S ,
VA N E S S A V E L A S C O, H E R N A N D E S B R I TO R E I S ( O R G . )

com/drive/folders/1NypkAgVkBQU5ztQ4yWVgh1bgxdiBlBhh.
Acesso em: 05 set. 2020.

MINISTÉRIO DA SAÚDE. Protocolo Sanitário de Entrega em


Territórios Indígenas. Brasília, DF, Disponível em: https://drive.
google.com/drive/folders/1NypkAgVkBQU5ztQ4yWVgh1bgxdi-
BlBhh. Acesso em: 05 set. 2020.

MINISTÉRIO DA SAÚDE. Sobre a SESAI. Disponível em: https://


www.saude.gov.br/saude-indigena/sobre-a-sesai. Acesso em: 5 set.
2020.

NOTÍCIAS, Agência Câmara de. Propostas buscam proteger popu-


lação indígena durante pandemia. 2020. Disponível em: https://
www.camara.leg.br/noticias/655200-propostas-buscam-proteger-
-populacao-indigena-durante-pandemia. Acesso em: 4 set. 2020.

NOTÍCIAS STF. STF referenda medidas de enfrentamento da Co-


vid-19 em terras indígenas. Disponível em: http://stf.jus.br/por-
tal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=448997. Acesso em: 5
set. 2020.

POVOS INDÍGENAS NO BRASIL. Operação da PF revela es-


quema de desvio de verba da saúde indígena em Roraima.
Disponível em: https://pib.socioambiental.org/en/Not%C3%AD-
cias?id=50305. Acesso em: 05 set. 2020.

SENADO, Agência. Bolsonaro sanciona com vetos lei para prote-


ger indígenas durante pandemia. 2020. Disponível em: https://
www12.senado.leg.br/noticias/materias/2020/07/08/bolsonaro-san-
ciona-com-vetos-lei-para-proteger-indigenas-durante-pandemia.
Acesso em: 4 set. 2020.

SOUZA, Celina. Políticas públicas: conceito, tipologias e subáreas.


Palestra proferida em 06/10/2005 no Ciclo de Debates da Políti-
ca Estadual de Habitação de Interesse Social; Promovida pela SE-
DUR. Versão atualizada de trabalho elaborado para a Fundação Luis
Eduardo Magalhães em dez. de 2002. Salvador, 2005, 28 f. (Texto
digitado). Disponível em <http://professor.pucgoias.edu.br/SiteDo-

593
DIMENSÕES JURÍDICAS DAS POLÍTICAS PÚBLICAS – VOL. 1

cente/admin/arquivosUpload/3843/material/001-%20A-%20PO-
LITICAS%20PUBLICAS.pdf> Acesso em 24 ago 2020.

TRIBUNAL DE CONTAS DA UNIÃO. TCU avalia denúncia con-


tra a Secretaria Especial de Saúde Indígena no Mato Grosso
do Sul. Disponível em: https://portal.tcu.gov.br/imprensa/noticias/
tcu-avalia-denuncia-contra-a-secretaria-especial-de-saude-indige-
na-no-mato-grosso-do-sul.htm. Acesso em: 5 set. 2020.

594
DIREITOS SOCIAIS DAS MINORIAS:
CONTEXTOS DE VIOLÊNCIA
FAMILIAR EM FACE DAS PESSOAS
COM DEFICIÊNCIA NO BRASIL E A
(IN) EXISTÊNCIA DAS POLÍTICAS
PÚBLICAS
Renata Gabrielle Silva de Lima96

Introdução

Na Carta Magna brasileira de 1988 é exposto no caput do artigo 5º


“Todos somos iguais perante a lei sem distinção de qualquer natureza”... , este é
conhecido juridicamente por expor a igualdade formal, qual seja que não
há, em tese, diferenças entre os indivíduos em relação às normas jurídicas.
Todavia, também é de conhecimento que a aplicação da igualdade formal,
sem analisar o caso concreto e suas nuances, não concretizaria um dos
pilares de persecução do Direito, ou seja, a Justiça. Destarte, o célebre
Aristóteles trouxe a máxima de que é preciso ‘’tratar igualmente os iguais
e os desiguais na medida da sua desigualdade’’, isto sendo denominado de
igualdade material.
As minorias, em resumo, significa um grupo de indivíduos que são
estigmatizados e discriminados, sofrendo represálias daquele que se au-
todenomina dominante, por diversos fatores como crença, cútis (cor de

96 Graduanda em Direito na Unifacs.

595
DIMENSÕES JURÍDICAS DAS POLÍTICAS PÚBLICAS – VOL. 1

pele), condição social, física, entre outros, e na maioria das vezes estes
grupos minoritários perfazem grande parcela da sociedade. Portanto, a
igualdade material, abordada anteriormente, é algo imprescindível para a
concretude dos Direitos das Minorias.
Este artigo traz uma abordagem sobre um grupo específico das mi-
norias, as pessoas com deficiência, cujos problemas são invisíveis/ sem
importância/sem conhecimento pela maioria da população brasileira. Por
isso, é mister entender os direitos que as resguardam e os deveres da socie-
dade como um todo para com esses indivíduos.
O objetivo deste artigo é abordar sobre a violência sofrida pelas
pessoas com deficiência em seu contexto familiar, os Direitos Sociais
pertencentes aos mesmos, além da verificação da (in) existência de
políticas públicas de enfrentamento desta violência. Dessa maneira,
inicialmente será exposto: Os Direitos Sociais e Direitos Sociais das
Minorias no Brasil; A compreensão sobre quem são essas pessoas e as
mazelas sofridas por elas em seu convívio familiar e por fim analisar as
políticas públicas sobre isto.
No estudo foi utilizado o método dedutivo, com uma abordagem
qualitativa. E na pesquisa houve a coleta de dados mediante análises bi-
bliográficas.

1. Direitos Sociais e Direitos Sociais das Minorias no


Brasil

1.1Direitos Sociais

Os direitos sociais configuram-se como ‘’prestações positivas pro-


porcionadas pelo Estado direta ou indiretamente, enunciadas em normas
constitucionais, que possibilitam melhores condições de vida aos mais
fracos, direitos que tendem a realizar a igualização de situações sociais
desiguais (SILVA, 2005.p.286). ’’ Todavia, estes direitos nem sempre exis-
tiram nas sociedades, assim foi necessário diversos conflitos e movimentos
em prol da positivação dos mesmos.
Um dos acontecimentos históricos que mais influenciou a luta pe-
los Direitos foi a Revolução Francesa em 1789. Em suma, seu objetivo
primordial era destruir o absolutismo, livrando-se do julgo real que era

596
LU I Z A N TÔ N I O R E I S J U N I O R , M A U R I C I O P I R E S G U E D E S , T E L S O N P I R E S ,
VA N E S S A V E L A S C O, H E R N A N D E S B R I TO R E I S ( O R G . )

imposto à sociedade, e esta luta foi demandada pelos indivíduos do ter-


ceiro estado (composto por burgueses, baixo clero, camponeses, etc.), os
quais, influenciados pelas teorias iluministas, resolveram dar ‘’um basta’’ a
situação política que viviam.
As primeiras ações foram em relação à liberdade dos indivíduos em
diversas áreas, especialmente a econômica e defesa contra as insurgências
do Estado. Influenciados por Adam Smith foi propagado o liberalismo
econômico, ideologia que não permite a intervenção estatal. Houve a
confecção de um documento chamado Declaração dos Direitos do Ho-
mem e do Cidadão que traz em seu bojo ás diversas formas de liberdade
conferidas ao homem.
Os fatos apresentados acima ficaram conhecidos como Direitos de
Primeira Geração, os quais exigiam uma prestação negativa do Estado em
relação ás suas vidas. O afastamento total do estado perante os cidadãos
demonstrou-se um equívoco, pois para aqueles que não tinham o poder
aquisitivo necessário perceberam que não conseguiria ter uma vida dig-
na, assim não poderiam usufruir verdadeiramente da liberdade almejada.
Neste ínterim houve o surgimento dos chamados Direitos sociais ou Di-
reitos de Segunda Geração.
Não é suficiente ‘‘afirmar que todos são iguais perante a lei; é
indispensável que sejam assegurados a todos, na prática, um mínimo de
dignidade e igualdade de oportunidades (DALLARI, 2004.p.46)’’ Com o
avanço do capitalismo a necessidade desses Direitos foi vista principalmente,
quando os trabalhadores das fábricas tinham que suportar excessivos
trabalhos com carga horária de trabalhos por mais de 16 horas, baixíssimos
salários (muitas vezes as crianças tinham que trabalhar), insalubridade e
precariedade. Dessa maneira, influenciados por ideias marxistas houve um
movimento em prol dos direitos trabalhistas, resultando no surgimento
dos Direitos de Segunda Geração.
Existe um extenso rol de Direitos Sociais espalhados pelas leis esparsas
(CDC, ECA, Estatuto do idoso, etc.) no Direito Brasileiro, porém a base
destas pode ser encontrada nos artigos 6º e 7º da Lei Maior sendo eles:

A educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o trans-


porte, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à mater-
nidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta

597
DIMENSÕES JURÍDICAS DAS POLÍTICAS PÚBLICAS – VOL. 1

Constituição (art. 6º) e os referentes aos trabalhadores urbanos e


rurais elencados no art. 7º. (BRASIL, 1988)

A concretização destes artigos, da maneira mais plena possível, tem se


mostrado um desafio devido a argumentos sobre a questão do orçamento
insuficiente do Poder Público, entretanto é preciso possibilitar aos indiví-
duos o mínimo existencial, o qual é pautado no Princípio da Dignidade
da Pessoa Humana. Portanto, nas demandas judiciais em que há a busca
da efetividade destes direitos, o Judiciário deve equilibrar a garantia dos
direitos, o princípio da divisão dos poderes e o equilíbrio orçamentário.

Não são minorias porque são poucos, mas porque possuem poucos
direitos garantidos, pouca representatividade nas instâncias de po-
der e pouca visibilidade no cenário social. (MENDONÇA, 2016.
p.13-16).

1.2 Direitos Sociais das Minorias no Brasil

1.2.1 Conceito

Minorias configuram-se como:

Um grupo de pessoas que de algum modo e em algum setor das


relações sociais se encontra numa situação de dependência ou des-
vantagem em relação a outro grupo, “maioritário”, ambos inte-
grando uma sociedade mais ampla. (CHAVES, 1970. p.149- 168)

De acordo com o mesmo autor as ‘’minorias recebem quase sempre


um tratamento discriminatório por parte da maioria’ ’ou seja, como ex-
plicado na introdução estes indivíduos sofrem represálias daqueles que se
autodenominam dominantes, por diversos fatores como crença, cútis (cor
de pele), condição social, física, entre outros.

1.2.2 Contexto histórico

A existência da discriminação das minorias no Brasil tem origem des-


de a formação do país. Em 1500, quando a esquadra portuguesa atracou

598
LU I Z A N TÔ N I O R E I S J U N I O R , M A U R I C I O P I R E S G U E D E S , T E L S O N P I R E S ,
VA N E S S A V E L A S C O, H E R N A N D E S B R I TO R E I S ( O R G . )

no litoral nordeste, os curiosos índios não tinham noção das agruras que
passariam. Inicialmente, esses europeus fingiram amabilidade para com
os indígenas e praticou o escambo com os mesmos, entretanto isto era
apenas uma maneira de conhecer o território e com quem eles estavam
lidando. Logo depois, os índios foram escravizados, houve imposição da
fé dos portugueses e descaso para com as tradições dos mesmos. Eles fo-
ram à primeira minoria no Brasil a sofrer por serem diferentes, por não se
adequarem ao ‘’padrão’’ e apenas servirem como instrumento na mão do
povo que se considerava dominante.
Após diversas fugas, revoltas e devido à percepção dos portugueses de
que os índios não se adaptavam ao modelo de produção, eles resolveram
traficar escravos da África. Estes sofreram diversas atrocidades pelos
portugueses, desde a entrada compulsória nos navios, cujo ambiente era
degradante, insalubre e anti-higiênico, onde muitos acabavam morrendo
pelas situações anteriormente citadas, até quando chegava ao Brasil, local
no qual eram tratados como mercadoria, onde sofriam estupros, lesões
físicas, violência de todos os tipos, desrespeito contra a sua cultura,
discriminação, entre outros.
Os dois grupos étnicos supracitados não são os únicos que recebem
tratamento discriminatório pela ‘’maioria’’. Há ainda outros exemplos,
como indivíduos pertencentes a comunidades tradicionais, pescadores,
ribeirinhos, mulheres, imigrantes, pessoas com deficiência, LGBTQI+ e
moradores de rua.
A luta para garantir seus direitos foi e é ainda bastante árdua. Entre-
tanto é necessário reconhecer os documentos legais que positivaram os
direitos das minorias sociais. No âmbito internacional existe a declaração
dos Direitos das Pessoas pertencentes a Minorias Nacionais ou Étnicas,
Religiosas e Linguísticas a qual foi aprovada pela assembleia da ONU
(Organização das Nações Unidas) em 1992. Na Constituição Federal
Brasileira, além dos supramencionados Direitos Sociais, temos em desta-
que os artigos 215 e 216 que abordam sobre pleno exercício dos direitos
culturais e acesso às fontes da cultura nacional, sua proteção e a constitui-
ção dos patrimônios culturais materiais e imateriais formados pelos dife-
rentes grupos da sociedade brasileira. Nas leis esparsas há exemplos como:
a Lei 7.716/89, Lei do racismo; A lei 13.146/15, Lei da inclusão da pessoa
com deficiência; 13140/06, Lei Maria da Penha, entre outras.

599
DIMENSÕES JURÍDICAS DAS POLÍTICAS PÚBLICAS – VOL. 1

2. Pessoas com deficiência no Brasil

2.1- Conceito, evolução do conceito e contexto


histórico.

2.1.1-Conceito

Segundo o Censo demográfico de 2010 46 milhões (23,9%) de bra-


sileiros declararam ter algum tipo de deficiência, todavia repetiu-se o pro-
cedimento, em 2019, e houve uma reduzida do percentual citado para
6,7% da população devido a substituição do método anterior, pois antes
eles perguntavam independente do grau de deficiência, no atual eles só
consideraram mediante a avaliação do grau de dificuldade com os itens:
“Nenhuma dificuldade”, “alguma dificuldade”, “muita dificuldade” e
“não consegue de modo algum”. (IBGE, 2019)
Considera-se pessoa com deficiência:

‘’Aquelas que têm impedimentos de longo prazo de natureza física,


mental, intelectual ou sensorial, os quais, em interação com diver-
sas barreiras, podem obstruir sua participação plena e efetiva na so-
ciedade em igualdades de condições com as demais pessoas. (Con-
venção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, 2008)

2.1.2- Evolução do conceito e contexto histórico.

A errônea concepção sobre as pessoas com deficiência não é recente.


Na Idade Média, elas eram vistas como “monstros”, “aberrações”,
possuídos pelo “demônio”, entre outros adjetivos cruéis, e as chamavam
assim, pois diziam que a sua condição era resultado de um castigo divino.
Em alguns povos, a criança que nascia com alguma deficiência era isolada
da sociedade (não mudou tanto assim) ou as matavam. Na Segunda
Guerra Mundial houve o maior extermínio de deficientes, chamados na
época de “inúteis”, isto aconteceu na Alemanha Nazista, ideologia alemã
que considerava a sua “raça” ariana superior, cujo comandante era Adolf
Hitler, este criou um programa denominado T-4(Eutanásia), e assim
mediante câmaras de gás ele exterminou cerca de 200.000 deficientes.
Após esse holocausto e com a pressão midiática as pessoas com deficiência

600
LU I Z A N TÔ N I O R E I S J U N I O R , M A U R I C I O P I R E S G U E D E S , T E L S O N P I R E S ,
VA N E S S A V E L A S C O, H E R N A N D E S B R I TO R E I S ( O R G . )

começaram a serem chamados de inválidos, pessoas incapacitadas ou


pessoas com capacidade residual. Ao redor do globo surgiram várias
nomeações como minorados, impedidos, excepcionais, entre outros. E
atualmente, a Constituição da República Brasileira de 1988 trouxe em
seu bojo a expressão pessoa com deficiência como o termo mais adequado
a ser utilizado.
No Brasil, o tratamento em relação a essas pessoas não era muito di-
ferente dos estrangeiros. Eram considerados os párias da sociedade, sen-
do nomeados de enjeitados, aleijados, retardados e assim como nas outras
sociedades, eles não eram vistos como sujeitos de direitos ou que mere-
cessem alguma vida digna, sendo abandonados, mortos, utilizados como
experimentos científicos, estigmatizados, incompreendidos e abusados.
Isto corroborou para o pensamento explanado abaixo:

As questões que envolvem as pessoas com deficiência no Brasil –


por exemplo, mecanismos de exclusão, políticas de assistencialis-
mo, caridade, inferioridade, oportunismo, dentre outras – foram
construídas culturalmente. (FIGUEIRA, 2009. p.17).

Entretanto, é mister trazer algumas vitórias alcançadas por esta par-


cela da sociedade que para a época foi de grande valia. No séc. XIX, de-
vido ao aumento de conflitos militares, cujos resultados eram a perda de
visão/audição, o imperador Dom Pedro II criou o Imperial Instituto dos
Meninos Cegos e Imperador funda o Imperial Instituto de Surdos Mudos
(atualmente chamados de Instituto Benjamim Constant e Instituto Na-
cional de Educação de Surdos respectivamente). No século XX(modelo
médico) houve a criação de Escolas especiais para crianças com deficiência
intelectual, como o APAE (Associação de Pais e Amigos Excepcionais).

2.2 Legislações Brasileiras.

Segundo dados da ONU ‘’80% das pessoas com algum tipo de defi-
ciência vivem em países em desenvolvimento e entre as pessoas mais
pobres do mundo, 20% têm algum tipo de deficiência (grifo nosso)’’.
Isso demonstra o quão necessário é a existência de legislação específica
que atendam a essas pessoas que carecem de auxílio nas áreas financeiras,

601
DIMENSÕES JURÍDICAS DAS POLÍTICAS PÚBLICAS – VOL. 1

saúde, social, mercado de trabalho e isto não quer dizer que os deficientes
que tem algum poder aquisitivo não precise disto, entretanto, principal-
mente na área da saúde, estes tem maiores possibilidades de terem um
acompanhamento adequado do que um deficiente morador de periferias.
Entre 1880 até meados de 1960, surdos foram proibidos de usar a lín-
gua dos sinais com a justificativa de que eles iriam comprometer o apren-
dizado compulsório da linguagem oral, e assim até 1981 não existiam di-
reitos para as pessoas com deficiência no Brasil.
Em outubro de 1989 foi promulgada a Lei 7.853/89 que dispõe sobre
o apoio das pessoas com deficiência, instituindo a tutela jurisdicional e os
interesses coletivos e difusos das mesmas. Além disto, sua finalidade está
disposta no artigo 2º:

As normas desta Lei visam garantir às pessoas portadoras de defi-


ciência as ações governamentais necessárias ao seu cumprimento
e das demais disposições constitucionais e legais que lhes concer-
nem, afastadas as discriminações e os preconceitos de qualquer es-
pécie, e entendida a matéria como obrigação nacional a cargo do
Poder Público e da sociedade. (BRASIL, 1989)

Depois de uma grande vitória com esta legislação, a qual também


trata de crimes e outras providências em relação às pessoas com deficiên-
cias, outras leis foram surgindo como as leis: 10.048/00 trata da prioridade
no atendimento; 10.098/00 aborda critérios básicos para a promoção da
acessibilidade a pessoas com deficiência ou com mobilidade reduzida; Lei
8.742/93(Lei Orgânica de Assistência Social-LOAS) que explana em seu
artigo 20 sobre o Benefício de Prestação Continuada (BPC) o qual garan-
te um salário mínimo mensal para pessoas com deficiência e idosos (65
ou mais) que comprovem não terem subsídios para sobreviver e nem a sua
família, etc. A Carta Magna é a que contém diversos dispositivos sobre
a pessoa com deficiência, como os que tratam sobre Direitos e garantias
fundamentais, da organização do Estado (especificamente artigos 23 e 24,
incisos II e XIV respectivamente), da administração pública (artigo 37,
inciso VIII), da assistência social. E recentemente o Código Civil de 2002
foi atualizado retirando as pessoas com deficiência do rol daqueles que são
parcialmente incapazes.

602
LU I Z A N TÔ N I O R E I S J U N I O R , M A U R I C I O P I R E S G U E D E S , T E L S O N P I R E S ,
VA N E S S A V E L A S C O, H E R N A N D E S B R I TO R E I S ( O R G . )

Todavia, apesar de tantos avanços nas legislações, há escassez no


cumprimento destes preceitos, principalmente o da Constituição Fe-
deral, e falta de políticas públicas efetivas nas esferas estadual, regional,
municipal e federal. Além disto, o preconceito, o estigma imposto, a
desinformação, a invisibilidade dada aos mesmos, são obstáculos que é
preciso superar.

3.0 Contextos de Violência Familiar das Pessoas com


Deficiência no Brasil

A família:

Consiste em uma instituição social, composta por mais de uma


pessoa física, que se irmanam no propósito de desenvolver, entre si,
a solidariedade nos planos assistencial e da convivência ou simples-
mente descendem uma da outra ou de um tronco comum. (NA-
DER, 2009. p. 3)

Segundo a Constituição, em seu artigo 226, a família é a base da so-


ciedade. Ela é a primeira estrutura com a qual o ser humano irá se de-
parar e conviver por toda a vida, mesmo que ás vezes distante, por isso é
imprescindível que as pessoas, especialmente as crianças, tenham um lar
estruturado, pois é nela que o ser humano desenvolver sua personalidade
e seu caráter para conviver em sociedade.
Ter uma pessoa com deficiência na família afeta-a como um todo.
A mãe é a principal ‘atingida’, pois na maioria das vezes por mais que
alguns pais sejam presentes (pequena porcentagem) é ela quem mais vai
cuidar, proteger, levar para unidades de saúde, entre outras ações que cada
deficiência demanda em relação ao cuidado dos mesmos. Os irmãos dessa
pessoa normalmente apresentam determinadas atitudes: Eles ignoram a
existência do irmão (ã) e tem vergonha do mesmo; ou os maltrata; ou sen-
tem raiva porque acha que os membros da sua família amam mais o outro
do que a ele; ou são extremamente protetores e amáveis.

Concebe que o nascimento de um filho com deficiência acarreta


conflitos de monta para os genitores, em função da necessidade de
uma confrontação dialética entre a ilusão de um filho idealizado

603
DIMENSÕES JURÍDICAS DAS POLÍTICAS PÚBLICAS – VOL. 1

calcado no ego ideal dos pais e o filho real, que teria nascido com
falhas, psiquicamente deficiente. (GÓES, 2006, p.450-461)

Quando um membro da família é uma pessoa com deficiência,


dependendo do tipo que esta for (física, mental, intelectual ou senso-
rial) há um aumento dos gastos, mudanças na rotina, raiva misturada
com culpa, querendo entender, achar um culpado ou autoculpar-se,
em alguns casos (por não ter quem cuide) o familiar responsável pre-
cisa sair do emprego. “Algumas famílias podem apresentar reações
de choque, depressão materna, rejeição e desenvolvimento de expec-
tativas irrealistas sobre a criança” (WILLIAMS, 2003. P.141-154).
Tudo isto é agravado quando a família possui uma baixa renda, o
que acontece na maioria dos casos, pois 20% da população pobre no
mundo são compostas por deficientes e dos 11,8 milhões de pessoas
com deficiência em idade ativa, em 2010, apenas 4 milhões, ou 34%,
estavam ocupadas(IBGE, 2010).
Todas as situações acima citadas não justificam a violência que ocor-
re contra a pessoa com deficiência em seu seio familiar, contudo esses
fatores corroboram para o surgimento de atos violentos. São exemplos
dessa violência de todos os tipos (sexual, física, verbal, psicológica e pa-
trimonial): A negligência; Agressões físicas; vestir, alimentar e higienizar
de maneira irregular/precária; Abusos sexuais; superproteção seguida de
negação da situação; intimidação; isolamento social, excesso de aplicação
de medicamentos, infanticídio, abandono, entre outras. De acordo com
a ONG Essas Mulheres ‘’68% das denúncias de violência a pessoas com
deficiência se referem a mulheres, número que salta a 82%, quando se fala
em violência sexual. ’’
Muitos estudos para acurar os dados sobre a violência contra a pessoa
com deficiência há poucos anos atrás, tinham como principal problema
não terem dados e informações precisas/ suficientes sobre as quantidades
de pessoas e de casos sobre isto para a melhor formulação de políticas pú-
blicas. Entretanto, tais estudos e estatísticas tem evoluído, em 2018 o dis-
que 100 (Disque Direitos Humanos) receberam ligações de 11.572 casos
de violência contra a pessoa com deficiência (representando um aumento
de 0,60% em comparação com 2017) e em abril deste ano houve um re-
latório do aumento exponencial de casos registrados, cerca de 12,9 mil,

604
LU I Z A N TÔ N I O R E I S J U N I O R , M A U R I C I O P I R E S G U E D E S , T E L S O N P I R E S ,
VA N E S S A V E L A S C O, H E R N A N D E S B R I TO R E I S ( O R G . )

tendo grande concentração na região Sudeste com 2.9 mil em São Paulo,
1,9mil em Minas Gerais e 1,4 mil no Rio de Janeiro.

A invisibilidade social é uma poderosa venda que usamos para não


enxergarmos as misérias humanas escancaradas nas sarjetas da so-
ciedade capitalista.

Maria Aparecida Giacomini Dóro

4.0 Contextos de violência familiar em face das pessoas


com deficiência no Brasil e a (in) existência das políticas
públicas.

4.1 A (in) existência das políticas públicas.

Diante de todas as informações acima expostas, é mister verificar a(in)


existência de políticas públicas voltadas para combater a violência contra
pessoas com deficiência. Mediante bastantes pesquisas foi constatada a es-
cassez de políticas públicas voltadas especificamente para o critério violência
e em relação a violência no âmbito familiar nenhuma foi encontrada. Isto
acontece devido a diversos fatores, como a invisibilidade atribuída a essas
pessoas, a escassez de estatísticas específicas dessas violências, as quais como
foi abordado tem mudado devido ao aumento dos casos registrados nos úl-
timo 3 anos, o estigma imposto pela sociedade, a falta de credibilidade dada
ao deficiente quando relata algum abuso, entre outros. O Estado de São
Paulo é o que melhor representa ações afirmativas em face destas violências.

4.2 Exemplos

4.2.1 AMPID (Associação Nacional dos Membros do


Ministério Público de Defesa dos Direitos dos Idosos e
Pessoas com Deficiência)

4.2.1.1- Objetivo

Foi criado em âmbito nacional desde 2004 com a finalidade de pro-


teger e defender os direitos das pessoas idosas e pessoas com deficiência.

605
DIMENSÕES JURÍDICAS DAS POLÍTICAS PÚBLICAS – VOL. 1

Este atua em conjunto com o Congresso Nacional e Organismos Inter-


nacionais, como a ONU E A OEA(organização dos Estados Americanos
e dialoga com alguns órgãos institucionais, como o PGR E O CNJ(Pro-
curadoria Geral da república e o Conselho nacional de Justiça), além de
parcerias com entidades que tenha objetivos em comum. Possui assento
no CONADE(Conselho Nacional dos Direitos da Pessoa com Deficiên-
cia )o qual têm sua origem firmada com o objetivo de acompanhar e veri-
ficar o desenvolvimento de políticas públicas nacionais voltadas a todos os
setores da vida de uma pessoa com deficiência.

4.2.1.2- Exemplos de ações

De acordo com o relatório da AMPID dos anos de 2015-2017 foram


realizadas algumas ações como:
1) A participação nas discussões referentes a Resolução n° 2, de
11/9/2001, da Câmara de Educação Básica do Conselho Nacional de
Educação;
2) Parceria com a Secretaria de Educação Especial do Ministério da
Educação; a elaboração do livro Direito à Educação- Necessidades Educa-
cionais Especiais: subsídios para atuação do Ministério Público brasileiro;
3) A coorganização do I Encontro do Ministério da Educação com
o Ministério Público (2001);

4.2.2 GEIDEF (Grupo de Atuação Especial de Defesa dos


Direitos dos Idosos e das Pessoas com Deficiência).

4.2.2.1- Objetivos

Criado pela resolução 042/2014 pelo órgão especial do Colégio de


Procuradores da Justiça no Estado da Bahia, cujo objetivo está elencado
no artigo 1º da referida resolução, sendo ele:

Artigo 1°-... Destinado a atuar na proteção dos direitos dos idosos


e das pessoas com deficiência, na Comarca da Capital, podendo
atuar em conjunto com os outros órgãos de execução com atribui-
ções nestas áreas, nas comarcas do interior do Estado.

606
LU I Z A N TÔ N I O R E I S J U N I O R , M A U R I C I O P I R E S G U E D E S , T E L S O N P I R E S ,
VA N E S S A V E L A S C O, H E R N A N D E S B R I TO R E I S ( O R G . )

4.2.2.2- Ações

No artigo 3° da resolução anteriormente citada são trazidas algumas


atividades que devem ser desempenhadas pelo GEIDEF, sendo elas:

I. Promover e acompanhar as medidas judiciais, extrajudiciais ou


administrativas em defesa dos direitos dos idosos e das pessoas com
deficiência e, no interior do Estado, atuar em conjunto com o Pro-
motor de Justiça Natural, com a aquiescência deste;

II. Identificar e prevenir atos atentatórios aos direitos dos idosos e


das pessoas com deficiência;

III. Oficiar nas representações, inquéritos civis e procedimentos


preparatórios de inquéritos civis que visem à defesa dos idosos e das
pessoas com deficiência e, no interior do Estado, atuar de modo
integrado com o Promotor de Justiça Natural, verificada a aquies-
cência deste.

4.2.3 - SEDPD – Secretaria de Estado dos Direitos


da Pessoa com Deficiência- COMITÊ ESTADUAL DE
COMBATE À VIOLÊNCIA CONTRA A PESSOA COM
DEFICIÊNCIA

4.2.3.1- Objetivo

O principal objetivo do referido comitê é ‘’ Implementar, gerir e mo-


nitorar as ações do Programa Estadual de Prevenção e Combate à Vio-
lência contra pessoas com deficiência(SEDEP,2020), o qual foi instituído
pelo Decreto 59.316/2013.

4.2.3.2- Ações

Conforme o Decreto supracitado, em seu artigo 4º é elencado suas


principais atividades, são elas:

I - promover a articulação entre os órgãos e entidades envolvidos


na implementação das ações programáticas;

607
DIMENSÕES JURÍDICAS DAS POLÍTICAS PÚBLICAS – VOL. 1

II - colaborar para a estruturação de Planos Municipais de Preven-


ção e Combate à Violência contra Pessoas com Deficiência;

III - fixar e rever prazos para implementação das ações;

IV - estabelecer indicadores para o acompanhamento, monitora-


mento e avaliação dos Planos;

V - acompanhar a implementação das ações e recomendações;

VI - elaborar e aprovar seu regimento interno;

VII - promover consultas e audiências públicas.

5.0- Conclusões

Neste artigo houve uma explanação sobre a problemática da violência


contra pessoas com deficiência em seu âmbito familiar. Para melhor com-
preensão dos pormenores que perfazem este assunto, o objetivo não foi
exauri-lo, e pelos estudos feitos isto é uma impossibilidade, mas demons-
trar ao leitor sobre os desafios enfrentados por uma parcela da sociedade
que tem seus direitos sociais positivados, entretanto na prática há um dé-
ficit de atuação no combate a violência contra estes indivíduos. E também
houve uma síntese histórica que marcaram e ainda marcam a realidade de
muitos brasileiros que possuem algum tipo de deficiência, mas infeliz-
mente, o tripé Estado, família e sociedade, especialmente o segundo, cuja
razão de ser é proteger os membros da sua família demonstram serem os
maiores algozes dos mesmos.
As políticas públicas exemplificadas ainda têm uma ação tímida se
for comparar em âmbito nacional. O Estado de São Paulo é o que mais
se destaca em promover ações em prol do combate a estas violências.
Porém, nas pesquisas feitas não foi encontrado nenhuma política pública
que trabalhe de maneira específica e direta para as violências ocorridas no
âmbito familiar.
Destarte, há ainda grandes desafios para se enfrentar, não por falta
de legislação, e sim pela escassez de ações afirmativas que realmente po-
nham em prática às leis de proteção as pessoas com deficiência. Por mais
que os dados pareçam insuficientes e inconclusos, a quantidade de casos
registrados sobre estas violências (citados neste artigo) demonstram que
é necessário uma ação de coleta de informações de maneira mais direta,

608
LU I Z A N TÔ N I O R E I S J U N I O R , M A U R I C I O P I R E S G U E D E S , T E L S O N P I R E S ,
VA N E S S A V E L A S C O, H E R N A N D E S B R I TO R E I S ( O R G . )

tendo como início estes registros. Além disto, é mister ações que: Divul-
guem maiores informações em escala nacional com o intuito de desmisti-
ficar a cultura do preconceito; Amparo para a família, principalmente em
questão psicológica, mediante explicações sobre a pessoa com deficiência
de que elas não se reduzem a deficiência que a mesma tem e sim que são
sujeitos de direitos e deveres; e aumento da quantidade de pessoas com de-
ficiência em espaços de poder, porque quem vive a situação é o que mais
luta no combate aos desafios enfrentados pelos mesmos.

Referências.

BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federati-


va do Brasil. Brasília, DF: Senado Federal. Centro Gráfico, 1988.

BRASIL. Lei nº 7.853, de 24 de outubro de 1989. Brasília, DF: 168º


da Independência e 101º da República.

CHAVES, Luís de Gonzaga Mendes. Minorias e seu estudo no Brasil.


Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 1, n. 1, p. 149-168, 1970.

Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência: Protocolo Fa-


cultativo à Convenção sobre os Direitos das Pessoas com De-
ficiência: Decreto Legislativo nº 186, de 09 de julho de 2008: De-
creto nº 6.949, de 25 de agosto de 2009: Declaração Universal dos
Direitos Humanos.

DALLARI, Dalmo de Abreu. Direitos Humanos e Cidadania. 2ª ed.


Reform. – São Paulo: Moderna, 2004.

DIVERSA EDUCAÇÃO INCLUSIVA NA PRÁTICA. IBGE cons-


tata 6,7% de pessoas com deficiência no Brasil com nova mar-
gem de corte. Disponível em : https://diversa.org.br/artigos/ibge-
-constata-67-de-pessoas-com-deficiencia-no-brasil/ .Acesso em 26
de ago. de 2020

FIGUEIRA, Emílio. Caminhando em Silêncio – Uma introdução à


trajetória das pessoas com deficiência na História do Brasil. 2º
ed.Rio de Janeiro: Giz editorial, p. 17,2009.

609
DIMENSÕES JURÍDICAS DAS POLÍTICAS PÚBLICAS – VOL. 1

Góes, F. A. B. Um encontro inesperado: os pais e seu filho com defi-


ciência mental. Psicologia:Ciência e Profissão, Brasília, 26 (3), p. 450-
461, 2006. Disponível em: http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?scrip-
t=sci_arttext&pid=S1414-98932006000300009&lng=pt&nrm=iso.
Acesso em 31 de ago. de 2020.

MENDONÇA, Viviane. Minorias sociais - A busca por mais repre-


sentatividade. [Entrevista concedida a] Daniela Gaspari. Revista
Ponto de Fusão. São Paulo. N.6º. P.13-16. 23 ago.2016

NADER, Paulo. Curso de Direito Civil. Vol. 5 – Direito de Família.


1. ed. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2006.

SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo.


24º ed. rev. e atual até a emenda constitucional n.99, de 14/12/2017.
– São Paulo: Malheiros Editores, 2005.

WILLIAMS, L. C. A. Sobre deficiência e violência: Reflexões para uma


análise de revisão de área.  Revista Brasileira de Educação Espe-
cial, 9(2), p.141-154, 2003.    

610
ARTIGOS – CORTES
CONSTITUCIONAIS E
INTERNACIONAIS

611
VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER NO
SÉCULO XXI: O PAPEL DO SISTEMA
INTERAMERICANO NA DEFESA DAS
QUESTÕES DE GÊNERO
Maria Fernanda Machado Bizzo97
Vivian Frade Guedes98

INTRODUÇÃO

A violência doméstica e familiar contra a mulher é um grande proble-


ma social, muitas vezes negligenciado no sistema interno e necessitando
da proteção internacional. Outrossim, a legislação brasileira no que diz
respeito à proteção a mulher teve um grande avanço no século XXI, de
modo que o implemento da Lei 11.340 de 2006, conhecida como Lei
Maria Penha, trouxe uma série de medidas a fim de garantir a integrida-
de da vítima de violência doméstica. A Lei Maria da Penha, inclusive, é
considerada pela ONU (Organização das Nações Unidas, 2010) uma das
mais avançadas sobre o tema.
Entretanto, a consagração desta Lei somente ocorreu após denúncias,
perante a Comissão Interamericana de Direitos Humanos, de inércia es-
tatal na punição de crimes envolvendo violência doméstica. Dessa forma,
a Lei surgiu após a Comissão Interamericana determinar a criação de uma
legislação no Brasil que regulamente as questões de violência de gênero.

97 Graduanda em Direito, na modalidade Integral, pela Escola Superior Dom Helder Câmara
98 Graduanda em Direito, na modalidade Integral, pela Escola Superior Dom Helder Câmara.

613
DIMENSÕES JURÍDICAS DAS POLÍTICAS PÚBLICAS – VOL. 1

Diante do exposto, torna-se necessário realizar considerações a res-


peito da importância de organismos internacionais na garantia de direitos
fundamentais, principalmente ante a omissão estatal. Assim, o presente
trabalho pretende destacar as principais atribuições de entidades interna-
cionais, tais como a Comissão Interamericana e a Corte Interamericana,
na defesa das questões de gênero. 
Desse modo, o presente artigo objetiva demonstrar os impactos do
caso de Maria da Penha Maia Fernandes na Comissão Interamericana.
Ademais, pretende-se realizar um estudo sobre casos emblemáticos de
violações dos direitos da mulher na Corte Interamericana, de modo a bus-
car uma melhor compreensão sobre a proteção à mulher no Sistema Inte-
ramericano. Por fim, relacionar-se-á esse estudo com o aumento nos casos
de violência doméstica durante o período de isolamento social provocado
pela pandemia do COVID-19, com a finalidade de analisar as medidas
adotadas por órgãos públicos e privados.

1. A atuação da Comissão Interamericana de Direitos


Humanos e o caso Maria da Penha vs. Brasil

Para a compreensão da sistemática da violência de gênero, torna-se


mister fazer um breve histórico da consolidação internacional dos direitos
da mulher. Em primeiro lugar, existem tratados e convenções que esta-
belecem direitos e proíbem violações, como a Convenção sobre a Elimi-
nação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher (doravante
“CEDAW”), firmada em 1979, e a Convenção Interamericana para Pre-
venir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher, também conhecida
como Convenção de Belém do Pará, de 1994. 
A CEDAW foi criada tendo em vista que a Declaração Universal dos
Direitos Humanos, de 1948, não era suficiente para garantir a igualdade
material de gênero, sendo necessário um dispositivo específico que promo-
vesse essa igualdade. Embora tenha sido ratificada por 196 Estados, Piovesan
e Pimentel (2011) explicam que essa convenção foi a que mais recebeu res-
salvas pelos signatários, que justificaram com base em argumentos culturais
e religiosos. A maior parte dessas reservas estavam em assuntos envolvendo
a família, demostrando uma elevada dificuldade por parte dos Estados-sig-
natários em reconhecer a igualdade de gênero no âmbito familiar.

614
LU I Z A N TÔ N I O R E I S J U N I O R , M A U R I C I O P I R E S G U E D E S , T E L S O N P I R E S ,
VA N E S S A V E L A S C O, H E R N A N D E S B R I TO R E I S ( O R G . )

Em relação ao sistema interamericano especificamente, tem-se a Con-


venção de Belém do Pará, responsável pela definição de violência contra
a mulher (art. 1º) e pela imposição de deveres aos Estados (arts. 7 a 10),
visando o combate à violência e a garantia de direitos às mulheres (arts. 3
a 6). Assim, em caso de violação do Estado signatário à Convenção, con-
forme o art. 12, pode a parte atingida recorrer à Comissão Interamericana
de Direitos Humanos, que analisará a petição.
A Comissão Interamericana de Direitos Humanos, doravante
“CIDH”, compõe o Sistema Regional Interamericano e objetiva a defesa
dos direitos humanos. Suas atribuições estão previstas no art. 41 da Con-
venção Americana, das quais se destacam a formulação de recomendações
aos Estados-membros, a atuação como órgão de consulta e o recebimento
de denúncias ou queixas de violações das disposições da Convenção por
um dos Estados.
Em relação a essa última função, cabe destacar que a competência
para apresentação dessas denúncias, conforme dispõe o art. 44, é de “qual-
quer pessoa ou grupo de pessoas, ou entidade não-governamental legal-
mente reconhecida em um ou mais Estados membros da Organização”.
Mazzuoli (2007, p. 728) afirma tratar o art. 44 de uma exceção à cláu-
sula facultativa, vez que o Estado não precisa declarar anuência para que
indivíduos recorram à CIDH. Importante ressaltar a desnecessidade do
peticionário ser nacional de um país signatário, haja vista a globalidade da
proteção dos direitos humanos, sendo que, para dar início ao procedimen-
to internacional, “basta que o peticionário se encontre no território do
Estado em causa e tenha ali sofrido uma violação de direitos não reparada
pela justiça interna” (GOMES; MAZZUOLI, 2009, p. 238).
A partir dessas considerações, torna-se possível o entendimento do
desdobramento do caso Maria da Penha Maia Fernandes vs. Brasil, que
culminou na aprovação da Lei 11.340 de 2006. Como será demons-
trado, o Sistema Interamericano foi um dos grandes responsáveis pela
consolidação de um dos maiores dispositivos normativos brasileiros de
proteção à mulher.
Maria da Penha, conjuntamente com o Centro pela Justiça e pelo
Direito Internacional (CEJIL) e com o Comitê Latino-Americano de
Defesa dos Direitos da Mulher (CLADEM), apresentou denúncia perante
a CIDH, que foi recebida pela Comissão em 20 de agosto de 1998. A

615
DIMENSÕES JURÍDICAS DAS POLÍTICAS PÚBLICAS – VOL. 1

denúncia acusou a República Federativa do Brasil de ser tolerante com a


violência doméstica praticada pelo então marido da peticionária, Marco
Antônio Heredia Viveiros, tendo em vista a impunidade do agressor mes-
mo após 15 anos da prática de diversos tipos de violência. A petição alega
violação à Convenção Americana, à Declaração Americana dos Direitos e
Deveres do Homem e à Convenção de Belém do Pará.
A denúncia relata que, em 23 de maio de 1983, Maria da Penha,
farmacêutica domiciliada na cidade de Fortaleza, sofreu uma tentativa de
homicídio enquanto estava dormindo em sua residência. O então cônjuge
da farmacêutica disparou um revólver contra as suas costas, ação essa que
causou, entre outras lesões, a paraplegia irreversível da peticionária. Para
além, Maria, após ter retornado do hospital, tendo sido submetida a uma
série de cirurgias, sofreu uma segunda tentativa de homicídio por Marco
Antônio Heredia Viveiros. Conforme narra a denúncia, ele havia tentado
eletrocutá-la enquanto ela se banhava, acontecimento este que fez com
que a Senhora Maria decidisse separar judicialmente de seu agressor, o que
não havia feito antes por temor.
Ainda é relatado que a tentativa de homicídio foi premeditada, tendo
em vista que Heredia forçara Maria a fazer um seguro de vida em favor
dele. Ademais, ressalta-se o comportamento agressivo e violento de He-
redia Viveiros, tanto com Maria quanto com as filhas do casal, e a sua
infidelidade, tendo este tido um filho na Colômbia e escondido esse fato
da esposa.
Também se alega que, embora Heredia Viveiros tenha sustentado em
defesa que o domicílio do casal fora invadido e que as lesões foram pro-
vocadas por ladrões, a investigação judicial juntou provas da autoria de
Heredia e de sua intenção de matar. A partir disso, Marco Antônio He-
redia Viveiros foi denunciado pelo Ministério Público do Ceará em 28
de setembro de 1984, mas a decisão pelo tribunal do júri só ocorreu em
4 de maio de 1991, 8 anos após a ocorrência do crime, condenando o réu
a 10 anos de prisão. Não bastante, houve um recurso de apelação contra
a decisão (recurso este extemporâneo, frisa-se os peticionários) que foi
acatado pelo Tribunal de Alçada após três anos da interposição, em maio
de 1995, anulando a decisão do júri. Um novo júri ocorreu em março de
1996, no qual Heredias Viveiros foi condenado a 10 anos e 6 meses de pri-
são. Entretanto, a decisão novamente foi apelada, não havendo decisão por

616
LU I Z A N TÔ N I O R E I S J U N I O R , M A U R I C I O P I R E S G U E D E S , T E L S O N P I R E S ,
VA N E S S A V E L A S C O, H E R N A N D E S B R I TO R E I S ( O R G . )

parte do Tribunal de Justiça do Estado do Ceará até a data de interposição


da petição.
Destarte, o agressor de Maria da Penha se manteve impune nesses
15 anos que antecederam o peticionamento do caso à Comissão, além de
não oferecer suporte à vítima, que, em razão das agressões sofridas, pos-
suía maiores dispêndios. Isso demonstra a omissão do Estado brasileiro em
prevenir, combater e reparar a violência doméstica em seu território. No
caso em questão, a ação no Judiciário brasileiro já estava se aproximando
da prescrição, de modo que eram altas as chances de o violentador não so-
frer nenhum tipo de punição. Como alegam os peticionários, não se trata
de um caso isolado, mas de um exemplo dos vários casos de violência em
razão do gênero que o Poder Judiciário se mostra ineficaz.
A CIDH reconheceu a competência na petição, ressaltando que, em-
bora a agressão tenha ocorrido em 1983, em período anterior à vigência
da Convenção Americana e da Convenção de Belém do Pará, a aplicação
desses dispositivos é possível, uma vez que “a alegada tolerância do Estado
a esse respeito poderia constituir uma denegação contínua de justiça em
prejuízo da Senhora Fernandes”. Outrossim, também reconheceu a pre-
sença de todos os requisitos de admissibilidade. Sob esse aspecto, ressal-
ta-se que, não obstante a Convenção Americana exigir que a petição seja
apresentada em até 6 meses da data em que o suposto prejudicado tenha
sido notificado da decisão definitiva (art. 46, 1, b), por não haver, neste
caso, decisão definitiva, a Comissão entendeu pela razoabilidade do prazo
de apresentação.
Durante todo o procedimento na CIDH, o Estado brasileiro se man-
teve silente, apesar dos pedidos de manifestação realizados pela Comissão,
de modo que houve a presunção dos fatos alegados na denúncia. Seguindo
o procedimento da CIDH, ocorreu a análise do caso e a Comissão decidiu
por não o encaminhar à Corte Interamericana, mas enviou ao Brasil o
informe 15/00, apresentando recomendações e dando o prazo de 2 meses
para cumpri-las. Após as sequentes ausências de manifestações, a CIDH
tornou público o relatório final: o Relatório nº 54/01.
Por meio deste, a CIDH estabeleceu uma série de recomendações
destinadas ao cumprimento pelo Estado, entre as quais destacam-se: a
adoção das medidas necessárias para a responsabilização penal do agressor
e para a reparação simbólica e material dos danos sofridos pela vítima;

617
DIMENSÕES JURÍDICAS DAS POLÍTICAS PÚBLICAS – VOL. 1

realizar uma reforma estatal para impedir a tolerância estatal em relação à


violência doméstica e garantir maior celeridade; e aumentar a quantidade
de delegacias especiais de defesa à mulher. Essas recomendações serviram
de base para a criação de uma norma com o objetivo específico de coibir
a violência doméstica. E assim,

A adoção da lei Maria da Penha permitiu romper com o silêncio


e a omissão do Estado brasileiro, que estavam a caracterizar um
ilícito internacional, ao violar obrigações jurídicas internacional-
mente contraídas quando da ratificação de tratados internacionais.
(PIOVESAN; PIMENTEL, 2011, p. 116)

Apesar da Lei 11.340 só ter sido aprovada tardiamente, em 2006, 5


anos após às recomendações da CIDH, ela é considerada pela Organi-
zação das Nações Unidas (ONU) como a terceira melhor do mundo.
Entre os vários aspectos da Lei, realça-se a mudança de paradigma sobre
violência contra a mulher, que anteriormente era considerada crime de
menor potencial ofensivo. Isto posto, destaca-se a definição de violência
doméstica (art. 5º) e a as formas de violência (art. 7º) presentes na Lei, que
permitem uma abordagem ampla à questão.
Ademais, apresenta medidas de prevenção (art. 8º) e procedimentos
de assistência à mulher em situação de violência doméstica (art. 9º) e de
atendimento policial (arts. 10 a 12-C). Também prevê a criação de Juiza-
dos de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher (art. 14) e dispõe
sobre medidas protetivas de urgência (capítulo II). Por fim, cabe ressaltar
a vedação à aplicação de penas de prestação pecuniária e da substituição de
pena que implique o pagamento isolado de multa (art. 17) e o afastamento
dos Juizados Especiais Cíveis e Criminais (art. 41), que, conforme Maria
Berenice Dias (2010), visam evitar a sensação de impunidade do agressor
ao serem realizadas propostas de transação penal.

3. O papel da Corte Interamericana de Direitos


Humanos 

A Corte Interamericana de Direitos Humanos, doravante “CtIDH”,


possui sede fixada na Costa Rica e julga os Estados Interamericanos em

618
LU I Z A N TÔ N I O R E I S J U N I O R , M A U R I C I O P I R E S G U E D E S , T E L S O N P I R E S ,
VA N E S S A V E L A S C O, H E R N A N D E S B R I TO R E I S ( O R G . )

âmbito internacional. Para ter a capacidade de ser demandado na Cor-


te, o Estado deve ratificar a Convenção Americana de Direitos Humanos
(CADH) e ser membro da OEA (Organização dos Estados Americanos).
Faz-se mister entender a competência deste Tribunal. Primeiramente, a
CtIDH apenas atuará quando o Estado houver falhado em punir interna-
mente a violação ou tiver impedido o acesso da vítima à justiça (art. 46,
CADH, 1969).
A divisão de competência ocorre em quatro segmentos, a saber, ratio-
ne materiae, ratione personae, ratione loci e ratione temporis. Dessa forma, para
que o caso seja submetido perante a jurisdição interamericana, é necessá-
rio que seja enviado à CtIDH pela Comissão Interamericana (ratione per-
sonae), consoante o artigo 61.1 da CADH; se trate de violações ocorridas
posteriormente à ratificação da Convenção Americana de Direitos Hu-
manos pelo país acusado (ratione temporis); tenha ocorrido no território do
Estado demandado (ratione loci); e a violação deve-se referir aos direitos
estabelecidos na CADH ou em outras Convenções, mas de forma que se
relacione à algum artigo da Convenção Americana (ratione materiae), como
no exemplo da CEDAW. 
Nesse ínterim, a CtIDH pode reconhecer a violação de gênero pre-
sentes em outros dispositivos, como a Convenção de Belém do Pará.
A violação à essas convenções pode ocorrer em conexão ao artigo 24
da CADH (direito à igualdade), artigo 4º (direito à vida) e inúmeros
outros, quando o motivo da violação estiver relacionado ao gênero da
vítima; por exemplo, no caso de uma mulher ser presa (artigo 7º) ou ser
impedida de expressar sua opinião (art. 13) com base no seu gênero. A
CEDAW também representa importante instrumento no combate à dis-
criminação, estabelecendo que as mulheres devem possuir representati-
vidade nas funções públicas dos Estados (art. 7.b) e devem ser aplicados
os mesmos critérios em processos seletivos que são aplicados à candida-
tos homens (art. 11.1.b).
Nesse sentido caminha a jurisprudência da Corte Interamericana,
que tem aplicado esses institutos em suas sentenças. É imperioso demons-
trar, caso a caso, os critérios que a Corte utilizou para exercer sua juris-
dição e compreender como se dá a proteção da mulher no sistema inte-
ramericano, após a fase da CIDH (como no caso de Maria da Penha) e já
no julgamento pelo Tribunal. Dessa forma, analisar-se-ão os casos mais

619
DIMENSÕES JURÍDICAS DAS POLÍTICAS PÚBLICAS – VOL. 1

importantes da Corte a respeito da tema, perpassando a ratio essendi das


decisões e sua repercussão no Sistema Interamericano.
Marco histórico da violência de gênero, o caso Presídio Miguel Cas-
tro Castro vs. Peru é o primeiro julgamento a fazer uso da Convenção
de Belém do Pará (CBP) em sua fundamentação. Os fatos são datados de
maio de 1992 e a sentença da Corte ocorreu no dia 25 de novembro de
2006. Tratava-se de uma transferência de 90 presas, originadas do Presídio
Miguel Castro Castro e a caminho de uma penitenciária feminina. Toda-
via, os agentes estatais encarregados da transferência utilizaram de explo-
sivos, bombas, armas de choque e meios completamente desproporcionais
à operação, porquanto as presas não estavam apresentando nenhuma con-
duta de risco que justificasse essas medidas (§§239-241 da sentença).
Após chegarem ao hospital, constatou-se que as vítimas haviam so-
frido violências sexuais praticadas pelos agentes, enquanto o Estado per-
maneceu inerte face a apuração desses crimes. Além disso, as presas não
estavam recebendo o tratamento médico necessário dentro do presídio.
Baseando-se na Convenção de Belém do Pará, a Corte estabeleceu o con-
ceito de violência sexual, sendo entendida como “ações de natureza se-
xual cometidas contra o consentimento de uma das partes, o que pode in-
cluir atos em que não haja penetração ou qualquer tipo de contato físico”
(MAZZUOLI, 2019, p. 544). Esse entendimento é inovador, porquanto
o Tribunal considerava anteriormente a violação sexual apenas o contato
físico sem consentimento, por meio anal ou vaginal.
Importante frisar que a CtIDH firmou o entendimento de que a
violência sexual praticada por agentes estatais em contextos militares ou
em situação de cárcere é especialmente grave, haja vista a impotência da
vítima nesse cenário, o trauma sofrido e o propósito do agente público
de humilhar significativamente as mulheres. Esse fator torna a violência
sexual ainda mais reprovável, como denota a sentença (§311). O Peru foi
condenado por violação aos artigos 1º, 4º, 5º, 8º e 25 da CADH, ao lado
do art. 7.b da CBP e arts. 1º, 6º e 8º da Convenção Interamericana para
Prevenir e Punir a Tortura.
O caso Gonzáles e outras (Campo Algodoeiro) vs. México, julgado
em 16 de novembro de 2009, trouxe entendimentos basilares a respeito
da violência estrutural de gênero. A demanda tratava a respeito do desa-
parecimento de várias jovens na cidade de Juarez, sendo inexistente qual-

620
LU I Z A N TÔ N I O R E I S J U N I O R , M A U R I C I O P I R E S G U E D E S , T E L S O N P I R E S ,
VA N E S S A V E L A S C O, H E R N A N D E S B R I TO R E I S ( O R G . )

quer ação do Estado, o que culminou no aparecimento do corpo de três


das jovens que foram mortas, demonstrando que as vítimas haviam estado
em cárcere privado e sofrido violência sexual. Na sentença (§76), a Corte
firmou que é competente diretamente para julgar as violações advindas
da CBP, além de ter reconhecido que o México é caracterizado por um
contexto de impunidade à violência de gênero, devido ao fato de que as
violações se deram de modos diferentes e em períodos distintos (MA-
ZZUOLI, 2019, p. 548).
Merece destaque o estabelecido pela Corte no caso J. vs. Peru, sen-
tenciado em 27 de novembro de 2013. Tratou-se de uma jornalista que foi
associada ao comunismo, que era combatido durante o estado de exceção
no Peru, entre os anos de 1980 e 2000, sendo que a vítima permaneceu
presa por 17 dias, sem ordem judicial competente ou prisão em flagran-
te, sofrendo nesse período violação sexual e várias formas de tortura. O
avanço da Corte nesse aspecto diz respeito à questão probatória nos cri-
mes de violência sexual, sendo que a declaração da vítima constitui prova
fundamental do ocorrido, haja vista a própria natureza do delito, que é
geralmente realizado em ausência de outras pessoas que não a vítima e o
agressor (§323), não podendo, por isso, esperar que existam provas gráfi-
cas ou documentais da violência (MAZZUOLI, 2019, p. 555).
Além disso, a própria produção de provas nesse tipo de crime é es-
cassa, devido à particularidade do delito (presença apenas da vítima e do
agressor) e enorme trauma físico e psicológico sofrido pela vítima. Por
essa razão, a Corte considera como essencial a realização de perícia mé-
dica imediata após o período em que alguém esteve sob a custódia estatal
(§§329-333 desta sentença e também Caso Buenos Alves vs. Argentina,
2007, §111). O Tribunal entendeu que a ausência de exame pericial não
pode desacreditar a vítima, ainda mais quando essa estava sob a custódia
estatal (Caso Fernández Ortega e outros vs. México, §112).
Nesse mesmo período de estado de exceção no Peru, as violações se
deram de maneira estrutural, sendo que outra vítima também teve suas
violações levadas à Corte. A vítima foi abordada pela polícia peruana em
1993 e foi condenada por traição à pátria, sofrendo violência sexual e
maus-tratos. Na sentença do caso Espinoza Gonzáles vs. Peru, em 20 de
novembro de 2014, a Corte reafirmou a flexibilização probatória nos casos
de violência sexual, ainda mais quando as vítimas se encontram retidas no

621
DIMENSÕES JURÍDICAS DAS POLÍTICAS PÚBLICAS – VOL. 1

mesmo local da agressão e com seu agressor, sendo irrazoável exigir que
elas denunciem todo ato sofrido de violência, em virtude do transtorno
psicológico que revolve em torno desse tipo de delito (§149). A ideia de
que a vítima evita denunciar pelo temor de represálias já havia sido fixada
no caso Bayarri vs. Argentina, de 30 de outubro de 2008, §92.
O caso Yarce e outras vs. Colômbia foi julgado na data de 22 de no-
vembro de 2016 e condenou a Colômbia por várias violações praticadas
em face de cinco defensoras de direitos humanos e suas famílias. Durante
um período de exceção, cinco líderes de associações que defendiam os di-
reitos humanos (justamente por estar em um contexto de restrição de ga-
rantias estatais) foram presas sem justificativa legal, sofrendo, ainda, viola-
ções sexuais apenas por sua condição de gênero – ser mulher. Em verdade,
todo o cenário colombiano na época demonstrava que as mulheres eram
as principais vítimas do poder estatal, porquanto o uso da força dirigida às
mulheres era desproporcional e mais frequente. Essa circunstância já havia
sido reportada múltiplas vezes perante organismos internacionais (§243).
Na sentença (§194), a Corte relembrou o dever dos Estados signa-
tários da Convenção de Belém do Pará, sob o artigo 7.b, evidenciando
que a Colômbia deveria ter protegido as mulheres defensoras de direitos
humanos em virtude de tal disposição legal.  Nesse caso também é possí-
vel falar em violência estrutural, haja vista a CtIDH ter reconhecido que
os desaparecimentos forçados e violências cometidas contra as mulheres
eram advindos de profundas distinções e discriminações contra o gênero.
As cinco defensoras de direitos humanos estiveram em estado de vulne-
rabilidade agravada, estando expostas a “perigos de toda índole” (§243).
Além disso, o caso é importante para delimitar a responsabilidade dos
agentes estatais que se omitiram diante de tais violações. Nesses termos,
entende-se que o agente será responsabilizado quando: (i) existia uma si-
tuação de risco real e iminente, ao tempo dos fatos; (ii) o risco era conhe-
cido ou deveria ter sido conhecido pelas autoridades; (iii) “as autoridades
não tinham adotado as medidas necessárias dentro do âmbito de suas atri-
buições que, julgadas razoavelmente, podiam ter prevenido e evitado o
risco” (MAZZUOLI, 2019, p. 566).
No caso I.V. vs. Bolívia, julgado em 30 de novembro de 2016, a Cor-
te exerceu jurisdição sobre fatos que dizem respeito à autodeterminação
de cada indivíduo. In casu, a senhora I.V. havia se dirigido a um hospital

622
LU I Z A N TÔ N I O R E I S J U N I O R , M A U R I C I O P I R E S G U E D E S , T E L S O N P I R E S ,
VA N E S S A V E L A S C O, H E R N A N D E S B R I TO R E I S ( O R G . )

público espontaneamente, para tratar do rompimento da bolsa amniótica


de seu terceiro filho, quando os funcionários do hospital realizaram uma
laqueadura na vítima sem seu consentimento. O Tribunal considerou
como violada a liberdade pessoal da vítima, haja vista terem sido feitas
alterações significativas em seu corpo sem o seu consentimento, ferindo a
capacidade própria de cada indivíduo realizar suas próprias escolhas.
Importante ter em mente que a Comissão e as representantes das vítimas
não haviam solicitado a violação do artigo 7º (privação de liberdade), porém, a
Corte condenou, mesmo sem o pedido expresso, em virtude do princípio jura
novit curia, reafirmado pela Corte no §151 desta sentença e também em outros
casos (ex vi Cinco Pensionistas vs. Peru, 2003, §155 e Durand e Ugarte vs.
Peru, 2000, §75). Esse princípio é fundamental para reafirmar a plenitude do
direito de petição perante a Corte, além da capacidade ampla das vítimas de
direitos humanos defenderem seus interesses subjetivos.
Ademais, a Corte afirmou que “as escolhas e decisões em relação à
maternidade formam parte essencial do livre desenvolvimento da perso-
nalidade das mulheres. Por consequência, a decisão de ser ou não ser mãe
ou pai pertence à esfera autônoma dos indivíduos” (MAZZUOLI, 2019,
p. 570). Ressalte-se o entendimento da CtIDH de que a saúde é decor-
rência direta do direito à vida privada e integridade pessoal, sendo obri-
gação do Estado fornecê-la, mantendo sempre os padrões de qualidade
e fornecendo meios administrativos e judiciais para a vítima que even-
tualmente sofrer violação (§154). Portanto, ao prover a saúde, o Estado
deve fornecer informações suficientes para que o próprio indivíduo tenha
liberdade de escolha sobre sua saúde e seu corpo (§155).
Por derradeiro, as jurisprudências retro mencionadas servem de
escopo para compreender o funcionamento da Corte Interamerica-
na de Direitos Humanos no que tange à proteção da mulher. Seja no
contexto doméstico ou em estado de exceção, o Sistema Interameri-
cano seguramente logrou êxito em avançar na proteção desse gênero. 

4. Contexto atual: medidas adotadas durante a


pandemia do COVID-19

Ante todo o exposto, observa-se que a tutela específica das questões


de gênero nos tratados internacionais, visando a obtenção da igualdade

623
DIMENSÕES JURÍDICAS DAS POLÍTICAS PÚBLICAS – VOL. 1

material, é um meio para a consagração desses direitos também nas legis-


lações internas dos Estados americanos. Para além, a previsão normativa
internacional permite uma alternativa de obtenção de justiça em casos de
omissão e negligência estatal. Dessa forma, afirma-se que o desenvolvi-
mento do Sistema Interamericano no século XX foi essencial para a con-
solidação de medidas de proteção à mulher vítima de violência em razão
do gênero que existem atualmente nos Estados americanos.
Entretanto, a violência doméstica ainda é atual e necessita de cons-
tante atenção, de modo a se pensar em novas estratégias de combate a esse
grande problema social, principalmente tendo em vista as inovações tec-
nológicas do século XXI. Com base nisso, frisa-se o alerta para o aumento
dos casos de violência doméstica durante o período de isolamento social
acarretado pela pandemia do COVID-19.
Conforme Phumzile Mlambo-Ngcuka, diretora executiva da ONU
Mulheres e vice-secretária geral das Nações Unidas, a tensão provocada
pela pandemia (tendo em vista as preocupações com a saúde e as finanças),
aliada ao confinamento com parceiros violentos é um ambiente favorá-
vel para a ocorrência de violência doméstica, de modo a ser imperioso
a adoção de providências. De acordo com o Fórum Brasileiro de Segu-
rança Pública (2020), somente entre março e abril de 2020, o índice de
feminicídio aumentou 22,2% no Brasil, e, em São Paulo, as chamadas
para a polícia militar nos casos envolvendo violência doméstica aumentou
44,9% em comparação com o mesmo período de 2019. A partir dessas
informações, exemplificam-se medidas adotadas durante esse período, no
Brasil, a fim de demonstrar o engajamento dos setores públicos e privados
com essa temática, que anteriormente era extremamente negligenciada.
Uma dessas medidas foi a edição da Lei nº 14.022, de 7 de julho de
2020, que completa a Lei nº 13.979, responsável por determinar medidas
para o enfrentamento da pandemia. A Lei nº 14.022 inclui os serviços rela-
cionados ao atendimento de mulheres em situação de violência doméstica
como atividade essencial; mantém sem suspensão os prazos processuais que
tenham relação com atos de violência doméstica e familiar; permite que o
registro desse tipo de violência ocorra por meio eletrônico ou por meio de
número de telefone de emergência designado para tais fins; prevê a manu-
tenção do atendimento presencial às vítimas dessa violência; garante a pos-
sibilidade de solicitação, pela ofendida, de medidas protetivas de urgência

6 24
LU I Z A N TÔ N I O R E I S J U N I O R , M A U R I C I O P I R E S G U E D E S , T E L S O N P I R E S ,
VA N E S S A V E L A S C O, H E R N A N D E S B R I TO R E I S ( O R G . )

por meios virtuais; estimula a promoção de campanhas sobre a prevenção da


violência e sobre acesso aos mecanismos de denúncias; entre outras.
Assim, a Lei visa assegurar uma maior proteção às vítimas em um perío-
do em que a liberdade de locomoção é limitada. Entretanto, ressalta-se que
essas medidas poderiam ter sido editadas antes, tendo em vista que o isola-
mento social no Brasil iniciou em março e a lei só foi promulgada em julho.
Outra medida adotada pelo setor público, dessa vez em parceria com
o setor privado, foi a Campanha Sinal Vermelho. Lançada pelo Conselho
Nacional de Justiça (CNJ) e pela Associação dos Magistrados Brasileiros
(AMB) em parceira com farmácias e drogarias de todo o país, a campanha
consiste na realização de “denúncias silenciosas”. Para isso, as vítimas, ao
comparecer nos estabelecimentos parceiros, devem fazer um “X” verme-
lho na palma da mão e mostrar para o farmacêutico ou balconista, que
telefonarão para o disque 190, reportando a situação às autoridades com-
petentes. Dessa forma, a campanha visa auxiliar as vítimas que possuem
restrição de comunicação (como por exemplo no caso em que o agressor
não deixa sua esposa ter acesso à internet e ao telefone), mas que conse-
guem frequentar farmácias.
Por fim, destacam-se medidas adotadas exclusivamente por empresas
privadas, como é o caso da Magazine Luiza, que possui, desde 2019, em seu
aplicativo um botão de denúncia que conecta a vítima à Central de Aten-
dimento à Mulher (número 180). Esse mecanismo, embora não tenha sido
criado em virtude da pandemia, ganhou muita notoriedade hodiernamen-
te. Também se enfatiza a iniciativa das empresas Natura e Avon, que se
uniram para lançar a campanha “#IsoladasSimSozinhasNão”, que objetiva,
de acordo com Cida Franco, diretora de vendas no Brasil, “dar suporte,
orientação e contribuir para que as vítimas saibam identificar situações de
violência e a quem recorrer neste momento”. Além disso, as empresas ainda
realizam parcerias para a produção de diversos conteúdos digitais visando
auxiliar as mulheres a identificar e a lidar com relações abusivas.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Certamente o papel do Sistema Interamericano no combate à violência


doméstica e proteção da mulher é ímpar. De forma basilar, a jurisprudência
da Corte Interamericana realizou exímios avanços no conceito de violência

625
DIMENSÕES JURÍDICAS DAS POLÍTICAS PÚBLICAS – VOL. 1

sexual, no reconhecimento da flexibilidade probatória nos delitos de estu-


pro, na importância do depoimento prestado pela vítima nesse tipo de de-
lito e na identificação dos casos de violência estrutural, entre outros. Além
disso, a Corte declarou possuir competência direta para julgar as violações
da Convenção de Belém do Pará, marco importantíssimo na definição dos
tipos de violência contra a mulher e as medidas estatais a serem adotadas. 
O caráter subsidiário e complementar do Direito Internacional ga-
rante que todas as vítimas de violência doméstica ou de discriminação
pela condição de mulher possam ser abarcadas além do âmbito jurídico
nacional, requisitando medidas protetivas até mesmo para a Corte Inte-
ramericana, quando o sistema do país falhar ou se manter inerte. Nesse
sentido, o papel fundamental dessas cortes internacionais, além de garan-
tir, em última instância, os direitos dos demandantes, é também assegurar
que os países signatários da Convenção possam adequar os seus direitos
internos respectivos, já efetivando a proteção no âmbito nacional. Essa
exigência, dada pelo artigo 2º da CADH, foi concretizada, por exemplo,
no momento em que o Brasil promulgou a Lei 11.340/06, em observância
às recomendações emitidas pela CIDH. 
Em miúdos, se reconhece a primordialidade da Lei Maria da Penha
como instrumento defensor dos direitos fundamentais das mulheres bra-
sileiras, além da competência precípua do Sistema Interamericano para
efetivar tais direitos. Rememora-se, ainda, a constante necessidade de
atualização dos meios disponíveis para lograr a proteção da mulher, como
é o caso das medidas adotadas durante a pandemia do COVID-19. 

REFERÊNCIAS:

BRASIL. Lei nº 11.340/2006. Disponível em: <http://www.planalto.


gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2006/lei/l11340.htm>. Acesso em
24/08/2020.

BRASIL. Lei nº 14.022. Disponível em: <http://www.planalto.gov.


br/ccivil_03/_ato2019-2022/2020/lei/L14022.htm >. Acesso em:
30/08/2020.

COMISSÃO INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS.


Convenção Americana de Direitos Humanos. 1969. Disponí-

626
LU I Z A N TÔ N I O R E I S J U N I O R , M A U R I C I O P I R E S G U E D E S , T E L S O N P I R E S ,
VA N E S S A V E L A S C O, H E R N A N D E S B R I TO R E I S ( O R G . )

vel em: <https://www.cidh.oas.org/basicos/portugues/c.convencao_


americana.htm>. Acesso em: 25/08/2020.

______. Convenção para Prevenir, Punir e Erradicar e Violência


Contra a Mulher. 1994. Disponível em: <http://www.onumu-
lheres.org.br/wp-content/uploads/2013/03/convencao_cedaw.pdf>.
Acesso em: 25/08/2020.

______. Relatório n. 54/01: caso 12.051, Maria da Penha Maia Fer-


nandes vs. Brasil. Disponível em: < http://www.cidh.oas.org/an-
nualrep/2000port/12051.htm >. Acesso em: 25/08/2020. 

CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Sinal Vermelho: CNJ


lança campanha de ajuda a vítimas de violência doméstica na
pandemia. 10 de junho de 2020. Disponível em: <https://www.cnj.
jus.br/sinal-vermelho-cnj-lanca-campanha-de-ajuda-a-vitimas-de-
-violencia-domestica-na-pandemia/>. Acesso em 31/08/2020.

CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Case


of the Miguel Castro-Castro Prison v. Peru. Judgement of No-
vember 25, 2006. Disponível em: <https://www.corteidh.or.cr/docs/
casos/articulos/seriec_160_ing.pdf>. Acesso em: 25/08/2020.

 ______. Caso Bayarri vs. Argentina. Sentença de 30 de outubro de


2008. Disponível em: <https://www.corteidh.or.cr/docs/casos/arti-
culos/seriec_187_por.pdf>. Acesso em: 15/08/2020. 

______. Caso Bueno Alves vs. Argentina. Sentença de 11 de maio


2007. Disponível em: <https://www.corteidh.or.cr/docs/casos/arti-
culos/seriec_164_esp.pdf>. Acesso em: 25/08/2020. 

______. Caso Cinco Pensionistas vs. Peru. Sentença de 28 de feverei-


ro de 2003. Disponível em: < https://corteidh.or.cr/docs/casos/arti-
culos/Seriec_98_esp.pdf>. Acesso em: 25/08/2020. 

______.  Caso Durand e Ugarte vs. Peru. Sentença de 16 de agosto de


2000. Disponível em: < https://www.corteidh.or.cr/docs/casos/arti-
culos/Seriec_68_esp.pdf>. Acesso em: 25/08/2020. 

627
DIMENSÕES JURÍDICAS DAS POLÍTICAS PÚBLICAS – VOL. 1

______. Caso Espinoza Gonzáles vs. Peru. Sentença de 20 de novem-


bro de 2014. Disponível em: <https://www.corteidh.or.cr/docs/ca-
sos/articulos/seriec_289_esp.pdf>. Acesso em: 25/08/2020.

______. Caso Fernández Ortega e outros vs. México. Sentença de


30 de agosto de 2010. Disponível em: <https://www.cnj.jus.br/wp-
-content/uploads/2016/04/1ca33df39cf74bbb341c4784e83bd231.
pdf>. Acesso em: 25/08/2020. 

______. Caso Gonzáles e outras vs. México. Sentença de 16 de No-


vembro de 2009 (Exceção Preliminar, Mérito, Reparações e Cus-
tas), §401. Disponível em: <http://www.corteidh.or.cr/docs/casos/
articulos/seriec_205_por.pdf>. Acesso em: 25/08/2020.

______. Caso I.V. vs. Bolívia. Sentença de 30 de novembro de 2016.


Disponível em: <http://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/se-
riec_329_esp.pdf>. Acesso em: 25/08/2020. 

______. Caso J. vs. Peru. Sentença de 27 de novembro de 2013. Dis-


ponível em: <https://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/se-
riec_275_esp.pdf>. Acesso em: 25/08/2020.

  ______. Caso Yarce e outras vs. Colômbia. Disponível em: <ht-


tps://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_325_esp.pdf>.
Acesso em: 25/08/2020. 

DIAS, Maria Berenice. A Lei Maria da Penha na justiça: a efetivida-


de da Lei 11.340/06 de combate à violência doméstica e fami-
liar contra a mulher. 2.ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010.

GOMES, Luiz Flávio; MAZZUOLI, Valério de Oliveira. Comentários


à Convenção Americana sobre Direitos Humanos: Pacto de
San José da Costa Rica. 2ª ed., rev., atual. e ampl. São Paulo: Re-
vista dos Tribunais, 2009.

ISOLADAS SIM, SOZINHAS NÃO: MOVIMENTO ALERTA SO-


BRE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA NA QUARENTENA. Na-
tura Cosméticos. Disponível em: < https://www.natura.com.br/
isoladas-sim-sozinhas-não>. Acesso em: 31/08/2020.

628
LU I Z A N TÔ N I O R E I S J U N I O R , M A U R I C I O P I R E S G U E D E S , T E L S O N P I R E S ,
VA N E S S A V E L A S C O, H E R N A N D E S B R I TO R E I S ( O R G . )

MAZZUOLI, Valério de Oliveira. Curso de Direito Internacional


Público. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007.

______. Direitos Humanos na Jurisprudência Internacional: Sen-


tenças, Opiniões Consultivas, Decisões e Relatórios Interna-
cionais. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: Método, 2019. 

FÓRUM DE SEGURANÇA PÚBLICA. Nota técnica: Violência


doméstica durante a pandemia de Covid-19 – ed. 2. 29 de maio
de 2020. Disponível em: <https://forumseguranca.org.br/wp-con-
tent/uploads/2020/06/violencia-domestica-covid-19-ed02-v5.pdf>.
Acesso em 29/08/2020.

ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Convenção Sobre a


Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Contra a
Mulher. 1979. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/cci-
vil_03/decreto/2002/D4377.htm>. Acesso em: 20/08/2020.

ONU MULHERES. Violência contra as mulheres e meninas é pan-


demia invisível, afirma diretora executiva da ONU Mulheres.
Disponível em: <http://www.onumulheres.org.br/noticias/violen-
cia-contra-as-mulheres-e-meninas-e-pandemia-invisivel-afirma-
-diretora-executiva-da-onu-mulheres/>. Acesso em 30/08/2020.

PIOSEVAN, Flávia; PIMENTEL, Silvia. A Lei Maria da Penha na pers-


pectiva da responsabilidade internacional do Brasil. In: CAMPOS,
Carmen Hein de (org.). Lei Maria da Penha: comentada em
uma perspectiva jurídico-feminista. Rio de Janeiro: Lumen Ju-
ris, 2011.

629
JUSTIÇA CONSTITUCIONAL: O
PAPEL DA DEFENSORIA PÚBLICA NA
JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL DA
LIBERDADE NO BRASIL
João Paulo Marques dos Santos99

INTRODUÇÃO

Ao falar de Justiça Constitucional ou jurisdição constitucional, é co-


mum associar esse termo ao controle de constitucionalidade realizado pelo
Supremo Tribunal Federal, porém e se fosse afirmado que todo direito ou
garantia fundamental pudesse ser implementado ou protegido por meio
de qualquer ação junto ao juízo ordinário, sem a necessidade da análise do
Supremo Tribunal Federal.
A jurisdição constitucional da liberdade é a função da Justiça Con-
stitucional responsável pela proteção e implementação dos direitos e ga-
rantias fundamentais da Constituição, cuja manifestação ocorre através de
qualquer ação proposta junto ao Poder Judiciário.
É dever de qualquer julgador, antes de analisar o mérito da ação judicial,
realizar a análise de adequabilidade do direito junto à Constituição, haja
vista sê-la o ponto de partida para, posteriormente, compreender o caso
concreto. Embora relevante essa jurisdição, ainda é pouco explorada pelos
operadores do direito.

99 Doutorando e mestre pela Faculdade Autônoma de Direito - FADISP. Bacharel em Direito


pela Faculdade Martha Falcão. Pesquisador da Academia Brasileira de Direito Constitucional
- ABDConst.

630
LU I Z A N TÔ N I O R E I S J U N I O R , M A U R I C I O P I R E S G U E D E S , T E L S O N P I R E S ,
VA N E S S A V E L A S C O, H E R N A N D E S B R I TO R E I S ( O R G . )

Estudos demonstram que a jurisdição constitucional da liberdade com-


preende a atuação do Poder Judiciário para a proteção dos direitos funda-
mentais que foram violados pelo Poder Publicou ou não. No México esse
mecanismo é utilizado a partir do recurso ou direito de amparo, na Ale-
manha, por meio do recurso constitucional, o qual é permitido após esgota-
da todas as vias ordinárias para a proteção do direito fundamental violado.
No Brasil, essa jurisdição se manifesta através de qualquer ação judi-
cial, inclusive por meio dos remédios constitucionais, que possuem âmbi-
to de proteção pré-estabelecidos. Vale destacar, que a defesa desses direit-
os por meio de ações ordinárias, não permite concluir que essa proteção
não ocorra por meio do processo objetivo. Autores como Afonso da Silva
(1999) e Baracho (2014) abordaram a temática, porém não trouxeram o
papel da Defensoria Pública na construção dessa jurisdição.
Em razão disso, o objetivo da presente pesquisa é discutir a influência
da jurisdição constitucional da liberdade para a consubstanciação do mod-
elo de Justiça Constitucional brasileiro, sobretudo a partir das funções in-
stitucionais da Defensoria Pública de proteção dos direitos fundamentais.
Com o fim de alcançar esse objetivo, a pesquisa foi dividida em qua-
tro tópicos. O primeiro destinado à discussão o objeto da jurisdição con-
stitucional e a sua manifestação no ordenamento jurídico. O segundo
abordará de forma sucinta a formação da doutrina da jurisdição consti-
tucional da liberdade. O terceiro será discutido como a jurisdição con-
stitucional da liberdade se manifesta no Brasil e por meio de quais ações.
O quarto tópico abordará as funções institucionais da Defensoria Pública
que estão relacionadas com a proteção e efetivação dos direitos fundamen-
tais junto à jurisdição constitucional.

1. JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL

A jurisdição constitucional consiste na proteção da regularidade


formal e material da Constituição, não qualquer uma, mas aquela de
características rígidas, cujo processo de alteração seja dotada de meca-
nismos mais restritivos do que aqueles atribuídos à legislação comum
(KELSEN, 2011).
A Constituição é a representação do ordenamento básico do Estado
e da sociedade, um verdadeiro alicerce para construção do ordenamento

631
DIMENSÕES JURÍDICAS DAS POLÍTICAS PÚBLICAS – VOL. 1

jurídico que representará a cultura, a história, os valores e as conquistas


daquela sociedade (HÄBERLE, 2001).
Essa representatividade da Constituição é o ponto de partida para
compreender a necessidade de proteção, qual se manifesta de maneira ob-
jetiva e subjetiva. A primeira está relacionada à proteção das características
orgânicas das Instituições Constitucionais. A segunda, envolve a guarda
e implementação dos direitos fundamentais dos cidadãos (CASCAJO
CASTRO, 1975).
Para Häberle (2001), a função da jurisdição constitucional é:

(…) la restricción, racionalización y el control del poder estatal y


social; es cooperación material en el consenso básico; estriba en
toda nueva protección de las minorías y los débiles, en reaccio-
nar tempestiva y flexiblemente a los nuevos peligros para la digni-
dad del hombre, en su carácter de respuesta y guía no apolíticas.
(HÄBERLE, 2001, p. 175)

A ideia por traz da jurisdição constitucional, portanto, está para além


da proteção da Constituição por si só, mas na efetivação de direitos e ga-
rantias constitucionais, rechaçando os abusos praticados contra a cogência
de suas normas, em especial aquelas que são fruto da atuação ou omissão
do Estado, em razão do caráter (i) libertário e negativo dos direitos funda-
menais da liberdade, e (ii) assistencial e positivo, dos direitos fundamentais
sociais.
A jurisdição constitucional, portanto, é uma das formas de manifes-
tação do constitucionalismo, que visa para além da proteção da Consti-
tuição, combater a formação fortuita de absolutismos inconstitucionais.

2. A JURISDIÇÃO DE GARANTIA DOS DIREITOS


FUNDAMENTAIS: EIS A JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL
DA LIBERDADE

A jurisdição constitucional da liberdade consiste na atividade juris-


dicional destinada à proteção dos direitos fundamentais do ser humano,
podendo ser exercida por meio de uma das ações ou remédios constitucio-
nais (AFONSO DA SILVA, 1999). Em outras palavras, ela representa a

632
LU I Z A N TÔ N I O R E I S J U N I O R , M A U R I C I O P I R E S G U E D E S , T E L S O N P I R E S ,
VA N E S S A V E L A S C O, H E R N A N D E S B R I TO R E I S ( O R G . )

efetivação dos direitos e garantias fundamentais previstas na Constituição,


ou seja, ela reflete a mais “(...) eficaz respuesta del Estado democrático a
la exigencia de asegurar una tutela efectiva de los derechos fundamentales
de la persona garantizados por las cartas constitucionales (...)” (ROLLA,
2001, p. 72). 
Isso não significa, necessariamente, que o único instrumento de de-
fesa desses direitos fundamentais seja o controle de constitucionalidade.
Pelo contrário, os remédios constitucionais que, em regra, são direciona-
dos aos juízes ordinários, visam restabelecer o status quo anterior à violação
dos direitos fundamentais.  
O mais antigo mecanismo jurídico que buscou garantir o direito à li-
berdade, sem dúvidas, foi o habeas corpus, que surgiu na Inglaterra, durante
a idade média, e se espalhou por todos os países latino-americanos e na
Europa ocidental (FIX ZAMUDIO, 1999).
Na Alemanha, o instrumento pelo qual se protege os direitos funda-
mentais é o Recurso constitucional (Grundrechtsgerichtsbarkeit), por meio
do art. 93, inciso 4º, da Constituição Alemã, autoriza-se os particulares a
apresentá-lo, perante o Tribunal Constitucional Federal, quando esgotados
os meios de defesa ordinários (AFONSO DA SILVA, 1999; CAPPELLET-
TI, 1961; CASCAJO CASTRO, 1975; FIX ZAMUDIO, 1999).
Outro instrumento de extrema importância para a proteção dos direi-
tos fundamentais é o recurso ou direito de amparo, que surgiu na Consti-
tuição de 1857 do México, cuja finalidade é proteger o cidadão contra as
violações de um dos seus direitos fundamentais, desde que não fossem o
direito de liberdade ou à integridade pessoal (CAPPELLETTI, 1984; FIX
ZAMUDIO, 1999). Na Espanha, por outro lado, esse mesmo recurso
visa tutelar os direitos fundamentais da pessoa, objeto mais amplo do que
o amparo no México, nas palavras de Cascajo Castro e Sendra (1992): 

El T.C., en tanto que guardián e intérprete supremo de la Consti-


tución (art. 1 LOTC), tiene como especial misión la defensa de los
derechos fundamentales, la cual se concreta en una doble activi-
dad: desde un punto de vista subjetivo, y frente ao control difuso de
tales derechos por parte de los Tribunales ordinarios, el T.C. con-
centra en él y asume la defensa de tales derechos, con respecto a los
cuales ostenta siempre la <<última palabra>>: desde un punto de

633
DIMENSÕES JURÍDICAS DAS POLÍTICAS PÚBLICAS – VOL. 1

vista objetivo, y ante cualquier vulneración de una norma constitu-


cional que tutele alguno de tales derechos, le corresponde también
la función de reinstaurar el ordenamiento constitucional vulnerado
y, a través de la interpretación, crear, incluso, la oportuna doctrina
legal que ha de vincular a todos los poderes públicos, tal y como
establece el art. 5, 1 de la LOPJ. (CASCAJO CASTRO; SEN-
DRA, 1992, p. 90)

Neste ponto, aliás, Häberle (2014, p. 31–32), ao reconhecer que uma


das funções do Tribunal Constitucional é a proteção do cidadão, o quali-
fica como “tribunal do povo”, quando essa defesa é permitida por instru-
mentos que garantam ao indivíduo acesso direto à jurisdição constitucio-
nal. O direito de amparo é um mecanismo que garante esse acesso direto
em alguns países, portanto: 

(...) es fundamental la previsión de recursos directos contra todos


los actos de los poderes públicos -y, en algún caso, también de los
particulares-. En este último supuesto, el deber principal de los
sistemas de justicia constitucional es defender al individuo por la
posición de inferioridad en que se encuentra frente a los poderes
públicos, y no una defensa objetiva de la Constitución. (ROLLA,
2001, p. 73)

No Brasil, por influência do direito de amparo, criou-se uma figu-


ra semelhante, o mandado de segurança (art. 5º, LXIX, da CF/88), cuja
principal finalidade é tutelar o direito líquido e certo, violado ou amea-
çado por autoridade pública no exercício de suas funções (FIX ZAMU-
DIO, 1999). Afora esse remédio, o Brasil conta com os remédios consti-
tucionais, o habeas data, o habeas corpus e o mandado de injunção, os quais
serão objeto de análise mais adiante.
Importante, por fim, aludir que em alguns países há, ainda, insti-
tuições que, embora não sejam mecanismos processuais de proteção dos
direitos fundamentais, possuem a função institucional de promovê-la ou
buscá-la, nesse sentido:

(...) por los organismos no jurisdiccionales que se inspiran en el


Ombudsman de origen escandinavo, y si bien no tienen un carácter

634
LU I Z A N TÔ N I O R E I S J U N I O R , M A U R I C I O P I R E S G U E D E S , T E L S O N P I R E S ,
VA N E S S A V E L A S C O, H E R N A N D E S B R I TO R E I S ( O R G . )

estrictamente procesal, se pueden situar sus funciones dentro de la


jurisdicción constitucional de la libertad, en virtud de su vinculación
con los tribunales en sentido estricto, a los cuales apoyan y auxilian
en su labor de protección de los derechos humanos, por medio de
la recepción de quejas y reclamaciones individuales o inclusive de
oficio, con el objeto de reparar las violaciones de los derechos hu-
manos de los gobernados realizadas por autoridades administrativas
o por conductas administrativas de otros funcionarios públicos, en
una primera gestión por medio de la conciliación y si ésta no obtiene
resultados, por conducto de una investigación, que en su caso, cul-
mina con una recomendación no obligatoria pero que tiene la fuerza
de la publicidad. (FIX ZAMUDIO, 1999, p. 109) 

No Brasil, essa função pertence à Defensoria Pública que, dentre as


diversas competências, possui a missão institucional de promover e tutelar
os direitos humanos, em sentido amplo.

3. JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL DA LIBERDADE NO


BRASIL

A jurisdição constitucional da liberdade brasileira se manifesta de ma-


neira objetiva e subjetiva. A primeira, consiste na manifestação dos direi-
tos e garantias fundamentais enquanto parâmetro do controle de constitu-
cionalidade. A segunda, os direitos e garantias fundamentais são objeto de
proteção e efetivação da jurisdição, logo, a ação ou omissão que os viole,
autoriza o particular a fazer uso de um dos remédios constitucionais para
cessar tal agressão.
Importante esclarecer que a jurisdição da liberdade objetiva somen-
te ocorre junto aos Tribunais de Justiça e ao Supremo Tribunal Federal,
os quais são competentes, originariamente, para conhecer das ações do
processo objetivo. Não se pode esquecer que o processo objetivo possui
características próprias, quais sejam:

1. Não há partes propriamente ditas.

2. Sua finalidade é a defesa da Constituição, e não a tutela de in-


teresses individuais subjetivos, logo inexiste direito subjetivo de tutela.

635
DIMENSÕES JURÍDICAS DAS POLÍTICAS PÚBLICAS – VOL. 1

3. Não são observadas a garantias individuais do princípio do con-


traditório e da ampla defesa. 

4. Não são verificados fatos nem se admitem provas. 

5. Aplica-se o princípio da busca da verdade pelo juiz, indepen-


dentemente da atuação das alegações dos interessados (sistema in-
quisitorial).

6. A fiscalização da constitucionalidade é um ato político.

7. Não se aceita pedido de desistência formulado pelo requerente.

8. Não se admite intervenção de terceiros.

9. A decisão não se vincula à causa de pedir. 

10. Analisa-se a regularidade constitucional de um ato normativo


de maneira abstrata sem efeitos concretos. 

11. Não se admite arguição de suspeição ou de impedimento.

12. A decisão desenvolve, em linha de princípio, efeitos erga omnes


vinculantes ou vontade das partes. 

13. Os efeitos da decisão poder ser modulados, independentemen-


te de pedido ou vontade das partes.

14. Não se cria coisa julgada material.

15. Não se admite duplo grau de jurisdição nem ação rescisória.

16. As Cortes Constitucionais gozam de elevado grau de autono-


mia processual. (DIMOULIS; LUNARDI, 2019, p. 242)

Na visão de Cascajo Castro (1975, p. 162): “(…) un sistema de juris-


dicción constitucíonal basado en una alternativa rígida entre eliminación
de la norma, por una parte, o confirmación de la validez de la misma,
por otra, no es de los más adecuados para una tutela completa del De-
recho fundamental”. Logo, a jurisdição constitucional da liberdade, na
visão deste autor, seria mais bem desempenhada a partir da perspectiva
subjetiva, uma vez que o âmbito de proteção seria maior, em razão do
fácil acesso.
A jurisdição da liberdade subjetiva possui um âmbito de proteção
muito maior, pois a sua manifestação ocorre no caso concreto, a partir

636
LU I Z A N TÔ N I O R E I S J U N I O R , M A U R I C I O P I R E S G U E D E S , T E L S O N P I R E S ,
VA N E S S A V E L A S C O, H E R N A N D E S B R I TO R E I S ( O R G . )

das ações e remédios constitucionais, perante o juiz ordinário, ou seja, o


particular teria acesso à jurisdição constitucional através de qualquer ação
perante o judiciário.
Ao que parece, o modelo da jurisdição constitucional da liberdade
possui um maior âmbito de proteção junto aos modelos americano e lati-
no-americano de justiça constitucional, pois nestes casos, todo juiz é juiz
constitucional, no exercício da jurisdição constitucional (BARACHO,
2014; STRECK, 2018). Nosete Almagro (1981, p. 67) alude que a “(…)
fórmula kelseniana, el derecho a la jurisdicción constitucional que pri-
mordialmente corresponde a los ciudadanos está olvidado.”.
Não significa que no modelo europeu de justiça constitucional, não
haja uma proteção dos direitos fundamentais, a questão é que o objetivo
do Tribunal Constitucional é, abstratamente, proteger a cogência e su-
premacia da Constituição, não observando os direitos fundamentais no
caso concreto.
Por isso, os mecanismos de proteção dos direitos fundamentais são
mais afetos àqueles modelos que possibilitam a análise da violação no caso
concreto. No Brasil, objeto deste estudo, é verificado a partir das ações
judiciais e, de maneira específica, através dos remédios constitucionais –
habeas corpus, habeas data, mandado de segurança e mandado de injunção.
O habeas corpus é o remédio constitucional mais antigo na história.
Surgiu na Inglaterra, com a Magna Charta Libertatum de 1215, que expres-
samente trouxe esse direito em seu bojo. Importante salientar, que esse
remédio não estava, no início da sua história, ligada à ideia de liberdade
de locomoção, mas à proteção ao devido processo legal (AFONSO DA
SILVA, 1999; MASSAÚ, 2008).
No Brasil, o habeas corpus surgiu de forma expressa com o Código
de Processo Criminal de 1832 (art. 340), tendo sido constitucionalizado
em 1891 com a promulgação da primeira Constituição da República (art.
72, § 22), no entanto, inicialmente, esse remédio constitucional tutela-
va qualquer direito que estivesse ameaçado ou fosse violado a partir de
um ato oriundo de ilegalidade ou abuso de poder, uma teoria bem ampla
(MASSAÚ, 2008).
Somente a partir de 1926, que o habeas corpus passou a proteger estrita-
mente o direito à liberdade de locomoção, o que veio sendo replicado em
todas as Constituições posteriores. Atualmente, está previsto no art. 5º,

637
DIMENSÕES JURÍDICAS DAS POLÍTICAS PÚBLICAS – VOL. 1

LXVIII, da CF/88 e sua aplicação é restrita, isto é, visa proteger o direito


fundamental à liberdade de locomoção.
O mandado de segurança, também considerado como remédio
constitucional, é o instrumento pelo qual se garante o direito subjetivo
individual ou coletivo, líquido e certo, desde que não seja amparado pelos
remédios constitucionais do habeas corpus ou habeas data, bem como quan-
do o responsável pela ilegalidade ou abuso de poder for autoridade pública
ou agente de pessoa jurídica no exercício de funções do Poder Público
(art. 5º, LXIX, da CF/88).
Importante salientar que somente o titular desse direito possui legi-
timidade para impetrar esse remédio constitucional, sendo oponível con-
tra qualquer autoridade ou agente público, ou seja, a violação do direito
exige a participação daquele que teve o seu direito violado, inclusive com
a possibilidade de discussão da constitucionalidade de determinados atos
oriundos da administração pública.
O mandado de injunção é o remédio constitucional que visa coibir a
falta de normas regulamentadoras que inviabilizem o exercício de direi-
tos e liberdades constitucionais, inerentes à nacionalidade, à soberania e à
cidadania (art. 5º, LXXI, da CF/88). Trata-se, na verdade, de verdadeira
garantia posta à disposição do cidadão para conferir “(…) imediata apli-
cabilidade a norma constitucional portadora daqueles direitos e prerroga-
tivas, inerte em virtude de ausência de regulamentação” (AFONSO DA
SILVA, 1999, p. 20).
O habeas data, também remédio constitucional, visa proteger a intimi-
dade do indivíduo contra:

(…) (a) usos abusivos de registros de dados pessoais coletados por


meios fraudulentos, desleais ou ilícitos; (b) introdução nesses re-
gistros de dados sensíveis (as- sim chamados os de origem racial,
opinião política, filosófica ou religiosa, filiação partidária e sindical,
orientação sexual etc.); (c) conservação de dados falsos ou com fins
diversos dos autorizados em lei. (AFONSO DA SILVA, 1999, p. 25)

A ideia por trás desse remédio constitucional é a proteção do direito à


intimidade, à privacidade e ao sigilo de dados referentes à pessoa proprie-
tária dos dados.

638
LU I Z A N TÔ N I O R E I S J U N I O R , M A U R I C I O P I R E S G U E D E S , T E L S O N P I R E S ,
VA N E S S A V E L A S C O, H E R N A N D E S B R I TO R E I S ( O R G . )

Tais remédios constitucionais, visam à proteção dos direitos funda-


mentais de forma específica, porém eles não são os únicos mecanismos
de defesa desses direitos. Diferentemente do que ocorre no México, onde
o direito de amparo possui um âmbito de proteção mais genérico, talvez
possa ser afirmado que aquele mecanismo seja o mecanismo pelo qual se
proteja os direitos fundamentais, de forma direta pelos cidadãos.
O movimento é o inverso no Brasil, onde a especificação dos re-
médios constitucionais delimita o âmbito de proteção a determinados
direitos fundamentais, o que não permite dizer que os demais direitos
fundamentais se encontram desprotegidos, em razão da ausência de ações
específicas.
Acontece que, na prática, os direitos fundamentais são tutelados a
partir de várias ações judiciais, independentemente do nome que lhes são
atribuídas, pois o fim que se busca é a proteção e, neste sentido, compe-
tirá ao Judiciário, através do seu órgão singular prestar a tutela ou não, de
acordo com as peculiaridades que o caso concreto trouxer.

4. O PAPEL DA DEFENSORIA PÚBLICA NA PROTEÇÃO


DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS NO BRASIL

Além das formas de defesa dos direitos fundamentais junto à jurisdi-


ção constitucional, outrora vistas, é possível buscar essa proteção através
de Entidades que possuem, dentre as suas funções institucionais previa-
mente estabelecidas na Constituição, a de promover os direitos humanos
e fundamentais.
Um figura muito conhecida é o Ombudsman, que ganhou várias de-
nominações em diversos países, “(…) Comisionado Parlamentario, Mé-
diateur, Volksamwaltschaft (Abogacía Popular), Procurador de Derechos
Humanos, Defensor del Pueblo (nombre del organismo español que ha
tenido un gran éxito en Latinoamérica) (…)” (FIX ZAMUDIO, 1999,
p. 110).
No Brasil, a Defensoria Pública é a instituição que mais se aproxi-
ma do Ombudsman, denominada por Moreira Neto (1992), como sendo a
“advocacia dos necessitados”. Essa Instituição possui a função de prestar a
efetiva, integral e gratuita assistência jurisdicional aos vulneráveis (SAN-
TOS; PERES, 2019).

639
DIMENSÕES JURÍDICAS DAS POLÍTICAS PÚBLICAS – VOL. 1

Interessante que, antes de buscar a proteção dos direitos humanos,


essa instituição efetiva o principal direito que viabiliza essa proteção, o
direito fundamental ao acesso à justiça e reduz, portanto, as desigualdades
sociais e regionais, como determina o art. 3º, III, da CF/88.
A Defensoria Pública é a verdadeira protetora das minorias constitu-
cionais que, além de vulneráveis, possuem direitos fundamentais e huma-
nos sensíveis, cuja proteção precisa ações ininterruptas, dada uma socie-
dade extremamente desigual. Assim, além de efetivar o direito ao acesso
à Justiça, atribui voz aos excluídos e oprimidos de uma sociedade doente.
Em razão desses objetivos que a Defensoria busca coibir através da
sua atuação, uma das suas missões institucionais, é a proteção dos direi-
tos humanos dos vulneráveis permanentes ou transitórios, mas que em
algum grau encontrem-se em situação de vulnerabilidade (SANTOS;
PERES, 2019).
Não é exagero afirmar que essa instituição seja considerada como
“Amicus communitas” e que seus membros sejam considerados “Defensor-
-Hermes” (GERHARD; MAIA, 2015). Este, em razão da figura do semi-
deus “Hermes”, responsável por entregar as mensagens dos deuses à popu-
lação, um verdadeiro mensageiro (SANTOS; PERES, 2019; JUSTIÇA
VIVA #37 - LENIO STRECK (02/04/2018) - YOUTUBE, 2018).
A figura do Amicus communitas, por sua vez, é a nomenclatura atri-
buída à Defensoria Pública para exprimir a relação entre ela e as comu-
nidades, para fins de buscar a tutela dos direitos fundamentais perante os
Tribunais (GERHARD; MAIA, 2015; SANTOS; PERES, 2019).
A LC n. 80/94, no seu art. 3º-A, traz como objetivos da Defensoria
Pública: (i) a primazia da dignidade da pessoa humana e a redução das
desigualdades sociais; (ii) a afirmação do Estado Democrático de Direito; 
(iii) a prevalência e efetividade dos direitos humanos; e (iv) a garantia dos
princípios constitucionais da ampla defesa e do contraditório.
Tais objetivos dão azo à indispensável manutenção da Instituição para
construção de um Estado mais equânime e na concretização dos direitos
humanos e fundamentais. O Supremo Tribunal Federal, aliás, assim se
manifestou com relação à Defensoria Pública:

A Defensoria Pública, enquanto instituição permanente, essencial


à função jurisdicional do Estado, qualifica-se como instrumento

640
LU I Z A N TÔ N I O R E I S J U N I O R , M A U R I C I O P I R E S G U E D E S , T E L S O N P I R E S ,
VA N E S S A V E L A S C O, H E R N A N D E S B R I TO R E I S ( O R G . )

de concretização dos direitos e das liberdades de que são titulares


as pessoas carentes e necessitadas. É por essa razão que a Defensoria
Pública não pode (e não deve) ser tratada de modo inconsequente
pelo poder público, pois a proteção jurisdicional de milhões de pes-
soas – carentes e desassistidas –, que sofrem inaceitável processo de
exclusão jurídica e social, depende da adequada organização e da
efetiva institucionalização desse órgão do Estado. De nada valerão
os direitos e de nenhum significado revestir-se-ão as liberdades, se
os fundamentos em que eles se apoiam – além de desrespeitados
pelo poder público ou transgredidos por particulares – também
deixarem de contar com o suporte e o apoio de um aparato institu-
cional, como aquele proporcionado pela Defensoria Pública, cuja
função precípua, por efeito de sua própria vocação constitucional
(...), consiste em dar efetividade e expressão concreta, inclusive
mediante acesso do lesado à jurisdição do Estado, a esses mesmos
direitos, quando titularizados por pessoas necessitadas, que são
as reais destinatárias tanto da norma inscrita no art. 5º, LXXIV,
quanto do preceito consubstanciado no art. 134, ambos da Cons-
tituição da República. Direito a ter direitos: uma prerrogativa bá-
sica, que se qualifica como fator de viabilização dos demais direitos
e liberdades. Direito essencial que assiste a qualquer pessoa, espe-
cialmente àquelas que nada têm e de que tudo necessitam. Prerro-
gativa fundamental que põe em evidência. Cuidando-se de pessoas
necessitadas (...). A significativa importância jurídico-institucio-
nal e político-social da Defensoria Pública. [ADI 2.903, rel. min.
Celso de Mello, j. 1º-12-2005, P, DJE de 19-9-2008.] (BRASIL.
SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, 2005)

De nada adianta garantir uma jurisdição constitucional da liberdade


se não houver uma Instituição que proporcione o suporte necessário à
proteção dos direitos fundamentais.
Esta Instituição, no Brasil, é a Defensoria Pública que é fator indis-
pensável ao próprio modelo de Justiça Constitucional. É um elemento de
equilíbrio das minorias na democracia. Representa um importante papel
na função contramajoritária do Supremo Tribunal Federal (SANTOS,
2019), por isso a razão da sua manutenção contínua e da necessidade de
aporte estrutural constante.

641
DIMENSÕES JURÍDICAS DAS POLÍTICAS PÚBLICAS – VOL. 1

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A jurisdição constitucional da liberdade enquanto espécie do con-


junto de funções da Justiça Constitucional, é extremamente relevante e
tem atuação específica na proteção dos direitos e garantias fundamentais.
Em alguns países, essa proteção é feita através do Recurso de Amparo, em
outros, por Recurso Constitucional.
No Brasil, a proteção desses direitos fundamentais ocorre através dos
remédios constitucionais, porém, o seu âmbito de proteção é restritivo a
situações previamente estabelecidas, deixando desguarnecidos vários ou-
tros direitos. Para estes, a defesa ocorre por meio de ações judiciais que
não são consideradas remédios constitucionais.
Isso, não significa dizer que os direitos fundamentais não estão devida-
mente protegidos, pelo contrário, a proteção se dá através de qualquer ação
judicial, pois competirá ao Juiz constitucional a atribuição da tutela solicitada.
Aliás, no modelo de justiça constitucional brasileiro, todo magistrado
exerce a jurisdição constitucional, pois o faz na condição de juiz oriundo
do modelo americano, ou seja, antes de analisar o caso concreto, realiza a
investigação da compatibilidade do direito perquirido para com a Consti-
tuição. Não havendo quaisquer vícios, analisa-se o pedido de acordo com
o requerimento inicial.
Nessas condições, compete ao juiz ordinário atribuir a tutela aos di-
reitos fundamentais e garantir que ela seja dada independentemente de ser
a ação um remédio constitucional ou não.
Ademais, essa proteção dos direitos fundamentais junto à jurisdição
constitucional, conta com uma Entidade de extrema importância para a
consecução desse objetivo, a Defensoria Pública, cuja função institucio-
nal, dentre outras, é promover a tutela dos direitos humanos daqueles que
se encontram em situação de vulnerabilidade.
A atuação dessa Instituição, além de trazer um debate mais plural e
democrático dos direitos humanos, atribui condições necessárias a reduzir
a desigualdade existente entre aquele que teve seu direito violado e aquele
agente violador dos direitos fundamentais. A importância dessa Institui-
ção em países com alto índice de desigualdade social, é imprescindível
para proporcionar o mínimo existencial ao cidadão, isto é, o direito fun-
damental ao acesso à Justiça.

642
LU I Z A N TÔ N I O R E I S J U N I O R , M A U R I C I O P I R E S G U E D E S , T E L S O N P I R E S ,
VA N E S S A V E L A S C O, H E R N A N D E S B R I TO R E I S ( O R G . )

REFERÊNCIAS

AFONSO DA SILVA, Virgílio. Jurisdicao constitucional da liberdade no


Brasil. Anuario iberoamericano de justicia constitucional, Es-
paña, n. 3, p. 9–30, 1999.

ALMAGRO NOSETE, José. La acción popular ante el Tribunal de Ga-


rantías Constitucionales: valoración crítica. Revista de Derecho
Político, España, n. 12, p. 65, 1981. Disponível em: https://doi.
org/10.5944/rdp.12.1981.8133

BARACHO, José Alfredo de Oliveira. Processo e Constituição: o devido


processo legal. Revista da Faculdade de Direito da UFMG, [S.
l.], v. 0, n. 23–25, p. 59–103, 2014. Disponível em: https://www.di-
reito.ufmg.br/revista/index.php/revista/article/view/907/850. Aces-
so em: 9 set. 2020.

BRASIL. SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. ADI n. 2.903. Ação


direta de inconstitucionalidade - Legitimidade ativa da Associação
Nacional dos Defensores Públicos (ANADEP) - Pertinência temáti-
ca - Configuração - Defensoria Pública - Relevância dessa instituição
permanente, essencial à função do estado - A eficácia vinculante, no
processo de controle abstrato de constitucionalidade, não se estende
ao poder legislativo (...). Relator: Min. Celso de Mello, 1 dez. 2005.
Disponível em: http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?-
docTP=AC&docID=548579

CAPPELLETTI, Mauro. La jurisdiccion constitucional de la liber-


tad. Tradução Hector Fix-Zamudio. México: Imprenta Universita-
ria, 1961. E-book.

CAPPELLETTI, Mauro. O controle judicial de constitucionalidade


das leis no direito comparado. Tradução Aroldo Plínio Gonçal-
ves. Porto Alegre: Fabris, 1984. E-book.

CASCAJO CASTRO, José. La jurisdicción constitucional de la libertad.


Revista de estudios políticos, [S. l.], n. 199, p. 149–198, 1975.

CASCAJO CASTRO, José Luis; SENDRA, Vicente Gimeno. El re-


curso de amparo. 2. ed. Madrid: Tecnos, 1992. E-book.

643
DIMENSÕES JURÍDICAS DAS POLÍTICAS PÚBLICAS – VOL. 1

DIMOULIS, Dimitri; LUNARDI, Soraya. Curso de processo cons-


titucional: controle de constitucionalidade e remédios cons-
titucionais. 6. ed. São Paulo: Revista dso Tribunais, 2019. E-book.

FIX ZAMUDIO, H. Breves reflexiones sobre el concepto y el contenido


del Derecho Procesal Constitucional. Anuario iberoamericano
de justicia constitucional, España, p. 89–120, 1999.

GERHARD, Daniel; MAIA, Maurilio Casas. O Defensor-Hermes


e Amicus communitas: o 4 de junho e a representação de-
mocrática dos necessitados de inclusão discursiva. [s. l.], 2015.
Disponível em: https://emporiododireito.com.br/leitura/o-defen-
sor-hermes-e-amicus-communitas-o-4-de-junho-e-a-represen-
tacao-democratica-dos-necessitados-de-inclusao-discursiva-por-
-daniel-gerhard-e-maurilio-casas-maia#:~:text=Biblioteca Virtual
Tirant-,O defensor-hermes. Acesso em: 9 set. 2020.

HÄBERLE, Peter. La Jurisdicción Constitucional institucionalizada en


el Estado constitucional. Anuario iberoamericano de justicia
constitucional, España, n. 5, p. 169–182, 2001.

HÄBERLE, Peter. La jurisdicción constitucional en la actual etapa evo-


lutiva del Estado constitucional. Pensamiento Constitucional,
Lima, v. 10, n. 10, p. 17–42, 2014.

KELSEN, Hans. La garantía jurisdiccional de la constitución (La justicia


constitucional). Anuario Iberoamericano de Justicia Constitu-
cional, España, v. 15, n. 1, p. 249–300, 2011. Disponível em: https://
doi.org/10.22201/iij.9683695272e.2016

MASSAÚ, Guilherme Camargo. A história do Habeas Corpus no Di-


reito Brasileiro e Português. Revista Ágora, Vitória, n. 7, p. 1–33,
2008. Disponível em: http://www.periodicos.ufes.br/agora/article/
view/1919/1431. Acesso em: 9 set. 2020.

MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. As funções essenciais à Justiça


e as Procuraturas Constitucionais. Revista de Informação Legis-
lativa, Brasília, v. 29, n. 116, p. 79–100, 1992.

644
LU I Z A N TÔ N I O R E I S J U N I O R , M A U R I C I O P I R E S G U E D E S , T E L S O N P I R E S ,
VA N E S S A V E L A S C O, H E R N A N D E S B R I TO R E I S ( O R G . )

ROLLA, Giancarlo. El papel de la Justicia Constitucional en el marco del


constitucionalismo contemporáneo. Derecho PUCP: Revista de
la Facultad de Derecho, Lima, n. 54, p. 63–83, 2001.

SANTOS, João Paulo Marques dos. Justiça Constitucional e a sua função


contramajoritária: da limitação à sua legitimação. Revista de Direi-
to Constitucional e Internacional, São Paulo, v. 116, p. 107–132,
2019.

SANTOS, João Paulo Marques dos; PERES, Larissa da Silva. Defensoria


Pública: a necesidade de revisão da sua ilegitimidade para proposi-
tura de ações judiciais do controle objetivo de constitucionalidade.
Revista de Direito Constitucional e Internacional, São Paulo,
v. 114, n. 27, p. 97–124, 2019.

STRECK, Lenio Luiz. Jurisdição constitucional. Rio de Janeiro: Fo-


rense, 2018. E-book.

JUSTIÇA VIVA #37 - LENIO STRECK (02/04/2018) - YOUTUBE.


Direção: Superior Tribunal de Justiça. [S. l.: s. n.] Disponível em:
https://www.youtube.com/watch?v=2HIUMYGMS6Y. Acesso em:
9 set. 2020.

645
O DESAPARECIMENTO FORÇADO
NO SISTEMA INTERAMERICANO DE
DIREITOS HUMANOS: UMA ANÁLISE
DO CASO GOMES LUND E OUTROS
(“GUERRILHA DO ARAGUAIA”) VS
BRASIL
Millena Correia de Souza Santos100

1. INTRODUÇÃO

O presente se propõe a analisar, ainda que de forma breve, o fenôme-


no do desaparecimento forçado perante o Sistema Interamericano de Di-
reitos Humanos (SIDH). Para tanto, o trabalho irá abordar a violação dos
Direitos Humanos no caso denominado Guerrilha do Araguaia, sob a ótica
do SIDH, além de expor a decisão da Corte Interamericana (CorteIDH)
quanto à ação do Brasil neste episódio histórico.
Ademais, utilizou-se do método “Direito comparado” para analisar a
decisão da r. Corte em casos do mesmo tema, bem como as aplicações de
sanções a outros países.
Serão analisados os direitos violados, a jurisprudência da Corte a res-
peito do tema, bem como a posição dos demais sistemas internacionais
dos Direitos Humanos sobre o referido tema, buscando refletir sobre o
fenômeno e suas implicações jurídicas.

100 Graduada em Direito pela Universidade Presbiteriana Mackenzie com bolsa integral pelo
Programa Universidade Para Todos (PROUNI). Advogada. Pesquisadora em Direitos Humanos.

646
LU I Z A N TÔ N I O R E I S J U N I O R , M A U R I C I O P I R E S G U E D E S , T E L S O N P I R E S ,
VA N E S S A V E L A S C O, H E R N A N D E S B R I TO R E I S ( O R G . )

2. O FENÔMENO DO DESAPARECIMENTO FORÇADO

Existem diversas definições constantes nos instrumentos jurídicos so-


bre o Desaparecimento Forçado. O conceito utilizado aqui defende que
o fenômeno consiste na privação arbitrária da liberdade de uma pessoa,
realizada por agentes governamentais ou particulares, desde que atuem
em conjunto com o consentimento estatal de modo expresso ou tácito,
havendo a negação sobre o paradeiro das vítimas ou reconhecimento de
sua detenção.
Este fenômeno, reiteradas vezes, está presente na atuação repressiva
em relação aos opositores do regime ditatorial, baseado na arbitrariedade
do Estado, onde não impera o princípio da humanidade, tornando váli-
da qualquer forma de repressão sem considerar torturas e até homicídios
como defesa de um Estado autoritário (PERRUSO, 2010). Este fenôme-
no é mundialmente antigo e diversificado.
Considere dizer que o fenômeno remonta às guerras na Antiguidade,
quando soldados iam à guerra e de lá não retornavam, ou sequer seus corpos
eram encontrados, fazendo de seus sumiços grandes incógnitas. Por essa
razão, os soldados da guerra civil norte-americana passaram a ter, junto as
suas vestimentas, uma identificação contendo seu nome, regimento e divi-
são no exército (MARTIN, 2002). Essa foi uma das primeiras ações após a
Primeira Guerra mundial, a fim de reduzir os chamados missing in action101.
Entre as décadas de 60 e 70, 14 países estavam da região latino-ame-
ricana estavam em regimes de exceção. Segundo Gilmar Mendes (ANO),
trata-se de situação temporário onde há restrição de direitos constitucio-
nais, e concentra-se poderes que se assemelham ao regime democrático
de autoritarismo.
Nessa época, houve o crescimento de movimentos sociais na América
Latina com o aumento de reivindicações políticas como, por exemplo, o
pedido de ampliação do direito de voto e o aperfeiçoamento do sistema
democrático (MENDES, Ricardo. 2013). Assim, diante da contradição
ao Estado, o desaparecimento formado era realizado como repressão polí-
tica de forma sistematizada.

101 Em tradução livre do inglês, significa “desaparecido em combate”, classificação atribuída


aos desaparecidos durante o serviço nas forças armadas, que podem ter sido mortos – sem
identificação de túmulo ou restos morais – , feridos, prisioneiros de guerra, ou desertaram.

647
DIMENSÕES JURÍDICAS DAS POLÍTICAS PÚBLICAS – VOL. 1

Então, em 1978, a ONU realizou a primeira manifestação da ONU


sobre o Desaparecimento Forçado de Pessoas:

É a violação complexa de direitos fundamentais, alguns


inderrogáveis, praticada por agentes políticos (geralmente os
encarregados da segurança e/ou cumprimento das normas
jurídicas), em que, de forma arbitrária, violenta e à margem da
lei, detêm, encarceram e, não raras vezes, assassinam pessoas,
não informando os fatos, o paradeiro da vítima, ou a motivação a
quem de direito. Trata-se, desse modo, em qualquer situação ou
circunstância, de um crime injustificável contra o direito à vida,
à liberdade e a segurança pessoais, composto mediante tortura ou
tratamento, pena ou castigos cruéis, e apartando o devido processo
legal. (JARDIM. 1999. P. 33-34)

O fenômeno exprime, portanto, a arbitrariedade de agentes políticos


que resultam em sérias violações de direitos fundamentais e humanos. Um
verdadeiro crime contra à vida, à liberdade e a segurança dos indivíduos.

3. DESAPARECIMENTO FORÇADO NA CONVENÇÃO


INTERAMERICANA

A preocupação mundial acerca do desaparecimento forçado de pes-


soas resultou em diversos esforços de Órgãos internacionais na busca por
estabelecimento de mecanismos de controle deste fenômeno.
Em seu Informe Anual (1982/1983), a Comissão Interamericana de
Direitos Humanos – um dos principais órgãos de proteção aos direitos
humanos da OEA (Organização dos Estados Americanos) - trouxe a aten-
ção para as diversas violações de direitos humanos resultantes desta prática.
Em decorrência do Informe da Convenção, a Assembleia Geral da OEA,
em 18 de novembro de 1983, adotou a Resolução nº 666 (XIII-083) que,
em declaração preambular conceituou a prática como “uma prática cruel
e desumana que mina o Estado de Direito, enfraquecendo as normas que
garantem a proteção contra a detenção arbitrária e o direito à segurança
pessoal”, constituindo crime contra a humanidade (art. 4º).
A Assembleia Geral da ONU, em 18 de dezembro de 1992, por meio
da Resolução nº 47/133, proclamou a Declaração sobre e a Proteção de

648
LU I Z A N TÔ N I O R E I S J U N I O R , M A U R I C I O P I R E S G U E D E S , T E L S O N P I R E S ,
VA N E S S A V E L A S C O, H E R N A N D E S B R I TO R E I S ( O R G . )

Todas as Pessoas contra os Desaparecimentos Forçados, adotada pela As-


sembleia Geral da OEA em 09 de junho de 1994. O instrumento inter-
nacional foi ratificado pelo Brasil e internalizado como norma supralegal 102
em 11 de maio de 2016.
Quando da ratificação do referido instrumento internacional, o Brasil
submeteu-se às disposições ali expostas, podendo ser, inclusive, responsa-
bilizado internacionalmente pelo não cumprimento das disposições. Vá-
lido mencionar também a inviabilidade de invocar disposições do direito
interno como justificativa de descumprimento de um tratado a que tenha
ratificado (art. 27) com vistas à ratificação em 2009 da Convenção de Vie-
na sobre o Direito dos Tratados.
Países signatários da Convenção Internacional para a Proteção de
Todas as Pessoas contra o Desaparecimento Forçado, além de agirem de
modo negativo abstendo-se de ferir os direitos humanos nesse sentido,
deverão adotar medidas a fim de cumprir as disposições da Convenção.
O art. 2º da referida Convenção conceitua:

Entende-se por desaparecimento forçado a privação de liberdade


de uma pessoa ou mais pessoas, seja de que forma for, praticada por
agentes do Estado ou por pessoas ou grupos de pessoas que atuem
com autorização, apoio ou consentimento do Estado, seguida de
falta de informação ou da recusa a reconhecer a privação de liber-
dade ou a informar sobre o paradeiro da pessoa, impedindo assim o
exercício dos recursos legais e das garantias processuais pertinentes.

À vista disso, o direito internacional impõe ao Estado o dever de


investigar os fatos do desaparecimento, reparar a violação cometida,
identificar e punir os culpados (COMPARATO, 2001). Isto em razão
da gravidade deste crime, vez que o ato arbitrário do Estado viola quase
todos os direitos elencados na Declaração Universal de Direitos Humanos
(DUDH) como, por exemplo, direito à liberdade e à segurança pessoal,
direito de não ser preso arbitrariamente, direito a um julgamento justo,
direito de ser reconhecido como pessoa perante a lei, direito a condições
mínimas de tratamento na prisão e de não ser submetido à tortura e outros
tratamentos cruéis ou degradantes, direito à vida.

102 Entendimento atual do Supremo Tribunal Federal.

649
DIMENSÕES JURÍDICAS DAS POLÍTICAS PÚBLICAS – VOL. 1

Vale dizer, no desaparecimento forçado as violações atingem da víti-


ma, mas a família também tem o direito à memória violado, sendo “a ca-
tegoria desaparecido representa uma tripla condição [de privação da mor-
te]: a falta de um corpo, a falta de um momento de luto e a falta de uma
sepultura.” (CATELA, 2001, p. 141/142). Sobre o tema, leciona Tarciso
Dal Marsal Jardim (1999, p. 33/34):

Acima da normalidade, tem suas consequências extrapoladas além


da vítima principal, seja em relação à angústia e à dor intermitente
do cônjuge, dos filhos, dos parentes e dos amigos, que as circuns-
tâncias do desaparecimento causam, seja na insegurança coletiva
gerada por esses crimes, já que os ofensores (diretos ou indiretos)
aos direitos fundamentais implicados são justamente os encarrega-
dos de garanti-lo na entidade estatal.

PERRUSO (2010, p. 138) diz que “a figura do desaparecido impõe


aos familiares novas formas de elaboração do acontecido – diferentemente
da morte – se faz necessário compreender que tipos de espaços e rituais
passam a se constituir no cenário público no sentido de construção de
memórias”.

4. CASO GOMES LUND E OUTROS (“GUERRILHA DO


ARAGUAIA”) VS BRASIL

A Guerrilha do Araguaia foi inspirada em movimentos revolucioná-


rios socialistas ocorridos em Cuba e na China. O movimento começou
a ser organizado no final da década de 60, mais especificamente entre os
anos de 1972 a 1974, no sudeste do estado do Pará, região do Araguaia,
norte do então estado de Goiás (atual Tocantins), abrangendo também
terras do Maranhão, na área conhecida como “Bico do Papagaio”.
Este era composto por militantes do partido do Partido Comunis-
ta do Brasil (PCdoB), além de estudantes universitários, operários, pro-
fissionais liberais e camponeses que objetivavam a revolução socialista
brasileira, movimento este que ficou conhecido como “A Guerrilha do
Araguaia”. Este movimento foi intensamente combatido pelo governo ci-
vil-militar da época, através do Exército.

650
LU I Z A N TÔ N I O R E I S J U N I O R , M A U R I C I O P I R E S G U E D E S , T E L S O N P I R E S ,
VA N E S S A V E L A S C O, H E R N A N D E S B R I TO R E I S ( O R G . )

Além do desaparecimento de cerca de 70 pessoas, as ações de


coerção dos militares foram acobertadas de todo o país, de forma que as
mídias não podiam fazer qualquer tipo de circulação de informações das
atrocidades ali cometidas.

4.1 Decisão da Corte Interamericana de Direitos


Humanos (CIDH)

Em 1995 as famílias das vítimas apresentaram petição à Comissão


Interamericana de Direitos Humanos, mas somente em 2009 houve o
processamento da Comissão perante a Corte Interamericana de Direitos
Humanos.
A Comissão solicitou à Corte que declarasse a responsabilidade do
Estado Brasileiro pela violação dos seguintes direitos e obrigações esta-
belecidos na Convenção Americana sobre Direitos Humanos, ratificada
pelo país em 1992:

a. Artigo 1.1 – Obrigação geral de respeito e garantia dos direitos


humanos;

b. Artigo 2 - Dever de adotar disposições de direito interno;

c. Artigo 3 - Direito ao reconhecimento da personalidade jurídica;

d. Artigo 4 - Direito à vida;

e. Artigo 5 – Direito à integridade pessoal;

f. Artigo 7 - Direito à liberdade pessoal;

g. Artigo 8 – Garantias judiciais;

h. Artigo 13 - Liberdade de pensamento e expressão;

i. Artigo 25 – Proteção judicial.

Além disso, solicitou que fosse imputada ao Estado Brasileiro a obri-


gação de adotar medidas de reparação e a incompatibilidade da Lei de
Anistia, promulgada em 1979 no governo do então presidente João Bap-
tista Figueiredo, responsável por reverter punições aos cidadãos conside-
rados criminosos políticos pelo regime militar.

651
DIMENSÕES JURÍDICAS DAS POLÍTICAS PÚBLICAS – VOL. 1

O Caso da Guerrilha do Araguaia resultou na condenação por una-


nimidade do Brasil, em 24 de novembro de 2010, pela Corte Interame-
ricana de Direitos Humanos (CorteIDH), com voto concordante do Juiz
ad hoc Roberto Caldas, sob a fundamentação de omissão quando este não
apurou os desaparecimentos. A Corte decidiu pela (i) necessidade de
reconstrução da memória das vítimas; (ii) a punição dos autores; (iii) pela
reparação civil com direito a indenização por danos morais e materiais a
ser paga aos parentes das vítimas; e (iv) pela necessidade de implemen-
tação de medidas para prevenir atos violentos aos direitos humanos. A
Corte IDH determinou ainda que os familiares das vítimas têm o direito
de identificar o paradeiro dos desaparecidos e, se for o caso, saber onde se
encontram os restos mortais, reconhecendo do direito à memória.  
A decisão no presente caso analisado ainda considerou a Lei de Anis-
tia como incompatível com a Convenção de Direitos Humanos, impli-
cando também na incompatibilidade da decisão do Supremo Tribunal Fe-
deral na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental n° 153
que considerou constitucional a anistia aos agentes estatais responsáveis
pelas substanciais violações aos direitos humanos, cometidos no período
do regime militar brasileiro. Sobre este tema, Eugenio Raúl Zaffaroni diz:

As estruturas judiciais latino-americanas são inadequadas para as-


sumir as demandas de uma democracia moderna, enquanto sua
fragilidade e dependência também não lhes permitem desempe-
nhar efetivamente a função delimitadora que requer a consolidação
do espaço democrático. À medida que a distância entre a função
latente ou real e as demandas sociais aumenta, o perigo para todo
o sistema democrático aumenta. No entanto, esse fenômeno é
acompanhado por uma revelação do problema judicial como um
problema político, o que faz com que o tato de silenciamento seja
utilizado até recentemente. (ZAFFARONI, 1994, p. 17-18, tra-
dução nossa).103

103 “Las estructuras judiciales latinoamericanas son inadecuadas para asumir las deman-
das de una moderna democracia, en tanto que su debilidad y dependencia tampoco les
permite desempeñar eficazmente la función acotadora que requiere la consolidación del
espacio democrático. A medida que se amplía la distancia entre la función latente o real y
las demandas sociales, aumenta el peligro para todo el sistema democrático. No obstante,

652
LU I Z A N TÔ N I O R E I S J U N I O R , M A U R I C I O P I R E S G U E D E S , T E L S O N P I R E S ,
VA N E S S A V E L A S C O, H E R N A N D E S B R I TO R E I S ( O R G . )

Portanto, a decisão da Corte Interamericana de Direitos Humanos


mostra-se um resgate da consideração de violação de Direitos Humanos,
vez que não apenas buscou reparar danos sofridos, mas ainda imple-
mentou preceito de punição às violações, além de retirar a barreira para
investigação e sanções contra violações de Direitos Humanos. Em seu
voto, na sentença da CIDH, o Juiz Ad-Hoc, Dr. Roberto de Figueiredo
Caldas disse:

É preciso ultrapassar o  positivismo  exacerbado, pois só assim se


entrará em um novo período de respeito aos direitos da pessoa,
contribuindo para acabar com o círculo de impunidade no Brasil.
É preciso mostrar que a Justiça age de forma igualitária na punição
de quem quer que pratique graves crimes contra a humanidade, de
modo que a imperatividade do Direito e da Justiça sirvam sempre
para mostrar que práticas tão cruéis e desumanas jamais podem se
repetir, jamais serão esquecidas e a qualquer tempo serão punidas.

A decisão da Corte demonstrou a busca pela punição dos responsáveis


por crimes contra a humanidade. Buscou implementar sistema exemplifi-
cativo para que os autores de crimes desse porte, sejam conscientizados de
que haverá punição. É a busca pela efetivação da justiça.

5. CONSIDERAÇÕES SOBRE CRIME CONTINUADO


OU PERMANENTE, IMPRESCRITIBILIDADE E A LEI DA
ANISTIA

Os danos causados pelo crime de desaparecimento forçado, como ora


exposto, atingem não somente à vítima direta, mas aos familiares e amigos
do desaparecido. A falta de informações do paradeiro, causa às pessoas que
“ficaram” o sentido de insegurança quanto aos próximos passos. Enquan-
to ao desaparecido pode ser aplicado os diversos tipos de tortura, é certo
afirmar que o dano remete à angústia e dor dos cônjuges, filhos, parentes
e amigos pela ausência e a incerteza sobre o ente (JARDIM, 2011).

este fenómeno viene acompañado de una puesta en evidencia del problema judicial como
problema político, que hace fracasar la táctica silenciadora empleada hasta hace poco tiem-
po con eficacia”

653
DIMENSÕES JURÍDICAS DAS POLÍTICAS PÚBLICAS – VOL. 1

Nessa conjuntura, aplica-se o conceito de crime continuado ou per-


manente que, enquanto não há revelação da localização ou do ocorrido
com a pessoa desaparecida, sem o devido esclarecimento dos fatos. Nesse
sentido, a CorteIDH dispõe:

Adicionalmente, no Direito Internacional, a jurisprudência deste


Tribunal foi percursora da consolidação de uma perspectiva abran-
gente da gravidade e do caráter continuado ou permanente da fi-
gura do desaparecimento e sua execução se iniciam com a privação
da liberdade da pessoa e a subsequente falta de informação sobre
seu destino, e permanece enquanto não se conheça o paradeiro
da pessoa desaparecida e se determine com certeza sua identida-
de. Em conformidade com todo exposto, a Corte reiterou que o
desaparecimento forçado constitui uma violação múltipla de vá-
rios direitos protegidos pela Convenção Americana, que coloca a
vítima em um estado de completa desproteção e acarreta outras
violações conexas, sendo especialmente grave quando faz parte de
um padrão sistemático ou prática aplicada ou tolerada pelo Estado.

De acordo com o art. 8º da CIDF a imprescritibilidade do crime do


desaparecimento forçado enquanto crime contra a humanidade admite
que os Estados Partes apliquem regime de prescrição como violação de
direitos humanos menos severa, com ressalva de que se assim fizer deve
assegurar que a prescrição da ação pena seja feita de duas formas: (i) seja de
longa duração e proporcional à extrema seriedade desse crime; e (ii) inicie
no momento em que cessar o desaparecimento forçado, considerando-se
a natureza contínua desse crime.
Neste contexto, não sendo crime contra a humanidade, a prescrição
deve iniciar no momento que for revelado o paradeiro da pessoa desa-
parecida. Quando considerado crime contra a humanidade, situação da
Guerrilha do Araguaia, o crime é imprescritível. Nesses termos, o art. VII
da CIDFP dispõe que:

A ação penal decorrente do desaparecimento forçado de pessoas


e a pena que for imposta judicialmente ao responsável por ela não
estarão sujeitas a prescrição. No entanto, quando existir uma nor-
ma de caráter fundamental que impeça a aplicação do estipulado

654
LU I Z A N TÔ N I O R E I S J U N I O R , M A U R I C I O P I R E S G U E D E S , T E L S O N P I R E S ,
VA N E S S A V E L A S C O, H E R N A N D E S B R I TO R E I S ( O R G . )

no paragrafo anterior, o prazo da prescrição deverá ser igual ao do


delito mais grave na legislação interna do respectivo Estado Parte.

No que toca à aplicação da lei de anistia quanto às violações de direi-


tos humanos, a CorteIDH declara sua ineficácia, de acordo com as obri-
gações internacionais as quais o Brasil se submeteu:

A Corte interamericana considera que a forma na qual foi inter-


pretada e aplicada a Lei de Anistia aprovada pelo Brasil (supra pars.
87, 135, 136) afetou o dever internacional do Estado de investi-
gar e punir as graves violações de direitos humanos, ao impedir
que os familiares das vítimas no presente caso fossem ouvidos por
um juiz, conforme estabelece o artigo 8.1 da Convenção Ameri-
cana, e violou o direito à proteção judicial consagrado no artigo 25
do mesmo instrumento, precisamente pela falta de investigação,
persecução, captura, julgamento e punição dos responsáveis pelos
fatos, descumprindo também o artigo 1.1 da Convenção. Adicio-
nalmente, ao aplicar a Lei de Anistia impedindo a investigação dos
fatos e a identificação, julgamento e eventual sanção dos possíveis
responsáveis continuadas e permanentes, como os desaparecimen-
tos forçados, o Estado descumpriu sua obrigação de adequar seu
direito interno, consagrada no artigo 2 da Convenção Americana.

Ainda sobre a o tema, o art. 18 (1) da Resolução 47/133, de 18 de


dezembro de 1992, da Assembleia Geral das Nações Unidas, dispõe que
os autores ou presumíveis autores pelo ato “não deverão beneficiar de
qualquer lei especial de anistia ou medida semelhante que possa ter como
efeito ilibá-los de qualquer procedimento ou sanção penal”.
A CorteIDH não admite as anistias, considerando que estas são
contrárias à Convenção Americana, sem produção de efeito ex tunc, de-
vendo ser eliminadas do sistema interno dos Estados Partes. Desse modo,
as violações de direitos humanos, à exemplo: a tortura, execuções sumá-
rias, extralegais ou arbitrárias e desaparições forçadas de pessoas, não são
passíveis de aplicação de anistia aos responsáveis.
Valendo-se de direito comparado, a aplicação de ineficácia de anistia no
caso Almonacid Arellano y otros c. Chile, o Estado do Chile não pôde se abster

655
DIMENSÕES JURÍDICAS DAS POLÍTICAS PÚBLICAS – VOL. 1

de investigar, buscar e punir os responsáveis por crimes contra a humanida-


de, diante de qualquer lei interna que suspenda a punição dos responsáveis.
No caso Malawi African Association e outros c. Mauritânia, a lei de anistia
mauritana foi considerada uma violação aos direitos das vítimas a um re-
curso efetivo, de acordo com a Comissão africana dos Direitos Humanos
e dos Povos. A Comissão estabeleceu Diretrizes e princípios que determi-
na que “A outorga de uma anistia para absolver os autores de violações de
direitos humanos viola o direito de vítimas a um recurso efetivo”.
Diante do exposto, o Brasil não pode clamar pela Lei de Anistia para
abster de punir os responsáveis por violações aos direitos humanos, tendo
em vista que a anistia é contrária às obrigações internacionais ratificadas
pelo Brasil.

6. OUTROS CASOS DE DESAPARECIMENTO FORÇADO


NA CORTEIDH

6.1. Blake vs. Guatemala

Nicholas Blake, um jornalista americano, decidiu obter uma entre-


vista com o exército de guerrilha marxista-leninista dos pobres (EGP)104.
O jornalista, junto com seu amigo Griff Davis, fotógrafo de profissão, co-
meçaram a missão em 26 de março de 1985. Os rapazes deixaram a cidade
de Huehuetenango para visitarem a aldeia de El Llano.
O que seria uma investigação pessoal, tornou-se no cárcere pela Pa-
trulha de Autodefesa de The Llago. A previsão de retorno dos rapazes era
em 03 de abril de 1985, mas as famílias não os receberam na data esperada.
Diante disso, em razão do grande poder econômico e forte influência po-
lítica no país, a família de Nicholas Blake iniciou uma série de ações legais
para localização do jornalista. Sem êxito, a namorada de Blake noticiou a
embaixada dos Estados Unidos da América na Guatemala e apresentou a
denúncia nº 11.219, sendo esta recebida na Secretaria da Comissão em 18
de novembro de 1993.
Os restos de Griffith Davis foram encontrados em 16 de março de
1992 enquanto os de Nicholas Blake em 14 de junho de 1992 no The
Camps, após terem sido mortos e seus corpos jogados na escova.

104 Termo usado para definir guerra irregular

656
LU I Z A N TÔ N I O R E I S J U N I O R , M A U R I C I O P I R E S G U E D E S , T E L S O N P I R E S ,
VA N E S S A V E L A S C O, H E R N A N D E S B R I TO R E I S ( O R G . )

Em razão do grande poder econômico e forte influência política no


país, a família do jornalista apresentou a denúncia nº 11.219, sendo esta
recebida na Secretaria da Comissão em 18 de novembro de 1993.
O caso foi apresentado à Corte pela Comissão Interamericana de Di-
reitos Humanos em 03 de agosto de 1995, alegando a violação dos se-
guintes artigos todos estes em concordância com o artigo 1.1 da mesma
Convenção:

a. Artigo 4 - direito à vida;


b. Artigo 5 – direito à integridade pessoal;
c. Artigo 7 - direito à liberdade pessoal;
d. Artigo 8 – Garantias judiciais;
e. Artigo 13 - liberdade de pensamento e expressão;
f. Artigo 25 – Proteção judicial;
g. Artigo 22– Direito de ir e vir e de residência.

Além disso, pediu a integral reparação dos danos materiais e morais


sofridos pelas múltiplas violações e altos custos suportados pela família a
fim de localizar a vítima. Ademais, pediu a condenação do Governo da
Guatemala para pagar as despesas processuais e honorários advocatícios
do caso.
A Corte, em sua sentença, considerou a alegação de violação dos ar-
tigos alegados pela Comissão, bem como de prover a reparação material e
moral aos familiares das vítimas.

6.2. Caso Velásquez Rodríguez Vs.Honduras

A petição inicial do caso foi enviada em 1981 relatando a violenta pri-


são por membros da Divisão Nacional de Investigação e Forças Armadas
sem autorização judicial de qualquer espécie de Angel Manfredo Velas-
quez Rodriguez. A denúncia fora feita sob argumento de tortura cruel e
desaparecimento forçado.
Em 1986 a vítima ainda não havia sido encontrada e nenhuma infor-
mação sobre seu paradeiro havia. Diante disso, a Comissão Interamerica-
na reconheceu que o Governo de Honduras não havia oferecido provas
convincentes que permitissem afastar a denúncia recebida, encaminhando

657
DIMENSÕES JURÍDICAS DAS POLÍTICAS PÚBLICAS – VOL. 1

o caso para apreciação da CorteIDH, considerando o reconhecimento de


sua jurisdição pelo Estado de Honduras pela ratificação da Convenção em
8 de setembro de 1977. 
O caso foi submetido à Corte em 24 de abril de 1986, sob invocação
dos arts. 50 e 51, da Convenção Americana. Além de reparação de danos,
a Comissão solicitou o reconhecimento de violação dos artigos:

a. Artigo 4 - direito à vida;


b. Artigo 5 – direito à integridade pessoal;
c. Artigo 7 - direito à liberdade pessoal;

A Corte Interamericana de Direitos Humanos proferiu decisão em


1989, impondo aos Estados-partes o dever de investigar violações de di-
reitos humanos e punir seus ofensores:

O desaparecimento forçado de seres humanos é uma violação múl-


tipla e contínua de muitos direitos constantes da Convenção, que
os Estados-partes são obrigados a respeitar e garantir. (...) Como
conseqüência desta obrigação, os Estados devem prevenir, inves-
tigar e punir qualquer violação de direitos enunciados na Con-
venção e, além disso, se possível, devem buscar a restauração de
direito violado, prevendo uma compensação em virtude dos danos
resultantes da violação. (...) a falha de ação do aparato estatal, que
está claramente provada, reflete a falha de Honduras em satisfazer
as obrigações assumidas em face do art.1º (1) da Convenção, que
obriga a garantir a Manfredo Velasquez o livre e pleno exercício de
seus direitos humanos.

A Corte reconheceu que na República de Honduras, durante os anos


de 1981 a 1984, desapareceram cem ou mais pessoas, sequestradas violen-
tamente por agentes militares, policiais ou seus prepostos. Reconheceu a
violação dos artigos 7°, 5° e 4° da Convenção Americana (todos em co-
nexão com o artigo 1.1 deste instrumento) em relação a Ángel Manfredo
Velásquez Rodríguez, e condenou o Estado a pagar uma justa indenização
compensatória aos familiares da vítima.

658
LU I Z A N TÔ N I O R E I S J U N I O R , M A U R I C I O P I R E S G U E D E S , T E L S O N P I R E S ,
VA N E S S A V E L A S C O, H E R N A N D E S B R I TO R E I S ( O R G . )

7. CONCLUSÃO

O presente artigo tratou do desaparecimento forçado de pessoas


com base dos casos Gomes Lund e outros (“Guerrilha do Araguaia”)
vs Brasil, analisando a questão apresentada como violação aos Direitos
Humanos. Convém destacar que o caso escolhido para análise sobre o
tema foi de extrema relevância jurídica, sobretudo porque a decisão da
Corte, além de listar os direitos violados no presente caso, considerou
a Lei da Anistia como incompatível com a Convenção de Direitos Hu-
manos, fato que se mostra amplamente protetor. Ademais, de modo
breve, analisaram-se outros dois casos de desaparecimento forçado e
suas consequências jurídicas.
O desaparecimento forçado, como colocado anteriormente, é uma
lesão a diversos direitos. Por esta razão, a condenação do Brasil trouxe a
consideração de que ninguém pode ser privado se sua vida e exercícios
dos direitos da cidadania em razão da discordância da opinião estatal. Na
verdade, a vida em sociedade democraticamente considerada justamente
permite reflexões e contraposições às opiniões, sendo essa a primazia da
Democracia.
O Brasil após a condenação exemplifica que o direito à liberdade de
expressão é fundamental para a construção da sociedade, e que, leis que
criam barreiras a este exercício não poderão ser mantidas no ordenamento
jurídico brasileiro.
Os Direitos Humanos Internacionais, sobretudo, garantem que os
Estados não violem direitos na ilusão de que, sendo soberanos, os cida-
dãos nada poderão fazer a fim de resguardar seus direitos. Sobremodo,
evidencia-se que o Estado não pode ser limitador de direito aos cidadãos,
desrespeitando regras internacionais se assim agir.
Por fim, a discussão acerca do desaparecimento forçado de pessoa é de
suma relevância para a constituição de uma sociedade democrática.

BIBLIOGRAFIA

___BRASIL. Decreto n. 592, de 06 de jul. de 1992. Pacto Internacional


sobre Direitos Civis e Políticos, Brasília, DF, jul. 1992. 

659
DIMENSÕES JURÍDICAS DAS POLÍTICAS PÚBLICAS – VOL. 1

___BRASIL. Decreto n. 7.030, de 14 de dez. de 2009.  Convenção de


Viena sobre o Direito dos Tratados, Brasília, DF, dez. 2009.

___Comissão Africana dos Direitos Humanos e dos Povos. Caso Ma-


lawi African Association e outros c. Mauritânia (nos 54/91, 61/91, 98/93,
164/97 à 196/97 e 210/98 (2000), §§ 82 e 83).

___CorteIDH, ficha técnica: Blake Vs. Guatemala. Disponível em:


<http://www.corteidh.or.cr/cf/jurisprudencia2/ficha_tecnica.
cfm?lang=es&nId_Ficha=317 >

___CorteIDH. Caso Velásquez Rodríguez Vs.Honduras. Sentença de 29 de


julho de 1988. Disponível em: <http://www.corteidh.or.cr/docs/ca-
sos/articulos/seriec_04_esp.pdf ). 

___CorteIDH. Casos Gomes Lund e outros (“Guerrilha do Araguaia”) vs Bra-


sil.  Sentença de 24 de novembro de 2010.

CATELA, Ludmila da Silva. Situação limite e memória: reconstru-


ção do mundo dos familiares de desaparecidos da Argentina.
São Paulo: Hucitec/ Anpocs, 2001. 

COMPARATO, Fábio Konder. Que fizeste de teu irmão? In: TE-


LES, Janaína (org). Mortos e Desaparecidos políticos: Repa-
ração ou Impunidade? São Paulo: Humanitas, 2001.

COMPARATO, Fábio Konder. Que fizeste de teu irmão? In: TE-


LES, Janaína (org). Mortos e Desaparecidos políticos: Repa-
ração ou Impunidade? São Paulo: Humanitas, 2001.

JARDIM, Tarciso Dal Marsal, Brasil condenado a legislar pela Corte


Interamericana de Direitos Humanos: da obrigação de tipi-
ficar o crime de desaparecimento forçado de pessoas. Textos
para discussão. Senado Federal, 2011. 

JARDIM, Tarciso Dal Marsal. Crime do desaparecimento forçado


de pessoas. Brasília: Brasília Jurídica, 1999. 

MARTIN, Sophie. The missing. In: International Review of the


Red Cross. Humanitarian. Debate: Law, Policy, Action. v. 84,
2002.

660
LU I Z A N TÔ N I O R E I S J U N I O R , M A U R I C I O P I R E S G U E D E S , T E L S O N P I R E S ,
VA N E S S A V E L A S C O, H E R N A N D E S B R I TO R E I S ( O R G . )

MENDES, Ricardo Antônio Augusto de Souza. Ditaduras civil-mili-


tares no Cone Sul e a Doutrina de Segurança Nacional – al-
gumas considerações sobre a Historiografia. Revista Tempo e
Argumento, v. 5, n. 10, 2013.

MENDES, Ricardo Antônio Augusto de Souza. Ditaduras civil-mili-


tares no Cone Sul e a Doutrina de Segurança Nacional – al-
gumas considerações sobre a Historiografia. Revista Tempo e
Argumento, v. 5, n. 10, 2013.

PERRUSO, Camila Akemi. Tese de Mestrado O desaparecimen-


to forçado de pessoas no Sistema Interamericano de Direi-
tos Humanos – Direito e Memória. Universidade de São Paulo,
2010.

ZAFFARONI, Eugenio Raúl.  Estructuras Judiciales. Buenos Aires:


Ediar, 1994. 

661
RESUMOS

663
AS POLÍTICAS PÚBLICAS NO
ATUAL CENÁRIO ECONÔMICO:
JUDICIALIZAÇÃO OU ATIVISMO
JUDICIAL?
Thaloara Nascentes Gomes Pereira105

INTRODUÇÃO

O presente trabalho visa, inicialmente, definir o conceito de políticas


públicas em relação aos déficits dos direitos à educação, saúde e segurança
pública, decorrentes do Covid-19 em contraste com o mínimo existencial
e a reserva do possível. Posteriomente, torna-se relevante analisar a atua-
ção do Poder Judiciário na implementação dos direitos fundamentais em
razão da omissão Estatal. Em sede de conclusão, analisa-se, portanto, se
seria o caso de pamprincipiologismo, como descreve Lenio Streck, ou da
positivação verossímel de uma garantia constitucional.Por fim, justifica-se
tal tema ao vislumbrar o atual cenário político-econômico e a morosidade
quanto à seguridade de mecanismos essenciais ao desenvolvimento social.

FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA

A notoriedade dos programas sociais ganha força com a Constituição


de 1998, incumbindo ao Estado o dever de zelar por seu povo. Com isso,

105 Acadêmica do 10º período de direito da Faculdade de Direito e Ciências Sociais do Leste
de Minas - FADILESTE.

665
DIMENSÕES JURÍDICAS DAS POLÍTICAS PÚBLICAS – VOL. 1

a atuação do Estado passa de mero expectador a elemento primordial na


efetivação das vantagens coletivas. Nesse viés, podemos definir políticas
públicas como ações, atividades ou estratégias desempenhadas por entes
públicos, por si só ou em parceria com entes privados, que objetivam asse-
gurar a cidadania de todos os indivíduos, independente da inserção social
destes e os direitos previstos constitucionalmente, que se concebem atra-
vés do reconhecimento da sociedade.
Em suma, as políticas públicas devem ser operadas em consonância
com os Direitos Humanos e seus princípios norteadores, quais sejam:
universalidade, indivisibilidade, interdependência, inalienabilidade e irre-
nunciabilidade, bem como serem compostas pelo elemento institucional,
ordenada por pessoas competentes para tanto; do elemento decisório, es-
colhas relativas à finalidade e os meios imprescindíveis para o alcance da
solução dos problemas apresentados; do elemento comportamental, que
pode ser compreendido como uma ação ou omissão necessária para o al-
cance de um resultado satisfatório; do elemento casual, ou seja, a causa em
que estas ações geram no plano exterior (social e político). Dessarte, todas
as etapas de sua elaboração devem passar pelo crivo da legalidade, desde o
reconhecimento do problema à tomada de decisões.
Na linha de Alexy, os princípios localizam-se em uma norma que or-
dena que algo seja realizado na maior medida possível, dentro das possibili-
dades fáticas e jurídicas. Em sua visão constituem “mandados – ou manda-
mentos – de otimização”. Portanto, o autor não defende a estigmatização
dos mesmos mediante as decisões dos tribunais superiores, bem como sua
utilização hipossuficiente. Nessa conjectura passa-se a expor as diferenças
entre o mínimo existencial e a reserva do possível, pois essas ascepções in-
fluenciam todo o contexto de políticas públicas em um Estado omisso. O
mínimo existencial se relaciona a uma qualidade básica da vida humana,
sendo garantido pela Constituição Federal como um direito fundamental,
o qual tem por objetivo garantir condições mínimas para subsistência do
indivíduo. Nesse sentido, Ricardo Lobo Torres descreve como: 

Ausência de dicção constitucional própria, devendo-se procurá-


-lo na idéia de liberdade, nos princípios da igualdade, do devido
processo legal, da livre iniciativa, nos direitos humanos, nas imu-
nidades e privilégios do cidadão. Carece de conteúdo específico,

666
LU I Z A N TÔ N I O R E I S J U N I O R , M A U R I C I O P I R E S G U E D E S , T E L S O N P I R E S ,
VA N E S S A V E L A S C O, H E R N A N D E S B R I TO R E I S ( O R G . )

podendo abranger qualquer direito, ainda que não seja fundamen-


tal, como o direito à saúde, à alimentação, etc, considerado em sua
dimensão essencial e inalienável. (TORRES 1999: 144)

Em contrapartida, a reserva do possível, sustenta a possibilidade do


Estado se omitir na prestação de um direito pela ausência de recursos fi-
nanceiros. Sobre o assunto, aduz Ingo Wolfgang Sarlet que: 

De acordo com a noção de reserva do possível, a efetividade dos


direitos sociais a prestações materiais estaria sob a reserva das capa-
cidades financeiras do Estado, uma vez que seriam direitos funda-
mentais dependentes de prestações financiadas pelos cofres públi-
cos. (SARLET; FIGUEIREDO 2008: s/p)

Em que pese essa divergência, é sabido que os direitos e garantias


individuais são cláusulas pétreas, conforme artigo 60, §4º, inciso IV da
Magna Carta, os quais devem ser aplicados sem embragos, desta feita
não seria razoável exigir que os mesmos se amoldassem a um quantum
mínimo da previsão orçamentária, ou ainda, dependesse de aprovação
para serem efetivados, se assim o fizessem, estariam claramente retroa-
gindo a barbárie.

METODOLOGIA

Essa pesquisa utilizou-se de métodos dedutivos e indutivos, cuja fi-


nalidade foi traçar um “padrão” para servir de orientação a outros casos
concretos. Para isso, foram necessários estudos de autores como Ana Paula
de Barcellos, Lenio Luiz Streck, Ingo Wolfgang Sarlet, entre outros pen-
sadores que elaboraram trabalhos pertinentes ao assunto.

RESULTADOS E DISCUSSÃO

O cerne do debate em questão circunscreve-se, então, em torno das


inconsistências normativas, o que para Lenio Streck caracteriza-se como:

Uma espécie de patologia especialmente ligada às práticas jurídicas


brasileiras e que leva a um uso desmedido de standards argumen-

667
DIMENSÕES JURÍDICAS DAS POLÍTICAS PÚBLICAS – VOL. 1

tativos que, no mais das vezes, são articulados para driblar aquilo
aquilo que ficou regrado pela produção democrática do direito, no
âmbito da legislação (contistucionalmente adequada). É como se
ocorresse uma espécie de “hiperestesia nos juristas que os levasse
a descobrir, por meio da sensibilidade (o senso de justiça, no mais
das vezes, sempre é um álibi teórico da realização dos “valores”
que subjazem o “Direito”), a melhor solução para os casos jurisdi-
cionalizados. (STRECK, 2012, p. 9)

A respeito do pamprincipiologismo, este mesmo autor leciona que


em tempos atuais, há uma deturpação dos princípios erigidos na consti-
tuição, explicando que:

Positivação dos valores: assim se costuma anunciar os princípios


constitucionais, circunstância que facilita a “criação” (sic), em um
segundo momento, de todo tipo de “princípio” (sic), como se o pa-
radigma do Estado Democrático de Direito fosse a “pedra filosofal
da legitimidade principiológica”, da qual pudessem ser retirados tan-
tos princípios quantos necessários para resolver os casos difíceis ou
“corrigir” (sic) as incertezas da linguagem. (STRECK, 2012, p. 9)

Debate-se, afinal, que o permitido seria a judicialização das políticas


públicas, em que o poder judiciário atuaria além de suas competências
baseado na lei, emitindo decisões fundadas em princípios e regras. Não
obstante, o que corriqueiramente sobrevem é o ativismo judicial, com en-
tendimentos criativos e interpretação nova do direito ou mesmo extensa a
uma já existente, por isso, se percebe uma deturpação da lei em benefício
de outrem.

CONCLUSÕES

Ante o exposto, conclui-se que a possibilidade de intervenção do Ju-


diciário na efetivação das políticas públicas é um ganho considerável, pois
através do sistema de freios e contrapesos, se evita a soberania das delibe-
rações dos órgãos, quando exercentes de funções típicas.
Em seguida, nota-se que para a preservação das políticas públicas é
viável que a mesma seja julgada pelos preceitos legislativos, sem interpre-

668
LU I Z A N TÔ N I O R E I S J U N I O R , M A U R I C I O P I R E S G U E D E S , T E L S O N P I R E S ,
VA N E S S A V E L A S C O, H E R N A N D E S B R I TO R E I S ( O R G . )

tações vagas e extensas para não ultrapassar a esfera da judicialização. Ade-


mais, o pamprincipiologismo não deve ser base para nenhum operador do
direito, ainda que se trate de um caso consideravelmente difícil.
O tema em comento não se esgota no que foi exposto, devendo a
todos realizem contribuições mútuas para possíveis soluções dos pontos
divergentes, de tal modo que o tema não caia no esquecimento e fique a
mercê da discricionariedade.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BARCELLOS, Ana Paula. A Eficácia Jurídica dos Princípios Constitu-


cionais – O Princípio da Dignidade da Pessoa Humana. Rio de Ja-
neiro. Editora Renovar. 2002. 

CANUTO DE F. LIMA, André. A teoria dos princípios de Ro-


bert Alexy: Jus. com.br. Disponível em: https://jus.com.br/arti-
gos/31472/a-teoria-dos-principios-de-robert-alexy. Acesso em:
16/03/2020.

LUIZ STRECK, Lenio. Do pamprincipiologismo à concepção hipos-


suficiente de princípio: Senado.leg.Disponívelem:https://www2.
senado.leg.br/bdsf/bitstream/handle/id/496574/000952675.pdf.
Acesso em: 16/03/2020.

SARLET,  I. W; FIGUEIREDO, M. F.  Reserva do possível, mínimo


existencial e direito à saúde: algumas aproximações. Revista de dou-
trina da 4ª região, Porto Alegre (RS), 24.ed. julho. 2008. 

STRECK, Lênio Luiz. Contra o neoconstitucionalismo. Revista da Aca-


demia brasileira de Direito Constitucional. Curitiba, 2011, n.4, jan-
-jun, p.9-27.

TORRES, Ricardo Lobo. Tratado de Direito Constitucional Financeiro


e Tributário. Vol III. Os Direitos Humanos e a Tributação – Imuni-
dades e isonomia. Rio de Janeiro. Ediora Renovar. 1999. 

669
O RACISMO INSTITUCIONAL
E O FUNCIONAMENTO DAS
INSTITUIÇÕES ADMINISTRATIVAS
BRASILEIRAS EM UM PROCESSO
DE ESTADO DE COISAS
INCONSTITUCIONAL
Maria Fernanda de Carvalho Pio
Cristina Veloso de Castro

O racismo faz parte de todas as relações de poder presentes, ele


constitui as relações sociais, uma normalização e racionalização do do-
mínio sobre os corpos negros, onde se constituem ações conscientes e
inconscientes do ser humano, é o modo estrutural da sociedade, um
funcionamento normal da vida cotidiana, que culmina em desvantagens
ou privilégios para os indivíduos, a depender do grupo racial a que per-
tence. O interesse pela temática do racismo institucional nos órgãos da
administração pública e a teoria do estado de coisas inconstitucional na
não implementação do III Plano Operativo da Política de Saúde Integral
da População Negra - PNSIPN no âmbito do Sistema Único de Saúde
-SUS dos municípios mineiros, surgiu com a necessidade de promover
um estudo aprofundado sobre como o racismo estrutural e institucional
é normatizado em todas as relações de poder, e como seu reflexo atinge
todas as esferas da sociedade, mesmo que de maneira inconsciente. Nes-
te viés, a pesquisa proposta se justifica pelos artigos 5º e 196 da constitui-
ção, utilizando a teoria do estado de coisas inconstitucional como me-

670
LU I Z A N TÔ N I O R E I S J U N I O R , M A U R I C I O P I R E S G U E D E S , T E L S O N P I R E S ,
VA N E S S A V E L A S C O, H E R N A N D E S B R I TO R E I S ( O R G . )

canismo de proteção e fiscalização da real efetivação dos direitos sociais,


políticos e básicos inerentes a todo ser humano, analisando as situações
de violações graves e sistemáticas dos direitos fundamentais do sistema
de saúde dos municípios. A Teoria do Estado de Coisas Inconstitucio-
nal é de salutar importância para corroborar com o aprimoramento do
sistema jurídico brasileiro, e trazer inovação jurídica que auxilie a com-
bater as violações aos direitos humanos, visto que o ECI dialoga com
várias vertentes constitucionais no que tange as constantes violações ao
direitos fundamentais e direitos do homem, de maneira interdisciplinar.
O objeto do projeto é a possível comprovação do Estado de Coisas In-
constitucional (ECI) nos municípios brasileiros em relação a morosidade
da implementação do III Plano Operativo da PNSIPN no âmbito do
SUS, como reflexo do racismo institucional nos órgãos da administra-
ção pública. O procedimento metodológico escolhido permitirá que se
parta de dados gerais para argumentos particulares com a finalidade de
se chegar a conclusões formais e análises que se comprovem o auxílio e
estudo a respeito do tema sugerido. Ate o momento, dentre os levan-
tamentos do estudo comprovou-se por meio do Perfil dos Municípios
Brasileiros (MUNIC) de 2018, do IBGE, que somente 28% dos 5.570
municípios brasileiros, incluíram ações previstas na Política no planeja-
mento municipal de saúde, dificultando drasticamente a redução da de-
sigualdade pretendida. Nesta esteira, conclui-se presença do Estado de
Coisas Inconstitucional, comprovando que os municípios, mesmo que
de forma indireta, praticam o ECI, devendo ser averiguado judicialmen-
te sua comprovação, como fora em 2015, pela ADPF 347, julgada pelo
Supremo Tribunal Federal, que reconheceu o estado de coisas inconsti-
tucional frente a situação do sistema carcerário brasileiro.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do


Brasil, de 05 de outubro de 1988.. Brasília, Disponível em: <http://
www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm>. Aces-
sado em: 10 de agosto de 2020.

PORTARIA Nº 992 de 13 de maio de 2009. Institui a Política Nacional


de Saúde Integral da População Negra Disponível em: <http://bvsms.

671
DIMENSÕES JURÍDICAS DAS POLÍTICAS PÚBLICAS – VOL. 1

saude.gov.br/bvs/saudelegis/gm/2009/prt0992_13_05_2009.html>A-
cesso em 09 de agosto de 2020.

Política Nacional de Saúde Integral da População Negra Uma Políti-


ca do SUS. Disponível em: <https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.
php/4940490/mod_resource/content/1/MS-Politica_nacional_saude_
populacao_negra_3d-2017.pdf> Acesso em: 10 de agosto de 2020.

MUNIC. Pesquisa De Informações Básicas Municipais. Disponível em


: < https://www.ibge.gov.br/estatisticas/sociais/saude/10586-pesquisa-
-de-informacoes-basicas-municipais.html?=&t=o-que-e>. Acesso 10
de agosto de 2020.

STRECK, Lenio Luiz. Estado de Coisas Inconstitucional é uma nova


forma de Ativismo. Artigo publicado in: http://www.conjur.com.
br/2015-out-24/observatorio-constitucional-estado-coisas-incons-
titucional-forma-ativismo acesso em 20 de agosto de 2020

672
NECESSIDADE DO ABORTO NA
CONJUNTURA ATUAL
Daniel Stefani Ribas106

Em um estudo com presectiva do Direito Constitucional e Direitos


Humanos, nota-se que o aborto sendo negado na atual ordem Democrá-
tica é uma total falta de assimilação com a realidade Brasileira, realidade
essa que se amolda com de diversos países da América Látina.
Análisando o aborto não como um direito sobre a vida do feto, mas
sim a realidade social que ele ira se alocar nos próximos anos da sua vida,
uma realidade que o Estado não proporciona condições de estabilidade
pública miníma para desenvolvimento do ser humano, condições como
Saúde, Edúcação, Lazer e ao proprio desenvolvimento.
Diante de tal Situação para se evitar uma fragilidade social, além de condi-
ções estatais precárias do Brasil a própria situação afetiva do indivído é violada,
predestinando o ser social a um crescimento sem amor, carinho e zelo de um
ambiente famíliar que são requisitos básicos para um crescimento propicío.
Consorte a Paiva (2020) em seu livro que retrata julgados da Cor-
te Interamericana de Direitos Humanos quando julga o caso conhecido
como “Caso dos Meninos de Rua (Villagrán Morales e outros) vs. Gua-
temala” aponta um olhar sobre o projeto de vida do indivíduo, como afri-
maram os juizes Cançado Trindade e Abreu, Burelli nos votos proferidos.

(...) o projeto de vida é consusbistacial do direito à existência, e


requer para seu desenvolvimento condições de vida digna, de se-
gurança e integridade da pessoa humana (...).

106 Acadêmico do curso de Direito das Faculdades Integradas Vianna JR, Vice-Presidente DCE-FIVJ

673
DIMENSÕES JURÍDICAS DAS POLÍTICAS PÚBLICAS – VOL. 1

Uma pessoa que em sua infância vive, como em tantos países da


América Latina, na humilhação da miséria, sem menor condição
sequer de criar seu projeto de vida, experimenta um estado de pa-
decimento equivalente a uma morte espiritual; a morte física que
esta segue, em tais circustâncias, é culminação da destruição total
do ser humano. (PAIVA, 2020, p.79)

Entretanto, essa discução hoje ainda encontra muita dificuladade,


visto que a grande interferência em discussões se amolda em preceitos
religiosos e não técnicos ou até mesmo sobre Direitos Humanos práticos
que as mulheres conquistaram ao longo dos anos, visto que é de extrema
necessiade se adequar a realidade fática social do Brasil que apresenta uma
desparidade total quanto se compara aos aspectos religiosos.
A metodologia foi bibliográfica, sendo a principal base técnica julga-
do da Corte Interamericada de Direitos Humanos.
Sendo uma discução como essa aberta de foram técnica é atraves do
direto comparado significa um avanção de extrema grandeza para os Di-
reitos Humanos no Brasil.
Concluindo esse resumo Mendes (2017) relata o direito a vida da se-
guinte maneira. “A existência humana é o pressuposto elementar de todos
os demais direitos e liberdades dispostos na Constituição.” (MENDES,
2017, p.255) ao observamos tal pensamento de que o Direito a Vida fica
em segundo plano quando observamos e sopesamos o próprio direito a
Dignidade da Pessoa, observando a necessidade de se abstrair de valores
constitucionais que não são preponderantes para o avanço da discução.

Referências

MENDES, Gilmar Ferreira. Curso de Direito Constitucional/ Gilmar


Ferreira Mendes, Paulo Gustavo Gonet Branco. -12. Ed. rev. E atual.
– São Paulo: Saraiva 2017. – (Série IDP)

PAIVA Caio. HEEMANN, Thimotie Aragon. Jurisprudência Inter-


nacional de Direitos Humanos. 3º ed. Belo Horizonte: CEI,
2020.

6 74
LU I Z A N TÔ N I O R E I S J U N I O R , M A U R I C I O P I R E S G U E D E S , T E L S O N P I R E S ,
VA N E S S A V E L A S C O, H E R N A N D E S B R I TO R E I S ( O R G . )

POLÍTICAS PÚBLICAS PARA


SEGURANÇA ALIMENTAR NO
CONTEXTO ESCOLAR
Simone Cesario Soares107

INTRODUÇÃO

No Brasil a oferta de alimentação escolar principalmente na década


de 1950, tinha por objetivo atender principalmente as crianças das escolas
públicas, que devido a fatores econômicos apresentam altas taxas de des-
nutrição, e com isso se caracterizava como assistencialista. No entanto no
final da década de 1990, a alimentação escolar, passa a ser compreendida
enquanto direito humano garantido pela Constituição Brasileira, e pelo
Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). Incorporado a este direi-
to o conceito de segurança alimentar, ou seja, a busca pela garantia da
alimentação humana de qualidade. A escola tem papel essencial, na me-
dida em que tem por função a formação integral do individuo, ofertando
e educando para a formação de hábitos alimentares saudáveis, garantin-
do qualidade de vida, tendo em vista os documentos orientadores como
Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDBEN), bem como
os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN´s). Assim este trabalho tem
por intuito discutir a importância da formação nutricional dos escolares
para uma vida saudável

FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA:

A escola através dos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs), a


partir da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDBEN) apre-
senta dentro de sua proposta temática, a Saúde, através dos temas transver-
sais, abordando alimentação e nutrição.

107 Mestrando do Programa de Desenvolvimento Rural Sustentável, UNIOESTE- Universi-


dade Estadual do Oeste do Paraná – Mal. C. Rondon.

675
DIMENSÕES JURÍDICAS DAS POLÍTICAS PÚBLICAS – VOL. 1

Desta forma, a necessidade de se tratar da alimentação saudável em


âmbito escolar foi publicada a Portaria Interministerial de Nº 1.010, 2006,
que trata da Instituição das diretrizes para a Promoção da Alimentação
Saudável nas Escolas de educação infantil, fundamental e nível médio das
redes públicas e privadas, em âmbito nacional.
E nesse contexto a escola tem papel essencial, na medida em que
tem por função a formação integral do individuo, ofertando e educan-
do para a formação de hábitos alimentares saudáveis, garantindo qua-
lidade de vida, tendo em vista os documentos orientadores como Lei
de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDBEN), bem como os
Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN´s). Assim este trabalho tem
por intuito discutir a importância da formação nutricional dos escola-
res para uma vida saudável.
Assim uma mudança do hábito alimentar seria possível a partir da
integração da nutrição ao ensino, representaria uma forma mais eficaz de
intervenção nutricional (PIETRUZINSKY et al., 2010), a partir do mo-
mento em que o aluno adquire clareza do que está comendo, bem como
do resultado desse consumo para seu corpo, sua saúde, ou seja, através do
conhecimento alimentar do indivíduo seria de fato um caminho para se
alcançar uma mudança profunda e consciente.
Tendo em vista esta necessidade de educar para a alimentação saudá-
vel, promovendo e busca a garantia de práticas alimentares saudáveis no
espaço escolar, o Ministério da Saúde, por meio da Coordenação-geral
da Política de Alimentação e Nutrição (CGPAN), instituiu a Portaria
Interministerial nº 1.010 de 8 de maio de 2006, estabelece diretrizes
para a promoção da alimentação saudável em todas as etapas (educação
infantil, ensino fundamental e ensino médio) das escolas da rede pública
e privada (BRASIL, 2006).
Formar para uma nutrição saudável, representaria um processo cog-
nitivo do individuo, possibilitando atitudes e comportamentos desejados.
A escola a partir do ensino através de práticas alimentares habilitaria seus
alunos para uma alimentação saudável, ou seja, o conhecimento pode
mudar hábitos (VARGAS e LOBATO, 2007). A escola ao ofertar novas
informações sobre alimentação e nutrição, auxilia na promoção da am-
pliação do conhecimento individual que poderá resultar em melhorias no
comportamento alimentar, do aluno favorecendo não só a manutenção

676
LU I Z A N TÔ N I O R E I S J U N I O R , M A U R I C I O P I R E S G U E D E S , T E L S O N P I R E S ,
VA N E S S A V E L A S C O, H E R N A N D E S B R I TO R E I S ( O R G . )

como na recuperação do estado nutricional (SILVA et al., 2013; TORAL;


CONTI; SLATER, 2009).
Desta forma a escola adotando um estilo de vida mais saudável entre as
crianças e adolescentes a seria fundamental para o delineamento adequado
de materiais educativos e intervenções nutricionais. Assim a função da
escola vai além de ofertar alimentos saudáveis, exerce também à função
formadora de novos hábitos, novos modos de conceber saúde, promotora
de boas práticas, a fim de gerar pessoas mais saudáveis e conscientes do
quão importante é o papel da escolha certa, da alimentação em nossa vida.
A escola representa um espaço de formação importante para o desenvolvi-
mento dos indivíduos através de ações de melhoria das condições de saúde
e do estado nutricional das crianças e dos jovens, pois tem abrangência da
saúde a partir da educação (SCHMITZ, et al, 2008).
A alimentação escolar deixa de ter uma função apenas de suprimento
nutricional e assistencialista como evidenciado principalmente nas déca-
das de 1940 e 1950 pelas políticas públicas, e passa na atual conjuntura a ter
papel formativo, ou seja, educação para uma boa alimentação e por con-
sequência boa saúde. Neste contexto a educação nutricional é um proces-
so de formação de longo prazo, ou seja, deve ocorrer de forma contínua
(RODRIGUES e RONCADA, 2008). Assim a escola num perspectiva
de formação integral, através das várias possibilidades metodológicas de
ensino aprendizagem, pode capacitar o individuo a escolhas nutricionais
saudáveis (COSTA; RIBEIRO; RIBEIRO, 2001).

METODOLOGIA

O trabalho discute e analisa a relação da segurança alimentar, bem


como a formação para hábitos alimentares saudáveis das crianças e jovens
através da escola, a partir das políticas públicas, a fim de promover a quali-
dade de vida. E para isso foram realizadas revisões a partir de artigos cien-
tíficos publicados, bem como da literatura existente e discussões recentes
acerca da temática direito a alimentação saudável.

RESULTADOS E DISCUSSÃO

A educação como principal propulsor da mudança, necessita de


novos métodos de ensino, colocando o estudante em contato com o

677
DIMENSÕES JURÍDICAS DAS POLÍTICAS PÚBLICAS – VOL. 1

ambiente externo à sala de aula, em contato direto com a natureza. E


a alimentação adequada deve ser considerada como essencial a saúde
da população. Assim fez-se necessário ter uma compreensão clara do
que é uma boa nutrição (ZANCULT, 2008). E através do conheci-
mento criam-se mecanismo para escolhas adequadas, possibilitando
qualidade de vida, e bons hábitos alimentares que seguiram para a
vida adulta.

CONCLUSÕES

Assim na busca pela garantia do direito a alimentação, a partir do


conceito de segurança alimentar, as políticas públicas através de ações
intersetoriais, podem garantir tanto a oferta de alimentação escolar de
qualidade, quanto à formação de hábitos alimentares saudáveis a partir
de ações pedagógicas efetuadas através da escola, e não apenas pelo pro-
fessor, mas pela comunidade escolar como um todo. Através da efetiva-
ção de ações de conscientização, bem como experiências, contribuindo
para a melhoria da qualidade de vida de nossos alunos, algo a ser usu-
fruída durante toda sua vidante as principais conclusões que podem ser
extraídas da pesquisa.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BRASIL. Lei no 11.346, de 15 de setembro de 2006. Cria o Sistema Na-


cional de Segurança Alimentar e Nutricional – SISAN, com vistas em
assegurar o direito humano à alimentação adequada e dá outras providencias.
Diário Oficial da União 2006; 18 set.

BRASIL. Lei n° 8.069, de 13 de julho de 1990. Estatuto da Criança e do


Adolescente – ECA. Brasília, 1990.

BRASIL. Ministério da Educação. Resolução/CD/ FNDE n o 38, de 16 de


julho de 2009. Dispõe sobre o atendimento da alimentação escolar aos
alunos da educação básica no Programa Nacional de Alimentação
Escolar (PNAE). Diário Oficial da União 2009; 17 jun.

PIETRUSZYNSKI, Ellen Beatriz et al. Práticas pedagógicas envolvendo


a alimentação no ambiente escolar: apresentação de uma proposta.

678
LU I Z A N TÔ N I O R E I S J U N I O R , M A U R I C I O P I R E S G U E D E S , T E L S O N P I R E S ,
VA N E S S A V E L A S C O, H E R N A N D E S B R I TO R E I S ( O R G . )

Revista Teoria e Prática da Educação, v. 13, n. 2, p. 223-229, maio/


ago. 2010.

SCHMITZ, B. A. S. et al. A escola promovendo hábitos alimentares sau-


dáveis: uma proposta metodológica de capacitação para educadores e
donos de cantina escolar. Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro,
v. 24, supl. 2, p.S312-S322, 2008.

679
A EFETIVAÇÃO DOS DIREITOS
FUNDAMENTAIS SOCIAIS E
ECONÔMICOS POR MEIO
DE POLÍTICAS PÚBLICAS
PARA PROMOÇÃO DO
DESENVOLVIMENTO
Emanuelle Clayre Silva Banhos108

INTRODUÇÃO

Embora a Constituição Federal de 1988 assegure em seu texto di-


versos direitos fundamentais econômicos e sociais, a concretização destes
nem sempre é efetiva, e isso implica em carência de serviços públicos e
discrepância econômica e social.
A justiça social é um dos ditames da Constituição da República, de
forma que as políticas públicas são instrumentos necessários para assegurar
o compromisso do Estado de buscar mecanismos para minimizar as desi-
gualdades sociais existentes em uma sociedade.
Políticas públicas que favoreçam o exercício dos direitos fundamen-
tais sociais e econômicos são capazes de promover a dignidade da pessoa
humana que é “um valor supremo, atrai o conteúdo de todos os direitos
fundamentais do homem, desde o direito à vida” (SILVA, 1998, p. 92).

108 Mestranda pela Universidade Nove de Julho. Advogada

680
LU I Z A N TÔ N I O R E I S J U N I O R , M A U R I C I O P I R E S G U E D E S , T E L S O N P I R E S ,
VA N E S S A V E L A S C O, H E R N A N D E S B R I TO R E I S ( O R G . )

Enfim, as garantias geradas pelas políticas públicas podem formar uma


estrutura social que permita a existência digna de todos, com a prevalência
e efetivação dos direitos fundamentais positivados na Carta Magna, e estí-
mulo do desenvolvimento nacional.

FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA

A discussão teórica essencial deste trabalho partiu da constatação de


Amartya Sen (2010, p. 28) de que o crescimento econômico não implica
no desenvolvimento de um Estado.
Desta maneira, para que uma sociedade seja desenvolvida SEN (2010,
P. 16) afirma que se faz necessário a expansão das liberdades dos membros
da sociedade.
Isto é, a expansão dessas liberdades se dá por meio de disposições so-
ciais e econômicas como serviços de saúde e educação, ou seja, através de
políticas públicas que tenham por fim promover e assegurar os direitos
fundamentais econômicos e sociais constitucionalmente garantidos a to-
dos, como meio para o desenvolvimento nacional.

METODOLOGIA

Este trabalho utilizou-se da revisão bibliográfica para coleta de infor-


mações referentes à temática, e como método o hipotético-dedutivo para
análise dos dados pertinentes à pesquisa.

RESULTADOS E DISCUSSÃO

Consoante Fábio Konder Comparato “o reconhecimento dos direi-


tos humanos de caráter econômico e social foi o principal benefício que
a humanidade reconheceu do movimento socialista, iniciado na primeira
metade do século XIX” (COMPARATO, 2015, n.p.).
Inobstante, quanto a titularidade desses direitos humanos fundamen-
tais têm-se que são os grupos sociais atingidos pela miséria, a doença, a
fome e a marginalização (COMPARATO, 2015), sendo que esses direi-
tos apenas podem ser assegurados através de ações do Estado, ou seja, de
políticas públicas que visem a promoção e o seu efetivo exercício.

681
DIMENSÕES JURÍDICAS DAS POLÍTICAS PÚBLICAS – VOL. 1

Neste caminho, de nada adianta o crescimento econômico país sem


que a sua população se desenvolva de forma completa, uma vez que o
aumento do Produto Interno Bruto (PIB) de um país não significa o de-
senvolvimento de sua população.
De acordo com Amartya Sen, “uma concepção adequada de desen-
volvimento deve ir muito além da acumulação de riqueza e do crescimen-
to do Produto Nacional Bruto e de outras variáveis relacionadas à renda”,
haja vista que “sem desconsiderar a importância do crescimento econômi-
co, precisamos enxergar muito além dele” (SEN, 2010, p. 28).
Destarte, enxergar além do crescimento econômico significa garantir,
por meio de políticas públicas, que a população seja detentora de democ-
racia econômica e social, ou seja, que possuam condições paritárias de
desenvolver-se.
Considerando-se que a dignidade da pessoa humana é um dos funda-
mentos da República (artigo 1º, III, da Constituição Federal), bem como
finalidade da ordem econômica (artigo 170, caput, da Constituição Feder-
al), daí extrai-se que é dever do Estado garantir a todos a existência digna,
assegurando-se, através de políticas públicas, a efetivação dos direitos soci-
ais e econômicos, com o fim de promover justiça social e desenvolvimento
econômico e social.
Assim, finalmente, entende-se que a dignidade da pessoa huma-
na apenas atingirá sua integridade quando for efetivamente promo-
vido o acesso de toda sociedade às liberdades reais e não somente às
liberdades formais (GRAU, 2015, p. 194-195), e isso se dá por meio
das políticas públicas.

CONCLUSÕES

Apenas através da garantia e promoção de direitos fundamentais eco-


nômicos e sociais, com paridade de direitos entre todos os membros da
sociedade, nos ditames da justiça social, poder-se-á falar em um efetivo
desenvolvimento econômico e social.
Entende-se que o contexto da sociedade brasileira atual impõe a rea-
lização de políticas públicas concretas, visando que modelo de sociedade
insculpido na Constituição Federal de 1988, que tem por fundamento a
dignidade da pessoa humana e como objetivo a redução das desigualdades

682
LU I Z A N TÔ N I O R E I S J U N I O R , M A U R I C I O P I R E S G U E D E S , T E L S O N P I R E S ,
VA N E S S A V E L A S C O, H E R N A N D E S B R I TO R E I S ( O R G . )

sociais e regionais, seja efetivamente executado para o fim de assegurar


direitos fundamentais e promover o desenvolvimento econômico e social.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

COMPARATO, Fabio Konder.  A afirmação histórica dos direitos


humanos. 10. ed. São Paulo: Saraiva, 2015. [livro eletrônico, n.p.]

GRAU, Eros Roberto. A ordem econômica na constituição de 1988.


São Paulo: Malheiros, 2015.

SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e direitos


fundamentais na Constituição Federal de 1988. 4 ed. Porto Ale-
gre: Livraria do Advogado, 2006.

SEN, Amarthya. Desenvolvimento como liberdade. São Paulo:


Companhia das letras, 2010.

SILVA, José Afonso da. A dignidade da pessoa humana como valor supre-
mo da democracia. Revista de Direito Administrativo, v. 212,
1998. p. 89-94.

683
A UTILIZAÇÃO DE PROJETOS
ESTRUTURAIS ENQUANTO POLÍTICA
PÚBLICA DE EFETIVAÇÃO DA
LEI Nº 11.888/2008: PRINCÍPIOS
ADMINISTRATIVOS E OBEDIÊNCIA
CONSTITUCIONAL
Tainan Cardoso Hagge Moreira109
Yuri Castro Carneiro110

1. INTRODUÇÃO

A viabilidade da pesquisa se apresenta na necessidade de discussão


acerca da implementação das diretrizes principiológicas abordadas na Car-
ta Magna, mais especificamente no que se refere ao comando exposto no
art.6º da Constituição Federal, que menciona serem direitos sociais a edu-
cação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o transporte, o lazer,
a segurança, [...], a assistência aos desamparados, na forma desta Constitui-
ção. Nessa seara, abordamos que apesar de já haver lei sedimentada, teori-
camente responsável por proporcionar alguns dos direitos sociais supramen-
cionados – moradia, segurança e a assistência aos Desamparados –, o Estado
Brasileiro e a Administração Pública demonstraram que em perspectiva
oposta ao projetado pela Carta Constitucional, o modus operandi estatal é

109 Graduada em Engenharia Civil pela Faculdade de Tecnologia e Ciências ( FTC)


Graduanda em Arquitetura e Urbanismo pela União Metropolitana de Edição e Cultura
110 Graduando em Direito pela Faculdade Nobre de Feira de Santana – Bahia (FAN)

684
LU I Z A N TÔ N I O R E I S J U N I O R , M A U R I C I O P I R E S G U E D E S , T E L S O N P I R E S ,
VA N E S S A V E L A S C O, H E R N A N D E S B R I TO R E I S ( O R G . )

deveras ineficiente, não fornecendo aos ditames do texto constitucional ter-


reno fértil para a semeadura do princípio máximo da Constituição Federal,
a dignidade da pessoa humana. Deste modo, entendemos que apesar das
mais benéficas intenções propostas no nosso aparato normativo, inclusive
através da Lei nº 11.888/2008, os direitos supratranscritos não tem sido ade-
quadamente postos na estrutura social, ou seja, a realidade fática distingue-
-se do imaginário constitucional. É justamente por compreendermos pela
inaplicabilidade atual de alguns dos chamados de Direitos de Segunda Ge-
ração que conjecturamos sobre a possibilidade de mediante a utilização de
Projetos Estruturais, ofertados pelo Poder Executivo, poderia haver o iní-
cio da construção de um porvir social que obedeça tanto os mandamentos
constitucionais quanto os princípios da administração pública, pois, além
dos iminentes riscos que correm às famílias de baixa renda em virtude da
ausência de planejamento e execução estatal, há, por conseguinte, um au-
mento expressivo nos gastos públicos em virtude destes erros, acarretando
em maiores despesas ao erário público e, menor aproveitamento do orça-
mento a fins sociais outros.

2. FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA

Diante das observações que foram pontuadas no que gravita sobre


a inefetividade dos atos relacionados a consecução dos Direitos Sociais à
moradia, segurança e assistência aos desamparados – lastreados pela previ-
são constitucional dos arts.6º e 182º, além do art.1º da lei nº 11.888/2008
–, ressaltamos que os direitos sociais são direitos fundamentais do homem,
direitos de igualdade, caracterizando-se como verdadeiras liberdades po-
sitivas, de observância obrigatória em um Estado Social de Direito, tendo
por finalidade a melhoria de condições de vida dos hipossuficientes (CAS-
TRO; WELTER, 2014, p.518), ato contínuo, cabe destacar que o direito
à moradia, não se limita a oferta ao cidadão de residência pronta e acaba-
da. Mas, também em proporcionar que o cidadão que tenha interesse em
edificar, tenha o apoio técnico necessário (ALMEIDA, 2018, p.30), pois,
sendo sua função voltada para o bem de toda a coletividade, desenvolvida
pelo Estado com a intenção de privilegiar a coisa pública e as necessidades
do corpo coletivo (CARVALHO, 2017, p.36), deve encontrar-se implí-
cito na atuação administrativa o encaixe adequado entre sua margem de

685
DIMENSÕES JURÍDICAS DAS POLÍTICAS PÚBLICAS – VOL. 1

consecução de políticas públicas voltadas ao planejamento urbano-social;


a preservação da segurança; da dignidade da pessoa humana e a liberdade
de ação constitucionalmente posta a cada integrante da sociedade que este
aparato normativo propõem-se a regular.
Levando em consideração os altos índices de obras irregulares no Bra-
sil – predominante nas famílias de baixa renda –; de colapsos de estruturas
(colocando em risco a vida da população abstratamente falando), enfatiza-se
que um Projeto Estrutural que garanta a segurança da edificação torna-se
fundamental. Conforme a NBR 15575-2:2013 afirma, um Projeto Estru-
tural que garanta a segurança da edificação é de basilar importância para
atender a vida útil de uma construção, bem como a segurança dos seus ha-
bitantes, e considerando que diversos casos de colapsos de estruturas ocor-
reram no país nos últimos meses, como o do desabamento de uma casa em
Mauá, na Grande São Paulo, esta que acabou indo a ruína e colapsando em
cima de outras duas casas que se encontravam ao lado, há de se perceber a
existência de uma maior probabilidade de tais acidentes ocorrerem nas fa-
mílias de baixa renda, pondo em risco a vida desses habitantes e colapsando
a estrutura financeira da parcela da população que perde sua habitação. Ob-
servação pertinente é de que houvera sido informado através de entrevista
pelos proprietários que a edificação mencionada não tinha Projeto Estrutu-
ral e nem Responsável Técnico devido a falta de recursos financeiros, assim
como a maioria das casas ao redor, ou seja, a realidade dessas famílias pre-
judicadas expande-se em meio ao cenário de acentuada pobreza vivida por
nosso país, porquanto, apesar da peculiaridade vivida e refletida em nosso
ordenamento, não há concretização das Políticas Públicas e Urbanas desti-
nadas a salvaguarda da segurança e da moradia aos desamparados, assistência
essa que poderia concretizar-se através da implementação de Projetos Es-
truturais. Segundo Graziano(2015), o projeto Estrutural é de fundamental
importância para execução e segurança de uma obra, pois é nessa fase que
se é escolhida a melhor solução para obter as melhores condições de esta-
bilidade e desempenho de uma edificação, já que a estrutura deve atender
aos requisitos de conforto e qualidade para que a habitação se mantenha
em perfeito estado de uso. A NBR 6118 ainda enfatiza que uma estrutura é
considerada segura quando a mesma atende todos os critérios estabelecidos
por ela, suportando todas as ações e esforços impostos para que não ocorra a
ruptura e ruina da estrutura, assim, um projeto estrutural deve garantir que

686
LU I Z A N TÔ N I O R E I S J U N I O R , M A U R I C I O P I R E S G U E D E S , T E L S O N P I R E S ,
VA N E S S A V E L A S C O, H E R N A N D E S B R I TO R E I S ( O R G . )

a estrutura tenha solicitações menores do que as resistências para qualquer


Estado Limite, evitando assim desabamentos de estruturas que afetam tanto
o poder público quanto o povo.

3. METODOLOGIA

A metodologia aplicada perpassa por uma abordagem qualitativa anco-


rada pela técnica de pesquisa bibliográfica no que se refere à fundamentação
teórica jurídica do tema em apreço, bem como um aparato quantitativo, por
meio dos dados coletados em Normas Regulamentadoras Brasileiras tendo
como principal referência NBR15575-2003 e NBR 6118-2014.

4. RESULTADOS E DISCUSSÕES

O cerne da pesquisa tem o intuito de ressignificar as políticas públi-


cas dirigidas a realização dos Direitos a moradia, segurança e assistência aos
desamparados, tendo em vista que além de uma clara transgressão aos pre-
ceitos institucionais de um Estado Democrático de Direito, o ato-fato de
omitir-se resulta numa contradição lógica se a referida omissão for do ente
estatal. A dupla possibilidade de ação que a Administração Pública é do-
tada (atuar ou omitir-se), apenas são possibilidades conquanto as mesmas
são justificadas pela Constituição Federal, ou seja, se dotam de coerência
porquê de tal forma o Texto Constitucional permitiu, admitindo uma im-
plícita subserviência hierárquica a mesma. Da mesma forma, a Carta Magna
exige e pugna pela necessária observância dos Direitos Sociais, portanto,
negar a imprescindibilidade destes é negar os pressupostos de quem legitima
a sua atuação, ou seja, é negar a si e os seus fundamentos de validade, uma
analogia a Habermas e sua contradição performativa, portanto, além da ig-
norância da necessidade de Projetos Estruturais na assistência às habitações
de baixa renda serem uma contradição performativa, são uma total falta de
responsabilidade com os comandos do art.6º da Constituição Federal.

5. CONCLUSÕES

Tendo como pontapé inicial o descumprimento dos preceitos cons-


titucionais e infraconstitucionais citados, a transgressão lógica adstrita a

687
DIMENSÕES JURÍDICAS DAS POLÍTICAS PÚBLICAS – VOL. 1

práxis da (in)atividade estatal e as consequências que podem decorrer lo-


gicamente da ausência de projetos estruturais nos lares das famílias de bai-
xa renda, é mister influir que além do maior dispêndio ao erário público –
consequência da necessidade de refazimento da política urbana –, há, por
conseguinte, clara violação ao princípio da efetividade da Administração
pública mesmo que de forma indireta, devido ao deslocamento financeiro
dos gastos públicos. O Projeto Estrutural assegura ao morador ou proprie-
tário do imóvel que aquela estrutura é segura e está em condições de uso
sem colocar em risco a vida dos próprios moradores e da população vizi-
nha. O desabamento de estruturas desenvolvem prejuízos sociais para a
população devido aos riscos que um desmoronamento propicia colocando
em risco a vida do cidadão que na maioria dos casos não possui recursos
financeiros para adquirir tal projeto implicando assim na possibilidade do
aumento de casos de colapsos de estruturas devido a falta de projetos e
responsável técnico e afetando a política urbana.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE NORMAS TECNICAS. NBR


15575-2 – 2013

ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE NORMAS TECNICAS. NBR


6118-2014

ALMEIDA, Sérlio Souza de. A lei federal nº 11.888/08, como um instru-


mento da política habitacional aplicada na cidade de Teófilo Otoni
- Mg. Dissertação (Mestrado em Tecnologia, Ambiente e Sociedade)
- Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri. 2018.

CASTRO, Matheus Felipe de; WELTER, I. P. . A aplicabilidade dos


direitos sociais na perspectiva do estado social brasileiro. In: Riva
Sobrado de Freitas; Edinilson Donizete Machado; Ademario An-
drade Tavares. (Org.). Direitos Fundamentais e Democracia V. 1ed.
Florianópolis: Conpedi, 2014, v. 1, p. 515-531.

GRAZIANO, Francisco Paulo. Projeto e execução de estruturas de con-


creto armado. São Paulo: Nome da Rosa, 2005.

688
CONFLITOS AGRÁRIOS: UM
ENTRAVE À IGUALDADE SOCIAL
Marcos Aureliano Bezerra Matos111

INTRODUÇÃO

Bastante atual é o debate sobre a questão agrária em nosso país, bom


como a permanência de malefícios sociais quais sejam: a profunda desi-
gualdade social e a excessiva violência no campo, em muitos casos estimu-
ladas por uma fraca e omissa prestação jurisdicional. Tais fatores somados
dificultam sobremaneira o acesso de inúmeras famílias à posse da terra e
atrasam o marco civilizatório. Desde a sua origem, a estrutura fundiá-
ria brasileira foi concebida pela absurda concentração de terra nas mãos
de poucos privilegiados. Hodiernamente, observa-se a persistência do
modelo de expansão dos grandes latifúndios pelo “atropelo” da pequena
propriedade rural, resultando daí apropriação, usurpação e aumento do já
vergonhoso abismo social entre as classes.

FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA

O tema originou-se de algumas leituras realizadas sobre as obras de


Celso Furtado e Paulo Tormin Borges. Furtado aborda em sua obra uma
visão multidisciplinar, com enfoque em História e Filosofia, em que traça
um panorama do pensamento teórico-econômico e estuda a contribuição
de autores diversos como Adam Smith e KarI Marx. Já da obra de Tor-

111 Graduando do Curso de Bacharelado em Direito pelo Centro Universitário INTA - UNINTA.

689
DIMENSÕES JURÍDICAS DAS POLÍTICAS PÚBLICAS – VOL. 1

min Borges temos que uma análise profunda do direito agrário, em que
se procura entender pormenorizadamente seus institutos e aplicações no
caso prático da realidade do campesinato brasileiro.

METODOLOGIA

Trata-se de uma revisão de literatura, elaborada a partir do estudo


de livros e artigos voltados para os direitos sociais e sua aplicabilidade nos
mais diversos e múltiplos entendimentos a respeito da tão conhecida e
divulgada questão fundiária nacional.

RESULTADOS

A questão agrária, observada de uma maneira reducionista, corrente-


mente é exibida através de um arcabouço calcado na ideologia, estudada
de maneira superficial, filtrada pelos noticiários dos grandes conglome-
rados empresariais de comunicação, cujo objetivo é minar a massificação
dessas informações e impedir a discussão deste importante assunto no seio
da sociedade, das universidades, nas casas legislativas, que quase sempre
estão de braços dados com a elite do judiciário, irmanados aos grandes la-
tifundiários deste país. É possível entender que o que se observa ao pesqui-
sar esta temática é que se trata de uma questão estrutural que desmascara
não somente a impiedosa estratificação social, causa implícita da conde-
nação de muitos brasileiros à condição de vulnerabilidade social e risco.
Doravante, urgente necessária a tarefa de identificação dos marginalizados
da terra, torna-se necessário conhecer o processo de apropriação privada
da propriedade, em todas as suas nuances.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Assim, deve-se ter em mente que a reivindicação por uma justa e


eficaz reforma agrária não deve ser apenas um movimento formal, há de
ser também prático, exequível. Pode-se concluir que a aplicação efetiva
da função social da terra depende de uma correlação de forças, nas quais
movimentos sociais e movimentos populares como partes integrantes de-
vem exercer um papel reivindicatório, embora isso signifique a adoção

690
LU I Z A N TÔ N I O R E I S J U N I O R , M A U R I C I O P I R E S G U E D E S , T E L S O N P I R E S ,
VA N E S S A V E L A S C O, H E R N A N D E S B R I TO R E I S ( O R G . )

de instrumentos questionadores do sistema e da prática da desobediência


civil nos moldes dos princípios democráticos.

REFERÊNCIA

BORGES, Paulo Tormin. Institutos básicos do Direito Agrário. 9.


ed. rev. ampl. São Paulo: Saraiva, 1995.

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988.


Brasília, DF: Presidência da República, 2016. Disponível em:  ht-
tps://www2.senado.leg.br/bdsf/bitstream/handle/id/518231/CF88_
Livro_EC91_2016.pdf. Acesso em: 04 set. 2020.

FURTADO Celso. Pequena Introdução sobre o desenvolvimento.


São Paulo: Editora Nacional. 1989. 

691
DIREITOS HUMANOS E
POLÍTICAS PÚBLICAS INEFETIVAS
NA AMAZÔNIA: SERIA A
JUDICIALIZAÇÃO DA SAÚDE O
REMÉDIO PARA AS COMUNIDADES
TRADICIONAIS À MARGEM DO
COVID-19?
Natalia Luiza Moraes Vasques112

INTRODUÇÃO

Enquanto muitos acreditam que o mundo enfreta uma crise mera-


mente sanitária, o presente estudo busca apronfudar tal reflexão e, con-
sequentemente, seus desdobramentos sob contexto do Norte do Brasil,
onde a doença segue rumo aos interiores, invandindo e instalando-se den-
tro das zonas rurais.
O fato é que a Amazônia é um ecossistema complexo e diversifi-
cado, sobretudo considerando as abordagens social, cultural, ecológica e
econômica. É uma região exuberante, com extensas riquezas e belezas
naturais, mas com pobreza e miséria social. (GUTBERLET, 2002), por-
tanto, o que se enfrenta como sociedade nortista, em verdade, trata-se de

112 Graduanda em Direito pelo Centro Universitário do Estado do Pará (CESUPA), membro
do Grupo de Pesquisa Democracia, Direitos Fundamentais e Igualdade Política (POLIS) com
projeto de iniciação científica vinculado ao PIBICT/CESUPA em 2018.

692
LU I Z A N TÔ N I O R E I S J U N I O R , M A U R I C I O P I R E S G U E D E S , T E L S O N P I R E S ,
VA N E S S A V E L A S C O, H E R N A N D E S B R I TO R E I S ( O R G . )

uma crise humanitária antes de tudo. A pandemia de Covid-19 agravou


quantitativamente as mazelas sociais existentes na região tendo em vista;
I- a inefetividade das políticas públicas que consagrem o direito humano à
saúde; II- a dificuldade de concretização de direitos em razão da dinâmica
sociocultural o que mascara e “justifica” o descaso dos poderes públicos e;
III- problemáticas específicas na formação da região, uma vez que não se
olha para uma área a ser desenvolvida, mas sim explorada. Contudo, res-
salta-se que essa pesquisa se destina a discutir, por hora, apenas no item I.
Nesse sentido, o presente estudo orbitará as comunidades tradicio-
nais da região Amazônica, mais especificamente a população ribeirinha
do estado do Pará que se encontra à margem de direitos sociais, sendo suas
principais privações a saúde e o bem estar social, o que os leva, por con-
sequência, a sucumbir mais as políticas públicas sem efetividade do que
ao próprio vírus. Posteriormente, serão analisadas as conclusões alcança-
das para sopesar o papel que o Poder Judiciário deveria assumir diante da
problematíca estudada e, finalmente, responder a inquietação proposta:
Seria a judicialização da saúde o remédio para as comunidades tradicionais
à margem do Covid-19?

FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA

Paralelamente às discussões doutrinárias acerca da promoção e


proteção de direitos humanos e fundamentais, ocorre um diálogo con-
stitucional no que diz respeito a concretização dos referidos direitos para
que não fiquem apenas na esfera formal e as dificuldades para a sua mate-
rialização de fato.
O movimento jurídico-acadêmico chamado doutrina brasileira da efe-
tividade cresce na tentativa de aliviar tensões geradas por princípios que
apontam em direções diversas e de evitar eventuais colisões entre direitos
fundamentais e outros princípios constitucionais já que por muito tempo
a discussão acerca do ativismo judicial da saúde se preocupou apenas em
apontar o viés “correto” a ser seguido entre o embate do mínimo exis-
tencial e da carência instuticional financeira do sistema, assim limitan-
do-se. De certo que isso contribuiu apenas para a polarização doutrinária,
quando, na verdade, a busca de uma solução eficaz para tal problemática
merece ir além, especialmente diante do novo cenário mundial enfretado,

693
DIMENSÕES JURÍDICAS DAS POLÍTICAS PÚBLICAS – VOL. 1

requer-se inovação no debate. Pois bem, uma vez afastados os argumentos


triviais sobre a judicialização e as políticas públicas, tais como; (i) o princípio
da Separação de Poderes como uma norma de incomunicabilidade entre
as esferas; (ii) a claúsula da Reserva do Possível como meio de exoneração
do cumprimento de obrigações constitucionais ou ainda; (iii) da legitim-
idade e competência do julgador para intervir nesse pleito, feito isso, será
possibilitado o alcance de uma interpretação correta do papel do Direito
no direito à saúde amazonida, isto por que essas discussões acabam que
rebaixam os direitos sociais na hierarquia normativa, que nem deveria ex-
istir, reduzindo-os a normas meramente programáticas a espera de serem
regulamentadas para produzirem efeitos. (BARRETTO, 2013).
Em se tratando dos problemas de efetividade do direito à saúde, é fato
incontestável que o Judiciário não deve pensar políticas que gravitem em
torno da dignidade da pessoa humana e que sejam coletivas até por que
a falha se encontra muito mais na executividade das políticas públicas
do que na sua elaboração. Todavia, defende-se que o Poder Judiciário
garanta que a centralidade dessa políticas gire em torno da concretização
dos direitos fundamentais na maior extensão possível. A saúde básica
da comunidade ribeirinha na Amazônia paraense não é amparada nem
pelo legislador, tampouco pelo administrador, tendo em vista a precária
tradição de respeito aos direitos humanos no âmbito doméstico-region-
al, embora esse seja um dever jurídico que lhes é imposto e, portanto,
apto a ser exigível. Quando, e se, qualquer um dos outros dois poderes
políticos – Legislativo e Executivo – vulnerarem tais direitos cabe ao
Judiciário agir.
A premissa constitucional da saúde encontra-se consagrada no rol da
Constituição da República Federativa do Brasil como direito ofertado à
cada indivíduo pelo Estado que, por sua vez, têm o dever de garanti-la
mediante implementação de políticas públicas que objetivem a redução do
risco de doença e outros agravos e o acesso universal e igualitário às ações
e serviços que assegurem a promoção, proteção e recuperação do direito
à saúde e ao bem estar social. Na seara dos direitos fundamentais impera a
ideia de que as regras normativas são mandados ou comandos definitivos,
ou seja, absolutos, devendo ser oferecidas as condições materiais mínimas
para que possa fruir de uma vida com dignidade em graus, novamente,
minimamente, satisfatórios e efetivos.

694
LU I Z A N TÔ N I O R E I S J U N I O R , M A U R I C I O P I R E S G U E D E S , T E L S O N P I R E S ,
VA N E S S A V E L A S C O, H E R N A N D E S B R I TO R E I S ( O R G . )

METODOLOGIA

Esse estudo utilizou-se do método dedutivo, tendo em seu seio o bojo das
premissas e garantias constitucionais: será visto como elas se aplicam de maneira
eneficaz, ineficiente e inefetiva na realidade amazonida, adotando o procedi-
mento monográfico e a pesquisa bibliográfica e estatística para fins elucidativos.
As técnicas de análise serão as teóricas que embasarão a problemática
do tema e assim irão possibilitar a proposta de um caminho em prol da efe-
tivação dos direitos estudados a ser apresentado no término desta discussão.

RESULTADOS E DISCUSSÃO

Valendo-se dos levantamentos estatísticos realizados a partir do servi-


ço de monitoramento e evolução epidemiológica da Secretaria de Estado
de Saúde Pública do Pará (SESPA), bem como do mapeamento médio
de receitas públicas, especialmente a nível federal, destinadas ao combate
do vírus na região, foi possível constatar que as comunidades tradicionais
ao entorno do meio urbano padecem diante dessa problemática não em
razão dos recursos financeiros (in)disponíveis, mas sim dada a pobreza na
administração dos mesmos. Senão, vejamos:

Figura 1 – Últimos boletins de novos casos confirmados nos últimos sete dias e período
anterior equivalente, respectivamente. – período: março de 2020 a setembro de 2020.

Fonte: Vigilância Epidemiológica - SESPA - Atualizado em 06/09/2020 às 18:52h.

695
DIMENSÕES JURÍDICAS DAS POLÍTICAS PÚBLICAS – VOL. 1

Figura 2 – Dashboard de casos acumulados em curva crescente. – período: março de 2020


a setembro de 2020.

Fonte: Vigilância Epidemiológica - SESPA - Atualizado em 06/09/2020 às 18:52h.



Disto pode-se extrair: (1) Nos últimos sete dias, bem como em igual
período, o número de “casos confirmados” pelo coronavírus se dá quan-
titativamente em municípios do outro lado do rio, a margem de onde as
políticas públicas funcionam na região metropolitana que apresenta ape-
nas três novos ocorridos registrados; (2) A média móvel de “casos acumu-
lados” é crescente desde o início de março de 2020 até o presente mo-
mento, confirmando que a Covid-19 invade tais dependências de maneira
mais nociva.

CONCLUSÕES

Resta evidente que o ativismo judicial da saúde pública é um meca-


nismo eficiente e fundamental para a resposta da problemática estudada,
entretanto, essa pesquisa não poderia, de maneira ingênua, negar a neces-
sidade de sopesamento entre as normas e o fato quando se trata de conflito
de direitos fundamentais vs. princípios constitucionais.
Assim como o Judiciário não pode assumir uma condição inerte,
também não parece adequado recomendar que ele provoque lesões, a or-
dem pública econômica, por exemplo, em prol de pormenizar os impactos
sociais sofridos.
Ao invés de optar pela subsunção do fato e criar uma regra deter-
minada, acredita-se que o remédio do mal que os acomete consiste em
democratizar a via judiciária para regular a concretização de direitos fun-

696
LU I Z A N TÔ N I O R E I S J U N I O R , M A U R I C I O P I R E S G U E D E S , T E L S O N P I R E S ,
VA N E S S A V E L A S C O, H E R N A N D E S B R I TO R E I S ( O R G . )

damentais por meio das políticas governamentais, investigando-as, pro-


cessando e responsabilizando eventuais ilícitos públicos à luz das particu-
laridades próprias daqueles que têm seus direitos violados a fim de que se
materialize um piso mínimo de proteção e efetivação ao direito de saúde
amazonida.
Desse modo, a judicialização da saúde só seria o remédio para as comu-
nidades tradicionais à margem do Covid-19 se passasse por uma releitura,
pois ela depende de diversas mudanças estruturais na educação jurídica,
na organização dos tribunais e, sobretudo, nos procedimentos judiciais,
para que passe a ser possível tratar os direitos sociais e sobre eles decidir de
forma coletiva. (SILVA, 2008).

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BARRETTO, Vicente de Paulo. O fetiche dos direitos humanos e


outros temas. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2013.

GUTBERLET, Jutta. Zoneamento da Amazônia: uma visão crítica.


Estud. av., São Paulo, v. 16, n. 46, p. 157-174, Dec. 2002. Dis-
ponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pi-
d=S0103-40142002000300013. Acesso em 18/08/2020.

SILVA, Virgílio Afonso da. O Judiciário e as políticas públicas: entre a


transformação social e obstáculo à realização dos direitos sociais: In
SOUZA NETO, Claudio Pereira de; SARMENTO, Daniel (Org).
Direitos sociais: fundamentos, judicialização e direitos so-
ciais em espécie. Rio de Janeiro: LumenJuris, 2010.

697
A EFETIVAÇÃO DA CONVENÇÃO
AMERICANA DE DIREITOS HUMANOS
NO BRASIL A PARTIR DO CUMPRIMENTO
E EXECUÇÃO INTERNOS DE
SENTENÇAS CONDENATÓRIAS DA
CORTE INTERAMERICANA DE
DIREITOS HUMANOS:
UMA ANÁLISE DO CASO DAMIÃO XIMENES
LOPES VERSUS BRASIL E SUAS IMPLICAÇÕES
PARA OS DIREITOS HUMANOS DAS PESSOAS
COM DEFICIÊNCIA
Adriana Souza Dinelly113

INTRODUÇÃO

Quando se analisa a história sob um prisma geral observa-se que em


diversas épocas ocorreram graves violações aos direitos humanos, muitas
destas legitimadas pelo Estado opressor.
Ao trazer essa discussão para a sociedade brasileira pode-se verificar
que, não obstante a promulgação da Carta Constitucional cidadã de 1988,

113 Graduanda do curso de Direito do CEUNI-Fametro, em Manaus/AM.

698
LU I Z A N TÔ N I O R E I S J U N I O R , M A U R I C I O P I R E S G U E D E S , T E L S O N P I R E S ,
VA N E S S A V E L A S C O, H E R N A N D E S B R I TO R E I S ( O R G . )

aquela ainda padece de graves violações aos Direitos Humanos, sobretu-


do a uma parcela tão vulnerável da sociedade, que cuida das pessoas com
deficiência. Nesse contexto, é importante reconhecer que o Estado bra-
sileiro necessita de uma discussão séria e pragmática acerca da efetividade
dos direitos fundamentais individuais e coletivos previstos na Constitui-
ção Federal e em tratados internacionais de direitos humanos dos quais o
Brasil é signatário.
Aqui será feito um recorte para estudo específico da Convenção
Americana de Direitos Humanos, analisando o Caso Ximenes Lopes,
com um enfoque na execução de medidas que garantam a prevalência de
direitos humanos para as pessoas com deficiência. Será analisada a evo-
lução legislativa e a implantação de medidas que visam tornar factíveis as
determinações contidas na sentença que responsabilizou o Estado brasilei-
ro pela violência sofrida pela vítima Damião Ximenes Lopes, pessoa com
deficiência mental.
Essa pesquisa busca coletar informações e descrever como o Brasil
tem agido para garantir que o referido tratado internacional seja respeitado
e implementado de forma prática e não somente previsto no papel, tendo
em vista que o Brasil é reconhecidamente um dos países que mais violam
os Direitos Humanos, em um espectro global.

FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA

Quando se abre a discussão sobre os desafios enfrentados pelo Direito


Internacional dos Direitos Humanos para tornar-se efetivamente pratica-
do nos Estados soberanos, Cançado Trindade (2006) argumenta que per-
sistem os desafios da falta de aplicabilidade direta de Tratados Internacio-
nais no direito interno dos Estados-partes, sobretudo no Brasil, como um
país que ainda carece de aplicabilidade efetiva das normas internacionais às
quais é signatário. Explicita, assim, a falta de compatibilização das normas
de direito interno com os tratados de direitos humanos, e a persistência da
impunidade e da falta de comprometimento do Brasil com o cumprimen-
to efetivo das disposições determinadas em Sentenças da Corte Interame-
ricana de Direitos Humanos.
Sobre isso, compreende Piovesan (2017) que o sistema interamericano,
ao permitir uma abertura ao diálogo e às discussões acerca dos problemas

699
DIMENSÕES JURÍDICAS DAS POLÍTICAS PÚBLICAS – VOL. 1

mais significativos no âmbito dos países da América Latina acaba entrando


em um processo de empoderamento e fortalecimento dos direitos humanos
em um sistema multinível. Assim, destaca duas vertentes de diálogos que se
mostram basilares aos avanços buscados: o controle de convencionalidade
– que compreende o diálogo entre Estados – e a legitimação social – que
traduz um diálogo com a sociedade civil e com os indivíduos.
Defende Piovesan (2017) que as próprias Constituições dos Estados
prevejam, em seus textos, a possibilidade do diálogo com as disposições
internacionais de direitos humanos, com vistas a fortificar e agregar os
ordenamentos jurídicos e as políticas públicas internas em prol de um diá-
logo maior entre Estados e Organismos Internacionais de proteção aos
Direitos Humanos.
Quanto à complexa realidade brasileira, Piovesan (2005) defende a
implementação de ações afirmativas, pautadas na igualdade material, que
já se encontram respaldadas na Constituição Federal e em Tratados Inter-
nacionais os quais o Brasil é signatário. Compartilha desse entendimento
Carvalho Ramos (2020, p. 574) que argumenta ser “necessária a imple-
mentação de uma política pública de promoção ativa de direitos humanos,
para ao menos equiparar o desenvolvimento econômico do Brasil com
qualidade de vida para todos os seus habitantes”.
Dessa feita, para elucidar melhor a questão, destaca-se a pioneira con-
denação do Brasil na Corte IDH, qual seja: o Caso Damião Ximenes
Lopes, que cuidou do tratamento cruel e discriminatório dispensado a
pessoas com deficiência e transtornos mentais, tendo tido sumária impor-
tância para a ampliação da jurisprudência internacional sobre a matéria e,
nacionalmente, como combustível à luta antimanicomial (ROSATO e
CORREIA, 2011).

METODOLOGIA

Conforme a classificação de Marconi e Lakatos (2003) o método de


abordagem adotado é o dedutivo, que tem como definição clássica ser
aquele que parte do geral para alcançar o particular. Ademais, adota-se
a técnica de documentação indireta, com observação sistemática, abran-
gendo a pesquisa bibliográfica de fontes primárias e secundárias, além de
documentação oficial.

700
LU I Z A N TÔ N I O R E I S J U N I O R , M A U R I C I O P I R E S G U E D E S , T E L S O N P I R E S ,
VA N E S S A V E L A S C O, H E R N A N D E S B R I TO R E I S ( O R G . )

RESULTADOS E DISCUSSÃO

Objetivou-se compreender como pode o Brasil fomentar uma maior


efetividade no cumprimento dos Direitos Humanos das pessoas com defi-
ciência, haja vista a problemática geral da violação institucional aos Direitos
Humanos, sobretudo dos mais vulneráveis, vivenciada diariamente no âm-
bito nacional. Assim, impera-se o estudo do caso Damião Ximenes Lopes
vs. Brasil, sobre o qual Aguiar (2020) dita que os aspectos positivos advindos
daquela condenação ao Brasil podem ter seu alcance ampliado se houver o
cumprimento eficaz do dever de adotar medidas – legislativas ou de outra
natureza – para difundir uma cultura de valorização da pessoa humana.
Posto isso, é razoável admitir que as condenações sofridas pelo Brasil
na Corte Interamericana contribuem para a efetividade na aplicação dos
direitos humanos previstos no Pacto de São José da Costa Rica, vez que
são fixadas metas nas sentenças, com o escopo de provocar um maior en-
gajamento, do Estado-réu, na efetiva concretização dos Direito Humanos
que tenha se comprometido a respeitar. Assim, sem a pressão internacio-
nal da Corte Interamericana, poder-se-ia ser perpetuado um status quo de
graves violações a Direitos Humanos.
Sem embargo, é importante reconhecer os esforços do Estado brasile-
iro para a concretização dos Direitos Humanos das pessoas com deficiên-
cia, sobretudo no pós-condenação no Caso Ximenes Lopes, com a edição
de normas fundamentais às pessoas com deficiência, como a Lei nº 13.146
de 2015 e a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, rat-
ificada pelo Brasil e promulgada, com status de Emenda Constitucional,
por meio do Decreto nº 6.949/2009.
Não obstante, a doutrina mais tradicional defende não somente a
adoção de medidas positivas (legislativas, executivas ou judiciais), mas
também o fomento de uma discussão sobre Direitos Humanos que en-
volva toda a sociedade, e que torne palpável a Disciplina do Direito Inter-
nacional, adicionando-a ao cotidiano brasileiro e adaptando-a à realidade
peculiar do Brasil, sobretudo no que tange às pessoas com deficiência.

CONCLUSÕES

A partir dessa discussão, é possível compreender melhor em quais


pontos o Brasil tem errado na aplicação do robusto rol legislativo sobre

701
DIMENSÕES JURÍDICAS DAS POLÍTICAS PÚBLICAS – VOL. 1

direitos humanos que já ostenta. Assim, é possível concluir sobre o melhor


caminho a seguir, visando vencer o desafio dos altos índices de violações
aos direitos humanos, que insistem em assombrar a população brasileira.
Nesse sentido, importa compreender que, a partir da pioneira con-
denação na Corte Interamericana, o Brasil foi palco de muitos avanços
tanto na questão específica legislativa e do tratamento às pessoas com de-
ficiência e a suas famílias, como no reconhecimento da importância do
fortalecimento de uma cultura de popularização e consolidação do direito
internacional dos direitos humanos, assim compreendido como uma Dis-
ciplina que necessita urgentemente ser discutida e aplicada no cotidiano
brasileiro, de forma a estruturar as bases de uma sociedade efetivamente
livre, justa e solidária.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

AGUIAR, Marcus Pinto. O Caso Ximenes Lopes e algumas implicações


para as pessoas com deficiência mental no Brasil. In: PIOVESAN,
Flávia (org.); SOARES, Inês Virgínia Prado (org.). Impacto das
decisões da Corte Interamericana de Direitos Humanos na
jurisprudência do STF. 2. Ed. Salvador: Juspodivm, 2020, p. 475-
499.

MARCONI, Marina de Andrade; LAKATOS, Eva Maria. Fundamen-


tos de Metodologia Científica. 5a. ed. São Paulo: Atlas S.A., 2003.

PIOVESAN, Flávia. Ações afirmativas da perspectiva dos Direitos


Humanos. Cadernos de pesquisa [online]. 2005, vol.35, n.124, p.43-
55. Disponível em: https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_abs-
tract&pid=S0100-15742005000100004&lng=pt&nrm=iso&tlng=pt
. Acesso em: 05/06/2020.

RAMOS, André de Carvalho. Curso de Direitos Humanos. 7a. Ed.,


São Paulo: Saraiva Educação, 2020.

_________. Supremo Tribunal Federal brasileiro e o controle de


convencionalidade: levando a sério os tratados de direitos hu-
manos. Revista da Faculdade de Direito da Universidade de São
Paulo, 2009, v. 104, p. 241-286. Disponível em: https://www.re-

702
LU I Z A N TÔ N I O R E I S J U N I O R , M A U R I C I O P I R E S G U E D E S , T E L S O N P I R E S ,
VA N E S S A V E L A S C O, H E R N A N D E S B R I TO R E I S ( O R G . )

vistas.usp.br/rfdusp/article/download/67857/70465/0 . Acesso em:


06/06/2020.

ROSATO, Cássia Maria, CORREIA, Ludmila Cerqueira. Caso Da-


mião Ximenes Lopes: mudanças e desafios após a primeira
condenação do Brasil pela Corte Interamericana de Direitos
Humanos. Revista SUR, dez-2011, v. 8, n. 15, p. 93-113. Disponí-
vel em: https://core.ac.uk/download/pdf/16033944.pdf . Acesso em:
06/06/2020.

TRINDADE, Antônio Augusto Cançado. Desafios e Conquistas do


Direito Internacional dos Direitos Humanos no início do sé-
culo XXI. Trabalho de pesquisa apresentado em forma de Confe-
rência no XXXIII Curso de Direito Internacional, organizado pela
Comissão Jurídica Interamericana da OEA: Rio de Janeiro, 2006.
Disponível em: https://www.oas.org/dil/esp/407-490%20canca-
do%20trindade%20OEA%20CJI%20%20.def.pdf . Acesso em:
05/06/2020.

703
DIMENSÕES JURÍDICAS DAS
POLÍTICAS PÚBLICAS – VOL. 1
Luiz Antônio Reis Junior,
Mauricio Pires Guedes, Telson Pires,
Vanessa Velasco, Hernandes Brito Reis (orgs.)

Tipografias utilizadas:
Família Museo Sans (títulos e subtítulos)
Bergamo Std (corpo de texto)
Papel: Offset 75 g/m2
Impresso na gráfica Trio Studio
Janeiro de 2021

Você também pode gostar