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As escolas educam os filhos — e os pais,

quem educa?

Para desenvolver a energia e a vontade nas


crianças, é preciso que os pais dêem exemplo, e é
nesse ponto que a criança se torna, sem que o perceba,
um dos educadores mais exigentes dos pais, escreveu
o padre G. Courtois, no livro “A arte de educar as
crianças hoje”, lançado pela Agir em 1964. As
palavras do clérigo podem nos ajudar a compreender
o fenômeno dos adultos mal-educados, que
comumente encontramos pelas esquinas da
vida. Caso você seja um ludovicense — natural de São
Luís, do Maranhão ou radicado nesta ilha de onde
escrevo –¸ o termo “esquinas da vida” descreverá
perfeitamente a frequência do assomo de imbecis
diante de seu espírito.
Vivo em uma cidade mal-educada — em toda a
complexidade do sentido de educação. Homens e
mulheres ignorantes. Cheios de si, vociferantes,
negligentes, irresponsáveis, grosseiros. Obviamente,
há ainda muitas características negativas que podem
se manifestar no espírito do ludovicense comum. O
que encafifa o juízo é que esta realidade
contemporânea se contrasta com um passado que já
foi fecundo de humanistas, homens de letras nobres e
cultos, de ideias avanças e orgulhosos de bons
costumes.
O que aconteceu nos últimos séculos de
desenvolvimento civilizatório — acentuo que não se
pode considerar coerente a utilização da
expressão progresso humano, o que seria um
contrassenso rasteiro — seria um trabalho para toda
uma organização envolvida em estudos econômicos,
humanos, urbanísticos, educativos, filosóficos etc,
que levaria algumas décadas para explicar a situação
de forma satisfatória. Considere-se um prazo justo
porque um estudo sobre a nossa nobre riqueza
cultural já se considera um grande esforço, imagine o
levantamento de nossas ignomínias.
Adiante desta inquietante ilustração de terras
insulares, esta curta reflexão moral volve a sua única
tese importante: os pais modernos — ao delegarem o
exercício da educação a escolas e aos serviços
profissionais — tornaram-se bestas.
Esta proposição se firma na constatação
histórica de que muito do grande avanço no
desenvolvimento humano — intelectual e moral —
 fundou-se a partir da experiência paterna e materna.
Não estamos falando de filhos, mas estamos falando
de pais — prioritariamente da educação de pais e
mães. Ora, um pai que deseja educar seu filho precisa
ser um exemplo. Isto está na tradição — releia a
consideração do padre Courtois.
Entretanto, pais são imperfeitos. São exemplos
cheios de falhas e danos, que precisam dos seus
ajustes, que precisam reconsiderar quem são — dar
alimento a seus espíritos, curar suas feridas internas,
dominar suas frustrações e medos. Ora, a paternidade
é um caminho de descoberta. Já escrevi algo em
algum caderno. Sei — sem muitas dúvidas — que esta
conclusão deve ter umas quatrocentas referências que
desconheço, mas que inferi com minhas poucas
palavras. Ora, ao ensinar nossos filhos aprendemos
cada vez mais sobre nossos sortilégios, inseguranças,
fraquezas, falhas e incoerências. Precisamos de
consertos. (Se você é um filho da década de 1980 a
1990, como eu sou, amigo, estamos arrumados e
enrascados, pois fomos completamente esmagados
pelos anos da desolação moral e cultural, resultantes
das revoluções e viradas educacionais da segunda
metade do século XX).
Para educar um filho, precisa-se ser um
exemplo: ou seja, precisa antes forjar-se — homem ou
mulher; forjar-se humano. E pais sinceros e
autocríticos saberão que já falharam nesta missão.
Alguns atenuam suas ansiedades, repetindo o
direcionamento de que o sentimento e o afeto
moldarão humanos. Não se deve descartar tal
necessidade, mas este é apenas um aspecto de
um filho bem educado. Como um bom religioso,
repito minhas orações como produto de uma crença.
Obviamente, existem crenças confiáveis e crenças não
confiáveis. A única que acredito cobra a necessidade
de aplicação direta dos pais na educação moral, civil,
religiosa, emocional, física de seus filhos. Não posso
reduzi-la então a um simples direcionamento afetivo.
Lamento: não há verdade em defender que o
importante é que nossos filhos sejam felizes.
Um bom pai precisa estar envolvido na vida de
seu filho, na boa educação — perdoe-me as noções
óbvias do texto, mas o que importa nisto? Simples.
Pais que educam os filhos são pais que se educam,
como disse nosso clérigo. Quando profissionalizamos
a educação de nossos filhos o que ocorre? Deixamos
de aprender e nos tornamos estes seres imorais que
não sabem esperar sua vez no sinal de trânsito, que
não consegue absorver uma regra. Seres ignorantes
cujas as ações são tolas, não por desconhecimento das
certezas e sublimes verdades, mas porque não
alimentam suas almas.
O adulto é um humano em construção ensina-
me a paternidade, mas poucos ouvem o canto desta
musa. Engano-me. Certifiquemo-nos da beleza que
ignoramos: nossas musas são nossos filhos e filhas.
Perdemos o ardor pela cativante tarefa de conduzir
nossas crianças pelas mãos — nem pedagogos deles,
nem de si. Somos homens e mulheres que não
vislumbram nossos filhos como nossa carne. Não os
disciplinamos porque não queremos nos disciplinar.
Quais modelos fornecemos a eles? O que nos
tornamos? Ora, a resposta é comum, já avisei de
início. Está nas esquinas: Pais adultos travestidos de
crianças felizes, satisfeitas ou em busca da satisfação
de suas vontades — adultos inquietos, imorais. Seres
sem musas, sem poesia, sem sentido — substrato de
um mundo cadavérico.
Família: a chave para compreender a
Idade Média

“Para compreender bem a sociedade medieval,


é necessário estudar a sua organização familiar”,
escreve Régine Pernoud (Pernoud, 1997), em seu
clássico Luz sobre a Idade Média. A tese da autora no
primeiro capítulo de sua obra é que o conceito de
família é a chave necessária para se conhecer a
originalidade do Medievo. A perspectiva se justifica
quando a historiadora explica que as relações sociais,
na época, se constituíam — teciam uma rede — dentro
de um quadro de parentesco.
Os laços familiares amarravam as relações entre
senhor-vassalo, entre mestre-aprendiz e etc; eles
fundamentavam a cotidiana vida rural, que
caracterizava o período medieval e, consolidaram a
história do solo europeu. A historiadora destaca:
“Os altos barões são antes de tudo pais de
famílias, agrupando à sua volta todos os seres que,
pelo seu nascimento, fazem parte do domínio
patrimonial; as suas lutas são querelas de família, nas
quais toma parte toda essa corte, a qual têm o cargo
de defender e de administrar” (idem, p.14).
Na sociedade antiga, o homem é aquele que
detém a representação na vida pública, na sociedade
medieval, ele é pater famílias. Ele centraliza a ação,
controla a vida privada dos outros homens. Contudo,
segundo Pernoud, esta concepção não subsiste na
Idade Média, na qual já não importa o homem, mas a
linhagem. A família é o que prevalece como unidade
social, não mais o civis.
Na dinâmica das linhagens dos povos nórdicos,
germânicos e bárbaros, pode-se reconhecer a
solidariedade familiar, como um de seus traços
essenciais, como escreve: “A família é considerada
como um corpo, em todos os membros do qual circula
um mesmo sangue, ou como um mundo reduzido,
desempenhando cada ser o seu papel com a
consciência de fazer parte de um todo” (idem, p.16).
A autora explica que a família é unida pelo pacto
biológico e moral, por carne e sangue. Os interesses
da linhagem são defendidos solidariamente em razão
da afeição que anima a convivência na vida em
comum. Pernoud explica:
“Aqueles que vivem debaixo de um mesmo
tecto, que cultivam o mesmo campo e que se aquecem
no mesmo fogo, ou, para empregar a linguagem do
tempo, os que participam do mesmo <<pão e pote>>,
<<que coram a mesma côdea>>, sabem que podem
contar uns com os outros, que o apoio da sua corte não
lhes faltará” (idem, p.17).
Os grupos familiares no Medievo são unidos por
um espírito potente superior ao que une qualquer
outro agrupamento. Num combate, não se devia
esperar fidelidade dos estranhos, mas os seus não
iriam faltar. Era a solidariedade familiar que resolvia
o dilema da segurança de uma pessoa. A sala era o
principal compartimento da casa — à luz da lareira,
nas reuniões e festas, nos velórios dos mortos.

O pai

O administrador da família — responsável pela


transmissão de bens e afeição — era o pai. A sua
autoridade não está firmada nele em si, na chefia
determinada pelo direito romano. Ele muito mais
cumpre um dever — missão — do que exerce um
direito. Sua função é proteger mulheres, crianças e
servos e assegurar a continuidade do patrimônio.
Todavia, o pai, como indivíduo, não é o proprietário,
mas a família.

A mulher

Pernoud ressalta a posição feminina


como colaboradora ao administrar a casa e a
educação dos filhos. Quando o homem se ausenta, é a
mulher que passa a gestão dos bens sem necessidade
de autorização. Se uma mulher morrer sem filhos,
seus bens voltam para sua família de origem.

Os filhos

Tendo o pai como guardião, protetor e mestre, o


filho submete-se à autoridade paterna até a
maioridade (14, pebleus; 20, nobres). Após a
maioridade, o jovem continua a ser protegido pela
família e passa a ter o direito de fundar o seu próprio
núcleo familiar. Nada entrava a sua liberdade, pelo
contrário torna-se senhor de si, diferente do que
ocorria em Roma. Muitos deixam a casa para servir o
reino.

Herança e patrimônio

A noção de família liga-se à base material, da sua


herança, ao patrimônio, que pode ser um
arrendamento servil ou um domínio senhorial, cujo
proprietário é a linhagem e não o indivíduo. A
herança principal passa para o filho mais velho, mas
as outras são partilhadas entre os irmãos. O filho mais
velho é aquele que depois do pais mais contribuirá
para a manutenção do patrimônio.
Não há herdeiro por testamento, apenas por
sangue: “É a morte do ascendente que confere ao
sucessor o título de posse que o coloca de facto na
posse da terra; o homem de lei não tem, como nos
nossos dias, de passar por isso” (Idem, p. 20).
A economia medieval dependia da unidade da
família. Sob a gestão da família, o patrimônio não
devia se desvalorizar. Era necessário evitar a
fragmentação da terra. A grande extensão de terra
possibilitava um sábio aproveitamento da terra e uma
grande variedade de culturas.
A mansão senhorial

Precisa-se entender que, aos olhos do Medievo,


o indivíduo é passageiro, mas o patrimônio fica. O
herdeiro da linha recebe além do sangue a
responsabilidade pela manere — ela une a linhagem,
concede abrigo a todos os familiares do passado e do
presente. A extensão de terra suficiente a manutenção
da vida familiar era denominada manse, que variava
conforme clima, solo e condições de existência. A
propriedade tinha a missão de assegurar a família
uma base fixa, era ela inalienável e impenhorável.
Pernoud escreve: “O homem não é senão o guardião
temporário, o usufrutuário; o verdadeiro proprietário
é a linhagem” (idem, p.21).

Família: sentimento e personalidade

O sentimento familiar era a grande força da


Idade Média, segundo Pernoud, que a considera
como uma personalidade moral e jurídica, composta
por um grupo que tem bens em comum, administrada
pelo pai. Ela é a comunidade silenciosa. O pai
administrador recebeu o patrimônio dos seus
antepassados para geri-los e deve dar conta dele ao
seu sucessor. Jamais deve abusar, pelo contrário, deve
proteger, defender e expandir.
Ela é o lugar da proteção dentro do qual o
indivíduo tem ajuda material e sobrevive pela
solidariedade familiar, mas não se trata de um grilhão
àquele, como escreve Pernoud: “(…) ao mesmo
tempo, a partir do momento em que se basta a si
próprio, ele é livre, livre para desenvolver a sua
iniciativa, de <<fazer a sua vida>>; nada entrava a
expansão da sua personalidade”(idem, p.23). Nada
impede alguém de começar uma vida nova assim que
chega à maioridade.

Família e império

Regine Pernoud salienta a diferença entre a


expansão militar e a expansão étnica. A primeira é
exemplificada com a expansão durante o império
romano, que foi política e militar — um império
construído por meio das armas e conservado pelos
burocratas. Sua solidez estava atrelada à vigilância
dos soldados e à medida que seu exército enfraqueceu
Roma sucumbiu. Sem precisar de vigilância, por meio
do sangue de exploradores, pioneiros, comerciantes,
os costumes anglo-saxões espalharam-se pelo mundo,
carregado nas lembranças e nas tradições. Este
segundo movimento, caracterizado pelos laços
familiares, pelo sentimento, pela lembrança e pela
solidariedade, que compõem a cultura familiar tem o
poder de fundar um império. Assim, ela diferencia na
transitoriedade histórica a constituição de um
império urbano, mediante o direito romano (militar),
e a formação de um império familiar e rural, fundado
pelo direito consuetudinário (que nasce da tradição e
dos costumes).

Fim: um início

Ao entender o fundamento da idade média — a


noção de família somada à vida rural — muitas
perguntas podem surgir em nossas mentes
contemporâneas. Este texto é apenas uma resenha
com os pontos mais gerais da noção de família, no
texto Luz sobre a Idade Média. Espero conseguir
escrever outros. Tenho guardado alguns
questionamentos elementares sobre o tema e a noção
conservadora de família. Espero ter tempo para expô-
los no futuro. Até lá.

Pernoud, Régine. Luz sobre a Idade


Média. Publicações Europa-América: Lisboa, 1997.
Estudar — definição de um ato da vontade

A educação tem sido um tema recorrente em


minhas pesquisas desde quando iniciei a faculdade de
Filosofia, no início desta década. Minhas fontes têm
sido livros clássicos e antigos — nada contra novas
técnicas, mas sou um homem antigo. Há uma semana
tive a oportunidade de ministrar um curso sobre
métodos e técnicas de estudo pelo Instituto Valor e
Verdade. Neste post, vou abordar uma definição de
estudo e uma definição de saber (conhecer) que foram
trabalhadas durante as aulas.
Você pode estranhar, pensando: — Mas todos
nós sabemos o que é estudar e o que é conhecer. E eu
pergunto: sabemos realmente? A questão do
conhecimento é base de toda uma disciplina filosófica
chamada epistemologia. E vocês sabem que quando
se fala de filosofia é quase impossível haver uma
única linha de entendimento acerca de uma questão.
Contudo não vamos mergulhar nestas questões.
O que pretendo apresentar aqui é uma definição
simples que pode nos levar à prática imediata, mas
sem deixar de lado uma compreensão profunda. Por
que? Ora, quando estamos conscientes do que vamos
fazer — neste caso estas são orientações a
estudantes — podemos agir de modo muito mais
eficaz, podemos julgar se obtivemos êxito. Como vou
julgar o que não tenho definido? De tal modo, para
julgar se aprendi algo com meu estudo, preciso saber
o que é aprender, o que é estudar.
Um grande educador brasileiro do século
passado, Theobaldo Miranda dos Santos entendia o
estudo ou o ato de estudar a partir de duas
considerações básicas: 1º estudar é a aplicar a
inteligência na realização de um fim ou
propósito; e, 2º estudar não é somente aprender nos
livros, mas também no mundo que nos cerca, na
natureza e na vida.
Vale muito à pena considerarmos a segunda tese
de Miranda dos Santos. Ora, o estudo é uma ação que
abarca todo o mundo da vida. Um bom velejador
conhece o comportamento do mar e dos ventos,
estudou com sua experiência no mar, guardou lições
preciosas de suas viagens. Assim, esta definição
firma-se na primeira: o estudo é um uso da
inteligência para tirar lições com uma finalidade. É o
resultado do ato de prescrutar, de inteligir,
de buscar saber.
Obviamente, esta era apenas uma síntese do
pedagogo que ainda associava o ato psíquico do
estudo. o emprego de diferentes operações mentais,
como: a) observação; b) atenção; c) juízo; d) raciocínio;
e) comparação;f) análise; g) síntese; h) imaginação; i)
memorização e outros. A partir desta definição,
Theobaldo Miranda dos Santos escreve diferentes e
importantes livros de pedagogia.
É importante ainda percebermos que aplicar a
inteligência é um ato da vontade. É neste ponto que
muitos de nossos estudantes não compreendem: para
se estudar precisa-se de disposição. Não se trata de
uma disposição momentânea, mas uma disposição de
caráter. O filósofo francês Jean Guitton define seu
livro A Arte de Viver e de Pensar, como um livro
de moral. Um livro para moldar o caráter de um
pretenso pensador. Não adiantaria ter um simples
desejo de aprender. É necessário mover o espírito com
determinação, esforço e empenho para a realização
deste propósito.
O estudo é uma disposição da vontade em
direção ao saber. Aquele que se dispõe a estudar
deseja conhecer algo, seja entender o mecanismo do
motor de um carro, seja sintetizar a teoria metafísica
de Aristóteles. Agrada-me muito pessoalmente as três
teses sobre o ato intelectivo sintetizadas pelo filósofo
espanhol Xavier Zubiri. Ele nos ensina que
o saber reúne três procedimentos básicos: discernir,
definir e entender.
a) Saber é discernir: a primeira noção que temos
do saber é que ele é discernimento, divisão,
separação — é o resultado da aplicação do princípio
da identidade; separar o que é do que não é. Separar
o ser do parecer. Eu conheço o que eu sei diferenciar.
O conhecimento surgiria a nós, então, como a
percepção da unidade de algo diante de outras
unidades, de uma multiplicidade.
b) Saber é definição: não basta saber discernir
algo de outra coisa; é preciso mergulhar na essência
do que estamos investigando. Deste mergulho,
devemos recolher pedrinhas no fundo do lago e ir em
busca das formas, dos traços e características do que
estamos estudando. “Saber não é — mais — discernir é
definir. Tal é a conquista do platonismo”, escreve
Zubiri.
Sobre a terceira realidade do saber, Zubiri
defende:
c) Saber é entender: não adianta conhecer as
formas se não entendermos as finalidades, se
ignorarmos o porquê — motivações e
necessidades. “Saber não é discernir, nem definir:
saber é entender, de-monstrar”, nos diz o mestre
espanhol. 1. Demonstrar: compreender a articulação
interna dos elementos (lógica); 2. Origem ou
arkhé: Saber uma coisa é conhecer seus
princípios. 3.Realidade: entender a complexidade
verdadeira do que se está estudando; buscar seus
elementos de validade e suas confirmações.
Estas foram breves considerações sobre o ato do
estudo. Espero continuá-las e criar uma série que
possa ser útil a estudantes e curiosos.
A vida intelectual é um problema para
o cristão?

É proibido amar o conhecimento?

Quando ouço um pastor falar que cristãos não


devem se empenhar em seguir uma vida intelectual,
assusto-me porque ler a bíblia — recomendação básica
para a vida dos crentes — requer um demasiado
esforço intelectual.
Já ouvi algumas vezes tal recomendação no
púlpito, quase sempre quando a preocupação —
 aplicação no sermão — é deixar claro aos fiéis a
necessidade de simplicidade. Apesar de saber que
muitas vezes possa haver uma boa intenção da parte
de tais pregadores, este direcionamento pode causar
danos.
Tenho 31 anos e considero-me um leitor
calejado. Pecador que sou — em algum momento —
 quis ler por muitos motivos torpes, como, por
exemplo, para ser mais inteligente que outras pessoas,
para bancar o sábio. Contudo a leitura foi por muitos
anos um conforto, uma companhia em dias de
solidão, um encontro com pessoas diferentes. É certo
que por muito tempo fui bobão.
Mas, ao longo da vida, os calos doem e
aprendemos algumas certezas. Meu orgulho
intelectual tem sido podado aos poucos por meio
disciplina vinda de Deus. Obviamente, às vezes,
minha consciência é pega em deslizes de prepotência.
O conselho do filósofo é muito frutífero aos homens
calejados: Saber apenas que de nada se sabe.
Depois de ter sido ensinado por diversos
mestres e de sofrer muitas quedas — e ter reconhecido
muitas fraquezas intelectuais –, compreendi que uma
pessoa pode trilhar a vida intelectual por dois
caminhos opostos: pela rota da simplicidade ou pela
rota da vaidade. São dois caminhos diferentes para se
chegar a uma única promessa — a sabedoria.
Aliás, cabe ressaltar que uma vida intelectual é
inevitável — viver é estar mergulhado em meio a
conversas, a acúmulo de conhecimentos e saberes.
Esta realidade é bem descrita pelo Salmo 1, que
aponta o conselho dos ímpios e o conselho de Deus.
Pode-se até se dizer que são opostos, porque eles
formam seres humanos diferentes, com visões
díspares. Não me sinto apto para descrever por
completo as duas trilhas — ainda estou aqui
caminhando –, mas talvez possa apontar uma das
principais características de cada um.
O caminho da simplicidade é conduzido pela
humilhação e pelo amor à sabedoria — o homem se
faz servo da Verdade, como diria A. D Sertillanges.
No caminho da vaidade, o homem quer tornar a
verdade submissa a ele. Orgulhosamente, quer se
tornar um homem sábio para engrandecer a si
mesmo — não para engrandecer a Verdade.
Lembremos do jovem André.
Aqui está o grande problema da aplicação “Você
não precisa de muito estudo para ser um bom
cristão”. Irmãos, quando vamos aos cultos aos
domingos ouvimos sermões. Ouvir é uma atividade
extremamente difícil, requer habilidade e treino. Se
lembrarmos que, além de ouvir, os cristãos devem
ainda discernir — a atividade se torna ainda mais
complexa e requer ainda mais vigilância intelectual.
A vida cristã não pode rejeitar uma vida
intelectual, porque ela se baseia em atividades
complexas como ler a bíblia e ouvir sermões. Tolo
talvez seja a palavra mais amena para descrever
aquele que acredita que interpretar as sagradas
escrituras — um texto antigo e escrito há centenas de
anos — seja algo fácil, que possa ser realizado com
displicência, sem disciplina, sem se submeter ao
caminho de humilhação da vida intelectual.
Aquele que insiste em pensar dessa forma, pode
não ter percebido, mas caiu no segundo caminho da
vida intelectual — o caminho da vaidade, da
autossuficiência, da determinação pessoal da
verdade, da solidão. Está se firmando em uma
orientação que considera intelectual apenas o homem
jactante. Ele segue a trilha do antiintelectualismo que
assola muitas igrejas, principalmente evangélicas.
Pelo contrário, o verdadeiro intelectual,
conduzido pela Verdade, é aquele que humilha a si
mesmo ao querer conhecer o que os outros dizem por
meio dos livros. Ele sabe recorrer aos livros quando
não se sente seguro, vai em busca dos outros que têm
mais experiência no exercício do pensamento — no
exercício da vida. E se mantém alerta quanto ao
princípio que diz que os livros não ensinam tudo.
Percebe-se que aqui é a intenção do coração que
rege os atos dos homens. Quando a nossa intenção
é servir a Deus e aos irmãos com nossos estudos,
quando estudamos por amor à Verdade, podemos
estar seguros quanto à nossa escolha por uma vida
intelectual. Porém quando esta é seguida para
alimentar nossa vaidade e desejos, podemos ter
certeza de que estamos completamente perdidos.
Que sejamos humilhados a cada dia mais pela
sabedoria, ciência e Verdade, que tem sua plenitude
em Cristo (Cl 2:3).
Notas de A Vida Intelectual, de A.-D
Sertillanges —Part. 1

I. Introdução ao pensamento de A.D Sertillanges

1. O espírito tudo rege; é ele que inicia, executa


e conclui tudo. Logo, aquisição, criação trabalho
secreto é o que constrói esta vida espiritual.
2. Quer compor uma obra intelectual? Crie uma
zona interior de silêncio, um hábito de recolhimento,
uma vontade despojamento, desapego para ficar
disponível a sua obra: viver no estado de graça do
intelectual.
3. O intelectual não é filho de si mesmo, ele é
filho da Ideia, da Verdade; do Verbo Criador. O
intelectual segue Deus à risca. Não a sua própria
quimera.
4. O temor ao Senhor é o princípio da sabedoria,
diz a Escritura. Devemos assim estar sempre de
prontidão para o pensar, assim como estamos de
prontidão para louvarmos a Deus e a reconhecer nele
o fundamento da nossa existência; devemos estar de
prontidão para captar uma parte da Verdade; Por que
uma parte? Porque é Deus que consegue captar a
completude do conhecimento e do saber. Ele é antes
de tudo e de todas as coisas, sendo-lhes o próprio
fundamento.
5. “A vocação pede o atendimento, que, num
esforço único para sair de si, escuta e atende”
(Sertillanges).
6. Nossa própria natureza geral é o pensamento
eterno. Recorremos a ele com as forças que dele
provêm e com os instrumentos que ele nos fornece:
deve haver concordância entre o que recebemos em
matéria de dons — incluindo-se a coragem — e o que
devemos esperar em matéria de resultados.
7. Devemos nos manter longe da precipitação
dos julgamentos e nos concentrarmos na elaboração
de nossas obras; há medíocres que encontram pedras
preciosas do pensamento.
8. A razão não pode tudo; a última ação da razão
é constatar seus limites, já diria Pascal. Diante desta
situação, cabe-nos apenas recorrer à fé, o mistério
cuida da dimensão que nossa intelecção não consegue
mais alcançar.

II. A vocação intelectual — O intelectual é um


consagrado

1. A vida intelectual se define pelo trabalho


voltado aos estudos. Não apenas o fato de estudar,
mas de organizar a própria a vida, de ter como meta
existencial ser um estudante, ser um contemplador
das ciências.
2. Vocação intelectual é a decisão de alguém que
quer reservar para si mesmo o contentamento do
desenvolvimento do espírito.
3. A vocação não se tratar de apenas ler livros
espaçadamente de forma superficial, mas de
penetração, continuidade, método.
4. Depois de ter uma formação inicial, não se
pode parar; é preciso continuar estudando, mesmo
que a vida seja austera e traga pesadas obrigações.
5. Para trilhar a vida intelectual tem de se tomar
uma resolução séria. É preciso investimento, treino,
tenacidade; ser um escravo da Verdade.
6. A vida intelectual está inscrita em nossos
instintos, em nossa capacidade, em nosso impulso
interior controlado pela razão.
7. Nossa vocação é guiada pela alegria de sua
realização.
8. Ao falar da comunidade cristã, Sertillagens
acredita que toda vida humana é incomunicável, logo
única.
9. Precisamos ajudar dentro da igreja de Cristo a
ser homens de sabedoria.
10. “Amem a verdade e seus frutos de vida, por
si próprios e pelos outros; consagrem ao estudo e ao
seu uso a maior parte de seu tempo e de seu coração.
11. Não devemos ser infiéis a Deus e a seus
irmãos rejeitando a vida de estudos, que é um
chamado sagrado.
12. Há sentido em viver a vida de estudos por
ambição ou tola vaidade?
13. “O senhor é um consagrado: queira o que
quer a verdade; consinta, por ela, a mobilizar-se, a
instalar-se nos setores a ela, a organizar-se e, por ser
inexperiente, a apoiar-se na experiência dos outros.
14. A visão aristotélica de Sertilanges: A ciência
é um conhecimento pelas causas e uma criação pelas
causas. Além de conhecer as causas do saber,
precisamos adotá-las.
15. Temos de aproveitar os primeiros anos de
estudo e os tempos livres para revolver a terra fértil
de nossa consciência.
16. A juventude é um momento inestimável para
se dedicar ao estudo. É preciso abdicar da
sociabilidade, com temperança.
17. O gênio é uma longa paciência organizada e
inteligente.
18. Estão são aplicações gerais.
19. Viver cotidianamente a virtude heroica do
trabalhador intelectual e o ascetismo especial.
20. Fugir da liberdade, mas trilhar pela
disciplina, que é a melhor escola.
21. O dever estando satisfeito, temos o encontro
com as coisas ideais, que nos autoriza a descontração
e a liberdade.
22. Ir sempre adiante, crescer em ritmo e carga a
cada dia são posturas de um bom trabalhador
intelectual.
23. Livros existem em toda parte e só bem
poucos são indispensáveis.
24. Você dispõe de duas horas por dia?
Comprometa-se a resguardá-la com todo o egoísmo
possível, a empregá-las com todo o ardor possível, e,
em seguida, tomar o cálice amargo da leitura das
páginas. Se você está disposto a isto, se está mais do
que confiante a isso, você está em bons caminhos.
25. Mesmo que sejamos obrigados a ganhar a
vida com um trabalho que não seja a lida intelectual,
devemos fazer desse descontentamento nossa força
para abraçar com vigor as duas horas que temos para
satisfazer nosso destino como estudiosos.
26. Aprenda a administrar seu pouco tempo, que
será muito se se somarem todos os dias de sua vida.
27. Você está ajudando os homens na luta pelo
conhecimento, está inspirando outras pessoas a se
dedicarem à guerra intelectual obedecendo à Verdade
e vivendo diante da humanidade uma vida justa e
correta.
28. É uma pequena porção, mas é um sacrifício
válido. Se for da vontade divina, Ele lhe colocará na
assembleia dos nobres espíritos.

III. O intelectual não é um isolado

1. O trabalho do intelectual cristão não pode ser


isolado; não devemos assim, mesmo em nossa solidão
de estudos, sermos levados pelo individualismo. Isto
é uma deformação da vida cristã.
2. “A solidão vivifica tanto quanto o isolamento
paralisa e esteriliza”.
3. Viver constantemente diante do universal e
diante da história.
4. “A vida real é uma vida uma, uma vida de
família imensa com a caridade por lei: se o estudo
quer ser um ato de vida, não uma arte pela arte e uma
monopolização do abstrato, ele deve deixar-se reger
por essa lei de unidade cordial”.
5. Observar que a cruz está fincada — unida — na
terra, não isolada dela.
6. Toda verdade é prática, a mais abstrata em
aparência, a mais elevada, é também a mais prática.
Toda verdade é vida, orientação, caminho em vista do
fim humano.
7. Trabalhar no espírito de utilização para
indivíduos ou grupos ao seu redor.
8. Devemos trabalhar para obra de Cristo por
meio de nosso espírito de nossa vida intelectual. Ele
age por nós.
IV. O intelectual pertence ao seu tempo

1. Devemos pensar: O que vou fazer por esse


século em que vivo?
2. Buscar a relevância de nossas pesquisas para
os dias atuais e não nos atermos a escavações
arqueológicas.
3. Se percebermos a relevância das palavras
antigas nos tempos atuais, veremos que a verdade é
sempre nova e mantém seu frescor.
Notas de A.-D Sertillanges — As virtudes de
um intelectual cristão — Part. 2

I. As virtudes comuns

1. A virtude equivale ao supremo saber.


2. A ordem moral do ser humano está ligada à
dependência do verdadeiro, do belo, da harmonia, da
unidade e do próprio ser no tocante à moralidade —
 aqui há uma influência notória da metafísica
aquiniana.
3. “O intelecto não é mais que uma ferramenta e
a manipulação determinará seus efeitos” — ou seja, a
razão precisa de um controle moral, precisa saber se
comportar.
4. Precisamos manter a candura de um homem
simples. Viver junto à fonte da sabedoria e não tomar
nada emprestado dela é um paradoxo, uma hipocrisia
e ignorância.
5. Algumas pessoas padecem de falta de
orientação e lógica do agir, é preciso para ser um
intelectual cristão ter caráter e discernimento.
6. A vida é uma unidade: precisamos viver bem
em todas as suas esferas, sendo o amor o começo de
toda a vida austera e de piedade.
7. O amor é ponto de partida do saber. Ele nos
leva aos caminhos retos, por isso precisamos amar à
verdade e nos achegar ao bem.
8. Sem isso deixamos nossa alma anêmica ou
nosso espírito debilitado. Temos de nos aproximar
das luzes soberanas.
9. A vida espiritual é tão exigente quanto a vida
intelectual.
10. Não pensamos somente com a inteligência,
mas com toda a nossa alma, com todo nosso corpo e
nosso espírito.
11. Precisamos entender que somos um homem
como um todo a ser formado e construído ao longo de
nossa vida.
12. A alma doente é que vai pensar de forma
diferente, pensar o homem por apenas um aspecto.
13. Sabemos que as paixões e vícios refletem na
nossa forma de pensar.
14. A Psicologia dos sentimentos rege a prática e
o pensamento.
15. Os inimigos do saber são: a ininteligência, a
estupidez, a preguiça, a sensualidade, o orgulho, a
inveja, a irritação.
16. Estas são as taras que se estimulam
mutuamente, revivificam-se e entrecortam-se.
17. É preciso a pureza de alma para ter a pureza
de pensamento.
18. A verdade e o bem são idênticos. É o que nos
assegura a metafísica.
19. Ascender à verdade é uma participação no
universal, na verdade e no bom.
20. O gênio da verdade busca encontrar o bem.
21. Devemos imitar o comportamento dos
santos e dos homens de bem.
22. A obediência da alma se relaciona
diretamente com o fervor à retidão.
23. “As grandes intuições pessoais, as
iluminações penetrantes provêm, em igualdade de
valor, do aperfeiçoamento moral, do desapego de si e
das banalidades habituais, da humildade, da
simplicidade, da disciplina dos sentidos e da
imaginação, da entrega à busca dos sentidos e da
imaginação da entrega à busca dos grandes fins”.
24. Temos de entrar em comunicação com a
origem da luz e da vida, adorar a Deus e dar ele a
glória.

I. A virtude própria ao intelectual

1. O intelectual é caracterizado pela virtude da


estudiosidade, que deve ser moderada pela
temperança.
2. O saber é sempre bem-vindo, mas se requer
tempero.
3. O intelectual sabe situar-se entre a negligência
e vã curiosidade.
4. Muitos tentam a vida intelectual por ambição,
mas esta é uma atitude pecaminosa.
5. Há outros deveres diferentes do estudo que
são deveres humanos e precisam estar em dia na vida
do intelectual.
6. Temos avaliar a quem somos e descobrir
quem somos, buscar a medida certa. “Cada ser age
segundo aquilo de que dispõe quantitativa e
qualitativamente, segundo sua natureza e sua força, e
depois permanece em paz. Só o homem vive de
pretensões e de tristeza”.
7. Caminhemos em frente seguindo nosso
próprio ritmo com Deus por guia.
O estudo não pode tomar o lugar do culto, da
adoração, da meditação direta sobre as coisas de
Deus. Ele próprio é um ofício divino, mas não pode
substituir nossa vida em servidão a Deus. O espírito
de oração será o tema do próximo texto.
Textos extraídos do perfil de Thiago Capanema, de
24 de setembro de 2014, no site
https://medium.com/@thiagocapanema.

P.S.: Os textos abaixo foram incluídos por Darlleson


Oliveira, leitor, estudante de engenharia civil, mas
com um interesse incontrolável por filosofia.
Da lama ao caos e à redenção: as etapas pelas
quais passei enquanto aluno do professor Olavo
de Carvalho

Um ensaio sobre tudo o que você não deve fazer

Introdução

Nesse texto conto um pouco da minha história


como aluno do professor Olavo de Carvalho, com a
intenção de que a minha breve experiência possa ser
de alguma utilidade para seus milhares de alunos que
desejam se auto-educar através de seus ensinamentos
e métodos.

Olavodecarvalho.org
I’m bored out my mind

Apesar de minha inépcia para localizar com


precisão as datas de eventos no meu passado, acredito
que travei meu primeiro contato com a obra de Olavo
no ano de 2008 através de seu site. Estava na flor dos
meus vinte e dois anos, perdido existencialmente,
profissionalmente e espiritualmente. À época eu
procurava algum conhecimento e informação cultural
para tapar o buraco de frustrações que eu cavara dia
após dia desde os meus dezesseis anos de idade.
Trazia na carteira o atestado médico de depressão e
síndrome do pânico. Diante desse diagnóstico
psiquiátrico — a tuberculose espiritual de nossa
época — só me restava dançar um tango argentino.
Em 2008 eu trabalhava como analista de
marketing em uma multinacional alemã. Minha
ferramenta de trabalho era um computador
conectado à internet e dispunha de tempo livre
suficiente para afogá-lo em trivialidades. Gastava boa
parte deste tempo caçando toda sorte de artigos,
pulando entre temas que variavam desde filosofia até
histórias em quadrinhos. Nessa época ouvia muito o
disco “The Life Pursuit” do Belle and Sebastian e gosto
de imaginar-me como o apóstolo da canção:

“I’m bored out my mind


Too sick to even care
I’ll take a little walk
Nobody’s going to know
I’m in senior year
It gives you a little free time
I’ll just use it all at once!

Took the fence and the lane


The bus then the train
Bought an “Independent” to make me look like I got brains
I made a story up in my head if anybody would ask
I’m going to a seminar!

I’m a genius
A prodigy
A demon at Maths and Science
I’m up for a prize
If you’ve got to grow up someti-me
You’ve to do it on your own
I don’t think I could stand to be stuck
That’s the way that things were going

The bible’s my tool


There’s no mention of school!
My Damascan Road’s my transistor radio
I tune in at night when my mum and my dad start to fight
I put on my headphones”

Uma de minhas atividades preferidas para


passar o tempo era compilar uma quantidade absurda
de artigos divididos por tema ou por autor. Eu era
capaz de gastar um dia inteiro à cata de vários artigos
sobre epistemologia, por exemplo — até hoje não sei o
que é epistemologia — em seguida, colava e
formatava tudo no Word. Que alegria eu sentia ao
testar diversos espaçamentos entre linhas, ao escolher
fontes, criar padrões de títulos e subtítulos etc! Depois
eu mandava o documento para a impressora, enfiava
a apostila numa pasta e partia para a pesquisa de um
novo assunto. A acumulação daqueles materiais me
dava a sensação de ter adquirido e digerido todo o
conteúdo daqueles escritos pelo simples fato de ter
selecionado, formatado e tornado físicas (porque
impressas em papel) aquelas letras. Fiz uma apostila
de Foucault, uma de Tchekhov, uma de Gustavo
Corção — um homem do qual eu nunca tinha ouvido
falar e que me fez chorar com sua pequena crônica
“Na Casa de Saúde” —, entre outras: filosofia
analítica, teoria do conhecimento, lógica e filosofia da
ciência etc.
Tendo em conta a disciplina com a qual eu
levava esse regime de aquisição de conhecimentos
por osmose, não me parecia absurda a esperança de
me tornar um pequeno gênio dentro de poucos meses.
Porém, passadas algumas semanas e, contrariando
esta expectativa, eu sentia-me cada vez mais burro,
alienado e solitário. Todas essas apostilas, hoje
guardadas num armário do escritório aqui de casa,
compõem a história da educação que eu poderia ter
tido e que não tive.
Eu percebia, à época, que o que me faltava era
um método. Eu não só não me interessava, como me
aborrecia ao ler textos sobre epistemologia, teoria do
conhecimento ou filosofia analítica. Mas não fora por
acaso que havia caído neste terreno selvagem: eu
sabia que havia uma conexão entre a verdade e a
filosofia, mas não era capaz de vislumbrar nada de
verdadeiro resplandecendo na careca de Foucault.
Contudo, lembro-me perfeitamente do assombro que
senti no dia em que li o parágrafo abaixo, contido no
artigo “A tragédia do estudante sério no Brasil”:
“O processo é trabalhoso, mas simples: cumprir as
tarefas tradicionais do estudo acadêmico, dominar o
trivium, aprender a escrever lendo e imitando os clássicos
de três idiomas pelo menos, estudar muito Aristóteles,
muito Platão, muito Tomás de Aquino, muito Leibniz,
Schelling e Husserl, absorver o quanto possível o legado da
universidade alemã e austríaca da primeira metade do
século XX, conhecer muito bem a história comparada de
duas ou três civilizações, absorver os clássicos da teologia e
da mística de pelo menos três religiões, e então, só então, ler
Marx, Nietzsche, Foucault. Se depois desse regime você
ainda se impressionar com esses três, é porque é burro
mesmo e eu nada posso fazer por você.”
Segui lendo tudo o que estava publicado
no site de Olavo, de forma anárquica, mas
disciplinada. Ao fim de alguns meses foi como se eu
tivesse feito um supletivo, uma reeducação
emergencial de boa parte dos meus posicionamentos
ideológicos e existenciais — e foi durante este período
que caí na primeira armadilha do reeducando.

Mudança de pólo ideológico

“No Brasil, o marxismo adquiriu uma forma difusa,


volatizada, atmosférica. É-se marxista sem estudar, sem
pensar, sem ler, sem escrever, apenas respirando.”
— Nelson Rodrigues

Socialização dos meios de produção, reforma


agrária, “democratização” dos meios de
comunicação: a maior parte dos tópicos da agenda da
esquerda não me despertava nenhum interesse
genuíno. Eu gostava de me ver como alguém
diferente, uma espécie de super-progressista.
Lembro-me de defender casamentos e estruturas
familiares alternativas aos dezessete anos. Durante
minha adolescência eu pensava nas formas de
casamento mais “tapa na cara da sociedade”
possíveis: — Era permitido adotar crianças e educá-las
numa mesma moradia junto a um amigo? — Era. Era
permitido casar-se com um bicho? — Claro que era. —
 Mas, qualquer bicho? — Sim, qualquer um. Se ter uma
taturana como esposa fosse algo que chocasse a
sociedade, eu estava dentro, eu estava a favor.
Cheguei a pensar em casar-me com um amigo, que se
vestiria como mulher, mesmo sem ser homossexual
(apenas cross-dresser) e adotar umas crianças para
viver conosco naquele ambiente gostoso. Eu queria
ver e fazer bagunça. A reforma da sociedade, para
mim, era pouca bobagem. Gostava de pensar na
mutação humana, numa sociedade de ciborgues, na
implantação da segunda jaralha como direito
fundamental do homem.
Mas, vocês devem estar se perguntando: —
 Quem foi o culpado por eu ter desenvolvido essa
mentalidade bocó? Meus pais? Não. Minha educação
escolar, talvez? Até então eu ignorava o fato de que
tinha recebido uma educação muito vagabunda, pois
eu não sabia nem entendia o significado de educação.
Quanto mais procuro pelos possíveis agentes de
influência daquilo que me tornara, quanto mais tento
enquadrar entidades abstratas como bodes
expiatórios, mais chego à conclusão de que não tenho
a quem culpar — ou por outra — , devo culpar o ar que
respirei durante todo esse tempo pois tornara-me —
 como Nelson Rodrigues notara com quarenta anos de
antecedência — um marxista sem ler nem estudar,
apenas respirando.
Só depois de minha reeducação relâmpago fui
capaz de me dar conta da quantidade de besteiras que
tinham se aglomerado no meu modo de ver e pensar
as coisas. Mas não somente isso. Para onde quer que
eu olhasse, o que quer que eu lesse, com quem quer
que conversasse, tudo o que Olavo dizia estava lá,
consubstanciado, transparente, tangível, evidente.
Eu não podia me conter: eu precisava contar isso
para todo mundo. Eu tinha renascido.

O boteco
O habitat natural do livre pensador brasileiro

Eu era um jovem boêmio e assíduo frequentador


de bares. Depois do quarto copo de cerveja eu estava
pronto para colocar em pauta os assuntos mais
deslocados e desproveitosos para a saúde do
ambiente botequinesco: — política, moral e religião.
Entrava nas discussões mais imbecis sem estar
minimamente capacitado para defender as idéias nas
quais eu acreditava acreditar. Nunca consegui provar
a existência de Jesus Cristo, a beleza e o papel
fundacional da Igreja Católica na civilização
Ocidental ou que o aborto era fundamentalmente
mau numa mesa de boteco. Perdia todas as discussões
e bebia mais um copo.
Eis o que se passava comigo: tendo acreditado e
alimentado uma série de pensamentos e ideais
revolucionários durante uma dezena de anos — idéias
que nunca foram examinadas ou estudadas, mas
infundidas em mim, e nas quais eu acreditava — eu
me encontrava desiludido, enganado e carente de
apoio externo. Que eu procurasse dirimir parte dessa
carência buscando apoio em outros amigos jovens, em
torno de uma mesa de bar, era prova de que eu ainda
era um débil-mental ou um ingênuo, na melhor das
hipóteses.
Esta fase, na qual dispendi um considerável
esforço e energia psicológica e emocional, durou
alguns meses. Nocauteado pelo ambiente em torno e
não podendo vencer o mundo, resolvi tomar uma
decisão mais drástica. Em vez de tentar mudar os
outros, resolvi começar por mudar a mim mesmo.

Isto não é um cachimbo


I’m a genius, a prodigy

Quando o conde alemão Hermann Graf


Keyserling visitou o Brasil, ele notou que aqui as
pessoas se contentavam em apenas parecer ser
alguma coisa. Ou ainda: aqui as pessoas não
precisavam ser nada, elas apenas precisavam parecer
que eram alguma coisa. Era, portanto, o momento de
me diferenciar do ambiente que me rondava. Essa
mudança só poderia ser exterior e estética, por alguns
motivos: é mais simples, menos trabalhosa, tem efeito
imediato e funciona maravilhosamente bem na
sociedade brasileira.
Ao ingressar na vida adulta adquiri, através das
armações de meus óculos, um aspecto arguto e, por
isso, sempre fui confundido com um intelectual.
Arrisco dizer que vem daí a minha “vocação” para as
letras. O fato de ter sido reconhecido
fisionomicamente como um intelectual acabou por
transfigurar-me na imagem e essência do gênio sem
obra e sem nenhum estudo. Acredito, até hoje, na
minha genialidade intrínseca, na genialidade sem
esforço e sem labuta, na genialidade pela genialidade.
Comporto-me de acordo com a figura do gênio em
suspensão e eterna maturação. Por exemplo: se vou
procurar um apartamento para alugar, não analiso a
localização, o tamanho dos cômodos ou a condição
geral do imóvel. Analiso, diversamente, de que modo
o espaço pode comportar o meu gênio. A iluminação
natural da sala, por exemplo, é suficiente para clarear
meus arroubos criativos? As janelas são capazes de
arejar meus pensamentos intempestivos? Em seguida,
faço uma lista de perguntas, como: — É possível fazer
poesia nessa sala? Dá para fazer literatura nesse
cômodo? etc. — Se sim, simpatizo com o imóvel. Se
não, descarto-o. O fato de eu nunca ter escrito uma
poesia em toda a minha vida e de não saber sequer
escandir um verso em nada influencia a minha
avaliação da propriedade. Trabalho apenas com a
potência do meu gênio, que é capaz de tudo, segundo
creio.
Mas falava da diferenciação estética necessária
para me distinguir da sociedade. Já tinha a cara boa
para a profissão intelectual: o rosto fino, triangular, os
óculos de aros grossos, sobrancelhas marcantes, uma
expressão de seriedade e sisudez constante, o hábito
de sempre carregar um livro emprestado da biblioteca
da faculdade (que eu nunca lia) etc. Mas eu me olhava
no espelho e sentia que faltava alguma coisa. Que
coisa? — Alguma coisa. “Parei. Pensei. Filosofei. Há
sempre uma pose por trás de quem posa…” — e me veio o
estalo: — um cachimbo! Era isso. Faltava-me um
cachimbo na boca, algo que pudesse conferir mais
seriedade e harmonia ao conjunto. Bastou eu ter dado
conta da ausência do cachimbo para, no mesmo dia,
fazer uma viagem emergencial à tabacaria mais
próxima e adquirir o adereço. Depois das primeiras
baforadas, sentia, finalmente, que tinha me
encontrado. Fumava solitariamente no quintal de casa
e vislumbrava dentre a fumaça todas as obras que
poderia ter escrito.

“Um visitante ilustre, o conde Hermann von


Keyserling, assinalou que, a imitação sendo um fenômeno
universalmente conhecido, o modo de praticá-la no Brasil
era peculiar: enquanto em outros países as pessoas
imitavam alguém porque tinham a esperança de tornar-se
iguais a ela de algum modo, os brasileiros se contentavam
com a imitação enquanto tal, visando apenas ao sucesso da
performance e não à aquisição das qualidades pessoais
imitadas. Este hábito denota um fundo depressivo de
rendição existencial: o povo que desistiu de ser contenta-se
com parecer.”
— em Doença existencial e fracasso econômico-social

A espiral do fracasso: a inércia como estado natural


do gênio incompreendido

Possuo uma tipologia amorfa e macunaímica.


Sou muito apegado às comodidades cotidianas e
tenho horror à disciplina. Sou, além disso, um pouco
por tendências emocionais e psicológicas e outro
tanto por fatores geracionais, um insubordinado.
Como resultado tornei-me escravo de minhas paixões
e uma espécie de procrastinador crônico. Disso
derivam os meus maiores fantasmas e parasitas
psicológicos, pois passei a me enxergar como um
indisciplinado, um irresponsável, um incapaz.
A partir deste ponto adentrei na espiral do
fracasso: não conseguia fazer planejamentos, não era
capaz de tomar decisões sobre a minha vida ou de
concluir tarefas banais. Não sendo capaz de concluir
tarefas, não me era permitido, portanto, ser alguma
coisa e, como não podia ser alguma coisa, resignei-me
em não ser nada. Curiosamente, gastei muita energia
e tive de ter muito empenho para manter-me nesse
estado de repouso.
Resolvi deixar a minha vida de estudos
em standby depois de entender com mais clareza os
pré-requisitos necessários para ser um bom aluno das
aulas de Olavo. Estes eram:
1) Possuir uma boa cultura literária;
2) Aprender a escrever com clareza e correção;
3) Dominar ao menos uma língua estrangeira
(leitura e escrita);
4) Ter uma base religiosa sólida;
5) Empreender um esforço psicanalítico e de
auto-conhecimento para livrar-se de parasitas
psicológicos que possam ser nocivos para a realização
de uma vida intelectual

Como não possuía o mínimo satisfatório de


nenhum dos pré-requisitos, e como eles me pareciam
fundamentais para dar prosseguimento ao curso, a
oportunidade pareceu-me ideal para preencher estes
buracos. Por este motivo, resolvi parar de assistir às
aulas do Curso Online de Filosofia. Mas, disse acima
que não era e não me sentia capaz de fazer nada.
Então, onde fiquei, para onde fui?

“Dois caminhos divergiam num bosque amarelo


Triste por não poder seguir os dois
E por ser apenas um viajante, segui
Um deles o mais longe que pude com o olhar,
Até o ponto onde ele se perde no mato”
— O caminho não escolhido, Robert Frost
Eu parei diante da bifurcação e mirei o caminho
errado. Resolvi pegar a estrada mais segura e menos
solitária. No caminho que resolvi seguir eu via muitos
amigos e conhecidos, rostos familiares. Alguns
tocavam violão e outros pandeirola. Era uma estrada
vasta e larga. Tão vasta que meus olhos não podiam
mirar o seu fim. Tão larga que podia comportar
enormes passeatas. Eu segui o caminho dos malditos,
dos desvalidos e dos cegos que se misturavam na
multidão até tornarem-se indiscerníveis da massa.
Botei minha mochila nas costas e, com ar decidido,
tomei a decisão de ir para esse piscinão de Ramos dos
autoindulgentes: fui para lugar nenhum.

Ponha a mão na massa


If you’ve got to grow up sometime / You’ve to do it
on your own

Todo esse processo de reeducação suscitou e


agravou uma tendência que sempre tive, levando-me
a um quadro depressivo. (Entendo que cada
indivíduo tem uma reação particular a determinado
estímulo, mas só posso ajudá-los contando o que se
passou comigo).
Um processo sério de educação implica diversos
efeitos colaterais. Como cada aluno responde a isto de
maneira diferente, é praticamente impossível para o
professor dar conta e auxiliar cada caso particular
(ainda mais à distância, como é o caso do professor
Olavo).
Apesar disso, boa parte dos problemas
suscitados nos alunos após algum tempo de ensino
com Olavo foi descrita em sua apostila “Considerações
sobre o Seminário de Filosofia”, onde Olavo faz uma
revisão dos resultados de seus mais de vinte anos de
experiência pedagógica e descreve as etapas pelas
quais seus alunos passam no processo de aquisição de
uma educação superior. As fases pelas quais passei (e
pelas quais vocês também passaram ou passarão)
foram claramente descritas nessa aula. Já li esse texto
mais de sete vezes e sempre volto a ele quando me
sinto perdido ou desorientado sobre o que fazer.
Foi numa dessas leituras que resolvi passar do
estágio de aluno-observador para o de aluno prático.
Tendo fundado, organizado, trabalhado (e, depois,
abandonado) o Grupo de Transcrição de aulas no
início do Curso Online de Filosofia eu possuía
alguma experiência com a translação e edição de
textos de aulas. Resolvi subir um degrau nessa
atividade ao transcrever e editar sozinho o curso
completo “Princípios e métodos da auto-educação”.
Nenhuma aula assistida ou texto lido de Olavo foi-me
mais valioso do que essa experiência. Empenhei-me
nesse projeto durante dois meses e o resultado foi
extremamente gratificante. Idealmente eu queria
extrair, estruturar e aplicar todo o método explicado
neste curso para poder autoeducar-me
satisfatoriamente. A primeira parte foi feita:
transcrevi, editei todas as aulas e elaborei um resumo
com o esquema prático dos métodos do curso. A
aplicação efetiva do método, no entanto, ainda não
consegui conquistar. Na verdade, não consegui
sequer completar o primeiro exercício proposto: ouvir
as 380 grandes obras da história da música
ocidental extraídas do livro “Uma Nova História da
Música” (republicado como “O Livro de Ouro da
História da Música”), de Otto Maria Carpeaux.
Passados seis anos do meu primeiro contato com
a obra do professor Olavo, posso, finalmente, começar
a colher os bons frutos que dele absorvi. Para isso,
fora-me (e ainda é) necessário recorrer a uma terapia:
nos atendimentos que faço semanalmente pude
começar a desatar os nós que me impediam de seguir
adiante e pude notar como usei muitos dos bons
conselhos e ensinamentos de Olavo para me auto-
sabotar em tarefas que clamavam por minha ação. Eu
fui para o nada e eu saí do nada. E hoje estou,
novamente, diante daquela bifurcação, mas agora eu
tenho o mapa e sei que caminho trilhar.
Algumas considerações e dicas aos alunos de
Olavo de Carvalho

Esse texto tem um público muito bem definido,


representado pelos alunos de Olavo de Carvalho.
Para todos os outros, os problemas e dicas
apresentados aqui não terão muita serventia.

I. Introdução

Algumas pessoas vieram me procurar depois de


ler o meu texto “Da lama ao caos e à redenção: as
etapas pelas quais passei enquanto aluno do
professor Olavo de Carvalho” queixando-se sobre a
parte final onde descrevo o que seria a minha
“redenção” pelo fato de ter reservado pouca atenção
a esse trecho, sendo muito sucinto. Outros vieram até
mim pedindo-me dicas práticas sobre como eu
consegui passar e “superar” todas as etapas anteriores
do meu tortuoso processo de auto-educação. A
resposta curta, simples e honesta a essa pergunta é
que ainda não consegui “superar” todas as etapas que
descrevi e não tenho respostas prontas genéricas, que
possam servir a qualquer aluno, para que eles possam
se valer destas para alcançarem a sua própria
“redenção”.
Minhas intenções principais ao escrever e
publicar aquele texto eram três: em primeiro lugar,
contar a minha própria história e, fazendo-o, tomar
posse dela, conscientemente, buscando alcançar uma
espécie de efeito terapêutico, livrando-me, por assim
dizer, daquele boêmio que buscava discussões
políticas e religiosas em botequins, daquele outro que
comprou um cachimbo na esperança de tornar-se um
intelectual ao dar umas pipadas em um fumo mágico
e também daquele que entrou em estado de inércia
movido por um sentimento de autoindulgência, por
não conseguir vislumbrar caminho nenhum a ser
percorrido com os seus próprios pés.
Em segundo lugar, suspeitava que a minha
história pudesse ser parecida com a de muitos outros
alunos, e tinha a esperança de que estes, ao se
identificarem com os dramas pelos quais passei,
pudessem exorcizar o que busquei (e ainda busco)
exorcizar em mim.
E, terceiro, que o meu relato servisse de alerta
aos novos alunos e interessados em se educar tendo
Olavo de Carvalho como professor. Dei como
subtítulo para a história “um ensaio sobre tudo o que você
não deve fazer”, ou seja, se você pretende estudar ou
iniciou há pouco tempo seus estudos com o professor,
tente se valer da minha experiência e evitar, ao
máximo, a passagem por essas etapas: não entre em
discussões de boteco, não se sinta um intelectual só
porque você começou a fumar um cachimbo, e,
principalmente, não tenha pena de si mesmo se, após
algum tempo, você se sentir deslocado e desajustado
da sociedade em torno.
A busca pela vida intelectual e pelos estudos
pressupõem um desalinhamento entre você e os
próximos. Ao estudar, você fica sabendo coisas que os
outros não sabem. Este é um problema que,
dependendo da pessoa, pode ser ultrapassado sem
muitas dores, mas, em outros casos, pode levar alguns
a um quadro depressivo ou até à desistência completa
dos estudos.
Como disse acima, não tenho respostas prontas
ou fórmulas para um aluno genérico, mas, pela
observância da minha história e de alguns outros
alunos que vieram até mim, posso dar algumas dicas
para que você desate alguns nós adquiridos em seu
processo educacional.
II. Exemplo pessoal de auto-sabotagem

O tipo de erro mais comum que vejo entre os


alunos de Olavo é tomar um de seus ensinamentos,
teorias ou exercícios, que são inerentemente bons ou
que visam a um amadurecimento necessário para o
exercício intelectual e transformá-los em ferramentas
de auto-sabotagem. O processo se dá em duas etapas:
primeiro, entende-se o exercício de maneira errada e,
segundo, transformam-no em uma camisa-de-força
que os impede de agir.
Por uma questão didática, vou lhes dar um
exemplo pessoal. Considero que a vocação da escrita
se manifestou em mim bastante cedo e de forma
muito clara. Desde os quatorze anos eu tinha uma
certa facilidade natural para me expressar com
palavras e para imitar o que eu lia. Por volta dos
dezessete ou dezoito anos, no entanto — por motivos
que não cabem ser descritos aqui — eu reneguei essa
vocação e parei de praticar a escrita. Como disse em
meu texto anterior, aos vinte e dois anos tive contato
com a obra de Olavo e, lá pelas tantas, cruzei com esta
“Entrevista a Diana Nedelcu (1998)” em seu site, em
que ele dizia:
“Quando era jovem eu queria me tornar escritor, já
possuía um domínio sólido de minha língua natal e todos
me diziam que eu escrevia muito bem, mas eu me dei conta
de que não tinha absolutamente nada a escrever, de que eu
estava vazio de todo conteúdo que valesse a pena escrever.
Assim, deixei de lado meu plano de me tornar escritor e
concebi um novo plano de vida, que era o de me tornar um
homem que soubesse verdadeiramente alguma coisa, mesmo
não escrevendo nada.”
E — vejam como é o ser humano — ao ler isso, fui
tomado por um sentimento (forjado) de intensa
identificação com o mestre. Era sobre mim que ele
falava! Eu também queria me tornar escritor, as
pessoas diziam-me que escrevia muito bem, porém,
em certo ponto da minha juventude, eu também havia
me dado conta de que não tinha absolutamente nada
a escrever.
Mas a resposta de Olavo continua, e ele diz:
“Desde então, tenho feito grandes esforços de atenção
para extrair conclusões válidas daquilo que a vida me trazia
e também daquilo que eu lia. Pus-me a distinguir
minuciosamente, na massa de meus pensamentos e
conhecimentos adquiridos, entre aqueles que eram certos e
verdadeiros, aqueles que eram ao menos razoáveis e
prováveis, aqueles que não eram mais que opiniões
verossímeis e aqueles que eram puras fantasias da minha
imaginação. Abdiquei de toda pretensão de ter uma carreira
de homem de letras, para me devotar somente àquilo que se
pode chamar a pesquisa da verdade para meu uso pessoal.
Foi assim que me tornei filósofo. E foi assim que o mundo
foi poupado de ler os execráveis livros de juventude que eu
jamais escrevi.”
De todo esse parágrafo lembro-me de ter lido
somente o seu final: “o mundo foi poupado de ler os
execráveis livros de juventude que eu jamais escrevi” — e
confirmei, para mim mesmo: — está certo o que estou
fazendo. É sobre mim que ele fala: não tenho
absolutamente nada a escrever, e, movido por um
sentimento de afetadíssima caridade, completei o
raciocínio: devo poupar o mundo de ler meus
execráveis textos de juventude. O que eu não soube
discernir, na época, foi justamente o que não li: o
professor Olavo tinha deixado de escrever para
estudar porque nele se manifestava uma vocação
diversa da minha. No caso, a vocação para a Filosofia.
O que eu queria — e que era mais forte do que eu —
 era forçar uma identificação da minha biografia com
a dele.
Quando você quer transar com uma garota que
você não conhece muito bem e ela lhe diz que a banda
preferida dela é Whitesnake, o que você responde?
Você odeia Whitesnake, você nunca ouviu
Whitesnake, mas, se você for um pouco esperto, você
dirá: — eu também gosto bastante de algumas músicas
deles e, se for você muito inteligente, você
responderá: — que coincidência! Whitesnake também é a
minha banda preferida! Eis o homem: forjar
identificações de gostos com a mulher com a qual
você deseja transar é uma tática que funciona. Não
preciso dizer que não, eu não queria transar com o
professor Olavo, mas a minha admiração por ele era
suficiente para que eu falseasse a minha própria
biografia para que ela se parecesse mais com a dele.
Para melhorar ainda mais a minha situação,
mais tarde deparei-me com outro material do
professor em que ele explicava os requisitos básicos
para você se tornar um bom escritor, que envolviam:
ler as grandes obras da literatura ocidental, aprender
a imitar ao menos cinco escritores etc etc. — acontece
que eu nunca tive a paciência, a disciplina e a vontade
necessárias para praticar estes exercícios, o que, a meu
ver, confirmava que eu estava mesmo certo: eu não só
não possuía a vocação literária como tinha uma
enérgica inadptidão para o ofício das letras.
Anos depois, tentando retomar o exercício da
escrita, pegava-me inspirado a “escrever um grande
romance”, a “criar um novo gênero literário” ou a
simplesmente “escrever qualquer coisinha” e,
imediatamente, me vinha à mente, como um balde de
água fria, os requisitos básicos enunciados pelo
professor para ser um escritor, e eu me prostrava
sobre um meio-fio imaginário, refreando a minha
vontade, onde sobrepunha aqueles requisitos à minha
genuína capacidade de expressar-me, e me esquivava
de um momento em que era manifesta a minha
necessidade de escrever, o que quer que fosse, como
quer que fosse.
Um escritor por vocação, tendo praticado e
adquirido certo domínio da língua, incorpora aquilo
nele como se fosse um sexto sentido. Perder ou
renegar essa capacidade por muito tempo representa
um drama para o escritor equivalente à perda de um
órgão de percepção. O escritor precisa expressar-se
através da linguagem escrita: não é uma frescura ou
um arroubo banal, o que se sente é um chamado
imperativo, categórico, que, se sufocado muitas vezes,
pode provocar uma neurose.
A culpa pelo fato de eu ter parado de escrever,
reitero, não foi de Olavo de Carvalho. O que eu fiz foi
usar recortes do que li em seus ensinamentos para
usá-los como ferramentas de auto-sabotagem.
Abaixo descrevo algumas ferramentas mais
comuns que vejo sendo usadas por seus alunos para
se auto-sabotarem como eu:
III. O voto de abstinência em matéria de opiniões

Essa questão é introduzida pela primeira vez


na quarta aula do Curso Online de Filosofia, onde
Olavo pede aos seus alunos que façam um voto de
abstinência em matéria de opiniões durante certo
tempo. Apesar do exercício ser muito bem explicado
pelo professor, observo que este é um item que causa
enorme confusão entre seus alunos.
Em primeiro lugar, é preciso saber a quais
opiniões Olavo está se referindo. Para isso, sugiro que
vocês leiam (ou releiam) a sua apostila “Inteligência e
verdade”, uma transcrição de duas aulas dadas em
1994 em que ele explica o que é inteligência, o que são
os quatro graus de certeza e o que é o mapa da
ignorância. Ele pede que o aluno se abstenha de dar
opiniões em situações nas quais o objeto da discussão
é definido pelo mero gosto pessoal dos debatedores.
Em segundo lugar, para entender bem o exercício é
preciso que o aluno seja capaz de rever as suas
opiniões e graduá-las segundo os graus de certeza.
Com isso você vai aprender quais das suas opiniões
você pode defender, quais valem a pena defender até
a morte e quais as que não valem. A intenção desse
exercício é evitar as discussões de boteco, ou seja,
evitar uma perda desnecessária de energia do
estudante e redirecioná-la a assuntos importantes e
vitais. Em último lugar, é ainda necessário um certo
amadurecimento psicológico e social do estudante,
para que ele saiba quando e onde o seu depoimento
terá valor.
Veja, a definição de “opinião” é “o que se pensa a
respeito de algo ou alguém”, e todo mundo pensa
alguma coisa sobre algo ou alguém. Isso significa que,
na maior parte dos casos, duas opiniões contrárias de
duas pessoas têm equivalentemente o mesmo valor.
Se você prefere a cor azul e outra pessoa prefere o
verde, qual opinião é melhor ou mais válida? Vale a
pena discutir com uma pessoa que prefere o verde
para tentar convencê-la de que o azul é melhor? No
entanto, há casos em que o conhecimento dá lugar à
opinião, ou seja, são ocasiões onde você não pode
preferir uma coisa em detrimento de outra, porque
você conhece a matéria e sabe que aquela coisa está
errada. Olavo diz que “a abstinência de opiniões não
quer dizer abstinência de conhecimentos” e, ainda:
“Não recomendo que meus alunos participem de
discussões, em geral, mas, quando for necessário
quebrar o falso prestígio de um erro monstruoso ou
uma mentira, não hesite em fazê-lo.” — Isso só é
válido nos casos em que o aluno domina e tem
capacidade de provar que tal ou qual “opinião” está
errada. Por exemplo, se você cursa Filosofia ou
Ciências Sociais em uma universidade e seu professor
começa a dizer que “Cuba fez uma revolução pacífica e
nenhum cidadão contrário ao novo regime foi executado” e
você sabe e pode provar que ele está errado, então
você tem o dever de fazê-lo, pois, nesse caso, não é
possível “preferir” que ninguém tenha sido morto
quando pelo menos 5.700 opositores do regime foram
executados por Fidel Castro.
Ainda assim, a recomendação final é de que os
alunos não procurem essas discussões: ao contrário,
que fujam delas. (Caso você estude em algum curso
da área de Humanas em alguma universidade
brasileira a posologia recomendada é de dois engovs
e três pastilhas de Rivotril por dia de aula, até obter o
seu diploma).

IV. Não utilize a teoria das doze camadas como uma


camisa-de-força

Esse assunto foi recentemente reapresentado


por Olavo no Curso Online de Filosofia (Aula 253, de
21 de junho de 2014). Ele explicou as origens e
atualizou sua síntese original de várias teorias
psicológicas da personalidade, conhecida como teoria
das doze camadas da personalidade humana. Este é
outro tema em que percebi bastante confusão por
parte dos alunos. Muitos se encaixam em uma
camada x e, não sabendo como passar para a próxima
camada, transformam a teoria num fator pessoal
limitante e de auto-sabotagem, da onde não
conseguem sair. Eis um exemplo de um aluno que
apanhei, por acaso, em que ele diz:
“O COF é para quem está na camada nove. Eu estou
na seis, e isto gera várias tensões. A principal é a tensão
entre a objetividade e impessoalidade das finalidades do
curso e minhas necessidades subjetivas de obtenção de
resultados práticos na minha vida. Há um deslocamento
entre uma coisa e outra, como se a intelectualidade
desenvolvida no curso não encontrasse chão na minha
personalidade e por isto mesmo não pudesse ser o centro da
minha vida. Não sei se alguém já passou por isso.”
Bem, em primeiro lugar, em nenhum lugar está
escrito ou jamais foi pré-requisito para a inscrição dos
alunos que o Curso Online de Filosofia “é para quem
está na camada nove”. Então percebe-se que o aluno
fez uma aplicação incorreta do que aprendeu da
teoria. Em segundo lugar, não sei como o aluno
conseguiu se auto-diagnosticar como pertencente à
camada seis. (Eu tentei me diagnosticar segundo as
descrições das camadas e acredito estar na camada
quatro, mas lembro-me que Olavo disse, em aula, que
não era possível fazer um teste ou um auto-
diagnóstico infalível dessa teoria). E isso, como
resultado, criou para ele um problema que antes não
existia: se ele está três camadas abaixo da camada do
público-alvo do curso, então, consequentemente,
como ele vai acompanhar ou continuar
acompanhando as aulas? Esse é o tipo de problema
que parece não ter solução pelo simples fato de ser um
problema inventado e não um problema real, mas que
pode afastar o aluno dos estudos caso ele não
encontre uma solução ou não saiba lidar com o
imbróglio.
Abaixo transcrevo o trecho de um diálogo que
tive com outro aluno, que me pareceu muito honesto
em sua busca, sobre o mesmo problema da teoria das
doze camadas, em que encerro esse tema:
Thiago: Eu acho que você deve aproveitar essa
oportunidade de desajuste social para trabalhar sua relação
com Deus e aproximar-se mais Dele, o quanto for possível.
João: A teoria das 12 camadas me explicou muita
coisa, mas me falta prática para a conquista de camadas
superiores, mesmo as reconhecendo em teoria.
Thiago: Uma dica: não se prenda à teoria das doze
camadas, não tente se enquadrar nela, porque isso pode lhe
fazer mais mal do que bem. Se isso está acontecendo com
você, esqueça essa teoria… apesar dela fazer todo sentido,
quando tentei aplicá-la à minha vida prática ela não
“funcionou”.
João: A última aula aborda o domínio do ego como
sendo a conquista principal para a vida religiosa. Não estou
pronto.
Thiago: Você está usando o que aprendeu com o
Olavo “para o mal”. Evite fazer isso. Eu fiz muito isso e
ainda faço. Isso é auto-sabotagem. Como você não se
acredita capacitado para o negócio, segundo o que o Olavo
define como “o mínimo necessário”, você se sabota e evita o
confronto com aquilo, evita viver aquilo. E viver, ter a
experiência, é o mais importante, é o que vai te fazer “subir
nas camadas”.
Acredite: qualquer um está preparado para orar, por
exemplo. Quando você fica sozinho, fecha seus olhos e põe
suas mãos em forma de oração, Deus está presente, naquele
momento, te escutando. Fale com Ele. Peça ajuda para Ele.
Você pode se confessar também, diga que você não se sente
capaz de amá-Lo como Ele deveria (se for o caso), e peça
perdão e ajuda. Ele vai te ajudar, não tenha dúvida. Não
espere obter “o domínio do seu ego” para, em seguida,
buscar a vida religiosa. As coisas não funcionam assim.
Você tem que tentar ter uma vida religiosa, de oração, ao
mesmo tempo em que tenta dominar o seu ego. E é
justamente a oração e o convívio com Deus que irão lhe
ajudar a dominar o seu ego.
V. O que é mais importante no curso?

Os elementos éticos e psicológicos da vida


intelectual são o início e a base do processo de auto-
educação. Eles são pré-requisitos fundamentais para
que você utilize com proveito os métodos e técnicas
ensinados por Olavo. Desenvolver isto é muito mais
importante do que ler livros. (Se você já lê livros, não
precisa parar de lê-los para ir atrás disso, você pode e
deve fazer os dois ao mesmo tempo).
Você pode tentar sondar seus problemas
internos fazendo-se a seguinte pergunta: “o que existe
como obstáculo(s) psicológico(s) e que se interpõe(m) entre
você e a realização intelectual que você pretende alcançar?”.
Há muitas formas de de “se limpar” desses
elementos, dentre elas: o método da confissão
(apresentado na Aula 14), a prática da oração, a
prática religiosa, buscar uma terapia etc. O prof.
Olavo oferece uma série de técnicas e exercícios aos
seus alunos em seu curso visando isso. Busque,
pratique e observe qual funciona melhor para você. A
busca da honestidade e da sinceridade consigo
mesmo deve ser um elemento a se ter sempre em vista
para o aluno.
VI. Você quer ser um estudante ou um militante?

Considero que a postura militante se manifesta


em um aluno na sua primeira fase de contato com
Olavo. É a fase das discussões de botequim, de
discussões com namoradas, com a a família, com
colegas de trabalho etc. É também uma fase de
militância política de Facebook. Com relação a isso,
lembro e peço que assistam ao hangout do prof.
Olavo de Carvalho com seu filho Luiz Gonzaga. Sobre
os artigos em que fala de política, Olavo diz:
“Todos os artigos que escrevo sobre política são
ilustrações de princípios e métodos que expliquei na apostila
“Problemas de Métodos nas Ciências Sociais” e nos dois
cursos sobre Ciência Política que dei no Paraná. Esses
artigos não têm uma autonomia, eles são ilustrações, são
fatos que recolho para mostrar que as coisas são de fato como
expliquei naqueles cursos. Eu tive essa ambição de criar
uma Ciência Política que fosse capaz não só de abranger
grandes teorias gerais, mas de entrar na explicação do fato
concreto e de explicá-lo de maneira eficiente, de modo a fazer
previsões efetivas.”
A resposta do prof. Luiz Gonzaga é muito
esclarecedora:
“Se eu falo menos sobre política é porque, primeiro,
eu estou assimilando a ciência tal como ela já existe na
minha geração. Quando você está assimilando,
passivamente, você não tem nada a acrescentar, exceto a sua
concordância com as melhores análises. Isso porque [a
compreensão] da Ciência Política [exige] uma grande
maturidade. Quando somos jovens a gente só raciocina em
termos de ideias e princípios abstratos — eu percebo isso em
mim mesmo, só há poucos anos isso começou a mudar em
mim — e, só quando a gente adquire uma certa maturidade
nós começamos a raciocinar em termos de realidades e ações
concretas particulares ou coletivas — então começamos a
perceber que a Ciência Política é uma ciência que pertence
a esse plano. As ideias abstratas têm um valor para você
entendê-la, mas o seu objeto de estudo e seu método são
completamente diferentes. É preciso maturidade. É
necessário pensar as coisas em termos de realidade concreta,
sem aquela ignorância e ingenuidade da infância. Quando
você é criança, você vê as coisas que vão aparecendo na sua
frente, quando você cresce, você começa a pensar em termos
de ideias, você desenvolve a sua linguagem e começa a
pensar as coisas em termos teóricos. É mais ou menos como
a diferença do Platão da “República” para o Platão das
“Leis”. O Platão da “República” está falando sobre ideias,
princípios e teorias abstratas sobre a sociedade. O Platão
das “Leis” está começando a descrever uma sociedade real
grega que é possível e um pouco melhor do que as que
existiam [naquela época].”
Percebo que muitos alunos permanecem
durante muito tempo nessa fase do combate político,
tendo sua atenção quase que totalmente atraída para
esse assunto. Em resumo: como a discussão e a análise
política são próprias do homem adulto, reserve-as
para a sua maturidade.

VII. O destino dos desajustados

“O talento se desenvolve na solidão, e o caráter na


agitação do mundo” — Goethe

Volto ao início do texto para concluir o que


comecei: a busca pela vida intelectual e pelos estudos
pressupõem um desalinhamento entre você e os
próximos. Isso pode levá-lo a um desajuste social e
esse desajuste pode levá-lo à solidão.
Acredito que a solução para o enfrentamento da
solidão é estreitar e fortalecer sua relação com Deus.
No entanto, aprender a estar só não basta, pois você
também precisará desenvolver o seu caráter, e esse
desenvolvimento se dará quando você for às ruas.
Você precisará desenvolver sua coragem, a caridade,
o amor ao próximo etc. na agitação do mundo, entre
seus iguais.
Tanto o desajuste, como sua consequência, a
solidão, quando não são corretamente trabalhados,
podem levar o aluno a voltar o seu ódio contra: 1. si
mesmo, o que pode gerar um quadro depressivo, uma
neurose, uma estagnação etc; 2. à sociedade, o que vai
levá-lo a um condição de militante, onde ele vai
externar um ódio político em relação à situação atual
e enxergar como bode expiatório para os seus
problemas o PT, a Dilma, o avanço das políticas
socialistas etc.; e 3. um ódio contra o professor — o que
vai transformá-lo em mais um ex-aluno rancoroso
arquetípico de Olavo: alguém que nunca se livrará do
professor porque, ao reiterar suas críticas, ofensas e
indiretas à ele (seja no Facebook, seja em sua vida
pessoal), não conseguirá jamais livrar-se de um
fantasma que em nada corresponde com o papel que
ele teve na realidade: o de alguém que tudo lhes deu
e tudo lhes ofereceu, sem exigir nada em troca.
Sugiro a todos os seus alunos que fujam dessas
armadilhas como se foge do diabo. Pratique a
sinceridade consigo mesmo e com Deus e tenha
paciência, que tudo dará certo, no final.
Textos extraídos do Seminário de Filosofia do
professor Olavo de Carvalho, no site
http://www.olavodecarvalho.org.

P.S.: Os textos abaixo foram incluídos por Darlleson


Oliveira, leitor, estudante de engenharia civil, mas
com um interesse incontrolável por filosofia.
A tragédia do estudante sério no Brasil
Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 12 de fevereiro de 2006

Toda semana, recebo dezenas de cartas de


estudantes que, em busca de alguma formação
intelectual, encontraram nas universidades que
frequentam apenas propaganda comunista rasteira,
porca, subginasiana.
Não são, como em geral imaginam, vítimas de
puras circunstâncias políticas imediatas. Gemem sob
uma montanha de fatores adversos à inteligência
humana, que foram se acumulando no mundo, e não
só no Brasil, ao longo das últimas décadas. Se a
primeira metade do século XX trouxe um
florescimento intelectual incomum, a segunda foi
uma devastação geral como raramente se viu na
História. A queda foi tão profunda que já não se pode
medi-la. Num panorama inteiramente dominado por
charlatães caricatos como Noam Chomsky, Richard
Dawkins, Edward Said, Jacques Derrida, Julia
Kristeva, a época em que floresceram quase que
simultaneamente Edmund Husserl, Karl Jaspers,
Louis Lavelle, Alfred North Whitehead, Benedetto
Croce, Jan Huizinga, Arnold Toynbee – e na literatura
T. S. Eliot, W. B. Yeats, Ezra Pound, Thomas Mann,
Franz Kafka, Jacob Wassermann, Robert Musil,
Hermann Broch, Heimito von Doderer – já se tornou
invisível, inalcançável à imaginação dos nossos
contemporâneos. Toda comparação é entre alguma
coisa e alguma outra coisa. Não se pode comparar
tudo com nada.
Isso não quer dizer que as fontes do
conhecimento tenham secado. Pensadores de grande
envergadura – um Eric Voegelin, um Bernard
Lonergan, um Xavier Zubiri – sobreviveram à debacle
dos anos 60 e continuaram atuantes, o primeiro até
1985, o segundo até 1984, o terceiro até 1983. Mas seus
ensinamentos são ainda a posse exclusiva de círculos
seletos. Não entram na corrente geral das idéias, nem
poderiam entrar sem sujar-se, sem transformar-se em
matéria de discussões idiotas como vem acontecendo,
graças à ascensão política de alguns de seus
discípulos, com o infeliz Leo Strauss.
Pois a desgraça se deu justamente na “corrente
geral”. O fim da II Guerra Mundial trouxe uma
prodigiosa reorganização das bases sociais e
econômicas da vida intelectual no mundo. Novas
instituições, novas redes de comunicação, novos
mecanismos de estocagem e distribuição das
informações acadêmicas, novos públicos e,
sobretudo, a ampliação inaudita do apoio estatal e
privado à cultura e a formação dos grandes
organismos internacionais como a ONU e a Unesco.
Tudo isso veio junto com o descrédito do marxismo
soviético e a profunda mutação interna da militância
esquerdista internacional, a essa altura já plenamente
imbuída das duas lições aprendidas da Escola de
Frankfurt e de Georg Lukacs (mas também, mais
discretamente, de Martin Heidegger): (1) a luta
essencial não era propriamente contra o capitalismo,
mas contra “a civilização ocidental”; (2) o agente
principal do processo era a classe dos intelectuais.
Nessas condições, o crescimento fabuloso dos
meios de atuação veio junto com o esforço
multilateral de apropriação desses meios por parte de
grupos militantes bem pouco interessados em
“compreender o mundo” mas totalmente devotados a
“transformá-lo”. A redução drástica da atividade
intelectual ao ativismo político foi a consequência
desejada e planejada dessa operação, realizada em
escala mundial a partir dos anos 60.
Não que o fenômeno fosse totalmente
desconhecido antes disso. Um vasto ensaio geral já
vinha sendo realizado nos EUA desde a década de 30
pelo menos, através das grandes fundações “não
lucrativas” que descobriram seu poder de orientar e
manipular a seu belprazer a atividade intelectual,
científica e educacional mediante a simples seleção
ideologicamente orientada dos destinatários de suas
verbas bilionárias.
Em 1954, uma comissão de investigações do
Congresso americano já havia descoberto que
fundações como Rockefeller, Carnegie e Ford
exerciam controle indevido sobre as universidades, as
instituições de pesquisa e a cultura em geral,
orientando-as num sentido francamente anti-
americano, anticristão e até anticapitalista. (Não me
perguntem pela milésima vez com que interesse os
grandes capitalistas podem agir contra o capitalismo.
A explicação está resumida em
http://www.olavodecarvalho.org
/semana/040617jt.htm e http://www.olavodecarvalho
.org /textos/debate_usp_4.htm .) Inevitavelmente, a
influência exercida por essas organizações não
consistiu só em introduzir uma determinada cor
política na produção cultural, mas em alterá-la e
corrompê-la até às raízes, subordinando aos objetivos
políticos e publicitários visados todas as exigências de
honestidade, veracidade e rigor. Sem essa
interferência, fraudes cabeludas como o Relatório
Kinsey ou a pseudo-antropologia de Margaret Mead
jamais teriam conseguido impor-se ao meio
acadêmico e à mídia cultural como produtos
respeitáveis de uma atividade científica normal.
A comissão foi alvo de ataques virulentos de
toda a grande mídia, e seu trabalho acabou por ser
esquecido, mas ele ainda é uma das melhores fontes
de consulta sobre a instrumentalização política da
cultura (v. René Wormser, Foundations, Their Power
and Influence, New York, Devin-Adair, 1958 – vocês
podem comprá-lo pelo site www.bookfinder.com ).
Na verdade, sem ele não se pode compreender nada
do que se passou em seguida, pois o que se passou foi
que o experimento tentado em escala americana foi
ampliado para o mundo todo: a apropriação dos
meios de ação cultural pelas organizações militantes
e o sacrifício integral da inteligência humana no altar
da “vontade de poder” simplesmente se
globalizaram.
Recursos incalculavelmente vastos, que
poderiam ter sido utilizados para o progresso do
conhecimento e a melhoria da condição de vida da
espécie humana foram assim desperdiçados para
sustentar a guerra geral da estupidez militante contra
a “civilização ocidental” que havia gerado esses
mesmos recursos.
Embora esse processo seja de alcance mundial, é
claro que o seu peso se fez sentir mais densamente em
países novos do Terceiro Mundo, onde as criações das
épocas anteriores não tinham sido assimiladas com
muita profundidade e as raízes da civilização podiam
ser mais facilmente cortadas. No Brasil, da década de
60 em diante, os progressos da barbárie foram talvez
mais rápidos do que em qualquer outro lugar,
destruindo com espantosa facilidade as sementes de
cultura que, embora frágeis, vinham dando alguns
frutos promissores. A comparação impossível entre as
duas épocas, que mencionei acima, é ainda mais
impossível no caso brasileiro. Na década de 50,
tínhamos, vivos e atuantes, Manuel Bandeira, Carlos
Drummond de Andrade, Graciliano Ramos, José Lins
do Rego, Álvaro Lins, Augusto Meyer, Otto Maria
Carpeaux, Mário Ferreira dos Santos, Vicente Ferreira
da Silva, Herberto Sales, Cornélio Penna, Gustavo
Corção, Nelson Rodrigues, Lúcio Cardoso, Heitor
Villa-Lobos, Augusto Frederico Schmidt, a lista não
acaba mais. Hoje, quem representa na mídia a
imagem da “cultura brasileira”? Paulo Coelho, Luís
Fernando Veríssimo, Gilberto Gil, Arnaldo Jabor,
Emir Sader, Frei Betto e Leonardo Boff. Perto desses,
Chomsky é Aristóteles. É o grau mais alto pelo qual
se medem. Chamar isso de crise, ou mesmo de
decadência, é de um otimismo delirante. A cultura
brasileira tornou-se a caricatura de uma palhaçada. É
uma coisa oca, besta, disforme, doente,
incalculavelmente irrisória.
A inteligência, ao contrário do dinheiro ou da
saúde, tem esta peculiaridade: quanto mais você a
perde, menos dá pela falta dela. O homem inteligente,
afeito a estudos pesados, logo acha que emburreceu
quando, cansado, nervoso ou mal dormido, sente
dificuldade em compreender algo. Aquele que nunca
entendeu grande coisa se acha perfeitamente normal
quando entende menos ainda, pois esqueceu o pouco
que entendia e já não tem como comparar. Uma das
coisas que me deliciam, que me levam ao êxtase
quando contemplo o Brasil de hoje, é o ar de seriedade
com que as pessoas discutem e pretendem sanar os
males econômicos, políticos e administrativos do
Brasil, sem ligar a mínima para a destruição da
cultura, como se a inteligência prática subsistisse
incólume ao emburrecimento geral, como se
inteligência fosse um adorno a ser acrescentado ao
sucesso depois de resolvidos todos os problemas ou
como se a inépcia absoluta não fosse de maneira
alguma um obstáculo à conquista da felicidade geral.
A prova mais evidente da insensibilidade torpe é o
sujeito já nem sentir saudade da consciência que teve
um dia.
Mas não, a inteligência nacional não acabou no
dia em que os nossos estudantes tiraram o último
lugar numa avaliação entre alunos do curso
secundário de 32 países: acabou logo em seguida,
quando o ministro da Educação disse que o resultado
poderia ter sido pior.
Num sentido mais profundo do que o ministro
imaginava, poderia mesmo. Na eleição seguinte, o
país colocou na presidência um carreirista
enriquecido, de terno Armani e unhas polidas, que,
por orgulhar-se de jamais ler livros, foi proclamado
um símbolo da autenticidade popular. A imagem era
falsa, grotesca e insultuosa, mas ninguém percebeu.
Se existe um grau abaixo do grotesco, porém, ele foi
atingido logo em seguida, quando o escritor
Raymundo Faoro, quanto mais bobo mais celebrado
nas esquerdas como inteligência luminosa, sugeriu o
nome do então presidenciável para ocupar uma vaga
na Academia Brasileira de Letras. Perto disso, tirar o
último lugar num teste chegava a ser meritório.
Se o desespero dos estudantes que me escrevem
viesse só da situação política, haveria esperança de
saná-lo por meio da ação política. Mas a ação política
é um subproduto da cultura e, no estado em que as
coisas estão, nenhuma ação política inteligente, ao
menos em escala federal, é previsível nas próximas
duas ou três gerações. Nas próximas eleições, por
exemplo, o país terá de optar novamente entre PT e
PSDB, isto é, os dois filhotes monstruosos gerados no
ventre da USP, a mãe da esterilidade nacional, ou
como bem a sintetizou o poeta Bruno Tolentino, a
“p… que não pariu”. Sim, a política brasileira virou
uma imensa assembleia de estudantes da USP, com o
Partido Comunista de um lado, a Ação Popular de
outro, num torneio de arrogância, presunção,
hipocrisia, sadismo mental, mendacidade ilimitada e
estupidez sem fim. A USP levou meio século para
chegar ao poder, e ainda não parou de gerar pseudo-
intelectuais ambiciosos, ávidos de mandar, sedentos
de ministérios. Sua obra de destruição está longe de
haver-se completado.
Da política nada de bom se pode esperar num
prazo humanamente suportável. Uma ação cultural
de grande escala – a fundação de uma autêntica
instituição de ensino superior, para contrabalançar a
desgraça uspiana – também não é nada provável,
dada a omissão das chamadas “elites”, sempre de
rabo entre as pernas, oscilando entre lamber mais um
pouco os pés da canalha petista ou apegar-se ao
primeiro zesserra que apareça.
Ao estudante que consiga ainda vislumbrar o
que é vida intelectual e faça dela o objetivo de sua
existência, restam dois caminhos: o exílio, que pode
levar ao lugar errado (a miséria brasileira nasce em
Paris), e o isolamento, que pode levar os mais fracos a
um desespero ainda mais profundo do que aquele em
que se encontram.
A única solução viável, que enxergo, é a
formação de pequenos grupos solidários, firmemente
decididos a obter uma formação intelectual sólida, de
início sem nenhum reconhecimento oficial ou
acadêmico, mas forçando mais tarde a obtenção desse
reconhecimento mediante prova de superioridade
acachapante. Já não leciono no Brasil, mas a
experiência mostrou que muito aluno meu, com
alguns anos de aulas e bastante estudo em casa, já está
pronto para dar de dez a zero, não digo em alunos,
mas em professores da USP do calibrinho de
Demétrio Magnoli e Emir Sader, o que, bem feitas as
contas, é até luta desigual, é até covardia.
O processo é trabalhoso, mas simples: cumprir
as tarefas tradicionais do estudo acadêmico, dominar
o trivium , aprender a escrever lendo e imitando os
clássicos de três idiomas pelo menos, estudar muito
Aristóteles, muito Platão, muito Tomás de Aquino,
muito Leibniz, Schelling e Husserl, absorver o quanto
possível o legado da universidade alemã e austríaca
da primeira metade do século XX, conhecer muito
bem a história comparada de duas ou três
civilizações, absorver os clássicos da teologia e da
mística de pelo menos três religiões, e então, só então,
ler Marx, Nietzsche, Foucault. Se depois desse regime
você ainda se impressionar com esses três, é porque é
burro mesmo e eu nada posso fazer por você.
Mas o ambiente universitário brasileiro de hoje
é tão baixo, tão torpe, que só de a gente apresentar
essa lista – o mínimo requerido para uma formação
séria de filósofo ou erudito –, o pessoal já arregala os
olhos de susto. Na verdade, o estudante brasileiro não
lê nada, só resumo e orelha, além de Emir Sader e da
dupla Betto & Boff, que não valem o resumo de uma
orelha. É tudo farsa, chanchada, pose. Não há quem
não saiba disso e não há quem não acabe se
acomodando a essa situação como se fosse natural e
inevitável. A abjeção intelectual deste país é sem fim.
Educação ao contrário
Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 27 de janeiro de 2009

Clicando no Google a palavra “Educação”


seguida da expressão “direito de todos”, encontrei
671 mil referências. Só de artigos acadêmicos a
respeito, 5.120. “Educação inclusiva” dá 262 mil
respostas. Experimente clicar agora “Educar-se é
dever de cada um”: nenhum resultado. “Educar-se é
dever de todos”: nenhum resultado. “Educar-se é
dever do cidadão”: nenhum resultado.
Isso basta para explicar por que os estudantes
brasileiros tiram sempre os últimos lugares nos testes
internacionais. A ideia de que educar-se seja um
dever jamais parece ter ocorrido às mentes
iluminadas que orientam (ou desorientam) a
formação (ou deformação) das mentes das nossas
crianças.
Eis também a razão pela qual, quando meus
filhos me perguntavam por que tinham de ir para a
escola, eu só conseguia lhes responder que se não
fizessem isso eu iria para a cadeia; que, portanto,
deveriam submeter-se àquele ritual absurdo por amor
ao seu velho pai. Jamais consegui encontrar outra
justificativa. Também lhes recomendei que só se
esforçassem o bastante para tirar as notas mínimas,
sem perder mais tempo com aquela bobagem. Se
quisessem adquirir cultura, que estudassem em casa,
sob a minha orientação. Tenho oito filhos. Nenhum
deles é inculto. Mas o mais erudito de todos, não por
coincidência, é aquele que frequentou escola por
menos tempo.
A ideia de que a educação é um direito é uma
das mais esquisitas que já passaram pela mente
humana. É só a repetição obsessiva que lhe dá alguma
credibilidade. Que é um direito, afinal? É uma
obrigação que alguém tem para com você. Amputado
da obrigação que impõe a um terceiro, o direito não
tem substância nenhuma. É como dizer que as
crianças têm direito à alimentação sem que ninguém
tenha a obrigação de alimentá-las. A palavra “direito”
é apenas um modo eufemístico de designar a
obrigação dos outros.
Os outros, no caso, são as pessoas e instituições
nominalmente incumbidas de “dar” educação aos
brasileiros: professores, pedagogos, ministros,
intelectuais e uma multidão de burocratas. Quando
essas criaturas dizem que você tem direito à
educação, estão apenas enunciando uma obrigação
que incumbe a elas próprias. Por que, então, fazem
disso uma campanha publicitária? Por que publicam
anúncios que logicamente só devem ser lidos por elas
mesmas? Será que até para se convencer das suas
próprias obrigações elas têm de gastar dinheiro do
governo? Ou são tão preguiçosas que precisam incitar
a população para que as pressione a cumprir seu
dever? Cada tostão gasto em campanhas desse tipo é
um absurdo e um crime.
Mais ainda, a experiência universal dos
educadores genuínos prova que o sujeito ativo do
processo educacional é o estudante, não o professor,
o diretor da escola ou toda a burocracia estatal
reunida. Ninguém pode “dar” educação a ninguém.
Educação é uma conquista pessoal, e só se obtém
quando o impulso para ela é sincero, vem do fundo
da alma e não de uma obrigação imposta de fora.
Ninguém se educa contra a sua própria vontade, no
mínimo porque estudar requer concentração, e
pressão de fora é o contrário da concentração. O
máximo que um estudante pode receber de fora são
os meios e a oportunidade de educar-se. Mas isso não
servirá para nada se ele não estiver motivado a buscar
conhecimento. Gritar no ouvido dele que a educação
é um direito seu só o impele a cobrar tudo dos outros
– do Estado, da sociedade – e nada de si mesmo.
Se há uma coisa óbvia na cultura brasileira, é o
desprezo pelo conhecimento e a concomitante
veneração pelos títulos e diplomas que dão acesso aos
bons empregos. Isso é uma constante que vem do
tempo do Império e já foi abundantemente
documentada na nossa literatura. Nessas condições,
campanhas publicitárias que enfatizem a educação
como um direito a ser cobrado e não como uma
obrigação a ser cumprida pelo próprio destinatário da
campanha têm um efeito corruptor quase tão grave
quanto o do tráfico de drogas. Elas incitam as pessoas
a esperar que o governo lhes dê a ferramenta mágica
para subir na vida sem que isto implique, da parte
delas, nenhum amor aos estudos, e sim apenas o
desejo do diploma.
Da mediocridade obrigatória
Olavo de Carvalho

Folha de São Paulo, 25 de agosto de 2014

“Admirar sempre moderadamente é sinal de


mediocridade”, ensinava Leibniz. Uma das
constantes da mentalidade nacional é precisamente o
temor de admirar, a necessidade de moderar o elogio
– ou mesmo entremeá-lo de críticas – para não passar
por adulador e idólatra.
Já mencionei esse vício em outros artigos,
assinalando que ele resulta em consagrar a
mediocridade como um dever e um mérito – às vezes,
a condição indispensável do prestígio e do respeito.
Entretanto, não é um vício isolado. Vem com
pelo menos mais dois, que o prolongam e consolidam.
O primeiro é este: ao contrário do elogio, a
crítica, a detração e até mesmo a difamação pura e
simples não exigem nem admitem limite algum, nem
precisam de justificação: é direito incondicional do
cidadão atribuir ao seu próximo todos os defeitos,
pecados e crimes reais ou imaginários, ou então
simplesmente condená-lo ao inferno por lhe faltar
alguma perfeição divina supostamente abundante na
pessoa do crítico. Esse vício faz do efeito Dunning-
Kruger (incapacidade de comparar objetivamente os
próprios dons com os alheios) mais que uma endemia,
uma obrigação.
O segundo é talvez o mais grave: na mesma
medida em que se depreciam os méritos de quem os
tem, exaltam-se até o sétimo céu aqueles de quem não
tem nenhum. O mecanismo é simples: se as altas
qualidades excitam a inveja e o despeito, a
mediocridade e a incompetência infundem no
observador uma reconfortante sensação de alívio, a
secreta alegria de saber que o elogiado não é de
maneira alguma melhor que ele.
A compulsão de enaltecer virtudes inexistentes
torna-se uma modalidade socialmente aprovada de
autoelogio.
Da pura depreciação de méritos reais passa-se
assim à completa inversão do senso de valores, onde
a mais alta virtude consiste precisamente em não ser
melhor que ninguém.
Essa inversão já era bem conhecida desde a
Teoria do Medalhão, de Machado de Assis, e as sátiras
de Lima Barreto. Mas nas últimas décadas foi levada
às suas últimas consequências, na medida em que a
esquerda ascendente, ávida de autoglorificar-se e
depreciar tudo o mais, precisava desesperadamente
de heróis, santos e gênios postiços para repovoar o
imaginário popular esvaziado pela “crítica radical de
tudo quanto existe” (expressão de Karl Marx).
A lista de mediocridades laureadas começa nos
anos 60 com o presidente João Goulart, o arcebispo
Dom Hélder Câmara, o almirante Cândido Aragão, o
criador das Ligas Camponesas – Francisco Julião –, o
doutrinador comunista Paulo Freire e toda uma
plêiade de coitados, erguidos de improviso à
condição de “heróis do povo” e incapazes de oferecer
qualquer resistência ao golpe militar que os pôs em
fuga sem disparar um só tiro.
Nas décadas seguintes, o insignificante cardeal
Dom Paulo Evaristo Arns transfigurou-se num novo
S. Francisco de Assis por fazer da Praça da Sé um
abrigo de delinquentes; o sr. Herbert de Souza, o
Betinho, por ter tido a ideia maliciosa de transformar
as instituições de caridade em órgãos auxiliares da
propaganda comunista, foi proposto pela revista
Veja, sem aparente intenção humorística, como
candidato à beatificação; e o sr. Lula da Silva, sem ter
trabalhado mais de umas poucas semanas, foi elevado
ao estatuto de Trabalhador Arquetípico, preparando
sua eleição à Presidência da República e a pletora de
títulos de doutor honoris causa que consagraram o
seu orgulhoso analfabetismo como um modelo
superior de ciência.
Nesse ínterim, é claro, a produção de obras
literárias significativas reduziu-se a zero, milhares de
indivíduos incapazes de conjugar um verbo
tornaram-se professores catedráticos, as citações de
trabalhos científicos brasileiros na bibliografia
internacional foram se reduzindo até desaparecer e o
número de analfabetos funcionais entre os estudantes
universitários subiu a quase 50%.
Não por acaso os alunos das nossas escolas
secundárias começaram a tirar sistematicamente os
últimos lugares nos testes internacionais, ficando
abaixo de seus colegas da Zâmbia e do Paraguai –
resultado que um ministro da Educação achou até
reconfortante, pois, segundo ele, “poderia ter sido
pior” (até hoje ninguém sabe o que ele quis dizer com
isso).
A devastação geral da inteligência lesou até
alguns cérebros que poderiam ter dado exemplos de
imunidade à estupidez crescente. Nos anos que se
seguiram ao golpe de 1964, os partidos comunistas
conseguiram cooptar, sob o pretexto de “luta pela
democracia”, vários intelectuais até então cristãos e
conservadores, que, travados pelo senso das
conveniências imediatas, foram então perdendo seus
talentos até chegar à quase completa esterilidade.
Desse período em diante, Otto Maria Carpeaux
nada mais escreveu que se comparasse à História da
Literatura Ocidental (1947) ou aos ensaios de A Cinza
do Purgatório (1942) e Origens e Fins (1943); Ariano
Suassuna nunca mais repetiu os “tours de force” do
Auto da Compadecida (1955) e de A Pena e a Lei
(1959). Alceu Amoroso Lima deixou de ser o filósofo
de O Existencialismo e Outros Mitos do Nosso Tempo
(1951) e de Meditações sobre o Mundo Interior (1953),
para tornar-se “poster man” da esquerda e garoto-
propaganda do ridículo Hélder Câmara.
Nada disso foi coincidência. A total
subordinação da cultura superior aos interesses do
Partido é objetivo explícito e declarado da estratégia
de Antonio Gramsci, um sagui intelectual que se
tornou, entre os anos 60 e 90 do século passado, o
guru máximo das consciências e o autor mais citado
em teses acadêmicas no Brasil.
Comparados aos feitos da esquerda no campo
da educação e da cultura, o Mensalão, o dinheiro na
cueca e a roubalheira na Petrobras recobrem-se até de
uma aura de santidade.
Textos extraídos do perfil de André Lisboa, professor
de Filosofia, sócio-fundador do Instituto Valor e
Verdade, jornalista e editor, no site
https://institutovaloreverdade.org.

P.S.: Os textos abaixo foram incluídos por Darlleson


Oliveira, leitor, estudante de engenharia civil, mas
com um interesse incontrolável por filosofia.

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