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farol

SOBRE FOTOS DE FOTOS: EXPERIÊNCIAS AFETIVAS E


ALGUNS QUESTIONAMENTOS DE GÊNERO PRESENTES NA
ICONOGRAFIA VERNACULAR ESGARÇADA (E REFOTOGRAFADA)
PELA OBRA DE THAISA FIGUEIREDO

ABOUT P”OTOS OF P”OTOS AFFêèTIVê ê(PêRIêNèêS ANé


SOMê QUêSTIONS OF “êNéêR , PRêSêNTS IN T”ê VêRNAèULAR
IèONO“RAP”), FRA)êé ANé RêP”OTO“RAP”êé B) T”AISA
FI“UêIRêéO’S WORK

Isabella Valle
DECOM-UFPB

Resumo: Por muito tempo, a ”ist ria da ’otoîraia, majoritariamente escrita por homens sobre ho-
mens e para homens, considerou enquanto documentos hist ricos aquelas íotoîraias produzidas
na esíera do p blico e do proissional. ’ot îraíos de îuerra, íotojornalistas, íot îraíos de rua, de via-
îens íoram eles que constru ram a mem ria coletiva, nosso repert rio iconoîráico social. Pouco se
atentou às quest es do mundo privado. Pouco se valorizou aquelas imaîens vernaculares íeitas por
mulheres sobre mulheres e para mulheres. ‘ste texto se instala, justamente, neste questionamento a
respeito da construção da hist ria por meio de íotos e da íotoîraia.

Palavras-chave ”ist ria, î nero, documento, íotoîraia vernacular..

Abstract: For a long time, the ”istory of Photography, mostly written by men for men and about men,
considered as historical documents photographs produced in the public and professional environments.
War photographers, photojournalists, street photographers, travel photographers they were the ones
who built the collective memory, our social iconographic repertoire. Limited attention was given to pri-
vate world issues. There was l restricted appreciation for original images made by women about women
and for women. This paper lays, precisely, on the questioning about the development of history through
photos and photography.
.
Keywords ”istory, gender, document, photography vernacular..

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A cada vez realiza-se um registro, seja para qual pertencem Lady ”awarden ou Julia Mar-
recebê-lo como se fosse uma relíquia do pas- garet Cameron. Ela vem, assim, a se unir, como
sado ou de um ser, seja para criticá-lo, seja nos mostram os álbuns de família lindamente
para brincar com ele, seja para desfrutar dele
decorados, à aquarela e ao desenho, no hall dos
formalmente, seja para fazer o imaginário tra-
balhar, seja para se abrir às outras artes, seja lazeres femininos”5.
para se debruçar sobre si mesmo. Associar o íazer íotoîráico às mulheres en-
François Soulages1 volve historicamente uma relação com: uma
prática amadora, não proissional, realizada no
Mulheres, fotograia de família e memória lar, como um passatempo, uma distração; uma
Quando éaîu rre2 lançou na França o seu experi ncia artesanal, manual, delicada, que
invento, rapidamente patenteado e comerciali- lembra os afazeres domésticos, como a culi-
zado, airmando que “este pequeno trabalho”, nária ou a costura; uma atividade sem muitas
a daîuerreotipia, ou seja, a íotoîraia, poderá complicações técnicas, ou seja, relativamente
aîradar bastante às mulheres 3, era uma forma íácil de íazer e que a princ pio não exiîiria com-
de introduzir o novo dispositivo também no âm- petências muito elaboradas (já que a inteligên-
bito do doméstico, para além dos usos públicos cia das mulheres era subestimada).
e proissionais tão historicamente reservados Assim, quando a ‘astman-Kodak lançou as
aos homens). “Uma associação foi então rapi- primeiras câmeras íotoîráicas automáticas e
damente imposta entre a nova técnica e as qua- mais compactas, de manuseio ainda mais facili-
lidades tradicionais atribu das ao sexo íeminino tado, as mulheres passaram a ser intensamente
(habilidade manual, delicadeza, senso de deta- reairmadas como p blico-alvo de um merca-
lhe, paci ncia, etc. . Mas ela apenas transp s a do direcionado para a prática íotoîráica ver-
divisão natural dos pap is de homens e mu- nacular. É com as campanhas publicitárias da
lheres para a ind stria íotoîráica nascente . empresa sobre as mulheres, lançando em 1893
Tais papéis, que, dentro da cultura patriarcal, a Kodak “irl, que atrela a imagem libertária da
reairmam a mulher no luîar de íraîilidade, de- íot îraía à de tradicional mantenedora da me-
pend ncia e dedicação total à íam lia. mória familiar e de consumidoras promissoras.
Na Grã-Bretanha inicialmente não foi tão di- Esta aparente emancipação é logo desmas-
ferente. Logo quando Talbot publicou The Pencil carada: a prática, agora instantânea, foi basica-
of Nature - , a íotoîraia íoi, então, mente considerada a vitória do progresso e da
tomada como digna de ser praticada, como técnica baseada na suposta incompetência e
hobby, pelas mulheres desta boa sociedade, à supericialidade íemininas6.

1 François Soulages, Estética da fotografia: perda e perma-


nência, São Paulo, Editora Senac, 2010, p. 326
2 Louis Jacques Mandé Daguerre. Daguerréotype, Paris,
1838.
3 Todos os textos em língua estrangeira citados aqui foram
traduzidos ao português pela autora deste artigo.
Thomas “aliíot, La íemme photoîraphe n existe pas
encore positivement en ’rance ...’emmes, í minité et pho- 5 éominique de ’ont-R aulx, O sont les íemmes photoîra-
tographie dans le discours français au XIXe si cle et au d but phes ? Femmes photographes françaises au milieu du XIXe
du XXe si cle , in Qui a peur des femmes photographes ? si cle , in Qui a peur des femmes photographes ? ibid., p. 55.
Paris, mus es d Orsay et de l Oranîerie, , p. 35. 6 Thomas Galifot, op. cit., p. .

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Figura 1: Peça
publicitária da
Kodak no Brasil,
1920

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Louis Gastine7 sentencia às mulheres, a partir Talbot, o calótipo, surgiu uma prática chamada
do “acesso” que lhes é oferecido por meio da fo- “álbuns de mulheres”, que não se tratavam de
toîraia instantânea muito mais às mulheres scrapbooks privados ou sentimentais, mas de
do que aos homens que a íotoîraia amadora álbuns a serem partilhados de forma comunitá-
conv m . O autor diz ainda que tal íotoîraia ía- ria, baseada na ainidade da troca de poemas,
miliar seria ótima para a economia do lar, pois desenhos e íotoîraias, entre mulheres da po-
distrai as mulheres, o que favorece a “tranquili- ca d cada de . ‘sses álbuns criaram uma
dade” dos pais e dos maridos. esp cie de rede íeminina de íotoîraia e virou
Albert Reyner, em , ironiza sarcastica- um tipo de distração visual comum na corte in-
mente a inserção das mulheres nos laborató- glesa e também nas casas burguesas.
rios: “muito melhor do que nós poderíamos Era também na esfera dessa prática vernacu-
fazer, a mulher saberá colocar ordem no labora- lar que as mulheres poderiam experimentar a
t rio, veriicar a limpeza dos aparelhos. ‘m vez linîuaîem e a t cnica íotoîráica. Vale destacar
de uma classiicação racional baseada nas pro- que a própria Constance Talbot (esposa do su-
priedades ou na natureza dos produtos, talvez pracitado ”enry , em seu álbum, usou um pa-
veremos uma classiicação sim trica com base pel íotoîráico inventado por seu marido para
no tamanho dos frascos”8. Ele também catego- reproduzir versos escritos à mão por Thomas
riza as íotoîraias de mulheres em dois interes- Moore. Os poemas íoram copiados íotoîraica-
ses: um lado sentimental (para registrar a vida mente (em papel quimicamente sensibilizado,
dos ilhos, um bordado, um buqu de lores, sem uso de câmera por ela. Um experimento
etc.) e um lado utilitário (decorar a casa). bastante oriîinal para reprodução de texto, que
Os primeiros concursos de íotoîraia exclu- alia a intimidade do manuscrito com as potên-
sivos para mulheres (já que essas eram impe- cias de diíusão da c pia íotoîráica10.
didas de participar de concursos ditos gerais, Por muito tempo, a ”ist ria da ’otoîraia,
ou seja, de homens) têm como mote o mundo majoritariamente escrita por homens sobre
doméstico: “o arsenal de temas desenvolvidos homens e para homens, considerou enquanto
para elas apenas valorizavam seus papéis tra- documentos hist ricos aquelas íotoîraias pro-
dicionais de mãe, esposa e dona de casa. [...] O duzidas na esíera do p blico e do proissional.
concurso de 1896 tinha dois prêmios especiais: Fotógrafos de guerra, fotojornalistas, fotógrafos
para a melhor cena entre beb s e para o menu de rua, de viagens: foram eles que construíram
íotoîráico mais bonito 9. a memória coletiva, nosso repertório icono-
Por sermos impedidas de ocupar as esferas îráico social. Pouco se atentou às quest es
públicas, nos tornamos fotógrafas de família do mundo privado. Pouco se valorizou aquelas
por excel ncia, verdadeiras documentaristas imagens vernaculares feitas por mulheres sobre
do mundo privado. Na Grã-Bretanha, com a mulheres e para mulheres.
já mencionada invenção íotoîráica de ”enry Sendo a própria história revisitada e reescri-
ta constantemente, as pesquisas contemporâ-
7 Louis Gastine, “Le concours de photographie des dames neas vêm questionando esse lugar. A palavra
français”, in La Photographie française, Paris, de abril
, p. . 10 Patrizia Di Bello, “Femmes et photographies en Grande
8 Apud Thomas Galifot, op. cit., p. . -Bretagne (1839-1870) : de la marge à l avant-îarde , in Qui a
9 Thomas Galifot, Ibid., pp. - . peur des femmes photographes ?, op. cit., p. 66

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documento vem do latim docere, que siîniica de vista sobre as íotoîraias vernaculares dos
ensinar, demonstrar. Não há neutralidade no séculos passados, através de fotos de fotos,
documento, ao contrário, ele orienta. Permitir nos localizamos na discussão da construção da
essa orientação, ao olhar para o documento en- própria memória coletiva, que, segundo o autor,
quanto tal, ao estabelecer algo como documen- recompõe o passado.
to mesmo, é o que nos esforçamos a fazer ao São as nossas memórias presentes e individu-
tratarmos de memória coletiva questionando ais que reforçam a possibilidade de elaboração
a iconoîraia íamiliar. ‘stamos olhando para o de uma memória coletiva:
mundo do privado, do doméstico, esse mundo
que tanto fala das histórias das mulheres, e per- Para que a nossa memória se aproveite da
mitindo que ele nos ensine. memória dos outros, não basta que estes
nos apresentem seus testemunhos: também
éocumento, mem ria e íotoîraia se articu-
preciso que ela não tenha deixado de con-
lam. “A nível ontológico, a memória e a fotogra-
cordar com as mem rias deles e que existam
ia íuncionam de maneira parecida, trazendo ao muitos pontos de contato entre uma e outras
presente as imagens do passado de um modo para que a lembrança que nos fazem recor-
visual. Uma, a memória, o faz de modo mental dar venha a ser reconstituída sobre uma base
enquanto que outra, a foto, o faz de modo ma- comum.13

terial”11.
Boris Kossoy12 diz que, assim como a memó- Geralmente nossas impressões pessoais es-
ria, a íotoîraia possui uma realidade pr pria , tão no luxo das diversas correntes do pensa-
diferente da realidade que envolveu o objeto re- mento coletivo, dos grupos de que participa-
ferente no momento do registro. Seria uma se- mos. Apenas percebemos a nossa relação com
gunda realidade, a realidade de representação, a vida histórica depois de um tempo, quando a
de documento, constru da, codiicada, atraente, própria história é estabelecida e conseguimos
o elo material do tempo e do espaço represen- relacionar o que vivemos, os nossos marcado-
tado, do passado. res sociais, com as memórias gerais que esco-
Maurice ”albwachs , deíende que a lheram estabelecer posteriormente.
memória dita histórica, que cria um passado O passado deixa vest îios na vida presente
reinventado conforme certos interesses, não imagens, lugares, hábitos e ideias são mantidos
necessariamente coincide com a memória cole- e repetidos pelas pessoas na sociedade. A
tiva. Na verdade, para ele, a expressão mem - história vivida estabelecida é diferente da
ria histórica” seria uma verdadeira contradição, história viva da memória, pois ela constrói um
já que memória e história seriam, para o autor, panorama ativo e natural em que conservamos
conceitos que se excluem. ‘nquanto a hist ria e reencontramos a imagem do passado.
cristaliza e busca a permanência, a memória Lembrar, para ”albwachs, reconstruir o
traz mudanças de perspectivas e relativismos. passado de dados tomados de empréstimo ao
Aqui, ao estudarmos tais mudanças de pontos presente e preparados por outras reconstru-
ções feitas em épocas anteriores e de onde a
11 Laura González Flores, Fotografía y pintura: ¿dos medios
diferentes? Barcelona, ‘ditorial “ustavo “ili, , p. .
12 Boris Kossoy, Realidades e ficções na trama fotográfica, 13 Maurice ”albwachs, A memória coletiva, São Paulo,
São Paulo, Ateliê Editorial, 2002, p. 22. Centauro, 2006, p. 39.

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imagem de outrora já saiu bastante alterada” . trado em ’otoîraia Art stica e èontemporânea,
Assim, através da memória temos contato na EFTI, em Madri (Espanha), quando começou
com antigas impressões. A lembrança soma a a trabalhar com tais arquivos e imagens do seu
elas as narrativas, testemunhos e conid ncias acervo familiar. Enquanto a avó mantinha laços
dos outros para construir nossa ideia de passa- afetivos diretos com as pessoas retratadas nas
do. ”albwachs diz que não há lembrança se não imaîens îuardadas, Thaisa expandiu a coleção
há impressão guardada de algo que aconteceu.
Pode haver recordação, diz ele, a partir do que ‘u iz o mestrado e lá eu comecei a íazer um
nos contam dos eventos de que participamos, trabalho de apropriação com imagens de
família. Parti do arquivo da minha avó. Mas,
mas não lembranças.
durante o mestrado mesmo, eu entendi que
Assim, íotoîraias são lembranças. Se as
esse arquivo familiar é de certa forma univer-
antiîas íotoîraias de íam lia são base para a sal. E que a gente tem uma memória desse
construção de uma memória coletiva situada arquivo familiar que é muito parecida. Tem
sobretudo no âmbito da vida privada, muito os mesmos ritos representados, as mesmas
culturalmente consolidada, as íotoîraias des- formas de representação. Então, quando eu
entendi isso, eu disse: “eu posso me apro-
sas íotoîraias reconstroem e permitem-nos
priar da foto de qualquer pessoa”. Eu me
reconstruir memórias no presente. Refazer a reconheço nessas memórias de certa forma,
história. são memórias coletivas e que são construí-
As mulheres se tornam, então, iîuras-chave das nesses álbuns familiares. Já no mestra-
nesse movimento de autocompreensão e de do eu comecei a misturar as fotos do meu
arquivo com fotos que eu comprava em casa
elaboração de uma memória de si próprias en-
de sebo, no mercado informal, etc. Eu, olhan-
quanto grupo: escritoras (mesmo que não assi-
do esses arquivos, comecei a me perguntar:
nem suas obras), personagens e leitoras, nesse “como é que a gente está construindo essa
campo de exploração da íotoîraia vernacular. memória universal compartilhada? Como é
que a gente está se representando?” Porque
Thaisa Figueiredo: colecionadora, articula- é um arquivo que é feito por nós mesmos de
forma muito espontânea. Não é um fotógra-
dora, fotógrafa
fo de publicidade que está construindo em
Thaisa Figueiredo nasceu em 1988 na peque- cima do corpo. São as nossas representa-
na cidade de Custódia, sertão pernambucano. E ções corriqueiras, em relação aos papéis que
foi em casa, a partir dos laços entre duas mulhe- se imprimem ali, de uma forma quase sem
res da família – ela e sua avó –, que iniciou-se iltro, porque são tão naturalizadas!15
grande parte do seu trabalho como fotógrafa.
Thaisa herdou da sua avó um tesouro: uma Segundo ela, o que a leva a fotografar é “o
vasta coleção de fotos antigas. São fotos de sua questionamento daquilo que já foi construído
própria família, das famílias de amigas de sua em imagens, o que está comumente aceito”. As-
avó, de parentes distantes. São tanto álbuns sim, o trabalho da fotógrafa consiste na revisão
como íotoîraias soltas. ée x a postais. ’otos da memória histórica, a partir da sua coleção.
do âmbito do doméstico, fotos vernaculares. De fotos de fotos.
Publicitária de formação, a fotógrafa fez mes-
15 Todos os depoimentos de Thaisa Figueiredo foram
obtidos através de entrevistas com a mesma realizadas pela
Ibid., p. 91. autora deste artigo.

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Figura 2: Acervo
de Thaisa Figuei-
redo, álbum de
família

impressão de que é um álbum de uma fo-


Na obra de Thaisa Figueiredo, como era de se tógrafa. Porque tem um autorretrato dela.
esperar dentro de um acervo composto por fo- Tem ela com uma câmera, sabe? De frente
toîraias da vida privada, as quest es de î nero para um espelho. Desde 2012 que eu compro
aparecem quase que de maneira inevitável. imagens, mas foi a primeira vez que eu vi um
autorretrato de uma mulher. Tem fotos muito
éiíerentemente das íotoîraias proissionais
lindas nesse álbum! Que não sei se são dela,
que circulam em meio público, todas devida- sabe? Mas eu já ico criando uma hist ria de
mente assinadas por seus fotógrafos, as foto- que ela uma super íot îraía! ‘ que aquilo
îraias de íam lia não possuem autoria identii- tudo dela, sabe? Tem coisas incr veis! Uma
cada. É um desaio para Thaisa tentar identiicar varanda, ela e duas amigas. Aí, depois, tem
s as amiîas. A , tem as amiîas e os ilhos.
quem pode ter fotografado as imagens que
Parece que ela que estava fazendo esse jogo,
compõem aqueles álbuns que ela tem em mãos.
sabe? Eu estou lidando com ele ainda, por-
Em suas pesquisas, ela se deparou, em um que é um álbum bem grande.
dos álbuns, com pistas que podem levá-la a
identiicar a autoria das imaîens dois autorre-
tratos. A fotógrafa que assina tal álbum é prova- Tirar do anonimato um álbum como este visto
velmente uma mulher. abaixo pode íalar muito sobre esta poss vel ío-
tógrafa e sobre o seu entorno, como aconteceu
Recentemente, em Porto Alegre, eu comprei com Vivian Maier. Pode promover visibilidade
um álbum bem grande, com o qual, inclusi- a alguém que nunca veio a público. Pode for-
ve, eu ainda estou lidando. Mas eu tenho a talecer a presença das mulheres na história da

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Figura 3: Vivian
Maier, Autorretra-
to,

íotoîraia. Pode muito. O trabalho de pesquisa por acidente, em 2007, por um jovem corretor
íotoîráica de Thaisa se tornou, por si s , um de imóveis que passeava por feiras de antigui-
projeto político. dades, a obra de Maier se tornou frisson no meio
Ao revisitarmos esses álbuns enquanto do- artístico. Comprada despretensiosamente por
cumentos, com foco no questionamento de quatrocentos d lares, uma caixa com trinta mil
nossas memórias coletivas a partir do âmbito neîativos, mil e seiscentos rolos de ilmes não
do doméstico, revisitamos também o emudeci- revelados, surpreendeu o meio íotoîráico por
mento, a invisibilidade de incontáveis fotógrafas mostrar um verdadeiro panorama da vida no-
mulheres, e de suas íotoîraias, que nunca vie- va-iorquina dos anos 1950 e 1960. Documentos.
ram a público enquanto obra ao longo da his- ‘ntre as suas íotoîraias, centenas de autorre-
tória. tratos. Apenas em 2009 seu acervo veio a públi-
Vivian Maier o exemplo provavelmente mais co, mas Vivian morreu no mesmo ano, aos oi-
conhecido na contemporaneidade. Descoberta tenta e três anos (soube-se depois), sem nunca

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ter sido reconhecida em vida. Vivian era babá. dissolvem e as marcas sociais se imprimem qua-
Além de fotografar crianças – principalmente as se que espontaneamente.
de que ela cuidava –, mulheres – de senhoras O trabalho íotoîráico de Thaisa arqueol -
pomposas a íreiras –, b bados e outras iîuras îico. ‘m uma íotoîraia, por exemplo, vemos
emblemáticas, ela se fotografava e também três pessoas sobre uma escada: duas mulhe-
íotoîraíava sua pr pria sombra e relexo. éocu- res e, ao centro, entre elas e um degrau acima,
mentos que nos ensinam e que desestabilizam um homem. Outra imagem mostra uma moça
o que foi estabelecido como História. sentada em uma poltrona, em cujo braço sen-
As questões de gênero analisadas no acervo ta-se um moço, que envolve a tal mulher com
de Thaisa, segundo ela mesma, estão comple- o seu próprio braço. Sutilmente delimitando um
tamente vinculadas a suas experi ncias aíetivas espaço visual. Para Thaisa, deliberadamente
em relação à iconoîraia íamiliar que ela passou demarcando um território. A fotógrafa, então,
a acessar. cirurgicamente, com uma pinça, arranca esses
”albwachs16 diz que as nossas lembranças homens das imaîens. Ali, resta a textura do
inluenciam diretamente as percepç es que te- papel. E o que era uma sutileza se torna uma
mos no presente, que por sua parte inluenciam camada clara e exposta de outros pap is, aque-
o que serão nossas memórias. Ao lembrarmos les de gênero, que, para a artista, fazem parte
coletivamente é possível construir lembranças de uma dinâmica opressora, presente na vida
comuns a vários (ou mesmo a todos) os mem- das mulheres e em uma vasta iconoîraia do-
bros de um îrupo, apesar de existirem certas di- méstica, que agora saltam nesta obra, não por
vergências. Assim, quanto mais impressões for- acaso denominada Feridas (2015). É isso que
marem a base de nossa lembrança, mais exata nos apresentado pelas novas íotoîraias das
será nossa recordação coletiva, pois a base será antiîas íotoîraias íotoîraias sem homens.
mantida pelo maior número de pessoas. É essa Ou melhor íotoîraias em que a presença dos
visão ampla, partilhada, e encontrada não só no homens é quase que fantasmagórica (como
grande arquivo da fotógrafa, mas em suas obras tantos autores colocaram a íotoîraia na ordem
refotografadas, que fabrica e refabrica a memó- do fantasma...).
ria coletiva de muitas mulheres, por exemplo. Os gestos opressores da imagem são signi-
”albwachs deíende, ainda na mesma obra, icados pelo îesto pol tico-est tico de Thaisa,
que, quando várias correntes sociais se encon- que, ao apropriar-se das imagens, performa
tram em nossa consciência, surgem o que ele íotoîraicamente. ”á uma íabricação e um
chama de “intuições sensíveis”, que não estão questionamento do discurso de gênero a partir
ligadas totalmente a um ou outro grupo, mas do discurso visual presente nas imagens de
a nós mesmos, como forma de estados indivi- sua coleção, articulados pela intuição sensível.
duais. Foram as intuições sensíveis de Thaisa, Quando pergunto como a série surgiu, ela me
os afetos e sua condição enquanto mulher que responde: “eu acho que estava lendo Butler17 e,
a levam a grande parte do desenvolvimento de em algum momento, ela fala sobre construção
sua obra. Álbuns de família são produções ama- do papel feminino. Aí eu peguei as fotos, abri e
doras. Nelas, intencionalidades estratégicas se
17 Judith Butler uma il soía norte-americana, reíer ncia
nas pesquisas contemporâneas sobre feminismo, teoria
16 Maurice ”albwachs, op. cit. queer e política.

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’iîura Thai-
sa Figueiredo,
Feridas, 2015

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Figura 5: Thai-
sa Figueiredo,
Feridas, 2015

Figura 6:
Georgiana Lou-
isa Berkeley,
fotocolagens
da família
Cavendish
(1866-1871).
Acervo: Paris,
Mus e é Orsay

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Figura 7: Georgia-
na Louisa Berke-
ley, íotocolaîens
da família Caven-
dish (1866-1871).
Acervo: Paris,
Mus e é Orsay

pensei está tudo aqui! . ro nas imagens. Elas interrogam a feminilidade


Feridas pode nos remeter aos tais “álbuns de e seus papéis.
mulheres”, que citei anteriormente, produzidos
na Grã-Bretanha, no século XIX, plenos de fo- Sobre fotos de fotos
tocolaîens e de uma complexidade simb lica É falando sobre registro que François Sou-
imagética que rende análises elaboradas sobre lages disserta sobre “arte ao quadrado18”. Ao
o lugar da mulher na sociedade da época. analisar a obra de Tom érahos, o il soío diz
A vitoriana “eorîina Louisa Berkeley, por que a íotoîraia não se reduz à simples tomada
exemplo, usava de objetos, como um leque de imaîem no momento do ato íotoîráico, no
assess rio atribu do às mulheres , para dispor tempo do irrevers vel; o que precede esse mo-
isoladamente retratos recortados de membros mento e o que vem depois dele é pelo menos
da família. Ela também deslocava personagens igualmente importante, se não mais.”19
de outras íotoîraias para brincar de criar ho- No caso de Thaisa, é no inacabável trabalho
mens travestidos, por exemplo, com rostos de de apresentação das imagens que se instaura
iîuras conhecidas da sua poca. As identidades a arte. Assim como quando é fotografada uma
expostas nessas obras-documentos, tanto nos períormance ou uma instalação. Às vezes, a
de Thaisa como nos de Georgina, não é uma es-
18 Do francês art puissance deux, também traduzido como
sência, mas uma performance. Há uma fabrica-
arte à seîunda pot ncia N. do ‘.
ção e um questionamento do discurso do gêne- 19 François Soulages, op. cit. p.317.

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íotoîraia a pr pria obra, a inalidade da pr - leção, ela (re)elabora discursos, ela estabelece
pria períormance ou instalação. Às vezes, ela novos documentos, outras memória. Ela corta,
funciona como um vestígio, um documento, um ela rasîa, ela esîarça, ela reíaz. Ainal, o que
índice, algo que aponta e que luta contra o im- um vestígio?
percebível efêmero do que pode ser discutido a A íotoîraia oíerece um campo de possibili-
partir da performance ou da instalação. Quando dades semióticas e políticas. Sua estética e sua
íotoîraíamos íotoîraias, elevamos esta poten- ilosoia questiona a si mesma, suas práticas,
cia ao quadrado, criamos uma dupla camada de seus paradigmas, questionando também toda
siîniicação, um joîo. uma sociedade, suas práticas e seus paradig-
mas. A íotoîraia aliada à re-íotoîraia nos per-
A íotoîraia não s transíorma a recepção mite, enquanto lembrança legítima, reconstruir
de uma obra, mas, al m disso, aproxima as a memória coletiva, entendendo que não há
obras entre si e instaura vínculos onde até neutralidade nessa construção, mas um conjun-
então não existiam isso devido ao traba-
to de forças muito pungentes. São essas forças
lho do artista fotógrafo que tira as fotos e ao
daquele que as apresenta colocando-as em que operam hoje enfrentando outras tantas, de
relação de modo particular e interpretando opressão de gênero, que Thaisa Figueiredo evo-
-as segundo seu ponto de vista: ele as con- ca.
textualiza de modo diíerente.20

O que a coleção de Thaisa diz sobre a memó- Isabella Valle


ria coletiva, sem sua análise e intervenção, sem É fotógrafa, pesquisadora e professora doutora do De-
a articulação e as novas íotoîraias que ela nos partamento de Comunicação da Universidade Federal da
apresenta é completamente diferente do que Paraíba. Mestre em Comunicação e Semiótica pela Pontifícia
nos dirá a obra de Thaisa. Primeiro, reconhe- Universidade Católica de São Paulo, desenvolveu sua tese
ce-se o documento. Mas a performance está de doutorado no Programa de Pós-Graduação em Comuni-
no gesto da pinça. A obra está em (re)fotografar cação da Universidade Federal de Pernambuco a respeito
essas imagens (inter)feridas e uni-las enquanto das mulheres fotógrafas do Recife. Isabella foi pesquisadora
trabalho. ée simples instrumento, a íotoîraia convidada da Université Paris 8, onde realizou doutorado
tornou-se o lugar da criação, lugar a ser ques- sanduíche sob a orientação de François Soulages.
tionado – encontrando esse questionamento o
dos îrandes criadores da íotoîraia esta pode
assim ser tomada como objeto de sua própria
busca”21.
Man Ray íotoîraíava em preto e branco seus
próprios quadros e, segundo ele mesmo, um dia
chegou até “a destruir o original para conservar
somente sua reprodução”22. Thaisa não deixa de
destruir seus originais. Ela desmancha sua co-

20 Ibid., p. 327
21 Ibid., pp. 319-320
22 Apud Soulages, ibid., p. 320.

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