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RESENHA CRÍTICA DO FILME “LAVOURA ARCAICA”

JADE STOPPA PIRES


RA: 21086416

“Rico só é o homem que aprendeu, piedoso e humilde, a conviver com o


tempo, aproximando-se dele com ternura, não se rebelando contra seu curso,
brindando-o antes com sabedoria para receber dele os favores e não a sua ira.”
É com o sermão sobre o Tempo e a Paciência que se encerra o filme de estreia
de Luiz Fernando Carvalho.
Lançado em 2001 e baseado no romance homônimo de Raduan Nassar,
Lavoura Arcaica é uma obra que se distancia do cinema produzido à época no
Brasil, muito marcado por questões sociais e urbanas, retratando a periferia e as
questões concernentes à essa realidade, como explicam Ilana Feldman e Ismail
Xavier (2016), pesquisadores de cinema. Lavoura Arcaica, entretanto, aproxima-
se e mantém um diálogo íntimo e constante com a literatura e com o teatro,
sendo montado e produzido com aspectos barrocos e arcadistas, que permeiam
tantos os espaços físicos do filme quanto os espaços psicológicos e as relações
das personagens.
Narrado por André (Selton Mello), filho virulento e “profeta de si mesmo”,
o filme gira em torno das questões do tempo (paciência), da ordem tradicional e
da união da família. Dessa forma, a narrativa se desenrola num vai-e-vem do
tempo e também do espaço, marcando o embate exasperado entre a tradição e
o profano, a ordem e o afeto, a sobriedade e a loucura, onde o que parecia real
e sólido se mostra à beira do colapso e do desmoronamento. Tais
contraposições se dão de várias maneiras, por meio da narrativa e da
composição dos quadros, das imagens e dos sons, por exemplo, mas todas
marcadas pelo tabu da tradição, da terra e da união familiar.
A narrativa, a meu ver, ocorre de três formas distintas, sempre na primeira
pessoa e marcada por fortes aspectos teatrais e poéticos, desencadeando todo
tipo de sentimentos e sensações no espectador. Primeiramente, há o que vou
chamar de narrativa-diálogo, que consiste numa narrativa que retoma memórias
e impressões dentro de um diálogo, o qual se perde e se encontra em meio às
composições dos sons e das imagens; em segundo lugar, há as narrativas
propriamente ditas, encarnadas principalmente pelas exasperações e acessos
de André e pelos sermões do pai (Raul Cortez), a voz da ordem e da tradição;
por fim, chamo também de narrativa o silêncio e a refinada composição musical
desenvolvida por Marco Antônio Guimarães, que compõem a obra e a situam
num contexto específico, misturando-se e dando significado às imagens e às
personagens.
Além disso, o filme é também composto por diversos signos imagéticos e
suas relações, que suscitam ao mesmo tempo leveza e peso, familiaridade e
estranhamento, liberdade e clausura, mas, acima de tudo, perturbação e
inquietação constantes – porque mexem com ideias e ideais socialmente
estruturados, como o tabu do incesto –, ampliadas pelas composições
poderosas dos quadros juntamente com as narrativas.
A cena inicial já evidencia esse enquadramento diferente: o som do trem
acompanha os movimentos da aparente masturbação de André (aparente, pois
pode se tratar de um ataque epilético, como é visto mais à frente no filme), a
câmera ora focando no teto, ora no corpo convulso, ora no perfil delirante, todos
os focos marcados pelo intenso jogo de luz e sombra da fotografia ao mesmo
tempo forte e sensível de Walter Carvalho.
Há, entretanto, poucos elementos na composição dos quadros, tendendo
à rarefação, como é o caso das duas cenas em que a tela se torna
completamente branca, uma estabelecendo relação com a outra, pois se trata
da claridade que invade o ambiente, primeiro na pensão, quando Pedro
(Leonardo Medeiros) – que foi buscar o irmão fugido e doente –, pede para André
abrir as venezianas; segundo numa memória da casa na infância, sempre clara.
Essa claridade se contrapõe à escuridão do quarto de André na pensão e incita
sua revolta contra o rigor do pai, o afeto da mãe (Juliana Carneiro da Cunha) e
a sensualidade da irmã Ana (Simone Spoladore), justamente por faze-lo lembrar
da casa clara da qual fugiu e tudo o que ela traz consigo.
Esses signos imagéticos também evocam metáforas, sempre na
perspectiva de André, como é o caso de uma das cenas mais poéticas e
sensíveis do filme, quando o André menino, acometido de grande fé (religiosa e
na família), tem sua sombra projetada na parede do quarto, infla em sua leveza
pura e, como um balão, sente como se voasse até a igreja.
Outra forte metáfora ligada aos signos e à composição do quadro é a
disposição dos lugares à mesa de refeições, onde o pai é o centro e dele saem
dois ramos: o da direita, sóbrio e propagador das tradições; e o da esquerda,
ramo fraco marcado pelo afeto da mãe. Essa metáfora é ponto importante para
analisar a questão da dualidade tradição/transgressão da obra, ficando evidente
na narrativa os sentimentos de revolta e exasperação de André. Nesse âmbito,
uma das cenas mais fortes no espaço das refeições é quando o pai faz um
sermão sobre a união da família (após a fuga de André), marcando a questão da
paciência, enquanto a família se retira, fazendo presente o peso da ausência do
filho impaciente.
Outro ponto a ser analisado é a montagem não-linear do filme, na qual os
tempos e os lugares todos se misturam. Um exemplo é o conjunto de cenas onde
o amor incestuoso de André e Ana se consuma, numa montagem paralela que
evidencia uma metáfora da terra-natureza com a natureza perturbada e
agonizante de André: o André menino tenta capturar uma pomba branca,
enquanto o André adolescente observa Ana, o objeto de seu desejo; o André
menino captura a pomba e a toma em seu vasto jardim de afeto, enquanto o
André adolescente possui Ana em todo seu afeto profano, desconexo das
tradições e exalando transgressões – o que pode ser inferido nas reações
singelas, porém expressivas, de Ana. Nessas cenas, uma imagem completa a
outra e ambas se acrescem de significado.
Dessa forma, o filme – rico em termos técnicos e artísticos – corre entre
passados e um futuro indefinido, onde o ponto de vista é sempre o de André, a
marca da desordem e da loucura, do passional e da exasperação, da natureza
contra a regra. Seus ímpetos, ações e sentimentos servem para quebrar com
uma ordem vigente no seio da família, culminando com o trágico desfecho da
obra. O que é visto e o que não é visto (extracampo) fazem com que o espectador
seja obrigado a pensar e buscar novas imagens, sensações e sentimentos a
partir do exposto, passando por um trabalho intelectual e pessoal de reflexão
acerca de temas e questões como o tempo, a família e a quebra de certas
estruturas e noções socialmente construídas.

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