“Rico só é o homem que aprendeu, piedoso e humilde, a conviver com o
tempo, aproximando-se dele com ternura, não se rebelando contra seu curso, brindando-o antes com sabedoria para receber dele os favores e não a sua ira.” É com o sermão sobre o Tempo e a Paciência que se encerra o filme de estreia de Luiz Fernando Carvalho. Lançado em 2001 e baseado no romance homônimo de Raduan Nassar, Lavoura Arcaica é uma obra que se distancia do cinema produzido à época no Brasil, muito marcado por questões sociais e urbanas, retratando a periferia e as questões concernentes à essa realidade, como explicam Ilana Feldman e Ismail Xavier (2016), pesquisadores de cinema. Lavoura Arcaica, entretanto, aproxima- se e mantém um diálogo íntimo e constante com a literatura e com o teatro, sendo montado e produzido com aspectos barrocos e arcadistas, que permeiam tantos os espaços físicos do filme quanto os espaços psicológicos e as relações das personagens. Narrado por André (Selton Mello), filho virulento e “profeta de si mesmo”, o filme gira em torno das questões do tempo (paciência), da ordem tradicional e da união da família. Dessa forma, a narrativa se desenrola num vai-e-vem do tempo e também do espaço, marcando o embate exasperado entre a tradição e o profano, a ordem e o afeto, a sobriedade e a loucura, onde o que parecia real e sólido se mostra à beira do colapso e do desmoronamento. Tais contraposições se dão de várias maneiras, por meio da narrativa e da composição dos quadros, das imagens e dos sons, por exemplo, mas todas marcadas pelo tabu da tradição, da terra e da união familiar. A narrativa, a meu ver, ocorre de três formas distintas, sempre na primeira pessoa e marcada por fortes aspectos teatrais e poéticos, desencadeando todo tipo de sentimentos e sensações no espectador. Primeiramente, há o que vou chamar de narrativa-diálogo, que consiste numa narrativa que retoma memórias e impressões dentro de um diálogo, o qual se perde e se encontra em meio às composições dos sons e das imagens; em segundo lugar, há as narrativas propriamente ditas, encarnadas principalmente pelas exasperações e acessos de André e pelos sermões do pai (Raul Cortez), a voz da ordem e da tradição; por fim, chamo também de narrativa o silêncio e a refinada composição musical desenvolvida por Marco Antônio Guimarães, que compõem a obra e a situam num contexto específico, misturando-se e dando significado às imagens e às personagens. Além disso, o filme é também composto por diversos signos imagéticos e suas relações, que suscitam ao mesmo tempo leveza e peso, familiaridade e estranhamento, liberdade e clausura, mas, acima de tudo, perturbação e inquietação constantes – porque mexem com ideias e ideais socialmente estruturados, como o tabu do incesto –, ampliadas pelas composições poderosas dos quadros juntamente com as narrativas. A cena inicial já evidencia esse enquadramento diferente: o som do trem acompanha os movimentos da aparente masturbação de André (aparente, pois pode se tratar de um ataque epilético, como é visto mais à frente no filme), a câmera ora focando no teto, ora no corpo convulso, ora no perfil delirante, todos os focos marcados pelo intenso jogo de luz e sombra da fotografia ao mesmo tempo forte e sensível de Walter Carvalho. Há, entretanto, poucos elementos na composição dos quadros, tendendo à rarefação, como é o caso das duas cenas em que a tela se torna completamente branca, uma estabelecendo relação com a outra, pois se trata da claridade que invade o ambiente, primeiro na pensão, quando Pedro (Leonardo Medeiros) – que foi buscar o irmão fugido e doente –, pede para André abrir as venezianas; segundo numa memória da casa na infância, sempre clara. Essa claridade se contrapõe à escuridão do quarto de André na pensão e incita sua revolta contra o rigor do pai, o afeto da mãe (Juliana Carneiro da Cunha) e a sensualidade da irmã Ana (Simone Spoladore), justamente por faze-lo lembrar da casa clara da qual fugiu e tudo o que ela traz consigo. Esses signos imagéticos também evocam metáforas, sempre na perspectiva de André, como é o caso de uma das cenas mais poéticas e sensíveis do filme, quando o André menino, acometido de grande fé (religiosa e na família), tem sua sombra projetada na parede do quarto, infla em sua leveza pura e, como um balão, sente como se voasse até a igreja. Outra forte metáfora ligada aos signos e à composição do quadro é a disposição dos lugares à mesa de refeições, onde o pai é o centro e dele saem dois ramos: o da direita, sóbrio e propagador das tradições; e o da esquerda, ramo fraco marcado pelo afeto da mãe. Essa metáfora é ponto importante para analisar a questão da dualidade tradição/transgressão da obra, ficando evidente na narrativa os sentimentos de revolta e exasperação de André. Nesse âmbito, uma das cenas mais fortes no espaço das refeições é quando o pai faz um sermão sobre a união da família (após a fuga de André), marcando a questão da paciência, enquanto a família se retira, fazendo presente o peso da ausência do filho impaciente. Outro ponto a ser analisado é a montagem não-linear do filme, na qual os tempos e os lugares todos se misturam. Um exemplo é o conjunto de cenas onde o amor incestuoso de André e Ana se consuma, numa montagem paralela que evidencia uma metáfora da terra-natureza com a natureza perturbada e agonizante de André: o André menino tenta capturar uma pomba branca, enquanto o André adolescente observa Ana, o objeto de seu desejo; o André menino captura a pomba e a toma em seu vasto jardim de afeto, enquanto o André adolescente possui Ana em todo seu afeto profano, desconexo das tradições e exalando transgressões – o que pode ser inferido nas reações singelas, porém expressivas, de Ana. Nessas cenas, uma imagem completa a outra e ambas se acrescem de significado. Dessa forma, o filme – rico em termos técnicos e artísticos – corre entre passados e um futuro indefinido, onde o ponto de vista é sempre o de André, a marca da desordem e da loucura, do passional e da exasperação, da natureza contra a regra. Seus ímpetos, ações e sentimentos servem para quebrar com uma ordem vigente no seio da família, culminando com o trágico desfecho da obra. O que é visto e o que não é visto (extracampo) fazem com que o espectador seja obrigado a pensar e buscar novas imagens, sensações e sentimentos a partir do exposto, passando por um trabalho intelectual e pessoal de reflexão acerca de temas e questões como o tempo, a família e a quebra de certas estruturas e noções socialmente construídas.