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1

PEDRO MARCELO PASCHE DE CAMPOS

A CRUZ E A COROA
As Relações entre Inquisição e Estado em Portugal
(1750-1821)

Tese a pre se n tad a a o Cur s o d e Pó s - Grad u açã o


em Hi s t ória da U ni ver sid ad e Fed era l
Flum i ne nse , c om o re quis it o pa rcia l para
o bte nçã o d o Grau d e Do ut or . Á rea d e
Co nce n traçã o : H i st ór ia S oci al d a s Id e ia s .

Orientador: Profª. Drª Lana Lage da Gama Lima

NITERÓI

2001
2

Esteja V. ª certo que todas as vezes


que houver um tribunal privativo para
castigar certos crimes, sempre fará
criminosos

D. Luis da Cunha, Testamento


Político
3

ÍNDICE

INTRODUÇÃO 6

PARTE I: A INQUISIÇÃO PORTUGUESA: IMPLANTAÇÃO,

ESTRUTURA E CONTROLE SOCIAL 14

CAPÍTULO I: INQUISIDORES NAS TERRAS D’EL REY 15

A Implantação do Santo Ofício em Portugal e a questão judaica 15

A Entrada do Santo Ofício em Portugal: o processo de implantação 32

ª O Corpus Inquisitorial: as pessoas e a ordem 37

Difusão do Organismo Inquisitorial no Reino e nas Conquistas 65

CAPÍTULO 2: OS HOMENS E OS CARGOS: CARREIRAS IMBRICADAS

73

CAPÍTULO 3: AD MAJOREM DEI GLORIAM 91

As Marcas do poder 91

A Inquisição na Península Ibérica 93

A Repressão aos Desvios da Fé 100

Os Zeladores da Ortodoxia 101

O Santo Ofício Como Aparelho Normativo: uma outra face do processo

civilizador 105

O Estado Centralizado: afirmação e resistências 106

Reformas Religiosas e Normalização Social 110

A Praxis Inquisitorial: a serviço da transformação 115


4

PARTE II: A INQUISIÇÃO EM TEMPO DE REFORMAS 122

CAPÍTULO 4: O FIM DA VANGUARDA EM PORTUGAL 123

Glória e Morte do Humanismo Português 133

O Humanismo Português e a Era dos Descobrimentos 145

O Triunfo do Conservadorismo 149

O Colégio das Artes e a Companhia de Jesus 152

Portugal sob o Signo de Methwen: as raízes de uma Nova Dependência

160

CAPÍTULO 5: O CHANCELER DE FERRO E A CONSTRUÇÃO DO

ABSOLUTISMO PORTUGUÊS 169

Sebastião José e a “modernidade” 174

A Guerra Contra os Soldados de Cristo e Outras Campanhas Pomb alinas.

178

Um Portugal Adequado ao Concerto das Nações 187

A Herança: 188

CAPÍTULO 6: A INQUISIÇÃO SOB O SIGNO DO PODER 190

A Ilustração e o Reformismo Europeu no Século XVIII 193

A Inquisição e o Ideário Ilustrado 207

As Reformas Pombalinas e a transformação da Inquisição 211

Pela Razão de Estado: O Regimento de 1774 221

CONCLUSÃO 243

ANEXO I: Os Inquisidores Gerais portugueses 248


5

ANEXO II: Alvará que Concede ao Santo Ofício o estágio de Tribunal

Régio 251

ANEXO III — A Cronologia da Inquisição Portuguesa 254

BIBLIOGRAFIA 289
6

INTRODUÇÃO

E
ste trabalho nasceu de uma reflexão prévia, que teve

como fruto uma dissertação de mestrado, versando

sobre as relações entre Magia e Religião na terceira

visita inquisitorial ao Brasil, realizada no Estado do

Grão-Pará e Maranhão, entre 1763 e 1769.

Tal visita soava completamente estranha a todo

universo das visitas inquisitoriais ao Brasil, por vários motivos.

O primeiro deles dizia respeito à sua extemporaneidade:

tardiamente realizada na Segunda metade do século XVIII, tal

visita causava estranheza pelo fato ter ocorrido num momento

peculiar da história da Inquisição portuguesa que, já fazia um

século e meio, não lançava mão de tal expediente de controle.

O segundo dizia respeito à duração desta visita. O

período de atuação do Visitador foi extremamente longo, sendo

que ainda foram encontrados vestígios do Visitador Giraldo

José de Abranches em Belém, em 1772 — agora como vigário

capitular.

Por fim, tal visita intrigava pelos delitos nela

apresentados: quer nas confissões quer nas denúncias.

Contrariando as rotinas delituais das visitas pregressas, a visita

paraense apresentou grande quantidade de denúncias e

confissões relativas à prática de magia e curandeirismo. Ao


7

mergulhar no universo mágico paraense setecentista, nota -se o

caráter singular desta visita que, ainda contrariando as

diretrizes de ação do Santo Ofício luso, apresentou

pouquíssimas denúncias relativas a práticas judaicas por parte

dos cristãos-novos.

A visita paraense deixou importante lacuna

historiográfica, devido certamente à sua singularidade. As

possíveis explicações para sua realização acabavam por não

analisar o fato de que a Inquisição que realizou a visita já

estava submetida às diretrizes da política pombalina que, na

época, tinha voltado suas atenções para um redimensionamento

das relações entre Inquisição e Estado, e também se voltava

para a importância econômica e política do norte brasileiro no

âmbito das discussões das fronteiras com as possess ões

hispânicas e também na regulamentação da vida local após a

expulsão dos jesuítas, em 1758.

Foi então que a questão das relações entre a

Inquisição e o Estado português se mostraram como objeto de

estudo pertinente para uma pesquisa mais aprofundada, e m nível

de doutoramento.

A presente tese, portanto, tem por objetivo analisar

as relações entre a Inquisição e o Estado em Portugal, com


8

ênfase sobretudo no período que abrange desde as reformas

pombalinas até a extinção do Tribunal, em 1821. Estes marcos

cronológicos, no entanto, não impedem a pesquisa e a discussão

de ultrapassarem tais datas quando se faz necessário.

O trabalho se divide em duas partes. A primeira

delas, chamada A Inquisição Portuguesa: Implantação, Estrutura e

Controle Social, aborda questões referentes à temática da

Inquisição em Portugal, de forma bem ampla. O primeiro

capítulo, intitulado Inquisidores nas Terras D’El Rey, discute a

problemática da implantação da Inquisição portuguesa, passando

pela questão dos cristãos-novos e do anti-judaísmo em Portugal.

É realizado ainda um estudo sobre a Inquisição propriamente

dita, tendo em vista sua organização funcional, sua difusão no

seio da sociedade e suas ligações com o Estado, tendo em vista

o controle social e a defesa da ortodoxia cató lica.

O segundo capítulo intitula -se O Mando e a Fé. Neste

capítulo, partindo da discussão sobre a imbricação das

estruturas inquisitoriais e governamentais, levantada no

capítulo precedente, é realizado um estudo prosopográfico das

carreiras dos Inquisidores Gerais. Elementos de ponta na

direção da Inquisição, estes Inquisidores tinham também uma

carreira na administração civil e eclesiástica, o que vem a

comprovar o quanto Inquisição, Igreja e Estado andavam

irmanados e aproximados no Portugal do Antigo R egime.


9

Para finalizar esta primeira parte, o terceiro

capítulo, intitulado Ad Majorem Dei Gloriam. Nele realiza-se um

estudo sobre a Inquisição enquanto mecanismo de controle

social no Reino, nas difíceis lides de implantar e disseminar a

ortodoxia católica, e forjar, a ferro e fogo, o súdito e o fiel

perfeitos, num momento em que os interesses tanto do Santo

Ofício, quanto da Coroa e da Igreja caminhavam lado a lado,

tendo todos o mesmo objetivo de educação e normatização da

população reinol e das colônias.

Na segunda parte deste trabalho, intitulada A

Inquisição Em Tempo de Reformas, as relações entre Inquisição e

Estado são estudadas, bem como as reformas pombalinas do

Santo Ofício, e a extinção do Tribunal pela revolução liberal.

O primeiro capítulo, intitulado O Fim da Vanguarda

em Portugal, aborda à difícil conjuntura que levou Portugal a

perder suaa posição de vanguarda, que exercia desde o início da

aventura ultramarina, aborda também a curta duração do

movimento humanista português, e o triunfo das forças

conservadoras ligadas à Reforma Católica e suas alas mais

radicais, gerando um estado de coisas que será um dos motos

principais das reformas pombalinas.

O segundo capítulo, O Chanceler de Ferro e a

Construção do Absolutismo Português, realiza um estudo sobre a

figura do Marquês de Pombal, sua carreira política e suas


10

reformas no Estado português. O último, intitulado a Inquisição

Sob o Signo do Poder, estuda o período final da Inquisição

portuguesa e a nova dimensão de suas relações com o Estado. O

Tribunal, que já se encaminha para a agonia, vai ser

incorporado ao aparelho de justiça do Rei, e servir totalmente

às intenções da Coroa transformando -se num pálido fantasma do

monstrum horribile que havia sido em séculos anteriores,

caminhando assim para a sua extinção, em 1821.

Durante o exame de qualificação da Tese, quando me

vi posto com as costas à parede, na árdua tarefa de responder à

difícil questão da importância da história e deste trabalho em

minha vida e formação, redarg ui falando das dificuldades dos

caminhos da necromancia — os quais, ainda que

inconscientemente, o historiador percorre ao longo de sua

carreira. Em seu trabalhoso ofício de fazer com que os mortos

falem e contem suas histórias de vida, e nos façam aos poucos

entender o tempo em que eram vivos, o historiador -necromante

encontrará momentos onde o caminho é fácil de percorrer, e

outros nem tanto, onde parece que um abismo se lhe abre diante

dos olhos.

Mas o caminho do necromante não é de todo

solitário. Neste percurso, pude contar com o auxílio da FAPERJ

para o início das pesquisas, através de uma bolsa de cunho

emergencial, cedida em tempos tão difíceis para o ensino e


11

pesquisa na área de ciências humanas neste país. À Fundação de

Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janei ro, meus

penhorados agradecimentos pelo investimento e pelo amparo à

pesquisa dado no estado do Rio de Janeiro.

Por mais que seja necessário, um necromante não

vive só do vil metal. Nos momentos fáceis e difíceis, diversas

pessoas estão ao seu lado para am parar-lhe e mesmo lhe prestar

caridoso ouvido, ainda que ele não se aperceba sempre.

Neste ponto, gostaria de agradecer, em primeiro

lugar, aos meus Familiares pela atenção, carinho e compreensão

demonstrados, ainda mais quando tão estranho achavam quando

ficava eu debruçado sobre as histórias e vidas de pessoas que,

apesar de já há tanto tempo mortas, ainda faziam parte da

minha existência. À mãe e ao pai que devem ter achado estranho

o fato do filho ficar tanto tempo debruçado sobre as histórias

de pessoas já passadas, fica um muito obrigado especial e

afetuoso, que vale também pelos tantos sacrifícios e pela

paciência que tiveram comigo ao longo deste percurso. Podem

ter certeza de que seu filho ficou mais estranho ainda.

Alguns amigos e pessoas de convív io mais próximo

também são de certa forma cúmplices e co -partícipes nesta

jornada pelos caminhos da necromancia. Gostaria aqui de deixar

sempre claros a lembrança e o agradecimento à Rosângela

Facadio e Tânia Regina C. Vergara, por terem cuidado da cabeça

e alma do necromante, quando estas mais fraquejaram. À


12

Daniela Buono Calainho, grande amiga que tenho a honra de ter

por avaliadora suplente deste trabalho, gostaria de pedir

desculpas por tantos momentos em que lhe roubei tempo

precioso para conversar sobre Inquisição e sobre estas pessoas

que já se foram, e que de alguma forma tento trazer de volta

nas páginas que se seguem. Um agradecimento especial deixo

também à Profa. Vânia Leite Fróes, pelo incentivo sempre

constante e pela amizade que, ainda que às vezes à distância

pelas circunstâncias a que os caminhos da necromancia nos

levam, nunca faltou. À Ana Cristina Campos Rodrigues, fica

também o agradecimento pela paciência de ouvir o primo

historiador falar do Marquês de Pombal, e também a alegria por

vê-la descobrir o quanto os caminhos da necromancia têm a

oferecer para quem neles adentra.

Ainda no que tange a avaliadores, devo aqui menção

especial à Banca Examinadora deste trabalho. São eles

necromantes com maior experiência nos caminhos por onde

trilho e que, justamente por isso, e ainda pelo fato de serem

amigos para as horas certas e incertas, um pouco responsáveis

pelos méritos que este trabalho possa vir a angariar. Aos profs.

Drs. Francisco José Silva Gomes, Francisco Falcon, Guilherme

Pereira das Neves, Ronaldo Vainfas, Ronald Raminelli e Daniela

Buono Calainho, meu muito obrigado pela paciência nas horas

de dúvidas e pela inspiração dada a estes estudos.


13

Agradecimento muito especial deve, também ser feito

à minha orientadora, Profa. Lana Lage da Gama Lima, pelos 12

anos de paciência e afeto demonstrados ao longo de uma

jornada que passa por toda minha formação. Obrigado por

compartilhar alegrias, dores e tristezas, e também por saber

puxar orelhas nas horas em que estas, pombalinamente, deviam

ser puxadas.

Por fim, gostaria mais uma vez de deixar penhorados

agradecimentos a todos aqueles que, em algum momento deste

percurso, tiveram oportunidade de atrapalhá -lo e não o fizeram,

tendo ajudado bastante por deixar que o caminho da

necromancia se cumprisse, como deveria ser. Vocês não sabem o

quanto ajudaram.

Todo amor que houver nessa vida,

Pedro.
14

PARTE I:

A I N Q U IS IÇ Ã O PO R T U G U E S A :

I M P L A N T AÇ Ã O , ES TR U T U R A E

C O N TR O L E S O C I A L
15

CAPÍTULO I: INQUISIDORES NAS TERRAS D’EL REY

A Implantação do Santo Ofício em Portugal e a questão

judaica

A
Inquisição medieval foi criada na conjuntura do

combate sobretudo à heresia cátara, d ifundida no sul da

França, na Segunda metade do século XII. Em 1179, o

III concílio de Latrão facultara o recurso ao braço secular no

combate aos hereges e em 1184, três anos após ter sido convocada

a primeira cruzada contra os cátaros, a bula Ad Abolendam de

Lúcio III regulamentava esta ação do braço secular, plenamente

efetivada com a organização de um tribunal em Toulouse, sob o

controle de Gregório IX (1231), logo após a Paz de Paris (1229),

que marcou a derrota do catarismo na França. Baseada no

comissionamento, por parte do Papa, de bispos e eclesiásticos

como Inquisidores, a Inquisição consistia, no fundo, em um

tribunal híbrido, na medida em que misturava elementos da praxis

judiciária episcopal com elementos da justiça comum. O Tribunal

possuía como pontos que caracterizavam a sua ação, a utilização

do mais absoluto sigilo no desenrolar do processo, bem como a

utilização da tortura como instrumento válido para obtenção de


16

confissões, além do confisco dos bens dos condenados —

características que serão posteriormente herdadas pela Inquisição

moderna.

Uma vez dizimada a heresia, através da eliminação

física dos cátaros, a Inquisição medieval foi perdendo sua

principal razão de existir, e sua atuação feneceu gradualmente,

sem, contudo, ter sido extinta formalmente. Por falta de seu

alvo principal, os trabalhos desta Inquisição foram aos poucos

se restringindo às causas de faltas espirituais e morais

pertinentes à justiça eclesiástica e também da alçada

jurisdicional civil, tais como o adultério e a sodom ia, até que

foram se tornando mais e mais esporádicos, e deste modo

cessaram, paulatinamente, sem que houvesse argumentação

política ou jurídica para este fim.

Não existem notícias sobre qualquer difusão do

catarismo em Portugal, e outras diversas heresia s medievais lá

não tiveram grande acolhida. Não existem, tampouco, dados

sobre a atuação, em terras portuguesas, de um tribunal

estruturado, como o que existiu na França, durante a Idade

Média. Maria José Pimenta Ferro Tavares aponta que a

repressão às heresias e blasfêmias era feita pelo juízo episcopal,


17

constando a punição com a morte e o confisco de bens,

conforme determinavam as ordenações de D. Afonso, as de D.

D i n i s e d e D . J o ã o I 1. N ã o h a v i a , p o r t a n t o , r e f e r ê n c i a a l g u m a a

um tribunal inquisitorial plenamente montado e atuante no

reino português. A inquirição das heresias consistia em tarefa

desempenhada por poucos religiosos Inquisidores, para isso

autorizados pelo poder episcopal e pela Coroa, atuando de

maneira combinada e não raras vezes subordinad a à justiça

episcopal, que através das visitas pastorais, recolhia culpas

passíveis de punição pela Inquisição — tais quais blasfêmia,

feitiçaria, apostasia, sodomia e bigamia, além de proposições

heréticas —, posteriormente repassadas aos Inquisidores.

Devido à proximidade geográfica com os maiores

focos de difusão do catarismo, Inquisidores castelhanos tiveram

alguma atuação na repressão a esta heresia. Comissionados pelo

Papa, encontraram em solo castelhano marcas mais notáveis da

heresia. Outra evidência da repressão castelhana ao catarismo

está no fato de que tropas castelhanas ajuntaram -se a tropas

francesas na cruzada que, convocada em 1209, tentou extinguir

fisicamente o catarismo no sul da França a fio de espada,

particularmente na batalha de Muret, em 1213.

1 A respeito desta primeva atuação com fins inquisitoriais em Portugal, ver


Maria José Pimenta Ferro Tavares, Judaísmo e Inquisição, Lisboa,
Presença, 1987, pag. 107.
18

A Inquisição, enquanto corpo funcional organizado e

estruturado, irá ressurgir desta vez em Castela, em 1478.

Mudados os tempos, novos também eram os motivos para a

implantação desta Inquisição. Neste momento, os alvos

principais do renovado Tribunal eram as práticas religiosas das

minorias étnicas convertidas ao cristianismo, mormente os

judeus, o que, segundo Henry Kamen, refletia de forma

pungente a situação de desigualdade proporcionada pelos

movimentos de reconquista na P e n í n s u l a 2. Pejorativamente

chamados de marranos, o comportamento herético dos judeus

cristãos-novos consistia na prática, às ocultas, de sua religião

ancestral. Além dos cristãos-novos, também sofreram

p e r s e g u i ç õ e s o s m o u r i s c o s 3.

A subordinação do Tribunal às atitudes e vont ades da

monarquia centralizadora se torna patente, na medida em que,

por ocasião do estabelecimento da Inquisição em Castela, cabia

ao monarca a nomeação de um Inquisidor Geral, estando sua

confirmação a cargo do Papa. Posteriormente, foram criados

2 Henry Kamen, La Inquisición Española, trad. Esp., Barcelona, 1999, pp.


23-25.
3 Para uma discussão sobre as razões do estabelecimento da Inquisição
castelhana, ver Benzion Netanyahu, Motivos o Pretextos? La razón de la
Inquisición in Ángel Alcalá (org.), Inquisición Española y Mentalidad
Inquisitorial, Barcelona, Ariel, 1984, pp.23-43.
19

tribunais distritais, subordinados à sede, em Toledo. Esta

Inquisição já nasceu submetida à Coroa e seus interesses,

agindo em prol das vontades da monarquia, visto que ao rei

cabia a nomeação, para posterior confirmação Papal, dos

Inquisidores — os quais, por sua vez, nomeariam os

Inquisidores distritais e os demais altos cargos do Tribunal.

Esta Inquisição agia a favor dos interesses monárquicos ao

perseguir também elementos das elites locais que porventura se

opusessem à unificação das Coroas de Castela e Aragã o, ou

mesmo às ordens emitidas pelas Coroas unificadas, o que de

imediato já lhes valia o status político de inimigos da Coroa de

E s p a n h a , q u e e f i c a z m e n t e c o n t r o l a v a o T r i b u n a l 4. O s r e s u l t a d o s

primários e iniciais desta Inquisição consistiram em maciço

êxodo, para Portugal, de grande número dos elementos cristãos -

novos da população de Espanha. A atuação inquisitorial teve,

neste reino, uma virulência avassaladora, que acompanhou a

estruturação do seu corpo jurídico, funcional e administrativo,

o que veio a coadunar perfeitamente com as demandas da

monarquia centralizadora. Assim como novos eram os tempos,

novos também seriam os réus e os propósitos da Inquisição.

4 Perry Anderson, Linhagens do Estado Absolutista, trad. Port., Porto,


Afrontamento, 1982, pag. 253.
20

Em Portugal, a Inquisição foi implantada cinq uenta

anos depois de sua congênere castelhana, e a inda por motivos

similares. A princípio beneficiando -se da prévia experiência

castelhana, a Inquisição lusitana apresentava um certo padrão

de dependência face à Coroa. O Inquisidor Geral também era

escolhido pelo monarca, e tinha sua nomeação confirmada p elo

Papa. Marcante indício desta dependência foi a nomeação, para

o cargo de primeiro Inquisidor Geral do reino, de D. Diogo da

Silva, franciscano bispo de Ceuta, primaz da África, membro do

Conselho de Estado e confessor do monarca. D. Diogo deveria

agir, em princípio, de forma colegiada com mais três

Inquisidores — tendo este recusado o cargo em pouco tempo,

para depois reassumi-lo. Em Portugal, a Inquisição possuía

nuances diferentes de ação e dependência face à Coroa, mas se

beneficiou da experiência no reino vizinho também no que

tange à sua estruturação jurídica e regulamentar.

Em Portugal, o problema também estava vinculado à

persona jurídica dos judeus convertidos, aos cristãos -novos.

Antes de mergulharmos nesta temática, devemos ter em mente

alguns pontos a respeito da figura do judeu no imaginário

cristão ocidental. O judeu era, na mentalidade coletiva, a

alteridade negativa, demonizada e vista sob um prisma maléfico.

Tais acusações e tal mentalidade foram sendo forjadas pelo

pensamento eclesiástico, e acabaram sendo adotadas pela massa

dos fiéis. O arquétipo do judeu foi aos poucos sendo


21

construído, e as acusações que sobre ele pesavam eram as de

deicídio, usura, exploração do dinheiro e trabalho dos fiéis

cristãos, infanticídio. Mas, era permitida a convivência dos

judeus com os cristãos, na esperança de que tal convívio gerasse

o b o m e x e m p l o e a c o n v e r s ã o d o s p r i m e i r o s 5.

5 Tavares, op. Cit., pág.69. Estudos sobre processos de criação de


arquétipos sobre os infiéis também podem ser encontrados nos estudos
de Carlo Gizburg, História Noturna, Tradução Portuguesa, Companhia
das Letras, 1995, e Jean Delumeau, História do Medo no Ocidente,
Tradução Portuguesa, Companhia das Letras, 1989. Finalmente, ver ainda
Jeffrey Richards, Sexo, Desvio e Danação, trad. Port., Rio de Janeiro,
Zahar, 1993.
22

FIGURA 1: Na construção de um estereotipo negativo, a mentalidade antijudaica


europeia levava a acusações de infanticídio e deicídio, entre tantas outras. Gravura
original da Crônica de Nuremberg, de Schedel, 1493. Apud Jeffrey Richards, Sexo,
Desvio e Danação, Tradução Portuguesa, Rio de Janeiro, Zahar, 1993.

Em Portugal, a difícil convivência entre a maioria

cristã e a minoria judaica se dava de um modo todo peculiar. Os

judeus eram tolerados e aceitos no seio da sociedade, sendo que

em alguns aspectos eram mesmo protegidos pela Coroa. Basta

lembrarmos que D. Dinis chegou a ser admoestado pela Sé de

Roma, no século XIV, porque não obrigava os judeus do reino a

usar a estrela distintiva amarela pregada na roupa, conforme

ordenara o Quarto concílio de Latrão, de 1215. A política da

monarquia, então, era manter os dois setores da população


23

apartados, sendo ordenado o recolhimento dos hebreus a

bairros próprios e a proibição de casamentos inter -étnicos.

Diferentemente de Castela, não existiram perseguições

sistemáticas aos judeus em Portugal e o isolamento nas alfamas,

até o século XV, garantia a relativa integridade da comunidade

j u d a i c a 6. C o n t u d o , o g e r m e d o p r e c o n c e i t o j á s e e n c o n t r a v a

arraigado na sociedade medieval lusitana, mas a violência

exacerbada viria a ocorrer mais tarde. Assim, a afirmação do

arquétipo judaico demonizado ocorreu tardiamente em Portugal

por motivos outros, tais como rivalidades econômicas e de

poder, uma vez que os judeus possuíam o monopólio das

operações financeiras do Reino, bem como da cobrança e

manipulação das rendas do Estado, tornando -se então

f i n a n c i s t a s i n d i s p e n s á v e i s à C o r o a 7.

Em 1492, a expulsão dos judeus de Castela gerou um

fator de desequilíbrio na questão judaica em Portugal. Os

endinheirados judeus castelhanos foram recebidos abertamente

em Portugal, durante o reinado de D. Manuel, trazendo consigo

seus cabedais e riquezas, sem contar o fato de que muitos

destes judeus eram uma mão-de-obra bastante especializada e

6 António José Saraiva, Inquisição e Cristãos-novos, Lisboa, Estampa,


1985, pág. 27.
7 Idem, pág. 28. ver também Tavares, op. Cit., pág. 69.
24

segmentada, tais como armeiros, latoeiros, médicos e

matemáticos.

Todavia, ocorreram pressões castelhanas para a

expulsão destes judeus, bem como para a instalação da

Inquisição em Portugal, vinculadas às negociações e arranjos

para o casamento do rei D. Manuel com Isabela, a filha dos Reis

Católicos. Estes últimos insistiram na instalação da Inquisição

em Portugal como condição sine qua non para a efetivação do

enlace que, no futuro, garantiria a D. Manuel o controle das

duas Coroas. A política judaica de D. Manuel, que até então

vinha fazendo ouvidos de mercador às ingerências castelhanas,

começa a tomar um novo rumo.

A convivência aparentemente pacífica perdurará até o

final do século XV quando D. Manuel passa a ceder

paulatinamente — e sem muita convicção, a princípio — às

pressões da Coroa Castelhana, atendendo por outro lado, aos

apelos da burguesia e dos setores artesanais cristãos -velhos, e

também acompanhando uma vaga anti -judaica que grassava na

Península Ibérica. A Coroa portuguesa, então, endurece sua

posição face ao elemento judaico até decretar, em 1496, a

expulsão de todos os judeus e muçulmanos do reino. As atitudes

de intransigência da Coroa chegaram ao ponto de, em 1497,

ordenar a retirada dos filhos menores de 14 anos de todas as

famílias judaicas, sendo entregues a famílias cristãs para

receberem educação dentro da ortodoxia da Igreja. Ainda neste


25

mesmo ano, ocorre o batismo forçado da minoria judaica

portuguesa, nascendo a figura do cristão -novo.

A conversão forçada não significou, contudo, a

pacificação imediata do reino. Ainda durante o reinado de D.

Manuel, e posteriormente no reinado de D. João III, que

herdou, além da situação política do reino, todos os conflitos

inerentes à questão judaica, as insistências a respeito da

implantação de um tribunal inquisitorial no reino continuaram e

se tornaram mais constantes, principalmente por parte de

elementos do clero português e da Coroa castelhana. No campo

do bem-estar social, as coisas iam aos poucos se deteriorando.

Motins e pogroms contra os judeus e cristãos-novos, foram se

intensificando e tornaram-se mais frequentes no reinado de D.

João III. A Coroa achava-se numa situação delicada, ao se ver

pressionada pelas insistências da monarquia castelhana e do

próprio clero português, pedindo pois a instalação de um

tribunal da Inquisição em Portugal. Por outro lado, nas ruas das

cidades do reino, os conflitos constituíam evidente es pelho do

descontentamento popular, insuflado por uma incipiente

literatura anti-conversa e antijudaica que se tornava cada vez

mais acirrada, sendo divulgada através dos sermões,


26

constantemente pregados nas igrejas, durante as m i s s a s 8. O

baixo clero, principalmente, fazia importante papel divulgador

da mentalidade antijudaica em Portugal, na medida em que ia

açulando a população contra os judeus, levantando contra eles

diversas acusações, muitas delas fruto da mentalidade

antijudaica europeia em geral. Os judeus eram vistos, grosso

modo, como assassinos em potencial e malfeitores qualificados

e contumazes, causadores de toda sorte de desordem social.

Tais interpretações eram movidas pelo preconceito, o que

gerava graves distorções a respeito da prática relig iosa judaica.

Esse desconhecimento seria substituído por uma exatidão maior

a respeito destes aspectos religiosos na medida em que a

repressão inquisitorial passou a atingir os cristãos -novos

praticantes de sua religião ancestral, sem que os preconceitos,

no entanto, desaparecessem.

Formando endinheirado setor da sociedade, era do

interesse da Coroa a permanência dos cristãos -novos no Reino.

Além de possuidores de vultosas fortunas, os cristãos -novos

também eram profissionais absolutamente qualificados e, n este

sentido, necessários à vida na corte, onde, conforme se

apontou, exerciam funções de médicos, astrônomos e

8 Devemos, aqui, lembrar que uma literatura anti -judaica mais acirrada,
consistente e sistematizada foi tomando forma nos sermões da fé,
pregados antes de cada auto-de-fé, onde eram enumeradas as culpas e os
males crescentes e constantes do judaísmo, sob o prisma inquisitorial.
27

financistas. Por outro lado, os cristãos -novos eram o alvo dos

defensores da implantação do Santo Ofício em Portugal,

sobretudo dos membros do baixo clero que viviam a espicaçar o

povo contra eles, através de sermões e pregações constantes,

que ateavam ainda mais a fogueira no sentido da implantação do

Santo Ofício em Portugal.

Possuidora de cabedais culturais e financeiros que

estava no centro de pesado jogo de interesses entre a Coroa e

os partidários da implantação da Inquisição — dentre os quais

destacavam-se, conforme mencionamos, a burguesia e a classe

artesanal cristã-velha—, a incipiente burguesia conversa foi um

dos primeiros alvos para o qual o Tribunal direcionou seu poder

de fogo. Por outro lado, desde a Baixa Idade Média, a já

mencionada mentalidade antijudaica em Portugal manifestava -se

de formas mais veementes nos momentos de crise, tomando

forma de perseguições e pogroms. Esta menta lidade antijudaica

e todo este affaire podem, por sua vez, ser inseridos numa

perspectiva mais ampla, que permite que sejam enxergados como

um reflexo, ainda que tardio, do processo de desestabilização

étnico-religioso causado pelo desequilíbrio da retomad a de

terras aos mouros, na Península Ibérica durante a Baixa Idade


28

M é d i a 9. D e s t e m o d o , u m a q u e s t ã o j á a n t i g a — a d a c o n v i v ê n c i a

pacífica entre judeus e cristãos na Península Ibérica — vai se

modificando através de episódios que servem de indicadores

para um aumento do anti-judaísmo luso, principalmente,

levando a atos de violência que chegariam a um crescendo

gerador de uma situação-limite.

As discussões a respeito do estabelecimento do Santo

Ofício em Portugal se prolongaram através de sucessivas

representações e embaixadas ao Papa feitas pelos envolvidos na

questão. Esta demandava uma Inquisição régia, estabelecida nos

moldes da castelhana, na qual o rei teria o poder de nomear o

Inquisidor, cabendo ao Papa a sua confirmação. Tal querela a

respeito do estabelecimento da Inquisição em Portugal

encontrava-se dividida entre quatro diferentes protagonistas:

por um lado, eram os cristãos-novos e seus representantes em

Roma, buscando bulas e editos de perdão e tolerância, que lhes

garantissem a segurança face ao Tribunal que se encontrava em

gestação. De outro, a Coroa castelhana, incansável em insistir,

junto à monarquia portuguesa, na necessidade da expulsão dos

cristãos-novos e da instalação, em Portugal, de um tribunal

9 Sobre este assunto, novamente remeto o leitor à obra de Henry Kamen,


capítulos 1 e 2.
29

inquisitorial nos moldes do já existente em Castela. Em uma

outra esfera do debate, encontrava-se a Sé de Roma, dividida

entre os clamores e pedidos dos cristãos -novos e as sempre

reiteradas demandas da Coroa portuguesa. Por fim, a Coroa

lusitana que vinha, desde os tempos de D. Manuel, agindo

dubiamente, fazendo ouvidos moucos às insistentes

reivindicações da Coroa castelhana, oferecendo uma política de

tolerância, o que mantinha ainda os ricos e profissionalmente

qualificados cristãos-novos em Portugal.

A Coroa apresentava uma política antijud aica de

fachada, com editos de expulsão acompanhados de indultos de

perdão, ou mesmo adiando sua aplicação. A situação judaica

mudou efetivamente no momento em que D. Manuel, visando ao

casamento com a infanta Isabel, herdeira dos Reis Católicos,

cedeu às pressões, ordenando a conversão em 1496, e iniciando

uma progressiva campanha antijudaica. A partir da conversão

forçada, segundo Antonio José Saraiva, deixava de existir em

Portugal a figura legal do judeu, para surgir em seu lugar a

figura do cristão-novo, a do judeu converso ao cristianismo.

Durante o reinado de D. João III, as negociações

entre a Coroa e Roma tiveram grande impulso porque a

inequívoca mentalidade antijudaica em Portugal era cada vez

mais fomentada pelas camadas menos prósperas da popul ação e

por elementos do baixo clero, o que levou os representantes do


30

monarca a pedir em Roma, cada vez mais veementemente, uma

Inquisição nos moldes da castelhana.

. A legislação segregadora antijudaica, por sua vez,

levava este grupo a um isolamento mais intenso, com relação à

sociedade portuguesa, o que aumentava ainda mais a já existente

m á v o n t a d e c o n t r a o s j u d e u s 10. A e s c a l a d a d a a n i m o s i d a d e p o r

parte da Coroa e clero contra os judeus cresceu graças a alguns

fatos pontuais, cuja importância não pode se r negada, como por

exemplo o assassinato de Henrique Nunes, cristão novo

conhecido como o “Firme Fé”. Nunes, devido à sua ascendência

semítica, agia como um espião de D. João III, infiltrado no seio

da comunidade cristã-nova. Assassinado em 1524 por cristã os-

novos, sua morte aumentou a animosidade da Coroa contra os

cristãos-novos.

Um outro fator, foi a chegada de David Rubeni a

Portugal, em 1525. O judeu Rubeni, ao pregar e prever a

próxima vinda do Messias — o qual exterminaria os cristãos e

instalaria seu reino em Portugal —, colecionava antipatias do

povo e especialmente do baixo clero. Este último pedia com

mais veemência a instalação de um tribunal da Inquisição a fim

de extirpar este tipo de heresia, quer por meio de uma ação

10 Cf. Antonio José Saraiva, Inquisição e Cristãos-novos, Lisboa,


Estampa, 1985, especialmente os capítulos 1 e 2.
31

direta junto aos elementos do alto clero, quer através da

instigação da exaltação dos ânimos através da constante de

p r e g a ç ã o 11. P o r f i m , u m a d a s r e i v i n d i c a ç õ e s m a i s r e c o r r e n t e s

entre os cristãos dava-se justamente no sentido de apontar para

o medo de que os cristãos-novos, devido às suas especializações

profissionais a estarem imiscuídos na sociedade portuguesa,

vinham retirando empregos e, consequentemente, renda, à

fração de súditos que já havia nascido no grêmio da Igreja.

A análise das intrincadas lianas que existiam no

período imediatamente anterior ao estabelecimento da

Inquisição em Portugal, nos leva à conclusão de que o reino

vivia um período conturbado, onde uma minoria convertida era

perseguida pela esmagadora maioria cristã -velha, num processo

diferente do que acontecia em Espanha, onde tal animosidade

face aos judeus e mouriscos estava ligado, indissociavelmente, à

desestabilização tática propiciada pelo processo de retomada

das terras aos mouros. Motivada por disputas econômicas e

políticas e devidamente instigada pel o baixo clero, a maioria

cristã promovia, esporadicamente, diversas ondas de ataques

contra os cristãos-novos, quebrando a relativa paz e

11 A problemática antijudaica em Portugal é estudada por Maria José


Pimenta Ferro Tavares, em Inquisição: Antecedentes e Estabelecimento , in
op. cit., pp. 105-146.
32

estabilidade em várias cidades do reino. Cabia, então, à

Monarquia centralizadora a manutenção da ordem e a imposição

de seu poder. Uma saída para tal impasse foi a implantação do

tribunal da Inquisição no reino.

— A Entrada do Santo Ofício em Portugal: o processo de

implantação

Clemente VII, em 1531, expediu a bula Cum ad Nihil

Magis, na qual finalmente cedia aos rogos da Coroa portuguesa.

Esta bula que estabelecia a Inquisição em Portugal, atendia

ainda aos interesses do poder episcopal, pois, segundo a bula,

ao recém-estabelecido Tribunal eram impostas diversas

limitações. Esta Inquisição, a princípio, seria regida

colegiadamente por três bispos Inquisidores nomeados pelo

Papa, que deveriam agir coordenadamente com a justiça

eclesiástica, que entregaria ao Tribunal os réus de heresia. A

estes três Inquisidores, o monarca, num forte indício da

interferência direta da Coroa portuguesa no processo de

implantação do Tribunal, acabou por acrescentar um quarto —

D. Diogo da Silva —, que recebeu o cargo de Inquisidor Geral,

obtendo supremacia e mando sobre os três colegas. Tal

cooperação forçada, por outro lado, limitava també m os poderes


33

do Inquisidor Geral que, por sua vez, se via limitado pelos

poderes da Santa Sé, não lhe cabendo, por exemplo, nem a

imposição, nem a anulação de excomunhões — outra

reivindicação antiga da Coroa. Ao agir desta forma, a Sé de

Roma garantia, para si e seus legados, um poder que teimava em

preservar, tendo em vista os avanços da monarquia centralizada

no sentido de um maior controle da própria administração

funcional da Igreja. O Inquisidor Geral nomeado por Clemente

VII em 1531, o franciscano Di ogo da Silva — que além de Bispo

de Ceuta, primaz da África e membro do Conselho de Estado,

era também confessor do monarca demitiu -se do cargo,

descontente com as limitações impostas, o que deu novo fôlego

às insistências da Coroa junto ao Papa, no sentid o de obter uma

Inquisição régia, nos moldes castelhanos.

Para o início efetivo das atividades do Tribunal em

Portugal, foi necessária a expedição de uma nova bula, também

iniciada por Cum Ad Nihil Magis, datada de 1536. Agora o Santo

Ofício estava pronto para desempenhar suas atividades de

patrulhamento do respeito à ortodoxia, legislando sobre os

pecados e delitos dos cristãos-novos e também dos cristãos que

já haviam nascido no grêmio da Igreja, aspecto este que se

mostrará com maior intensidade após a R eforma Católica,

particularmente após o Concílio de Trento (1545 -1563). A

Inquisição também atuava como aparelho de censura, uma vez


34

que tinha poder de confiscar e apreender livros cuja leitura

fosse proibida, ou que constassem das diversas arrolações de

obras do Index por conterem conhecimentos e tratarem de

assuntos que fossem ofensivos para com a ortodoxia. Os livros

vetados à população eram procurados nos portos de chegada a

Portugal pelos Visitadores das naus e, quando encontrados,

retirados para o secreto inquisitorial, onde eram examinados por

uma equipe de qualificadores e, em se confirmando a censura,

ficavam apreendidos, saindo apenas para serem queimados nos

autos-de-fé.

Figura 2: O Index de livros proibidos de 1551, primeiro impresso em Portugal.


35

Graças a esta nova bula Cum ad Nihil Magis que lhe

deu poderes mais amplos no que dizia respeito à cooperação

com a justiça eclesiástica, o Inquisidor Geral tinha maior

independência, inclusive no que tocava à sua relação com a

Coroa. Desta vez o já experiente Fr. Diogo da Silva, novamente

indicado para o posto de Inquisidor Geral, prontamente aceitou.

A Inquisição deveria ser regida pelo Inquisidor

Geral, sendo este auxiliado por um conselho de Inquisidores,

todos religiosos e doutores em cânones e Leis — qualidade que,

grosso modo, não lhes deveria faltar. Esta primeva regência

colegiada pode ser interpretada, no fundo, como uma

possibilidade de preparação para a sucessão do Inquisidor Geral

— cujo cargo, a princípio vitalício, poderia tornar -se vago por

motivo de desistência de seu ocupante, ou mesmo por ordem

régia, demitindo-o.

O primeiro Inquisidor Geral, de posse das suas

atribuições e poderes, tratou de pôr em funcionamento a

engrenagem inquisitorial; e providenciou também o primeiro

Monitório da Fé, no qual listava os pecados e culpas de cristãos -

novos, luteranos, maometanos, bruxas, blasfemos e se

manifestava também contra a leitura e posse de livros

proibidos, caracterizando assim amplo espectro da ação

inquisitorial. A permanência de D. Diogo da Silva no cargo, no

entanto, não foi duradoura, uma vez que foi indicado o cardeal

D. Henrique, irmão de D. João III, para um lugar no colégio


36

inquisitorial. O antigo Inquisidor Geral pediu ent ão, mais uma

vez e de forma definitiva, sua demissão. Tendo sido, em 1539,

promovido ao cargo de Inquisidor Geral, no qual permaneceu

até 1578, D. Henrique envidou todos os esforços possíveis no

sentido de favorecer e consolidar a máquina processual e

administrativa do Tribunal, tendo sido o criador do Conselho

Geral do Santo Ofício. O Conselho era mais um organismo

colegiado, cujos componentes possuíam status de ministros de

Estado e de Conselheiros Régios, e que funcionava também

como um tribunal de recursos. Além disto, proveu em 1552 a

Inquisição de seu primeiro Regimento, texto que normatizava o

Tribunal quanto à sua estrutura, e funcionamento. Em 1551,

fora dado à luz o primeiro Index de livros proibidos impresso

(ver figura 2). Para consolidar definit ivamente o Tribunal, D.

Henrique fez com que os tribunais distritais de Coimbra,

Lamego, Évora, Porto e Tomar fossem afixados. Desta vez, era

chegado o momento de um êxodo de convertidos, em busca de

nações mais tolerantes, como Holanda e Inglaterra, ou me smo

rumo aos longínquos rincões do Brasil onde também vieram

aplicar seus cabedais.

Uma vez implantada em Portugal, a Inquisição passou

por um período de adaptações, no qual pôde espalhar sua malha

por todo o território português, realizando o que Francis co

Bethencourt denominou como “tomada de posse simbólica” do


37

território reinol. Neste primeiro momento, a cobertura

inquisitorial se dava de forma bastante parecida com as

varreduras episcopais, sendo que ainda neste momento de

implantação, o Santo Ofício e a justiça eclesiástica agiam,

muitas vezes, de forma combinada, antes de sofrerem uma

separação, resultante de uma maior independência do primeiro,

o que veio a ocorrer com a bula Meditatio Cordis, expedida em

1547 — marco principal do início definitivo da atuação

inquisitorial em Portugal, dando ao Tribunal maiores poderes de

ação e independência face à justiça episcopal. Desta feita,

encontramos a Inquisição como um organismo vivo, plenamente

independente, assumindo a configuração funcional e política

que preservou até o século XVIII, tendo ultrapassado em muito

a perspectiva de ser apenas um mero instrumento de controle

social a serviço da Coroa. Não havia mais como distanciar o

Tribunal das mais altas esferas políticas portuguesas, e agora

sua aprovação era necessária para as decisões relevantes do

reino, mormente no período em que D. Henrique, o cardeal -

Inquisidor, passou à regência de Portugal (1562 -1568), e após a

derrota de Alcácer-Quibir (1578), onde ocupou o trono por um

ano e meio.

ª— O Corpus Inquisitorial: as pessoas e a ordem

Após a bula Cum ad Nihil Magis, de 1531, que

estabelecia a Inquisição no Reino de Portugal, o Tribunal


38

entrou em processo lento de afirmação e consolidação

hierárquica, burocrática e processual, fruto também de uma

centralização administrativa muito maior, facilmente observável

em seus diversos Regimentos. Tal fato acompanhou o

crescimento e a sofisticação cada vez maiores da máquina

burocrática que administrava o Estado. Num processo correlato

ao da estruturação e consolidação do corpo burocrático e

funcional da administração pública, bem como da implantação

da constelação jurídica do reino, a Inquisição também se viu em

estruturação parecida, possuindo diversas “micro -constelações

jurídicas”, onde quase cada tipo de funci onário era dotado de

regimento próprio, que lhe normatizava os deveres e funções,

bem como os privilégios.

Tendo consolidado e afirmado sua malha

administrativa no seio da sociedade, a Inquisição portuguesa

encontrou, por fim, seu ritmo definitivo de func ionamento.

Esta efetiva consolidação organizacional ocorreu no período em

que D. Henrique, irmão de D. João III e último rei da casa de

Avis, ocupou o cargo de Inquisidor Geral. Durante este tempo,

D. Henrique, que posteriormente veio a governar Portugal,

iniciou uma política de concessão de privilégios para a

Inquisição, dando-lhe a forma definitiva, reestruturando os

tribunais distritais — extinguindo os de Tomar, Lamego e Porto

em 1547 — e as visitas, e provendo-a de uma acurada


39

processualística, demonstrada no primeiro Regimento da

Inquisição, datado de 1552.

A evolução e consolidação do Tribunal ainda são

notados no Regimento posterior, datado de 1613, e expedido

por ordem do Inquisidor Geral D. Pedro de Castilho. Ainda que

bastante semelhante ao anterior, no que tange à sua redação e

ordenamento, notamos aqui já um aprimoramento do

pensamento jurídico inquisitorial, fruto este da vivência e

prática processuais cotidianas.

Com o passar do tempo, e o efetivo aprimoramento

organizacional e processualísti co do Tribunal, este refinamento

burocrático e processual demonstra uma nova consolidação, em

uma terceira etapa, no Regimento de 1640. Tendo vigorado por

134 anos, foi o mais duradouro da Inquisição portuguesa.

Acumulador de mais de um século da experiênc ia das atividades

persecutórias, quando o Tribunal já estava plenamente

estabilizada e atuante, tanto no Reino quanto nas colônias, e

tendo sua malha funcional e organizacional completamente

cristalizada, o Regimento de 1640 foi por isto mesmo o mais

bem acabado e elaborado da Inquisição portuguesa, recebendo

de Francisco Bethencourt o epíteto de “monumento jurídico”,

graças à sua extensão e ao amplo e intrincado espectro


40

l e g i s l a t i v o q u e a p r e s e n t a v a 12. D e v i d o à s u a i m e n s a a b r a n g ê n c i a ,

este Regimento legisla a respeito de todos os aspectos da praxis e

organização inquisitoriais, instruindo da maneira mais completa

o procedimento nos processos, o trato e conduta com relação

aos réus. Devido à sua complexidade, este Regimento vigorou

absoluto até as reformas pombalinas, que culminaram na

publicação de um novo Regimento, em 1774. Consoante os

novos tempos pelos quais passava o Santo Ofício português,

foram modificados alguns aspectos estruturais do procedimento

inquisitorial. Contudo, mesmo seguido de dois Regimentos

posteriores — o de 1774 e o projeto que, ordenado por D.

Maria em 1806, não chegou a ser finalizado e tampouco a

vigorar, o de 1640 continuou a ser a base fundamental de toda

atuação inquisitorial, servindo de modelo aos seus sucessivos

congêneres, até o momento da extinção do Santo Ofício em

Portugal.

O Santo Ofício era constituído de um corpo

funcional e burocrático intrincado. O Regimento de 1640, no

que tange a este aspecto, mais uma vez dá provas de minúcia, ao

apresentar os cargos que deveriam exi stir em cada tribunal da

Inquisição, acrescidos das obrigações, deveres e funções ligados

12 Francisco Bethencourt, História das Inquisições, Lisboa, Circulo de


Leitores, 1996, pag. 46.
41

aos seus ocupantes. Desta forma, tendo por base o Regimento de

1640, foi possível elaborar um organograma que reconstitui,

com a maior exatidão possível, os cargos e instâncias da

Inquisição portuguesa, que se apresentam como segue::


42

ESTRUTURA FUNCIONAL DA INQUISIÇÃO PORTUGUESA

Inquisidor Geral Conselho Geral do Santo Ofício


(3 membros)

Inquisidor Inquisidor Inquisidor

Deputados
(4)

Promotor

Comissários

Notários
(3)

Procurador dos Presos


(2)

Meirinho

Alcaide

Médicos
(2)

Cirurgião

Capelão

Familiares
43

Na esfera da alta administração inquisitorial, o poder

supremo era exercido pelo Inquisidor Geral.

Uma vez nomeado pelo rei e confirmado pelo Papa, o

Inquisidor Geral tinha amplo poder de ação. A citada bula

Meditatio Cordis, datada de 1547, dava-lhe maior autonomia

face à esfera episcopal. Figuras importantes tanto na

administração inquisitorial quanto na administração do reino,

estes Inquisidores Gerais receberão, posteriormente, um estudo

m a i s d e t a l h a d o 13.

O cargo de Inquisidor Geral era da maior

importância e seu titular era escolhido diretamente pelo

monarca que submetia sua indicação à aprovação Pap al. Uma

vez confirmado por Roma, o Inquisidor Geral tinha plenos

poderes para proceder como achasse conveniente, ganhando

total independência: nem o Papa, nem o rei, em tese, poderiam

retirá-lo de seu cargo.

Contudo, a deposição de um Inquisidor Geral era

possível, através de pressões para que se demitisse. Tal

expediente foi muito mais utilizado pela monarquia espanhola

do que pela portuguesa. Devemos lembrar que, em Espanha, o

Tribunal servia desde sua fundação como um instrumento da

13 Cf. intra, cap. 2, pp. 69-85.


44

Coroa, que constantemente interferia na sua administração,

fator este evidente no fato da alta rotatividade do cargo de

Grandes Inquisidores. O fato de não terem ocorrido tantas

demissões em Portugal serve perfeitamente como um indicador

da maior autonomia do Tribunal português, onde a maioria dos

Inquisidores Gerais exerceu o cargo até sua morte. É de se

notar que, na Inquisição portuguesa, os poucos Inquisidores

Gerais que se demitiram, o foram durante a União Ibérica —

atestando assim a tendência da monarquia espanhola para lidar

com a Inquisição —, e durante o governo pombalino, como foi

o caso de D. José, filho bastardo de D. João V, deposto do

cargo por discordâncias com o poderoso Marquês.

Muito embora os Regimentos previssem um plano de

progressão funcional dentro do pr óprio corpo inquisitorial — a

ideia básica era que os Inquisidores fossem formados aos

poucos, progredindo na medida em que adquiriam experiência

nas lides inquisitoriais, —, no âmbito das nomeações destes

Inquisidores residia uma clara estratégia de contr ole utilizada

pela monarquia: a indicação para o cargo de pessoas que lhe

fossem ligadas de alguma maneira, perpetuando assim a cadeia

das relações inter-pessoais características da sociedade de corte

do Antigo Regime. Uma das possibilidades consistia na

nomeação de uma pessoa próxima ao monarca: o primeiro

Inquisidor Geral, Fr. Diogo da Silva, era seu confessor, o que

garantia esta proximidade e podia ser visto como uma garantia


45

da condescendência, por parte do Inquisidor Geral, a possíveis

ordens e influências vindas da Coroa. D. Henrique, Inquisidor e

irmão cardeal do monarca, também serve como exemplo desta

estratégia de nomeações. Porém, o expediente da nomeação de

confessores reais como Inquisidores Gerais só voltou a ser

utilizado em momento tardio, d urante o reinado de D. Maria I,

que para o cargo nomeou seu confessor D. José Maria de Melo,

em 1790.

De um modo geral, o que indicava as ligações entre

os Inquisidores Gerais e a Coroa era a extração social dos

indicados: uma boa parte pertenceu aos quad ros da mais alta

nobreza — em algumas ocasiões eram membros da família real,

como por exemplo Alexandre de Bragança, Inquisidor Geral

entre 1602 e 1603 —, e desempenhava, paralelamente, cargos

administrativos no Estado.

Na sua tarefa de administrar um Tr ibunal com tão

vasta jurisdição, os Inquisidores Gerais eram secundados por

um Conselho administrativo. Instituído em 1549 e possuidor de

um Regimento próprio, o Conselho Geral do Santo Ofício era,

a princípio, formado por três Inquisidores — número que veio a

dobrar no início do século XVII —, que auxiliavam e tinham


46

p o d e r e s d e l e g a d o s p e l o I n q u i s i d o r G e r a l 14. O I n q u i s i d o r G e r a l

tinha poderes para nomear os membros do Conselho, sendo que

o Rei era consultado a este respeito. Uma outra característica

foi a criação neste Conselho, em 1614, de um lugar perpétuo

para um dominicano, de experiência em lides inquisitoriais e

escolhido pelo Inquisidor Geral, semelhante ao que ocorria em

E s p a n h a 15. Neste reino existia um organismo semelhante, o

Consejo de la Suprema, criado em 1488 e em constante embate

contra as influências da Coroa, que a princípio nomeava seus

membros, tendo, após negociações com o Gran Inquisidor,

perdido o poder de nomear sua totalidade, cabendo -lhe a

indicação de três de seus membros, sendo dois d eles leigos,

membros do Consejo de Castela, aos quais era adicionado um

terceira vaga, perpetuamente reservada também a um religioso

d o m i n i c a n o , e m g e r a l , o c o n f e s s o r d o m o n a r c a 16. A t r a d i ç ã o

inquisitorial dos dominicanos, que remonta à Idade Média, era

pois observada nas duas Inquisições, tanto a espanhola quanto

na portuguesa.

14 Tal Regimento se encontra manuscrito, em uma versão em espanhol. Ver


ANTT, Inquisição de Lisboa, Conselho Geral do Santo Ofício, livro 481
15 Bhethencourt, História…, pag 70.
16 Idem, pp. 65-66. Ainda sobre os embates políticos e delimitações de ação
do Consejo de la Suprema, ver também José Ramón Rodríguez Besné,
Notas Sobre La Estrutura Y Funcionamento del Consejo de la Santa, General y
Suprema Inquisición, in Joaquin Perez Villanueva (org.), La Inquisición
Española, Madrid., Siglo XXI, 1980, pp. 61-69.
47

Em Portugal, graças ao seu caráter independente,

concedido por D. Henrique, o Conselho Geral do Santo Ofício

possuía um elevado status jurídico: seus membros, a partir do

alvará do rei-Inquisidor, datado de 1561, faziam parte do

Conselho Régio, gozando das mesmas honras e privilégios dos

ministros ordinários. Tal fato é confirmado pela maciça

presença dos Inquisidores gerais no Conselho de Estado.

Finalmente o Conselho Geral do Santo Ofício funcionava, por

seu turno, como corte de apelação das sentenças numa última

i n s t â n c i a , c o n f o r m e c o n s t a d o R e g i m e n t o d e 1 6 4 0 17.

O pertencimento ao Conselho Geral do Santo Ofício

acenava, como é de se prever, com a possibilidade de passos

mais avançados para uma carreira individual. A passagem por

esse órgão constituía verdadeira ponte para a ocupação de

outros cargos na própria hierarquia inquisitorial, na Igreja ou

no aparelho de Estado, visto que os membros do Conselho se

desincompatibilizavam do cargo para assumir dioceses ou para

ascender ao cardinalato. Tal desincompatibilização não ocorria,

por outro lado, quando o membro do Conselho acumulava, às

suas funções de Inquisidor, a de efetivo ministro de Estado.

Isto se deve a uma peculiaridade da Inq uisição Portuguesa:

neste Tribunal, os membros do Conselho Geral eram nomeados

17 L. II, Tit. XXI, §§ 1-6


48

pelos Inquisidores Gerais e, posteriormente, obtinham a

aprovação régia, o que significava uma perspectiva de promoção

interna muito maior. No caso do Tribunal espanhol, ocorria

justamente o contrário, o que serve para demarcar a grande

influência da monarquia neste Tribunal., Torna -se assim mais

difícil a promoção de carreiras no interior do organismo

inquisitorial, uma vez que as promoções ficavam todas ao

arbítrio do monarca, que apenas indicava pessoas de sua

confiança e proximidade para ocupar o cargo máximo da

hierarquia inquisitorial.

Um último dado a respeito da atuação do Conselho

deve ser lembrado: o órgão era responsável pela inspeção e

observância da ordem dentro da própria Inquisição, realizando,

a cada triênio, visitas inspectivas aos tribunais distritais. Além

disto, pelas mãos do Conselho Geral passavam todos os

processos habilitando novos funcionários do Santo Ofício. O

Conselho, finalmente, era também responsáve l pela

administração e manutenção da estabilidade do Tribunal nos

p e r í o d o s d e v a c â n c i a d o c a r g o d e I n q u i s i d o r G e r a l 18. T a l f a t o ,

além de apontar a importância do Conselho na hierarquia

inquisitorial, é também um indicador do potencial político e

18 Foram três os hiatos na alta administração inquisitorial: entre 1598 e


1602; entre 1653 e 1671, com as guerras da Restauração; e 1750 -1769, no
período pombalino, aproximadamente o mesmo período de corte das
relações com a Santa Sé (1760-1770).
49

administrativo das carreiras dos indivíduos que ocupavam tão

importante assento, tendo em vista a constante mobilidade e

assunção a cargos, em momentos posteriores de suas

existências.

Dentro do organograma inquisitorial, a figura do

Inquisidor possuía um papel de inegável relevo, tendo sido

estabelecida, desde o Regimento de 1613, a existência de três

Inquisidores para cada tribunal regional, contra os apenas dois

indicados no Regimento de 1552. Os Inquisidores eram os

funcionários mais graduados da hierarquia inqui sitorial. Eles

eram os responsáveis pelo funcionamento de seus respectivos

tribunais, bem como pelo andamento dos processos sob sua

alçada. Há que ser notada, mais uma vez, a forte cadeia

hierárquica existente na Inquisição portuguesa O responsável

direto pelo cumprimento das ordens emanadas do Inquisidor

Geral e do Conselho Geral do Santo Ofício era sempre o

Inquisidor mais antigo, devendo os mais novos executar as

tarefas repassadas por este. Desta forma, a cadeia de comando

se mantinha intacta, visto que cada tribunal regional estava

diretamente subordinado ao tribunal central, o de Lisboa — de

onde emanavam as ordens do Inquisidor Geral e do Conselho

Geral do Santo Ofício. Também é importante observar que um

Inquisidor, uma vez comissionado pelo Conselho Geral, poderia

ser enviado para levar a presença da Inquisição a lugares


50

distantes, através de visitas. Ao agir desta forma, o Tribunal se

mostrava presente e se afirmava em todos os possíveis recantos

do Reino e do Império, de um modo geral.

Aos Inquisidores também cabia a resolução de

conflitos jurisdicionais mais imediatos vividos pelo Tribunal.

Francisco Bethencourt sintetiza a importância da atuação dos

Inquisidores distritais, uma vez que eles constituíam o

.. nível intermediário do Tribunal que det ém o papel


decisivo na organização das ações no terreno, nível onde se
concentra a maior parte de conflitos de jurisdição com os
tribunais civis e eclesiásticos, bem como os conflitos de
e t i q u e t a e d e r e p r e s e n t a ç ã o c o m o s p o d e r e s l o c a i s 19

As exigências para a ocupação do cargo apontam para

o grau de qualificação requerido destes funcionários. Além da

costumeira limpeza de sangue — era exigido que nenhum

funcionário do Tribunal tivesse ligações matrimoniais ou de

descendência com mouros, cristãos -novos, negros, hereges ou

processados pelo Santo Ofício —,era necessário que os

Inquisidores já estivessem inseridos, de alguma forma, no

“plano de carreira” inquisitorial Segundo do Regimento de

1640, deviam ser:

Licenciados por exame privado em alguma das Faculdades de


Teologia, Cânones, ou Leis, e que tenham ao menos trinta
anos de idade, pessoas nobres, Clérigos de Ordens Sacras, e
que primeiro hajam servido no Cargo de Deputado, e
nele tenham dado mostras de prudência, letras, e virtude,

19 Bethencourt, História.., pag. 116.


51

assim para saberem resolver, e decidir as causas que hão de


j u l g a r 20.

Como forma de resolver possíveis conflitos internos,

e para agilizar o funcionamento dos tribunais, o Regimento

estabelecia, como agente regulador, o critério de antiguidade,

uma vez que as próprias regras inquis itoriais estabeleceram a

necessidade da existência de três Inquisidores para o

funcionamento da Inquisição. Ao Inquisidor mais antigo cabia

conduzir as sessões, guardar os livros mais importantes e

ocupar as principais posições no cerimonial. Ele era,

efetivamente, o responsável pelo andamento do Tribunal.

Consta do Regimento que tal magistrado

Dará à execução nossas ordens [do Inquisidor Geral], os


despachos do Conselho [Conselho Geral do Santo Ofício], e
os assentos que na Mesa se tomarem, e mandará faze r as
mais diligências, que se determinar que convém para boa
e x p e d i ç ã o d o S a n t o O f í c i o 21.

Desempenhando um papel que, se esperava, viria a

ser uma prévia de cargos mais elevados a serem por ele

ocupados, o mais antigo Inquisidor era também o responsável

pelos atos e comportamentos dos demais ministros e

funcionários sob sua jurisdição, sendo encarregado de

Advertir, e ordenar, que na Mesa do Santo Ofício, estejam


os Ministros muito compostos, guardando sempre o respeito,

20 Regimento.., Livro I, Tit. III, § I. Grifo meu.


21 Idem, § IV.
52

e autoridade que entre si devem ter, pelos cargos que


e x e r c i t a m 22.

Com base no que vimos até aqui, podemos inferir a

importância do cargo de Inquisidor. Tal posição conferia ao seu

portador amplos poderes jurisdicionais. Isto porque o raio de

ação do Santo Ofício abrangia toda a sociedade por tuguesa.

Neste sentido, o Regimento de 1640 é bastante taxativo. Ao

estabelecer a jurisdição inquisitorial, afirma o Regimento que os

Inquisidores

Procederão contra todas as pessoas eclesiásticas, seculares, e


regulares, de qualquer estado, e condição que sejam, que
forem culpadas, suspeitas, ou infamadas no crime de
j u d a í s m o , o u e m q u a l q u e r o u t r a h e r e s i a 23

No reino e senhorios de Portugal, as pessoas,

independente de sua classe e condição social, eram passíveis de

processo e punição por parte do Santo Ofíc io. Podemos, a

partir daí, compreender a importância deste cargo para diversas

carreiras individuais. A ocupação deste posto era, de certa

forma, um atestado de capacitação, como era, em geral, o

pertencimento a qualquer cargo da hierarquia inquisitorial.

22 Idem, § V.
23 Idem, Livro I, Tit. III, § 12.
53

O Tribunal era exigente no que tangia à extração

social dos Inquisidores. Eles eram, em sua maioria, oriundos da

pequena nobreza, das famílias de proprietários rurais e de

f u n c i o n á r i o s d a a d m i n i s t r a ç ã o 24. A l é m d a e x i g ê n c i a d e t í t u l o d e

nobreza por parte do Inquisidor, o Regimento de 1640, como já

tivemos oportunidade de observar, ainda estipulava, para

ascensão a este cargo, a idade mínima de 30 anos. Necessário

também era que fosse licenciado em Teologia, Cânones ou Leis,

sendo, é claro, necessária uma vin culação institucional à Igreja,

o que garantia o anteparo jurídico e teológico a estes

Inquisidores no exercício de suas funções. Pensando nas

carreiras destes Inquisidores, o Regimento ainda assevera, como

vimos, como pré-requisito à ascensão ao cargo de Inquisidor,

que o postulante já tenha servido como Deputado do Santo

Ofício. Uma vez assentados, os Inquisidores trabalhavam como

já foi descrito, dentro de uma hierarquia que tinha na

antiguidade o critério fundamental, e era de se esperar que os

Inquisidores mais antigos fossem indicados para o Conselho da

Inquisição, ao passo que os mais novos aprendiam,

paulatinamente, os misteres do ofício de inquirir as heresias,

sendo habilitados, por sua vez, para futuras promoções. Um

ponto a ser destacado, também, é o que diz respeito às

24 Bethencourt, História.., pag. 118.


54

obrigações dos Inquisidores Eles eram responsáveis pela

condução e julgamento efetivos dos processos, devendo também

receber e acatar as ordens do Conselho da Inquisição, com ele

interagindo no que tangia às dúvidas processuais, e

p e c u l i a r i d a d e s c a s u í s t i c a s 25.

As perspectivas de progresso funcional destes

Inquisidores se alargavam, no momento em que existia a

possibilidade de serem convidados a tomar parte do Conselho

Geral do Santo Ofício. Esta nomeação poderia ser a chave para

a ocupação de dioceses, ou mesmo de cargos nos ministérios do

reino, tendo em vista a imbricação entre as carreiras

inquisitoriais, eclesiásticas e civis. Ou ainda, por fim, poderia

representar um aceno à possibilidade para indicação ao cargo de

Inquisidor Geral.

Encontramos, num estágio intermediário e que

apenas existiu na Inquisição portuguesa, o cargo de Deputado.

Atuando, na prática, como uma espécie de estagiário ao cargo

de Inquisidor, cabia ao Deputado atuar, com discrição, nos

processos. Segundo o Regimento de 1640, os Deputados

25 Regimento do Santo Ofício da Inquisição do Reino de Portugal, in


Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro , Rio de
Janeiro, Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, ª 157, Nª
392,jul/set 1996, L. I, Tit. III, §§ 1-7.
55

deveriam ser pessoas que, além da costumeira nobreza e limpeza

de sangue exigidas, fossem bem qualificadas tendo em vista a

progressão funcional a eles reservada e planejada pelas

diretrizes do Tribunal. Os Deputados deveriam s er clérigos,

licenciados em Cânones, Leis ou Teologia. Além de tudo,

deveriam ser jovens, tendo vinte e cinco anos de idade. Estes

cinco anos de experiência, ou “estágio”, serviriam para a

aquisição de conhecimentos dos misteres inquisitoriais, pois era

deles esperado que, graças ao procedimento e com o passar do

t e m p o , “ a o d i a n t e p o s s a m s e r v i r n o c a r g o d e I n q u i s i d o r e s ” 26.

Uma vez qualificados para o cargo, os Deputados

teriam direito de voto, assim atuando

Em todas as sentenças definitivas, e nas interlocu tórias, que


tiverem a mesma força, ou dano irreparável, e e,m quaisquer
outras, que se tratar depois do processo que se puser em
mesa; na pronunciação das culpas, que tiverem de
proposições que a mesa tiver mandado qualificar, e nas que
o O r d i n á r i o r e m e t e r a o S a n t o O f í c i o . 27

A seguir encontramos, ainda na escala secundária do

organismo funcional, o posto de Promotor. Dele se exigia que

também fosse clérigo, e ainda licenciado em Leis, Cânones ou

Teologia, tendo em vista as tarefas que teria que desempenhar.

26 Regimento de 1640, Liv. I, Tit. I, Par. 1.


27 Idem, Par. 6.
56

O trabalho do Promotor pode ser dividido, segundo o

Regimento, em dois campos de abrangência. Num primeiro

momento, era encarregado de guardar e organizar os processos,

denúncias e papéis referentes aos autos -de-fé em ordem

alfabética, dentro do secreto inquisitorial.

Ao Promotor cabia, também, a estrutura arquivística

dos processos conduzidos e das investigações realizadas. Para

tanto, recomendava o Regimento que este funcionário tivesse,

em sua posse, dois cadernos: num deles, ficariam as petições a

favor das pessoas que se encontrassem detidas pelo Santo

Ofício, sendo anotadas minuciosamente e tendo à margem a data

do encaminhamento, dados do réu, ao lado da petição em si. Um

outro caderno, reunido em maços, abrangia as diligências

tocantes a cada processo, servindo assim de amplo instrumento

de dados de trabalho para os Deputados e Inquisidores, a fim de

que os processos fossem encaminhados da melhor e mais

minuciosa forma possível, bem ao estilo do Santo Ofício. Ainda

dentro do âmbito da organização de dados processuais, o

Promotor deveria organizar três livros, contendo denúncias

contra hereges, confessores solicitantes e contra os que

incorriam no pecado nefando. No que tange ao detalhismo

necessário à coleta de tais dados, e de sua utilidade

processualística, o Regimento é bastante minucioso e taxativo,

afirmando que

Contará o Promotor todas as denúncias, que no Santo Ofício


se tomarem, na forma seguinte; a saber, em cima da
57

denúncia porá q2uem denunciou, e contra quem; pela margem


irá pondo o juramento, que se deu ao denunciante, sua
idade, tempo, e lugar do delito, e substância dele,
circunstâncias que agravem e revelem cúmplices, se os
houver, e o que disser ao costume. Nas confissões fará as
mesmas contas, e além delas contará o ensino que ao réu se
fez, e em que tempo, e até quando lhe durou a crença nos
e r r o s , q u e c o n f e s s a 28

Ainda cabia ao Promotor, o arrolamento de culpas e

pessoas já penitenciadas nos autos-de-fé — era ele, deste modo,

o responsável pela formação de um “banco de dados” do Santo

Ofício.

O Promotor ainda desempenhava importante papel na

instrução e desenvolvimento dos processos. Agindo segundo

ordens do Inquisidor, cabia a ele julgar os casos que

merecessem investigação mais aprofundada, e encaminhar

petições aos Inquisidores, para que ordenassem a realização de

inquirições das testemunhas, tendo em vista a instrução dos

processos.

Num segundo âmbito, este cargo possuía a função de

um Promotor de justiça, stricto sensu. Uma vez analisado o caso

pelos inquisidores, o Promotor respo nsável pela redação do

libelo formal de acusação, que deveria ser feito dentro do estilo

do Santo Ofício, omitindo os nomes das testemunhas e dos

lugares onde os delitos haviam sido cometidos, sempre guardar

28 Regimento.., Livro I, Titulo VI, Par. 8.


58

o sigilo sobre as instruções que a Mesa detinha. Estes libelos

incluíam as culpas cometidas no cárcere, que eram acrescidas ao

processo de forma a enredar mais e mais os presos na teia de

culpas que movia a engrenagem inquisitorial. Para este caso, o

Regimento também é lapidar ao instruir os Promotores que

Por qualquer culpa que os réus cometerem no cárcere serão


acusados, ainda que já fossem por culpa da mesma espécie; e
neste caso formará o Promotor o libelo com tal cautela, que
não venham os réus em conhecimento, de que no Santo Ofício
se sabe, onde a culpa foi cometida, porém se os réus tiverem
confessado as culpas no cárcere, declarando como nele as
cometeram, não serão por elas acusados. Em todos os casos
sobreditos, e nos mais, que a mesa ordenar, acusará o
Promotor aos réus, mas sempre precederá m andado dos
Inquisidores para isso; e quando eles o não derem, e ele
entender, que por esse respeito fica ilesa a justiça, guardará
a o r d e m 29

O estilo inquisitorial de sigilo, circunlóquios e

meias-verdades se espelha nas instruções ao Promotor, também

responsável pela elaboração da prova de justiça, vinda depois da

acusação formal:

Depois dos réus serem acusados, requererá o Promotor que se


lhe faça a publicação da prova da justiça, se os processos
estiverem em termos para isso; e quando os réus pedirem que
se lhe declare o lugar do delito, e os Inquisidores por seu
despacho o mandarem declarar, o Promotor fará tal
declaração, calando a parte individual em que o delito foi
cometido; como será quando o crime se cometeu na Igreja de
S. Domingos de Lisboa, declarando que o lugar é Lisboa,
calando a Igreja, que é a parte, e assim nos mais casos
semelhantes. E quando o lugar, em que os réus cometeram o
delito for tão pequeno, ou tiver tais circunstâncias, que se
for declarado ao réu, virá ele em conhecimento de que m são
as testemunhas, o Promotor considerando a distância, que
vai desse lugar à cidade, ou vila, ou lugar; convém a saber,
quando o réu cometeu o crime em uma quinta uma légua de
Lisboa, dirá que o réu cometeu o crime uma légua ao redor
de Lisboa, e se as culpas forem cometidas no cárcere, sendo

29 Idem, Par. 21.


59

o réu morador na cidade em que assiste o Santo Ofício, ou


havendo notícia certa, que veio a ela no tal tempo, dirá que
a culpa se cometeu no Arcebispado, ou Bispado, em que
r e s i d e o S a n t o O f í c i o . 30

Por fim, acompanhante que era do processo desde o

primeiro até o último momento, cabia ao Promotor o cuidado

com a apresentação da documentação, encadernando cada

processo individualmente, e identificando -o na folha de rosto,

na medida em que o acesso fosse facilitado da melhor forma

possível, para o caso de consultas por parte dos Inquisidores.

Graças a isto, o Promotor também era responsável pelo

encaminhamento, como já foi aqui explicado, das listas dos

presos que foram levados aos autos-de-fé, e mesmo sobre o

destino que lhes coubera no cárcere — sendo assim, o guardião

fiel da máquina processual inquisitorial.

No organograma inquisitorial, encontramos ainda a

figura do Comissário. Cargo criado num momento em que a

Inquisição já se encontrava firmada e estabelecida, os

Comissários eram pessoas eclesiásticas e letradas, e possuíam as

mais diversas funções.

30 Idem, Par. 22.


60

Eles eram os responsáveis pelo encaminhamento

pessoal tanto das diligências processuais, quanto das diversas

investigações para ingresso nos quadros funcionais do Trib unal,

incluindo as de limpeza de sangue. Deveriam, para tanto, contar

com o auxílio de um escrivão.

Um outro aspecto importante a respeito dos

Comissários é o de que estas pessoas eram encarregadas de

representar, de forma simbólica, a figura dos “olhos e ouvidos”

da Inquisição, sempre alertas para coletar culpas e casos que

fossem passíveis de um processo inquisitorial, representando a

figura do Inquisidor onde não houvesse um tribunal

estabelecido. A este respeito, o Regimento de 1640 reza que

Se nas terras em que viverem acontecer alguma coisa, que


encontre a pureza de nossa Santa Fé, ou por alguma outra
via pertença ao Santo Ofício, avisarão por carta sua aos
Inquisidores, para que prover na matéria com o remédio, que
c o n v é m a o s e r v i ç o d e D e u s 31

Aos Comissários cabia a tarefa de fazer com que a

máquina processual da Inquisição funcionasse. Eram eles os

responsáveis pelas diligências e pela coleta de dados para

instrução e andamento dos processos, provendo o Promotor dos

dados que, conforme observamos, deveriam posteriormente

passar por minucioso arquivamento. Ainda no âmbito do

andamento processual, o Regimento de 1640 afirma que eram

31 Regimento.., Liv. I, Título XI, §6o.


61

eles, também os responsáveis pela execução das ordens de

p r i s ã o e m i t i d a s p e l o s I n q u i s i d o r e s 32.

Ainda no que tange a esta camada funcional

intermediária do Santo Ofício, encontramos o cargo de Notário.

Acompanhando um Estado que a cada vez mais adquiria um

cunho cartorial, o Santo Ofício, graças ao seu afã de classificar

e registrar todas as heresias e culpas sob sua jurisdição ,

produziu um corpus documental extenso, conforme tivemos

oportunidade de perceber ao estudar a ação do Promotor. Aos

Notários cabia acompanhar as sessões da Inquisição, sendo

responsáveis pela transcrição e anotação das ordens dos

Inquisidores e dos interrogatórios dos réus, para o que seguiam

instruções claras e precisas a respeito da notação que deveria

ser feita. Segundo o Regimento, o Notário deveria anotar

Pontualmente todas as palavras que o Inquisidor disser à


parte [i.e., o réu] e o que ela responder, lançando assim as
perguntas, como as respostas por extenso, não se contentando
c o m d i z e r , e s e n d o p e r g u n t a d o , r e s p o n d e u 33

Era responsabilidade dos Notários a anotação, para

devido controle, das entradas dos presos nos cárceres

32 Idem, § 8o. A respeito das funções dos Comissários, principalmente do


que tange à atuação inquisitorial no âmbito colonial, ver Sonia Aparecida
Siqueira, A Inquisição portuguesa e a Sociedade Colonial, , São Paulo,
Ática, 1978, 160-163. Ver também Bethencourt, História…, pág. 52.
33 Regimento.. , Livro I, Título VII, Parágrafo 7.
62

inquisitoriais, bem como a identificação e inventário dos

pertences de cada um deles. O acompanhamento dos Notários

também cabia quando houvesse solicitação para confessar por

parte de algum encarcerado.

Aos Notários cabia, também, a transcrição de todas

as contas realizadas pelo Tesoureiro, bem como também a de

quaisquer documentos solicitados pelos Inquisidores. É

importante lembrar que os Notários possuíam a chave do secreto

inquisitorial, podendo nele penetrar quando fosse necessário,

como na ocasião de arquivamento dos process os, ou mesmo para

procurar algum documento que lá estivesse. O juramento de

segredo prestado ao Tribunal, contudo, os impedia de retirar do

secreto qualquer papel ou documento, para divulgação ou mesmo

para uso em outras atividades que não as inquisitoriai s.

O cargo de Notário era revestido de importância na

medida em que ele, por tomar nota e transcrever tudo que se

passava dentro do Santo Ofício, tornava-se repositório de

informações que deviam ser mantidas no mais absoluto sigilo. A

precaução contra o vazamento de informações por parte do

Santo Ofício se viu fragilizada quando, no século XVII, Pedro

de Lupina Freire — justamente um Notário —, deu à luz as

Notícias Recônditas do Modo de Proceder da Inquisição

para com seus Presos. Nesta obra anti-inquisitorial —

atribuída ao ferrenho inimigo da Inquisição, o Padre Antônio

Vieira — era denunciado o tratamento desumano dado aos


63

presos dentro dos cárceres inquisitoriais, bem como a

metodologia utilizada pelo Tribunal para obtenção de

confissões, que não raras vezes chegava à violência física,

d e l a ç ã o e m e s m o e s p i o n a g e m 34. N u m a é p o c a e m q u e a I n q u i s i ç ã o

fazia calar as vozes dissonantes, este foi um dos primeiros

escritos de grande impacto contra o Tribunal, tornando -se um

monumento que seria usado pelas gerações críticas posteriores.

Por fim, entre as últimas obrigações dos Notários —

que, assim como o Promotor, também acompanhavam os

processos em todas as instâncias que lhes fossem cabíveis —

estava a sua presença junto ao Alcaide dos estabelecimentos

inquisitoriais, a fim de inventariar os nomes, objetos, roupas e

pertences de todos os réus que saíssem em auto, bem como era

sua atribuição elaborar as listas dos réus de cada auto, contendo

os nomes, idades, procedências, culpas e penitências que lhes

eram dadas.

Finalmente, no âmbito das ocupações menores do

Santo Ofício, encontramos o cargo de Familiar. Os Familiares

eram leigos que estavam institucionalmente vinculados ao

Tribunal. Para ascender ao cargo, deviam passar pelos

34 Pedro Lupina Freire, “Notícias recônditas do modo de proceder da


Inquisição com seus presos” In Obras Escolhidas do Padre Antonio
Vieira, Obras várias II, Lisboa, Ed. Sá da Costa, 1951.
64

costumeiros exames quanto à limpeza de sangue e também

quanto à probidade de sua conduta.

Outro ponto relevante a respeito dos Familiares diz

respeito à sua extração social. Consta no Regimento de 1640

que os Familiares “terão fazenda, de que possam viver

a b a s t a d a m e n t e ” 35.

O pertencimento à familiatura significava também a

aquisição de diversos privilégios que acarretavam em elevação

do status social. Graças à concessão de privilégios reais, os

Familiares eram isentos de impostos, obrigação de serviço

militar e de alojamento de tropas. Em cont raparida, possuíam

autorização de vestir seda, mesmo não sendo cavaleiros,

desfrutavam de uma jurisdição privada para os casos de crimes e

delitos em que estivessem envolvidos, e também recebiam o

d i r e i t o d e u s a r a r m a s d e f e n s i v a s e o f e n s i v a s 36.

Por fim, dentro das obrigações pertencentes aos

Familiares, estava a efetivação das prisões ordenadas pelos

Inquisidores. Os Familiares, finalmente, também deviam

acompanhar os réus nos autos-de-fé, acompanhando os presos

35 Regimento de 1640, L. I, Tít. XXI, § 1.


36 Bethencourt, op. cit., pag. 125. Ainda a respeito da familiatura, ver
Daniela Buono Calainho, Em Nome do Santo Ofício: Familiares da
Inquisição portuguesa no Brasil colonial, Dissertação de Mestrado
apresentada à Universidade Federal do Rio de Janeiro, 1992..
65

na procissão da cerimônia, atuando como um anj o da guarda dos

r é u s 37.

— Difusão do Organismo Inquisitorial no Reino e nas

Conquistas

Em Portugal, notamos que, na medida em que o

corpo funcional da Inquisição se consolidava e difundia pela

população, toda a sociedade passava a ficar sob os vigilantes

olhares do Tribunal. Do mais afastado camponês, do colono

perdido nos longínquos confins do Brasil, ao nobre cortesão,

todos — em teoria — estavam sujeitos a processo e punição

pelo Tribunal. Isto era fruto natural da sua ampla liberdade de

ação, embora o Directorium Inquisitorum, — celula-mater da

literatura inquisitorial, dos manuais de con fessores, dos futuros

Regimentos da Inquisição portuguesa —, aconselhasse cautela

aos Inquisidores, no proceder contra as altas dignidades. Para o

Directorium, o Inquisidor devia, prudentemente, passar as

perseguições a príncipes e reis “para nosso senhor o Papa”, na

medida em que tais personagens possuíam poderes e,

eventualmente, poderiam vingar-se e entravar o trabalho do

Inquisidor, que era “pobre e fraco”. Mesmo levando -se em

37 Regimento de 1640, Liv. I, Tít XXI, § 2º.


66

conta esta cautela, é importante notar a abrangência da

jurisdição inquisitorial na medida em que o Tribunal poderia

“perseguir qualquer leigo, independente de posição e condição,

s e j a h e r e g e , s u s p e i t o o u , s i m p l e s m e n t e , d i f a m a d o ” 38. É n e s t e

ponto, segundo Francisco Bethencourt, que reside o caráter

verdadeiramente “moderno” da Inqui sição: na não-existência de

limites jurisdicionais, foros ou de classes sociais. Todos

estavam sujeitos a processo, prisão e condenação pelo Santo

O f í c i o 39. T a l f a t o é c o n f i r m a d o p e l o R e g i m e n t o d a I n q u i s i ç ã o

portuguesa de 1640. No Livro I, fica demarcada co m bastante

precisão a jurisdição dos Inquisidores, que

Procederão contra todas as pessoas Eclesiásticas, seculares,


e regulares, de qualquer estado, e condição que sejam ,
que forem culpadas, suspeitas, ou infamadas no crime de
j u d a í s m o , o u e m q u a l q u e r o u t r a h e r e s i a 40.

Tal abrangência de ação estava assentada na ampla

difusão da vigilância inquisitorial pela sociedade portuguesa e

colonial. Os olhos atentos da Inquisição pairavam sobre todos

os recantos do reino e colônias. Revitalizada pelas novas

38 Este texto, que normatizava a Inquisição Papal, serviu como base para a
elaboração dos Regimentos e da processualística inquisitorial de
Portugal e Espanha, sendo constantemente seguido no que se refere a
estes aspectos. Eymerich, op.cit., pp. 194-195.
39 Francisco Bethencourt, Inquisição e Controle Social, Lisboa, 1982, ex.
mimeo, pag. 4.
40 Regimento do Santo Oficio da Inquisição dos Reinos de Portugal ,
Lisboa, na Officina de Manoel da Silva, 1640, Livro I, Tit. III, § VII.
Grifo meu. Uma outra edição deste Regimento pode ser encontrada na
Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, n 392, 1996,
pp. 693-883.
67

diretrizes adotadas pela Igreja após o concílio Tridentino, a

vigilância do Tribunal, que significava também um efetivo

controle de ideias, ações e crenças, pairava sobre todos os

cristãos do território português, d’aquém e d’além mar. A

eficácia neste controle era devida ao funcionamento de um

abrangente sistema de informação que permitia que denúncias,

confissões e testemunhos transitassem por todo o vasto império

português, chegando até as sedes de Tribunais, fornecendo

assim material para a instrução dos process os.

A abrangência desta ação e a ampla troca de

informações no seio da engrenagem inquisitorial foi viabilizada

por longo processo de difusão do organismo inquisitorial na

sociedade portuguesa, o que se dava através da disseminação de

seus agentes, tais como os Familiares e os Comissários, e a

promoção e exortação constantes da denúncia e confissão. O

Santo Ofício fazia franco uso de uma política pedagógica

baseada na ação intimidadora, na violência do processo e na

infâmia pública, advinda de suas punições exemplares. Tais

elementos serviam para difundir incessantemente uma imagem

aterrorizante do Tribunal, que encontrava forte pilar de apoio

no sigilo a respeito de tudo que acontecia com os réus, uma vez


68

q u e e s t e s a d e n t r a s s e m a s d e p e n d ê n c i a s d o S e c r e t o i n q u i s i t o r i a l 41.

O próprio Regimento de 1640, a este respeito, é categórico ao

afirmar que

Por enquanto o segredo é uma das coisas de maior


importância ao Santo Ofício, mandamos que todos o guardem
com particular cuidado, não só nas matérias de que poderiam
resultar prejuízo, se fossem descobertas, mas ainda
naquelas, que lhes parecem de menos consideração, porque
no Santo Ofício não há coisa em que o segredo não
s e j a n e c e s s á r i o . 42

Ainda no que tange à pedagogia intimidante do Santo

Ofício, temos na própria lite ratura inquisitorial exemplos

definitivos. Um destes se encontra nas palavras do Manual dos

Inquisidores, onde se afirma ser a difusão do medo a mola mestra

da atuação inquisitorial:

É preciso lembrar que a finalidade mais importante do


processo e da condenação à morte não é salvar a alma do
acusado, mas buscar o bem comum e intimidar o povo (ut
alii terreantur). Ora, o bem comum deve estar acima de
quaisquer outras considerações sobre a caridade visando o
b e m d e u m i n d i v í d u o 43.

Para o Tribunal, era necessário levar sua presença a

todos os recantos do reino, fazendo -se conhecido e temido por

todos os s ú d i t o s 44. Nos primeiros momentos após sua

41 Ver Pedro Marcelo Pasche de Campos, “A violência oculta: uma análise


do sigilo no processo inquisitorial” in Discursos Sediciosos: Crime,
Direito e Sociedade, Rio de Janeiro, Instituto Carioca de
Criminologia/Revan, 1997, Ano 2 N 3, pp. 167-172.
42 Regimento..Livro I, Tit. I, §7, in RIHGB, nª 392, pag. 695. Grifo meu.
43 Manual.., pag. 122.
44 A respeito da importância da intimidação no discurso inquisitorial, um
bom estudo é o de Bartolomé Bennassar, “Modelos de la mentalidad
inquisitorial: Métodos de su ‘pedagogia del miedo’” In Angel A lcalá
69

implantação, os tribunais distritais da Inquisição portuguesa, os

d e É v o r a , C o i m b r a , L a m e g o , T o m a r , P o r t o e L i s b o a 45, e n v i a r a m ,

em procedimento correlato ao da justiça episcopal, diversos

Visitadores. A abrangência destes tribunais distritais pode

melhor ser observada através do mapa que se segue:

(org.), Inquisición Española y Mentalidad Inquisitorial , Barcelona,


Ariel, 1984, pp. 174-184.
45 Estes eram os tribunais distritais que funcionaram a partir da instituição
do Santo Ofício em Portugal. Seu número, contudo, sofreu alterações
com o passar do tempo: em 1547, deixaram de funcionar os tribunais do
Porto, Lamego e Tomar. Em 1560, foi criado o tribunal de Goa — o
único no mundo colonial. As possessões de além-mar de África e o Brasil
estavam sob a jurisdição do tribunal de Lisboa. Os territóri os asiáticos
ficavam sob a jurisdição de Goa, que enviava Visitadores a locais tão
distantes quanto a China, Japão e Ormuz. A este respeito, ver Biblioteca
Nacional do Rio de Janeiro — Seção de Manuscritos, cod. 25, 2, 6.
70

FIGURA 3 — Na Rota das Primeiras Visitas: Divisão do reino pelos distritos


inquisitoriais
( Fonte: Bethencourt, Inquisição e Controle Social)

Os Visitadores, por sua vez, inspecionavam a

obediência à ortodoxia, coletando denúncias e confissões a

respeito de desvios da norma, esquadrinhando, assim, cada

canto do reino, na busca dos delitos cometidos e levando ao

povo a sua presença como símbolo da justiça inquisitorial.

Assim agindo, o Visitador colhia informações para o início de

novos processos, ou para auxiliar no andamento de outros já em

curso. Ao proceder desta maneira, o Santo Ofício demonstrava

uma preocupação com a territorialidade que encontra


71

similaridade na constituição territorial do Estado Moderno.

Paralelamente à ação deste, passou por um processo

caracterizado pelo delineamento e pela tomada de posse, mesmo

que simbólica de seu espaço territorial, demarcando os seus

limites geográficos e seu âmbito de ação.

Para um mais efetivo controle social do Reino e

colônias, era necessário ao Santo Ofício difundir sua malha

organizacional, bem como sua rede de vigilância e i nformações.

Tal fato só se tornou possível através das Visitações e da

designação de um grande número de Familiares e Comissários,

localizados no interior das comunidades, atingindo desde as

grandes cidades até o infinitesimal vilarejo, aparentemente

esquecido pelos mapas. Além do patrulhamento exercido através

das visitas, era necessário à Inquisição a infiltração no próprio

organismo social, transformando assim todos os cidadãos em

denunciados e denunciantes em potencial, vigiados por

elementos do corpo funcional, bem como pelas pessoas comuns,

a quem a delação e confissão eram estimuladas pelos sermões da

fé e editais expedidos pelo Tribunal. Graças a esta difusão de

sua rede organizacional, a Inquisição encontrava -se disseminada

e f u n c i o n a n d o e f e t i v a m e n t e n o r e i n o 46.

46 Os Familiares e Comissários, além de servirem no despacho das causas do


Tribunal, eram os membros da hierarquia inquisitorial que tinham mais
próximo contato com a população. Tornavam, assim, o Tribunal mais
72

Na segunda metade do século XVI e especialmente

durante o domínio filipino, as visitas passaram a alcançar

também as colônias e territórios de além -mar, percorrendo os

Açores e a Ilha da Madeira (visitas contínuas entre 1575 e

1619), o Brasil (1591-1595, a cargo de Heitor Furtado de

Mendonça; 1618-1620, pelo licenciado Marcos Teixeira) e

Angola (entre 1596 e 1598). Esse processo, por sua vez, fazia

parte da auto-afirmação do Tribunal que, por essa época,

ganhava cada vez mais autonomia no rein ado de D. Henrique: o

aparato cerimonial se fazia mais elaborado e faustoso; os

funcionários da malha inquisitorial trabalhavam e mantinham

em constante movimento a máquina processual e a Inquisição

divulgava sua ação e poderio na sociedade portuguesa, do reino

e c o l o n i a l 47.

visível à
sociedade. Ver Francisco Bethencourt, História das
Inquisições, Lisboa, Círculo de Leitores, 1994, pp. 122-130. Ainda
sobre a familiatura, em suas relações com o Brasil colonial, ver Daniela
Calainho, op. Cit.
47 Magalhães, op. cit., pag. 480.
73

CAPÍTULO 2: OS HOMENS E OS CARGOS: CARREIRAS IMBRICADAS

O
s estudos sobre a composição social do corpo

inquisitorial revelam-se de significativa importância

para a compreensão da estruturação e dinâmica da

sociedade portuguesa do Antigo Regime. Como já tivemos

oportunidade de observar anteriormente, o pertencimento à

hierarquia inquisitorial implicava na aquisição de privilégios e

status social, além de ser um atestado claro e preciso da pureza

genealógica, o que era importante para o acesso a outros cargos

na própria administração civil do reino. Era também uma etapa

importante nas carreiras individuais, tanto civis quanto

eclesiásticas.

Neste capítulo, analisaremos um desses segmentos da

administração do Tribunal. O que se quer, aqui, é mostrar a

importância do pertencimento à hierarquia inquisitorial para

carreiras voltadas em direção às altas esferas da administração

portuguesa. As carreiras destes indivíduos demonstram

claramente as interpenetrações entre a Igreja e a nobreza no

Portugal do Antigo Regime. Por outro lado, mostram também

quão entranhada estava a Inquisição na administração do reino,

pois as biografias revelam pessoas que ocuparam os mais


74

variados cargos da administração portuguesa, como ministros,

conselheiros de Estado e mesmo reis.

Devido à grande abrangência e impossibilidade que

seria a tarefa de vasculhar o corpus de Inquisidores portugueses,

em seu conjunto, nos deteremos na análise prosopográfica dos

I n q u i s i d o r e s G e r a i s 48. A o b s e r v a ç ã o d a s c a r r e i r a s d e t o d o s o s

Inquisidores — não só dos que ocuparam o cargo máximo da

hierarquia do Tribunal, mas também os dos tribunais distritais e

os do Conselho Geral do Santo Ofício — revela-se objeto de

e s t u d o f a s c i n a n t e 49.

Em um de seus trabalhos, Bartolomé Bennassar

apontou a necessidade de estudar as carreiras dos Inquisidores

espanhóis, como forma de compreender as relações entre

I n q u i s i ç ã o e E s t a d o 50. B e n n a s s a r , c o n c o r d a n d o c o m J u l i o C a r o

Baroja, indicou a existência de uma lacuna neste âmbito,

afirmando que “os historiadores pouco se ocuparam em saber

quem eram os Inquisidores, qual era sua formação, sua carreira,

48 A opção pela prosopografia foi inspirada no estudo de Peter Burke sobre


as elites de Veneza e Amsterdam. Cf. Peter Burke, Veneza e Amsterdam,
São Paulo, Brasiliense, 1991.
49 O historiador Francisco Bethencourt, figura de ponta na historiografia
inquisitorial portuguesa contemporânea, possui um banco de dados a
respeito destes Inquisidores. Menção a este banco é feita em História
das Inquisições, Lisboa, Círculo de Leitores, 1994, pag. 131, nota 18.
50 Bartolomé Bennassar, “Inquisition espagnole au service de l’Etat” in
Revue Historique, nº 15, pp. 35-46.
75

seu destino”. Bennassar também assinala o fato de que o cargo

de Inquisidor em Espanha constituiu, quase sempre, uma etapa a

mais nas trajetórias de vida dos seus ocupantes, que partiam

para ocupar postos de maior peso na administração do reino e

das c o l ô n i a s 51. Seguindo estas diretrizes, propomo -nos a

verificar se tais dados são ou não aplicáveis para o estudo da

Inquisição portuguesa, onde tais investigações se encontram

ainda em seus estágios iniciais.

Para esta análise, foi estruturado um pequeno banco

de dados a respeito das vidas e carreiras dos Inquisidores

Gerais. As informações coletadas fornecem subsídios para a

análise prosopográfica dos Inquisidores em questão: quais os

cargos que ocuparam na administração tanto da Igreja quanto do

Estado; quais eram seus laços de família; qual sua formação

intelectual. Deste modo, temos um retrato o mais nítido

possível destas pessoas, o que nos ajuda, d ecerto, a

compreender melhor as relações entre Inquisição, Igreja e

Estado no Portugal do Antigo Regime.

A tentativa de estudo da biografia coletiva deste

grupo social pretende esclarecer alguns aspectos referentes à

51 Idem, pag. 42.


76

extração social dos Inquisidores Gerai s, e sua atuação tanto no

âmbito político quanto no eclesiástico. Enfim, buscamos, aqui,

esclarecimentos a respeito da inserção sócio -política destes

Inquisidores.

Antes de começarmos, contudo, faz -se necessária

uma advertência. Peter Burke, em inspirador estudo

prosopográfico sobre as elites de Veneza e Amsterdã, com toda

a razão adverte o leitor a respeito de algumas limitações deste

método. Para Burke, a análise de biografias coletivas esbarra

num primeiro obstáculo: a falta de dados. No caso da presente

pesquisa, tal afirmação se confirmou plenamente: as

informações foram sendo pinçadas ao longo de diversas obras, e

não surgiram de maneira uniforme, a própria massa de dados

variou de indivíduo para indivíduo. Encontramos diversos

Inquisidores que tiveram maior importância no âmbito da

administração, e por isso os dados a seu respeito são mais

fartos, como no caso de D. Henrique e do Arquiduque Alberto

de Áustria, por exemplo. Por outro lado, Inquisidores Gerais

que possuíram uma atividade menos evidente a cabaram deixando

dados relativamente escassos, o que torna a tarefa

prosopográfica ainda mais árdua.

Peter Burke aponta para uma outra questão a respeito

da prosopografia: a confiabilidade de suas informações e das

conclusões alcançadas. O autor alerta para o perigo de


77

Tratar-se a amostra sobre a qual se têm informações


confiáveis como uma amostra aleatória de toda a população
que está sendo estudada, quando ela não é nada disso.

E Burke prossegue, afirmando que

Em outras palavras, mesmo usando os métodos da biografia


coletiva, não é possível generalizar sobre uma base
absolutamente firme; por outro lado, falar sobre o grupo sem
considerar alguns de seus membros, um a um, é generalizar
s e m b a s e a l g u m a ” 52.

Ao investigar as biografias de 563 homens, Peter

Burke realmente corria este perigo. Contudo, creio que tal risco

se torna significativamente reduzido, em relação ao estudo que

aqui é feito. O universo de análise é bem mais reduzido que o

de Burke, e bem mais homogêneo. Enquanto Burke trabalhou

com elites de Veneza e Amsterdã, estamos investigando apenas

os ocupantes de um determinado cargo, e em muito menor

quantidade. Tal fato, creio eu, permite considerar alguns casos

individualmente, fornecendo um terreno mais seguro para as

conclusões e possíveis generalizações.

— Os Homens e os Cargos: carreiras imbricadas

O primeiro ponto de análise diz respeito à extração

social dos Inquisidores Gerais. A análise das biografias mostra

que, num universo de 22 Inquisidores, 13 (isto é, 56,5%)

52 Burke, op. cit.,, pag. 22.


78

possuem ligações diretas com a nobreza. Quatro deles — D.

Henrique, D. Alberto e os dois membros da casa de Bragança,

D . A l e x a n d r e e D . J o s é 53 — e s t ã o l i g a d o s a f a m í l i a s r e a i s , e d o i s

deles, D. Henrique e D. Alberto de Áustria, efetivamente

g o v e r n a r a m P o r t u g a l 54. P a r a m e l h o r v i s u a l i z a ç ã o d e s t e s d a d o s ,

foi elaborada uma tabela em que constam as carreiras

administrativas dos Inquisidores

TABELA I: as carreiras administrativas dos Inquisidores Gerais

em Portugal

Inquisidores Rei V. R. Reg Desemb. C.E. Min. F.R. A.N. J.G

Diogo da Silva X X

D. Henrique X X X X

Manuel de Meneses X

53 Para as datas de ocupação do cargo de todos os Inquisidores Gerais


mencionados, ver anexo I, pág. 241..
54 O arquiduque Alberto de Áustria vinha de família real — era filho de
Maximiliano — e foi vice-rei de Portugal, sob a União Ibérica, te ndo seu
governo durado de 1583 a 1593.
79

Jorge de Almeida X X X

Alberto de Áustria X X

Antonio de Noronha X

Jorge de Ataíde X X

Alexandre de Bragança X

Pedro de Castilho X X X

Fernão Martins Mascarenhas X

Francisco de Castro X X

Sebastião C. de Meneses X X X

Pedro de Lencastre X X X

Veríssimo de Lencastre X X

José de Lencastre X X

Nuno da Cunha X X

José de Bragança X

João Cosme da Cunha X X X

Inácio de S. Caetano X X

José Maria de Melo X

José Joaquim A. Coutinho

Abreviaturas:

V.R — Vice-Rei

Reg — Regente
Desemb — Desembargador
C.E. — Conselho de Estado
Min — Ministro de Estado
F.R. — Família Real
A.N. — Alta Nobreza
J.G. — Junta de Governo

É ainda necessário lembrar que D. Henrique foi o

responsável pela efetiva consolidação da implantação, bem

como pela autonomia administrativa da Inquisição em solo


80

português. Acumulando as altas dignidades civis e eclesiásticas,

pois também ascendera ao cardinalato, D. Henrique proveu a

Inquisição de todo o aparato necessário para a ação: instituiu o

Conselho Geral do Santo Ofício, estabeleceu regimentos

normatizadores, dentre os quais figurou o primeiro da

Inquisição portuguesa; publicou listas de livros proibidos, além

de ter sido o responsável pela organização dos Tribunais

d i s t r i t a i s 55.

Os restantes Inquisidores Gerais são membros das

famílias mais tradicionais da nobiliarquia lusitan a. A tendência

de ter nobres na alta hierarquia inquisitorial sofreu

modificações somente a partir da segunda metade do século

XVIII, época de declínio e submissão total do Tribunal ao

Estado, que culminou com sua assimilação à justiça régia por

Pombal, em 1769. Nos últimos anos do Santo Ofício percebe -se

esta assimilação: dois dos últimos Inquisidores Gerais, Fr.

Inácio de S. Caetano e Fr. José Maria de Melo foram ambos

confessores de D. Maria I.

A investigação sobre a origem dos Inquisidores

Gerais nos aponta, de um lado, para o alto grau de

clericalização da nobreza; de outro, aponta para a importância

55 A vida e carreira de D. Henrique constituem um riquíssimo material de


estudos, ainda inexplorado do ponto de vista da historiografia
inquisitorial portuguesa.
81

dada pela Coroa à direção do Tribunal da Inquisição. Igreja e

Coroa, apesar dos inúmeros conflitos, possuíam diversos

interesses em comum. O fato de o Inqu isidor Geral ser

originário da alta nobreza proporcionava uma ligação política e

de lealdade entre este e a Casa real. Em diversos casos o

Inquisidor era possuidor de laços muito próximos com o

monarca, como foi o caso de Jorge de Almeida, testamenteiro de

D. Henrique, e Jorge de Ataíde, freq uentador dos círculos mais

íntimos de D. João III. Este fato compensava a ampla

independência que o Inquisidor Geral possuía, uma vez

nomeado.

No universo dos Inquisidores Gerais, encontramos

aqueles que não possuíram tão grande proximidade com a

Coroa, mas que usaram de astúcia e de um pouco de

oportunismo para subir em suas carreiras ou mesmo preservar a

própria existência e o cargo, fator marcante durante os duros

tempos da União Ibérica, quando a Inquisição foi util izada

como instrumento de repressão ao Partido Português e àqueles

que apoiassem a Restauração lusitana.

Outro exemplo de astúcia, posterior à União Ibérica,

foi o caso de João Cosme da Cunha. Possuidor de um

sobrenome infausto para a administração pombal ina, omitiu ser

um Távora devido à brutal punição que desabou sobre aquela

Casa nobre, e buscou acolhida na França, voltando a Portugal

depois de esfriados os ânimos a respeito do caso. Uma vez


82

retornado a Portugal, aproximou-se de Paulo Carvalho

Mendonça, o irmão eclesiástico do Marquês, e graças a esta

proximidade conseguiu granjear progresso dentro da carreira

eclesiástica. Devido à amizade influente e ao desconhecimento

de seu verdadeiro sobrenome por parte do Marquês, D. João

Cosme da Cunha foi bispo de Leiria, Arcebispo de Évora e

Presbítero-cardeal, respondendo junto a Paulo Carvalho pela

direção espiritual da Igreja em Portugal, durante o período de

ruptura com a Sé de Roma (1760 -1770). Em 1770, foi alçado ao

supremo posto inquisitorial, no qual permaneceu até 1783,

colhendo os frutos de sua bem sucedida carreira e lembrando -se

de que o silêncio é de ouro

Todavia, convém lembrar que as ligações entre os

Inquisidores Gerais e a Coroa não impediam a existência de

conflitos entre os dois âmbitos de pode r, como realmente

ocorreu por diversas vezes. Tal foi, por exemplo, o caso do

Inquisidor Francisco de Castro que, devido à perseguição dos

cristãos-novos protegidos por D. João IV durante a guerra da

Restauração, foi preso e teve suas dignidades retiradas. A ação

do Inquisidor demonstra a independência do Tribunal, que

muitas vezes passava por cima dos interesses da Coroa,

conflitando abertamente com ela.


83

Outro campo de investigação diz respeito às carreiras

eclesiásticas dos Inquisidores Gerais. Em nos so universo de

análise, encontramos arcebispos (11), bispos (16), cardeais(7), e

ainda priores. Um caso especial é o priorado da colegiada dos

Guimarães, ocupado por D. Alexandre de Bragança e, em

momentos posteriores, por Pedro de Castilho e D. Fernão

Martins Mascarenhas. Agremiação de clérigos em forma de

colégio clerical, regida por um prior, há que se lembrar que a

colegiada de Guimarães foi uma das mais ricas, poderosas e

antigas de Portugal, tendo sido criada pelo rei Afonso

H e n r i q u e s n a p r i m e i r a m e t a d e d o s é c u l o X I I 56.

Dentre os indivíduos investigados, encontramos os

que ocupavam dois ou mais cargos eclesiásticos; acumulados

com cargos na administração civil, simultaneamente ou em

momentos distintos de suas carreiras. Assim foi o caso de D.

Henrique, que ascendeu ao cardinalato em 1545, quando já era

Inquisidor Geral. D. Veríssimo de Lencastre, além de ocupar o

cargo de Inquisidor Geral, também foi arcebispo de Braga —

uma sé de marcada importância — e também cardeal.

Assim também ocorreu com outros Inquisidores:

Sebastião César de Meneses — nomeado em 1663, não chegou a

56 Fortunato de Almeida, História da Igreja em Portugal , Porto, Livraria


Civilização, 1931, vol 2, pag. 102.
84

tomar posse — é um bem acabado exemplo de carreira brilhante

na hierarquia eclesiástica e do Estado. Sebastião ocupou

algumas das principais arquidioceses do reino (Évora, Braga e

Lisboa). No âmbito da administração do Estado, foi

desembargador do Paço, membro do Conselho de Estado e

ministro assistente do despacho de D. João IV e D. Afonso VI,

tendo participado ativamente das altas esferas políticas

portuguesas por dois reinados conse cutivos. O gráfico abaixo

permite ao leitor uma melhor visualização das carreiras

eclesiásticas dos Inquisidores Gerais, apresentando também sua

distribuição proporcional:
85

GRÁFICO 1: os principais cargos eclesiásticos ocupados pelos Inquisidores Gerais


portugueses

Notamos uma grande mobilidade no âmbito da

carreira eclesiástica dos Inquisidores Gerais. Um dado comum

aos Inquisidores era a ocupação de cargos episcopais. Todos os

Inquisidores Gerais portaram, em algum momento de suas vidas,

a mitra episcopal — o que também é um indício do

entranhamento do Tribunal na organização eclesiástica da Igreja

portuguesa. A tabela II fornece uma dimensão exata do que é

aqui afirmado: os Inquisidores Gerais ocuparam, ao longo da

história do Tribunal dioceses várias — algumas de grande

prestígio, como Braga, Porto e Coimbra. Há, inclusive, um dos

raros casos de um bispo de uma diocese colonial: tra ta-se de

José Joaquim Azeredo Coutinho, bispo de Pernambuco que foi

Deputado às Cortes de 1820 pelo Rio de Janeiro. Último dos

Inquisidores Gerais, Coutinho morreu antes de ver o fim do

Tribunal, extinto em 1821.

TABELA II: a carreira eclesiástica dos Inqu isidores Gerais


86

Inquisidores CONF ARC BISPO CARD C.M. ORDEM

Diogo da Silva X Braga X Franc.

D. Henrique Evora e Braga X


Lisboa

Manuel de Meneses Coimbra

Jorge de Almeida Lisboa

Alberto de Áustria Toledo X

Antonio de Noronha X

Jorge de Ataíde X X

Alexandre de Bragança Évora

Pedro de Castilho X X

Fernão Martins Mascarenhas X

Francisco de Castro X

Sebastião C. de Meneses Évora, Porto e Coimbra


Braga e
Lisboa

Pedro de Lencastre Évora, X X


Braga

Veríssimo de Lencastre Braga X

José de Lencastre X X Carmo

Nuno da Cunha Braga X X

José de Bragança Braga S. Bento de


Avis

João Cosme da Cunha Évora X X Agostiniana

Inácio de S. Caetano X X Carmo

José Maria de Melo X X Oratorio

José Joaquim A. Coutinho Pernambuco

Abreviaturas:
CONF — Confessor Real
ARC — Arcebispo
CARD — Cardeal
C. M. — Capelão Mor
Nota: No caso de bispado e cardinalato, foram mencionados nominalmente apenas as
sedes de maior importância política; as de menor expressão foram demarcadas com um
X.
87

A análise dos currículos dos Inquisidores Gerais

ajuda, também, a desfazer a ideia do predomínio dominicano na

direção do Tribunal desde sua fundação. A preponderância da

ordem dominicana na direção da Inquisição, corrente na Idade

M é d i a , n ã o e n c o n t r a p a r a l e l o e m P o r t u g a l 57. O s c u r r í c u l o s d o s

Inquisidores apontam apenas seis membros de ordens religiosas:

Carmo (D. José de Lencastre e Fr. Inácio de S. Caetano), um

oratoriano (D. José Maria de Melo), o franciscano Fr. Diogo da

Silva, e também o agostiniano D. João Cosme da Cunha.

Também encontramos um representane da ordem militar de S.

Bento de Avis, à qual pertenceu D. José de Bragança. A tônica

era dada, pois, pela predominância de indivíduos perten centes

ao alto clero secular, ligados à nobreza.

As tramas do poder se emaranham mais ainda na

medida em que avaliamos o alcance da atuação dos Inquisidores

Gerais na esfera da administração do Estado. Também neste

ponto fica patente a mobilidade das carreiras. Dentre os

Inquisidores, além dos que até aqui já foram mencionados

exercendo cargos públicos, encontramos aqueles que foram

57 Bennassar conta, para a Espanha, cinco Inquisidores -mores dominicanos.


Ver “Inquisition espagnole..”, pag. 40. Contudo, os dominicanos tinham
direito a um assento perpétuo tanto no Consejo de La Suprema espanhol,
quanto no Conselho Geral do Santo Ofício português.
88

desembargadores da Coroa, como Fr. D. Diogo da Silva, ou

ainda D. Pedro de Castilho. João Cosme da Cunha e Fr. Inácio

de S. Caetano, os dois confessores de D. Maria I, também

ocuparam cargos ministeriais, além de fazerem parte do

Conselho de Estado de Sua Majestade.

Os Inquisidores Gerais, seus postos e


origens

Desembargadores
4 Família Real
4
17 4 Ministros

9
Alta Nobreza
Conselheiros

GRÁFICO 2: os Inquisidores Gerais na administração do Estado e suas relações com


linhagens nobres e reais.

Um ponto importante a ser ressaltado diz respeito ao

pertencimento de quase todos os Inquisidores Gerais ao

Conselho de Estado (foram 17, num universo de 22). Tal status,

como já tivemos a oportunidade de observar, fora outorgado

pela própria Coroa. Isto sig nificava, entre outros privilégios, o

acesso às altas esferas decisórias do reino, junto com os outros

Conselhos — o da Guerra, o das Finanças e o da Administração.


89

Órgão de vasta abrangência jurisdicional e

geográfica, o Santo Ofício constituiu, desde a sua formação,

uma potência de grande peso no jogo de poderes no Portugal do

Antigo Regime. Atuando entre a administração eclesiástica e a

secular, a importância política do Santo Ofício era, realmente,

considerável.

No âmbito administrativo, a Inquisição p ortuguesa se

caracterizava por sua independência face ao controle direto da

monarquia, o que não ocorria no caso espanhol. Deste modo, as

tentativas da Coroa em manter o Tribunal sob uma relativa

vigilância recaíam nas políticas de nomeações dos Inquisidor es

Gerais. Tais pessoas, ocupantes do mais alto cargo inquisitorial,

como vimos, eram retiradas dos altos estratos da nobreza, e

estavam muitas vezes ligados à Coroa por laços de parentesco,

clientelismo ou amizade. Tal fato contudo, não era um

impedimento para os possíveis conflitos jurisdicionais e

políticos, que eventualmente ocorriam.

Por tudo o que foi exposto até o presente momento,

concluímos pela permeabilidade nas altas esferas da

administração eclesiástica, régia e inquisitorial. A análise

prosopográfica demonstra a mobilidade e o trânsito dos

Inquisidores Gerais no interior destas esferas de ação. Eram

homens poderosos, porque nobres, ou então porque além disso,

ocupavam cargos que os punham em situações de mando. Viviam


90

com o projeto de forjar novas consciências cristãs e reprimir os

desvios da ortodoxia. Estavam certamente, situados entre a fé e

o poder.
91

CAPÍTULO 3: AD MAJOREM DEI GLORIAM

— as Marcas do poder

O
surgimento do mundo moderno no Ocidente trouxe,

em seu bojo, intrincados processos históricos, como

os descobrimentos ultramarinos, a desagregação

crescente do modelo senhorial, e o surgimento dos Estados


58
centralizados e das Reformas religiosas .

Pretendemos fazer a partir deste momento uma

análise da atuação do Tribunal do Santo Ofício da Inquisição

como um agente normalizador e difusor de um determinado

padrão de crenças e comportamentos, no Império português no

início da Idade Moderna. Atuando quer por meios veementes e

ostensivos, ou por outros mais sutis, o Tribunal contribuiu no

seu campo específico a favor de um grande processo histórico

58 Consideradas as duas reformas, protestante e católica, como partes de um


amplo processo de reestruturação que perpassou, de modos diversos, a
Igreja de Roma nos aspectos dogmáticos, rituais e eclesiásticos,
atendendo a demandas que já vinham sendo feitas, por parte dos fiéis, há
bastante tempo, num movimento que remonta à baixa Idade Média. Para
uma analise destas transformações, ver N. S. Davidson, A Contra-
Reforma, São Paulo, Martins Fontes, 1993. Ver também Jean Delumeau,
El Catolicismo de Lutero a Voltaire, Barcelona, Labor, 1973
(especialmente os dois primeiros capitulos).
92

de transformações culturais, a saber: o da fabricação, por parte

do Estado centralizado, de um tipo de súdito ideal. Por outro

lado, a partir do século XVI, auxiliou a Igreja roman a, atuando

no sentido de formar o fiel perfeito, incutindo na população as

regras da ortodoxia advindas do Concílio de Trento, marco

basilar do movimento de reforma católica.

Pretende-se, através do presente capítulo, transitar

por estes processos históricos, tendo sempre por campo

privilegiado de reflexão o reino português. Numa primeira

etapa, discutiremos a problemática do Santo Ofício em

Portugal, ligando-o à estratégias de controle racial, bem como

analisaremos os objetivos principais de sua atuação. Por fim,

estudaremos a Inquisição portuguesa no mais restrito âmbito do

controle social, atuando como um elemento de vigilância e

normalização da sociedade portuguesa incluídas, aqui, as terras

de além-mar, para onde Visitadores do Tribunal também foram

enviados.

Outra etapa do texto é dedicada à análise dos

processos formadores na Idade Moderna, do súdito e do fiel

ideais. Cremos que, inspirados nas investigações de Norbert

Elias a respeito da Europa, podemos encontrar indícios de uma


93

t r a n s f o r m a ç ã o c i v i l i z a c i o n a l n a p o p u l a ç ã o o c i d e n t a l 59, v o l t a d a

para o domínio e controle das mais elementares pulsões

humanas, no bojo do surgimento do homem moderno.

— A Inquisição na Península Ibérica

A preocupação com os desvios da ortodoxia sempre

foi uma constante para a Igreja de Roma. Sua história apresenta

diversos episódios de querelas, disputas, esforços e tentativas

no sentido da manutenção de uma unidade, tanto doutrinária

quanto organizacional. Desde seus primórdios, a Igreja se

encontrou às voltas com diversas dissidências, tendo-as tratado,

em uma perspectiva geral, de duas maneiras. Uma destas vias de

ação era a perseguição e eliminação física da dissidência, como

ficou patente na cruzada contra os cátaros do sul da França em

1209. A outra via de ação era a incor poração das dissidências,

quando as ideias divergentes sofriam um processo de

conformação à norma prescrita. Um exemplo deste modus faciendi

pode ser encontrado no caso da criação da ordem franciscana,

59 Quando utilizamos a expressão civilizacional, nos referimos a um amplo


conjunto que passa por atitudes culturais, mo rais, políticas, econômicas
e religiosas. Ver, O Processo Civilizador, trad. port., Rio de Janeiro,
Zahar, 1990 (vol. I), e 1993 (vol II).
94

em 1210, possível graças à adaptação das ideias de São

Francisco.

O Tribunal do Santo Ofício da Inquisição foi criado

com a finalidade de preservar a unidade dogmática no seio da

cristandade, então abalada pela disseminação de movimentos

heréticos, dentre os quais destacava -se o dos cátaros, que

professavam uma doutrina de caráter fortemente maniqueísta.

Esta primeva Inquisição teve seu âmbito de ação restrito à

Itália, França, Aragão e Alemanha, sendo que o ritmo de sua

atividade foi declinando com o passar do tempo, sem, contudo,

ter sido em momento algum formalmente extinta, como foram as

I n q u i s i ç õ e s m o d e r n a s , d e r r u b a d a s p e l o s v e n t o s d o l i b e r a l i s m o 60.

Seus procedimentos processuais eram calcados na manutenção

permanente do sigilo; também fazia parte importante da ação

inquisitorial o recurso à tortura física como forma de obter dos

60 A Inquisição medieval é uma problemática bastante abrangente. O leitor


interessado poderá encontrar mais subsídios em Nachman Falbel,
Heresias Medievais, trad. port., São Paulo, Perspectiva, 1977. Para uma
perspectiva institucional da Inquisição medieval, grande referência é o
clássico de Henry Charles Lea, A History of the Inquisition in the
Middle Ages, New York, S. A. Russel Publishers, 1956, 3 vols. A pouco
investigada atuação desta Inquisição em Portugal, reino onde não tiveram
lugar as querelas doutrinárias relativas aos cátaros, por exemplo, recebe
interessante tratamento em um ensaio de Maria Jose Pimenta Ferro
Tavares, intitulado “Inquisição: antecedentes e estabelecimento” in
Judaismo e Inquisição, Lisboa, Presença, 1987, pp. 105-145.
95

r é u s i n f o r m a ç õ e s e c o n f i s s õ e s 61. A a ç ã o d o s I n q u i s i d o r e s e r a

orientada por uma literatura específica, corporificada nos

c h a m a d o s M a n u a i s d e I n q u i s i d o r e s 62. M i s t u r a n d o e l e m e n t o s e

procedimentos da justiça canônica e do direito roman o —

criando assim uma praxis particular —, o Santo Ofício era um

veemente elemento difusor da ortodoxia, responsável por

violentos processos de normalização e conformação cultural e

religiosa. Esta peculiaridade se evidencia, por exemplo, no caso

dos benandanti friulanos. Em interessante estudo, Carlo

Ginzburg mostra como os benandanti, que, segundo se

acreditava, combatiam bruxas, garantindo assim as colheitas e

prosperidade, foram, com passar de anos de atuação

inquisitorial agressiva e constante, demonizados, deixando de

ser compreendidos como participantes de um culto agrário de

fertilidade para serem incorporados ao imaginário demoníaco do

sabá. Uma outra face interessante desta atuação encontra -se no

61 Ver Edward Peters, História da Tortura, Lisboa, Teorema, s.d, pp. 51-
88.
62 Nesta ampla literatura, ocupa lugar de destaque o m anual de Bernardo
Guy. Um dos manuais que possuiu grande influência na estruturação dos
procedimentos inquisitoriais, sendo inclusive o grande referencial da
Inquisição ibérica, é o de Nicolaus Eymerich, Manual dos Inquisidores
(Directorium Inquisitorum), tradução portuguesa, Rio de Janeiro/
Brasília, Rosa dos Tempos/UnB, 1993. Escrito por Eymerich em 1376,
foi revisto e ampliado por Francisco Peña em 1578. O grande marco
desta literatura, contudo, é a obra de Heinrich Kramer e Jakob Sprenger,
intitulada Martelo das Feiticeiras (Malleus maleficarum), tradução
portuguesa, Rio de Janeiro, Rosa dos Tempos, s.d. Misto de tratado
demonológico e manual de Inquisidores, o Malleus teve sua primeira
edição em 1484; até o século XVIII, sucessivas reedições foram
realizadas.
96

caso da repressão às formas religiosas amerín dias, as quais os

Visitadores enviados ao além-mar — formados através dos

tradicionais manuais de Inquisidores e de uma literatura

demonológica, as interpretavam segundos eus próprios padrões.

Graças a este referencial em suas formações, os Visitadores, ao

se encontrarem face ao que lhes era completamente

desconhecido até o momento de contato com a religião indígena

em solo americano, submetiam esses cultos a um processo de

d e m o n i z a ç ã o . 63

Na Península Ibérica, a Inquisição dita moderna (em

contraposição à Inquisição medieval) apareceu em primeiro

lugar na Espanha, em 1478, e posteriormente em Portugal, onde

foi estabelecida em 1536, com a bula Cum Ad Nihil Magis, só

passando a funcionar, neste reino, definitivamente 11 anos

depois, através da bula Meditatio Cordis, concedida por

Clemente VII. O contexto em que ocorreu o surgimento destas

63 Carlo Ginzburg, Os Andarilhos do Bem, São Paulo, Companhia das


Letras, 1988. No caso do contato com as formas religiosas ameríndias, os
Inquisidores — formados no padrão europeu, calcado na literatura
demonológica e dos manuais de Inquisidores — se encontravam, no Novo
Mundo, diante de práticas e crenças que radicalmente divergiam dos
moldes europeus, estes mais direcionados à detecção e eliminação de
hereges e bruxas. No que diz respeito a este encontro de crenças tão
diferentes entre si, remeto o leitor ao ensaio de Laura de Mello e Souza,
“O conjunto: América diabólica” in Inferno Atlântico, São Paulo,
Companhia das Letras, 1993, pp. 21-46. Outro estudo interessante é o de
Ronaldo Vainfas, a respeito da Santidade do Jaguaripe. Ver A Heresia
dos Índios, São Paulo, Companhia das Letras, 1995. Finalmente, o leitor
poderá encontrar informações sobre o tema em Pedro Marcelo Pasche de
Campos, Inquisição Magia e Sociedade, dissertação de Mestrado
apresentada à Universidade Federal Fluminense, Niterói, 19 95, ex.
mimeo.
97

Inquisições era outro, bastante diverso do momento de

instalação de sua congênere medieval. No caso em questão, a

atuação do Santo Ofício estava direcionada primordialmente

para a repressão dos judeus convertidos ao cristianismo,

denominados conversos em Espanha, e cristãos-novos em

P o r t u g a l , e d e s e u s d e s c e n d e n t e s 64. N e s t e â m b i t o a I n q u i s i ç ã o

ibérica atuava, ultrapassando os limites de um tribunal de fé,

tornando-se um importante instrumento de aculturação do povo

judeu que, convertido por meio da força, não foi totalmente

integrado à população cristã do Reino. Alguns elementos

recalcitrantes à esta conversão forçada ainda continuavam na

prática de sua religião ancestral às escondidas, outros

mesclavam rituais judaicos e católicos. Esta prática da religião

judaica pelos cristãos-novos, era qualificada como heresia na

medida em que, como cristãos, deviam seguir a ortodoxia cristã

— o q u e l e v a v a a j u s t i f i c a r a a t u a ç ã o i n q u i s i t o r i a l 65.

64 Para a perseguição aos cristãos-novos no Brasil, ver Anita Waingorth


Novinsky, Cristãos-Novos na Bahia, São Paulo, Perspectiva, 1992, Lina
Gorenstein Ferreira da Silva, Heréticos e Impuros, Rio de Janeiro,
Secretaria Municipal de Esportes, Educação e Cultura, 1995, e da mesma
autora, O Sangue que Lhes Corre Nas Veias, tese de doutoramento
apresentada à USP, São Paulo, 1999, ex. mimeo.
65 O surgimento das Inquisições ibéricas tem suas raízes mais profundas
vinculadas à mentalidade anti-judaica vigente na Península, desde a Idade
Média. Esta questão, contudo, foge ao âmbito do presente estudo.
Maiores dados referentes a esta questão ela podem ser encontrados em
António José Saraiva, Inquisição e Cristãos-novos, Lisboa, Estampa,
1985, e Maria José Pimenta Ferro Tavares, Judaísmo e Inquisição,
Lisboa, Presença, 1987, caps. I e II. Para o caso espanhol, ver Ricardo
Garcia-Cárcel, Orígenes de la Inquisición Española: el Tribunal de
Valencia, Barcelona, Península, 1976. O contexto da implantação do
98

Uma outra característica relevante nas Inquisições

ibéricas reside em sua relação com o Estado, a quem estariam,

em teoria, subordinadas. Esta relação de subordinação é mais

evidente na Espanha. Lá, o Tribunal foi, entre outras c oisas, um

instrumento de centralização do poder monárquico. Sendo uma

instituição verdadeiramente unitária em território espanhol, o

Tribunal agia com a mesma abrangência nos reinos de Castela e

Aragão, trabalhando ativamente nas tarefas de repressão às

dissidências religiosas, bem como na perseguição às elites locais

contrárias ao processo de centralização de poderes pela Coroa,

a g i n d o c l a r a m e n t e d e a c o r d o c o m o s p l a n o s d a m o n a r q u i a 66.

A utilização da Inquisição como aparelho de Estado

deu-se, em Portugal, de forma diferente. Neste reino, as

relações com o Estado oscilavam entre aproximações e

afastamentos. D. João III, ao solicitar de Roma a implantação

do Santo Ofício em Portugal, tinha em vista uma Inquisição

régia, inspirada no modelo castelhano. Apesar dos Inquisidores

Gerais portugueses terem suas nomeações feitas primeiramente

Santo Ofício em Portugal é também analisado por Alexandre Herculano,


em seu clássico História da Origem e Estabelecimento da Inquisição
em Portugal, Lisboa, Europa-América, s.d., 3 vols.
66 O papel da Inquisição na formação do estado absolutista espanhol
mereceu as atenções de Perry Anderson, em Linhagens do Estado
Absolutista, tradução portuguesa, Porto, Afrontamento, 1984, pag. 73.
Para a atuação contra as elites locais, fator que evidencia o processo de
centralização política, ver Bartolomé Bennassar, “Inq uisiton Espagnole
au service de l’Etat” In Revue Historique, nº. 15, pag. 38-46.Para mais
detalhes sobre esta situação em Espanha, ver Bennassar, op. cit.
99

pelos reis, sendo posteriormente confirmadas pelos Papas —

fato que Saraiva considera um indício de submissão e

dependência frente à Coroa —, mantinham razoável autonomia

de ação, uma vez empossados no cargo. Esta política de

nomeações demonstra uma tendência da Coroa ao controle do

Tribunal, logo no período inicial de seu estabelecimento, no

reinado de D. João III (de 1521 a 1557).

Podemos afirmar que a afinidade plena entre o Santo

Ofício e os interesses do Estado português tiveram curta

existência: ela existiu apenas durante os primeiros decênios

após a instalação do Tribunal. Neste momento, nobreza e Coroa

utilizavam a Inquisição como, nas palavras de Joaquim Romero

Magalhães, “uma forma de controlar os grupos não dominantes

e ascendentes da sociedade”, ou seja, para perseguir a

incipiente porém fugidia burguesia c r i s t ã - n o v a 67. Em um

momento posterior, à medida em que o Tribunal crescia em

termos de autonomia administrativa e jurídica, ganhando maior

peso político, as tendências se encaminharam no sentido de

surgirem interesses conflitantes, seguidos de inevitáveis tensões

entre Coroa e Inquisição. Exemplo disso foi o caso, no século

67 Joaquim Romero Magalhães, A Sociedade, in História de Portugal volume


3, Lisboa, Estampa, 1994, pag. 480. Ver também Anita Novinsky,
Cristãos-novos na Bahia, São Paulo, Perspectiva, 1972.
100

XVII, das querelas relativas aos cristãos -novos, importantes

financiadores das guerras de Restauração e perseguidos pela

Inquisição, sob veementes protestos da Coroa, evidenciando

desta forma os atritos existentes entre ambos, uma vez que aa

Inquisição, ainda sob a influência do domínio filipino, se

mostrou refratária à Restauração.

Um terceiro momento desta relação se define pela

atuação efetiva do Santo Ofício enquanto parte do aparelho de

Estado, inclusive com sua incorporação formal à justiça régia, o

que só veio a acontecer, no Portugal da segu nda metade do

s é c u l o X V I I I , s o b a é g i d e p o m b a l i n a 68.

— A Repressão aos Desvios da Fé

68 Ver, a este respeito, Raúl Rêgo, “O Marquês de Pombal, os cristãos -


novos e a Inquisição” in Maria Helena Carvalho dos Santos (org.),
Pombal Revisitado, Lisboa, Estampa, 1984, vol I, pp. 307-335, e Pedro
Marcelo Pasche de Campos, op.cit., pp. 96-103. Este assunto será
discutido mais adiante, no capítulo VI da segunda parte, intitulado A
Inquisição Sob o Signo do Poder.
101

Da mesma forma que no caso espanhol, a Inquisição

portuguesa teve, desde a sua implantação, como alvos principais

os judeus, cristãos-novos convertidos e seus descenden tes. Uma

análise do Monitório da Fé, de 1536, primeira arrolação dos

d e s v i o s p a s s í v e i s d e r e p r e s s ã o i n q u i s i t o r i a l , a s s i m o c o m p r o v a 69:

a maioria dos delitos descritos diz respeito a práticas judaicas.

Em muito menor proporção, se encontram relacionadas outr as

faltas, como o luteranismo, heresia então em franca difusão nas

regiões mais ao norte da Europa, porém de pouca penetração no

território português; práticas mouriscas (ou seja, a prática do

Islam); bruxaria e feitiçaria; blasfêmias e leitura de livros

proibidos.

— Os Zeladores da Ortodoxia

69 Tais delitos estão minuciosamente listados no Monitório de 1536, que


leva a assinatura do primeiro Inquisidor Geral de Portugal. Ver
Collectorios das Bullas e Breves Apostolicos, Cartas Alvarás e
Provisões Reaes, e outros papeis, em que se contêm a instituição e primeiro
progresso do Sancto Officio em Portugal, Lisboa, nas Casas da Sancta
Inquisição, 1596. Maria J. P. F. Tavares apresenta, em obra já citada,
uma transcrição da versão manuscrita deste Monitório, às páginas 194 -
199 — com uma série de discrepâncias em relação ao texto impresso
mencionado. Quanto ao monitório citado, ver Anexo I.
102

Para zelar pela ortodoxia e realizar efetivamente suas

funções de controle social, era necessário ao Santo Ofício

tornar-se temido e respeitado pela sociedade portuguesa, tanto

no âmbito reinol quanto no colonial. A fim de atingir tal

objetivo, a Inquisição utilizava um aparato simbólico e

cerimonial de intimidação, que tinha por elemento básico a

d i f u s ã o d o m e d o n a s o c i e d a d e 70, c o n s c i e n t e m e n t e a d o t a d a c o m o

método de ação, já anteriormente prescrito pelo Manual dos

I n q u i s i d o r e s , c o n f o r m e j á t i v e m o s o p o r t u n i d a d e d e o b s e r v a r 71.

Outro ponto gerador de receios entre a população era

a constante onipresença da vigilância inquisitorial. Uma vez que

os Monitórios incentivavam toda e qualquer denúncia, e

simplesmente a má reputação de um indivíduo poderia ser

suficiente para levá-lo a um processo inquisitorial, todos

temiam os olhos vigilantes da Inquisição, multiplicados através

daqueles que, pelas razões mais diversas, incluindo mesquinhos

interesses particulares, se tornavam diletos colaboradores do

Santo Ofício.

70 A esse respeito, ver Bennassar, “Modelos.. in Alcalá (org.), op. Cit., pp.
174-182.
71 Cf. supra, pág. 65.
103

Estes fatores contribuíam para criar uma aura de

insegurança e desconfiança constantes nas populações, uma vez

que qualquer pessoa poderia ser um denunciante virtual, se já

não o fosse de fato. Um agravante para esta conjuntura de de

temores e receios era a presença dos Familiares e Comissários,

pessoas ligadas diretamente ao Tribunal, que contribuíam para

manter a população sob vigilância, servindo também como

denunciantes, contribuindo para aumentar ainda mais as

desconfianças. A simples presença de uma autoridade

inquisitorial, por sua vez, fazia com que vizinhos pudessem

resolver tensões e querelas através de denúncias e delações,

agravando conflitos latentes.

No âmbito fracionado da administração e das

instituições jurídicas portuguesas do Antigo Regime, a

Inquisição desempenhava papel n o d a l 72. Destacando-se como

órgão de justiça com tendências universalistas numa constelação

de tribunais e justiças específicas, cujo alcance era limitado a

segmentos restritos da população, a Inquisição estendia seu

longo braço por todos os setores da sociedade portuguesa,

72 António Manuel Hespanha tem realizado importantes investigações no


campo da história institucional em Portugal. Para a questão do
fracionamento da administração — e, consequentemente, do sistema
jurídico portuguesa, ver de sua autoria, As Vésperas do Leviathan,
Coimbra, Almedina, 1994, especialmente os capítulos II e III.
104

73
vigiando-a e controlando-a com maior abrangência . Isto

ocorria num contexto histórico bastante peculiar, no qual a

efetiva centralização de poderes do Estado Mode rno esbarrava

em diversas resistências, principalmente no nível da

administração regional. Deste modo, penetrando nas esferas dos

micro-poderes, a Inquisição conseguia exibir uma linha

u n i f o r m e d e a t u a ç ã o e c o n d u t a 74. A t u a n d o t a n t o v e r t i c a l q u a n t o

horizontalmente na sociedade, a máquina inquisitorial mostrava -

se menos permeável às injunções da política regional. Deste

modo, a Inquisição agia como um amplo e uniforme difusor de

ortodoxia religiosa coerente com os interesses do Estado, bem

como de um padrão de comportamento que a Igreja julgava

necessário inculcar na totalidade dos fiéis.

73 Para a “constelação” de tribunais e justiças, ver História de Portugal


volume 4: o Antigo Regime, Lisboa, Estampa, s.d., organizado por A.
M. Hespanha.
74 As obras de Hespanha dão conta desta resistência do regional, bem como
da convivência entre formas de poder ce ntralizadas, típicas do Estado
Moderno, e outras de cunho tradicional em Portugal. Ver também Michel
Foucault, “A governamentalidade” in Microfísica do Poder, Rio de
Janeiro, Graal, 1979, pp. 277-293.
105

— O Santo Ofício Como Aparelho Normativo: uma outra face

do processo civilizador

O sociólogo Norbert Elias, em importante livro que foi

tardiamente descoberto pela historiografia influenciada pelo

movimento dos Annales, investigou a formação e

desenvolvimento, ao longo de vários séculos da história ocidental,

de uma longa transmutação, que atuava no sentido de refrear os

mais primários impulsos do homem, enclausurando -o numa redoma

de vigilância e autocontrole: um processo de autoeducação e de

f a b r i c a ç ã o d e i n d i v í d u o s c i v i l i z a d o s 75.

Tal processo ocorreu numa dimensão cronológica

extremamente longa. As investigações de Elias tiveram, como

ponto de partida, a análise dos costumes e hábitos das elites

medievais. A análise conduz -nos à conclusão de que o processo

civilizador atuou no sentido de transformar os rudes guerreiros

medievais em cavaleiros corteses, entendidos, aqui, também

75 Refiro-me aqui ao Processo Civilizador. Rio de Janeiro, Zahar, 1993.


.Para o presente estudo, utilizarei o segundo volume, apenas.
106

como habitantes de uma c o r t e 76. Paralelamente a esta lenta

educação das pulsões individuais em prol de uma pacificação da

existência cotidiana, encontram-se outros movimentos

históricos da maior importância. Estes, por sua vez, irão se

utilizar do avanço civilizacional, e se tornarão, eles próprios,

desdobramentos do processo civilizador. Podemos, dentre estes

movimentos, mencionar a ascensão e consolidação das

monarquias absolutistas e dos Estados centralizados, be m como

as reformas religiosas dos séculos XVI e XVII.

— O Estado Centralizado: afirmação e resistências

Segundo Michel Foucault, a questão da

governamentalidade, ou seja, da exeq uibilidade da centralização

do poder nas mãos do príncipe moderno, está situada na

confluência de dois pontos fundamentais na Europa dos séculos

XVI-XVII: a instauração dos “grandes Estados territoriais,

administrativos, coloniais” de um lado; de outro, os processos

76 Como podemos ver em outro estudo de Elias, intitulado A Sociedade de


Corte, Lisboa, Estampa, 1987. Cf. especialmente o capítulo intitulado “A
etiqueta e a lógica do prestígio”.
107

de reformas religiosas, que tiveram profundas conseq uências

p o l í t i c a s e s o c i a i s 77.

A questão, para a monarquia centralizadora que se

formava, era fazer-se presente, visível e palpável para a

população num todo. O que ocorreu, de um modo geral, foi uma

ampla difusão vertical do ideário de Estado, de suas práticas,

símbolos e instituições, quer culturais ou jurídicas, por toda a

sociedade. Importava ao Estado fazer -se presente em todas as

instâncias da vida dos indivíduos, vascularizando -se para atingir

os mais ínfimos espaços da existência. Este processo

vascularizador dependia, não devemos esquecer, da derrocada

das resistências oferecidas pelos direitos regionais. E, para

isso, era preciso muito mais do que o monopólio da coerção

física; fazia-se necessário, principalmente, convencer os

indivíduos da legitimidade e mesmo da necessidade das novas

formas de dominação que se impunham, quer fossem elas o

imposto sem contrapartida imediata, ou o código penal do

monarca, fazendo-as serem vistas como algo n a t u r a l 78. Era,

então, vital a posse de um arsenal de recursos sutis, c onstituído

por bens culturais e simbólicos, que atuariam a fim de moldar

77 Foucault, op. cit., pag. 278.


78 Cf. Pierre Bourdieu, “Espírito de Estado. Gênese e estrutura do campo
burocrático” in Raisons Pratiques, Paris, Éditions du Seuil, 1994, trad.
por Sônia R. Mendonça, pag. 12. Ver também Norberto Bobbio et allii,
Dicionário de Política, Brasília, EDUnB, 1993, vol. 1, pp. 387 -391,
verbete “Teoria das elites”.
108

os indivíduos de acordo com as novas exigências e diretrizes

d i t a d a s p e l a n a s c e n t e r a z ã o d e E s t a d o 79.

Tal processo, conforme já afirmamos, esbarrava em

diversas resistências, quer por parte das elites locais, que ainda

insistiam em manter seus poderes e privilégios senhoriais, ou

mesmo pelos indivíduos, que recalcitravam em abraçar a

submissão a este controle tão amplo. No caso português, temos

exemplos da primeira instância de resistên cia na dificuldade da

administração central se afirmar sobre os espaços senhoriais,

governados por nobres, eclesiásticos e grandes senhores, mando

cujas origens datavam dos já longínquos tempos da expulsão dos

mouros, momento primordial na formação da naci onalidade

l u s a 80. O m i t o d a c e n t r a l i z a ç ã o i m e d i a t a e a b s o l u t a d o p o d e r d a

Coroa em Portugal cede, por este prisma, lugar a um complexo

quadro de relações e interdependências, onde o binômio

conflito/negociação entre as instâncias superiores e a

administração local, como os Concelhos, ou mesmo a ampla

variedade dos foros jurisdicionais estamentais, desempenhará

importante papel. A homogeneidade aparente revela, por fim,

uma pulsante trama de pulverização do poder, subdividido em

Idem, pag. 4, passim.


79

80 Margarida Sobral Neto, “A persistência senhorial” in História de


Portugal volume 3, pag. 165. Ainda para os limites do poder real e su as
relações com os poderes senhoriais, ver Hespanha, As Vésperas.., pag.
472 ss.
109

várias instâncias, procurando abarcar e reger os mais diversos e

variados aspectos da vida social.

Ao Estado, interessava controlar essas ramificações

capilares, espraiar-se por esta rede, a fim de melhor difundir o

seu modelo administrativo. Para tanto, lançou mão não apenas

de um aparato jurídico, mas também de uma série de

instrumentos estratégicos para a formação de consensos

legitimadores em torno de si. Tais instrumentos atuaram,

segundo Pierre Bourdieu, no campo da subjetividade, “sob a

forma de estruturas mentais, de esquemas de percepção e

pensamento”, constituindo assim uma dominação duradoura, a

reproduzir-se constantemente quer através dos símbolos

utilizados pelo Estado, quer no sistema educacional, locus

privilegiado para a perpetuação de tais modelos de dominação,

ou ainda por elementos outros como por exemplo a cartografia

e a literatura, buscando assim a geração de um consenso que,

por sua vez, possuiria importante papel na formação de uma

i d e n t i d a d e 81.

81 Bourdieu, op. cit., pag. 5; 15ss.


110

— Reformas Religiosas e Normalização Social

Paralelamente a este processo de consolidação e

difusão do Estado, encontramos a emergência das Reformas

religiosas. Vertentes de um movimento de renovação do

c r i s t i a n i s m o s u r g i d o n a b a i x a I d a d e M é d i a 82, a s R e f o r m a s , t a n t o

a protestante quanto a católica, agiram também no sentido de

efetivar um processo normalizador, que visava a difusão de um

determinado paradigma comportamental: a imagem do fiel

perfeito, seguidor atento dos dogmas, praticante assíduo e

consciente dos ritos.

Os dois pólos da Reforma do cristianismo agiram,

cada qual de seu modo específico, no sentido de levar a

influência do cristianismo reestruturado aos aspectos mínimos

da vida dos fiéis. Ambos procuravam cada vez mais interiorizar

a devoção, bem como podar a praxis cristã de elementos que

eram considerados como “excessos” pelos reformadores, tais

como a grande intimidade existente no lidar com os santos e,

mesmo, um magismo ritual praticado tanto pelo clero quanto

pelos fiéis, que viam na Igreja um repositório de poderes

mágicos, prontos a serem utilizados em suas necessidades

82 Jean Delumeau, El Catolicismo de Lutero a Voltaire, Barcelona, Labor,


1973, pp. 9-27. Ver também Davidson, op. cit.
111

i m e d i a t a s 83. Os reformadores, tanto católicos quanto

protestantes, estes últimos, segundo Peter Burke, muitas vezes,

d e m a n e i r a m a i s i n t r a n s i g e n t e 84, r e p r i m i r a m e t e n t a r a m m o l d a r

condutas cotidianas e comportamentos sexuais, buscaram impôr

padrões éticos e mesmo reformar aspectos da cultura dos

setores populares da sociedade. Obrando de maneira diversa,

ambas as Reformas religiosas contribuíram, de certa forma, para

o processo de constituição dos súditos, levado a cabo pelos

e l e m e n t o s d a p e d a g o g i a d e E s t a d o 85.

No âmbito católico, que é o mais pertinente à

discussão aqui levantada, a reestruturação religiosa teve no

concílio de Trento um de seus principais marcos. Em suas

diretrizes, foram assentadas as bases da Reforma católica,

embora, verdade seja dita, muito poucas foram as verdadeiras

inovações propostas pelo Concílio. Neste ponto, Trento apenas

fez cumprir as determinações do IV Concílio de Latrão (1215),

83 Campos, op. cit., pp. 35-37. Sobre a interiorização da fé e da devoção,


ver Lebrun, “As Reformas: devoções comunitárias e piedade pessoal” in
Philippe Ariès e Roger Chartier (orgs.), História da Vida Privada 3: da
Renascença ao século das Luzes, São Paulo, Companhia das Letras,
1991, pp. 71-110. Finalmente, ver também John Bossy, A Cristandde no
Ocidente, Lisboa, Edições 70, 1988, parte I.
84 Peter Burke, Cultura Popular na Idade Moderna, São Paulo, Companhia
das Letras, 1989, pag. 238.
85 A problemática da reforma cultural das classes populares é tratada pela
já citada obra de Burke. Para o caso específico da atuação das reformas
religiosas neste grande processo de redefinição cultural, remeto o leitor
para o capítulo 8, intitulado “a vitória da quaresma”
112

que com o passar do tempo, acabaram por se tornar letra morta.

Trento inovou em poucos aspectos, como no caso das

determinações para criação de seminários, núcleos formadores e

preparadores do clero reformado, e vale a pena lembrar que a

reforma dos padrões de atitudes e comportamentos do clero era

uma demanda já muito antiga dos fiéis, e um dos mais fortes

p o n t o s d e a t r i t o c o m o s p r o t e s t a n t e s 86.

Contudo, o maior mérito do concílio tridentino foi o

início de um amplo trabalho normalizador de reestruturação da

fé e doutrina de fiéis e clero católicos, ultrapassando a letra

morta das decisões lateranenses. Neste ponto, toda uma

estrutura foi montada, no sentido de controlar e educar os fiéis

com maior eficiência, exercendo sobre eles uma vigilância mais

estreita. Dentre os mecanismos de controle utilizados por

Trento, por exemplo, encontramos a maior ênfase dada no

sacramento da Penitência. Tal ênfase agiu no sentido de colocar

a confissão sacramental na condição de instrumento privilegiado

para auscultar consciências e erros doutrinários, bem como

incutir sutilmente a norma o r t o d o x a 87. Os conselhos dos

86 Delumeau, op. cit., pag. 38.


87 Para a importância da confissão sacramental para a política tridentina,
ver a tese de Lana Lage da Gama Lima, A Confissão Pelo Avesso:
o crime de solicitação no Brasil Colonial, Tese de doutoramento apresentada
à USP, São Paulo, 1991, 3 vols, ex. mimeo. Ver também Delumeau, A
Confissão e o Perdão, São Paulo, Companhia das Letras, 1993,
especialmente o capítulo I.
113

confessores, os quais, em teoria, estariam preparados para

aplicar a ortodoxia tridentina, refletiriam e inculcariam, ao

nível do subconsciente preconizado por Bourdieu, a norma que

se desejava difundir. Deste fato, podemos inferir a importância

estratégica do clero paroquial, nos planos do concílio.

Difusores primários da ortodoxia, os padres deveriam estar

firmemente instruídos dentro dos cânones tridentinos, a fim de

divulgá-los no seio das comunidades de fiéis.

Podemos enxergar, na viragem so frida pela ação do

Santo Ofício, um outro indício da difusão dos novos paradigmas

ortodoxos. A atuação inquisitorial em Portugal no século XVII

se voltou também para a repressão aos pecados cometidos pelos

c r i s t ã o s - v e l h o s 88. A q u i , v e m o s o S a n t o O f í c i o o b r a n d o a s e r v i ç o

do processo normalizador levado a cabo pela Igreja tridentina.

Este investimento na implantação do novo ideal de fiel

constitui, na sua essência, um fenômeno paralelo ao esforço de

criação do súdito perfeito, encetado pelo Estado na mesma

é p o c a 89.

88 Ver Torres, op. cit., pp. 61-62. O correlato da Inquisição espanhola


pode ser visto no estudo de Jean Pierre Dedieu, “Les quatre temps de
l’Inquisition” in Bennassar (org.), L’Inquisition Espagnole, Paris,
Marabout, 1982, pp. 13-40.
89 O que, devemos lembrar, não significa a completa passividade das
monarquias face às diretrizes emanadas por Trento , ou mesmo aceitação
114

Agindo de forma semelhante, mas em âmbitos

diferentes, o poder religioso e o secular investiram na criação e

difusão de códigos civilizacionais voltados para suas respectivas

realidades. Tais códigos traziam dentro de si padrões de

comportamento, saberes e verdades que conduziam a direções

pré-concebidas: a soberania do governo, de um lado, e a

afirmação da Igreja, por outro. No fundo, ambos procuravam

instituir e legitimar identidades e identificações, abarcando

sempre o maior número possível de pessoas.

No caso de Portugal, a questão da identidade

nacional, a princípio, definia -se antes pelo pertencimento à

cristandade, em oposição ao inimigo muçulmano, à época da

expulsão e, posteriormente, como forma de excluir o elemento

judaico da população, do que pela filiação direta ao monarca.

Tal fato gerou uma identificação acima de tudo religiosa: o ser

p o r t u g u ê s s i g n i f i c a v a , a n t e s d e m a i s n a d a , s e r c r i s t ã o 90. A q u i , o

tácita, por parte da Igreja, das demandas da Coroa. A respeito destas


resistências e interações mútuas, ver Delumeau, El Catolicismo.., pp.
30-52. Em Portugal, embora o ambiente fosse o mais favorável possível a
uma introdução irrestrita das diretrizes tridentinas, houve resistências e
modificações por parte da Coroa. Ver História de Portugal volume 3,
pag. 191ss.
90 Hespanha e Ana Cristina Nogueira da Silva, “A identidade portuguesa” in
Hespanha (org.), História de Portugal volume 4, pag. 22. Esta
problemática também é discutida em livro organizado por Francisco
Bethencourt e Diogo Ramada Curto, intitulado A Memoria da Nação,
Lisboa, Sá da Costa, 1991.
115

fiel havia chegado antes do súdito e, não poucas vezes, se

confundia com ele.

— A Praxis Inquisitorial: a serviço da transformação

A cerimônia do auto-de-fé inquisitorial era muito

mais do que uma simples execução de sentenças. Momento

crucial do aparato de intimidação do Tribunal, era

cuidadosamente planejado no sentido de exibir um aspecto

pedagógico, bem ao gosto do estilo do Santo Ofício. Nos autos,

a Inquisição afirmava seu poder sobre a sociedade, como grande

i n s t â n c i a j u l g a d o r a e p u n i t i v a 91. C o m o d e m o n s t r a o R e g i m e n t o

de 1640, todos os detalhes do evento eram rigorosamente

planejados: desde as roupas dos prisioneiros até a procissão e

os termos de reconciliação dos réus, tudo estava

minuciosamente previsto, inserido em um script que deveria ser

s e g u i d o à r i s c a e m s e u s m a i s í n f i m o s d e t a l h e s 92.

Ao exibir, nos autos, os erros contra a fé, fos sem

eles de conduta ou doutrinários, a Inquisição mostrava o que

91 Sobre a cerimônia em si, ver Bethencourt, História.., pp. 195-257.


92 Regimento.., Livro II (diversos parágrafos).
116

seriam, sob sua ótica, mazelas e imperfeições da sociedade; ao

mesmo tempo, a ocasião era utilizada como uma oportunidade

de afirmação simbólica do seu poder. Tal exibição de força era

feita através das próprias pessoas dos desviantes, que ocupavam

lugar destacado e utilizavam os sambenitos, hábitos penitenciais

g e r a d o r e s d e i n f â m i a 93. A a p r e s e n t a ç ã o d o s d e s v i o s t a m b é m s e

dava através da leitura do Monitório, bem como pela realização

do sermão da fé, pregado com intenção de esclarecer e precaver

a platéia, que era a própria comunidade reunida, a respeito dos

erros passíveis de punição inquisitorial. Por fim, em uma só

ocasião eram exibidos os desvios da norma, seus praticantes e

os castigos a eles impostos, o que significava a reconciliação e

reintegração dos culpados ao grêmio da Igreja.

93 O uso do sambenito era uma marca de exclusão social. Uma das penas
aplicáveis nas condenações aos heresiarcas consistia, inclusive, no seu
uso perpétuo, estigmatizando, assim, o réu. Regimento.., Livro III,
título III, § X.
117

FIGURA 4 o sambenito, infame hábito penitencial


(gravura do século XVIII; Fonte: Bethencourt, História..)

Com a punição dos réus, o Santo Ofício mostrava o

destino dado aos desviantes, a justitia apregoada em seu

e s t a n d a r t e 94. O c r e p i t a r d a s f o g u e i r a s , o s d e g r e d o s e o a ç o i t e

eram a prova cabal do poder inquisitorial sobre a sociedade. Em

contrapartida às condutas desviantes, exibidas pelo Tribunal,

era apresentado um modelo comportamental a ser seguido: o

94 O lema da Inquisição, presente em seu estandarte (figura 5), era


misericordia et justitia.
118

auto-de-fé era, antes de tudo, uma forma intimidante de

e d u c a ç ã o d e m a s s a s 95.

FIGURA 5: O estandarte da Inquisição de Goa, onde se nota o lema do Tribunal.


Reprodução inglesa do século XIX. (Fonte: Bethencourt, História..)

Para conseguir a conformidade dos fiéis à regra, o

Tribunal, assim como o Estado, lançava mão de todo um aparato

de intimidação, calcado na coerção física e, mais

particularmente, na difusão do medo entre as camadas do corpo

95 Síntese ligeira e interessante do teatro pedagógico da Inquisição pode ser


encontrada no artigo de Luiz Nazário, “O julgamento das chamas: autos -
de-fé como espetáculos de massa” in Anita Waingorth Novinsky e Maria
Luiza Tucci Carneiro (orgs.), Inquisição, Rio de Janeiro/São Paulo;
Expressão e Cultura/EDUSP, 1992, pp.525-547.
119

s o c i a l 96. A u t i l i z a ç ã o c o n s c i e n t e d o m e d o s e m p r e f e z p a r t e d a

praxis inquisitorial, sendo um eficiente modo de afirmação,

conscientemente utilizado para aterrar o povo e assim impor

respeito face ao Tribunal, como já tivemos oportunidade de

verificar anteriormente.

Para atingir esse objetivo, a Inquisição não se

escusava de fazer uso de diversos elementos coercitivos, como o

sigilo processual, que se estendia também a todos os assuntos

p e r t i n e n t e s a o T r i b u n a l 97, o u a e x i b i ç ã o e e x e c u ç ã o p ú b l i c a d a s

sentenças, por parte do “braço secular”, isto é, a justiça do rei.

Ao atuar deste modo, o Santo Ofício desempenhava um papel

importante de difusor das novas normas cristãs. A ferro e fogo,

difundia a seu modo um dado código civilizacional, conduta

específica para os súditos católicos. A efetividade e validade do

Tribunal como um instrumento normalizador e de controle

social não pode ser negada. É, antes de mais nada, um aspecto

importantíssimo desta instituição. Tão importante que, no caso

96 Bennassar, “Modelos de la Mentalidad Inquisitorial: métodos de su


‘Pedagogía del Miedo’” In ALCALÁ, Ángel (org.), Inquisición Española
y Mentalidad Inquisitorial, Barcelona, Ariel, 1984, pp.174-182.
97 O tema do sigilo enquanto elemento fundamental da pedagogia do medo
inquisitorial é discutido mais detalhadamente em Pedro Marcelo Pasche
de Campos, A Violência Oculta: uma análise da importância do segredo no
processo inquisitorial, in Discursos Sediciosos: Crime, Direito e Sociedade,
Rio de Janeiro, Instituto Carioca de Criminologia, 1998, pp. 167 -172, e
Lana Lage da Gama Lima, Tradição Inquisitorial Jurídica em Portugal
e no Brasil o segredo e a construção da verdade, in Territórios da Língua
Portuguesa: culturas, sociedades, polít6icas, Anais do IV Congresso Luso-
Afro-Brasileiro de Ciências Sociais, Rio de Janeiro, UFRJ, 1998.
120

português, o governo pombalino optou pela ação pragmática:

reformou a estrutura dirigente e processual da Inquisição,

utilizando-a como um aparelho de polícia política.

A afirmação do Estado moderno foi acompanhada de

processos de transformações sócio -culturais, ocorridos em

diversas instâncias. Tais mudanças fizeram parte de um modelo

de legitimação do Estado. Este, à medida em que se afirmava

enquanto forma de dominação social e política, criava

instrumentos que lhe permitissem acumular um capital

simbólico-cultural legitimador, que era usado no sentido de

formar um consenso e uma aceitação da dominação pela Coroa.

Tudo isto caminhou no sentido de engendrar um paradigma

comportamental: o do súdito, que o Estado procurava inculcar

na população, quer através de modos mais diretos, como pe la lei

e pelo aparato normativo-judiciário, quer através de meios mais

sutis, como pelo sistema educacional, das cerimônias cívicas e

das artes, por exemplo.

Encontramos, por outro lado, no processo de

Reformas religiosas, um movimento que caminha paralela mente

em direção semelhante. Procurando incutir na população um

ideal-tipo de fiel perfeito, as Reformas vão atuar também no

sentido de criar elementos pedagógicos e difusores de um

modelo cultural específico. Neste ponto, o processo de reforma

católica na Península Ibérica teve na Inquisição um instrumento


121

veemente de propagação desse ideário. Paralelamente a outros

mecanismos de controle e aculturação mais sutis, como a

catequese e a confissão sacramental, o Santo Ofício atuava

aplicando uma pedagogia mais eficaz possível: a da intimidação,

exibição, condenação e punição do indivíduo.

A Inquisição teve um papel da maior importância na

difusão deste processo civilizador cristão. Ao passo em que

Portugal, auxiliado pelo Santo Tribunal, definia sua identidade

nacional em oposição aos elementos mouriscos e judaicos da

população, definia também sua identidade em uma outra

instância: a da Reforma católica.

Inquisição e Estado, neste caso, agiram de modo

paralelo, cada qual atuando em áreas de sua própria

competência. Os objetivos que se queria alcançar, contudo,

eram muito parecidos; daí a semelhança, também, de métodos e

estratégias de aculturação. O resultado deste “processo

civilizador” foi o surgimento do homem moderno.


122

PARTE II

A I N Q U IS IÇ Ã O E M T EM P O D E R EF O R M AS
123

CAPÍTULO 4:

O FIM DA VANGUARDA E O “LONGO SÉCULO XVI” EM PORTUGAL

E
studar o “longo” século XVI em Portugal constitui

tarefa árdua. Tal século foi tão longo, porque se

constituiu de diversas peculiaridades . Para Joaquim

Romero Magalhães, estudo deste porte pode ser feito através de

uma sistematização temática e cronológica, que primariamente se

encontra fracionada em três momentos cruciais.

O primeiro destes momentos ocorreu de maneira

precoce, com a ascensão de D. João II ao trono de Portugal.

Período de crescimento e prosperidade que pode ser delimitado,

por um lado, pelo afirmação do Estado moderno em Portugal. A

alimentar este sentimento geral de euforia e prosperidade,

encontramos a aventura da expansão ultramarina, inaugurada

pelo estabelecimento definitivo dos portugueses no Golfo da

Guiné e, posteriormente, através da consolidação pelas novas

rotas do Cabo e do Brasil. Tal momento de prosperidade veio

ter reflexos em diversos níveis da vida no Reino, quer sejam

através da dimensão social, política e econômica de Portugal,

que era assim levado a uma precoce vanguarda em relação ao

resto da Europa, que ainda não havia se lançado tão

inteiramente à aventura ultramarina e colonial. Tal vanguarda, a


124

seu turno, se manifestará em diversas faces, como a econômica,

demarcada pelo Capitalismo comercial, ou cultural, como se

poderá notar pela ascensão de uma forte veia humanista em

Portugal, encarnada e localizada, principalmente, no Real

Colégio das Artes, em Coimbra, sintonizado com o movimento

humanista que grassava na Europa. Do colégio e seus lentes,

que num primeiro momento eram os responsáveis pela educação

e preparação das elites portuguesas — depois acrescida dos

abastados filhos da burguesia —, emanavam as diretrizes para a

educação e normalização do ensino reinol, quer a nível básico

quer no que tange à formação das já citadas elites, constituindo

assim um campo de importância política e estratégica bastante

considerável.

Numa Segunda etapa desta periodização está o longo

reinado de D. João III, iniciado em 1521. É neste reinado,

marcado pela consolidação plena do Estado moderno em

Portugal, que a atuação de forças conservadoras farão grave e

decisiva mudança no painel otimista e marcado pela

prosperidade do reinado anterior. Num primeiro momento, há

que se marcar a entrada do Santo Ofício em Portugal, a serviço

da ortodoxia e dos interesses conservadores, difundindo tais

regras com a habitual e veemência de seu estilo. Outro elemento

decisivo foi também o espocar das reformas religiosas em toda

Europa. Era um momento de reestruturação da Igreja de Roma,


125

face aos movimentos reformadores, e face às monarquias cada

vez mais centralizadas, que buscavam progressivamente um

controle maior sobre o máximo de aspec tos possíveis da vida

pública, incluindo também o controle efetivo sobre os

organismos eclesiásticos, o que constituía um fator de marcada

importância face aos Estados confessionais. Neste momento de

redefinição de todo jogo político e da posição a ser ocu pada

pela própria Igreja, uma reação e um movimento reformista se

fazia cada vez mais prementes. Sua eclosão teve como principal

marco a reunião e realização do concílio de Trento (1543 -1565),

onde a reação e a própria reforma da Igreja católica tomaram

forma de lei. Por fim, é neste momento que se demarca, de

forma perene e definitiva, a ruptura da cristandade,

cristalizando a divisão confessional da antiga massa de cristãos,

de forma agora inabalável e irretocável.

Por fim, o terceiro momento da cronologi a proposta

por Joaquim Romero Magalhães é profundamente demarcado

pela entrada da Companhia de Jesus, outro instrumento eficaz

de difusão da ortodoxia (ainda que por meios mais sutis do que

aqueles utilizados pelo Tribunal do Santo Ofício) e pela sua

forte e perene ligação às esferas educacionais, veio transformar

de vez o quadro antes pintado, durante o reinado de D. João II.

As crônicas do ocaso começavam, assim, a ser escritas por meio

de tintas mais fortes, tendo finalização junto do “longo” século

XVI, que tão cedo começara, nos idos de 1481, e que vai
126

terminar com a crise dinástica e a perda de autonomia política

portuguesa, acarretada pela ascensão ao trono do monarca

Habsburgo Felipe II de Espanha, em 1581. Estaria assim

demarcado o final do “longo” século XVI lusitano, com todos

os atores e conjunturas de tal trama que se desenrolou,

concomitantemente, com as mais importantes convulsões que

deram origem, por toda Europa, ao mundo moderno.

Sem desmerecer a periodicidade de J. Romero

Magalhães cremos, contudo, que este processo histórico pode

ser melhor analisado tendo em vista uma perspectiva na qual

esteja inserida a longa duração. Assim sendo, podemos

ultrapassar a delimitação cronológica que abrangeria, a

princípio, entre 1480 e circa 1581, tendo como datas-limítrofes

o reinado de D. João II e a entrada de Felipe II como rei de

Portugal, respectivamente. Para Joaquim Romero Magalhães,

este período esteve marcado por altos e baixos, tendo sido a

princípio caracterizado por uma “euforia” proporcionada pela

expansão ultramarina e a consolidação do Estado moderno em

Portugal, já durante o reinado de D. João III. Como elemento

finalizador deste ciclo, encontra -se um “sentimento de

desespero” característico de grande e profunda decadência no

Reino, proporcionada pela fraqueza da casa reinante, pelo

fracasso da expedição Sebastiana em África, e também pela

vitória de forças conservadoras ligadas à ortodoxia católica

radical e à militância contra as Reformas protestantes.


127

O primeiro destes momentos de prosper idade e

euforia lusitanas ocorreu de maneira precoce, num momento

contemporâneo à ascensão de D. João II ao trono de Portugal.

Período de crescimento e prosperidade que pode ser delimitado,

por um lado, pela afirmação do Estado moderno em Portugal.

Concomitantemente e mesmo impulsionando a euforia e o

sentimento de prosperidade lusitanos, encontramos a aventura

da expansão ultramarina, inaugurada pelo estabelecimento

definitivo dos portugueses no Golfo da Guiné e,

posteriormente, através da consolidação pel as novas rotas do

Cabo e do Brasil. Tal momento de prosperidade veio ter

reflexos em diversos níveis da vida no Reino, quer sejam

através da dimensão social, política e econômica de Portugal.,

que era assim levado a uma precoce vanguarda em relação ao

resto da Europa, sob alguns aspectos. Tal adiantamento, por seu

turno, se manifestará em diversas faces, como a econômica,

demarcada pelo Capitalismo comercia, ou mesmo no aspecto

cultural, como se poderá notar pela ascensão de uma forte veia

humanista em Portugal, encarnada e localizada, principalmente,

no Real Colégio das Artes, em Coimbra, sintonizado com o

movimento humanista que grassava na Europa. Do colégio e

seus lentes, que num primeiro momento eram os responsáveis

pela educação e preparação das elites portuguesas — depois

acrescida dos abastados filhos da burguesia —, emanavam as

diretrizes para a educação e normalização do ensino reinol, quer


128

a nível básico quer no que tange à formação das já citadas

elites, constituindo assim um campo de importância política e

estratégica bastante considerável.

Num outro momento desta periodização está o longo

reinado de D. João III. É neste reinado, marcado pela

consolidação plena do Estado moderno em Portugal, que a

atuação de forças conservadoras farão grave e dec isiva mudança

no painel otimista e marcado pela prosperidade do reinado

anterior. Num primeiro momento, há que se marcar a entrada do

Santo Ofício em Portugal, a serviço da ortodoxia e dos

interesses conservadores, difundindo tais regras com a habitual

veemência de seu estilo. Outro elemento decisivo foi também o

espocar das reformas religiosas em toda Europa. Era um

momento de reestruturação da Igreja de Roma, face aos

movimentos reformadores, e face às monarquias cada vez mais

centralizadas, que buscavam progressivamente um controle

maior sobre o máximo de aspectos possíveis da vida pública,

incluindo também o controle efetivo sobre os organismos

eclesiásticos, o que constituía um fator de marcada importância

face aos Estados confessionais. Neste momento d e redefinição

de todo jogo político e da posição a ser ocupada pela própria

Igreja, uma reação e um movimento reformista se fazia cada vez

mais prementes. Sua eclosão teve como principal marco a

realização do concílio de Trento (1543 -1565), onde a reação e a


129

própria reforma da Igreja católica tomaram forma de lei. Por

fim, é neste momento que se demarca, de forma perene e

definitiva, a ruptura da cristandade, cristalizando a divisão

confessional da antiga massa de cristãos, de forma agora

inabalável e irretocável.

Por fim, a entrada da Companhia de Jesus, outro

instrumento eficaz de difusão da ortodoxia (ainda que por

meios mais sutis do que aqueles utilizados pelo Tribunal do

Santo Ofício) e pela sua forte e perene ligação às esferas

educacionais, veio transformar de vez o quadro do reinado de

D. João II. As crônicas do ocaso começavam, assim, a ser

escritas por meio de tintas mais fortes, tendo finalização junto

do “longo” século XVI, que tão cedo começara, nos idos de

1481, e que vai terminar com a crise dinástica e a perda de

autonomia política portuguesa, acarretada pela ascensão ao

trono do monarca Habsburgo Felipe II de Espanha, em 1581.

Estaria assim demarcado o final do “longo” século XVI

lusitano, com todos os atores e conjunturas de tal trama que se

desenrolou, concomitantemente, com as mais importantes

convulsões que deram origem, por toda Europa, ao mundo

moderno.

Contudo, cremos que as conjunturas do “longo”

século XVI em Portugal devem ser alinhadas para além das

fronteiras até aqui traçadas. Uma vez que tratamos de um


130

processo de longa duração, faz -se necessário que, por sua vez,

outros elementos sejam adicionados à trama que deu origem à

trama de que tratamos. Ultrapassando a barreira cronológica até

aqui apontada — de 1480 até 1581 —, temos ainda que avançar

mais na análise das conjunturas, desviando -nos do caminho

meramente cronológico. Trata-se, aqui, não necessariamente de

um século ou uma sucessão de eventos prévia e

cronologicamente delimitados.

Não negando a importância da “idade de ouro ” vivida

pelo período que abrange os reinados de D. João II e III, não

podemos dar por encerrado este longo século, para fins de

nosso estudo, apenas com o triunfo do conservadorismo e da

Reforma Católica em Portugal, sucedidos que foram pelo

desastre da expedição africana de D. Sebastião e a subseq uente

crise dinástica que trouxe ao poder em Portugal, por vias legais

e sem o uso de armas e conquista, um monarca estrangeiro. A

fim de entendermos as posteriores reformas do consulado

pombalino, bem como as motivações que levaram à sua eclosão,

é preciso ir um pouco mais além. Há que se lembrar que Pombal

não agia tão-somente contra as forças conservadoras. Antes de

serem o verdadeiro âmago de suas reformas, o grande poder

político da Companhia de Jesus e da In quisição podem ser

vistos como frentes diversas de uma batalha muito mais ampla

de reestruturação do Estado português, ocorrida no século

XVIII.
131

Sem, por momento algum, perdermos as perspectivas

na análise da longa duração destes acontecimentos e estrutura s

deles advindas, devemos nos debruçar mais além deste “longo”

século XVI já aqui estruturado. Devemos ter em conta, como

outro elemento de importância nodal a relação política e

econômica entre Inglaterra e Portugal.

O patente sentimento de derrota e perda de

independência será reforçado através do domínio cada vez mais

crescente da Coroa inglesa e de suas frotas comerciais sobre

Portugal, chegando mesmo a ponto de abranger toda a

navegação de cabotagem deste reino. Tal fato é devido, como

teremos oportunidade de observar mais a miúdo, a uma série de

tratados comerciais e de desequilíbrios na própria balança

comercial portuguesa. Esta dependência progressiva veio a se

consolidar através da já citada dominância anglicana sobre os

negócios portugueses, cada vez mais profunda e sutil, sem os

canhoneios que marcam as guerras e as grandes conquistas. Era

chegado então o momento de um novo tipo de dominação, muito

mais complexa e potente porque baseada na força dos

argumentos econômicos — respaldados por uma boa frota

guerreira. Entramos, assim, em uma nova fase, de relevante

importância para compreendermos a ação reformista pombalina,


132

voltada para livrar Portugal daquilo que João Lúcio de Azevedo

d e s i g n o u c o m o o “ s i g n o d e M e t h w e n ” 98.

Finalmente, não podemos enxergar Portugal como um

reino de todo fechado e ensimesmado, totalmente alheado às

questões e processos que ocorriam fora de suas fronteiras.

Devemos levar em conta que o triunfo de forças conservadoras

não foi e não constituirá, somente ele, a pedra angular da difícil

conjuntura portuguesa que encontraremos num período que vai

do reinado de D. João II até o de D. João V, já no século

XVIII. Podemos, com certeza, entender os processos históricos

numa perspectiva muito mais ampla, na medida em que Portugal

não se isolou totalmente do concerto das nações, e nem mesmo

se alheou totalmente ao que acontecia fora de suas fronteiras.

Devemos, com certeza, ter em mente que a retórica do

Testamento Político de D. Luís da Cunha, e de toda ação

pombalina, estarão muito além do combate às forças

eclesiásticas e tradicionais que tão grande importância possuíam

no R e i n o 99. Era, isto sim, questão de modernizar Portugal,

liberando-o do jugo demasiadamente opressivo das jogadas

98 João Lucio de Azevedo, Épocas de Portugal Econômico¸Lisboa,


Livraria Clássica Editora, 1973, cap. VII, pp. 385 -462.
99 Bastante elucidativo para entendermos a atuação reformista pombalina é
a obra de D. Luis da Cunha, Testamento Político, São Paulo, Alfa-
Ômega, 1976. Tais escritos constituem rigoroso e minucioso plano de
ação reformista sugeridos para Portugal, seguidos pelo Marquês de
Pombal, tendo em vistas o seu projeto de reformar profundamente as
estruturas do Estado Português.
133

comerciais da Coroa britânica levando -o, assim, a um lugar mais

condescendente e independente face ao concerto das nações e

dos novos tempos que chegavam. Daí o porque de entendermos

a importância do período em que Sebastião José de Carvalho e

Melo, antes de tornar-se o poderoso Marquês de Pombal, passou

como embaixador em Londres — o que lhe permitiu construir

visão aguçada sobre o comportamento e pensamento do grande

e n t r a v e d o d e s e n v o l v i m e n t o p o r t u g u ê s 100.

— Glória e Morte do Humanismo Português

A derrocada do mundo medieval e o avanço da

modernidade ocorreram em meio a processos históricos

intrincados e complexos, entre os quais verifica -se o surgimento

de uma nova visão de mundo, cada vez mais ligada à imanência

e à observação científica, apoiada na experimentação, que veio a

substituir a ordem medieval, calcada na escolástica e no

pensamento religioso de modo geral. Este, por sua vez, baseava -

100 Fora as diversas biografias que poderíamos citar aqui, gostaríamos de


remeter o leitor à obra de J. Lúcio de Azevedo, O Marquês de Pombal e
sua Época, Lisboa, Clássica, 1990. Notar aqui o primeiro capítulo, que
trata do período em que Sebastião José serviu como embaixador em
Londres, voltando-se à sua atuação.
134

se em uma ordenação transcendente do universo e da vida,

segundo a qual o mundo e a existência faziam parte de uma

ordem pré-estabelecida e inquestionável, advi nda dos desígnios

divinos.

O surgimento desta modernidade de que tratamos

ocorreu num período onde o homem enveredou por um

profundo caminho de descobrimento do mundo e de si próprio.

Na medida em que novas terras, com seus povos e crenças, eram

descobertos através da aventura das conquistas ultramarinas, o

homem, em seu estado natural, era colocado no centro das

reflexões sobre a existência, trazendo paulatinas rupturas no

ideal escolástico de cristandade, segundo o qual o coletivo

humano estava todo ordenado em torno da crença religiosa.

A cisão nesta ideia de uma cristandade agrupada em

torno da Sé de Roma e de seu chefe, sofrerá também profundo

abalo com a cisão provocada pela eclosão do movimento de

reforma luterana no século XVI, seguido da pulverizaçã o do

credo protestante, levando a diferentes formas de interpretar e

se relacionar com a transcendência divina.

Este fracionamento progressivo e conturbado do

povo de Cristo levava, por sua vez, a subseq uentes revisões das

relações entre a religião e o poder civil. Os Estados ainda

continuavam confessionais, contudo, a pluralidade das crenças

levaram a movimentos cada vez mais progressivos de

remodelação das relações entre os condutores do poder e a


135

religião — que passava, cada vez mais, a ser um assunto de

Estado. Essas novas relações têm como exemplo mais radical a

eclosão da Reforma na Inglaterra onde, em 1531, Henrique VIII

anunciou a ruptura e separação entre a Igreja anglicana e a Sé

de Roma, efetivada de modo irreversível através do supremacy act

de 1534, que tornava o monarca chefe supremo da Igreja na

Inglaterra.

Tais processos transformadores foram se

manifestando em diversos aspectos da existência. O avanço do

individualismo, no campo da política, correspondeu também à

valorização, cada vez mais crescente, da figura do príncipe,

governante uno e supremo de seu reino. Paralelamente a este

processo, que posteriormente veio a desembocar no triunfo do

absolutismo como forma de governo, também se assistiu ao

espocar de uma literatura especificamente volt ada para a arte do

bom governo pelo príncipe, a Ars Dictamis. Deste tipo de

literatura, podemos destacar o exemplo de Maquiavel, com O

Príncipe, delineador do governo cada vez mais centrado em

t o r n o d o i n d i v í d u o 101.

Ainda no que tange ao campo das transforma ções

políticas e sociais, devemos assinalar o que Francisco Falcon

101 A respeito desta temática, ver Quentin Skinner, As Fundações do


Pensamento Político Moderno, trad. port., São Paulo, Companhia das
Letras, 1996, cap. 2.
136

lembrou a este respeito. Para ele, o surgimento do mundo

moderno representou também um processo crescente de

individualização, no qual eram colocados em evidência outros

atores e personagens no cenário da vida. Isto pode ser notado

também através do advento cada vez mais crescente da

burguesia e de todo um ideário a ela correlato, voltado para o

bem-estar e conforto individuais. A partir deste momento, além

da figura do príncipe, também entra em evidência a do burguês,

e m p r e e n d e d o r e h o m e m d e n e g ó c i o s 102.

Dentre estes elementos que caracterizaram o

surgimento do mundo moderno, está situado um movimento,

cada vez mais forte e abrangente, de redescoberta da

Antiguidade Clássica com todos os seus conhecimentos e,

também, padrões estéticos. É neste momento que devemos

situar a questão humanista.

Pode ser notado, na baixa Idade Média, um

movimento cada vez mais constante e progressivo de resgate da

Antiguidade Clássica, num sentido arqueológico e cu ltural. Os

movimentos de escavações e saques das antigas ruínas romanas,

em Itália, mostram-se cada vez mais frequentes, sendo mesmo

102 Francisco Falcon, A Época Pombalina, São Paulo, Ática, 1986, pág. 13.
137

incentivados por parte da Igreja, que utilizava o mármore e a

pedraria das antigas construções para realizar obras em

mosteiros, igrejas e abadias. Neste âmbito crescente de

revitalização da cultura antiga, iniciou -se uma autentica “caça

ao tesouro”, que no caso consistia nos restos deixados pela

a n t i g u i d a d e 103. C o m o d e s e n v o l v i m e n t o d a f i l o l o g i a , a c a r r e t a d o

pela leitura, cada vez mais constante, dos autores clássicos em

seus originais, para posterior imitação da retórica e do estilo de

redação, iniciou-se um movimento que, à primeira vista, figura

um irônico paradoxo. Dado que tratamos dos estertores do

mundo medieval, que cedia lugar a uma cultura cada vez mais

laica e secularizada, esta ia buscar fundos de sustentação — os

textos arcaicos — que se encontravam justamente armazenados

nas bibliotecas dos mosteiros e abadias. Deste modo, a Igreja

servia como ambiente e pano de fund o para o ressurgimento da

cultura pagã greco-romana, e é neste âmbito que encontraremos

a gênese do humanismo.

O humanismo, a seu turno, consistia num movimento

que grassou com maior ênfase entre os meios intelectuais e

educacionais, principalmente na Itá lia, terra onde era mais

abundante a quantidade de ruínas e de textos arcaicos a serem

103 Jakob Burckhardt, A Cultura do Renascimento na Itália, trad.


port.,Lisboa, Presença, 1983, cap. 3. Ver também Skinner, op. Cit.
138

lidos e pesquisados, e onde se iniciou uma produção similar nos

primeiros momentos do humanismo, para depois se espalhar

pela Europa. A revivescência deste aspecto da an tiguidade

ocorria, portanto, neste primeiro momento, com mais força ao

longo da península itálica, local de mais próximo contato com

os vestígios físicos desta cultura que ia aos poucos renascendo.

Para o presente estudo, é de grande importância

notar as relações entre humanismo e educação, ponto que será

de importância nodal para o estudo do caso português.

Os novos tempos mostravam sua face, que trazia

marcada em si a derrocada do mundo medieval, sujeito que era

ao pensamento teológico enquanto fiéis re guladores da

existência: com o advento do avanço científico e tecnológico,

impulsionado também com as aventuras dos descobrimentos de

novas terras e gentes, com suas conseq uentes realidades e

formas de viver e crer alheias às conhecidas até então, o

pensamento laico, cada vez mais ligado ao racionalismo

empirista, apegado ao conhecimento como fruto da observação e

da experiência, constantemente se opunha à verdade revelada.

Esta, por sua vez, ordenava o mundo e a existência como dados

já constantes, frutos que eram de uma visão imanente do mundo

própria ao pensamento escolástico, segundo o qual tudo na

existência e no mundo já existia enquanto parte de uma

ordenação divina, inquestionável por sua própria origem e


139

imanência, respaldada pelos dogmas da Igreja. Aos poucos,

começava o desencadeamento de um processo lento de

laicização, que iria rever o papel e o lugar da Igreja no contexto

da existência. Este movimento, segundo Francisco Falcon, foi a

mola-mestra de diversos outros processos que ocorreram nas

fundações deste mundo moderno. Cada vez mais, o campo do

conhecimento e das diversas outras práticas, quer econômicas

ou políticas, se desvinculava da tutela do pensamento teológico

até então dominante, levando a uma reestruturação da posição

ocupada pela Igreja. As reações conservadoras, obviamente,

ocorreram: a escolástica ainda procurava resistir condenando

estas novas formas de pensar, tal qual o fez no caso de Galileu,

forçado a se retratar por sua teoria heliocentrista. Mas o

ordenamento medieval da existência cedia lugar a uma nova

forma de ordenar o mundo, racional porque calcada na

observação científica, sendo integrada num processo sempre

constante que iria desembocar, por fim, no racionalismo do

s é c u l o d a s l u z e s 104

Há que destacar, no âmbito destes processos

transformadores, um avanço cada vez maior e progressivo do

individualismo, cada vez mais calcado na descoberta do homem

104 Para a temática da secularização, ver Francisco Falcon, A Época


Pombalina, São Paulo Ática, 1982, cap. I. Ver também “O discurso d a fé
num mundo secularizado”, in Miguel Baptista Ferreira, Modernidade e
Secularização, Coimbra, Livraria Almedina, 1990, pp. 335 -396.
140

e do mundo, e rompendo brutalmente com a visão coletivista de

uma cristandade, tão própria ao pensamento teleológico

medieval. A partir de então, o indivíduo se tornava cada vez

mais o centro das atenções e do foco da existência, na medida

também em que ele próprio se educava e civilizava. Para Falcon,

os elementos emblemáticos deste processo de individualização

serão o príncipe renascentista e o burguês, figuras que agora

passarão a ocupar o foco das atenções. O sociólogo alemão

Norbert Elias dedicou intensos e profundos estudos sobre este

processo de educação dos indivíduos, focado nas figuras dos

cortesãos e também das pessoas comuns, que se civilizavam

c o n c o m i t a n t e m e n t e a o a v a n ç o d o i n d i v i d u a l i s m o 105.

Uma das decorrências políticas mais imediatas deste

processo de individualização pode ser demonstrado, com

frequência cada vez maior, em um movimento de centralização

de poderes por parte do Estado. Tal movimento, naturalmente,

veio a ter seu cume na eclosão posterior das monarquias

absolutas. Cada vez mais vascularizado e abrangendo a vida dos

seus súditos, o Estado cada vez mais estará calcado na

individualidade e numa racionalidade p róprias, opositoras às

premissas da escolástica. Assim como açambarcava para seu

105 Norbert Elias, O processo Civilizador, trad. port., Rio de Janeiro,


Zahar, 1986, 2 vols. Um estudo ainda interessante, onde se pode notar a
aplicação deste processo civilizacional, é também A Sociedade de Corte,
trad. port., Lisboa, Estampa, 1988.
141

domínio controlador, cada vez mais, as empreitadas da

economia, tornando-se o superprotetor investidor da aventura

monopolista, o Estado também se vê em um processo de

redefinição de fronteiras e atribuições com todos os antigos

parceiros, que a partir deste momento podem se tornar

concorrentes em potencial. Dentre estes aliados, encontramos a

Igreja e seu grande poder. Era chegado o momento de

redefinição e realojamento do elemento eclesiástico no jogo

político. Tal fato se deu em hora conturbada para a Igreja de

Roma, que se encontrava, então, entre múltiplas frentes de

ação: de um lado, eram as novas monarquias centralizadas a

procurar o controle também sobre a vida espiritua l dos súditos;

por outro lado, cabia também uma defesa face aos ataques, cada

vez mais constantes e progressivos, do crescente pensamento

laico que advinha contra o antigo domínio da escolástica. Por

fim, a própria cristandade se encontrou cindida pelas re formas

religiosas do século XVI, quebrando por vez a homogeneidade

doutrinária exercida pela sé de Roma. Para a Igreja, era chegado

um difícil momento de se reestruturar face aos adventos que

eram comuns à gênese do mundo moderno — tarefa árdua que

exigiria tato e jogo diplomático, além de sagacidade aguçada,

como forma de garantir sua sobrevivência, se não como

aparelho dominante hegemônico, ao menos como forte e

influente ator no cenário de então.


142

Paralelamente ao avanço do pensamento racional,

todo ele pautado em um raciocínio cada vez mais matemático,

que buscava explicar o mundo através de leis naturais e das

explicações empíricas, científicas, porque baseadas na

observação dos fatos e fenômenos, vamos encontrar um

fenômeno que está na base do Renascimento e da renovação

cultural surgida nos princípios da Idade Moderna. Tratava -se,

neste caso do nascimento do humanismo.

O humanismo, um dos principais aspectos do

renascimento e da modernidade teve, paradoxalmente, suas

origens ainda na Idade Média. Já nos finais do século XII,

observou-se um fenômeno crescente pela busca constante de

textos dos autores clássicos, dentre os quais o mais valorizado

era Petrarca. A gênese do humanismo está, assim,

indissociavelmente vinculada à filologia, bem como de um

movimento cultural que valorizava uma imitação da Antiguidade

Clássica, um retorno à retórica romana.

Ao estudar o caso do desenvolvimento cultural em

Portugal, e da entrada deste reino nos fenômenos que

caracterizaram a modernidade renascentista grassante em toda

Europa, António Rosa Mendes apontou dois fatores que

alocaram Portugal no seio desta “modernidade”. Um deles,

segundo o autor, é o desenvolvimento do classicismo. O outro,


143

que deu ao Reino uma posição vanguardista e totalmente

peculiar face aos congêneres europeus, foi o acúmulo de

conhecimentos advindos da expansão ultramarina e dos

d e s c o b r i m e n t o s 106.

Esta transição para a modernidade ocorreu de

maneira arritmada em Portugal. Rosa Mendes aponta, ainda

durante os reinados de D. João II e D. Manuel I, a resistência

do peso da cultura escolástica, ainda esmagadora e dominante.

Neste reino, as rupturas não ocorreram de forma abrupta, mas

sim de maneira gradativa e em ritmo desacelerado. A maturidade

desta modernidade lusitana foi efêmera, tendo ocorrido s omente

durante o reinado posterior de D. João III. Um dos fatores de

grande importância para este retardamento foi o fato de que os

elementos das inovações culturais advindas da Itália, demoraram

a chegar em Portugal. Isto, graças ao fato da posição perifé rica

do Reino no que tange às inovações europeias, e também pelo

filtro da cultura eclesial, no seio da qual tais inovações se

inseriram, porém de maneira mais lenta. Portugal, desde meados

do século XV, já acusava contatos com humanistas italianos.

Porém, foi justamente a chegada do siciliano Cataldo de Siculo

ao reino, a convite de D. João II, que serviu como marco

106 António Rosa Mendes, “O pré-humanismo português” in História de


Portugal volume 3, Lisboa, Estampa, 1995, pág. 375.
144

introdutor do humanismo em Portugal. Cataldo chegara ao

reino, a convite do monarca, com a finalidade de educar a alta

n o b r e z a , m a r c a d a m e n t e u m d o s f i l h o s b a s t a r d o s d o m o n a r c a 107.

O resultado da presença do mestre siciliano foi um

florescimento do estudo e escrita da oratória e gramática latina

clássica, tão cara aos humanistas. Não obstante a presença de

pessoas arejadas com os ventos da modernid ade humanista

italiana, em Portugal a chave -mestra e pedra basilar de todo

conhecimento continuava, ainda, a ser a teologia, secundada

pela filosofia, e auxiliada por ciências minoritárias, como o

direito civil e o canônico. A modernidade ainda não estava

plantada em Portugal, mas estas primeiras sementes foram

germinando, na medida em que ocorriam intercâmbios e estudos

desenvolvidos com a ida de diversos bolseiros para a Itália e

França, onde tomavam contato com as inovações mais recentes,

e com a vinda de outros humanistas estrangeiros a Portugal,

como objetivo de suprir a necessidade de estudos ling uísticos

g r e g o s e l a t i n o s 108.

107 Id., ibid.


108 A este respeito, ver António José Saraiva, História da Cultura em
Portugal, Lisboa, Gradiva, 2000, pp. 194-195, vol. 1.
145

— O Humanismo Português e a Era dos Descobrimentos

A entrada tardia do classicismo italiano em Portugal

colocou o reino em desvantagem e em posição defasada face ao

movimento cultural no restante da Europa. Os portugueses

foram apresentados à cultura clássica quando o resto da Europa

já estava muito mais adiantado, no que tange ao humanismo e ao

renascimento. Contudo, esta defasagem sofrerá uma virada

brutal, a partir do advento das descobertas propiciadas pela

aventura ultramarina. Neste momento, Portugal se colocará

numa posição de vanguarda, iniciada durante o período

manuelino, desfrutando de uma posição privilegiada graças ao

fato de ser uma das poucas partícipes da epopéia dos

descobrimentos.

Em primeiro lugar, deve ser notada a assimilação

lenta dos conhecimentos advindos das navegações, por parte

dos portugueses egressos de estudos nos outros centros

europeus. A realidade do conhecimento advindo das navegações,

muito mais prática e baseada na s experiências individuais dos

partícipes da aventura da conquista, era estranha e de difícil

assimilação para eruditos imersos na cultura livresca advinda de

uma Europa interiorana, onde grassava o classicismo. O contato

com novas terras e civilizações trouxe Portugal para uma

posição de vanguarda, no que tange ao conhecimento obtido


146

através da via da observação individual e da experimentação,

justamente no sentido da busca de um conhecimento imanente

que já foi aqui discutido.

A autoridade, neste âmbito, está voltada para a

experiência pessoal dos navegadores, que se torna o fiel

legitimador do conhecimento. Ocorre, então, um movimento que

ultrapassa o humanismo clacissista, e a mera imitação da

antiguidade, em que o conhecimento passa a ser gerado pela

experimentação própria, sendo dissociado da glosa de antigos

textos. O processo de fortalecimento do indivíduo, agora, toma

também um outro viés. Baseado nesta visão individualista da

experiência própria e da observação, é notado também um

avanço no sentido de uma antropocentria mais acentuada.

Importava a descrição e o conhecimento das gentes encontradas,

e o homem passará a ser cada vez mais o centro das observações

e do conhecimento desta nova fase do humanismo lusitano.

É justamente neste momento que a i mportância da

experiência estará cada vez mais consolidada, tornando -se

assimilável por parte dos leitores, através dos relatos dos

viajantes e de suas viagens. António Rosa Mendes aponta o fato

de que os relatos dos viajantes e das crônicas da aventura

ultramarina estarão cada vez mais focados na experimentação

individual, tendo como exemplo a carta de Pero Vaz Caminha

sobre o descobrimento do Brasil. A seu turno, outros relatos de

viagens também irão coadunar com essa tendência, mostrando


147

um desdobramento do humanismo sobre as regiões sujeitas às

c o n q u i s t a s u l t r a m a r i n a s 109.

Desta forma, o conhecimento delegado pela

observação prática e pelo empirismo reside em Portugal com

força cada vez maior, não se atendo apenas aos livros do

conhecimento antigo, como era de praxe na cultura clacissista.

Assim é que este humanismo “prático” e empírico, que afirma a

superioridade dos modernos sobre os autores antigos, se torna o

fator dominante na vanguarda do conhecimento português,

levando em seu bojo o conhecimento basea do na observação

racional dos fatos, tão caro ao pensamento e à lógica

cartesianas do mundo que dominaram o conhecimento vigente à

época.

É exatamente neste ponto, de uma fluência cada vez

maior do humanismo que é fruto das observações e conclusões

advindas das navegações e descobertas, que encontraremos

Portugal em uma outra virada em sua história. Os laços com as

terras recém-descobertas e os processos de concretização do

Estado moderno e do sistema colonial se encontravam melhor

sedimentados durante o reinado de D. João III. É exatamente

109 História de Portugal, pp.377-380. A respeito dos relatos de navegação


e das conquistas, ver também Tzvetan Todorov, “Viajantes e Indígenas”
in Eugenio Garin (org.), O Homem Renascentista, trad. port. Lisboa,
Presença, 1991, pp. 229-248.
148

neste ponto que o humanismo em Portugal viverá seus últimos

momentos, sofrendo o ataque constante de forças contrárias e

ligadas ao conservadorismo eclesial que era peculiar e próprio

do conhecimento escolástico, que ainda reagia contra as forças

progressistas de renovação. Esta etapa do humanismo português

vai se caracterizar por importantes viradas contextuais, que

estarão, primariamente, voltadas para uma pesada discussão e

debate a respeito da educação e do monopólio d esta no Reino —

um fator de grande importância estratégica. É neste ponto que

devemos observar melhor a querela sobre o ensino humanista

aplicado no Colégio das Artes de Coimbra, todo ele de formação

humanista e voltado para a educação das elites dirigente s no

Reino, e também o ensino médio que derivava deste currículo

básico do ensino humanista. É neste momento que a reação

conservadora ao humanismo, antes levada a efeito sob um

ímpeto menor, se estenderá a Portugal com força e virulência

jamais observadas antes, graças ao movimento de Reforma

Católica ou Contra-Reforma, e a um recrudescimento do

conservadorismo dentro da própria Igreja de Roma. É neste

ponto que assinalamos a entrada da Companhia de Jesus em

Portugal. Instrumento da maior importância para a difusão dos

ditames conservadores da Reforma Católica, os jesuítas travarão

árduo combate em busca do monopólio da educação no Reino,

numa querela onde estarão também envolvidos o Colégio das

Artes, a Coroa e mesmo a Inquisição.


149

— O Triunfo do Conservadorismo

Durante o reinado de D. João III, encontramos em

Portugal um círculo humanista plenamente formado, fruto de

todo processo até aqui desenvolvido e acrescido de um

intercâmbio cada vez maior com o movimento no restante da

Europa, também contando com a presença de diversos

estudiosos e sábios no Reino, efetivamente trabalhando nas

lides da educação. O campo de atuação destes humanistas foi,

por excelência, o afã educacional. Foi durante o reinado de D.

João III que se notou em todo reino um investimento maciço

em termos de atividades educacionais. No que tange a estes

investimentos, a educação era direcionada de sorte a manter

Portugal atualizado com as inovações europeias, buscando assim

acabar com a defasagem surgida ao longo do processo de

entrada do humanismo em Portugal. Por fim, auxiliava nos

propósitos da construção do Estado moderno e centralizado, na

medida em que atuava na educação e formação das futuras elites

dirigentes do Reino, oferecendo um estudo laico. Era

exatamente esta perspectiva educacional que dava a este ensino

humanista, centrado no Real Colégio das Artes, em Coimbra, uma

diferença clara face às outras instituições de ensino do Reino,

que eram de ordem monástica e clerical. Para os projetos


150

educacionais e hegemônicos do Estado, o e nsino médio se fazia

de importância fundamental, na medida em que espalhava esta

hegemonia no coletivo dos alunos, realizando, destarte, um

trabalho consistente, a médio/longo prazo, de homogeneização

e difusão de normas culturais.

O movimento humanista em Portugal veio a favorecer

aos interesses do Reino, de modo geral, ao trazer para Portugal

o ensino básico e primário da gramática e língua grega e latina,

da matemática e princípios do pensamento científico, através de

lentes estrangeiros ou mesmo dos por tugueses que haviam

estudado em outros centros renascentistas.

Num primeiro momento, esta educação, restrita aos

fidalgos e filhos das elites portuguesas, se dava através de

mestres particulares, contratados exclusivamente para este fim.

António José Saraiva, porém, identifica um movimento

crescente de coletivização do ensino, já presente na corte de D.

João III. Tal movimento apontava para a maior difusão do

ensino coletivo, o que justifica a criação, em 1547, do Real

Colégio das Artes, tendo status totalmente independente da

Universidade de Coimbra, que era o fiel regulador do ensino

reinol. O colégio, como já indicava o próprio nome, era


151

s u b o r d i n a d o a p e n a s à p e s s o a d o R e i 110. E s t e m o m e n t o , a s s i n a l a d o

também pelo envio de maior quantidade de bolsistas para a

França e outras nações com finalidades de estudo, demarca uma

virada definitiva na vida cultural portuguesa, que agora se

voltava para as humanidades.

Até a posterior entrega à Companhia de Jesus, o

Colégio seguiu divulgando seu curriculum humanista tendo

alfabetizado, e ensinado Gramática, Retórica, Poesia,

Matemática, Hebraico e Grego. Além destes campos do saber, o

Colégio possuía um curso de Artes, o que lhe caracterizava na

melhor tradição e acordava-o com as características do

humanismo renascentista. Deste modo, podemos atestar o

florescimento do humanismo em Portugal, sob os auspícios da

Coroa, em seus investimentos na educação como uma estratégia

de modernização do reino.

O período final do reinado de D. João III marcará

uma etapa decisiva na breve história do humanismo português.

Este assistiu a uma reação conservadora articulada e em larga

escala, que obrava no sentido cada vez mais progressivo de

sufocá-lo e mesmo eliminá-lo. O movimento de avanço do

110 Saraiva, História.. pag196.


152

conservadorismo, contudo, não foi um fenômen o única e

exclusivamente português. Deve ser levado em conta que a

própria cristandade, no final do quarto decênio do século XVI,

passava por mudanças e transformações muito profundas,

agravadas com a cisão luterana e a posterior reação católica.

Era um momento importante para a Igreja de Roma, que revia

suas funções políticas e doutrinais, e se reestruturava face aos

novos tempos, pressionada que era, por outro lado, pelas

monarquias centralizadas. Assim sendo, a Europa assistiu a um

domínio cada vez maior e progressivo de uma ordem de caráter

imobilista e intransigente. A própria Igreja romana possuía

instrumentos que, agindo através de métodos e estilos

diferentes, obravam no sentido de difundir e fazer cumprir esta

ortodoxia recém-validada, fruto das discussões do Concílio de

Trento. Tanto a Inquisição quanto a Companhia de Jesus, dois

instrumentos de difusão ortodoxa da maior importância,

desempenharão papel relevante no cenário político português e

no processo que levou ao fim do humanismo no reino.

— O Colégio das Artes e a Companhia de Jesus

O fim do reinado de D. João III foi marcado por

acirrada querela envolvendo a Universidade de Coimbra, a


153

Companhia de Jesus e o Colégio das Artes. A universidade não

concordava com a independência educacional e ad ministrativa

do Colégio, já que antes controlava e monopolizava as

instituições de ensino do Reino. Por este motivo, o monarca

chamou para si as responsabilidades do Colégio, dando -lhe o

nome de Real Colégio das Artes.

Com a entrada em cena da Companhia d e Jesus, a

questão vem a se agravar. A poderosa ordem cobiçava o Colégio

para si, e não economizou esforços para diminuir cada vez mais

a influência do núcleo humanista. É de se notar que, já em

1551, os inacianos fundaram em Lisboa o Colégio de Santo

Antão, com currículo similar ao do Colégio das Artes, contudo

sendo o ensino ministrado por professores ligados à Ordem,

voltado aos fins a que se propunha a Companhia, ou seja, a

difusão de um conhecimento e de um currículo cada vez menos

leigo, sendo portando redirecionado para as realidades e

ambições eclesiásticas.

As tensões vão decorrendo num crescendo constante,

e a Coroa sofreu pressões tanto da Universidade de Coimbra

quanto dos Inacianos, no sentido de fechar o Colégio das Artes.

A ideia básica dos religiosos era justamente trazer a si o

controle daquele órgão de ensino, puxando -o para sua

administração direta. Face às constantes negações do monarca,

que havia dado o status de real ao Colégio das Artes, a saída

encontrada pelos inacianos foi o lançamen to de suspeições


154

sobre a pureza da fé dos mestres “bordaleses” ligados ao

Colégio. Tais mestres haviam recebido esta alcunha devido ao

fato de haverem tido passagem prévia por Bordéus, a fim de

serem atualizados no pensamento humanista. Portanto, a saída

encontrada foi o lançamento de suspeições de difusão do

luteranismo sobre os mestres, algo que jamais se conseguiu

provar. Assim foi que, em 1550, três dos principais

“bordaleses” do Colégio — Diogo de Teive, João da Costa e

Jorge Buchanan — eram presos e processados pela Inquisição, a

fim de serem avaliados na pureza de sua fé. O pouco tempo de

duração do processo e as penas relativamente brandas a que os

réus foram condenados — retratação pública e reclusão por

tempo indeterminado, que veio a durar pouco — serve como

índice da benevolência e dos favores prestados pela Coroa ao

Colégio. Aos Jesuítas e à Universidade, contudo, não bastava. O

novo passo dado pelos inacianos foi o início de uma campanha,

cada vez maior e intensa, de transferência do Colégio e s uas

atribuições para a ordem.

Para que este objetivo fosse alcançado, ainda seria

necessário algum tempo, e novas articulações políticas. Tanto é

que o desenho da situação começa a mudar com o aumento de

poder da Companhia de Jesus, decorrente principalmen te da

proteção do cardeal-Inquisidor D. Henrique, irmão de D. João

III, e da vitória da ala conservadora no Concílio de Trento. Tal

contexto é simbolizado pela ascensão ao trono pontifício de


155

Giovanni Caraffa. Este cardeal, um dos principais artífices da

Reforma Católica e um dos bastiões do conservadorismo da

Igreja Romana, sobe ao trono pontifical em 1555, usando a

alcunha de Paulo IV. Devido à sua formação conservadora, o

novo Papa não media esforços no sentido de redefinir a

situação da Igreja em toda a cristandade, fortalecendo o poder

dos prepostos da Sé de Roma face às monarquias centralizadas.

A este triunfo do conservadorismo veio se somar a entrada das

determinações conciliares no Reino, que posteriormente foram

transformadas em Lei a fim de agilizar a implantação das

diretrizes conciliares em Portugal.

O novo Papa, defensor da autoridade pontifícia,

concedera aos Jesuítas, logo após sua eleição, poderes

acumulados e excepcionais, colocando -os acima da autoridade

do clero secular, e dando-lhes o direito de resolver casos

excepcionais e reservados, incluindo os que cabiam à Sé

apostólica, num recurso que significava, ao mesmo tempo, um

reforço do poder eclesiástico em Portugal. Com este acúmulo de

poderes, eram eliminadas as oposições do clero secula r, das

ordens religiosas e da autoridade civil à Companhia, que abria,

assim, caminho para o alcance dos seus intentos face ao

Colégio.

Assim é que, no mesmo ano de 1555, depois de tantas

lutas, D. João III cede às pressões constantes dos inacianos e

da Universidade, entregando aos religiosos o Colégio das Artes,


156

cujo nome foi estrategicamente mudado para Colégio de Jesus.

Uma vez conseguida a direção e administração do Colégio,

foram expurgados os antigos mestres, sendo recrutados quadros

dentro da própria Ordem para preencher a docência. O

currículo foi mantido intocado, sendo mudada apenas a direção

e os mestres atuantes no Colégio. Tal qual era comum na práxis

missionária e pedagógica jesuítica, os elementos da modernidade

e do próprio funcionamento do e nsino humanista em Portugal

foram assimilados pelos lentes da Companhia, que os usavam

para os fins que eram designados pelos seus superiores. Num

aparente paradoxo, elementos do humanismo português foram

preservados, sendo apenas redirecionados para final idades que

servissem à ordem conservadora contra a qual se opunham. O

currículo foi mantido intocado, e a estruturação do ensino foi

preservada em suas linhas mais básicas. A diferença estava no

fato de que doravante o Colégio passaria a ser um instrumento

difusor da ortodoxia tridentina, estando a serviço da

normatização dos fiéis e do processo de fabricação de crentes

mais adequados aos moldes da Reforma Católica. Foi através

deste intrincado processo que se dava por encerrado o breve

capítulo da história portuguesa no campo humanista. O triunfo

desta ordem conservadora significou também, em Portugal, um

avanço do pensamento escolástico que nunca havia sido extinto,

tendo apenas passado algum tempo a hibernar, enquanto seus

avatares obravam articulações que lhe colocassem em evidência


157

outra v e z 111. Este triunfo da Escolástica travestida nos

elementos humanistas foi assimilado, também pela difusão da

nova ordem pós-tridentina, quer de forma sutil e sistemática

pela Companhia de Jesus. Assim sendo, os inacianos

continuaram a manter a articulação humanista do Colégio, com

o detalhe de que esta se encontrava, doravante, voltada para a

formação de letrados católicos. O triunfo do conservadorismo

tridentino em Portugal significou, por sua vez, um retorno

triunfal do pensamento escolástico, que tratou de varrer o

conhecimento e a cultura laicas propiciadas anteriormente pelo

humanismo ligado às navegações e descobrimentos. O triunfo

deste pensamento neo-escolástico foi, em grande parte,

responsável pela posição adotada pelo reino lusitano face às

inovações advindas do resto da Europa.

Terminada a era do humanismo em Portugal, o reino

passou por uma outra reestruturação, na qual se tornou cada vez

mais refratário e avesso às ideias estrangeiras, imediatamente

associadas à heresia pelo pensamento conservador tradicional. É

por este viés que podemos compreender o recrudescimento,

cada vez maior, da repressão aos cristãos -novos, também eles

elementos estrangeiros, à sua maneira, que conviviam dentro do

111 A respeito desta Segunda escolástica, que vem fortalecida pelos setores
tradicionais católicos face à Reforma Luterana, ver Michele Frederico
Sciacca, História da Filosofia II — Do Humanismo a Kant, trad. port.,
São Paulo, Mestre Jou, 1968, pp. 46-47.,
158

território reinol. Esta assimilação das ideias estrangeiras à

heresia vai se dando de forma rápida e consistente, à medida em

que o pensamento eclesiástico, fortalecido pelo concílio de

Trento, triunfou em Portugal. Um dos índices deste triunfo está

demarcado pela aceitação e implantação das medidas do concílio

tridentino — as quais, devido à demora que tomavam para se

efetivarem no Reino, foram transformadas em lei, o que

facilitou sua implantação. O fortalecimento do poder

eclesiástico no Reino ocorreu de forma acentuada apó s o

reinado de D. João III, durante a regência do cardeal e

Inquisidor D. Henrique. Amplo favorecedor e doador de

privilégios à Companhia de Jesus e à Igreja de um modo geral,

seu governo foi marcado pelo desfazer do processo de

laicização, cujos sinais haviam sido observados no Reino

durante o governo do monarca anterior. Foi assim que a Igreja e

os elementos eclesiásticos conseguiram angariar cada vez maior

poder e prestígio político, tornando -se efetivos parceiros da

Coroa na gestão do Estado português.

O processo de alheamento às ideias estrangeiras, por

sua vez, não se traduziu num fechamento definitivo de Portugal

face ao mundo e ao que acontecia fora das fronteiras do reino.

O impulso revigorante e decisivo desta fobia lusitana face aos

estrangeirismos e elementos alienígenas seria dado pela

ascensão ao trono português de um monarca não lusitano,

Felipe II de Espanha, em 1581. Durante o governo espanhol,


159

Portugal assistiu a um entrave em todo processo produtivo e de

desenvolvimento que ocorria até entã o. Neste momento crucial,

a mão de ferro dos monarcas habsburgo agiram no sentido de

impor sua hegemonia sobre o reino dominado, passando pela

veemente oposição do Partido Português, que lutava pela

restauração da monarquia.

Uma nova dinastia, chefiada pe la casa de Bragança,

só veio a se impor após seis décadas de domínio espanhol, numa

conjuntura bastante peculiar e difícil para o todo das nações

europeias. A idade de ouro dos grandes impérios chegava a

mostrar sinais de estar atingindo seu limite, e este colapso é

demarcado pelo realojamento do jogo político, colonial e

comercial de então. Foi assim que a proeminência e

centralização do eixo político e comercial do mundo passou a

deixar paulatinamente de girar sobre as nações ibéricas e seus

impérios coloniais no Atlântico, Ásia e África. Com o novo

rearranjo das estruturas políticas e dos poderes da diplomacia

internacional, novos atores deste jogo político surgiram em

cena e tomaram suas posições, como a Inglaterra, fortalecida

após longo período de fulcrais mudanças agrárias, industriais e

políticas, emergindo como grande potência e buscando seu lugar

dominante no concerto das nações de então, bem como a

Holanda, que se firmou enquanto potência comercial, e que veio

a ter papel destacado na política inte rnacional devido aos


160

constantes embates contra a Coroa espanhola, devido às guerras

p o r s u a i n d e p e n d ê n c i a 112.

É sob este prisma de renovação do cenário

internacional que as proximidades entre Inglaterra e Portugal se

tornam ainda mais estreitas, seladas que eram por pesados

acordos comerciais. Chegava -se à época em que a dominação se

dava no campo da diplomacia e da balança comercial, escudadas

ainda por uma frota militar que garantisse não só a segurança

do comércio, como também o cumprimento dos acordos.

Portugal sob o Signo de Methwen: as raízes de uma Nova

Dependência

112 Tal fato só foi possível após a Inglaterra haver, como afirma Perry
Anderson, passado algum tempo aparentemente alheia ao desenrolar dos
fatos e acontecimentos do restante da Europa, cuidando que estava de
seus problemas internos. Ainda segundo o autor, foi a partir do momento
em que todas as estruturas políticas e econômicas internas estavam
resolvidas e assentadas, é que pôde ocorrer o surgimento em cena da
Inglaterra no contexto internacional, à altura de grande potência já
plenamente estabilizada pronta para uma luta em iguais condiçõe s face
aos já decadentes baluartes ibéricos do comércio e política
internacionais. Ver Perry Anderson, Linhagens do Estado Absolutista,
trad. port., Porto, Afrontamento, 1983, cap. 1. A respeito da situação
holandesa, ver também Pierre Chaunu, A Civilização da Europa
Clássica, trad. port., Lisboa, Estampa, 1995, vol 1, e Simon Schamma, O
Desconforto da Riqueza, trad. port., São Paulo, Companhia das Letras,
1997.
161

A década de 1640 encontrará Portugal em nova

condição político-administrativa. O momento era duro, marcado

pelas campanhas de restauração da monarquia portuguesa, agora

sob a hegemonia da casa de Bragança, e das lutas travadas pela

reestruturação da independência do Reino. A efetivação desta

independência do Reino veio e a soberania do duque de

Bragança, elevado ao trono sob o nome de D. João IV, foi

sendo reconhecida, primeiro pela Inglaterra em 1654 e 1662, e

depois pelos Países Baixos, em 1661 e 1667. No ano seguinte, a

própria Espanha seguia o exemplo reconhecendo a

independência de sua antiga possessão. Portugal era, agora, um

tentador mercado e parceiro comercial em disponibilidade,

tendo como atrativos seu vasto império colonial e as riquezas

d e l e s a d v i n d a s , m o r m e n t e d o B r a s i l 113.

Esta nova época da história portuguesa começará a

ser escrita exatamente no turbulento e agitado período que

sucede à Restauração, justamente no momento em qu e a recém-

estabelecida monarquia portuguesa procurará captar apoios

diplomáticos que possibilitem seu reconhecimento e, por outro

lado, possam vir a constituir em efetiva ajuda contra retaliações

113 Kenneth Maxwell, Marquês de Pombal: paradoxo do iluminismo, trad.


port., Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1996, pp.38-39. Para a reestruturação
dos poderes na independência portuguesa, ver também Eduardo
D’Oliveira França, Portugal na Época da Restauração, São Paulo,
Hucitec, 1997.
162

espanholas. O acesso ao apoio da França, que já se encontrav a

em guerra contra Felipe IV, foi garantido e seguro. Outro passo

delicado foi dado no que tange às negociações com a Holanda.

Portugal, que não era nação beligerante contra os holandeses,

propôs um acordo de cessar-fogo, com duração de dez anos. Os

holandeses, em troca, receberam o privilégio de proverem as

frotas do Brasil. O governo português, por sua vez, se obrigava

a comprar ou fretar vinte embarcações de guerra as quais, junto

com outras tantas holandesas e adicionadas a dez já existentes

em Portugal, operariam contra Espanha. Esta parte do acordo

não chegou sequer a ser efetivada, sendo apenas mantida a

trégua. Segundo J. Lucio de Azevedo, o fato de a Inglaterra

tomar partido desta cláusula referente aos navios é que

possibilitou o início da dependên cia de Portugal face à Coroa

i n g l e s a 114.

A Inglaterra, que por esta mesma ocasião também

andava a negociar com Portugal, exigiu cláusula parecida para

os acordos que então eram negociados — retirando assim os

privilégios concedidos à república holandesa. A t ática da

diplomacia de D. João IV consistiu em apelar para o tempo,

114 João Lucio de Azevedo, Épocas de Portugal Econômico, Lisboa,


Livraria Clássica Editora, 1973, pp. 387-388.
163

deixando as cláusulas referentes ao fretamento de navios

intocadas por dois anos.

Após a assinatura dos acordos, irrompeu a guerra

civil em Inglaterra. Serenados os ânimos na Ilha, chegou a vez

de Cromwell tornar, mais uma vez, à questão do fretamento

naval. Exigia o Protetor exclusividade de fornecimento à

Portugal das embarcações que faltassem no reino. A única

exceção aberta era a concessão feita à Companhia do Brasil do

direito de contratar alhures duas naves de guerra e quatro

mercantes, para o transporte do bacalhau — o qual, por sua vez,

era importado da Inglaterra e o frete, realizado por naus

inglesas.

As negociatas, contudo, avançaram para muito além

da problemática do peixe seco e salgado. Era facultado aos

comerciantes ingleses o direito de negociar no Reino e na praça

de Índia e possessões africanas. A estes ingleses eram também

dados outros privilégios jurídicos, entre os quais eram incluídos

o direito de prisão apenas em caso d e flagrante delito, e a

garantia da liberdade de culto religioso — cláusula esta que os

livrava do alcance da ação inquisitorial e que a Coroa lusitana

usaria como elemento de protelação do acordo. A supremacia

britânica foi por fim confirmada com o Ato de Navegação,

promulgado em 1653, e com o franqueamento do comércio no

Brasil a comerciantes ingleses.


164

A diplomacia portuguesa ainda apelava para a tática

de ganhar tempo, desta vez alegando motivos religiosos e a

necessidade de aplacar a Inquisição no que tangia ao ponto da

liberdade religiosa e de culto doméstico dos ingleses. D. João

IV protelava a assinatura dos acordos alegando apelação ao

Papa quanto às questões de cunho religioso, mas acabou por

mudar de ideia face às ameaças da esquadra de Blake, em

operações em águas espanholas. Esta questão religiosa veio a

irritar ainda mais os ânimos dos puritanos, que intimaram o

cumprimento do acordo ameaçando resolver o término das

negociações com a ação da esquadra, o que veio a acelerar as

assinaturas dos convênios, que vieram a se consolidar cada vez

mais com o casamento da infanta filha de D. João IV com

Carlos II, em 1661. O enlace veio também marcar uma nova

época nas relações entre as Coroas portuguesa e inglesa. Já não

era mais utilizado o recurso da força diplomática dos puritanos,

e neste estado de calma e relativa harmonia o comércio entre os

dois reinos pode florescer com maior intensidade, sendo isto

indiciado pelo grande afluxo de comerciantes ingleses a

Portugal, onde chegavam com o fim de conquist ar fortuna,

sendo a eles também facultado o acesso às praças de Índia e

possessões africanas. Assim é que, já antes da assinatura do

tratado de Methwen, os portugueses supriam a Inglaterra com

vinhos, especialmente o do Porto que era bastante apreciado.

Em contrapartida, Portugal e as colônias eram supridas por


165

fazendas e pelo bacalhau, já importado anteriormente. Além

destes bens, cabia à Coroa Inglesa suprir os navios que faltavam

à frota do Brasil. Em questão de pouco tempo, a navegação

portuguesa estava dominada por navios de bandeira inglesa,

sendo isto estendido também às praças coloniais lusitanas.

Os passos para o tratado de Methwen estavam dados.

Assim é que em 1691 chegou a Lisboa o primeiro dos

negociadores, trazendo consigo os interesses da indús tria

inglesa, que vinha aumentando a capacidade de produção devido

às viradas nos processos industriais. Ao fim e cabo de doze

anos de debates desde a chegada do primeiro representante

inglês, era por fim assinado o tratado de Methwen, que recebeu

este nome graças a John Methwen, negociante por parte da

Coroa inglesa. John Methwen era, por sua vez, membro de

influente família produtora de tecidos e lanifícios em

Inglaterra. Destarte, John Methwen negociava muito além dos

interesses da Coroa britânica, agindo a favor dos interesses dos

comerciantes e das indústrias inglesas, que cobiçavam o

mercado português, a ponto de dar ao Reino o título de “nação

i r m ã ” d a I n g l a t e r r a 115.

115 António José da Silva Moreira, Desenvolvimento Industrial e Atraso


Tecnológico em Portugal na Segunda Metade do Século XVIII, in Maria Helena
Carvalho dos Santos (coord.), Pombal Revisitado¸Lisboa, Estampa,
1984, vol II, pág. 17.
166

O tratado, em si, era de uma simplicidade e senso

prático assustadores. Era constituído somente de três artigos

onde, através do primeiro, Portugal se obrigava para sempre a

adquirir os panos e manufaturados de lã ingleses.

No segundo artigo, obrigava-se a Inglaterra ao

consumo dos vinhos portugueses, que chegavam à ilha com

tarifação menor que as dos vinhos franceses. O terceiro artigo,

meramente protocolar, assinalava o início da vigência do

tratado. O tratado, ao primeiro bater de olhos, acena com

vantagens para ambos signatários: a Portugal estava assegurado

um mercado consumidor para o vinho do Porto, firmado pelo

próprio tratado; para o lado inglês, era assegurado mercado

definitivo e constante para o consumo de seus bens fabris e

têxteis.

Por fim, ao tratado era ainda acrescida uma cláusula

onde Portugal se via desobrigado, no moment o em que lhe

aprouvesse, estando livre para suspender as importações.

Contudo, o fato de a Inglaterra encontrar -se em

estado de beligerância contra a França elevava cada vez mais as

tarifas dos vinhos franceses na Ilha. Graças a isto, os vinhos

portugueses, que entravam em Inglaterra minimamente taxados,

eram vendidos a preços mínimos, oferecendo assim grande lucro

para os ingleses. A isto deve ser somado o fato de que Portugal,

desde a Restauração face aos Habsburgo, possuía um pavilhão

industrial bastante deficitário.


167

A própria Coroa espanhola se encarregava de suprir o

reino com seus bens manufaturados, e cuidando também de

cercear possíveis concorrências industriais advindas do reino

dominado.

Posteriormente, após a restauração pela casa de

Bragança, houve um surto industrializador em Portugal, sendo

este guiado pelo conde de Ericeira. A ideia básica era tornar

Portugal auto-suficiente face às importações de têxteis e

lanifícios ingleses, e repor a industrialização que havia sido

tolhida pela entrada do monarca estrangeiro no trono

português. Para tanto, era necessária a construção de um parque

de indústrias básicas em Portugal, sendo todas elas providas de

matéria-prima nacional. Ainda neste ponto, a má -vontade contra

os possíveis investidores, alguns deles oriundos da burguesia

conversa, fez com que os empreendimentos tivessem vida curta,

não indo muito adiante. Era muito mais fácil desfrutar do luxo

proporcionado pelos têxteis e manufaturados fornecidos pelos

comerciantes ingleses.

Este “longo” século XVI constituiu, então em

período de importantes transformações e processos econômicos,

políticos e sociais em Portugal. Ao passo que assistiu à idade de

ouro propiciada pelo florescimento do Império ultramarino e

pela estruturação do Estado centralizado, Portugal também viu

todo florescimento humanista e renascentista oriundo desta


168

prosperidade ser abafado e substituído pela avalanche da reação

conservadora e eclesiástica advinda do concílio de Trento. No

campo da política interna, o século também assisti u à entrada

no reino de um monarca estrangeiro, dando início a um domínio

no qual Portugal tornou-se possessão espanhola por seis

décadas. Neste ínterim, e no seio da reação conservadora, o

reino assistiu à supressão de uma incincipiente burguesia cristã -

nova, espantada que fora pelo braço do Santo Ofício, tolhendo

assim o que podia vir a ser o desenvolvimento industrial de

Portugal. Deste modo, o cenário estava aberto para a reação

reformista de governos posteriores, principalmente a que

ocorreu durante o consulado pombalino — esta, rígida e

implacável, além de milimetricamente estudada, não hesitando

em liquidar inimigos e adversários políticos a fim de promover

fatores e elementos que lhes fossem favoráveis.


169

CAPÍTULO 5:

O CHANCELER DE FERRO E A CONSTRUÇÃO DO ABSOLUTISMO PORTUGUÊS

The King has gone, but he’s not


forgotten

Neil Young, hey hey, my my (into the


black)

N
o século XVIII, encontraremos Portugal em situação

bastante delicada. Seis décadas de domínio espanhol,

acrescidos de acordos comerciais que traziam cada vez

mais desvantagens e menos independência em face da Inglaterra

cobraram preços muito altos, no que tange ao desenvolvimento

político e econômico do Reino. O processo de industrialização era

acanhado, tendo em vista, entre outros elementos, que as décadas

em que passou sob domínio espanhol geraram uma situação cada

vez maior de dependência. A Coroa domin ante supria e abastecia

Portugal com mercadorias trazidas de suas próprias indústrias, e

envidava esforços para que o desenvolvimento industrial

português fosse cada vez mais tolhido e cerceado. Após a

Restauração, os acordos comerciais com a Inglaterra, e ntão sob o

protetorado de Cromwell, continuaram a manter a situação de

dominação do mercado português e de suas colônias, agora cada

vez mais acessíveis às frotas e ao comércio inglês. Graças aos


170

tratados de 1654, Portugal se encontrava também na dependênc ia

de naus inglesas, que realizavam e cobravam caro pelo frete de

cabotagem e colonial. Os acordos firmados com Cromwell tiveram,

finalmente, sua forma acabada no tratado de Methwen, celebrado

entre as duas Coroas em 1703. segundo este tratado, Portugal se

encontrava, de forma sutil e arguta, à mercê do comércio e dos

mercadores ingleses, que tinham franco acesso ao comércio em

Portugal e suas possessões na América do sul, Ásia e África. As

maiores diretrizes da Coroa portuguesa se concentravam na

libertação deste domínio econômico e diplomático face ao

comércio e à Coroa inglesas.

As reações portuguesas foram no sentido de

industrializar o Reino, assim livrando a balança comercial do

ônus das importações e da saída dos metais preciosos vindos do

Brasil. Um dos precursores das reformas pombalinas foi o conde

de Ericeira, que possuía uma estratégia baseada na indústria

nacional, visando livrar Portugal deste domínio e da situação de

estagnação econômica em que se encontrava. Ericeira, o

“Colbert” português, foi nomeado em 1675 para a Junta dos

Três Estados e para o posto de vedor da fazenda, onde iniciou

rigorosa campanha em defesa da economia do Reino, visando o

comércio marítimo, a industrialização, o arsenal da Coroa e o

desenvolvimento da moeda. O plano d e Ericeira era simples,

sendo concentrado em setores básicos tais quais a seda, a lã e o


171

ferro — cujas matérias-primas poderiam ser encontradas dentro

das fronteiras do Reino, livrando assim Portugal de importações

onerosas que só traziam endividamento. Os principais focos não

obstante os esforços de Ericeira, seu programa permaneceu

relativamente modesto, empregando poucas pessoas. Um dos

entraves à industrialização deste Portugal tradicionalista residia

no fato da inexistência de uma revolução agrária tal qual havia

ocorrido em Inglaterra. Em Portugal, de forma retrógrada e

diferente, a maior parte da população persistia em atividades

agrícolas e pastoris — que vieram a ser reforçadas cada vez

mais pela viticultura, graças aos tratados comerciais com a

Inglaterra e, posteriormente, com a sacramentação do Tratado

de Methwen. Nas palavras de Hanson, o programa do Conde de

Ericeira “representou a primeira tentativa coerente para

i m p l a n t a r u m a f o r m a d e p r o d u ç ã o i n d u s t r i a l e m P o r t u g a l ” 116. D e

forma a proteger o crescimento da indústria e o mercado

interno, Ericeira lançou mão de diversas pragmáticas que aos

poucos buscavam coibir as importações de mercadorias

estrangeiras, em busca do maior incentivo ao consumo dos

produtos industrializados no próprio Reino — isto, sob severas

críticas e reclamações dos comerciantes ingleses, que se viam

lesados com tal tipo de medida. Contudo, as pragmáticas não

116 Hanson, op. Cit., pág. 199.


172

foram o bastante para conter a ânsia consumista de setores mais

abastados da população, que continuavam a comprar os bens

ingleses, ainda que proibidos.

As medidas de Ericeira, contudo, eram

progressivamente contestadas, à medida em que a afluência de

metais preciosos do Brasil provocou, por outro lado, um surto

de otimismo e prosperidade no Reino. A situação chegou a um

impasse: os abastados nobres, clérigos e comerciantes não viam

sentido em coibir o consumo dos produtos ingleses, em troca do

incentivo a uma indústria local e dos produtos fabricados no

território do próprio Reino.

O Rei D. Pedro II, por sua vez, se viu numa posição

bastante delicada face às pragmáticas de Ericeira e às

reclamações dos nobres e altos funcionários. Os subsídios à

indústria portuguesa, que já eram débeis desde a inauguração do

programa de Ericeira, foram minguando cada vez mais, sendo

aos poucos desviados para o pagamento dos salários dos altos

funcionários, clérigos e nobres — que, por sua vez, gastavam

esta renda consumindo mercadorias estrangeiras, aumentando e

dando impulso a um círculo vicioso que já vinha sendo

alimentado há tempos. Os produtos portugueses não

encontravam escoamento face às leis protecionistas de outros

países, tais como França e Holanda, e a legisla ção comercial

para com a Inglaterra era extremamente desigual, com a balança

pendendo contra Portugal. Foi assim que a moribunda indústria


173

portuguesa sofreu gravíssimo golpe com o suicídio de Ericeira,

em 1690. A mais importante tentativa de industrializaç ão de

Portugal até então havia falhado, e todas as bases da

dependência econômica face à Inglaterra estavam firmadas. Só

restava agora a assinatura, em 1703, do tratado de Methwen, que

veio a dar a esta dependência a forma de leis.

O cardeal e conselheiro D. Luis da Cunha, astuto

observador dos fatos e da situação na qual o Reino se

encontrava, procurou, com mão férrea, reverter a situação de

Portugal nos fins do reinado de D. João V. O Cardeal escreveu

sugestões de diretrizes para reformas no Estado portug uês, às

quais sugestivamente intitulou de Testamento Político. Neste

texto, estavam contidos um balanço da situação de Portugal,

bem como sugestões para uma reforma administrativa e

econômica do Reino, que se achava como que desencaminhado

com a doença e a velhice do antigo monarca. O Testamento era

dedicado a D. José, o herdeiro do trono, e o Cardeal indicava

ao serviço do futuro monarca um ministro que há tempos já

vinha se aprimorando nas lides dos negócios e assuntos

estrangeiros nas cortes de Londres e Viena, sendo agora

regressado à pátria: tratava -se este de Sebastião José de

Carvalho e Melo, o futuro Marquês de Pombal, também ele

arguto observador e leitor atento dos relatos e sugestões do

Testamento do velho cardeal.


174

— Sebastião José e a “modernidade”

Não há como negar a importância da segunda metade

do século XVIII e, nela, da figura do Marquês de Pombal, para

a Coroa portuguesa.

Figura controversa, geradora de apaixonados e

ferrenhos debates políticos e historiográficos, sendo ora amado

e odiado, Pombal tinha um amplo programa de reforma e

reestruturação do Estado português, que encontrara em situação

delicada após a morte de D. João V e na ascensão de seu

s u c e s s o r 117. N ã o o b s t a n t e s e u s p l a n o s b e m p e n s a d o s e u r d i d o s ,

Pombal também contou com os desaires da sorte e do destino,

que auxiliaram em seus intentos. A figura do ministro tornou -se

117 A controversa figura do Marquês de Pombal merece, por si só, um


estudo independente. O Marquês gerou inúmeros debates, onde posições
radicais e extremadas foram tomadas, contra ou a favor da atuação ou da
pessoa do Marquês. Fora as inúmeras biografias de Pombal, cuja análise
não se encontra no escopo deste trabalho, diversos estudos e colóquios a
respeito de tão polêmica figura foram realizados. A este respeito, ver
Maria Helena Carvalho dos Santos (coord.), Pombal Revisitado, Lisboa,
Estampa, 1987, 2 vols, e também V.V.A.A., Como Interpretar Pombal?,
Porto, Brotéria, 1986.
175

plenipotenciária após o terremoto que abalou Lisboa em 1755.

Com posse de carta branca para a reestruturação da capital do

Reino, Pombal já tinha em mente o que seria uma espécie de

cartão de visitas de seu consulado: a ordenação perfeita e

retilínea das ruas e praças da capital eram clara metáfora do que

era planejado para todos os âmbitos da vida política, econômica

e s o c i a l p o r t u g u e s a 118. O s p r o c e s s o s r e f o r m i s t a s d e P o m b a l i a m

muito além de redesenhar e ordenar a construção de uma nova

Lisboa. Existiam outras frentes de ação, outros assuntos

prementes aos quais o ministro se atirou com afinco. Para

atingir seus objetivos, Pombal possuía um estilo todo peculiar

de agir, que era ao mesmo tempo sutil e rude; refinado e

violento. A fim de promover as reformas e os setores sociais

que lhe interessavam, o poderoso ministro não titubearia em

liquidar resistências, ou mesmo reduzi -las ao seu comando,

conforme teremos oportunidade de observar com maior clareza.

Neste grande processo de reordenação de Portugal, a fim de

adequá-lo à modernidade do século XVIII, era necessário o

combate a tudo aquilo que entravava o desenvolvimento

português, conforme já tivemos oportunidade de observar

anteriormente, e que o Cardeal Cunha já havia reparado antes.

118 Excelente estudo sobre a ordenação do espaço lisboeta durante a era


pombalina está em José Augusto França, Lisboa Pombalina e o
Iluminismo, Lisboa, Calouste Gulbenkian, s.d.
176

O amplo plano reformista de Pombal tinha, como

ponto básico, a centralização e aumento dos poderes reais. Uma

vez que o monarca se mantinha afastado da política, após o

terremoto e depois da tentativa de assassinato ocorrida em

1758, o poderoso ministro pôde, então, encetar ampla campanha

legislativa a fim de concentrar e centralizar mais poderes nas

mãos do Rei — o que significava, no fundo, fortalecer os seus

próprios.

Uma vez detentor de poderes acumulados de maneira

extrema e exacerbada, Pombal pôde, então, dar reforço mais

amplo a seus esforços reformistas. Reestruturou a administração

do Reino, e lutou acirradamente contra os inimigos da

modernidade portuguesa, entre os quais sob ressaía-se a Igreja.

Por sua obra e com aproximadamente dois séculos de atraso em

relação ao resto da Europa, o regalismo acirrado e pleno chegou

a Portugal.

Finalmente, era necessário retirar Portugal da

situação de atraso econômico e dependência face ao comércio

inglês em que o Reino se encontrava, desde a Restauração.

Malgrado os esforços envidados anteriormente neste sentido,

Pombal também atuou nesta frente, tendo a seu favor amplo

conhecimento do pensamento inglês, graças ao período em que

trabalhara na Embaixada em Londres. Assim, de acordo com os

ditames do pensamento econômico pombalino — que seguiram


177

sendo uma reedição atualizada das táticas do Conde de Ericeira,

alheados a novas táticas, tais como um impulso à política

mercantilista no Reino —, era necessário promover a

industrialização e o florescimento de uma classe mercantil e

comercial portuguesa, em detrimento da prosperidade dos

comerciantes ingleses. O item mais importante deste plano seria

realizá-lo de forma sutil, quase imperceptível, de modo a gerar

a menor grita possível por parte daqueles que se sentissem

lesados. A este respeito, Pombal criou a Junta do Comércio,

como forma de escapar ao controle dos comerciantes ingleses.

Por outro lado, também procurou impulsionar a indústria

vidreira e viticultora, como forma de gerar um saldo favorável

na balança comercial portuguesa. Num aparente paradoxo em

relação às suas práticas ilustradas, Pombal também adotou uma

política de cunho mercantilista e altamente protecionista, típica

da centralização que marcou seu governo e que, por outro lado,

também visou estreitar os laços do sistema colonial, afrouxados

por contrabandos e descaminhos desde o final do reinado

a n t e r i o r 119.

Um outro aspecto importante da política pombalina

de centralização do poder real e de modernização do Estado

119 quanto a esta política econômica aparentemente paradoxal, ver Francisco


Falcon, op. cit., e Maxwell, op. cit.
178

português dizia respeito às atitudes da Coroa para com a Igreja

de Roma e seus representantes. Neste ponto, o governo

pombalino era de uma política regalista exacerbada, que pouco

ou nada ligava às reclamações da sé de Roma e seus legados, à

medida em que os atos governamentais pendiam para uma

separação mais ampla entre os dois campos da vida política. A

tais protestos, o Marquês dava pouca atenção — ou fazia que

dava atenção, quando na verdade estava obrando para um

recrudescimento cada vez maior da reestruturação nas relações

entre Lisboa e a Sé romana. Claro exemplo disto foi a atitude

de Portugal face aos jesuítas, contra os quais intensa campanha

política e de propaganda foi encetada. Segundo o pensamento

pombalino, cabia liquidar de vez e definitivamente as

influências políticas dos inacianos, amplas demais e por demais

infiltradas na gestão política do Reino. Este era um objetivo

que já se arrastava há tempos em Portugal, mas que durante o

consulado pombalino tomou força maior, sendo também

radicalizado aos seus extremos. Para que Portugal entrasse de

vez na modernidade europeia, era necessário que o “longo”

século XVI e seus remanescentes, finalmente, chegasse ao fim.

— A Guerra Contra os Soldados de Cristo e Outras Cam panhas

Pombalinas.
179

Podemos inserir a constante e ferrenha campanha

contra a Companhia de Jesus dentro do âmbito maior de

realinhamento das relações entre a Coroa portuguesa e a Sé de

Roma. Os inacianos constituíam ameaça em potencial às

ambições centralizadoras de Pombal, vi sto que se encontravam

bastante imiscuídos na vida política e administrativa do Reino.

Devemos também levar em conta que os religiosos constituíam

sérios competidores em relação à Coroa, no que tange ao campo

econômico, tendo em vista o fato de serem depos itários de

grande riqueza em épocas de escassez e crise econômica. Tal

fato se evidenciava ainda mais no âmbito colonial, e

principalmente no Brasil, em cujas terras ao Norte assistiam à

constante prosperidade dos jesuítas e seus armazéns,

contrastantes com a miséria em que viviam os colonos

portugueses na região. Isto fez com que Pombal mandasse ao

Pará o seu irmão Francisco Xavier de Mendonça Furtado, com a

finalidade de arbitrar sobre as questões referentes aos tratados

de limites celebrados com a Coroa espanhola, e observar e

acompanhar a situação dos inacianos e dos colonos na área.

No âmbito da Corte, os jesuítas possuíam inegável

influência, sendo que muitos deles ocupavam altos cargos na

administração do Reino. O Marquês iniciou virulenta campanha,

munida de grosso aparato de propaganda, contra os “pervertidos

e depravados religiosos”, como a eles se referia o jargão

pombalino. Um dos pontos nodais desta campanha foi a


180

tentativa de associação dos jesuítas à tentativa de regicídio

sofrida por D. José. Não obstante testemunhas terem afirmado

que os supostos atiradores e conspiradores se encontravam

trajando hábitos da ordem, os inacianos safaram -se desta

acusação, e o processo acabou recaindo sobre outro setor que

interessava a Pombal — desta vez, o ônus da ira do poderoso

Marquês caiu sobre a nobreza mais tradicional do reino,

originando o processo dos Távoras.

A campanha pela expulsão dos inacianos de Portugal,

bem como os embates pela liquidação desta ordem, fazia parte

de um cenário maior onde Pombal revia as relações entre

Portugal e a Sé de Roma. A exemplo da Coroa de Áustria, onde

estivera a serviço, o Marquês adotou uma postura regalista ao

extremo. Se isto, por um lado, incomodava tanto ao Papado, por

outro veio a criar em Portugal uma Igreja nac ional de fato e

direito, a partir do momento de ruptura de relações com Roma

entre 1759 e 1769. Com esta ruptura, Portugal passou a ter uma

Igreja nacional submetida ao chefe de governo. O próprio

Marquês, num edital anterior, já deixara claras suas postur as

regalistas, ao afirmar que o monarca

..como Rei, Senhor Soberano, que na temporalidade não


reconhece na terra superior, toda a livre independência, sem
a qual nem a Monarquia, nem a sociedade civil dos povos,
que à sombra do trono devem gozar de tranq uilo
181

sossego, nem ainda o mesmo estado eclesiástico puderam


a t é a g o r a , n e m p o d e r ã o s u b s t i t u i r . . " 120.

Pombal era uma pessoa precavida, e um planejador

eficiente. Para cuidar dos assuntos espirituais do Reino, fazia

uso do prestígio de Paulo Carvalho de Mendonça , seu irmão que

também era Inquisidor e que, posteriormente, seria nomeado

Cardeal — morrendo porém antes de ocupar o cargo. Como era

de seu costume, o ministro tinha o hábito de colocar pessoas de

sua confiança em cargos-chave da administração. Na ausência

do irmão Inquisidor, o Marquês, fez uso dos préstimos de D.

Luis Cosme da Cunha, também ele Inquisidor e encarregado dos

negócios apostólicos da Coroa portuguesa. O já mencionado D.

Luis Cosme da Cunha era um dos membros da casa dos Távora,

que caíra em desgraça graças ao processo por regicídio, e fugira

de Portugal para escapar ao triste fim de seus aparentados.

Passada longa temporada em França, voltou ao Reino ocultando

o sobrenome proscrito com medo de represálias, e

aproximando-se dos favores do todo-poderoso Marquês através

da adulação a seu irmão eclesiástico.

Com a finalidade de minar o poder dos inacianos,

Pombal buscava agir nos campos onde estes religiosos eram

120 Lei de 2/04/1768, in Colecção das Leis.., tomo II. Grifo meu.
182

mais influentes. As táticas utilizadas foram as mais

diversificadas possíveis. Uma destas foi a o fomento e

utilização das rivalidades existentes entre as ordens religiosas,

a fim de provocar uma cisão dentro da Igreja ligada a Roma.

Dado que, desde o reinado de D. Henrique, os jesuítas possuíam

o monopólio da educação no Reino, Pombal l hes tirou esse

atributo em 1758, ao conceder aos oratorianos o direito de

instituírem um colégio na capital. A retirada do monopólio

educacional das mãos dos inacianos, por sua vez, era apenas o

prenúncio de um passo maior que Pombal pretendia dar. Apesar

de estar vinculado também a outras ordens religiosas, o ensino

em Portugal continuava tendo caráter eclesiástico, mas Pombal

almejava uma estrutura educacional totalmente laica e moldada

nos ditames do pensamento das luzes. Segundo Maxwell, o

propósito da educação para os planos pombalinos era de um

utilitarismo prático: “produzir um novo corpo de funcionários

ilustrados para fornecer pessoal à burocracia estatal e à

hierarquia da Igreja reformada”, que perpetuassem, através de

s u a f o r m a ç ã o , a s r e f o r m a s e o E s t a d o p o m b a l i n o 121. F o i a s s i m

que Pombal deu um passo maior, encetando a reforma da

universidade de Coimbra em 1772, agora totalmente purificada

das influências dos jesuítas. Desta vez, ao contrário de quando

121 Maxwell, op. Cit., pag110.


183

ocorreu o processo de posse do Colégio das Artes por parte dos

inacianos, Pombal já possuía uma estratégia rigidamente

preparada: em substituição aos lentes eclesiásticos, Pombal

alocou professores que eram funcionários públicos e que

recebiam prebendas do Estado. Os professores eclesiásticos

eram diretamente ligados à pessoa do Marquês. Os próprios

reformadores, entre os quais se achavam incluídos Manoel do

Cenáculo e Luis Antonio Vernei, autor do Verdadeiro Método

de Estudar, pináculo básico das premissas educacionais

pombalinas, eram pessoas escolhid as a dedo pelo Marquês.

Assim sendo, o currículo foi modernizado, sendo escoimadas

todas as antigas exigências e ditames característicos do

pensamento escolástico. Agora, esta universidade secularizada

estava voltada para um ensino laicizante e baseado na

experimentação e observação científicas, tão ao gosto do

pensamento ilustrado. Assim sendo, o curso de medicina

reformado era atualizado pela aprendizagem em dissecação de

cadáveres, antes proibida por motivos religiosos. Possuidora de

um laboratório dos mais notáveis e modernos, a Universidade

tornou-se um dos mais completos centros de ensino da Europa,

competindo em posição de igualdade com as outras

universidades possuindo, nos primeiros momentos de sua

reforma, lentes estrangeiros contratados para a inj eção do

conhecimento e ciência das luzes em Portugal, bem como


184

professores nacionais, todos eles admitidos com base em

concursos públicos e recebendo status de servidores públicos.

No campo econômico, Pombal se deparava ainda com

a antiga e incômoda situação de dependência da Inglaterra.

Agora Portugal vivia diretamente sob o signo do tratado de

Methwen. A política econômica pombalina, baseada num forte

desenvolvimento da indústria interna que livrasse o Reino da

dependência inglesa, também se demonstrava paradoxal, em

alguns momentos. Enquanto seguia as diretrizes de

industrialização do Reino, Pombal também trabalhava de forma

constante e intensa no reestreitamento dos laços do sistema

colonial, afrouxados desde o final do reinado de D. João V,

dando margens a diversos descaminhos e contrabandos —

principalmente de comerciantes ingleses estabelecidos nas

praças coloniais. Por outro lado, Pombal lançou mão de uma

anacrônica política de caráter mercantilista, ressuscitando um

anacronismo que já se assemelhava morto e enterrado no resto

da Europa, em mais uma das peculiaridades tão comuns à

administração do Marquês., Pombal, por outro lado, encetou

nova tentativa de reavivar a industrialização do reino feita nos

moldes daquela preconizada, décadas antes, pelo C onde de

Ericeira, também ele ardoroso defensor do protecionismo à

indústria nativa como forma de se eliminarem as necessidades

de importações e o conseguinte defcit comercial com a


185

Inglaterra. Apoiada no pensamento do Cardeal Cunha, que via

no empresariado cristão-novo importante parceiro para o

crescimento da indústria e enriquecimento do reino, Pombal não

hesitou em retomar os flertes de Ericeira com os endinheirados

cristãos-novos — o que tantos aborrecimentos trouxe ao Conde,

em momento anterior. Munido agora de muito maior poder e

respaldo jurídico, e dono de uma vontade pétrea, Pombal

procurou capitalizar o interesse dos empreendedores cristãos -

novos, lançando mão de uma legislação cada vez mais

protecionista que buscava trazer -lhes de volta ao Reino, uma

vez que dele foram espantados pela violência da repressão

inquisitorial. As ideias de Pombal estavam centradas em fundar

novas indústrias que substituíssem os produtos industrializados

comprados em Inglaterra, e também na criação de companhias

de comércio que reativassem e apertassem novamente os laços

do comércio colonial, afrouxados que foram com os acordos

após a Restauração e a lassidão administrativa característica do

fim do reinado de D. João V. Sendo assim, a ideia de criação de

companhias de comércio, deveras arcaica para o século das

luzes — e muito mais adequada à era mercantilista — acabava

possuindo razão de ser: a constituição de cada companhia

significava, também, a aquisição ou construção de novos navios

mercantes e de escolta, o que vinha servir às necessidades

navais de Portugal que, graças aos sucessivos acordos com a

Inglaterra, tinha visto sua frota ser sucateada e cair em desuso


186

aos poucos, vivendo a incômoda situação de ver a navegação de

cabotagem no Reino e o comércio colonial sere m dominados

pela frota inglesa, que cobrava pelo frete. Neste ponto tão

delicado das relações exteriores, a política de Pombal fez uso

da maior sutileza possível: a ideia era cercear, de forma

imperceptível, o espaço dado aos ingleses no comércio

português e colonial, desfazendo toda a embaraçosa situação

provocada pelos acordos comerciais anteriores com a menor

grita possível: esta ocorreu de fato quando da expulsão dos

Comissários volantes da praça colonial, como forma de preservar

o mercado brasileiro para a Coroa portuguesa. Tais Comissários

eram uma prática já arraigada no comércio colonial: eram eles

ingleses que para o Brasil vinham, e viviam de revender as

mercadorias inglesas sem, contudo, pagar as devidas taxas e

impostos, desviando assim importante quinhão de metais

preciosos que deviam pertencer à Coroa portuguesa.

Mais uma vez, os programas industriais de Portugal

esbarraram num empecilho bastante antigo: a mentalidade

tradicionalista tão arraigada no Reino. A classe mercantil

continuava tolhida; muitos nobres viam no trabalho uma

atividade aviltante, que ia contra o status quo e a tradição,

preferindo então manter-se afastados das lides empresariais

para serem senhores de terras e enriquecerem às custas das

culturas agro-pastoris. Por mais que buscasse captar novos


187

capitais entre os cristãos-novos, os planos industriais de

Pombal para Portugal tiveram resultados pouco melhores que os

de Ericeira, mas ainda assim eram pouco, face ao que o Reino

precisava. O signo de Methwen era muito mais duradour o do

que se supunha, e as relações de dependência entre Portugal e

Inglaterra continuariam a perdurar para além deste também

“longo” século XVIII, no entendimento de Kenneth Maxwell —

para quem o século XVIII português somente estará encerrado

com a transferência da Corte para o Brasil, em 1808.

— Um Portugal Adequado ao Concerto das Nações

Escoimar Portugal de todos os elementos do

obscurantismo e do atraso era, para o pensamento pombalino,

também preparar o Reino para o desfrute de uma posição

condizente dentro do cenário político e econômico

internacional. Tendo já perdido o ritmo do desenvolvimento

face às outras potências europeias por diversas ocasiões, era

chegado o momento em que Portugal deveria se equiparar aos

seus pares, desfrutando com isso de todas as benesses que a

modernidade poderia trazer. Foi assim que, de outro modo, o

Marquês se entregou com afinco e denodo à política de


188

desenvolvimento do Reino, procurando através de seus planos

políticos e econômicos torná-lo auto-suficiente e garantir para

si o Império colonial que tanto lhe valia, na medida em que esta

praça era avidamente cobiçada pelas demais nações. Contudo, os

planos do Marquês eram todos encetados no sentido de, ao

atualizar Portugal com o século XVIII, ou mesmo colocá -lo um

passo à frente das demais nações — como ocorreu com a

reforma da Universidade de Coimbra, que deu ao Reino o mais

moderno estabelecimento de ensino superior então disponível

na Europa — significava, por fim, cortar os laços da

dependência que tanto haviam ent ravado o desenvolvimento do

Reino.

— O Legado:

Por mais polêmica que seja a figura do Marquês, e

por mais apaixonados que sejam os debates suscitados em torno

de sua pessoa, não podemos lhe negar a validade dos esforços

reformistas.

Sua reelaboração das estruturas de poder e

administração do Reino deixaram como legado um acúmulo de

poderes sem precedentes sobre a pessoa do monarca. Por mais

que tenha sido combatido e refutado por seus adversários,


189

principalmente após a morte de D. José I em 1777 e o

movimento reacionário que passou à história com o singelo

nome de “viradeira” — que de viradeira mesmo pouco tinha, já

que pouco ou nada virou, a não ser agindo como uma reação

pessoal de D. Maria ao antigo Ministro, mantendo intocados os

esquemas administrativos e de poder por ele elaborados —, o

grande mérito do Marquês foi deixar aos monarcas portugueses

os monopólios sobre a força de coerção, o da tributação, do

qual não abria mão no intuito de incentivar e alimentar suas

reformas, e o da criação de leis — este, amplamente utilizado,

acima de todos os outros anteriores. Deste modo, estavam

consolidadas em Portugal as bases de um absolutismo de fato e

direito em torno da pessoa do Rei, construído pela dura mão do

chanceler de ferro.
190

CAPÍTULO 6: A INQUISIÇÃO SOB O SIGNO DO PODER

Segunda metade do século XVIII foi um momento de mudanças

radicais na história da Inquisição, de um modo geral. No caso da

portuguesa, este foi um ponto de virada em sua atuação, em que o

tribunal foi marcado por uma perda cada vez mais acentuada de

autonomia e independência, num processo empreendido pela

Coroa, no sentido de trazer para si o controle da engrenagem

inquisitorial. Encontramos, na segunda metade daquele século o

Santo Ofício cada vez mais submetido ao po der do Estado, então

personificado na figura do Marquês de Pombal, até ser integrado,

em 1769, à constelação das justiças do Rei, através da concessão,

p o r e d i t a l , d o t í t u l o d e m a j e s t a d e a o T r i b u n a l 122.

Por outro lado, a Inquisição, enquanto instituição,

assumia cada vez mais, nas vistas do mundo ilustrado e racional

que se firmava, as feições de um monstruoso anacronismo que

devia ser erradicado juntamente com seus autos de fé,

considerados espetáculos de barbárie, e seus procedimentos,

que incluíam o segredo, além de horrendas e dolorosas torturas.

122 Ver anexo II.


191

Mas, segundo o Marquês de Pombal, a questão do

Santo Ofício não residia na extinção sumária do Tribunal, mas

sim deveria ser inserida num contexto muito maior, o da

reformulação racionalizada do Estado português. Neste Estado

centralizador e regalista que Pombal pretendia criar para

Portugal, deviam ser outras as relações da Inquisição, bem

como a da Igreja com a Coroa

No caso da Inquisição, o estilo pombalino se

mostrou através de um combate em diversas frentes. P ombal

tratou de obter o controle indireto do Tribunal, através de seus

validos, nomeados para cargos de importância estratégica, tais

quais eram seu irmão Paulo de Carvalho e Mendonça e João

Cosme da Cunha, ambos na chefia da Inquisição por momentos

distintos, durante um período bastante conturbado da existência

do Tribunal.

Um outro ponto desta campanha estava também

ligado à reestruturação do Estado português, desta vez seguindo

os ditames do velho Cardeal em seu Testamento. Paralelamente a

esta política de controle indireto da Inquisição, Pombal também

encetava uma política de tolerância religiosa no Reino,

procurando assim atrair de volta os cristãos -novos à vida


192

e c o n ô m i c a d e P o r t u g a l 123, a t r a v é s d a e x t i n ç ã o d a d i s t i n ç ã o e n t r e

cristãos velhos e cristãos novos. Segundo uma das queixas do

Cardeal em seu Testamento, Portugal se achava despovoado, e

seria necessário abrir o Reino à entrada de estrangeiros que o

povoassem. Contudo, tal questão trazia embutida no seu cerne a

problemática da tolerância religiosa, que agora viraria razão de

Estado, pois para o Cardeal Cunha tratava -se de “acordar a

u t i l i d a d e t e m p o r a l d o r e i n o c o m a e s p i r i t u a l d a r e l i g i ã o , 124” .

A última frente de atuação do Marquês se deu no

âmbito puramente administrativo, através de uma série de lei s

que aos poucos foram trazendo a Inquisição, de direito, ao

controle do Estado.

Contudo, para chegarmos a este ponto crucial da

atuação inquisitorial, é necessário que seja traçado um

panorama dos ventos ilustrados e racionais que sopravam e

varriam o Velho Mundo e seus governos, trazendo embutidos em

si movimentos de importante cunho reformista, abolindo ora

paulatinamente, ora de forma abrupta, as instituições ligadas

123 A respeito da política tolerante do Cardeal Cunha, ver o Testamento,


pp. 74-80.
124 Idem, pág. 77.
193

aos arcaísmos tradicionalistas, tendo sempre em vista a

evolução e o progresso do homem.

— A Ilustração e o Reformismo Europeu no Século XVIII

Estudar o movimento ilustrado é uma tarefa bastante

ampla e abrangente, tendo em vista o caráter multifacetado que

este assumiu pela Europa. Francisco Falcon afirma que, ao

estudar a ilustração, podemos verificar a presença de duas

Europas. Uma delas, nodal para o movimento, centrada em

Paris, constituía o centro de onde emanavam as ideias e

inovações características à ilustração. A outra abrangia

geograficamente “a orla meridional e oriental do co ntinente,

alcançando vastas áreas situadas no seu centro”. Neste ponto,

encontramos uma dualidade, que se nos afigura como uma das

figuras de linguagem tão caras aos próprios ilustrados e ao seu

pensamento: de um lado, como centro irradiador, encontramos

Paris — cerne do movimento; de outro, recebendo as ideias de


194

forma defasada, lenta e limitadamente, a periferia da difusão do

m o v i m e n t o a i n d a e l a e i v a d a d e o b s c u r a n t i s m o 125.

A ilustração não se apresentou de modo uniforme e

concomitante nas regiões onde se m anifestou, tendo em vista

esta defasagem cronológica e geográfica que distanciava centro -

periferia, no que tange à difusão de ideias. Contudo, alguns

aspectos do pensamento ilustrado se encontravam presentes ao

largo de todo o processo difusor, sofrendo nu ances e variações

de acordo com as necessidades e conjunturas regionais.

Antes de qualquer coisa, deve ser lembrado que o

pensamento ilustrado, ainda que se manifestasse nas mais

variadas formas de acordo com as regiões da Europa — e mesmo

de acordo com as interpretações locais e peculiares que lhe

eram dadas — não constituía um corpus amorfo de ideias.

No que tange às ideias e aos pontos em comum

constantes do pensamento ilustrado, encontramos o racionalismo,

que por sua vez teve origem discreta no proces so de laicização

da cultura iniciado no renascimento. O racionalismo sofreu

significativo recuo, após o triunfo do catolicismo conservador e

125 Falcon, op. Cit., pp. 93-94.


195

militante, que marcou a Reforma Católica em seu contexto

tridentino.

Mas, isto não significou, em momento algum, qu e

tenha morrido ou desaparecido, sendo liquidado pelas forças

conservadoras. O fato foi que, durante a primeira metade do

século XVIII, com o advento das luzes — apesar de a

periodicidade do movimento ilustrado poder remontar, segundo

alguns autores, até mesmo a meados do século XVII—, o

pensamento laico e racional pôde então ressurgir em cena com

força e pujanças antes não vistas.

Ainda que, em ambos movimentos, tanto o humanista

renascentista quanto o ilustrado, o centro das ideias e dos

debates estivesse sempre em torno de poucas pessoas, que

tinham condições suficientes para cultivar o espírito, as belas

letras e a própria discussão em si, no caso do último movimento

as ideias foram tomando corpo e difusão de uma forma que

antes não teria acontecido, graças à constância e intensidade da

militância e atuação política e social de seus partícipes. Estes

eram médicos, burocratas, profissionais liberais e letrados de

um modo geral, e mesmo clérigos, atingindo inclusive, com sua

difusão, a regentes e monarca s — dentre os quais

encontraremos o próprio Marquês de Pombal.

E, embora as estradas europeias ainda continuassem a

apresentar condições precárias, sendo um empecilho para a


196

presteza na difusão das novas ideias, tal como foram durante o

renascimento, as novas condições culturais, tais como o

desenvolvimento da imprensa e a difusão da alfabetização ao

longo da Europa, vieram a possibilitar uma propagação cada vez

maior e mais eficiente das ideias ilustradas — o que não fez,

ainda, com que o movimento perdesse o seu caráter elitista

primordial. Ainda que os filósofos e os ilustrados, de modo geral,

se achassem distanciados do povo e da gente comum, também

achavam que lhes cabiam importante papel na sociedade

justamente por seu conhecimento adquirido, que havia de levar

ao povo — esta mesma gente comum — a um estado melhor de

v i d a , p o r q u e d o m i n a d o p e l a r a z ã o 126.

Os principais ambientes e meios de difusão do

pensamento ilustrado, além dos próprios escritos dos autores a

eles ligados, estavam vinculados a um círculo de debates e de

trocas de ideias, que tinha lugar em sociedades elaboradas para

este fim, tais quais as sociedades de leitura e as academias, e

mesmo nos cafés e salões onde os autores e pensadores deste

movimento se encontravam. Tais agremiações filosóficas, para

utilizar um termo também caro à época, eram fóruns de

discussão e trocas de ideias, onde tal elite letrada podia se

126 Idem, pág. 105.


197

reunir e discutir os assuntos então de seu interesse, tendo

sempre em vista a perspectiva racionalista que caberia à

i l u s t r a ç ã o 127.

Conforme já mencionamos, dentre os pontos nodais

do movimento estava o racionalismo. Para os ilustrados, era a

razão que haveria de levar o homem a um estado de bem -

aventurança e felicidade, uma vez varridos da terra a

superstição e o irracionalismo. No que tange a este respeito, o

pensamento ilustrado possuía um caráter marcadamente dualista:

a uma religião racionalizada e ponderada, se contrapunha o

dogma e a superstição; à crença baseada na observação e no

pensamento sistemático e racional, se contrapunha a fé cega em

uma verdade revelada, tão característica do pensamento

conservador católico.

Tal fato não indicava, de maneira alguma, um ateísmo

radical por parte da ilustração. Do contrário, ainda que os

debates teológicos e religiosos, e mesmo o anti -clericalismo,

fossem um dos pontos mais importantes e incendiários do

movimento ilustrado, os membros deste debate ainda estavam

ligados à Igreja de alguma forma, ainda que esta fosse uma

vinculação confessional. O que importava aqui era um

127 A este respeito, ver Hof, op, cit., cap 4 e Robert Darnton, Boemia
Literária e Revolução, trad. port., São Paulo, Companhia das Letras,
1986.
198

reprocessamento e uma releitura da religião, agora trazida à luz

da razão, e escoimada dos dogmas e superstições que antes

atravancavam o desenvolvimento do pensamento do homem. A

religião racionalizada não demandava tais elem entos

obscurantistas — daí podemos entender o porque de tais ideias

e de seus partícipes terem sido reprimidos e perseguidos em

locais onde o conservadorismo católico ainda continuava a

grassar com força e a manter sua posição chave de bastião

ideológico. É por esta linha de raciocínio que podemos

compreender o porque, por outro lado, das Inquisições ibéricas

não verem com bons olhos a este movimento, tendo em vista os

questionamentos diretos que eram postos à hegemonia católica.

A figura central do pensamento ilustrado está focada

no racionalismo, e o seu principal agente era o homem educado

e de letras, o filósofo. Homem de letras e livre-pensador, porque

livre de todos os dogmas e das verdades reveladas, tanto físicas

quanto religiosas e políticas, agindo racionalmente. Estes

homens de letras eram, como já vimos, oriundos da burguesia,

bem como das classes ligadas à burocracia estatal — o que não


199

impedia, em momento algum, a que homens de Igreja viessem a

a d e r i r a o m o v i m e n t o 128.

Já Para Ernst Cassirer, a ilustração e seu ponto de

vista religioso combatia o pensamento dogmático. Segundo este

autor, o dogma era combatido não apenas porque era a

ignorância, segundo os ditames básicos do pensamento

ilustrado. No caso do dogma, havia um agravamento, pois este

era “a ignorância que se arvora como verdade, que quer impor -

s e c o m o v e r d a d e ” 129

. Tal espírito racional e filosófico, por mais que

sugerisse alguns laivos de ateísmo e materialismo, na verdade se

apresentava como uma releitura da vivência religiosa do

cristianismo. Segundo Ulrich Im Hof, no século XVIII a tônica

dos debates ainda se centrava na teologia, sendo o clero ainda o

p r i n c i p a l a g e n t e d a v i d a c u l t u r a l 130.

Após pacificada das lutas de religião ocasionadas

pela cisão protestante e pela reação católica, o pensamento

europeu podia agora se dar a reestruturar o pensamento

128 A este respeito, ver Vicenzo Ferone, O Homem de Ciências, e Dominique


Julia, O Sacerdote, in Michel Vovelle (dir.), O Homem do Iluminismo,
trad. port., Lisboa, Presença, 1997, pp. 155-179 e 279-303,
respectivamente.
129 Ernst Cassirer, A Filosofia do Iluminismo, trad. port., Campinas,
Editora da Unicamp, 1997, pág. 221.
130 Ulrich Im Hof, A Europa no Século das Luzes, trad. port., Lisboa,
Presença, 1995, pág. 156.
200

teológico e religioso de maneira crítica e ponderada com base

no racionalismo. Ainda que permanecessem confessionalmente

ligados à Igreja tanto protestante quanto católica, os ilustrados

agora punham a Bíblia sob o rigor da crítica científica, num

processo que levou à uma interpretação mais liberal das

E s c r i t u r a s e , m e s m o e m a l g u n s p o n t o s , a l a i v o s d e a t e í s m o 131.

À medida em que este pensamento secularizador

avançava, também avançou progressiv amente a noção de uma

religião natural, calcada nas leis naturais, em contraposição à

religião revelada e ao dogma, pedras de toque da escolástica.

Assim foi aberto, de maneira progressiva, o caminho à negação

da ideia de revelação divina, que levava mesmo ao seu

apagamento, tendo em vista que a fé racional não suportava a

ideia de uma verdade revelada e que devesse ser aceita de forma

cega e submissa, como nos ditames do pensamento escolástico.

Este humanismo exacerbado dos filósofos levou a uma nova

concepção de cristianismo que, nas palavras de Falcon, estava

marcado pelo “primado dos valores morais racionais, fé no

homem e em sua dignidade, fé na perfeição e na ordem do

m u n d o , v a l o r i z a ç ã o d a n a t u r e z a , o t i m i s m o , c o n f i a n ç a ” 132.

131 Idem, pág 158.


132 Falcon, op. Cit., pág 97.
201

Como uma das questões nodais desta nova

religiosidade ilustrada, estava a tolerância religiosa — agora

praticada em seus mais abrangentes aspectos. Para Hof a

tolerância, “mais do que uma aceitação a contragosto, (..)

deveria representar um interesse ativo em compreender os

outros”, sendo isto mais fácil de ser praticado dentro do âmbito

das confissões protestantes do que no âmbito do catolicismo,

onde esta intensidade da tolerância encontrava ainda fortes

b a r r e i r a s 133. Podemos notar esta dificuldade de aceitação da

tolerância nos locais onde a Inquisição existiu, tais como nos

reinos ibéricos. Em Portugal o caminho da tolerância religiosa

teve que ser aberto por meio de decretos e pela mão de ferro do

Estado, personificado pelo Marquês de Pombal.

Tendo em vista que o projeto básico da i lustração

consistia na implantação do domínio da razão sobre os homens,

era de se esperar que, com o passar do tempo e à medida em que

estes tomassem familiaridade com as novas ideias, a razão

dominasse sozinha e de moto próprio a frente dos

acontecimentos, passando então a reger a vida. Este avanço das

luzes ocorreu de forma mais acelerada nos países protestantes,

onde a população, ainda que não tivesse condições para comprar

133 Hof, op. Cit., pag 169.


202

os custosos livros difusores das novas ideias, possuía maiores

índices de alfabetização — assim como nos grandes centros de

irradiação.

Por outro lado, nos países onde o conservadorismo

católico mantinha sua força e ainda consistia forte obstáculo, o

domínio da razão levaria tempo a se fazer sentir. Para que tal

ocorresse, era necessário que o próprio governo, esclarecido,

guiasse o povo nos rumos das novas luzes do século. Neste

sentido, Hof aponta um pioneirismo em Portugal, reino sempre

periférico no que tange ao avanço e desenvolvimento europeu, e

paradoxalmente um arcaísmo e um gra nde desafio para o século

das luzes, tendo em vista o grande poder e força que lá

exerciam as forças conservadoras da Igreja romana, que ocupava

posição dominante ainda no cenário político.

Por mais que tais ideias incendiárias constituíssem

perigo para os que as adotassem em países ainda conservadores,

como Portugal e Espanha, existiam na Europa diversos oásis de

tolerância tanto no que se diz respeito à crença religiosa,

quanto às interpretações que se davam a ela — como era o caso

da Inglaterra, da França e da Holanda, que sempre fora, mesmo

em tempos onde grassava a intolerância na Europa, um paraíso

de aceitação às diferenças de crença. Tendo em vista este fato,

podemos entender o porque de muitas pessoas e autores

perseguidos pela Inquisição portuguesa, por exemplo, haverem

elegido tais oásis como locais de refúgio e disseminação de suas


203

obras, que eram assim impressas e editadas livres do alcance da

Inquisição — que lá não podia estender seu longo braço

repressor.

Para a ilustração, que realistament e acreditava no

fato de que a difusão da razão pelas camadas da sociedade

ocorreria de forma lenta e paulatina, o ideal seria que o

governo fosse guiado por filósofos. Este cunho político da

ilustração — cristalizado na metáfora do governo do rei-

filósofo,—, era de alta periculosidade para os partícipes do

movimento, pois atacava diretamente os fundamentos

absolutistas do Antigo Regime.

Este rei-filósofo se encarna de forma perfeita no

Zadig de Voltaire. Homem a quem a vida retirara a fortuna, a

perfeição e beleza física e que, antes de tais desgraças, era dado

ao cultivo do espírito e das letras, Zadig era a perfeita metáfora

da ilustração, sendo a pura encarnação do filósofo. Por ter

resolvido de maneira racional e ponderada todos os problemas

que se lhe apresentavam, finalmente, Zadig conseguiu por meio

do racionalismo e de sua ponderação, alcançar o trono da

Pérsia, por onde veio a reinar por muitos e muitos anos


204

prósperos, numa clara alusão da possibilidade e eficiência do

g o v e r n o g u i a d o p o r u m f i l ó s o f o 134.

Tendo em vista que as raízes do próprio absolutismo

não permitiriam um governo de burgueses, profissionais

liberais, burocratas e clérigos letrados, não fazia ressalvas a que

os monarcas procurassem, por si próprios, os esclarecimentos

das luzes de seu tempo. Desta forma, o próprio monarca seria

aquele que traria para seus súditos o primado da razão, e desta

união, a princípio estranha e paradoxal, entre ilustração e

monarquia absoluta, surgiram propostas reformistas de governo,

como as da Prússia de Frederico II, da Áustria de José II, da

Espanha de Carlos III e a portuguesa, cuja Coroa era dominada

por José I, mas cujo governo e reformismo mais atuantes

cabiam à figura do Marquês de Pombal, que com seu centralismo

e política regalista exacerbada, encetou diversos planos

reformistas e atuou em diversas frentes, no intuito de

racionalizar a administração e o Estado portugueses.

Em Portugal, a política cada vez mais centralizadora

e regalista do primeiro ministro, o então todo -poderoso

Marquês de Pombal pode ser vista como um dos momentos

iniciais daquilo que Ulrich Im Hof veio a chamar de

“iluminismo por decreto”, devido ao fato de que eram as

134 Voltaire, Zadig ou O Destino, trad. port., Rio de Janeiro, Ediouro, s.d.
205

monarquias esclarecidas quem se viam na obrigação de levar o

povo e o conjunto dos súditos à plena ilustração, que por sua

vez levaria ao triunfo do racionalismo e a um estado de bem -

aventurança pública. Ainda para Hof, uma das características

mais notáveis deste ïluminismo decretal” português residia

justamente em seu pioneirismo, graças ao fato de ter começado

num momento em que as monarquias ainda não se lançaram ao

r e f o r m i s m o i l u s t r a d o 135. T a l f a t o s ó f o i p o s s í v e l , p o r s u a v e z ,

graças aos plenos poderes dados ao ministro por D. José I,

principalmente após o terremoto que abalou Lisboa, o que deu

ensejo a uma reestruturação e modernização da cidade, que foi

r e e s t r u t u r a d a d e a c o r d o c o m p a d r õ e s r a c i o n a i s e m a t e m á t i c o s 136

— o que já oferecia uma noção das profundas reformas que

Pombal faria no Estado português, de forma a racionalizá -lo e

modernizá-lo.

Tal processo ocorreu tendo por base uma política

que, aparentemente, se manifestava contraditória: apesar do

Marquês propor a implantação de reformas de cunho plenamente

de acordo com o ideário ilustrado em Portugal, varrendo com

todo arcaísmo que empanava a sociedade portugues a e lhe

entravava o desenvolvimento — o que pode ser observado

135 Hof, op. Cit., pag. 237.


136 A este respeito, ver José Augusto França, Lisboa Pombalina e o
Iluminismo, Lisboa, Bertrand,S.d.
206

quando de suas querelas pela modernização do ensino em

Portugal e da própria política regalista de reestruturação da

Igreja no Reino —, ao mesmo tempo o ministro utilizava

métodos arcaicos e violentos para atingir seus objetivos, como

ficou patente no caso do julgamento e punição dos nobres

acusados da tentativa de regicídio contra D. José I, onde

Pombal, atuando dentro do mais puro estilo obscurantista que o

próprio iluminismo combatia, expôs e m praça pública os réus,

aplicando-lhes dolorosas penas e punições, num evento que

chocou a Europa esclarecida (Ver figura 6).


207

FIGURA 6: A execução do Duque de Aveiro

O programa reformista de Pombal possuía, conforme

já tivemos oportunidade de observar, o objetivo pragmático de

centralizar e amealhar a maior quantidade possível de poderes

na pessoa do monarca — o que, por seu turno, significava

também um aumento de poderes e autoridade do Ministro.

No âmbito da realização das reformas a que se

propunha, a pragmática pombalina se mostrava de forma clara e

límpida: na medida em que criava meios e artifícios para

eliminar oposições reais e virtuais ao seu governo, como no

caso da campanha contra os jesuítas, e por outro lado buscava

promover os setores sociais que lhe fossem de interesse, como

no caso da valorização da burguesia industrial portuguesa, e

mesmo na adoção progressiva e paulatina de uma política de

tolerância religiosa face aos cristãos-novos.

— A Inquisição e o Ideário Ilustrado

O movimento ilustrado concebia a si mesmo como

fruto do primado da razão e da inteligência sobre o

obscurantismo e as trevas que envolviam os homens até então,


208

interpretando seu sucesso como o triunfo da civilização contra

o barbárie.

A partir desta postura fortemente dualista, torna-se

mais fácil o entendimento dos debates a respeito da Inquisição,

bem como do novo ímpeto que eles tomaram em solo português.

Tendo por dois séculos vigiado com olhos acurados e

mão férrea o terreno ideológico português, reprimindo as

oposições com o peso de sua “justiça e misericórdia”, a

Inquisição pôde calar ou, ao menos, baixar o tom das vozes

dissonantes à sua presença e atuação.

As críticas à Inquisição, em Portugal, permaneceram

diminuídas, graças ao efetivo esforço da censura inquisitorial e

às constantes relações de livros expurgados e proibidos,

recolhidos e destruídos. O pensamento anti -inquisitorial

militante se expressava em outros lugares fora do Reino, como

nos oásis de tolerância que estavam fora do alcance do braço do

Santo Ofício.

A literatura anti-inquisitorial, a princípio, se

constituía de testemunhos dados por antigos réus do Santo

Ofício português. Eram eles, em diversos casos, protestantes

que tiveram o infortúnio de, longe de suas pátrias, terem sido

processados e punidos pela Inquisição portuguesa —

oferecendo, através de seus relatos, matéria prima para uma


209

crítica e denúncia constantes e cada vez mais incisivas e

e l a b o r a d a s c o n t r a o T r i b u n a l 137.

Em Portugal, a Inquisição conseguia manter a

oposição calada, de modo a preservar sua autoridade e posição

inabalável. As críticas locais ao estilo e à própria figura da

Inquisição se mostravam de forma escassa ou tímida, quando

conseguiam burlar a censura inquisitorial. Fora os reclames dos

cristãos-novos, em escritos de pouca difusão, a crítica mais

consistente ao Tribunal residiu na retórica constante e nos

sermões do Padre Vieira, em defesa dos cristãos -novos e contra

a desumanidade do estilo processual do Santo Ofício, acusado

de arbitrariedade e o obscurantismo.

Outro ponto de relevo nesta literatura anti -

inquisitorial é o texto de Pedro Lupina Freire, intitulado

Notícias Recônditas do Modo de Proceder da Inquisição para com os

S e u s P r e s o s 138. E r r o n e a m e n t e a t r i b u í d a s à p e n a m o r d a z e v i g o r o s a

de António Vieira, as Notícias Recônditas foram dadas à luz por

137 Peça bastante interessante e elucidante deste pensamento anti -


inquisitorial, que traz em si uma linguagem de denúncia contra o
Tribunal, é AN Impartial Account of Many Barbarous Cruelties
Exercised in the Inquisition in Spain, Portugal, and Italy, London ,
Printed and solded by the Booksellers in Town and Country, 1738.
138 Pedro Lupina Freire, Notícias recônditas do modo de proceder da Inquisição
com seus presos In Obras Escolhidas do Padre Antonio Vieira , Obras
várias II, Lisboa, Ed. Sá da Costa, 1951.
210

um antigo notário do Santo Ofício, revoltado contra o

tratamento dado pelo Tribunal aos seus réus.

No século XVIII, com o advento das luzes, as

críticas à Inquisição se tornaram mais pungentes, e ganharam

força e eco cada vez maiores. Para a ilustração, os reinos

ibéricos eram vistos como bastiões do atraso, da barbárie e da

mais irracional superstição — situação que era agravada pela

presença da Inquisição, que, com o crepitar das fogueiras da fé

tolhia e retardava o avanço da razão e das luzes.

O irracionalismo atávico atribuído aos portugueses,

fica bastante patente na troça que a pena ferina de Voltaire fez

de Portugal, em seu Candide. Num dado momento, o herói

filosófico de Voltaire fora capturado pela Inquisição

portuguesa, junto com seu mentor Pangloss. A culpa atribuída a

eles era de que, uma vez tendo chegado a Lisboa após um

terremoto, Pangloss teria explicado o fenômeno pelo fato de

que a terra tremia em decorrência de fatores naturais, num

delicado momento em que os portugueses, com a irracionalidade

que lhes era atribuída, explicavam a catástrofe pelos pecados do

povo. A solução encontrada pela Inquisição portuguesa foi

aplicar tanto em Pangloss, que divulgava ideias contrárias ao

irracionalismo costumeiro do Reino, quanto em Candido — que

simplesmente ouvia tais ideias e com elas concordava, acenando

com a cabeça — uma punição exemplar: junto a vários outros

condenados, dentre os quais se encontravam diversos cristãos -


211

novos, mestre e aprendiz seriam queimados num auto -de-fé a

ser realizado com a finalidade de que tais tremores não

voltassem a ocorrer. Após terem ambos se livrado da

supersticiosa punição, saíram de Lisboa, e tiver am a notícia da

realização do auto e do tremor de terra que lhe seguira poucos

d i a s d e p o i s 139.

Para a ilustração, de um modo geral, a Inquisição era

um incômodo anacronismo, um resquício da distante idade das

trevas, que ainda teimava em dar sinais de existê ncia em

Portugal. As providências em relação a isto não tardariam no

governo português, principalmente através do pensamento

reformista do Cardeal Cunha, em seu Testamento Político, e da

própria atuação reformista do Marquês de Pombal, atento leitor

do Testamento.

— As Reformas Pombalinas e a transformação da Inquisição

O Cardeal da Cunha, em seu Testamento Político, havia

traçado planos para a Inquisição. Segundo o velho diplomata, o

Tribunal deveria ser remodelado para deixar de ser uma fábrica

139 Voltaire, Candide ou L’ Optimisme, Paris, Hachette, 1993, cap 6.


212

de hereges e judaizantes, devendo agora dedicar -se a perseguir e

reprimir “os que abraçam novas opiniões, ou errôneas ou

heréticas”, as quais o Cardeal não chega a qualificar e distinguir

q u a i s e r a m e s t a s 140. D e a c o r d o c o m o t e x t o , o T r i b u n a l d e v e r i a

passar por uma reestruturação minuciosa e profunda. A reforma

da Inquisição deveria começar justamente pelo estilo do

Tribunal. As propostas do Testamento, no que diz respeito à

processualística da Inquisição, baseiam -se na extinção do sigilo,

e também no fim do uso da tortura como forma válida para

obter confissões.

De acordo com o cardeal, uma vez que o Santo

Ofício era por si um estigma de atraso e barbárie para o Reino,

ele deveria ser mudado. O Testamento não propõe a extinção

do Tribunal, mas sim uma reforma radical em seu estilo e suas

diretrizes. Tal programa reformador oferece um aspecto

bastante interessante. Na medida em que propunha um controle

cada vez maior do Tribunal pela administração civil, o Cardeal

Cunha também propunha uma legislação mais tolerante, em que

os crimes de heresia e apostasia deveriam ser tratados pela

justiça secular.

Ainda dentro da mudança do estilo inquisitorial, o

Cardeal propõe o fim da ignominiosa figura dos autos -de-fé,

140 Testamento.., pag. 80.


213

que faziam com que Portugal perdesse cada vez mais

credulidade face às outras nações estrangeiras, e que lhe valiam

a pecha de bastião do atraso e do mais retrógrado e bárbaro

conservadorismo. No tratamento dado a estes espetáculos, D.

Luís da Cunha é taxativo: para ele, os autos eram eventos

que os nacionais vão ver como uma festa de touros, e os


estrangeiros como uma bugiganga pela variedade das
insígnias que levam os que vão no dito auto -de-fé, e os
inquisidores inventaram para excitar a curiosidade dos
p o v o s 141.

A quem argumentasse que, sem os autos, a Inquisição

perderia sua finalidade, o Cardeal responde que o Santo Ofício

ainda teria alguma serventia nesta nova ordem que se almejava

implantar em Portugal:

Mas se alguém objetar que não convém que por este modo
ficasse a Inquisição sem exercício, e o povo sem este
divertimento, a que se chama triunfo da fé, respondo que
nunca faltaria aos inquisidores o que fazer, nem em que se
ocupar, porque ainda que se lhes tirasse este ramo, que é o
mais pingue da sua jurisdição, sempre lhes ficariam outros
muitos em que empregá-la, como, por exemplo, contra os
que abraçam novas opiniões, ou errôneas ou
h e r é t i c a s 142

Apesar de não explicitar quais seriam os novos alvos

da repressão inquisitorial, o Testamento do Cardeal Cunha

oferecia sugestões práticas de mudança quanto à ação repressora

do Santo Ofício, ao propor o fim da perseguição aos cristãos -

novos.

141 Idem, pag. 79.


142 Idem, pp.79-80. Grifo meu.
214

A questão dos cristãos-novos estava vinculada, para

o Cardeal Cunha, à necessidade de industrializar Portugal,

livrando-o do jugo inglês. A tentativa de industrializar o Reino,

planejada pelo Conde de Ericeira, havia falhado antes, mas o

Cardeal insistia na sua necessidade.

Em seus arrazoados, preconizava uma política de

tolerância em escala gradativa, a começar pela sugestão do

término do confisco dos bens dos cristãos -novos — o que,

esperava-se, incentivaria o retorno da burguesia cristã -nova,

que havia partido a aplicar suas fortunas alhures. Para o

Cardeal,

Sendo o modo das ditas confiscações o que tem feito e faz


sair de Portugal tantas famílias com os seus efeitos, que vão
meter nos fundos públicos de Inglaterra e Holanda, etc.,
segue-se que , seguros de conservarem os seus bens a seus
filhos, não deixariam a sua pátria, antes nela continuariam
n o s e u c o m é r c i o e e m p r e g a r i a m o s e u d i n h e i r o 143

Com efeito, para esta nova tentativa de saneamento

das finanças do Reino, era necessário o retorno do capital

cristão-novo, corrido pela violência da atuação inquisitorial,

uma vez que a repressão aos judeus convertidos consistiu na

celula-mater da ação do Tribunal.

143 D. Luís da Cunha, Testamento.., pp. 86-87.


215

Pensando de acordo com sua vasta experiência nos

negócios e assuntos estrangeiros de Portugal, e também em

sintonia com as luzes do século, o Cardeal Cunha apresentou

uma proposta interessante para resolver o problema dos

convertidos e, por outro lado, reinserir Portugal no concerto

das nações civilizadas.

Segundo o Testamento Político, a questão dos

convertidos era clara: Portugal havia deixado escapar das mãos

a oportunidade de dias melhores, a partir do momento em que

adotou uma prática de intolerância com os judeus convertidos

ao cristianismo — exatamente uma parcela enriquecida da

burguesia, que era de pouca praticidade perseguir. Segundo reza

o Testamento,

A insensível, e crudelíssima sangria que o Estado leva, é a


que lhe dá a Inquisição, porque diariamente com medo dela
estão saindo de Portugal com os seus cabedais os chamados
c r i s t ã o s - n o v o s 144

As medidas tolerantes propostas pelo Cardeal

contêm, em si, um progressivo ab randamento das punições para

os convertidos — que passariam a ser cada vez mais doutrinais

e espirituais, na medida em que o Santo Ofício reformado

modificasse a sua atuação.

144 Idem, pág. 75.


216

Outra das propostas, desta vez de maior impacto, foi

a da eliminação da infâmia sobre os convertidos e seus

descendentes, assim como das fintas, ou seja, das efígies penais

dos condenados, que ficavam exibidas na igreja de S. Domingos

— servindo, por isso, como provas de detração dos réus e seus

descendentes.

Ainda dentro de suas propostas tolerantes, o Cardeal,

lucidamente, sugere que tanto a Coroa quanto a Inquisição

façam vistas grossas face às práticas dos convertidos, em nome

de uma nova razão de Estado, que se pretendia modernizadora e

evoluída. Para o Cardeal,

Como a Igreja não julga os interiores, e menos o príncipe,


pouco importa à República que haja judeus ocultos, quando
n ã o e s c a n d a l i z a m e c o n s e r v a m s u a s c a s a s 145

Por fim, o Cardeal deixara traçado um bem -articulado

e pragmático plano de tolerância religiosa para Portugal,

esperando que, com esta política, os convertidos voltassem ao

Reino, e com seus cabedais auxiliassem no seu desenvolvimento.

O Marquês de Pombal, atento leitor dos conselhos do

velho diplomata, fez uso de uma política de tolerância religiosa

e incentivo à burguesia cristã-nova, agindo paulatinamente, até

145 Idem, pág. 81.


217

chegar a um final que foi definitivo e bastante acordado com as

novas razões de Estado em Portugal.

O historiador português Raul Rêgo estabeleceu uma

periodização para as relações entre o Marquês de Pombal, o

Santo Ofício e os cristãos-novos, em estudo sobre o projeto

r e g a l i s t a p a r a o S a n t o O f í c i o 146. P a r a e l e , e s t a r e l a ç ã o p o d e s e r

dividida em três momentos. O primeiro deles vai desde a

entrada do Marquês no governo, até o último auto -de-fé

público, em 1765. A segunda etapa vai desde o último auto

público até 1774, ano em que o Santo Ofício é dotado de novo

Regimento. Ainda segundo Raul Rêgo, no terceiro momento,

que corresponde aos últimos anos do Marquês, o Santo Ofício

m a l s e f a z i a s e n t i r 147.

Contudo, no centro desta relação, estão as sérias

modificações referentes aos cristãos-novos portugueses.

Representantes de uma burguesia que interessava ao governo

promover, os cristãos-novos se tornam alvo de uma legislação

protecionista e feita por etapas, dentro do estilo do Marquês.

Tal legislação também coincidiu com um momento em que a

146 Raul Rêgo, O Marquês de Pombal, os Cristãos-novos e a Inquisição, in Maria


Helena Carvalho dos Santos (coord.), Pombal Revisitado, Lisboa,
Estampa, 1984, pp. 307-336, vol. 1.
147 Idem, pag. 311.
218

Inquisição, dando sinais de fraqueza, diminuía seu rigor

persecutório.

Num primeiro momento desta legislação

protecionista pombalina, encontramos o decreto de 1768, que

manda recolher e queimar as fintas dos condenados da igreja de

S. Domingos. Tais fintas, que representavam os condenados

pela Inquisição, eram um sinal da infâmia dos cristãos -novos, e

também serviam em processos de habilitação para empregos e

cargos — o que não impedia que, muitas vezes, fossem

adulteradas, falsificadas ou mesmo usadas em casos de

difamação.

A etapa crucial desta política tomou corpo na lei que

elimina a distinção entre cristãos-novos e cristãos-velhos em

Portugal, datada de 1773. O texto da lei afirma, com pletamente

sincronizado com a retórica pombalina, que a introdução e o

incentivo à distinção religiosa no Reino fora obra dos jesuítas.

Antes que estes religiosos houvessem introduzido e incentivado

esta segregação no Reino, Portugal conhecera uma política de

tolerância e igualdade. Para que tal voltasse a ocorrer, a lei

ordena que toda legislação que apoie esta distinção seja

revogada, e também manda que sejam republicadas as leis de D.

Manuel e D. João III, respectivamente datadas de 1507 e 1524,

que proibiam no Reino a segregação entre cristãos -novos e

cristãos-velhos.
219

Uma vez abolida a distinção, a nova lei penaliza os

que continuarem a adotá-la: aos eclesiásticos que insistissem na

distinção agora proscrita, a punição estipulada era a

desnaturalização e o desterro, sendo estas pessoas tidas como

“revoltosas, e perturbadoras do sossego público”. Os nobres

que não cumprissem a nova lei perderiam “todos os graus de

nobreza, (...) e todos os empregos, ofícios, e bens da Minha

Coroa, e Ordens de que forem pro vidos, sem remissão alguma”.

Por fim, os plebeus que ainda insistissem no desrespeito à lei

deveriam ser “publicamente açoitados, e degredados para o

Reino de A n g o l a 148” . No ano seguinte, quando um novo

Regimento é dado à Inquisição, Pombal, consolidando a

política de tolerância, ordena, por lei, que sejam proibidas

quaisquer inquirições sobre limpeza de sangue no Reino, ao

mesmo tempo em que manda punir, segundo os costumes e

ditames da lei, as pessoas que tenham de alguma forma utilizado

este expediente para fins de calúnia e difamação.

Analisando as ideias do Cardeal e a do Marquês,

notamos que as propostas do primeiro se transformam numa

realidade jurídica, graças à tenacidade de Pombal, que não

media esforços para afirmar sua vontade. O fim da distinção

entre cristãos-novos e cristãos-velhos era um passo necessário

148 Apud Raul Rêgo, idem, pag. 335.


220

para atrair de volta os capitais dos convertidos, segundo a nova

razão de Estado pombalina. Segundo Falcon, em 1774, “um

decreto contra os transgressores da lei de 1773 pertencentes a

ordens religiosas, irmandades, confrarias” e uma carta de lei

“contra os que teimavam em aplicar as penas de infâmia e

confisco de bens em verdadeiros confitentes reconciliados com

a Igreja”, já indicavam de onde vinham as reações à legislação

tolerante promulgada por Pombal. A necessidade dessas leis,

por si só, demonstra que apenas o final da distinção legal entre

cristãos-novos e cristãos-velhos não foi suficiente para acabar

com séculos de preconceito e discriminação contra os cristãos -

n o v o s n a s o c i e d a d e p o r t u g u e s a . 149.

Ainda que não tivessem efeito imediato, no que se

refere ao comportamento da população, as leis pombalinas

quebraram uma categoria legal, criada ao longo do tempo e

baseada em leis de limpeza de sangue. O convertido e seus

descendentes, ainda que não fossem mais judeus, eram, na

prática, considerados como tais Assim, os cristãos -novos

acabaram por constituir um grupo étnico que, segundo Lina

Gorenstein, identificava-se não pela religião, mas sim pela

exclusão social de que era vítima. Como todo judeu, era

segundo os estereótipos inquisitoriais um herege em potencial,

149 Falcon, op. cit., pag. 403.


221

e pelo tal era discriminado. Para Gorenstein, “a Inquisição

criava a identidade cristã-nova, a consciência da diferença, a

consciência dos cristãos-novos e consciência dos cristãos-

velhos”, dificultando, dificultando a integração dos convertidos

e s e u s d e s c e n d e n t e s à c o m u n i d a d e c r i s t ã . 150.

Para a historiadora:

O projeto de catolização assim não incluía os cristãos -novos,


uma vez que o Tribunal do Santo Ofício exigia a
manutenção da memória judaica pelos cristãos-novos,
impedindo-os de se integrarem à sociedade cristã -velha e
i m p e d i n d o - o s d e s e t o r n a r e m s o m e n t e c r i s t ã o s 151

Para a mentalidade inquisitorial , arraigada na

sociedade portuguesa, o cristão -novo, ainda que reconciliado,

era sempre suspeito de heresia, pelo fato de ser ainda

considerado judeu. Por mais poderoso que fosse o Marquês,

simplesmente uma penada criando da nova lei não seria

suficiente para liquidar, instantaneamente, um modelo mental e

social, calcado no preconceito, elabo rado e praticado por mais

de dois séculos em Portugal.

— Pela Razão de Estado: O Regimento de 1774

150 Lina Gorenstein Ferreira da Silva, “O Sangue que Lhe Corre nas
Veias”: mulheres cristãs-novas no Rio de Janeiro, século XVIII, tese de
doutoramento apresentada à USP, São Paulo, 1999, ex. mimeo, pag. 325.
151 Idem, pag. 326.
222

O processo de reforma da Inquisição pôde ocorrer

num momento em que o Tribunal, paulatinamente, perdia suas

características originais — nos autos de fé, cada vez menos

realizados enquanto cerimônias públicas de expiação para se

tornarem cerimônias reconciliadoras privadas, as estatísticas

dos penitenciados iam sofrendo oscilações constantes. A

Inquisição já não mostrava o mesmo furor persecutório dos

séculos anteriores, dando sinais de falta de fôlego e

demonstrando que caminhava a passos firmes e largos para a

descaracterização que lhe marcaria os últimos tempos.

Não obstante a extinção do Santo Ofício ser assunto

relativamente fácil, que Pombal resolvesse por meio de um

decreto — como já havia resolvido tantos outros —, e apesar

desta progressiva descaracterização, o Santo Ofício ainda seria

um instrumento útil à cada vez mais centralizadora razão de

Estado lusitana, que não abriria mão de um instrumento de

controle cuja estruturação e rede funcional e processual ainda

se encontrava tão bem azeitada e em condições de efetivo

funcionamento.

Acordado com seu próprio estilo, o Marquês começou

a reforma da Inquisição agindo de modo arquitetado e

paulatino, atuando em diversas frentes. De maneira básica, a

submissão inicial do Tribunal passaria por meio de redes

interpessoais fortes e coesas. Foi agindo de acordo com esta


223

linha de raciocínio que Pombal, em 1759, nomeou seu irmão

Paulo de Carvalho e Mendonça para o Co nselho Geral do Santo

Ofício. Tal fato ocorreu exatamente num período conturbado

para a Inquisição, que assistiu a uma rotatividade no cargo de

Inquisidor geral atípica à sua história: em 1750, morreu D.

Nuno da Costa de Ataíde e Melo, Inquisidor geral que também

era membro do despacho de D. João V — forte indício da

predisposição centralizadora e regalista da Coroa portuguesa.

após a vacância do posto de Inquisidor geral, o

Tribunal foi comandado pelo Conselho Geral do Santo Ofício,

conforme previa o Regimento. Em 1759, Pombal nomeia seu

irmão eclesiástico para uma vaga no Conselho da Inquisição,

antes que o posto de Inquisidor geral no Reino viesse a ser

preenchida por D. José, um filho bastardo de D. João V e que

discordava frontalmente da política reform ista e centralizadora

do Marquês — o que lhe valeu a deposição do cargo e um exílio

no Buçaco sob acusação de loucura, num estilo tão

característico do modus faciendi pombalino para se ver livre das

oposições.

Após a rápida permanência de D. José no cargo,

entre os anos de 1758 e 1760, Paulo de Carvalho e Mendonça

ascende à direção do Santo Ofício, onde permaneceu durante

dez anos, período no qual também ocorreu o corte de relações

diplomáticas entre Lisboa e a Sé de Roma, em virtude da

questão jesuítica — momento no qual Portugal possuiu uma


224

Igreja nacional e estatizada de fato. A política do Marquês, que

rezava pela nomeação de pessoas a ele ligadas para ocuparem

cargos-chave em postos estratégicos da administração do Reino,

viria posteriormente a ter continuidade na pessoa de João

Cosme da Cunha, antigo Távora que havia travestido o

sobrenome e granjeado as atenções dos círculos mais próximos

do poder, graças à adulação e proximidade com o irmão

eclesiástico do Marquês. Desta forma, graças ao jogo de

influências e interesses, Pombal mantinha as pessoas que lhe

interessavam nos cargos-chave do Reino, tornando-as

eminências pardas que agiam conforme os ditames da nova razão

de Estado.

Neste meio-tempo em que a Inquisição se encontrava

vivendo um período administrativo conturbado, Pombal encetou

uma outra frente da campanha que levaria, por fim, à reforma

do Tribunal inquisitorial: tratava -se, neste momento, da

utilização de uma série de medidas protecionistas, que visassem

pôr os cristãos-novos numa situação cada vez mais confortável

e mais a salvo de perseguições, tendo por escopo atrair de volta

seu capital ao Reino, tal qual havia sido preconizado no

Testamento Político.

Numa outra frente desta ação multifacetada Pombal

iniciou um processo de expedição de uma série de medidas que,

junto ao processo de franco decréscimo da atuação inquisitorial,


225

ajudaram a acelerar o processo de açambarcamento do Tribunal

da Fé pela justiça do Estado. Assim é que os fatos da

cronologia inquisitorial vão o demonstram paulatin amente: em

1761, foi relaxado o último réu da Inquisição portuguesa, o já

senil jesuíta Gabriel Malagrida, numa forma simbólica de

expressar a animosidade do governo e da Inquisição em

processo de renovação contra os inacianos; em 1765, é realizado

o último auto-da-fé público e finalmente, em 1768, a Inquisição

perde o direito de censura, através da criação da Real Mesa

Censória. Finalmente, através de alvará de 20 de maio de 1769,

a Inquisição é elevada à categoria de majestade, sendo agora

incorporada à justiça do Rei (ver anexo II).

Com este último golpe a independência formal do

Tribunal, que aos poucos assistia à sua descaracterização

progressiva face aos objetivos com que fora criado, chegava

legalmente ao fim.

Um outro sinal dos novos tempos pode se r visto no

fato de que os índices de condenados decresciam, numa razão

desproporcional aos editais de tolerância face aos cristãos -

novos. Num processo que veio a cristalizar tal descaracterização

do Santo Ofício, através de decreto emitido em 1773 quando,

após intensa e constante campanha de tolerância inspirada no

Testamento Político, é abolida a distinção entre cristãos -novos e

velhos no Reino. Agora, o Santo Ofício já estava pronto para se

encaminhar em direção ao seu final, junto também com o final


226

da era do Absolutismo e com a chegada das revoluções liberais.

Uma vez retirada a pedra de toque que durante dois séculos e

meio havia impulsionado a atuação inquisitorial, e que havia

sido seu principal moto de existência, novas finalidades

deveriam ser achadas para o Tribunal, e novos réus seriam

reprimidos.

A reforma da Inquisição não se completou apenas

com sua equiparação aos Tribunais régios. Dentro da nova razão

de Estado pombalina, o mecanismo inquisitorial se associava

cada vez mais com o aparelho policial e, além da reforma do

estatuto do Santo Ofício no seio da constelação das justiças do

Rei, também foi realizada uma reforma crucial no estilo do

Tribunal.

Tal reforma, por sua vez, se manifestou no

estabelecimento de um novo Regimento para a Inquisição, em

1774. Este Regimento foi o último a entrar em vigor na

Inquisição portuguesa, sendo seguido apenas, dentro da

literatura inquisitorial portuguesa, por um esboço de Regimento,

ordenado por D. Maria I, que não chegou a ser completado e

nem teve vigor.

O Regimento de 1774, que leva o nome do Cardeal

João Cosme da Cunha como seu provável autor, está carregado


227

de marcas da ilustração e da pragmática política pombalina.

Reflexo desta nova Inquisição, sintonizada com os ditames da

razão de Estado, o Regimento em muito se difere dos seus

anteriores. Além do texto, que está reduzido de todo detalhismo

e dos circunlóquios que caracterizaram principalmente o

Regimento prévio, sua argumentação está mais curta, condensada

e direta, bastando apenas um arrazoado onde, geralmente, era

atacado todo comportamento anterior da Inquisição e todo

atraso e obscurantismo no qual Portugal se encontrava, antes de

estabelecer normas que iam, geralmente, em contrário a toda

tradição inquisitorial prévia. Por outro lado, uma de suas

características está no fato de demonstrar plenos sinais de

adequação às necessidades do Estado e que, cabalmente, se

tornaram mudanças radicais no que tange a todo estilo

precedente do Santo Ofício lusitano.

A tonalidade do discurso inquisitorial se torna cada

vez mais aproximada do tom da justiça do Reino, conforme já

fica patente no primeiro Livro, onde surge pela primeira vez a

referência da obrigatoriedade do respeito às ordenações do

Reino por parte dos inquisidores — tônica que se manterá pelo

r e s t a n t e d o R e g i m e n t o 152. N u m a o u t r a t r a n s f o r m a ç ã o r a d i c a l , o

152 Regimento do Santo Ofício (1774) Livro I, Título II, § 9,in Revista do
Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, ª157, n. 392, jul/set1996,
pág. 889.
228

sigilo inquisitorial foi abolido e os réus passaram a ter direitos

de defesa maiores, mais garantidos e transparentes. Nas

palavras de Falcon,

do ponto de vista das ideias, é inegável que muitas das


antigas críticas ao Santo Ofício, de Vieira a Vernei, foram
a q u i a s s i m i l a d a s 153.

Ainda no que tange à processualística do Santo

Ofício, o novo Regimento apresenta várias mudanças: a mais

marcante de todas elas diz respeito à abolição do uso da tortura

pelo Tribunal como forma de obter confissões e provas

jurídicas. O tormento, que foi o grande responsável pela

manutenção da legenda negra da Inquisição, recebeu um

tratamento mais racional e humanitário, calcado no direito

natural — outro dos preceitos tão caros à ilustração.

A aplicação do tormento, neste Regimento, ficou

reservada a casos especiais, onde a razão do Estado fosse

ameaçada, como no caso dos processos dos heresiarcas e dos

disseminadores de opiniões que interessavam ao Santo Ofício

reprimir, conforme consta no linguajar do Regimento, cada vez

mais próximo do jargão jurídico civil:

..se os réus forem heresiarcas, ou dogmatizas, e constar


terem disseminado erros, feito sequazes deles; se os não

153 Falcon, Inquisição e Poder: o regimento do Santo Ofício da Inquisição no


contexto das reformas Pombalinas (1774) in Anita Waingorth Novinsky e
Maria Luiza Tucci Carneiro (orgs.), Inquisição: Ensaios sobre
Mentalidades, Heresias e Arte, Rio de Janeiro/Expressão e Cultura; São
Paulo/EDUSP, 1992, pág. 127.
229

confessarem, ocultando alguma das ditas pessoas, serão


postos a tormento, proporcionando à qualidade da prova e
dos indícios que contra eles houver, pelo muito que importa
arrancar de entre os fiéis tão nemerosas (sic) e pestíferas
r a í z e s 154

De acordo com este novo direcionamento da

Inquisição, as antigas características que norteavam os

procedimentos do Tribunal iam aos poucos se extinguindo, ou

então eram mudadas radicalmente. Um destes casos diz respeito

aos autos de fé, que terminaram por serem formalmente

extintos. O pensamento ilustrado do Regimento, totalmente

afinado com as diretrizes pombalinas afirmava, em seu longo

arrazoado introdutório contra os autos, que tais espetáculos do

Triunfo da Fé, de acordo com o dualismo ilustrado, eram antes

de qualquer coisa e como tudo de mal, obscurantista e

irracional que havia no Reino, uma sórdida maquinação

jesuítica:

Tendo mostrado a História por fatos incontestáveis, que os


chamados Autos-de-fé, ordenados nos Regimentos de D.
Pedro de Castilho, e de d. Francisco de Castro, fabricados
pelos jesuítas, e até valorizados com as armas de
sua perversa, e já extinta sociedade, foram outro
invento da malignidade dos mesmos Regulares,
para mais fomentarem a ignorância e o fanatismo,
que tinham introduzido nestes reinos, com geral
escândalo das Nações estrangeiras; as quais, como
iluminadas, que não havia na boa e sã filosofia, na
moral Cristã, na Religião, ou na Política razão ou
fundamento algum com que se pudessem contestar
aquelas públicas ostentações de horrores e
misérias; viam caminhar a numerosos e miseráveis
réus, em solene, e pomposa procissão para um

154 Regimento de 1774, Livro II, Tit III, § 3, pág. 911. Grifo meu.
230

teatro levantado dentro em uma Igreja para aí


ouvirem ler suas sentenças (..). e pois que pela
misericórdia do altíssimo tem cessado nestes
Reinos aquelas funestíssimas tragédias desde que
degradados deles com os mesmos extintos jesuítas
a ignorância, e a superstição, ocuparam o lugar
delas as luzes que o Rei Meu Senhor nos está
difundindo do alto do seu Real Trono: é justo e
necessário que a vista delas desapareçam aquelas
produções das trevas..”

E segue o Regimento decretando que não ocorram mais

autos públicos nem particulares, devendo todas as sentenças e

reconciliações, doravante, serem feitas em Mesa, no reservado

das instalações inquisitoriais.

As únicas exceções abertas para a realização de autos

públicos diziam respeito aos novos réus que mais chamavam

atenção neste novo Regimento, tais quais os sigilistas:

Porém sendo presos, e convencidos, alguns réus ou de


heresiarcas, ou de dogmati, ou de h ipócritas, ou de
sigilistas, ou culpados em outros delitos que pela sua
extraordinária gravidade, e escândalo, perigo de grassarem,
e pelas agravantíssimas circunstâncias de que se revestirem,
peçam pública satisfação. Ordenamos que as Inquisições, a
que os ditos réus tocarem, depois de os terem processado,
consultem ao Conselho Geral com os processos,
substanciando na consulta as culpas que se acharem
provadas contra os ditos réus, e as circunstâncias delas;
para determinarmos o tempo, e lugar, em que deve m ouvir as
s u a s s e n t e n ç a s o s s o b r e d i t o s p e r n i c i o s o s d e l i n q u e n t e s 155.

Num outro sinal do novo momento vivido pela

Inquisição o elemento cristão-novo, cuja existência jurídica

inquisitorial tinha sido eliminada por decreto do ano anterior,

recebeu poucas menções. Cabia à nova classe protegida pela

155 Idem, Tit XV, e §§ 2-3, pp. 930-931.


231

Coroa o direito de se defender, entregando ao Santo Ofício e às

autoridades civis as pessoas que fizessem qualquer tipo de

propaganda anti-semítica — que, agora tornavam-se passíveis de

processo jurídico com todas as penas a ele cabíveis, como

também havia sido antes apontado no Testamento de D. Luís da

C u n h a 156.

Por mais que a Inquisição apresentasse sinais de

fraqueza e pouca vitalidade, tendo seu procedimento assimilado

com o da justiça civil, este novo Regimento pôde vigorar por um

pequeno intervalo de tempo. Ainda após o final do governo de

D. José e do consulado Pombalino, os monarcas posteriores,

tais como D. Maria e seu filho D. João VI, continuaram a se

aproveitar das estruturas de poder e governo criadas pelo

Ministro para seu antepassado. Tal fato acabou dando provas

cabais da falibilidade da assim chamada viradeira, dada a

perenidade e praticidade das estruturas centralizadoras de poder

montadas pelo Marquês.

A descaracterização do Santo Ofício torna -se mais

clara de observar à medida em que averiguamos os processos

156 Testamento Político, pág. 88.


232

inquisitoriais instaurados durante o final do século XVIII até

sua extinção. Não obstante o Cardeal Cunha, em seu Testamento

Político, ter recomendado que a Inquisição, uma vez renovada,

se dirigisse contra novos réus, tais quais aqueles que

a b r a ç a s s e m n o v a s o p i n i õ e s , “ t a n t o e r r ô n e a s q u a n t o h e r é t i c a s ” 157.

Neste ponto, os conselhos do velho Cardeal não foram seguidos

à risca. Através da análise dos processos instaurados pelo Santo

Ofício após a reforma pombalina, notamos que os delitos

reprimidos pela Inquisição passam por culpas várias como a

bigamia, que no universo dos processos inquisitoriais apresenta

c o n s i d e r á v e l i n c i d ê n c i a 158. A l é m d a b i g a m i a , a I n q u i s i ç ã o e s t a v a

também outros crimes, tais como a solicitação, o sigilismo, as

proposições escandalosas, o libertinismo e a leitura de livros

d e f e s o s 159.

Dentro deste último âmbito, já num momento em que

a Inquisição perseguia — sob o reinado de D. Maria e

posteriormente o de D. João VI —, novos inimigos que

realmente poderiam representar ameaças à ordem vigente e aos

157 Idem, pág.80.


158 A documentação processualística relativa a este período final da
Inquisição portuguesa se encontra um tanto quanto confusa, sendo que
diversos e vários papéis acabaram sendo inventariados como processos.
No que tange à bigamia, ver ANTT, Inquisição de Lis boa, processos 50,
56, 860, 866, 13269, 14416, 1466, 1480, 1484, 1485, 14416, 15935, 2776,
2780, 2860, 5343.
159 ANTT, Inquisição de Lisboa, processos 13645, 6703, 6773, 6775, 13270,
16071, 17256, 1810,5711, 9275, 15907.
233

interesses da Coroa, tais quais a maçonaria, como teremos

chance de observar. Assim, vemos que a Inquisição também

achava espaço para reprimir também os que professavam a

liberdade de pensamento e que, ainda que tardiamente, liam

escritos ilustrados, como no caso de Domingos José Fernandes

de Medeiros, presbítero secular em Lisboa, se apresentou em

1812 para confessar a leitura do Contrato Social de Rousseau. Já

havendo passada a revolução fran cesa e mesmo tendo sido

estabelecida a independência do Brasil, a sedição de Rousseau

a i n d a i n c o m o d a v a a C o r o a à s b e i r a s d a s d i s c u s s õ e s l i b e r a i s 160.

No que tange ao libertinismo e à prática da leitura e

comércio de livros defesos, o processo de Manoel de So uza é

bastante esclarecedor. Capitão engenheiro em Lisboa, Manoel

fora acusado de impressão e tráfico de livros proibidos. Em

defesa apresentada por escrito ao Tribunal, o réu alegou que

Sempre fugi de trato particular com pessoa alguma,


maiormente de discursos q tivessem por objeto a verdade da
religião, e se ouvia alguma proposição, de que
pudesse presumir liberdade no pensar, nunca a
sondei, e antes queria ficar nesse ponto com o juízo
indeciso.

Afora esta defesa contra quaisquer acusação de

libertinismo, o engenheiro também foi acusado de impressão e

160 ANTT, Inquisição de Lisboa, processo 11978.


234

tráfico de livros defesos, e alegou ainda em sua defesa que o

fazia por razões de sobrevivência material. A piorar sua

situação, depoimentos contra o Capitão engenheiro atestaram

que ele expressava suas opiniões metafísicas a respeito das


161
religiões, que “faziam do mundo uma mascarada espiritual”

Dentre as culpas e pecados reprimidos pela

Inquisição reformada, encontramos também ligações com a

maçonaria — preocupação recente do Estado, que passou a ser

também do Tribunal. Tal preocupação fica demonstrada no

processo de José Ignacio de Lateste, cirurgião natural e

morador de São Paulo, cujo processo salta aos olhos graças ao

fato de o réu ter sido interrogado pelo desembargador Manoel

da Costa Ferreira, ouvidor do crime da Corte, “nomeado por

Sua Alteza Real por seus especial decreto para conhecimento do

caso”.

No interrogatório, o desembargador, responsável

pelos interrogatórios feitos ao réu, procura ser incisivo em suas

questões que tratam, num primeiro mo mento, de caracterizar o

que era a maçonaria. Ao ser perguntado sobre o que era ser

pedreiro livre, José Ignacio ofereceu uma resposta evasiva e que

apresentava uma visão idílica da maçonaria, dizendo que esta

“era uma união entre vários amigos de sociedad e para fazerem

161 ANTT, Inquisição de Lisboa, processo15907.


235

b e m u n s a o s o u t r o s ” 162. T a l r e s p o s t a n ã o s a t i s f e z o o u v i d o r d o

crime, que mostrou curiosidade detetivesca e inquisitorial ao

perguntar sobre o que se praticava nessas sociedades, no que

obteve como resposta que na iniciação à maçonaria, o neóf ito

era introduzido à reunião de olhos vendados e que era

interrogado pelos maçons, depois do que lhe desvendavam os

olhos e “abraçavam-no, e iam-se todos por comer e beber”. Tal

resposta, ainda evasiva, foi considerada por demais diminuta, e

José Ignacio foi perguntado se tal ingresso ocorria por meio de

algum juramento, o que provocou a irascibilidade do réu, que

foi veemente ao afirmar que não era pedreiro livre, e que só era

curioso a respeito da maçonaria, para a qual deu um veredicto

taxativo, dizendo que “aquilo era um ajuntamento de

vagabundos, ociosos, que o que queriam era comer e beber dos

outros”, numa resposta que ainda não havia saciado ao ouvidor

do crime, que perseguia no seu rastreamento de uma

conspiração, perguntando se “nessas sociedades, que diz

observara de curiosidade, tratavam pontos de religião ou de

Estado”, o que suscitou mais uma vez a resposta negativa,

162 ANTT, Inquisição de Lisboa, processo 7291, fl. 4, f.


236

tendo o réu mantido sua versão de que “nem vira lá senão

b r i n c a r , e c o m e r ” 163.

Por fim, sendo então a maçonaria tratada

cautelosamente como uma grande brincadeira, José Ignacio foi

admoestado e libertado pelo ouvidor do crime.

Ainda no universo processual desta Inquisição tardia,

encontramos outros delitos, tais como a bruxaria, associada à

superstição e à feitiçaria, e a conduta des respeitosa face à fé

c a t ó l i c a e a o s s a c r a m e n t o s 164. A I n q u i s i ç ã o a i n d a s e d e s d o b r a v a

sobre a heresia, ainda que em alguns momentos, esta não fosse

q u a l i f i c a d a 165. C a s o í m p a r , n e s t e u n i v e r s o p r o c e s s u a l , f o i o d e

Tereza Mayer, filha de um “herege anoveriano (sic.) e de uma

irlandesa. Tereza foi denunciada por Joachim Jansen, preladoda

Igreja Patriarcal. De acordo com o prelado denunciante, Tereza

se casou numa cerimônia anglicana com um capitão de mar e

guerra inglês, e manteria contato com outros “hereges”, tanto

163 Idem, fl 5, f, grifo meu. Para outros processos relacionados à


maçonaria, ver também ANTT, Inquisição de Lisboa, processos 15878,
412, 1476, 15316, 6404.
164 ANTT, Inquisição de Lisboa, processos 1481, 1482, 1962.
165 ANTT, Inquisição de Lisboa, processos 1489 e 2774. O conhecimento
através destes processos se demonstra em alguns momentos bastante
fragmentários, tendo em vista que alguns destes “proces sos” nada mais
eram do que meras denúncias, de caráter amplo e genérico, quando não
eram notas e apontamentos do Inquisição ou de algum funcionário do
Tribunal.
237

ingleses quanto holandeses. O zeloso prelado alegou haver

tentado conversar com o presbítero inglês a respeito da

ilegalidade da vida religiosa da denunciante — no que foi

secamente tratado pelo interlocutor, que alegou que “só atendia

ao rei de Inglaterra”. O peso final desta denúncia de soberania

e arrogância inglesa — que não foi levada adiante pelo Santo

Ofício — residiu no fato de que a denunciada e sua mãe não

acreditavam na Igreja romana, e por decorrência disto, não

praticavam seus r i t o s 166. Ainda no campo das “heresias”, a

Inquisição ainda encontra espaço para reprimir supostos ateus e

pessoas que abraçavam a irreligião, como Antonio Monteiro da

Rocha. Aos 23 anos, natural do Porto e bacharel em cânones

pela universidade de Coimbra, ao se aprese ntar, Antonio alegou

que sua irreligião teria se originado através do contato com

outros estudantes, que lhe mandaram ler O Espírito das Leis,

algo que o confitente negou. Ainda segundo consta no sumário

processo, os estudantes discutiam a validade da reli gião

e n q u a n t o e s t u d a v a m c á l c u l o 167

Ainda neste campo das crenças divergentes, a

Inquisição atuou também na repressão à blasfêmia, e também às

166 ANTT, Inquisição de Lisboa, proc. 16712. Ainda sobre heresias, ver
também os processos 2774 e 1489.
167 ANTT, Inquisição de Lisboa, proc. 1414.
238

p r o p o s i ç õ e s e r r ô n e a s 168. N e s t e u n i v e r s o , e n c o n t r a m o s M a t h e u s ,

desbocado blasfemador que fora denunciado como heresiarc a

por Rozaura Maria. Segundo a denunciante, Matheus comia

carne em dias proibidos, e “vivia apartado inteiramente da

nossa Santa Fé, e Religião”. Crasso exemplo deste

distanciamento da Fé, segundo a denunciante, foi um episódio

que ela testemunhara: estando ela na casa de um amigo do

denunciado a dona da casa, ao ver passar o Santíssimo

Sacramento, perguntou a Matheus o que era aquilo, “dizendo -

lhe a mesma dona da casa, que era o Nosso Rei”, no que foi

prontamente retrucada por Matheus que, em sua rebeldia, não

era dado a catecismos, havendo respondido que “então era ele

filho da puta”, além de duvidar intermitentemente da virgindade

de Maria e mencionar que S. José “era um corno”, e ignorar a

f r e q u ê n c i a à m i s s a 169. N u m a o u t r a e s f e r a d e a ç ã o , a I n q u i s i ç ã o

também se voltava sobre os delitos e pecados do clero e mesmo

irregularidades do Santo Ofício. Dentre os primeiros,

encontram-se processos sobre a solicitação e sobre clérigos que

rezavam mais de uma missa por dia. Como demonstração do

controle que o Tribunal ainda procurava exercer sobre seus

168 ANTT, Inquisição de Lisboa, processos 2777, 1810, 15711, 17256, 9275.
169 ANTT, Inquisição de Lisboa, processo16071. Apesar do palavreado de
Matheus fazer graves referências a figuras -chaves do cristianismo, na
Torre do Tombo consta apenas a denúncia, sendo que um processo
completo não foi localizado. Grifos do Notário da Inquisição.
239

membros, encontramos o caso de João José do Vale, carcereiro

do Santo Ofício. Num arrolamento de testemunhas, João era

acusado de vender facilidades aos presos dos cárceres

inquisitoriais. Tais favores passavam pela comun icação inter-

celas, pelo arranjo de encontros íntimos entre presos e presas,

bem como ainda atuava no tráfico de dinheiro para dentro do

c á r c e r e 170. F i n a l m e n t e , a I n q u i s i ç ã o a i n d a a g i a s o b r e p e s s o a s q u e

falseavam vinculações religiosas, quer seja rezando mis sas sem

terem recebido as ordenações, ou ainda mesmo agindo em nome

d o S a n t o O f í c i o s e m f a z e r p a r t e d e s e u s q u a d r o s 171.

Em seus últimos anos, quando estava por todo

submetida ao aparelho de Estado e às suas vontades, fazendo

parte da máquina de poder que Po mbal montara e que era

desfrutada pelos descendentes de D. José I, a Inquisição servia

mais propriamente aos desígnios do Estado. As reformas

pombalinas poucas mudanças trouxeram à Inquisição, no que

ANTT, Inquisição de Lisboa, processo 6385. Quanto aos solicitantes, ver


processos 13654, 6703 e 6773. O concílio de Trento já h avia
regulamentado, em seus decretos, a celebração de missas. Estas, que a
princípio deveriam ser semanais, ganharam um pouco mais de espaço,
sendo que ficava vetado aos eclesiásticos a celebração excessiva de
missas, evitando assim uma vulgarização do sac ramento. Contudo, alguns
padres caíam no erro administrativo de ministrar mais de uma missa
numdia. Para estes casos, ver ANTT, Inquisição de Lisboa, processos
14417 e 6772.
170 ANTT, Inquisição de Lisboa, processo 6385.
171 ANTT, Inquisição de Lisboa, processos 7042, 12946 e 6178.
240

tange à repressão de novos crimes e réus. Isto só veio a

acontecer depois de passado o governo do Ministro.

A atuação inquisitorial, sobretudo no século XIX, se

tornava cada vez menos vigorosa, e o rigor detalhista e

minucioso que havia caracterizado o Tribunal durante toda sua

existência parecia haver desaparecido. Quando as Cortes

Constituintes, em 1821, determinam secamente que a Inquisição

fosse liquidada, e que seus papéis e documentos fossem

arquivados e entregues à Torre do Tombo, selaram também o

destino posterior de uma documentação que era fruto de um

Tribunal agonizante e que não fazia a menor força para

continuar a viver. Não houve resistência feroz e estertores, nem

tampouco debates acalorados a respeito do encerramento do

Tribunal português. Uma vez que a Inquisição já apresentava

sinais de fraqueza e decadência, seu processo formal de

extinção ocorreu de forma paulatina e constante, sendo que o

primeiro passo de grande vulto foi a supressão do Tribunal de

Goa, que ainda apresentava atividade regular. Os debates

relativos ao único tribunal da Inquisição portuguesa no mundo

colonial já datavam desde a época pombalina, quando houve sua

supressão em 1774, seguida do restabelecimento quatro anos

depois. A discussão foi retomada em intensidade diferente,

sendo que em 1812 o tribunal de Goa foi definitivam ente


241

encerrado, num momento que marca o processo de liquidação da

Inquisição portuguesa.

A ação que determinou o fim da Inquisição em

Portugal teve diversas peculiaridades. Os debates nas Cortes

Constituintes não foram acalorados, sendo que os membros do

Conselho Geral do Santo Ofício e os oficiais da Inquisição, em

1820, foram obrigados pelo governo provisório a jurar uma

constituição que ainda não e x i s t i a 172 — o que fizeram sem

grandes protestos. Por outro lado, os órgãos internos da

Inquisição, a começar pelo Conselho Geral do Santo Ofício,

foram sendo paulatinamente extintos., num outro âmbito de

atuação das Constituintes, por fim ficou determinado que as

causas espirituais passaram para a esfera eclesiástica, e as

demais causas foram entregues à justiça civil. Agora, havia sido

retirado ao Tribunal moribundo o direito de reprimir e

controlar os desvios da fé, e a interpenetração com a justiça

civil — que há tempos se consistia numa realidade — agora

passou a ter forma prática e legal.

A etapa final do processo de descaracterização do

Santo Ofício terminou com a transferência dos bens do finado

172 Diários das Cortes Extraordinárias e Constituintes da Nação


Portugueza, Lisboa, Imprensa Nacional, 1821, T. I, pág. 26.
242

Tribunal para o erário Régio, além de sua extinção formal e

legal. Neste último momento, já totalmente sujeita ao Estado do

qual sempre tivera relativa — e em alguns momentos,

exacerbada — independência, a Inquisição assistiu, inerte, ao

fecho de todas as cortinas de sua existência. Com o advento do

liberalismo, as discussões da Constituinte e o decreto de 1821,

ficou encerrada a derradeira etapa das relações entre a

Inquisição e o Estado em Portugal.


243

CONCLUSÃO

A
s relações entre a Inquisição portuguesa e o Estado,

durante seus três séculos de existência, passaram por

diversas fases, conforme demonstram a documentação e

a bibliografia pesquisada.

A partir de um primeiro momento, no qual ainda

estava sendo criada à imagem e semelhança da Inquisição

castelhana, pretendia-se fazer da Inquisição portuguesa um

instrumento útil de controle social, docilmente submisso à

Coroa. Contudo, como as próprias circ unstâncias e diversidades

em relação ao caso espanhol indicam, a busca de maior

independência de ação por parte dos inquisidores lusos levou a

uma maior autonomia do Tribunal, face aos outros poderes,

como a própria Coroa e a Igreja.

Esta almejada independência, e a estruturação da

máquina administrativa e judiciária inquisitoriais, aconteceram

durante o período em que D. Henrique foi Inquisidor Geral e,

posteriormente, rei de Portugal, época em que favoreceu a

Igreja e a Inquisição com medidas que acabaram por tornar o

Tribunal um dos pilares do poder no Reino, ao lado da Igreja e

da Coroa. Numa relação por vezes conflituosa, por vezes de

parceria, a Inquisição ajudava, com sua pedagogia do medo, a


244

formar tanto o súdito quanto o fiel ideais em Portugal,

adequando seu comportamento aos ditames e regras do Estado

centralizador e da Igreja pós-tridentina.

A imbricação entre os três poderes no reino lusitano

pode ser verificada através da análise prosoprográfica do grupo

de pessoas que ocupou cargos-chave tanto na Inquisição, quanto

na administração do Reino e nas altas esferas eclesiásticas A

biografia coletiva desse grupo demonstra que no mui cristão

reino de Portugal do Antigo Regime, não havia como dissociar

completamente as carreiras nas três esferas de pode r, sendo isto

um fato marcado principalmente pela posição do Reino.

A importância da Igreja na vida política e cultural de

Portugal foi marcante, perpassando diversos reinados.

Sobretudo no período do governo de D.Henrique, a Igreja

recebeu inúmeros privilégios, que podem ser exemplificados

pelo enorme poderio que a Companhia de Jesus veio a por

acumular. O controle da Igreja sobre a sociedade e a cultura

portuguesas acabou por sufocar o incipiente humanismo,

alimentado em Portugal pelos conhecimentos adqui ridos com a

aventura ultramarina. Esse “saber de experiências feito”, na

linguagem de Camões, não resistirá às investidas das forças

conservadoras da sociedade, lideradas pelos jesuítas, as quais

tinham no Tribunal da Inquisição um aliado de peso na

repressão ao pensamento inovador em Portugal.


245

A ação do tribunal é reconhecidamente um dos

fatores do atraso cultural do reino em relação às outras

potências europeias da época. Por outro lado, do ponto de vista

econômico, a União Ibérica e, posteriormente, o pr edomínio

inglês, fizeram com que o reino perdesse a corrida pela

industrialização.

Com o advento das Luzes na Europa, multiplicaram -

se as críticas a esse Portugal, marcado pelo atraso cultural e

econômico, e pela existência de instituições então considerad as

símbolos das trevas obscurantistas do irracionalismo, como o

Tribunal Santo Ofício. Também no Reino, a situação já era

outra, e os primeiros sinais de que o leviatã inquisitorial

cambaleava já se faziam sentir no espocar, cada vez mais

constante e reforçado, de críticas à Inquisição.

Por outro lado, junto com o advento da Ilustração e

do governo pombalino — que marcou a implantação deste

projeto ilustrado de sociedade em Portugal —, advinha também

uma nova razão de Estado, segundo a qual, a Inquisição ha via

sido responsável, desde sua implantação, pelo êxodo maciço de

importantes cabedais de origem judaica para outros reinos. Essa

ideia, levada por Pombal ao seu último extremo, com a

abolição, em 1773, da distinção entre cristãos -velhos e cristãos-

novos, já havia sido defendida pelo Cardeal da Cunha em seu

Testamento Político , obra que serviu de inspiração para toda a


246

política pombalina, inclusive no que diz respeito à reforma da

Inquisição.

O ideário pombalino trazia embutido em si um

regalismo intenso e exacerbado, além de uma preocupação

crescente com a centralização administrativa do Reino. Nestes

novos tempos, um novo lugar seria apontado para o Tribunal,

que serviria melhor à razão de Estado, uma vez incorporado, na

qualidade de Tribunal Régio, à justiça do Rei. Reformada, pelo

novo Regimento de 1774,a Inquisição continuaria a punir os

velhos delitos morais sob sua jurisdição, como a bigamia e a

blasfêmia, e passaria a se preocupar com outros, como a

maçonaria e o libertinismo. Mas, perdera aquele que fora sua

razão de ser e principal alvo, o cristão -novo, sempre suspeito

de judaizar. A análise dos processos posteriores ao período de

Pombal mostra que a tendência da atuação inquisitorial

apontava para mudanças mais significativas em relação à

punição efetiva de novos delitos.Durante os reinados de D.

Maria I e de D. João VI , a Inquisição continuará submetido à

vontade do Trono, sendo controlado por confessores dos dois

monarcas.

Resta observar, que a lei de 1773, ao abolir a

distinção entre cristãos-novos e cristãos-velhos, aboliu uma

categoria legal, baseada na no conceito de pureza de sangue,

mas não extinguiu imediatamente o preconceito e a

discriminação que pesavam sobre os judeus e seus descendentes


247

dos judeus em Portugal. A existência de leis post eriores contra

os que desobedecessem a lei de 1773, por si só indica que,

apesar de quebrar a lógica inquisitorial de suspeição baseada no

sangue, não quebrou os sentimentos que a Inquisição ajudara a

sedimentar na sociedade portuguesa por mais de duzentos anos.

Por fim, a era do liberalismo veio a trazer à

Inquisição o seu epílogo. Completamente descaracterizada e

sujeita à Coroa, o Tribunal já soava por demais anacrônico face

aos ventos liberais do século XIX. Tendo visto sua praxis

jurídica ser cada vez mais associada ao aparato policial da

justiça civil, o Tribunal acabou por ser definitivamente

descaracterizado na medida em que seus procedimentos passam

a ser igualados aos da justiça comum — como se verifica pela

leitura do projeto do último Regimento da Inquisição portuguesa,

encomendado por d. Maria I, que não chegou a vigorar. Este

regimento foi elaborado pelo Frei Inácio de S. Caetano,

confessor da Rainha e Inquisidor Geral, e sua linguagem mostra

o quanto o Tribunal já estava plenamente descaracteri zado e

incorporado à justiça civil do Reino.

Findo o Tribunal, extinto pela Revolução Liberal do

Porto, em 1821, restaram as práticas. Ainda que um golpe de

pena, materializado num decreto, tenha acabado com o

Tribunal, a cultura jurídica inquisitorial per maneceu marcando

o aparato policial ibérico e de seu mundo colonial., deixando

traços no seu espírito e nas suas formas de agir. Essa marcas


248

permanecem nos modernos procedimentos policiais do Brasil de

hoje, fazendo-se presentes a qualquer momento em que o

autoritarismo mostre sua face, e que minorias sejam reprimidas

e m n o m e d a r a z ã o d e E s t a d o . 173

— ANEXO I: os Inquisidores Gerais portugueses

173 Para a questão da tradição inquisitorial nos procedimentos da polícia


nos dias de hoje no Brasil, ver Roberto Kant de Lima – A polícia na
Cidade do rio de janeiro. Seus dilemas e paradoxos. Rio de Janeiro,
Forense, 1995.
249

Fr. Diogo da Silva (1536-1539)

D. Henrique (1539-1579)

Manuel de Meneses (1578, como coadjutor de D. Henrique -1578)

Jorge de Almeida (1580-1585)

Alberto de Áustria (1586-1593)

Antonio de Matos de Noronha (1596-1602)

Jorge de Ataíde (foi indicado para o cargo e nomeado por

Clemente VIII, mas recusou a posse)

D. Alexandre de Bragança (1602 -1604)

Pedro de Castilho (1605-1613)

Fernão Martins Mascarenhas (1613 -1628)

Francisco de Castro (1630-1653)

Sebastião César de Meneses (1663 - foi nomeado, mas não chegou

a ser confirmado, nem a tomar posse)

Pedro de Lencastre (1671-1673)

Veríssimo de Lencastre (1676-1692)

Fr. José de Lencastre (1693-1705)

Nuno da Cunha de Ataíde e Melo (1707 -1750)

D. José de Bragança (1758-1760, foi demitido do cargo pelo

Marquês de Pombal)
250

João Cosme da Cunha (1770-1783)

Fr. Inácio de S. Caetano (1787-1788)

José Maria de Melo (1790-1818)

José Joaquim da Cunha de Azeredo Coutinho (1818 -1821)

OBS: Os anos apresentados nos parêntesis indicam o período de ocupação do cargo.


251

— ANEXO II: ALVARÁ Que Concede ao Santo Ofício o estágio

de Tribunal Régio

EU EL REY. Faço saber aos que este Alvará virem: que fui

informado, de que ao mesmo tempo em que todos os Tribunais de

que se compõem a Minha Corte, como depositários da Minha Real

Jurisdição, ou seja contenciosa, ou seja voluntária, em razão de

representarem vivamente no exercício de uma, e outra Jurisdição a

Minha Real Pessoa; expedindo no Meu Nome as Causas, e

Negócios das suas respectivas inspeções; foram sempre, e são

tratados por majestade; e de que sendo o Conselho Geral do Santo

Ofício um dos Tribunais, mais c onjuntos, e imediatos à Minha

Real Pessoa, pelo seu instituto, e ministério; se introduziu o

abuso de se lhe dar o tratamento, que compete ao seu Presidente,

como se pratica como Senado da Câmara de Lisboa, que representa

o Congresso do Povo; e assim sendo de mais a mais do Meu

Conselho todos os Deputados, que constituem o Corpo do mesmo

Conselho Geral; exercitando nele a Minha Real Jurisdição, não só

para os procedimentos Criminais, externos contra todos os que

delinquem contra a Religião, mas também para a expedição das

Causas Cíveis dos Privilegiados que gozam do seu foro;

constando, aliás, que o sobredito foi um dos meio s com que as

intrigas dos Denominados Jesuítas pretenderam deprimir a

autoridade do dito Tribunal do Santo Ofício. E querendo eu

abolir um tão estranho abuso: Hei por bem ordenar, que ao dito
252

Conselho Geral se fale, escreva, e requeira por Majestade;como se

praticou sempre inalteravelmente os dois Tribunais da Mesa da

Consciência, e Ordens, e da Bula da Cruzada pelo exercício, e

concurso de ambas as duas Jurisdições: E que sem este tratamento

se não responda, nem defira a Carta, ou Requerimento algum:

Tendo entendido o mesmo Conselho Geral, que as Causas, e

Negócios pertencentes à Jurisdição Temporal, de que lhes foi

cometido o exercício, devem ser expedidos no Meu Real Nome,

como o praticam os dois Tribunais acima referidos, e todos os

mais da Minha Corte.

Pelo que: Mando ao Conselho Geral do Santo Ofício;

Mesa do Desembargo do Paço; Real Mesa Censória; Regedor da

Casa da Suplicação; Governador da Relação, e Casa do Porto;

desembargadores das ditas Casas; Conselhos da Minha Real

Fazenda, e do Ultramar; Mesa da Consciência, e Ordens; Senado

da Câmara, e a todos os Corregedores, Provedores, Ouvidores,

Juízes, Justiças, Oficiais, e mais Pessoa s dos Meus Reinos, e

Senhorios, que cumpram, e guardem este Meu Alvará, como nele

se contém, e lhe façam dar a mais inteira e plenária

observância. E valerá como Carta passada pela Chancelaria,

ainda que por ela não há de passar, e posto que o seu efeito

haja de durar mais de um, e muitos anos, não obstantes as

Ordenações em contrário, que derrogo para este efeito, ficando

aliás sempre em seu vigor; E se registrará em todos os lugares,

onde se registram semelhantes Alvarás; Mandando -se o Original


253

para o Meu Real Arquivo da Torre do Tombo. Dado no Palácio

de Nossa Senhora da Ajuda, a 20 de Maio de 1769.

Rey

Conde de Oeyras.
254

— Anexo III — A Cronologia da Inquisição Portuguesa

1492 — Expulsão dos judeus de Castela e Aragão, com a

consequente entrada de dezenas de milhares em Portugal.

1496 — decreto da expulsão de judeus e mouros de Portugal.

1497 — São tirados aos judeus os filhos menores de 14 anos.

— D. Manuel ordena que por um período de 20 anos não haja

inquirições sobre o comportamento re ligioso dos cristãos-novos.

— Batismo forçado de todos os judeus.

1499 — Os cristãos-novos são proibidos de sair do reino sem

licença régia.

— É proibida a entrada no reino de judeus cristãos -novos

acusados de heresia.

— Proibido o negócio de câmbios sobre mercadorias com os

cristãos-novos.

1504 — Motim contra os cristãos novos em Lisboa.

1505 — Desordens em Évora contra os cristãos novos, tendo sido

demolida a sinagoga.

1506 — Denúncias de celebração da Páscoa judaica.


255

— Motim de grandes proporções contra os cristãos novos em

Lisboa: casas saqueadas e milhares de mortos. O motim só termina

com a intervenção militar ordenada pelo rei.

1507 — Os cristãos-novos vêem reconhecida a igualdade de

direitos com os cristãos velhos.

1512 — A isenção de inquérito sobre crimes de fé é prorrogada

por mais 16 anos.

— Proibidas novas queixas sobre o motim de 1506.

1515 — Aparecem em Lisboa cartazes insultuosos contra os

cristãos novos.

— D. Manuel pede ao Papa o estabelecimento da Inquisição em

Portugal.

1522 — Privilégios de 1497 confirmados por D. João III.

1524 — Assassinato do cristão novo Henrique Nunes, o “firme

fé”, agente de D. João III. Os culpados são executados em Évora.

— Confirmada a igualdade de direitos dos cristãos novos.

1525 — David Rubeni entra em Portugal anunciando a restauração

próxima do reino de Judá e a vinda do Messias. A profecia

provoca uma comoção na comunidade dos cristãos novos, de onde

saem seguidores.

— D. João III retoma o pedido de estabelecimento da Inquisição

em Portugal.
256

— Os povos em cortes acusam os cristãos novos de

açambarcamento de gêneros com o intuito de especularem com os

preços.

1531 — Forte tremor de terra que é atribuído, por alguns

religiosos, às ofensas cometidas pelos hereges judaizantes.

— Cinco cristãos novos são queimados em Olivença por heresia.

— D. João III renova o pedido de estabelecimento da Inquisição

em Portugal.

— O Papa Clemente VII nomeia Fr. Diogo da Silva inquisidor do

reino de Portugal e seus domínios.

1532 — D. João III proíbe os cristãos-novos e seus descendentes

de saírem do reino (por um prazo de três anos).

— Clemente VII suspende os poderes concedidos a Fr. Diogo da

Silva, devido a pressões dos cristãos novos.

1533 — Clemente VII concede uma bula de perdão anulando os

processos instaurados.

1534 — O novo Papa, Paulo III, invalida a bula de perdão (que

não havia sido publicada em Portugal).

1535 — Paulo III concede perdão geral aos culpados de judaísmo.

— Breve que autoriza os cristãos novos a constituírem

procuradores e defensores.

— A proibição de saída do reino é renovada por mais três anos.


257

1536 — Bula Cum ad Nihil Magis, que estabelece a Inquisição

em Portugal. É nomeado Inquisidor Geral D. Diogo da Silva,

Bispo de Ceuta e confessor do rei. O Tribunal começa a funcionar

com um pequeno conselho.

— Interdição Papal de confisco de bens aos cristãos novos

condenados por prazo de dez anos.

— Carta patente concedida à Inquisição por D. João III para que

os ministros de justiças e todos os seus vassalos cumpram os

requerimentos, cartas e mandados dos inquisidor es.

— Monitório do Inquisidor Geral que apela à denúncia dos delitos

de judaísmo, luteranismo, maometismo, proposições heréticas,

bigamia e feitiçaria.

1539 — Renúncia de D. Diogo da Silva; nomeado Inquisidor Geral

o infante D. Henrique, que mantém essas funções até 1578. O

infante foi ainda arcebispo de Braga (1534 -1540), arcebispo de

Évora (1540-1564 e 1574-1578), cardeal (desde 1545), legado da

Santa Sé (desde 1553), arcebispo de Lisboa (1564 -1574), regente

do reino (1562-1563) e rei (1578-1580), para além de outras

dignidades.

— D. Henrique nomeia um novo conselho da Inquisição.

— Breve Papal em favor dos oficiais do Santo Ofício (autorizados

a usufruir dos frutos dos seus benefícios em ausência). Este breve

foi renovado regularmente.

1540 — Primeiro auto-de-fé (Lisboa).


258

1541 — Primeiras instruções da Inquisição.

— Funcionam tribunais da Inquisição em Évora, Lisboa, Porto,

Coimbra, Tomar e Lamego.

1542 — Breves isentando da jurisdição inquisitorial os agentes

dos cristãos novos junto da Santa Sé.

1543 — Início de um ciclo de visitas inquisitoriais ao distrito de

Évora, prolongadas até 1545.

1544 — Paulo III manda suspender a execução das sentenças do

Santo Ofício.

— Os auto-de-fé sofrem uma interrupção de quatro anos.

1545 — Alvará de D. João III que encaminha à Inquisição todo o

dinheiro e mercadorias que saírem dos portos de Lisboa e Setúbal

sem registro.

1546 — Prorrogação Papal por um ano da interdição de confisco

de bens dos cristãos novos condenados.

1547 — Perdão geral do Papa para os crimes passad os, exceto no

caso de reincidência.

— Suspensão Papal, por mais dez anos, da pena de confisco de

bens.

— Bula Meditatio Cordis, que confere à Inquisição portuguesa

poderes semelhantes aos da Inquisição espanhola (processo

sigiloso, jurisprudência particula r). É desta data que vem o

funcionamento efetivo do Tribunal português.


259

— Primeiro rol dos livros proibidos pela Inquisição.

— D. João III proíbe o abandono do reino pelos cristãos novos

sem sua autorização, por um período de três anos.

— Extinto o Tribunal do Porto. Por volta desta data deixam

também de funcionar os Tribunais de Lamego e Tomar.

1548 — Limitados os Tribunais distritais a Lisboa e Évora.

1551 — Segundo rol de livros proibidos (primeiro impresso).


260

1552 — Primeiro regimento da Inquisição.

— Regimento do Colégio da Fé.

— D. João III reconhece a jurisdição sobre o delito de

contrabando de armas para os mouros.

1554 — D. João III pede à Santa Sé a criação de pensões

perpétuas para a Inquisição nos bispados do Reino.

1555 — Bula de Paulo IV que consigna 300 cruzados de pensão

anual sobre os frutos do bispado da Guarda ao Santo Ofício.

1557 — Alvará régio autorizando o porte de armas pelos oficiais e

ministros do Santo Ofício.

1558 — Alvará de D. Catarina, com aprovação Papal, isentando os

cristãos novos do confisco de bens por mais dez anos.

— Breve para que não sejam aceitos cristãos novos na ordem de

São Francisco.

— Bula Papal que consigna 375 cruzados de pensão ao Santo

Ofício sobre os frutos da mesa pontifical do arcebispado de

Braga.

1559 — Publicação em Portugal do índice romano de livros

proibidos.

1560 — Criação do Tribunal da Inquisição de Goa.

— Breve concedendo à Inquisição faculdade para proceder nas

causas da fé, sem dar aos acusados os nomes das testemunhas.


261

— Breve que autoriza o cardeal D. Henrique a ler obras heréticas

e a conceder a mesma licença a pessoas “doutas e pias”.

1561 — Alvará que faz membros do Conselho Régio os do

Conselho Geral da Inquisição (gozando das mesmas honras e

privilégios). Este alvará foi confirmado em 1596 .

— Breve que concede ao cardeal D. Henrique faculdade para

chamar a si as causas de heresia da justiça eclesiástica, bem como

repassar o conhecimento delas a quem entender.

— Visita inquisitorial a Tomar.

— Terceiro rol dos livros proibidos elaborado pela Inquisição

1562 — Breve que alarga a jurisdição inquisitorial ao delito de

sodomia (reconhecimento de uma jurisdição praticada há muitos

anos).

— Privilégios concedidos pelo cardeal regente aos oficiais e

Familiares do Santo Ofício (isenção de impostos e serviços;

autorização do porte de armas e de vestir seda mesmo sem ter

cavalo).

— Breve que concede aos inquisidores faculdade para absolverem

os reconciliados do Santo Ofício de quaisquer censuras

decorrentes de outros crimes sem prejuízos de terceiros.

— Os povos em cortes pedem que o físico -mor seja cristão velho,

que os ofícios de alfândega sejam ocupados por cristãos velhos,

que se imponham mais pensões nos bispados para a Inquisição,


262

que se mandem cristãos velhos aprender medicina e que os

cristãos novos sustentem as galés.

1563 — Diploma do cardeal regente revogando a isenção do

confisco de bens com efeitos retroativos a 1558.

1564 — Breve que consigna ao Tribunal da Inquisição de Évora

um conto de reis de pensão sobre os frutos da mesa pontifical do

arcebispado de Évora.

— Visita inquisitorial ao Porto.

— Publicação em Portugal do índice tridentino de livros proibidos

(redigido por Fr. Francisco Foreiro, que já tinha elaborado o rol

da Inquisição de 1561). O rol, nesta versão portuguesa, vem

acrescentado a mando do cardeal D. Henrique.

1565 — Visita inquisitorial a Braga, Viana do Castelo e Vila do

Conde.

— Restabelecimento do Tribunal de Coimbra. Três tribunais —

Lisboa, Évora e Coimbra — permanecem funcionando no reino de

Portugal até a extinção da Inquisição.

1566 — Novos privilégios concedidos pelo cardeal regente aos

oficiais e Familiares do Santo Ofício.

1567 — Bula de Pio V que consigna um conto de reis de pensão

perpétua sobre os frutos da mesa pontifical do arcebispado de

Lisboa para o Tribunal da Inquisição da mesma cidade.


263

— Bula do Papa Pio V que estipula a mesma soma para a

Inquisição de Coimbra, oriunda da mesa pontifical do respectivo

bispado.

— Alvará que proíbe a saída dos cristãos novos do reino (bem

como de venderem a sua fazenda).

1568 — Imposição de contribuições das mitras de Lisboa e de

Coimbra para a Inquisição.

1569 — Nomeação de novos membros do Conselho Geral da

Inquisição. Início da atividade regular deste Conselho.

1570 — Aprovado pelo rei o segundo Regimento do Santo Ofício.

— Carta de D. Henrique ordenando a nomeação de Familiares da

Inquisição.

— Alvará régio para que o secretário do Conselho Geral do Santo

Ofício exerça as funções de escrivão da câmara de Sua Majestade

nos assuntos relativos à Inquisição.

— Visita inquisitorial ao Porto, Vila do Conde e Viana do

Castelo.

1571 — Provisão régia ordenando o fornecimento prévio de

mantimentos para os cárceres e ministros do Santo Ofício.

1572 — Regimento dos juízes das confiscações.

— Breve proibindo o acesso de cristãos novos ao Hábito de

Cristo.
264

1573 — Renovada a proibição de saída do reino para os cristãos

novos.

1574 — Breve Papal confirmando a jurisdição inquisitorial sobre

o crime de sodomia.

1575 — Breve do Papa Gregório XIII que concede ao Santo Ofício

a metade dos frutos das primeiras conezias que vagassem em todas

as Sés.

— Início da visita inquisitorial aos Açores que se prolonga pelo

ano seguinte.

1577 — Contrato com vista à expedição à África: derrama de 250

mil cruzados sobre os cristãos novos em troca da isenção do

confisco de bens por dez anos.

— Os cristãos novos obtêm licença de saída do reino bem como

de venderem a sua fazenda.

1578 — D. Manuel de Menezes, bispo de Coimbra e membro do

Conselho Geral do Santo Ofício, é nomeado Inquisidor Geral na

qualidade de coadjutor e futuro sucessor de D. Henrique na chefia

do Tribunal. Morre em Alcácer-Quibir sem ter exercido o cargo.

— Início de uma longa visita inquisitorial aos bispados de

Portalegre, Guarda e Viseu, que só termina em janeiro de 1580.

1579 — D. Henrique obtém a anulação Papal do contrato de 1577,

restabelecendo o confisco de bens.


265

— D. Jorge de Almeida, arcebispo de Lisboa e membro do

Conselho de Estado, é nomeado Inquisidor Geral.

— Bula Papal que consigna ao Santo Ofício 1 000 cruzados de

pensão sobre os frutos da mesa pontifical do bispado de Miranda.

— Breve sobre o pagamento da dívida da mesa pontifical do

arcebispado de Lisboa ao tribunal distrital da Inquisição.

— Bula Papal que consigna ao Santo Ofício 500 cruzados de

pensão sobre os frutos da mesa pontifical do bispado de Lamego.

1580 — Revogada a permissão de livre saída do reino para os

cristãos novos.

— Novos privilégios concedidos por D. Henrique aos oficiais e

Familiares do Santo Ofício (isenção de impostos; criação de foro

privativo).

— Os cristãos novos não podem se ausentar do bispado onde

residem desde o início da visita inquisitorial até seis meses

depois, sendo proibidos de vender a sua fazenda durante esse

período.

— Alvará dos governadores do reino, conforme a vontade

expressa por D. Henrique antes de morrer, concedendo ao Santo

Ofício 3 000 cruzados anuais dos bens da Coroa.

— Morte de D. Henrique.

1581 — Publicação de novo rol de livros proibidos pela

Inquisição (reedição do índice tridentino acrescentado).


266

— Súplicas das cortes de Tomar contra os cristãos novos.

1583 — Breve de Gregório XIII reduzindo o âmbito de um

anterior, de 1575, sobre as primeiras conezias vacantes, que não

surtira efeito: nas Sés de Lisboa, Évora e Coimbra, o Santo Ofício

teria metade dos frutos e nas restantes um terço.

— Visita inquisitorial a terras do Minho e de Trás -os-Montes.

— Alvará régio que faz mercê ao Santo Ofício de 1 113 000 reais

anuais da sua fazenda, além dos três mil cruzados concedidos por

D. Henrique, perfazendo o total de 2 318 000 reis.

— Aumento substancial dos ordenados dos oficiais da Inquisição

(entre 17% e 100%).

1584 — Confirmação régia dos privilégios do Santo Ofício.

— Breve Papal que estende a graça concedida ao Santo Ofício aos

frutos da segunda e terceira conezia vacante no caso de não ter

tido efeito na primeira.

— Os tribunais da Inquisição portuguesa sentenciaram 190

pessoas.

1585 — Morte do Inquisidor Geral D. Jorge de Almeida.

1586 — O cardeal arquiduque Alberto, vice -rei de Portugal, é

nomeado Inquisidor Geral.

— 218 sentenciados.

1587 — Confirmação das restrições anteriores aos cristãos novos.


267

— Visitas inquisitoriais a Lisboa, ao Priorado do Crato e à

comarca de Riba Coa.

— 110 sentenciados.

1588 — 173 sentenciados.

1589 — 138 sentenciados.

1590 — 37 sentenciados.

1591 — Início da visita inquisitorial às ilhas da Madeira e dos

açores que se prolonga até 1593.

— Início da visita inquisitorial ao Brasil, realizada por Heitor

Furtado de Mendonça, que se prolonga até 1595. A vi sita atuou na

Bahia e em Pernambuco.

— 248 sentenciados.

1592 — 128 sentenciados.

1593 — O Inquisidor Geral deixa o cargo.

— 94 sentenciados.

1594 — 270 sentenciados.

1595 — Instruções régias sobre a limpeza de sangue. Neste

período registram-se diversas cartas de bispos recusando dar

posse de conezias a cristãos novos.

— 194 sentenciados.

1596 — Início da visita inquisitorial a Angola, que se prolonga

pelo ano seguinte.


268

— D. Antônio de Matos Noronha, bispo de Elvas, é nomeado

Inquisidor Geral.

— 186 sentenciados.

1597 — É publicado em Portugal um novo índice de livros

proibidos.

— Alvará régio que exclui os cristãos novos do exercício de

ofícios na Índia.

— 245 sentenciados.

1598 — 220 sentenciados.

1599 — Breve que concede ao Santo Ofício poder para proced er

contra os padres que solicitam mulheres para “atos desonestos”

na confissão sacramental.

— Breve que dá poder ao Inquisidor Geral para dispensar das

penas de relapsia os neófitos dos lugares ultramarinos até ao

terceiro lapso (por um prazo de três anos) . Breve renovado por

diversas vezes.

— O Conselho de Portugal pronuncia -se contra a concessão de um

perdão geral aos cristãos novos, bem como contra a admissão

desta comunidade a quaisquer honras.

— Carta do Conselho Geral do Santo Ofício ao Papa contra a

condenação do livro de Luís de Molina.

— 437 sentenciados.
269

1600 — Memorial dos cristãos novos ao rei para a concessão de

um perdão geral.

— Breve do Papa Clemente VIII excluindo os cristãos novos do

provimento de benefícios eclesiásticos.

— Proibição régia do recurso de sentenciados da Inquisição para

o Papa.

— O Inquisidor Geral deixa o cargo.

— 175 sentenciados.

1601 — Os cristãos novos são autorizados a sair do reino. Serviço

de 170 mil cruzados.

— 114 sentenciados.

1602 — D. Alexandre de Bragança, prior da colegiada de

Guimarães, é nomeado Inquisidor Geral.

— 206 sentenciados.

1603 — Licença para os senhores da Casa de Bragança lerem e

terem livros proibidos.

— O Inquisidor Geral deixa o cargo.

— 153 sentenciados.

1604 — D. Pedro de Castilho, bispo de Le iria, membro do

Conselho de Estado, capelão-mor e vice-rei de Portugal (entre

outras coisas) é nomeado Inquisidor Geral.

— Alvará régio proibindo as dispensas de limpeza de sangue no

acesso às ordens militares.


270

1605 — Publicado o breve Papal de perdão gera l aos cristãos

novos contra o donativo de 1 700 000 cruzados à Coroa. Motins

populares em Lisboa e Coimbra contra o perdão.

— Carta régia para se não admitirem ao serviço de letras cristãos

novos ou casados com cristãs novas sem dispensa de Sua

Majestade; os já admitidos não seriam excluídos.

— 435 sentenciados.

1606 — Edital do Santo Ofício sobre o exame de livrarias e a

impressão de livros.

— Constituição do Papa Paulo V revogando poderes, graças ou

indultos concedidos a superiores de ordens religiosas pa ra

procederem nas coisas dos seus súditos pertencentes ao Santo

Ofício.

— O rei pede a prorrogação do breve de perdão geral.

— Petição dos cristãos novos ao rei para serem admitidos a

dignidades.

— 15 sentenciados.

1607 — Carta régia que atribui prebendas de igrejas da Índia à

Inquisição.

— Carta régia mandando impor silêncio perpétuo ao requerimento

que os cristãos novos faziam para arrendar o fisco.

— 13 sentenciados.
271

1608 — Alvará régio que consigna ao Santo Ofício 6 930 000 reis

de renda em cada ano no rendimento do estanco das cartas de

jogar e solimão.

— 67 sentenciados.

1609 — 97 sentenciados.

1610 — Proibida a saída de cristãos novos do reino.

— 46 sentenciados.

1611 — 92 sentenciados.

1612 — Breve do Papa Paulo V para que os cristãos novos não

exerçam curato de almas, nem sejam admitidos a ordens.

— Resolução Papal que confirma a jurisdição exclusiva da

Inquisição no delito de bigamia.

— Resolução Papal que confere poderes ao Santo Ofício para

proceder no caso da solicitação de homens no confessionário.

— 44 sentenciados.

1613 — Publicado o novo Regimento do Santo Ofício.

— Resolução régia excluindo os cristãos novos da atribuição de

tenças.

1614 — Alvará régio que ordena às justiças seculares a execução

imediata dos relaxados pelo crime de sodomia.

— Carta régia para a expulsão dos mouriscos do reino.

— Estatuto de pureza de sangue para a Sé de Coimbra.


272

— Carta régia concedendo um lugar perpétuo de deputado do

Conselho Geral do Santo Ofício à ordem de São Domingos.

— Lei que proíbe o matrimônio de cristãos novos com nobres.

— 119 sentenciados.

1615 — Carta régia proibindo o provimento de cristãos novos em

benefícios de catedrais.

— Morte do Inquisidor Geral.

— 42 sentenciados.

1616 — D. Fernão Martins de Mascarenhas, reitor da Universidade

de Coimbra, bispo do Algarve e membro do Conselho de Estado, é

nomeado Inquisidor Geral.

— 66 sentenciados.

1617 — 148 sentenciados.

1618 — Visitas inquisitoriais aos distritos de Coimbra e Lisboa

(compreendendo, neste último caso, o continente, ilhas e Br asil).

A visita ao Brasil, que se limitou à Bahia, foi realizada pelo

licenciado Marcos Teixeira, e durou até 1620.

— 127 sentenciados.

1619 — Súplica em cortes para que os cristãos novos possam ter

lugares de justiça e fazenda (renovação de pedido anterio r).

— Memorial dos cristãos novos sobre o procedimento do Santo

Ofício.

—181 sentenciados.
273

1620 — Carta régia para que os procuradores do Algarve não

sejam cristãos novos.

— Carta régia para não ser admitido na Sé de Braga nenhum

prebendado cristão novo.

— Regimento das confiscações.

— 212 sentenciados.

1621 — Proibido aos cristãos novos candidatarem -se a cadeiras na

Universidade de Coimbra.

— Carta régia proibindo o provimento de um cristão novo para o

Tesourado-mor da Colegiada de Guimarães.

— 427 sentenciados.

1622 — Memorial dos cristãos novos contra a Inquisição.

— Breve que amplia a jurisdição do Santo Ofício sobre os

solicitantes.

— Resolução proibindo o exercício do ofício aos médicos que

saírem reconciliados do Santo Ofício.

— 1 sentenciado.

1623 — Consulta da Mesa de Consciência e Ordens contra a

aplicação de prebendas ao Santo Ofício.

— Consulta da Inquisição sobre os remédios para atalhar o

judaísmo.

— Ordem régia para os cristãos novos saírem da corte.


274

— 283 sentenciados.

1624 — Publicação de um novo rol de livros proibidos.

— Visita inquisitorial a Santarém.

— 171 sentenciados.

1625 — Breve sobre a pureza de sangue no cabido de Braga.

— Memorial dos cristãos novos contra a Inquisição.

— Carta régia para os mosteiros não serem obrigados a receber as

religiosas condenadas por judaísmo.

— 341 sentenciados.

1626 — Visita inquisitorial a Angola.

— 386 sentenciados.

1627 — Edito de graça concedido aos cristãos novos.

— 285 sentenciados.

1628 — Visita de inspeção realizada pelo Conselho Geral ao fisco

de Coimbra.

— Morte do Inquisidor Geral.

— 170 sentenciados.

1629 — Junta dos prelados em Tomar sobre os remédios contra o

judaísmo.

— Restabelecida a livre saída do reino para os cristãos novos.

— 557 sentenciados.
275

1630 — D. Francisco de Castro, reitor da U niversidade de

Coimbra, presidente da Mesa da Consciência e Ordens, bispo da

Guarda e membro do Conselho de Estado, é nomeado Inquisidor

Geral.

— 359 sentenciados.

1631 — Projetos de expulsão dos apóstatas.

— 427 sentenciados.

1632 — Carta régia declarando os cristãos novos inábeis para

cargos públicos.

— 237 sentenciados.

1633 — Carta régia que reserva para si os negócios do Santo

Ofício (de modo a evitar o recurso para a Santa Sé); ordena o

envio dos memoriais de queixas dos cristãos novos ao Inquisidor

Geral e o cumprimento dos privilégios do Santo Ofício.

— Carta régia para que as contas dos tesoureiros do fisco sejam

recrutados na Inquisição.

— Carta régia segundo a qual os memoriais respeitantes ao fisco

devem ser remetidos ao Inquisidor Geral.

— Carta régia definindo que o cargo de juiz do fisco de Coimbra

só pode ser provido por três anos, devendo o Inquisidor Geral

nomear os adjuntos.

— 186 sentenciados.
276

1634 — Monitório publicado pelos inquisidores de Lisboa contra

os solicitantes.

— Os ministros da Inquisição procedem os da Universidade de

Coimbra.

— 323 sentenciados.

1635 — 262 sentenciados.

1636 — Carta régia para que pessoas que não possuam “sangue

limpo” não sejam admitidas a ofícios da governança e justiça.

— 361 sentenciados.

1637 — Visita inquisitorial ao distrito de Coimbra.

— Aviso de Roma para se não venderem ofícios da legacia aos

cristãos novos.

— 197 sentenciados.

1638 — Confirmação dos privilégios dos ministros e Familiares do

Santo Ofício.

— 284 sentenciados.

1639 — 107 sentenciados.

1640 — Publicação do novo Regimento da Inquisição.

— Assento do Desembargo do Paço para que os renegados fossem

remetidos à Inquisição (reconhecimento de uma prática que se

detecta desde meados do século XVI).

— 314 sentenciados.

1641 — Capítulos de cortes contra os cristãos novos.


277

— 136 sentenciados.

1642 — Decreto renovando a proibição do casamento de cristãos

novos com nobres.

— 215 sentenciados.

1643 — Os ministros da Inquisição precedem os da Universidade

de Évora.

— Visita de inspeção à Inquisição de Lisboa.

— O Inquisidor Geral é solto depois de meses de prisão por

envolvimento na conspiração de 1641.

— As letras de câmbio lançadas por D. João IV em Amsterdam

para financiar a guerra são tomadas por Jerônimo Nunes da Costa,

cristão novo, que recebe do rei uma patente de seu ajudante.

— 73 sentenciados.

1644 — 186 sentenciados.

1645 — 103 sentenciados.

1646 — 118 sentenciados.

1647 — 118 sentenciados.

1649 — Alvará de D. João IV isentando os cristãos novos do

confisco de bens (fato que lhe custou a excom unhão da

Inquisição, só tendo sido absolvido depois de morto).

— Visita de inspeção à Inquisição de Lisboa.

— Contrato com os cristãos novos para a criação da Companhia

do Brasil.
278

— 163 sentenciados.

1650 — 114 sentenciados.

1651 — A administração do fisco é retirada à Inquisição pelo rei.

— Carta dos jesuítas a favor dos cristãos novos.

— 156 sentenciados.

1652 — 163 sentenciados.

1653 — Morte de D. Francisco de Castro. O cargo de Inquisidor

Geral fica vago durante dezoito anos.

— 162 sentenciados.

1654 — 128 sentenciados.

1655 — 46 sentenciados.

1656 — 98 sentenciados.

1657 — Alvará régio que repõe o confisco de bens aos cristãos

novos.

— 181 sentenciados.

1658 — Visita de inspeção à Inquisição de Lisboa.

— 69 sentenciados.

1659 — 10 sentenciados.

1660 — 464 sentenciados.

1661 — 3 sentenciados.

1662 — 428 sentenciados.


279

1663 — D. Sebastião César de Menezes, lente da Universidade de

Coimbra, desembargador do Paço, deputado da Junta dos Três

Estados, ministro do despacho de D. João IV e de D. Afonso VI,

deputado do Conselho Geral do Santo Ofício, é nomeado

Inquisidor Geral, mas não chega a ser confirmado no cargo — e,

consequentemente, não o assume. Morre desterrado no Porto, dez

anos mais tarde, por ser partidário de D. Afonso VI.

— Por estar tomada a cidade de Évora, o Conselho Geral decide

que o tribunal de Lisboa tenha jurisdição sobre aquele distrito.

— 143 sentenciados.

1664 — 428 sentenciados.

1665 — 193 sentenciados.

1666 — 263 sentenciados.

1667 — Os cristãos novos são excluídos dentre os procurad ores

de cortes.

— 500 sentenciados.

1668 — 84 sentenciados.

1669 — 501 sentenciados.

1670 — 250 sentenciados.

1671 — Motins populares contra os cristãos novos.

— Resolução para os penitenciados pelo Santo Ofício e suas

fa’milias serem expulsos do reino.


280

— Assento da Casa da Suplicação para que os penitenciados pela

Inquisição e descendentes não advoguem na Casa ou nos

auditórios da Corte.

— Oferta dos cristãos novos para desempenharem nas alfândegas

do reino.

— Carta régia para o Papa propondo o perdão gera l e a reforma da

Inquisição. O rei pede ainda para nomear diretamente os

deputados do Conselho Geral e das instâncias inferiores.

— D. Pedro de Lencastre, cardeal, presidente do Desembargo do

Paço e membro do Conselho de Estado, é nomeado Inquisidor

Geral. Morre dois anos mais tarde.

— 300 sentenciados.

1672 — 185 sentenciados.

1673 — O Conselho Geral do Santo Ofício, a Universidade de

Coimbra e os bispos opõem-se ao perdão geral.

— Morte do Inquisidor Geral.

— Pedro Lupina Freire redige as Notícias Recôndi tas do Modo de

Proceder da Inquisição com os seus Presos.

— 481 sentenciados.

1674 — Clemente X suspende a atividade da Inquisição

portuguesa.

— 142 sentenciados.

1675 — 13 sentenciados.
281

1676 — D. Veríssimo de Lencastre, cardeal e arcebispo de Braga,

é nomeado Inquisidor Geral.

— 1 sentenciado.

1677 — 6 sentenciados.

1678 — 1 sentenciado.

1679 — Representação dos três estados ao Papa para a revogação

do perdão geral e a reabertura das Inquisições do reino.

1681 — Restabelecimento do Santo Ofício.

1682 — Primeiro auto-de-fé depois do restabelecimento,

celebrado com grande pompa.

— 325 sentenciados.

1683 — Último auto-de-fé no Terreiro do Paço devido a uma briga

de armas no cadafalso.

— Lei de expulsão dos hereges penitenciados.

— 246 sentenciados.

1684 — 122 sentenciados.

1685 — 103 sentenciados.

1686 — 54 sentenciados.

1687 — 6 sentenciados.

1688 — 34 sentenciados.

1689 — 19 sentenciados.

1690 — 34 sentenciados.
282

1691 — 53 sentenciados.

1692 — Morte do Inquisidor Geral.

— 8 sentenciados.

1693 — D. Frei José de Lencastre, irmão do Inquisidor Geral

anterior, capelão-mor e membro do Conselho de Estado, é

nomeado Inquisidor Geral.

— Provisões régias fixando o número de Familiares do Santo

Ofício que poderiam reputar-se privilegiados.

— 16 sentenciados.

1694 — 97 sentenciados.

1695 — 32 sentenciados.

1696 — 134 sentenciados.

1697 — 1 sentenciado.

1698 — 62 sentenciados.

1699 — 93 sentenciados.

1700 — 10 sentenciados.

1701 — 110 sentenciados.

1702 — 18 sentenciados.

1703 — 78 sentenciados.

1704 — Os auto-de-fé de Lisboa voltam a ser celebrados ao ar

livre, no Rossio.

— 176 sentenciados.
283

1705 — Morte do Inquisidor Geral.

— 130 sentenciados.

1706 — 335 sentenciados.

1707 — D. Nuno da Costa de Ataíde e Melo, capelão -mor, cardeal,

membro do Conselho de Estado e ministr o do despacho de D.

João V, é nomeado Inquisidor Geral.

— 66 sentenciados.

1708 — 139 sentenciados.

1709 — 74 sentenciados.

1710 — 45 sentenciados.

1711 — 207 sentenciados.

1712 — 28 sentenciados.

1713 — 245 sentenciados.

1714 — 61 sentenciados.

1715 — 4 sentenciados.

1716 — 235 sentenciados.

1717 — Os auto-de-fé de Lisboa passam a ser celebrados na igreja

de São Domingos.

— 80 sentenciados.

1718 — 117 sentenciados.

1719 — 12 sentenciados.

1720 — 151 sentenciados.


284

1721 — 7 sentenciados.

1722 — 8 sentenciados.

1723 — 149 sentenciados.

1724 — 36 sentenciados.

1725 — 118 sentenciados.

1726 — 171 sentenciados.

1727 — 116 sentenciados.

1728 — 207 sentenciados.

1729 — 160 sentenciados.

1730 — 136 sentenciados.

1731 — 94 sentenciados.

1732 — 202 sentenciados.

1733 — 61 sentenciados.

1734 — 61 sentenciados.

1735 — 73 sentenciados.

1736 — 32 sentenciados.

1737 — Carta régia sobre o número de Familiares da Inquisição.

— 139 sentenciados.

1738 — 95 sentenciados.

1739 — 65 sentenciados.

1741 — 110 sentenciados.


285

1742 — 96 sentenciados.

1744 — Carta régia alargando o número de Familiares

privilegiados do Santo Ofício.

— 133 sentenciados.

1745 — 40 sentenciados.

1746 — 99 sentenciados.

1747 — 107 sentenciados.

1748 — 46 sentenciados.

1749 — 144 sentenciados.

1750 — Morte do Inquisidor Geral. O cargo ficou vago por oito

anos.

— 51 sentenciados.

1751 — 40 sentenciados.

1752 — 108 sentenciados.

1753 — 42 sentenciados.

1754 — 49 sentenciados.

1755 — 63 sentenciados.

1756 — Depois do terremoto os auto-de-fé passam a ser

celebrados no claustro do convento de São Domingos.

— Edital do Conselho Geral do Santo Ofício sobre proibição de

livros.

— 86 sentenciados.
286

1757 — 74 sentenciados.

1758 — D. José de Bragança, filho bastardo de D. João V, doutor

em teologia, é nomeado Inquisidor Geral, sendo desterrado dois

anos mais tarde pelo Marquês de Pombal, ficando o cargo vago

por dez anos.

— 39 sentenciados.

1759 — 82 condenados.

1760 — 34 condenados.

1761 — Auto-de-fé em que foi relaxado o jesuíta Gabriel

Malagrida. Última execução em carne da Inquisição em Portugal.

— 82 condenados.

1762 — 11 condenados.

1763 — Início da visita inquisitorial ao Grão -Pará, levada a efeito

por Giraldo José de Abranches. A visita se prolongou até 1769.

— 20 condenados.

1765 — Último auto-de-fé público.

— 46 condenados.

1767 — 19 condenados.

1768 — Criação da Real Mesa Censória.

— Proibida a introdução de índices expurgatórios que não tenham

obtido o beneplácito régio.

— Os róis de fintas dos cristãos novos são apreendidos e

entregues ao Erário.
287

1769 — Depois de uma vacância de nove anos, D. João Cosme da

Cunha, cardeal, arcebispo de Évora, membro do Conselho de

Estado e regedor das justiças, é nomeado Inquisidor Geral.

— Alvará elevando o Santo Ofício à categoria de Tribunal Régio,

concedendo-lhe o título de Majestade.

— Edital do Conselho Geral do Santo Ofício contra os erros dos

jacobeus e sigilistas.

— Edital da Real Mesa Censória proibindo diversas obras contra o

Santo Ofício.

1773 — É abolida a distinção entre cristãos novos e velhos.

1774 — Execução da lei anterior: devassa e exame geral de todos

os livros de misericórdias, irmandades, confrarias e corporações,

castigando os autores de notas maliciosas e riscando os artigos de

compromissos ou estatutos que mandassem proceder a inquirições

de limpeza de sangue.

— Publicado o último Regimento do Santo Ofício, que substituiu

as regras do processo inquisitorial pelas da justiça comum, e

descartou formalmente a possibilidade de existência do crime de

feitiçaria.

— Lei que declara isentos de infâmia os réus reconci liados pelo

Santo Ofício.

— O Tribunal da Inquisição de Goa é encerrado.

1778 — Restabelecido o Tribunal de Goa.


288

1783 — Morte do Inquisidor Geral.

1787 — Depois de uma vacância de quatro anos, D. Fr. Inácio de

S. Caetano, confessor e ministro do despacho d e D. Maria I, é

nomeado Inquisidor Geral.

— Extinta a Real Mesa Censória e criada em seu lugar a Comissão

Geral para o Exame e Censura dos Livros.

1790 — D. José Maria de Melo, bispo do Algarve, é nomeado

Inquisidor Geral.

1791 — O Inquisidor Geral não tem impedimento para proceder,

ou mandar proceder, contra os que têm, lêem ou vendem livros

proibidos.

1794 — Extinção da Comissão Geral para o Exame e Censura dos

Livros, ficando o Santo Ofício e o Desembargo do Paço

responsáveis pela censura de livros, tal como acontecia desde o

século XVI.

1795 — Regras de censura de livros.

1812 — Extinto o Tribunal de Goa.

1818 — Morte do Inquisidor Geral.

— D. José Joaquim da Cunha de Azevedo Coutinho, bispo de

Elvas, presidente da Junta para o Exame das Ordens Religios as, é

nomeado Inquisidor Geral.

1821 — Extinção do Tribunal do Santo Ofício da Inquisição


289

BIBLIOGRAFIA

FONTES MANUSCRITAS

ARQUIVO NACIONAL DA TORRE DO TOMBO

Inquisição de Lisboa:

Processos 50, 56, 412, 860, 866, 1365, 1414, 1480, 1481, 1482, 1484, 1485, 1489, 1962, 13269, 15935, 2

5343, 14416, 2780, 16712, 2774, 5711, 17256, 5711, 16071, 9275, 2777, 15878, 14476, 15316, 7291, 6

12946, 6178, 7042, 11978, 15907, 6775, 13270, 13654, 6703, 6773, 6775, 4417, 6772, 16086, 6385.

Conselho Geral do Santo Ofício Livro481.

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Castro, compilador) - Colecção dos Tratados, convenções
e actos publicos celebrados entre a Coroa de Portugal e as mais
potências desde 1640, Lisboa, Imprensa Nacional, 1856 -
1858, 8 vols.

- COLECÇÃO das Leis, Decretos e Alvaras que Compreende o


Feliz Reinado del Rey Fidelissimo D. José I Nosso
Senhor, Lisboa, Na Officina de Miguel Rodrigues, 1771 -
1793, 3 tomos.
290

- COLLECTORIO das Bullas & Breves Apostolicos, Cartas Alvarás


& Provisões Reaes que contem a Instituição & Progresso do
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- CUNHA, D. Luís da - Testamento Político, São Paulo, Alfa-


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- FREIRE, Pedro Lupina - “Notícias recônditas do modo de


proceder da Inquisição com seus presos” In Obras
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Lisboa, Ed. Sá da Costa, 1951.

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Portugal, ordenado.. pelo.. Senhor Cardeal da Cunha,
Lisboa, Na Officina de Miguel Manescal da Costa, 1774.

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Ediouro, s.d.

- VOLTAIRE – Candide ou L’Optimisme, Paris, Hachette,


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Históricas, trad. port., Rio de Janeiro, Imago, 1993.

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vol 4 - O Antigo Regime, Lisboa, Editorial Estampa,
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Palavras, Termos e Frases que em Portugal se Usavam
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