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Objetiva-se, neste ensaio, uma breve análise acerca da condição do autor em relação ao
destino de suas personagens à luz de conceitos calcados pelos estudos narrativos, bem
como baseada em discussões desenvolvidas durante a vivência da disciplina “Dinâmicas
da personagem”. Para tal efeito, iremos – embora esta análise anseie transpassar os
limites dos exemplos citados – fazer uso de algumas das personagens presentes na
narrativa fílmica citada anteriormente. Elegemos quatro personagens que consideramos,
senão indispensáveis para a análise, ao menos necessárias para a compreensão do
encadeamento de ideias que será feito. São elas: Harold Crick, Karen Eiffel, Jules
Hilbert e o relógio de pulso de Harold Crick – objeto cuja personificação defenderemos
mais adiante. A partir desta escolha, faremos uma descrição física e comportamental das
personagens, buscando relevar os aspectos de sua constituição narrativa. Só então, tendo
apontado aspectos importantes na construção de tais personagens, nos dedicaremos a
contrapor autor e personagem – neste caso específico Karen e Harold – na expectativa
de poder alcançar uma discussão mais abrangente concernindo, sobretudo, um debate
muito caro à literatura e aos estudos literários.
Comecemos por Harold Crick – vivido pelo ator Will Ferrell –, a personagem é um
fiscal da receita federal dos Estados Unidos que possui uma rotina disciplinadamente
inalterável e vive um cotidiano deveras solitário. Harold planeja a duração de cada uma
de suas atividades diárias, cumprindo-as rigorosamente, sem o atraso de sequer alguns
segundos. Seu tempo de almoço é de 45 minutos cronometrados, e o coffeebreak de 4
minutos.
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Licenciada em Letras-Francês pela Universidade de Brasília (UnB) e mestranda em Estudos Literários
pela Universidade do Paraná (UFPR)
Harold é quase uma máquina de cumprir prazos, apoia-se em um rigor matemático
representado, na obra cinematográfica, através de intervenções visuais em CGI
(imagens de computação gráfica) que compõem algumas cenas do filme, são elas:
gráficos de medição, cálculos e fórmulas matemáticas. Harold possui uma ortodoxa
conduta normatizada, veste-se sempre de maneira formal, usa gravata (cujos nós, ou
voltas dadas, ele conta metodicamente).
Fisicamente, Harold é caracterizado como um homem de alta estatura, possuindo um
rosto austero, uma voz monocórdia e um comportamento que evoca uma invariável
seriedade. Nesse sentido, Harold seria um estereotipo do burocrata, logo, uma
personagem tipo, dito em outras palavras, uma personagem que encontra múltiplas
referências de sua composição na realidade empírica. A evocação da terminologia
“personagem tipo” nos permite falar aqui, também, em uma extensionalidade2 da
personagem, ou seja, em elementos de figuração ligados a condicionamentos e
determinações extraficcionais.
Harold apresenta-se tal como descrito aqui durante todo o início da narrativa fílmica,
movimentando-se nas cenas de modo passivo, compassado às descrições feitas a
respeito de si por uma voz-over – que é a voz de Karen Eiffel, embora, até esse ponto,
ainda não saibamos disso e tampouco a personagem. Dito isto, podemos ver o Harold
do primeiro ¼ da narrativa como uma personagem estática, o que irá modificar-se
conforme a consciência de si e a busca pela compreensão de sua condição o arrebatem
inteiramente.
Em seguida, pensemos Karen Eiffel. Encarnada pela atriz Emma Thompson, Karen é
uma escritora inglesa de aparência depressiva e olhares de quem está sempre à beira de
um surto psicótico. A escritora age de maneira estereotipada, como uma pessoa que se
encontra deslocada na sociedade em que vive e que, ao invés de esforçar-se pra se
encaixar nos padrões, escolhe exatamente caminhos que vão na contramão disso.
Vivendo suspensa entre a realidade imediata e a sua própria imaginação, Karen sente-se
atormentada por não conseguir dar um fim ao romance que escreve. Não obstante, seus
esforços para ter sucesso nessa árdua tarefa são muitos, a escritora aparece em diversas
cenas buscando experiências que possam contribuir para o processo de figuração de que
precisa. Sobe em superfícies e tenta imaginar-se saltando do terraço de edifícios, vai a
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Termo desenvolvido melhormente no “Dicionário de Estudos Narrativos” do pesquisador e teórico
Carlos Reis (2018).
hospitais para observar pacientes moribundos, tudo isso em busca do potencial narrativo
de tais situações/estados, ou seja; em busca da narratibilidade de formas de morte, uma
das quais ela precisa atribuir ao protagonista do romance que escreve.
Em uma luta contra o tempo da produtividade, Karen ganha como companhia uma
assistente enviada pela editora que publica suas obras. Para o prazo não ser
desrespeitado, a assistente tentará aplicar sobre a autora a cultura da precisão de Harold
Crick.
No entanto, Karen, ao contrário de Harold, não vincula seu trabalho ao cronômetro. Ela
vive com o corpo quase estático, pensando, observando, em uma dedicada busca por
inspiração. Também nesse ponto Karen pode ser considerada uma personagem tipo,
evocando mais uma vez aqui o domínio da extensionalidade. Karen Eiffel é uma
escritora atormentada, fumante compulsiva, sarcástica com aqueles que se encontram a
sua volta, solitária, reclusa, inacessível... e quantos outros estereótipos sejamos capazes
de atribuir a escritores.
Como acabamos de ver, Karen deseja encontrar uma forma de pôr fim a vida de Harold.
Para salvar a sua vida do cruel destino outorgado a ele pela voz onisciente de Karen,
Harold precisa entender a sua condição, por isso busca a ajuda de um crítico literário.
Esse crítico chama-se Jules Hilbert, professor universitário de meia-idade vivido pelo
ator Dustin Hoffman. Hilbert, ao ser interpelado por Harold, apresenta-se inicialmente
incrédulo, aconselhando-o a procurar tratamento psicológico. Mas não é preciso muito
para que aceite a condição de personagem de Crick, basta que ouça ele repetir uma das
frases de sua narradora “little did he know...”, frase tão comum em textos literários. Em
seguida, o crítico desenvolverá uma metodologia de investigação para distinguir a qual
gênero de narrativa dramática Harold pertence: tragédia ou comédia.
Ainda que o autor apareça, a princípio, como um ser superior, seja na cena ficcional que
acabamos de descrever, seja na realidade; ainda que o escritor esteja hierarquicamente
acima de suas personagens, e pareça controlá-las e decidir tudo (ou quase) acerca de seu
destino, há momentos em que essa lógica pode inverter-se. Ao dinamizar-se, ou seja, ao
tomar vida, pois “a vida é movimento e nada no movimento está a salvo do movimento”
como diria Bataille (e, podemos adicionar, nem mesmo aquilo que pertence ao âmbito
das narrativas ficcionais), a personagem ultrapassa seu autor, no sentido de sua
sobrevida. Mas também no sentido de que o autor perde a sua autoridade sobre aquele
ser ficcional, não podendo mais controlar o que é feito dele ou de sua imagem. No caso
particular das adaptações cinematográficas de romances é exatamente isso o que ocorre,
as personagens romanescas ganham aspectos intensionais que escapam à narrativa
literária e às intenções do escritor-autor. E é igualmente o caso de uma outra cena do
filme que estamos discutindo aqui: quando Karen encontra Harold pela primeira vez e
ajoelha-se aos seus pés – ao mesmo tempo maravilhada e apavorada diante da
materialização daquele ser “de palavras” – trata-se justamente do momento de
apreensão da autora dos fatos que discutimos. Esta é uma cena na qual processos
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A metadiegese narrativa, bem como a narrativa metaléptica são abordadas por Gérard Genette no
capítulo quinto de sua obra dedicada aos estudos narrativos, denominada “Discurso da narrativa”. Ele dirá
a respeito da metalepse: “o princípio mantém-se (referindo-se a metadiegese): (...) toda intrusão do
narrador ou do narratário extradiegéticos no universo diegético (ou de personagens diegéticas num
universo metadiegético, etc) (...)” p. 234. E outro trecho que também nos é útil para a argumentação que
se segue a respeito da mesma estratégia narrativa: “Aquilo que na metalepse é mais perturbador está de
fato nessa hipótese inaceitável e insistente de que o extradiegético é talvez sempre já diegético, e que o
narrador e seus narratários, quer dizer, eu, vós, pertencemos talvez ainda a alguma narrativa.” p.235.
concomitantes revolucionam a narrativa: Karen encontra Harold, dá-se conta de sua
“nova” condição de autora e passa a ter uma relação homodiegética com sua
personagem e a pertencer a um nível intradiegético da narrativa (somente essa mudança
de nível não é completamente nova, pois já havia se dado, para nós, espectadores, na
cena do parapeito).
https://figurasdaficcao.wordpress.com/category/metalepse/
https://www.gradesaver.com/stranger-than-fiction/study-guide/summary-part-1-harold-
crick
http://edtl.fcsh.unl.pt/encyclopedia/metalepse/