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“A condição da autoria e a autonomia da personagem” – Estudo de caso do filme

“Stranger than fiction”

Ensaio escrito por Karine Souza1

“Stranger than fiction” é um filme estadunidense que estreou no ano de 2006, dirigido


por Marc Forster e com roteiro escrito por Zach Helm. A obra cinematográfica tem
como narrativa principal, a priori, a vida de Harold Crick – uma personagem de
romance. A partir de estratégias narrativas, algumas das quais discutiremos neste breve
ensaio, a narrativa supracitada desdobra-se em outra: a do encontro – e das
consequências do mesmo – de uma escritora com o protagonista de seu livro.

Objetiva-se, neste ensaio, uma breve análise acerca da condição do autor em relação ao
destino de suas personagens à luz de conceitos calcados pelos estudos narrativos, bem
como baseada em discussões desenvolvidas durante a vivência da disciplina “Dinâmicas
da personagem”. Para tal efeito, iremos – embora esta análise anseie transpassar os
limites dos exemplos citados – fazer uso de algumas das personagens presentes na
narrativa fílmica citada anteriormente. Elegemos quatro personagens que consideramos,
senão indispensáveis para a análise, ao menos necessárias para a compreensão do
encadeamento de ideias que será feito. São elas: Harold Crick, Karen Eiffel, Jules
Hilbert e o relógio de pulso de Harold Crick – objeto cuja personificação defenderemos
mais adiante. A partir desta escolha, faremos uma descrição física e comportamental das
personagens, buscando relevar os aspectos de sua constituição narrativa. Só então, tendo
apontado aspectos importantes na construção de tais personagens, nos dedicaremos a
contrapor autor e personagem – neste caso específico Karen e Harold – na expectativa
de poder alcançar uma discussão mais abrangente concernindo, sobretudo, um debate
muito caro à literatura e aos estudos literários.

Comecemos por Harold Crick – vivido pelo ator Will Ferrell –, a personagem é um
fiscal da receita federal dos Estados Unidos que possui uma rotina disciplinadamente
inalterável e vive um cotidiano deveras solitário. Harold planeja a duração de cada uma
de suas atividades diárias, cumprindo-as rigorosamente, sem o atraso de sequer alguns
segundos. Seu tempo de almoço é de 45 minutos cronometrados, e o coffeebreak de 4
minutos.
1
Licenciada em Letras-Francês pela Universidade de Brasília (UnB) e mestranda em Estudos Literários
pela Universidade do Paraná (UFPR)
Harold é quase uma máquina de cumprir prazos, apoia-se em um rigor matemático
representado, na obra cinematográfica, através de intervenções visuais em CGI
(imagens de computação gráfica) que compõem algumas cenas do filme, são elas:
gráficos de medição, cálculos e fórmulas matemáticas. Harold possui uma ortodoxa
conduta normatizada, veste-se sempre de maneira formal, usa gravata (cujos nós, ou
voltas dadas, ele conta metodicamente).
Fisicamente, Harold é caracterizado como um homem de alta estatura, possuindo um
rosto austero, uma voz monocórdia e um comportamento que evoca uma invariável
seriedade. Nesse sentido, Harold seria um estereotipo do burocrata, logo, uma
personagem tipo, dito em outras palavras, uma personagem que encontra múltiplas
referências de sua composição na realidade empírica. A evocação da terminologia
“personagem tipo” nos permite falar aqui, também, em uma extensionalidade2 da
personagem, ou seja, em elementos de figuração ligados a condicionamentos e
determinações extraficcionais.

Harold apresenta-se tal como descrito aqui durante todo o início da narrativa fílmica,
movimentando-se nas cenas de modo passivo, compassado às descrições feitas a
respeito de si por uma voz-over – que é a voz de Karen Eiffel, embora, até esse ponto,
ainda não saibamos disso e tampouco a personagem. Dito isto, podemos ver o Harold
do primeiro ¼ da narrativa como uma personagem estática, o que irá modificar-se
conforme a consciência de si e a busca pela compreensão de sua condição o arrebatem
inteiramente.

Em seguida, pensemos Karen Eiffel. Encarnada pela atriz Emma Thompson, Karen é
uma escritora inglesa de aparência depressiva e olhares de quem está sempre à beira de
um surto psicótico. A escritora age de maneira estereotipada, como uma pessoa que se
encontra deslocada na sociedade em que vive e que, ao invés de esforçar-se pra se
encaixar nos padrões, escolhe exatamente caminhos que vão na contramão disso.
Vivendo suspensa entre a realidade imediata e a sua própria imaginação, Karen sente-se
atormentada por não conseguir dar um fim ao romance que escreve. Não obstante, seus
esforços para ter sucesso nessa árdua tarefa são muitos, a escritora aparece em diversas
cenas buscando experiências que possam contribuir para o processo de figuração de que
precisa. Sobe em superfícies e tenta imaginar-se saltando do terraço de edifícios, vai a
2
Termo desenvolvido melhormente no “Dicionário de Estudos Narrativos” do pesquisador e teórico
Carlos Reis (2018).
hospitais para observar pacientes moribundos, tudo isso em busca do potencial narrativo
de tais situações/estados, ou seja; em busca da narratibilidade de formas de morte, uma
das quais ela precisa atribuir ao protagonista do romance que escreve.
Em uma luta contra o tempo da produtividade, Karen ganha como companhia uma
assistente enviada pela editora que publica suas obras. Para o prazo não ser
desrespeitado, a assistente tentará aplicar sobre a autora a cultura da precisão de Harold
Crick.
No entanto, Karen, ao contrário de Harold, não vincula seu trabalho ao cronômetro. Ela
vive com o corpo quase estático, pensando, observando, em uma dedicada busca por
inspiração. Também nesse ponto Karen pode ser considerada uma personagem tipo,
evocando mais uma vez aqui o domínio da extensionalidade. Karen Eiffel é uma
escritora atormentada, fumante compulsiva, sarcástica com aqueles que se encontram a
sua volta, solitária, reclusa, inacessível... e quantos outros estereótipos sejamos capazes
de atribuir a escritores.

Como acabamos de ver, Karen deseja encontrar uma forma de pôr fim a vida de Harold.
Para salvar a sua vida do cruel destino outorgado a ele pela voz onisciente de Karen,
Harold precisa entender a sua condição, por isso busca a ajuda de um crítico literário.
Esse crítico chama-se Jules Hilbert, professor universitário de meia-idade vivido pelo
ator Dustin Hoffman. Hilbert, ao ser interpelado por Harold, apresenta-se inicialmente
incrédulo, aconselhando-o a procurar tratamento psicológico. Mas não é preciso muito
para que aceite a condição de personagem de Crick, basta que ouça ele repetir uma das
frases de sua narradora “little did he know...”, frase tão comum em textos literários. Em
seguida, o crítico desenvolverá uma metodologia de investigação para distinguir a qual
gênero de narrativa dramática Harold pertence: tragédia ou comédia.

Hilbert é composto visualmente de estereótipos do professor universitário, veste-se de


maneira formal, possui um escritório com uma enorme biblioteca. Alimenta quase que
uma devoção por escritores como Karen, de quem fala como um grande ídolo
inacessível. Aparece em uma cena deitado num sofá em seu escritório assistindo TV e
recebe Harold descalço, como se seu local de trabalho fosse uma extensão de sua casa.
Possui comportamentos tão excêntricos quanto os de Karen, e é um grande conhecedor
e “referenciador” de autores consagrados.
Poderíamos pensar essa personagem funcionando como uma mediadora da relação da
autora com sua personagem, sendo a única capaz de compreender ambos e a quem eles
recorrem quando não sabem como dar continuidade a narrativa. Ela é igualmente a
única autorizada a ler o manuscrito do romance e a endossá-lo, descrevendo-o como a
“obra-prima” da autora. Logo, Hilbert poderia ser entendido como uma alegoria da
instituição acadêmica, aquela que outorgará ou revogará o reconhecimento de autores.
Todavia, com o desenvolver dos fatos narrados, percebemos que nem mesmo a
instituição responsável pela interpretação e valorização da arte literária pôde
compreender a relação estabelecida entre o criador (Karen) e a sua criatura (Harold).

Em última instância, vejamos algumas características do relógio de pulso de Harold e os


contextos em que ele surge na narrativa. O relógio pode ser considerado como um dos
pilares sobre os quais é pensada a obra cinematográfica em questão, ele representa o
tempo das ações – componente primordial de uma narrativa. O tempo é o dispositivo
narrativo e, ao mesmo tempo, o elemento aprisionador do protagonista no filme. Se
observarmos alguns detalhes da composição dessa narrativa audiovisual, poderemos
compreender melhor o que, aqui, está sendo ensaiado; elencaremos alguns deles a
seguir.
O primeiro close dado pela câmera no início do filme é em um relógio, objeto situado
ao lado da cama de Harold. O elemento que implicará a primeira quebra na narrativa é a
falha do relógio de pulso de Harold, bem como o elemento/objeto que salvará a sua vida
será esse mesmo relógio cuja peça servirá para bloquear uma das artérias de Crick
impedindo uma hemorragia. Em uma das primeiras cenas narradas em voz-over, a
narradora diz: “His wristwatch would delight in the feeling of a crisp wind rushing over
its face,” referindo-se justamente ao relógio do qual falamos e atribuindo a ele a
capacidade de experienciar sensações humanas. Em um outro momento, novamente a
narradora irá apontar: “On Wednesday, Harold’s wristwatch changed everything,”,
atribuindo-lhe, desta vez, um caráter accional; determinando que esse objeto inanimado
têm o poder de mudar os rumos da narrativa. Tendo todos esses exemplos em vista,
acreditamos poder considerar o objeto como uma personagem relevante na estória.

Acreditamos ter, nessas descrições, tocado pontos fundamentais para compreender as


condições tanto de Harold, quanto de Karen na narrativa, à exceção de uma, a qual
evocaremos em breve. Antes disso, é preciso que nos lembremos de outra cena: no
momento preciso em que Harold indigna-se com a voz que o persegue, narrando cada
um de seus passos, e começa a gritar em pleno espaço público ordenando que ela se
cale, Karen aparece pela primeira vez em cena. A câmera faz uma subida vertiginosa em
contre-plongé em direção ao céu, pois é nessa direção que Harold julga ter que
interpelar a voz misteriosa. E lá está Karen: em pé no parapeito de um edifício, os olhos
fechados e as mãos erguidas a sua frente, como se controlasse marionetes em um palco.
Uma cena que introduz outro aspecto narratológico de extrema relevância na obra, ela
nos torna conscientes da diegese narrativa, ou, mais especificamente, da metadiegese 3
presente nessa obra, e que é capital para a compreensão da discussão em que entraremos
agora.

Ainda que o autor apareça, a princípio, como um ser superior, seja na cena ficcional que
acabamos de descrever, seja na realidade; ainda que o escritor esteja hierarquicamente
acima de suas personagens, e pareça controlá-las e decidir tudo (ou quase) acerca de seu
destino, há momentos em que essa lógica pode inverter-se. Ao dinamizar-se, ou seja, ao
tomar vida, pois “a vida é movimento e nada no movimento está a salvo do movimento”
como diria Bataille (e, podemos adicionar, nem mesmo aquilo que pertence ao âmbito
das narrativas ficcionais), a personagem ultrapassa seu autor, no sentido de sua
sobrevida. Mas também no sentido de que o autor perde a sua autoridade sobre aquele
ser ficcional, não podendo mais controlar o que é feito dele ou de sua imagem. No caso
particular das adaptações cinematográficas de romances é exatamente isso o que ocorre,
as personagens romanescas ganham aspectos intensionais que escapam à narrativa
literária e às intenções do escritor-autor. E é igualmente o caso de uma outra cena do
filme que estamos discutindo aqui: quando Karen encontra Harold pela primeira vez e
ajoelha-se aos seus pés – ao mesmo tempo maravilhada e apavorada diante da
materialização daquele ser “de palavras” – trata-se justamente do momento de
apreensão da autora dos fatos que discutimos. Esta é uma cena na qual processos

3
A metadiegese narrativa, bem como a narrativa metaléptica são abordadas por Gérard Genette no
capítulo quinto de sua obra dedicada aos estudos narrativos, denominada “Discurso da narrativa”. Ele dirá
a respeito da metalepse: “o princípio mantém-se (referindo-se a metadiegese): (...) toda intrusão do
narrador ou do narratário extradiegéticos no universo diegético (ou de personagens diegéticas num
universo metadiegético, etc) (...)” p. 234. E outro trecho que também nos é útil para a argumentação que
se segue a respeito da mesma estratégia narrativa: “Aquilo que na metalepse é mais perturbador está de
fato nessa hipótese inaceitável e insistente de que o extradiegético é talvez sempre já diegético, e que o
narrador e seus narratários, quer dizer, eu, vós, pertencemos talvez ainda a alguma narrativa.” p.235.
concomitantes revolucionam a narrativa: Karen encontra Harold, dá-se conta de sua
“nova” condição de autora e passa a ter uma relação homodiegética com sua
personagem e a pertencer a um nível intradiegético da narrativa (somente essa mudança
de nível não é completamente nova, pois já havia se dado, para nós, espectadores, na
cena do parapeito).

A condição do autor seria, então, esta: a de criador, gerador de figurações verbais – se


acordarmos que estamos falando aqui de autores-escritores precisamente, e não de
outros – a quem nem todos os aspectos da “figura de papel” interessam, mas somente
aqueles essenciais para a construção da narrativa que ele deseja documentar. Entretanto,
se essa obra só pode se dar por completa ao chegar às mãos de seu leitor, a quem caberá
preencher os pontos de indeterminação deixados pelo narrador, a personagem (bem
como a narrativa, de modo mais abrangente) passa a ser uma obra de muitos,
constituídas – ambas, narrativa e personagem – através de muitas mãos, mentes e
imaginários. Em conclusão, a personagem é dinâmica na medida em que é um “ser”
relacional, constituindo-se dialogicamente a partir de cada leitura dela feita.
Referências:

“Stranger than fiction” (2006)

GENETTE, Gérard. “Discurso da narrativa” Tradução: Fernando Cabral Martins.


Editora Vega Universidade, 3ª ed., 1989.

https://figurasdaficcao.wordpress.com/category/metalepse/

https://www.gradesaver.com/stranger-than-fiction/study-guide/summary-part-1-harold-
crick

http://edtl.fcsh.unl.pt/encyclopedia/metalepse/

*Notas e diapositivos do curso “Dinâmicas da personagem” ministrado pelo professor


doutor Carlos Reis

P.S.: Professor, me abstive de citar o “Dicionário de Estudos Narrativos” por motivos


claros; ainda não pude adquiri-lo e, por isso, não pude consultá-lo, apesar de que ele
devesse, evidentemente, constar nesta lista.

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