Você está na página 1de 12

2) Compare os textos de Wagner (2010) e Geertz (2008) no que tange à sua

conceituação de cultura. Quais são suas aproximações, quais são seus distanciamentos?

Deste ponto de vista, poderíamos observar inicialmente que a pri- meira


edição de A invenção da cultura, em 1975, é quase simultânea a de dois outros livros de
antropólogos norte-americanos que marcaram a antropologia contemporânea: A
interpretação das culturas, de Clifford Geertz, e Cultura e razão prática, de Marshall
Sahlins — publicados, res- pectivamente, em 1973 e 1976. O destino desses três livros,
contudo, continua sendo muito diferente. Afinal, os dois últimos conheceram uma
difusão e um sucesso que o primeiro mal começa a experimentar e que dificilmente terá
em grau comparável. No Brasil, por exemplo, o livro de Geertz foi traduzido, ainda que
parcialmente, em 1978, e o de Sahlins em 19791 . E até hoje é raro encontrar um
programa de curso de teoria antropológica que não os inclua na bibliografia. A invenção
da cultura, por outro lado, teve que esperar 35 anos para receber sua tradução, em ótima
iniciativa da editora Cosac Naify e belo trabalho de tradução de Marcela Coelho de
Souza e Alexandre Morales. Com efeito, é quase inevitável especular sobre qual teria
sido o destino da antropologia brasileira se o livro de Wagner tivesse sido traduzido
ainda na década de 1970 e os outros dois não. Talvez não estivésse- mos ensinando uma
antropologia tão afastada do que efetivamente se faz na disciplina hoje em dia; talvez
tivéssemos resistido melhor ao imperialismo das análises construcionistas ou
desconstrucionistas que apelam para o eterno poder e as inevitáveis manipulações
ocultas atrás de qualquer situação; talvez nada tivesse acontecido… De toda forma, o
que não é fácil imaginar é a tradução dos livros de Geertz e Sahlins 35 anos depois de
terem sido originalmente publicados. A “mensagem” desses livros parece tão adaptada
ao momento em que foram escritos que é difícil concebê-los em outro contexto
qualquer. Afinal, nos dois casos se tratava, em breves palavras, de salvar o cultu-
ralismo daquilo que sempre foi o que poderíamos chamar seu melhor inimigo, a saber, o
reducionismo naturalista. Ou seja, aquilo sem o que a antropologia cultural
simplesmente não pode funcionar, na medida em que lhe faltaria esse seu “outro”,
aquele que define, equivocada- mente sem dúvida, o que a cultura elabora, interpreta,
simboliza ou transcende — a natureza. Observemos também, ainda que de passagem,
que esse natura- lismo se apresentava, tanto a Geertz como a Sahlins, sob uma dupla
forma. De um lado, as antropologias ditas ecológicas ou materialis- tas, que ambos
simplesmente recusam; de outro, uma versão muito mais complicada, sofisticada e,
talvez, inesperada, o estruturalis- mo levistraussiano. Afinal, apenas dois anos antes da
publicação do livro de Geertz, Lévi-Strauss havia concluído sua mitológica tetralogia —
em que a demonstração da incrível sofisticação de que era capaz o pensamento indígena
parecia anular qualquer possibi- lidade de redução — com um livro significativamente
intitulado O homem nu, que conclui com a peremptória afirmativa de que, no final das
contas, tudo não passa do produto da atividade do cérebro humano, ele mesmo produto
de um complexo processo de evolução natural: higher naturalism2, como definiu
Sahlins; hypermodern intel- lectualism, nas palavras de Geertz3 . Mas, se Geertz parece
simples- mente recusar a alternativa levistraussiana buscando refúgio numa
hermenêutica que invariavelmente funciona como saída sofisticada para os que não
gostam da noção de estrutura, a reação de Sahlins é diferente. Oriundo, ele próprio, de
uma tradição antropológica materialista e neoevolucionista, um estágio em Paris o fez
imagi- nar a possibilidade de, por assim dizer, embutir o estruturalismo no culturalismo,
fazendo das “estruturas da mente” os “instrumentos da cultura”, não sua “condição”4, e
da própria estrutura apenas uma parte da cultura e da história. O livro de Wagner segue
um caminho bem diferente, seja em relação ao interpretativismo geertziano, seja em
face do culturalis- mo estruturalizado de Sahlins. Tão diferente que podemos ter hoje a
sensação de que não são apenas um ou dois anos para mais ou para menos que separam
A invenção da cultura desses dois outros livros, mas algo como meio século! De fato, se
A interpretação das culturas e Cultura e razão prática soam hoje como anúncio do fim
(no duplo sentido de acabamento e de término) de uma antropologia fin de siècle
(século xx), A Invenção da cultura parece anunciar o início de outra coisa, que pode
ríamos imaginar como uma das possibilidades abertas para a antropologia do século xxi.

A esse respeito, talvez valha a pena observar que os leitmotifs centrais das
obras de Geertz e Sahlins — a interpretação e a simbolização, respectivamente — não
deixam de ser evocados por Wagner, ainda que para preparar outras reflexões. Assim,
desde o início do livro, a “interpretação” aparece na forma da “moderna cultura
interpretativa americana” (p. 10), tema que será desenvolvido no item “A magia da
propaganda” (pp. 107-19) do capítulo 3 de modo evidentemen- te bem distinto daquele
de Geertz.
No capítulo inicial do livro de Roy Wagner, A Invenção da Cultura,
intitulado “A presunção da cultura”, o autor apresenta a ideia de cultura com base no
conceito de “objetividade relativa”. Nesse esforço inicial, Wagner investiga as
implicações de uma abordagem baseada na “objetividade absoluta” e propõe olhar para
a diferença cultural a partir da “relação”, e não de uma análise racionalista,
fundamentada estritamente nessa objetividade absoluta.

Wagner traz o foco da análise sobre a cultura para o processo relacional, e


desenvolve essa perspectiva a partir de reflexões extraídas dos trabalahs de campo
realizados por ele acerca do trabalho de campo, no qual o antropólogo experiencia outro
universo, que deve relatar nos termos de sua própria cultura para que possa ser lido
como uma etnografia. É nessa experiência, marcada por ansiedade, deslocamento e
confusão, que o antropólogo inventa a cultura do outro a partir das diferenças que se
chocam com sua própria forma de perceber e agir.

Para Wagner, o tomar consciência da existência de diversas culturas, seja


enquanto conceito quanto enquanto objeto, leva o antropólogo a tensionar a pretensão
clássica da perspectiva racionalista, dotada de uma objetividade absoluta por meio de
análises, exames e interpretações. O ponto máximo dessa tensão leva à renúncia dessa
pretensão tradicional em favor de uma “objetividade relativa, baseada nas características
de sua própria cultural” (WAGNER, 2010, p. 28). Ou seja, o pesquisador ao se deparar
como o seu objeto, exercerá constantemente a busca pela imparcialidade, contudo não
poderá deixar de assumir que, muito frequentemente, adotará os “pressupostos mais
básicos de sua própria cultura como tão certos que nem se aperceberá deles”
(WAGNER, 2010, p. 28).

Se por um lado, a objetividade relativa pode ser atingida quando lançamos


mão de proposições que abarquem as tendências e costumes pelos quais a nossa própria
cultura nos consente entender uma outra, e quais os entraves que isso inflige a esse
entendimento. Nas palavras de Wagner, “a objetividade "absoluta" exigiria que o
antropólogo não tivesse nenhum viés e portanto nenhuma cultura” (WAGNER, 2010, p.
28).
Em outras palavras, a ideia de cultura coloca o pesquisador em pé de
igualdade com seus objetos de estudo: cada qual “pertence a uma cultura”. Uma vez que
toda cultura pode ser entendida como uma manifestação específica ou um caso do
fenômeno humano, e uma vez que jamais se descobriu um método infalível para
“classificar” culturas diferentes e ordená-las em seus tipo naturais, presumimos que
cada cultura, como tal, é equivalente a qualquer outra. Essa pressuposição é denominada
“relatividade cultural” (WAGNER, 2010, p. 28-29).

A combinação dessas duas implicações da ideia de cultura - o fato de que


nós mesmos pertencemos a uma cultura (objetividade relativa), e o de que devemos
supor que todas as culturas são equivalentes (relatividade cultural) -leva a uma
proposição geral concernente ao estudo da cultura. Como sugere a repetição da raiz
"relativo", a compreensão de uma outra cultura envolve a relação entre duas variedades
do fenômeno humano; ela visa a criação de uma relação intelectual entre elas, uma
compreensão que inclua ambas. A ideia de "relação" é importante aqui, pois é mais
apropriada à conciliação de duas entidades ou pontos de vista equivalentes do que
noções como "análise" ou "exame", com suas pretensões de objetividade absoluta
(WAGNER, 2010, p. 29).

Se isso a que os antropólogos chamam de "cultura" é tão englobante como


vimos supondo, então essa obsessão por parte do pesquisador de campo não é
despropositada, pois a cultura estudada constitui um universo de pensamento e ação tão
singular quanto a sua própria cultura. Para que o pesquisador possa enfrentar o trabalho
de criar uma relação entre tais entidades, não há outra maneira senão conhecer ambas
simultaneamente, apreender o caráter relativo de sua cultura mediante a formulação
concreta de outra (WAGNER, 2010, p. 30).

“A cultura como criatividade” (cap. 2) começa com uma descrição do


trabalho de campo do próprio Wagner e recupera sua interação com os Daribi, que se
espantavam com o antropólogo (principalmente com o fato de ser solteiro e precisar
contratar um cozinheiro) tanto quanto este se desconcertava com a diferença cultural. O
capítulo mostra a cultura como construção resultante dessa relação cotidiana, baseada
nas leituras que os nativos fazem do antropólogo e vice-versa: o antropólogo tentando
dar sentido ao modo de vida com o qual entra em contato para transformá-lo num
estudo etnográfico e os Daribi procurando compreender aquela pessoa que aparecia
entre eles, sem mulher, com uma incompreensível mania de fazer entrevistas. Segue-se
uma genealogia da noção de cultura, tanto nas acepções do senso comum como
enquanto conceito antropológico, que termina com uma consideração da ideia de
produção nas sociedades tribais e na sociedade ocidental: enquanto as primeiras
produzem pessoas, a última produz coisas.

O livro “A Interpretação das Culturas” é um clássico na antropologia e


representa um momento diferencial na história dessa ciência. Com base na compreensão
e interpretação dos fenômenos sociais, Geertz apresenta logo no primeiro capítulo dessa
obra o conceito de cultura a partir da semiótica. Para isso, ele destaca suas primeiras
definições como ponto de partida: abordar a cultura como uma teia de significações
tecida pelo próprio homem (partindo das ideias de Weber) em contraponto ao “todo
complexo” da teoria estrutural funcionalista. Desta maneira, traz o estudo sobre a
cultura "não como uma ciência experimental em busca e leis gerais, mas como uma
ciência interpretativa, à procura do significado." (GEERTZ, 2008, p.4).

A Interpretação das Culturas traz o entendimento de cultura como, “[...[ um


padrão de significados transmitido historicamente, [...] um sistema de concepções
herdadas expressas em formas simbólicas por meio dos quais os homens comunicam,
perpetuam e desenvolvem seu conhecimento e suas aitivdades em relação À vida”
(GEERTZ, 2008, p. 66)

Pois aquilo que este trata como um dispositivo metodológico que apenas
prolonga e torna mais sofisticado um procedimento inerente a qualquer cultura humana
(a “interpretação”, justamente) será analisado por Wagner como uma singularidade de
uma cultura particular, a “norte-americana”. Em ter- mos mais precisos, pode bem ser
que a interpretação seja um modo universal de lidar com o mundo e com a sociedade,
mas o problema é que essa generalidade não nos diz nada sobre seu funcionamento em
situações concretas e específicas. Isso significa, claro, que ela pode perfeitamente operar
de acordo com a mecânica básica dos disposi- tivos chamados etnocêntricos:
implementar como universal aquilo que é uma característica particular da cultura do
próprio antropólogo. Neste caso, como insiste Wagner, tentando tornar cada vez mais
trans- parente o caráter convencional da cultura em que vivemos. Ou, o que dá no
mesmo, fomentando o desejo de nos tornarmos autoconscien- tes daquilo que, não
obstante, sustentamos que nos determina. Na antropologia, sabemos bem onde tudo isso
foi parar, na nossa versão particular do “pós-modernismo”, e não é casual que tenham
sido alu- nos ou discípulos infiéis de Geertz os que lançaram a moda entre nós5.

Assim, para tornar esse conceito mais hermenêutico e reconhecido em sua


importância, segundo ele, é preciso saber o que os cientistas fazem, ou seja, o que os
praticantes da antropologia executam em sua prática profissional: a etnografia. Desta
forma, esse conhecimento se torna mais completo quando tomamos a noção da prática
etnográfica elaborada a partir de uma descrição densa. Essa prática se dá a partir da
tentativa de "ler um manuscrito estranho, desbotado, cheio de elipses, incoerências,
emendas suspeitas e comentários tendenciosos, escrito não como os sinais
convencionais do som, mas com exemplos transitórios de comportamento modelado."
(p.7).

De acordo com Geertz, elaborar uma etnografia a partir de uma descrição


densa é interpretar e elaborar uma leitura da leitura que os nativos fazem da própria
cultura. A etnografia enquanto um método de pesquisa antropológica tem a função não
somente de guiar o pesquisador em campo, mas também atua como um fundamento do
papel do antropólogo sem a necessidade dele se tornar um objeto de estudo, um nativo.
Assim, ao realizar um trabalho etnográfico, além dele proporcionar o posicionamento
do pesquisador ele permite realizar uma compreensão da interpretação que os nativos
têm de suas interpretações se tornando assim uma leitura de segunda e/ou terceira mão
já que para ele somente o próprio nativo faz interpretação em primeira mão.

A descrição densa defendida e apresentada por ele está embasada em três


características que se  fundamentam em uma: ser interpretativa. Assim, a descrição
densa serve para “traçar curva do discurso social: fixa-lo numa forma
inspecionável.”(p.13). O antropólogo, diante deste discurso, anota e regista algo que não
deixa de existir após ter acontecido se tornando  assim um relato na pesquisa de campo.
Em resumo: a descrição etnográfica é formada pela interpretação do discurso e o
registro deste relato.

É imprescindível mencionar o quanto as abordagens teóricas de Geertz se


tornaram um sinal diacrítico na história da ciência antropológica. Assim, ao estudar a
antropologia e buscar entender seu escopo principal não é "responder às nossas questões
mais profundas, mas colocar a nossa disposição as respostas que outros deram e assim
inclui-las no registro de consultas sobre o que o homem falou. "(p.21).  Entretanto, sua
obra não esteve aquém de críticas e, ao mesmo tempo, pode proporcionar a superação
de uma teoria com cunho etnocêntrico. Desta forma, a Interpretação das Culturas é uma
obra clássica disponível aos leitores desde 1973 e aborda temas até hoje discutidos em
sala de aula, congressos e na literatura antropológica: os saberes antropológicos, a
cultura e a prática antropológica.

O conceito de cultura que eu defendo, e cuja utilidade os ensaios abaixo


tentam demonstrar, é essencialmente semiótico. Acreditando, como Max Weber, que o
homem é um animal amarrado a teias de significados que ele mesmo teceu, assumo a
cultura como sendo essas teias e a sua análise; portanto, não como uma ciência
experimental em busca de leis, mas como uma ciência interpretativa, à procura do
significado. É justamente uma explicação que eu procuro, ao construir expressões
sociais enigmáticas na sua superfície. Todavia, essa afirmativa, uma doutrina numa
cláusula, requer por si mesma uma explicação (GEERTZ, 2008, p. 4).

Um divisor de águas da antropologia

Publicado pela primeira vez em português, 35 anos depois de sua edição


original, A invenção da cultura de Roy Wagner é provavelmente o livro mais esperado
pelo meio antropológico brasileiro nos últimos anos. A obra radicaliza uma reflexão
sobre o polêmico conceito de cultura em antropologia: a partir da consideração dos
modos de conceitualização nativos, ela reformula a própria disciplina antropológica.
Para Wagner, não se trata de entender o que outros povos produzem como “cultura” a
partir de um dado universal (a “natureza”), mas antes, o que é concebido como dado por
outras populações. Com isto, a própria noção de “natureza” como dado universal e de
“cultura” ficam sob suspeição.

A surpreendente inovação do argumento wagneriano é sua afirmação de que


a cultura é uma ilusão: o antropólogo, atuando no modo de simbolização generalizante e
convencional, constituiu as “culturas” dos outros povos. O livro realiza, pois, um duplo
movimento: ao mesmo tempo que explicita as bases epistemológicas do conceito de
cultura, mostrando de que forma ele é construído como ferramenta analítica destituída
de realidade em si, ele delineia para o leitor como operam o modo de simbolização
ocidental e o modo de simbolização característico das sociedades tribais. A análise, após
colocar em foco as implicações da relatividade para a antropologia, recupera
reflexivamente o conceito de cultura para dar conta das diferentes formas de
simbolização humana.

O capítulo inicial, “A presunção da cultura”, debruça-se sobre a ideia de


“relatividade cultural” – o suposto de que a humanidade é composta por diversas
culturas equivalentes no seu estatuto –, investiga suas implicações e propõe olhar para a
diferença cultural a partir da “relação”, e não de uma análise pretensamente objetiva.
Esse foco na relação é desenvolvido em sua reflexão acerca do trabalho de campo, no
qual o antropólogo experiencia outro universo, que deve relatar nos termos de sua
própria cultura para que possa ser lido como uma etnografia. É nessa experiência,
marcada por ansiedade, deslocamento e confusão, que o antropólogo inventa a cultura
do outro a partir das diferenças que se chocam com sua própria forma de perceber e
agir.

“A cultura como criatividade” (cap. 2) começa com uma descrição do


trabalho de campo do próprio Wagner e recupera sua interação com os Daribi, que se
espantavam com o antropólogo (principalmente com o fato de ser solteiro e precisar
contratar um cozinheiro) tanto quanto este se desconcertava com a diferença cultural. O
capítulo mostra a cultura como construção resultante dessa relação cotidiana, baseada
nas leituras que os nativos fazem do antropólogo e vice-versa: o antropólogo tentando
dar sentido ao modo de vida com o qual entra em contato para transformá-lo num
estudo etnográfico e os Daribi procurando compreender aquela pessoa que aparecia
entre eles, sem mulher, com uma incompreensível mania de fazer entrevistas. Segue-se
uma genealogia da noção de cultura, tanto nas acepções do senso comum como
enquanto conceito antropológico, que termina com uma consideração da ideia de
produção nas sociedades tribais e na sociedade ocidental: enquanto as primeiras
produzem pessoas, a última produz coisas.

A invenção da cultura, segundo Wagner, contribui para desconstruir a forma


como a antropologia surgiu com base na distinção entre natureza e cultura. O “homem
natural”, embora desacreditado na antropologia, persiste em outras áreas do
conhecimento ocidental e embasa a ideia de que a cultura tem caráter utilitário,
reduzindo a criatividade ao pragmatismo. O mito do “homem natural” foi estabelecido
em relação a uma concepção do humano (homem-cultural) que é ao mesmo tempo
natural e moral: o homem é homem naturalmente, mas também o é culturalmente, e a
cultura é um processo no tempo.

Nesse sentido, Roy Wagner contrapõe-se à concepção de que existe algo


inato e algo construído e afirma que para entendermos as origens do homem e sua
existência precisamos olhar para sua criatividade atual, e não só em retrospectiva: o
argumento da invenção é de que não existe mera reprodução e mudança evolutiva dos
padrões de criatividade, pois todo ato de significação, ainda que convencional, é um ato
inventivo.

Mas não tem mais o escopo grandioso, promissor, a versatilidade infinita de


aplicação aparente que um dia teve. A segunda lei da termodinâmica ou princípio da
seleção natural, a noção da motivação inconsciente ou a organização dos meios de
produção não explicam tudo, nem mesmo tudo o que é humano, mas ainda assim
explicam alguma coisa. Nossa atenção procura isolar justamente esse algo, para nos
desvencilhar de uma quantidade de pseudociência á qual ele também deu origem, no
primeiro fiuxo da sua celebridade.

Não sei se é exatamente dessa forma que todos os conceitos científicos


basicamente importantes se desenvolvem. Todavia, esse padrão se confirma no caso do
conceito de cultura, em torno do qual surgiu todo o estudo da antropologia e cujo
âmbito essa matéria tem se preocupado cada vez mais em limitar, especificar, enfocar e
conter. É justamente a essa redução do conceito de cultura a uma dimensão justa, que
realmente assegure a sua importância continuada em vez de debilitá-lo, que os ensaios
abaixo são dedicados, em suas diferentes formas e direções. Todos eles argumentam, às
vezes de forma explícita, muitas vezes simplesmente através da análise particular que
desenvolvem, em prol de um conceito de cultura mais limitado, mais especializado e,
imagino, teoricamente mais poderoso, para substituir o famoso "o todo mais complexo"
de E. B. Tylor, o qual, embora eu não conteste sua força criadora, parece-me ter
chegado ao ponto em que confunde muito mais do que esclarece.

Para Geertz o conceito de cultura é essencialmente semiótico


É por isso, enfim, que o estatuto da noção de cultura ao longo de A invenção
da cultura é muito complexo, uma vez que Wagner parece defini-lo de diferentes modos
ou, para ser mais preciso, encará-lo de difenentes ângulos. Ele aparece ora em sentido
forte, ora em sentido fraco, o que não significa, de modo algum, que o primeiro seja
melhor que o segundo. A “cultura” começa sendo definida como o que todo mundo tem;
depois, como o que só nós temos e que os outros só têm porque nós a colocamos lá;
mais tarde como aquilo que ninguém tem; e, por fim, como aquilo que todo mundo tem
porque a cria em situações relacionais específicas. Nos termos do próprio Wagner, a
cultura começa como dada e passa para a ordem do feito — primeiro como falsa
invenção e depois, enfim, como invenção-criação.

Passemos, então, ao “da”, que separa “invenção” e “cultura”. Nossos hábitos


acadêmicos são tão arraigados que podem nos fazer imaginar que esse partícula poderia
significar apenas que é a cultura que é inventada. Se isso fosse verdade, contudo, todo o
livro perderia o sentido, pois seu ponto central é justamente mostrar que a invenção da
cultura é inseparável daquilo que a cultura inventa. A cultura “inventada” corresponde,
basicamente, ao que Wagner denomina “convenção”; a cultura “inventante” ao que ele
chama de “diferenciação” — talvez os conceitos centrais do livro.

Convenção e diferenciação constituem, em primeiro lugar, os dois


mecanismos básicos da semiótica particular adotada por Wagner. Nesse sentido, ponto
crucial, não constituem dois “tipos” de coisas, mas as duas faces da mesma realidade
(ver p. 88). Simbolizar é sempre utilizar de forma “diferenciada” símbolos que fazem
parte de uma “convenção”, e é apenas o peso respectivo de cada procedimento em cada
ato simbólico que varia. É por isso que “a distinção [é] mais complicada do que
dicotomias simplistas do tipo ‘progressista-conservador’, apropriadamente parodiadas
por Marshall Sahlins na expressão ‘the West and the Rest’” (p. 16).

Por outro lado, quando nós confrontamos nossa própria cultura ou, para ser
mais preciso, a “moderna cultura interpretativa norte-americana”, com os Daribi — ou
com qualquer conjunto que Wagner designa alternadamente com combinações dos
substantivos classes, grupos, povos, sociedades, tradições, e dos adjetivos camponeses,
trabalhadoras, étnicas, não racionalistas, religiosos, tribais —, nós temos a sensação que
o investimento no convencional e no diferenciante muda de lugar. Assim, tendemos a
imaginar que nossas regras são puramente convencionais, aquilo que fazemos e,
consequentemente, o domínio que está sob nossa responsabilidade (p. 19) e onde
investiremos nossa criatividade. Mas os Daribi e muitos outros parecem imaginar o
contrário, a saber, que este reino, para nós convencional e feito, é da ordem do dado.
Até aí, convenhamos, não há muita novidade: a imagem de primitivos vivendo sob o
império de uma tradição que consideram transcendente é muito antiga. O que faz de
Roy Wagner o mais original dos antropólogos desde Lévi-Strauss é ter colocado a
questão que faltava: onde, então, esses “primitivos” investem sua criatividade? Num
enorme esforço para se singularizar diante de uma convenção dada, é a resposta.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

GEERTZ, Clifford. “Uma descrição densa: por uma teoria interpretativa da cultura” e “
A religião como sistema cultural”, in Interpretação das culturas. Rio de Janeiro: LTC,
2008. pp. 3-21 e 65-91.
WAGNER, Roy. “A presunção da cultura”, “Cultura como criatividade” “A magia da
propaganda”, in A invenção da cultura. São Paulo: COSACNAIFY, 2010. pp. 27-48,
49-74 e 107-119.

Você também pode gostar