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Sonia Alice Felde Maia

CÂNCER E MORTE. O IMPACTO SOBRE O PACIENTE E A FAMÍLIA

Artigo apresentado como Trabalho de


Conclusão do Curso de Especialização em
Psiconcologia, Hospital Erasto Gaertner,
Curitiba - PR

CURITIBA
MAIO 2005
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Dedicado à

Minha família, responsável por tantos desafios que exigiram de todos mudanças e
ajustes, possibilitando que eu pudesse sentir quão difícil e também necessário é realizá-los.
Isso despertou meu interesse por esse tema.
Especialmente aos meus: filho, pai e cunhados que tiveram câncer e que o enfrentaram,
em todas as suas fases, buscando a recuperação; àqueles que conseguiram e àqueles que não
conseguiram.
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SUMÁRIO

1. INTRODUÇÃO ............................................................................................................01

2. IMPACTO DO CÂNCER E DA MORTE ...................................................................03

3. MORTE E LUTO.........................................................................................................05

4. CORRELAÇÃO ENTRE AS FASES DA DOENÇA E OS VÁRIOS MECANISMOS


UTILIZADOS DURANTE AS FASES DO MORRER .............................................10

5. REAÇÕES DA FAMÍLIA DIANTE DAS PERDAS ANTECIPADAS.....................13

6. COMO LIDAR COM O CÂNCER .............................................................................14

7. CONCLUSÃO .............................................................................................................19

8. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ........................................................................20


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CURITIBA - 2005
CÂNCER E MORTE. O IMPACTO SOBRE O PACIENTE E A FAMÍLIA
Sonia Alice Felde Maia

RESUMO

O diagnóstico do câncer causa grande impacto para a pessoa que o recebe e para a sua
família, e introduz desafios constantes para a equipe de profissionais que irá atendê-lo.
O paciente de câncer vivencia reações distintas em cada uma das diferentes etapas que
enfrenta: comunicação diagnóstica, escolha de profissionais, adesão ao tratamento, cura,
recidiva, morte ou continuidade e retorno à vida pós-câncer. Essas etapas, também enfrentadas
pela família, devem ser mediadas e acompanhadas pela equipe que conduz o tratamento.
Nesse contexto, desenvolve-se com base na Teoria Sistêmica, a abordagem detalhada de cada
fase e sua repercussão em todas as instâncias, colocando-se em relevância as implicações
emocionais e factuais.
É na vigência da doença e no momento de crise que o Psicólogo, juntamente com os
demais profissionais da equipe, pode intervir, mobilizando recursos do paciente, da família e
da própria equipe, que favoreçam o crescimento emocional -gerador das mudanças necessárias
para o enfrentamento da doença, adesão ao tratamento, compreensão das etapas, aceitação da
morte e de recidivas, entendimento das fases do luto - em casos de morte - e reorganização da
vida pós-câncer. Ainda, auxiliando as famílias a desvendar possíveis sintomas e dificuldades
associados à doença e morte, manifestos ou não.
Assim, o presente artigo tem como proposta a exposição da importância do enfoque
sistêmico na abordagem do câncer e da morte e nas ressonâncias causadas nas pessoas,
especialmente na família do paciente.

Palavras-Chave: Câncer; Morte; Visão Sistêmica;Impacto; Família.


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1. Introdução

Desde o momento em que uma pessoa supõe que pode ter câncer e faz o primeiro
contato com o médico que fará a avaliação diagnóstica, detona-se em todo o sistema –
paciente e família – um “alarme”, que desencadeia uma série de reações, em geral pessimistas:
de pânico, desespero e caos. Essas reações se ampliam e se particularizam, à medida que o
diagnóstico do câncer é confirmado e se torna necessário assimilar, processar, elaborar e
finalmente compreender o que está acontecendo para que se possa fazer o enfrentamento
necessário, ou seja, a adesão ao tratamento.
A equipe de saúde acostumada a essa realidade – porque a vivencia no dia a dia – em
geral, não dimensiona adequadamente a avalanche de sentimentos e medos que perpassam
pelo paciente e sua família, ou se o faz, não comunica ao sistema, contribuindo assim,
involuntariamente com o aumento de desespero e sentimento de fragilidade humana desse
momento.
Quando se trabalha com famílias que estão vivenciando uma doença grave ou uma
morte, há evidências clínicas de que ambas tornam-se um processo sistemático, do qual todos
os membros participam de maneiras diferentes, dependendo da estrutura interna de cada um.
Além disso, tornam-se mutuamente reforçadores do aparecimento de eventuais sintomas em
alguns membros da família mais propensos a sintetizá-los, o que os torna “representantes” do
grupo (Brown,1995 apud Carter & Mc Goldrick,1995).
O impacto do câncer e da morte não é somente intenso e freqüentemente prolongado.
Seus sinais se intensificam, e muitas vezes não são reconhecidos pela família como
relacionados à doença ou à perda.
Habitualmente, existe uma certa negligência social diante de famílias que convivem
com a incerteza em face da tragédia - o diagnóstico de que um membro seu tem câncer - ao
mesmo tempo em que a família precisa manter a esperança (Rolland apud Mc Goldrick &
Walsh, 1998), não recebe, em geral, apoio da sociedade à sua volta, para fazer o
enfrentamento necessário e adequado, pois os mesmos mecanismos desencadeados no sistema
paciente-família também o são nas demais pessoas, que não sabem o que fazer diante de tudo
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isso. Em geral, as pessoas referem que não têm coragem para fazer qualquer abordagem, que
sinalize ajuda para a família.
O diagnóstico do câncer ou a simples possibilidade de sua confirmação, que passa a ser
sentida como a morte ameaçada, rompe o equilíbrio individual e familiar. É tão arraigada a
associação de morte ao diagnóstico de câncer que, mesmo continuando a viver, a marca da
morte antecipada permanece para sempre nas pessoas que um dia se encontraram nessa
situação. Existem muitas doenças fatais além do câncer, porém a impressão que temos é de
que as outras doenças matam, o câncer destrói (Carvalho, 2003).
A família de um paciente de câncer tem sido vista como um agente importante nos
cuidados necessários a esse paciente. Alguns autores, como Reit e Lederberg (1990), chegam a
propor que a família também é um paciente, devendo ser assistida cuidadosamente pela equipe
de saúde, e sendo denominada “paciente de segundo escalão”.
O indivíduo e a família precisam de um certo tempo para a assimilação, processamento
e elaboração do dado novo – a doença -, e também da inclusão no seu campo transacional da
equipe de profissionais que no momento fazem o diagnóstico, mas que também poderá vir a
efetuar o tratamento. A família é mais do que a biopsicodinâmica individual de seus membros,
que se relacionam de acordo com certos ajustes que dirigem suas transações. Mais que isso,
uma unidade familiar só está em equilíbrio funcional quando está calma, e cada membro está
funcionando com eficiência razoável naquele período. No momento de ruptura de seu
equilíbrio e de ameaça à sua homeostase, podemos supor que essa família está disfuncional. E
nessas condições ela se transforma num sistema que precisa responder às exigências externas e
também internas de mudanças, estereotipando seu comportamento. Os padrões transacionais
costumeiros não podem mais ser preservados, uma vez que o aparecimento da doença num
elemento do sistema identifica necessidades de ajustes e mudanças. As etapas seguidas
individualmente para a realização das mudanças não seguem a mesma ordem cronológica para
todos os membros que pertencem ao sistema familiar, de modo que há que se contemplar com
olhares distintos o tempo de cada um, bem como a forma como cada um irá processar este
evento.
A intensidade da reação emocional, assim como o tempo necessário ao estabelecimento
de novo equilíbrio emocional, é governado pelo nível de funcionamento da integração
emocional no momento do aparecimento do câncer ou da morte. Uma família bem integrada
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pode demonstrar mais abertamente suas reações no momento que requer mudanças, podendo
se adaptar às novas necessidades mais rapidamente. Uma família menos integrada pode
demonstrar poucas reações no momento, e responder mais tarde com sintomas de adoecimento
físico, emocional, ou ainda distúrbios de comportamento social.
Quando abordamos o tema da morte, tão amplo e complexo, vendo-a como um
processo e não como um momento (Kovács, 2002), concluímos que ela faz parte do
desenvolvimento humano; que a morte significa e ressignifica a vida, e que somente quando se
está vivo é que se faz necessário se preocupar com ela, já que a mesma faz parte da vida. A
morte, segundo Bowen,1978 apud McGoldrick & Walsh (1998), é um evento biológico que
encerra uma vida. Nenhum evento vital é capaz de suscitar nos indivíduos mais pensamentos
dirigidos pela emoção e mais reações emocionais perante aqueles à sua volta do que o
aparecimento de uma doença grave ou da morte, de forma que podemos descrevê-los como
um fenômeno familiar. .
Assim, tendo a compreensão sistêmica do câncer e da morte e dos seus impactos,
percebemos a importância de orientar e auxiliar pacientes e famílias, na vigência dos mesmos,
ou mesmo após, para que consigam realizar as mudanças necessárias, sentindo-se apoiados,
acolhidos e cuidados, no seu mais amplo sentido.

2. O Impacto do câncer e da morte

Reit e Lederberg (1990), apud Carvalho (2003), afirmam que o surgimento do câncer
em qualquer família é sempre uma catástrofe. Eles estabeleceram interessante distinção entre
os conceitos de tragédia e destruição, em geral associados à perda de um ente querido por
parte dos outros elementos da família. Em geral, a morte de uma pessoa idosa, por câncer, é
mais bem tolerada do que se a doença aparece em outra pessoa do mesmo grupo familiar,
porém mais jovem. Os autores afirmam que a perda de uma criança pode ser um evento mais
trágico, mas em termos de “destruição” entre os membros de uma família as conseqüências da
perda de um adulto jovem, que participe mais ativamente do desenvolvimento e do
crescimento do grupo (tanto materialmente quanto no que diz respeito à educação dos
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membros mais jovens, por exemplo), podem atingir extensões enormes, com alto teor de
desestruturação.
Em casos de câncer em crianças e jovens, os medos dos pais aumentam na medida em
que precisam lidar, além das suas próprias dificuldades e questões em relação à morte, com as
demandas culturais que em nossa sociedade incluem cuidados com os jovens, cuidados com os
doentes e cuidados com aqueles a quem se ama. Além dessas dificuldades, ainda há as de
gênero, sobrecarregando as mulheres e mães que, historicamente, devem assumir com
competência esses cuidados.
A família quer desesperadamente fazer o máximo pelo seu filho, mas não tem muita
certeza do melhor a ser feito (Simonton-Matthews, 1990), o que torna o enfrentamento do
medo extremamente difícil. Na maioria das vezes, o comportamento da família será tentar
esconder suas emoções do doente, e o que se observa é que este interpreta essa atitude da pior
maneira possível. As próprias crianças e jovens lidam melhor com seus medos e tristezas do
que os adultos imaginam, e quanto mais elas forem informadas e souberem o que está
acontecendo com os pais, com suas emoções, com sua vida e com seu próprio tratamento e/ou
conseqüências da doença, mais eficazmente elas poderão processar e elaborar seus próprios
medos. Os pais habitualmente entram em pânico diante da possibilidade da morte, e muitas
vezes têm sentimentos de culpa que precisam ser elaborados antes que possam abordar o
doente com a difícil tarefa de lhe contar que é quase certo que ele vá morrer. A criança e o
jovem precisam e têm o direito de saber da possibilidade de sua morte para poderem conversar
sobre o assunto, porém é necessário que a família trabalhe seus próprios sentimentos antes de
fazer esta comunicação, para que possa efetivamente ajudar em todo o processo. É importante,
ainda, que a família possa ser ajudada, para que consiga separar os medos irracionais dos
medos reais.
O paciente jovem tem qualidades especiais que os pacientes adultos não tem. Sua
crença é de que o câncer não é sinônimo de morte. Para a maioria dos pacientes jovens o
câncer é uma doença, e uma pessoa doente, desde que se trate, fica boa logo. Isso ocorre
porque a grande maioria desses pacientes quase não teve contato direto com doenças graves, o
que os libera de crenças pessimistas e possibilita que vejam a doença como enfermidade
temporária, ou como um obstáculo a ser vencido. A grande maioria não teve contato com
outros jovens que morreram e associam a morte à velhice. O otimismo do jovem, tão
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fundamental e necessário para o enfrentamento da doença, do tratamento e da recuperação,


pode, entretanto, ser “contaminado” pelos adultos que lhe passam seu próprio medo do câncer,
mesmo desejando o melhor para seu filho. O melhor para o paciente jovem nem sempre é fácil
para o restante da família, especialmente para os pais, que precisarão de todos os recursos
disponíveis para ajudar seu filho a atravessar essa fase difícil de doença/recuperação ou
doença/morte.
Bowen (1978) apud Mc Goldrick & Walsh (1998) escolhe o conceito de
relacionamentos ‘abertos’ e ‘fechados’, como um modo efetivo de descrever a morte como um
fenômeno familiar. Um sistema de relacionamento ‘aberto’ é aquele no qual um indivíduo está
livre para comunicar pensamentos, sentimentos e fantasias para o outro, que é capaz de um
comportamento recíproco. Ninguém tem um relacionamento completamente aberto com outra
pessoa, mas uma relação saudável se dá quando uma pessoa pode ter um relacionamento no
qual um grau de abertura razoável é possível. O sistema fechado de comunicação é um reflexo
emocional automático para proteger o self da ansiedade da outra pessoa, embora a maioria das
pessoas diga que evita os assuntos -tabu para não desagradar aos outros.

3. Morte e Luto

Todos nós desejamos uma morte serena. O câncer, ao contrário de muitas outras
doenças, dá aos pacientes muito tempo para a sua preparação, que pode ser muito
confortadora, ou ao contrário, provocar grande inquietude e desespero. As pessoas podem se
preparar de inúmeras maneiras. Alguns planejam a organização do funeral e do enterro. Outros
preparam seus testamentos e colocam seus negócios em dia. Outros, ainda, assinam um
documento que autoriza o médico responsável a desligar os aparelhos que as mantinham
artificialmente vivas em caso de não haver mais esperança de reversão do quadro. O paciente
pode fazer algumas ou todas essas coisas sem que tenha necessariamente decidido morrer. A
capacidade de morrer com dignidade é muito importante para o paciente, e esta vai depender
do seu grau de participação, da sua autonomia e da sua capacidade de escolher a própria
morte. A família pode ajudá-lo, evitando tudo aquilo que seja incompatível com seus desejos
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ou que lhe cause desconforto (Simonton-Matthews, 1990). A consciência da mortalidade se


torna intensificada para os pacientes e famílias que enfrentam a possibilidade da morte,
causando uma inevitável ressignificação para a vida. Em todos esses passos, e durante todo o
processo de morrer, os profissionais de saúde têm uma grande responsabilidade na facilitação
dos mesmos, tanto para os pacientes quanto para as famílias.
Existe um outro processo cultural e social que é a negação social da morte, e que afeta
não apenas o tratamento, mas também o impacto da morte sobre a família. Existe uma
variedade de “especialistas de morte” para lidar com todos os aspectos, liberando as famílias
dos cuidados com seus membros que estão morrendo. Há hospitais próprios para tratar o
câncer, clínicas de quimioterapia e radioterapia, agentes funerários encarregados da
preparação do corpo, pessoas que lidam com os detalhes do enterro e funeral; e na medida que
assumem o tratamento ou a morte e o processo de morrer, mantêm a família com
possibilidades de se distanciar do membro que está morrendo. Isto soma-se, muitas vezes, à
incapacidade da própria família de se aproximar da realidade da morte, ou aos seus desejos de
permanecer distanciada, pois geralmente estes comportamentos têm a finalidade de manter a
tensão emocional baixa e o equilíbrio estabilizado. A escolha, portanto, é pela forma que
consideram menos disruptiva e perturbadora para si e para os outros. A existência desse
contexto incapacita as famílias para lidar adequadamente com o estresse e com a ruptura da
morte, dificultando as fases do luto.
O principal entre todos os assuntos-tabu é a morte, e podemos incluir o câncer, com
seu estigma social e individual, como representativo.
Um grande percentual de pessoas adoece e morre só, presa de seus próprios
pensamentos e sentimentos que não consegue comunicar para a família. O câncer suscita no
ser humano vários tipos de medo da morte: da morte com dor, da morte com alívio, da morte
em fantasia, da morte dos sonhos da vida, da morte que provoca rupturas, da morte como erro
e fracasso do médico, da morte como fracasso dos recursos tecnológicos, da morte ameaçada e
avisada. A incidência em maior ou menor grau de um dos tipos de medo da morte citados, fica
sempre na dependência da característica individual de cada membro do sistema, da sua
história, das suas crenças a respeito da morte e da dinâmica existente na família no momento
da demanda desencadeada pela doença(Carvalho, 2003).
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Existe um consenso entre a maioria dos autores, de que o processo de luto “normal”
deve durar em torno de dois anos, embora ele possa também durar anos, durante os quais cada
estação, feriado, aniversário ou evento que detone lembranças da pessoa morta vai evocar
novamente a antiga sensação de perda. Eventualmente, chega um momento em que a maioria
das famílias consegue aceitar a morte do seu membro, embora alguns autores refiram que o
luto nunca é totalmente acabado(Mc Goldrick M., 1998), que com o tempo e a cicatrização a
dor se torna menos crua e intensa.
Quando as famílias não fazem adequadamente o luto de suas perdas, elas não conseguem
seguir em frente com as tarefas do viver. Os membros da família podem culpar a si mesmos ou
uns aos outros pela morte; eles podem tentar transformar outras pessoas em substitutas para a
pessoa perdida ou se abster de experimentar novamente a proximidade com os outros. Não é a
morte em si, mas a evitação da experiência pela mistificação, que passa a ser problemática.
Mesmo uma perda traumática pode ser suportada, desde que os membros da família
possam aceitá-la e reestruturar seu relacionamento para seguir em frente com suas vidas.
Quando o luto é bloqueado, diversos processos podem ocorrer:
a)Os relacionamentos se tornam rígidos, com a família se fechando completamente,
demonstrando total incapacidade de se apegar a outros, até como meio de lidar com seus
temores de perdas futuras, negando-se e se indisponibilizando a fazer mudanças após a
morte;
b)O tempo pára para as famílias, seja em sonhos do passado, nas emoções do presente ou
no medo do futuro. Geralmente aqueles que abreviam seu luto, se precipitando
desenfreadamente em outro relacionamento, descobrem que, quando os sonhos cedem
lugar às realidades da nova relação, a dor volta para assombrá-los. Os problemas que as
famílias têm em outras transições evolutivas, como o casamento, a transição para a
paternidade ou a saída dos filhos de casa, muitas vezes refletem essa parada no tempo.
c)Os sentimentos são bloqueados por diversas formas de negação, ou a fuga em atividades
frenéticas, drogas, álcool, fantasias e mitos. Os mitos, segredos e expectativas que se
desenvolvem em torno de uma perda crítica podem ser incorporados nas regras da família
e passados dos pais para os filhos. Algumas famílias deixam de fazer qualquer menção ao
morto, como se assim pudessem banir toda a dor.
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Muitos dos padrões que observamos rotineiramente nas famílias - excesso de ímpeto
nas atividades, casos amorosos, conflitos não resolvidos, alienação, isolamento, medo de
estranhos, divórcios freqüentes, depressão, sobrecarga de trabalho, fuga para novelas ou
programas de esportes na TV - caracterizando comportamentos de dependência compulsiva,
podem refletir a incapacidade de se apegar a qualquer outra pessoa por medo de sofrer mais
perdas.
A construção de mitos para evitar as realidades de uma perda acarreta respostas
delirantes, que unem os membros da família de forma patológica e, ao mesmo tempo, criam
grandes conflitos psicológicos entre eles, uma vez que estas respostas estão ligadas somente ao
delírio, e não à pessoa real. Esses mitos, naturalmente, afetam as crianças que se tornam
substitutas dos mortos, embora elas possam desconhecer totalmente esta conexão - sérios
problemas emocionais decorrem disto, pois essas crianças são criadas como dublês de
fantasmas insepultos do passado (Mc. Goldrick, 1998).
É de grande importância que as famílias possam ser ajudadas, através dos rituais que
favorecem a elaboração do luto, a fazer o reconhecimento comum da realidade da morte a fim
de normalizar a perda; a valorizar as experiências compartilhadas da perda, contextualizando-a
em rituais funerários, por exemplo; a reorganizar o sistema familiar através de tarefas
adaptativas à nova realidade; e a reinvestir sua energia em outros relacionamentos e projetos
de vida. Se as famílias não têm essas possibilidades e sub-ritualizam sua perda, pode-se, em
momento posterior, realizar sua ritualização terapêutica, a fim de que consigam elaborar seu
luto e seguir em frente com suas vidas de forma integrada, fortalecida e livre de mistificações
que impediriam a adaptação das gerações posteriores. Pode-se despertar, assim, nos membros
da família, uma disposição para que se reconciliem com partes de uma experiência de perda
dissociada e desenvolvam a consciência de que muitos problemas manifestos, que
aparentemente não fazem parte do rol dos problemas associados com a morte, são ligados a
um luto não resolvido. Exemplos disto são dificuldades de aprendizagem nas crianças, por
falta de atenção na escola e distanciamento social, suicídios ou tentativas de suicídios,
dificuldades em permitir ou fazer afastamentos da família nas transições para outras fases do
ciclo de vida(casamento, saída dos filhos de casa, etc.).
Assim como a sub-ritualização da morte não possibilita para a família a evolução do
processo normal do luto, a sua super-ritualização também pode inibir a sua evolução,
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aprisionando a energia da família e impedindo seus membros de assumirem novos


compromissos. Por exemplo, a transformação do quarto de um filho em memorial, a
dificuldade de se desfazer de objetos e coisas do morto, visitas repetidas compulsivamente ao
cemitério, etc.
Existem, ainda, as questões de gênero, pois as reações prescritas para os mesmos, pela
cultura, exageram a perturbação tanto de homens como de mulheres. Enquanto as mulheres
são em geral livres para chorar abertamente, explicitando seu luto e sua dor, os homens
geralmente negam, escondem e evitam seu sofrimento, temendo uma perda de controle, e se
refugiam no trabalho, por exemplo. As mulheres geralmente sintetizam a dor e as lágrimas de
toda a família, sendo este padrão de luto desviado - a norma em nossa cultura - o que as leva
ao isolamento, pois quando um membro da família deve fazer sozinho o luto, a dor é muito
pior.
Wortman e Silver (1989) em seus estudos mais recentes a respeito das reações à perda,
concluíram que sabemos muito menos do que pensamos a respeito do que constitui um luto
saudável, normal e do quanto ele é “necessário” ou “apropriado” para resolver uma perda. O
sofrimento é uma questão muito pessoal e não devemos julgar precipitadamente como os
outros fazem seus lutos, se eles deveriam ser mais ou menos expressivos. Cada família e cada
pessoa deve encontrar seus próprios meios (Mc Goldrick, 1998). Seus estudos ainda indicam
que as premissas tradicionais a respeito do luto saudável são, em grande parte, mitos. Suas
pesquisas sugerem uma gama muito mais ampla de reações não patológicas de luto do que as
fases descritas por Kubler-Ross (1969). Famílias diferentes podem reagir de formas diferentes,
dependendo do filtro histórico, cultural e étnico, pois cada cultura tem suas formas de marcar
o luto, e a sua duração também difere grandemente de cultura para cultura. Também diferem a
respeito de expressões públicas em oposição às privadas. Segundo os autores, uma porção
substancial da população tende a não expressar perturbação ou depressão direta, seja a curto
ou em longo prazo, após uma perda, enquanto outros expressam uma grande perturbação. Eles
questionam igualmente a premissa existente de que o luto “normal” deve terminar num prazo
de dois anos e de que alguém que não o tenha feito é, de alguma forma, anormal.
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4. Correlação entre as fases da doença e os vários mecanismos utilizados


durante as fases do morrer

Ross (1969), traz os vários estágios pelos quais passa o doente, desde o diagnóstico até
a morte. Se abordarmos a questão familiar, perceberemos que a morte, como fenômeno na
família, torna-se muito mais complexa, embora ela passe pelos mesmos estágios que o
paciente, ao saber de uma doença grave ou morte. O grau de complexidade se reflete na forma
de enfrentamento que a família faz, porque dependerá da estrutura de cada um dos indivíduos
e da relação que se estabelece entre eles (Kovács, 2002).
O primeiro estágio descrito por Kubler-Ross, Negação e Isolamento, ocorre logo que é
dada a notícia e sofre a influência da forma pela qual é dada. Neste momento é freqüente o
estado de choque e torpor que desorientam a pessoa e a família. Deve-se levar em conta a qual
sistema de relacionamento pertence essas pessoas: ‘aberto’ ou ‘fechado’. O doente e a família
no sistema fechado recebem as informações básicas do médico, complementadas por detalhes
de outras fontes e ampliadas, distorcidas e reinterpretadas em conversas em casa. Isso ocorre
de acordo com o sistema de crenças da família no seu curso multi-geracional e será
influenciado de acordo como ela aprendeu a responder e vivenciar as notícias das doenças
físicas, das mais simples às mais graves, ou mesmo de como ela vivenciou as mortes reais ou
ameaçadas de outros membros da família. Neste estágio, em que a família e a pessoa se
encontram tão visivelmente ameaçadas no seu equilíbrio, a negação é o mecanismo que dá
suporte a um falso equilíbrio temporário para que se passe para o estágio seguinte.
O segundo estágio, descrito Raiva ou Revolta ( Kubler–Ross, 1969), é o sentimento
que ocorre quando a negação não é mais possível diante das evidências e das necessidades de
reestruturação do equilíbrio. Os sentimentos de indignação, revolta e raiva, são expressos
muitas vezes em perguntas do tipo:’Porque eu?’ou ‘Porque para nós?’ Este momento, muito
difícil para a pessoa, para a família e para a equipe de cuidadores – em que o padrão
transacional atuante pode se manifestar, muitas vezes, por agressões e hostilidades – requer
habilidades especiais da equipe, que precisa fazer, não só o acolhimento, como compreender o
que está ocorrendo. Todo o sistema pode, então, contribuir e se retroalimentar com
afastamentos e rejeição ao tratamento formal estabelecido, gerando complicações e
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agravamento para o doente; dificultando, dessa forma, o restabelecimento do equilíbrio


familiar e boicotando a aquisição de padrões de mudanças. Esses sentimentos de raiva podem
estar relacionados à impotência e à falta de possibilidade de controlar a própria vida, no caso
do paciente, e extensamente para a família, de representar a sua falibilidade e impotência para
poder administrar, dentro do seu sistema de expectativas e crenças, o inadministrável. Por
outro lado, as transações da família com a equipe de trabalho, também podem se tornar
reciprocamente hostis, uma vez que a equipe também se depara com seus próprios sentimentos
de impotência.
O terceiro estágio descrito por Kubler-Ross(1969), é a Barganha ou Negociação,
representando estratégias do paciente e da família para tentar acordos que adiem um desfecho
muitas vezes inadiável, com a equipe ou entre si. O objetivo final desta fase é ganhar mais
tempo de vida. As reações são distintas, dependendo se o paciente estiver, neste estágio,
recebendo cuidados curativos ou se ele precisa enfrentar a transição para os cuidados
paliativos. Essa transição está carregada de possibilidades de culpa e vergonha. A família pode
culpar a equipe médica por seu fracasso em proporcionar a cura, particularmente se houverem
sido oferecidos prognósticos otimistas. O paciente e os membros da família podem se culpar
mutuamente ou a si mesmos por terem perdido a batalha contra a doença. Este estágio também
pode representar, segundo Weisman (1972) apud Carvalho ( 2003), o estágio do tratamento e
da cura. Embora 50% dos casos de câncer sejam curáveis se detectados precocemente e
tratados adequadamente, o câncer ainda é percebido como uma doença que leva
inexoravelmente à morte acompanhada de dor e sofrimento intoleráveis. Muitas vezes os
tratamentos são vivenciados como piores do que a própria doença e como uma verdadeira
sentença de morte. Diante disso surge a necessidade de Barganha. A negociação em que tanto
o paciente quanto a família tentam fazer inclui os sentimentos de tristeza, medo, raiva e alívio
que estão presentes em maior ou menor grau, dependendo da fase da doença, dos mecanismos
internos de cada membro e de como o sistema responde diante disso.
O quarto estágio, descrito por Kubler- Ross (1969),é o da Depressão, que surge quando
não há possibilidade de cura, quando o tratamento ativo diminui e ocorre uma maior
preocupação com o alívio dos sintomas. Neste momento o paciente entra em contato efetivo
com sua doença e com suas perdas: do corpo, das finanças, da família, do emprego e do lazer.
Precisamos diferenciar o momento da depressão ainda ligado a uma reação contra a doença e
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esse estágio, que é a elaboração de um luto de perdas que já foram vividas. Diante desse
momento tão difícil para o doente e para a família percebemos um grau de sofrimento agudo
intenso em todo o sistema. O paciente pode ficar distante, quieto e vivenciar seu próprio
processo de enlutamento e morte antecipada que costuma ser o momento mais solitário da
pessoa. Esta se fecha em seu sistema interno, não desejando compartilhar com a família sua
própria morte. Para muitos pacientes não é a morte que lhes causa mais medo, mas outros
problemas mais urgentes, entre os quais o medo da dor, da degeneração, da dependência, o
medo de ficarem sozinhos e abandonados, problemas financeiros e outros. Sua vivência neste
momento vai depender de sua história de vida e desenvolvimento. Se já havia problemas de
comunicação entre a família e o paciente, estes podem se agravar nesta fase, configurando o
que Erikson(1974) apontou como duplo vínculo. São mensagens contraditórias, onde o
conteúdo verbal nem sempre é compatível com as mensagens não verbais, ou com a
linguagem corporal. O paciente já angustiado com o que percebe em si procura confirmação
das suas impressões nas pessoas à sua volta. Sente-se muitas vezes só, incompreendido,
embora rodeado de pessoas. São ocultados, às vezes, fatos como o diagnóstico da doença, o
seu agravamento ou a possibilidade da morte. O paciente muitas vezes percebe, em seus
familiares, mudanças de comportamento que tenta decifrar. Conteúdos verbais podem ser
controlados; entretanto, é impossível controlar todos os movimentos, expressões corporais e
faciais ou mesmo a forma do olhar. Por isso, tanto pacientes como família, nessas situações,
muitas vezes se tornam rígidos, bloqueados e tem sua comunicação superficializada. Embora o
estudo de Kubler-Ross (1969) sugira que numa crise existencial passamos por vários estágios,
Matthews - Simonton (1990) relata que muitos pacientes cancerosos e suas famílias ficam
deprimidos desde a comunicação diagnóstica. Depressão e desespero são sentimentos que
estão presentes quase que em todas as etapas da doença.
O quinto estágio descrito por Kubler-Ross (1969) é o da Aceitação, que surge quando o
paciente e a família começam a se afastar da depressão e do medo, envolvendo-se de forma
ativa no processo de cura, estágio final do processo de enfrentamento do câncer; ou, quando
ela não é mais possível, a conscientização da possibilidade da morte.As pessoas sentem assim,
os efeitos da possível perda e então decidem que já que não viverão para sempre, é tempo de
pensarem seriamente em como utilizar o tempo que lhes resta, e passam a examinar a
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qualidade de suas vidas, divertindo-se mais, quando possível, e concentrando-se mais no


presente ( Mathews-Simonton 1984).
Os estágios pelos quais o paciente passa podem ser os mesmos pelos quais a família
passa, mas nem sempre são coincidentes, além de que suas necessidades são muito diferentes
das do paciente. Podem surgir, em todo o sistema, sentimentos muito ambivalentes como
culpa, impotência, raiva, tristeza e desejos de morte do paciente. Os membros da família
devem realizar o desapego, processar a perda e se esforçar muito para manter a integração
familiar, redistribuindo as funções do membro doente com o paciente ainda vivo, fazendo a
preparação para o luto antecipatório. Quando o processo é muito longo, costumeiramente as
famílias ficam sem energia e precisam ser, com freqüência, ajudadas a manter seu equilíbrio.
Uma vez que a negação da morte é uma característica tão proeminente de nossa
sociedade, não é surpreendente o fato de que tantas disfunções e conflitos girem em torno da
perda, mesmo quando ela não é o problema manifesto. Após uma perda, as famílias devem se
reestruturar sem a pessoa morta, cujos papéis e funções devem ser redistribuídos, deve se
investir em novos relacionamentos e transformar antigas alianças.

5. Reações da Família diante das Perdas Antecipadas

As famílias podem exibir, no momento de elaborar a perda antecipada, padrões


conflituosos e disfuncionais que podem se perpetuar posteriormente.Por exemplo, famílias que
já perderam um membro com câncer de forma precoce e dolorosa, tendem a responder com o
mesmo padrão diante de um novo caso de câncer em outro membro da família.
Tanto o “se” como o “quando” da morte tem um impacto enorme sobre a família.
(Rolland apud Mc Godrick & Walsh 1998). A maioria dos estudos sobre a perda antecipada,
concentrados nas doenças terminais, não abordaram o aspecto “se” e limitaram os aspectos
“quando” para a última fase. No momento do diagnóstico, o câncer é incerto nos dois âmbitos.
A única dúvida da família e do paciente é o grau de incerteza a respeito da cura (“se”) e
quando a perda antecipada vai se tornar proeminente. Por exemplo, quando o câncer de um
membro da família está em remissão, temores intensos cercam uma possível recaída. Cada
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sintoma ambíguo traz apreensão e sentimentos de ameaça para a família. A perda da primeira
remissão muitas vezes destrói as esperanças de cura da família e traz à tona seus piores medos.
A fronteira ambígua entre a remissão e a cura reforça o receio da perda antecipada. Mesmo 20
anos após o tratamento de um câncer um sintoma vago pode reacender imediatamente os
temores da família de recaída e morte. Durante o tratamento, períodos estáveis ou de poucos
sintomas se alternam com períodos de exacerbação, de modo que as questões relacionadas
com a perda antecipada vão e vem no cotidiano da família. Esta sofre com as exigências tanto
da freqüência da transição entre as crises e os períodos calmos, quanto da incerteza de quando
uma recaída fatal pode ocorrer. A doença, pelo seu aspecto regressivo, traz uma forte
preocupação com manifestações corporais tanto na família quanto no paciente (Kovács, 2002).
Os efeitos do câncer variam em termos do equilíbrio entre a incapacitação física e
psicológica esperada. A perda psicológica envolve uma gama de déficits cognitivos que
limitam a participação na vida familiar. Em alguns casos de câncer, a morte psicológica ocorre
muito antes da morte física. Encarar a perda pode destruir o mito familiar de que as doenças
fatais só acontecem com os outros. A perda da sensação de controle pode ser uma experiência
extremamente debilitante para a família, levando a um comportamento frenético ou
imobilizado. É importante ajudar as famílias a restabelecer a crença, mesmo que ilusória, de
que têm algum controle da situação, priorizando tarefas e ações diretas, dando-lhes, por
exemplo, informações sobre a doença e os recursos disponíveis na comunidade para lidar com
ela. Intervenções psico-educacionais com a família que normalizem as emoções relacionadas à
perda ameaçada, informando sobre quais os sintomas significativos e quais os de pouca
importância, podem ajudá-los a distinguir sentimentos normais - e até esperados - nessa fase,
de temores maiores, infundados ou irracionais, diminuindo assim a reatividade.

6. Como lidar com o Câncer

Os cuidados médicos para os doentes de câncer, são, em geral oferecidos em clínicas


especializadas, onde pacientes e famílias que lidam com os mesmos distúrbios podem
desenvolver vínculos significativos até mesmo nas salas de espera, ou em salas de
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quimioterapia. A progressão, reincidência ou a morte de outros pacientes, podem despertar


temores e crises de ansiedade e gerar desequilíbrios no já imenso esforço que a família faz
para conseguir um precário equilíbrio.
A experiência humana de assistir a uma pessoa de quem se gosta sofrer de uma doença
fatal, suscita na família necessidades de compaixão e compreensão. A aceitação dos
sentimentos que emergem no sistema familiar deve ser estimulada pela equipe, favorecendo-
lhes a compreensão de que suas emoções são necessárias e acertadas para que possam realizar
os enfrentamentos requeridos em todas as etapas. Ninguém jamais enfrenta a doença e morte
de uma pessoa querida sem ter de enfrentar seus próprios temores de doença e sua própria
morte. Quando as emoções são dolorosas é importante que se estabeleça uma comunicação
honesta e aberta. O paciente deve ser estimulado a expressar seus sentimentos para a família, e
a coisa mais importante que esta pode oferecer é a vontade de atravessar este período junto
com o paciente, partilhando seus sentimentos sem se sentir na obrigação de modificá-los. Em
muitas famílias pesa a questão do amor e lealdade, na expectativa implícita de todo o grupo,
de que tenham as mesmas reações. Esta expectativa idealizada de que todos devem ter
sentimentos “apropriados”, prejudica o relacionamento, criando uma barreira intransponível à
comunicação, e o conseqüente isolamento nos mundos particulares de cada um num período
de grandes demandas de modificações. A possibilidade de que a família assuma toda a
responsabilidade pela doença aumenta na medida em que ao próprio doente não é possibilitado
o desenvolvimento de sua responsabilidade, de forma que ele passa a ser um agente passivo de
sua própria recuperação, incapaz de usar seus recursos pessoais. Assim, a família deixa de vê-
lo como pessoa responsável, e passa a tratá-lo como criança irresponsável, infantilizando-o, ou
como vítima do câncer, quando poderia estar auxiliando-o a se transformar numa pessoa ativa
e capaz de enfrentar seus problemas, revertendo seus sentimentos de desamparo e
desesperança em forte desejo de viver. Na medida em que tanto o câncer como a morte é
compartilhada pelo sistema todo, a família sai do papel de “salvadora” e dos conflitos
decorrentes do mesmo, pois o paciente se sente potencializado e capacitado a se tratar, ou
mesmo a lidar com sua morte. Assim como a família, dependendo de sua dinâmica pode
assumir o papel de salvadora, o paciente também pode fazê-lo reativamente, na tentativa de
“proteger” sua família. Nos casos em que isso ocorre é freqüente o sentimento de exclusão da
família, e a presença de sentimentos ambivalentes do paciente que os expressa através do
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isolamento que faz dos demais membros, favorecendo a interpretação equivocada da mesma
de que ele não tem confiança em quem tanto o ama. Quando as pessoas são “salvas” dos seus
sentimentos, elas perdem a oportunidade de experimentá-los e resolvê-los, e assim a família
continuará a ter problemas não resolvidos, bem depois de o paciente ter se curado ou morrido.
Diante do aparecimento da doença de um membro da família, esta tende sempre a
recompensá-lo pela doença e não pela saúde, de forma que dispensa muita atenção e cuidados
“salvadores” quando seu doente está fraco e desamparado, e tão logo este passe para uma fase
de recuperação da saúde a família começa a tirar suas recompensas, deixando de oferecer
atenção e solidariedade. Essas atitudes podem resultar em falta de incentivo para o doente
trabalhar pela sua recuperação, já que muitas vezes, pela primeira vez em sua vida está
conseguindo suprir suas necessidades de afeto, de cuidados e carinhos; vantagens secundárias
estas que só são obtidas na presença da doença. A família só consegue recompensar a saúde do
paciente na medida em que todos os seus membros prestam atenção em suas próprias
necessidades emocionais, de forma a possibilitar a satisfação das mesmas.
O auto-sacrifício da família, quando esta deixa de atender a suas próprias necessidades,
gera conseqüências negativas para o estabelecimento e aquisição de padrões de mudança tão
necessários nesta fase, para obtenção do equilíbrio homeostático, além de originar
ressentimentos e raivas e a própria expressão da crença negativa de que seu membro vai
morrer.
É essencial que a forma de abordagem de enfrentamento do câncer utilizada pela
família reforce expectativas de esperança do doente, através da manifestação de sentimentos
que o façam perceber que ela deseja que ele viva. A família tem ainda papel fundamental no
desenvolvimento da convicção do paciente de que o tratamento é eficaz e pode se transformar
num aliado forte e poderoso, na medida em que passa a acreditar na competência da equipe
médica e também a confiar no tratamento proposto.
Quando a comunicação estabelecida no curso da doença é clara e honesta, e não leva
em consideração apenas as necessidades do doente, o desgaste de energia das pessoas da
família é consideravelmente menor, pois ninguém precisa simular que tudo está bem, quando
na realidade não está. O estresse de ter de lidar com doença longa e fatal se reflete em ameaças
à saúde física e mental da família, gerando o aparecimento de sintomas e sinais identificados
nos seus integrantes, que muitas vezes não são reconhecidos como reativos ao câncer do seu
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membro. Podem surgir problemas como abuso de álcool ou drogas, ansiedades, fobias,
compulsões, conflitos ou separações conjugais, depressão ou a incapacidade dos membros da
família de saírem de casa ou de se comprometerem em outros relacionamentos (Mc Goldrick,
1998). Além disso, as crises evolutivas da família podem ser ligadas ao aparecimento de
sintomas em um de seus membros (Hadley et al 1974 apud Mc Goldrick & Walsh 1998).
Estudos epidemiológicos descobriram que a morte de um membro da família aumenta a
vulnerabilidade à doença e à morte prematura dos membros sobreviventes (Osterweis et al,
1984 apud Mc Goldrick & Walsh,1998), em especial para cônjuges viúvos ou pais que
perderam um filho recentemente (Huygen, et al 1989 apud Mc Goldrick& Walsh 1998).
Quando a morte demora a acontecer, tem-se que aprender a reinvestir na vida, cuidar de si,
pensar e aceitar a morte, senão o familiar também morre ao cuidar do paciente. Os relatos de
doença grave no familiar que mais cuida do paciente são muito freqüentes, e na família
também ocorre o processo de luto, embora o paciente ainda não tenha morrido ( Kovács,
2002). A família e seus membros, enquanto sobreviventes, correm o risco de matar suas
individualidades, se a empatia com o paciente for total e durante todo o tempo.
Muitas vezes a família também acha difícil dar todo o suporte adequado e satisfazer os
desejos do paciente, dada a intensidade do relacionamento no momento, ou a características
estruturais próprias. Não há, porém, nenhuma regra que imponha ao paciente receber cuidados
e atenção somente da família próxima, e muitos se beneficiariam se lhes fosse aberta
possibilidade de estabelecer novos laços com pessoas de fora do círculo familiar, que
pudessem, por estarem mais isentas, proporcionar-lhe os cuidados necessários. Cabe à família
também, conseguir lidar com as atitudes do paciente de procurar novas amizades nesse
momento, de forma a não interpretar o fato como um fracasso ou ineficiência de sua parte.
Muitas vezes não se pode esperar que as famílias consigam satisfazer todas as necessidades
emocionais do doente e ainda as suas, e a entrada de novos elementos no sistema passa a ser
altamente saudável e benéfica para todos.
Por outro lado, o crescimento da família e do doente, quer ele fique curado ou não, é
visível quando a comunicação estabelecida durante a doença levou a uma maior intimidade,
resolução de eventuais conflitos e fortalecimento no relacionamento. Outros, ainda,
conseguem identificar melhor os fatores predisponentes ao aparecimento do câncer e se
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esforçam para realizar modificações importantes na orientação que dão às suas vidas de uma
maneira a permitir a funcionalidade de todo o sistema de forma mais eficaz.
O paciente e a família, em todos os estágios da doença, tratamento, cura ou morte,
precisam de compreensão mútua em suas mudanças imprevisíveis de humor, coragem e força
para “viver o momento”.O paciente espera compaixão para suas reações imprevisíveis ao
tratamento, à dor e seu alívio, e a não ser abandonado enquanto estiver vivo. Os membros da
família podem precisar ser tranqüilizados, orientados e informados de que os esforços do
doente para fazer o enfrentamento necessário às condições adversas, ou mesmo para se
distanciar das lutas da vida diária, não são uma rejeição a eles ou uma repreensão por não
terem feito o suficiente. Freqüentemente a família se isola, não sabendo lidar com seu doente,
fazendo uma ruptura com ele, ou o próprio doente se isola não querendo preocupar a família,
causando o distanciamento já referido, tão prejudicial tanto para o acompanhamento de todas
as fases, quanto gerando uma impossibilidade de resolução dos conflitos, num momento tão
propício para tal.
Para muitos pacientes, a decisão de lutar para recuperar a saúde ou aceitar a morte leva
tempo. Esse tipo de decisão naturalmente cria uma ambivalência natural, que pode durar dias,
semanas ou muitos meses. Pode ser muito difícil para a família agüentar esse período de
incerteza, mas é importante que o consiga, para permitir ao paciente sua autonomia, em vez de
tentar controlar seu pensamento.
A idéia de que pensar na morte pode ajudar o paciente a decidir viver talvez pareça
estranha, mas é real. Normalmente, ao examinar a questão da dor, do medo e da incapacidade,
o paciente vê sua ansiedade diminuir bastante. Percebendo que ele está preparado para lidar
com a morte, se for necessário, ele pode adquirir confiança para lutar pela vida e assim se
sente livre para escolher uma das opções. Nesse processo, a família poderá ser de grande ajuda
se respeitar a autonomia do paciente, permitindo que ele sinta que ela não tomará nenhuma
decisão antes dele. A família, assim, deve ficar sempre um passo atrás do paciente.
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7. Conclusão

“Seria demasiado otimismo sugerir que o câncer é uma experiência positiva. Claro que
não é. Mas as pessoas que verdadeiramente o aceitam, acabam usando-o de maneira positiva
para crescer em direção a uma vida melhor” (Matthews- Simonton 1984). A família e o
paciente poderão se beneficiar de uma crise de vida representada pelo aparecimento do câncer
e iminência da morte ou mesmo da morte real, se permitirem que os efeitos conjuntos dos
processos individuais, familiares e sociais promovam a reestruturação de seu equilíbrio e a
aquisição da resiliência. Porém, seja qual for a direção que as relações da família tomem, após
o diagnóstico e uma morte por câncer de um de seus membros ela jamais será a mesma.
(Ribeiro apud Carvalho,2003).
O câncer acaba tornando-se um divisor da existência, para o doente e sua família: há
sempre um antes e um depois da doença, tanto para os sucessos como para os fracassos, tanto
para as transformações positivas que possam ocorrer como para as negativas(Valle apud
Carvalho 2003). E há também os verdadeiros milagres; não mágicas, mas a devota dedicação e
o empenho do doente e de sua família que transformam o câncer em um ponto de mutação nas
suas vidas em vez de um aviso de morte.
Assim, pode-se observar como, bem mais do que o simples aparecimento de uma
doença grave, o câncer representa desde a sua comunicação diagnóstica, escolha do tratamento
e adesão a ele, ou mesmo a morte ou a necessidade de reestruturar a vida pós-câncer, um
grande desafio para o doente e sua família. Também se demonstra a importância de uma
orientação adequada, feita por profissionais que possam ter inter-relacionamento e habilidades,
para privilegiar todas as intervenções num contexto sistêmico, valorizando todas as instâncias:
físicas, emocionais, sociais, culturais, espirituais e éticas, do paciente e da família, com o
propósito de amenizar fases tão difíceis dos semelhantes. E como é necessário que os próprios
profissionais estejam preparados e atentos para as eventuais ressonâncias que o câncer e a
morte podem causar na equipe, dificultando, dessa forma, todo o processo pelo qual o sistema
deve passar.
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8- REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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2. CARTER, Betty; MCGOLDRIK, Mônica As Mudanças no Ciclo de Vida


Familiar. Porto Alegre, Artes Médicas, 1995.

3. CARVALHO, M.M.M.J. Introdução à Psiconcologia. Campinas, Editora Livro


Pleno, 2003.

4. KOVÁCS, Maria Júlia Morte e Desenvolvimento Humano. São Paulo, Casa do


Psicólogo, 2002.

5. KUBLER-ROSS, E. Sobre a Morte e o Morrer. São Paulo, Martins Fontes, 1969.

6. MINUCHIN S. ; NICHOLS, Michael P. A Cura da Família. Porto Alegre, Artes


Médicas,1995

7. MINUCHIN, S. Famílias Funcionamento & Tratamento. Porto Alegre, Artes


Médicas, 1990.

8. PAPP, Peggy O Processo de Mudança. Porto Alegre, Artes Médicas, 1992.

9. SIMONTON- MATTHEWS Stephanie A Familia e a Cura. São Paulo, Summus


Editorial, 1990.

10. SIMONTON, C.; MATTHEWS,S.; CREIGHTON, James L. Com a Vida de Novo.


Summus Editorial, 1987.

11. WALSH, Froma e MCGOLDRIK; Morte na Família: Sobrevivendo às Perdas.


Porto Alegre, Editora Artmed, 1998.

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