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A religião no cenário contemporâneo

A religiosidade é um aspecto que influencia nda formação da


subjetividade dos indivíduos e está presente em cada sociedade, das mais
diversas formas, representando uma fecunda área de estudo da antropologia e
das ciencias da religião. O estudo da experiência religiosa e temas que
envolvem religião possui tem relevância social e política por múltiplas
dimensões. Um dois aspectos é a regulação moral dos indivíduos, como
mostra Weber em “As rejeições religiosas do mundo”. importância social, pois
é um fator de relevância na formação da moral dos indivíduos de uma
sociedade e representa um aspecto essencial da cultura. Sendo assim, A
podemos afirmar que a religiosidade constitui algum um poder de coerção
sobre na vida das pessoas, na medida em que oas coloca sobre a influência de
suas orientações de conduta, constituindo um fato social. Aquilo que assim se
estabelece tem por característica condicionar o comportamento e as formas de
pensar dos indivíduos, possui assim um poder coercitivo (DURKHEIM, 2002).
Isso se reflete pelo modo que temas como aborto, homossexualidade, AIDS, o
uso do preservativo como modo contraceptivo, dentre outros tópicos da vida
social têm sido objeto de controvérsias na vida pública, dividindo a formação da
opinião dos indivíduos.

A religião, com todas as suas variações e especificidades, possui grande


relevância dentro da estrutura social. Pode parecer, se ponderada sem muita
atenção, um aspecto que diz respeito à subjetividade, algo dotado de caráter
individual que tem mais significado no âmbito pessoal. Entretanto, o que
ocorreu no século XX e continua a se desenrolar no nosso século é a influência
da religião para além da escolha individual, permeando a vida social. Esta atua
não apenas como um fator que ajuda na definição da identidade e caráter dos
indivíduos, mas também como uma imagem que carrega a necessidade de
afirmação e aceitação perante a sociedade (GEERTZ, 2001).

Geertz (2001) chama atenção para as mudanças no cenário mundial que


ocorreram no século passado como as duas Grandes Guerras Mundiais, a
Guerra Fria e o declínio do Imperialismo. Essas transformações, que traziam
em seu âmbito disputas de caráter político e econômico, compunham a maior
parte das definições de identidade das nações e, consequentemente, dos
indivíduos que delas faziam parte. Entretanto, com o fim da Guerra Fria, que
possui como marco importante a queda do Muro de Berlim, houve uma
despolarização dos valores que existiam como preponderantes na definição da
conduta, determinações maniqueístas como comunista ou capitalista. Sobre
isso Geertz (2001) afirma:

Ocorre que essa desmontagem do mundo pós-muro de Berlim,


sua dispersão em pedaços e restos, trouxe para o primeiro
plano formas mais particulares e particularistas de
autorepresentação coletiva [...] A proliferação de entidades
políticas autônomas, tão dessemelhantes em sua índole quanto
em sua escala - "um mundo em pedaços" [...] - estimulam
identidades públicas circunscritas, intensamente específicas e
intensamente sentidas, ao mesmo tempo que essas
identidades, por sua vez, fraturam as formas aceitas de ordem
política que tentam contê-las [...]. (GEERTZ, 2001, pg. 157)

Essa nova conjuntura mundial trouxe consigo a oportunidade para o


crescimento da importância de outras formas identitárias como a etnia, idioma
e cultura, recebendo relevância igual a identidade religiosa. Isso representa um
movimento geral que trouxe para a dimensão do público e político aspectos
que antes constituíam componentes da vida privada e subjetiva dos indivíduos,
como as crenças. Novamente utilizando Geertz (2001), é necessário destacar:

A projeção de grupos e lealdades religiosamente definidos em


todos os aspectos da vida coletiva, partindo da família e bairro
para fora, faz parte, portanto, de um movimento geral que é
muito maior do que ela própria: a substituição de um mundo
construído com uns poucos tijolos análogos e mal encaixados,
por um mundo não mais uniformemente nem menos
completamente construído com muitos tijolos menores, mais
diversificados e mais irregulares. (GEERTZ, 2001, pg. 157)

No Brasil, essas mudanças tiveram reflexos observáveis, especialmente


nas últimas décadas. Segundo uma pesquisa realizada pela Fundação Getúlio
Vargas (FGV, 2009), em 1991 de cada 100 jovens entre 15 e 19 anos, apenas
cinco não tinham religião, incluindo-se nesse número os ateus e pessoas que
não seguem nenhuma doutrina religiosa. No ano em que a pesquisa foi feita
(2009), o número de pessoas sem religião aumentou: passou para oito em
cada 100 jovens e um crescimento semelhante e, por vezes, superior pode ser
observado na faixa etária de 20 a 29 anos. É interessante notar que, para efeito
dessa pesquisa quantitativa realizada pela FGV, foi utilizada a categoria "sem
religião", que abrange pessoas com distinções em suas percepções
relacionadas à religiosidade. Embora o ateísmo, o ceticismo, o agnosticismo e
outras definições atribuidas à pessoas sem religião não possam ser
considerados formas de religião, entram nessa temática por representarem
uma forma de pensamento que encontra-se em constante conflito com a
religião.

Além dos dados da FGV, outros que mostram esse crescimento são os
que estão presentes no livro Religiões em movimento: o censo de 2010, que
comenta os resultados do censo elaborado pelo IBGE, relacionando-o com
outras pesquisas realizadas. Segundo esses dados, o grupo de pessoas que
se identificava como sem religião no ano 2000 representava 7,4% e atualmente
esse número corresponde a 8%. Esse aumento está abaixo das expectativas
de especialistas, mas representa 15,3 milhões de pessoas que passaram a se
declarar como sem religião.

Para obter algum entendimento dessa questão é necessário ter o


conhecimento do histórico de vida desses indivíduos, compreender até que
ponto a influência religiosa existe no âmbito familiar e se existe alguma relação
dessa presença com a opção pelo desligamento da religião. É possível
perceber, levando em conta os dados da pesquisa, que o número de indivíduos
sem religião cresce mais expressivamente entre os jovens e desse fato, pode-
se inferir que o momento de ruptura dessas pessoas com a religião ocorre cada
vez mais cedo. Esse rompimento com as doutrinas religiosas que são
ensinadas pela família e a adoção de uma forma de pensamento divergente
tem relação com uma afirmação de identidade. A formação de um novo modo
de pensamento não implica um desligamento total com a doutrina religiosa
familiar, existindo diferentes níveis de rompimento que determinam a forma
individual de definição. Um indivíduo que abandona o catolicismo professado
pela família em favor de uma crença isolada na existência de uma entidade
superior com certeza difere do desligamento de alguém que abandona uma
matriz religiosa como a cristã pela ausência total de crença, como no caso dos
ateus. Isso serve para ilustrar a diferença de posturas existentes dentro da
categoria sem religião a que se faz referência aqui, ainda que seja perceptível
a possibilidade da existência nessa opção de uma maneira de definir-se e
defender-se da pressão que, promovida pelo domínio religioso hegemônico da
sociedade, gera uma certa hostilidade em relação a esses indivíduos.

A escolha desse tema deve-se ao meu interesse no que diz


respeito ao tipo de relação estabelecida entre pessoas que se percebem como
sem religião e os outros segmentos sociais. Inicialmente, minha preocupação
era com aqueles que se denominavam ateus, mas durante o processo de
orientação para elaboração da monografia, minha atenção foi chamada para a
categoria mais neutra dos sem religião, uma vez que essa categoria é a
utilizada pelas pesquisas e representa de forma mais ampla pessoas que
compartilham uma forma de pensamento semelhante.

A entrada no curso de Ciências Sociais da Universidade Federal do


Ceará no ano de 2011, chamou minha atenção para esse tipo de interação que
possui um caráter claramente conflituoso e despertou uma inquietação ainda
maior com relação a essa questão. Durante meu período de graduação,
observei como se davam as relações entre pessoas religiosas e não-religiosas,
notando que mesmo em um espaço propício à debates, como uma
universidade, existe a presença de conflitos entre essas duas formas de
pensamento.

Na sociedade brasileira, de forma mais explícita no campo político dos


últimos anos, as controvérsias geradas pela presença da religião na esfera
pública têm tomado destaque nos meios de comunicação. Exemplo disso são
as declarações do atual deputado federal Marco Feliciano (reeleito no pleito de
2014 com expressiva votação pelo estado de São Paulo), se colocando
claramente contra a sanção da PLC122/2006, projeto de lei que criminaliza a
homofobia. Bem como defende a chamada “bancada evangélica” no
Congresso Nacional, ele afirma que projetos dessa natureza, que objetivam a
legalização do casamento homoafetivo ou aborto, representam a destruição da
família tradicional brasileira e um desrespeito à vida.

A percepção através dos dados de pesquisa sobre o crescimento do


número de jovens sem religião numa sociedade, como no caso da brasileira,
em grande parte formada por pessoas com crenças religiosas, me chamou a
atenção. Esse assunto gera controvérsias não apenas em ambientes
cotidianos, mas também nos espaços de produção do conhecimento como
universidades, onde essa relação de conflito entre concepções de mundo
produz debates sobre as ideologias que atacam ou apoiam pessoas sem
religião, como pude observar. Debates como o exercício ou não da laicidade do
estado brasileiro, além de posicionamentos a favor ou contra polêmicas como
as já citadas em torno da legalização do aborto e do casamento homoafetivo
são comuns entre os estudantes no meio acadêmico, fazendo desse debate
um campo fecundo para investigação.

Os ciclos etários

Atualmente, a situação mostrada pelos dados das pesquisas mostra o


avanço de crenças que vão de encontro à matriz religiosa hegemônica no
Brasil, o cristianismo. A família, antes considerada como um locus de destaque
para reprodução religiosa, não existe mais como formadora por excelência da
crença dos jovens, perdendo constantemente a capacidade de transmiti-la.
Sobre isso Ronaldo de Almeida e Rogério Barbosa (2013) afirmam:

[...] a propagação da religião, de modo geral, dá-se pelo


proselitismo ou por meio dos vínculos de parentesco, isto é, ou
alguém adere ou herda uma religião (ou nenhuma) [...] Frente
às mudanças contemporâneas, pode-se ter como hipótese
inicial que a família tem sido cada vez menos eficaz na
transmissão em relação a décadas atrás [...] (MENEZES;
TEIXEIRA, 2013, pg. 311)

Os autores Regina Novaes e Ronaldo Almeida na discussão dos dados


presentes no censo realizado pelo IBGE em 2010, chamam a atenção para a
descontinuidade da religião entre as gerações. Os autores examinam o que
compreendem como uma 'crise' na transmissão religiosa que se desenrola na
atualidade. Outro ponto que é colocado é a metodologia de obtenção de dados
do censo, que parte apenas de uma pergunta básica: "Qual é a sua religião?"
(ALMEIDA, 2004). O problema com essa abordagem é a limitação que carrega
a pergunta absoluta, pois refere-se a apenas um momento nas vidas dos
indivíduos, não possibilitando a apreensão dos outros momentos da trajetória
religiosa dessas pessoas, ou seja, não se pode identificar os momentos em
que a religiosidade passa por um período de mudança até deixar de se
manifestar, no caso dos jovens sem religião. A técnica O método utilizadoa
pelos autores para obter uma melhor compreensão da trajetória religiosa dos
indivíduos pode ser definidoa dessa forma:

[...] tomaremos como unidade de pesquisa o domicílio, que não


deve ser igualado à família, uma vez que nele encontram-se
formas de coabitação não necessariamente baseadas em
vínculos de parentesco [...] apesar de família e domicílio não se
sobreporem exatamente, os laços familiares são
majoritariamente frequentes nos domicílios brasileiros. E a
despeito de serem familiares ou não, a diversidade religiosa
inflete, mesmo que parcialmente, sobre as relações cotidianas
domiciliares, podendo induzi-las tanto ao conflito como ao
aumento dos afetos entre as pessoas, entre outras
possibilidades. (MENEZES; TEIXEIRA, 2013, p. 318)

O método adotado permite perceber as diferenças religiosas entre pais e


filhos que ainda convivem no mesmo domicílio, dessa forma, compreende uma
faixa etária que corresponde ao intervalo da pré-adolescência até a idade em
que os filhos tendem a sair de casa, entre os 25 e 30 anos. Esses indivíduos
podem, obviamente passar pelo trânsito religioso após a saída de casa, mas
esse não é o foco dessa pesquisa.

Em seu artigo que compõe o livro Religiões em Movimento: O censo de


2010, os autores chamam a atenção para dois fenômenos que têm ocorrido no
Brasil, mostrando o cenário das religiões da década de 1980 até 2010. Esses
dois eixos de mudança religiosa são a queda do catolicismo e o crescimento de
minorias religiosas, como as religiões afrobrasileiras, espíritas kardecistas e
sem religião. Nesses fenômenos, o que é observado é o resultado do
progresso de um cenário marcado historicamente pelo sincretismo e
tradicionalismo. O sincretismo atua de forma a diversificar a doutrina
hegemônica cristã, criando novas doutrinas e isso representa um pluralismo
dentro do cristianismo. Aliado a isso, o crescimento das minorias religiosas
torna o cenário brasileiro muito plural, o que resulta na diminuição do
pertencimento dos indivíduos a apenas uma religião e eventualmente, na
mudança completa para uma doutrina divergente da majoritária no país.

Os domicílios, que são um espaço para a reprodução da religião,


exemplificam as dinâmicas de pluralismo religioso ou desvinculação da religião
de origem. A hipótese é que a família esteja perdendo sua importância na
definição da opção religiosa das pessoas. Segundo os dados do IBGE (2010),
o catolicismo é a religião que mais perde fiéis no Brasil. Aqueles que se
declaram sem religião ou pertencentes a religiões distintas do catolicismo
cresceram em grande quantidade e em 2010 representam 35,5% da
população. Entretanto, vale ressaltar que embora esses não católicos incluam
os sem religião, abrangem também minorias religiosas, como os cultos
afrobrasileiros e espíritas. Ainda que esse crescimento seja claro, destaca-se a
hegemonia do cristianismo. Por outro lado, os números exemplificam a
pluralidade existente no país, ocasionada pelo surgimento de novas doutrinas
cristãs nos últimos anos. Sobre a pluralidade no Brasil, Ronaldo Almeida (2013)
afirma:

A diversidade e mistura são processos que se retroalimentam


na mudança da religião, donde supor que parte da dinâmica
contemporânea ocorre também como uma espécie de
pluralismo sincrético, sobretudo na transição relativa à matriz
cristã (MENEZES; TEIXEIRA, 2013, p. 315)

Os dados do Censo possibilitam discutir as clivagens de geração na


análise das mudanças na paisagem religiosa brasileira. A probabilidade de
permanecer católico é menor nos primeiros ciclos de vida, enquanto que a
adesão a outras religiões aumenta, atingindo seu ápice aos 25 anos de idade
(ALMEIDA, 2010 apud TEIXEIRA; MENEZES, 2013, p. 316). Os autores
destacam que entre os que rompem com a doutrina hegemônica, os sem
religião possuem chances crescentes de se declarar dessa forma entre a idade
de 15 até os 25 anos, mostrando que se desligar da religiosidade é um
fenômeno comum na juventude e início da fase adulta, quando os filhos já
possuem mais condições de estabelecer escolhas divergentes das de seus
pais. Assim, pode-se perceber que os sem religião e as religiões minoritárias se
comportam de maneira inversa ao catolicismo, que é mais procurado por
pessoas que já se encaminham para os ciclos finais de suas vidas.
Merece destaque na análise dos dados a diferenciação de gênero, pois
os números apresentam claramente a predominância religiosa entre as
mulheres. Elas representam maioria em praticamente todas as categorias
utilizadas na pesquisa, com excessão dos sem religião. Esse dado é
interessante para a compreensão da dinâmica domiciliar, uma vez que as
mulheres, por serem mais religiosas que os homens, possuem um papel mais
ativo, ou assim parece, na definição da religião dos filhos. Sobre esse fato, os
autores destacam:

[...] os dados sobre sem-religião mostram também que a maior


concordância dos filhos é mais com as mães do que com os
pais. Donde deduzimos que as mães não somente têm
predominância na definição da religião dos filhos, como é
responsável pela não transmissão do habitus religioso.
(MENEZES; TEIXEIRA, 2013, p. 322)

A análise da presença da religião nos diferentes ciclos de vida torna


possível compreender que o crescimento dos sem religião, além de outras
doutrinas, é uma marca da juventude. A grande variedade de opções
religiosas, além da falta de institucionalização das práticas da religião
hegemônica, são mostradas como alguns dos fatores motivadores da mudança
no cenário religioso brasileiro.

A “crise” da transmissão religiosa

O que se torna claro pela análise dos dados de pesquisas como as


realizadas pelo IBGE e FGV é a mudança do cenário religioso brasileiro. Os
indivíduos tem progressivamente buscado novas formas de identidade
religiosa, sendo essa busca facilitada pela grande variedade de opções
religiosas disponíveis (HERVIEU-LÉGER, 2008).

Danièle Hervieu-Léger argumenta que a transmissão da cultura, de uma


geração para a seguinte, de forma geral, é o que mantém a dinâmica social. Os
jovens da nova geração têm a responsabilidade de dar continuidade à tradição,
mantendo a linha de transmissão. Entretanto, a continuidade não implica em
imutabilidade, pois com o passar das gerações os aspectos culturais são
transmitidos, mas isso ocorre sempre com acréscimo de alguns detalhes que
mudam a cultura original, instaurando dinâmicas de descontinuidade que
colocam as gerações sempre em certa oposição (HERVIEU-LÉGER, 2008).
Com relação a isso, a autora argumenta:

As lacunas que se observam entre o universo cultural das


diferentes gerações não correspondem mais apenas aos
ajustamentos que a inovação e a adaptação aos novos dados
da vida social tornam necessários. Elas representam
verdadeiras rupturas culturais que atingem profundamente a
identidade social, a relação com o mundo e as capacidades de
comunicação dos indivíduos. (HERVIEU-LÉGER, 2008, p. 58)

Com efeito, não existe transmissão sem tensões. Verifica-se uma


intensificação de processos de ruptura quando o assunto é a reprodução da
religião na família e nos domicílios. Hervieu-Léger endossa que doutrinas
religiosas hegemônicas são confrontadas na atualidade com uma multiplicidade
de alternativas religiosas. Essas novas expressões da crença constituem as
dinâmicas da 'religião em movimento', em processos de inovação, ruptura ou
descontinuidades de religiões herdadas. O que se verifica é o aumento do
caráter privativo da escolha em detrimento do social. A possibilidade de
escolher, migrar ou desvincular-se da religião de origem é uma recorrência
sociológica, segundo analistas das transformações da religião no mundo
contemporâneo.

Observando as características da transmissão religiosa familiar, a autora


afirma que as identidades começam a possuir um caráter mais evolutivo do que
determinadas isoladamente pela reprodução de uma estrutura social. "Para
compreender a maneira com que se constituem, hoje, as identidades religiosas,
é igualmente indispensável voltar às abordagens clássicas da transmissão
religiosa" (HERVIEU-LÉGER, 2008). Essa análise possui a função de investigar
a eficiência da transmissão religiosa de acordo com a continuidade ou não da
religião dos pais por parte dos filhos. O modelo social padrão determina que
exista um transmissor ativo que possui o conjunto de ideias que definem a
doutrina e que o passa adiante como uma herança, o que leva, uma vez que
exista uma crise na transmissão religiosa, a imaginar que a responsabilidade
por esse fato seja relacionada à capacidade do desse transmissor. Entretanto,
deve-se atentar para fatores mais abrangentes, que fogem do domínio do
âmbito familiar. Um desses fatores pode ser enxergado no fato de que,
atualmente, toda proposição religiosa é colocada em relação à existência de
uma multiplicidade de opções religiosas.

Deve-se atentar para a existência de uma nova forma de consciência


que favorece a opção religiosa como uma dimensão subjetiva e pessoal em
detrimento da imposição do social. "Na França, 4% dos pais conservam a fé
religiosa entre as qualidades importantes a serem encorajadas nos filhos"
(HERVIEU-LÉGER, 2008). Essa afirmação que compreende o espaço religioso
de um país europeu serve para exemplificar a tendência, que também pode
representar um fator importante a ser pensado no cenário brasileiro. O fato não
significa que os pais não possuam um tipo de crença, mas apenas que não
consideram a religião como algo vital a ser ensinado aos filhos. A crença
individual não possui embutida em suas condições de existência a obrigação
de transmití-la. Isso traz a tona o protagonismo da juventude na escolha da
religião, uma vez que não mais são mais coagidos pela estrutura familiar nessa
opção. Os jovens tem a oportunidade de definir suas identidades na dimensão
religiosa de acordo com seus desejos, mais baseados em suas vivências e
afinidades com determinada doutrina, seja por simpatia com sua ideologia ou
por acreditarem que esta lhes traga mais benefícios ou, ao invés disso, de se
desligarem da religião por esta não representar mais nada de importante em
suas vidas, além de se aliar a isso a ausência de crença. A autora é categórica
ao afirmar:

[...] as identidades religiosas não podem mais ser consideradas


como identidades herdadas, mesmo se admitirmos que a
herança é sempre remanejada. Os indivíduos controem sua
própria identidade sociorreligiosa a partir dos diversos recursos
simbólicos colocados à sua disposição e/ou aos quais eles
podem ter acesso em função das diferentes experiências em
que estão implicados. (HERVIEU-LÉGER, 2008, p. 64).
Hervieu-LegerA autora considera importante para analisar a formação
dos desejos individuais, ressaltar as dinâmicas internas, externas e os fatores
que possuem conexão com o contexto social observado. Para ela, a análise
deve partir, em primeira instância do indivíduo, não das estruturas sociais que o
cercam. De forma a separar os aspectos que interferem na constituição da
identidade religiosa, são definidas quatro dimensões. A primeira é a dimensão
comunitária, que é caracterizada pelo conjunto de demarcações simbólicas que
formam os limites de um grupo e permite identificar quem pertence a esse
grupo, além da postura de aceitação de determinadas obrigações impostas
pela instituição religiosa ao indivíduo, que representa mudanças consideráveis
em sua vida. A segunda dimensão é a da aceitação, que corresponde à
valoração positiva por parte do indivíduo de ideias ligadas à doutrina religiosa
escolhida por ele, é uma dimensão ética sustentada pela relação de aprovação
com a tradição religiosa. A terceira é a dimensão cultural, compreende os
elemento cognitivos e simbólicos que caracterizam determinada tradição
religiosa, sendo essas características um bem comum compartilhado não
apenas por pessoas pertencentes a essa religião. Isso significa que esse tipo
de identificação não implica no cumprimento de obrigações por parte de
indivíduos que se sintam atraídos culturalmente pela doutrina. A quarta
dimensão é emocional, associada a uma experiência afetiva pessoal,
geralmente envolvendo a dimensão coletiva como concretizadora da dinâmica
religiosa. Sobre essas dimensões, Hervieu-Léger afirma:

É possível, então, adiantar a hipótese de que cada uma das


dimensões da identificação pode, na medida em que sei
tornou relativamente autônoma em relação a todas as demais,
tornar-se ela mesma o eixo de uma possível construção ou
reconstrução da identidade religiosa. A experiência emocional,
a necessidade de integração comunitária, o cuidado com a
preservação dos tesouros de uma cultura religiosa, a
mobilização ética: as experiências que operam em cada um
desses registros podem constituir o ponto de partida de uma
elaboração identitária singular [...]

A religião tem como forma de reprodução a manutenção da memória e


tradição, promovendo sua renovação baseada na utilização de um fato
histórico fundador, que é imutável, reinterpretado de acordo com a conjuntura
social em que se desenvolve. Em uma sociedade em que a regra de conduta é
a inovação, a memória é cada vez menos relevante e a consequência é essa
dificuldade da transmissão religiosa. A autora destaca a importância no
percurso da pesquisa sobre as mudanças no cenário religioso manter sempre
em vista que quando "se trabalha com trajetórias, nuncase está lidando com
identidades substantivadas e estabilizadas" (HERVIEU-LÉGER, 2008). Os
processos de formação da subjetividade religiosa de um indivíduo não podem
ser encarados através de uma definição definitiva. Na sociedade moderna, a
religiosidade é caracterizada pelo movimento e é essa característica que deve
ser identificada e estudada.

Cade sua questão de pesquisa aqui no final? Qual é a sua pergunta de partida
mesmo?

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