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05/04/2021 PARA UMA NOSOGRAFIA DO NOSSO SISTEMA DE ENSINO | G@vet@s @bert@s

G@vet@s @bert@s
Eurico de Carvalho é, desde 1990,
professor de Filosofia do Ensino
Secundário, tendo adquirido os graus de
Licenciado (1989), Mestre (2009) e
Doutor (2018) na Faculdade de Letras
da Universidade do Porto. É também
investigador do «Research Group
Aesthetics, Politics and Knowledge» do
Instituto de Filosofia da Universidade do
Porto, no quadro do qual tem
desenvolvido e publicado o seu trabalho
em torno do pensamento de Guy
Debord.

PARA UMA NOSOGRAFIA DO NOSSO SISTEMA DE ENSINO


Publicado em 11 de Março de 2020 por Eurico de Carvalho

Um primeiro passo para a vera reflexão pode ser — simplesmente — a humílima tarefa de ouvir as palavras,
retirando-lhes o pó do hábito que nos cega para o seu batimento cardíaco. Atentemos tão-somente em dois
vocábulos: educação e escola. Haverá melhor lugar do que um espaço filosófico — pergunto eu — para reflectir
sobre o seu significado? Comecemos, pois. Que deve entender‑se por educação? Consultemos a etimologia:
verifica-se a presença de «ducere», que em latim significa «conduzir». Assim sendo, a educação não é senão a
condução do homem. Mas o acto de conduzir implica saber «onde se está» e «para onde se vai». Por outras
palavras: a educação pressupõe um princípio fundamental e uma finalidade última. A sua determinação exige que
se responda à sequente questão:

— Por que razão o homem precisa de ser conduzido?

Isso resulta apenas do facto de ele não surgir enquanto tal, ou seja, enquanto homem. Na realidade, o
homem só se faz homem no meio de outros homens. Sem a condução de outrem, portanto, a qual se cumpre em
nome de um certo ideal, o homem nunca poderia vir a ser o que realmente é: o único ser cuja natureza está na sua
história. É própria do homem a falta original de algo que lhe seja naturalmente próprio. A sua indeterminação
nativa — a sua miséria à nascença — é, pois, o princípio fundamental que justifica a existência da educação, cuja
finalidade última salta à vista: tornar o homem humano. Não o sendo imediatamente, refém inicial
relativamente à humanidade, o homem tem na educação o «medium» da sua humanização, que o orienta para o
destino que é o seu: realizar-se a si próprio. Quer isto dizer, todavia, que há certamente o perigo de que ele
não se torne o homem que é, que é próprio do homem correr o risco não só de não ganhar, mas perder a sua
condição humana. Está a inumanidade atrás de si, com certeza, nessa figura imediata, infante, quase límbica, mas
igualmente à sua frente, porventura liberta pela terrível imaginação de quem não sabe onde está nem para onde
vai.

Agora, auscultemos o coração de um antiquíssimo lexema impoluto, mas que hoje, infaustamente, se tornou
presa da hábil demagogia da alegre tribo internacional dos tecnocratas. Quero dar-vos a ver um signo helénico,
que se tornou, pela via da sua latinização em schola, um termo universal, e cujas ressonâncias civilizacionais
merecem a mais atenta escuta. Afinal, se prestarmos atenção à substância do étimo grego, será nosso o espanto,
quando descobrirmos que o seu significado original aponta para a «ocupação de quem se encontra em descanso».
Em si mesma, é verdade, num tempo que cultiva obsessivamente o trabalho, parece paradoxal a expressão. Qual
poderá ser, de resto, essa actividade de quem permanece em repouso? Como pode estar activo um sujeito que,
aparentemente, nada faz? Avolumam-se as perplexidades, porque vivemos num meio cultural que privilegia falsas
oposições, de que o binómio lazer/labor constitui a súmula insuportável. Para que lhes possamos responder, urge
imolar estereótipos e preconceitos mediáticos. Há todo um espaço mental atravancado pela velha mobília do
«aparelho ideológico do Estado». Temos de o limpar, o que exige, pelo menos, a tremenda audácia cinzenta de um

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05/04/2021 PARA UMA NOSOGRAFIA DO NOSSO SISTEMA DE ENSINO | G@vet@s @bert@s

adversário hercúleo do dispositivo audiovisual de controlo cor-de-rosa das almas. Expulsemos, então, da nossa
casa maior, a do pensamento, a criada de servir do poder! Não sejamos tímidos! Agarre-se a senhora pelo
colarinho da estupidez, dando‑lhe como destino o caixote do lixo! Realmente, para devolver o brilho original do
santuário da cultura, não nos resta senão a longínqua possibilidade de uma ruína do espectáculo. Assim, se
quisermos dar razão à língua natal do «amor ao saber», ter-se-á em mente a escola como «lugar do ócio». Tomá‑la
enquanto tal, neste século absurdo de um capitalismo triunfante, é já, sem dúvida, um acto de desobediência civil,
tanto mais que nós, professores, queremos honrar diariamente essa agência maior da sociedade, pese embora a
série fúnebre de factores que ameaçam a sua integridade funcional: (i) a proletarização da classe docente; (ii) a
desnaturação clientelar da relação pedagógica; (iii) a subversão assistencialista do paradigma escolar; (iv) a
mercantilização dos valores cognitivos; (v) o «Inverno demográfico»; e (vi) a desqualificação das funções
sociais do Estado. Não devemos ver nesta lista, no entanto, uma enumeração exaustiva, da qual, naturalmente,
adviria o rompimento dos estritos limites de um simples artigo.

Ora, pesar a legitimidade das consequências desse mesmo acto de desobediência civil significa a recusa
militante de todo o discurso neoliberal, responsável por esse ominoso incremento de uma política de
mercantilização do sistema de ensino. Mas a escola não é uma fábrica, o que não implica que a actividade ociosa
de quem nela habita se confunda com o exercício da preguiça, esse indigente intervalo entre duas jornadas de
puro embrutecimento do espírito. Pelo contrário, o ócio apela para o que há, na humanidade do homem, de
essencial: a disponibilidade para aprender e pensar. Consequentemente, querer alimentar o negócio — o que nega
o ócio — com base em desnaturações empresariais do universo escolar é próprio de fariseus. Tanto a escola como
a fábrica são máquinas de projectar imagens sobre o mundo. Que a segunda esmague ideologicamente a primeira,
eis o desastroso estandarte dos tempos que nos coube viver. Derrubá-lo é, por certo, não só um imperativo moral,
mas uma exigência estética.

Eurico de Carvalho

In A Vaca Malhada: Revista de Filosofia, n.º 4 (Verão de 2015), pp. 23‑24.

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