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(Far Away)
Peça de Caryl Churchill
Personagens
Joan, uma garota
Harper, sua tia
Todd, um jovem
A Parada (cena 2.5): Cinco é muito pouco. Vinte é melhor do que dez. Cem?
Cena 1
JOAN. Não.
JOAN. Certo.
HARPER. Um lugar novo é sempre estranho. Quando você já tiver passado uma semana aqui vai se
lembrar de hoje a noite e vai ser completamente diferente.
JOAN. Eu já estive em muitos lugares. Já fiquei na casa dos meus amigos. Eu não sinto falta dos meus
pais, se é isso que a senhora está pensando.
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HARPER. Ela dorme na sua cama?
JOAN. Não, porque eu espanto. Mas ela entra se a porta não estiver bem fechada. A gente pensa que
fechou mas se não tiver travado, de noite ela empurra e abre.
JOAN. Agora.
HARPER. Por isso é que você está com frio. Aqui é quente de dia, mas é frio à noite.
HARPER. Imagino mesmo que não. Como foi que você saiu? Eu não ouvi o barulho da porta.
HARPER. Quando as pessoas vão dormir têm que ficar na cama. Você sai pela janela na sua casa?
HARPER. Bom, por hoje já chega de aventura. Agora você vai dormir. Vá lá para cima. Está quase
dormindo em pé.
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JOAN. Um grito.
HARPER. Então era uma coruja. Tem todo tipo de pássaro aqui, talvez você veja até um papa-figo
dourado. Tem gente que vem aqui só para ver os pássaros. Às vezes a gente faz chá ou café ou vende
garrafinha d‟água porque não tem bar aqui e as pessoas não pensam que vão ficar com sede. Você vai
ver de manhã como o lugar é bonito.
HARPER. Parece uma pessoa gritando quando a gente escuta uma coruja.
HARPER. Coitada. Imagino o medo que você teve pensando que tinha ouvido alguém gritar. Você
devia ter vindo direto falar comigo.
HARPER. Está bem. O que é que você acha que viu no escuro?
HARPER. É, você pode ter visto. Ele gosta de tomar ar. Mas ele não estava gritando, eu espero.
JOAN. Não.
HARPER. Tudo bem, então. Você falou com ele? Você devia estar com medo de ele lhe perguntar o
que você estava fazendo fora da cama tão tarde.
JOAN. Não.
HARPER. Ele vai tomar um susto, não vai? Vai morrer de rir quando souber que você estava na
árvore. Vai ficar com raiva, mas não é nada sério, não. Ele vai achar que é uma boa piada, o tipo de
coisa que ele fazia quando era garoto. Bom, agora, cama. Eu também já vou.
HARPER. Ele devia estar colocando um saco bem grande no galpão. Ele trabalha tarde da noite.
JOAN. Eu não tenho certeza se era uma mulher, podia ser um rapaz.
HARPER. Bom, eu vou ter que lhe dizer que depois que a gente está casada a tanto tempo quanto eu,
tem coisas que a gente tem que aceitar, é normal, não tem nada demais, eram amigos do seu tio que
estavam dando uma festinha.
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JOAN. Era uma festa?
JOAN. Quando eu coloquei meu ouvido no lado da carreta eu ouvi gente chorando lá dentro.
HARPER. E como foi que você conseguiu fazer isso de cima da árvore?
JOAN. Eu desci da árvore. Eu fui para a carreta depois que olhei pela janela do galpão.
HARPER. Tem algumas coisas que talvez não sejam da sua conta quando você está de visita na casa
de outras pessoas.
JOAN. Se era uma festa, por que é que tinha tanto sangue?
HARPER. Onde?
JOAN. No chão.
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JOAN. Que horrível. A senhora deve estar muito triste. Fazia tempo que a senhora tinha esse
cachorro?
HARPER. Não, ele ainda era novo, ele fugia, nunca era obediente, a carreta estava vindo de ré.
HARPER. Relâmpago.
HARPER. Como foi que você conseguiu ver que tinha criança?
JOAN. Tinha uma luz acesa. Foi por isso que eu consegui ver o sangue no galpão. Deu para eu ver o
rosto deles. Tinha uns com sangue.
JOAN. Sei.
JOAN. Desculpa.
HARPER. É uma coisa que você não deve nunca comentar. Porque se você comentar pode colocar
em perigo a vida das pessoas.
JOAN. A sua?
HARPER. Claro que não é a minha, você está louca? Eu vou te contar o que está acontecendo. Seu tio
está ajudando aquelas pessoas. Está ajudando elas a escapar. Está dando abrigo a elas. Tinha umas que
ainda estavam na carreta, por isso é que estavam chorando. Seu tio vai colocar elas todas no galpão e
aí vai ficar tudo bem.
HARPER. Isso foi antes. Foi porque elas estavam sendo atacadas pelas pessoas das quais seu tio está
salvando.
HARPER. Uma delas se acidentou gravemente e seu tio ajudou a fazer os curativos.
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JOAN. Ele está ajudando.
HARPER. Não. Eu estou lhe confiando a verdade. Você nunca deve falar sobre isso ou vai colocar a
vida do seu tio em perigo e a minha e mesmo a sua. Você não pode contar isso nem para seus pais.
JOAN. Por que a senhora quis que eu ficasse se tinha esse segredo?
HARPER. A carreta devia ter vindo ontem. Isso não vai acontecer de novo enquanto você estiver
aqui.
JOAN. Mas agora já pode acontecer porque eu sei. Vocês não têm que parar por minha causa. Eu
posso ajudar o tio no galpão e tomar conta deles.
HARPER. Não. Ele tem que fazer isso só. Mas obrigada por se oferecer, isso foi muito gentil. Mas
depois de tanta aventura você acha que já pode ir para a cama?
JOAN. Estava batendo num homem com uma vara. Eu acho que a vara era de metal. Ele bateu numa
criança.
HARPER. Uma das pessoas da carreta era um traidor. Não era um deles de verdade, estava fingindo,
ia trair os outros, eles descobriram e contaram a seu tio. Aí ele atacou seu tio, atacou os outros, seu tio
teve que lutar com ele.
HARPER. Devia ser o filho do traidor. Ou às vezes tem crianças más que traem até os pais.
HARPER. Para onde eles estão escapando. Você não vai querer guardar mais um segredo.
HARPER. Claro. Imagino porque você não conseguia dormir. Que coisa mais chata de se ver. Mas
agora você entende, não é tão mal assim. Você é parte de um grande movimento para fazer as coisas
melhores. Pode ficar orgulhosa disso. Você pode olhar para as estrelas e ver que aqui estamos no
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nosso pedacinho do mundo e que estou do lado das pessoas que estão fazendo a coisa certa e sua alma
vai crescer céu afora.
JOAN. Ajudo
1. Joan e Todd. estão sentados numa mesa de trabalho. Cada um está começando a fazer um chapéu.
JOAN. Eu vou ter cor. Só tô começando com o preto pra fazer contraste com a cor.
TODD. Semana passada eu fiz um que era uma pintura abstrata da rua. Azul pros ônibus, amarelos
pros prédios, verdes pra folhas, cinza pro céu. Ninguém sacou, mas eu sabia o que era. É um dos
poucos prazeres que se tem por aqui.
JOAN. Meu chapéu de formatura foi uma girafa de um metro e meia de altura.
TODD. Você não vai ter tempo de fazer uma coisa dessas em uma semana.
JOAN. Eu sei.
TODD. Antes a gente tinha duas semanas antes de uma parada, aí eles diminuíram pra uma e agora já
tão falando em cortar um dia.
TODD. A gente teria é um dia a menos de pagamento. A gente não ia conseguir fazer chapéus tão
bons.
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JOAN. Eu acabei de começar.
TODD. Você vai descobrir que tem um monte de coisa errada com esse lugar.
TODD. Tem, mas a gente não vai lá. Eu vou te mostrar onde ir.
2. Dia seguinte. Eles estão trabalhando em chapéus, que agora estão decorados com muito mais
brilho, isto é, aqueles nos quais eles estavam trabalhando foram trocados por outros mais perto de
estarem prontos.
TODD. Eu fico acordado todo dia até as quatro da manhã assistindo os julgamentos e bebendo
pernod.
JOAN. Tem?
TODD. Minha vez. Tem alguma coisa errada na forma como a gente consegue os contratos.
TODD. E se nós não merecermos? E se o nosso trabalho não for de verdade o melhor?
TODD. Vou falar por exemplo do cunhado de uma certa pessoa. Onde acha que ele trabalha?
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JOAN. Onde ele trabalha?
3. Dia seguinte. Eles estão trabalhando nos chapéus, que estão ficando muito grandes e
extravagantes.
TODD. Você não deve ter percebido quando todo mundo odiava eles.
JOAN. É só que, se você volta pra esse assunto o tempo todo, eu não sei por quê você não faz alguma
coisa.
JOAN. A diretoria é corrupta – você me disse. A gente é muito mal pago – você me disse.
TODD. Eu percebi quando você ficou olhando pro chapéu daquele menino no mercado. Espero que
você tenha contado pra ele que aquilo era uma cópia.
TODD. Eu sou a única pessoa nesse lugar que tem algum princípio, não venha me dizer que eu tenho
que fazer alguma coisa. Eu passo meus dias matutando o que fazer.
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JOAN. Então alguma hora você vai aparecer com alguma coisa.
4. Dia seguinte. Eles estão trabalhando nos chapéus, que agora estão enormes e ridículos.
JOAN. Gosta?
TODD. Gosto.
TODD. Você não tem que dizer isso. Não é um dos meus melhores.
TODD. Já tem seis anos que eu faço paradas. Portanto eu sou uma mão de obra antiga e valiosa.
Então, quando eu vou e falo com uma determinada pessoa, ela deveria prestar atenção.
TODD. Posso.
TODD. Primeiro eu vou falar sobre o dinheiro. Então eu vou só falar assim de passagem no cunhado.
Eu tenho um amigo que é jornalista.
TODD. Eu posso deixar implícito, sem ter que entregar o jornalista. É melhor se ele não puder fazer
uma ligação entre o jornalista e eu.
TODD. Depende de quanto ele suspeitar. Só tem uma coisa se eu perder esse emprego.
JOAN. O que é?
JOAN. Já?
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5. Dia seguinte. Uma procissão de prisioneiros esfarrapados, espancados e acorrentados, cada um
com um chapéu, a caminho da execução. Os chapéus são ainda maiores e absurdos que os da cena
anterior.
TODD. Não mas você vai construir um belo conjunto de obras enquanto estiver aqui.
TODD. Não. Eu acho que esse é o prazer da coisa. Os chapéus são efêmeros. É como uma metáfora
de alguma outra coisa.
TODD. Bom , é a vida, é isso aí. Dos quase trezentos chapéus que eu já fiz aqui, eu só tive três
premiados que foram pro museu. Mas isso nunca me importou. Você cria beleza e ela desaparece. Eu
adoro isso.
TODD. O quê?
JOAN. Você me faz pensar umas coisas diferentes. Que nem ,eu nunca ia pensar em como esse lugar
é dirigido e agora eu vejo como isso é importante.
TODD. Eu acho que eu consegui enfatizar pra uma certa pessoa que eu estava falando de um ponto de
vista moralmente elevado.
JOAN. Então, me conta outra vez exatamente o que foi que ele disse no final.
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TODD. Pode só querer dizer que ele vai pensar num maneira de se livrar de mim.
JOAN. Ainda tem o jornalista. Se ele pesquisar mais um pouco ele pode expor toda a base financeira
corrupta da indústria chapeleira, não só esse lugar. Eu aposto que toda a indústria é meio suspeita.
Cena 3
HARPER. Ontem eu tava lá fora, na beira da floresta quando veio uma sombra enorme e era uma
nuvem de borboletas, e elas desceram ali na minha frente e as árvores e as moitas ficaram vermelhas
por causa delas. Duas delas pousaram no meu braço. Eu entrei em pânico. Uma delas entrou no meu
cabelo. Eu dei um jeito de esmagar elas.
HARPER. Elas podem cobrir toda sua cara. Os romanos costumavam cometer suicídio com uma
folha de ouro , só colocavam na garganta e ela cobria a traquéia, eu sempre penso nisso, com as
borboletas.
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TODD. Eu estava passando por um pomar, e tinha uns cavalos lá, parados debaixo das árvores, e de
repente umas vespas saíram das ameixeiras e atacaram. Os cavalos saíram galopando com suas
cabeças feitas de vespas. Eu queria que ela acordasse.
HARPER. Você não pode simplesmente sair andando no meio de uma guerra.
TODD. Eu nunca gostei de gatos. Eles fedem, arranham, eles só gostam de você por que você dá
comida pra eles, eles mordem. Uma vez eu tive um gato que vinha assim de repente e arrancava um
pedaço de você com a boca.
TODD. Aonde?
TODD. Mas nós não estamos exatamente contra os Franceses. Não é como se eles fossem os
Marroquinos e as formigas.
TODD. Não é como se eles fossem os engenheiros, os cozinheiros, as crianças abaixo de cinco anos
de idade, os músicos.
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TODD. Açougueiros tailandeses.
TODD. Não os dentistas letões fizeram um bom trabalho em Cuba. Eles têm uma casa nas cercanias
de Havana.
HARPER. Mas a Letônia tem mandado porcos pra Suécia. Os dentistas têm ligações com a
odontologia internacional e é aí que está a lealdade deles, com os dentistas em Dar-es-Salaam.
HARPER. Você tentaria justificar o massacre de Dar-es- Salam? Ela veio pra cá por que você está de
licença e se alguém descobre, eu é que vou ser responsabilizada.
TODD. É só até amanhã. Eu vou acordá-la. Vou dar mais uns minutos pra ela.
TODD. Sim, mas crocodilos, o jeito como eles cuidam dos bebês crocodilos e baixam eles na água
com as bocas.
HARPER. Você não acha que todos ajudam suas próprias crianças?
TODD. Eu só estou dizendo que eu não ia achar ruim se os crocodilos `tivessem do nosso lado. Você
sabe, eles são incontroláveis.
HARPER. Crododilos são maus e é sempre certo ser contra crododilos. Sua pele, seus dentes, o cheiro
de carne morta que vem da suas bocas. Crocodilos esperam até as zebras estarem atravessando o rio e
mordem as mais fracas com suas mandíbulas e as arrastam. Crocodilos invadem cidadezinhas de noite
e arrancam crianças de suas camas. Crocodilos comem seus inimigos bem devagar, arrancando com os
dentes primeiro os pés, depois até os joelhos, depois os órgãos genitais,, ou se estão com pressa vão
pela cidade arrancando cabeças. Um crocodilo carrega uma dúzia de cabeças de volta pro rio, onde
elas ficam boiando, como troféus, até apodrecerem.
HARPER. Patos selvagens não são bons pássaros d‟água. Eles cometem estupros, e eles estão do lado
dos elefantes e dos Coreanos. Mas crocodilos estão sempre do lado errado.
TODD. Você acha que eu devo acorda-la ou deixar ela dormir? A gente não vai ter muito tempo junto.
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TODD. Eu penso o que todos nós pensamos.
HARPER. Por que eles invadem os parques e descem as montanhas como se fossem tempestades e
aterrorizam os shopping centers. Se eles fogem por que você atira neles, eles vão pra cima de outra
pessoa e a esmagam com suas patinhas reluzentes. Os menorzinhos se metem debaixo dos pés das
pessoas e jogam elas escada abaixo, os adultos mais jovens se jogam contra as vitrines.
HARPER. … e os mais velhos, você sabe como a galhada deles pode ser pesada e seus dentes afiados
quando se jogam contra adolescentes andando na rua.
HARPER. Eu sempre confiei em elefantes até que eles foram pra cima dos holandeses. Eu sempre
confiei em elefantes.
TODD. Eu atirei em gado e crianças na Etiópia. Eu joguei gás em cima de tropas mistas de espanhóis,
programadores de computação e cachorros. Eu despedacei passarinhos com as minhas próprias mãos.
Eu gosto de fazer isso só com as mãos, quando minhas mãos ficam cheias de sangue e penas, me dá
um barato, eu poderia passar o dia todo fazendo aquilo, é melhor que sexo. Então não venha insinuar
que eu não sou de confiança.
TODD. E eu sei que nem tudo é excitante. Já fiz muito trabalho chato. Já trabalhei em abatedouros
dando choque em porcos e músicos e no fim do dia as costas doem e tudo que dá pra ver, quando se
fecha os olhos, é gente pendurada de cabeça pra baixo, presa pelos pés.
HARPER. Se um cervo entrasse no jardim, você não ia dar comida pra ele?
HARPER. Eu não entendo isso já que os cervos estão do nosso lado. Já faz três semanas.
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TODD. Eu não sabia. Foi você quem disse.
HARPER. Sua bondade natural veio à tona. Dá pra ver naqueles suaves olhos castanhos.
HARPER. Você não pode ficar aqui, eles vêm atrás de você. O que é que você vai dizer quando
voltar, que fugiu pra passar um dia com seu marido? Todo mundo tem alguém que ama, e que gostaria
de ver, ou pelo menos alguém que ele prefere ver do que ficar deitado num buraco, esperando ser
comido pelas formigas. Você pretende voltar? Ou então é melhor me dar um tiro já. Alguém te viu
sair? „Cê veio por que caminho? Te seguiram? Tem águias marinhas por aqui que devem ter te visto
chegar. E você tá arriscando tua vida por uma coisa que você nem conhece direito, por que esse aí tá
dizendo coisas que não são corretas. Você não se importa? Talvez você mesma não saiba mais
distinguir o certo do errado. Que é que eu mesma sei sobre você depois de dois anos? Eu queria estar
feliz de te ver, mas como é que eu posso?
JOAN. É claro que os pássaros me viram , todo mundo me viu chegando, mas ninguém sabe por quê.
Eu poderia estar numa missão. Todo mundo vai pra cima e pra baixo e ninguém sabe o por quê, e a
verdade é que eu matei dois gatos e uma criança com menos de cinco anos então não é tão diferente de
uma missão, e eu não vejo por quê eu não posso tirar um dia e depois voltar, depois disso eu vou até o
fim. O que eu tinha mais medo não era dos pássaros, era do mau tempo, o mau tempo por aqui tá do
lado dos japoneses. Tinha tempestades por todas as montanhas, passei por cidades que eu nunca tinha
visto antes . Os ratos tão sangrando pela boca e pelos ouvidos, o que é bom, e a moças nas margens da
estrada também . Foi muito cansativo por que todo mundo está sendo recrutado, tinha uma pilha de
corpos e se você parasse pra descobrir, um tinha sido morto com café, outro morto com alfinetes,
outros mortos por heroína, petróleo, serra elétrica, laquê, alvejante, dedaleiras; o cheiro de fumaça, nos
lugares onde a gente queimava a relva que já não ia servir. Os Bolivianos estão trabalhando com a
gravidade, mas tá sendo feito em segredo pra não causar alarme. Mas nós já estamos bem adiantados
com o ruído e há milhares de pessoas mortas com luz em Madagascar. Quem é que vai recrutar o
silêncio e a escuridão? É isso que eu fico me perguntado durante a noite. No terceiro dia eu já não
podia andar, mas eu desci pro rio. Havia um campo de soldados chilenos mais acima, mas eles não
tinham me visto e catorze vacas malhadas mais pra baixo da correnteza bebendo, então eu sabia que ia
ter de atravessar. Mas eu não sabia de que lado o rio estava, ele podia me ajudar a nadar ou podia me
afogar. No meio, a correnteza ia muito mais rápido, a água estava marrom, eu não sabia se aquilo
queria dizer alguma coisa. Eu fiquei ali na margem muito tempo. Mas eu sabia que era a única maneira
de eu chegar aqui, então por fim eu botei um pé no rio. Estava gelado, mas até ali era só isso. Quando
você acabou de entrar, você não sabe o que vai acontecer. Seja como for, a água lambe em volta dos
seus tornozelos.
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