Antropologia Digital

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DOSSIÊ

Daniel Heather
Miller A. Horst

O Digital e o Humano:
prospecto para uma Antropologia Digital
RESUMO
O artigo busca entender as tarefas de uma Antropologia
Digital a partir de um confronto direto entre o humano e
o digital. Então, constrói seis princípios centrais: 1) o digi-
tal e a dialética; 2) a cultura e o princípio da falsa autenti-
cidade; 3) transcendendo o método por meio do princípio
holístico; 4) a questão da “voz” e o princípio do relativis-
mo; 5) Ambivalência e o princípio de abertura e fecha-
mento; 6) normatividade e o princípio da materialidade. Nesse artigo, construímos seis princípios que
Palavras-chave: Digital; Humano; Antropologia Digital; acreditamos constituir a chave para questões e preo-
cultura material cupações da Antropologia Digital como subdiscipli-
na. O primeiro princípio é de que o digital intensifica
a natureza dialética da cultura. O termo digital será 91
ABSTRACT definido como tudo que pode, fundamentalmente,
This article seeks to understand the tasks of a Digital An- ser reduzido a código binário, mas produz um apro-
thropology from a direct confrontation between the hu-
man and the digital. Then, seeks to understandsix core fundamento na proliferação das diferenças e parti-
principles: 1) the digital and the dialectic; 2) culture and cularidades. A dialética refere-se ao relacionamento
the principle of false au-thenticity; 3) transcending the entre este crescimento em universalidade e particu-
method by holistic principle; 4) the issue of “voice” and
the principle of relativism; 5) Ambivalence and the prin- larida-de e as conexões intrínsecas entre seus efeitos
ciple of opening and closing; 6) normativity and the prin- positivos e negativos. Nosso segundo princípio suge-
ciple of materiality. re que a humanidade não está nem um tico1 mais
Keywords: Digital; human; Digital Anthropology; mate- mediada pela ascensão do digital.
rial culture
Ao contrário, sugerimos que a Antropologia Di-
DANIEL MILLER é Professor de Cultura Mate- gital progredirá ao ponto de que o digital permitir-
rial no Departamento de Antropologia da University -nos-á entender e expor a natureza fechada da cul-
College London. Autor de livros como “Trecos, Tro- tura analógica ou da vida pré-digital e as suas falhas
ços e Coisas”. quando caímos vítimas de um discurso mais amplo
HEATHER A. HORST é Diretora do Centro de e romântico que pressupõe uma maior autenticida-
Pesquisa em Etnografia Digital na Escola de Mídia e de ou realidade no pré-digital. O compromisso com
Comunicação na RMIT Uni-versity, em Melbourne, o holismo, a fundação das perspectivas antropoló-
Austrália. gicas sobre a humanidade, representa um terceiro
* Versão do capítulo The Digital and the Human: a princípio. Enquanto algumas disciplinas priorizam
Prospectus for Digital Anthropology, do livro Digi- coletivos, mentes, indivíduos e outros fragmentos
tal Anthropology, 2012, organizado por Heather A.
1 Nota do tradutor. No original a palavra utilizada é iota.
Horst e Daniel Miller, utilizado com permissão da
“Iota” corresponde à nona letra do alfabeto grego, mas, em
Blo-omsbury Academic, an imprint of Bloomsbury inglês, também significa uma quantidade infinitesimal-
Publishing Plc. mente pequena. Como não existe esse sentido da palavra
TRADUÇÃO: Danilo Pedrini. em português, preferiu-se usar uma expressão.

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da vida, antropólogos focam-se na vida como é vi- previamente, eram tecnologias ou conteúdos discre-
vida e em todos os (confusos) fatores relevantes que pantes. Usaremos esta definição básica, mas estamos
a acompanham. Abordagens antropológicas com cientes de que o termo digital foi associado a mui-
enfoque etnográfico sobre o mundo se constituem tos outros desenvolvimentos. Por exemplo, teoria de
dentro de um enquadramento particular, mas, há sistemas e cibernética de Norbert Wiener (Turner,
o impacto mais amplo do mundo, transcendendo 2006; Wiener, 1948) desenvolvidos por meio de ob-
aquele enquadramento específico. O quarto princí- servações de mecanismos auto-reguladores em orga-
pio reafirma a importância do relativismo cultural e nismos vivos que em nada relacionam-se com códi-
a natureza global de nosso encontro com o digital, go binário, mas podem ser aplicados à engenharia.
negando premissas de que o digital está, necessaria- Também reconhecemos que o uso do termo digital
mente, homogeneizando e também dando voz e visi- em discurso coloquial é claramente mais amplo que
bilidade àqueles que foram jogados às periferias por nosso uso específico; sugerimos que possuir uma de-
modernistas e perspectivas similares. O quinto prin- finição não ambígua tem benefícios heurísticos que
cípio está preocupado com a ambiguidade essencial se tornarão evidentes abaixo.
da cultura digital considerando-se o seu aumento de Uma vantagem em definir o digital como binário é
abertura e fechamento; ambiguidade que emerge em que esta definição também nos ajuda a identificar um
assuntos que variam desde políticas e privacidade à possível precedente histórico. Se o digital é definido
autenticidade da ambivalência. como nossa habilidade de reduzir tanto do mundo à
Nosso princípio final reconhece a materialidade comunalidade do binário, um sistema de base 2, en-
de mundos digitais, que não são nem mais nem me- tão podemos também refletir sobre a habilidade hu-
nos materiais do que aqueles que os precederam. As mana de reduzir muito do mundo à base 10, a funda-
perspectivas teóricas sobre cultura material mostra- ção decimal para os sistemas do dinheiro moderno.
ram como a materialidade é, também, o mecanismo Há um debate prévio e já estabelecido na Antropolo-
por trás de nossas observações finais; também nossas gia sobre as consequências do dinheiro para a huma-
justificativas primárias para abordagem antropológi- nidade que podem nos ajudar a conceituar as conse-
92 ca. Isso diz respeito à capacidade incrível da huma- quências do digital. Assim como o digital, o dinheiro
nidade de restabelecer-se normativamente tão rápi- representou uma nova fase na abstração humana
do quanto as tecnologias digitais criam condições onde, pela primeira vez, praticamente qualquer coi-
de mudanças. Argumentaremos que é isso que nos sa poderia ser reduzida a um elemento comum. Essa
leva ao normativo de tentar entender o impacto do redução de qualidade à quantidade foi, por sua vez,
digital na ausência de uma antropologia inviável. O fundação para uma explosão de coisas diferenciadas,
digital, assim como toda a cultura material, é mais especialmente a grande expansão da commoditização
do que um substrato; está constituindo-se como par- ligada à industrialização. Em ambos os casos, quanto
te do que nos faz humanos. Este é o primeiro ponto mais reduzimos para o mesmo, mais nós podemos
do emergir de uma Antropologia Digital. Como um criar diferenças. Isso é o que faz do dinheiro o melhor
subcampo mais genérico é a resoluta oposição a todas precedente para o entendimento da cultura digital e
as abordagens que implicam que tornar-se digital nos nos leva ao primeiro princípio da dialética.
tornou menos humanos, menos autênticos ou mais Pensemos de maneira dialética, como desenvolvi-
me-diados. Não apenas continuamos humanos den- da por Hegel, teorizando essa relação entre o cresci-
tro do mundo digital, o digital também provê muitas mento simultâneo do universal e do particular como
novas oportunidades para a Antropologia nos ajudar dependentes um do outro ao contrário de opostos
a entender o que sig-nifica ser humano. um ao outro. Este é o caso tanto com o dinheiro
quanto com o digital. A partir dos argumentos ori-
DEFININDO O DIGITAL POR MEIO DA DIALÉTICA ginais de Marx e Simmel com relação ao capitalismo
e considerando a Escola de Frankfurt, entre outros, o
Ao invés de uma distinção geral entre o digital e dinheiro ameaça a humanidade tanto como abstra-
o analógico, definimos o digital como tudo que foi ção universalizada quanto como uma particularida-
desenvolvido em, ou pode ser reduzido para, código de diferenciada.
binário – bits consistentes de zeros (0s) e uns (1s). Keith Hart (2000, 2005, 2007) foi o primeiro a su-
O desenvolvimento de código binário simplificou gerir que o dinheiro poderia ser um útil precedente
radicalmente a informação e a comunicação crian- ao digital porque o dinheiro provê a base para uma
do novas possibilidades de convergência entre o que, resposta antropo-lógica específica aos desafios que o

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digital impõe a nossa humanidade. Dinheiro sem-pre Se Hart argumentou que nossa resposta deveria
foi virtual a um grau que estende as possibilidades de ser atacar o dinheiro em sua fonte, uma alternativa
abstração. A troca tornou-se mais distante da tran- é apresentada em Material Culture and Mass Con-
sação face a face e focada em equivalência, cálculo e sumption (Miller 1987). Miller sugere que as pessoas
o quantitativo em oposição ao humano e consequ- lutem contra este sentimento de alienação e superfi-
ências sociais. Hart reconheceu que tecnologias digi- -cialidade, não ao ressocializar o dinheiro nos modos
tais alinham com essas propriedades virtuais; de fato, descritos por Zelizer, mas por meio do consumo de
elas fazem o dinheiro em si ainda mais abstrato, mais mercadorias em suas especificidades. O ato rotineiro
desterritorializado, mais barato, mais eficiente e pró- de comprar, no qual designamos a maioria dos bens
ximo da nature-za de informação ou comunicação. como não “nós” antes de encontrarmos aquele que
Hart argumentou previamente de que, se o dinhei- compraremos é (em pequena escala) uma tentativa
ro era em si responsável por es-tes efeitos, então a de reafirmar nossa especificidade cultural. Usamos
melhor resposta da humanidade era atacar esse pro- bens como posses para tentar tornar o alienável de
blema na fonte. Ele viu um potencial para liberação volta em não-alienável. Geralmente isto falha, mas
humana em vários programas que reuniam dinheiro há muitas maneiras em que o consumo doméstico de
com relações sociais, como em programas de troca e rotina se usa de mercadorias para facilitar relações
comércio locais (Hart 2000: 280-7). Para Hart, o di- significativas entre as pessoas (Miller 2007).
gital não só exacerba os problemas do dinheiro, mas Se concordarmos em considerar o dinheiro como
também podem formar parte da solução já que no- precedente para o digital, Hart e Miller fornecem
vas formas de dinheiro baseados na Internet podem duas posições distintas das consequências do digital
per-mitir a criação de sistemas mais personalizados para o nosso entendimento da própria humanidade.
e democráticos de troca fora do núcleo do capitalis- Devemos pautar os problemas colocados pelo digi-
mo. O Paypal e o Ebay insinuam essas possibilidades tal na questão de sua produção como código abstrato
emancipatórias com dinheiros e trocas digitais. Cer- ou em nosso relacionamento com a massa de novas
tamente, como Zelizer (1994) demonstrou, há muitas formas culturais que foram criadas usando tecnolo-
maneiras de domesticarmos e ressocializarmos o di- gias digitais? O que parece claro é que o digital é, de
nheiro. Por exemplo, muitas pessoas usam o dinheiro fato, uma outra volta do parafuso dialético. No nível 93
que ganham em “bicos” para prazeres pessoais, igno- da abstração, há terreno para pensar que atingimos o
rando a aparente homogeneidade de dinheiro como fundo do poço; não há nada mais abs-trato que bits
dinheiro. binários, a diferença entre 0 e 1. Do outro lado da
Em contraste, a obra-prima de Simmel (1978), A balança, já é claro que o digital de longe ultrapassa a
Filosofia do Dinheiro, inclui a primeira análise de- mera commoditização em sua habilidade de prolife-
talhada do que estava acontecendo na outra ponta rar dife-renças. Processos digitais podem reproduzir
dessa equação dialética. O dinheiro também está por e comunicar cópias exatas de maneira prodigiosa e
trás da commoditização que levou a um vasto au- barata. Ambos podem estender a commoditização,
mento quantitativo de cultura material. Isso também mas igualmente, em campos como a comunicação e
criou uma potencial fonte de alienação em que so- a música, temos visto uma tendência marcante em
mos afogados pela vasta massa de coisas diferencia- direção à descommoditização à medida que as pesso-
das que ultrapassam nossa capacidade de apropriar as encontram formas de conseguir coisas de graça.
como cultura. Similarmente, em nossos novos clichês Quer commodificada ou não, o que está claro é que
do digital, nos é dito que a humanidade está sendo tecnologias digitais estão se proliferando e o vasto
inundada pela escala da informação e pelo número e aumentado campo de formas culturais que temos
de coisas diferentes que esperam que a gente dê aten- visto até agora pode ser apenas o começo.
ção. Muito do debate sobre o digital e o humano está Atualmente, a maior parte da literatura no impac-
na premissa da ameaça que o primeiro impõe ao úl- to revolucionário e no potencial do digital tendeu a
timo. É-nos dito que nossa humanidade é assediada seguir Hart focando-se na parte abstrata da equação.
tanto pela abstração virtual quanto a digital e a sua Este ponto de vista é representado neste volume pela
forma oposta, como a quantidade de coisas hetero- discussão de Karanović sobre software livre e com-
gêneas produzidas. De fato, o digital está produzin- partilhamento. Por exemplo, Kelty (2008) usa méto-
do muita cultura que, por não podermos gerenciar e dos históricos e etnográficos para recordar o trabalho
engajarmos com ela, nos torna, assim, superficiais ou daqueles que fundaram e criaram o movimento de
rasos ou alienados. software livre que reside por trás de muitos desenvol-

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vimentos da cultura digital (ver também Karanović Entretanto, há algumas rachaduras na parede do
2008), incluindo instrumentos como Linux, Unix e idealismo. Kelty (2008) docu-menta a disputa entre
software livre distribuído como o Napster e o Fire- ativistas sobre o que poderia ser visto como ideais
fox. Há muitas razões porque estes desenvolvimen- heréticos ou alternativos (veja também Juris 2008).
tos foram celebrados. Como Karanović menciona, Técnicas de programação de duas pessoas diver-gem
eles derivam de longos debates políticos que incluem a tal ponto que as pessoas precisam escolher lados. O
ideais de acesso livre de invenções distribuídas, tan- ideal de uma nova arena em que todos possam parti-
to no que denota uma fuga dos aumentos sem fim cipar. Empresas como Apple e Microsoft mantém sua
da commoditização e, em certas áreas como música, dominân-cia sobre alternativas open source parcial-
levaram a uma descommoditização bastante eficaz. mente porque tais ideais floresceram mais no proces-
O software que era compartilhado e não vendido so criativo inicial do que nas tediosas técnicas de ge-
parecia compreender as novas eficiências e a relati- renciamento e reparo de in-fraestrutura, necessária a
va ausência de custo da comunicação e criação di- todas as plataformas, sejam abertas ou fechadas. Mas
gital. Também expressava uma liberdade de controle a realidade é que apenas os “geeks” 3de conhecimento
e governança, que pareciam maneiras de concretizar extremamente técnico possuem o tempo e a habilida-
várias formas de ligações anarquistas – ou mais espe- de para criar tais desenvolvimentos open source. Isso
cificamente as idealizadas – entre novas tecnologias é menos verdadeiro para os negócios, controvérsias
e liberalismo que eram discutidas por Barendregt e de patentes e empates de hardware podem ir contra
Malaby, também é uma tendência continuada por o software livre.
grupos hackers discutidos por Karanović, levando a Curiosamente, a pesquisa de Nafus, Leach e Krie-
objetivos mais anarquistas de organizações como a ger (2006) sobre o desenvolvimento de “free/libre/
Anonymous também estudada por Coleman (2009). open-source”4 descobriu que apenas 1,5% dos ‘ge-
O que está claro na contribuição de Karanović e eks’ envolvidos em atividades de open source eram
outros é que, assim como Simmel viu que o dinheiro mulheres, fazendo desta um dos exemplos mais ex-
não era apenas um meio, mas algo que permitiu à -tremos de discrepância de gênero em nosso tempo.
94 humanidade avançar em conceptualização e filosofia Mesmo em áreas menos técnicas, um relatório sugere
frente a uma nova imaginação de si, também o open que apenas 13% daqueles que contribuem para a Wi-
source não simplesmente muda a programação. O kipédia são mulheres (Glott, Schmidt e Ghosh, 2010).
próprio ideal e experiência do software livre e open As mulheres pareceram menos propensas a adotar o
source levam a ideais análogos do que Kelty (2008) que era percebido como um compromisso antissocial
chama de públicos recursivos; uma população en- do tempo à tecnologia necessária de ativismo e ativis-
volvida e engajada que poderia criar campos desde tas radicais (cf: Coleman 2009). Esta é, precisamente,
a publicação livre até a criação coletiva da Wikipédia a área problemática abordada por Karanović em sua
modelada no ideal de open source. Em uma época em análise de “Namorada Geek”5, uma campanha que
que o idealismo estudantil de esquerda, que durou reconhece esses problemas de desigualdade de gêne-
até os anos 1960, parecia exaurido, o ativismo digi- ro, apesar de que, não necessariamente, resolve. Tais
tal tornou-se um substituto plausível. Esta tendên- intervenções residem em parte no que Karanović e
cia tem sido um componente maior da Antropolo- Coleman revelarem ser uma sociabilidade extensiva
gia Digital até hoje, incluindo o impacto na política que contrasta com os estereótipos dos “geeks”.
dominante discutido por Postill. O entusiasmo está Como Karanović discute, há distinções regionais
refletido na contribuição de Hart à antropologia, que que permanecem nesses desenvolvimentos parcial-
incluiu a fundação da Antropologia Aberta e Coope- mente porque elas se articulam com diferentes tra-
rativa2, uma rede social para o propósito de demo- dições políticas locais. Por exemplo, ativistas do Sof-
cratizar a discussão antropológica. Muitos estudantes
também encontram pela primeira vez a ideia de uma 3 Nota do tradutor: Geek pode significar um especialis-
Antropologia Digital por meio de An Anthropological ta ou entusiasta em algum campo ou atividade, normal-
Introduction to YouTube por Michael Wesch, um pro- mente tecnológico. Porém, também tem como significado
uma pessoa socialmente desajeitada ou impopular.
-fessor na Universidade do Kansas, que celebra este
4 Nota do tradutor: Por tratar-se de três palavras com sig-
senso de igualdade, de participação e criação (Wesch
nificados muito similares (“liberda-de/abertura/gratuida-
2008). de”) e termos técnicos de informática, preferiu-se manter
2 Nota do tradutor: “Open Anthropology Cooperative” no como estava no original.
original, 5 Nota do tradutor: GeekGirlfriend, no original.

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tware Livre Francês6 são principalmente orientados viços, pessoas que adotaram cedo este serviço estão
em razão dos interlocutores franceses e da União usando transações me-to-me9 (M2M) para guarda-
Europeia. Um problema dessas discussões é que o rem dinheiro em suas contas móveis por segurança
termo liberal é visto nos Estados Unidos como uma e proteção. O custo associado com enviar e guardar
colocação em oposição às forças conservadoras, en- dinheiro na própria conta é percebido como algo que
quanto na Europa a palavra liberal também é usada vale o risco daquilo que existe na soma total dos va-
para descrever o extremo individualismo da ala polí- lores poupados (Baptiste, Horst e Taylor; Taylor, Bap-
tica de direita dos Estados Unidos e o capitalismo. No tiste e Horst 2011).
Brasil, o apoio do governo a softwares open-source e Esta situação não é tão positiva quando adentra-
a cultura livre, de forma mais ampla, estava ligada a mos no mundo do dinheiro virtual. Em sua pesquisa,
uma cultura de resistência à cultura hegemônica glo- Julian Dibbell (2006) usou o clássico método etno-
-bal, a ordem global e padrões tradicionais de produ- gráfico da observação participativa e se impôs a ta-
ção e propriedade com o objetivo de prover inclusão refa de fazer dinheiro real ao investir e brincar com
social, cultural e financeira para todos os cidadãos di-nheiro virtual. Ele percebeu que, na época, em jo-
brasileiros (Horst 2011). Seguindo Hegel, tradições gos como World of Warcraft, “mera-mente conseguir
políticas europeias tendem a ver a liberdade indivi- um começo respeitável pode ocasionar na compra de
du-al como uma contradição em termos; liberdade uma conta de um jogador que está deixando o jogo
plena pode apenas derivar da lei e da governança. com um Guerreiro da Aliança nível 60 (US$1.999 no
O anarquismo veste muito bem estudantes ingênu- eBay)’ (Dibbell 2006: 12). Como um todo, em 2005
os com pouca responsabilidade, mas igualitarismo esses jogos estavam “gerando uma quantidade de
social-democrático requer sistemas de regulação e riqueza real na ordem de 20 bilhões de dólares por
burocracia, altos impostos e redistribuição para fun- ano” (Dibbell 2006: 13). Sua etnografia revelou que
cionar de fato como bem-estar humano. o mundo virtual de dinheiro digital estava sujeito a,
As contradições dialéticas envolvidas são espe- praticamente, todo tipo de fraude e truques empre-
cialmente claras no impacto do di-gital sobre o pró- sariais que uma pessoa pode encontrar em negócios
prio dinheiro. Há muitos avanços tecnológicos bem- off-line – e alguns mais. Além disso, Dibbell (2007)
-vindos que variam desde a pura disponibilidade e também fornece uma das primeiras discussões de 95
eficiência de caixas eletrônicos, novos financiamen- gold farming, onde alegava-se que jogadores em paí-
tos, o jeito que migrantes podem enviar dinheiro ses ricos passavam o trabalho, repetitivo e tedioso, de
via “Western Union” até o nascimento de cartões de clicar para cultivar dinheiro a trabalhadores de baixa
chamadas (Vertovec 2004), minutos aéreos, micro- renda em locais como a China, apesar de que a ideia
pagamentos e serviços relacionados na área de paga- se tornou algo como um tema discursivo recorrente
mentos (Maurer, ainda em pesquisa). Inspirados pelo (Nardi e Kow 2010). Mais claramente documentado
sucesso do M-Pesa no Quênia, do Grameen Bank em pelo antropólogo Xiang (2007) é o body shopping,
Bangladesh e de outros projetos modelos pelo mun- onde o trabalho digital para tarefas mundanas como
do em desenvolvimento, a promessa de banco móvel debug10 é importado para a Austrália ou os Estados
(m-banking) levou a um número de iniciativas fo- Unidos dos países com baixa renda, mas a preços
cadas em comércio bancário para aqueles chamados mais baixos.
de “sem banco” (Donner 2008; Donner e Tellez 2008; O exemplo do dinheiro mostra que podemos en-
Morawezynski 2007). Esta última área está sujeita a contrar lados claros e positivos na nova acessibilida-
um maior programa antropológico liderado por Bill de e serviços bancários para os pobres, mas também
Maurer e seu Instituto para Inclusão Financeira, Mo- efeitos negativos como body shopping ou novas pos-
netária e Tecnológica7. Um trabalho preliminar no sibilidades de fraudes financeiras encontradas nas
apa-recimento de dinheiro móvel depois do terremo- altas finanças (Lewis 1989), que contribuem para o
to no Haiti por Espelencia Baptiste, Heather Horst
e Erin Taulor (2010) revelam modificações da visão que significa “de usuário para usuário”
original de dinheiro móvel; além das transações peer- 9 Nota do tradutor: Me-to-me, neste caso significa uma
pessoa que possui contas bancárias em diversas institui-
-to-peer8 (P2P) imaginadas pelos designers dos ser-
ções e está, na realidade, apenas transferindo ou movi-
6 Nota do tradutor: Frenche Free Software, no original. mentando o dinheiro entre suas próprias contas.
7 Nota do tradutor: Institute for Money, Technology and 10 Nota do tradutor: Debug refere-se a tirar os “bugs” ou
Financial Inclusion, no original. erros, normalmente básicos, de programação das linhas
8 Nota do tradutor: Peer-to-peer, termo de informática código dos programas desenvolvidos.

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debate das dot-com (Cassidy 2002) e a mais recente que Madianou e Miller formularam seus conceitos
crise bancária. Isso sugere que a nova economia po- de polimídia, estendendo ideias anteriores de mídia
lítica do mundo digital não é tão diferente da antiga e ecologias comunicativas para considerar a interati-
política econômica. O digital expande as possibilida- vidade entre mídia e sua importância ao repertó-rio
-des previamente desencadeadas pelo dinheiro, tanto emocional que essas mães necessitavam ao lidar com
as positivas quanto negativas igualmente. Tudo isso essas crianças.
segue do argumento de Hart de que precisamos en- Mas, além dos cuidados maternos transnacionais
contrar uma emancipação ao domar o dinheiro ou através de polimídia, não foi a primeira vez que as
expandindo open source que está no ponto da abs- Filipinas apareceram na vanguarda de mídia digital e
-tração. O argumento alternativo feito por Miller tecnologia. Como foi narrado por Pertierra e colegas
olhou para o outro lado da equação dialética – olhou (2002), as Filipinas são globalmente reconhe-cidas
a massa dos bens altamente diferenciados que foram como a capital de mensagens de texto por telefone.
criados por essas tecnologias. De sua introdução até hoje, mais textos são man-
Seguindo esta lógica, queremos sugerir uma li- dados nas Filipinas por pessoa do que em qualquer
nha de frente alternativa para a antropologia da era outro lugar do mundo. Mensagens de texto logo tor-
digital. O exato oposto dos tecnófilos da Califórnia naram-se centrais à formação e manutenção de rela-
podem ser os informantes principais de um estudo cionamentos e foi afirmado (com algum exagero) que
recente sobre cuidados maternos, cujos participantes tiveram papel-chave em derrubar governos. O objeti-
típicos foram mulheres filipinas de meia idade, tra- vo desse exemplo é mostrar que mensagens de texto
balhadoras domésticas em Londres, que tendiam a são um caso importante de uma tecnologia, pensada
considerar as novas tecnologias tanto como mascu- apenas como pequeno adicional, cujo impacto foi
linas, estrangeiras, opressivas ou todas as três (Ma- criado por meio da coletividade dos consumidores.
dianou e Miller 2012). Os informantes de Madianou Foram a pobreza e a necessidade que dirigiram essas
e Miller podem ter ficado profundamente suspeitos, inovações ao uso, não apenas o reconhecimento das
e bem possivelmente detestaram muito dessa nova qualidades da tecnologia.
96 tecnologia digital e só compraram seu primeiro com- Como discutido por Ginsburg, no caso de ativis-
putador ou aprende-ram a digitar nos últimos dois tas deficientes a necessidade está emparelhada com
anos. Ainda assim, as domésticas filipinas podem ser ideologia explícita. Os ativistas estão bem cientes de
a verdadeira tropa de vanguarda na marcha frente ao que tecnologias digitais têm o potencial para trans-
futuro digital à medida que elas entendem o caminho formar desde seus relacionamentos até a noção de ser
que esses outros estudos estão buscando. Elas podem humano – uma visão orientada por longos anos em
não impactar na criação de tecnologias digitais, mas que eles sabiam que eram igualmen-te humanos, mas
são as que estão no front do desenvolvimento de suas outras pessoas não. Isso não é para presumir que tais
consequências e usos sociais. Usam as últimas novi- percepções, quando alcançadas, são sempre comple-
dades em tecnologias comunicativas não por visão, tamente positivas. No geral, as mães estudadas por
ideologia, ou habilidade, mas por razões de necessi- Madianou e Miller declararam que as novas mídias
dade. Vivem em Londres e Cambridge, mas seus fi- permitiram a elas agirem e sentirem-se mais como
lhos ainda vivem nas Filipinas, na maioria dos casos. verdadeiras mães de novo. Quando Madianou e Mil-
Em estudos anteriores, os participantes de Parrenas ler falaram com as crianças dessas domésticas nas
(2005) viram suas crianças por apenas vinte e quatro Filipinas, algumas delas sentiram que esse relacio-
semanas nos últimos onze anos. na-mento deteriorou como resultado deste contato
Tais casos exemplificam a questão mais ampla constante que chegou ao nível de vigilância. Como
apontada por Panagakos e Horst (2006) no que cerne Tacchi aponta em sua contribuição, o uso de mídias e
a centralidade de novas mídias de comunicação para tecnologias digitais para dar voz envolve muito mais
migrantes transnacionais. O grau em que essas mães que o mero transplante das tecnologias digitais e a
poderiam permanecer efetivamente como mães de- suposição que elas trazem reconhecimentos positi-
pendia quase inteiramente do grau com que elas po- vos. As consequências subsequentes são criadas no
deriam usar essa nova mídia para manter algum tipo contexto de cada lugar, não dadas na tecnologia.
de contato com suas crianças. Resumidamente, era A questão não é escolher entre as ênfases de Hart
difícil de pensar para qual população os prospectos sobre a ideia da abstração e a ideia de diferenciação de
garantidos para as novas tecnologias iriam ter maior Miller. O princípio dessa dialética diz que é uma con-
importância. Foi ao observar o uso pelas domésticas dição intrínseca das tecnologias digitais expandirem

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ambas e o impacto é, intrinsecamente, contraditório; local para criar cosmologias extraordinárias e com-
produzindo tanto efeitos positivos quanto negativos. plexas que tornaram-se a ordem da sociedade e as
Isto já está evidente no estudo antropológico do di- estruturas que guiavam o engajamento social (e.g.
nheiro e suas commodities. Uma contribuição crítica Munn 1973; Myers 1986). Em antropologia não há
das tecnologias digitais é o jeito que elas exacerbam, algo como humanos puros e não mediados; intera-
mas também revelam estas contradi-ções. Antropó- ção face a face é tão inflexionada quanto uma comu-
logos precisam estar envolvidos por este espectro, das nicação mediada digitalmente, mas, como Goffman
análises de Karanović daqueles envolvidos na criação (1959, 1975) aponta vez e outra, falhamos ao ver a
de tecnologia digital aos trabalhos de Ginsburg sobre armação da estrutura de interações frente-a-frente
aqueles que colocam ênfase em suas consequências. porque essas armações funcionam de maneira muito
efetiva. O impacto das tecnologias digitais, como as
CULTURA E O PRINCÍPIO DA FALSA webcams, são, às vezes, inquietantes porque nos tor-
AUTENTICIDADE namos conscientes sobre aquelas armações que dáva-
mos por garantidas acerca dos encontros face-a-face.
Estando claro, exatamente, o que queremos dizer Potencialmente, uma das maiores contribuições
com o termo digital, também precisamos atentar no da Antropologia Digital seria o grau com que ela
que sugere o termo cultura. Para isso, declaramos finalmente explode as ilusões de um mundo pré-di-
como nosso segundo princípio algo que pode pare- gital não mediado e não cultural. Um bom exemplo
cer contradizer muito do que já foi escrito sobre tec- seria Van Dijck (2007), que usa as novas memoriza-
nologias digitais: as pessoas não estão nem um tico ções digital, como nas fotografias, para mostrar que
mais mediadas pela ascensão das tecnologias digitais. a memória sempre foi uma construção cultural in-
O problema está claramente ilustrado em um livro vés de individual. A fotografia, como um material
recente por Sherry Turkle (2011), infuso com um la- normativo de mediação (Drazin and Frohlich 2007),
mento nostálgico por certos tipos de sociabilidade ou revela como a memória não é um mecanismo psico-
humanidade dadas como perdidas; resultado das no- lógico individual, mas consiste, largamente, daquilo
vas tecnologias que variavam dos robôs ao Facebook. que nos é apropriado lembrar. A fundação da antro-
A implicação do seu livro é que as formas de sociabi- pologia, em sua separação da psicologia, veio com 97
lidade anteriores eram, de alguma forma, mais natu- nossa insistência de que o subjetivo é culturalmente
rais ou autênticas em virtude de ser menos mediado. construído.
Por exemplo, Turkle expressa mágoa pelas pessoas Voltando a um exemplo anterior, a pesquisa de
voltando para casa do trabalho e logando no Face- Miller e Madianou sobre as mães filipinas dependeu
book ao invés de assistirem TV. De fato, quando fora em muito mais do que só o entendimento das no-
introdu-zida, a TV foi assunto de alegações similares vas tecnologias de comunicação; pelo menos tanto
de falta de autenticidade e o fim da verdadeira socia- esforço foi gasto em entender o conceito filipino de
bilidade (Spiegel 1992); ainda assim, a TV não é de maternidade, porque ser uma mãe é tão forma de
forma alguma mais natural e, dependendo do con- mediação quanto estar na Internet. Usando uma teo-
texto, poderia se argumentar que é bem menos soci- ria mais geral sobre parentesco (Miller 2008), Miller
ável do que o Facebook. Turkle reflete uma tendência e Madianou discutiram que o conceito de uma mãe
geral da sociedade relativo à nostalgia muito difun- deveria ser entendido em termos de um triângulo:
dida no jornalismo e em uma área de trabalho que nos-so conceito normativo do que mães, em geral,
foca nos efeitos da mídia com uma visão das novas deveriam ser, nossas experiências com nossa mãe e
tecnologias como uma perda de sociabilidade autên- a discrepância entre as duas. As mães filipinas esta-
tica. Isso ge-ralmente explora escritos antropológicos vam trabalhando, simultaneamente, com os modelos
de sociedades em pequena escala, que são to-madas regionais, nacionais e transnacionais de como mães
como uma visão de humanidade autêntica e em um deve-riam agir. Ao fim do livro (Madianou e Miller
estado mais natural e menos mediado. 2012), a ênfase não é sobre novas mídias mediando
Isto é completamente antiético pensando no que relações mãe-filho; ao contrário, é muito mais sobre
a teoria antropológica realmente defende. Na disci- a luta a respeito do conceito de como ser uma mãe
plina de antropologia, todas as pessoas são cultural- media a polimídia que escolhemos e usamos. A con-
mente iguais – isto é, elas são produtos de objetifi- tribuição de Tacchi ilustra ainda mais essa questão.
cação. Tribos aborígenes australianas podem não ter Aqueles envolvidos no desenvolvimento ao redor de
muita cultura material, mas eles utilizam o panorama novas mídias e tecnologias da comunicação começa-

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ram a perceber que o que é necessário não é tanto a gia protestante claramente acredita.
apropriação local de uma tecnologia, mas a impor- Como observa Eisenlohr (2011), a moderna an-
tância de ouvir as diferenças na cultura que determi- tropologia da mídia começa com trabalhos tais quais
nam o que uma tecnologia em particular se torna. de Anderson (1983) que mostraram quantos itens-
Similarmente, Ginsburg demonstra que o problema -chave, como o nacionalismo e filiação étnica, desen-
daquilo que queremos dizer com a palavra humano é volveram-se em larga medida por meio de mudanças
o que determina o impacto dessa tecnologia para os na mídia pela qual a cultura circula. Por exemplo, há
deficientes. A menos que a tecnologia possa mudar o trabalhos excelentes que mostram como fitas cassetes
significado de humanidade, a tecnologia sozinha não impactaram a religião em uma forma de circulação
fará o resto de nós mais humanos. pública anterior às formas digitais (Hirschkind 2006;
Para, então, decifrar este segundo princípio, a An- Manuel 1993). Mas em todos estes casos, não é que a
tropologia Digital será criteriosa ao grau de revelar a mídia simplesmente media um elemento fixo chama-
natureza armada e mediada do mundo não digital. A do religião. A religião, em si, é uma forma de media-
Antropologia Digital falha a ponto de fazer o mundo ção altamente comprometida que se mantém muito
não digital parecer, em retrospectiva, sem arma-ções preocu-pada com controlar e usar as consequências
e não mediado. Não somos mais mediados simples- de mídias específicas.
mente porque não somos mais culturais do que éra- Isso é evidente quando pensamos na relação entre
mos antes. Uma das razões dos estudos digitais terem, o protestantismo e a mídia digital. Primeiro, vemos
frequente-mente, tomado um curso oposto tem sido um paradoxo. Parece muito estranho que durante
o uso continuado do termo virtual com um contraste os séculos em que os protestantes tentaram eliminar
implícito do real. Como Boellstorff deixa claro, mun- todos os objetos que mantinham-se no caminho de
dos online são simplesmente outra arena, junto dos uma relação não mediada com o divino enquanto ca-
mundos off-line, para expressar as práticas, e não há tólicos adotavam uma proliferação de imagens. Ain-
razão para privilegiar um em detrimento do outro. da assim, quando falamos da mídia digital moderna,
Toda vez que usamos a palavra real analiticamente, a posição é praticamente a contrária. Não são os ca-
98 oposta a seu sentido coloquial, nós enfraquecemos o tólicos, mas os evangélicos protestantes, que parecem
projeto da Antropologia Digital, criando fetiches na abraçar com espontaneidade todo novo tipo de mí-
cultura pré-digital como um campo conservado de dia, desde a televisão ao Facebook.
autenticidade. Eles estão entre os mais entusiastas de tais novas
Esta questão tem sido matizada por alguns escritos tecnologias. Isso faz sentido, uma vez que reconhe-
importantes na teoria da mediação (Eisenlohr 2011; cemos que, para cristãos evangélicos, a mídia não
Engelke 2010). Tão consistente quanto o conceito media. Do contrário, certamente opor-se-iam. Em
de habitus de Bourdieu (1977), podemos imaginar vez disso, protestantes tem visto a mídia, diferente
que uma pessoa nascida na Europa medieval veria a das imagens, como um conduíte para uma relação
sua cristandade objetificada em incontáveis mídias mais direta, sem mediações, com o divino (Hanco-
e suas intertextualidades. Mas, naqueles dias, as mí- ck e Gordon 2005). Como Meyer (2008) demonstra,
dias precisariam ser construções, escritos, acessórios a cristandade evangélica abraça todo o tipo de nova
de roupas, sermões e assim por diante. Meyer (2011) mídia digital, mas faz isso para criar experiências que
nota que o debate crítico sobre o papel da mídia na são sempre mais puras em sua sensualidade e emoti-
cristandade tomou lugar durante a Reforma. Os cató- vidade. Os Apostólicos que Miller estudou em Trini-
licos adotaram uma cultura de materialidade em que dade perguntaram apenas uma única questão sobre
imagens proliferaram, mas mantiveram um sentido a Internet: Por que Deus inventou a Internet nesta
de mediação tal aqueles que apoiavam o maior misté- época? A resposta era de que Deus desejava que eles
rio de Cristo. Os protestantes, em contraste, tentaram se tornassem a Igreja Global, e a Internet era a mídia
abolir ambas a mediação de objetos e de processos para abolir meras religiões localiza-das, como mis-
culturais mais amplos e, em vez disso, adotaram uma sas comuns, e tornarem-se globalmente conectados
base ideal de não mediação de uma experiência sub- (Miller e Slater 2000, p. 187-92). Este também é por-
jetiva do divino. Em alguns aspectos, a atual resposta que, como disse Meyer (2011, p. 33), as religiões de
negativa às tecnologias digitais deriva deste desejo men-talidade menos digital, como em algumas ver-
protestante de criar um ideal de autenticidade e sub- sões do catolicismo, tentam proteger um sentimento
jetividade não mediada. Em resumo, antropólogos de mistério que não veem completamente capturado
podem não acreditar no não-mediado, mas, a teolo- pelas novas mídias.

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Em resumo, uma perspectiva antropológica de reproduz meramente a pessoa off-line, é na Internet
mediação está amplamente preocupada em entender que estes jogadores russos sentem-se capazes, talvez
porque algumas mídias são percebidas como media- pela primeira vez, de expressar plenamente sua alma
dores e outras não. Invés de ver mundos pré-digitais e paixão. Online eles podem trazer para fora a pes-
como menos mediados, precisamos estudar como a soa que eles sentem que são, o que era previamente
ascensão das tecnologias digitais criaram a ilusões de restrito em mundos off-line. Para estes jogadores, as-
que eles eram. Por exemplo, quando a Internet pri- sim como os deficientes discutidos por Ginsburg, é
meiramente foi desenvolvida, Steven Jones (1998) apenas na Internet que uma pessoa pode finalmente
e outros escritos sobre seu impacto social viram a tornar-se real.
internet como um modo para a reconstrução da co- Tais discussões dependem de um reconhecimento
munidade. Ainda assim, muitos desses escritos pa- de que o termo real deve ser considerado como colo-
receram assumir uma noção ilusória de comunida- quial e não epistemológico. Reunindo estas ideias de
de como uma coletividade natural que existia na era mediação (e religião), Goffman, o trabalho inicial de
pré-digital (Parks 2011: 105-9; para uma visão cética, Turkle, Humphrey e as contribuições de Boellstorff e
ver Postill, 2008; Woolgar, 2002). Eles ficaram tão Ginsburg, deve estar claro de que não estamos mais
preocupados com a questão de se a internet estaria mediados. Somos igualmente humanos em cada uma
nos trazendo de volta à comunidade que simplifica- das diferentes e diversas arenas de quadros compor-
ram radicalmente o próprio conceito de comunidade -tamentais dentro dos quais vivemos. Cada um pode,
como algo inteiramente positivo. Em Miller (2011), entretanto, trazer diferentes aspectos de nossa huma-
seguimos Ginsburg e Tacchi em assegurar que toda e nidade e, portanto, as sutilezas de nossa apreciação
qualquer fração social ou comunidade marginal têm do que é ser um ser humano. O núcleo da Antropo-
igual direito de ser vista como exemplificação da cul- logia Digital preocupa-se, assim, em melhorar a An-
tura digital, mas isto é porque, para a antropologia, -tropologia convencional.
um contador de Nova Iorque ou um jogador profis-
sional de videogame coreano não é mais ou menos TRANSCENDENDO O MÉTODO POR MEIO
autêntico do que um padre tribal contemporâneo na DO PRINCÍPIO DO HOLISMO
África Ocidental. Somos todos resultado da cultura 99
como mediação, seja através das regras de parentesco Os próximos dois princípios são, largamente, uma
e religião ou as regras de netiquette11 e game play12. O reiteração de duas condições básicas das apreensões
problema está com o conceito de autenticidade (Lin- antropológicas do mundo, mas abas requerem cer-
-dholm, 2007). to cuidado antes de serem adotadas. Há muitas ba-
Curiosamente, os primeiros escritos de Turkle ses completamente diferentes para reter uma apro-
(1984) estavam entre os mais po-tentes em refutar es- ximação holística dentro da antropologia, uma das
tas presunções antes de autenticidade prévia. O con- quais foi amplamente descreditada dentro da própria
texto era o apare-cimento da ideia virtual e do avatar antropologia. Muitos dos argumentos teóricos para
em jogo de interpretação de papéis. Como ela apon- o holismo13 vieram, ou de analogias orgânicas do
-ta, as questões de interpretação e apresentação eram funcionalismo, ou do conceito de cultura que enfa-
tanto a base da vida pré-digital, algo muito evidente tiza homogeneidade interna e exclusividade externa.
mesmo de uma leitura apressada de Goffman (1959, Ambas têm sido sujeitas a criticismo mordaz e, hoje,
1975). As ci-ências sociais têm demonstrado como o não há bases para a antropologia firmar um compro-
mundo real era virtual muito antes de perce-bermos metimento ideológico com o holismo.
o quão real é o mundo virtual. Uma das mais discus- Enquanto teoricamente suspeitas, há, entretanto,
sões antropológicas mais esclarecedoras desta noção outras razões para manter um compromisso com o
de autenticidade é o estudo de salas de bate-papo holismo enquanto fortemente conectado à metodo-
russas de Humpherey (2009). O avatar não apenas logia antropoló-gica, especialmente (mas não ape-
nas), à etnografia. Dividiremos estas motivações para
11 Nota do tradutor: Junção da palavra net – rede (referin-
do-se à internet) e etiquette – etiqueta. Logo, refere-se a 13 Ao nível metodológico, o holismo representa um com-
um comportamento socialmente aceito e adequado à in- promisso a entender o contexto mais amplo da integração
ternet e ambientes de interações sociais online. de várias instituições dentro de uma análise. Teoricamen-
12Nota do tradutor: Gameplay, refere-se, normalmente, às te, o holismo está associado com funcionalismo estrutu-
regras internas de um jogo de videogame e sua esportivi- ral, que detinha que certo fenômeno na sociedade (ex.:
dade assim como em um esporte físico. parentesco ou lares) repre-senta o todo.

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manter um comprometimento com o holismo em videncia uma bibliografia muito mais extensa que
três categorias: as razões pertencentes ao indivíduo, aquela fornecida aqui), está aparente que aqui qua-
aquelas pertencente ao etnográfico e aquelas perten- se não há tópicos da Antropologia convencional que
centes ao global. A primeira é a simples observação não teriam hoje uma inclinação digital. Suas referên-
de que ninguém vive uma vida completamente digi- cias variam entre noticiários, esposas por correio,
tal e nenhuma mídia ou tecnologia digital existe fora serviços médicos, aspectos da identidade, finanças,
de redes que incluem tecnologias ou mídias analógi- linguística, po-lítica e praticamente todos os outros
cas. Enquanto antropólogos heurísticos focar-se-ão aspectos da vida.
em aspectos particulares da vida – um capítulo sobre Essencialmente, a questão do holismo relaciona-
museus, outro sobre redes sociais, mais um sobre po- -se com o jeito que um indivíduo traz a si os aspec-
lí-tica – reconhecemos que a pessoa trabalhando no tos dispersos de sua vida como pessoa, mas também
museu constrói redes sociais e envolve-se com políti- como a antropologia transcende a miríade de focos
ca e que as especificidades desses três podem depen- de pesquisa para reconhecer a co-presença de todos
der do entendimento dos outros dois. estes tópicos dentro de nosso maior entendimento
O conceito de polimídia desenvolvido por Ma- da sociedade. Outra questão ilustrada claramente na
dianou e Miller (2012) exemplifica conectividade pesquisa de Coleman é de que agora há mais campos
interna em relação a comunicações pessoais. Não a serem considera-dos porque as tecnologias digitais
podemos facilmente tratar cada nova mídia indepen- criaram seus próprios mundos. Seu exemplo mais
dentemente já que elas formam partes de uma ecolo- extenso é a etnografia do spam, um tópico que exis-
gia de mídia mais ampla na qual o significado e o uso te apenas em virtude do digital, as-sim como seria o
dependem da relação para com outros. (Horst, Herr- caso dos mundos online representados aqui por Bo-
-Stephenson e Robinson 2010); usar e-mail pode ser ellstorff e em nossa percepção aprimorada de espaço
uma escolha contra mensagens de texto e sites de re- relativo em mundos off-line como descritos por De-
des sociais; postar comentários pode ser uma escolha Ni-cola.
entre mensagem privadas e chamada de voz. Hoje, O sentido holístico da etnografia é trazido clara-
100 quando as questões de custo e acesso, em muitos mente pela combinação das reflexões de Boellstorff
lugares do mundo, passaram ao plano de fundo, as e Ginsburg na etnografia de Second Life. Garantir ao
pessoas são tidas como responsáveis pelas mídias que Second Life sua própria integridade tem importância
escolhem. Na etnografia de Gershon (2010) de estu- para pessoas que sentem-se desabilitadas ou desfa-
dantes de universidade dos Estados Unidos, ser rejei- vorecidas em outros mundos; é um site onde, por
tada pelo namorado com uma mídia ina-propriada exemplo, elas podem viver uma vida completamente
joga mais sal na ferida14 de ser rejeitada. No trabalho religiosa, realizando rituais que não poderiam pra-
de Madianou e Miller (2012), polimídias são explora- ticar de outra forma. Boellstorff aponta que o ideal
das para aumentar o alcance de campos emocionais holístico da etnografia está cada vez mais honrado.
e o poder de comunicações entre pais e suas crianças Isto está bem ilustrado por Drazin que revela como
esquecidas. no design e em muitos outros contextos comerciais,
Mas este holismo interno para o indivíduo e a os próprios termos antropológico e etnográfico são
ecologia de mídia é complementado por um holismo comumente usados como emblemas de tal holismo,
mais amplo que corta através de diferentes domínios. geralmente reduzido a algumas entrevistas. Ele ar-
Para Broadbent (2011), a escolha da mídia é apenas -gumenta que nós apenas podemos entender práticas
entendida com referência a outros contextos. Ao in- de design dentro de um contexto muito mais amplo
vés de uma etnografia do ambiente de trabalho e uma da etnografia tradicional estendida encontrada na
do ambiente doméstico, vemos como o uso depende antropologia e, cada vez mais, em outras disciplinas.
da relação entre casa e trabalho e entre relações mui- Mas, se a etnografia adequada fosse o único cri-
to próximas colocadas contra laços relacionais mais tério para o holismo, tornar-se-ia algo como uma
fracos. Este segundo nível de holismo é implícito no responsabilidade. Aqui é onde nós precisamos de um
método da etnografia. Ao ler a revisão de Coleman terceiro compromisso holístico. Não há apenas cone-
(2010) da antropologia de mundos online (que pro- xões que importam porque são todas partes da vida
de um indivíduo ou porque estão todas encontradas
14 Nota do tradutor: No original “adds much insult to in-
jury”, literalmente “adicionar mais insulto à ferida”, porém, dentro de uma etnografia. As coisas podem se conec-
por tratar-se de expressão idiomática, resolveu-se utilizar tar em quadros muito maiores, como política econô-
uma mais comum ao meio brasileiro. mica. Toda vez que fazemos um pagamento em car-

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tão de débito exploramos uma vasta rede que existe mundos online como assuntos da etnografia. Ambos
fora de qualquer indivíduo ou grupo social cujas co- Boellstorff e nós pensamos que esta integridade é
nexões não seriam aparentes dentro de qualquer ver- compatível com nossa preferência por incluir o con-
são de etnografia. Estas conexões são mais próximas texto off-line do uso da Internet, onde possível, de-
aos tipos de redes discutidas por Castells e Latour ou pendendo de questões de pesquisa atual (Miller e Sla-
para tradições mais antigas como a teoria de siste- -ter 2000). Por exemplo, é instrutivo quando Horst
-mas mundiais de Wallerstein (1980). A antropologia (2009), em uma pesquisa sobre adolescentes na Cali-
e a etnografia são mais que método. Um compromis- fórnia, afasta as lentes por um momento para incluir
so com a etnografia que falha em engajar com um os quartos em que os adolescentes estão localizados
estudo político-econômico e de instituições globais enquanto em seus computadores, há uma melhor
iria ver a intenção holística mais ampla sendo traída sensação da ambiência de que estão tentando criar
por mero método. Este problema é exacerbado pelas um relacionamento entre os mundos online e off-
tecnologias digitais que criaram uma reprogramação -line (Horst 2010). Em sua contribuição, Boellstorff
radical da infraestrutura de nosso mundo. Como re- argumenta que teorias da indicialidade derivadas de
sultado, vemos cada vez menos e entendemos menos Pierce podem ajudar a relatar evidências de diferen-
dessas vastas redes do que anteriormente. Para um tes domínios em níveis mais elevados. Os mundos
enquadramento mais amplo, nos comprometemos digitais criam novos domínios, mas também, como
a viajar por todas estas conexões a cabo e sem fio e mostra Broadbent, eles podem efetivamente colapsar
deixa-las explícitas em nossos estudos. A antropo- diferenças estabelecidas, como entre trabalho e não-
logia precisa desenvolver sua própria relação com o -trabalho, apesar de todos os esforços do mercado
que tem sido chamado de Big Data (Boyd e Craw- em resistir a isso.
ford 2011) – vastas quantidades de informação que Há um último aspecto do holismo que os antro-
estão sendo, cada vez mais, ligadas umas às outras. pólogos não podem perder de vista. Enquanto antro-
Se ignorarmos estas novas formas de conhecimento pólogos podem repudiar o holismo como ideologia,
e pesquisas, ainda su-cumbiremos outra versão da ainda temos de lidar com outras maneiras de ado-
divisão digital. tar o holismo como um ideal. A discussão de Pos-
Apesar de Broadbent e seus colaboradores condu- till sobre o cidadão digital revela como, enquanto a 101
zirem diversos estudos há algum tempo sobre o uso democracia é oficialmente assegurada por votos oca-
da mídia na Suíça, eles não limitam sua evidência a sionais, governança digital móvel é imaginada como
isso. Há ainda um considerável corpo de estatística, criando condições para um relacionamento muito
outros meta-dados e uma boa porção de gravações mais integrado e constante entre o governo e uma
e mapeamentos mais sistemáticos que fazem parte participação ativa ou comunidade de cidadãos que
de seus projetos. A autora, portanto, justapõe dados lidam com muito mais aspectos das vidas das pesso-
de métodos antropológicos específicos com dados de as. Normalmente, isso está baseado em assumir que
outras disciplinas de forma a chegar em sua conclu- anteriormente era apenas a falta de tecnologia apro-
são. Neste artigo, estamos discutindo a necessidade priada que impedia a realização de tais ideais políti-
de uma aproximação antropológica para o digital, cos, ignorando a possibilidade de que talvez as pes-
mas não por meio da exclusividade ou pureza que soas não queriam ser incomodadas com esse grau de
presume ter nada a aprender dos estudos de mídia, en-volvimento político. Portanto, o holismo político
pesquisas comerciais, geografia, sociologia e as ci- nos aproxima do que Postill chama de ideal norma-
ências naturais. Adicionalmente, não temos uma tivo. Ele mostra que o impacto atual do digital é uma
discussão separada de métodos etnográficos e an- expansão do envolvimento, mas está ainda, para a
tropológicos. Afirmamos que a conclusão de Boells- maioria das pessoas, amplamente contido dentro de
torff de que o holismo nunca deveria significar um pontos familiares de participação como eleições ou
colapso dos vários terrenos das Humanidades, que comunicações entre ativistas estabelecidos.
costumam também ser nossos domínios específicos
de pesquisas. A QUESTÃO DA “VOZ” E O PRINCÍPIO
Mundos online têm a própria integridade e inter- DO RELATIVISMO
textualidade própria tomando seus gêneros uns dos
outros, como ficou evidente na monografia de Bo- O relativismo cultural sempre tem sido outra vér-
ellstorff (2008: 60-5) sobre o Second Life, o que in- tebra dentro da coluna da Antropologia; de fato, holis-
clui uma vigorosa defesa da natureza autônoma de mo e relativismo cultural estão intimamente ligados.

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É válido reiterar com respeito à Antropologia Digital Similarmente, na contribuição de Geismar encon-
de que muito do debate e da representação digital são tramos a tentativa consciente re-ter diferença cultu-
derivados da imaginação da ficção científica e mo- ral. O problema para museus é que a homogeneiza-
dernismo que preveem um mundo global fortemente ção pode ser imposta mais efetivamente em um nível
homogeneizado que perdeu sua antiga expressão de que geralmente falhamos em apreciar ou entender
diferença cultural (Ginsburg 2008). Com o holismo, porque pode ocorrer dentro de infraestrutura básica:
há uma versão do relativismo que os antropólogos o sistema de catálogo usado para rotular e ordenar as
têm repudiado (ao menos desde a Segunda Guerra aquisições dos museus. Se sociedades aborígenes irão
Mundial) associado com um conceito plural de cul- encontrar formas indigenamente apropriadas (Thor-
turas que implicam em pura homogeneidade interna ner 2010), então pode ser através de controle sobre as
e pura heterogeneidade externa. Estas perspectivas coisas como a estrutura de arquivos, pontos de vista
tomaram diferenças culturais como essencialmente e lógicas fundamentais similares que precisam, ade-
históricas e, a priori, baseadas na evolução indepen- quadamente, refletir conceitos como as noções sobre
dente das sociedades. Por contraste, a antropologia Kastom de Vanuatu, que são muito distintas da histo-
contemporânea tem reconhecido que, dentro de riografia ocidental.
nossa economia política, uma região continua ligada O clichê da antropologia é que afirmamos o rela-
à agricultura de baixa renda e ao conservadorismo tivismo para desenvolver estudos comparativos. Na
precisamente porque isso atende o interesse de uma realidade, a comparação é, geralmente, mais desejo
região mais rica e dominante. Isso é para dizer que: do que prática. Ainda assim, comparação é essen-
diferenças normalmente são construídas mais do que cial se quisermos entender o que pode ser explicada
meramente dadas. por fatores regionais e paroquiais e o que dá supor-
Por esta razão, Miller (1995) argumentou que te a generalizações de maiores níveis. Por exemplo,
deveríamos complementar o conceito de diferença em sua contribuição, Postill compara diretamente o
a priori com um de diferença a posteriori. Na etno- engajamento político da classe média na Austrália e
grafia sobre usos da Internet, Miller e Slater (2000) Malásia. Os estudos sobre telefonia móvel e pobreza
102 recusaram-se a aceitar que a Internet em Trinidad era na Jamaica de Horst e Miller (2006) mostraram que
simplesmente uma versão ou um clone de “a Inter- generalizações sobre o uso de telefones para empre-
net”; a internet sempre é uma invenção local pelos endedorismo e encontrar trabalhos em outras regi-
seus usuários. Miller faz um argumento similar aqui ões podem não funcionar para a Jamaica, onde eles
em respeito ao Facebook em Trindade onde o poten- encontraram um diferente padrão de impacto eco-
cial para fofocas e escândalos (e geralmente ser intro- nômico. Karanović mostra que diferenças nacionais
metido) é tomado como uma mostra da intrínseca podem manter-se importantes mesmo em projetos
“trinidadense” do Facebook (Miller 2011). de concepção global como software livre. Seu traba-
Nesse mesmo volume, Barendregt provê a mais lho também demonstra que tais práticas podem ter
explícita análise do relativismo. Ele mostra que mes- poderosos efeitos transnacionais – algumas vezes in-
mo usos muito mundanos de comunicações digitais diretos, co-mo conformar-se à dominância da língua
como conversação, flerte ou reclamações sobre o go- inglesa, um aspecto relativamente negligenciado da
verno, tornaram-se gêneros bem específicos para a Antropologia Digital.
Indonésia ao invés de terem sido clonados de algum Na prática, o legado do relativismo antropológico
outro lugar. Enquanto em Trinidade a ênfase está continua através do compromisso às regiões e cul-
mais na diferença cultural mantida, na Indonésia isto turas d’outra forma negligenciadas e a preocupação
está recoberto por uma tentativa muito deliberada de pelas pessoas e valores destas regiões. Para Barendre-
criar uma nova normatividade: o uso de tecnologias gt a exploração de matéria-prima, o despejo de lixo
digitais baseados em critérios explícitos como a sua eletrônico15, as práticas de emprego exploratórias
aceitabilidade às restrições islâmicas. Isto pode ser como body shopping, os estereótipos racistas dentro
uma resposta às preocupações de que se tecnologias de jogos de interpretação de papeis e as novas formas
digitais são ocidentais, então é provável que sejam um de desigualdade digital são todos aspectos de nos-
Cavalo de Tróia que trará práticas culturais ina-ceitá- sos diversos mundos digitais. Mais especificamente,
veis como a pornografia. Isto produz um filtro e uma muitos antropólogos têm se tornado cada vez mais
transformação altamente conscientes para refazer es- 15 Nota do tradutor. O termo lixo eletrônico também é co-
tas tecnologias em processos que possam, na realida- nhecido pelo acrônimo REEE – Resíduos de Equipamen-
de, promover invés de detrair dos valores islâmicos. tos Elétricos e Eletrônicos

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preocupados em como dar voz a grupos marginaliza- do programa de mestrado de Antropologia Digital
dos ou de pequena escala que tendem a ser ignorados do University College em Londres, realizamos uma
nas generaliza-ções acadêmicas centradas no ociden- série de conversas com profissionais de design. Mui-
te metropolitano.Com poucas exceções (Ito, Okabe tos relatam como foram recrutados para realizar pes-
e Matsuda 2005; Pertierra et. al. 2002), a maior parte quisa qualitativa e comparativa, mas então viram o
do trabalho sobre mídias digitais e tecnologias tem resultado de seus estudos reduzidos, por forças mais
privilegiado áreas economicamente avantajadas da poderosas de áreas como economia, administração
América do Norte e da Europa. Ignorando uma de- e psicologia, para cinco tipos de personalidade pa-
mografia global em que a maioria das pessoas vive na drão ou três cenários de consumo, dos quais todas
China e Índia rural invés de em Nova Iorque e Paris. as diferen-ças culturais inicias foram eliminadas. Em
Os conhecimentos teóricos e os desenvolvimentos última análise, muitos antropólogos de de-sign rela-
emergentes desta base empírica refletem os imagi- tam que eles foram usados meramente para legitimar
nários norte-americanos e norte-europeus sobre o o que a corporação decidiu fazer em outros campos.
mundo e, se perpetuados, podem formar uma domi- Outros usaram esses espaços para outros fins.
nância cultural. À medida que a Antropologia Digital
torna-se mais estabelecida, esperamos ver estudos e AMBIVALÊNCIA E O PRINCÍPIO DE ABERTURA
etnografias mais alinhados com as atuais demogra- E FECHAMENTO
fias e as reali-dades de nosso mundo.
Tacchi nos provê vários exemplos que ecoam a in- A contradição de abertura e fechamento que sur-
sistência de Amartya Sen de que uma pedra angular ge no domínio digital está claramente exposta no
do bem-estar social é o direito das pessoas em deter- seminal artigo de Julian e Dibbell (1993), A Rape
minar, por elas mesmas, o que o bem-estar social deve in Cyberspace16 . O artigo explora um dos primeiros
ser. Isso pode demandar advocacia e agrupa-mento, mundos virtuais onde usuários podiam criar ava-
como as mulheres migrantes que, como faladas an- tares, então frequentemente se imaginavam como
teriormente, importam por causa de suas dependên- pessoas melhores e mais gentis do que os papéis que
cias das tecnologias (Madianou e Miller 2012; Pana- representavam off-line. Nestes passos idílios, Bungle,
gakos e Horst 2006; Wallis 2008). Uma versão dessas cujas habilidades técnicas eram superiores, permitiu- 103
discussões articula-se ao redor do concei-to de in- -se tomar controle desses avatares, que engajaram em
digeneidade (Ginsburg 2008; Landzelius 2006; para práticas sexuais indescritíveis entre eles e com ou-
um precedente importante, ver Turner 1992), onde tros. Imediatamente, os participantes cujos avatares
indígena significava, apenas, tradição imutável, então haviam sido violados mudaram sua visão do ciberes-
o digital deveria ser considerado como destrutivo e paço de um tipo de terra pós-Woodstock dos libertos
não autêntico. Mas, hoje, reconhecemos que para ser para uma busca desesperada por alguma versão da
considerado indígena é uma construção moderna e ciberpolícia para confrontar essa abominável viola-
está constantemente sujeita à mudança. Então esta- ção de suas formas online.
mos aptos a reconhecer o uso criativo por todos os Uma teorização deste dilema também apareceu
grupos, não importa quão marginais ou destituídos. em The Dynamics of Normative Freedom, uma das
Do outro lado da balança, há antropólogos como De- quatro generalizações sobre a Internet em Trindade
Nicola que reconhecem que, hoje, é a ciência na Chi- (Miller e Slater 2000). A Internet, constantemente,
na ou no Sul da Ásia que representam a tecnologia de promete novas formas de abertura, que são quase
ponta em, por exemplo, a interpretação de imagens imediatamente seguidas por chamados para novas
digitais de satélites ou o design e desenvolvimento de restrições e controles, expressando nossa mais geral
software (DeNicola 2006). ambivalência em relação à experiência de liberdade.
Isto leva à questão da voz para o antropólogo (di- Talvez o debate mais sustentado tem sido em relação
gital). Drazin mostra como etnógrafos envolvidos em aos medos de pais sobre a exposição de suas crian-ças
design também costumavam dar voz ao público mais a mundos irrestritos, refletido no título do trabalho
amplo, como os passageiros de ônibus irlandeses e, de Boyd (2006) Facebook’s “Privacy Trainwrec’ e o
cada vez mais, que o público encontra maneiras de se trabalho de Sonia Livingstone (2009) sobre o uso da
tornar cada vez mais diretamente envolvido. Entre- Internet por crianças (Horst 2010). Como DeNico-
tanto, o problema é que isso é muito frequentemen- la observa, as funções de transmissão de localização
te usado como uma forma de legitimidade social do 16 Nota do tradutor: “Um estupro no ciberespaço” em tra-
que como redirecionamento de design. Como parte dução. Aliás, este é o porquê do autor ter usado “seminal”.

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do Foursquare, Latitude e Facebook Places têm sido isto executado por meio de sua etnografia sobre os
espetacularmente destacadas por sites como Please- trabalhadores em Linden Labs que desenvolveram
RobMe.Com e ICanStalkU.com. Second Life (Malaby 2009). Eles mantiveram muito
O digital tem ficado presado a uma moda acadê- da influência do idealismo dos anos 1960 encontra-
mica em relação termo pós-moderno, celebrado a dos em livros como o Whole Earth Catalog (Brand
partir da resistência à autoridade de todos os tipos, 1968; Coleman 2004; Turner 2006) e movimentos si-
mas especialmente a autoridade do discurso. Geis- milares que enxergavam a tecnologia como uma fer-
mar, resumidamente, revela os problemas por tal ide- ramenta de libertação. Continuam profundamente
alismo. Apenas abrir o espaço dos museus tendeu a interessados nas apropriações inesperadas e não pla-
levar a uma confusão entre aqueles não-informados nejadas dos seus designs pelos usuários. Ao colocar
e a uma colonização dominante pelos especialistas. limites sobre o que poderiam construir, eles espera-
Museus contemplam uma república democrática de -vam se engajar em um tipo de co-construção com
participantes, curadoria participativa e arquivos ra- usuários que então tornar-se-iam tanto produtores
dicais. Isso pode funcionar em pequenas comuni- quanto consumidores do jogo. Muitos dos que ado-
dades de especialistas, mas, do contrário, como na taram inicialmente eram tecnologicamente experien-
maior parte das práticas anarquistas, aqueles com tes e mais inclinados ao tipo de aventuras selvagens
poder e conhecimento podem rapidamente aparecer e profi-cientes que as pessoas em Linden Labs apro-
para dominar. As visões utópicas foram raramente variam. Entretanto, à medida que o jogo tornou-se
efetivas em conseguir pessoas para de fato se engajar mais popular, o consumo tornou-se menos criativos;
com coleções. Ademais, preocupações com o indí- “para a maioria deles isto parece envolver comprar
gena geralmente requerem restrições complexas que roupas e outros itens que milhares de outros com-
estão em oposição direta aos ideais de acesso público praram também” (Malaby 2009: 114). O desfecho é
puro. Um debate igualmente vasto e inconciliável se- muito evidente na etnografia de Boellstorff (2008)
guiu a evidente tendência das tecnologias digitais em sobre o Second Life, que constantemente experien-
criar condições para descommoditização, o que pode ciou a reintrodução de problemas mundanos como
104 nos dar acesso à downloads de música de graça, mas preocupação com preços de propriedade e o impacto
começam a erodir a viabilidade de carreiras baseadas disso em um de seus vizinhos.
no trabalho criativo. Barendregt discute o modo com Nem todos os designers mantêm esses desejos. Jo-
que tecnologias digitais podem exacerbar desigual- gos de azar também podem ser cuidadosamente pro-
dades do poder global, levando à exploração. É pre- jetados para criar um equilíbrio preciso entre custo e
cisamente a abertura do digital que cria medo entre atenção – nós podemos ganhar, mas precisamos con-
os indonésios de que isto os levará a uma colonização tinuar jogando. Malaby cita o estudo bem requintado
mais aprofundada pelo mais aberto Ocidente. Do ou- de Natasha Schull sobre a digitalização de caça-ní-
tro lado, Barendregt também mostra como culturas queis, onde a “digitalização permite aos engenheiros
digitais são usadas para criar visões de novos futuros ajustar matematicamente as tabelas de pagamento ou
islâmicos e indonésios com suas próprias versões de programações de recompensa para tipos específicos
utopias tecnológicas. de perfis de jogadores dentro de um mercado diver-
Esta ambivalência entre abertura e fechamento so” (Schull 2005, p. 70). O vídeo pôquer pode tornar-
torna-se ainda mais significante quando apreciamos -se um tipo de máquina de recompensa personali-
sua centralidade aos processos iniciais de design e zada que maximiza a quantidade de tempo que um
concepção na criação de tecnologias digitais, espe- pagante pode permanecer na máquina. Novamente,
cialmente aqueles relacionados a jogos eletrônicos. isto não é uma necessidade. O próprio exemplo de
Para Malaby, a essência dos jogos é que, ao contrário Malaby do patrocínio do estado Grego aos jogos de
do controle burocrático, que busca diminuir ou ex- azar Pró-Pôquer nos dá um tipo de conluio de como
tinguir custos17, jogos eletrônicos criam uma estru- os gregos sentem o espaço desse custo em suas vidas.
tura que encorajam contingente em seus usos. Ele vê Uma literatura extensa e análoga surge ao redor
deste conceito do “prosumidor” (Beer e Burrows
17 Nota do tradutor: A palavra usada é “contingency” que
2010), onde distinções tradicionais entre produto-
pode significar tanto contingente – força de trabalho,
res e consumidores resumem-se ao potencial criati-
tropas, grupo de pessoas, etc. – como custo/orçamento.
A palavra reaparece em seguida sobre jogos eletrônicos, vo dos consumidores que são atraídos diretamente
mas no contexto burocrático preferiu-se colocar a ideia de para o design. Por exemplo, facilidades digitais nos
custo financeiro. encorajam a fazermos nossos próprios sites e blogs,

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povoar o eBay ou transformar o MySpace. Quando de bruxaria, assim hoje vemos como a maioria das
estudantes primeiro encon-traram a ideia de Antro- pessoas prefere recorrer a culpar e assumir que é a
pologia Digital por meio de entusiasmo infeccioso de intencionalidade humana por trás do lado negativo
Wesch (2008) pelo Youtube, o apelo é ao consumidor dessas moedas digitais. É muito mais fácil falar de pa-
como a força que também criou ampla-mente este triarcado ou capitalismo ou resistência e assumir que
mesmo fenômeno (ver também Lange 2007). estes tem feito o trabalho de análise do que apreciar
Isso sugere um mundo digital mais complexo que a tecnologia digital é dialética e intrinsicamen-
onde produtores deliberadamente delegam traba- te contraditória; frequentemente, o que advogamos
lho criativo aos consumidores e designers possuem como implicações boas ou ruins são consequências
poucas escolhas além de seguir tendências criadas no inseparáveis dos mesmos desenvolvimentos, apesar
consumo. O ideal desse “prosumo” que inclui con- disso não ter a intenção de depreciar discernimento e
sumidores está se tornando uma tendência no capi- intervenções políticas apropriadas.
talismo contemporâneo (Ritzer e Jurgen-son 2010).
Consumidores apropriam-se de ideias comerciais e, NORMATIVIDADE E O PRINCÍPIO
por sua vez, são rapidamente incorporados (Thrift DA MATERIALIDADE
2005) e assim vai. Relacionado ao “prosumidor” está
o rápido crescimento de uma cultura online de re- O princípio da materialidade volta ao primeiro
torno, como o Trip Advisor para pesquisar locais de princípio no que concerne a dialética. Uma aproxi-
férias, Rotten Tomatoes para crítica de filmes e mil e mação dialética é pressuposta sobre um conceito de
uma fontes populares de avaliação e crítica que flo- cultura que pode existir apenas por meio da objetifi-
resceu assim que as tecnologias digitais permitiram. cação (Miller 1987). Como foi argumentado de várias
Estes, até agora, receberam muito menos atenção formas por Bourdieu, Latour, Miller e outros, ao in-
acadêmica do que, por exemplo, blogs, apesar de que vés de privilegiar uma antropologia social que reduz
possuem consequências muito vastas. o mundo a relações sociais, a ordem social em si está
As tensões e apropriações cruzadas entre nova pressuposta em uma ordem material. É impossível
abertura e fechamento reafirmam nosso primeiro tornar-se humano de outra forma além de socializar
princípio de que o digital é dialético, que ele rete- dentro de um mundo material de artefatos culturais 105
nha todas essas contradições analisadas por Simmel que incluem a ordem, agentes e relacionamentos en-
(1978) no que cerne o impacto do dinheiro. Mas tre as próprias coisas e não apenas o relacionamento
como constatamos em nosso segundo princípio, esta com pessoas. Os artefatos fazem muito além de ape-
sempre fora a causa. Não somos mais mediados ou nas expressar a intenção humana.
contraditórios daquilo que costumávamos ser. A me- A materialidade é, então, alicerce para a Antropo-
diação e a contradição são as condições que definem logia Digital, e isto é verdadeiro em diversos modos
aquilo que chamamos de cultura. O impacto prin- distintos, dos quais três são de suma importância.
cipal do digital frequentemente tem sido fazer estas Primeiro, há materialidade da infraestrutura e tecno-
contradições mais explícitas ou expor os problemas logia digital. Segundo, há a materialidade do conte-
contextuais do poder, como no controle político para údo digital, e, terceiro, há materialidade do contexto
Postill, relações entre pais e filhos para Horst e o em- digital. Começamos ao definir o termo digital como
poderamento e perda de poder de Ginsburg e Tacchi. um estado de coisa material, o interruptor binário de
Como observa Karanović, desenvolvimentos positi- ligado ou des-ligado, 0 e 1. O registro detalhado de
vos, como o software livre, trabalham melhor quando Kelty (2008) do desenvolvimento de open source cla-
crescem para além da mera utopia e reconhecem que ramente ilustra como o ideal de criação livre de no-
precisam das mesmas formas de proteção de direi- vas formas de código foi constan-temente entravado
tos autorais e infraestrutura legal como os donos de pela própria materialidade do código. Uma vez que
corporações que se opõem. Depois de certo ponto, um desenvolvimento potencial de código tornou-se
muitos iriam ajustar-se a uma reforma bem-sucedida incompatível com outro, escolhas precisam ser feitas
do que a uma revolução falha. que restringiam a premissa de participação comple-
Ainda assim, curiosamente, as sociedades de mas- tamente livre e igual. O recente trabalho de Blanchet-
sa contemporâneas não parecem mais prontas que te (2011) é promissor ao emergir como um inquérito
sociedades de pequena escala para aceitar a cultura sustentável à ampla materialidade de algumas de nos-
como intrinsecamente contraditória. Assim como sas tecnologias digitais mais básicas, especial-mente
Evans-Pritchard (1937) entendeu a reação em termos o computador. Blanchette explicitou rejeição ao que

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ele chamava de ferramenta da imaterialidade encon- do lixo eletrônico tende a seguir as desigualdades da
trada desde o trabalho de Negroponte (1995) Being política econômica global, sendo depositado em áre-
Digital até “Blown to Bits” (Abelson, Lewis e Lede- as vulneráveis e fora de vista, como na África (Gross-
en 2008). Na verdade, seu trabalho constrói sobre a man 2006; Park e Pellow 2002; Schmidt 2006).
análise detalhada do disco rígido de computador de O segundo aspecto da materialidade digital refe-
Kirschenbaum (2008). Kirschenbaum aponta que há re-se não à tecnologia digital, mas ao conteúdo que
um grande abismo entre meta-teóricos, que pensam se cria, reproduz e transmite. Dourish e Mazmanian
no digital como uma nova forma de efêmero, e um (2011) apontam que mundos virtuais nos têm feito,
grupo chamado de informática forense, cujo trabalho de modo crescente ao invés de decrescente, cientes da
é extrair dados de discos rígidos velhos ou quebrados materialidade da informação em si como um com-
e que dependem de uma propriedade oposta – que é, ponente maior de tal conteúdo. Coleman (2010) tem
na verdade, muito difícil apagar informação digital. muitas referências a exames antropológicos e de ou-
Blanchette propõe uma aproximação mais susten- tras ordens do impacto das tecnologias digitais sobre
tável à materialidade digital focando em problemas a linguagem e texto (Jones, Schiefllin e Smith 2011;
como construção de camadas e modularidade na es- Lange 2007, 2009). Há também alguns domínios
trutura básica do computador. O que é notável é que óbvios da materialidade visual. Por exemplo, Miller
mesmo neste nível micro, ao dissecar as entranhas (2000) usou a teoria de Gell sobre arte para mostrar
de uma unidade central de processamento, vemos como websites, assim como obras de arte, são siste-
a mesma troca entre especificidade e abstração que maticamente pensados para seduzir e reter alguém
caracterizaram nosso primeiro princípio dialético no que esteja passando pela Internet enquanto repelem
nível mais macro – o que Miller (1987) chamou de a aqueles que não têm qualquer razão para atrair.
humildade das coisas. Quanto mais efetiva a tecno- A materialidade se aplica às pessoas tanto quanto
logia digital, mais tendemos a perder a consciência aquilo que criam. A etnografia do poder nos cam-
do digital como um processo material e mecânico. pos em Camarões de Rowland (2005) é um estudo
Kirschenbaum (2008, p. 135) diz: “computadores de tais relativas materialidades. Um chefe é um corpo
106 são únicos na história da tecnologia de escrita no altamente visível e substancial, enquanto um plebeu
que apresentam um ambiente material premeditado pode ser apenas um corpo parcialmente executado,
construído e arquitetado para propagar a ilusão da insubstancial e normalmente invisível. Um problema
imaterialidade”. Objetos como discos rígidos cons- similar surge para indivíduos deficientes que foram
tantemente produzem erros, mas são projetados para ouvidos aqui por Ginsburg. Uma pessoa pode estar
eliminá-los antes que impactem o que iremos fazer presente, mas não quer dizer necessariamente que
com eles. Delegamos tal conhecimento como a sin- ele ou ela está particularmente visível. A característi-
taxe de um arquivo UNIX àqueles que nomeamos ca crítica das tecnologias digitais aqui não é técnica;
‘geeks’, que caracterizamos como antissociais, dessa é o grau com que impactam o poder. Ser material no
forma exilando este conhecimento de nosso mundo sentido do meramente visível poder ser transforma-
social comum, onde achamos isso inoportuno (Cole- do em material no sentido de ser reconhecido e, en-
man, 2009). fim, respeitado. Se você perdoar o trocadilho, funda-
Outro exemplo desta exclusão da consciência está mentalmente, ser material signifi-ca vir à substância.
evidente na questão do lixo eletrônico. Junto com Terceiro, adicionalmente à materialidade da tec-
quase todos os outros domínios, o digital possui nologia e à materialidade do conteúdo, há também
implicações contraditórias para problemas ambien- a materialidade do contexto. Questões de espaço e
tais. Por outro lado, aumenta o potencial para que lugar são preocupações centrais no trabalho de De-
infor-mações menos tangíveis, como música e texto, Nicola e sua discussão sobre “spimes”18, o que im-
possam circular sem CDs e livros, desta forma remo- plica que objetos, e não apenas pessoas, podem ter
vendo uma fonte de lixo. Similarmente, a grande pe-
gada de carbono, de longos voos de negócios, poten- 18 Nota do tradutor: “Spime”, ainda sem definição formal
cialmente, pode ser substituída por conferências de em dicionários de língua inglesa, é um neologismo para
objetos físicos que possuem “conhecimento de si” no sen-
vídeo ou webcam. Por outro lado, estamos nos tor-
tido de serem possíveis de serem localizados no tempo e
nando cientes que o lixo eletrônico costumeiramente
no espaço. Exemplos seriam as tecnologias NFC (Near
contém vários detritos problemáticos ou materiais Field Communication), celulares ou chaves de carro que
tóxicos que são difíceis de se desfazer. Isso é de pre- tenham a capacidade de ser rastreados caso sejam perdi-
ocupação particular à antropologia já que o descarte dos.

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consciência de espaço. Isso leva a um tipo de internet tadores àquelas por trás das finanças, jogos, design
das coisas, onde o digital resulta não apenas em uma ou catálogos de museu, parecemos menos e menos
aprimoração do espaço absoluto, como no Sistema cientes de como o nosso ambiente é estruturado ma-
de Posicionamento Global (GPS), mas aumentando terialmente e isso nos cria como seres humanos. Isso
a percepção de proximidade relativa. Isto pode refe- importa, pois é aquilo que estende o argumento crí-
rir a pessoas, como homens gays fazendo contato por tico de Bourdieu (1977) sobre o papel de taxonomias
meio do Grindr, mas também objetos detectando sua práticas em nos fazer os tipos de pessoas particula-
própria proximidade relativa. Como DeNicola men- -res que somos, que subsequente tomam por garan-
ciona, a percepção digital de localização não é uma tido a maior parte daquilo que cha-mamos cultura.
morte do espaço, mas uma inscrição além como uma Bourdieu mostrou que uma parte principal do que
posição material indelével nos faz humanos é o que chamou de prática – uma
O contexto não se refere apenas ao espaço e ao conjuntura do aspecto material com a socialização
tempo, mas há vários parâmetros da interação hu- do habitus, que fazem o mundo cultural parecer
mana com tecnologias digitais, que formam parte da como uma segunda natureza, ou seja, naturalizado.
prática material. Os estudos de Suchman (2007) leva- Isso é melhor capturado pelo conceito acadêmico de
ram a uma maior ênfase sobre as reconfigurações hu- normatividade.
-mano-máquina que são complementada pelo total Encerrar essa introdução ao tópico da normati-
desenvolvimento da interação humana-computador vidade é expor a única mais profunda e fundamen-
como disciplina acadêmica (ex.: Dix 2004; Dourish tal razão pelo qual tentativas de entender o mundo
2004), uma área discutida dentro da contribuição de digital na ausência da antropologia ficarão prova-
Drazin. velmente incompletas. Por um lado, podemos ficar
Boa parte das tecnologias digitais contemporâneas de queixo caído perante as dinâmicas da mudança.
são, em essência, mecanismos para busca de atenção, Todos os dias, compartilhamos nosso espanto com
parcialmente porque um dos mais comuns clichés so- o novo: um smartphone mais inteligente, uma con-
bre o mundo digital é que ele prolifera a quantidade versa nítida por webcam com nosso amigo na China,
de coisas competindo por nossa atenção; logo, qual- os usos da cultura dos comentários, a criatividade do
quer meio deve, como fazem, tentar ainda mais. Bro- 4Chan, que deu origem ao anarquismo mais idealis- 107
adbent observa que algumas mídias pessoais como o ta do Anonymous na esfera política, assim como a
telefone requerem atenção imediata, enquanto outras WikiLeaks. Colocados juntos, temos a impressão de
como o Facebook são menos exigentes. estarmos imersos em algum Admirável Mundo Novo
Finalmente, apesar desta seção ter se concentrado que nos arrastou nas últimas décadas. Todos esses
no princípio da materialidade, isso também começou desenvolvimentos são bem documentados por ou-
com as observações de Blanchette e Kirschenbaum tras disciplinas. Ainda assim, talvez a característi-ca
de como formas digitais são usadas para propagar a mais surpreendente da cultura digital não é a veloci-
ilusão do imaterial, um ponto central à discussão de dade da inovação técnica, mas a velocidade com que
Boellstordd sobre o conceito do virtual, mas eviden- a sociedade toma essas coisas por garantidas e cria
tes em campos tão diversos quanto a política e a co- condições normativas para seus usos. Dentro de me-
municação. Mas então, como observa MacKenzie em ses, uma nova capacidade assume um grau tal que,
seu excelente livro sobre a materialidade das finanças quando ela para, sentimos que perdemos tanto um
modernas com respeito a novos instrumentos finan- direito humano básico e um braço prostético valioso
ceiros, “não devemos simplesmente ficar fascinados com o qual somos humanos.
pelas qualidades derivativas do virtual, precisamos Não apenas aceitação é central à normativida-
investigar como a virtualidade é materialmente pro- de, mas incorporação moral (Silvers-tone, Hirsch e
duzida” (Mackenzie 2009, p. 84). Morley 1992). De novo, a velocidade pode parecer
É porque as tecnologias estão constantemente empolgante. De alguma forma, nos últimos poucos
encontrando novas maneiras de construir ilusões da meses, sabemos o que é adequado e não adequado
imaterialidade que uma perspectiva de cultura ma- de se postar online, ao escrever um e-mail, aparecen-
terial torna-se ainda mais importante. De todas as do na webcam. Pode haver um pequeno momento
consequências dessa ilusão de imaterialidade, a mais de incerteza. Gershon (2010) sugere isso com res-
importante permanece na forma com que os objetos peito a questão de qual mídia, dentro da polimídia,
e tecnologias ofuscam seus papeis em nossa sociali- devemos usar para dar uma bota em um namorado
zação. Quer seja a infraestrutura por trás de compu- ou namorada. Mas, nas Filipinas, Madianou e Miller

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(2012) descobriram que esta sociedade mais coleti- no que media o que a tecnologia é, não o contrário. A
va tendia a impor a normatividade sobre novas for- tecnologia pode ser empregada para ajudar a mudar
mas de comunicação quase instantaneamente. Em nossa conceituação do ser humano, que é o que o ati-
seus estudos de caso de novas tecnologias de mídia vista digital de Ginsburg está tentando realizar.
nos lares, Horst também mostra quão rápido e fácil A apreensão antropológica é recusar a permitir
as tecnologias digitais são, literalmente, domestica- que o digital seja visto como um artifício ou, de fato,
das como normativas. Um dos principais impactos como mera tecnologia. Um momento chave na his-
da Antropologia Digital é reter os conhecimentos tória recente da antropologia veio com o relatório
de Bourdieu de como a cultura material socializa-se de Terence Turner (1992) na poderosa apropriação
no habitus. Mas, ao invés de assumir que isso apenas do vídeo por um grupo de índios amazônicos – os
ocorre dentro de ordens habituais de longo prazo das caiapós – em sua resistência à infiltração estrangeira
coisas dadas pela história, nós reconhecemos que o (ver também Boyer 2006). Foi o momento em que
mesmo processo pode ser extraordinariamente efeti- a antropologia teve de deixar sua presunção de que
vo quando afunilado a um par de anos. sociedades tribais eram intrinsicamente lentas ou
Portanto, nós sugeriríamos que a chave para a An- passivas, o que Levi-Strauss chamou de frias. Sob as
tropologia Digital, e talvez para o futuro da própria condições certas, elas podem se transformar dentro
Antropologia, é, em parte, o estudo de como as coisas do período de poucos anos em ativistas, sagazes,
tornam-se rapidamente mundanas. O que experien- mundanos e tecnicamente pro-ficientes, assim como
ciamos não é uma tecnologia por si, mas um gênero as pessoas em outros tipos de sociedades.
imediatamente declinado de uso cultural. Um laptop, Antes deste momento, a Antropologia manteve-se
um arquivo, um processo de design, uma página de escrava de costumes e tradições, que presumiam que
Facebook, um acordo para compartilhar informação a Antropologia tornar-se-ia menos relevante à medi-
local – nenhum destes pode ser desagregado de seu da que a velocidade nas mudanças no nosso ambien-
material em oposição a seus aspectos culturais. Eles te material crescesse rapidamente com o advento do
são combinações integrais baseadas numa estética digital. Mas este último ponto com respeito ao passo
108 emergente que é um consenso normativo de como das imposições normativas, nós vemos que o oposto
uma forma particular deve ser usada, o que, por sua é verdade. Quanto mais rápida a trajetória da mudan-
vez, constitui aquilo que então é – o que nós reco- ça cultural, mais relevante o antropólogo, porque não
nhecemos como um e-mail, o que concordamos que há, absolutamente, nenhum sinal de que as mudan-
constitui o design, o que tornou-se os dois métodos ças na tecnologia estão ultrapassando a capacidade
aceitáveis de usar a webcam. A palavra gênero impli- humana de considerar as coisas como normativas. A
ca uma combinação de aceitabilidade que é simulta- Antropologia é uma das poucas disciplinas equipa-
neamente moral, estética e prática (veja também Ito das para imergir a si no processo pelo qual a cultura
et. al. 2010). digital torna-se cultura normativa e entender o que
A normatividade pode ser opressiva. No poderoso ela nos diz sobre ser humano. A lição para a antropo-
exemplo de abertura de Ginsburg, a ativista deficien- logia é que, longe de nos fazer obsoletos, a história da
te Amanda Baggs deixa claro que as tecnologias digi- antropologia mal começou.
tais possuem a capacidade para fazer alguém parecer
mais humano do que antes, mas a pegada é de que
isto é apenas ao grau em que os deficientes usam essa REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
tecnologia para conformarem-se ao que é considera- ABELSON, H., H. LEWIS, AND K. LEDEEN. Blown to
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sos chaves de atenção no que são vistos como meios plosion. Boston: Addison Wesley, 2008.
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