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Qualidade de Vida e Deglutição – Como Avaliar na Prática Clínica

Juliana Portas • Renata L. V. Guedes

Introdução
A dificuldade de deglutição tem um forte impacto na qualidade de vida e na saúde do indivíduo.
Os pacientes não têm apenas de enfrentar a doença, mas também precisam conviver com as
sequelas físicas, psicológicas e sociais de seu tratamento. No planejamento do tratamento do
paciente disfágico, há uma necessidade de medidas específicas que reflitam a sensação de bem-
estar do indivíduo, e não apenas a cura da doença e a taxa de sobrevida (Tschudi et al., 2003;
Bandeira, 2004; Zuy dam et al., 2005).

Qualidade de vida

Conceito
Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS) (1998), qualidade de vida é “a percepção do
indivíduo de sua posição na vida, no contexto da cultura e sistema de valores nos quais ele vive, e
com relação aos seus objetivos, expectativas, padrões e preocupações”. Trata-se de um conceito
multidimensional e individual, que tenta incorporar a percepção do indivíduo quanto aos
diferentes aspectos da sua vida, os quais podem ser definidos de várias maneiras. É necessário
transformar esse conceito em medida quantitativa para que seja utilizado tanto na clínica quanto
em pesquisa.
As implicações do tratamento para a qualidade de vida global do paciente têm sido
enfatizadas como um importante tópico, independentemente da etiologia da disfagia. Apesar de o
impacto na qualidade de vida do ponto de vista do paciente seja difícil de ser mensurado, por ser
um dado mais abstrato comparando-se com os aspectos fisiológicos, na última década foram
criadas distintas ferramentas, já validadas e confiáveis para medir esse impacto. (Gliklich et al.,
1997; Carrara-De Angelis e Bandeira, 2009; Plowman-Prine et al., 2009).

Avaliação

QUESTIONÁRIOS
Para que a avaliação da qualidade de vida seja realizada de maneira concisa, são necessárias
ferramentas específicas que englobem os aspectos vivenciados por esses pacientes. Além disso,
tais aspectos necessitam ser validados e específicos para a utilização na população em estudo.
Essa avaliação pode ser realizada por meio de questionários genéricos, que avaliam o estado
funcional geral e o bem-estar do paciente, independentemente de doença/tratamento; ou
específicos (doença, tratamento ou sintoma específico), os quais são mais precisos e sensíveis a
alterações clínicas, como no caso da disfagia. Os questionários de avaliação de qualidade de vida
foram construídos no intuito de tornar o conceito mensurável. A criação de protocolos
sistemáticos favoreceu a aproximação da percepção que o paciente apresenta da sua qualidade
de vida com a realidade vivenciada por ele.
Até o momento, a literatura nacional oferece alguns questionários relacionados com a
disfagia validados para o português do Brasil: o Questionário de Qualidade de vida em Disfagia
(SWAL QOL) e o Questionário de Disfagia M.D. Anderson (MDADI). Há também o Questionário
de Satisfação do Paciente e Qualidade do Cuidado no Tratamento da Disfagia (SWAL CARE),
outro questionário de autoavaliação. Este tem por objetivo identificar o grau de satisfação do
paciente diante do tratamento da disfagia (Portas e Guedes, 2012).
Cabe aqui comentar sobre a aplicação dos questionários em nosso país e dentro do contexto
sociocultural da população brasileira. A maioria desses instrumentos foi criada para ser
autoaplicável. No entanto, durante o processo de validação, encontramos muitas vezes a
necessidade de realizar as perguntas diretamente aos pacientes, por causa da baixa escolaridade
e da dificuldade de entender o que está sendo questionado. Palavras como “deglutição”, por
exemplo, precisaram ser explicadas em alguns momentos. Ao aplicar um questionário, deve-se
tomar o cuidado em não influenciar nas respostas, mesmo sendo necessário intervir para auxiliar
o paciente no entendimento do que se questiona.

P RÁTICA CLÍNICA
A avaliação da qualidade de vida relacionada com a deglutição possibilita a interpretação da
percepção do paciente durante o processo de reabilitação da disfagia. Além disso, é fundamental
para se conhecer o verdadeiro impacto das alterações vivenciadas por ele no momento da
alimentação. Assim, direciona-se o tratamento e o empenho dos profissionais de saúde quanto
aos aspectos que contribuem para o sucesso terapêutico (Rogers et al., 2002; McHorney et al.,
2002; Bandeira, 2004).
É o que se observa, por exemplo, quando se comparam as respostas de um mesmo paciente a
esses questionários antes e após o início do treino de alimento por via oral durante a fonoterapia.
Em geral, o impacto na sua qualidade de vida diminui, pois o fato de começar a se alimentar
novamente minimiza a frustração da sonda de nutrição enteral e reduz o fardo quanto à presença
da disfagia (Guedes et al., 2012). Por isso, a utilização desses questionários para monitoramento
da evolução terapêutica agrega um valor a mais à prática clínica. O ideal é que eles sejam
aplicados no momento da avaliação inicial e sirvam de auxílio na evolução e no planejamento
terapêutico, inclusive no processo de alta.
Em alguns tipos de doenças específicas que podem acarretar comprometimento na
deglutição, como câncer de cabeça e pescoço, o impacto na qualidade de vida já é bem descrito
na literatura. No caso dos pacientes neurológicos, esse tipo de avaliação é menos comum, apesar
de os sintomas da disfagia já serem bem documentados. Um dos poucos estudos que
investigoram o impacto da disfagia em pacientes com doença de Parkinson relatou
consequências psicossociais significantes para a inabilidade em deglutir (Miller et al., 2006;
Plowman-Prine et al., 2009).
As medidas realizadas do ponto de vista do paciente são importantes, pois, além de a
perspectiva do clínico e do paciente geralmente diferirem, elas nos trazem informações valiosas
sobre o dia a dia do paciente nos momentos de alimentação. Assim, tais informações podem
guiar estratégias de manejo para a reabilitação. Os mesmos autores relatam que a qualidade de
vida específica relacionada com a deglutição apresentou correlação importante com aquela
ligada com a saúde geral e a depressão. Isso indica que a presença de qualquer alteração no
processo de alimentação pode acarretar profundas modificações na vida do paciente (Plowman-
Prine et al., 2009). O mesmo não foi observado em um grupo de pacientes com esclerose lateral
amiotrófica (ELA), em que apenas a alteração de deglutição foi fortemente correlacionada com
depressão, mesmo quando existia um déficit na saúde geral (Hillemacher et al. 2004)
Pauloski et al. (2002) avaliaram a percepção da disfagia em 132 pacientes com diferentes
tipos de câncer de cabeça e pescoço, tratados com quimioterapia e/ou radioterapia. A percepção
da disfagia foi avaliada por meio do questionamento: “Você tem problemas com sua
deglutição?”. Também se avaliou a função de deglutição por meio da videofluoroscopia. Foi
observado que os pacientes que perceberam uma piora na deglutição após o tratamento médico
também apresentaram pior funcionamento (menor eficiência da deglutição orofaríngea,
aumento do tempo de trânsito, mais estases e mais aspirações). Assim, era necessária a utilização
de sonda para alimentação em 26,6% dos pacientes com queixa de disfagia. Isso nos mostra que
um simples questionamento ao paciente pode auxiliar na modificação ou na definição de
condutas relacionadas com alimentação, minimizando os riscos de piora clínica como
desnutrição, desidratação e pneumonia aspirativa.
O principal desafio para o fonoaudiólogo que trabalha com pacientes disfágicos é
implementar estratégias de educação e aconselhamento sobre a alta prevalência de
modificações na saúde mental e social, para que os pacientes, cuidadores e familiares lidem
melhor com tais alterações (Plowman-Prine et al., 2009).
As limitações da alimentação, quando envolvem dificuldade na efetividade e na segurança da
deglutição, podem acarretar consequências graves para a qualidade de vida dos pacientes
(Gustafsson e Tibbling, 1991). Carrara-De Angelis e Bandeira (2009) relatam que as restrições
vivenciadas pelos disfágicos podem trazer sentimentos de frustração, desânimo, vergonha e
constrangimento perante familiares e amigos, o que os leva até a não mais se alimentar em
público. Dessa maneira, a função social na refeição/alimentação deixa de cumprir seu papel.
Portas (2009), durante a validação do SWAL-QOL, encontrou alguns dados pertinentes,
correlacionando a prática clínica e a aplicação do questionário. O grau da disfagia não
apresentou, necessariamente, impacto nos domínios “desejo de se alimentar”, “duração da
alimentação”, “sono” e “fadiga”. Os pacientes com piores deglutições apresentam maior
frequência de sintomas da disfagia, mais medo de se alimentar e maior impacto na saúde
mental, na função social da alimentação e em sua comunicação. Quanto pior o grau de disfagia,
pior o impacto na comunicação. Trata-se de um dado de especial valor, ao considerar que os
pacientes com disfagia neurogênica, muitas vezes, não têm consciência das alterações de
deglutição, mas apresentam queixas de comunicação. Na terapia de nutrição enteral (TNE)
associada a treino de via oral assistido, foi observado menos problemas para se alimentar,
redução dos sintomas e melhor seleção do alimento. Frequentemente, porém, o paciente sabe do
risco que ainda corre ao se alimentar. Isso justifica o impacto no domínio saúde mental e a
limitação na vida social.
No questionário SWAL-QOL, os domínios que apresentam maior correlação com a prática
clínica são deglutição como um fardo, frequência de sintomas, medo de se alimentar e saúde
mental e social. Dessa maneira, estes podem ser norteadores do processo de diagnóstico, da
terapêutica e do prognóstico.
Rinkel et al. 2009, ao validarem o SWAL QOL para a cultura alemã, propõem uma análise
sumarizada, um escore global do questionário. Também citam que uma diferença de escore de
12 pontos ou mais pode ser clinicamente e estatisticamente relevante ao comparar grupos de
pacientes após o tratamento de tumores de cavidade oral e orofaringe.
Daher (2013) avaliou a qualidade de vida relacionada com a deglutição de pacientes com
câncer de cabeça e pescoço pré, durante e após 12 meses do tratamento. Observou-se, na
avaliação do SWAL-QOL, pior impacto após o tratamento com melhora após 6 meses. Contudo,
especificamente os domínios fardo, desejo de se alimentar, seleção de alimento, medo e saúde
mental apresentaram nova queda após 12 meses. Esses dados são de grande valia para a prática
clínica, pois a literatura relata estabilidade nos parâmetros de qualidade de vida após 12 meses do
tratamento. No entanto, isso parece não acontecer para todas as queixas de deglutição. Assim,
demonstra-se necessidade de acompanhamento com uma abordagem individualizada que
valorize suas dificuldades e ajude no enfrentamento das sequelas da doença, mesmo que a longo
prazo.

EMAMBIENTE HOSPITALARE AMBULATORIAL


A avaliação da qualidade de vida em ambiente hospitalar e ambulatorial pode auxiliar na decisão
sobre a efetividade do tratamento, melhorar a tomada de decisão do paciente pelo
esclarecimento dos efeitos colaterais do tratamento médico e servir como fator prognóstico para
analisar os sintomas e/ou as necessidades de reabilitação. Também pode identificar os aspectos
de impacto na sobrevida dos pacientes e auxiliar na estimativa de custo-efetividade relacionada
ao tratamento. A utilização desses instrumentos de avaliação nesse ambiente é mais comum em
pacientes ambulatoriais, visto que, muitas vezes, os pacientes internados encontram-se em pior
estado clínico e sem condições de responder aos questionamentos realizados. Ao avaliar o
paciente por meio de um questionário, aspectos que podem não ser avaliados rotineiramente, e
várias vezes não compreendidos ou verbalizados, são mais bem percebidos de acordo com as
prioridades dos pacientes.

Considerações finais
O estudo da qualidade de vida relacionada com a deglutição auxilia no conhecimento do real
impacto que as alterações decorrentes da disfagia podem acarretar no bem-estar físico, psíquico
e social do indivíduo (Portas, 2009). Apenas diagnosticar alterações funcionais da disfagia não
reflete a grande limitação que a doença causa a um indivíduo inserido na sociedade. Exames
objetivos não podem simplificar o que é vivido pelo paciente, pois o mesmo grau de disfagia
produz impacto distinto em cada ser humano e nem sempre o clínico partilha da mesma opinião
do paciente. Os instrumentos de qualidade de vida são protocolos sistematizados que auxiliam o
indivíduo na identificação do seu próprio problema e no processo de reabilitação.

BIBLIOGRAFIA
Bandeira AKC. Qualidade de vida relacionada à voz e à deglutição após tratamento para câncer
de língua. São Paulo; 2004. [Dissertação de Mestrado-Fundação Antônio Prudente].
Carrara-De Angelis E, Bandeira AKC. Qualidade de vida em deglutição. In: Jotz GP, Carrara-De

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