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Introdução
Tomaremos como referência a relação da criança com o espaço físico da sua cidade pois,
de acordo com o último relatório da UNICEF sobre o estado mundial da infância, a
experiência da infância ocorre, cada vez com mais frequência, no meio urbano. De acordo
com a mesma fonte, mais de metade da população mundial, mais de 1000 milhões de
crianças, vivem atualmente em grandes e pequenas cidades.
A relação dos indivíduos com o espaço físico tem sido menosprezada ao nível das
políticas públicas para a infância. A cidade, enquanto elemento mediador e facilitador de
interações terá que ser observada, refletida e modificada a partir das percepções e
experiências dos seus cidadãos, enquanto atores em movimento no espaço urbano. É
necessário portanto que ocorra uma renovação paradigmática ao nível das políticas para
a infância e para a juventude de forma a que as cidades e as sociedades sejam mais justas,
mais inclusivas e mais democráticas. Tal transformação é essencial para reajustar
diferentes domínios do desenvolvimento entre os quais, naturalmente, o desenvolvimento
motor.
Psicologia Ecológica
A Psicologia Percetiva Ecológica está marcada pelos trabalhos desenvolvidos por Gibson
(1979) no sentido de compreender quais as informações disponíveis ao sujeito que são
verdadeiramente percebidas e que contribuem para a regulação do comportamento. No
conceito da psicologia perceptiva ecológica, a percepção é um fim orientado, o que
significa que não pode estar separada da atividade intencional à qual está ligada. A relação
do sujeito-ambiente é imediata e baseia-se na atividade prática. A mobilidade do ator e a
natureza da perceção estão indissociavelmente ligados, sendo a mobilidade ou ação a
forma de um organismo perceber a relação de reciprocidade entre organismo e contexto
físico e social (Gunther, 2003).
As affordances estão também dependentes das experiências que os sujeitos operam nos
contextos sociais, culturais e físicos, orientadas por um processo contínuo de
temporalidade e espacialidade, numa interatividade de perceções e ações. Para Kyttä
(2003), as affordances expressam a possibilidade do meio ambiente estimular os
organismos nos processos da perceção, bem como, a capacidade do sujeito em perceber
o que está disponível no ambiente, e providenciam um conceito psicológico relevante
para analisar a evolução da relação criança-ambiente (Kyttä, 2002). Neste sentido,
poderemos inferir que o conhecimento que as crianças adquirem e geram nas suas
interações com os seus pares, ambientes e adultos resultam da realização das affordances
e da qualidade destas. As crianças, ao perceberem as affordances no ambiente, descobrem
esse ambiente como interessante, causador de desafios e como um espaço de aventura e
de exploração. Isto desencadeia novas interações e a procura de novas affordances.
Affordances multi-dimensionais
As affordances não são todas funcionais, podem também ser de caráter social, ou
emocional (Kyttä, Broberg, & Kahila, 2012). As crianças, na sua interação com o
ambiente físico, posicionam-se e atuam perante este através de um conjunto de
affordances multi-dimensionais. Lim e Barton (2010) concluíram que as crianças, através
de um envolvimento contextualizado com os lugares que lhes são significativos,
conseguem ler estes lugares de forma profunda e rica, em camadas de funcionalidades e
de significados, as quais lhes oferecem affordances sociais e psicológicas adicionais. As
relações afectivas que as crianças estabelecem com os vários contextos para além de
promoverem affordances psicológicas e emocionais, desencadeiam, também, affordances
cognitivas e sociais que possibilitam o desenvolvimento do sentido de lugar das crianças
(Chatterjee, 2005).
A independência de mobilidade das crianças e jovens pode ser definida como a “liberdade
das crianças para se deslocarem na sua vizinhança ou cidade sem a supervisão adulta”
(Tranter, 1994), permitindo que estas explorem e aprendam autonomamente o seu
ambiente físico, dando-lhes tempo e uma progressiva liberdade de movimento (Bjorklid
& Nordstrom, 2004). A independência de mobilidade é essencial para assegurar um
controlo do envolvimento próximo, para permitir o domínio espacial e a navegação em
ambientes mais alargados, e, também, para oferecer o espaço necessário ao pleno
desenvolvimento das competências motoras, cognitivas e sociais. O enquadramento
teórico proporcionado pela psicologia ecológica de Gibson e pela bioecologia de
Bronfenbrenner funde-se no conceito de independência de mobilidade.
1
Dados provenientes de um estudo não publicado intitulado “Children’s Independent Mobility-16
Country International Comparison” (Policy Studies Institute).
Figura 3- Ranking internacional de Independência de Mobilidade de Crianças.
A independência que a criança mostra face ao envolvimento espacial e social é uma das
características da sua identidade social e influencia o desenvolvimento da criança,
inclusive a prática do jogo. Neto (2006) diz que as referências de identidade social do
corpo, na infância, são construídas também pelo equilíbrio entre ação do corpo no espaço
físico e a riqueza interativa no espaço habitacional, na rua, na escola e na cidade.
Jogo
O ato de brincar, o jogo (“play”) é a linguagem universal da infância pois é através do
jogo que as crianças se entendem umas às outras e fazem sentido do mundo que as rodeia.
O jogo é um processo livremente escolhido, pessoalmente dirigido e intrinsecamente
motivado. O jogo é pré-consciente e pré-verbal e surge de estruturas biológicas
ancestrais que existiram antes da nossa consciência ou da nossa habilidade para falar
(S. Brown & Vaughan, 2010, pág. 15). Brincar é antes de tudo, um “estado mental”,
apesar de também poder ser considerado como uma atividade. S. Brown & Vaughan
(2010, pág. 17) identificam sete propriedades inerentes ao jogo que o distinguem de outras
atividades e que reforçam esta ideia de jogo como “estado mental”:
Aparentemente desprovido de finalidade, ou seja, realizado pelo seu próprio
gozo.
Voluntário, isto é, não é obrigatório ou imposto pelo dever.
Atração inerente, pois é divertido, excitante e provoca uma boa sensação.
Liberdade de tempo, isto é, quando os indivíduos se encontram totalmente
engajados no jogo, perdem a noção da passagem do tempo, o que é bastante
frequente no caso das crianças;
Diminuição da consciência do self, as pessoas quando entrosadas no jogo
desfocam a sua atenção sob si próprias e sob as suas preocupações, uma vez
que estão focadas no prazer e sentido do ato lúdico;
Potencial de improvisação, ou seja, as estratégias, comportamentos e decisões
tomadas enquanto se brinca são flexíveis e criativas, incluem elementos
aparentemente irrelevantes, ou pouco prováveis, bem como, uma recriação das
funcionalidades e simbolismos de equipamentos e de recursos disponíveis no
ambiente para brincar, a improvisação resulta da serendipidade e
imprevisibilidade associada ao jogo;
Desejo de continuidade, o prazer da experiência sentido no jogo conduz a um
desejo de perpetuação da atividade lúdica.
O jogo não é só comum aos humanos, sendo observado na maior parte dos mamíferos e
até em alguns répteis (Burghardt, 1998). Do ponto de vista filogenético, o jogo tem um
caráter ancestral, sendo anterior à própria cultura, e um papel basilar na construção das
atividades humanas em sociedade (Huizinga, 1950). As correntes evolucionista e
etologista defendem que o jogo é um mecanismo adaptativo de sobrevivência e que
possibilita uma transição adequado e competente entre o período juvenil e a idade adulta.
De um ponto de vista ontogenético, a espécie humana é caracterizada por um lento
crescimento do cérebro, uma infância prolongada (o qual é marcado por uma imaturidade
cognitiva) que possibilita uma adaptação futura a um vasto espectro de circunstâncias e
desenvolvimento de habilidade e resiliência, necessárias para ultrapassar com sucesso as
condições e situações adversas. Pellegrini, Dupuis, & Smith (2007) defendem que durante
este período de imaturidade cognitiva, o jogo torna-se particularmente importante, pois,
através deste, é possível à criança desenvolver novas estratégias e comportamentos como
resposta às novidades ambientais, com custos biológicos mínimos, e que irão, por sua
vez, influenciar processos de desenvolvimento e de evolução futuros. O jogo como
mecanismo de desenvolvimento de competências que serão necessárias na idade adulta,
existe nas crianças e nos animais, mas não nos adultos, sendo denominado por Sutton-
Smith (2001) de “progress rhetoric”. Este autor define sete retóricas de jogo que se
constituem como narrativas de interesse para as crianças e que são colocadas num
contexto dentro de um sistema de valores alargados. Estes valores contextuais são gerados
simbolicamente no âmbito dos sistemas sociais, educacionais, políticos e religiosos,
através dos quais os significados das culturas nas quais vivemos são construídos. Para
além, da retórica progressiva, este autor sugere o jogo como retórica do destino, retórica
do poder, retórica da identidade, retórica do imaginário, retórica do self e retórica
frívola.
Apesar desta visão do jogo como mecanismo adaptativo que promove benefícios
deferidos, existem autores que chamam a atenção para algumas características inerentes
ao jogo da criança, sugerindo uma visão deste que apenas remete para o prazer e alegria
no ato de brincar, ou seja, o jogo apenas pelo jogo em si mesmo, como comportamento
primário. O principal argumento que apresentam é o de que apesar de muitas vezes o jogo
representar situações e comportamentos adultos, como se em fase de preparação e de
experimentação, o jogo em si realizado é muito diferente da realidade: os movimentos
físicos, as vozes e linguagens são exageradas, incompletas ou na ordem errada; as linhas
das histórias tornam-se imprevisíveis, aleatórias ou fantásticas, os comportamentos
convencionais são invertidos ou subvertidos, as regras do jogo são modificadas para que
o jogo continue; cria-se um mundo onde por aquele momento as crianças estão em
controlo, onde as crianças deliberadamente procuram incerteza de forma a poderem
triunfar sobre esta, ou se não, não importa, pois trata-se só de um jogo (IPA, 2009). Desta
forma, as crianças desenvolvem um repertório de respostas flexíveis, em vez de respostas
definitivas a situações que elas criam e encontram, o que reforça a visão do jogo como
atividade primária lúdico-prazerosa, característica das vivências infantis.
No nosso entendimento, o jogo é para a criança um ato de comportamento livre e
prazeroso, orientado por uma motivação intrínseca numa continuidade de sentido e
intencionalidade lúdicos que possibilita a exploração e descoberta do mundo. O jogo é
para a criança o modo privilegiado de se relacionar com o meio que a rodeia e com os
outros. Contudo, somos forçados a concordar com S. Brown & Vaughan (2010), quando
referem que o jogo é antes de tudo um “estado da mente”, bastando para tal reinvocar as
propriedades associadas ao jogo, anteriormente referidas por estes autores. O estado
emocional disponível para se brincar pode ser proporcionado pela própria atividade lúdica
ou terá que ser incorporado pelo sujeito para que o jogo se manifeste. Consideramos,
também, o jogo como mecanismo de adaptação essencial para a sobrevivência e que
possibilita o desenvolvimento de uma progressiva autonomia e independência da criança
face ao seu envolvimento. Deste modo, o jogo pode ser encarado como um processo de
autoprotecção que oferece a possibilidade de aumentar as capacidades adaptativas e a
resiliência. Alguns autores defendem que experiência do jogo produz efeitos na
arquitectura do cérebro, particularmente nos sistemas relacionados com a emoção,
motivação e recompensa, o que, por sua vez, conduz a mais brincadeira. O cérebro molda
o jogo, assim como o jogo molda o cérebro (IPA, 2009). Numa perspetiva sociológica,
entedemos o jogo como uma linguagem fundamental para a criança poder construir
historicamente, socialmente e culturalmente a sua infância, nomeadamente, na sua
interação e negociação entre pares, mas também entre crianças e o mundo adulto.
De um modo geral, pode-se dizer que existem quatro grandes tipos de jogo:
Jogo simbólico ou imaginário- Este jogo está relacionado com a interação entre
a criança e os sons à sua volta e os sons da linguagem e a própria linguagem. Está
também relacionado com a forma (desenhos, pinturas, acompanhados de
verbalizações e de diálogos) que a criança usa para expressar a sua linguagem e o
conteúdo da sua imaginação(Gauntlett et al., 2011). Neste tipo de jogo, podemos
também incluir o jogo de faz de conta e o sociodramático, na medida em que estes
resultam a partir de histórias criadas pelas crianças que oscilam entre o real e a
fantasia (S. Brown & Vaughan, 2010).
Jogo social- Este tipo de jogo está relacionado com uma característica
fundamental do ser humano, a sociabilidade, ou seja, a interação com o outro. De
acordo com Hughes (1996), neste tipo de jogo as regras e os critérios para o
compromisso e interação social podem ser reveladas, exploradas e alteradas.
Segundo o mesmo autor, jogo social poderá ser qualquer situação de interação
social, na qual todos os sujeitos criam uma expectativa de que têm que obedecer
a regras ou protocolos.
Jogo com objetos- Este tipo de jogo está relacionado com a curiosidade de
manipular objetos e com a própria manipulação dos mesmos, iniciando-se a partir
do momento que os bebés conseguem tocar e agarrar os objetos (colheres,
mordedores, etc) e ganhando complexidade à medida que as competências de
manipulação se aperfeiçoam (S. Brown & Vaughan, 2010; Gauntlett et al., 2011).
O jogo com objetos permite o desenvolvimento da motricidade fina e está
relacionado com o jogo simbólico, o faz de conta e o jogo sociodramático
(Gauntlett et al., 2011). Os jogos de construção estão também incluídos neste
grupo.
Jogo de atividade física- Este tipo de jogo está intimamente relacionado com o
movimento do corpo e a atividade motora. Segundo S. Brown & Vaughan, (2010),
os bebés começam a brincar desde muito cedo para se aperceberem do seu corpo
e o seu programa de jogo inicia-se dentro do útero. Pellegrini & Smith (1998)
referem que o jogo de atividade física inicia-se na primeira infância e começa a
declinar a partir da adolescência; inclui as estereotipias rítmicas, o jogo de
exercício e o rough and tumble, sendo que cada um destes atinge o seu pico em
idades diferentes e suas tendências podem ser representadas em forma de um U
invertido. S. Brown & Vaughan (2010) frisam a importância do movimento,
destacando que este é primitivo (do ponto de vista filogenético) e que acompanha
todos os elementos do jogo, e que o movimento estrutura o conhecimento do
mundo, do espaço e do tempo, tal como a relação que estabelecemos com os
outros. Voltaremos ao jogo de atividade física com particular atenção, mais à
frente no capítulo.
Pellegrini e Smith (1998) referem-se ao jogo de atividade física (physical play) nas suas
funções biológicas e sociais e identificam o seu perfil temporal no desenvolvimento
humano, incluídos os factores da idade e do género. Para estes autores, o jogo de atividade
física começa na primeira infância, aumentado durante toda a infância, declina na
adolescência e desaparece na idade adulta. O jogo de atividade física reflecte três tipos de
jogo, cada um numa fase distinta e possivelmente com funções diferentes associadas a
cada tipo.
O jogo de atividade física caracteriza-se por apresentar uma componente de grande vigor
físico, sugerindo o exercício das funções imediatas durante a infância, com benefícios
deferidos para a maturidade, e com consequências nos domínios físico, cognitivo e social
(Neto, 2001; Pellegrini & Smith, 1998). Este jogo pode envolver atividade simbólica e
jogos com regras, a atividade pode ser solitária ou social, distinguindo-se das
características comportamentais do contexto de brincadeira, com moderada ou vigorosa
atividade física (Pellegrini & Smith, 1998).
Um bom exemplo da confluência de diferentes tipos de atividade lúdica, que têm como
denominador comum o Jogo de Atividade Física, é-nos trazido por Fjørtoft (2004). Esta
investigadora realizou um estudo num ambiente natural de uma área florestal, com
elevada diversidade topográfica e vegetação, na Noruega. Os resultados mostraram que
uma floresta pode transformar-se num contexto muito rico para o desenvolvimento de
uma grande variedade de atividades lúdicas. A autora caracterizou três sub-tipos de jogo
de atividade física, os jogos funcionais, os jogos simbólicos e os jogos de construção. Os
jogos funcionais foram considerados jogos amplos e caracterizavam-se pelas atividades
de corrida, subir a árvores, saltar rochas; jogos de perseguição e de esconderijo e
aconteciam Os jogos simbólicos e de construção decorriam em habitat de densa vegetação
onde se construíam esconderijos e cabanas, cada árvore funcionava como um habitat para
um jogo simbólico ou de construção. Este último possibilitava ainda formas de
aprendizagem diversa sobre o planeamento, escolha e recolha de materiais necessários
para o desenrolar do jogo. Os resultados desta investigação permitem-nos concluir
positivamente sobre os efeitos adaptativos ao ambiente físico e social por intermédio do
Jogo de Atividade Física.
S. Brown & Vaughan (2010) constatam sobre a dimensão simbólica do jogo de atividade
física, particularmente, no caso do jogo de luta e de perseguição, ao mencionarem o “jogo
do super-herói”. Neste tipo de brincadeira, influenciada pelas personagens televisivas, as
crianças encarnam os “bons e os maus da fita”, construindo narrativas de ação que são
simultaneamente motoras (fisicamente vigorosas) e simbólicas (o faz de conta). No nosso
entendimento, isto possibilita às crianças experimentarem diferentes papéis sociais,
exercitarem a sua moral e tomarem posições sobre valores como a justiça, o bem e o mal.
Outro aspeto importante que decorre deste tipo de jogo (físico e social) é a possibilidade
das crianças realizarem aprendizagens sociais por elas próprias e com os seus pares.
Um contra-senso evolutivo
As crianças passam cada vez mais tempo no contexto de escola, estando sujeitas a uma
carga horária escolar mais alargada, a um currículo hiper-estruturado e formalizado,
centrado em aprendizagens cognitivas orientadas precocemente para uma excessiva
competição académica. Os modelos escolares atuais e vigentes em Portugal, que se
reproduzem na esmagadora maioria dos jardins-de-infância e escolas de 1º ciclo,
reservam pouco, ou quase nenhum espaço para as aprendizagens espontâneas e criativas
geradas a partir das experiências e interações das crianças com o envolvimento exterior
físico, ora em contexto de jogo, ora em contexto estruturado, o que pode representar um
“contra-senso evolutivo”. Nestas idades, a atividade da criança é caracterizada por uma
forte componente lúdica com expressão física e motora dotadas de uma intencionalidade
própria no processo de desenvolvimento e aprendizagem (adaptação biológica e social).
Os níveis altos de atividade física presentes no Jogo de Atividade Física devem-se a
necessidades biológicas e a dinâmicas físicas, sociais e cognitivas de adaptação ao
ambiente.
A perspetiva da Psicologia Evolucionista
Para melhor sustentarmos a ideia do “contra-senso evolutivo” ao nível da adaptação
biológica e social presente nos modelos de educação vigentes é necessário referir o
entendimento sobre o desenvolvimento humano aos olhos da Psicologia Evolucionista.
Nesta perspetiva os organismos adaptam-se e desenvolvem-se, através da seleção natural
e através das suas transações com o envolvimento. Os organismos afetam o seu
envolvimento, escolhendo e “mobilando os seus nichos”, e reciprocamente os
envolvimentos afetam o organismo, alterando os comportamentos de forma a preencher
as demandas específicas de um dado contexto (Bjorklund & Pellegrini, 2002). Estes
autores referem o trabalho de Gilbert Gottlieb relativo ao conceito de “epigenesis” como
construto basilar da abordagem de desenvolvimento evolucionista. A “epigenesis” é a
“emergência de novas estruturas e funções durante o curso do desenvolvimento (Gottlieb,
1991), refletindo um relacionamento bidirecional nos seio de todos os níveis de fatores
experienciais e biológicos, de tal forma que a atividade genética influencia e é
influenciada pela maturação estrutural, que por sua vez está relacionada bi-
direcionalmente com a função e a atividade (Gottlieb, 2000).
De forma a salientar a relação entre as culturas de pares infantis e jogo de atividade física,
será fundamental compreender o percurso de desenvolvimento infantil aos olhos da
Sociologia da Infância, nomeadamente, no que concerne o papel das culturas de pares no
desenvolvimento social infantil, e perceber que o jogo de atividade física é um elemento
funcional, social e simbólico das próprias culturas de infância.
Os contextos nos quais as crianças brincam são muito variados uma vez que as crianças
brincam em qualquer lugar possível: ruas e vizinhanças das suas casas, parques, jardins,
espaços de jogo, recreios escolares, centros de cuidados, contextos comerciais e virtuais
de jogo. Todos estes contextos têm características próprias que podem influenciar as
atividades de jogo (Meire, 2007) e, neste sentido, sendo possível jogar em todos os
contextos, os jogos não são necessariamente os mesmos.
Num estudo recente, Weston (2010) refere que a razão primária pela qual as cidades
devem ser construídas de forma que os adolescentes e pré-adolescentes se possam
deslocar com independência é a de que as áreas do cérebro responsáveis pela perceção e
análise espacial estão a ser desenvolvidas. Na verdade, há muito que se sabe que a
atividade conduzida pelo próprio animal tem um efeito maturacional e desenvolvimental
diferente do que resulta da pura acumulação passiva de experiência (Held & Hein, 1963).
A forma como é planeado o espaço físico da vizinhança próxima pode influenciar a
competência da criança de idades mais baixas para brincar sozinha no exterior da casa
(Churchman, 2003).
A cidade foi no passado, e devia ser recuperada no presente e repensada no futuro, como
um espaço de jogo, de encontro, de convívio, de partilha de dinâmicas sociais e culturais,
um espaço de passeio e de liberdade. Contudo, as atividades lúdicas de rua e de
exploração natural tendem a desaparecer, pela influência crescente dos jogos virtuais e de
atividades estruturadas e ofertas de entretenimento e de jogo provenientes dos recursos
eletrónicos (Neto, 2006). O jogo de atividade física e motora na criança e adolescente é
um problema essencial das sociedades contemporâneas ou pós-industriais, nas quais o
uso do espaço e dos equipamentos para jogo e tempo livre deve ser reconsiderado, de
acordo com as mudanças e razões de mobilidade da população de meios urbanos, vilas
ou aldeias (Neto & Marques, 2004).
É neste seguimento que consideramos ser necessário pensar na cidade de acordo com as
percepções, comportamentos e interatividades que as crianças e os jovens geram no
espaço urbano. Assim, será crucial escutar as crianças e jovens através de processos de
participação infantil. Iniciativas como o The Children’s City Project (Tonucci & Rissotto,
2001) confirmam a capacidade das crianças e jovens em identificarem os problemas da
cidade e apontarem soluções que são muitas vezes inovadoras, inclusivas e úteis para toda
a população. Esta escuta ativa das crianças e jovens irá possibilitar repensar as
características e os recursos existentes no ambiente físico, de forma que este se torne
convidativo, desafiante, lúdico, interativo e inclusivo.
Um outro problema que se coloca nas cidades é a questão da exposição das crianças aos
riscos. Atualmente, as crianças estão cada vez mais vulneráveis e menos expostas a riscos.
Mayer Hillman (2006) afirma que a criança precisa de adquirir competências de
segurança rodoviária e correr riscos, de forma a que numa primeira instância aprenda a
lidar com esses riscos, com situações inesperadas, encontrar os limites pessoais e públicos
e perceber quando deve exercer cautela. Neste seguimento, temos a convicção que os
espaços para as crianças brincarem devem comportar características e elementos físicos
que sejam desafiadores das suas capacidades e que proporcionem experiências de prazer
e de risco.
Consideramos, porém, que o aspeto da segurança no espaço público não deve ser
menosprezado. Todos os cidadãos têm o direito de usufruir do espaço público em
condições de liberdade e de segurança, pelo que os municípios devem desenvolver
estratégias e medidas que de facto garantam a segurança dos cidadãos. Todavia, não se
deve confundir segurança com ambiente altamente securitário, controlador e invasor da
privacidade, pois a concepção excessivamente restritiva tem um efeito perverso uma vez
que diaboliza as questões da (in)segurança e afasta os cidadãos dos espaços públicos. A
segurança deverá ser assegurada, com o compromisso de não retirar do ambiente físico
da cidade, as características e elementos associados ao risco como oportunidade de
aprendizagem.
Gill (2007) propõe que a sociedade precisa de abraçar uma filosofia de resiliência, isto é,
a afirmação da capacidade da criança para recuperar de efeitos adversos, sejam estes
acidentes ou lesões, fracasso, conflito, abuso, negligência, ou, até mesmo, tragédia.
Resiliência significa, então, encontrar maneiras de funcionar num mundo onde coisas más
acontecem, conjugadas com o esforço para atingir novos objetivos, e com a possibilidade
de funcionar e de se adaptar perante a adversidade.
O risco deverá ser uma componente essencial do jogo, uma vez que o enfrentar de novas
dificuldades e a sua superação alargam a satisfação da aprendizagem, o que por sua vez
leva o organismo à produção de prazer, consolidando os níveis atingidos e encorajando o
esforço para o investimento em novos objetivos. É crucial reafirmar as crianças, os jovens
e toda a população enquanto exploradores urbanos na cidade, para que esta seja o lugar
onde todos podem usufruir e brincar num gigante Playground físico, simbólico e social.
O incremento da independência de mobilidade das crianças e jovens e esta visão
“playgroundiana” da cidade, enquanto espaço de aventura e de desafio são, no nosso
ponto de vista, fundamentais para um futuro mais criativo, inovador, empreendedor,
sustentável e mais democrático.
A resposta para estes dilemas terá que advir da construção e implementação de políticas
públicas para a infância e para a adolescência que tenham como preocupação a dimensão
relacional criança-espaço físico e cujo horizonte seja a reconciliação da cidade com as
crianças e jovens e vice-versa. Estas políticas têm que conceber as crianças e jovens como
atores sociais, integrando-os em processo de recolha de dados sobre a perceção e
realização de possibilidades de ação no espaço físico urbano, e ouvindo-as nos próprios
processos de planeamento urbano em conjunto com os profissionais e técnicos.
Como previsto no artigo 31 da CDC os adultos têm de assegurar que os ambientes físicos
e sociais nos quais as crianças vivem, apoiam e suportam o jogo. Faltar a este
compromisso significa desqualificar a experiência da infância e, ao mesmo tempo
hipotecar e comprometer o bem-estar, desenvolvimento e a própria sobrevivência das
crianças. Nesse sentido, o jogo e o brincar devem ser valorizados como parte integrante
do ser criança, que é um ator competente, interativo e capaz de construir significados,
ações e intenções do mundo e da realidade, distintos dos produzidos pelos adultos.
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