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Texto baseado na apresentação preparada para: Formação de Professores: uma discussão em curso; Curso de Extensão, Fórum
de Cultura, CFCH, Universidade Federal do Rio de Janeiro, 10 de novembro de 2002.
Ensaio: aval. pol. públ. Educ., Rio de Janeiro, v.13, n.48, p. 333-344, jul./set. 2005
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Nesse sentido, temos argumentado que que medida tem sido contemplada nas polí-
o modelo de professor pesquisador, como ticas de formação docente, conforme ilus-
um profissional reflexivo que assume a pos- trado nas Diretrizes Curriculares de Forma-
tura de constante reflexão crítica sobre a ção de Professores (BRASIL, 2000b, p. 6)2 –
prática pedagógica, atuando ativamente na documento produzido com a intenção de
construção de seu conhecimento pedagógi- rever os modelos de formação docente, ob-
co, poderia articular-se a posturas multicul- jetivando “a proposição de orientações ge-
turais, de forma a promover a formação do rais que apontam na direção da profissio-
professor-pesquisador multiculturalmente nalização do professor e do atendimento às
comprometido. Tal articulação poderia ofe- necessidades atuais da educação básica na
recer um caminho possível no sentido da sociedade brasileira?” Essas questões mo-
superação daquilo que Hoover (1994) de- bilizam o presente texto, que está estrutura-
nominou de redução da reflexão do profes- do do seguinte modo: em um primeiro mo-
sor-pesquisador a aspectos imediatamente mento, discute o multiculturalismo e a pes-
relacionados à sua prática imediata, em quisa, como componentes da formação de
detrimento de uma postura crítica que situe professores, levantando tensões e possibili-
esta prática no contexto social e cultural dades em sua articulação; em um segundo
maior que a informa. Nesse sentido, argu- momento, relata o contexto em que emer-
mentamos que o modelo do professor-pes- gem as recentes políticas educacionais, den-
quisador multiculturalmente comprometido tre as quais aquelas referentes à formação
pode representar um via pela qual conexões de professores, analisando criticamente suas
entre o universo microssocial da sala de aula ênfases e silêncios; em um terceiro momen-
e a realidade cultural e social mais ampla to, mergulha sobre o discurso das diretrizes
possa se efetuar, com vistas a possibilitar curriculares nacionais de formação de pro-
desafios a discursos que congelam identi- fessores, focalizando particularmente o pa-
dades e reforçam preconceitos. Desse modo, pel da pesquisa e do multiculturalismo em
o modelo do professor-pesquisador multi- suas formulações.
culturalmente comprometido pode represen-
tar um possível caminho de transformação Multiculturalismo e
da desigualdade educacional que atinge,
justamente, grupos culturais e étnicos cujos Pesquisa na Formação
padrões não estão contemplados nos dis- de Professores: o desafio
cursos curriculares abraçados pela escola.
da polissemia
Entretanto, como tem sido pensada a Vivemos em sociedades multiculturais,
articulação ensino-pesquisa e multicultura- marcadas pela pluralidade e também pela
lismo na formação de professores, na litera- desigualdade. Nesse contexto, ganha rele-
tura na área? Que significados pode assu- vância o multiculturalismo – cujo conceito
mir e que desafios e potenciais apresenta é normalmente definido como o de um cam-
para esta formação? Ao mesmo tempo, em po teórico, prático e político, voltado à va-
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As Diretrizes Curriculares Nacionais para a Formação de Professores da Educação Básica, foram oficialmente instituídas em 18/
02/2002 por meio da Resolução CNE/CP 1/2002. Este artigo se refere à “Proposta de Diretrizes para a Formação Inicial de
Professores da Educação Básica, em Cursos de Nível Superior”, de maio de 2000.
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que sofram influência ideológica, os cur- Nesse sentido, articular ensino e pes-
rículos podem representar espaços discur- quisa na formação docente representa um
sivos em que o global e o local se arti- caminho possível para se pensar em trans-
culam, em sínteses e hibridizações criati- formar essa realidade no sentido de valori-
vas. Trata-se, no nosso entender, de bus- zar a pluralidade cultural e a formação de
car a articulação de conhecimentos per- identidades docentes e discentes multicul-
cebidos como “universalmente” aceitos, turalmente comprometidas. Entretanto, ain-
incluindo as últimas conquistas da tec- da que multiculturalismo e pesquisa pos-
nologia, de um lado, e o olhar sobre a sam ser dimensões relativamente bem acei-
diversidade cultural com a qual propos- tas como horizontes para o trabalho com a
tas curriculares irão interagir, de outro. formação de professores, desafios surgem
ao se pensar nos fatores envolvidos no re-
Buscando avançar em tais reflexões, finamento de suas propostas e na sua con-
argumentamos que tal modelo implica em cretização. Questões surgem relativas ao
um papel central para a pesquisa, na me- que realmente se entende por multicultura-
dida em que, ao ressaltar o contingente, o lismo e pesquisa, que tipos de abordagens
plural, o local, rejeitam-se narrativas mes- devem ser abraçadas com relação a am-
tras e aposta-se na construção de alterna- bos os conceitos e que desdobramentos
tivas novas, criativas e críticas. Tais alter- possuem no cotidiano da formação de pro-
nativas não emergem senão pela via da fessores. No que se refere ao multicultura-
pesquisa que, em uma perspectiva multi- lismo, temos apontado vertentes desde as
cultural, propicia a problematização da mais folclóricas e pouco problematizado-
realidade e a busca de caminhos teóricos ras (que se limitam a tratar da diversidade
e metodológicos viabilizadores de discur- cultural em termos de festas, receitas, cos-
sos desafiadores da homogeneização cul- tumes e ritos) até outras mais críticas (que
tural e dos preconceitos com relação a questionam relações desiguais de poder e
grupos percebidos como “diferentes”. É preconceitos, buscando desafiá-los), pas-
importante salientar que, ainda que o pre- sando, também, por posturas multiculturais
sente artigo focalize o ensino e a pesquisa críticas pós-modernizadas (que alertam para
na formação docente, tais categorias não os impactos dos discursos na formação das
esgotam o campo de reflexões nessa área, identidades plurais, buscando construir dis-
que deveria incidir sobre uma problemati- cursos alternativos que levem em conta o
zação sobre o próprio conceito de educa- hibridismo identitário) (CANEN, 2002).
ção, de modo que não se caia em subje-
tivismos e olhares relativistas, de um lado, No horizonte dessa polissemia, contra-
e, de outro, que não se proceda a um en- dições e posturas problemáticas surgem nos
gessamento em propostas tidas como uni- debates multiculturais. Certos autores, como
versais que informam práticas reproduto- Glazer (1997), por exemplo, crêem que o
ras. A articulação entre o respeito pelas ideal multicultural não deveria fomentar pos-
diversas culturas a uma visão voltada ao turas sectárias, que abalassem a “harmo-
permanente aprimoramento humano, com nia social”, particularmente no âmbito das
todas as tensões inerentes a esta dialética, escolas e da formação de professores. Nes-
informa nossa argumentação. se caso, tais autores propõem deixar de lado
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temas “polêmicos” como racismo, xenofo- presença de argumentos que defendem tal
bia e outras questões caras ao multicultu- articulação, mas que acreditam que a pes-
ralismo em sua vertente mais crítica, ou en- quisa na formação de professores deveria
tão, se necessário, trazê-los à tona em uma ter um caráter prático (ou seja, ser ligada
ótica positiva, otimista, indicando avanços diretamente à prática pedagógica do pro-
da sociedade em seu enfrentamento, de fessor), até outras posturas de autores que
modo a não recair em “polarizações” e/ou afirmam que justamente a pesquisa, tida
radicalizações de posturas. Por outro lado, como mais “tradicional” ou “acadêmica”,
no entanto, autores como McLaren (2000) seria a que poderia conferir um distancia-
e Gilroy (2000) acreditam que o multicul- mento crítico do professor com relação a
turalismo deveria, justamente, partir da de- seu cotidiano, possibilitando-lhe maiores
núncia das assimetrias de poder para bus- probabilidades de agir de forma transfor-
car alternativas de ações revolucionárias, madora sobre essa mesma prática.
transformadoras, no âmbito da educação
e da formação de professores. Nesse caso, Concordando com autores tais como Quei-
temas como racismo, xenofobia, homofo- roz (1998) e Wilson (1998), temos argumen-
bia e outros deveriam, no entender de tais tado que o confronto pesquisa científica (teóri-
autores, constituir o cerne dos discursos de ca) - pesquisa pedagógica (ligada diretamen-
formação docente, de modo a desafiar sua te à prática docente) pouco tem contribuído
gênese e pensar em discursos alternativos, para se avançar na formulação de caminhos
híbridos, transformadores. A partir da po- que viabilizem a pesquisa como dimensão
lissemia do multiculturalismo brevemente es- necessária à formação docente (CANEN;
boçada, revela-se a complexidade da tra- ANDRADE, 2001). Em uma perspectiva mul-
dução do ideal multicultural para propos- ticultural, temos reforçado que a superação de
tas teórico-metodológicos que o incorpo- binômios tais como preto-branco, pesquisa
rem no cotidiano da formação docente. quantitativa-pesquisa qualitativa e assim por
diante, significa visualizar a pesquisa enquan-
Da mesma forma que o multicultura- to fruto de argumentação construída a partir
lismo, a dimensão da pesquisa como ine- dos universos culturais e dos paradigmas dos
rente a um preparo de professores como pesquisadores, admitindo-se possibilidades de
autores de seus projetos profissionais e não ressignificações e hibridizações plurais. Nesse
como meros “consumidores” de produtos sentido, teoria e prática não podem ser vistas
desenvolvidos por outros parece ser con- como pólos, binômios irreconciliáveis, mas
sensual, quando interpretada a nível mais como partes constitutivas do espectro da pes-
genérico. Entretanto, tal como no multi- quisa em educação.
culturalismo, uma vez analisado em suas
dimensões mais concretas, o binômio en- Entretanto, em que medida tal modelo
sino-pesquisa também suscita desafios e de formação de professores encontra eco nas
questionamentos. Autores como Lüdke políticas educacionais brasileiras? Em que
(2001) e André (2001) têm traçado um medida as questões e desafios surgidos na
panorama dos dilemas e problemas apon- articulação multiculturalismo – pesquisa são
tados com relação a esse binômio. Tais levantados no âmbito de seus discursos cur-
autoras mapearam, por exemplo, desde a riculares? É o que discutiremos a seguir.
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Para uma análise das potencialidades e contradições desse discurso curricular com relação ao multiculturalismo, vide Canen (2000).
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BRASIL, 2000b, p. 30.
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Id., Ibid., 2000b, p. 32.
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6
BRASIL, 2000b, p. 49.
7
Id., Ibid., p. 50.
8
Id., Ibid., p. 69.
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Referências
ANDRÉ, M. A. (Org.). O papel da pesquisa na formação e na prática dos professores.
São Paulo: Ed. Papirus, 2001.
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GLAZER, N. We are all multiculturalists now. London: Harvard University Press, 1997.
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