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Uma Perspectiva Budista sobre o Filme "Quem somos nós?

"
'É Possível Sair do Sofrimento', ou 'Uma Poética do Espaço'.

  Estamos imersos no nosso próprio sofrimento. A cada evento que


consideramos desagradável reagimos com desarmonia, com mais desagrado e
assim geramos mais sofrimento. A esse círculo vicioso e condicionado o
budismo chama "Samsara".
O filme "Quem Somos Nós?" (documentário com depoimentos de
cientistas que fazem a ponte entre espiritualidade e ciência) em cartaz
nos diz que no nível subatômico, a essência de qualquer fenômeno físico
é o espaço. O espaço das possibilidades, das quais a realidade que cada um
vive é só uma dentre infinitas outras possíveis. Por que então insistimos nos
mesmos caminhos?
Criamos, desde que nascemos (ou se falarmos de uma perspectiva
budista, desde um tempo sem início, marcas no nosso continuum mental),
as sementes das situações que hoje experimentamos. O filme nos fala que
o que não existe no cérebro, com uma matriz previamente instalada,
simplesmente não é percebido, não existe para aquela mente. De fato, o filme
nos diz que temos acesso a cada momento a 4 bilhões de bits de informação,
dos quais chegam à consciência apenas 2.000 bits. Ou seja, o que
percebemos da realidade é condicionado e previamente filtrado, de acordo
com os nossos programas pré-instalados. O budismo chamaria os
programas já instalados das marcas mentais, ou as impressões que já
temos gravadas no nosso continuum mental (poderíamos chamá-lo de
disco rígido) e que condicionam o que da realidade perceberemos. Do
ponto de vista científico, a mente é identificada com o cérebro, enquanto que
do ponto de vista budista a mente não se resume à sua base química, é
considerada do ponto de vista mais sutil, pois uma vez que acaba a realidade
física (quando o corpo morre) a mente continua a existir. No entanto, ambos
concordam absolutamente que o mundo interno é mais poderoso do que
o externo, pois é ele que determina/ filtra o que você perceberá do mundo
externo.
Assim, vamos criando uma teia de sinapses, de respostas para as
situações que se nos apresentam, que se constituem nas ligações entre
neurônios que, se freqüentemente repetidas, vão gerar o que no filme é
chamado de "relação de longa duração entre os neurônios". Assim, geramos
condicionamentos, as marcas mentais para o budismo, respostas
habituais com as quais nos identificamos, pensando que isso é o que
somos. A cada vez que reagimos de uma forma conhecida (habitual)
reafirmamos - recriamos - os caminhos sinápticos pelos quais passa a
percepção da realidade no nosso cérebro. Como uma trilha que quanto mais é
utilizada vai reforçando um caminho, até que este vira uma estrada, assim
funcionam nossas respostas bioquímicas diante das situações; assim
estabelecemos as crenças do que é a realidade para nós: por fazermos sempre
as mesmas associações de neurônios. Mas pense: neurônios são "soltos".
Entre eles há o espaço, o espaço das infinitas possibilidades; somos nós que
recriamos as ligações, refazendo as mesmas sinapses, e assim fazendo
sempre o mesmo caminho de percepção da realidade.
Um outro ponto importante que o filme nos traz é o de que emoção e
reação química são dois lados de uma mesma moeda. Nossas emoções
geram descargas químicas que chegam às células através dos receptores
celulares, e essas reações químicas viciam tanto quanto qualquer droga.
Assim ficamos viciados às nossas emoções (sejam elas quais forem). Como
diz Ruth Toledo Altschuler: "Nossa biografia se torna nosso registro biológico".
Qualquer trabalho de transformação pessoal se propõe a abrir novos
caminhos, visões, percepções, atitudes, em última instância, novas relações
entre os neurônios cerebrais e entre estes e os receptores celulares. Mas, para
isso precisamos gerar uma energia para mudança. Lama Gangchen
Rinpoche nos diz que: "É preciso ter experiências positivas para querer
repeti-las". É preciso relembrar através de nosso espelho de sabedoria que
somos feitos de uma energia pura e bela e que, embora nossos
condicionamentos nos mostrem um caminho "batido", há outras
possibilidades. Eu não sou minha insegurança, não sou meu medo dos
outros, não sou minha sensação de rejeição, mas estas são as marcas que
cunhei, que gravei no disco do meu continuum mental. Precisamos atualizar a
percepção de nós mesmos, deixando de nos contar a mesma história todo o
tempo.
Nossas reações emocionais reforçam nossas crenças a respeito de
nós mesmos. O espaço é a não reação. Do espaço, brotam as situações que
vivemos. A partir do espaço, pela qualidade da intenção, as coisas ganham
força e forma. O espaço das possibilidades da realidade subatômica é
aquele em que a intenção plasma a realidade fenomênica.
O espaço é a desconstrução da dependência químico-emocional gerada
pelos nossos condicionamentos. Desconstruir é primeiro sentir na pele a dor
da cadeia do condicionamento, a dor do nosso samsara pessoal, onde nos
percebemos como ratos correndo no carrossel das nossas reações habituais.
Assim, em princípio, parecemos colapsar, pois passamos a enxergar as
amarras. Todas as amarras. Uma maneira de desconstruirmos aquilo a que
chamamos realidade é nos atermos às sensações da situação e não "irmos
longe" nos emaranhando nas antigas sinapses dos nomes, julgamentos,
rótulos, ou preconceitos que damos às situações. Lembro-me de uma
praticante budista que, passando por uma doença, disse-me: se eu penso no
nome que a doença tem, fico muito pior. Quando consigo deixar o nome de
lado e fico só nas sensações, de momento a momento, e do meu dia a dia,
tudo fica mais leve; de fato, não estou sentindo dor.
O filme nos aponta a direção do caminho da transformação: precisamos
agüentar a retirada química das nossas adições (nossa projeção da realidade!)
– a síndrome de abstinência ao vício das nossas reações emocionais/químicas;
da história que nos contamos do que é a realidade - e arriscar um passo à
frente e outro, de momento a momento, não respondendo ao impulso gravado
que surge como "um pensamento natural". No fundo, tudo se resume a resistir
à tentação de crer que o que vivemos é "A" Realidade, que as coisas "são
assim". "A" Realidade não existe. Sobretudo, devemos nos concentrar na
intenção de tudo o que fazemos e direcioná-la positivamente. A mente cria a
realidade.
Precisamos nos ver como os co-criadores disto que chamamos realidade.
Do espaço, brotam as coisas que vivemos. A partir do espaço, pela qualidade
da intenção, as coisas ganham força e forma. A mente cria a realidade. Como
diz-se numa oração budista tibetana: "Gentil Lama, Senhor que emana e
reabsorve um oceano de infinitos mandalas, aos seus pés eu peço". A mente
de cristal, livre das próprias adicções e não contaminada, como numa
respiração, cria um oceano de infinitos mandalas e os reabsorve; a
realidade se constrói e se desconstrói de momento a momento gerando e
reabsorvendo estes infinitos mandalas. Por que precisamos ficar fixos nesta
realidade condicionada e tediosa, se temos a todo instante o espaço - seja ele
o espaço subatômico da ciência ou o de nossa mente de cristal puro, como nos
propõe o budismo?
"Quem Somos Nós" é um chamado de responsabilidade pelo que
criamos na nossa vida. 

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