Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Manual Da Homoafetividade VECCHIATTI Paulo Roberto Iotti 2013
Manual Da Homoafetividade VECCHIATTI Paulo Roberto Iotti 2013
Produção: TypoDigital
CIP – Brasil. Catalogação-na-fonte.
Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ.
ISBN 978-85-309-4549-7
CDU: 347.61/.64
08-3358.
Dedico este trabalho à minha mãe, exemplo de amor,
carinho e compreensão, ao meu pai, símbolo de luta
e perseverança, às minhas tias maternas, sempre tão
carinhosas e presentes em minha vida, enfim, a toda
minha família, pelo amor que sempre me dedicou e
sem o qual minha vida seria muito mais difícil.
“Época triste a nossa, em que é mais difícil quebrar
um preconceito do que um átomo.” – Albert
Einstein1.
1 EINSTEIN apud ALMEIDA, Aline Mignon de. As uniões homoafetivas como forma de
constituir família. In: VIEIRA, Tereza Rodrigues (org.). Bioética e sexualidade. São
Paulo: Editora Jurídica Brasileira, 2004, p. 71.
AGRADECIMENTOS
O Autor
GLOSSÁRIO
AC – Apelação Cível
ADI – Ação Direta de Inconstitucionalidade
ADInO – Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão
ADPF – Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental
AgR – Agravo Regimental
Art. – artigo
CC/1916 – Código Civil de 1916
CC/2002 – Código Civil de 2002
Constituição Federal de 1967, com a Emenda
CF/1967- Constitucional 1, de 1969 (geralmente considerada, tal
–
1969 emenda, como uma nova Constituição por ter substituído
a redação da Constituição de 1967)
CF/1988 – Constituição Federal de 1988
CIDH – Corte Interamericana de Direitos Humanos
Código de Processo Civil de 1973 (destaca-se o ano
porque está em discussão no Congresso Nacional projeto
CPC/1973 –
de lei que visa instituir um novo Código de Processo
Civil)
CPP – Código de Processo Penal
DJ – Diário da Justiça
DJe – Diário da Justiça Eletrônico
ECA – Estatuto da Criança e do Adolescente
EUA – Estados Unidos da América
g.n. – grifo(s) nosso(s)
HC – Habeas Corpus
Inc. – inciso
LGBT – Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais
LICC – Lei de Introdução ao Código Civil
Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (atual
LINDB –
denominação da LICC)
MI – Mandado de Injunção
MP – Ministério Público
MS – Mandado de Segurança
Pet. – Petição
RE – Recurso Extraordinário
Rectius – retificação
REsp – Recurso Especial
STF – Supremo Tribunal Federal
STJ – Superior Tribunal de Justiça
TJ/BA – Tribunal de Justiça da Bahia
TJ/MG – Tribunal de Justiça de Minas Gerais
TJ/PR – Tribunal de Justiça do Paraná
TJ/RJ – Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro
TJ/RS – Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul
TJ/SC – Tribunal de Justiça de Santa Catarina
TJ/SP – Tribunal de Justiça de São Paulo
TRF – Tribunal Regional Federal
TRT – Tribunal Regional do Trabalho
§ – parágrafo
(...) – trecho omitido da transcrição em questão
afirmações entre colchetes durante transcrições
(...) –
constituem observações/acréscimos deste autor
Nota da Editora: o Acordo Ortográfico foi aplicado integralmente nesta obra.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO
Primeira parte
BASES NECESSÁRIAS ÀS TESES PROPRIAMENTE DITAS
1. A HOMOSSEXUALIDADE NA HISTÓRIA
1. Considerações preliminares
2. A história e a homossexualidade
2.1 A sexualidade no mundo antigo
2.1.1 Foucault e a história da sexualidade na Antiguidade
Clássica
2.2 As instituições religiosas e o início da pregação homofóbica
2.3 A idade média e o nascimento do estado homofóbico
2.4 Os humanistas, os puritanos, os capitalistas e os iluministas:
visões distintas, preconceito idêntico
2.5 O século XIX e a patologização da homossexualidade
2.5.1 Foucault e a história da sexualidade após o século
XVIII
2.6 O século XX: o Relatório Kinsey e a atual visão da ciência
médica sobre a homossexualidade
2.7 A homossexualidade no Brasil, da colônia à atualidade
3. Síntese conclusiva do capítulo
2. DA HOMOSSEXUALIDADE E DA HOMOAFETIVIDADE
1. Conceituação
1.1 Homoafetividade/heteroafetividade. Pertinência terminológica
2. A Bíblia e a Homossexualidade
2.1 O que a Bíblia realmente diz sobre a homossexualidade?
3. “Homossexualismo” x Homossexualidade: Entendimento médico-
psicológico acerca da homoafetividade
3.1 Critérios para a definição de uma doença e a
homossexualidade
3.2 Entendimento da ciência médica quanto à origem da
homoafetividade
3.3 “Opção” x orientação sexual: correta colocação do tema
3.4 Conceito de homofobia
3.5 As minorias sexuais. conceituação de orientação sexual,
gênero e identidade de gênero
4. Síntese conclusiva do capítulo
3. OS PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS DA ISONOMIA E DA
PROPORCIONALIDADE
1. O princípio da igualdade – nota introdutória
1.1 Aspecto formal – conteúdo e histórico
1.2 Aspecto material – conteúdo
1.3 A teoria tridimensional do Direito e o objeto de proteção das
normas. O Direito como ciência valorativa
1.3.1 Caracterização da lacuna normativa
1.3.2 Interpretação extensiva ou analogia para
reconhecimento do casamento civil, da união estável e
da adoção por casais homoafetivos. Despsicologização
do conceito de interpretação extensiva. Esclarecimentos
1.4 O princípio do Estado Laico e a proibição da utilização de
fundamentações religiosas para justificar discriminações
jurídicas
1.4.1 Conteúdo jurídico do princípio do Estado Laico
2. Os Princípios da Proporcionalidade e da Razoabilidade – conteúdo
jurídico
3. Síntese conclusiva do capítulo: da discriminação juridicamente
válida (isonômica e proporcionalmente)
4. OS PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS DA DIGNIDADE DA
PESSOA HUMANA E DA INTERPRETAÇÃO CONFORME A
CONSTITUIÇÃO
1. O princípio da dignidade da pessoa humana
1.1 Considerações preliminares
1.2 O princípio da dignidade da pessoa humana e o direito à busca
da felicidade
1.3 As classificações insular e da nova ética. A posição de
Antônio Junqueira de Azevedo
1.4 Dignidade da pessoa humana como dimensão
simultaneamente defensiva e prestacional. A posição de Ingo
Wolfgang Sarlet e de Luís Roberto Barroso
1.5 Posição pessoal. Dignidade da pessoa humana e o direito à
felicidade. ADPF 132 e ADI 4.277
1.5.1 Do direito fundamental ao respeito (implícito ao
princípio da dignidade da pessoa humana)
2. O Princípio da Interpretação conforme a Constituição
2.1 A interpretação conforme a Constituição no ordenamento
jurídico brasileiro: natureza jurídica
2.2 Requisitos da interpretação conforme a Constituição
2.3 Limites da interpretação conforme a Constituição. ADPF 132
e ADI 4.277
2.4 Da diferença entre a interpretação conforme a Constituição e a
declaração parcial de nulidade sem redução de texto de lei
3. Síntese conclusiva do capítulo
5. A FAMÍLIA JURIDICAMENTE PROTEGIDA E A
HOMOAFETIVIDADE NO ORDENAMENTO JURÍDICO
BRASILEIRO
1. O vazio legislativo quanto às uniões homoafetivas. Da ausência de
proibição legal
1.1 Soluções ao vazio legislativo: a analogia, a interpretação
extensiva e os princípios gerais do Direito
1.2 A função do legislador
2. A questão da família
2.1 A importância da família na história da humanidade
2.2 A família brasileira – breves considerações históricas
2.2.1 A família na sociedade rural e o “modelo institucional”
do Código Civil de 1916
2.2.2 A família na sociedade urbana – a mulher no mercado
de trabalho
2.3 As soluções encontradas pela Jurisprudência para as uniões
não regulamentadas
2.3.1 Analogia com o Direito do Trabalho – Indenização
pelos serviços prestados. Julgados contemporâneos do
STJ
2.3.2 Analogia com o Direito Comercial – Teoria das
sociedades de Fato
2.4 A evolução histórica do conceito de família
2.4.1 O amor familiar como o elemento formador da família
contemporânea. STF, ADPF 132 e ADI 4.277
2.5 A família e a Constituição Federal de 1988
2.5.1 Dos dispositivos constitucionais que tratam da família.
Da ausência de proibição às famílias homoafetivas ou
de dispositivo que não as reconheça. A interpretação do
Ministro Ayres Britto no julgamento da ADPF 132 e na
ADI 4.277
2.5.2 Do objeto de proteção do Direito das Famílias
2.5.3 O afeto como princípio jurídico-constitucional. STF,
ADPF 132 e ADI 4.277
2.6 A família homoafetiva. STF, ADPF 132 e ADI 4.277
2.6.1 As Gerações/Dimensões de Direitos. STF, ADPF 132 e
ADI 4277
2.6.2 O reconhecimento legal do status jurídico-familiar das
uniões homoafetivas – arts. 2.º e 5.º, parágrafo único, da
Lei Maria da Penha (Lei 11.340/2006)
2.6.3 Da competência das varas de família para julgamento
das causas envolvendo uniões homoafetivas
3. Síntese conclusiva do capítulo
Segunda parte
DAS TESES PROPRIAMENTE DITAS
CONCLUSÃO
BIBLIOGRAFIA
INTRODUÇÃO
A HOMOSSEXUALIDADE NA HISTÓRIA
1. CONSIDERAÇÕES PRELIMINARES
Antes mesmo de se conceituar a homossexualidade, é preciso entender
como o amor por pessoas do mesmo sexo tem sido visto e qual o tratamento
a ele dispensado ao longo da história humana. Isso se faz necessário porque
mudou drasticamente, no final do século XIX, a visão do mundo no que
tange à identidade homossexual. Note-se: não é o conceito de
homossexualidade que mudou, mas o de identidade homossexual, o qual
não era nem mesmo concebido nas civilizações do mundo antigo.
Ademais, o estudo do tratamento dispensado pelas sociedades, ao
longo dos tempos, às pessoas que amam outras do mesmo sexo ajuda-nos a
compreender quais foram os reais motivos que ensejaram o início da
perseguição e da violência contra homossexuais. Não era o simples fato de
amar uma pessoa do mesmo sexo que ensejava a perseguição: outros
motivos, incidentalmente relacionados à homossexualidade por erros
conceituais, é que desencadearam o início do preconceito homofóbico.
Essa questão é importante porque, hoje, os homofóbicos pregam que a
homossexualidade per si seria algo condenável, o que não corresponde à
verdade, quando se consideram os motivos que ensejaram o início da
perseguição aos homossexuais, como se passa a demonstrar.
2. A HISTÓRIA E A HOMOSSEXUALIDADE
A homossexualidade é tão antiga como a heterossexualidade (assertiva
repetidamente atribuída a Goethe). Acompanha a história da humanidade e,
se nunca foi aceita, sempre foi tolerada. É uma realidade que sempre
existiu, e em toda parte, desde as origens da história humana. É
diversamente interpretada e explicada, mas, apesar de não a admitir,
nenhuma sociedade jamais a ignorou.2
A afirmação supratranscrita sintetiza bem a questão da
homossexualidade ao longo da história humana. Ela sempre existiu, sendo a
única variação o tratamento dispensado pelas diferentes culturas. No início
dos tempos, o comportamento homoafetivo não era tido como “estranho”
ou “anormal”, justamente por ser considerado tão normal quanto o
heteroafetivo. Determinadas culturas passaram a valorizá-lo, ao passo que
outras passaram a desprezá-lo, até que, num dado momento histórico, a
parcela que dominava o poder político do mundo ocidental passou a
condenar ferozmente a homossexualidade, criando assim todo um estigma e
preconceito contra as pessoas homossexuais.
(a) Gregório de Matos, com seus poemas satíricos que, por vezes,
abordavam a homossexualidade (como no poema “Marinícolas”, em
que satirizava o nome do provedor Nicolau com o termo “maricas”);
(b) Álvares de Azevedo, de quem se suspeita a homossexualidade
em virtude, por exemplo: (i) da peça “Satã e macário”, que segundo o
crítico Antonio Candido, tinha “um toque de homoerotismo”; (ii) de
dedicar ao amor às mulheres expressões como “amor filial”; (iii) ter
tido, segundo Mario de Andrade, um descaso sexual pelas mulheres;
(iv) pela carta que escreveu a seu assim chamado “amigo” Conde de
Fé, no poema “Itália”, chamada por ele de “Pátria do meu amor!”
(embora haja quem atribua o episódio a uma “veia satírica” do poeta
romântico, mas não à sua suposta homossexualidade); e especialmente
(v) por cartas escritas ao amigo Luís Antônio da Silva Nunes, colega
de república estudantil, que revelam um tom de ardente amor (como
no trecho “Assim como eu te amo, ama-me. Não esqueças entre as
Campinas do Rio Grande ... do teu amigo”), apesar do estudioso em
literatura Brito Rocha defender que se trataria de “amizade espiritual”
(como nos casos de Goethe e Schiller e Byron e Hoog), não de
homossexualidade;
(c) O cortiço, de Aluísio de Azevedo, que traz duas personagens
femininas periféricas que mantinham uma notável relação amorosa;
(d) Bom-crioulo, de Adolfo Caminha, que apresenta uma relação
amorosa entre dois rapazes como centro da história, livro este que,
para o estudioso em literatura Horácio Costa, foi massacrado pela
crítica em virtude do rechaço à homossexualidade, o que se denota das
críticas puramente ideológicas (e não literárias) ao mesmo;
(e) Grande sertão: veredas, de João Guimarães Rosa, no qual o
jagunço Riobaldo ama secretamente seu jovem parceiro Diadorim,
que, quando morto, se descobre ser uma mulher travestida de homem
jagunço, donde indaga Trevisan se teria Riobaldo amado o reflexo
feminino de um homem ou o homem pressentido (e vislumbrado)
nessa mulher;
(f) Olavo Bilac, tido como “o maior pederasta do país” (conforme
entrevista de Paschoal Carlos Magno em O Pasquim, n. 208, de 2 jul.
1973);
(g) Mario de Andrade, cuja fama de homossexual era notória,
visto ter escrito contos sobre o amor entre rapazes (“Frederico
paciência”, “Tempo de camisolinha” e “Primeiro de maio”, em Contos
novos; “Meu engraxate”, em Os filhos da Candinha), além de poemas
entre soldados e adolescentes (“Cabo Machado”, “Soneto”, “Poema
tridente”, “Canto do mal de amor”, em De pauliceia desvairada a
café: poesias completas), embora as referências homoeróticas sejam
extraídas de angustiadas lamentações de um poeta que sofria de “mal
de amor”, segundo suas próprias palavras (“Reconhecimento do
Nêmesis”, “Vinte e nove bichos”, “Os gatos”, “Estâncias”, “Dor”,
“Quarenta anos” e “Lira paulistana”, em Poesias completas, já citada).
Tamanha era sua fama de homossexual que Oswald de Andrade
chegou a afirmar que “Mario parecia um Oscar Wilde, por detrás”
(“Dias de Mário”, entrevista com José Bento, secretário particular de
Mario de Andrade”, revista Memória, n. 17, p. 9-11). Mário de
Andrade deixou diversas correspondências suas lacradas, que, por
disposição testamentária, só deveriam ser abertas cinquenta anos após
sua morte, em 1995. Uma comissão formada por familiares e
acadêmicos alegou se tratar de matéria “de muita controvérsia” decidir
quais dessas cartas deveriam ser publicadas – e, considerando a recusa
em publicar determinadas cartas e o fato de outras terem sido
encontradas com rasgões e partes arrancadas, especula-se que tais
cartas revelariam definitivamente sua homossexualidade132
(revelando-se verdadeiro absurdo o despotismo dessa “comissão” ao
não revelar ditas correspondências ao público, afinal trata-se de
correspondências de um dos maiores nomes da literatura brasileira, em
tema de inequívoco interesse público-literário).
DA HOMOSSEXUALIDADE E DA
HOMOAFETIVIDADE
1. CONCEITUAÇÃO
Terminada a contextualização histórica no que tange ao entendimento
que a humanidade deu à identidade homossexual ao longo dos tempos,
podemos agora conceituar a homossexualidade e diferenciar os dois
conceitos. Por mais que esses temas mereçam ser tratados em, pelo menos,
um livro próprio, que tenha preferencialmente um enfoque sociológico,
histórico e antropológico, é fundamental que o leitor tenha uma correta
compreensão desses conceitos (ainda que de forma sintética) para que possa
analisar corretamente o enfoque jurídico do tema tratado nesta obra.
A homossexualidade caracteriza-se pelo sentimento de amor
romântico2 por uma pessoa do mesmo sexo. Tecnicamente, pode ser
definida como a atração erótico-afetiva que se sente por uma pessoa do
mesmo sexo3. Da mesma forma, a heterossexualidade caracteriza-se pelo
sentimento de amor romântico que se sente por pessoas de sexo diverso,
sendo assim, igualmente, a atração erótico-afetiva que se sente por uma
pessoa de sexo diverso.
Por mais que isso seja dizer o óbvio, é importante ressaltar que o
homossexual é aquele que ama romanticamente uma pessoa do mesmo
sexo. Esse é o único ponto relevante no que tange à definição da orientação
sexual da pessoa: se amar apenas pessoas do mesmo sexo, será
homossexual; se amar apenas pessoas do sexo oposto, será heterossexual; se
amar pessoas de ambos os sexos (ainda que tenha um maior apelo por um
deles), será bissexual. Isso é a orientação sexual, que foi bem definida pelos
Princípios de Yogyakarta como a “capacidade de cada pessoa de ter uma
profunda atração emocional, afetiva ou sexual por indivíduos de gênero
diferente, do mesmo gênero ou de mais de um gênero, assim como ter
relações íntimas e sexuais com essas pessoas”4.
Poder-se-ia perguntar: mas o que é amor? O amor é um afeto
profundo5, podendo ser um amor fraterno ou amor romântico, cujas
diferenças são notórias.
No que tange à questão terminológica, foram cunhados os termos
homoerotismo, homoafetividade e homoessência como forma de se retirar a
carga pejorativa existente no termo homossexualismo6-7.
Embora considere o termo homoessência perfeito para seu propósito de
apontar que o amor por pessoas do mesmo sexo é algo da essência humana,
utilizarei basicamente o termo homoafetividade, que realmente descreve
com igual perfeição aquilo que se quer aqui demonstrar8: que as relações
entre pessoas do mesmo sexo são pautadas pelo amor familiar, ou seja, pelo
amor romântico que vise a uma comunhão plena de vida e interesses, de
forma pública, contínua e duradoura (conforme será pormenorizadamente
demonstrado).
Note-se, ainda, que o homossexual não tem nenhuma relação com o
transexual. Transexual é a pessoa que sofre dissociação entre seu sexo físico
e seu sexo psíquico – a pessoa tem a convicção de que nasceu no corpo
errado. É o homem que se vê como mulher, ou a mulher que se vê como
homem. Em geral, a pessoa deseja passar por uma cirurgia de adequação de
seu sexo físico ao seu sexo psíquico para acabar com a angústia de acreditar
que nasceu no corpo errado.
O homossexual, por sua vez, é uma pessoa que não tem nenhum
problema com seu sexo biológico, ou seja, que não sofre dissociação entre
seu sexo físico e seu sexo psíquico: é um homem que se entende como
homem e ama outros homens, assim como a mulher que se entende como
mulher e ama outras mulheres. Em suma, é uma pessoa que ama pessoas do
mesmo sexo sem ter nenhum problema com seu próprio sexo biológico.
Encerrada a questão sobre a homossexualidade, tratemos agora da
identidade sexual. A identidade sexual é o conjunto de características
atribuídas à pessoa em decorrência de sua sexualidade específica9. Ou seja,
compõe a variedade de pensamentos e atitudes que se espera da pessoa que
se define como homo, hétero ou bissexual em função de sua sexualidade.
Em outras palavras, é o conjunto de características que se consideram
inerentes à sexualidade – seja ela homo, hétero ou bissexual. Trata-se de um
conceito vago e relativo, especialmente no tocante à identidade
homossexual, em virtude da ignorância da maioria das pessoas sobre o que
verdadeiramente é a homossexualidade. Isso faz surgirem diversos
equívocos, que seguem abaixo desmistificados.
Muitos veem o homossexual (especialmente o masculino) como
alguém excessivamente preocupado com sua sexualidade, ou seja, como
“promíscuo” ou “devasso”. Na verdade, o homossexual em nada difere do
heterossexual no que tange aos desejos sexuais (além, é claro, do objeto de
desejo, se homem ou mulher) – o homem gay tem a mesma libido de um
homem hétero (o mesmo valendo para as mulheres). Primeiramente, deve-
se apontar que promiscuidade não é exclusividade de homossexuais e nem
mesmo mais presente na homossexualidade. Inúmeros heterossexuais
também são promíscuos (inclusive, a história jurisprudencial do
concubinato adulterino – as traições nos casamentos – serve como prova
cabal disso). Ademais, o que os heterossexuais em geral ignoram é todo um
contexto que torna o homossexual alguém extremamente reprimido
sexualmente, o que o faz buscar ambientes onde possa namorar, onde possa
simplesmente beijar seu(sua) namorado(a) sem sofrer preconceitos (em
geral, boates destinadas ao público LGBT10).
Imagine o leitor heterossexual a vivência num contexto no qual não
pudesse nem ao menos se declarar amorosamente a quem gosta por medo
de preconceito e de violência física e psicológica, na família e na sociedade.
Imagine passar todo o final de sua infância11 e sua adolescência com medo
de assumir que gosta de pessoas do sexo oposto, pensando cautelosamente
no que falar e no que deixar de falar para não passar a ideia de que é
heterossexual, não por achar que a heterossexualidade seria “errada”, mas
por simples medo de sofrer com o preconceito social. Pois bem, é por essa
situação que passa o homossexual: tem medo de se assumir enquanto
homossexual pelo medo do preconceito homofóbico lamentavelmente
existente em nossa sociedade. Esse contexto, que é parte integrante de todos
os homossexuais do mundo (pelo menos na parte inicial de suas vidas), faz
que eles busquem locais onde possam namorar livremente, como qualquer
casal heterossexual namora. A diferença é que os heterossexuais podem
namorar em praças públicas, restaurantes em geral, na faculdade, na escola
etc. sem nenhum embaraço, ao passo que os homossexuais não têm essa
liberdade pela repressão que sofreriam em muitos lugares.
Outro equívoco é o de achar que a homossexualidade seria “errada”
pelo simples fato de muitos homossexuais não se aceitarem e inclusive
acharem que seriam “pecadores” ou algo do gênero pelo simples fato de
amarem pessoas do mesmo sexo. Não há nada de errado no simples fato de
ser homossexual, mas, em decorrência da forte carga de preconceito
homofóbico que se encontra enraizado em nossa cultura e que
cotidianamente é difundido por nossa sociedade machista e heterossexista,
muitos homossexuais acabam internalizando a homofobia (preconceito
internalizado), passando assim eles mesmos a ter preconceito contra outros
homossexuais, especialmente contra os assumidos (assim como ocorre com
mulheres machistas e negros racistas).
O leitor certamente tem uma noção, ainda que inconsciente, do que se
acabou de dizer: a todo momento a mídia e a sociedade em geral pregam,
indiretamente, a heterossexualidade como a única sexualidade “aceitável”.
Isso pode ser percebido pela ausência de qualquer publicidade de massa
voltada ao público homossexual: mesmo porque, quando alguma empresa
faz esse tipo de publicidade, é atacada pelos setores conservadores da
sociedade, que dizem que a homossexualidade seria algo “contra a moral e
os bons costumes”... Um exemplo que merece ser citado ocorreu em abril
de 2006, quando a empresa DKT Brasil elaborou diversos outdoors
difundindo um preservativo com a marca Affair, voltada para o público
homossexual. O cartaz mostrava dois homens em um quase beijo e continha
a palavra: Liberdade. Houve imediata campanha homofóbica pelos setores
conservadores, que apresentaram queixas ao CONAR (Conselho de
Autorregulamentação Publicitária) contra tal publicidade. Em razão disso, o
CONAR abriu uma notificação contra o anúncio, para investigar uma
suposta ofensa à “ética na propaganda” (sic). Nesse sentido, após alguns
dias, o CONAR proferiu uma “liminar” (em processo administrativo, não
vinculativa), determinando a retirada dos outdoors sob a justificativa de
preservação da respeitabilidade12... Em seguida à retirada dos outdoors, a
DKT Brasil colocou nos locais onde estavam eles afixados outros com a
seguinte frase: “O amor não deveria incomodar”.
Esse singelo exemplo demonstra como é grande a repressão social que
sofrem os homossexuais. Ora, há inúmeros outdoors nos quais um homem
está beijando uma mulher (inclusive em posições insinuantes) e nunca
houve nenhuma reação contra eles (ao menos por parte das pessoas em
geral). Há claramente dois pesos e duas medidas quando se considera um
ato homoafetivo e um ato heteroafetivo idênticos. De forma velada, a
sociedade deixa claro que só admite a heterossexualidade, justamente por
reprimir ao máximo qualquer veiculação da homossexualidade. É isso o que
faz que muitos homossexuais acabem pensando que a homossexualidade
seria “errada” – contudo, são eles, juntamente com os homofóbicos, os que
estão errados.
Feita a digressão exemplificativa, voltemos ao tema da identidade
homossexual. Nos dias de hoje, embora não seja possível qualificar todos os
homossexuais dentro de um conjunto imutável de características, pode-se
dizer que a identidade homossexual caracteriza-se pela aceitação por parte
do homossexual do fato de que ele ama pessoas do mesmo sexo e faz parte
de uma minoria estigmatizada alvo de preconceito e discriminação pelo
simples fato de ter a sexualidade homoafetiva13. Ademais, deve supor um
sentimento de indignação em razão dessa negativa de direitos, em
decorrência da arbitrariedade de tal fato, justamente por não haver nenhum
motivo plausível para se condenar uma pessoa pelo simples fato de ela não
ser heterossexual, uma vez que o homossexual é tão digno e tão humano
como qualquer heterossexual. Esses são os únicos elementos comuns entre
todos os homossexuais – a negativa de direitos quando efetivamente vivem
uma relação amorosa com uma pessoa do mesmo sexo e a indignação que
isso deve gerar.
Uma nota importante: não se pode confundir orientação sexual com
identidade sexual: orientação sexual refere-se ao sexo para o qual sentimos
amor e desejo, ao passo que a identidade sexual refere-se ao fato de assumir
plenamente esta orientação sexual14. Logo, quem fala em
homossexualidades, heterossexualidades ou bissexualidades acaba por
misturar os conceitos de orientação sexual e de identidade sexual, pois o
plural quer significar as várias formas em que diferentes pessoas podem
viver sua homossexualidade, heterossexualidade ou bissexualidade.
Homossexualidade é a atração erótico-afetiva por pessoas do mesmo sexo;
heterossexualidade é a atração erótico-afetiva por pessoas de sexo diverso;
e bissexualidade é a atração erótico-afetiva por pessoas de ambos os sexos.
Práticas e formas de exercício da sexualidade podem variar, mas a
orientação sexual permanece a mesma.
Para finalizar o tópico, cumpre reiterar algo que já foi exposto em nota
de rodapé supra: o significado de homofobia. Como mencionado, por vezes,
críticos da militância que pleiteia o reconhecimento do direito dos
homossexuais aduzem que o termo homofobia seria tecnicamente
equivocado, na medida em que fobia designaria pavor/aversão de
homossexuais, o que nem sempre seria o caso. Independentemente da
origem etimológica da palavra, esta claramente evoluiu para significar,
atualmente, preconceito ou discriminação contra homossexuais, que, aliás,
sempre estiveram presentes no pavor e/ou na aversão da origem
etimológica. Como bem diz Daniel Borrillo, em sentido estrito, a
homofobia é a atitude de hostilidade contra as pessoas homossexuais,
bissexuais, travestis e transexuais (homofobia específica), ao passo que, em
sentido amplo, é a atitude de hostilidade contra todos aqueles que, mesmo
heterossexuais, não são conformes às normas sexuais, ensejando a
discriminação àqueles que apresentam ou têm a si atribuídas determinadas
qualidades ou defeitos imputados ao gênero oposto, de sorte que esta
homofobia geral visa denunciar os desvios e deslizes do masculino em
direção ao feminino e vice-versa, para tentar coagir tais pessoas a agirem
em conformidade com o gênero atribuído socialmente a pessoas de seu sexo
biológico15. A homofobia torna-se, assim, a guardiã das fronteiras tanto
sexuais (hétero/homo), quanto de gênero (masculino/feminino), sendo
evidenciada a diferença homo/hétero com o intuito de ordenar um regime
das sexualidades em que os comportamentos heterossexuais são os únicos
considerados merecedores da qualificação de modelo social e de referência
em termos de sexualidade normal/aceitável16. Em suma, este é o significado
que se dá, no presente trabalho, a homofobia: preconceito ou discriminação
contra homossexuais17.
Feitas essas considerações, pode-se adentrar em outros pontos cruciais
na compreensão da homossexualidade.
2. A BÍBLIA E A HOMOSSEXUALIDADE
3. “HOMOSSEXUALISMO” X HOMOSSEXUALIDADE:
ENTENDIMENTO MÉDICO-PSICOLÓGICO ACERCA DA
HOMOAFETIVIDADE
Com a evolução do pensamento humano ao longo dos tempos, saiu-se
de uma sociedade teocrática (em que os dogmas religiosos são tidos como
inquestionáveis e como verdades universais) para uma sociedade racional
(onde a razão pautada pela ética laica é o que determina se um
comportamento é certo ou errado), no sentido de que o ser humano
começou a procurar respostas científicas, e não religiosas, para explicar os
fenômenos humanos.
Com relação à homossexualidade, dita evolução de pensamento fez os
cientistas considerarem, a princípio, a homossexualidade não como um
“pecado”, como defendem muitas Igrejas, mas como uma “doença”,
partindo do pressuposto de que a heterossexualidade seria a conduta “sadia”
e a homossexualidade um “distúrbio”, um “desvio comportamental” etc.
Dessa ideia cunhou-se a palavra “homossexualismo”, uma vez que o sufixo
“-ismo” significa “doença”. Logo, a princípio a ciência médica classificou o
sentimento de amor por pessoas do mesmo sexo como uma doença que
deveria ser tratada.
Não é o escopo deste trabalho adentrar profundamente no mérito das
discussões médico-psicológicas a respeito da homossexualidade, contudo
pode-se afirmar que após séculos de estudos sobre o tema a ciência médica
mundial concluiu que o amor por indivíduos do mesmo sexo não constitui
uma “doença”, um “desvio psicológico”, uma “perversão” nem nada do
gênero. Tal é o entendimento esposado pela Organização Mundial da Saúde
(OMS), que, em sua Classificação Internacional de Doenças n. 10, em sua
revisão de 1993 (CID 10/1993), passou a considerar a homossexualidade
como uma das manifestações naturais da sexualidade humana, assim como
a heterossexualidade48. Dessa forma, deixada de lado a afirmação de que a
homoafetividade seria uma “doença” ou algo do gênero, passou-se então a
afirmar se tratar de conduta natural ao ser humano, assim como a
heteroafetividade.
Tal entendimento foi ratificado em nosso país por meio da Resolução
01/1999, do Conselho Federal de Psicologia, que afirmou, expressamente,
não se tratar a homossexualidade de doença, desvio psicológico, perversão
nem nada do gênero, proibindo os profissionais de psicologia de promover
qualquer tratamento de “cura” da homossexualidade, assim como reprová-la
perante seus pacientes ou participar de propagandas nesse sentido, pois não
se cura aquilo que não é patológico. Esse já era o entendimento da
Associação Americana de Psiquiatria desde a década de 197049.
Desta feita, ante o entendimento médico-psicológico de não se tratar a
homossexualidade de uma doença, desvio ou perversão psicológica, foi
substituído o sufixo “-ismo” pelo sufixo “-dade”, que significa “modo de
ser”. Assim, é tecnicamente incorreta a utilização da palavra
“homossexualismo”, sendo o correto o uso da palavra “homossexualidade”,
como se faz neste trabalho.
A propósito, é oportuno citar que aquilo que algumas Igrejas fazem no
sentido de tentar “curar” a homossexualidade das pessoas é, na verdade,
uma verdadeira violência psicológica, que apenas faz que os homossexuais
fiquem com um preconceito internalizado50 sobre si mesmos, tendo em
vista a arbitrária condenação religiosa que ditas instituições pregam de
forma contrária à homossexualidade51. Dessa forma, essas instituições
religiosas devem ser proibidas de propagar essas tentativas de “cura” da
homossexualidade, mesmo porque tal conduta configura crime de
charlatanismo, por visar “curar” uma orientação sexual que não é doença e,
consequentemente, não é passível de cura. Nem se avente que os pastores
religiosos e afins não estariam sujeitos a tal punição criminal pela liberdade
religiosa constitucionalmente consagrada, pois nenhum direito é absoluto.
A liberdade religiosa não pode ser usada como arma para difundir o
preconceito, o ódio e a intolerância. Nesse sentido, no conflito entre a
liberdade religiosa que difunde o preconceito e o direito dos cidadãos
homossexuais de terem sua honra preservada pela não difusão de mentiras
(pois é mentira que homossexuais poderiam simplesmente deixar de ser
homossexuais), obviamente prevalecerá o direito à honra dos cidadãos
homossexuais, pelo princípio da proporcionalidade largamente utilizado na
Jurisprudência do Supremo Tribunal Federal.
Nem se avente que apenas os homossexuais interessados em “mudar”
sua orientação sexual (o que é impossível) se submeteriam a essas
pseudoterapias. Afinal, a mera difusão dessa inverdade (“cura”) implica, em
muitos casos, internalização do preconceito, donde muitos homossexuais
acabam acreditando que são “doentes” ou “pecadores” e procuram essas
pseudoterapias na esperança de mudarem sua orientação sexual – o que
nunca ocorre. O que acontece é que o homossexual acaba reprimindo sua
homossexualidade após essas pseudoterapias: não deixa de amar pessoas do
mesmo sexo, apenas reprime esse sentimento. Contudo, a experiência
prática tem demonstrado que aqueles declarados como “curados” de sua
homossexualidade sempre têm “recaídas”, que se tornam cada vez mais
constantes com o passar do tempo, pois, como dito, eles não deixaram de
ser homossexuais, apenas reprimiram sua personalidade homossexual ante
as pregações homofóbicas dos pastores em questão, donde se percebe
claramente a verdadeira violência psicológica que ditas pseudoterapias
infligem aos homossexuais, em inequívoca afronta à dignidade humana
destes (o mesmo vale para os bissexuais que a elas se submetam).
Antes que o leitor eventualmente fique indignado com essa afirmação,
sob o fundamento de que a liberdade religiosa deveria ser respeitada mesmo
nesta hipótese, analise uma questão similar. Até meados do século XX,
havia religiosos que pregavam que os negros seriam pessoas menos dignas
do que os brancos. Chegavam ao absurdo de dizer que Deus teria colocado
brancos e negros em continentes diferentes com o intuito de não permitir
sua miscigenação52. Chegou-se a dizer, como fundamento da escravidão,
que os negros não seriam nem mesmo humanos, pois não teriam alma... O
maior exemplo desse ódio religioso contra negros foi o grupo Ku Klux
Klan, que difundia discursos de ódio (hate speeches) contra eles,
justificando-se com base na liberdade de expressão e também na liberdade
religiosa.
Hoje, se qualquer religioso pregar algo nesse sentido será
imediatamente preso por crime de racismo (ou injúria qualificada), pela
pregação do ódio e da intolerância contra negros. Por mais que a
discriminação por orientação sexual ainda não constitua crime específico53,
não se deve permitir a difusão do ódio e da intolerância contra
homossexuais em nenhuma hipótese, pois são pessoas merecedoras da
mesma dignidade e do mesmo tratamento que os heterossexuais. Aliás,
apesar de ainda não existir um crime específico oriundo da discriminação
por orientação sexual, tal atitude se enquadra, no mínimo, no crime de
injúria (ofensa à honra subjetiva da pessoa – aquilo que ela pensa sobre si
mesma), além do crime de difamação (ofensa à honra objetiva da pessoa –
o que os outros pensam sobre você), caso seja realizada perante outras
pessoas. Na esfera cível, caracteriza dano moral passível de indenização,
justamente pela ofensa à honra subjetiva e eventualmente objetiva do
homossexual em questão.
Portanto, não existe uma orientação sexual “correta”: a
homossexualidade e a bissexualidade são tão dignas quanto a
heterossexualidade, conforme o entendimento médico-psicológico dos
órgãos médico-científicos oficiais.
OS PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS DA
ISONOMIA E DA PROPORCIONALIDADE
2. OS PRINCÍPIOS DA PROPORCIONALIDADE E DA
RAZOABILIDADE – CONTEÚDO JURÍDICO
Oriundo inicialmente de construção jurisprudencial do Tribunal
Constitucional Alemão, o princípio da proporcionalidade51 visa,
precipuamente, servir como método de controle dos atos estatais no sentido
de averiguar a adequação, a necessidade e a proporcionalidade em sentido
estrito das medidas estatais em debate para, neste terceiro momento (que
supõe necessariamente o reconhecimento da adequação e da necessidade
citadas), solucionar o conflito entre dois ou mais direitos fundamentais em
choque por parte dessas medidas, por meio de um juízo de ponderação entre
os mesmos para, identificado aquele que seria mais relevante no caso
concreto, sacrificar-se (o menos possível) o outro52.
Assim, como forma de controle da atividade estatal e mesmo de
solução de conflito entre dois ou mais direitos, o princípio da
proporcionalidade é subdividido em três subprincípios a ele inerentes, a
saber: o da adequação, o da necessidade e o da proporcionalidade em
sentido estrito. A adequação significa que a medida impugnada deve ser
apta a atingir o fim por ela pretendido; a necessidade aponta que deve ser
utilizado o meio menos gravoso para atingir aquele fim; por fim, a
proporcionalidade em sentido estrito significa que o que se ganha com a
restrição deve ser maior do que o que se perde com ela, o que se verifica
por meio de uma ponderação entre os direitos em conflito para apurar qual
deles deverá ser sacrificado (na menor medida possível), por ser menos
relevante, ou qual a forma de compatibilização entre eles para evitar o
conflito efetivo e acabar com a tensão existente53. Ou, na lição de Luís
Roberto Barroso54: “Cuida-se, aqui, de uma verificação entre os danos
causados e os resultados a serem obtidos. Nas palavras de Canotilho, trata-
se ‘de uma questão de ‘medida’ ou ‘desmedida’ para se alcançar um fim:
pesar as desvantagens dos meios em relação às vantagens do fim’. (...) é a
ponderação entre o ônus imposto e o benefício trazido, para constatar se é
justificável a interferência na esfera dos direitos dos cidadãos”.
Assim, se a medida impugnada não for apta a atingir o fim por ela
pretendido, se houver outra menos gravosa aos atingidos que possa atingir o
mesmo fim ou, ainda, se o direito que ela vise proteger tiver menor
relevância do que o outro direito com o qual ela colida, então dita medida
será inconstitucional por afronta ao princípio da proporcionalidade.
Ademais, uma discriminação somente será juridicamente válida (ou
seja, respeitadora do aspecto material da isonomia) se igualmente respeitar
os ditames do princípio da proporcionalidade, visto que somente haverá
racionalidade na diferenciação se ela for: adequada a atingir os fins
pretendidos; necessária, ante a inexistência de outra forma menos gravosa
para tanto; e, por fim, proporcional em sentido estrito, uma vez que o valor
protegido com a desequiparação deve ser maior do que o valor por ela
restringido ou sacrificado no caso concreto55 (ou seja, se não for possível
uma concordância prática de forma a viabilizar a convivência de ambos os
bens em conflito, ainda que um seja mais relativizado que o outro, será
necessário o sacrifício de um deles no caso concreto, o que supõe
necessariamente a ponderação apontada).
Outrossim, cumpre apontar que não equiparo os princípios da
razoabilidade e da proporcionalidade, entendendo que ambos possuem
conteúdos jurídicos distintos. Sobre o princípio da razoabilidade, deve-se
concordar com Jane Reis Gonçalves Pereira56, que traz à lume quatro
concepções doutrinário-jurisprudenciais acerca do princípio da
razoabilidade – plenamente cumuláveis para a definição do conteúdo
jurídico do princípio da razoabilidade, a saber: (i) como antônimo de
arbitrariedade (são irrazoáveis os atos estatais destituídos de causa ou
fundamento, assim como os que se amparam em razões irrelevantes, o que
supõe um imperativo de congruência às medidas adotadas pelo Poder
Público); (ii) como justiça do caso concreto (são irrazoáveis posturas que
desconsiderem as regras da lógica ou da experiência comum; razoabilidade
como sinônimo de equidade); (iii) como exigência de consistência e
coerência lógica das leis e decisões judiciais (coerência interna, de
ausência de contradição entre os diversos fundamentos contidos no ato
normativo ou na sentença, e coerência externa, harmonia entre o ato
controlado e os valores imanentes do ordenamento jurídico); (iv) como
equivalência (imposição constitucional de correspondência equilibrada
entre as grandezas analisadas). Percebe-se, assim, que a razoabilidade deve
ser utilizada no processo de ponderação (proporcionalidade em sentido
estrito), embora com ela não se confunda.
OS PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS DA
DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA E DA
INTERPRETAÇÃO CONFORME A
CONSTITUIÇÃO
Dessa colocação pode surgir a seguinte indagação: mas por que se deve
necessariamente sacrificar outro direito que não o do respeito à dignidade
da pessoa humana no caso concreto, e não o contrário (ou seja, o sacrifício
desse direito de respeito à dignidade em relação ao outro)? Tal se dá pelo
fato de ter o Constituinte de 1988 alçado o princípio da dignidade da pessoa
humana ao topo hierárquico de nossa Constituição, no sentido de ser ele o
princípio fundamental (logo, de maior hierarquia axiológico-normativa) da
Carta Magna, sendo, nas palavras do citado autor18, o seu “valor-guia”, uma
vez que constitui um dos fundamentos da República Federativa do Brasil,
nos termos do art. 1.º, III, da CF/1988.
Outrossim, cumpre destacar o fato de que os direitos fundamentais são
assim considerados (como fundamentais) justamente por se partir do
pressuposto de que, sem eles, o ser humano não pode ter uma vida digna na
sua condição de pessoa humana. Ou seja, os direitos fundamentais são
exteriorizações do princípio da dignidade da pessoa humana, no sentido de
visarem garantir uma vida digna a todos os cidadãos. Assim, por mais que
os direitos alçados à condição de fundamentais por nossa Constituição
Federal tenham diferentes gradações de dignidade humana em seu conteúdo
(ou seja, o fato de alguns desses direitos possuírem maior carga de proteção
à dignidade humana do que outros), todos eles19 representam a
exteriorização de uma vertente da dignidade humana que o Constituinte
quis proteger.
Ainda nesse mister, ressalte-se que a previsão disposta no art. 5.º, § 2.º,
da CF/198820 permite concluir que os direitos previstos em seu Título II
(“Dos Direitos e Garantias Fundamentais”) não são os únicos direitos
fundamentais, configurando, assim, a existência de direitos fundamentais
implícitos, além dos ali previstos (assim como de outros oriundos dos
tratados internacionais dos quais o Brasil faça parte). Dessa forma, tendo
em conta o princípio da dignidade da pessoa humana, sempre que se
identificar na Constituição algum direito que possua em seu conteúdo21 a
proteção da dignidade humana, dever-se-á classificá-lo como um direito
humano fundamental, assim como os constantes do mencionado Título II de
nossa Carta Magna, na qualidade de direito fundamental implícito.
Todavia, é preciso tomar cuidado para que não se banalize o princípio
da dignidade da pessoa humana, o que poderia ocorrer ao tentar colocá-lo
como fundamento de todo e qualquer dispositivo de nossa Carta Magna,
sob pena de esvaziar o seu conteúdo fundamental. É preciso muita cautela
do intérprete ao classificar algum outro dispositivo da Constituição como
direito fundamental, o que só pode acontecer em sendo esse outro
dispositivo materialmente um direito humano fundamental, em que pese
não estar ele formalmente colocado no título referente a esses direitos22.
Por fim, cumpre tecer algumas considerações sobre o problema do
conflito doutrinário acerca do caráter absoluto ou relativo do princípio da
dignidade da pessoa humana. Com efeito, sustenta a maior parte da doutrina
e da jurisprudência ser a dignidade humana absoluta intangível pelo
legislador e pelo juiz, no sentido de que deve prevalecer, de modo absoluto,
sobre todos os demais direitos. Todavia, seguindo caminho diverso, Ingo
Wolfgang Sarlet aponta para o problema dessa concepção absoluta da
dignidade humana. Conforme atesta, em se considerando que todas as
pessoas humanas possuiriam um direito absoluto, intangível em qualquer
hipótese de respeito à sua dignidade, então num caso concreto traria
enormes dificuldades para o julgador decidir uma lide envolvendo esse
direito, se houvesse um efetivo conflito direto entre as dignidades de autor e
réu da demanda. Tome-se o exemplo dado, ainda que com outras palavras,
pelo citado doutrinador23: o criminoso. Aquele que comete homicídio
qualificado pela utilização de meio cruel, uma vez comprovado tal fato pelo
devido processo legal, será evidentemente recolhido a um estabelecimento
prisional. Contudo, nesse caso, em se tomando como absoluto o princípio
da dignidade da pessoa humana, poder-se-á alegar que a dignidade do preso
resta ofendida pelo fato de ser ele recolhido a uma prisão, pois será tolhido
não só em sua liberdade de locomoção, mas em uma série de outros direitos
pelo espaço de tempo em que estiver preso24. Todavia, o que se usa para
justificar a prisão do criminoso é o fato de que a sociedade não pode ficar à
mercê dele, que é potencialmente mais propenso a cometer um crime que os
demais cidadãos que nunca o cometeram. Assim, deixá-lo solto traria uma
constante situação de apreensão e medo à sociedade, o que se tem por
inaceitável. Dessa forma, resta claro o confronto supranoticiado: por um
lado, tem-se a dignidade (e segurança) da coletividade; e, de outro, a
dignidade humana do criminoso.
Esse exemplo enfatiza o grande problema existente ao considerar o
princípio da dignidade da pessoa humana como absoluto, pois, nesse caso, o
juiz do caso concreto ver-se-ia em um verdadeiro beco sem saída, porque
ou sacrifica uma fração da dignidade de uma das partes ou então não terá
como decidir a questão.
Assim, é correta a posição do autor no sentido de que “a dignidade,
ainda que não se trate como o espelho no qual todos veem o que desejam,
inevitavelmente já está sujeita a uma relativização (de resto comum a todos
os conceitos jurídicos) no sentido de que alguém (não importa aqui se juiz,
legislador, administrador ou particular) sempre irá decidir qual o conteúdo
da dignidade e se houve, ou não, uma violação no caso concreto”25.
Mas, ainda aqui, surge a seguinte indagação: como se deve proceder à
escolha de qual dignidade humana deve prevalecer; qual critério utilizar
nesse mister? Conforme colaciona o autor, na doutrina e na jurisprudência
alemãs parece haver “certo consenso quanto ao fato de que, em princípio,
nenhuma restrição de direito fundamental poderá ser desproporcional e/ou
afetar o núcleo essencial do direito objeto da restrição”26, o que se afigura
plenamente razoável e, portanto, acertado.
Destarte, os princípios da igualdade e da proporcionalidade devem ser
os nortes utilizados quando da decisão sobre qual dignidade humana deve
prevalecer no confronto direto que as lides concretas podem trazer ao juiz.
Isso porque, conforme já demonstrado no capítulo referente à isonomia, um
dos critérios para que a discriminação seja constitucionalmente válida é a
existência de um motivo lógico-racional que justifique a discriminação
pretendida em face do critério desigualador erigido, o que visa evitar a
desproporcionalidade da restrição a todo e qualquer direito27.
Dessa forma, somente deve o juiz proceder à relativização da
dignidade humana em questão se verificar a existência de um fundamento
lógico-racional no caso concreto que o justifique, assim como se dita
relativização for proporcional (adequada, necessária e proporcional em
sentido estrito). No exemplo supracolacionado, o motivo é o fato de que o
criminoso tirou a vida de outrem e, ainda por cima, com a utilização de
meio cruel. Considerando que a vida humana é um direito fundamental
assim erigido por nossa Carta Magna, é plenamente cabível que seja o
criminoso em questão preso, para que se cumpra a tríplice função da pena
(aspectos retributivo/punitivo, preventivo de novos crimes e
ressocializante), e que, inclusive, tenha uma pena maior do que aquele
agente que cometeu um homicídio simples, pelo fato de este não ter contra
si nenhuma condição qualificadora do crime.
Anote-se, para finalizar, a pertinente lição de Luís Roberto Barroso28
acerca do tema:
2. A QUESTÃO DA FAMÍLIA
Nesse sentido, como bem dito pelo juiz Antônio Mônaco Neto, da
Comarca de Salvador/BA em decisão de 12.04.2012, “a base da
constituição da família deixou de ser a procriação e a geração de filhos,
para se concentrar na troca de afeto e de amor”, compreensão esta que
constitui o entendimento contemporâneo sobre a importância da afetividade
nas relações familiares aliada à publicidade, durabilidade, continuidade e
intenção de constituir família [mediante comunhão plena de vida e
interesses]40, na medida em que dita decisão afirmou que “amor e afeto
[são] sentimentos basilares para lastrear a vontade de formar uma entidade
familiar e estabelecer objetivos em comum, além da convivência e mútua
assistência, com características de duração, publicidade , continuidade e
intenção de constituir família”. Em suma, tem-se que a afetividade está na
gênese das relações familiares, devendo-se garantir proteção às diversas
formas de entidades familiares baseadas no afeto e no desejo sincero de
constituir uma relação estável e duradoura, visto que o ponto comum entre
todas as famílias contemporâneas é o amor41.
Toda essa evolução no conceito de família só vem demonstrar que não
se pode ter a pretensão de classificá-la em apenas um determinado tipo de
relação. Deve-se ter em mente que o amor familiar42 entre os envolvidos é
o principal elemento a ser considerado quando se visa o reconhecimento de
uma relação como sendo pertencente ao ramo do Direito das Famílias – isto
porque aqueles diretamente envolvidos já têm a certeza de que são, sim,
uma verdadeira família, por mais que o legislador ou parte dos profissionais
do Direito ainda não o reconheçam em face dos seus próprios preconceitos.
Nessa linha, conforme se demonstra adiante, verifica-se que o nosso
ordenamento jurídico não admite a discriminação das uniões homoafetivas
em relação às heteroafetivas, uma vez que dita discriminação afronta os
princípios da isonomia e da dignidade da pessoa humana.
1 Frase que abriu a 2.ª Edição de seu livro União Homossexual: o Preconceito & a
Justiça. Disponível em: www.mariaberenicedias.com.br. Acesso em: 14 out. 2007.
2 O que existem são projetos de lei. O mais notório é o Projeto de Lei 1.151/1995 da
então Deputada Marta Suplicy, e o respectivo Substitutivo, que se encontram
“engavetados” na Câmara dos Deputados desde sua criação pela absoluta falta de
interesse político em sua votação. Há, ainda, o projeto de lei nominado Estatuto das
Famílias – PL 674/2007, que visa revogar o livro de Direito de Família do Código Civil
de 2002 para criar um microssistema jurídico específico para as relações familiares, o
qual prevê, em sua redação originária, a “união homoafetiva” como entidade familiar
autônoma (embora, em seu substitutivo, fruto de acordo com a bancada
fundamentalista, dita evangélica, do Congresso Nacional, tenha retirado tal previsão
do projeto de Estatuto, em que, se o substitutivo for aprovado, continuaremos com o
vácuo normativo acerca da união homoafetiva). Assim, como os referidos projetos não
foram convertidos em lei, deixa-se de comentá-los no presente trabalho, que analisa a
possibilidade de aplicação da legislação hoje existente às uniões homoafetivas.
3 DIAS, Maria Berenice. União Homoafetiva. O Preconceito & a Justiça. 5. ed. São Paulo:
RT, 2011, p. 15.
4 KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. Tradução: João Baptista Machado, São Paulo:
Martins Fontes, 2007, p. 270, para quem: “a ordem jurídica regula a conduta humana
não só positivamente, prescrevendo uma certa conduta, isto é, obrigado a esta
conduta, mas também negativamente, enquanto permite uma determinada conduta
pelo fato de a não proibir. O que não é juridicamente proibido é juridicamente
permitido. (...) a conduta de um indivíduo não juridicamente proibida e, neste sentido,
permitida, pode ser garantida pela ordem jurídica, na medida em que os outros
indivíduos são obrigados a tolerar esta conduta, quer dizer, a não impedir ou de
alguma forma dificultar”. A fundamentação desta posição encontra-se em trecho
anterior da obra: “o Direito regula a conduta humana não apenas num sentido positivo
– enquanto prescreve uma tal conduta ao ligar um ato de coerção, como sanção, à
conduta oposta e, assim, proíbe esta conduta – mas também por uma forma negativa
– na medida em que não liga um ato de coerção a determinada conduta e, assim, não
proíbe esta conduta nem prescreve a conduta oposta. Uma conduta que não é
juridicamente proibida ou é – neste sentido negativo – juridicamente permitida. Visto
que uma determinada conduta humana ou é proibida ou não o é, e que, se não é
proibida, deve ser considerada como permitida pela ordem jurídica, toda e qualquer
conduta de um indivíduo submetido à ordem jurídica pode considerar-se como
regulada – num sentido positivo ou negativo – pela mesma ordem jurídica. Na medida
em que a conduta de um indivíduo é permitida – no sentido negativo – pela ordem
jurídica, porque esta não a proíbe, o indivíduo é juridicamente livre. (...) A ordem
jurídica pode limitar mais ou menos a liberdade do indivíduo enquanto lhe dirige
prescrições mais ou menos numerosas. Fica sempre garantido, porém, um mínimo de
liberdade, isto é, de ausência de vinculação jurídica, uma esfera de existência humana
na qual não penetra qualquer comendo ou proibição” (Ibidem, p. 46 e 48).
5 BRANDÃO, Débora Vanessa Caús. Parcerias homossexuais – aspectos jurídicos, 1.ª
Edição, São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002, p. 66 e 67.
6 Segundo MORAES (A união entre pessoas do mesmo sexo..., p. 96), apud GIRARDI,
Viviane. Famílias Contemporâneas, Filiação e Afeto. A Possibilidade Jurídica da
Adoção por Homossexuais, 1.ª Edição, Porto Alegre: Editora Livraria do Advogado,
2005, p. 69 e 81: “Como se sabe, o papel do legislador numa sociedade democrática e
pluralista é, substancialmente, o de proteção das minorias, através da tutela dos
interesses dos mais fracos, desde que considerados aqueles interesses como direitos
fundamentais, direitos esses que são postos para a proteção da pessoa humana em
sua vida de relação, em sua liberdade, igualdade, participação política e social, bem
como de qualquer outro aspecto que se refira ao pleno desenvolvimento de sua
personalidade. (...) O Estado Democrático de direito material implica o respeito e a
garantia de realização dos direitos fundamentais para todos os cidadãos
individualmente considerados, e na questão atinente aos homossexuais implica, além
da possibilidade do reconhecimento dessa identidade sexual, na proibição de
discriminação ou de tratamento diferenciado oriundo única e exclusivamente da
identidade, ou da orientação sexual das pessoas” (sem grifo no original).
7 Cite-se, v.g., GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil Brasileiro. Parte Geral, 5. ed.
São Paulo: Saraiva, 2007, pp. 48-49, para quem “O legislador não consegue prever
todas as situações para o presente e para o futuro, pois o direito é dinâmico e está em
constante movimento. (...) Tal estado de coisas provoca a existência de situações não
previstas de modo específico pelo legislador e que reclamam solução por parte do juiz.
Como este não pode eximir-se de proferir decisão sob o pretexto de que a lei é
omissa, deve valer-se dos mecanismos destinados a suprir as lacunas da lei, que são:
a analogia, os costumes e os princípios gerais de direito”, pois “Efetivamente, sob o
ponto de vista dinâmico, o da aplicação da lei, pode ela ser lacunosa, mas o sistema
não. Isso porque o juiz, utilizando-se dos aludidos mecanismos, promove a integração
das normas jurídicas, não deixando nenhum caso sem solução (plenitude lógica do
sistema). O direito estaticamente considerado pode conter lacunas. Sob o aspecto
dinâmico, entretanto, não, pois ele próprio prevê os meios para suprir-se os espaços
vazios e promover a integração do sistema”, daí o cabimento da analogia, “que
consiste em aplicar a um caso não previsto a norma legal concernente a uma hipótese
análoga prevista e, por isso mesmo, tipificada [cf. Carlos Maximiliano]”. Dessa forma,
como ensina VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito Civil. Parte Geral. 4. ed. São Paulo:
Saraiva, 2004, pp. 48-49, “O ideal seria o ordenamento jurídico preencher todos os
acontecimentos da sociedade. Não é, como vimos, o que ocorre”, assim, deve o juiz
decidir os casos lacunosos por analogia, que é “um processo de raciocínio lógico pelo
qual o juiz estende um preceito legal a casos não diretamente compreendidos na
descrição legal. O juiz pesquisa a vontade da lei, para transportá-la aos casos que a
letra do texto não havia compreendido”.
8 É oportuna, aqui, a observação de Viviane Girardi (Famílias Contemporâneas, Filiação
e Afeto. A Possibilidade Jurídica da Adoção por Homossexuais, 1.ª Edição, Porto
Alegre: Editora Livraria do Advogado, 2005, p. 56): “Decorrente da impossibilidade de
se aferir quais seriam os direitos que, uma vez assegurados juridicamente, realizariam
a personalidade de todos os indivíduos, o mecanismo legal disponível para a
concretização da possibilidade de reivindicação dos direitos individuais de
personalidade se dá por meio da utilização do princípio da dignidade da pessoa
humana, como cláusula geral a recepcionar e tutelar todo e qualquer direito
relacionado com a realização pessoal de cada pessoa. ‘A personalidade é, portanto,
não um direito, mas um valor (o valor fundamental do ordenamento) e está na base de
uma série aberta de situações existenciais, nas quais se traduz a sua incessantemente
mutável exigência de tutela’”.
9 Ibidem – Prefácio.
10 DIAS, Maria Berenice, União Homossexual – o Preconceito & a Justiça, 3.ª Edição,
Porto Alegre: Editora Livraria do Advogado, 2006, p. 61.
11 ENGELS (A origem da família, da propriedade privada e do Estado, 1944, p. 80-85)
apud LÔBO, Paulo. Direito Civil: Famílias, 1.a Edição, São Paulo: Editora Saraiva,
2008, p. 8.
12 Ibidem, p. 4.
13 Preconceito este que só foi definitivamente superado, do ponto de vista jurídico, com o
advento da Constituição Federal de 1988, que decretou a igualdade jurídica entre o
homem e a mulher na sociedade conjugal (art. 226, § 5.º, da CF/1988).
14 Ibidem, p. 8.
15 Cf. RIOS, Roger Raupp. A homossexualidade no Direito, 1.ª Edição, Porto Alegre:
Editora Livraria do Advogado, 2001, p. 99-100 – o trecho encontra-se transcrito na
nota de rodapé n.º 81, deste capítulo.
16 OLIVEIRA (União estável e seus reflexos no Direito Penal, p. 14) apud DIAS, Maria
Berenice, União Homossexual – o Preconceito & a Justiça, 3.ª Edição, Porto Alegre:
Editora Livraria do Advogado, 2006, p. 63.
17 Cf. RIOS, Roger Raupp. A homossexualidade no Direito, Porto Alegre: Editora Livraria
do Advogado, 2001, pp. 103-105 – o trecho encontra-se transcrito na nota de rodapé
n.º 81, deste capítulo.
18 LÔBO, Paulo. Direito Civil: Famílias, 1.a Edição, São Paulo: Editora Saraiva, 2008, pp.
2-3.
19 Essa foi uma importante vitória, na medida em que a totalitária cláusula da moral e
dos bons costumes poderia eventualmente ensejar a conclusão de que aquilo que não
fosse considerado “moral” ou como de “bons costumes” seria algo ilícito e, portanto,
impassível de ter a si reconhecidas consequências jurídicas de qualquer espécie –
logo, foi uma evolução inicial.
20 DIAS, Maria Berenice. União Homossexual – o Preconceito & a Justiça, 3.ª Edição,
Porto Alegre: Editora Livraria do Advogado, 2006, p. 63.
21 Ibidem, p. 64.
22 Aqui entendido como o “amor que vise a uma comunhão plena de vida e interesses,
de forma pública, contínua e duradoura”, o elemento formador da família
contemporânea. Adiante neste capítulo será desenvolvida pormenorizadamente tal
questão, inclusive com seu embasamento normativo.
23 RIBEIRO, Ana Cecília Rosário; ARAÚJO, Marcelo de Jesus Monteiro. A Relação
Incestuosa como Entidade Familiar: uma Revolução do Estatuto das Famílias. In:
ALBUQUERQUE, Fabíola Santos. EHRHARDT JR, Marcos; OLIVEIRA, Catarina
Almeida de (orgs.). Famílias no Direito Contemporâneo. Estudos em homenagem a
Paulo Luiz Netto Lobo, 1ª edição, Salvador: JusPodivm, 2010, pp. 295 e 317. Grifos
nossos.
24 EHRARDT JÚNIOR, Marcos A. de A. Responsabilidade Civil no Direito das Famílias:
vicissitudes do Direito Contemporâneo e o paradoxo entre o dinheiro e o afeto. In:
ALBUQUERQUE, Fabíola Santos. EHRHARDT JR., Marcos; OLIVEIRA, Catarina
Almeida de (orgs.). Famílias no Direito Contemporâneo. Estudos em homenagem a
Paulo Luiz Netto Lobo. Salvador: JusPodivm, 2010, pp. 356 e 362-363. Grifos nossos.
25 DIAS, Maria Berenice. União Homossexual: o Preconceito & a Justiça! 2. ed. Porto
Alegre: Livraria do Advogado, 2001, p. 64.
26 LÔBO, Paulo. Direito Civil: Famílias. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 3.
27 O tema, contudo, não era pacífico. Washington de Barros Monteiro se opunha a tal
postura, sob o fundamento de que “a concessão de salários ou de indenização à
concubina situa o concubinato em posição jurídica mais vantajosa que a do próprio
matrimônio, redundando em manifesto contrassenso e detrimento da justiça” (Curso de
Direito Civil. Parte Geral, 36.a Edição, São Paulo: Editora Saraiva, 2001, p. 24). Ao
menos no que tange ao concubinato puro (a atual união estável), não assiste razão ao
autor, na medida em que ele se configura como uma união tão digna quanto a
matrimonializada. Por outro lado, a indenização pelos serviços prestados constitui
medida que meramente atenua a ausência de direitos da união concubinária, o que
está longe de lhe garantir os mesmos direitos conferidos ao casamento civil. Por outro
lado, se for feita a analogia com o Direito do Trabalho, deve ser fixado o prazo
prescricional de cinco anos para os “salários” que a concubina irá cobrar, já que este é
o prazo fixado por tal ramo do Direito para o trabalhador que ingressa com reclamação
trabalhista.
28 STJ, REsp 874.443/RS, DJe 14.09.2010, segundo o qual “A jurisprudência do STJ
firmou-se no sentido de que a relação concubinária, mantida simultaneamente a
matrimônio, não gera, após seu encerramento, direito à indenização patrimonial ou
direitos hereditários”.
29 STJ, REsp 988.090/MS, DJe 22.02.2010, segundo o qual “Inviável a concessão de
indenização à concubina, que mantivera relacionamento com homem casado, uma vez
que tal providência eleva o concubinato a nível de proteção mais sofisticado que o
existente no casamento e na união estável, tendo em vista que nessas uniões não se
há falar em indenização por serviços domésticos prestados, porque, verdadeiramente,
de serviços domésticos não se cogita, senão de uma contribuição mútua para o bom
funcionamento do lar, cujos benefícios ambos experimentam ainda na constância da
união”, que ainda afirmou: “Na verdade, conceder a indigitada indenização
consubstanciaria um atalho para se atingir os bens da família legítima, providência
rechaçada por doutrina e jurisprudência”, razão pela qual concluiu que “por qualquer
ângulo que se analise a questão, a concessão de indenizações nessas hipóteses
testilha com a própria lógica jurídica adotada pelo Código Civil de 2002, protetiva do
patrimônio familiar, dado que a família é a base da sociedade e recebe especial
proteção do Estado (art. 226 da CF/1988), não podendo o Direito conter o germe da
destruição da própria família”.
30 STJ, REsp 872.659/MG, DJe 19.10.2009, segundo o qual “Se com o término do
casamento não há possibilidade de se pleitear indenização por serviços domésticos
prestados, tampouco quando se finda a união estável, muito menos com o cessar do
concubinato haverá qualquer viabilidade de se postular tal direito, sob pena de se
cometer grave discriminação frente ao casamento, que tem primazia constitucional de
tratamento”, pois “se o cônjuge no casamento nem o companheiro na união estável
fazem jus à indenização, muito menos o concubino pode ser contemplado com tal
direito, pois teria mais do que se casado fosse”, algo tido como “incompatível com as
diretrizes constitucionais fixadas pelo art. 226 da CF/1988 e com o Direito de Família,
tal como concebido”, em que entender o fornecimento de tal indenização por serviços
prestados após o término da relação amorosa como “locupletação ilícita” em situação
de “conivência e até mesmo estímulo àquela conduta reprovável em que uma das
partes serve-se sexualmente da outra e, portanto, recompensa-a com favores”, razão
pela qual concluiu “Inviável o debate acerca dos efeitos patrimoniais do concubinato
quando em choque com os do casamento pré e coexistente, porque definido aquele,
expressamente, no art. 1.727 do CC/2002, como relação não eventual entre o homem
e a mulher, impedidos de casar; a disposição legal tem o único objetivo de colocar a
salvo o casamento, instituto que deve ter primazia, ao lado da união estável, para fins
de tutela do Direito”.
31 STJ, REsp 982.664/RJ, DJe 15.04.2011, segundo o qual “Nos termos da
jurisprudência da 4ª Turma do STJ, a companheira faz jus à indenização pelos
serviços prestados pelo período de vida em comum (REsp 331.511/SE, Rel. Min. Aldir
Passarinho Junior, DJ 17.05.2004, p. 228)”.
32 DIAS, Maria Berenice. Manual do Direito das Famílias. Porto Alegre: Editora Livraria
do Advogado, 2005, p. 182-183.
33 Ibidem, p. 183.
34 Pelo que se depreende da lição de Washington de Barros Monteiro, esse
entendimento da Súmula 380 do STF foi um retrocesso aos direitos anteriormente
reconhecidos à concubina, pois o autor relata que, anteriormente à referida súmula:
“Entendia-se antigamente que a simples presença da concubina, à testa do lar,
presidindo a economia doméstica, assegurava-lhe direito à meação no patrimônio
adquirido ou aumentado pelo companheiro” (ibidem, p. 25).
35 Ademais, como relata a doutrina, desse entendimento passou-se, gradativamente, a
reconhecer à concubina o direito à indenização pela morte do concubino por acidente
do trabalho e de trânsito, desde que fosse beneficiária, além de alguns outros direitos
de natureza previdenciária, no sentido da permissão (antes negada) de constar ela
como beneficiária do contribuinte falecido. Mas, na falta dessa menção expressa (sua
nomeação como beneficiária), passaram a ser igualmente deferidos esses direitos no
caso de prova de convivência ou da existência de filhos comuns com o concubino.
36 DIAS, Maria Berenice. União Homossexual: o Preconceito & a Justiça!, 2.a Edição,
Porto Alegre: Editora Livraria do Advogado, 2001, p. 64.
37 OLIVEIRA, Catarina Almeida de. Refletindo o Afeto nas Relações de Família. Pode o
Direito impor o Amor? In: ALBUQUERQUE, Fabíola Santos; EHRHARDT JR., Marcos;
OLIVEIRA, Catarina Almeida de (orgs.). Famílias no Direito Contemporâneo. Estudos
em homenagem a Paulo Luiz Netto Lobo. Salvador: JusPodivm, 2010, p. 51. Grifos
nossos.
38 MELLO, Marcos Bernardes de. Sobre a classificação do fato jurídico da união estável.
In: ALBUQUERQUE, Fabíola Santos; EHRHARDT JR., Marcos; OLIVEIRA, Catarina
Almeida de (orgs.). Famílias no Direito Contemporâneo..., Salvador: JusPodivm, 2010,
pp. 145 e 146. Grifos nossos.
39 LACERDA, Carmen Sílvia Maurício de. Famílias Monoparentais: Conceito.
Composição. Responsabilidade. In: ALBUQUERQUE, Fabíola Santos; EHRHARDT
JR., Marcos; OLIVEIRA, Catarina Almeida de (orgs.). Famílias no Direito
Contemporâneo..., Salvador: JusPodivm, 2010, pp. 166-167. Grifos nossos.
40 Decisão disponível em
<http://www.direitohomoafetivo.com.br/anexos/juris/1204__c336240403f50dfa15db9c1
937c92c25.pdf> (último acesso em 02/10/12 – processo não informado).
41 MALUF, Adriana Caldas do Rego Freitas Dabus. Direito das famílias. Amor e bioética,
1ª edição, São Paulo: Campus Jurídico, 2012, pp. 41, 277, capa interna e contracapa.
42 “Essa valorização do espaço familiar, próprio e inerente à realização do ser humano,
dota a entidade familiar de função e reconhece a afetividade como o laço a mantê-la
unida e existente” (in: GIRARDI, Viviane. Famílias Contemporâneas, Filiação e Afeto:
A Possibilidade Jurídica da Adoção por Homossexuais, 1.ª Edição, Porto Alegre:
Editora Livraria do Advogado, 2005, p. 41).
43 Expressão adiante explicada.
44 Nesse sentido, é elucidativa a lição de Paulo Luiz Netto Lôbo: “No caput do art. 226
operou-se a mais radical transformação no tocante ao âmbito de vigência da tutela
constitucional à família. Não há qualquer referência a determinado tipo de família,
como ocorreu com as constituições anteriores. Ao suprimir a locução ‘constituída pelo
casamento’ (art. 175 da Constituição de 1967-1969), sem substituí-la por qualquer
outra, pôs sob a tutela constitucional ‘a família’, ou seja, qualquer família. A cláusula
de exclusão desapareceu. O fato de, em seus parágrafos, referir a tipos determinados,
para atribuir-lhes certas consequências jurídicas, não significa que reinstituiu a
cláusula de exclusão, como se ali estivesse a locução ‘a família, constituída pelo
casamento, pela união estável ou pela comunidade formada por qualquer dos pais e
seus filhos’. A interpretação de uma norma ampla não pode suprimir de seus efeitos
situações e tipos comuns, restringindo direitos subjetivos. O objeto da norma não é a
família, como valor autônomo, em detrimento das pessoas que a integram. Antes foi
assim, pois a finalidade era reprimir ou inibir as famílias ‘ilícitas’, desse modo
consideradas todas aquelas que não estivessem compreendidas no modelo único
(matrimonial), em torno do qual o direito de família se organizou. ‘A regulamentação
legal da família voltava-se, anteriormente, para a máxima proteção da paz doméstica,
considerando-se a família fundada no casamento como um bem em si mesmo,
enaltecida como instituição essencial’ [Gustavo Tepedino]. O caput do art. 226 e,
consequentemente, a cláusula geral de inclusão, não sendo admissível excluir
qualquer entidade que preencha os requisitos de afetividade, estabilidade e
ostensividade”. A regra do § 4.º do art. 226 integra-se à cláusula geral de inclusão,
sendo esse o sentido do termo “também” nela contido. “Também” tem o significado de
igualmente, da mesma forma, outrossim, de inclusão de fato sem exclusão de outros.
“Se dois forem os sentidos possíveis (inclusão ou exclusão), deve- ser prestigiado o
que melhor responda à realização da dignidade da pessoa humana, sem
desconsideração das entidades familiares reais não explicitadas no texto” (LÔBO,
Paulo. Direito Civil. Famílias. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 60-61). Como diz Vivane
Girardi, após comentar tal lição de Paulo Lôbo: “Portanto, de plano se pode perceber
que a exclusão de outros arranjos familiares não está no texto da Constituição, mas
sim na interpretação que dele é feita (GIRARDI, Viviane. Famílias Contemporâneas,
Filiação e Afeto. A Possibilidade Jurídica da Adoção por Homossexuais. Porto Alegre:
Editora Livraria do Advogado, 2005, p. 136).No mesmo sentido: FERREIRA, Breezy
Miyazato Vizeu; ESPOLADOR, Rita de Cássia Resquetti Tarifa. O papel do afeto na
formação das famílias recompostas no Brasil. In: DIAS, Maria Berenice; BASTOS,
Eliane Ferreira; MORAES, Naime Márcio Martins (Orgs.). Afeto e Estruturas
Familiares. Belo Horizonte: Del Rey, 2010, p. 115, afirmando que a Constituição
“incluiu, em seu artigo 226, uma cláusula de inclusão, não sendo possível, neste
sentido, desconsiderar estruturas familiares baseadas no princípio da afetividade, na
comunhão de vida e solidariedade entre seus membros, na medida em que a
‘afetividade desponta como elemento nuclear e definidor da união familiar’ [Paulo
Lôbo]”.
45 Destacando esse caráter patrimonialista com uma leve ironia no nome que
(corretamente) concedeu ao Código Civil de 1916, afirma FACHIN, Luiz Edson.
Inovação e tradição no Direito de Família contemporâneo. In: DIAS, Maria Berenice;
BASTOS, Eliane Ferreira; MORAES, Naime Márcio Martins (Orgs.). Afeto e Estruturas
Familiares. Belo Horizonte: Del Rey, 2010, p. 342, que “O código patrimonial
imobiliário, com imensas repercussões no Direito de Família, dava conta do
individualismo oitocentista num modelo único de sociedade. Adotou, por essa mesma
razão, um standard de família, de vínculo e de titularidade, e promoveu a exclusão
legislativa das pessoas, bens, culturas e símbolos estrangeiros a sua definição. Nada
obstante, o sentido de permanência indefinida ou da vizinhança com a imutabilidade
esteve mais em quem do Código se serviu e menos em quem o elaborou. Sem
embargo de tratar-se, no plano axiológico, de um projeto do século XIX promulgado
em 1916, fruto da belle époque do movimento codificador, o Código Civil brasileiro, a
seu modo e a seu tempo, resultou numa grande projeção dos interesses que
alinhavaram esse corpo legislativo. A historicidade da codificação ressalta o desenho
jurídico de suas instituições de base que se alteram na medida em que vão se
transformando os valores que governam o projeto parental, as titularidades e os
contratos”.
46 EHRARDT JÚNIOR, Marcos A. Responsabilidade Civil no Direito das Famílias:
vicissitudes do Direito Contemporâneo e o paradoxo entre o dinheiro e o afeto. In:
ALBUQUERQUE, Fabíola Santos; EHRHARDT JR., Marcos; OLIVEIRA, Catarina
Almeida de (orgs.). Famílias no Direito Contemporâneo..., Salvador: JusPodivm, 2010,
pp. 382-383.
47 FERREIRA e ESPOLADOR, op. cit., p. 104, 107 e 116.
48 ALBUQUERQUE JUNIOR, Roberto Paulino de. Ensaio Introdutório sobre a Teoria da
Responsabilidade Civil Familiar. In: ALBUQUERQUE, Fabíola Santos; EHRHARDT
JR., Marcos; OLIVEIRA, Catarina Almeida de (orgs.). Famílias no Direito
Contemporâneo..., Salvador: JusPodivm, 2010, p. 398. Grifo nosso.
49 ALBUQUERQUE, Fabiola Santos. Os Princípios Constitucionais e sua Aplicação nas
Relações Jurídicas de Família. In: ALBUQUERQUE, Fabíola Santos; EHRHARDT JR.,
Marcos; OLIVEIRA, Catarina Almeida de (orgs.). Famílias no Direito Contemporâneo...,
Salvador: JusPodivm, 2010, p. 39. Grifo nosso.
50 OLIVEIRA, Catarina Almeida de. Refletindo o Afeto nas Relações de Família. Pode o
Direito impor o Amor? Famílias no Direito Contemporâneo..., Salvador: JusPodivm,
2010, p. 52. Grifos nossos.
51 ALBUQUERQUE, Fabiola Santos. Os Princípios Constitucionais e sua Aplicação nas
Relações Jurídicas de Família. Famílias no Direito Contemporâneo..., Salvador:
JusPodivm, 2010, p. 39. Grifo nosso.
52 DIAS, Maria Berenice. Manual do Direito das Famílias. Porto Alegre: Editora Livraria
do Advogado, 2005, p. 15-35.
53 Vale a pena transcrever o original. Segundo a autora (ibidem, p. 16 e 40-41): “Cada
vez mais a ideia de família se afasta da estrutura do casamento. A possibilidade do
divórcio e o estabelecimento de novas formas de convívio revolucionaram o conceito
sacralizado de matrimônio. A existência de outras entidades familiares e a faculdade
de reconhecer filhos havidos fora do casamento operaram verdadeira transformação
na própria família. Assim, na busca do conceito de entidade familiar, é necessário ter
uma visão pluralista, que albergue os mais diversos arranjos vivenciais. É preciso
achar o elemento que autorize reconhecer a origem do relacionamento das pessoas.
(...) O desafio dos dias de hoje é achar o toque identificador das estruturas
interpessoais que permita nominá-las como família. Este referencial só pode ser
identificado na afetividade. É o envolvimento emocional que leva a subtrair um
relacionamento do âmbito do direito obrigacional – cujo núcleo é a vontade – para
inseri-lo no direito das famílias, que tem como elemento estruturante o sentimento do
amor que funde as almas e confunde patrimônios; gera responsabilidades e
comprometimentos mútuos. Esse é o divisor entre o direito obrigacional e o familiar: os
negócios têm por substrato exclusivamente a vontade, enquanto o traço diferenciador
do direito de família é o afeto. A família é um grupo social fundado essencialmente nos
laços de afetividade após o desaparecimento da família patriarcal que desempenhava
funções procriativas, econômicas, religiosas e políticas. (...) A teoria e a prática das
instituições de família dependem, em última análise, da competência em dar e receber
amor. A família continua, e mais empenhada do que nunca, em ser feliz. A
manutenção da família visa, sobretudo, buscar a felicidade. Não é mais obrigatório
manter a família, ela só sobrevive quando vale a pena. É um desafio” (sem grifos no
original).
54 Ibidem, p. 24.
55 Ibidem, p. 24.
56 Ibidem, p. 24.
57 Ibidem, p. 31.
58 TJ/RS, AC 70012836755, Rel. Dra. Maria Berenice Dias, v.u., j. 21.12.2005.
59 MUSZKAT, Malvina Ester. O mal-estar na cultura do afeto e da felicidade. In: DIAS,
Maria Berenice; BASTOS, Eliane Ferreira; MORAES, Naime Márcio Martins (Orgs.).
Afeto e Estruturas Familiares. Belo Horizonte: Del Rey, 2010, p. 349.
60 FERRY, Luc. A Revolução do Amor. Por uma Espiritualidade Laica. Tradução de Véra
Lucia dos Reis. Rio de Janeiro: Objetiva, 2010, capa interna e p. 94.
61 FERREIRA, Breezy Miyazato Vizeu; ESPOLADOR, Rita de Cássia Resquetti Tarifa. O
papel do afeto na formação das famílias recompostas no Brasil. In: DIAS, Maria
Berenice; BASTOS, Eliane Ferreira; MORAES, Naime Márcio Martins (Orgs.). Afeto e
Estruturas Familiares. Belo Horizonte: Del Rey, 2010, p. 116.
62 GROENINGA, Giselle Câmara. A função do afeto nos “contratos” familiares. In: DIAS,
Maria Berenice; BASTOS, Eliane Ferreira; MORAES, Naime Márcio Martins (Orgs.).
Afeto e Estruturas Familiares. Belo Horizonte: Del Rey, 2010, p. 205.
63 PEREIRA JR., Antonio Jorge. Da Afetividade à Efetividade nas Relações de Família.
In: DIAS, Maria Berenice; BASTOS, Eliane Ferreira; MORAES, Naime Márcio Martins
(Orgs.). Afeto e Estruturas Familiares. Belo Horizonte: Del Rey, 2010, p. 64 e 69.
Anote-se que o autor diferencia amor de afeto, considerando o afeto como o fator de
aproximação de pessoas, mas insuficiente para consolidar uma autêntica estrutura
familiar (ibidem, p. 69), tanto que defende que não é o afeto o objeto de preocupação
do Direito, mas o amor, na forma por ele conceituada e transcrita no corpo do texto
(ibidem, p. 70). Contudo, não adoto esta distinção, mesmo porque desde a 1ª edição
desta obra utilizo a palavra amor ao invés de afeto justamente para evitar mal-
entendidos do gênero (nem a adotam os autores das transcrições doutrinárias
constantes deste trabalho que falam no afeto como elemento formador da família
contemporânea – como a psicanalista Giselle Câmara Groeninga, na obra citada na
nota anterior, que, como visto, claramente chama de afeto este amor de bem querer o
amado). Ademais, por vezes o autor fala no amor “entre homem e mulher” (v.g.:
ibidem, p. 69), embora não diga expressamente se exclui (ou não) as uniões
homoafetivas do conceito de família que adota – parece que exclui, pois fala que a
família não é produto on demand (sic) e que há quem defenda um batismo legal
jusfamiliar (sic) a situações diferentes daquelas preconizadas como base da
sociedade, ou seja, “Para situações que não são necessárias e suficientes para
constituir e perpetuar a sociedade” (ibidem, p. 73 – grifo nosso) – pelo perpetuar,
parece que o autor considera a capacidade procriativa como elemento indispensável à
formação da família, argumento este desmistificado adiante neste trabalho. Contudo,
qualquer que seja a posição do autor, entendemos que o seu conceito de amor aplica-
se às uniões homoafetivas, por serem elas pautadas neste sublime sentimento da
mesma forma que o são as uniões heteroafetivas.
64 Cf. PINHEIRO, Jorge Duarte. Afecto e Justiça do caso concreto no Direito de Família.
In: DIAS, Maria Berenice; BASTOS, Eliane Ferreira; MORAES, Naime Márcio Martins
(Orgs.). Afeto e Estruturas Familiares. Belo Horizonte: Editora Del Rey, 2010, pp. 238 e
242. Este autor português manifesta preocupação sobre como considerar o afeto no
Direito das Famílias, pois embora anote que o afeto que merece consideração jurídica
é o exteriorizado (“o sentimento enquanto facto psíquico puro não interessa ao Direito.
Mas, na sequência de uma exteriorização, o sentimento torna-se acessível ao Direito.
O Direito permite e proíbe comportamentos, mas não é indiferente às motivações das
condutas e às consequências emocionais que as mesmas têm sobre terceiros. (...)
Não procede, portanto, a ideia de que o Direito esteja absolutamente inibido de intervir
na área do sentimento, por força de uma limitação de cariz técnico”. Ibidem, p. 240-
241), preocupa-se em evitar julgamentos com base na subjetividade e na
unilateralidade do julgador, razão pela qual entende que “Talvez possa ajudar a evitar
a subjectividade e a unilateralidade o chamado método do julgamento com base na
‘empatia imparcial’, proposto por Alexander Nikolaevich Shytov, na obra ‘Conscience
and Love in Making Judicial Decisions’ – ‘Consciência e Amor na Tomada da Decisão
Judicial’. No julgamento com base na ‘empatia imparcial’, o juiz procura decidir sem se
deixar dominar pelas suas crenças e preferências pessoais; acima de tudo, tem de
conhecer os sentimentos e compreender os motivos das partes, rejeitar atitudes
precipitadas, ter cuidado na ponderação dos factos, ser rigoroso, paciente e humano.
Como se vê, isto não é propriamente um método científico, mas um conjunto de
atitudes ditadas pelo bom-senso. Não há, enfim, fórmulas mágicas e infalíveis. A
justiça, tal como a injustiça, é resultado da acção humana” (ibidem, pp. 243-244).
Parece-me que este método sugerido pelo autor é análogo (se não idêntico) à
neutralidade que se exige do intérprete positivista, segundo a qual o intérprete deve
deixar seus valores pessoais de lado para interpretar o enunciado normativo com base
no valor que se pretendeu proteger com a norma em questão. De qualquer forma, vê-
se que mesmo um autor preocupado com a subjetividade da consideração do afeto no
Direito das Famílias reconhece corretamente que o afeto (amor) é uma parte inerente
e essencial deste ramo do Direito, em que ele não pode ser ignorado pelo jurista.
65 PEREIRA JR., Antonio Jorge. Op. cit., p. 70.
66 FACHIN, Luiz Edson. Inovação e tradição no Direito de Família contemporâneo. In:
DIAS, Maria Berenice; BASTOS, Eliane Ferreira; MORAES, Naime Márcio Martins
(Orgs.). Afeto e Estruturas Familiares. Belo Horizonte: Del Rey, 2010, p. 328 e 339.
67 GROENINGA, Giselle Câmara. A função do afeto nos “contratos” familiares. In: DIAS,
Maria Berenice; BASTOS, Eliane Ferreira; MORAES, Naime Márcio Martins (Orgs.).
Afeto e Estruturas Familiares. Belo Horizonte: Del Rey, 2010, p. 206.
68 ADPF 132 e ADI 4.277, voto do Ministro Luiz Fux, p. 13-14.
69 Cf., v.g., TJ/RS, AC 70012836755, Relatora: Dra. Maria Berenice Dias, v.u.,
julgamento de 21.12.2005.
70 Novamente segundo Maria Berenice Dias: “A convivência entre parentes ou entre
pessoas, ainda que não parentes, dentro de uma estruturação com identidade de
propósito, impõe o reconhecimento da existência de uma entidade familiar a merecer o
nome de família anaparental. (...) A solução que melhor se aproxima de um resultado
justo é conceder à irmã, com quem a falecida convivia, a integralidade do patrimônio,
pois ela, em razão da parceria de vidas, antecede aos demais irmãos na ordem de
vocação hereditária. Ainda que inexista qualquer conotação de ordem sexual,
convivência identifica comunhão de esforços, cabendo aplicar, por analogia, as
disposições que tratam do casamento e da união estável. Cabe lembrar que estas
estruturas de convívio em nada se diferenciam da entidade familiar de um dos pais
com seus filhos e que também merece proteção constitucional” (DIAS, Maria Berenice.
Manual do Direito das Famílias, 1.a Edição, Porto Alegre: Editora Livraria do
Advogado, 2005, p. 47).
71 Como bem diz Maria Berenice Dias (União Homossexual. O Preconceito & a Justiça,
3.ª Edição, 2006, Porto Alegre: Editora Livraria do Advogado, p. 68 e 69): “O afeto é
elemento essencial das relações interpessoais, sendo um aspecto do exercício do
direito à intimidade garantido pela Constituição Federal. A afetividade não é indiferente
ao Direito, pois é o que aproxima as pessoas, dando origem aos relacionamentos que
geram relações jurídicas, fazendo juz ao status de família. Imperioso reconhecer o
surgimento de uma nova família, a chamada família ‘eudemonista’, doutrina que
considera ser a felicidade individual ou coletiva o fundamento da conduta humana.
Cabe ser lembrado o diálogo entre Hans Kelsen e Cossio perante a congregação da
Universidade de Buenos Aires. Cossio, autor da teoria ecológica, desafiou Kelsen a
citar um exemplo de relação intersubjetiva que estivesse fora do Direito. Kelsen
respondeu: Oui monsieur, l’amour. O Direito não regula sentimentos, mas as uniões
que associam afeto a interesses comuns, e que, ao terem relevância jurídica,
merecem proteção legal, independentemente da orientação sexual do par. Como a
família é uma relação de ordem da sexualidade, tem o afeto como pressuposto.
Portanto, todas as espécies de vínculos que tenham por base o afeto são
merecedoras da proteção do Estado. (...)” (grifos nossos). Na 5.ª edição, a autora
alterou a redação do trecho, mantendo a ideia central: “O centro de gravidade das
relações de família situa-se modernamente na mútua assistência afetiva, elemento
essencial das relações interpessoais que não é indiferente ao Direito. É o afeto que
aproxima as pessoas, dando origem aos relacionamentos que geram as relações
jurídicas” (DIAS, Maria Berenice. União Homoafetiva. O Preconceito & a Justiça, 5. ed.
São Paulo: RT, 2011, p. 108).
72 O princípio jurídico do afeto será trabalhado em item próprio, adiante.
73 WELTER apud DIAS, Maria Berenice. Manual do Direito das Famílias, 1.a Edição,
Porto Alegre: Editora Livraria do Advogado, 2005, p. 48.
74 “Como a crise é sempre perda dos fundamentos de um paradigma em virtude do
advento de outro, a família atual está matizada em paradigma que explica sua função
atual: a afetividade. Assim, enquanto houver affectio haverá família, unida por laços de
liberdade e responsabilidade, e desde que consolidada na simetria, na colaboração, na
comunhão de vida” (LÔBO, Paulo Luiz Netto. Direito Civil: Famílias, 1.a Edição, São
Paulo: Editora Saraiva, 2008, p. 1).
75 Muito embora costume-se definir affectio maritalis como “o ânimo de serem marido e
mulher” (sic) (Disponível em: http://www.redejuridica.com.br/expest.jsp?
idpalavra=82&letra=A. Acesso em: 1.º ago. 2008), dito sentimento significa, em
verdade, o ânimo de desenvolver uma vida em conjunto, ao lado do(a)
companheiro(a). Aquela definição, voltada para a heterossexualidade, é oriunda do
fato de ter a humanidade se “acostumado” a pensar na família oriunda da união
amorosa como formada unicamente entre um homem e uma mulher, o que é um
equívoco, conforme se demonstra neste tópico e neste trabalho como um todo. Afinal,
quando se diz que duas pessoas de sexos diversos visam se tornar “marido e mulher”,
significa que querem manter uma união amorosa em comunhão plena de vida e
interesses, de forma pública, contínua e duradoura estabelecida pelo casamento civil,
conforme demonstra a conjugação dos arts. 1.511 e 1.723 do Código Civil, pois os
requisitos da união estável são pautados pelo paradigma da “vida de casados”.
76 BARROSO, Luís Roberto. Diferentes mas iguais: o reconhecimento jurídico das
relações homoafetivas no brasil, Revista de Direito do Estado, n. 5, p. 167 e ss, 2007,
p. 30. Meu agradecimento ao autor consta expressamente em nota de rodapé do
capítulo relativo à união estável. Faz-se aqui a mesma ressalva que ali: a paginação
mencionada (p. 30) tem por base folhas de tamanho A4 (p. 01-41), que pode inclusive
ser encontrado no link referido em meu agradecimento.
77 Destaque-se, apenas, que o concubinato puro, ou seja, aquele entre pessoas não
impedidas de se casar, era quase exclusivo dos homens e suas relações com
mulheres, em geral de classes mais pobres, tendo em vista que as mulheres “de
família” da época, ou seja, aquelas provenientes de famílias respeitadas e/ou
abastadas, não tinham nenhuma liberdade para se relacionarem com nenhuma outra
pessoa senão aquela que seu pai (paterfamilias) permitisse. Em hipóteses extremas,
fugiam com seus amados, mas não tinham liberdade para se relacionarem
amorosamente com outras pessoas caso não se casassem com elas, sob pena de
serem rechaçadas do convívio social pelo moralismo hipócrita que regia a sociedade
da época.
78 Súmula 380 do STF: “Comprovada a existência de sociedade de fato entre os
concubinos, é cabível a sua dissolução judicial, com a partilha do patrimônio adquirido
pelo esforço comum”.
79 Em uma análise da evolução do pensamento humano no que tange à compreensão
da família, que deixou de se caracterizar por um modelo institucionalizado que visava
unicamente a produção de cada vez mais mão de obra rural para abarcar a união
amorosa entre duas pessoas, tem-se como claro o magistério de Maria Berenice Dias,
razão pela qual novamente pede-se vênia para transcrever integralmente a sua lição:
“Origem da Família – Vínculos afetivos não são uma prerrogativa da espécie humana.
O acasalamento sempre existiu entre os seres vivos, seja em decorrência do instinto
de perpetuação da espécie, seja pela verdadeira aversão que todas as pessoas têm
da solidão. Tanto é assim, que se considera natural a ideia de que a felicidade só pode
ser encontrada a dois, como se existisse um setor da felicidade ao qual o sujeito
sozinho não tem acesso. Não importa a posição que o indivíduo ocupa na família, ou
qual a espécie de grupamento familiar a que ele pertence, o que importa é pertencer
ao seu âmago, é estar naquele idealizado lugar onde é possível integrar sentimentos,
esperanças, valores e se sentir, por isso, a caminho da realização de seu projeto de
felicidade. Mesmo sendo a vida aos pares um fato natural, em que os indivíduos se
unem por uma química biológica, a família é um agrupamento cultural. Preexiste ao
Estado e está acima do Direito. A família é uma construção social organizada através
de regras culturalmente elaboradas que conformam modelos de comportamento.
Dispõe de uma estruturação psíquica na qual cada um ocupa um lugar, possui uma
função. Lugar do pai, lugar da mãe, lugar dos filhos, sem, entretanto, estarem
necessariamente ligados biologicamente [cf. Rodrigo da Cunha Pereira]. É essa
estrutura familiar que interessa investigar e trazer para o Direito. É a preservação do
LAR no seu aspecto mais significativo: Lugar de Afeto e Respeito. O intervencionismo
estatal levou à instituição do casamento, convenção social para organizar os vínculos
interpessoais. A própria organização da sociedade dá-se em torno da estrutura
familiar, e não em torno de grupos outros ou de indivíduos em si mesmos. A
sociedade, em determinado momento histórico, instituiu o casamento como regra de
conduta. Essa foi a forma encontrada para impor limites ao homem, ser desejante que,
na busca do prazer, tende a fazer do outro um objeto. É por isso que o
desenvolvimento da civilização impõe restrições à total liberdade, e a lei jurídica exige
que ninguém fuja dessas restrições. Em uma sociedade conservadora, os vínculos
afetivos, para merecerem aceitação social e reconhecimento jurídico, necessitavam
ser chancelados pelo que se convencionou chamar de matrimônio. A família tinha uma
formação extensiva, verdadeira comunidade rural, integrada por todos os parentes,
formando uma unidade de produção, com amplo incentivo à procriação. Sendo uma
entidade patrimonializada, seus membros eram força de trabalho. O crescimento da
família ensejava melhores condições de sobrevivência a todos. O núcleo familiar
dispunha de um perfil hierarquizado e patriarcal. Esse quadro não resistiu à revolução
industrial, que fez aumentar a necessidade de mão de obra, principalmente nas
atividades terciárias. Assim, a mulher ingressou no mercado de trabalho, deixando o
homem de ser a única fonte de subsistência da família, que se tornou nuclear, restrita
ao casal e a sua prole. Acabou a prevalência do caráter produtivo e reprodutivo da
família, que migrou para as cidades e passou a conviver em espaços menores. Isso
levou à aproximação dos seus membros, sendo mais prestigiado o vínculo afetivo que
envolve seus integrantes. Existe uma nova concepção da família, formada por laços
afetivos de carinho, de amor. A valorização do afeto nas relações familiares não pode
cingir-se apenas ao momento de celebração do casamento, devendo perdurar por toda
a relação. Disso resulta que, cessado o afeto, está ruída a base de sustentação da
família, e a dissolução do vínculo é o único modo de garantir a dignidade da pessoa”
(DIAS, Maria Berenice. Manual de Direito das Famílias. 2005, Porto Alegre: Editora
Livraria do Advogado, p. 23-25 – sem grifos no original).
80 É de se ressaltar que não estou isolado neste argumento. Muito pelo contrário. A
doutrina tem-se debruçado sobre o tema e tem chegado à mesma conclusão. Nesse
sentido, é elucidativa a lição de Rodrigo da Cunha Pereira, que, apesar de
fundamentação levemente distinta, traz entendimentos de célebres doutrinadores para
chegar à mesma conclusão, após citar a evolução do entendimento social a respeito
da família, que demonstrei nas páginas precedentes e no início deste tópico: “Diante
deste quadro estrutural, o que se conclui é ser o afeto um elemento essencial de todo
e qualquer núcleo familiar, inerente a todo e qualquer relacionamento conjugal ou
parental. Mas será que o contrário é verdadeiro, ou seja, sempre que existir afetividade
estará presente uma entidade familiar? Segundo Sérgio Resende de Barros, não é
qualquer afeto que compõe um núcleo familiar. Se assim fosse, uma amizade seria elo
formador de família, o que ratifica a sua posição de ser necessário o afeto familiar,
como garantia à existência de uma família. Mas, além da afetividade, quais os
elementos necessários para que haja uma família? Paulo Luiz Netto Lobo identifica
como elementos definidores de um núcleo familiar, além da afetividade, a
ostensibilidade e a estabilidade. Ele define tais requisitos da seguinte forma: a
afetividade é o fundamento e finalidade da família, com desconsideração do ‘móvel
econômico’; a estabilidade implica em comunhão de vida e, simultaneamente, exclui
relacionamentos casuais, sem compromisso; já a ostensibilidade pressupõe uma
entidade famíliar reconhecida pela sociedade enquanto tal, que assim se apresenta
publicamente. Os pressupostos apontados pelo grande jurista alagoano são essenciais
e são requisitos que devem estar presentes em um relacionamento para que se
conclua pela existência de uma entidade familiar. Em suma: não obstante a relevância
do afeto como vínculo formador de família, ele, por si só, não é o único elemento para
se verificar a existência de um núcleo familiar. Ele deve coexistir com outros, embora
sua presença seja decisiva e justificadora para a constituição e subsistência de uma
família. Acrescentamos a estes elementos trazidos pelo Professor Paulo Lôbo, um
outro, que, na verdade, reúne todos eles. Esse elemento, ou melhor, essa noção de
família sustentada pelo afeto, deve conter, em seu núcleo, uma estrutura psíquica. É a
partir desses pressupostos que Lacan pôde definir a família como uma estruturação
psíquica” (CUNHA, Rodrigo Pereira da. Princípios fundamentais norteadores do Direito
de Família, 1.a Edição, Belo Horizonte: Editora Del Rey, 2005, p. 180-182 – sem grifos
no original).
81 Nos termos do art. 1.511 do Código Civil.
82 Nos termos do art. 1.723 do Código Civil.
83 “O sentido atual que informa o Direito de Família transborda de sua origem.
Atualmente, o enfoque centra-se na affectio – a família como o lugar privilegiado de
abrigo, de ninho e de solidariedade com base no afeto”, donde “De uma família
instituída de forma hierarquizada, destinada à procriação biológica e voltada para sua
produção econômica, chega-se a um modelo de cooperação mútua dentro de um
espaço de exercício da afetividade” (MATOS, Ana Carla Harmatiuk. União entre
pessoas do mesmo sexo: aspectos sociais e jurídicos, 1.a Edição, Belo Horizonte:
Editora Del Rey, 2004, p. 27-28 – sem grifos no original).
84 Nesse sentido, ensina-nos Roger Raupp Rios, cuja lição, de tão elucidativa, pede-se
venia para se transcrever na íntegra: “De acordo com os citados V. Poncar e P. Rofani,
o modelo de família institucional vem declinando na segunda metade do século XX.
Diversas inovações legislativas, refletindo as profundas mudanças na dinâmica familiar
nestes tempos, foram paulatinamente enfraquecendo o modelo institucional
hierárquico e patriarcal. Dentre estas, merecem destaque a nova compreensão do
divórcio e a igualdade de direitos entre os cônjuges. Neste caminho, observou-se
primeiramente no mundo dos fatos a instauração de um tipo de relação familiar que
privilegiava a satisfação afetiva conjunta dos cônjuges, informado pelas aspirações de
intimidade e reciprocidade no seio familiar – a chamada ‘família fusional’. A partir da
década de oitenta, esta configuração vai alterar-se ainda mais, configurando a
chamada ‘família pós-moderna’, que se caracteriza pelo predomínio da individualidade
de cada um dos seus membros sobre a comunidade familiar. Segundo F. Singly, ‘o que
muda é o fato de que as relações sejam menos valorizadas por si mesmas e mais
pelas gratificações que devem trazer a cada um dos componentes da família. Hoje, a
‘família feliz’ atrai menos, o que conta é ser feliz por si mesmo’. A percepção destas
mudanças é essencial para a adequada concretização do direito de família
contemporâneo, seja para o enfrentamento da questão a quem particularmente se
dedica este trabalho, seja para a compreensão daquilo que o ordenamento jurídico
dispõe sobre o fenômeno familiar como um todo. Este dinamismo culminou, no
ordenamento jurídico brasileiro, na promulgação da Constituição da República de
1988, onde foram inseridas diversas normas a respeito da família, objeto de todo um
capítulo da Ordem Social. Nesta evolução, há de se frisar, primeiramente, a superação
da visão que subordinava a dinâmica familiar à consecução de determinados fins
sociais e estatais, estabelecidos no interior de uma única e determinada cosmovisão
estatal. De fato, com o reconhecimento da dignidade constitucional de outras formas
de vida comum diversas da tradicional família legítima, até a igualdade de direitos e
deveres entre homem e mulher na sociedade conjugal, o regime jurídico da família
hoje vigente operou uma ruptura com o paradigma institucional antes prevalente. Este
aspecto é muito importante, uma vez que em virtude desta nova disciplina
constitucional pode-se conferir ao ordenamento jurídico a abertura e a mobilidade que
a dinâmica social lhe exige, sem a fixidez de um modelo único que desconheça a
pluralidade de estilos de vida e de crenças e o pluralismo que caracterizam nossos
dias. De fato, nesta trilha têm sido desenvolvidas as abordagens atuais do direito de
família. Conforme sumariou Sérgio Gischkow Pereira, as linhas gerais do direito de
família contemporâneo apresentam (1) o amor como valor capaz de dar origem,
sentido e sustentação ao casamento; (2) a completa paridade entre os cônjuges; (3) a
igualdade dos filhos de qualquer natureza, incluídos os adotivos; (4) o reconhecimento
e a proteção do concubinato [leia-se o antigo “concubinato puro”, atualmente
denominado como “união estável”]; (5) o novo conteúdo do pátrio poder [hoje
denominado como “poder familiar”]; (6) a menor dificuldade na obtenção do divórcio;
(7) a adequação do regime de bens aos verdadeiros significados do casamento; (8) a
atuação mais intensa do Estado sobre a família e (9) a influência dos avanços
científicos e tecnológicos. Na mesma linha, Munir Karam salienta que a configuração
jurídica da família no século XXI tende claramente a valorizar mais o elemento afetivo
sobre o matrimônio formal, a procriação ou o estrato social. Como disse Maria Cláudia
Crespo Brauner, os pilares da família moderna assentam-se nas relações de
solidariedade e afeto, muito além da mera função de reprodução, sustento e educação
dos filhos. Nesta dinâmica, observa-se mais e mais a valorização do direito pessoal de
família sobre o direito patrimonial. Não só isso. A atualização do direito de família hoje
exigida pela realidade social requer, além da superação do paradigma da família
institucional, o reconhecimento dos novos valores e das novas formas de convívio
constituintes das concretas formações familiares contemporâneas, que alcançam não
só a citada ‘família fusional’, mas também a ‘família pós-moderna’. Neste sentido,
aliás, poder-se-ia melhor explorar e refletir a respeito do § 8.º do artigo 226 da
Constituição Federal de 1988, onde fica clara a relevância e a autonomia de cada
indivíduo participante da comunidade familiar, sem se adotar uma visão ‘institucional’
ou ‘fusional’ da família. Diante desta tarefa, como devem os operadores jurídicos atuar,
cientes de que as novas dinâmicas familiares tendem cada vez mais a valorizar a
construção da felicidade e do bem-estar dos indivíduos considerados autonomamente,
ao invés da consagração do grupo familiar em si mesmo? Haveria fundamento jurídico
para a qualificação destas ‘novas comunidades familiares’, daí extraindo os
operadores jurídicos as pautas normativas para a concretização do ordenamento que
a história lhes exige? As questões que surgem da conjunção de tais fenômenos
sociais com o amplo espectro de direitos e deveres pertinentes ao direito de família
são inumeráveis. Nos limites deste artigo, assim conduzido o raciocínio, devo
desenvolver uma resposta ao problema da união de pessoas do mesmo sexo no
âmbito do direito de família. Ainda que não tenha a pretensão de responder
cabalmente à questão, abarcando todos os seus aspectos, creio que um dado
fundamental, que não pode ser esquecido no cumprimento desta tarefa, é que o
respeito à dignidade humana também se dá por intermédio do reconhecimento da
pertinência das uniões de pessoas do mesmo sexo ao âmbito do direito de família. Eis
aqui uma conexão entre a dignidade humana e o reconhecimento destas uniões no
âmbito jurídico familiar, especialmente se se atentar para a sistemática rejeição de
direitos a homossexuais em virtude da alegada impertinência de suas relações afetivas
a este domínio jurídico” (RIOS, Roger Raupp, A homossexualidade no Direito, 1.ª
Edição, Porto Alegre: Editora Revista dos Tribunais, 2001, p. 102-106 - sem grifos no
original).
85 “Art. 1.511. O casamento estabelece comunhão plena de vida, com base na igualdade
de direitos e deveres dos cônjuges.” “Art. 1.723. É reconhecida como entidade familiar
a união estável entre o homem e a mulher, configurada na convivência pública,
contínua e duradoura e estabelecida com o objetivo de constituição de família.” (sem
grifos no original).
86 Nesse mesmo sentido, apesar de usar outro enfoque, afirma Maria Berenice Dias,
cuja lição vale aqui ser reiterada no sentido de que “o afrouxamento dos laços entre
Estado e Igreja acarretou uma profunda evolução social e a mutação do próprio
conceito de família, que se transformou em verdadeiro caleidoscópio de relações que
muda no tempo de sua constituição e se consolida em cada geração. Começaram a
surgir novas estruturas de convívio sem uma terminologia adequada que as
identifique. Famílias formadas por pessoas que saíram de outras relações, sem que
seus componentes tenham lugares definidos. Os novos contornos da família estão
desafiando a possibilidade de encontrar-se uma conceituação única para sua
identificação. Faz-se necessário ter uma visão pluralista da família, abrigando os mais
diversos arranjos familiares, devendo-se buscar a identificação do elemento que
permita enlaçar no conceito de entidade familiar todos os relacionamentos que têm
origem em um elo de afetividade, independente de sua conformação. O desafio dos
dias de hoje é achar o toque identificador das estruturas interpessoais que permita
nominá-las como família. Este referencial só pode ser identificado na afetividade. É o
envolvimento emocional que leva a subtrair um relacionamento do âmbito do direito
obrigacional – cujo núcleo é a vontade – para inseri-lo no direito das famílias, que tem
como elemento estruturante o sentimento do amor que funde as almas e confunde
patrimônios; gera responsabilidades e comprometimentos mútuos. Esse é o divisor
entre o direito obrigacional e o familiar: os negócios têm por substrato exclusivamente
a vontade, enquanto o traço diferenciador do direito de família é o afeto. A família é um
grupo social fundamento essencialmente nos laços de afetividade após o
desaparecimento da família patriarcal que desempenhava funções procriativas,
econômicas, religiosas e políticas (DIAS, Maria Berenice. Manual de Direito das
Famílias. Porto Alegre: Editora Livraria do Advogado, 2005, p. 40-44 – destaques do
original; grifos nossos).
87 MELLO, Marcos Bernardes de. Sobre a classificação do fato jurídico da união estável.
In: ALBUQUERQUE, Fabíola Santos; EHRHARDT JR., Marcos; OLIVEIRA, Catarina
Almeida de (orgs.). Famílias no Direito Contemporâneo. Estudos em Homenagem a
Paulo Luiz Netto Lôbo. Salvador: JusPodivm, 2010, p. 160. Grifos nossos.
88 Como dito, a expressão afeto familiar é de Sérgio Rezende de Barros, que o define
(afeto familiar) como “um afeto que enlaça e comunica as pessoas, mesmo quando
estejam distantes no tempo e no espaço, por uma solidariedade íntima e fundamental
de suas vidas – de vivência, convivência e sobrevivência – quanto aos fins e meios de
existência, subsistência e persistência de cada um e do todo que formam” (“A
ideologia do afeto”, Revista Brasileira de Direito de Família, v. 4, n. 14, p. 9, apud
CUNHA, Rodrigo Pereira da. Princípios fundamentais norteadores do Direito de
Família, 1.a Edição, 2005, Belo Horizonte: Editora Del Rey, p. 180). Apenas para que
não haja qualquer margem para dúvidas, esclareço que uso amor familiar e afeto
familiar como expressões sinônimas, até porque cunhei a expressão amor familiar por
influência do afeto familiar de Sérgio Rezende de Barros.
89 Discriminação jurídica caracterizada pela concessão de menos direitos aos casais
homoafetivos quando comparados aos direitos garantidos aos casais heteroafetivos.
90 Podem até formar outra espécie de entidade familiar formada pelo amor fraterno que
vise a uma comunhão plena de vida e interesses, de forma pública, contínua e
duradoura, mas não a união estável, que é pautada necessariamente pelo amor
romântico.
91 LÔBO, Paulo Luiz Netto. Direito Civil: Famílias. São Paulo: Editora Saraiva, 2008, p. 5.
92 Cf. voto do Ministro Ayres Britto, p. 19-26 (trechos a fls. 24-26). Valem as longas (e
pertinentes) considerações que fizeram o Ministro Ayres Britto chegar a tal conclusão
em sua análise do caput do art. 226 da CF/1988: “39. Se é assim, e tratando-se de
direitos clausulados como pétreos (inciso IV do § 4.º do artigo constitucional de n.º 60),
cabe perguntar se a Constituição Federal sonega aos parceiros homoafetivos, em
estado de prolongada ou estabilizada união, o mesmo regime jurídico-protetivo que
dela se desprende para favorecer os casais heteroafetivos em situação de voluntário
enlace igualmente caracterizado pela estabilidade. Que, no fundo, é o móvel da
propositura das duas ações constitucionais sub judice. 40. Bem, para responder a
essa decisiva pergunta, impossível deixar de começar pela análise do capítulo
constitucional que tem como seu englobado conteúdo, justamente, as figuras jurídicas
da família, do casamento civil, da união estável, do planejamento familiar e da adoção.
É o capítulo de n.º VII, integrativo do título constitucional versante sobre a ‘Ordem
Social’ (Título VIII). Capítulo nitidamente protetivo dos cinco mencionados institutos,
porém com ênfase para a família, de logo aquinhoada com a cláusula expressa da
especial proteção do Estado, verbis: ‘A família, base da sociedade, tem especial
proteção do Estado’ (caput do art. 226). Em sequência é que a nossa Lei Maior aporta
consigo os dispositivos que mais de perto interessam ao equacionamento das
questões de que tratam as duas ações sob julgamento, que são os seguintes: (...)
[aqui o Ministro Ayres Britto transcreve os §§ 1.º a 8.º do art. 226 e os §§ 5.º e 6.º do
art. 227 da CF/1988] 41. De toda essa estrutura de linguagem prescritiva (‘textos
normativos’, diria Friedrich Müller), salta à evidência que a parte mais importante é a
própria cabeça do art. 226, alusiva à instituição da família, pois somente ela – insista-
se na observação – é que foi contemplada com a referida cláusula da especial
proteção estatal. Mas família em seu coloquial ou proverbial significado de núcleo
doméstico, pouco importando se formal ou informalmente constituída, ou se integrada
por casais heterossexuais ou por pessoas assumidamente homoafetivas. Logo, família
como fato cultural e espiritual ao mesmo tempo (não necessariamente como fato
biológico). Tanto assim que referida como parâmetro de fixação do salário mínimo de
âmbito nacional (inciso IV do art. 7.º) e como específica parcela da remuneração
habitual do trabalhador (‘salário-família’, mais precisamente, consoante o inciso XII do
art. 5.º), sem que o Magno Texto Federal a subordinasse a outro requisito de formação
que não a facticidade em si da sua realidade como autonomizado núcleo doméstico. O
mesmo acontecendo com outros dispositivos constitucionais, de que servem de
amostra os incisos XXVI, LXII e LXIII do art. 5.º; art. 191; inciso IV e §12 do art. 201;
art. 203; art. 205 e inciso IV do art. 221, nos quais permanece a diretriz do não
atrelamento da formação da família a casais heteroafetivos nem a qualquer
formalidade cartorária, celebração civil ou liturgia religiosa; vale dizer, em todos esses
preceitos a Constituição limita o seu discurso ao reconhecimento da família como
instituição privada que, voluntariamente constituída entre pessoas adultas, mantém
com o Estado e a sociedade civil uma necessária relação tricotômica. Sem embargo
de, num solitário § 1.º do art. 183, referir-se à dicotomia básica do homem e da mulher,
mas, ainda assim: a) como forma especial de equiparação da importância jurídica do
respectivo labor masculino e feminino; b) como resposta normativa ao fato de que, não
raro, o marido ou companheiro abandona o lar e com mais facilidade se predispõe a
negociar seu título de domínio ou de concessão de uso daquele bem imóvel até então
ocupado pelo casal. Base de inspiração ou vetores que já obedecem a um outro tipo
de serviência a valores que não se hierarquizam em função da heteroafetividade ou da
homoafetividade das pessoas. 42. Deveras, mais que um singelo instituto de Direito
em sentido objetivo, a família é uma complexa instituição social em sentido subjetivo.
Logo, um aparelho, uma entidade, um organismo, uma estrutura das mais
permanentes relações intersubjetivas, um aparato de poder, enfim. Poder doméstico,
por evidente, mas no sentido de centro subjetivado da mais próxima, íntima, natural,
imediata, carinhosa, confiável e prolongada forma de agregação humana. Tão insimilar
a qualquer outra forma de agrupamento humano quanto a pessoa natural perante
outra, na sua elementar função de primeiro e insubstituível elo entre o indivíduo e a
sociedade. Ambiente primaz, acresça-se, de uma convivência empiricamente
instaurada por iniciativa de pessoas que se veem tomadas da mais qualificada das
empatias, porque envolta numa atmosfera de afetividade, aconchego habitacional,
concreta admiração ético-espiritual e propósito de felicidade tão emparceiradamente
permeado da franca possibilidade de extensão desse estado personalizado de coisas
a outros membros desse mesmo núcleo doméstico, de que servem de amostra os
filhos (consanguíneos ou não), avós, netos, sobrinhos e irmãos. Até porque esse
núcleo familiar é o principal locus de concreção dos direitos fundamentais que a
própria Constituição designa por ‘intimidade e vida privada’ (inciso X do art. 5.º), além
de, já numa dimensão de moradia, se constituir no asilo ‘inviolável do indivíduo’,
consoante dicção do inciso XI desse mesmo artigo constitucional. O que responde
pela transformação de anônimas casas em personalizados lares, sem o que não se
tem um igualmente personalizado pedaço de chão no mundo. E sendo assim a mais
natural das coletividades humanas ou o apogeu da integração comunitária, a família
teria mesmo que receber a mais dilatada conceituação jurídica e a mais extensa rede
de proteção constitucional. Em rigor, uma palavra-gênero, insuscetível de antecipado
fechamento conceitual das espécies em que pode culturalmente se desdobrar. 43.
Daqui se desata a nítida compreensão de que a família é, por natureza ou no plano
dos fatos, vocacionadamente amorosa, parental e protetora dos respectivos membros,
constituindo-se, no espaço ideal das mais duradouras, afetivas, solidárias ou
espiritualizadas relações humanas de índole privada. O que a credencia como base da
sociedade, pois também a sociedade se deseja assim estável, afetiva, solidária e
espiritualmente estruturada (não sendo por outra razão que Rui Barbosa definia a
família como ‘a Pátria amplificada’). Que termina sendo o alcance de uma forma
superior de vida coletiva, porque especialmente inclinada para o crescimento espiritual
dos respectivos integrantes. Integrantes humanos em concreto estado de comunhão
de interesses, valores e consciência da partilha de um mesmo destino histórico. Vida
em comunidade, portanto, sabido que comunidade vem de ‘comum unidade’. E como
toda comunidade, tanto a família como a sociedade civil, é usina de comportamentos
assecuratórios da sobrevivência, equilíbrio e evolução do Todo e de cada uma de suas
partes. Espécie de locomotiva social ou cadinho em que se tempera o próprio caráter
dos seus individualizados membros e se chega à serena compreensão de que ali é
verdadeiramente o espaço do mais entranhado afeto e desatada cooperação. Afinal, é
no regaço da família que desabrocham com muito mais viço as virtudes subjetivas da
tolerância, sacrifício e renúncia, adensadas por um tipo de compreensão que
certamente esteve presente na proposição spnozista de que, ‘Nas coisas ditas
humanas, não há o que crucificar ou ridicularizar. Há só o que compreender’. 44. Ora
bem, é desse anímico e cultural conceito de família que se orna a cabeça do art. 226
da Constituição. Donde a sua literal categorização com ‘base na sociedade’. E assim
normada como figura central ou verdadeiro continente para tudo o mais, ela, família, é
que deve servir de norte para a interpretação dos dispositivos em que o capítulo VIII se
desdobra, conforme transcrição acima feita. Não o inverso. Artigos que têm por objeto
os institutos do casamento civil, da união estável, do planejamento familiar, da adoção
etc., todos eles somente apreendidos na inteireza da respectiva compostura e
funcionalidade na medida em que imersos no continente (reitere-se o uso da metáfora)
em que a instituição da família consiste. 45. E se insistimos na metáfora do ‘continente’
é porque o núcleo doméstico em que a família se constitui ainda cumpre explícitas
funções jurídicas do mais alto relevo individual e coletivo, amplamente justificadoras da
especial proteção estatal que lhe assegura o citado art. 226. Refiro-me a preceitos que
de logo tenho como fundamentais pela sua mais entranhada serventia para a
concreção dos princípios da cidadania, da dignidade da pessoa humana e dos valores
sociais do trabalho, que são, respectivamente, os incisos II, III e IV do art. 1.º da CF.
Logo, preceitos fundamentais por reverberação, arrastamento ou reforçada
complementariedade, a saber: (...) [transcrição dos arts. 205, 227 e 230, por sua
referência à família]. 46. E assim é que, mais uma vez, a Constituição Federal não faz
a menor diferenciação entre a família formalmente constituída e aquela existente ao
rés dos fatos. Como também não distingue entre a família que se forma por sujeitos
heteroafetivos e a que se constitui por pessoas de inclinação homoafetiva. Por isso
que, sem nenhuma ginástica mental ou alquimia interpretativa, dá para compreender
que a nossa Magna Carta não emprestou ao substantivo ‘família’ nenhum significado
ortodoxo ou da própria técnica jurídica. Recolheu-o com o sentido coloquial
praticamente aberto que sempre portou como realidade do mundo do ser. Assim como
dá para inferir que, quanto maior o número dos espaços doméstica e autonomamente
estruturados, maior a possibilidade de efetiva colaboração entre esses núcleos
familiares, o Estado e a sociedade, na perspectiva do cumprimento de conjugados
deveres que são funções essenciais à plenificação da cidadania, da dignidade da
pessoa humana e dos valores sociais do trabalho. Isso numa projeção exógena ou
extramuros domésticos, porque endogenamente ou interna corporis, os beneficiários
imediatos dessa multiplicação de unidades familiares são os seus originários
formadores, parentes e agregados. Incluído nestas duas últimas categorias dos
parentes e agregados o contingente das crianças, dos adolescentes e dos idosos.
Também eles, crianças, adolescentes e idosos, tanto mais protegidos quanto
partícipes dessa vida em comunhão que é, por natureza, a família. (...) 47. Assim
interpretando de forma não reducionista o conceito de família, penso que este STF
fará o que lhe compete: manter a Constituição na posse do seu fundamental atributo
de coerência, pois o conceito contrário implicaria forçar o nosso Magno Texto a
incorrer, ele mesmo, em discurso indisfarçavelmente preconceituoso ou homofóbico.
Quando o certo – data vênia de opinião divergente – é extrair do sistema de comandos
da Constituição os encadeados juízos que precedentemente verbalizamos, agora
arrematados com a proposição de que a isonomia entre casais heteroafetivos e pares
homoafetivos somente ganha plenitude de sentido se desembocar no igual direito
subjetivo à formação de uma autonomizada família. Entendida esta, no âmbito das
duas tipologias de sujeitos jurídicos, como um núcleo doméstico independente de
qualquer outro e constituído, em regra, com as mesmas notas factuais da visibilidade,
continuidade e durabilidade. Pena de se consagrar uma liberdade homoafetiva pela
metade ou condenada a encontros tão ocasionais quanto clandestinos ou
subterrâneos. Uma canhestra liberdade ‘mais ou menos’, para lembrar um poema
alegadamente psicografado pelo tão prestigiado médium brasileiro Chico Xavier, hoje
falecido, que, iniciando pelos versos de que ‘A gente pode morar numa casa mais ou
menos/Numa rua mais ou menos/Numa cidade mais ou menos/E até ter um governo
mais ou menos’, assim conclui a sua lúcida mensagem: ‘O que a gente não pode
mesmo/Nunca, de jeito nenhum/É amar mais ou menos/É sonhar mais ou menos/É ser
amigo mais ou menos/(...) Senão a gente corre o risco de se tornar uma pessoa mais
ou menos’” (grifos parcialmente nossos).
93 Voto do Ministro Ayres Britto, p. 26-27, nos seguintes termos: “I – ‘O casamento é civil
e gratuita a celebração’. Dando-se que ‘O casamento religioso tem efeito civil, nos
termos da lei’ (§§ 1.º e 2.º). Com o que essa figura do casamento perante o Juiz, uma
das modalidades de constituição da família. Não a única forma, como, agora sim,
acontecia na Constituição de 1967, litteris: ‘A família é constituída pelo casamento e
terá direito à proteção dos Poderes Públicos’ (caput do art. 175, já considerada a
Emenda Constitucional n.º 1, de 1969). É deduzir: se, na Carta Política vencida, toda a
ênfase protetiva era para o casamento, visto que ele açambarcava a família como
entidade, agora, na Constituição vencedora, a ênfase tutelar se desloca para a
instituição da família mesma. Família que pode prosseguir, se houver descendentes ou
então agregados, com a eventual dissolução do casamento (vai-se o casamento, fica a
família). Um liame já não umbilical como o que prevalecia na velha ordem
constitucional, sobre a qual foi jogada, em hora mais que ansiada, a última pá de cal.
Sem embargo do reconhecimento de que essa primeira referência ao casamento de
papel passado traduza uma homenagem da nossa Lei Fundamental de 1988 à
tradição. Melhor dizendo, homenagem a uma tradição ocidental de maior prestígio
sociocultural-religioso a um modelo de matrimônio que ocorre à vista de todos, com
pompa e circunstância e revelador de um pacto afetivo que se deseja tão publicamente
conhecido que celebrado ante o juiz, ou o sacerdote juridicamente habilitado, e sob o
testemunho igualmente formal de pessoas da sociedade. Logo, um pacto formalmente
predisposto à perdurabilidade e deflagrador de tão conhecidos quanto inquestionáveis
efeitos jurídicos de monta, como, por exemplo, a definição do regime de bens do casal,
sua submissão a determinadas regras de direito sucessório, pressuposição de
paternidade na fluência do matrimônio e mudança do estado civil dos contraentes, que
de solteiros ou viúvos passam automaticamente à condição de casados. A justificar,
portanto, essas primeiras referências que a ele, casamento civil, faz a nossa
Constituição nos dois parágrafos em causa (§§ 1.º e 2.º do art. 226); ou seja, nada
mais natural que prestigiar por primeiro uma forma de constituição da família que se
apresenta com as vestes da mais ampla notoriedade e promessa igualmente pública
de todo empenho pela continuidade do enlace afetivo, pois, ao fim e ao cabo, esse tipo
de prestígio constitucional redunda em benefício da estabilidade da própria família. O
continente que não se exaure em nenhum dos seus conteúdos, inclusive esse do
casamento civil.
94 Ou seja, o amor que vise a uma comunhão plena de vida e interesses, de forma
pública, contínua e duradoura.
95 Cf. voto do Ministro Ayres Britto, p. 27-29. Em suas palavras: “II – com efeito, após
falar do casamento civil como uma das formas de constituição da família, a nossa Lei
maior adiciona ao seu art. 226 um § 3.º para cuidar de uma nova modalidade de
formação de um autonomizado núcleo doméstico, por ela batizado de ‘entidade
familiar’. É o núcleo doméstico que se constitui pela ‘união estável entre o homem e a
mulher, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento’. Donde a necessidade de
se aclarar: II.1 – que essa referência à dualidade básica homem/mulher tem uma
lógica inicial: dar imediata sequência àquela vertente constitucional de incentivo ao
casamento como forma de reverência à tradição sociocultural-religiosa do mundo
ocidental de que o Brasil faz parte (§ 1.º do art. 226 da CF), sabido que o casamento
civil brasileiro tem sido protagonizado por pessoas de sexos diferentes, até hoje.
Casamento civil, aliás, regrado pela Constituição Federal sem a menor referência aos
substantivos ‘homem’ e ‘mulher’. II.2 – que a normação desse novo tipo de união,
agora expressamente referida à dualidade do homem e da mulher, também se deve ao
propósito constitucional de não perder a menor oportunidade de estabelecer relações
jurídicas horizontais ou sem hierarquia entre as duas tipologias do gênero humano,
sabido que a mulher que se une ao homem em regime de companheirismo ou sem
papel passado ainda é vítima de comentários desairosos de sua honra objetiva, tal a
renitência desse ranço do patriarcalismo entre nós (não se pode esquecer que até
1962, a mulher era juridicamente categorizada como relativamente incapaz, para os
atos da vida civil, nos termos da redação original do art. 6.º do Código Civil de 1916);
tanto é assim que o § 4.º [rectius: 5.º] desse mesmo art. 226 (antecipo o comentário)
reza que ‘Os direitos referentes à sociedade conjugal são exercidos igualmente pelo
homem e pela mulher’. Preceito, este último, que também relança o discurso do inciso
I do art. 5.º da Constituição (‘homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações’)
para atuar como estratégia de reforço normativo a um mais eficiente combate àquela
renitência patriarcal dos nossos costumes. Só e só, pois esse combate mais eficaz ao
preconceito que teimosamente persiste para inferiorizar a mulher perante o homem é
uma espécie de briga particular ou bandeira de luta que a nossa Constituição desfralda
numa outra esfera de arejamento mental da vida brasileira, nada tendo a ver com a
dicotomia da heteroafetividade e da homoafetividade. Logo, que não se faça uso da
letra da Constituição para matar o seu espírito, no fluxo de uma postura interpretativa
que faz ressuscitar o mencionado caput do art. 175 da Constituição de 1967/1969. Ou
como diria Sérgio da Silva Mendes, que não se separe por um parágrafo (esse de n.º
3) o que a vida uniu pelo afeto. Numa nova metáfora, não se pode fazer rolar a cabeça
do artigo 226 no patíbulo do seu parágrafo terceiro, pois esse tipo acanhado ou
reducionista de interpretação jurídica seria o modo mais eficaz de tornar a Constituição
ineficaz...” (grifos parcialmente nossos).
96 ADPF 132 e ADI 4.277, voto do Ministro Ayres Britto, p. 31-32. Em suas palavras: “III –
salto para o § 4.º do art. 226, apenas para dar conta de que a família também se forma
por uma terceira e expressa modalidade, traduzida na concreta existência de uma
‘comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes’. É o que a doutrina
entende por ‘família monoparental’, sem que se possa fazer em seu desfavor, pontuo,
qualquer inferiorizada comparação com o casamento civil ou união estável. Basta
pensar no absurdo que seria uma mulher casada enviuvar e manter consigo um ou
mais filhos do antigo casal, passando a ter que suportar o rebaixamento da sua família
à condição de ‘entidade familiar’; ou seja, além de perder o marido, essa mulher
perderia o status de membro de uma consolidada família. Sua nova e rebaixada
posição seria de membro de uma simplória ‘entidade familiar’, porque sua antiga
família morreria com seu antigo marido. Baixaria ao túmulo com ele. De todo modo,
também aqui a Constituição é apenas enunciativa no seu comando, nunca taxativa,
pois não se pode recusar a condição de família monoparental àquela constituída, por
exemplo, por qualquer dos avós e um ou mais netos, ou até mesmo por tios e
sobrinhos. Como não se pode pré-excluir da candidatura à adoção ativa pessoas de
qualquer preferência sexual, sozinhas ou em regime de emparceiramento”.
97 ADPF 132 e ADI 4.277, voto do Ministro Ayres Britto, p. 28.
98 Na 1ª edição desta obra, afirmei que o dispositivo afirmava a possibilidade da
dissolução do casamento civil pelo divórcio “após um ano de separação judicial” ou
“após dois anos de separação fática”, contudo, a EC 66 extirpou a separação judicial
do mundo jurídico e suprimiu a referência a lapso temporal para o divórcio. Embora
isso tenha feito surgir celeuma doutrinária sobre se as normas do Código Civil em
relação a separação judicial permanecessem válidas, alguns defendendo a favor da
liberdade de conformação do legislador na regulamentação das normas
constitucionais, e outros entendendo que não (por ausência de lógica na manutenção
da separação judicial após dita emenda constitucional), acreditamos que a vontade
objetivamente constatável da alteração foi abolir a separação judicial do mundo
jurídico, com a consequente nulificação ou revogação tácita das normas
infraconstitucionais respectivas – do contrário, teria feito alguma ressalva em sentido
contrário (“nulificação ou revogação” consoante a corrente adotada sobre a
consequência da inconstitucionalidade decorrente de norma constitucional posterior à
norma infraconstitucional em questão – adoto a tese minoritária que aceita o fenômeno
da inconstitucionalidade superveniente, embora o STF perfilhe a tese da mera
revogação, consoante julgamento da ADIn 02, sobre a qual não cabe aqui ingressar
(mas cujos argumentos da corrente minoritária não foram desmistificados pela maioria,
já que inconstitucionalidade é um juízo de incompatibilidade vertical de normas que
independe de “intenção” do legislador de afrontar a Constituição, ao passo que a
nulificação da norma infraconstitucional pela norma constitucional posterior tem os
mesmos efeitos práticos da revogação, em que ausente “privilégio” da lei sobre a
Constituição por lei posterior ter poder de revogar, na medida em que a norma
constitucional posterior tem o poder de nulificar a norma infraconstitucional (a ela
inferior).
99 ADPF 132 e ADI 4.277, voto do Ministro Ayres Britto, p. 32. Em suas palavras: “Por
último, anoto que a Constituição remete à lei a incumbência de dispor sobre a
assistência do Poder Público à adoção, inclusive pelo estabelecimento de casos e
condições da sua (dela, adoção) efetivação por parte de estrangeiros (§ 5.º do art.
227). E também nesta parte do seu estoque normativo não abre distinção entre
adotante ‘homo’ ou ‘heteroafetivo’. E como possibilita a adoção por uma pessoa
adulta, também sem distinguir entre o adotante solteiro e o adotante casado, ou então
em regime de união estável, penso aplicar-se ao tema o mesmo raciocínio de
proibição do preconceito e da regra do inciso II do art. 5.º da CF, combinadamente com
o inciso IV do art. 3.º e o § 1.º do art. 5.º da Constituição. Mas é óbvio que o
mencionado regime legal há de observar, entre outras medidas de defesa e proteção
do adotando, todo o conteúdo do art. 227, cabeça, da nossa Lei Fundamental”.
100 PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Princípios Fundamentais Norteadores do Direito de
Família. Belo Horizonte: Del Rey, 2005, pp. 165-168.
101 Op. cit., pp. 166 e 181-182.
102 Desenvolvi essa argumentação no amicus curiae que apresentei perante o Supremo
Tribunal Federal para o julgamento da ADPF 132 e da ADI 4.277, em favor da AIESSP
– Associação de Incentivo à Educação e Saúde de São Paulo. Posteriormente, ela
constou em VECCHIATTI, Paulo Roberto Iotti. União Estável Homoafetiva e a
Constitucionalidade de seu Reconhecimento Judicial. Revista do Direito das Famílias e
Sucessões, fev.-mar. 2010, ano XI, n.º 14, pp. 66-88, logo após breve demonstração
do conceito material de família conjugal, exteriorizado pelo amor familiar.
103 LÔBO, Paulo. Famílias. São Paulo: Saraiva, 2008, pp. 57-58.
104 Cf. Capítulo 5, item 2.4.1 – “O Amor Familiar como o Elemento Formador da Família
Contemporânea”.
105 LÔBO, Paulo Luiz Netto. Direito Civil: Famílias. São Paulo: Editora Saraiva, 2008, p.
11-14 (sem grifos no original).
106 Cf. ADPF 132 e ADI 4.277, voto do Ministro Celso de Mello, pp. 41-43.
107 Ibidem, p. 40.
108 No original, afirma o autor que “(...) o art. 226, § 8.o, da Constituição Brasileira de
1988 assimila o marco ora tratado da nova família, com contornos diferenciados, pois
prioriza a necessidade da realização da personalidade dos seus membros, ou seja, a
família-função, em que subsiste a afetividade, que, por sua vez, justifica a
permanência da entidade familiar. Esta é a família constitucionalizada, que trazemos a
lume no presente trabalho. Por isso, insista-se, a família só faz sentido para o Direito a
partir do momento em que ela é veículo funcionalizador à promoção da dignidade de
seus membros. Em face, portanto, da mudança epistemológica ocorrida no bojo da
família, a ordem jurídica assimilou tal transformação, passando a considerar o afeto
como um valor jurídico de suma relevância para o Direito de Família. Seus reflexos
crescentes vêm permeando todo o Direito, como é exemplo a valorização dos laços de
afetividade e da convivência familiar oriundos da filiação, em detrimento, por vezes,
dos vínculos de consanguinidade. Além disso, todos os filhos receberam o mesmo
tratamento constitucional, independente da sua origem e se são biológicos ou não”
(CUNHA, Rodrigo Pereira da. Princípios fundamentais norteadores do Direito de
Família, 1.a Edição, Belo Horizonte: Editora Del Rey, 2005, p. 180 – sem grifos no
original).
109 Lembre-se que o CC/1916 só reconhecia como famílias legítimas, entendidas como
protegidas pelo Direito, aquelas consagradas pelo casamento civil, sendo o afeto
completamente desconsiderado pela legislação pretérita.
110 LÔBO apud DIAS, Maria Berenice. Manual do Direito das Famílias, 1.a Edição, Porto
Alegre: Editora Livraria do Advogado, 2005, p. 66.
111 WELTER apud DIAS, Maria Berenice. Manual do Direito das Famílias, 1.a Edição,
Porto Alegre: Editora Livraria do Advogado, 2005, p. 66-67.
112 Ibidem, p. 39.
113 Ibidem, p. 39.
114 Falo em “amor que vise a uma comunhão plena de vida e interesses, de forma
pública, contínua e duradoura” por dois motivos: (i) porque o elo afetivo isoladamente
considerado nunca foi capaz de constituir uma família, necessitando dos laços de
publicidade, continuidade e durabilidade para tanto, de forma a diferenciar a família da
mera amizade; e (ii) como interpretação teleológica do art. 1.511 do CC/2002, que
afirma que o casamento civil estabelece uma comunhão plena de vida entre os
cônjuges, donde dita comunhão afigura-se como indispensável à constituição de uma
família, aliada aos referidos laços de publicidade, continuidade e durabilidade exigidos
para a união estável (art. 1.723 do CC/2002).
115 Ibidem, p. 39.
116 OLIVEIRA, Catarina Almeida de. Refletindo o Afeto nas Relações de Família. Pode o
Direito impor o Amor? In: ALBUQUERQUE, Fabíola Santos; EHRHARDT JR., Marcos;
OLIVEIRA, Catarina Almeida de (orgs.). Famílias no Direito Contemporâneo. Estudos
em homenagem a Paulo Luiz Netto Lobo. Salvador: JusPodivm, 2010, p. 47.
117 ANDRADE, Renata Cristina Othon Lacerda de. Aplicabilidade do Princípio da
Afetividade às Relações Paterno-Filiais: a difícil escolha entre os laços de sangue e o
afeto sem vínculos. In: ALBUQUERQUE, Fabíola Santos; EHRHARDT JR., Marcos;
OLIVEIRA, Catarina Almeida de (orgs.). Famílias no Direito Contemporâneo...,
Salvador: JusPodivm, 2010, pp. 73-74. Grifos nossos.
118 OLIVEIRA, Catarina Almeida de. Refletindo o Afeto nas Relações de Família. Pode o
Direito impor o Amor? In: ALBUQUERQUE, Fabíola Santos; EHRHARDT JR., Marcos;
OLIVEIRA, Catarina Almeida de (orgs.). Famílias no Direito Contemporâneo...,
Salvador: JusPodivm, 2010, pp. 60-61. Grifo nosso.
119 Ibidem, pp. 65-66. Grifos nossos.
120 Ibidem, pp. 56-59. Grifos nossos.
121 RIBEIRO, Ana Cecília Rosário e ARAÚJO, Marcelo de Jesus Monteiro. A Relação
Incestuosa como Entidade Familiar: uma Revolução do Estatuto das Famílias. In:
ALBUQUERQUE, Fabíola Santos. EHRHARDT JR, Marcos e OLIVEIRA, Catarina
Almeida de (orgs.). Famílias no Direito Contemporâneo..., 1ª edição, Salvador: Editora
Podivm, 2010, pp. 310-311. Grifos nossos.
122 BARROSO, Lucas Abreu. Desmistificando as Relações de Família no Novo Direito
Civil. In: ALBUQUERQUE, Fabíola Santos. EHRHARDT JR, Marcos e OLIVEIRA,
Catarina Almeida de (orgs.). Famílias no Direito Contemporâneo..., 1ª edição,
Salvador: Editora Podivm, 2010, p. 127. Grifos nossos.
123 DIAS, Maria Berenice. União Homossexual. O Preconceito & a Justiça. 3. ed. Porto
Alegre: Editora Livraria do Advogado, 2006, p. 68-69. A autora alterou a redação deste
trecho na 4ª e na 5ª edições de sua obra. Vide, no corpo do texto, as transcrições, já
no final do primeiro parágrafo deste tópico.
124 DIAS, Maria Berenice. União Homoafetiva. O preconceito & a justiça. 4. ed. São
Paulo: RT, 2009, p. 129.
125 DIAS, Maria Berenice. União Homoafetiva. O preconceito & a justiça. 5. ed. São
Paulo: RT, 2011, p. 108.
126 ADPF 132 e ADI 4.277, voto do Ministro Marco Aurélio, p. 8 – grifos nossos.
127 ADPF 132 e ADI 4.277, voto do Ministro Celso de Mello, p. 40.
128 ADPF 132 e ADI 4.277, voto do Ministro Ayres Britto, p. 20-24 – grifos nossos.
129 ADPF 132 e ADI 4.277, voto do Ministro Lewandowski, p. 10 – grifo nosso.
130 Os demais referem-se, em síntese, a proibição da orientação sexual e da identidade
de gênero dos pais e/ou pretendentes à adoção serem consideradas, isoladamente,
como incompatível com o melhor interesse de crianças e adolescentes (alínea “c”),
consideração da opinião de crianças e adolescentes capazes de expressas suas
opiniões (alínea “d”) e garantia de consentimento pleno e livre como requisito para
casamentos e parcerias civis entre duas pessoas (alínea “g”).
131 Vide, nesse sentido, a reportagem da“50 anos após Kinsey, sexo volta a chocar
EUA”, Folha de S. Paulo, de 19 dez. 2004, caderno Mundo).
132 O tema é inacreditavelmente polêmico. Com efeito, há quem entenda que o
constitucionalismo traria uma afronta à democracia caso seja entendido como limitador
da vontade das maiorias sociais por meio de suas cláusulas pétreas. Apontam que a
maioria não poderia ser limitada pela Constituição sob pena de afronta ao princípio
democrático. Contudo, tal posição é completamente descabida e falaciosa. É
descabida porque a democracia existe na forma como foi constitucionalmente
consagrada. É a Constituição Federal que define o conteúdo jurídico dos princípios
nela consagrados, não o contrário, donde, repita-se, a democracia existe na forma
como foi constitucionalmente consagrada. Por outro lado, é falaciosa porque a maioria
não está nem um pouco impedida a fazer que o país passe a vigorar de forma diversa
daquela instituída pelas cláusulas pétreas. Basta que, para tanto, convoque uma nova
Assembleia Nacional Constituinte e elabore uma nova Constituição Federal, sem as
cláusulas pétreas que impedem a vontade majoritária. Plebiscitos não são formas de
consulta ao Poder Constituinte Originário, aptas a superar as cláusulas pétreas: nos
termos da Constituição, plebiscitos são formas de elaboração de leis e, com
interpretação teleológica extremamente condescendente, no máximo de emendas
constitucionais que, contudo, devem respeitar as cláusulas pétreas da Constituição.
Ou seja, na forma como foi concebido pela Constituição, o plebiscito não tem o condão
de levar à superação das cláusulas pétreas, entre as quais os direitos fundamentais.
Muito embora haja quem alegue que essa noção de cláusulas pétreas traria
insegurança jurídica na medida em que não é possível prever os exatos resultados de
uma nova Constituinte, acabar com essa compreensão de cláusulas pétreas e,
portanto, com o núcleo material intangível da Constituição traz a mesma insegurança
jurídica, na medida em que também é incerto o que as deliberações de maiorias
ocasionais podem trazer a um sistema jurídico. O nazismo que o diga, já que existiu
em um regime no qual não havia vinculação material do legislador democrático à
Constituição. Portanto, para que não se permita uma verdadeira fraude constitucional,
é preciso respeito às cláusulas pétreas da Constituição, mesmo que contra a vontade
da maioria, que, se quiser, deverá convocar uma nova Constituinte para elaborar uma
nova Constituição sem a cláusula pétrea que proibia o que ela, maioria, desejava.
Essa é a lógica da teoria constitucional contemporânea: conclusão em sentido
contrário implica a negação da própria noção de supremacia constitucional. Nesse
sentido, embora com desenvolvimentos próprios, vide: VIEIRA, Oscar Vilhena. A
Constituição como reserva de justiça, Lua Nova – Revista de Cultura e Política, n. 42,
1997, p. 53-97; e ROCHA, Carmem Lúcia Antunes. Reforma total da Constituição:
remédio ou suicídio institucional, in: SAMPAIO, José Adércio Leite (coord.), CRISE E
DESAFIOS DA CONSTITUIÇÃO, Belo Horizonte: Del Rey, 2004, p. 147-174. Por outro
lado, essa posição segundo a qual democracia e constitucionalidade seriam conceitos
antagônicos encontra-se pautada em um conceito pré-jurídico de democracia, que leva
em conta tão somente o conceito de maioria. Pauta-se na excessiva confiança no
legislador democrático, na presunção de que aqueles eleitos pelo povo estariam
sempre representando os interesses do povo – ou, pelo menos, da maioria. Todavia, a
história já comprovou, com o nazi-fascismo, que o legislador democrático não é imune
a arbitrariedades, comete injustiças das mais diversas e massacra as minorias por
esdrúxulos preconceitos. Essa é uma razão de ordem sociológica a justificar a
legitimidade das limitações constitucionais às vontades majoritárias.
133 SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo, 25.a Edição, São
Paulo: Editora Malheiros, 2005, p. 132.
134 Ibidem, p. 117.
135 Ibidem, p. 132.
136 Ibidem, p. 130.
137 Ibidem, p. 130.
138 Ibidem, p. 131.
139 Não é outra a lição de Roger Raupp Rios: “(...) Com efeito, alguns juristas sustentam
que a Constituição, ao enumerar tais e quais espécies de comunidade familiar,
inadmite o reconhecimento de outras comunidades familiares, sendo vedado ao
legislador ordinário e ao Poder Judiciário avançar nesta questão. A interpretação da
Constituição, em face deste problema, todavia, deve ser conduzida de outra forma. Na
verdade, colocar o problema nestes termos em nada colabora para sua elucidação, na
medida em que perquirir da natureza taxativa ou enumerativa das comunidades
familiares previstas no texto constitucional seria concebê-lo de acordo com o dogma
da completude, isto é, ideia de que a Constituição já tenha definido de antemão a
resposta para o problema. No entanto, quando se trata de interpretação constitucional,
deve-se partir de premissa diversa, segundo a qual a Constituição se caracteriza por
sua abertura e amplitude, não se propondo de antemão ‘à pretensão de ausência de
lacunas ou até de unidade sistemática’. Tomando como referência a obra de Konrad
Hesse, deve-se primeiramente fixar que a interpretação constitucional é, em primeiro
lugar, concretização. Vale dizer, ‘exatamente aquilo que, como conteúdo da
Constituição, ainda não é unívoco deve ser determinado sob a inclusão da ‘realidade’
a ser ordenada’. Desse modo, a interpretação constitucional possui uma nota criadora,
pois o conteúdo da norma objeto de interpretação só pode ser concluído pela
interpretação – tudo sem abandonar a vinculação à norma. Para tanto, assinala o
jurista alemão, é necessário o ‘entendimento’ da norma a ser concretizada, num
proceder essencialmente ligado à (pré)-compreensão do intérprete e ao problema
concreto. (...) Nas palavras do próprio Konrad Hesse, ‘não existe interpretação
constitucional independente de problemas concretos’. (...) Inexistindo na Constituição
um sistema concluído e uniforme, lógico-axiomático ou hierárquico de valores, mostra-
se necessário tal procedimento de concretização. Nele, o intérprete deve buscar
pontos de vista relacionados com o problema concreto e indicar o que a Constituição
fornece para a consideração desses elementos na resolução do problema” (RIOS,
Roger Raupp. A homossexualidade no Direito, Porto Alegre: Editora Livraria do
Advogado, 2001, p. 116 e 117 – sem grifos no original).
140 No que tange à nomenclatura “dimensões” em vez de “gerações” de direitos
fundamentais, concordamos com a posição de Ingo Wolfgang Sarlet (A eficácia dos
direitos fundamentais, 6.a Edição, Porto Alegre: Editora Livraria do Advogado, 2006, p.
54-55), que aduz que: “Num primeiro momento, é de se ressaltarem as fundadas
críticas que vêm sendo dirigidas contra o próprio termo ‘gerações’ por parte da
doutrina alienígena e nacional. Com efeito, não há como negar que o reconhecimento
progressivo de novos direitos fundamentais tem o caráter de um processo cumulativo,
de complementaridade, e não de alternância, de tal sorte que o uso da expressão
‘gerações’ pode ensejar a falsa impressão da substituição gradativa de uma geração
por outra, razão pela qual há quem prefira o termo ‘dimensões’ dos direitos
fundamentais, posição esta que aqui optamos por perfilhar, na esteira da mais
moderna doutrina. (...) Ressalte-se, todavia, que a discordância reside essencialmente
na esfera terminológica, havendo, em princípio, consenso no que diz com o conteúdo
das respectivas dimensões e ‘gerações’ de direitos. (...) Assim sendo, a teoria
dimensional dos direitos fundamentais não aponta, tão somente, para o caráter
cumulativo do processo evolutivo e para a natureza complementar de todos os direitos
fundamentais, mas afirma, para além disso, sua unidade e indivisibilidade no contexto
do direito constitucional interno e, de modo especial, na esfera do moderno ‘Direito
Internacional dos Direitos Humanos’”.
141 Nesse sentido, ensina-nos Maria Berenice Dias: “Os direitos que foram consagrados
principalmente pela declaração francesa de 1789 passaram a ser considerados de
primeira geração. Tendo como tônica a preservação da liberdade individual,
caracterizam-se como verdadeira imposição de limites ao Estado, gerando simples
‘obrigações de não fazer’. Assim, o sujeito do direito é o indivíduo, e o objeto, a
liberdade. (...)Os direitos econômicos, sociais e culturais que vieram a ser positivados
nos textos constitucionais a partir da Constituição de Weimar, de 1919, são tidos como
direitos de segunda geração. Cobram atitudes positivas do Estado, verdadeiras
‘obrigações de fazer’, com a finalidade de promover a igualdade. Não a mera
igualdade formal de todos frente à lei, mas a igualdade material de oportunidades,
ações e resultados entre partes ou categorias sociais desiguais, protegendo e
favorecendo juridicamente os hipossuficientes em relações sociais específicas, como
as relações de trabalho, de consumo, etc. (...) São valores que recebem proteção do
Estado, para prevenir ou remediar o detrimento de uma categoria social por outra.
Garantem uma prestação do Estado a determinados indivíduos, a fim de promover a
igualdade social buscando igualar os desiguais na medida que se desigualam. Os
direitos de terceira geração, sobrevindos à Segunda Guerra Mundial, asseguram a
dignidade humana pelo implemento das condições gerais e básicas que lhe sejam
necessárias, postas como direitos difusos de toda a humanidade. Necessário se
tornou garantir, não indivíduo contra indivíduo, mas a humanidade contra a própria
humanidade, reagindo aos extermínios em massa praticados na primeira metade do
século XX por regimes totalitários (stalinismo, nazismo) e democráticos (destruição de
cidades indefesas, até por bombas atômicas). (...)” (DIAS, Maria Berenice. União
Homoafetiva. O Preconceito & a Justiça. 5. ed. São Paulo: RT, 2011, pp 82-83).
142 Com efeito, aponta Maria Berenice Dias que “É crescente a positivação dos direitos
humanos em nível constitucional, fenômeno que decorre do constante processo de
evolução dos valores histórico-sociais. Assim, imperioso reconhecer que a garantia do
livre exercício da sexualidade integra as três gerações de direitos, porque está
relacionada com os postulados fundamentais da liberdade individual, da igualdade
social e da solidariedade humana. As gerações de direitos servem para alcançar a
realização de todos os cidadãos, havendo a necessidade de que as relações
homossexuais, crivadas pelos preconceitos, não sejam excluídas do mundo do Direito,
pois a higidez dos conceitos jurídicos deve-se contrapor à intolerância social. Além de
estarem amparadas pelo princípio fundamental da isonomia, cujo corolário é a
proibição de discriminações injustas, impositiva a inclusão das relações homossexuais
no rol dos direitos humanos fundamentais, como expressão de um direito subjetivo ao
mesmo tempo individual, categorial e difuso. Também se albergam sob a liberdade de
expressão, como garantia do exercício da liberdade individual, cabendo incluí-las, da
mesma forma, entre os direitos de personalidade, precipuamente no que diz com a
identidade pessoal e a integridade física e psíquica. Acresce, ainda, visualizar a
segurança da inviolabilidade da intimidade e da vida privada, que é a base jurídica
para a construção do direito à orientação sexual, como direito personalíssimo, atributo
inerente e inegável da pessoa humana [citação de Luiz Edson Fachin] (...).Se o direito
à identidade sexual é direito humano fundamental, necessariamente também o é o
direito à identidade homossexual, melhor dizendo: o direito à homoafetividade.
Portanto, a relação homoafetiva corresponde a um direito humano fundamental”
(ibidem, 3. ed. p. 74-75 – grifos nossos).
143 Vale reiterar a lição do Ministro Gilmar Ferreira Mendes (In: MENDES, Gilmar
Ferreira, COELHO, Inocêncio Mártires e BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de
Direito Constitucional, 1.a Edição, São Paulo: Editora Saraiva, 2007, p. 403), para
quem a liberdade de consciência é “a faculdade de o indivíduo formular juízos e ideias
sobre si mesmo e sobre o meio externo que o circunda”, afirmando ainda que o Estado
não pode interferir nessa esfera íntima do indivíduo, “não lhe cabendo impor
concepções filosóficas aos cidadãos”.
144 Por “livre exercício da homoafetividade” entenda-se o direito de casais homoafetivos
de apresentarem à sociedade como casal (assim como fazem os casais
heteroafetivos), sem discriminações normativas ou sociais em virtude de sua
homossexualidade e consequente homoafetividade, sendo vedado, por exemplo, a
estabelecimentos comerciais impedirem o acesso a seu estabelecimento a casais
homoafetivos. Note-se, por oportuno, que em São Paulo a Lei Estadual 10.948/2001
proíbe a discriminação por orientação sexual e identidade de gênero (esta última
contra travestis e transexuais), em explicitação legislativa do princípio da isonomia e
do direito constitucional implícito de livre exercício da afetividade (seja ela homo ou
heteroafetiva). Da mesma forma, uma lei que criminalizasse a homossexualidade
(lamentavelmente existente em muitos países teocráticos) seria flagrantemente
inconstitucional, por afronta aos princípios da igualdade, da dignidade da pessoa
humana, da liberdade de consciência, da liberdade em geral, da intimidade e da vida
privada, além do direito implícito ao livre exercício da afetividade.
145 Nesse sentido, é valiosa a lição de Ingo Wolfgang Sarlet: “Atente-se, nesse contexto,
para o significado da expressão ‘implícitos’, que, no sentido etimológico, pode ser
considerado o que está subentendido, o que está envolvido, mas não de modo claro.
Neste sentido, verifica-se que a categoria dos direitos implícitos pode corresponder
também – além da possibilidade de dedução de um novo direito fundamental com
base nos constantes do catálogo – a uma extensão (mediante o recurso à
hermenêutica) do âmbito de proteção de determinado direito fundamental
expressamente positivado, cuidando-se, nesta hipótese, não tanto da criação
jurisprudencial de um novo direito fundamental, mas, sim, de redefinição do campo de
incidência de determinado direito fundamental. (...) Seja qual for o critério utilizado
(direitos implícitos ou direitos decorrentes do regime e dos princípios) (...), o fato é que
para o art. 5.o, § 2.o – para o efeito de dedução de posições jurídicas fundamentais –
assume caráter essencialmente declaratório (já que, em princípio, desnecessário, pelo
menos se considerarmos que implícito é o que já está subentendido). (...) Os direitos
fundamentais implícitos têm, isto sim, sua existência indiretamente reconhecida pelo
citado preceito constitucional. Assim sendo, tenho para mim que a dedução de direitos
implícitos é algo inerente ao sistema, existindo, ou não, norma permissiva expressa
neste sentido” (SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais, 6.a
Edição, Porto Alegre: Editora Livraria do Advogado, 2006, p. 104 e 108-109 – sem
grifos no original).
146 Segundo Viviane Girardi (Famílias Contemporâneas, Filiação e Afeto: A Possibilidade
Jurídica da Adoção por Homossexuais, 1.ª Edição, Porto Alegre: Editora Livraria do
Advogado, 2005, p. 59), com base na lição de Lorenzetti e de Gregório Robles: “Esses
direitos, porque supõem um comportamento distinto de uns em relação aos demais
indivíduos, podem ser englobados sob o rótulo de ‘direito a ser diferente’. E ‘quanto
maior é a diferenciação social, maior é a complexidade no terreno das concepções do
mundo e da vida’. Sob essa linha de raciocínio, poder-se-ia afirmar que o
reconhecimento dos direitos dos homossexuais se caracteriza como uma reivindicação
de ingresso na pauta da igualdade mais do que na da diferença, na medida em que
esta reivindicação visa antes ao reconhecimento de um direito de igualdade de
tratamento, pois primeiro os homossexuais pretendem o reconhecimento de serem
considerados como ‘sujeitos de direitos’ para, uma vez tomado assento no discurso
jurídico a partir desse lugar de igualdade, poderem reivindicar o respeito à diferença”.
147 Pelo menos diante da concepção adotada, tendo em vista que ainda não há
consenso em relação às dimensões posteriores à terceira, visto que existe quem
defenda a existência de direitos de quinta dimensão, debate em que não ingressarei,
por fugir aos limites do presente trabalho.
148 MALUF, Adriana Caldas do Rego Freitas Dabus. Direito das famílias. Amor e bioética.
São Paulo: Campus Jurídico, 2012, pp. 18, 41-42, 45, 47-48, 56, 60 e 64. Grifo nosso.
149 O restante da citação é, novamente, de Adriana Caldas do Rego Freitas Dabus Maluf
e não mais de Sérgio Resende de Barros.
150 Cf. voto do Ministro Ayres Britto, p. 14-15 – grifos nossos.
151 ADPF 132 e ADI 4.277, voto do Ministro Gilmar Mendes, p. 29-30.
152 Nesse sentido, a lição de Maria Berenice Dias (A Lei Maria da Penha na Justiça: A
efetividade da Lei 11.340/2006 de combate à violência doméstica e familiar contra a
mulher, 1.a Edição, Porto Alegre: Editora Livraria do Advogado, 2007, p. 35-36): “Como
é assegurada proteção legal a fatos que ocorrem no ambiente doméstico, isso quer
dizer que as uniões de pessoas do mesmo sexo são entidades familiares. Violência
doméstica, como diz o próprio nome, é violência que acontece no seio de uma família.
Assim, a Lei Maria da Penha ampliou o conceito de família alcançando as uniões
homoafetivas. (...)Ao ser afirmado que está sob o abrigo da Lei a mulher, sem
distinguir sua orientação sexual, encontra-se assegurada proteção tanto às lésbicas
como às travestis, as transexuais e os transgêneros do sexo feminino que mantêm
relação íntima de afeto em ambiente familiar ou de convívio. Em todos esses
relacionamentos as situações de violência contra o gênero feminino justificam especial
proteção. (...) agora, a partir da nova definição de entidade familiar, trazida pela Lei
Maria da Penha, não mais cabe questionar a natureza dos vínculos formados por
pessoas do mesmo sexo. Ninguém pode continuar sustentando que, em face da
omissão legislativa, não é possível emprestar-lhes efeitos jurídicos. Há uma nova
regulamentação legislativa da família. No dizer de Roberto Lorea, derruba-se, enfim, a
última barreira – meramente formal – para a democratização do acesso ao casamento
no Brasil: A nova definição legal da família brasileira se harmoniza com o conceito de
casamento ‘entre cônjuges’ do art. 1.511, do Código Civil, não apenas deixando de
fazer qualquer alusão à oposição de sexos, mas explicitando que a
heterossexualidade não é condição para o casamento.
153 Também nesse sentido, a lição de Maria Berenice Dias (Ibidem, p. 38): “O conceito
legal de família trazido pela Lei Maria da Penha insere no sistema jurídico as uniões
homoafetivas. Quer as relações de um homem e uma mulher, quer as formadas por
duas mulheres ou constituídas entre dois homens, todas configuram entidade familiar.
Ainda que a Lei tenha por finalidade proteger a mulher, acabou por cunhar um novo
conceito de família, independente do sexo dos parceiros. Assim, se família é a união
entre duas mulheres, igualmente é família a união entre dois homens. Ainda que eles
não se encontrem ao abrigo da Lei Maria da Penha, para todos os outros fins impõe-se
este reconhecimento. Basta invocar o princípio da igualdade. A entidade familiar
ultrapassa os limites da previsão jurídica para abarcar todo e qualquer agrupamento
de pessoas onde permeie o elemento afeto [Leonardo Barreto Moreira Alves. O
reconhecimento legal do conceito moderno de família..., p. 149].
154 Amor romântico, no caso.
155 Proferida no dia 05.05.2011, essa decisão reconheceu expressamente a união
homoafetiva como família conjugal constitucionalmente protegida em igualdade de
condições com a união estável heteroafetiva.
SEGUNDA PARTE
1. CONSIDERAÇÕES PRELIMINARES
Neste capítulo analisarei os enunciados normativos que regem o
casamento civil sob a luz do princípio da igualdade, enfrentando, assim, a
questão da possibilidade jurídica do casamento civil homoafetivo. Todavia,
para a total compreensão do que aqui se expõe, é fundamental a leitura e
compreensão dos capítulos anteriores (sobre a homossexualidade, a
isonomia e a evolução da concepção da família) – o mesmo devendo ser
observado quanto ao capítulo seguinte.
Em suma: a lei foi omissa no que tange à menção da união entre duas
pessoas do mesmo sexo – não a proibiu, mas ao mesmo tempo não a
regulamentou de forma expressa. Para casos como estes, existem a
interpretação extensiva e a analogia, que visam justamente estender, para
uma situação que possua exatamente o mesmo valor protegido pela norma,
a mesma proteção jurídica conferida à situação enunciada de forma
expressa, não obstante a omissão legal.
Assim, no caso do casamento civil, apesar de o art. 1.514 do CC/2002
não ter deixado expresso que ele é possível a duas pessoas do mesmo sexo,
tal possibilidade jurídica é uma decorrência lógica dos princípios da
igualdade e da interpretação extensiva ou da analogia, uma vez que ditas
técnicas de interpretação jurídica visam garantir que pessoas em situações
idênticas ou idênticas no essencial a outras expressamente
citadas/regulamentadas pelo texto normativo recebam um tratamento
igualitário em relação a estas, em que pese a eventual omissão da norma
jurídica.
Ou seja, as uniões homoafetivas são idênticas às heteroafetivas, tendo
em vista que, em ambos os casos, temos duas pessoas que se amam e que
visam uma comunhão plena de vida e interesses, de forma pública, contínua
e duradoura. Assim, deve ser aplicada a interpretação extensiva ao art.
1.514 do CC/2002 para possibilitar o casamento civil homoafetivo.
Contudo, caso se entenda que ditas uniões não seriam idênticas pelo
simples fato de termos, em um caso, duas pessoas do mesmo sexo e, em
outro, duas pessoas de sexos diversos (o que considero irrelevante, pois a
família forma-se pela união amorosa pública, contínua e duradoura, amor
este presente em ambos os casos), é inequívoco que se trata de duas
situações fundamentalmente idênticas, visto que o elemento formador da
família contemporânea é o citado amor familiar. Adotada essa posição,
deverá ser aplicada a analogia no citado dispositivo legal para possibilitar o
casamento civil homoafetivo.
Dessa forma, verifica-se inexistir no ordenamento jurídico brasileiro
qualquer proibição ao casamento civil homoafetivo, mas apenas uma lacuna
na lei, passível de supressão pela interpretação extensiva ou pela analogia.
A única hipótese em que se poderia proibir legalmente o casamento civil
homoafetivo seria a inserção expressa de tal hipótese entre os taxativos
impedimentos matrimoniais, como fazia o ordenamento jurídico português
até 2010 (quando foi alterado o Código Civil Português para se permitir
expressamente o direito ao casamento civil homoafetivo), muito embora
isso ensejasse uma flagrante inconstitucionalidade por afronta à isonomia,
já que as situações (uniões homoafetiva e heteroafetiva) são idênticas ou, no
mínimo, idênticas no essencial, donde, sendo o casamento civil um direito
de todos, passível de restrição tão somente pelo aspecto material da
isonomia, torna-se evidente que homossexuais têm o direito de se casar com
pessoas do mesmo sexo, dada a arbitrariedade de posição em sentido
contrário58.
Por outro lado, reitere-se que a Lei Maria da Penha reconheceu o status
jurídico-familiar das uniões homoafetivas em seus arts. 2.o e 5.o, parágrafo
único. Com efeito, a partir do momento em que se concebe a formação de
uma família como direito fundamental inerente à pessoa humana, tem-se
que o art. 2.o da Lei Maria da Penha reconheceu expressamente que as
pessoas homossexuais têm o direito de formarem famílias conjugais
homoafetivas e, consequentemente, de terem-nas reconhecidas e protegidas
pelo Direito das Famílias. Ademais, quando o parágrafo único do art. 5.o da
referida lei enunciou que as relações pessoais dispostas no mesmo
independem de orientação sexual, reconheceu expressamente o status
jurídico-familiar das uniões homoafetivas, alçando-as expressamente à
condição de entidades familiares, embora não tenha regulado seus efeitos na
esfera cível.
Com efeito, ao apontar que a família é compreendida como uma
comunidade formada por indivíduos que são ou se consideram aparentados
por vontade expressa (art. 5.o, II), e que as relações pessoais dispostas em
todo esse artigo independem de orientação sexual (art. 5.o, parágrafo único),
a Lei Maria da Penha afirmou que entende por família também a união
homoafetiva – pois, do contrário, as relações pessoais dispostas no inc. II
dependeriam de orientação sexual ou do sexo de um dos companheiros, o
que contraria frontalmente o parágrafo único desse dispositivo legal.
Dessa forma, caracterizando-se as uniões homoafetivas como entidades
familiares, é inafastável o cabimento da interpretação extensiva ou da
analogia como forma de se possibilitar o casamento civil homoafetivo,
tendo em vista que este visa proteger/abarcar justamente as
famílias/entidades familiares.
Nesse sentido, vale reiterar a lição de Maria Berenice Dias59 quando
afirma que “agora, a partir da nova definição de entidade familiar, trazida
pela Lei Maria da Penha, não mais cabe questionar a natureza dos vínculos
formados por pessoas do mesmo sexo. Ninguém pode continuar
sustentando que, em face da omissão legislativa, não é possível emprestar-
lhes efeitos jurídicos. Há uma nova regulamentação legislativa da família.
No dizer de Roberto Lorea, ‘derruba-se, enfim, a última barreira –
meramente formal – para a democratização do acesso ao casamento no
Brasil: A nova definição legal da família brasileira se harmoniza com o
conceito de casamento entre cônjuges do art. 1.511, do Código Civil, não
apenas deixando de fazer qualquer alusão à oposição de sexos, mas
explicitando que a heterossexualidade não é condição para o casamento’”.
Ou, na lição de Roberto Lorea Arriada: “Essa discussão adquire novos
contornos quando a Lei n. 11.340, de 2006 [Lei Maria da Penha], traz uma
nova definição do que seja a família, que passa a ser juridicamente
compreendida como a ‘comunidade formada por indivíduos que são ou se
consideram aparentados, unidos por laços naturais, por afinidade ou por
vontade expressa; independentemente de orientação sexual’ (art. 5.o, inciso
II, e parágrafo único)”, donde afirma com precisão que “a nova definição
legal da família brasileira se harmoniza com o conceito de casamento ‘entre
cônjuges’ do art. 1.511 do Código Civil, não apenas deixando de fazer
qualquer alusão à oposição de sexos, mas explicitando que a
heterossexualidade não é condição para o casamento”, razão pela qual
“derruba-se, enfim, a última barreira – meramente formal – para a
democratização do acesso ao casamento no Brasil”60.
Por todo o exposto, verifica-se a total possibilidade de o casamento
civil homoafetivo nos dias de hoje por meio da interpretação extensiva ou,
no mínimo, da analogia, tendo em vista que o mesmo valor protegido na
união heteroafetiva existe na união homoafetiva, valor este que é o amor
romântico que vise a uma comunhão plena de vida e interesses, de forma
pública, contínua e duradoura, que é o elemento formador da família
contemporânea.
4. ALTERNATIVAMENTE: DA INCONSTITUCIONALIDADE DA
SUPOSTA “PROIBIÇÃO IMPLÍCITA” AO CASAMENTO
CIVIL HOMOAFETIVO
Em que pese todo até o momento discutido, não se ignora que
substancial parcela da doutrina e da jurisprudência entende que haveria uma
“proibição implícita” ao casamento civil homoafetivo, ante a expressão “o
homem e a mulher” constante do art. 1.514 do CC/2002. Apesar de não
concordar em nenhum momento com tal posição, especialmente porque em
Direito não há nulidade sem texto e, consequentemente, não há proibição
sem texto (art. 5.o, II, da CF/88), donde um regime jurídico só pode ser
negado a determinadas pessoas se a lei assim dispuser de maneira expressa,
caso se entenda pela existência de tal “proibição implícita”, mesmo assim o
casamento civil homoafetivo permanece como pedido juridicamente
possível, dada a absoluta inconstitucionalidade de entendimento em sentido
contrário77.
Com efeito, como já amplamente exposto neste trabalho, não há uma
motivação lógico-racional que justifique a concessão de menos direitos às
uniões homoafetivas quando comparados àqueles concedidos às uniões
heteroafetivas, tendo em vista que o mesmo elemento protegido nestas
existe naquelas, qual seja o amor romântico que vise a uma comunhão
plena de vida e interesses, de forma pública, contínua e duradoura, amor
este que é o elemento formador da família contemporânea. Assim, na
ausência de fundamento válido ante a isonomia que justifique a
discriminação jurídica pretendida78, com base no critério diferenciador
erigido79, e mesmo de correlação concreta entre dita discriminação e os
valores constitucionalmente consagrados80, tem-se que a lei do casamento
civil (assim como a da união estável) é flagrantemente inconstitucional por
ofensa ao princípio da isonomia no que tange à suposta restrição de dito
regime jurídico apenas às uniões heteroafetivas. Dessa forma, ante a
ausência de fundamento lógico-racional para a discriminação das uniões
homoafetivas em relação às heteroafetivas e o tratamento jurídico que se
quer impor àquelas (aplicação do Direito das Obrigações e não do Direito
de Família), e mesmo de correlação lógica concreta entre dita discriminação
e os valores constitucionalmente consagrados, tem-se por inconstitucional o
art. 1.514 do Código Civil em virtude da suposta “proibição implícita” do
direito ao casamento civil a homossexuais por ofensa direta ao princípio da
isonomia81.
Assim, não é passível de compreensão o motivo pelo qual ilustres
doutrinadores mantêm um entendimento no sentido da discriminação aqui
combatida, como é o caso de Maria Helena Diniz82, ao afirmar que:
Justificação
(110) Tendo aceito que a necessidade de um grau apropriado de
respeito aos conceitos tradicionais de casamento não constitui, nos
termos da lei, uma barreira para a defesa dos direitos constitucionais
dos casais formados por pessoas do mesmo sexo, uma ulterior questão
surge: houve demonstração da justificação exigida pela seção 36 da
Constituição84 para a violação da igualdade e da dignidade desses
casais? O Estado fez a mera alegação em suas razões escritas que
havia justificação, sem avançar em considerações diferentes daqueles
por ele já referidas em relação à injusta discriminação. O Sr. Smyth,
por outro lado, devotou considerável atenção ao argumento de que
existia justificação para a discriminação mesmo se ela tivesse um duro
impacto nos casais formados por pessoas do mesmo sexo. Seu
argumento central era que o propósito da limitação dos direitos dos
casais formados por pessoas do mesmo sexo era a manutenção do
casamento como um conhecido pilar da sociedade, e para proteger as
crenças religiosas de muitos Sul-Africanos. A Aliança do Casamento
similarmente defendeu que qualquer discriminação à qual casais
formados por pessoas do mesmo sexo estivessem sujeitos era
justificável sob o fundamento de que a exclusão dos casais formados
por pessoas do mesmo sexo do casamento era destinada a proteger e
assegurar a existência e a vitalidade do casamento como uma
importante instituição social. Há consequentemente duas proposições
inter-relacionadas colocadas como justificativas que precisam ser
consideradas. A primeira é que a inclusão de casais formados por
pessoas do mesmo sexo iria abalar instituição do casamento. A
segunda é a de que essa inclusão iria ofender e impor-se sobre fortes
suscetibilidades religiosas de certos setores do público. (111) A
primeira proposição foi enfrentada por pelo Juiz Ackerman em Home
Affairs. Referindo-se à possível justificação relacionada à exclusão de
conviventes do mesmo sexo dos benefícios concedidos aos casais
casados pela lei de imigração, ele afirmou: “Não há interesse no outro
lado que entre no processo de ponderação (para justificação). É
verdade... que a proteção à família e à vida familiar em
relacionamentos convencionais entre cônjuges é um importante
objetivo governamental, mas a extensão para a qual isso poderia ser
feito jamais seria limitada ou afetada se conviventes do mesmo sexo
fossem incluídos de forma apropriada sob a proteção dessa (seção).”
As mesmas considerações se aplicam em relação à permissão de casais
formados por pessoas do mesmo sexo usufruíssem dos benefícios
aliados às responsabilidades que a lei do casamento proporciona aos
casais heterossexuais. Garantir acesso aos casais formados por
pessoas do mesmo sexo não iria de forma alguma atenuar a
capacidade de casais heterossexuais de se casarem na forma que eles
desejarem e de acordo com os dogmas de suas religiões. (112) A
segunda proposição é baseada na assertiva derivada de particulares
crenças religiosas segundo as quais permitir que casais formados por
pessoas do mesmo sexo ingressassem na instituição do casamento iria
desvalorizar aquela instituição. Qualquer que seja a sua origem,
objetivamente falando esse argumento é de fato profundamente
degradante de casais formados por pessoas do mesmo sexo, e
inconsistente com a exigência constitucional que todos sejam tratados
com igual consideração e respeito. (113) Conquanto fortes e sinceras
as crenças subjacentes à segunda proposição possam ser, essas crenças
não podem, por meio do Estado-lei, ser impostas sobre toda a
sociedade e de uma forma que negue os direitos fundamentais àqueles
negativamente afetados. A assertiva expressa ou implícita segundo a
qual trazer os casais formados por pessoas do mesmo sexo sob a
proteção da lei do casamento iria macular aqueles já abrangidos por
esta proteção só pode ser baseada em um prejulgamento, ou
preconceito contra a homossexualidade. Isso é exatamente o que a
seção 9 da Constituição [isonomia] protege contra. Pode até ser que
aquelas pressuposições negativas sobre a homossexualidade ainda
estejam largamente imiscuídos em certos setores da nossa sociedade. A
ubiquidade do preconceito não pode validar sua legitimidade. Como o
Juiz Ngcobo disse em Hoffmann: “O preconceito nunca pode justificar
uma discriminação injusta. Este país emergiu recentemente de um
preconceito institucionalizado. Nossos estudos legais estão repletos de
casos nos quais o preconceito foi levado em consideração na negativa
de direitos que hoje nós consideramos como básicos. Nossa
democracia constitucional entrou em uma nova era – é uma era
caracterizada pelo respeito à dignidade humana por todos os seres
humanos. Nessa era, preconceito e estereotipização não têm vez.
Realmente, se como uma nação nós pretendemos atingir o ideal de
igualdade que nós estampamos na nossa Constituição, nós nunca
deveremos tolerar o preconceito, seja direta ou indiretamente. (...)” Eu
concluo, portanto, que os argumentos ofertados a amparar a
justificação [da proibição do casamento civil homoafetivo] não podem
ser aceitos. (...)
O que faz com que haja oposição à extensão da palavra casamento para
casais homoafetivos decorre da noção de que casais homoafetivos seriam
inferiores/menos dignos do que os casais heteroafetivos, o que denota uma
descabida noção de superioridade de heterossexuais sobre homossexuais,
por força do heterossexismo social. Ou seja, relegar as uniões homoafetivas
a uniões civis configura puro e simples racismo (entendido como toda
ideologia segregacionista que pregue a superioridade/inferioridade de um
grupo relativamente a outro, entendimento este esposado também por
Guilherme de Souza Nucci16, com base em precedente do Supremo
Tribunal Federal (STF, HC 82.424/RS). É o que pensa a jurista
estadunidense Barbara J. Cox17, para quem:
INTERPRETAÇÃO CONFORME A
CONSTITUIÇÃO E UNIÕES HOMOAFETIVAS
O PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE E
OS DIREITOS DOS CASAIS HOMOAFETIVOS
2. DA ADEQUAÇÃO E DA NECESSIDADE DO
RECONHECIMENTO DA POSSIBILIDADE JURÍDICA DO
CASAMENTO CIVIL HOMOAFETIVO PARA O RESGUARDO
DA ISONOMIA E DA DIGNIDADE HUMANA DOS CASAIS
HOMOAFETIVOS
Demonstrou-se acima a absoluta inadequação e desnecessidade do não
reconhecimento do casamento civil homoafetivo para que se atinja o
propagado objetivo que se diz que se visa proteger, a saber, a procriação.
Neste subtópico, por sua vez, restará demonstrado que o reconhecimento do
direito ao casamento civil e à união estável aos casais homoafetivos é
medida adequada e necessária para resguardar a isonomia e a dignidade
humana destes – que é o objetivo deste trabalho.
Em verdade, isso já foi demonstrado nos capítulos anteriores. Ou seja,
no que tange ao princípio da igualdade, considerando que o casamento civil
é o único regime jurídico que confere todos os benefícios do Direito das
Famílias às uniões amorosas, a isonomia só será respeitada, ou seja, os
casais homoafetivos só terão os mesmos direitos conferidos aos casais
heteroafetivos caso seja reconhecido o direito destes ao casamento civil. Da
mesma forma, aqueles pares homoafetivos que não desejem se casar só
terão os mesmos direitos conferidos aos pares heteroafetivos que também
não desejam se casar caso seja reconhecida a sua união estável.
Por outro lado, com relação ao princípio da dignidade da pessoa
humana, considerando o arquétipo social existente em torno do casamento
civil, que faz as pessoas em geral acreditarem que só serão verdadeiramente
felizes ao se casarem, do que decorre que a sociedade em geral considera
que as uniões matrimonializadas se encontram em grau de superior
dignidade do que aquelas não matrimonializadas, a única maneira de não
afrontar a dignidade humana dos casais homoafetivos é pelo
reconhecimento de seu direito ao casamento civil.
Quanto à união estável, é indubitável que o status de “união estável” é
tido como muito mais digno do que o status de “sociedade de fato”
atualmente atribuído às uniões homoafetivas, que recebem o tratamento das
uniões concubinárias. Ora, enquanto a união estável é tratada pelo Direito
das Famílias, a “sociedade de fato” é regida pelo Direito das Obrigações,
justamente porque nesta se desconsidera o fato relevantíssimo de que se
trata de uma união amorosa para considerar o par como uma “sociedade
empresarial de fato”, que precisa ser dissolvida judicialmente para se apurar
o patrimônio de cada um. Assim, a única forma de resguardar a dignidade
humana dos pares homoafetivos que não desejem se casar, garantindo-lhes a
mesma dignidade conferida aos pares heteroafetivos que também não
desejem se casar, é por meio do reconhecimento da união estável
homoafetiva.
Inexiste outra medida apta a gerar tais resultados. Somente o
reconhecimento do casamento civil e da união estável entre casais
homoafetivos é capaz de chegar a tal resultado.
Dessa forma, o reconhecimento da possibilidade jurídica do casamento
civil e da união estável entre pessoas do mesmo sexo revela-se como
medida adequada e necessária para resguardar os direitos materiais
(isonomia) e imateriais (dignidade humana) das uniões homoafetivas, sendo
dito reconhecimento coerente com os subprincípios da adequação e da
necessidade, oriundos do princípio da proporcionalidade.
1 Halpern v. Canadá (Attorney General), 2002, CanLII 42749 (ON S.C.D.C.). Disponível
em: http://www.canlii.org/on/cas/onscdc/2002/2002onscdc10000.html . Acesso em: 20
out. 2006 (tradução livre; sem grifos e destaques no original).
2 Vejamos o trecho integral dessa pertinente fala do relator: “Não se prestando como
fator de merecimento inato ou de intrínseco desmerecimento do ser humano, o
pertencer ao sexo masculino ou então ao sexo feminino é apenas um fato ou
acontecimento que se inscreve nas tramas do imponderável. Do incognoscível. Da
química da própria natureza. Quem sabe, algo que se passa nas secretíssimas
confabulações do óvulo feminino e do espermatozoide masculino que o fecunda, pois
o tema se expõe, em sua facticidade mesma, a todo tipo de especulação metajurídica.
Mas é preciso aduzir, já agora no espaço da cognição jurídica propriamente dita, que a
vedação e o preconceito em razão da compostura masculina ou então feminina das
pessoas também incide quanto à possibilidade do concreto uso da sexualidade de que
eles são necessários portadores. Logo, é tão proibido discriminar as pessoas em razão
da sua espécie masculina ou feminina quanto em função da respectiva preferência
sexual. Numa frase: há um direito constitucional líquido e certo à isonomia entre
homem e mulher: a) de não sofrer discriminação pelo fato em si da contraposta
conformação anátomo-fisiológica; b) de fazer ou deixar de fazer uso da respectiva
sexualidade; c) de, nas situações de uso emparceirado da sexualidade, fazê-lo com
pessoas adultas do mesmo sexo, ou não; quer dizer, assim como não assiste ao
espécime masculino o direito de não ser juridicamente equiparado ao espécime
feminino – tirante suas diferenças biológicas –, também não assiste às pessoas
heteroafetivas o direito de se contrapor à sua equivalência jurídica perante sujeitos
homoafetivos. O que existe é precisamente o contrário: o direito da mulher a
tratamento igualitário com os homens, assim como o direito dos homoafetivos a
tratamento isonômico com os heteroafetivos” (voto do Ministro Ayres Britto, pp. 16-17.
Grifos nossos).
3 Observemos o trecho integral dessa relevante fala do relator, sobre o § 3.º do art. 226
da CF/88: “As diferenças nodulares entre ‘união estável’ e ‘casamento civil’ já são
antecipadas pela própria Constituição, como, por ilustração, a submissão da união
estável à prova dessa estabilidade (que só pode ser um requisito de natureza
temporal), exigência que não é feita para o casamento. Ou quando a Constituição
cuida da forma de dissolução do casamento civil (divórcio), deixando de fazê-lo quanto
à união estável (§ 6.º do art. 226). Mas tanto numa quanto noutra modalidade de
legítima constituição da família, nenhuma referência é feita à interdição, ou à
possibilidade de protagonização por pessoas do mesmo sexo. Desde que
preenchidas, também por evidente, as condições legalmente impostas aos casais
heteroafetivos. Inteligência que se robustece com a proposição de que não se proíbe
nada a ninguém senão em face de um direito ou de proteção de um interesse de
outrem. E já vimos que a contraparte específica ou o focado contraponto jurídico dos
sujeitos homoafetivos só podem ser os indivíduos heteroafetivos, e o fato é que a tais
indivíduos não assiste o direito a não equiparação jurídica com os primeiros. Visto que
sua heteroafetividade em si não os torna superiores em nada. Não os beneficia com a
titularidade exclusiva do direito à constituição de uma família. Aqui, o reino é da
igualdade pura e simples, pois não se pode alegar que os heteroafetivos perdem se os
homoafetivos ganham. E quanto à sociedade como um todo, sua estruturação é de se
dar, já o dissemos, com fincas na fraternidade, no pluralismo e na proibição do
preconceito, conforme os expressos dizeres do preâmbulo da nossa Constituição [e]
do inciso IV do seu art. 3.º” (voto do Ministro Ayres Britto, pp. 30-31. Grifos nossos).
4 Vejamos, de forma integral, essa pertinente fala do Ministro Celso de Mello: “Esta
decisão – que torna efetivo o princípio da igualdade, que assegura respeito à liberdade
pessoal e à autonomia individual, que confere primazia à dignidade da pessoa humana
e que, rompendo paradigmas históricos e culturais, remove obstáculos que, até agora,
inviabilizavam a busca da felicidade por parte de homossexuais vítimas de tratamento
discriminatório – não é nem pode ser qualificada como decisão proferida contra
alguém, da mesma forma que não pode ser considerada um julgamento a favor de
alguns. Com este julgamento, o Brasil dá um passo significativo contra a discriminação
e contra o tratamento excludente que têm marginalizado grupos minoritários em nosso
País, o que torna imperioso acolher novos valores e consagrar uma nova concepção
de Direito fundada em nova visão de mundo, superando os desafios impostos pela
necessidade de mudança de paradigmas, em ordem a viabilizar, como política de
Estado, a instauração e a consolidação de uma ordem jurídica genuinamente
inclusiva” (voto do Ministro Celso de Mello, pp. 13-14. Grifos nossos).
5 Como complemento e fundamento de tal afirmação, o Ministro Fux citou a lição da
espanhola María Martín Sánchez em sua tese de doutoramento (Matrimonio
Homosexual y Constituición. Valencia: Tirant Lo Blanch, 2008, p. 115), para quem
“limitar a liberdade de atuação do indivíduo através do não reconhecimento – como,
até há muito pouco, no caso de contrair matrimônio entre pessoas do mesmo sexo –
ou através de omissão na Lei – neste caso, nas leis que, até há pouco, vinham
disciplinando o casamento – só teria justificação se se argumentasse que dita
limitação ou restrição da liberdade obedece à proteção de algum valor, princípio ou
bem constitucional, de modo que, efetuada uma ponderação de bens em jogo, seria
conveniente estabelecer essa limitação. No entanto, não parece existir nenhum valor,
princípio ou bem constitucional em risco, cuja proteção necessite de tal restrição. A
esse respeito, faz-se preciso, ademais, ter presentes o resto de argumentos e
fundamentos constitucionais já aportados anteriormente, tais como a igualdade e a
proibição de discriminação, e a dignidade da pessoa, para além desse direito genérico
à liberdade individual” (voto do Ministro Luiz Fux, pp. 19-20. Grifos, tradução e fonte do
original).
6 Cf. voto do Ministro Celso de Mello, p. 33.
7 CANOTILHO, José Joaquim Gomes e MOREIRA, Vital. Constituição Portuguesa
Anotada, 1.a Edição Brasileira, 4.a Edição Portuguesa, São Paulo: Editora Revista dos
Tribunais e Coimbra: Coimbra Editora, 2007, vol. I, p. 609. No original: “(...) A liberdade
de religião é a liberdade de adoptar ou não uma religião, de escolher uma determinada
religião, de fazer proselitismo num sentido ou noutro, de não ser prejudicado por
qualquer posição ou atitude religiosa ou antirreligiosa. (...)” (sem grifo no original).
8 “Art. 19. É vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios: (...) III –
criar distinções entre brasileiros ou preferências entre si.”
9 Halpern v. Canadá (Attorney General), 2002, CanLII 42749 (ON S.C.D.C.). Disponível
em: http://www.canlii.org/on/cas/onscdc/2002/2002onscdc10000.html. Acesso em: 20
out. 2006 (tradução livre; grifos nossos).
10 BARROSO, Luís Roberto. Diferentes mas iguais: O reconhecimento jurídico das
relações homoafetivas no brasil, Revista de Direito do Estado, n. 5, p. 167 e ss, 2007.
No original: “Ocorre, porém, que o não reconhecimento das uniões estáveis entre
pessoas do mesmo sexo não promove bem jurídico que mereça proteção em um
ambiente republicano. Ao contrário, atende apenas a uma determinada concepção
moral, que pode até contar com muitos adeptos, mas que não se impõe como
juridicamente vinculante em uma sociedade democrática e pluralista, regida por uma
Constituição que condena toda e qualquer forma de preconceito. Esta seria uma forma
de perfeccionismo ou autoritarismo moral, próprio dos regimes totalitários, que não se
limitam a organizar e promover a convivência pacífica, tendo a pretensão de moldar
indivíduos adequados. Em suma, o que se perde em liberdade não reverte em favor de
qualquer outro princípio constitucionalmente protegido” (sem grifos e destaques no
original).
11 Ibidem, p. 33.
12 Voto do Ministro Ayres Britto, p. 31.
13 Voto do Ministro Luiz Fux, p. 19.
Capítulo 11
1. CONSIDERAÇÕES PRELIMINARES
Na primeira edição desta obra, afirmei que ainda não se podia falar da
existência de um posicionamento do Supremo Tribunal Federal acerca da
possibilidade jurídica do casamento civil, da união estável e da adoção
conjunta por casais homoafetivos pela ausência de manifestação por parte
do órgão pleno de nossa Suprema Corte – se isso continua verdadeiro sobre
casamento civil e sobre adoção conjunta, já não é mais relativamente à
união estável, na medida em que o histórico julgamento da ADPF 132 e da
ADI 4.277, em 05.05.2011, reconheceu a união homoafetiva como entidade
familiar merecedora de igualdade de direitos relativamente à união
heteroafetiva, aplicando-se interpretação conforme à Constituição ao art.
1.723 do CC/2002 para “excluir do dispositivo em causa qualquer
significado que impeça o reconhecimento da união contínua, pública e
duradoura entre pessoas do mesmo sexo como família”; e, como dito
dispositivo legal versa sobre a união estável, então referida interpretação
conforme efetivamente reconheceu a união homoafetiva como união
estável, por interpretação extensiva ou analogia à literalidade normativa.
Ora, se a união estável é o regime jurídico objeto de dito texto normativo e
se a união estável visa regulamentar a família conjugal, então o afastamento
de qualquer significado tendente a excluir o reconhecimento da união
contínua, pública e duradoura entre pessoas do mesmo sexo como família
[conjugal], então é correto concluir que o STF estendeu o regime jurídico
da união estável a casais homoafetivos que atendam os requisitos legais de
continuidade, publicidade, durabilidade e intuito de constituir família
(requisitos estes impostos por dito dispositivo legal para a caracterização da
união estável).
Sobre o casamento civil, temos a manifestação monocrática do
Ministro Ayres Britto no citado julgamento, ao passo que temos
manifestação monocrática do Ministro Marco Aurélio negando seguimento
a recurso extraordinário que impugnava decisão paranaense concessiva de
adoção a casal homoafetivo.
Analisemos, assim, os posicionamentos do STF acerca da
conjugalidade homoafetiva e da adoção por casais homoafetivos.
Duas questões devem ser colocadas, e que devem ser tidas como
inerentemente vinculadas: (i) concordo com essa interpretação teleológica
efetivada pelo TSE; (ii) dita interpretação teleológica deve ser realizada
quanto ao disposto no art. 226, § 3.o, da CF/1988 para, vislumbrando-se que
o elemento formador da família conjugal contemporânea é o amor
romântico que vise a uma comunhão plena de vida e interesses, de forma
pública, contínua e duradoura, estender o regime jurídico da união estável
às uniões homoafetivas por força da interpretação extensiva ou da analogia,
visto que estas são baseadas em dito amor, da mesma forma que as uniões
heteroafetivas. Analisem-se as duas colocações:
Como é basilar em hermenêutica jurídica, a interpretação teleológica
prevalece sobre a puramente literal. Muito embora o enunciado linguístico
constante do texto normativo seja (além do início) o limite da atividade
interpretativa, a partir do momento em que a interpretação de um
dispositivo aponta que sua ratio (finalidade) é uma, mas a sua literalidade
aponta em sentido diverso, a sua finalidade deve ser a respeitada, desde que
não afronte o significado das palavras constantes do enunciado normativo
em questão. Certamente os opositores da união estável homoafetiva
alegarão, com base justamente no que se acabou de expor, que não seria
possível interpretar o art. 226, § 3.o, da CF/1988 de forma a permitir a união
estável homoafetiva por força de este utilizar a expressão “o homem e a
mulher”. Contudo, esse raciocínio é equivocado, na medida em que não se
defende em nenhum momento neste trabalho que a união homoafetiva
estaria abarcada na expressão “o homem e a mulher”, mas que dito
dispositivo constitucional é omisso em relação à união homoafetiva (por
não regulá-la, mas também não proibi-la), donde cabível uma interpretação
extensiva ou uma analogia para estender o regime jurídico da união estável
às uniões homoafetivas por meio de interpretação teleológica de dito
dispositivo constitucional, que sem dúvida leva à conclusão de que sua
finalidade foi consagrar como famílias as uniões pautadas pelo amor
romântico que vise a uma comunhão plena de vida e interesses, de forma
pública, contínua e duradoura.
Isso significa que seria inegavelmente contraditório reconhecer que a
união homoafetiva deveria sofrer as mesmas restrições que sofrem as
uniões heteroafetivas (no âmbito eleitoral ou em qualquer outro), mas não
receber os benefícios garantidos a ditas uniões sob o fundamento de que
inexistiria lei a prevê-los. Ora, a restrição eleitoral imposta às uniões
homoafetivas no REsp 24.564 também não está expressa em lei e mesmo
assim foi reconhecida, por força de interpretação teleológica e,
posteriormente, pela analogia. Dessa forma, deve ser feito o mesmo
procedimento no que tange à união estável: reconhecer que sua ratio é
regulamentar entidades familiares, reconhecer que as uniões homoafetivas
possuem a mesma ratio da entidade familiar exemplificativamente citada no
art. 226, § 3.o, da CF/1988 e, em seguida, estender o regime jurídico da
união estável às uniões homoafetivas pela interpretação extensiva ou pela
analogia.
Ressalte-se que a única solução para aqueles que se apegam
unicamente a uma cega e acrítica literalidade normativa para defender que
inexistiria possibilidade de reconhecimento da união estável homoafetiva
pela mera ausência de previsão normativa expressa a reconhecê-la seria
adotar a fundamentação constante da decisão reformada pelo TSE e
igualmente não reconhecer a inelegibilidade de companheiros homoafetivos
igualmente pela ausência de disposição normativa expressa nesse sentido.
Em outras palavras: dizer que não se reconhece a união estável homoafetiva
pela ausência de lei ou dispositivo constitucional que a consagre, ao mesmo
tempo em que se impõe às uniões homoafetivas restrições que a
Constituição expressamente apôs apenas a casais heteroafetivos, implica
uma inacreditável aplicação de dois pesos e duas medidas a dois
julgamentos idênticos, julgamentos estes consistentes na análise de lacunas
da legislação (constitucional ou infraconstitucional), em postura claramente
arbitrária, por desprovida de uma fundamentação lógico-racional que a
justifique.
Por outro lado, e com todo o respeito que merece o Ministro Carlos
Velloso, afigura-se incoerente a colocação no sentido de que seria
conservador não reconhecer a existência da união homoafetiva no âmbito
do Direito Eleitoral para impor obrigações aos homossexuais ao mesmo
tempo em que não se reconhece o status jurídico-familiar das uniões
homoafetivas. Afinal, afronta a ratio legis a atitude conservadora de não
reconhecer, no âmbito do Direito das Famílias, a existência da união
homoafetiva nos moldes de uma união estável. Afigura-se, ainda,
incoerente considerara união homoafetiva como união estável apenas para
se lhe reconhecer obrigações (como as inelegibilidades), mas não
reconhecê-la como união estável para atribuir-lhe direitos oriundos do
status jurídico-familiar – ou seja, do Direito das Famílias.
Sobre a manifestação do Ministro Gilmar Mendes de que o
ordenamento jurídico brasileiro ainda não admite a comunhão de vidas
entre duas pessoas do mesmo sexo como entidade familiar, sempre defendi
que ela poderia significar ausência de reconhecimento expresso, ou seja,
que ele poderia ter intencionado dizer que a legislação brasileira ainda não
teria disciplinado (expressamente) o tema da união homoafetiva, sem que
isso significasse necessariamente que ele tivesse intencionado dizer que a
união homoafetiva não configuraria entidade familiar. Na verdade, este
julgado sempre foi ambíguo em termos de Direito das Famílias (e talvez
isso tenha sido proposital, já que o foco era Direito Eleitoral e não Direito
Familiar), pois a ementa afirma o regime das inelegibilidades para hipóteses
de casamento civil, união estável e concubinato, equiparando as situações
pelas fortes relações afetivas existentes no casal em qualquer destas
hipóteses para justificar as inelegibilidades em todas elas, a despeito da
omissão normativa, para evitar a formação de oligarquias. Contudo, em
termos de Direito das Famílias, o julgado não afirmou se considerava a
união homoafetiva como entidade familiar ou como equiparável à união
concubinária (antigo concubinato impuro, do atual art. 1.727 do CC/2002),
que não é uma entidade familiar.
Felizmente, o Ministro Gilmar Mendes reconheceu a união
homoafetiva como entidade familiar no julgamento da ADPF 132 e da ADI
4.277, afirmando, sobre a literalidade do art. 226, § 3.º, da CF/1988, que o
fato de a Constituição proteger a união estável entre homem e mulher não
significa uma negativa de proteção à união civil ou estável entre pessoas do
mesmo sexo, donde possível o manejo da analogia para reconhecer a união
homoafetiva como entidade familiar. O tema será desenvolvido adiante,
quando analisarmos esse paradigmático julgado.
Aponte-se, por fim, que minha refutação à suposta existência de um
“silêncio eloquente” no art. 226, § 3.o, da CF/1988 no que tange à união
homoafetiva consta no Anexo 1 desta obra, razão pela qual se reiteram aqui
as colocações ali expendidas.
1. CONSIDERAÇÕES PRELIMINARES
Na primeira edição desta obra, classifiquei este capítulo como “solução
paliativa I”, afirmando que poderiam casais homoafetivos firmar contrato
de união estável com base no art. 424 do CC/02, que permite a elaboração
de contratos atípicos1 (que deixa evidente ser meramente exemplificativo o
rol de contratos constante do Código Civil), em razão do vazio legislativo
acerca da união homoafetiva. O fiz afirmando que era uma forma de
resguardar direitos da união homoafetiva até que esta fosse reconhecida
como entidade familiar e tivesse, assim, a si reconhecidos os direitos
garantidos pelo Direito das Famílias, de sorte a cessar a discriminação
jurídica atentatória aos princípios da isonomia e da dignidade da pessoa
humana a ela imposta. Justifiquei tal tese com base no art. 5.º, II, da CF/88,
que estabelece que ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer algo
senão em virtude de lei, donde afirmei ser permitido que duas pessoas do
mesmo sexo regulem sua vida conjunta por contrato atípico, ante a ausência
de proibição expressa nesse sentido, além de tal pacto ser útil por constituir
uma prova da união amorosa, pública, contínua e duradoura do casal, o que
tornará mais fácil a eventual prova em juízo de que ambos conviveram em
relacionamento afetivo e construíram conjuntamente o patrimônio existente
quando do término da união ou da morte de um deles, como verdadeira
família (conjugal).
Contudo, com a decisão do STF na ADPF 132 e na ADI 4277 e o
consequente reconhecimento da união homoafetiva como união estável ou,
como preferem outros, como entidade familiar com igualdade de direitos à
união estável heteroafetiva, torna-se inegável que um casal homoafetivo
pode firmar um contrato de união estável (que sequer precisa ser
qualificada de homoafetiva, da mesma forma que uma união estável
heteroafetiva não precisa ser assim qualificada no contrato respectivo), seja
por constituir uma união estável ou então por formar uma entidade familiar
autônoma com igualdade de direitos à união estável, o que significa que
podem firmar um contrato garantidor dos mesmos direitos da união estável
heteroafetiva. Não se trata mais de “solução paliativa”, mas de direito
subjetivo de casais homoafetivos terem sua união reconhecida como família
conjugal (entidade familiar), o que lhes concede o direito de firmarem um
contrato de união estável – logo, por um contrato típico de Direito das
Famílias.
1 GOMES, Orlando (“A revisão do direito civil”, 1955, p. 18) apud GIRARDI, Viviane.
Famílias Contemporâneas, Filiação e Afeto. A Possibilidade Jurídica da Adoção por
Homossexuais, 1.ª Edição, Porto Alegre: Editora Livraria do Advogado, 2005, p. 42.
2 Recomenda-se a leitura da obra de Rui Ribeiro Magalhães (Direito de Família no Novo
Código Civil Brasileiro, 2.ª Edição, São Paulo: Editora Juarez de Oliveira, 2003), na
qual o autor aponta para toda a evolução histórica do Direito das Famílias com o
passar dos séculos. Que fique registrado, contudo, que por motivos óbvios discordo do
mesmo quando aponta, como a doutrina em geral, que o casamento civil e a união
estável só poderiam ser contraídos por pessoas de sexos diversos mesmo nos dias
atuais, ante todo o exposto ao longo deste trabalho.
3 “Comprovada a existência de sociedade de fato entre os concubinos, é cabível sua
dissolução judicial, com a partilha do patrimônio adquirido pelo esforço comum.”
4 Cumpre ressaltar que, nesse caso (de ausência de provas da efetiva contribuição da
concubina para a construção do patrimônio do concubino), aplicava-se analogia com o
Direito do Trabalho, pagando-se à concubina uma indenização pelos “serviços
domésticos por ela prestados” ao homem.
5 Cf. voto do Ministro Marco Aurélio, pp. 10-11. Grifos nossos.
6 Cf. voto do Ministro Peluso, pp. 2-3.
7 PELUSO apud JÚNIOR, Nelson Nery e NERY, Rosa Maria Andrade. Código Civil
Comentado e Legislação Extravagante, 3ª Edição, São Paulo: Editora Revista dos
Tribunais, 2005, p. 801 – sem grifos e destaques nossos no original.
8 Cf. Capítulo 11, item “11. Descabimento da Desconsideração do Amor existente na
relação”.
9 In TJ/RS, Apelação Cível n.o 70013801592, 7a Câmara Cível, Relator Desembargador
Luiz Felipe Brasil Santos, julgada em 05/04/2006. Ainda que não se concorde aqui
com o não enquadramento da união homoafetiva no conceito de união estável
(posição esposada no julgado citado), o resultado prático é o mesmo: a concessão dos
mesmos direitos aos casais homoafetivos do que aqueles concedidos às uniões
estáveis heteroafetivas.
10 Apesar de essa terminologia (família “legítima” e “ilegítima”) não mais ser utilizada por
nossa legislação, esse foi claramente o intuito deste dispositivo legal, ou seja, vedar o
reconhecimento do Direito das Famílias às uniões concubinárias.
Capítulo 16
Nesse sentido, como bem dito pelo Ministro João Otávio de Noronha
em seu voto concordante no REsp 889.852/RS, que confirmou decisão
gaúcha concessiva de adoção a um casal homoafetivo: “precisamos parar
com essa falsidade, quiçá hipocrisia, de que elas podem fazer mal aos
meninos. As famílias de pais héteros têm nos dado seguidos exemplos de
maus-tratos às crianças. As periferias nos mostram pais maltratando e
estuprando as próprias filhas. Então, não se pode supor que o fato de as
adotantes serem duas mulheres ou que vivam uma relação homoafetiva
possa causar algum dano. Dano causa a manutenção do menor no abrigo ou
dano causará ao interesse das crianças a não adoção. A adoção melhora, e
muito, as condições de assistência médica e social; isso está positivado no
acórdão recorrido”.
Anote-se, por oportuno, que essa decisão foi confirmada pelo Superior
Tribunal de Justiça, no ano de 2009 – REsp 889.852/RS, DJe de 10.08.2010
(já analisado no capítulo 12).
Assim, verifica-se que não há óbices ao melhor interesse do menor na
sua criação por um casal homoafetivo – tal criação, ao contrário, garante às
crianças e aos adolescentes que se encontram aos cuidados do Estado
Brasileiro o seu pleno desenvolvimento, por meio de sua criação em um
ambiente de amor, respeito e solidariedade, da mesma forma que seriam se
o fossem por um casal heteroafetivo, sem nenhuma diferença nesse sentido.
1 SUANNES (As uniões homossexuais e a Lei 9.278/1996, p. 30) apud DIAS, Maria
Berenice. União Homossexual – o Preconceito & a Justiça, 3.ª Edição, Porto Alegre:
Editora Livraria do Advogado, 2006, p. 116.
2 “Ou seja, a família como unidade política e econômica na qual os filhos cumpriam
papéis predeterminados sob a autoridade paterna servindo à economia familiar como
mão de obra alterou-se para a família atual formada por um grupo de companheirismo
e um lugar de acolhimento e afeto” (FACHIN, Luiz Edson (Elementos críticos do direito
de família..., p. 305-306) apud GIRARDI, Viviane. Famílias Contemporâneas, Filiação
e Afeto: A Possibilidade Jurídica da Adoção por Homossexuais, 1.ª Edição, Porto
Alegre: Editora Livraria do Advogado, 2005, p. 100).
3 Nesse sentido, afirma Viviane Girardi (Famílias Contemporâneas, Filiação e Afeto: A
Possibilidade Jurídica da Adoção por Homossexuais, 1.a Edição, Porto Alegre: Editora
Livraria do Advogado, 2005, p. 92 e 93) que “da interpretação sistemática dos §§ 4.o e
7.o com o caput do art. 226 da Constituição da República Federativa do Brasil,
entende-se ser possível a defesa da existência de um direito de personalidade ligado à
noção de um interesse juridicamente tutelado à paternidade que tem raiz de direito
subjetivo essencial, porque atrelado ao conceito particular de felicidade, compreendido
e derivado do princípio maior da dignidade da pessoa humana”; pois, “uma vez que o
projeto de felicidade de uma pessoa envolva o desejo de tornar-se pai ou mãe
mediante a adoção de uma criança, essa faculdade não pode ser negada somente por
conta da orientação sexual exercida pelo pretenso adotante, na medida em que o
direito à descendência, porque inato ao ser humano, é também tutelado pelo direito
sob o manto de direitos subjetivos essenciais à realização da sua personalidade”.
4 Como alguns fazem com relação aos homossexuais.
5 “Nessa perspectiva de considerar os direitos de família como direitos subjetivos típicos
e por a filiação proporcionar o enriquecimento da personalidade humana é que se
defende o direito subjetivo de os homossexuais realizarem-se como pais, tendo a
possibilidade da adoção de crianças ou adolescentes respeitado os requisitos
instituídos pelo Estatuto da Criança e do Adolescente, Lei 8.069/1990, devendo ser
afastada de qualquer conotação valorativa a orientação sexual do pretendente à
adoção. Pois se é verdade que a paternidade representa o cumprimento de deveres
para com o filho, é verdade que ao cumpri-los não só são satisfeitos os interesses do
filho, mas também o dos pais” (GIRARDI, Viviane. Famílias Contemporâneas, Filiação
e Afeto: A Possibilidade Jurídica da Adoção por Homossexuais, 1.a Edição, Porto
Alegre: Editora Livraria do Advogado, 2005, p. 96).
6 “Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao
adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à
educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à
liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda
forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão. (...)
§ 6.º Os filhos, havidos ou não da relação do casamento, ou por adoção, terão os
mesmos direitos e qualificações, proibidas quaisquer designações discriminatórias
relativas à filiação.”
7 “Art. 19. Toda criança ou adolescente tem direito a ser criado e educado no seio da sua
família e, excepcionalmente, em família substituta, assegurada a convivência familiar e
comunitária, em ambiente livre da presença de pessoas dependentes de substâncias
entorpecentes”. Não há absolutamente nada que proíba a adoção por homossexuais e
casais homoafetivos, como se percebe pela interpretação do ECA como um todo, em
especial pelos arts. 3.o, 4.o, 6.o, 7.o, 15, 16, I a VII, e 17 do mesmo, que não trazem
absolutamente nada que impeça a adoção por homossexuais e casais homoafetivos.
8 Trazendo motivos que justificam essa preferência legislativa pela família consanguínea,
quando apta a exercer a função, afirma a psicanalista e psicóloga forense Fernanda
Otoni de Barros: “[Em uma família consanguínea típica e ideal,] Na verdade, bem
antes de nascermos já fomos imaginados. Já nos compraram roupinhas, já nos
arrumaram um lugar para dormir e um nome. A relação entre os genitores está
organizada pelo simbólico. As circunstâncias que marcam o encontro deste pai e desta
mãe, a história própria deles, formam uma rede que antecede a concepção. (...) A
criança vai debater para poder se encontrar com essa história que a precede, mas
que, no entanto, é sua. Ideal, também, é que a criança permaneça ao longo de seu
desenvolvimento no lar com seus pais, pois ‘O entorno desta criança vai formar sua
base de referências para o alguém que vai ser na vida. Essa base referencial é o
alicerce de seu sistema de valores, de seu olhar para o mundo, de sua racionalidade,
de seu futuro proceder com os demais’” (BARROS, Fernanda Otoni de (Um pai digno
de ser amado, in II Congresso Brasileiro de Direito de Família. Anais, p. 235) apud
GIRARDI, Viviane. Famílias Contemporâneas, Filiação e Afeto: A Possibilidade
Jurídica da Adoção por Homossexuais, 1.ª Edição, Porto Alegre: Editora Livraria do
Advogado, 2005, p. 105).
9 Essas ponderações são inspiradas nas lições de Viviane Girardi, Paulo Luiz Netto Lôbo
e Fernanda Otoni de Barros. Assim, por uma questão de honestidade intelectual,
seguem as lições originais: “Basicamente, a partir do momento em que a família passa
a ser constituída pelo núcleo pais e filhos é que a energia familiar se direciona para a
criança e suas necessidades essenciais, bem como para a educação com a carreira e
o futuro dos filhos. A proximidade leva à afetividade, o que só faz confirmar a tese
jurídica contemporânea da supremacia da paternidade socioafetiva, sobre a
meramente biológica quando se trata da formação do elo paterno-materno-filial, pois a
paternidade/maternidade e, consequentemente, a filiação, ‘não é um dado, e sim um
construído’, na medida em que é estruturada e engrandecida pelos cuidados e trocas
ministrados na intimidade dos contatos do cotidiano e não por uma determinação
puramente genética [Viviane Girardi]. Impõe-se a distinção entre origem biológica e
paternidade/maternidade. Em outros termos, a filiação não é um determinismo
biológico, ainda que seja da natureza humana o impulso à procriação. Na maioria dos
casos, a filiação deriva da relação biológica; todavia, ela emerge da construção cultural
e afetiva permanente, que se faz na convivência e na responsabilidade. (...) O afeto
não é fruto da biologia. Os laços de afeto e de solidariedade derivam da convivência e
não do sangue [Paulo Luiz Netto Lôbo]. Nossa experiência ordinária basta para nos
mostrar que a biologia não dá uma resposta suficiente. O pai não é aquele que apenas
deu uma célula germinal de 70 milésimos de milímetros e a mãe não é nem um ventre
nem a Virgem Santíssima. A biologia pode responder sobre a maternidade e a
paternidade como a relação dos animais, mas para o homem, que é um ser de
linguagem, a história é bem outra e bem mais complexa. [Fernanda Otoni de Barros]
(ibidem, p. 106-107 – sem grifos no original).
10 No sentido da absoluta incapacidade dos orfanatos estatais de garantirem o pleno
desenvolvimento da criança e do adolescente, são esclarecedoras as palavras de
Maria Teresa Maldonado e do psicólogo junguiano Adolf Genbül-Craig: “(...) bebês
criados em orfanatos em geral recebem estimulação deficiente em termos de contato
humano; muitas pessoas cuidam dos nenês de modo impessoal, não falam nem
brincam com eles e os alimentam mecanicamente. A imensa maioria dos bebês
criados nessas condições cresce com problemas emocionais graves em geral
caracterizados por uma recusa ao contato com pessoas, completa apatia e
incapacidade de formar vínculos afetivos. Tratar o bebê com amor, e carinho,
aconchegá-lo, sorrir para ele, brincar e oferecer-lhe brinquedos apropriados é
essencial para um desenvolvimento saudável” [MALDONADO, Maria Tereza (Como
cuidar de bebês e crianças pequenas, 3.ª Edição, 1996, p. 64), apud GIRARDI, op. cit.,
p. 108]. “O relacionamento envolve sempre algo de criativo. Ao empregar a palavra
‘criativo’, quero dizer o seguinte: a psique humana está sempre cheia de novas
possibilidades. Ela se cria sempre, por assim dizer, e é permanentemente recriada. O
potencial psíquico de um indivíduo é obviamente limitado, mas altamente diversificado
e multifacetado. Não é nada criativo ou propício ao relacionamento encontrar alguém e
vê-lo como uma foto instantânea ou uma imagem fixa. Encontrar uma pessoa de modo
criativo significa tecer fantasias em redor dela e circundar seu potencial. Surgem,
então, várias imagens sobre a pessoa e o relacionamento potencial. Em geral, essas
fantasias criativas estão bem longe da assim-chamada realidade; são tão irreais, ou
tão verdadeiras, como contos de fada e mitos. (...) Mesmo se não expressas, as
fantasias também influenciam a outra pessoa, despertando nela suas potencialidades.
(...) as fantasias criativas que descrevi se relacionam à natureza da outra pessoa e
representam, de forma simbólico-mitológica, seu potencial de vida. (...) Certas
fantasias dos pais talvez sirvam de exemplo. Frequentemente os pais se permitem,
consciente ou semiconscientemente, fantasiar o futuro de seus filhos (...). Muitas
vezes, porém, essas fantasias derivam de uma visão basicamente correta,
representando uma figuração criativa de um potencial latente. (...) Estas fantasias
criativas, ou circum-ambulação imaginativa do parceiro, são da maior importância em
qualquer relacionamento humano. (...) Todo mundo tem necessidade de fantasiar
sobre si mesmo, de circundar e despertar seu próprio potencial de forma mitológica ou
como num conto de fada. Uma das tragédias da vida de crianças de orfanato é que
ninguém tece tais fantasias em torno delas, de modo que quase nunca seu potencial é
despertado. Essas crianças poderão tornar-se adultos bem comportados, mas
psiquicamente só estão vivas pela metade” [GENBÜL-GRAIG, Adolf (O abuso do
poder na psicoterapia – e na medicina, serviço social, sacerdócio e magistério. Trad.
Roberto Gambini, 1978, p. 54-56) apud GIRARDI, op. cit., p. 108-109].
11 Em comentário ao referido dispositivo legal, afirma Viviane Girardi que: “Essa
prescrição deriva, em grande parte, da concepção internacional que se tem sobre as
necessidades fundamentais para o bom e pleno desenvolvimento da criança e do
adolescente. Ou seja, busca-se assegurar como um direito os cuidados e
necessidades inatas ao crescimento físico e socioafetivo de uma criança, que é o
direito de nascer numa família, nela ocupar o espaço de filho e nela ser mantido em
harmoniosa convivência com seus pais até a idade de sua independência moral e
material” (ibidem, p. 106).
12 Essa pseudotese, que não possui nenhum embasamento científico-probatório que a
sustente, pode ser ilustrada pelo que disse Claudio Pérsio Carvalho Leite, em palestra
proferida perante a Comissão Especial sobre a União Civil Livre na Câmara dos
Deputados, em 20.08.1996: “(...) Deve-se salientar que, nesses exemplos, a presença
do pai e da mãe são presenças inquestionáveis, em todos os estágios do crescimento
psicobiológico dos filhos, o que se traduz em linha direta para a inquestionabilidade da
importância das presenças do homem e da mulher, bem definidos na constituição
individual de seus filhos. Em um casal homossexual, sempre estará faltando um dos
dois elementos. No casal homossexual masculino, além da flagrante ausência da mãe-
mulher, faltará, também, a imagem bem definida do homem-pai, começando pelo fato
de aqueles dois companheiros que falam em parceria são dois iguais. Faltando a
mulher, faltará com ela a referência que remeterá a criança a distinguir as diferenças
da figura masculina. Além do que a criança estará sendo criada por duas pessoas que
não desejam, no sentido erótico, sexual e amoroso, a mulher. Já no casal
homossexual feminino, é flagrante a falta do pai ou do homem e também da mulher;
da mulher-mulher, bem definida. Em ambos os quadros tem-se o que se chamaria
didaticamente de uma orfandade dupla de supostos pais ou mães vivos. (...)” (LEITE
apud BRANDÃO, Débora Vanessa Caús. Parcerias Homossexuais: Aspectos
Jurídicos, 1.ª Edição, São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002, p. 94, em nota
de rodapé).
13 Nesse sentido, são esclarecedoras as observações de Lídia Natália Dobrianskyj
Weber, ao citar estudos psicológicos sobre o tema: “Ricketts & Achternberg (1989)
realizaram um estudo com vários casos individuais de adoções por homens e
mulheres homossexuais e afirmaram que a saúde mental e a felicidade individual
estão na dinâmica de determinada família e não na maneira como a família é definida.
Eles afirmaram, portanto, que não importa se a família conta com um pai e uma mãe
ou somente com um deles; o mais importante é como essa família vive. McIntyre
(1994) faz uma análise de pais e mães homossexuais e os sistemas legais de
custódia. Este autor afirma que a pesquisa sobre crianças serem criadas por pais
homossexuais documenta que pais do mesmo sexo são tão afetivos quanto casais
tradicionais. Patterson (1997) escreveu um artigo sobre relações de pais e mães
homossexuais e analisou as evidências da influência na identidade sexual,
desenvolvimento pessoal e relacionamento social em crianças adotadas. A autora
examinou o ajustamento de crianças de 4 a 9 anos de idade criadas por mães
homossexuais (mães biológicas e adotivas) e os resultados mostram que tanto os
níveis de ajustamento maternal quanto a autoestima, desenvolvimento social e pessoal
das crianças são compatíveis com crianças criadas por um casal tradicional. Samuels
(1990) destaca que, mais importante que a orientação sexual dos pais adotivos, o
aspecto principal é a habilidade dos pais em proporcionar para a criança um ambiente
carinhoso, educativo e estável” (WEBER, Lídia Natália Dobrianskyj. Pais e filhos por
adoção no Brasil: características, expectativas e sentimentos..., p. 80-81) apud
GIRARDI, Viviane. Famílias Contemporâneas, Filiação e Afeto: A Possibilidade
Jurídica da Adoção por Homossexuais, 1.ª Edição, Porto Alegre: Editora Livraria do
Advogado, 2005, p. 82 – sem grifos no original).
14 A Homossexualidade no Direito, 1.ª Edição, Porto Alegre: Editora Livraria do
Advogado, 2001, p. 141 a 143. Este livro é fonte inclusive dos estudos citados, que
foram transcritos de notas de rodapé do original (sem grifos e destaques no original).
15 “Art. 1.618. Só a pessoa maior de 18 (dezoito) anos pode adotar. Parágrafo único. A
adoção por ambos os cônjuges ou companheiros poderá ser formalizada, desde que
um deles tenha completado 18 (dezoito) anos de idade, comprovada a estabilidade da
família.”
16 “O peso dos reais benefícios ao adotando não se encontra na sexualidade dos
conviventes candidatos, mas no desejo verdadeiro de se dedicarem, com amor, à
maternidade/paternidade. (...) Fundamental, pois, é que as pessoas em
desenvolvimento sejam educadas por pais/mães, de fato, preparados(as) e
motivados(as) para a paternidade/maternidade. (...) As condições que os futuros pais
oferecerão, para o melhor desenvolvimento dos menores, é que deverão pesar na
decisão” (JÚNIOR, Enézio de Deus Silva. A Possibilidade Jurídica da Adoção por
Casais Homossexuais, 2.a Edição, 2.a Tiragem, Curitiba: Editora Juruá, 2007, p. 124,
127 e 137).
17 Nesse sentido, a posição de Viviane Girardi: “A questão do exercício de faculdade à
paternidade por homossexuais, salvo raras exceções, é quase sempre posta de forma
maniqueísta, na base do tudo ou nada: ou é homossexual ou é pai, pois esses atores
não podem [para os que assim colocam] coexistir numa mesma pessoa. Revela-se
dessa forma o discriminem em relação à orientação sexual, já que todos os demais
atributos do pai ou da mãe normalmente são totalmente desconsiderados, fixando-se a
(des)qualificação da paternidade única e exclusivamente na orientação sexual,
dispensando-se todo o potencial humano e os demais atributos afetivos que esta
pessoa – pai ou mãe – poderia dar a uma criança, daí o traço e a presença do
preconceito e do estigma maior da homossexualidade” (GIRARDI, Viviane. Famílias
Contemporâneas, Filiação e Afeto: A Possibilidade Jurídica da Adoção por
Homossexuais, 1.ª Edição, Porto Alegre: Editora Livraria do Advogado, 2005, p. 89 –
sem grifo no original).
18 Ibidem, p. 89 (sem grifos e destaques no original).
19 Costumam citar, por exemplo, o art. 29 do ECA, que afirma que “não se deferirá
colocação em família substituta a pessoa que revele, por qualquer modo,
incompatibilidade com a natureza da medida ou não ofereça ambiente familiar
adequado”, e mesmo o art. 43, que determina que a adoção deverá trazer reais
vantagens ao adotando, em um posicionamento inegavelmente preconceituoso, ante a
ausência de provas e mesmo de lógica e racionalidade da argumentação no sentido
de que a criação de uma criança ou um adolescente por um casal homoafetivo lhe
traria prejuízos.
20 Em tradução simples: “A Ausência de Diferenças entre Pais Gays/Lésbicas e
Heterossexuais: Uma Retrospectiva da Literatura”. O estudo foi localizado, em inglês,
na internet, e está disponível em: http://www.ibiblio.org/gaylaw/issue6/Mcneill.htm.
Acesso em: 30 abr. 2008.
21 A saber (seguindo a ordem ali apresentada): (i) sobre casais homoafetivos formados
por lésbicas: Strong & Schinfeld – 1984, Harris & Turner – 1986, Shavelson, Biaggio,
Cross, & Lehman – 1980, Pagelow – 1980, Kweskin & Cook – 1982, Green, Mandel,
Hotvedt, Gray, & Smith – 1986, Peters & Cantrell – 1991, Patterson – 1995a, McNeill,
Rienzi, & Kposowa – 1998; (ii) sobre casais homoafetivos formados por gays: Miller –
1979, Mallen – 1983, Skeen & Robinson – 1984, Bigner & Jacobsen – 1989a, Bigner &
Jacobsen – 1989b, Bigner & Jacobsen – 1992, Crosbie-Burnett & Helmbrect – 1993,
Bailey, Bobrow, Wolfe, & Mikach – 1995; (iii) sobre desenvolvimento de crianças de
pais homossexuais e heterossexuais: Weeks, Derdeyn, & Langman – 1975, Miller –
1979, Kirkpatrick, Smith, & Roy – 1981, Hoeffer – 1981, Miller, Jacobsen, & Bigner –
1982, Golombok, Spencer, & Rutter – 1983, Harris & Turner – 1986, Pennington –
1987, Bozett – 1988, Huggins – 1989, Bailey, Bobrow, Wolfe, & Mikach – 1995, Flaks,
Ficher, Masterpasqua, & Joseph – 1995, Patterson – 1995c, Tasker & Golombok –
1995, Patterson & Mason, Chan, Raboy, & Patterson. Todos eles concluíram pela
ausência de diferenças nas pessoas criadas por casais homoafetivos em relação
àquelas criadas por casais heteroafetivos por conta unicamente do fato de terem sido
criadas por um casal homoafetivo.
22 Cf. GIRARDI, Viviane. Familias Contemporáneas, Filiação e Afeto: A Possibilidade
Jurídica da Adoção por Homossexuais, 1.a Edição, Porto Alegre: Editora Livraria do
Advogado, 2005, p. 143 (sem grifos no original).
23 Nesse sentido, tem-se como clara e correta a exposição de Roger Raupp Rios: “O
debate, nesse passo, põe em questão, claramente, as pré-compreensões vigentes
acerca da homossexualidade enquanto fenômeno da vida humana concreta. Pisamos,
portanto, no terreno dos conceitos e preconceitos que influem na solução da aludida
colisão de princípios. Nesta tarefa, o intérprete deve utilizar-se do atual estágio do
desenvolvimento científico a respeito da homossexualidade, investigando se suas
conclusões dão guarida à ideia de que a homossexualidade seria um dado que, em si
mesmo, justificaria a opinião negativa sobre a adoção. (...) Exposto o estágio atual do
debate científico a respeito da homossexualidade, não há como justificar vedação, em
princípio, da adoção de crianças por homossexuais. Isto porque, enquanto modalidade
de orientação sexual, não se reveste de caracteres de doença, morbidez, desvio ou
anormalidade em si mesma, não autorizando, portanto, a sustentação de uma ’regra
geral’ impeditiva da adoção. Neste momento, gize-se que a ausência de
fundamentação racional não pode ser substituída, numa sociedade democrática e
plural, pelo subjetivismo de quem quer que seja, juiz, assistente social, médico ou
psicólogo, dentre outros. Isto seria destruir a democracia, anular as diferenças
individuais e instituir o arbítrio de uns (mesmo que eventualmente majoritários) em
face dos demais. Ao contrário, o princípio da igualdade exige que homossexuais e
heterossexuais tenham avaliadas, objetivamente, as condições que oferecem para
propiciar o melhor desenvolvimento possível para a personalidade da criança; para
tanto, como visto, não se pode considerar, por si só nem isoladamente, a orientação
sexual do adotante. Conclui-se, portanto, que a proibição de adoção fundada
exclusivamente na homossexualidade revela ausência de fundamentação racional
suficiente para a imposição de um critério discriminatório, proceder que afronta,
gravemente, o princípio constitucional da igualdade” (RIOS, Roger Raupp. A
Homossexualidade no Direito, 1.ª Edição, Porto Alegre: Editora Livraria do Advogado,
2001, p. 133, 139-140 – sem grifos no original).
24 “No estágio atual das normas jurídicas que disciplinam o instituto da adoção no Brasil,
tem-se a possibilidade de ser conferida a adoção de uma criança ou adolescente a
um(a) adotante solteiro que seja homossexual na medida em que o sistema legal não
determina, expressamente, que a opção sexual do(s) adotante seja um requisito para
a adoção” (GIRARDI, Viviane. Famílias Contemporâneas, Filiação e Afeto: A
Possibilidade Jurídica da Adoção por Homossexuais, 1.a Edição, Porto Alegre: Editora
Livraria do Advogado, 2005, p. 130). Aponte-se, apenas, a impropriedade técnica de
se referir à orientação sexual como “opção”, o que é um equívoco (que, todavia, não
altera o acerto da conclusão quanto à possibilidade jurídica da adoção por
homossexuais).
25 “Quanto à possibilidade de adoção conjunta por um casal homossexual, entende-se
ser esta possível aos olhos da lei, mediante a utilização de mecanismos jurídicos de
interpretação somados ao contexto legal que estabelece a pluralidade das formas de
organização familiar. (...) Os diplomas legais representados pela Constituição Federal
de 1988, o Código Civil e o Estatuto da Criança e do Adolescente, tidos estes como
fontes formais do direito, considerados sob o enfoque de uma interpretação integrada
que lança mão das técnicas de interpretação teleológica lógico-sistematizada,
somados ao entendimento expresso pelos precedentes jurisprudenciais, estes também
considerados fontes formadoras do direito, ainda que o sejam de forma subsidiária,
configuram-se como um instrumento normativo apto a possibilitar a concessão legal
das adoções de crianças e adolescentes também aos pares homossexuais”,
reconhecidos como entidades familiares na medida em que “se, para o direito, a
família é instrumento de realização da pessoa humana por considerar que toda e
qualquer pessoa necessidade de relações de cunho afetivo para se desenvolver e
viver seu projeto próprio de felicidade e, porque para outras áreas do conhecimento, a
família não se estabelece somente pelas formas convencionais de união, parece ficar
evidente a possibilidade de reconhecimento do status jurídico e de família às demais
formas de organização familiar, entre as quais a união entre pessoas do mesmo sexo”,
pois “as demais características das entidades familiares, além da presença da
afetividade, são a estabilidade e a ostensibilidade da união, igualmente encontradas
nas uniões homossexuais” (GIRARDI, Viviane. Famílias Contemporâneas, Filiação e
Afeto: A Possibilidade Jurídica da Adoção por Homossexuais, 1.a Edição, Porto Alegre:
Editora Livraria do Advogado, 2005, p. 130, 133 e 138).
26 “Entende-se que a não concessão da adoção conjunta aos homossexuais pode,
muitas vezes, interferir nos melhores interesses da criança, pois a realidade social
aponta para formação de um vínculo entre o adotando e o parceiro do adotante. Mas
tais situações reais não encontram proteção jurídica que assegure a manutenção ou
reflexos jurídicos oriundos desse vínculo afetivo formado pelo companheiro do
adotante, em que pese a constatação na maioria dos casos, analisados de vínculos
emocionais fortes estabelecidos entre a criança e companheiro(a) do pai ou mãe
adotante. Vínculos afetivos estes que possuem a mesma natureza dos vínculos
emocionais das relações entre pais e filhos heterossexuais” (GIRARDI, Viviane.
Famílias Contemporâneas, Filiação e Afeto: A Possibilidade Jurídica da Adoção por
Homossexuais, 1.a Edição, Porto Alegre: Editora Livraria do Advogado, 2005, p. 148).
No mesmo sentido, Enézio de Deus Silva Júnior (A Possibilidade Jurídica da Adoção
por Casais Homossexuais, 2.a Edição, 2.a Tiragem, Curitiba: Editora Juruá, 2007, p.
130): “Ante o poder-dever de despachar ou sentenciar, mesmo não havendo lei federal
que regule a convivência homoessencial no Brasil, os juízes têm se utilizado da
analogia, como forma de integração desta lacuna, partindo de uma interpretação
teleológica”.
27 Utilizarei apenas o gênero masculino para me referir ao ascendente adotivo do menor
em questão e seu ex-companheiro. Mas é evidente que o quanto dito nesta parte
equivale da mesma forma para casais homoafetivos formados por mulheres.
28 Isso porque o deferimento da adoção apenas a um membro do casal “retiraria da
criança, também, o direito de vir pleitear alimentos do consorte de seu pai ou mãe no
caso de necessitar deles, na hipótese de ser o companheiro do(a) adotante o
mantenedor econômico da família, ou de algumas despesas específicas da
criança/adolescente, como, por exemplo, os custos com educação. No que diz respeito
à ruptura ou dissolução da união existente entre o(a) adotante e seu companheiro(a),
poderia este último vir a reivindicar o direito de contato e convivência com a criança,
entretanto, num primeiro momento, esbarraria na ausência completa de base legal e
vínculo familiar a permitir-lhe que um juízo ou tribunal assegurasse tal direito”
(GIRARDI, Viviane. Famílias Contemporâneas, Filiação e Afeto: A Possibilidade
Jurídica da Adoção por Homossexuais, 1.a Edição, Porto Alegre: Editora Livraria do
Advogado, 2005, p. 149).
29 “(...) a guarda judicial e a tutela, apesar de serem institutos jurídicos que visem a
tutelar o bem-estar da criança, além de não estabelecerem vínculos jurídicos
permanentes e indissolúveis entre o guardião/tutor e a criança, deixam de abrigar
alguns direitos próprios do estatuto da filiação, como são os recíprocos direitos de
sucessão e de alimentos. No que diz respeito à ruptura ou dissolução da união
existente entre o(a) adotante e seu companheiro(a), poderia este último vir a
reivindicar o direito de contato e convivência com a criança, entretanto, num primeiro
momento, esbarraria na ausência completa de base legal e vínculo familiar a permitir-
lhe que um juízo ou tribunal assegurasse tal direito” (GIRARDI, Viviane. Famílias
Contemporâneas, Filiação e Afeto: A Possibilidade Jurídica da Adoção por
Homossexuais, 1.a Edição, Porto Alegre: Editora Livraria do Advogado, 2005, p. 149).
30 “A sociedade brasileira atual, assim como a maioria das demais, também é integrada
por famílias biparentais homoafetivas, que educam crianças e adolescentes de modo
informal ou à margem da aparente legalidade. Isso porque, apesar de o ordenamento
pátrio não vedar o pedido de adoção formulado, conjuntamente, por dois
homossexuais, os preconceitos, a limitação em não se considerar – mesmo
analogicamente – a união homoessencial como estável, assim como interpretações
literais de expressões normativas, que não distinguem quanto à orientação sexual
(‘cônjuges’ e ‘concubinos’, por exemplo) têm gerado o indeferimento do referido
pedido, impulsionando, via de consequência, o casal a decidir que somente um dos
companheiros adotará formalmente. (...) Neste particular, a hipocrisia ou incoerência
maior reside em que, sendo educado amorosamente pelos parceiros(as)
socioafetivos(as), o menor considerará ambos como seus pais/mães, sendo só um
desses o(a) considerado(a) como tal. Destarte, além de serem preconceituosos e
inúteis os argumentos de que adoção pelo casal homossexual é prejudicial ao menor –
em respectivo, por não se sustentarem cientificamente, nem impedirem que o par
eduque socialmente e em conjunto –, tais discursos subtraem da criança e do
adolescente adotado ‘a possibilidade de usufruir direitos que, de fato, possui –
limitação que afronta a própria finalidade protetiva (...) decantada na Carta
Constitucional e perseguida pela lei especial’ [DIAS, p. 114]” (JÚNIOR, Enézio de Deus
Silva. A Possibilidade Jurídica de Adoção por Casais Homossexuais, 2.a Edição, 2.a
Tiragem, Curitiba: Editora Juruá, 2007, p. 122-123).
31 “Entre um lar material e afetivamente bem estruturado e a realidade excludente de um
país concentrador de renda e de graves desrespeitos aos direitos humanos (como
ainda é o Brasil), aponta o bom-senso para a relevância de inserir um menor em um
seio familiar (independente de para que sexo se dirige a afetividade dos adotantes) –
em detrimento de deixá-lo despersonalizado (sem referencial afetivo de
maternidade/paternidade) em uma instituição de amparo à criança e ao adolescente.
(...) Tal inserção, entretanto, se for dificultada por óbices preconceituosos, priva os
menores abandonados do seu direito constitucional à convivência familiar (CF, art.
227, caput), expondo-os mais à negligência, violência, discriminação, exploração,
crueldade e opressão sociais, das quais devem estar a salvo. Sendo ‘dever da família,
da sociedade e do Estado assegurar à criança, com absoluta prioridade, o direito à
vida, à saúde, à alimentação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao
respeito, à liberdade’ e, se a colocação em uma família biparental homoafetiva estável
pode proporcionar a concretização de tais direitos, no processo de desenvolvimento do
adotando, o indeferimento do pedido de adoção, sob esta interpretação constitucional,
constitui infração a um dos direitos fundamentais da criança e do adolescente
assegurados no ordenamento positivo. Na realidade, os riscos de insucesso na
dinâmica familiar, com dois pais ou duas mães socioafetivas, são os mesmos com
relação ao casal de sexos diversos, pois o desequilíbrio emocional e quaisquer
defeitos de caráter, que possam comprometer o bem-estar do menor, independem da
orientação afetiva dos genitores (...). Assim, o deferimento da adoção a duas pessoas
que se amam e que, juntas, desejam se dedicar à educação de um menor vem-lhe
[afrontar] ao menor interesse” (JÚNIOR, Enézio de Deus Silva. A Possibilidade
Jurídica da Adoção por Casais Homossexuais, 2.a Edição, 2.a Tiragem, Curitiba:
Editora Juruá, 2007, p. 125-126 – sem grifo no original).
32 Com fundamentos diversos, é a mesma conclusão de Enézio de Deus Silva Júnior (A
Possibilidade Jurídica da Adoção por Casais Homossexuais, 2.a Edição, 2.a Tiragem,
Curitiba: Editora Juruá, 2007, p. 125-126), para quem “(...) a própria experiência dos
pais homossexuais, que educam crianças, demonstra a dosagem de amor e o diálogo
franco sobre a afetividade como os elementos preponderantes, para o enfrentamento
de incidentes discriminatórios (tão presentes nas suas próprias histórias de vida).
Neste sentido, ‘os especialistas aconselham que, vivendo ou não ao lado dos filhos,
pais e mães falem abertamente de sua orientação sexual – sem entrar em minúcias, é
claro, assim como os heterossexuais (...). Quanto mais cedo a criança souber, mais
fácil será para ela assimilar a notícia e encarar as manifestações preconceituosas”
(BUCHALLA, 2001, p. 68). Não inserir um menor abandonado em uma família
homoafetiva é injustificável, sob o insustentável argumento da discriminação que pode
sofrer na sociedade, porque, apesar de essa ainda se mostrar um tanto intolerante
para com a homossexualidade, tudo dependerá da maneira como os pais educarão os
seus filhos. Além da importância de acompanhamento psicológico, caso seja
necessário, é importante a reflexão comparativa de que, mesmo sem compreensão em
casa – na maioria dos casos, por conta dos preconceitos – e em dificuldades no
âmbito da discriminação externa, filhos homossexuais de famílias convencionais nem
por isso deixam de se inserir socialmente ou abrem mão da convivência familiar. É
evidente que o peso da discriminação é bem maior nesta circunstância, mas o preparo
emocional, em todas essas possibilidades de conformação sociofamiliar, é que conta
para uma vida digna, que se impõe com respeito na sociedade, mesmo atrasada por
prejulgamentos” (sem grifos no original).
33 E pelo próprio Direito, que lhe concede menos direitos do que aqueles concedidos aos
cônjuges.
34 Item 122 da decisão. Tradução livre.
35 Item 119 da decisão. Tradução livre. Grifos nossos.
36 TJ/RS, Apelação Cível 70013801592, 7.a Câmara Cível, Relator Desembargador Luís
Felipe Brasil Santos, julgada em 05.04.2006 – sem destaque no original.
37 Ementa: Adoção – Pedido efetuado por pessoa [homossexual] solteira com a
concordância da mãe natural – Possibilidade – Hipótese onde os relatórios social e
psicológico comprovam condições morais e materiais da requerente – Circunstância
[homossexualidade] que, por si só, não impede a adoção que, no caso presente,
constitui medida que atende aos superiores interesses da criança, que já se encontra
sob os cuidados da adotante há mais de 3 (três) anos – Recurso não provido. (Tribunal
de Justiça do Estado de São Paulo, Apelação Cível n. 51.111-0/5-00, Câmara
Especial, Relator Desembargador Oetterer Guedes com a participação dos Des.
Djalma Lofrano e Yussef Cahali, votação unânime. Julgamento realizado em
11/11/1999) (...) Não procede o inconformismo externado pelo digno Promotor de
Justiça, que, a despeito das conclusões favoráveis dos relatórios social e psicológico,
pede o indeferimento do pedido de adoção formulado somente em virtude da
homossexualidade da requerente. (...) Conforme bem ressaltou a lúcida Procuradora
de Justiça oficiante, referindo-se à instrução do feito, as pessoas ouvidas discorreram
sobre a relação entre a menina e a apelada e entre esta e sua companheira em
extensos depoimentos, dos quais depreende-se que: a relação entre a menina e a
requerente é de mãe e filha, com o reconhecimento desses papéis (inclusive uma das
testemunhas é psicóloga), a requerente tem conduta ilibada, tem seu próprio trabalho
e casa e é bem vista pela comunidade onde reside e trabalha (...). Conclui,
corretamente, que a opção sexual [sic] da requerente, que no caso presente não
interfere na educação a ser ministrada à criança, não pode servir para, isoladamente,
afastar a possibilidade da adoção. Entendimento diverso poderá ser considerado
discriminatório” (GIRARDI, Viviane. Famílias Contemporâneas, Filiação e Afeto: A
Possibilidade Jurídica da Adoção por Homossexuais, 1.ª Edição, Porto Alegre: Editora
Livraria do Advogado, 2005, p. 82 – sem grifos no original).
38 Acrescento, apenas, que é evidente, por outro lado, que, se os laudos em questão
forem pautados em subjetivismos e/ou preconceitos dos técnicos em questão, deverá
o magistrado deixar de aplicá-los, pautando-se pela compreensão da ciência médica
mundial a respeito.
39 Parafraseei e interpretei alguns trechos da sentença do magistrado, tendo, contudo
(s.m.j.), sido fiel a suas ideias. Para que não restem dúvidas a respeito, seguem os
trechos fundamentais de sua sentença: “Sentença: Processo n. 97/1/03710-8 (Juiz Dr.
Siro Darlan; 1.ª Vara da Infância e da Juventude do Rio de Janeiro, em 20/01/1998).
(...) O pedido inicial deve ser acolhido porque o Suplicante demonstrou reunir
condições para o pleno exercício do encargo pleiteado, atestado esse fato pela
emissão da Declaração de Idoneidade para Adoção que se encontra às fls. 34 com o
parecer favorável do Ministério Público contra o qual não se insurgiu no prazo legal
devido, fundando-se em motivos legítimos, de acordo com o Estudo Social (fls. 15/16 e
49/52) e Parecer Psicológico (fls. 39/41), e apresenta reais vantagens para o
Adotando, que vivia há 12 anos em estado de abandono familiar em instituição coletiva
e hoje tem a possibilidade de conviver em ambiente familiar (chama o Requerente de
‘pai’), estuda em colégio de conceituado nível de ensino religioso, o Colégio S. M. e
frequenta um psicanalista para que melhor possa se adequar à nova realidade de
poder exercitar o direito do convício familiar que a Constituição Federal assegura no
art. 227. A Constituição da República assegura igualdade de todos perante a lei, sem
distinção de qualquer natureza, [donde] não admite o texto constitucional qualquer tipo
de preconceito ou discriminação na decisão judicial quando afirma que ‘ninguém será
privado de direitos por motivo de crença religiosa ou de convicção filosófica ou
política’, estando previsto ainda que ‘a lei punirá qualquer discriminação atentatória
dos direitos e liberdades fundamentais’.Ora, não alegam os Fiscais qualquer norma
impeditiva para o acolhimento do pleito inicial, ao contrário manifestaram-se
favoravelmente ao deferimento da Habilitação para Adoção cujo certificado instrui o
pedido e a manifestação contida às fls. 55/57 parece referir-se a pedido diverso do
contido na peça exordial, eis que afirma que ‘o ordenamento jurídico brasileiro não
prevê o casamento de pessoas do mesmo sexo’, o que data venia não é matéria a ser
decidida por esse juízo, além de estar em franca contradição com os fatos e laudos da
equipe interprofissional ao afirmar que ‘não acredita que trará reais vantagens para o
adotado’. Afirmam os expertos que ‘M. demonstra estar feliz com sua inserção num
contexto familiar. Os vínculos formados com o Sr. J. são de confiança e parecem estar
permitindo o desenvolvimento pleno do menino’ (Parecer psicológico, fls. 41) e, ‘o
menino exibia boa aparência, expressando-se com naturalidade, parecendo-nos estar
recebendo os cuidados necessários ao seu desenvolvimento (Estudo Social, fls. 51) e,
ainda, o próprio adolescente afirma às fls. 44: ‘que agora tem um pai de nome J..., que
está gostando de morar com seu novo pai, que além de estudar brinca muito, que seu
novo pai é professor de ciências, que quando seu pai está trabalhando fica com a
empregada, que deseja ser adotado’. Qual será então o conceito de ‘reais vantagens’
dos Ilustres Fiscais? Deve ser muito diferente do que afirmam a Equipe
Interprofissional e o próprio interessado, o adolescente, que prefere ver acolhido o
pedido que permanecer em uma instituição sem qualquer nova chance de ter uma
família, abandonado até que aos doze anos sofrerá nova rejeição já que não poderá
mais permanecer no Educandário R.M.D., onde se encontra desde que nasceu, e será
transferido para outro estabelecimento de segregação e tratamento coletivo, sem
qualquer chance de desenvolver sua individualidade e sua cidadania, até que por força
da evasão forçada ou espontânea poderá transformar-se em mais um habitante das
ruas e logradouros públicos com grandes chances de residir nas Escolas de Formação
de ‘marginais’ em que se transformaram os atuais ‘Presídios de menores’ e, quem
sabe, atingir ao posto máximo com ingresso no Sistema Penitenciário? Será esse o
critério de ‘reais vantagens’? A lei não acolhe razões que tem por fundamento o
preconceito e a discriminação, portanto o que a lei não proíbe não pode o intérprete
inovar. Isto posto. Julgo Procedente o pedido inicial para deferir, com fundamento no
art. 39 da Lei 8.069/90 ao Requerente a adoção do adolescente, acima qualificado, e
passará a chamar-se M. C. P. M., filho de J. L. P. M., sendo avós paternos S. M. M. e
D. P. R. (sem grifos e destaques no original).
40 Seguem os trechos principais do acórdão: “Ementa: Adoção cumulada com destituição
do pátrio poder. Alegação de ser homossexual o adotante. Deferimento do pedido.
Recurso do Ministério Público. 1. Havendo os pareceres de apoio (psicológico e de
estudos sociais) considerado que o adotado, agora com dez anos sente orgulho de ter
um pai e uma família, já que abandonado pelos genitores com um ano de idade,
atende a adoção aos objetivos preconizados pelo Estatuto da Criança e do
Adolescente (ECA) e desejados por toda a sociedade. 2. Sendo o adotante professor
de ciências de colégios religiosos, cujos padrões de conduta são rigidamente
observados, e inexistindo óbice outro, também é a adoção, a ele entregue, fator de
formação moral, cultural e espiritual do adotado. 3. A afirmação de homossexualidade
do adotante, preferência individual constitucionalmente garantida, não pode servir de
empecilho à adoção do menor, se não demonstrada ou provada qualquer
manifestação ofensiva ao decoro e capaz de deformar o caráter do adotado, por
mestre e cuja atuação é também entregue a formação moral e cultural de muitos
outros jovens. Apelo improvido (TJ/RJ, Apelação Cível 1998.001.14332, 9.ª Câmara
Cível, Relator Desembargador Jorge de Miranda Magalhães. Julgamento realizado em
23.03.1999 – sem grifos no original). Trecho do inteiro teor: “Como se vê do Relatório,
insurge-se o Ministério Público contra a sentença que deferiu ao apelado a adoção de
menor, com dez anos de idade, alegando-se que a entidade familiar,
constitucionalmente garantida, não enseja a adoção, e que o fato de o adotado passar
a conviver com dois homens homossexuais poder prejudicar-lhe a formação de caráter
e personalidade. O Ministério Público, neste Tribunal em seu bem lançado parecer de
fls. 82, afirmou: ‘ao nosso sentir, e do ponto de vista jurídico, entendemos que é
permissível tudo aquilo que a lei não veda... O problema do menor abandonado é dos
mais angustiantes da sociedade moderna... Desse estado, quase sempre caótico de
coisas, resulta a imensa falange de menores que passam a infância e adolescência
em instituições desprovidas de meios.’ Mas também se preocupa com as dúvidas
sobre a influência, mesmo involuntária do adotante sobre o menor em relação ao seu
comportamento afetivo. O quadro é, realmente, eivado de dúvidas e problemas, mas
entendemos que a sentença está correta.Como afirma seu ilustre prolator, o talentoso
Juiz Siro Darlan, a fls. 59: ‘Afirmam os expertos que ‘M. demonstra estar feliz com sua
inserção num contexto familiar. Os vínculos formados com o Sr. J. são de confiança e
parecem estar permitindo o desenvolvimento pleno do menino’ (Parecer psicológico,
fls. 41) e, ‘o menino exibia boa aparência, expressando-se com naturalidade,
parecendo-nos estar recebendo os cuidados necessários ao seu desenvolvimento
(Estudo Social, fls. 51)...’Percebe-se que sua experiência de anos à frente do juizado,
e a observação pessoal do caso ditou sua decisão, que nos parece ponderável. Será
preferível, a nosso juízo, correr o risco da dúvida, a deixar o adotado em uma
instituição de abandonados, já agora afastado e arrancado de uma adoção que tanto
orgulho e alegria lhe causam, o que, sem duvida, passará a ser razão de revolta, para
ele? Rompê-la para depois encaminhá-lo a uma escola de delinquência, como
acontecerá aos seus doze anos, no Educandário R.D., é muito mais indigno e
aterrorizante do que confiar na competência dos técnicos que emitiram os pareceres
favoráveis e manter a decisão que o entregou a uma adoção ‘cujas desconfianças e
suspeitas parecem não haver considerado a realidade e as circunstâncias do fato,
além de, d.v., fundadas em preconceitos que a lei veda’. Tais são as razões pelas
quais se mantém a bem a elaborada decisão” (sem grifo e destaques no original).
41 DIAS, Maria Berenice. União Homossexual – o Preconceito & a Justiça, 2.ª Edição,
Porto Alegre: Editora Livraria do Advogado, 2001, p. 275.
42 Novamente, parafraseei e interpretei o trecho em questão, cujo teor literal é o
seguinte: “Deixar uma criança desde o nascimento entregue à solidão dos orfanatos,
sem ninguém para estancar-lhe o pranto na hora da dor ou do medo, entregá-lo ao
desprezo público ao completar 18 anos, até que ela ceda ao clima da tentação e
acabe aumentando a população carcerária. Pouca coisa é necessária para transformar
inteiramente uma vida. Há tantas pessoas que ainda são más, porque até agora não
foram suficientemente amadas. Não se pode abafar o clamor de milhares de crianças
pedindo um lar. Melhor seria que não existissem crianças abandonadas, mas se
existem e podemos diminuir o sofrimento de algumas, devemos permitir que a
caridade social determine a justiça a ser aplicada ao caso” (ibidem, p. 275).
43 Itens 108 a 110 da decisão. Tradução livre. Grifo nosso.
44 Item 119 da decisão. Grifos nossos. Tradução livre.
45 Itens 121 e 122 da decisão. Tradução livre.
46 TEDH, caso Karner vs. Austria (n.º 40016/98). Nota do original.
47 TEDH, caso E.B. vs Francia (n.º 43546/02). Nota do original.
48 Itens 124 e 125 da decisão. Tradução livre.
49 “Cfr. T.E.D.H., Caso Laskey, Jaggard y Brown Vs. Reino Unido, (No. 21627/93;
21826/93; 21974/93), Sentença de 19 de fevereiro de 1997, par. 36 (“Não pode haver
dúvida de que a orientação sexual e a atividade [respectiva] concernem a um aspecto
íntimo da vida privada”). Ver também o Caso Dudgeon Vs. Reino Unido, (No. 7525/76),
Sentença de 22 de outubro de 1981, par. 52, e o Caso A.D.T. Vs. Reino Unido, (No.
35765/97), Sentença de 31 de Julho de 2000. Final, 31 de outubro de 2000, par. 23 (“a
Corte relembra que a mera existência de legislação proibindo a conduta de homens
homossexuais no âmbito privado pode afetar direta e continuamente a vida privada
das pessoas”)”. Nota do original (traduções livres).
50 “Cfr. Declaração escrita entregue pelo perito Robert Wintemute em 16 de setembro de
2011 (expediente de fundo, tomo XI, folha 5360). Assim mesmo, assinalou a Suprema
Corte do Canadá no Caso Egan v. Canadá que “[a] orientação sexual é mais do que
simplesmente um ‘status’ que um indivíduo possui: ela é demonstrada por meio da
conduta de um indivíduo na eleição de seu(ua) parceiro(a). Justamente pela Carta
[Canadense de Direitos e Liberdades] proteger as crenças religiosas e a prática
religiosa como aspectos da liberdade de religião, assim também deveria reconhecer-se
que a orientação sexual abarca aspectos de ‘status’ e ‘conduta’ e que ambos deveriam
receber proteção’ Egan v. Canada, [1995] 2 SCR, 513, 518 (expediente de fundo, tomo
XI, folha 5360)”. Nota do original (traduções livres).
51 “Cfr. T.E.D.H., Caso Pretty Vs. Reino Unido (No. 2346/02), Sentença de 29 de abril de
2002. Final, 29 de julho de 2002, par. 61 (‘o conceito de ‘vida privada’ é amplo e
insuscetível de definição exaustiva. Ele cobre a integridade física e psicológica de uma
pessoa. […] Ele pode algumas vezes abarcar aspectos de uma identidade física e
social do indivíduo. […] Elementos tais como, por exemplo, identidade de gênero,
nome, orientação sexual e vida sexual caem dentro da esfera pessoal protegida pelo
Artigo 8o. […] O Artigo 8o também protégé um direito ao desenvolvimento pessoal, e o
direito a estabelecer e desenvolver relacionamentos com outros seres humanos e o
mundo externo. […]. Embora nenhum caso prévio tenha estabelecido como tal
qualquer direito à autodeterminação como contido no Artigo 8o da Convenção, a Corte
considera que a noção de autonomia pessoal é um princípio importante subjacente à
interpretação de suas garantias’); Caso Schalk y Kopf Vs. Austria, (No. 30141/04),
Sentença de 24 de junho de 2010, 22 de novembro de 2010, par. 90 (‘Não se disputa
(...) que o relacionamento um casal do mesmo sexo como os requerentes se
enquadram na noção de (...) vida privada (...) do Artigo 8o’); Caso Dudgeon, supra nota
156, parr. 41 (‘a manutenção em vigência da legislação impugnada constitui uma
contínua interferência no direito do requerente ao respeito à sua vida privada (que
inclui a vida sexual dele) dentro do significado do Art. 8, par. 1o’); Caso Burghartz Vs.
Suiza, (No. 16213/90), Sentença de 22 de fevereiro de 1994, parr. 24, e Caso Laskey,
Jaggard y Brown, supra nota 156, parr. 36”. Nota do original (traduções livres).
52 “Cfr. T.E.D.H., Caso Peck Vs. Reino Unido, (No. 44647/98), Sentença de 28 de janeiro
de 2003. Final, 28 de abril de 2003, par. 57 (‘[O direito à] Vida privada é ampl[o] e não
é suscetível de definição exaustiva. A Corte já decidiu que elementos tais como
identidade de gênero, nome, orientação sexual e vida sexual são elementos
importantes da esfera pessoal protegida pelo Artigo 8o. Aquele Artigo também protege
um direito à identidade e ao desenvolvimento pessoal, o direito à estabelecer e
desenvolver relacionamentos com outros seres humanos e com o mundo externo e
pode incluir atividades de natureza profissional ou negocial. Há, portanto, uma zona de
interação de uma pessoa que outros, mesmo em um contexto público, que podem se
incluir no escopo [do direito à] vida privada’), citando T.E.D.H., Caso P.G. y J.H. Vs.
Reino Unido (No. 44787/98), Sentença de 25 de setembro de 2001. Final 25 de
dezembro de 2001, par. 56. Cfr. T.E.D.H., Caso Niemietz Vs. Alemania, (No.
13710/88), Sentença de 16 de dezembro de 1992, par. 29 (‘A Corte não considera
possível ou necessário tentar elaborar uma definição exaustiva da noção de ‘vida
privada’. Contudo, seria também muito restritivo limitar a noção a um ‘círculo interior’
[inner circle] no qual o indivíduo possa viver sua própria vida pessoal como ele
escolher e excluir dali totalmente o mundo externo não incluído nesse círculo. O
respeito à vida privada deve também abranger em certo grau o direito a estabelecer e
desenvolver relacionamentos com outros seres humanos. Ademais, não parece haver
razão de princípio para que esse entendimento da noção de ‘vida privada’ deveria
excluir atividades de natureza profissional ou negocial porque é, afinal, no curso de
suas vidas profissionais que a maioria das pessoas têm uma significativa, senão a
maior, oportunidade de desenvolverem relacionamentos com o mundo externo’). Nota
do original (traduções livres).
53 “Mutatis mutandi, Caso Chaparro Álvarez y Lapo Íñiguez. Vs. Ecuador. Excepciones
Preliminares, Fondo, Reparaciones y Costas. Sentença de 21 de novembro de 2007.
Série C No. 170, par. 52” (nota do original).
54 “Corte Constitucional da Colômbia, Sentença T-499 de 2003. A Corte Constitucional
definiu o direito ao livre desenvolvimento da personalidade, consagrado no artigo 16
da Constituição Política da Colômbia, como o direito das pessoas a ‘optar por seu
plano de vida e desenvolver sua personalidade conforme seus interesses, desejos e
convicções, sempre e quando não afetem direitos de terceiros, nem vulnerem a ordem
constitucional’ (Corte Constitucional, Sentencia C-309 de 1997), y ‘a capacidade das
pessoas para definir, de forma autônoma, as opções vitais que irão guiar o curso de
sua existência’ (Corte Constitucional, Sentença SU-642 de 1998)”. Nota do original
(traduções livres).
55 “Suprema Corte de Justiça da Nação do México, Ação de inconstitucionalidade A.I.
2/2010, 16 de agosto de 2010, pars. 263 e 264”. Nota do original (tradução livre).
56 Itens 133 e 134 da decisão. Tradução livre.
57 “Cfr. T.E.D.H., Caso Clift, supra nota 101, párr. 57 (‘a Corte considerou constituir
‘outros status’ características as quais, assim como nos casos dos exemplos
específicos listados no Artigo, se pode dizer serem pessoais no sentido que elas são
inatas ou inerentes. Portanto em Salgueiro da Silva Mouta, […] ela considerou que a
orientação sexual era ‘indubitavelmente coberta pelo Artigo 14’)”. Nota do original
(tradução livre).
58 “Cfr. T.E.D.H., Caso M. y C. Vs. Rumania, (No. 29032/04), Sentença de 27 de
setembro de 2011. Final, 27 de dezembro de 2011, par. 147, e Caso Palau-Martinez,
supra nota 125, aonde o Tribunal Europeu estabeleceu que uma decisão judicial sobre
a entrega da custódia de menores de idade a uma instituição estatal não deve levar
em conta em abstrato os possíveis efeitos de uma determinada condição dos pais
sobre o bem-estar do menos de idade quando dita condição se encontra protegida
contra tratamentos discriminatórios”. Nota do original (tradução livre).
59 Item 127 da decisão. Tradução livre. Grifo nosso.
60 “Cfr. declaração entregue pelo perito Rodrigo Uprimny na audiência pública realizada
em 23 de agosto de 2011, fazendo referência a: Associação Americana de Psicologia,
Policy Statement on Sexual Orientation, Parents, & Children, Adotada pela APA
Council of Representatives em 287 de Julho de 2004. (‘Não existem provas científicas
de que a efetividade parental esteja relacionada com a orientação sexual dos
progenitores: as mães e os pais homossexuais são tão propensos como as mães e os
pais heterossexuais a proporcionar um entorno são e propício para seus filhos [e...] a
ciência tem demonstrado que a adaptação, o desenvolvimento e o bem-estar
psicológico das crianças não estão relacionados com a orientação sexual dos
progenitores, e que os filhos de pais homossexuais têm as mesmas probabilidades de
desenvolver-se que os de pais heterossexuais’. Disponível em:
http://www.apa.org/about/governance/council/policy/parenting.aspx (última visita em 19
de fevereiro de 2012). Da mesma forma, ver a declaração escrita entregue pela perita
Allison Jernow em 16 de setembro de 2011, mencionando os seguintes estudos: R.
McNair, D. Dempsey, S. Wise, A. Perlesz, Lesbian Parenting: Issues Strengths and
Challenges [Parentalidade Lésbica: Temas que Fortalecem e Desafios], em: Family
Matters Vol. 63, 2002, Pág. 40; A. Brewaeys, I. Ponjaert, E.V. Van Hall, S. Golombok,
Donor insemination: child development and family functioning in lesbian mother
families [Inseminação artificial: desenvolvimento e funcionamento familiar em famílias
de mães lésbicas], em: Human Reproduction Vol. 12, 1997, Pág. 1349 y 1350; Fiona
Tasker, Susan Golombok, Adults Raised as Children in Lesbian Families [Adultos
Criados como Crianças em Famílias Lésbicas], American Journal Orthopsychiatry Vol.
65, 1995, Pág. 203; K. Vanfraussen, I. Ponjaert-Kristofferson, A. Breways, Familiy
Functioning in Lesbian Families Created by Donor Insemination [Funcionamento
Familiar em Famílias Lésbicas criadas por Inseminação Artificial], em: American
Journal of Orthopsychiatry Vol. 73, 2003, Pág. 78; Marina Rupp, The living conditions
of children in same-sex civil partnerships [As condições vivas de crianças em parcerias
civis do mesmo sexo], Ministerio Federal de Justiça da Alemanha, 2009, Pág. 27;
Henry M.W. Bos, Frank van Balen, Dymphna C. van den Boom, Experience of
parenthood, couple relationship, social support, and child-rearing goals in planned
lesbian mother families [Experiência de parentalidade, relacionamento conjugal, apoio
social e objetivos na criação de crianças em famílias de mães lésbicas], em: Journal of
Child Psychology and Psychiatry Vol. 45, 2004, Pág. 755; Rafael Portugal Fernandez,
Alberto Arauxo Vilar, Aportaciones desde la salud mental a la teoría de la adopción en
parejas homosexuales [Aportes desde a saúde mental à teoria da adoção por pares
homossexuais], em: Avances en salud mental relacional Vol. 3, 2004. Neste estudo se
indica que ‘tampouco se encontram diferenças significativas entre homossexuais e
heterossexuais relativamente à qualidade com que exercem sua função como pais’ e
que ‘a investigação realizada até o momento assinala de maneira unânime que não há
diferenças significativas entre os filhos criados por homossexuais e os filhos criados
por heterossexuais em termos de identidade sexual, tipificação sexual, orientação
sexual, relações sexuais com companheiros e adultos, relações de amizade,
popularidade’; Stéphane Nadaud, «Quelques repères pour comprendre la question
homoparentale» [Alguns aportes para compreender a questão homoparental], em: M.
Gross, Homoparentalités, état des lieux, Ed. érès «La vie de l’enfant», Toulouse, 2005,
y Fiona Tasker, Susan Golombok, Adults Raised as Children in Lesbian Families, en:
American Journal Orthopsychiatry Vol. 65, 1995, Pág. 203. Cfr. declaração escrita
entregue pela perita Allison Jernow de 16 de setembro de 2011 (expediente de fundo,
tomo XI, folhas 5079 e 5080)”. Nota do original (traduções livres).
61 “Cfr. declaração escrita entregue pela perita Allison Jernow em 16 de setembro de
2011, mencionando os casos Re K and B and Six Other Applications, Suprema Corte
de Ontario, 24 de maio de 1995, par. 89; Boots v. Sharrow, Suprema Corte de Justiça
de Ontario, 2004 Can LII 5031, 7 de janeiro de 2004; Bubis v. Jones, Suprema Corte
de Ontario, 2000 Can LII 22571, 10 de abril de 2000, Superior Tribunal de Justiça
(Brasil), Ministério Público do Estado de Rio Grande do Sul v. LMGB, 27 de abril de
2010, e Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul (Brasil), Adopción de VLN, No.
1605872, 3 de julho de 2006. Cfr. declaração escrita entregue pela perita Allison
Jernow de 16 de setembro de 2011 (expediente de fundo, tomo XI, folhas 5082 e
5083)”. Nota do original (tradução livre).
62 “Cfr. Declaração escrita entregue pela perita Allison Jernow em 16 de setembro de
2011 na qual se cita: Relatório de Amici Curiae apresentado pela Associação
Americana de Psicologia, Associação de Psicologia do Arkansas, Associação de
Assistentes Sociais e Associação Nacional de Assistentes Sociais, Capítulo do
Arkansas, em Department of Human Services v. Matthew Howard, Suprema Corte de
Arkansas (Dezembro de 2005), nas páginas 10-11 (‘A Associação Americana de
Psicologia descreveu os estudos como ‘impressionantemente consistentes em sua
falha em identificar quaisquer déficits no desenvolvimento de crianças criadas em lares
lésbicos ou gays (...) as habilidades de pessoas gays e lésbicas como pais e o
resultado positivo para seus filhos não são áreas nas quais pesquisadores científicos
de credibilidade discordam’. Cfr. declaração escrita entregue pela perita Allison Jernow
em 16 de setembro de 2011 (expediente de fundo, tomo XI, folha 5081)”. Nota do
original (tradução livre).
63 Item 128 da decisão. Tradução livre.
Capítulo 17
DO DIREITO COMPARADO
1. CONSIDERAÇÕES PRELIMINARES
A questão dos direitos dos casais homoafetivos é assunto corrente em
todas as partes do mundo. Não se trata de questão tratada exclusivamente
em determinado grupo de países, mas de tema recorrente em pelo menos
todos os países que tornaram a política independente da religião.
Nesta parte do trabalho será exposto o tratamento dado às uniões
homoafetivas ao redor do mundo, sendo dada ênfase àqueles países que
efetivamente reconheceram expressamente direitos a ditos casais. Dessa
forma, adotando-se a classificação elaborada por Maria Berenice Dias,
podem ser classificados os países do mundo com relação ao tratamento que
conferem aos casais homossexuais, quais sejam:
1) os de extrema repressão;
2) os de modelo intermediário; e
3) os de modelo expandido.
1.1 Países de extrema repressão às uniões homoafetivas
No primeiro bloco encontram-se os países que não admitem em sua
legislação que duas pessoas do mesmo sexo mantenham entre si um
relacionamento amoroso, conferindo punições criminais, inclusive a de
morte, àqueles que desobedecem este mandamento legal.
Encontram-se neste bloco os países islâmicos (embora não apenas
eles), que têm uma estrutura teocrática de governo – ou seja, em que a
política é dirigida pela religião. Nos países teocráticos e mesmo nos
confessionais (em que a política é influenciada pela religião), usualmente
ocorre violenta repressão aos homossexuais, uma vez que a interpretação
que normalmente os líderes religiosos dão a seus livros sagrados é a de que
Deus seria contrário à união amorosa entre pessoas do mesmo sexo. Em tais
países, conforme citado, a homossexualidade é até mesmo criminalizada,
não havendo ainda espaço para o reconhecimento dos direitos de seus
cidadãos homossexuais no presente momento, o que só ocorrerá quando a
sabedoria divina que tanto dizem seguir iluminar o pensamento daqueles
povos para que comecem a respeitar a diversidade humana, quando
finalmente deixarão de considerar o amor por pessoas do mesmo sexo como
um ato ilícito.
Aliás, tais países seguramente são os principais responsáveis pela
elaboração dos Princípios de Yogyakarta, que visam combater a
discriminação por orientação sexual e identidade de gênero, no sentido de
que os países do mundo deixem de perpetrar tais discriminações mediante a
garantia da série de direitos ali especificados2, que nada mais são do que
aplicações dos diretos humanos fundamentais às pessoas
independentemente de sua orientação sexual ou identidade de gênero.
Deve-se ressaltar que o simples fato de se ter tido a necessidade de enunciar
os direitos (nominados como princípios) constantes de dita declaração
demonstra o quanto homossexuais, bissexuais e transexuais são
desrespeitados mundo afora, razão pela qual não se afigura desnecessária tal
declaração – ao contrário, veio em muito boa hora, para apontar ao mundo
que este deve respeitar as pessoas independentemente de suas orientações
sexuais ou identidades de gênero; ou seja, que deve respeitar todas as
orientações sexuais e identidades de gênero.
1.2 Do bloco intermediário
Nos países do bloco intermediário há a descriminalização da união
homoafetiva, todavia inexiste da mesma forma uma regulamentação a
respeito, pairando um vazio legislativo a respeito do tema. Em outras
palavras, a união amorosa entre duas pessoas do mesmo sexo não é mais
punida pelo ordenamento jurídico desses países, sendo em muitos deles
consagrado o princípio da não discriminação, sem, entretanto, haver
disposições expressas acerca das uniões homossexuais.
Assim, nesses países (entre eles o Brasil3) o assunto permanece em
discussão nas Casas Legislativas para que sejam elaboradas leis específicas
disciplinando os efeitos jurídicos a serem conferidos às uniões
homoafetivas. Essa situação, que deixa os casais homoafetivos em situação
de desamparo jurídico, acaba sendo decidida pelo Poder Judiciário desses
Estados, que terminam por reconhecer alguns efeitos jurídicos a partir de
regras de hermenêutica, tais como a interpretação extensiva e a analogia,
como decorrência da isonomia e a dignidade humana.
No caso brasileiro, a concessão de direitos pelo Judiciário se justifica
em razão de o art. 4.º da LINDB estabelecer que, “quando a lei for omissa,
o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os costumes e os princípios
gerais de direito”, além do análogo art. 126 do CPC. Assim, deparando-se o
juiz brasileiro com a demanda de um casal homoafetivo que pleiteia por
seus direitos não expressamente reconhecidos pelo ordenamento jurídico,
não pode ele indeferir a petição inicial sob o argumento de que inexiste
legislação pátria a respeito. Deve ele, a partir da analogia, dos costumes e
dos princípios gerais do Direito, decidir a questão, daí já terem sido
conferidos alguns direitos às uniões homoafetivas brasileiras.
Não se pode deixar de reconhecer que os efeitos jurídicos obtidos até o
presente momento por nosso ordenamento jurídico se assemelham em
muito àqueles outrora reconhecidos ao então denominado concubinato
puro, que era a definição que se dava à atual união estável
constitucionalmente consagrada pelo art. 226, § 3.º, da CF/1988. Isso
porque, como o casamento civil era para o CC/1916 a única forma de
formar a família “legítima”, a união não eventual entre duas pessoas não
impedidas de se casar configurava concubinato, não sendo a elas
reconhecidos os efeitos jurídico-familiares do Direito de Família, tal como
parte dominante da doutrina e da jurisprudência fazem atualmente com a
união homoafetiva.
Um caso a ser destacado é a decisão da Suprema Corte do Havaí a
respeito de uma ação promovida por três casais homossexuais que
processaram o Estado por ter-lhes negado a licença para o casamento.
Decidiu a Suprema Corte Havaiana (em 1993) que a negativa da licença aos
casais homoafetivos configura discriminação arbitrária, que afronta o
princípio da isonomia (denominado naquele país de equal protection
doctrine, que, em tradução livre, significa “doutrina da igual proteção”, o
que equivale ao nosso preceito isonômico), tendo em vista a inexistência de
motivação racional que a justificasse4. Dita decisão acabou por obrigar o
Tribunal inferior, que havia negado provimento ao recurso, a proferir nova
decisão em que foi concedida a licença de casamento para os casais autores.
Essa decisão estadual é um marco jurídico na defesa dos direitos de
casais homoafetivos5, pois reconhece que a discriminação destes
unicamente devido à orientação sexual do par afronta o princípio da
igualdade, visto inexistir fundamento lógico-racional que a justifique ante o
critério desigualador erigido (qual seja a orientação sexual do par). É
verdade que, não muito tempo depois, em 1996, foi promulgada uma lei
federal pelo então Presidente Bill Clinton, conhecida por Act of Defense of
Marriage (“Ato de Defesa do Casamento”), em que se declarou que para a
Federação Estadunidense o casamento civil seria o ato realizado somente
entre o homem e a mulher, não sendo os Estados-Membros que não
admitem o casamento civil homoafetivo obrigados a reconhecer aqueles
celebrados por outros Estados. Tal posicionamento foi reiterado
ostensivamente pelo Presidente George W. Bush, reeleito em 2004, que
declarou em cadeia nacional que (para ele) o casamento (civil) somente
poderia ser realizado por pessoas de sexos diversos e que pretendia aprovar
uma emenda constitucional que deixe isso expresso (ele efetivamente tentou
no ano de 2006, mas não conseguiu os votos necessários do Senado
Estadunidense para conseguir aprovar dita emenda constitucional). Na
verdade George W. Bush fez sua campanha apoiada nos setores mais
conservadores da sociedade estadunidense, o que acabou surtindo efeito
devido ao fato de ter conseguido sua reeleição. No caso específico das
uniões homoafetivas, sua campanha obteve o resultado esperado: em todos
os Estados que realizaram votação no sentido de quererem ou não suas
populações a legalização da união homoafetiva, a resposta foi a mesma:
não.
Em que pese o viés político sofrido pela militância homossexual
estadunidense nesse sentido, há em verdade dois pontos positivos que
merecem ser destacados: primeiramente, destaca-se que a Constituição dos
Estados Unidos não restringe o casamento civil apenas às uniões
heterossexuais, estando esse assunto em aberto naquele diploma
constitucional – tanto o é que dito presidente demonstrou interesse na
aprovação de emenda constitucional para que isso ocorresse. Em segundo
lugar, esse posicionamento foi tomado pelo Poder Legislativo, que elaborou
a citada lei, e pelo Presidente da República, membro do Poder Executivo,
que sancionou a lei, e não pelo Poder Judiciário. Em outras palavras, tratou-
se de decisão puramente política, que não considerou o ordenamento
jurídico daquele país para ser tomada. O que se quer dizer é que pode
perfeitamente a Suprema Corte Estadunidense, da mesma forma que fez a
havaiana, declarar a inconstitucionalidade da discriminação das uniões
homoafetivas em relação às heteroafetivas decorrente desse “Ato de Defesa
do Casamento”, por afronta ao preceito isonômico, assim como de eventual
emenda constitucional aprovada pelo Poder Constituinte Derivado (ao
menos no sistema brasileiro isso é possível).
Pode-se dizer, portanto, que nos países de modelo intermediário
dependem os casais homoafetivos de decisão do Poder Judiciário para que
tenham seus direitos resguardados, até que sejam reconhecidos
expressamente seus direitos pelo Poder Legislativo desses Estados. Isso não
quer dizer que seja impossível juridicamente o casamento civil entre duas
pessoas do mesmo sexo nesses países, mas apenas que o Poder Judiciário
destes deve isto declarar quando provocado pelos interessados, uma vez que
a interpretação corrente que se dá ao matrimônio civil nesses Estados é a de
que ele só poderia ser realizado por heterossexuais, o que configura afronta
aos princípios da igualdade, da dignidade da pessoa humana, da promoção
do bem-estar de todos, da pluralidade, da laicidade e da liberdade de
consciência, por tudo o que já se expôs neste trabalho. Aponte-se, ainda,
que foi por meio de ações judiciais que chegaram a suas Supremas Cortes
que a África do Sul, o Canadá e o Estado de Massachusetts/EUA
conseguiram a aprovação do casamento civil homoafetivo. Isso porque,
após a declaração da inconstitucionalidade da proibição deste, os Tribunais
impuseram aos Legislativos a elaboração das leis respectivas, que foram
aprovadas, permitindo-o expressamente.
Cabe, ainda, transcrever o longo relato apresentado na Representação
visando à impetração de Arguição de Descumprimento de Preceito
Fundamental para o reconhecimento da união estável homoafetiva6, por
altamente elucidativo da posição do Direito Comparado a respeito do tema
das uniões homoafetivas:
1 VECCHIATTI, Paulo Roberto Iotti.O STF e a união estável homoafetiva. Resposta aos
críticos, primeiras impressões, agradecimentos e a consagração da homoafetividade
no Direito das Famílias. Jus Navigandi, Teresina, ano 16, n. 2870, 11 maio 2011.
Disponível em: <http://jus.com.br/revista/texto/19086>. Acesso em: 8 jan. 2012.
2 Citação feita de memória e por anotações pessoais, em obra na qual o autor afirma que
da mesma forma que isso não significa que os juízes devam decidir casos
exclusivamente de um modo justificável por simples dedução a partir de normas
jurídicas de caráter compulsório, isso também não pode significar que eles sejam
deixados à vontade para seguir suas próprias intuições do senso comum e da utilidade
da justiça, livres de todas as limitações. Assim, afirma que a área de alcance de sua
liberdade, poder e dever de buscar soluções justificáveis em termos
consequencialistas acerca do caso genérico é limitada pela exigência de que
demonstrem algum fundamento jurídico para o que fazem. Continua no sentido de que
os ‘princípios gerais’ que fornecem essa orientação necessária, por um lado, mas
limitação por outro, expressam as razões subjacentes às normas específicas
existentes. Pois bem: entendo essa lição compatível com a hermenêutica jurídica
contemporânea, que afirma que a norma é fruto da interpretação do texto normativo,
com a exigência de respeito aos limites semânticos do texto – os quais, como vimos
ao longo desta obra (e, em especial, no capítulo 13), foram respeitados pelo STF na
citada decisão.
3 Vale destacar que, ao se falar em “neutralidade”, evidentemente não se quer dizer que
o intérprete não tenha ideologias próprias, mas que, entre a sua ideologia e a ideologia
esposada pelo ordenamento jurídico em seus textos normativos interpretados de
maneira sistemático-teleológica, deve o intérprete aplicar o ordenamento jurídico,
mesmo que isso não se coadune com suas ideologias particulares. Assim, sendo
nosso ordenamento jurídico-constitucional eminentemente inclusivo/antidiscriminatório,
não pode o Judiciário aplicar uma interpretação
segregacionista/preconceituosa/discriminatória, como a que nega o status jurídico-
familiar às uniões homoafetivas e, portanto, a que nega o acesso de casais
homoafetivos aos regimes jurídicos do casamento civil, da união estável e da adoção
conjunta.
BIBLIOGRAFIA