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Vecchiatti, Paulo Roberto Iotti

Manual da homoafetividade : da possibilidade jurídica do casamento civil, da união


estável e da adoção por casais homoafetivos / Paulo Roberto Iotti Vecchiatti. - 2. ed. rev.
e atual. - Rio de Janeiro : Forense ; São Paulo : MÉTODO, 2012.

ISBN 978-85-309-4549-7

1. Casamento entre homossexuais. 2. Companheiros homossexuais - Estatuto legal,


leis, etc. 3. União estável. 4. Adoção por homossexuais. I. Título.

CDU: 347.61/.64
08-3358.
Dedico este trabalho à minha mãe, exemplo de amor,
carinho e compreensão, ao meu pai, símbolo de luta
e perseverança, às minhas tias maternas, sempre tão
carinhosas e presentes em minha vida, enfim, a toda
minha família, pelo amor que sempre me dedicou e
sem o qual minha vida seria muito mais difícil.
“Época triste a nossa, em que é mais difícil quebrar
um preconceito do que um átomo.” – Albert
Einstein1.

1 EINSTEIN apud ALMEIDA, Aline Mignon de. As uniões homoafetivas como forma de
constituir família. In: VIEIRA, Tereza Rodrigues (org.). Bioética e sexualidade. São
Paulo: Editora Jurídica Brasileira, 2004, p. 71.
AGRADECIMENTOS

Todo trabalho é feito por meio da colaboração de várias pessoas, que


contribuem direta e indiretamente à sua conclusão. O autor tem a ideia
central e a desenvolve, mas sempre conta com a ajuda de outros, por mais
que, às vezes, não o perceba.
Dessa forma, agradeço, primeiro, à minha querida prima, Karina Iotti
Angi, que me incentivou a prestar vestibular para Direito e me ajudou ao
longo de todo o curso. Agradeço, também, à minha querida mãe,
Mariangela Iotti, por todo o apoio na elaboração do presente trabalho.
Agradeço, ademais, ao Professor Edvaldo Pereira Brito, meu
primeiro orientador (pois este livro é uma evolução de meu Trabalho de
Graduação Interdisciplinar), o qual me indicou uma bibliografia
fundamental para que eu pudesse ter a exata compreensão do tema objeto
deste trabalho nos dias atuais, e pudesse formular as proposições aqui
desenvolvidas. Fiquei extremamente lisonjeado e agradecido quando, em
meados de 2007, o Professor Edvaldo Brito, em seu discurso de paraninfo
de duas das turmas formandas do Mackenzie/SP, publicamente elogiou este
trabalho ao dizer que ele poderia ter evitado um voto equivocado de um
Ministro do Supremo Tribunal Federal (referindo-se à manifestação
monocrática do Ministro Eros Roberto Grau, no julgamento do RE
407.837/SP). Lamento, apenas, que a incompatibilidade de nossos horários
tenha se tornado um óbice para que ele pudesse continuar a me orientar.
Por outro lado, se lamento a perda de meu primeiro orientador, tal foi o
que me possibilitou trabalhar com o Professor Luiz Fernando do Vale de
Almeida Guilherme, ao qual agradeço por toda a atenção que me
concedeu, por horas em seu escritório, onde pudemos debater todos os
temas abordados no presente trabalho.
Dedico um agradecimento especial à Ilustre Desembargadora do
Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, Dra. Maria Berenice Dias, que
foi pioneira na defesa dos direitos dos casais homossexuais, sendo,
inclusive, quem cunhou hoje o consagrado termo homoafetivo. Sua obra
como um todo, citada por diversas vezes neste trabalho, é uma verdadeira
ode contra o preconceito, inclusive e especialmente aquele que infelizmente
existe no Poder Judiciário, o qual deveria ser imparcial e neutro na análise
dos litígios. Agradeço também à atenção e simpatia que ela sempre me
concedeu, nas diversas ocasiões em que nos encontramos.
Fico extremamente honrado com as afirmações da autora no sentido de
que: (i) este trabalho é um verdadeiro coroamento de toda uma trajetória de
avanços e conquistas no tema dos direitos dos casais homoafetivos; (ii) que
até agora não havia nenhum trabalho que abordasse o tema com todos os
seus desdobramentos; (iii) que o diferencial desta obra encontra-se no
enfoque constitucional na análise do tema; e que (iv) a identificação das
técnicas de colmatação de lacunas demonstra a desnecessidade de alteração
legislativa para se garantir os direitos dos casais homoafetivos. Essas
colocações, vindas de Maria Berenice Dias, que é a vanguardista e o maior
nome a respeito do tema, premiam todo o esforço e dedicação
empreendidos na elaboração do presente trabalho.
Agradeço também à minha amiga Deborah Gaudêncio Figueiredo,
cuja amizade é uma bênção que foi e continua sendo muito importante em
minha vida.
Agradeço igualmente ao amigo e ex-chefe, Adriano César da Silva
Álvares, pessoa de notável saber jurídico que, por diversas vezes, se dispôs
a debater o tema objeto deste trabalho e me ajudou, assim, a entender todas
as nuances relativas ao presente tema. Aprecio, também, o auxílio de
Adriana Coutinho Pinto, que me auxiliou enviando notícias com decisões
judiciais sempre que tinha acesso a elas e, especialmente, debatendo
comigo a questão da teoria da inexistência do ato jurídico, o que foi
fundamental à minha percepção da diferença entre inexistência jurídica de
atos que existiram no mundo fático e inexistência jurídica de atos que não
existiram no mundo fático.
Agradeço, ainda, a Kelen Carla Bertol, jurista paranaense que
gentilmente encaminhou-me sua ótima monografia sobre adoção
homoafetiva2, com quem tive contato no início de 2006 e que me fez ver a
importância de se relatar todo o histórico de perseguições a homossexuais
para que as pessoas percebam as barbaridades cometidas contra eles ao
longo dos tempos, o que me possibilitou, ainda, demonstrar: (i) que a
homossexualidade é tão antiga quanto a humanidade; e (ii) a origem do
preconceito homofóbico.
Um agradecimento também ao Curso de Especialização em Direito
Constitucional (Pós-Graduação Lato Sensu) da Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo (PUC/SP), em especial aos Professores Luiz
Guilherme Arcaro Conti, Roberto B. Dias da Silva e Derly Barreto
Silva Filho (que me acompanharam ao longo de toda a Especialização),
tendo em vista que este trabalho foi profundamente incrementado com base
em meus estudos de Direito Constitucional.
Por fim, agradeço a toda a minha família e amigos, sem os quais minha
vida não teria o menor sentido.

2 BERTOL, Kelen Carla. Adoção homoafetiva, 2005, monografia apresentada como


requisito parcial para a obtenção do grau de bacharel em Direito na Universidade do
Vale do Itajaí no 2.º semestre daquele ano, na qual, depois de uma precisa síntese
histórica sobre a origem e a evolução da família, sobre o instituto da adoção e sobre a
forma como a homossexualidade foi tratada ao longo dos tempos, a autora conclui que
os princípios constitucionais da igualdade, da não discriminação por orientação sexual,
da dignidade humana e da integral proteção do menor demandam pelo
reconhecimento da possibilidade jurídica da adoção por casais homoafetivos, ante a
ausência de provas de que a criação de um menor por um casal homoafetivo traga
prejuízos a esta criança (donde inconstitucional o entendimento em sentido contrário,
ainda que se interprete a literalidade da legislação como proibitiva da adoção
homoafetiva, como a autora parece fazer – razão pela qual ela se utiliza dos citados
princípios constitucionais para embasar sua conclusão).
NOTA DO AUTOR À 2.ª EDIÇÃO3

Poucos dias depois da publicação da 1ª edição deste livro, em 26 de


agosto de 2008, surgiu um prenúncio de que dias melhores estavam por vir
para o que Maria Berenice Dias chama de Direito Homoafetivo4: no dia 2
de setembro de 2008 foi proferido o voto-desempate do Recurso Especial
820.475/RJ para, por 3 x 2, termos a primeira decisão do Superior Tribunal
de Justiça reconhecendo a possibilidade jurídica da união estável
homoafetiva, por analogia.
Trata-se de decisão paradigmática, na medida em que foi o primeiro
caso, no âmbito do Direito das Famílias, que obteve uma decisão favorável
do STJ acerca do tema – dois julgados anteriores citaram o cabimento da
analogia para tal fim, mas em julgamentos relativos a temas previdenciários
(REsp 238.715/RS e REsp 395.904/RS). Nesse sentido, considerando que o
STJ reformou decisão que impedia o processamento da ação sob o
fundamento de impossibilidade jurídica do pedido, tem-se que a afirmação
da possibilidade jurídica do pedido de reconhecimento e dissolução de
união estável entre duas pessoas do mesmo sexo implica a afirmação de que
a união estável é um regime jurídico que abarca as uniões homoafetivas. O
STJ não disse que aquela união específica era estável porque o recurso se
voltava contra o indeferimento da petição inicial, no qual não havia
ocorrido a dilação probatória apta a comprovar que o casal atendia aos
requisitos legais do art. 1.723 do CC/2002, a saber, publicidade,
continuidade e durabilidade da união aliada ao intuito de constituir família,
mas isso não apaga o fato de que o STJ afirmou, naquele julgado, que,
provados esses requisitos legais, deve ser aplicado o regime jurídico da
união estável às uniões homoafetivas, por analogia.
Posteriormente, tivemos outros julgados paradigmáticos do STJ
favoráveis ao tema:
(i) o REsp 1.026.981/RJ, também reconhecendo o status jurídico-
familiar das uniões homoafetivas para estender o benefício de
previdência privada a um companheiro homoafetivo, em julgado que
marcou a mudança de opinião da Ministra Nancy Andrighi, a qual, em
julgado anterior (REsp 773.136/RJ), havia negado a possibilidade
jurídica da união estável homoafetiva por considerar a união
homoafetiva “dessemelhante” à união heteroafetiva, embora não tenha
explicado o motivo dessa suposta “dessemelhança”. Considero isso
excelente, por se tratar de uma Ministra que pauta suas decisões na
principiologia constitucional, em especial no princípio da dignidade da
pessoa humana, contrariando a descabida posição de muitos ministros
do STJ (criticada já na primeira edição deste livro) que se negam a
analisar dispositivos constitucionais na interpretação das leis;
(ii) o REsp 889.852/RS, no qual o STJ confirmou decisão do
TJ/RS que deferiu a adoção conjunta por um casal homoafetivo, o que
foi uma grande vitória por ser a primeira decisão do STJ acerca da
adoção homoparental – e por unanimidade.

Contudo, o que parecia apontar para a consolidação da união estável


homoafetiva na jurisprudência do STJ deparou-se com uma desagradável
surpresa nos últimos dias de 2010 – no dia 26 de dezembro de 2010, sob a
lavra do Desembargador convocado Vasco de La Giustina, deu-se
provimento a dois recursos especiais (REsp 633.713/RS e REsp
704.803/RS), nos quais se afirmou que a união homoafetiva seria uma mera
“sociedade de fato” e não uma família, contrariando as decisões mais
recentes do tribunal e pautando-se na simplória argumentação da
literalidade normativa para negar o regime jurídico da união estável para
casais homoafetivos. Um flagrante retrocesso já naquele momento
histórico5. Um formalismo cego avalorativo perpetrado pelo relator, que
não se ateve ao caráter substantivo/teleológico das normas jurídicas para só
reconhecer como juridicamente possível o que está expressamente previsto
na lei, contrariando a jurisprudência consolidada do STJ no sentido de que a
impossibilidade jurídica do pedido só existe quando há lei que
expressamente proíba a situação ou que limite a aplicação do regime
jurídico em questão com palavras como “apenas”, “somente” e afins, o que
inexiste no presente caso. Uma decisão lamentável, ainda, por não ter citado
os julgados supra-apontados do próprio STJ, mas apenas os anteriores que
negavam o direito à união estável homoafetiva (ao leitor desavisado,
parecia que o STJ jamais teria reconhecido dito direito, por analogia – se
discordava de tais precedentes, deveria tê-los citado e enfrentado seus
fundamentos, ainda que sinteticamente; não parece crível que referido
julgador desconhecesse ditos julgados). Contudo, posteriormente, como
demonstrado no Capítulo 12, consolidou-se a jurisprudência do STJ pela
possibilidade jurídica da união estável homoafetiva, por analogia.
Nesse sentido, enquanto se travava tal batalha na jurisprudência do STJ
para ver qual posição prevaleceria, o Supremo Tribunal Federal anunciou,
no final de janeiro de 2011, que, em breve, julgaria a ADPF 132 e a ADI
4.277, que requeriam a aplicação do regime jurídico da união estável a
casais homoafetivos, seja pela incidência direta dos princípios da igualdade,
da dignidade da pessoa humana, da liberdade e da segurança jurídica, ou,
alternativamente, por analogia. Tal anúncio, aliás, fez com que fosse adiado
o lançamento da segunda edição desta obra, que estava programado para ser
feito nos dias 23 a 25 de março de 2011, quando da realização do I
Congresso Nacional de Direito Homoafetivo, no Rio de Janeiro, pois não
faria sentido lançar a segunda edição antes (ao menos do início, caso
houvesse pedido de vistas) deste histórico julgamento cujo início era
anunciado tido como iminente (adiamento feito, inclusive, como forma de
respeito ao leitor, para evitar que comprasse uma nova edição que teria que
ser em breve atualizada por conta do referido julgamento).
Pois bem: no julgamento do Supremo Tribunal Federal da ADPF
132 e da ADI 4.277, nos dias 4 e 5 de maio de 2011, nossa Suprema Corte
reconheceu que a união homoafetiva é uma entidade familiar e, portanto,
merecedora de proteção do regime jurídico da união estável, na qual é
reconhecida a possibilidade jurídica da união estável homoafetiva (até
porque as ações pediam a extensão do regime jurídico da união estável às
uniões homoafetivas que atendam os requisitos legais da publicidade,
continuidade, durabilidade e do intuito de constituir família). Com essa
decisão, foi atribuída interpretação, conforme a Constituição, ao art. 1.723
do CC/2002 “para dele excluir qualquer significado que impeça o
reconhecimento da união contínua, pública e duradoura entre pessoas do
mesmo sexo como entidade familiar, entendida como sinônimo perfeito de
família. Reconhecimento que é de ser feito segundo as mesmas regras e
com as mesmas consequências da união estável heteroafetiva”.6
Após essa paradigmática decisão do STF, não houve nenhum outro
julgado, no STJ, que tenha negado a possibilidade jurídica da união estável
homoafetiva – até porque a decisão do STF teve efeito vinculante e eficácia
erga omnes, ou seja, é de obediência obrigatória em todo o território
nacional. Pelo contrário, tivemos ainda um fantástico avanço: o
reconhecimento da licitude do casamento civil homoafetivo, no
julgamento do REsp 1.183.348/RS, realizado nos dias 20 e 25 de outubro de
2011, mediante o reconhecimento de que os dispositivos legais que
regulamentam o casamento civil “não vedam expressamente o casamento
entre pessoas do mesmo sexo”, bem como que “não há como enxergar
vedação implícita ao casamento homoafetivo sem afronta a caros princípios
constitucionais, como o da igualdade, o da não discriminação, o da
dignidade da pessoa humana e os do pluralismo e livre planejamento
familiar”. Utilizando a mesma lógica por ele empregada no julgamento do
REsp 820.475/RJ, relativo à união estável homoafetiva, o relator, Ministro
Luís Felipe Salomão, afirmou que o legislador poderia, se quisesse, ter
utilizado expressão restritiva, de modo a impedir que a união entre pessoas
do mesmo sexo ficasse definitivamente excluída da abrangência legal, o que
não ocorreu. “Por consequência, o mesmo raciocínio utilizado, tanto pelo
STJ quanto pelo STF, para conceder aos pares homoafetivos os direitos
decorrentes da união estável, deve ser utilizado para lhes franquear a via do
casamento civil, mesmo porque é a própria Constituição Federal que
determina a facilitação da conversão da união estável em casamento”,
concluiu o relator.7
Somente essas decisões do STJ e do STF já justificariam uma nova
edição, mas há outras questões. Primeiramente, a publicação de outros
trabalhos defendendo a possibilidade jurídica do casamento civil
homoafetivo, algo que, em 2008, só existia em dois livros – neste e em um
de autoria de Jorge Luiz Ribeiro de Medeiros,8 livro de excelente qualidade,
publicado apenas um mês antes do presente Manual da Homoafetividade.
Infelizmente, a quantidade de livros defendendo a possibilidade
jurídica do casamento civil homoafetivo ainda é baixa. Aliás, algo
extremamente paradoxal é o reconhecimento da união estável homoafetiva
e não do casamento civil homoafetivo, na medida em que a tese jurídica
para ambos é rigorosamente a mesma: reconhecendo-se a união
homoafetiva como família conjugal, aplica-se a interpretação extensiva ou a
analogia para aplicar o regime jurídico da união estável à união
homoafetiva, mas não fazê-lo relativamente ao regime jurídico do
casamento civil para reconhecer o casamento civil homoafetivo é uma
postura contraditória. Com efeito, tanto a união estável quanto o casamento
civil são regimes jurídicos voltados a proteger a família, e as redações dos
dispositivos respectivos são rigorosamente análogas – ambas citam a
expressão “o homem e a mulher” sem conjunções restritivas à
heteroafetividade ou proibitivas da homoafetividade para tais regimes
jurídicos. Não há nenhum requisito imanente ao casamento civil que
inexiste na união estável fora da excepcional hipótese do art. 1.723, § 1.º,
do CC/2002.9 Em razão disso, esta edição traz críticas a decisões do TJ/RS
que negaram o direito ao casamento civil homoafetivo mesmo anotando que
reconhecem a união estável homoafetiva.10
Quase todos os capítulos deste livro tiveram acréscimos substanciais,
sendo que esta obra analisa todas as decisões que reconheceram o direito ao
casamento civil homoafetivo que este autor teve ciência no Capítulo 6, o
que se fez para mostrar a riqueza e variedade de argumentos aptos a
reconhecer a colmatar a lacuna normativa respectiva para garantir dito
direito aos casais homoafetivos que o desejam.
Nos Capítulos 1 e 6 foi incluída a célebre História da Sexualidade, de
Michel Foucault, em seus três volumes. A obra de Foucault trouxe maiores
detalhes à explicação da sexualidade no Mundo Antigo, enriquecendo a
compreensão do tema, embora sem alterar as conclusões constantes da 1ª
edição (Capítulo 1), bem como trouxe importantes considerações sobre a
evolução histórica da compreensão sobre o casamento (Capítulo 6).
No Capítulo 2, há maiores desenvolvimentos sobre os conceitos de
orientação sexual e identidade de gênero, assim como uma conceituação de
gênero, fruto de reflexões desenvolvidas em minha dissertação de mestrado
em Direito Constitucional perante a Instituição Toledo de Ensino/Bauru.11
Desenvolvi, ainda, o argumento em defesa dos termos
homoafetividade/heteroafetividade, cunhado por Maria Berenice Dias, que
têm sido criticados pelo que considero um senso comum acrítico sobre a
origem e o fundamento de tais palavras.
Os Capítulos 3 e 4 tiveram acréscimos doutrinários e jurisprudenciais
(STF, ADPF 132 e ADI 4.277).
O Capítulo 5 foi alvo de inclusões no tema do afeto como o principal
(embora não o único) elemento formador da família contemporânea,
mediante a citação do entendimento de artigos jurídicos voltados ao tema –
tanto doutrinárias quanto jurisprudenciais (STF, ADPF 132 e ADI 4.277).
O Capítulo 6 teve o acréscimo de entendimentos de outros autores,
citados nesta nota, sobre a possibilidade jurídica do casamento civil
homoafetivo, assim como a inclusão de um tópico inicial que traz as lições
de Foucault sobre as razões que fizeram com que o casamento alcançasse o
status de união mais vangloriada nas sociedades ocidentais – o que permitiu
algumas conclusões de minha parte sobre possíveis motivos do
heterossexismo social em termos de uniões conjugais.
O Capítulo 7, atinente à união estável, recebeu aportes relativos à
decisão do STF na ADPF 132 e na ADI 4.277, além de informações sobre a
ADPF 178 (convertida na ADIn 4.277), ao amicus curiae e à menção à
sustentação oral que realizei no referido julgamento. A explicação dos votos
dos ministros neste paradigmático julgamento foi feita no Capítulo 11.
O Capítulo 8 recebeu aportes doutrinários consideráveis, inclusive com
a demonstração da analogia entre a situação da oposição ao casamento civil
homoafetivo, hoje relativamente à antiga proibição ao casamento inter-
racial no passado (citando a decisão da Suprema Corte dos EUA no famoso
caso Loving vs. Virginia, que declarou a inconstitucionalidade da proibição
do casamento inter-racial e demonstrando como a sua ratio decidiendi é
aplicável para reconhecer, também, o direito ao casamento civil
homoafetivo), bem como acréscimos do julgamento do STF da ADPF 132 e
da ADI 4.277.
O Capítulo 9, sobre a interpretação conforme a Constituição, recebeu
substanciais acréscimos, pois foi esta a técnica utilizada pelo STF para
julgar procedentes a ADPF 132 e a ADI 4.277, aplicando interpretação
conforme ao art. 1.723 do CC/2002 “para dele excluir qualquer significado
que impeça o reconhecimento da união contínua, pública e duradoura entre
pessoas do mesmo sexo como entidade familiar, entendida como sinônimo
perfeito de família. Reconhecimento que é de ser feito segundo as mesmas
regras e com as mesmas consequências da união estável heteroafetiva”,12
oportunidade na qual defendi o cabimento e a correção do uso dessa técnica
decisória (ou, no mínimo, da técnica de declaração de nulidade sem redução
de texto) para o reconhecimento da união estável homoafetiva.
O Capítulo 10 recebeu alguns acréscimos com base na decisão do STF
na ADPF 132 e na ADI 4.277.
O Capítulo 11, que traz minhas refutações às argumentações
doutrinário-jurisprudenciais contrárias ao casamento civil, à união estável e
à adoção conjunta por casais homoafetivos, terá nesta segunda edição
apenas o que nos demais capítulos se refere à síntese conclusiva, sendo que
o conteúdo na íntegra será disponibilizado na internet no seguinte link:
http://pauloriv71.wordpress.com/2012/10/02/manual-da-homoafetividade-
segunda-edicao-capitulos-online/. Isso se fez necessário porque este
capítulo já sofreu acréscimos substanciais de mais de aproximadamente
cem páginas, donde, para evitar o encarecimento do livro por conta disso,
optamos por sua disponibilização na internet.
O Capítulo 12 traz o desempate do julgamento do REsp 820.475/RJ em
prol da união estável homoafetiva (que estava empatado, em 2 x 2, quando
da publicação da primeira edição), e dos demais julgados supraexplicitados
do STJ sobre o tema, bem como explica os argumentos que apresentei na
sustentação oral que realizei perante o STJ no julgamento do REsp n.º
1.183.378/RS, que reconheceu o direito ao casamento civil homoafetivo
direto, sem necessidade de prévia união estável13. Contudo, pela mesma
razão informada no parágrafo anterior relativamente ao Capítulo 11,
considerando que este capítulo teve um acréscimo substancial de páginas,
sua íntegra será disponibilizada na internet no seguinte link:
http://pauloriv71.wordpress.com/2012/10/02/manual-da-homoafetividade-
segunda-edicao-capitulos-online/.
O Capítulo 13 traz menção à manifestação de amicus curiae e à
sustentação oral que apresentei no julgamento da ADPF 132 e da ADI
4.277, além de explicação detalhada dos argumentos invocados pelos
ministros neste histórico julgamento, bem como a explicação de julgados
posteriores, como aquele da lavra do Ministro Celso de Mello (o qual me
honrou com a citação deste livro em seu voto), que bem sintetiza a postura
de nossa Suprema Corte acerca do tema (RE 477.554/MG AgR).
Os Capítulos 14 e 15 tiveram os títulos e conteúdos adaptados à
decisão do STF na ADPF 132 e na ADI 4.277. Referidos capítulos foram
nominados, na primeira edição, como “Solução Paliativa I: Contratos de
União Estável” e “Solução Paliativa II: Teoria das Sociedades de Fato”,
respectivamente, nos quais afirmamos que, enquanto não prevalecesse na
jurisprudência a possibilidade jurídica da união estável homoafetiva, então
casais homoafetivos deveriam firmar contratos de união estável para ter
algum resguardo patrimonial, oriundo do Direito das Obrigações, ou, caso
não o fizessem, invocassem a teoria das sociedades de fato (criada para
situações de concubinato), também para terem alguma proteção jurídica.
Contudo, com a citada decisão do STF, a união homoafetiva foi reconhecida
como união estável, em que os contratos de união estável por ela firmados
não configuram mais “solução paliativa” de Direito das Obrigações, mas
contrato típico de Direito das Famílias. Nesse sentido, descabida a
invocação da “teoria das sociedades de fato”, pois, após a decisão do STF, é
obrigatório reconhecer à sociedade de afeto oriunda da família conjugal
homoafetiva a proteção do Direito das Famílias. Logo, os capítulos foram
renomeados, respectivamente, para “Contratos de União Estável
(Homoafetiva ou Heteroafetiva)” e “O Concubinato e a Teoria das
Sociedades de Fato. Histórico. Inadequação à Hipótese de União Estável
Homoafetiva. O Concubinato Homoafetivo”.
O Capítulo 16 traz alguns desenvolvimentos das teses nele já
existentes, em especial sobre o “argumento” que me foi apresentado
algumas vezes por pessoas com quem debati informalmente, no sentido de
que deveria haver o consentimento de um adolescente (maior de 12 anos)
para que fosse deferida sua adoção a um casal homoafetivo, diante do
preconceito que este poderia sofrer. Na verdade, este “argumento” já foi
enfrentado no item 3.3.1 do referido capítulo, quando apontei a
inconstitucionalidade de utilização do preconceito alheio como
“justificativa” para se negar a adoção a um casal homoafetivo. De qualquer
forma, o tema foi tratado para se demonstrar a profunda arbitrariedade
desse “argumento”. Explicou-se aqui a paradigmática decisão da Corte
Interamericana de Direitos Humanos no caso Atalla y niñas vs. Chile, no
qual a Corte reconheceu que o Estado não pode tirar a guarda ou custódia
de crianças e adolescentes de homossexuais por conta unicamente da
orientação sexual destes ou de presunções estereotipadas sobre a
homossexualidade. É uma decisão histórica no âmbito interamericano que
reafirma a proibição da discriminação por orientação sexual decorrente da
correta interpretação da Convenção Interamericana de Direitos Humanos.
O Capítulo 17 sofreu pequenos acréscimos bibliográficos.
Por fim, transcrevi e/ou citei trechos da decisão do STF ao longo dos
capítulos desta obra e mencionei, no índice, os tópicos nos quais a decisão
foi citada ou mencionada.
Anote-se, ainda, que nesta obra não trabalho o tema da transexualidade
por entender que ele merece uma obra específica para tanto. De qualquer
forma, considerando ser comum em obras que falam da união homoafetiva
trabalhar o tema, cabe mencionar brevemente que entendo cabível o direito
à mudança de prenome e sexo jurídico das pessoas travestis e transexuais –
mudança de prenome pelo apelido público notório (que nada mais é do que
o nome social que referidas pessoas usam), consoante autorizado pelo art.
58 da Lei de Registros Públicos (Lei 6.015/73) e mudança de sexo jurídico
pela prevalência do sexo psicológico sobre o sexo biológico e a inexistência
de prejuízos à sociedade nessas adequações que pudessem “justificar” uma
negativa insensível à adequação de seus documentos à sua realidade
psicológica e social (até porque nome e sexo devem representar a realidade
social da pessoa, não uma situação que não condiz com a vivência da
mesma). Sobre o tema, remeto o leitor à paradigmática decisão do TJRS na
Apelação Cível 7003050407014, que bem explica o direito à mudança de
prenome e sexo independentemente da realização de cirurgia de
transgenitalização15: que justifico aqui pelo fato de que o direito ao nome e
à identidade pessoal e social (que inclui o sexo jurídico da pessoa,
entendido como aquele que consta de seus documentos) não pode ser
vinculado a um invasivo procedimento cirúrgico quando isso não for
possível à pessoa transexual (por questões financeiras ou de saúde, por
exemplo) ou quando essa simplesmente não for a sua vontade (a despeito de
algum conceito médico estanque e insensível à realidade, transexual é quem
se identifica com o sexo oposto, independentemente de querer realizar ou
não a cirurgia de transgenitalização – e não apenas quem deseja realizar
referida cirurgia, donde o direito à mudança de sexo jurídico não pode
depender da realização da referida cirurgia – desenvolvo o conceito de
transexualidade e travestilidade no Capítulo 2 desta segunda edição)16.
Estamos vivendo um momento histórico – o momento do gradativo
reconhecimento da plena cidadania dos casais homoafetivos pela
jurisprudência brasileira – do qual tenho a maravilhosa oportunidade de
participar, em especial pelo amicus curiae e pela sustentação oral que
apresentei no julgamento do STF na ADPF 132 e na ADI 4.277 (união
estável homoafetiva), a sustentação oral que proferi perante o STJ no
histórico julgamento do REsp 1.183.348/RS, primeiro a reconhecer o
direito ao casamento civil homoafetivo no âmbito do STJ, bem como aquela
que proferi perante o Conselho Superior da Magistratura do TJSP no
julgamento de 31 de maio de 2012, que reconheceu o direito de casais
homoafetivos converterem suas uniões estáveis homoafetivas em casamento
civil, bem como ao casamento civil homoafetivo direto, sem prévia união
estável (TJSP, Apelação Cível 0034412-55.2011.8.26.0071).
Claro, a luta judicial das minorias sexuais pela cidadania material
ainda não se findou: a jurisprudência precisa se consolidar acerca da
possibilidade jurídica do casamento civil homoafetivo e da adoção conjunta
por casais homoafetivos, para ficar apenas nestes dois temas de Direito das
Famílias. Sem falar no fato de que o reconhecimento de direitos não apaga
ainda o fato de que o Brasil precisa combater de maneira eficiente a
homofobia, criminalizando-a em igualdade de condições com a
criminalização do racismo17 (até porque a homofobia é espécie do gênero
racismo, uma vez que racismo é toda ideologia que prega a
superioridade/inferioridade de um grupo relativamente a outro, consoante
reconhecido por Guilherme de Souza Nucci18 com base na decisão do STF
no HC 82.424/RS – e o heterossexismo social e a homofobia pregam a
superioridade de heterossexuais sobre a população LGBT, logo, são
ideologias inerentemente racistas), e adotar políticas públicas eficientes de
conscientização e sensibilização da sociedade em geral (bem como
capacitar servidores públicos em sentido amplo e do comércio em geral)
para bem atender a comunidade LGBT (Lésbicas, Gays, Bissexuais,
Travestis e Transexuais – bem como de intersexuais) – algo dificultado
sobremaneira pelo recrudescimento do fundamentalismo religioso que
assola nosso Congresso Nacional em sua postura totalitária de negar
direitos à população LGBT por conta de seus arbitrários dogmas religiosos
(ignorando que liberdade religiosa significa, também, o direito de não ser
discriminado pela religião alheia19). Logo, a despeito de todos os avanços
supranarrados em termos jurisprudenciais, percebe-se que ainda falta muito
para o Brasil ser um país que aceite de forma verdadeira e genuína o
respeito à diversidade sexual, em toda a sua rica pluralidade.

3 A presente nota tem a intenção de analisar a evolução da jurisprudência do STJ e do


STF acerca do tema da união homoafetiva, para, posteriormente, explicar as
alterações sofridas por cada um dos capítulos desta obra.
4 Entender o Direito Homoafetivo como um novo ramo ou sub-ramo do Direito supõe
apontar princípios específicos que o justifiquem. A meu ver, pode-se falar no princípio
da não discriminação por orientação sexual e identidade de gênero no Direito das
Famílias, ao passo que o Direito da Diversidade Sexual seria pautado pelo princípio da
não discriminação por orientação sexual e identidade de gênero no Direito como um
todo, não apenas no Direito das Famílias. Em ambos os casos, aplicando-se também
o direito ao igual respeito e consideração relativamente àqueles dispensados às
pessoas heterossexuais cisgêneras (que se identificam com o gênero socialmente
atribuído a seu sexo biológico). Contudo, não cabem aqui maiores desenvolvimentos
acerca do tema.
5 Destacando tal retrocesso, vide DIAS, Maria Berenice. União homoafetiva não é
apenas dividir economias. Disponível em: <http://www.conjur.com.br/2010-dez-24/stj-
retrocede-considerar-uniao-homoafetiva-sociedade-fato> (matéria de 24.12.10; último
acesso: 26 dez. 2011).
6 Cf. voto do relator, Ministro Ayres Britto, p. 32 do acórdão.
7 Para notícia que sintetiza os argumentos do paradigmático voto do relator, vide
<http://www.stj.jus.br/portal_stj/publicacao/engine.wsp?
tmp.area=398&tmp.texto=103594>. Notícia de 20 out. 2011; último acesso em: 26 dez.
2011.
8 MEDEIROS, Jorge Luiz Ribeiro de. A Constitucionalidade do Casamento Homossexual.
São Paulo: LTr, 2008 – fruto da dissertação de mestrado de seu autor.
9 Que reconhece a existência de união estável quando, apesar do casamento de uma ou
de ambas as partes, estiver (em) ela(s) separada(s) de fato de seu(s) cônjuge(s). Com
a separação de fato, é reconhecida a união estável, a despeito da ausência de
divórcio. É a única hipótese da legislação que permite a existência de união estável
não passível de conversão em casamento civil – o que perdurará enquanto não houver
o divórcio do(a) companheiro(a) em questão de seu cônjuge.
10 Tais críticas foram objeto de artigo de minha autoria: A Família Juridicamente
Protegida, a Lei Maria da Penha e a Proteção Constitucional da Família Homoafetiva –
Equívocos dos Julgamentos do TJRS que Negaram o Direito ao Casamento Civil
Homoafetivo. Revista Brasileira do Direito das Famílias e Sucessões, ano XII, n.º 16,
jun.-jul. 2010, pp. 93-117.
11 VECCHIATTI, Paulo Roberto Iotti. A Luta Judicial das Minorias Sexuais pela Cidadania
Material. Dissertação de Mestrado, apresentada ao Programa de Pós-Graduação
Stricto Sensu em Direito (Área de Concentração: Sistema Constitucional de Garantia
de Direitos), do Centro de Pós-Graduação da Instituição Toledo de Ensino, para a
obtenção do título de Mestre em Direito, sob orientação da Profª. Eliana Franco Neme.
Banca realizada no dia 04.12.2010. Aprovação com nota máxima.
12 Cf. voto do relator, Ministro Ayres Britto, p. 32 do acórdão.
13 Elaborei um relato explicando minha trajetória neste processo em
http://pauloriv71.wordpress.com/2011/11/07/o-stj-e-o-casamento-civil-homoafetivo-
relato-n-%C2%BA-2/ – o relato do advogado que elaborou a ação e cuidou de quase
todo o processo (fiz apenas a sustentação oral perante o STJ) encontra-se
em http://pauloriv71.wordpress.com/2011/11/07/o-stj-e-o-casamento-civil-homoafetivo-
relato-n-%C2%BA-1/ [para a íntegra de minha sustentação oral perante o Conselho
Superior da Magistratura do Tribunal de Justiça de São Paulo no julgamento de
31.05.2012 (Recurso 0034412-55.2011.8.26.0071), que reconheceu o direito de
conversão de união estável homoafetiva em casamento civil e mesmo do casamento
civil direto, que é praticamente a mesma que fiz perante o STJ,
vide http://pauloriv71.wordpress.com/2012/06/01/sustentacao-oral-no-tjsp-em-prol-da-
conversao-de-uniao-estavel-homoafetiva-em-casamento-civil/ (último acesso a tais
links em 02.10.12)].
14 Disponível no site www.direitohomoafetivo.com.br, que traz diversas outras decisões
sobre o tema.
15 Vide, ainda, VECCHIATTI, Paulo Roberto Iotti. O direito do transexual com filhos à
cirurgia de transgenitalização. In: DIAS, Maria Berenice (org.). Diversidade Sexual e
Direito Homoafetivo. São Paulo: RT, 2011, pp. 445-460.
16 Paradigmática decisão do STJ desenvolve amplamente os fundamentos do direito à
mudança de prenome e sexo jurídico de transexuais, a saber: REsp 1.008.398/SP
(decisão disponível no site do STJ – www.stj.jus.br – que versa sobre caso de pessoa
transexual que realizou cirurgia de transgenitalização, mas cujos fundamentos entendo
se aplicarem perfeitamente ao caso de pessoa transexual que não realizou a cirurgia
(e, também, a travestis)). Com efeito, vejamos uma singela frase de referida decisão:
“Em última análise, afirmar a dignidade humana significa para cada um manifestar sua
verdadeira identidade, o que inclui o reconhecimento da real identidade sexual, em
respeito à pessoa humana como valor absoluto” – como se vê, tal se aplica também a
casos de transexuais que não realizaram a cirurgia de transgenitalização e, portanto,
também a travestis. Outra decisão do STJ que autorizou mudança de prenome e sexo
jurídico de pessoa transexual operada é a do REsp 737.993/RJ.
17 Sobre o tema, este autor elaborou o Mandado de Injunção 4.733 em nome da ABGLT
– Associação Brasileira de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais,
distribuído em maio/2012 perante o Supremo Tribunal Federal e no qual se requereu o
reconhecimento do dever constitucional do Congresso Nacional em criminalizar a
homofobia e a transfobia. Disponibilizei um artigo que resume as teses da referida
ação, justifica seu cabimento e disponibiliza a íntegra de sua petição inicial em
http://pauloriv71.wordpress.com/2012/06/26/mandado-de-injuncao-e-criminalizacao-
de-condutas-o-mi-n-o-4733/ (último acesso em 2 out. 2012).
18 NUCCI, Guilherme de Souza. Leis Penais e Processuais Penais Comentadas. 5. ed.
São Paulo: RT, 2010, pp. 300-306, para quem: “Racismo: é o pensamento voltado à
existência de divisão dentre seres humanos, constituindo alguns seres superiores, por
qualquer pretensa virtude ou qualidade, aleatoriamente eleita, a outros, cultivando-se
um objetivo segregacionista, apartando-se a sociedade em camadas e estratos,
merecedores de vivência distinta. Racista pode ser tanto o sujeito integrante da
maioria de determinado grupo contra qualquer indivíduo componente da minoria
componente dessa comunidade, como o integrante da minoria, quando se defronta
com alguém considerado da maioria. Se o racismo, como acabamos de expor, é,
basicamente, uma mentalidade segregacionista, ele é capaz de percorrer todos os
lados dos agrupamentos humanos”.
19 Nesse sentido: CANOTILHO, José Joaquim Gomes; MOREIRA, Vital. Constituição
Portuguesa Anotada. 1. ed. brasileira, 4. ed. portuguesa, 2007, São Paulo: RT e
Coimbra: Coimbra Editora, p. 609. v. I. Segundo os autores: “(...) A liberdade de
religião é a liberdade de adoptar ou não uma religião, de escolher uma determinada
religião, de fazer proselitismo num sentido ou noutro, de não ser prejudicado por
qualquer posição ou atitude religiosa ou antirreligiosa” (grifo nosso).
PREFÁCIO

Maria Berenice Dias


Desembargadora do Tribunal de Justiça do
Rio Grande do Sul. Vice-Presidente do
IBDFAM – Instituto de Brasileiro de Direito
de Família.
<www.mariaberenice.com.br>

O só compulsar este trabalho duas coisas me agradam de imediato.


As suas primeiras palavras: manual e afetividade.
Nem sei se o termo manual está usado em sua acepção técnica.
Se é que tem ela outro significado além do tomar às mãos, manusear,
portar sempre consigo.
Ao menos, há que significar que foi feito de forma artesanal, com as
mãos.
E, como sempre digo, tudo o que é feito de forma manual tem muito de
quem faz.
Com o feito vai o afeto do fazer.
Também a palavra homoafetividade tem um significado muito especial.
Ao cunhar este neologismo – e isso nos idos de 2000 –, busquei
escancarar uma realidade que o preconceito sempre encobriu. As uniões
entre pessoas, independente de sua identidade sexual, é uma união de afetos
e como tal precisam ser identificadas.
À época surpreendeu-me a absoluta ausência não só de trabalhos,
estudos, artigos tratando das relações homossexuais no âmbito jurídico.
Talvez o mais chocante foi constatar que a omissão gerava um efeito
perverso: a absoluta invisibilidade a que eram condenados os vínculos
afetivos, cujo único diferencial era o fato de serem constituídos por pessoas
de igual sexo.
Não há maior afronta do que o não ver, pois leva a negar a existência
do que existe.
Ao deparar-me com as nefastas consequências desta postura omissiva,
não medi esforços para reverter tão triste realidade.
É por isso que vejo o presente Manual da Homoafetividade: Da
possibilidade jurídica do casamento civil, da união estável e da adoção por
casais homoafetivos como um verdadeiro coroamento de toda uma
trajetória de avanços e conquistas.
Paulo Roberto Iotti Vecchiatti, este jovem advogado que, desde a
graduação no Mackenzie/SP, vem se debruçando sobre este tema (agora na
qualidade de Especialista em Direito Constitucional pela PUC/SP), brinda a
comunidade jurídica com este minucioso e atento trabalho. Sob a
orientação inicial de ninguém menos do que Edvaldo Pereira Brito, só podia
produzir uma obra de tamanha envergadura.
O preconceito contra os homossexuais é histórico e não se pode dizer
que é tão antigo como o homem, porque durante milênios a
homossexualidade – esta sim, é que sempre existiu – não era alvo de
discriminação.
Foi a religião que, ao consagrar o casamento como um sacramento com
fins procriativos, excluiu as uniões inférteis.Os homossexuais tornaram-se
alvo de repúdio por suas uniões deixarem transparecer o prazer sexual que
os une.O comprometimento mútuo desnuda a afetividade como razão
mesma de seus relacionamentos. Talvez sejam estas constatações
que atrapalhem tanto. Claro que se defrontar com esta realidade só pode
gerar reações de quem valoriza a virilidade como a maior qualidade
masculina e relega a mulher à condição inferior, impondo-lhe absoluta
subserviência e submissão.
Mas as lutas emancipatórias, o florescer dos direitos humanos e
a laicização do estado estão forjando a construção de uma nova sociedade.
É preciso resgatar os estragos que acabaram jogando para fora do
âmbito da tutela jurídica significativa parcela da população. Cidadãos como
outros quaisquer, que pagam impostos e muito contribuem para o
desenvolvimento social, não mais podem ser marginalizados por lhes ser
imputado o pecado de deixarem transparecer que amam quem os atrai.
De há muito o mundo civilizado já acordou, transformando em
realidade o que proclama todas as revoluções: o direito à liberdade e à
igualdade.
No Brasil, ainda não faz uma década que a homossexualidade vem
despertando a atenção e, certamente, não há debate que gere discussões
mais acaloradas no mundo acadêmico. Proliferam trabalhos de conclusão
sobre esta temática. Livros, ensaios, artigos surgem a cada dia. Virou tema
de novela e entretém reiterados debates na mídia. Parece que há pressa em
corrigir uma grande injustiça.
Apesar do número de publicações que vem surgindo, até agora não
havia nenhum trabalho que abordasse o tema com todos os seus
desdobramentos, de modo a evidenciar o surgimento de um novo ramo do
direito: Direito homoafetivo.
Nesta tão bem elaborada e minuciosa obra, Paulo Roberto Iotti
Vecchiatti traça um amplo panorama sob os mais diversos aspectos.
Não se limita a fazer um passeio histórico a evidenciar a difícil
trajetória de quem não copia o modelo do igual.
Entra nos meandros da medicina e da psicologia para evidenciar que
nada há de patológico ou doentio em direcionar afeto a pessoa do mesmo ou
do diverso sexo.
Mostra com subsídios científicos como a convivência de crianças em
lares formados por pessoas de igual identidade sexual em nada compromete
seu desenvolvimento e sua perfeita inserção social.
A análise do tema sob o âmbito constitucional marca o diferencial
desta obra. O estudo dos princípios fundamentais e a perfeita identificação
dos meios de colmatar as lacunas deixadas pelo legislador dão um norte
seguro a evidenciar que sequer são necessárias mudanças legais para inserir
as uniões homoafetivas no âmbito de proteção do direito das famílias e
direito sucessório.
Paulo Roberto Iotti Vecchiatti vai além.
Acompanhar a forma de como o tema vem sendo enfrentado pelos
tribunais em muito ilustra a trajetória que já vem sendo trilhada, deixando
entrever que a Justiça anda a passos largos.
Manusear este belo trabalho não permite chegar-se a nenhuma outra
saída que não seja a da responsabilidade.
Responsabilidade de encarar a realidade como ela é.
Responsabilidade de fazer Justiça e não punir alguém pelo só fato de
reivindicar, como todos os demais, o direito de ser feliz.
PREFÁCIO

Luiz Fernando do Vale de Almeida


Guilherme
Advogado, Mestre pela PUC-SP. Professor
de Graduação e Pós-Graduação da Faculdade
de Direito da Universidade Presbiteriana
Mackenzie e da Escola Paulista de
Magistratura (EPM).

O presente trabalho é fruto do esforço do jovem autor, Paulo Roberto


Iotti Vecchiatti, meu amigo, ex-aluno e ex-orientando na graduação da
Faculdade de Direito da Universidade Presbiteriana Mackenzie, atualmente
Especialista em Direito Constitucional pela PUC-SP, o qual jamais se
abalou por qualquer obstáculo que tenha sido necessário superar para a boa
elaboração da presente tese, dedicando-se sempre ao aprimoramento desta.
Neste manual, torna-se clara a atual tendência da jurisprudência que
progride no caminho de modificação da legislação vigente, baseando-se no
princípio da dignidade que decorre dos seres humanos, sendo que sua
exclusão jurídica é inconstitucional.
O tema aqui tratado é polêmico e provoca os leitores à reflexão sobre o
que vale mais, o respeito à isonomia, pilar do estado democrático de direito,
ou os velhos preconceitos arraigados em nossa sociedade.
Por se tratar de um tema novo e que ainda sofre muito preconceito, o
presente trabalho mostra-se pioneiro e de suma importância para o direito,
uma vez que comprova indubitavelmente a existência de bases jurídicas
para o reconhecimento das relações homoafetivas pelo Estado, que possui a
obrigação de regulá-las, visto que assumiu para si o encargo jurisdicional.
Acompanhar a carreira e sonhos deste jovem, desde os bancos
acadêmicos, tem sido para mim motivo de muita satisfação.

São Paulo (SP), 10 de junho de 2008.


APRESENTAÇÃO

Neste livro visa-se demonstrar que o atual ordenamento jurídico


brasileiro, em sua interpretação sistemática (como deve ser feita qualquer
interpretação do Direito), exige o reconhecimento da possibilidade jurídica
do casamento civil, da união estável e da adoção por casais homoafetivos.
Em outras palavras, tem-se o intuito de fornecer bases técnico-jurídicas para
que o Judiciário possa reconhecer o status jurídico-familiar das uniões
homoafetivas, que merecem o mesmo tratamento jurídico conferido às
uniões heteroafetivas, o que só pode ser alcançado atualmente pelo
reconhecimento de seu direito ao casamento civil, à união estável e à
adoção conjunta, únicos regimes jurídicos disponíveis no ordenamento para
tanto.
Este trabalho foi escrito de forma eminentemente positivista (mediante
aplicação dos textos normativos vigentes em nosso país), o que ocorreu por
ter ouvido, no passado, uma crítica aos trabalhos envolvendo a
homoafetividade, no sentido de que seriam eles baseados em valores
abstratos de justiça sem, contudo, apresentarem uma fundamentação
puramente jurídica que justificasse a igualdade de tratamento. Pois bem, foi
isso que pretendi apresentar: uma solução puramente jurídica ao tema, o
que não me impediu de realizar a análise multidisciplinar absolutamente
necessária para a sua correta compreensão.
Os focos centrais foram os princípios da igualdade e da dignidade da
pessoa humana, direitos humanos fundamentais expressamente previstos na
Constituição Federal e que se trata de normas constitucionais de eficácia
plena (art. 5.º, inc. I, da CF/1988). Isso porque o princípio da isonomia
determina que uma diferenciação somente será juridicamente válida se for
baseada em uma fundamentação lógico-racional que a justifique quando
levado em conta o critério diferenciador erigido, o que inexiste na
concessão de menos direitos às uniões homoafetivas em relação àqueles
conferidos às uniões heteroafetivas. Por outro lado, o princípio da dignidade
da pessoa humana estabelece que todos os seres humanos são merecedores
da mesma dignidade pelo simples fato de serem pessoas humanas, só sendo
admitida a relativização da dignidade de uns em relação a outros por meio
do aspecto material da isonomia, ou seja, da existência de fundamentação
lógico-racional para tanto.
O leitor notará que, em muitas oportunidades, foi feita uma abordagem
em forma de “contestação”, no sentido de que foram colacionados
entendimentos doutrinários e jurisprudenciais contrários à tese aqui
defendida para contrapor seus argumentos e, assim, demonstrar seu
descabimento. Deve ficar claro que em nenhum momento se teve a intenção
de desrespeitar aqueles cujos posicionamentos foram contestados: tanto que
sempre se utilizou o termo preconceito em sua definição técnica, por
diversas vezes citado na obra, a saber: juízo de valor dezarrazoado,
irracional, no sentido de que o entendimento contestado não atende ao
critério material da isonomia, que exige fundamentações lógico-racionais
para que uma discriminação seja juridicamente válida. Assim, espero que os
autores e julgadores cujos entendimentos foram contestados nesta obra
aceitem minhas palavras como críticas construtivas e que se manifestem
sobre ditas colocações, para que seja realizado um debate sobre este tema,
tão atual no ordenamento jurídico nacional e internacional.
Nesse sentido, deve-se ressaltar que esta obra é uma tentativa de
diálogo com a doutrina e a jurisprudência, para que o tema das uniões
homoafetivas seja enfrentado da maneira como deve, ou seja, sob o enfoque
da isonomia e da dignidade da pessoa humana. Minha maior crítica a
muitos opositores da possibilidade jurídica do casamento civil, da união
estável e da adoção por casais homoafetivos é o fato de não justificarem a
discriminação por eles defendida perante a isonomia e a dignidade humana,
apegando-se apenas à questão da letra fria da lei (argumento superável pela
interpretação extensiva ou analogia, caso existente na situação não citada
pela norma o mesmo valor protegido por esta), muito embora sejam eles,
por defenderem uma diferenciação jurídica, aqueles com o ônus de
justificação da pertinência lógico-racional desta, por força do aspecto
material da isonomia. Espero que, com o histórico julgamento da ADPF
132 e da ADI 4.277 pelo STF, que reconheceu a possibilidade jurídica da
união estável homoafetiva com igualdade de direitos relativamente à união
estável heteroafetiva, quem eventualmente se oponha à tese se digne a
enfrentar os argumentos apresentados, sem se limitar ao simplório
argumento acerca da literalidade do art. 226, § 3.º, da CF/1988, pois, como
bem declarado pelo Ministro Gilmar Mendes naquele julgamento, o fato de
a Constituição proteger a união estável entre o homem e a mulher não
significa negativa de proteção à união civil ou estável entre pessoas do
mesmo sexo. Logo, é preciso uma análise teleológica, e não meramente
literal, acerca do tema.
Ademais, o leitor notará que foram colacionadas algumas decisões do
Direito Comparado que se manifestaram pela inconstitucionalidade da
proibição ao casamento civil homoafetivo. Destaque-se que o fato de
pertencerem a países cujo sistema jurídico é o do common law (diferente,
portanto, do nosso civil law) é irrelevante para o tema aqui discutido, tendo
em vista que ditas decisões se pautaram pelos princípios da isonomia e da
dignidade da pessoa humana, presentes em nosso ordenamento jurídico-
constitucional e que constituem o fundamento central desta obra, razão pela
qual as peculiaridades daquele sistema jurídico não tiveram nenhuma
relevância para o caso aqui debatido, donde ditos julgados são válidos para
mostrar ao leitor que é possível o Judiciário Brasileiro proferir decisão
similar.
Outrossim, cumpre tecer alguns esclarecimentos sobre ter-se nominado
esta obra como Manual. Este livro é um Manual porque, embora busque se
aprofundar nas questões relativas ao casamento civil, à união estável e à
adoção por casais homoafetivos, cada um de seus capítulos poderia ensejar
um livro próprio – sobre a história do tratamento humano à
homossexualidade (capítulo 1) e a homossexualidade em si (capítulo 2);
sobre os princípios constitucionais invocados (capítulos 3 e 4, além de
outros citados ao longo da obra); sobre as origens e desenvolvimentos de
casamento civil, da união estável e da adoção (capítulos 6 a 8 e 16); sobre a
questão relativa aos contratos de união estável (capítulo 14); sobre a
evolução da teoria das sociedades de fato nas uniões concubinárias
(capítulo 15). Fora outros temas citados ao longo da obra. Foi essa a linha
de pensamento que me fez manter o termo Manual (em contraposição ao
termo Curso, usado tecnicamente para casos em que há um aprofundamento
maior sobre todos os temas) – muito embora as ponderações de Maria
Berenice Dias em seu prefácio a esta obra sejam, como de costume,
precisas, esclarecedoras e válidas.
Passo agora a fazer uma apresentação sintética dos temas trabalhados
ao longo dos capítulos desta obra. O livro foi dividido em duas partes: na
primeira, introduziu-se ao leitor o tema da homossexualidade e, em seguida,
visou-se mostrar os conceitos jurídicos genéricos que ensejaram as
conclusões deste trabalho para, na segunda, efetivamente serem aplicados
tais conceitos ao tema desta obra.
No primeiro capítulo, foram tecidas breves considerações acerca do
tratamento que a homossexualidade tem recebido ao longo da história, com
o intuito de desmistificar preconceitos existentes na mentalidade social e
demonstrar, ainda, o fator que ensejou a institucionalização do preconceito
homofóbico (até então inexistente neste nível) na sociedade. No segundo,
foram feitas considerações acerca da homossexualidade, conceituando-a e
apontando o atual entendimento médico-psicológico acerca do tema, além
de ter-se discorrido brevemente sobre a interpretação histórico-crítica da
Bíblia, que demonstra inexistir efetiva condenação cristã à homoafetividade
– embora se tenha apontado que, ainda que assim não se entenda,
motivações religiosas não podem justificar discriminações jurídicas em
função do princípio do Estado Laico constitucionalmente consagrado. Fiz,
nesta segunda edição, a defesa da pertinência da terminologia
homoafetividade/heteroafetividade, ratificada pelo STF no julgamento da
ADPF 132 e da ADI 4.277, em síntese, pelos termos se referirem à família
conjugal e pela família conjugal contemporânea ser pautada,
primordialmente, pelo afeto como seu elemento constitutivo.
No terceiro capítulo, explicitou-se o conteúdo jurídico dos princípios
da igualdade, que veda discriminações arbitrárias/irracionais, e da
proporcionalidade, que só admite a validade de normas adequadas,
necessárias e proporcionais em sentido estrito. O mesmo foi feito no quarto
capítulo no que tange aos princípios da dignidade da pessoa humana, que
garantem a todos o direito à felicidade e só admitem a relativização da
dignidade de uns em relação à de outros por meio do aspecto material da
isonomia, e da interpretação conforme a Constituição, método de controle
de constitucionalidade que determina uma interpretação sistemática do
Direito à luz dos valores constitucionalmente consagrados.
No quinto capítulo, demonstrou-se a visão que o atual ordenamento
jurídico tem da homoafetividade, demonstrando que ela tem recebido o
mesmo tratamento dispensado ao concubinato heteroafetivo (teoria das
sociedades de fato) – por outro lado, demonstrou-se a mudança de
paradigma da família contemporânea, que deixou de ser formada
meramente pela formalidade do casamento civil para sê-lo por meio do
amor romântico que vise a uma comunhão plena de vida e interesses,
de forma pública, contínua e duradoura, visto ser ele o elemento
formador da família contemporânea constituída por casais (o amor
familiar), razão pela qual se mostram competentes as varas de família para
o julgamento das causas envolvendo as uniões homoafetivas, justamente
por constituírem famílias juridicamente protegidas.
No sexto e no sétimo capítulos, demonstrou-se a possibilidade jurídica
do casamento civil e da união estável entre casais homoafetivos, por meio
do princípio da isonomia e dos institutos da interpretação extensiva ou da
analogia, decorrentes da isonomia, visto que a interpretação teleológica das
leis do casamento civil e da união estável demonstra que ditos regimes
jurídicos visam proteger o amor romântico que vise a uma comunhão plena
de vida e interesses, de forma pública, contínua e duradoura, e não a mera
heterossexualidade do par. O mesmo foi feito no oitavo capítulo, sob o
enfoque do princípio da dignidade da pessoa humana, tendo em vista o grau
inequivocamente maior de dignidade conferido ao casamento civil em
relação a qualquer outra forma de união civil, assim como à união estável
quando comparada ao concubinato (teoria das sociedades de fato).
Nos capítulos nove e dez, demonstrou-se que os princípios da
interpretação conforme a Constituição e da proporcionalidade,
respectivamente, demandam pelo reconhecimento da possibilidade jurídica
do casamento civil e da união estável por casais homoafetivos. Quanto à
interpretação conforme, que se caracteriza como método de controle de
constitucionalidade, ela demanda pela interpretação da legislação
infraconstitucional e das próprias normas constitucionais de uma forma
sistemática, que respeite os valores constitucionalmente consagrados e, em
especial, os princípios da igualdade e da dignidade da pessoa humana, que
devem ser as bases de interpretação do Direito pátrio (assim como os
demais direitos fundamentais). Quanto à proporcionalidade, demonstrou-se
que ela não justifica o não reconhecimento de tais direitos ao mesmo tempo
em que determina que eles sejam reconhecidos.
No capítulo onze, demonstrou-se o descabimento das justificações
atualmente suscitadas pela doutrina jurídica para a exclusão das uniões
homoafetivas do âmbito do Direito das Famílias, em contestações
analíticas. Tive a audaciosa pretensão de completude, de enfrentar a todas
as justificações apresentadas pela doutrina, o que provavelmente não terá
ocorrido pela impossibilidade de se conhecer absolutamente todas as
posições doutrinárias a respeito de qualquer tema – disso o leitor deve
extrair que, se algum argumento não foi enfrentado, é porque não tive
ciência dele. Quando tiver, manifestar-me-ei, em edição seguinte. Nesta
segunda edição consta apenas o que nos demais capítulos equivale à síntese
conclusiva, com breve explicação de seus fundamentos, constando a análise
integral no seguinte link:
http://pauloriv71.wordpress.com/2012/10/02/manual-da-homoafetividade-
segunda-edicao-capitulos-online/.
No capítulo doze, apontou-se para o atual entendimento do Superior
Tribunal de Justiça a respeito do tema, oportunidade na qual foi feita uma
análise detida de diversas decisões e contestamos a posição adotada nos
diversos julgados que não reconheceram a união estável homoafetiva, mas
apenas uma sociedade de fato entre os companheiros – embora alguns
julgados mais recentes tenham afirmado que a união homoafetiva é análoga
à união estável heteroafetiva, bem como aplaudimos a viragem de
jurisprudência do STJ, que, a partir do REsp 820.475/RJ e, especialmente,
do REsp 1.026.981/RJ, consagrou a possibilidade jurídica da união estável
homoafetiva. Nesta segunda edição consta apenas o que nos demais
capítulos equivale à síntese conclusiva, com breve explicação de seus
fundamentos, constando a análise integral no seguinte link:
http://pauloriv71.wordpress.com/2012/10/02/manual-da-homoafetividade-
segunda-edicao-capitulos-online/.
No capítulo treze, teceram-se comentários sobre o posicionamento do
Supremo Tribunal Federal, com forte ênfase no histórico julgamento da
ADPF 132 e da ADI 4.277, nas quais o Tribunal reconheceu a possibilidade
jurídica da união estável homoafetiva.
Nos capítulos catorze e quinze, tratou-se dos contratos de união estável
homoafetiva e da teoria das sociedades de fato, a eles atualmente aplicada.
Se, na primeira edição desta obra, falou-se que essas eram “soluções
paliativas” até o reconhecimento jurídico da família conjugal homoafetiva,
com a decisão do STF na ADPF 132 e da ADI 4.277, de efeito vinculante e
eficácia erga omnes (ou seja, de cumprimento obrigatório no país inteiro),
tem-se que o contrato de união estável homoafetiva deve ter,
obrigatoriamente, o mesmo valor do contrato de união estável
heteroafetiva, ao passo que a teoria das sociedades de fato se mostra
inaplicável a uniões estáveis homoafetivas que não tenham incidentes
nenhum dos taxativos impedimentos matrimoniais do art. 1.521 do
CC/2002. Por essa razão, alteramos o título de tais capítulos, adaptando-os
ao decidido pelo STF no citado julgamento.
No capítulo dezesseis, discorreu-se sobre o tema da possibilidade
jurídica da adoção por homossexuais solteiros e por casais homoafetivos,
demonstrando inicialmente a existência de um direito fundamental à
parentalidade por parte das pessoas adultas e de um direito fundamental de
ser adotado por parte dos menores que não possam ser criados por seus pais
biológicos, direitos estes decorrentes do princípio da dignidade da pessoa
humana, que, como dito, garante a todos o direito à felicidade. Ademais,
demonstrou-se que inexiste qualquer prejuízo ao menor na sua criação em
um lar homoafetivo e, ao contrário, que o princípio da integral proteção a
crianças e adolescentes é afrontado pela negativa de adoção por
homossexuais solteiros e casais homoafetivos – além de tal recusa afrontar
os direitos de igualdade e dignidade destes.
No capítulo dezessete, fez-se uma breve análise do tratamento recebido
pelas uniões homoafetivas no Direito Comparado, adotando a classificação
de Maria Berenice Dias, que dividiu o mundo entre os “países de extrema
repressão”, de “modelo intermediário” (entre os quais o Brasil atual),
transcrevendo-se um importante relato acerca de diversas decisões judiciais
ao redor do mundo que reconheceram a possibilidade jurídica do casamento
civil ou, pelo menos, da união estável entre casais homoafetivos para, por
fim, os de “modelo avançado”, que aprovaram leis de união civil e, em
alguns casos, alteraram a legislação para permitir expressamente o
casamento civil homoafetivo.
Nesta segunda edição, transcrevi trechos dos acórdãos da ADPF 132 e
da ADI 4.277 em diversas partes da obra, o que foi possível praticamente
sem a criação/adaptação dos tópicos de cada capítulo. Foi com alegria que
percebi que o livro e a referida decisão se retroalimentam, no sentido de que
muito do que foi tratado neste livro foi igualmente trabalhado pelo STF no
citado julgamento.
Ante o exposto, concluiu-se que aqueles que ainda não reconhecem o
status jurídico-familiar das uniões homoafetivas o fazem por preconceito,
ou seja, juízo de valor dezarrazoado, irracional, que não possui uma
fundamentação lógico-racional que a justifique com base no critério
diferenciador erigido (que é a homogeneidade ou diversidade de sexos do
casal e, em suma, a orientação sexual do par), em flagrante afronta à
isonomia. Apontou-se que, por se tratar de situações idênticas, ou, no
mínimo, idênticas no essencial (tendo em vista serem uniões amorosas entre
pessoas do mesmo sexo baseadas no mesmo amor familiar que funda as
uniões amorosas entre pessoas de sexos diversos), as uniões homoafetivas
devem receber o mesmo tratamento jurídico dispensado às uniões
heteroafetivas, em virtude da interpretação extensiva (situações idênticas)
ou, no mínimo, da analogia (situações idênticas no essencial), visto serem
estas técnicas de interpretação jurídica que visam a suprir as lacunas
existentes na lei (pois a lei pode ter lacunas, mas o Direito não), técnicas
estas previstas expressamente pela legislação (arts. 4.º da LINDB e 126 do
CPC), que, justamente por isso, não afrontam o princípio da separação dos
poderes, em especial por terem sido previstas pelo próprio Poder
Legislativo para os casos de lacunas legislativas e, especialmente, por
serem uma decorrência lógica do princípio da isonomia, no sentido de tratar
igualmente os iguais e os fundamentalmente iguais.
Assim, para sintetizar em poucas palavras, este trabalho defende a tese
segundo a qual inexiste fundamento lógico-racional que justifique a
concessão de menos direitos aos casais homoafetivos do que aqueles
concedidos aos casais heteroafetivos, razão pela qual é inconstitucional a
referida discriminação. Consequentemente, deve ser reconhecido àqueles o
direito ao casamento civil e à união estável, visto serem os únicos regimes
jurídicos que concedem às uniões amorosas a proteção do Direito de
Família, além do direito à adoção conjunta, justamente pela arbitrariedade
do entendimento que atualmente não a reconhece, o que pode ser feito pela
interpretação extensiva ou pela analogia, que não afrontam o princípio da
separação dos poderes por serem técnicas hermenêuticas de colmatação de
lacunas, expressamente previstas pela legislação.

O Autor
GLOSSÁRIO

AC – Apelação Cível
ADI – Ação Direta de Inconstitucionalidade
ADInO – Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão
ADPF – Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental
AgR – Agravo Regimental
Art. – artigo
CC/1916 – Código Civil de 1916
CC/2002 – Código Civil de 2002
Constituição Federal de 1967, com a Emenda
CF/1967- Constitucional 1, de 1969 (geralmente considerada, tal

1969 emenda, como uma nova Constituição por ter substituído
a redação da Constituição de 1967)
CF/1988 – Constituição Federal de 1988
CIDH – Corte Interamericana de Direitos Humanos
Código de Processo Civil de 1973 (destaca-se o ano
porque está em discussão no Congresso Nacional projeto
CPC/1973 –
de lei que visa instituir um novo Código de Processo
Civil)
CPP – Código de Processo Penal
DJ – Diário da Justiça
DJe – Diário da Justiça Eletrônico
ECA – Estatuto da Criança e do Adolescente
EUA – Estados Unidos da América
g.n. – grifo(s) nosso(s)
HC – Habeas Corpus
Inc. – inciso
LGBT – Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais
LICC – Lei de Introdução ao Código Civil
Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (atual
LINDB –
denominação da LICC)
MI – Mandado de Injunção
MP – Ministério Público
MS – Mandado de Segurança
Pet. – Petição
RE – Recurso Extraordinário
Rectius – retificação
REsp – Recurso Especial
STF – Supremo Tribunal Federal
STJ – Superior Tribunal de Justiça
TJ/BA – Tribunal de Justiça da Bahia
TJ/MG – Tribunal de Justiça de Minas Gerais
TJ/PR – Tribunal de Justiça do Paraná
TJ/RJ – Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro
TJ/RS – Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul
TJ/SC – Tribunal de Justiça de Santa Catarina
TJ/SP – Tribunal de Justiça de São Paulo
TRF – Tribunal Regional Federal
TRT – Tribunal Regional do Trabalho
§ – parágrafo
(...) – trecho omitido da transcrição em questão
afirmações entre colchetes durante transcrições
(...) –
constituem observações/acréscimos deste autor
Nota da Editora: o Acordo Ortográfico foi aplicado integralmente nesta obra.
SUMÁRIO

INTRODUÇÃO

Primeira parte
BASES NECESSÁRIAS ÀS TESES PROPRIAMENTE DITAS

1. A HOMOSSEXUALIDADE NA HISTÓRIA
1. Considerações preliminares
2. A história e a homossexualidade
2.1 A sexualidade no mundo antigo
2.1.1 Foucault e a história da sexualidade na Antiguidade
Clássica
2.2 As instituições religiosas e o início da pregação homofóbica
2.3 A idade média e o nascimento do estado homofóbico
2.4 Os humanistas, os puritanos, os capitalistas e os iluministas:
visões distintas, preconceito idêntico
2.5 O século XIX e a patologização da homossexualidade
2.5.1 Foucault e a história da sexualidade após o século
XVIII
2.6 O século XX: o Relatório Kinsey e a atual visão da ciência
médica sobre a homossexualidade
2.7 A homossexualidade no Brasil, da colônia à atualidade
3. Síntese conclusiva do capítulo
2. DA HOMOSSEXUALIDADE E DA HOMOAFETIVIDADE
1. Conceituação
1.1 Homoafetividade/heteroafetividade. Pertinência terminológica
2. A Bíblia e a Homossexualidade
2.1 O que a Bíblia realmente diz sobre a homossexualidade?
3. “Homossexualismo” x Homossexualidade: Entendimento médico-
psicológico acerca da homoafetividade
3.1 Critérios para a definição de uma doença e a
homossexualidade
3.2 Entendimento da ciência médica quanto à origem da
homoafetividade
3.3 “Opção” x orientação sexual: correta colocação do tema
3.4 Conceito de homofobia
3.5 As minorias sexuais. conceituação de orientação sexual,
gênero e identidade de gênero
4. Síntese conclusiva do capítulo
3. OS PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS DA ISONOMIA E DA
PROPORCIONALIDADE
1. O princípio da igualdade – nota introdutória
1.1 Aspecto formal – conteúdo e histórico
1.2 Aspecto material – conteúdo
1.3 A teoria tridimensional do Direito e o objeto de proteção das
normas. O Direito como ciência valorativa
1.3.1 Caracterização da lacuna normativa
1.3.2 Interpretação extensiva ou analogia para
reconhecimento do casamento civil, da união estável e
da adoção por casais homoafetivos. Despsicologização
do conceito de interpretação extensiva. Esclarecimentos
1.4 O princípio do Estado Laico e a proibição da utilização de
fundamentações religiosas para justificar discriminações
jurídicas
1.4.1 Conteúdo jurídico do princípio do Estado Laico
2. Os Princípios da Proporcionalidade e da Razoabilidade – conteúdo
jurídico
3. Síntese conclusiva do capítulo: da discriminação juridicamente
válida (isonômica e proporcionalmente)
4. OS PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS DA DIGNIDADE DA
PESSOA HUMANA E DA INTERPRETAÇÃO CONFORME A
CONSTITUIÇÃO
1. O princípio da dignidade da pessoa humana
1.1 Considerações preliminares
1.2 O princípio da dignidade da pessoa humana e o direito à busca
da felicidade
1.3 As classificações insular e da nova ética. A posição de
Antônio Junqueira de Azevedo
1.4 Dignidade da pessoa humana como dimensão
simultaneamente defensiva e prestacional. A posição de Ingo
Wolfgang Sarlet e de Luís Roberto Barroso
1.5 Posição pessoal. Dignidade da pessoa humana e o direito à
felicidade. ADPF 132 e ADI 4.277
1.5.1 Do direito fundamental ao respeito (implícito ao
princípio da dignidade da pessoa humana)
2. O Princípio da Interpretação conforme a Constituição
2.1 A interpretação conforme a Constituição no ordenamento
jurídico brasileiro: natureza jurídica
2.2 Requisitos da interpretação conforme a Constituição
2.3 Limites da interpretação conforme a Constituição. ADPF 132
e ADI 4.277
2.4 Da diferença entre a interpretação conforme a Constituição e a
declaração parcial de nulidade sem redução de texto de lei
3. Síntese conclusiva do capítulo
5. A FAMÍLIA JURIDICAMENTE PROTEGIDA E A
HOMOAFETIVIDADE NO ORDENAMENTO JURÍDICO
BRASILEIRO
1. O vazio legislativo quanto às uniões homoafetivas. Da ausência de
proibição legal
1.1 Soluções ao vazio legislativo: a analogia, a interpretação
extensiva e os princípios gerais do Direito
1.2 A função do legislador
2. A questão da família
2.1 A importância da família na história da humanidade
2.2 A família brasileira – breves considerações históricas
2.2.1 A família na sociedade rural e o “modelo institucional”
do Código Civil de 1916
2.2.2 A família na sociedade urbana – a mulher no mercado
de trabalho
2.3 As soluções encontradas pela Jurisprudência para as uniões
não regulamentadas
2.3.1 Analogia com o Direito do Trabalho – Indenização
pelos serviços prestados. Julgados contemporâneos do
STJ
2.3.2 Analogia com o Direito Comercial – Teoria das
sociedades de Fato
2.4 A evolução histórica do conceito de família
2.4.1 O amor familiar como o elemento formador da família
contemporânea. STF, ADPF 132 e ADI 4.277
2.5 A família e a Constituição Federal de 1988
2.5.1 Dos dispositivos constitucionais que tratam da família.
Da ausência de proibição às famílias homoafetivas ou
de dispositivo que não as reconheça. A interpretação do
Ministro Ayres Britto no julgamento da ADPF 132 e na
ADI 4.277
2.5.2 Do objeto de proteção do Direito das Famílias
2.5.3 O afeto como princípio jurídico-constitucional. STF,
ADPF 132 e ADI 4.277
2.6 A família homoafetiva. STF, ADPF 132 e ADI 4.277
2.6.1 As Gerações/Dimensões de Direitos. STF, ADPF 132 e
ADI 4277
2.6.2 O reconhecimento legal do status jurídico-familiar das
uniões homoafetivas – arts. 2.º e 5.º, parágrafo único, da
Lei Maria da Penha (Lei 11.340/2006)
2.6.3 Da competência das varas de família para julgamento
das causas envolvendo uniões homoafetivas
3. Síntese conclusiva do capítulo

Segunda parte
DAS TESES PROPRIAMENTE DITAS

6. UNIÕES HOMOAFETIVAS E ISONOMIA: CASAMENTO CIVIL


1. Considerações preliminares
1.1 Evolução histórica do conceito de casamento. Da
patrimonialização do afeto à concepção eudemonista de
casamento
1.1.1 Conceito contemporâneo de casamento
2. Preliminarmente: Da Efetiva Discriminação sofrida pelos Casais
Homoafetivos em decorrência da negativa ao reconhecimento de
seu status jurídico-familiar
2.1 Da necessidade da nomenclatura “casamento civil” e “união
estável” para a garantia da isonomia jurídica entre as uniões
homoafetivas quando comparadas às heteroafetivas nos dias
de hoje
3. A interpretação extensiva, a analogia e a possibilidade jurídica do
casamento civil homoafetivo
3.1 Uma inconstitucionalidade por omissão. Inexistência de
“ativismo judicial” no reconhecimento do casamento civil,
da união estável e da adoção por casais homoafetivos.
Alternativamente: constitucionalidade de supressão de
lacunas inconstitucionais mediante “práticas de ativismo
judicial” concretizadoras dos princípios constitucionais (cf.
Ministro Celso de Mello). STF, ADPF 132 e ADI 4.277
3.2 Mesmo instituições milenares, quando inseridas em um
ordenamento jurídico, devem respeitar os princípios e a
sistemática que o regem
3.2.1 Casamento civil x Casamento religioso. Diferença
entre ambos
4. Alternativamente: da inconstitucionalidade da suposta “proibição
implícita” ao casamento civil homoafetivo
4.1 Da ação judicial necessária ao casamento civil homoafetivo
5. Da união homoafetiva como uma “sociedade de afeto”, muito mais
similar à união heteroafetiva do que a uma “sociedade de fato”
6. Da possibilidade jurídica do pedido de casamento civil homoafetivo
7. Da ação civil pública proposta pelo Ministério Público Federal
pleiteando pelo reconhecimento do casamento civil homoafetivo
8. Sentença gaúcha afirmando serem o casamento e a união estável
aplicáveis aos casais homoafetivos
9. Decisões judiciais que reconheceram o direito ao casamento civil
homoafetivo após a decisão do STF na ADPF 132 e na ADI 4.277
10. Síntese conclusiva do capítulo
7. UNIÕES HOMOAFETIVAS E ISONOMIA: UNIÃO ESTÁVEL
1. Considerações preliminares acerca da união estável. introdução ao
tema da união estável homoafetiva
2. Da união estável homoafetiva
2.1 Da incompatibilidade do art. 226, § 3.º, com a isonomia e a
dignidade humana em caso de negação da união estável
homoafetiva. STF, ADPF 132 e ADI 4.277
2.1.1 A ADPF 132 e a ADI 4.277
2.1.2 Inexistência de limites semânticos no texto do art. 226,
§ 3.º, da CF/1988 impeditivos do reconhecimento da
união estável homoafetiva, por interpretação extensiva
ou analogia. Possibilidade jurídica do pedido de união
estável homoafetiva
2.2 Alternativamente: da inconstitucionalidade do art. 226, § 3.º,
da CF/1988 por afronta aos princípios fundamentais da
Constituição Federal
3. Síntese conclusiva do capítulo
8. UNIÕES HOMOAFETIVAS E DIGNIDADE DA PESSOA
HUMANA: CASAMENTO CIVIL E UNIÃO ESTÁVEL
1. Da dignidade humana e as uniões homoafetivas. Afronta à
dignidade humana de homossexuais pelo não reconhecimento do
casamento civil homoafetivo e da união estável homoafetiva.
STF, ADPF 132 e ADI 4.277
2. Da importância do termo “casamento”
2.1 Do casamento civil como um direito fundamental implícito
2.2 Da insuficiência de uma “Lei de União Civil” para a proteção
da dignidade humana de homossexuais
3. Síntese conclusiva do capítulo
9. INTERPRETAÇÃO CONFORME A CONSTITUIÇÃO E UNIÕES
HOMOAFETIVAS
1. A interpretação conforme a Constituição realizada pelo Supremo
Tribunal Federal na ADPF 132 e na ADI 4.277. Considerações
preliminares ao capítulo
2. Da necessidade de uma interpretação conforme a Constituição em
todas as hipóteses
3. Da interpretação das leis do casamento civil e da união estável em
conformidade com a Constituição
3.1 Não caracterização do art. 1.723 do Código Civil como norma
de mera repetição do art. 226, § 3.º, da Constituição.
Possibilidade de interpretação conforme. A posição do STF
na ADPF 132 e na ADI 4.277
3.1.1 Seria o caso de declaração de nulidade parcial sem
redução de texto e não de interpretação conforme?
Irrelevância da discussão
4. Síntese conclusiva do capítulo
10. O PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE E OS DIREITOS
DOS CASAIS HOMOAFETIVOS
1. Da ausência de relação racional entre a finalidade de se proteger a
procriação com a proibição do casamento civil homoafetivo e a
discriminação (subprincípios da adequação e da necessidade)
2. Da adequação e da necessidade do reconhecimento da possibilidade
jurídica do casamento civil homoafetivo para o resguardo da
isonomia e da dignidade humana dos casais homoafetivos
3. Da ausência de direito de heterossexuais e casais heteroafetivos
prejudicado pela possibilidade jurídica do casamento civil e da
união estável entre casais homoafetivos – subprincípio da
proporcionalidade em sentido estrito. STF, ADPF 132 E ADI
4.277
4. Síntese conclusiva do capítulo
11. DA INCOERÊNCIA DAS JUSTIFICAÇÕES DA DOUTRINA
PARA O NÃO RECONHECIMENTO DA FAMÍLIA/ENTIDADE
FAMILIAR HOMOAFETIVA
12. A POSIÇÃO DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
13. A POSIÇÃO DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL
1. Considerações preliminares
2. O Recurso Extraordinário 406.837/SP (Relator Ministro Eros Grau)
3. A Ação Direta de Inconstitucionalidade 3.300/DF (Relator Ministro
Celso de Mello) E A PETição 1.984/rs (Relator Ministro Marco
Aurélio)
4. Recurso Especial Eleitoral 24.564 (Relator Ministro Gilmar Ferreira
Mendes)
5. RE 615.261/PR. Adoção por casal homoafetivo
6. ADPF 132 e ADI 4.277. O histórico reconhecimento do status
jurídico-familiar da união homoafetiva
7. RE 477.554 AgR/MG, RE 615.941/RJ e outras decisões
monocráticas pós ADPF 132 e ADI 4.277
8. Síntese conclusiva do capítulo
14. CONTRATOS DE UNIÃO ESTÁVEL (HOMOAFETIVA OU
HETEROAFETIVA)
1. Considerações preliminares
2. Contrato de união estável homoafetiva
2.1 Justificativa do nomen juris. Cláusulas
3. Síntese conclusiva do capítulo
15. O CONCUBINATO E A TEORIA DAS SOCIEDADES DE FATO.
HISTÓRICO. INADEQUAÇÃO À HIPÓTESE DE UNIÃO
ESTÁVEL HOMOAFETIVA. O CONCUBINATO
HOMOAFETIVO
1. Considerações preliminares. STF, ADPF 132 e ADI 4.277
2. Concubinato: evolução histórica, conceito e espécies. STF, ADPF
132 e ADI 4.277
2.1 Concubinato homoafetivo?
3. Síntese conclusiva do capítulo
16. DA ADOÇÃO POR HOMOSSEXUAIS EM CONJUNTO OU
ISOLADAMENTE
1. O direito fundamental à parentalidade
2. Do direito dos menores a serem adotados
3. A adoção por homossexuais e a inexistência de prejuízos ao menor
por ser criado em um lar homoafetivo
3.1 A omissão legal e os princípios da isonomia e da proteção
integral do menor: adoção por homossexuais e por casais
homoafetivos. STJ, REsp 889.852/RS
3.2 A omissão legal e os princípios da dignidade da pessoa
humana e da proteção integral do menor: a adoção por
homossexuais e por casais homoafetivos. STF, ADPF 132 e
ADI 4.277
3.3 Da afronta ao princípio da proteção integral ao menor
decorrente da proibição da adoção por casais homoafetivos
3.3.1 Da inconstitucionalidade da utilização do preconceito
alheio como “justificativa” para a proibição da adoção
por casais homoafetivos
3.3.2 Da possibilidade jurídica do registro civil de um(a)
menor como filho(a) de um casal homoafetivo. STJ,
REsp 889.852/RS (e TJRS, AC 70013801592)
3.4 A Jurisprudência sobre o tema
3.5 A posição da Corte Interamericana de Direitos Humanos.
Caso Atala Riffo y niñas vs. Chile
4. Inexistência de vantagem de um Casal Heteroafetivo em relação a
um Casal Homoafetivo em razão da mera diversidade de sexos do
primeiro
5. Síntese conclusiva do capítulo
17. DO DIREITO COMPARADO
1. Considerações preliminares
1.1 Países de extrema repressão às uniões homoafetivas
1.2 Do bloco intermediário
1.3 Países de modelo expandido
2. Síntese conclusiva do capítulo

CONCLUSÃO

BIBLIOGRAFIA
INTRODUÇÃO

A homossexualidade tem sido objeto de exacerbado preconceito ao


longo da história humana. De comportamento absolutamente tolerado (e por
vezes normalmente aceito, por ser considerada tão normal quanto a
heterossexualidade) nos primórdios da civilização, e inclusive amplamente
vangloriada dentro de determinados contextos, em civilizações como a da
Grécia Clássica – berço da civilização ocidental –, passou ela a ser alvo de
inúmeros preconceitos por parte da sociedade. Em especial a partir da Idade
Média, quando a Igreja Católica Apostólica Romana dominou politicamente
por aproximadamente mil anos o cenário ocidental, a conduta homoafetiva
passou a ser objeto de represálias, uma vez que contrariava os dogmas
impostos pela dita instituição religiosa.
Mesmo após o término da Idade Média, o preconceito contra a
homossexualidade continuou a existir, certamente influenciado pelos mais
de mil anos em que a Igreja pregou (como ainda hoje prega) que seria um
“pecado”, um comportamento considerado errado por Deus (argumento este
que será contraposto neste trabalho no momento oportuno).
Toda essa história de preconceito acabou arraigando uma pré-
compreensão na sociedade em geral de que a homossexualidade não seria
“natural”, ou seja, de que se trataria de um pecado ou, mais adiante na
história, de uma doença, desvio ou perversão psicológica. Mas o que mais
impressiona é que tal foi sempre presumido sem qualquer prova – ou seja,
em vez de se ter uma base científica cabal contrária à homossexualidade,
utilizou-se do sentido inverso: como não havia prova de que era um
comportamento “natural”, “normal”, simplesmente a condenaram. Por
outras palavras, em não havendo provas de sua normalidade, julgaram-na
como doença, pecado e/ou perversão, pelo mero fato de a maioria da
população ser heterossexual. Como não houve resistência ante tais
colocações, passaram elas a ser consideradas verdadeiras. Tais colocações
prescindem de estudo aprofundado acerca do tema: basta ver que, desde o
início da condenação à homossexualidade, nunca houve uma prova cabal de
que seria ela algo “errado”, um pecado ou uma doença; apenas se passou a
alegar isso, e como não houve resistência contra essas colocações, passou-
se a considerá-las como verdadeiras. Todavia, o fato de se repetir
indefinidamente uma mentira não a torna verdade, servindo, portanto, este
trabalho para contestar toda essa retórica homofóbica.
Como o Direito, por mais que demore, sempre acompanha o fato
social, todo esse preconceito ocasionou uma arbitrária discriminação
jurídica, uma vez que, ainda hoje, se garantem às uniões heteroafetivas
todos os direitos existentes no campo do Direito de Família20, enquanto às
uniões homoafetivas não se confere direito algum, com o claro e
preconceituoso intuito de relegá-las à margem da sociedade.
Entretanto, como não há nem nunca houve nenhuma prova de que a
homossexualidade constitui doença, desvio psicológico, perversão ou algo
do gênero, essa situação é incoerente com o nosso atual ordenamento
jurídico. E, considerando que as relações homoafetivas sempre existiram,
mesmo nos momentos de maior repressão, é inaceitável a sua não
regulamentação, uma vez que corresponde à realidade de significativa
parcela da sociedade, ainda que minoritária. Esta discussão será
pormenorizadamente analisada quando forem examinados os princípios da
igualdade e da dignidade da pessoa humana em relação à homoafetividade.
Desta feita, considerando não haver justificação lógico-racional para a
discriminação das relações homoafetivas em relação às heteroafetivas, visa
este trabalho demonstrar que merecem as uniões amorosas entre pessoas do
mesmo sexo o mesmo tratamento jurídico ofertado às uniões amorosas
entre pessoas de sexo diverso, sendo inconstitucional a discriminação hoje
existente em relação àquelas.
É, aliás, o que o Supremo Tribunal Federal garantiu, relativamente ao
regime jurídico da união estável, por intermédio da decisão proferida na
ADPF 132 e da ADI 4277 (de efeito vinculante e eficácia erga omnes), na
qual reconheceu a possibilidade jurídica da união estável homoafetiva ao
aplicar interpretação conforme à Constituição ao artigo 1.723 do Código
Civil, “para excluir do dispositivo em causa qualquer significado que
impeça o reconhecimento da união contínua, pública e duradoura entre
pessoas do mesmo sexo como família”, em “Reconhecimento que é de ser
feito segundo as mesmas regras e com as mesmas consequências da união
estável heteroafetiva” – ora, tendo tal dispositivo regulamentado a união
estável, é evidente que dita decisão reconheceu a família conjugal
homoafetiva como “união estável” quando atendidos os requisitos ali
disciplinados (“convivência pública, contínua e duradoura e estabelecida
com objetivo de constituição de família”)21 e não apenas como “entidade
familiar autônoma” distinta da união estável, como pretendeu o Ministro
Lewandowski (que evidentemente resta vencido neste ponto). Até porque,
ao falar em “união estável heteroafetiva”, evidentemente o STF também
reconheceu a existência da “união estável homoafetiva”, ao passo que
“união contínua, pública e duradoura” com intuito de constituir família é
como o referido dispositivo legal define a união estável. O capítulo 13 traz
todos os fundamentos da referida decisão.

20 Atualmente, melhor denominado como Direito das Famílias, justamente devido à


inexistência de um único modelo familiar correto e aceitável.
21 No mesmo sentido, cite-se, v.g., a lição de BRANDELLI, Leonardo. Nome Civil da
pessoa natural, 1ª Edição, São Paulo: Editora Saraiva, 2012, p. 190, segundo o qual
“Entendeu o Supremo Tribunal Federal, no julgamento da ação direta de
inconstitucionalidade n. 4277 e da argüição de descumprimento de preceito
fundamental n. 132, pela possibilidade jurídica da união estável homoafetiva diante da
impossibilidade constitucional de discriminação ou desigualação em razão do sexo, na
qual implicaria uma interpretação de que o art. 226 da Carta Maior somente permite a
união estável entre homem e mulher”.
PRIMEIRA PARTE

BASES NECESSÁRIAS ÀS TESES


PROPRIAMENTE DITAS
Capítulo 1

A HOMOSSEXUALIDADE NA HISTÓRIA

“Em minha opinião, a homossexualidade não deveria ser explicada,


ela apenas existe. O que precisa ser investigado é a opinião que as
várias sociedades sempre tiveram sobre ela.” – Colin Spencer1,
historiador.

1. CONSIDERAÇÕES PRELIMINARES
Antes mesmo de se conceituar a homossexualidade, é preciso entender
como o amor por pessoas do mesmo sexo tem sido visto e qual o tratamento
a ele dispensado ao longo da história humana. Isso se faz necessário porque
mudou drasticamente, no final do século XIX, a visão do mundo no que
tange à identidade homossexual. Note-se: não é o conceito de
homossexualidade que mudou, mas o de identidade homossexual, o qual
não era nem mesmo concebido nas civilizações do mundo antigo.
Ademais, o estudo do tratamento dispensado pelas sociedades, ao
longo dos tempos, às pessoas que amam outras do mesmo sexo ajuda-nos a
compreender quais foram os reais motivos que ensejaram o início da
perseguição e da violência contra homossexuais. Não era o simples fato de
amar uma pessoa do mesmo sexo que ensejava a perseguição: outros
motivos, incidentalmente relacionados à homossexualidade por erros
conceituais, é que desencadearam o início do preconceito homofóbico.
Essa questão é importante porque, hoje, os homofóbicos pregam que a
homossexualidade per si seria algo condenável, o que não corresponde à
verdade, quando se consideram os motivos que ensejaram o início da
perseguição aos homossexuais, como se passa a demonstrar.
2. A HISTÓRIA E A HOMOSSEXUALIDADE
A homossexualidade é tão antiga como a heterossexualidade (assertiva
repetidamente atribuída a Goethe). Acompanha a história da humanidade e,
se nunca foi aceita, sempre foi tolerada. É uma realidade que sempre
existiu, e em toda parte, desde as origens da história humana. É
diversamente interpretada e explicada, mas, apesar de não a admitir,
nenhuma sociedade jamais a ignorou.2
A afirmação supratranscrita sintetiza bem a questão da
homossexualidade ao longo da história humana. Ela sempre existiu, sendo a
única variação o tratamento dispensado pelas diferentes culturas. No início
dos tempos, o comportamento homoafetivo não era tido como “estranho”
ou “anormal”, justamente por ser considerado tão normal quanto o
heteroafetivo. Determinadas culturas passaram a valorizá-lo, ao passo que
outras passaram a desprezá-lo, até que, num dado momento histórico, a
parcela que dominava o poder político do mundo ocidental passou a
condenar ferozmente a homossexualidade, criando assim todo um estigma e
preconceito contra as pessoas homossexuais.

2.1 A sexualidade no mundo antigo


Nas sociedades primitivas, o amor entre homens era prática constante e
aceita, encontrando-se institucionalizada na cultura, na forma de uma
relação entre um homem mais velho e um adolescente, em que aquele seria
necessariamente o sexualmente ativo e este, o passivo3. As práticas sexuais
entre um homem mais velho e outro mais jovem estavam comumente
relacionadas aos mitos e às lendas das tribos em questão – como
praticamente tudo nas sociedades humanas não científicas da época. As
culturas primitivas viam nesse tipo de relacionamento a forma pela qual o
menino alcançaria a masculinidade, por meio da exclusão do contato dele
com a mãe (e das mulheres em geral) para que aprendesse os costumes
masculinos de seu povo. Algumas dessas práticas ritualizadas baseavam-se,
inclusive, na crença de que somente com a sua realização é que os jovens
alcançariam a fertilidade necessária a uma futura procriação4.
Contudo, por mais que a cultura dessas tribos estimulasse, como se
percebe, uma pseudobissexualidade5 ritual de seus membros, no sentido da
iniciação masculina dos menores, para que, em obtendo a fertilidade,
pudessem futuramente procriar (o que se repetirá mais adiante na história,
em especial na Grécia Clássica e em Roma), existiam muitos que,
efetivamente, eram homossexuais, ou seja, sentiam-se atraídos
exclusivamente por pessoas do mesmo sexo, embora tivessem que manter
alguma espécie de relacionamento com pessoas do sexo oposto para fins de
procriação6.
Já sob a ótica de uma das civilizações clássicas do mundo antigo, é
oportuno citar o caso da Babilônia, cujos cidadãos não davam importância à
sexualidade (se homo, hétero ou bissexual), mas ao status social das
pessoas com quem o cidadão se relacionava, além do papel sexual deste (se
ativo ou passivo)7.
Fica claro que o amor entre homens era amplamente aceito entre os
povos antigos, sendo, contudo, valorizado apenas o “polo ativo” da relação.
Isso se explica porque o machismo, já naquela época, vislumbrava o ato
sexual ativo como a postura masculina, sendo o ato sexual passivo tido
como uma postura feminina. Em outras palavras, não era analisado o sexo
biológico da pessoa para a qual o homem direcionava seu amor, mas o
papel sexual que ele desempenhava8. Ou seja, um homem que mantivesse
uma relação sexual passiva era colocado no mesmo patamar que uma
mulher, que era socialmente desprezada pela camada dominante da
população, composta por homens. Dita passividade somente era aceitável
em meninos adolescentes, justamente por ser vista como a forma de eles
alcançarem a masculinidade. Mesmo no Egito Antigo, onde ainda há
dúvidas se eram contrários ou favoráveis às relações amorosas entre
homens, a homoafetividade era frequente, ainda que sob a forma
pseudobissexual, tradicional no mundo antigo.
Ressalte-se, portanto, que o conceito atual de identidade homossexual é
diverso daquele que existia nas épocas aqui narradas. Em verdade, naquela
época as pessoas nem sequer se preocupavam com isso: tudo fazia parte do
mesmo patamar de sexualidade9.
O leitor pode estranhar o fato da referência apenas ao amor entre
homens, nada tendo sido citado em relação ao amor entre mulheres. Isso
decorre do fato de existirem poucas referências históricas relativas ao amor
lésbico, o que, por sua vez, foi ocasionado pelo entendimento dominante
entre os homens da época de que não se poderia falar em relação sexual
sem a presença de um homem. A sexualidade das mulheres era
completamente ignorada em virtude de o preconceito da época pregar que a
sexualidade delas dependia necessariamente de um homem. Assim, tudo o
que ocorria “entre quatro paredes” entre duas mulheres era, na maioria das
vezes, ignorado, o que ensejou pouca formalização escrita desses
relacionamentos. Não obstante, o amor entre mulheres sempre existiu,
assim como o amor masculino10.
Feitas estas considerações, torna-se claro que o amor por pessoas do
mesmo sexo já existia e era amplamente aceito por outros povos que não
apenas os da Grécia Clássica e de Roma, civilizações vistas pela atual
sociedade como as mais tolerantes em relação à homoafetividade.
Realmente foi sobre elas que os historiadores mais se debruçaram para
estudar as origens históricas da homossexualidade, o que se explica por
formarem elas (especialmente a primeira) o berço do mundo ocidental11.
Na Grécia, a cultura da pederastia institucionalizada seguiu o modelo
existente nas tribos primitivas anteriores à sua época, tal como,
aparentemente, boa parte dos outros povos contemporâneos. Contudo, a
peculiaridade grega encontra-se no fato de ter ganhado ênfase o conceito de
transmissão de conhecimento oriundo do ato sexual de um homem mais
velho com outro mais novo, além de ter sido consagrada em sua célebre
mitologia (no que foi seguida, posteriormente, pelos romanos, na mitologia
greco-romana), na qual diversos deuses a praticavam12. Assim, era comum
na cidade-estado de Atenas, notória pelo seu alto grau de desenvolvimento
cultural, que os efebos (adolescentes-aprendizes) prestassem favores
sexuais aos preceptores (tutores) em busca de sabedoria e conhecimento13.
Já na cidade-estado de Esparta, cuja sociedade dava mais ênfase ao
desenvolvimento militar do que ao cultural, a visão do amor entre homens
tinha um enfoque um pouco diferenciado. Era ela estimulada dentro do
exército espartano, para torná-lo ainda mais eficiente. Isso se explica por
um simples fato: com a existência constante de relacionamentos
homoafetivos dentro do exército, quando este ia para a guerra, o soldado
estaria lutando não apenas por sua cidade-estado, mas igualmente para
proteger a vida de seu amado, o que, obviamente, aumentaria o grau de
dedicação e empenho do combatente14. A notória eficiência do exército
espartano torna, no mínimo, curioso o preconceito contemporâneo contra a
presença de homossexuais nas Forças Armadas, como se não fossem
capazes de exercer a função militar tão bem quanto os heterossexuais.
A sexualidade em Roma manteve, a princípio, o mesmo modelo
“bissexual” anterior, no sentido de ser comum o amor de homens mais
velhos por rapazes-adolescentes, mas com uma diferença, ao mesmo tempo
sutil e perceptível: o extremo valor dado pelos romanos à virilidade
masculina e àquilo que entendiam eles por virilidade. O macho romano se
via como um dominador agressivo e acreditava que, quando forçava outros
a se submeterem, estava lhes proporcionando prazer15.
Aqui há uma diferença fundamental entre gregos e romanos: os homens
gregos cortejavam os rapazes de seu interesse, com agrados que visavam
persuadi-los a reconhecer sua honra e suas boas intenções; entre os romanos
o amor por rapazes livres era proibido, uma vez que a sexualidade desse
povo estava intimamente ligada à dominação. Assim, era-lhes permitido
apenas o amor por rapazes escravos. Essa visão foi bem representada pela
frase de Sêneca, o Velho, segundo a qual “serviços sexuais constituem um
crime para os nascidos livres, uma necessidade para os escravos e um dever
para os libertos”.16
Com a conquista da Grécia Antiga pelo Império Romano e a formação
da cultura helênica, passou este último a ter suavizada aquela ideia de
virilidade baseada na dominação, tornando-se prática comum (embora
legalmente vedada) o amor por rapazes baseados na corte, na conquista dos
tempos da Grécia Clássica. O desprezo mantinha-se, tal como nesta, apenas
com relação ao homem adulto que permanecesse como passivo na relação
sexual: novamente, não se condenava o amor masculino, apenas a
sexualidade passiva. Nunca é demais relembrar que esta era tida como uma
conduta feminina, e o homem que assim agisse era visto como alguém que
abria mão de sua masculinidade, sendo assim equiparado às mulheres como
um “cidadão de segunda classe”. Não era relevante se alguém se
relacionava com meninos ou meninas, mas o que alguém fazia sexualmente
era altamente significativo17.
Contudo, essa visão do sexualmente passivo provou-se relativa no
Império Romano, quando o homem em questão tinha outras atitudes vistas
como eminentemente masculinas, a exemplo da arte da guerra. Verifica-se
que a passividade sexual era “compensada” pela eficiência em outras
atividades consideradas masculinas18.
Como se pode ver, a Grécia Clássica e o Império Romano valorizavam
aquilo que se entendia como sexualidade masculina, que era aquela
relacionada ao parceiro sexual ativo. A conduta do homem passivo era
repudiada, por ser vista como uma conduta feminina e não como um
desprestígio ao amor homoafetivo. Como a mulher era tida como “cidadã
de segunda classe”, o machismo existente na época equiparava os homens
adultos que se mantinham passivos na relação sexual a elas, no que tange a
direitos, sendo apenas isto o que se pode dizer da sexualidade desse período
da história humana. Ou seja, o machismo é a origem remota da
homofobia19, ou seja, do preconceito e da discriminação contra
homossexuais. Mas, se o homem passivo era amplamente respeitado por
outras atitudes suas (como Júlio César, nos campos de batalha), então se
fazia vista grossa quanto à questão da sua sexualidade.
Uma observação importante: que não venham os preconceituosos de
plantão invocar esse modelo de pederastia institucionalizada como forma
de condenar homossexuais ou de, descabidamente, generalizar a todos os
homossexuais a pederastia (que é a pedofilia entre homens). Afinal, é
notório que homens heterossexuais também praticaram uma pedofilia
institucionalizada ao se casarem com mulheres adolescentes ao longo da
história humana, com meninas adolescentes contraindo casamento com
homens adultos (e, consequentemente, mantendo com eles relacionamentos
sexuais) – como ainda hoje ocorre em países islâmicos20. Isso só vem
demonstrar que a pedofilia foi algo aceito por questões culturais de algumas
épocas, não sendo em nada relacionada, unicamente, à homossexualidade.
De tudo isto se verifica, assim, o caráter relativo dos conceitos de
“masculinidade” e “feminilidade”. O que se entende como um e como outro
é algo que varia conforme a história e a cultura de cada sociedade humana,
não podendo ser visto como algo imutável. Um exemplo banal dessa
colocação é o relativo aos kilts escoceses. Essas “saias”, ainda que usadas
apenas em determinados eventos festivos, são tidas como roupas
masculinas pelo povo escocês, que não questiona a sexualidade de um
homem pelo simples fato de estar usando um kilt. No entanto, se um
homem o usasse no Brasil, certamente seria tachado de homossexual, por
estar usando uma peça de roupa tida por nosso povo como feminina, em
uma descabida equiparação de homossexualidade com feminilidade.
Masculinidade e feminilidade são conceitos eminentemente relativos, que
variam ao longo da história e de cultura para cultura21.
Assim, adotando a conclusão de Colin Spencer22 no que tange à
Antiguidade:

Contrariamente ao que estava para acontecer, o mundo antigo


parecia ter aceitado a sexualidade de maneira descontraída. A
legislação existente favorecia os homens, em grande parte por causa da
propriedade e da herança, mas nenhuma única crença ética tinha
selecionado ou favorecido uma expressão da sexualidade em relação à
outra. Nem havia um conceito do que é ‘natural’ ou ‘antinatural’ em
formulação. Tudo isso iria mudar a partir de 600 a.C.

2.1.1 Foucault e a história da sexualidade na Antiguidade Clássica


Vale citar o pensamento de Foucault sobre a história da sexualidade.
O autor inicia o volume II de sua obra (nominada “o uso dos prazeres”)
explicitando que seu interesse foi realizar um trabalho histórico-crítico da
experiência da sexualidade desde a hermenêutica do desejo (a hermenêutica
de si) existente durante a Antiguidade Clássica, sem o qual não seria
possível compreender a experiência da sexualidade cuja tradição se iniciou
a partir do século XVIII e que funda o pensamento contemporâneo23 para,
com isso entender o motivo pelo qual o comportamento sexual e os prazeres
a ele relacionados são objeto de uma preocupação moral – o que fez a partir
da análise de um conjunto de práticas relativas às então chamadas artes da
existência24 (tecnologias de si) para mostrar de que maneira, na
Antiguidade, a atividade e os prazeres sexuais foram problematizados
através de práticas de si e de uma estética da existência, fazendo-o por
meio da análise de textos prescritivos, que são aqueles que estabelecem
regras de conduta25. Parte da noção corrente no pensamento grego clássico
de uso dos prazeres (chrèsis aphrodision) para distinguir os modos de
subjetivação aos quais esta moral se refere: substância ética, tipos de
sujeição, formas de elaboração de si e de teleologia moral26.
Aponta que o pensamento antigo era pautado por uma reflexão moral
baseada na austeridade sexual em torno e a propósito da vida do corpo, da
instituição do casamento, das relações entre homens e da existência da
sabedoria, que constituem os eixos temáticos dos quatro capítulos finais da
obra. Por outro lado, destaca que apesar das mulheres terem sido adstritas a
obrigações extremamente estritas, não era a elas que a moral grega era
endereçada, por se tratar de uma moral de homens livres, pensada, escrita,
ensinada por homens livres para homens livres27.
Explica que os gregos não tinham uma noção semelhante à nossa de
sexualidade, entendida como uma entidade única que permite agrupar
fenômenos diversos como sensações, imagens, desejos, instintos e paixões;
eles utilizam um adjetivo substantivado: ta aphrodisia (em latim: venerea),
entendido por vezes como coisas, prazeres do amor, relações sexuais, atos
da carne e volúpias, mas sem uma noção equivalente em seu idioma [o
francês]. Assim, pretende se ocupar com a forma geral de preocupação dos
gregos a propósito dos aphrodisia como campo de cuidado moral através da
Dietética (cuidado com o corpo), da Econômica (relativa ao casamento), da
Erótica (a propósito dos rapazes no que tange ao amor masculino) e da
Filosofia (quanto à verdade). Mas, antes disso, pretende explicar as noções
de aphrodisia (substância ética do comportamento sexual), de uso de
chresis (sujeição à qual a prática dos prazeres deveria submeter-se para ser
moralmente valorizada), de enkrateia (respeito de si mesmo como sujeito
moral) e de sophrosune (temperança e sabedoria do sujeito moral em sua
realização)28.
Foucault afirma que essa preocupação grega com a temperança no ato
sexual decorre da reflexão médica e filosófica que o via como capaz de
ameaçar, por sua violência, o controle e o domínio de si, além de minar a
força do indivíduo pelo esgotamento que provoca, em razão de pensarem os
gregos que a perda do sêmen durante o ato sexual privaria o homem de
elementos de grande valia para a sua existência, donde a temperança sexual
serviria para garantir o homem contra os males de sua prática excessiva29.
Visava, assim, uma formação ética do sujeito, que deve se caracterizar por
sua capacidade de dominar as forças que nele se desencadeiam, de guardar
a livre disposição de sua energia e de fazer sua vida uma obra que
sobreviverá sua existência passageira (pela filiação)30.
A Dietética era a arte cotidiana do indivíduo com o próprio corpo31,
uma questão de regime, visando regular uma atividade reconhecida como
importante para a saúde32, reconhecida como válida pelos efeitos benéficos
que traz aos indivíduos. A ‘dieta’ (o regime) era vista como uma categoria
fundamental através da qual se pode pensar a conduta humana,
caracterizando-se pela maneira de se conduzir a própria existência e fixar
um conjunto de regras de conduta, sendo o regime toda uma arte de viver,
relativamente a exercícios, alimentos, bebidas, sonos e relações sexuais; o
regime se define nesse duplo registro de boa saúde e de bom estado da
alma33. Contudo, mesmo o regime não pode ser excessivo, pois a dieta não
tem por finalidade tornar a vida mais longeva nem melhorar seu
desempenho, mas torná-la útil e feliz nos limites que lhe foram fixados,
possibilitando aos indivíduos enfrentar diversas situações34.
Foucault afirma que essa preocupação grega com a temperança no ato
sexual decorre da reflexão médica e filosófica que o via como capaz de
ameaçar, por sua violência, o controle e o domínio de si, além de minar a
força do indivíduo pelo esgotamento que provoca, em razão de pensarem os
gregos que a perda do sêmen durante o ato sexual privaria o homem de
elementos de grande valia para a sua existência, donde a temperança sexual
serviria para garantir o homem contra os males de sua prática excessiva35.
Visava, assim, uma formação ética do sujeito, que deve se caracterizar por
sua capacidade de dominar as forças que nele se desencadeiam, de guardar
a livre disposição de sua energia e de fazer sua vida uma obra que
sobreviverá sua existência passageira (pela filiação)36.
A Econômica era a arte da conduta do homem como chefe de família
[no casamento heteroafetivo]37. Toma como ponto de partida a chamada
fórmula Contra Nera, segundo a qual “As cortesãs, nós a temos para o
prazer; as concubinas, para os cuidados de todo o dia; as esposas, para ter
uma descendência legítima e uma fiel guardiã do lar” – mas, segundo
Foucault, embora essa fórmula deixasse claro que o homem não tinha um
dever legal de fidelidade sexual para com a sua esposa (podendo manter
relações com rapazes e outras mulheres), a fórmula não pode ser retirada de
seu contexto: não significava que o homem devia buscar o prazer com
pessoa diversa de sua esposa legítima, mas que uma descendência legítima
não poderia ser obtida senão com a própria esposa38. De qualquer forma,
enquanto a esposa tinha o dever de fidelidade sexual e de administração do
lar, o homem tinha como único dever manter a esposa legítima na sua
condição de esposa legítima, garantindo-lhe o status social que esta posição
lhe acarretava39 (desde que ela cumprisse com suas obrigações maritais40),
sem dever legal de fidelidade (embora este fosse visto como uma virtude de
sua parte)41. Ou melhor, considerando que a mulher casava-se muito jovem,
cabia ao marido um trabalho de formação e direção da esposa, ensinando a
ela as virtudes necessárias para que pudesse dominar a arte doméstica, ou
seja, a arte de governar a casa com os bens adquiridos pelo homem com seu
labor externo – pois se entendia que ao homem cabia o mundo externo e à
mulher o mundo interno de seu lar conjugal42. Apesar deste contexto, no
seu livro Leis (parte final de sua vida), Platão defendeu com vigor a
necessidade da fidelidade sexual de ambos os cônjuges, como forma de se
ter uma cidade, para se propiciar uma raça sem bastardos (sic), reiterando a
questão do domínio de si como condição moral para dirigir os outros43; no
que é seguido por Aristóteles, na Ética a Nicômaco e na Política, nas quais
aponta que a finalidade do vínculo que liga o homem e a mulher decorreria
da necessidade da procriação e, ainda, do bem-estar, donde seria uma
injustiça para com a mulher que o homem continuasse a manter suas
convivências ilegítimas (thruraze sunousai)44.
De qualquer forma, reitere-se que essa exposição de Foucault mostra
que tais posições de Platão e Aristóteles constituíam regras puramente
morais, não legais: o homem não estava obrigado a manter o dever de
fidelidade sexual à mulher – isso era considerado como uma virtude, não
uma obrigação jurídica.
A Erótica era a arte da conduta recíproca entre o homem e o rapaz na
relação de amor45. Inicia Foucault esclarecendo que não seria adequado
utilizarmos a noção de homossexualidade para nos referirmos à Grécia
Clássica porque os gregos não opunham, como excludentes, dois tipos de
comportamentos diferentes relativamente ao amor ao seu próprio sexo se
comparado ao amor pelo sexo oposto, não se estabelecendo assim uma
distinção entre um amor heterossexual e um amor homossexual –
importavam-se os gregos apenas com a temperança do amor praticado,
fosse com mulheres ou rapazes, sem que este último fosse mais grave que o
outro46. Aponta ainda que não cabe falar sequer em “tolerância”, pois o
amor por rapazes, além de permitido, era admitido pela opinião pública.
Dito isso, aponta que o amor por rapazes era uma questão moral investida
por valores, imperativos, exigências, regras, conselhos e exortações cujo
ponto essencial seria uma relação privilegiada entre parceiros com uma
diferença de idade e, relativamente a esta, uma diferença de status (ainda
que próximos em idade), não se interessando (os gregos) pelas relações
entre dois homens já amadurecidos, embora houvesse reprovação a tal
relação. As relações objeto de preocupação eram aquelas entre um homem
mais velho que terminou sua formação (“erasta”) – do qual se supõe o papel
social, moral e sexualmente ativo – e um homem mais jovem (“eromeno”),
que não atingiu seu status e que tem necessidade de ajuda, conselhos e
apoio para chegar a tanto (diferença esta que tornava válida e pensável essa
relação)47.
As preocupações morais referidas fixavam os papéis de erasta e
eromeno: do primeiro espera-se uma moderada iniciativa de corte, dando
presentes e prestando serviços que lhe permitissem esperar a justa
recompensa do amado; deste, por sua vez, esperava-se que não cedesse com
facilidade, não aceitasse favores às cegas e apenas por dinheiro e que
manifestasse seu reconhecimento pelo que o amante fez por ele (dava-se
muita ênfase à questão da honra do rapaz, que dependia da maneira como
ele se conduzia pela cidade nesta sua idade de transição entre a
adolescência e a vida adulta, relativamente à postura do corpo, seus olhares,
sua forma de falar, a qualidade das pessoas que frequentava e,
evidentemente, sua conduta sexual48). De qualquer forma, o rapaz era um
homem livre para decidir o que aceitava ou recusava e sobre quem não se
detinha nenhum poder estatutário, donde para obter dele o que sempre tinha
direito de não conceder era preciso ser capaz de convencê-lo. Contudo, ao
final, quando o rapaz ultrapassava a idade máxima tida como admissível
para tal relação, esperava-se que deixasse de se relacionar sexualmente com
o erasta e com ele mantivesse uma mera relação de amizade (philia), tida
como a única relação verdadeiramente duradoura49.
Por outro lado, segundo Foucault, ainda que tido como natural o amor
por rapazes, havia uma dificuldade moral relativamente à sexualidade
passiva que o rapaz precisava assumir, pois apesar de inferior ao homem
adulto, ainda assim não se admitia que ele se assumisse de bom grado como
objeto do erastes (pois a passividade implicava uma situação de
dominação), porque sua juventude deveria lhe levar à condição de homem.
Inclusive, não se admitia que o rapaz (necessariamente passivo na relação
sexual) sentisse prazer por ela, por esta questão de masculinidade viril tão
valorizada pelos gregos, donde, sem ter uma postura fria, deveria ter uma
postura de reconhecimento, admiração ou afeição, mas nunca sentir prazer
por isso, sob pena de repreensão moral50-51.
Em suma, esperava-se que a relação do homem adulto com o rapaz
terminasse quando este atingisse a fase adulta e, a partir de então, manter
com ele uma relação de amizade (philia), a durar pelo resto de suas vidas.
Ou seja, segundo Platão, quando o rapaz atingia a fase adulta, esperava-se
que ele desenvolvesse uma mera relação de amizade (philia) com seu
amante, sem nenhum cunho sexual, o que é representado por Sócrates
quando fala que o mestre deve ensinar ao amado a maneira de triunfar sobre
seus desejos e tornar-se mais forte do que a si próprio, sendo que o mestre,
pelo domínio completo que exerce sobre si próprio, transforma os papéis
para estabelecer uma renúncia aos aphrodisia e ser o objeto de amor dos
jovens ávidos de verdade (inversão de papéis porque, normalmente, eram
os jovens os objetos de amor dos mestres), para que eles sejam levados
apenas ao tesouro de sua sabedoria52.
Foucault inicia o volume III de sua História da Sexualidade analisando
um texto de Artemidoro sobre a onirocricia, a arte de interpretar os próprios
sonhos, por considerar que é o único texto disponível da época que trata de
uma literatura que foi abundante na Antiguidade53. Sobre o tema,
destacarei apenas as conclusões desta análise, segundo a qual, no tema dos
sonhos sexuais, entendia-se que se é um homem que sonha com outro
homem, o que se leva em conta é a posição do sonhador no ato sexual: se
ele é ativo ou passivo, pois se sonha ser possuído por outro homem, o
elemento de discriminação que permite distinguir o valor favorável ou
desfavorável do sonho depende do status relativo dos dois parceiros – o
sonho é bom se o sujeito for possuído por outro mais velho e mais rico do
que ele (e isso anuncia presentes), mas é mau se o parceiro ativo é mais
jovem e mais pobre, ou simplesmente mais pobre, por isto configurar signo
de gastos54. Já as relações entre mulheres são tidas sempre como contrárias
à natureza, tendo em vista que Artemidoro considera que a mulher que, por
meio de um artifício qualquer, efetua a penetração em outra estaria a
usurpar o papel do homem, ao passo que, entre dois homens, o ato viril por
excelência (penetração) não é em si mesmo uma transgressão da natureza
(ainda que se o considere vergonhoso ou inconveniente para o homem
sexualmente passivo)55. Os sonhos sexuais entre homens são considerados
relativamente à utilidade que tais relações podem gerar ao homem
sonhador: Artemidoro analisa apenas os traços sociais do sonhador, a saber,
sua idade, se faz ou não negócios, se possui responsabilidades políticas, se
está ameaçado de ruína ou de hostilidade por seus próximos etc. – ou seja,
analisam-se apenas os perfis sociais das pessoas do sonho56. Nesse sentido,
a penetração tem atenção de destaque, indagando-se o onirocrítico sobre os
polos de atividade e de passividade da relação sexual (quem penetra quem),
tendo em vista que Artemidoro vê no ato sexual um jogo de superioridade e
inferioridade: a penetração coloca os dois parceiros numa relação de
dominação e de submissão, consubstanciando a vitória de um lado e a
derrota de outro, assim como um jogo econômico entre despesa e lucro: o
prazer que se tem, as sensações agradáveis que se experimenta em
contraposição às despesas, à energia necessária para o ato, o desperdício de
sêmen e a fadiga que se segue. Esses são os elementos classificadores da
penetração como um jogo estratégico de dominação-submissão e como um
jogo econômico de despesa-benefício considerados por Artemidoro em sua
análise num plano de relações sociais de superioridade-inferioridade e de
despesa-lucro57.
Assim, os sonhos sexuais são analisados no contexto de um valor
favorável ou desfavorável para o sujeito sonhador, parecendo que o que
confere valor a um ato sexual sonhado é a relação que estabelece entre o
papel sexual e o papel social do sonhador58. Ou seja, o sujeito que sonha
deve ocupar, na atividade sexual, uma posição conforme aquela que ocupa
na realidade com esse mesmo parceiro (ou parceiro do mesmo tipo) – por
exemplo, ser ativo com seu escravo, com um prostituto (ou prostituta), com
um rapaz, ou ainda ser passivo com alguém ao mesmo tempo mais velho e
mais rico59.
Contudo, Foucault relata que já nos dois primeiros séculos de nossa era
houve uma progressiva desconfiança face aos prazeres, insistência sobre os
efeitos de seu abuso para o corpo e a alma, uma valorização do casamento e
das obrigações conjugais e uma desafeição às significações espirituais
atribuídas ao amor pelos rapazes, embora raramente tenha se encontrado
nos pensamentos filosóficos de então uma legislação coercitiva e geral de
comportamentos sexuais, mas apenas a incitação da austeridade nestas
práticas, para um maior cuidado de si e respeito para consigo mesmo
enquanto ser racional, controlador de seus próprios atos60. Incentivou-se
ainda mais a cultura de si, entendida como uma arte da existência pautada
pelos cuidados consigo mesmo, para poder governar a si próprio – o
princípio do cuidado de si adquiriu alcance bastante geral, pelo qual ocupar-
se consigo mesmo é um imperativo que deve reger as atitudes das
pessoas61, pois é na medida em que o homem é livre e racional que ele foi
encarregado de cuidar de si próprio, nunca sendo demasiado cedo ou
demasiado tarde para ocupar-se com a própria alma, conforme dizia
Epicuro, complementado por Sêneca no sentido de que se deve transformar
a existência num exercício permanente de cuidado de si62. Tal compreensão
assumiu tamanha importância que era exigida (moralmente) dos próprios
governantes: evidencia-se que a arte de governar a si próprio se torna um
fator político determinante, dando-se importância ao problema da virtude
dos imperadores (virtudes pessoas de homem racional), de sua vida privada
e da maneira pela qual eles sabem dominar suas paixões, pois, via-se aí, a
garantia de que eles saberiam colocar por si mesmos um limite ao exercício
do seu próprio poder político, o que se garantiria por exercícios de
temperança e pelo cultivo das relações de amizade sem inconstância nem
paixão, em uma arte de bastar-se a si próprio sem perder a serenidade63 –
estabelecia-se, portanto, uma problematização mais geral, que dizia respeito
à maneira pela qual o sujeito devia se constituir enquanto sujeito moral no
conjunto das atividades sociais, cívicas e políticas64.
Nesse sentido, o cuidado de si se correlaciona estreitamente com o
pensamento e a prática médica, ligando-se medicina e filosofia em um
mesmo campo (Plutarco), relativamente ao conceito de “patos”, aplicado
tanto para as paixões quanto para as doenças físicas, perturbações do corpo
e movimentos involuntários da alma, referindo-se em todos os casos a um
estado de passividade que, para o corpo, toma a forma de uma afecção que
perturba o equilíbrio entre corpo e alma65. Sêneca chegou a incitar seus
discípulos a não se considerarem escolares que buscam conhecimentos, mas
como doentes que buscam cuidar de si mesmos66, de sorte à pessoa tornar-
se capaz de abster-se do supérfluo através de uma soberania sobre si67,
propondo inclusive um exame de consciência à noite, antes de dormir, em
uma espécie de encenação judiciária pela qual se comparecesse diante do
juiz, instaurando um processo contra seus próprios costumes e acusar-se ou
advogar sua própria causa, tudo no intuito de analisar se as tarefas e
obrigações do dia foram cumpridas a contento68.
Assim, sob a forma de Dietética, a medicina passou a ser concebida
não apenas como uma técnica de intervenção em casos de doenças para
empregar remédios e operações, mas também como um corpus de saber e
de regras definidores de uma maneira de viver consigo mesmo, com o
próprio corpo, com os alimentos, com a vigília, com o sono, com as
diferentes atividades e com o meio, donde a medicina passou a ser vista
como responsável por propor, sob a forma de um regime, uma estrutura
voluntária e racional de conduta, por entender-se que uma existência
racional não poderia desenrolar-se sem uma prática de saúde (hugieine
pragmateia ou techne)69 – o que ensejou o surgimento de críticas sobre a
maneira pela qual os médicos passaram a se apoderar da existência de seus
pacientes, para regê-la nos mínimos detalhes, inclusive na questão dos
prazeres sexuais, relativamente à sua natureza, o seu mecanismo, o seu
valor positivo ou negativo para o organismo e ao regime a que conviria
submetê-los70. Note-se, ainda, que este regime era também direcionado à
alma racional, que deveria prestar atenção apenas ao necessário ao corpo
[combatendo os excessos], mediante práticas de economia estrita contra o
desregramento, um domínio rigoroso dos desejos, luta contra imagens
tentadoras e uma anulação do prazer como fim das relações sexuais71.
Sobre o tema, há uma ambivalência nos textos médicos dos dois
primeiros séculos da era cristã relativamente aos prazeres sexuais, por
apresentarem um entrecruzamento de suas valorações antitéticas:
valorações positivas, vendo no sêmen o que haveria de mais potente na vida
e valorizando-se a procriação como algo indispensável à espécie humana; e
valorações negativas, por se entender que, quando o sêmen se produz, ele
seria, intrinsecamente, perigoso, pois o seu desperdício faria escapar toda a
força de vida que o sêmen teria concentrado – o que ensejou um paradoxo
dos prazeres sexuais, ante a alta função que a natureza lhes confiou e o
valor da substância que eles teriam de transmitir e, portanto, perder, de sorte
a se fazerem analogias entre o exercício inadequado da sexualidade com
determinadas doenças, especialmente quando o homem tinha uma relação
sexual julgada como ensejadora do mero desperdício do sêmen (Galeno
chega a fazer uma analogia entre o ato sexual e a convulsão e chega a
destacar o caráter fatigante do ato sexual para o peito, o pulmão, a cabeça e
os nervos, o que parece ter sido feito para justificar a temperança nos atos
sexuais)72. Destaca Foucault que a abstenção sexual não era considerada
como um dever, nem o ato sexual representado como um mal, mas que tais
temas ganharam maior atenção no pensamento médico e filosófico de
então73, com recomendações diversas sobre o momento adequado do ato
sexual para a procriação para se obter uma descendência de melhor
qualidade74, sobre a idade do praticante do ato sexual75, o momento
adequado76 e até as temperaturas individuais adequadas77.
Foucault destaca que, diferentemente da futura moral da pastoral cristã,
não se tratava de interrogar-se sobre a origem profunda das ideias que
surgem para tentar decifrar um sentido oculto sob a representação aparente,
mas aferir a relação entre si mesmo e o que é representado, a fim de só
aceitar na relação consigo aquilo que pode depender da escolha livre e
racional do sujeito, em uma ética do domínio, como em uma relação
jurídica de posse: pertencer a si, ser seu, no sentido de domínio de si
mesmo78 [sem ser escravo daquilo que lhe dá prazer]. Por se destacar cada
vez mais a fraqueza do indivíduo, a moral sexual de então exigia que ele se
sujeite a uma certa arte de viver que defina critérios estéticos e éticos da
existência, mediante exercícios de abstinência e de domínio de si, para o
indivíduo atingir a plena soberania sobre si próprio. Cabe notar, contudo,
que esta Dietética de abstinência sexual dava menor atenção às mulheres,
por serem elas consideradas como social e fisiologicamente destinadas ao
casamento e à procriação79.

2.2 As instituições religiosas e o início da pregação homofóbica


A partir de alguns séculos anteriores a Cristo, história e religião
passaram a se entrelaçar (o que perdurou até o final do século XIX), dada a
inegável influência das religiões na vida humana, em especial as crenças
judaica e cristã no que tange ao mundo ocidental.
Quanto à crença judaica, que ensejou a compilação de textos que
originaram o Antigo Testamento bíblico, as instituições da época anterior a
Cristo já manifestavam uma certa condenação ao que se entendia por
homossexualidade, mas isto precisa ser contextualizado para ser
corretamente compreendido.
Os judeus, que se consideram o povo escolhido por Deus, sempre
tiveram um forte sentimento de identidade cultural, no sentido de lutar ao
máximo pela manutenção de seus usos e costumes e pela repulsa àqueles
outros povos. Aquele modelo de pederastia institucionalizada, comum entre
os mais diversos povos do mundo antigo, não fazia parte da tradição
judaica, donde, em decorrência daquele sentimento de promoção de sua
identidade, rechaçavam qualquer tipo de amor masculino (assim como entre
mulheres, embora o amor feminino em geral não fosse levado a sério no
mundo antigo).
Uma questão relacionada a isso é o fato de os judeus (assim como os
cristãos posteriormente) terem passado a se opor contra a libertinagem
sexual do período – afinal, como os homens tinham, até aquele momento,
liberdade absoluta para manterem relações sexuais fora do casamento (fosse
com meninos, fosse homens mais velhos ou mulheres, com as
peculiaridades culturais de cada povo), houve certamente uma banalização
das relações sexuais, o que notoriamente é rechaçado pela religião judaica
(assim como pela cristã). Isso fez com que fosse criada a concepção de que
somente seria admitida a relação sexual realizada dentro do casamento para
fins exclusivamente procriativos, sendo as uniões extramatrimoniais
(mesmo as estáveis) vistas como depravação dos indivíduos contra a
moralidade que começava a surgir. Ou seja, qualquer ato sexual praticado
fora do casamento e, ainda que nele, sem o intuito da procriação, passou a
ser condenado por essas religiões, fosse esse ato homo ou heteroafetivo –
condenava-se a libertinagem, mas não determinado tipo de amor, sendo
que se considerava como libertina qualquer atividade sexual que não
visasse unicamente à procriação. Assim, no que tange à classificação
judaica, o ato sexual realizado fora do casamento, fosse ou não libertino,
passou a ser visto como uma “impureza”, que por isso deveria ser
combatida.
Já quanto à condenação do amor entre pessoas do mesmo sexo, o que
os homofóbicos já pregavam na época (e ainda hoje pregam) é que essa
postura decorreria da condenação da homoafetividade per si, ou seja,
afirmavam que a religião judaica seria contra o amor entre pessoas do
mesmo sexo. Contudo, essa concepção é equivocada, uma vez que a
condenação original, como demonstrado, era contra a libertinagem, que
podia ser tanto hétero ou homossexual. Mas, em decorrência da pregação no
sentido de que a relação sexual só podia ser tida dentro do casamento, e
considerando que já naquela época não era reconhecido o direito ao
matrimônio entre pessoas do mesmo sexo na maioria dos povos (embora
alguns o celebrassem), alguns religiosos passaram a afirmar que a
homossexualidade seria contrária à vontade de Deus, em uma absurda
distorção dos textos bíblicos quando levado em conta o seu sentido
histórico-crítico (ou seja, quando analisado o contexto em que foram
escritos, tema este trabalhado no próximo capítulo).
É nesse sentido que devem ser lidos os textos bíblicos que são
comumente usados na condenação à homossexualidade. Mesmo a notória
abominação80 do Levítico deve ser assim entendida: apesar da literalidade
do texto, a sua compreensão histórico-crítica81 demonstra claramente que o
que se condena ali é, como exposto, a libertinagem sexual, tida como uma
“impureza” e assim entendida como todo ato sexual realizado fora do
casamento, nada mais. A abominação ali tratada é a da traição da
identidade judaica, e não uma condenação à homoafetividade isoladamente
considerada.
Com o advento da religião cristã, que teve uma inequívoca influência
da religião judaica, muitos dos preceitos dessa crença foram tomados como
paradigma para o desenvolvimento da fé de Cristo. Os apóstolos tinham
como base muitas das determinações do “Código Sagrado do Levítico”,
repetindo, assim, a maioria de suas disposições e, consequentemente, de
suas condenações. Nesse sentido, a Epístola de Paulo aos Romanos82,
também comumente usada pelos homofóbicos para difundirem o
preconceito contra homossexuais, supõe o conhecimento das regras do
Levítico, donde a condenação ali existente tem o mesmo conteúdo daquela
do Antigo Testamento. Quando Paulo fala da suposta “luxúria” do amor
entre mulheres e do fato de entender ser “inconcebível” o amor entre
homens, está imbuído da crença de que a homoafetividade não poderia ser
baseada no sentimento sublime do amor, mas sim na mera paixão carnal
libertina, em um claro equívoco ensejado pelos preconceitos da época.
Contudo, hoje é inquestionável racionalmente o fato de que o amor
existente entre pessoas do mesmo sexo é o mesmo que existe entre pessoas
de sexos diversos, donde se percebe claramente o equívoco da posição de
Paulo e de todos os religiosos que pregavam (e ainda hoje pregam) no
sentido de uma suposta imoralidade da homoafetividade.
As considerações até aqui expostas neste tópico visam contextualizar o
leitor com as pregações que, timidamente, começaram a ganhar força ao
longo dos séculos até que se chegasse à postura altamente preconceituosa e
discriminatória de instituições religiosas como a Igreja Católica Apostólica
Romana contra a homoafetividade nos dias de hoje. Contudo, como se pode
imaginar, para sociedades que tinham uma cultura consolidada no modelo
da pederastia institucionalizada (para a “masculinização” dos adolescentes)
e que não viam no amor homoafetivo per si algo condenável (o que ocorria
apenas com a sexualidade passiva dos homens, por tida como típica das
mulheres), aquelas colocações homofóbicas foram, inicialmente, ignoradas.
Afinal, não é da noite para o dia que se muda a mentalidade das pessoas,
que na época não viam nada de extraordinário na homoafetividade.
Mesmo a Epístola de Paulo aos Romanos não foi, a princípio, levada a
sério pelo povo destinatário, ignorando, por óbvio, aqueles que já tinham
preconceito contra a homoafetividade. O que ocorreu, em verdade, foi uma
gradativa mudança do pensamento social em decorrência da repetição, por
séculos, da pregação homofóbica. Afinal, se é difícil mudar o pensamento
de pessoas adultas, já contextualizadas em determinada cultura, é
inversamente proporcional a facilidade no convencimento de pessoas que
crescem ouvindo a mesma pregação, especialmente considerando que isso
foi feito ao longo de séculos, ou seja, através de várias gerações.
Por outro lado, outra questão importantíssima é a atinente à
condenação do ato sexual estéril, outra das fortes causas ensejadoras da
pregação contrária à homoafetividade, ante a lógica de que a relação de
amor homoafetiva não tem como gerar filhos biológicos. Isso porque era
visto como “impuro” todo ato sexual realizado fora do casamento e sem
finalidade reprodutiva83.
A contínua pregação religiosa no sentido de que o Messias voltaria à
Terra a qualquer momento e que somente aqueles tidos como “bons” iriam
para o reino de Deus fez que os cristãos em geral passassem a obter
valiosos aliados, temerosos de não conseguirem chegar ao Paraíso: os
reis/imperadores. Isso fez que diversos monarcas, quando convertidos,
passassem a editar leis contrárias às práticas homoafetivas, sob a deturpada
interpretação bíblica que as condenava.
Com o passar do tempo, houve um significativo aumento da legislação
que criminalizava a homoafetividade, mas, como dito, a condenação inicial
(mesmo legislativa) não incomodou efetivamente àqueles que amavam
pessoas do mesmo sexo. Contudo, embora não tenham conseguido impedir
a existência de homossexuais (afinal, sexualidade independe de “opção”,
conforme explicitado no próximo capítulo), com o passar do tempo, as leis
contrárias à homossexualidade levaram os homossexuais à clandestinidade,
no sentido de que a intimidade homoafetiva passou a ser mascarada (para se
evitar a punição estatal), embora fosse continuamente praticada84-85.
Contudo, em decorrência da legislação homofóbica, houve um aumento da
violência dos Estados Cristãos contra a homossexualidade. Nesse sentido, é
esclarecedora a história de dois bispos que foram condenados à morte pelo
Imperador Romano Constantino no ano de 521 d.C.:

O processo desses criminosos foi feito da maneira mais irregular


possível, desde a pena imposta, quando não havia acusador, com a
prevalência da palavra de um único homem ou rapaz, mesmo sendo ele
um escravo forçado a fornecer a prova, contra a sua vontade, contra
seu senhor, e ela foi aceita como prova. Os homens assim condenados
foram castrados e expostos à execração pública [Procópio, A história
secreta].
Uma morte dolorosa lhes foi imposta, pela amputação do
instrumento de pecado e pela inserção de finos palitos nos poros e
tubos da mais fina sensibilidade. E Justiniano defendeu a justiça da
execução, uma vez que criminosos deveriam perder as mãos, tendo
eles sido condenados por sacrilégio. Nesse estado de desgraça e
agonia, os dois bispos (...) foram arrastados pelas ruas de
Constantinopla, enquanto seus irmãos eram advertidos aos gritos para
que observassem a terrível lição e não poluíssem a santidade de seu
caráter. Talvez os prelados fossem inocentes. Uma sentença de morte e
infâmia era muitas vezes fundamentada com a mais leve e suspeita
afirmação de uma criança ou de um servo (...) e a pederastia se tornou
o crime daqueles a quem não se podia imputar nenhum crime
[Gibbons]86.

Como se percebe, os imperadores cristãos homofóbicos da época


queriam a todo custo aplicar penas bárbaras contra aqueles que afrontavam
seus conceitos de certo e errado, usando tais casos como “exemplos” para
que outros não tomassem atitudes similares. A descrição de Procópio
demonstra, inclusive, como ignoravam os próprios conceitos de sua época
para conseguir “fundamentos” para tais condenações: ora, a condenação dos
bispos em questão com base na palavra de um escravo, que não era sujeito
de direitos e cuja palavra não tinha nenhuma valia para a sociedade de
então, escravo este que ainda por cima depôs contra a sua vontade,
demonstra que o que se pretendia era a difusão do preconceito contra o
amor entre pessoas do mesmo sexo a qualquer custo, e não a obtenção da
Justiça (vê-se, inclusive, como nossos conceitos atuais de ampla defesa,
contraditório e, em suma, devido processo legal realmente não eram
respeitados na época).
Por outro lado, outro dos principais motivos históricos para a
condenação da homossexualidade foi a baixa expectativa de vida da
população do então mundo conhecido (Europa Ocidental) durante a
ascensão da fé cristã. Em Roma, isso se caracterizou pelo constante estado
beligerante de seu Império, o que causava muitas mortes, donde “cada
mulher precisava gerar cinco filhos, em média”87 para se manter a
estabilidade da população romana. Isso, aliado à peste bubônica, que
dizimou aproximadamente um terço da população europeia da época,
tornaram a heterossexualidade, acima de tudo, necessária. Assim, por mais
que a deturpação das religiões já estivesse em curso anteriormente, este
motivo certamente foi determinante na edição de leis homofóbicas por parte
de Justiniano (um dos imperadores que mais se opuseram ao amor
homoafetivo). Faz sentido, assim, que Justiniano tenha baixado duas leis
anti-homossexuais, uma antes e outra depois de ter havido, no ano de 542,
uma epidemia de peste bubônica88.
Diante dessa contínua pregação homofóbica ao longo dos séculos, a
população que cresceu ouvindo-a passou, gradativamente, a superar a
cultura da pederastia institucionalizada e da aceitação do amor por pessoas
do mesmo sexo como algo tão normal quanto o amor por pessoas de sexo
diverso, o que deu início ao desenvolvimento do atual quadro de
preconceito social contra homossexuais. Esse foi o contexto que originou a
futura criação dos Estados Homofóbicos, ou seja, aqueles que efetivamente
institucionalizaram legislações que criminalizavam o comportamento
homoafetivo e embutiram no pensamento de suas sociedades a errônea ideia
de que a homossexualidade seria um “pecado”, algo “errado”, e assim por
diante. Tratar-se-á, agora, da consolidação desses Estados.

2.3 A Idade Média e o nascimento do estado homofóbico


Por tudo o que se demonstrou até aqui, fica claro que a sociedade
antiga tinha como regra culturalmente imposta uma pseudobissexualidade
masculina, pela qual durante a adolescência o homem deveria prestar
favores sexuais no papel passivo e, atingida a maturidade, deveria assumir o
papel ativo, quando serviria como tutor de um rapaz, assim como aquele
homem mais velho havia feito com ele. No entanto, após séculos de
pregação religiosa condenando o amor entre pessoas do mesmo sexo, a
mentalidade social começou a se consolidar no sentido de uma moral
homofóbica. Na verdade, como a Igreja Católica Apostólica Romana só vê
o ato sexual realizado dentro do casamento e com o único intuito da
procriação como moralmente aceitável, passou a condenar toda e qualquer
prática sexual que não se enquadrasse nesse conceito – apesar de sempre ter
sido mais tolerante em suas condenações quando o ato em discussão era
realizado entre um homem e uma mulher.
Esse novo pensamento social consolidado na Idade Média, em vez de
expurgar a expressão do amor entre pessoas do mesmo sexo, acabou, como
dito, fazendo que ele fosse realizado às escondidas. Em verdade, o mesmo
modelo pseudobissexual continuou a existir, só que agora tinha que ser
disfarçado, feito com discrição, para que não fossem os homens em questão
punidos criminalmente pelo Estado, cada vez mais influenciado pelas
religiões. Contudo, a condenação homofóbica continuou cada vez com mais
força89. A suposta ligação entre a homossexualidade e a feitiçaria e o
demonismo fez que os heterossexuais em geral passassem a ter cada vez
menos tolerância contra aqueles que amavam pessoas do mesmo sexo.
Essas afirmações ganharam força considerável entre os anos de 1348-1350,
nos quais a Peste Negra devastou a Europa, dizimando aproximadamente
um terço da população. Isso porque os chefes de Estado da época,
influenciados por ministros religiosos, ligaram ditos desastres às condutas
sexuais tidas por imorais (todas aquelas fora do casamento e sem intuito
procriativo), aumentando ainda mais o ódio contra os homossexuais. A
Europa precisava ser repovoada, e como os legisladores da época viam na
homoafetividade uma ameaça a esse objetivo, passaram a editar cada vez
mais leis com o intuito de puni-la90.
Em outras palavras, com a Idade Média o preconceito contra qualquer
ato sexual que não fosse aquele praticado dentro do casamento, na posição
mais ortodoxa e com a finalidade exclusiva da procriação, aumentou em
grandes proporções, pois a sociedade humana já estava começando a ficar
“doutrinada” pelos dogmas arbitrários e preconceituosos da Igreja Católica
Apostólica Romana contra tudo aquilo que não julgava correto.
Por oportuno, cite-se que os costumes sociais das tribos indígenas das
Américas e dos povos asiáticos baseavam-se na mesma estrutura
pseudobissexual do mundo antigo, sem grandes variações. Relatos
demonstram que os espanhóis ficaram horrorizados com a naturalidade com
que o amor entre homens era encarado no Novo Mundo, reação esta
idêntica à dos jesuítas que ali e à Ásia (Japão e China) foram. É interessante
notar como o mundo inteiro, em maior ou menor grau, tinha a prática da
pederastia institucionalizada como necessária ao desenvolvimento da
masculinidade dos adolescentes. A moral condenatória da homoafetividade
veio apenas após a Antiguidade Clássica europeia, com fortíssima
influência das instituições religiosas, no que se estendeu ao “Novo Mundo”,
“descoberto” apenas após a consolidação da homofobia estatal.

2.4 Os humanistas, os puritanos, os capitalistas e os iluministas: visões


distintas, preconceito idêntico
Com o advento da visão humanista, oriunda da Itália do século XV, os
valores da Grécia Clássica foram redescobertos. A cultura grega foi
revigorada, donde a antiga visão do mundo clássico no que tange à
sexualidade voltou a ter fortes defensores entre os filósofos, que pregavam
abertamente pela validade do amor masculino. Isso fez que esses não só
ignorassem como também ridicularizassem as leis e os conceitos
demonistas relativos ao amor homoafetivo91.
Novamente, era o amor entre homens mais velhos e adolescentes
aquele vangloriado pelos filósofos humanistas. O que assustava a sociedade
era o relacionamento entre dois homens de idades similares, pois a visão do
homem mais velho na condição passiva era tida como degradante dos
valores morais da época – como se estivesse abrindo mão de sua
masculinidade. Mas note-se um detalhe: o simples fato de haver
condenação e desprezo explícito por homens adultos sexualmente passivos
configura prova cabal da existência da homossexualidade e da
homoafetividade no passado, mesmo entre adultos, visto que isso não seria
algo inventado de forma fortuita e apriorística, mas como reação ao que
ocorria na realidade empírica. Contudo, a condenação homofóbica não
deixou de crescer nesse período. Apesar de muitos filósofos passarem a
defender o amor entre homens da mesma forma que na Grécia Clássica, a
criminalização da homoafetividade continuou crescendo. Em verdade, as
autoridades faziam vista grossa em muitos casos, só penalizando aqueles
que não escondiam seus relacionamentos homoafetivos da comunidade em
geral – especialmente entre as classes mais baixas (a nobreza e o clero
contavam, como sempre, com maior benevolência do Estado).
Isso ganhou ênfase com a visão puritana, oriunda dos movimentos
protestantes de reforma religiosa. Os puritanos, apesar de discordarem da
Igreja Católica em muitos aspectos, reforçaram a ideia de que o ato sexual
meramente procriativo realizado dentro do casamento seria a única
manifestação válida da sexualidade humana, de acordo com suposta
moralidade divina. Por outro lado, eram ainda mais cruéis em suas
condenações às manifestações afetivas que não seguiam esse dogma.
No século XVII, o modelo econômico capitalista começou a ganhar
força, com o estímulo da competitividade entre os homens, o que passou a
inibir qualquer contato mais amistoso, especialmente amoroso, entre eles.
Com isso, passou-se a estimular o desenvolvimento de uma sociedade cada
vez mais consumista (como ainda hoje se faz), o que fez que o amor
homoafetivo fosse visto como um entrave ao consumismo desejado pelas
elites de então. Isso se explica pelo fato de que a família heteroafetiva tinha
uma potencialidade consumista maior do que a família homoafetiva, ante a
incapacidade desta de gerar descendentes. Vislumbre-se uma época em que
a adoção praticamente não existia e na qual não existiam técnicas de
inseminação artificial. Assim, além do já consagrado medo de extinção da
humanidade se a homossexualidade fosse aceita (como se heterossexuais
fossem simplesmente, em um passe de mágica, se “transformar” em
homossexuais ou então deixar de existir pela simples regulamentação do
relacionamento homoafetivo...), passou-se a considerar o amor entre
iguais92 inconveniente, pelo fato de não gerar futuros consumidores e nem
mesmo ensejar o consumo dos produtos voltados ao público infantil93. Esse
tipo de visão fez que os Estados passassem a estimular o comportamento
heterossexual a todo custo, mesmo que o preço disso fosse ignorar outros
comportamentos também condenados, como a prostituição. Como os
homens só se casavam aproximadamente aos 30 anos, e considerando que,
em tese, o ato sexual só podia ocorrer dentro do casamento, temia-se que
eles pudessem utilizar-se de homens prostitutos para satisfazerem seus
desejos sexuais. Assim, com o intuito de evitar o temido “crescimento da
homossexualidade”, condenava-se a prostituição masculina e estimulava-se
a feminina. As meretrizes eram então uma válvula de escape necessária à
sociedade94, inobstante a clara hipocrisia dessa situação, considerando que
a prostituição também era tida como um pecado severamente condenável.
Mesmo a visão iluminista, que via na liberdade sexual uma forma de
atingir o progresso, a ordem e a felicidade, condenou com veemência o
amor homoafetivo. Por mais contraditório que isso possa parecer,
continuava-se condenando a sexualidade homoafetiva como algo contrário
à moral, mesmo sem serem trazidos novos argumentos para isso. Ao que
parece, partiu-se do pressuposto de que seria ela “errada” pelo simples fato
de dita condenação já estar historicamente consagrada, como se a
institucionalização do preconceito tivesse o condão de torná-lo jurídica e
eticamente válido. Contudo, é provável que a visão iluminista não tenha
ajudado no aumento da tolerância à homoafetividade devido ao fato de ter
tido sua maior ênfase no século XVIII, período no qual se passou a
acreditar que o vigor masculino, tido como necessário à acumulação de
riqueza, estaria inerentemente ligado à quantidade de sêmen que o homem
tivesse dentro de si. Ou seja: acreditava-se que os homens tinham apenas
uma limitada quantidade de sêmen em seu corpo. Assim, não é à toa que
esse período da história fez que a sexualidade não heterossexual passasse a
ser ainda mais condenada, pois se entendia que ela “gastava” a semente da
vida de forma inútil, ou seja, não procriativa.

2.5 O século XIX e a patologização da homossexualidade


Com a evolução do pensamento humano, passou-se a valorizar a
racionalidade em detrimento da religiosidade no que tange à explicação dos
fenômenos humanos e naturais. Deixou-se, gradativamente, de acreditar nos
dogmas religiosos para buscar uma explicação científica, racional para as
questões da vida humana. Isso levou a que, a partir do século XIX,
ganhasse força a posição de que a homossexualidade não deveria ser vista
como um pecado contra Deus, mas como uma doença a ser tratada. Dessa
forma, pouco a pouco, a classe médica foi desenvolvendo teorias para tentar
enquadrar a homossexualidade como uma “patologia”. As pessoas,
simplesmente, passaram a aceitar essa visão, em virtude de ser a
heterossexualidade a expressão sexual mais comum nas sociedades
humanas.
Todavia, é interessante notar que nunca houve uma comprovação
acerca do que enquadraria a homossexualidade como uma “doença” ou algo
do gênero – nunca se provou que uma pessoa teria sua saúde prejudicada
pelo simples fato de ser homossexual. Muito embora tenham existido (e
ainda existam) aqueles que defendiam que as pessoas homossexuais seriam
mais retraídas, propensas à depressão e inibidas do que as heterossexuais (o
que não pode ser generalizado, visto existirem muitos homossexuais que
não se enquadram nisso), essas características não são inerentes à
homossexualidade. Afinal, muitos heterossexuais também são retraídos,
depressivos e inibidos, e ninguém atribui tais sintomas à sua
heterossexualidade. Em verdade, o que ocorre é que o alto grau de
preconceito homofóbico faz que os homossexuais, em geral, sintam a
necessidade de se retrair (ainda que não durante toda a sua vida), de
esconder sua verdadeira sexualidade para não sofrerem agressões físicas e
psicológicas que o machismo heterossexista, vigente no mundo atual, impõe
cotidianamente ao cidadão homossexual. Isso acaba levando à depressão e à
inibição, pois ditas pessoas têm que esconder sua verdadeira identidade por
meio da criação de um “personagem” heterossexual, para que este viva a
vida em seu lugar.
Imagine o leitor um menino que cresce sabendo que gosta de meninos e
não de meninas, ao contrário do que todos esperam. Quando adolescente,
tendo maior compreensão do que significa seu sentimento por outros
meninos, passa a se retrair, policiando-se ao máximo para que suas atitudes
não deem a entender que é homossexual. Isso tudo apenas para que não seja
discriminado por seus colegas de escola e, muitas vezes, por sua própria
família. O mesmo vale para meninas. É evidente que uma pessoa que
imponha a si própria tamanha restrição acaba se sentindo isolada, sozinha, e
se torne, por vezes, retraída, depressiva e/ou inibida. Mas é igualmente
óbvio que nenhum desses sintomas tem algo que ver com a sexualidade da
pessoa: o homossexual poderá, eventualmente, desenvolvê-los em
consequência do forte preconceito homofóbico vigente na sociedade
humana, não em razão de sua homossexualidade.
De qualquer forma, voltando ao tema deste subtópico, foi no século
XIX, aliás, que foi criada a palavra “homossexual” pelo médico Karoly
Maria Benkert. O termo surgiu de uma carta escrita por ele ao Ministério da
Justiça da Alemanha do Norte em defesa dos homens homossexuais que
estavam sendo perseguidos por questões políticas95. Entendia o referido
médico que não deveriam os homossexuais ser perseguidos criminalmente,
mas sim “curados” de sua condição homossexual.
A posição de Freud, que em muito influenciou nas concepções sobre a
homossexualidade, é confusa em decorrência de uma contradição entre o
início e o final de sua obra. A princípio, através de seu consagrado
“complexo de Édipo”, Freud classificou o amor por pessoas do mesmo sexo
como uma desordem no desenvolvimento da sexualidade humana, no
sentido de que a ausência paterna durante a infância e a violência repressiva
do pai ensejariam, respectivamente, as homossexualidades masculina e
feminina. Disso se vê de onde surgiu a ideia de que todo ser humano
nasceria bissexual e com o tempo teria sua sexualidade definida (ainda que
permanecesse bissexual), sendo socialmente aceita apenas a variação
heterossexual. A aparente contradição apontada na visão de Freud decorre,
por outro lado, da notória “Carta a uma mãe americana”, na qual expressou
uma atitude positiva e não patológica sobre a homoafetividade96.
Mas, de qualquer forma, apesar de alguns poucos médicos terem
seguido esse exemplo e defenderem, assim, que o amor por pessoas do
mesmo sexo não deveria ser criminalizado, a classe médica em geral
difundiu a ideia da homossexualidade como “degeneração”, por
vislumbrarem nela um suposto conteúdo patológico, o que aumentou a
concepção social condenatória do comportamento homoafetivo.
Posicionamentos esdrúxulos, como o de que a masturbação levaria à
homossexualidade e de que uma pessoa homossexual jamais poderia
alcançar a felicidade (pois era tida como “perturbada”), entre outras,
ajudaram a aumentar esse estigma. Em decorrência dessa visão patológica,
temia-se que a homossexualidade pudesse se “espalhar” pela sociedade se
não fosse fortemente reprimida, o que igualmente contribuiu para o
aumento da homofobia.
Sempre que existia uma crise em determinada nação, a culpa era
colocada exclusivamente naqueles que não se enquadravam no conceito
predominante da sociedade. Criou-se uma moralidade esquizoide, pela qual
os parlamentares e estadistas em geral passaram a afirmar que os valores da
sociedade estavam sendo degenerados por uma série de condutas tidas
como inaceitáveis (entre elas a homossexualidade), aumentando assim a
perseguição aos ditos “transgressores” – em geral homossexuais e mulheres
(o movimento feminista começava a engatinhar)97.
Isso fez com que tratamentos desumanos fossem abertamente impostos
a homossexuais, sem nenhuma punição estatal. Terapias com choques
convulsivos, lobotomia e terapias por aversão98 foram largamente utilizadas
e ninguém na sociedade a elas se opunha: queriam, a todo custo, descobrir
uma forma de reverter a homossexualidade. Obviamente não conseguiram –
pois não se cura algo que não é patológico.

2.5.1 Foucault e a história da sexualidade após o século XVIII


Foucault inicia o volume I de sua história da sexualidade dizendo que,
em geral, acredita-se que até o início do século XVIII vigoraria ainda uma
certa franqueza acerca da sexualidade, momento no qual a família conjugal
teria confiscado o tema da sexualidade e, em torno do sexo, se calado, em
um modelo conjugal imposto pela lei, que reconhecia o quarto dos pais
como o único lugar de sexualidade reconhecida, caracterizando um tríplice
decreto de interdição, inexistência e mutismo acerca da sexualidade em
geral, entendendo-se a repressão como o modo fundamental de ligação
entre poder, saber e sexualidade99. Contudo, Foucault entende que a
sociedade trata com muita hipocrisia deste tema, pois ela fala prolixamente
de seu próprio silêncio, obstinando-se a detalhar o que não se diz,
considerando como ponto essencial formular interdições e permissões à
sexualidade, mas levar em consideração o fato de se falar de sexo, quem
fala, os lugares e os pontos de vista de que se fala, as instituições que
incitam a fazê-lo, que armazenam e difundem o que dele se diz, de que
maneira o poder penetra e controla o prazer cotidiano100.
Foucault considera que, ao contrário do que se pensa, a partir do século
XVII, em torno e a propósito do sexo ocorreu uma verdadeira explosão
discursiva – afirma que talvez tenha havido uma depuração bastante
rigorosa do vocabulário autorizado, com novas regras de decência que
filtraram as palavras (uma polícia dos enunciados), estabelecendo regiões
de silêncio absoluto ou de discrição, mas, em compensação, houve uma
multiplicação dos discursos sobre o sexo no próprio campo do exercício do
poder, mediante uma incitação institucional a falar dele cada vez mais, ante
a obstinação das instâncias do poder a ouvir falar e fazê-lo falar ele próprio
sob a forma da articulação explícita e detalhada101.
No século XVIII, Foucault afirma que nasce uma incitação política,
econômica e técnica para se falar sobre o sexo em público, mas não
somente por um discurso moral, mas um discurso racional, falando do sexo
não apenas como algo a se condenar ou tolerar, mas algo a se gerir, inserir
em sistemas de utilidade e a se regular para o bem de todos102. Embora
conceda que seja verdade que desapareceu a liberdade de linguagem entre
crianças e adultos ou alunos e professores sobre o tema, isso não significa
puro e simples silenciar – não se fala menos do sexo, fala-se dele de outra
maneira103; são outras pessoas que falam, a partir de outros pontos de vista
e buscando outros efeitos – falando-se da maneira mais prolixa possível, em
termos prescritivos, acerca da sexualidade das crianças104 e da sexualidade
em geral105.
Nesse sentido, destaca que a lei matrimonial era saturada de
prescrições, sobrecarregando o sexo dos cônjuges de regras e
recomendações, sendo que a explosão discursiva dos séculos XVIII e XIX
gerou um movimento centrífugo em direção à monogamia heterossexual,
garantindo-se ao casal legítimo [que nela se enquadra] um direito à maior
discrição, ao passo em que se passou a interrogar com maior atenção a
sexualidade daqueles que não se enquadravam nesta norma, a saber, a
sexualidade das crianças, dos loucos, dos criminosos e em relação ao prazer
dos que não amam o outro sexo, pessoas estas que, sem serem menos
condenadas, passaram a ser escutadas para que assim fosse possível melhor
regular a sexualidade legítima106.
Ademais, destaca Foucault que a ciência passou a ser utilizada para
justificar estes discursos do sexo supostamente a partir de seu ponto de vista
purificado e neutro, mas aponta que era uma ciência essencialmente
subordinada aos imperativos de uma moral, cujas classificações reiterou sob
a forma de normas médicas107, provocando medos a pretexto de dizer a
verdade108. Em contraposição a uma arte erótica (ars erotica), que extrai a
verdade do próprio prazer, desenvolveu-se entre nós uma ciência sexual
(scientia sexualis), que estabelece procedimentos que se ordenam,
essencialmente, em função de uma forma de poder-saber destinada a obter a
[suposta] verdade sobre o sexo109, a saber, a confissão (total, meticulosa e
constante), que se inscreveu no cerne dos procedimentos de
individualização do poder110 e passou a ser, no Ocidente, uma das técnicas
mais altamente valorizadas para produzir a verdade – fosse ela produzida
espontaneamente ou de forma forçada, pela tortura, visto que a sexualidade
foi definida como algo obscuro ao próprio sujeito, donde este deveria
revelá-la para que ela fosse devidamente interpretada por aquele que ouve a
confissão111, especialmente por força da medicalização e, portanto, da
patologização da sexualidade, que demandaria intervenções terapêuticas ou
de normalizações dentro deste campo de significações a decifrar112.

2.6 O século XX: o Relatório Kinsey e a atual visão da ciência médica


sobre a homossexualidade
Até meados do século XX, não houve significativa evolução no
entendimento sobre a homossexualidade. Tragicamente, isso fez que
milhares de homossexuais fossem assassinados nos campos de
concentração nazistas (ao lado de judeus e ciganos).
O grande marco deste século foi, certamente, o famoso Relatório
Kinsey, de 1945. Nele, Alfred Kinsey, em uma pesquisa inédita, estudou o
comportamento sexual do macho humano (em seguida, fez um estudo
similar voltado às mulheres), onde classificou o homem como
“heterossexual exclusivo”, “incidentalmente homossexual”, “mais do que
incidentalmente homossexual”, “igualmente hétero ou homossexual”, “mais
do que incidentalmente heterossexual”, “incidentalmente heterossexual” e
“homossexual exclusivo” (além de “indiferente sexualmente”)113.
A crítica que se pode fazer ao Relatório Kinsey é com relação ao
método por ele utilizado para classificar as pessoas. Isso porque Kinsey
baseou-se no ato sexual, e não no desejo sexual, para classificar as pessoas
em homo, hétero ou bissexuais. Afinal, para que uma pessoa possa ser
classificada como homossexual, deve se sentir genuinamente atraída
amorosa e sexualmente por pessoas do mesmo sexo – por outro lado, o
mero ato sexual não supõe esse desejo genuíno. Kinsey, ao revés,
considerou que o simples fato de a pessoa ter tido uma relação sexual
isolada com alguém do mesmo sexo, ainda que fosse a única em sua vida, a
classificava como “incidentalmente homossexual” (ou seja, como
bissexual).
Mas, inobstante esta crítica, o Relatório Kinsey foi importantíssimo na
medida em que foi o primeiro estudo científico que não se deixou
influenciar por preconceitos: para aquilo a que se destinou, que era saber
que tipos de atos sexuais realizavam as pessoas (o que é diverso de um
estudo sobre a sexualidade humana, que seria mais abrangente), o Relatório
Kinsey ajudou a mostrar ao mundo que a homossexualidade efetivamente
existe.
Em 1969, os tumultos de Stonewall, marcados por diversos conflitos
entre a polícia estadunidense e homossexuais, tiveram grande destaque na
mídia. Em determinada noite, policiais invadiram o bar “Stonewall Inn”
alegando que este estaria cometendo infração da legislação sobre a venda de
bebidas alcoólicas – dita “infração” decorria do fato de que as leis
estadunidenses da época proibiam sua venda em estabelecimentos
direcionados ao público homossexual, o que estava, somente naquela época,
começando a ser declarado inconstitucional pelo Judiciário dos Estados
Unidos. Assim, os policiais tentaram prender uma série de homossexuais e
travestis que estavam no local (pelo simples fato de não serem
heterossexuais), o que ensejou uma revolta sem precedentes, na qual os
travestis e os homossexuais presentes passaram a contra-atacar a polícia
com aquilo que tinham em mãos. Esses conflitos, que se estenderam por
dias, ficaram conhecidos como os tumultos de Stonewall, tendo sido eles
que inspiraram a criação da Parada do Orgulho Gay114 nos Estados Unidos
e no mundo (pois ditos conflitos terminaram com uma passeata de protesto
contra a política homofóbica) – atualmente melhor denominada como
Parada do Orgulho LGBT (Lésbicas, Gays, Bissexuais e Transgêneros).
Em 1974, a Associação Americana de Psiquiatria afirmou que a
homossexualidade per si não é uma perturbação mental. Em 1993, a
Organização Mundial de Saúde fez o mesmo, excluindo-a de sua
Classificação Internacional de Doenças (CID 10/1993). No Brasil, o
Conselho Federal de Psicologia, em 1999, foi ainda mais preciso, afirmando
não ser ela uma doença, um desvio psicológico nem uma perversão
(Resolução 01/1999), precedido que foi pelo Conselho Federal de
Medicina, que o fez em 1985.
Como se vê, foi apenas no final do século XX que a ciência médica
mundial deixou de ver na homossexualidade uma patologia. Nesse sentido,
se não é uma doença, é ela tão normal quanto a heterossexualidade, ou, com
muito mais razão, sendo os homossexuais pessoas tão dignas quanto os
heterossexuais, merecem eles o mesmo tratamento que os heterossexuais,
por força dos princípios da igualdade e da dignidade da pessoa humana,
explicitados oportunamente neste trabalho.

2.7 A homossexualidade no Brasil, da colônia à atualidade


O comportamento homossexual já existia no Brasil desde antes da
colonização portuguesa. Isso restou constatado já pelos colonizadores de
1500, que se depararam com recorrentes relacionamentos homossexuais
(masculinos e femininos) entre os índios brasileiros – tupinambás, tupinaés,
guaicurus, guaicurus-caduveos, botocudos, bororos, coerunas, ianomâmis,
tapirapés, kadiwéus e kraôs115. Muito embora se possa dizer que em regra
seguia-se a citada pederastia institucionalizada supradescrita, havia a
existência de casais homoafetivos adultos, assumindo o sexualmente
passivo as funções tidas como femininas (por vezes se travestindo), sendo
totalmente aceitos pelos demais membros da tribo.
Os cristãos consideravam a homossexualidade dos índios como
decorrência da “frouxidão de costumes”, atribuindo-a às crenças pagãs
destes, o que fez que os portugueses identificassem os nativos brasileiros
com a prática homossexual116. Note-se a verdadeira arrogância dos
colonizadores cristãos, que se davam ao direito de julgar negativamente os
costumes alheios pelo simples fato de serem diversos dos seus.
Em síntese, pode-se dizer que a sexualidade dos nativos brasileiros
seguia o que ocorria na Antiguidade Clássica europeia, com algumas
variantes de tribos para tribos, conforme seus costumes e suas lendas. Foi,
também aqui, somente com a chegada da moral judaico-cristã117 que se
começou a perseguição à prática homossexual no Brasil, que passou a trazer
punições desumanas e praticamente sádicas aos homossexuais118.
Tamanha era a histeria visando combater a homossexualidade, que se
chegou ao absurdo de adulterar sonetos de Michelangelo, com o intuito de
censurar sua homossexualidade119. As leis da época eram implacáveis
contra a homossexualidade, como se percebe pelas penas de fogueira,
confisco de bens e infâmia previstas nas Ordenações Afonsinas, Manuelinas
e Filipinas – esta última diretamente aplicável no Brasil até o Código Civil
de 1916, donde, se nosso país não era oficialmente teocrático, era no
mínimo confessional (tinha a religião católica como oficial).
Nesse sentido, vale transcrever uma chocante sentença proferida pelo
autointitulado “Santo” Ofício da Inquisição:

Decide o Visitador do Santo Ofício que vistos os Autos,


declarações das testemunhas e a confissão que fez depois de preso o
sodomita Salvador Romeiro, (...) o qual confessou que já foi preso na
Ilha de São Tomé e mandado para Portugal preso onde andou remando
nas galés por fazer as torpezas de pecado de molície (masturbação) e,
outrossim, mostra-se que depois disso o réu fez e efetivou por muitas e
diversas vezes o horrendo e nefando crime de sodomia, sendo umas
vezes agente e outras vezes paciente, com pouco temor de Deus e
esquecido da salvação de sua alma. E, outrossim, mostra-se o réu
muito notado e infamado de sodomítico e cometedor de tais torpezas,
no qual caso as leis e Ordenações do Reino mandam que qualquer
modo que o fizesse, seja queimado e feito por fogo em pó, para que de
seu corpo e sepultura nunca mais haja memória e todos os seus bens
sejam confiscados pela Coroa Real posto que descendentes ou
ascendentes, e que seus filhos e descendentes fiquem ináveis e infames
como os daqueles que cometem o crime de lesa-majestade. Vendo,
porém, como réu de misericórdia, a qual ele pediu confessando sua
culpa depois de preso, com muitas provas de arrependimento,
condenam o réu Salvador Romeiro que vá ao Ato Público descalço, em
corpo, com a cabeça descoberta, cingido com uma corda e com uma
vela acesa na mão, e seja açoitado publicamente por esta vila e vá
degregado para as galés do Reino por oito anos, para onde será
embarcado na forma ordinária, nas quais servirá os ditos oito anos ao
Reino, remando sem soldo, fazendo penitência de tão horrendas e
nefandas culpas, e pague as custas do processo. Olinda, Capitania de
Pernambuco, 4 de agosto de 1594. Heitor Furtado de Mendonça,
Visitador120.

Note-se a crueldade da Igreja Católica para com aqueles que ousavam


viver sua vida de forma diversa daquela estatuída pelos dogmas católicos,
donde é no mínimo interessante como tal instituição (como outras) ignora
os postulados cristãos do “Amai-vos uns aos outros”, “Não julgueis e não
serás julgado” e do “Perdoe e serás perdoado”121 – na verdade, lembrando-
se deles apenas quando lhe convém, pois nunca constou da Bíblia nenhuma
pena de morte, de trabalhos escravos forçados ou açoitamento àqueles que
tenham uma prática homoafetiva. Respeito ao próximo e à diversidade era
inexistente, como resta comprovado, pois somente eram respeitados aqueles
que aderissem cegamente aos dogmas católicos.
Nesse sentido, valem as longas e pertinentes considerações do Ministro
Celso de Mello no julgamento da ADPF 132 e da ADI 4.277:

Se revisitarmos a legislação reinol que Portugal impôs ao Brasil


em nosso período colonial, e analisarmos as punições cominadas no
Livro V das Ordenações do Reino, conhecido como “liber terribilis”,
tal o modo compulsivo com que esse estatuto régio prodigalizava a
pena de morte, iremos constatar a maneira cruel (e terrivelmente
impiedosa) com que as autoridades da Coroa perseguiram e
reprimiram os homossexuais. É interessante observar que as
Ordenações do Reino – as Ordenações Afonsinas (1446), as
Ordenações Manuelinas (1521) e as Ordenações Filipinas (1603) –,
marcadas por evidente hostilidade aos atos de sodomia, também
qualificada como “pecado nefando” (ou, na expressão literal daqueles
textos legislativos, como “cousa indigna de se exprimir com palavras:
cousa da qual não se pode fallar sem vergonha”), cominaram sanções
gravíssimas que viabilizavam, até mesmo, a imposição do “supplicium
extremum” aos autores dessas práticas sexuais tidas por “desviantes”
(...)122. A atividade persecutória que a Coroa real portuguesa
promoveu contra os homossexuais, em Portugal e em seus domínios
ultramarinos, intensificou-se, ainda mais, com o processo de expansão
colonial lusitana, a ponto de el-Rei D. Sebastião, preocupado com as
relações homossexuais entre portugueses e os povos por estes
conquistados, haver editado a Lei sobre o Pecado de Sodomia, como
assinala o ilustre Antropólogo e Professor LUIZ MOTT (“Relações
Raciais entre Homossexuais no Brasil Colonial”). Naquela fase de
nosso processo histórico, no entanto, não foram apenas as autoridades
seculares que dispensaram esse duríssimo tratamento aos
homossexuais. Também a Igreja, a partir de 1553 (como informa
RONALDO VAINFAS, em sua obra “Confissões da Bahia”), reprimiu-
os e puniu-os, severamente, em nosso País, como se vê dos
documentos que registraram a atuação do Santo Ofício no Brasil, como
aqueles que se referem, por exemplo, à Primeira Visitação do Santo
Ofício (1591) e que teve, à sua frente, o Inquisidor Heitor Furtado de
Mendonça, consoante relata MINISA NOGUEIRA NAPOLITANO
(“A Sodomia Feminina na Primeira Visitação do Santo Ofício ao
Brasil”): “As punições previstas em tais leis tinham, sobretudo, a
finalidade de suscitar o medo, explicitar a norma e dar o exemplo a
todos aqueles que assistissem às sentenças e às penas sofridas pelos
culpados, fossem humilhações perante todo o público, fosse a
flagelação do seu corpo ou, até mesmo, a morte na fogueira, chamada
de pena capital. Essas punições possuíam menos o intuito de punir os
culpados do que espalhar o terror, a coerção, o receio. Elas espalhavam
um verdadeiro temor, fazendo com que as pessoas que presenciassem
esses espetáculos punitivos examinassem suas consciências,
refletissem acerca de seus delitos. O ritual punitivo era uma cerimônia
política de reativação do poder e da lei do monarca. A sodomia
propriamente dita, segundo o livro Quinto das Ordenações Filipinas, se
equiparava ao de lesa-majestade e se estendia tanto aos homens quanto
às mulheres que cometessem o pecado contra a natureza. Todos os
culpados seriam queimados e feitos por fogo em pó, seus bens
confiscados para a coroa e seus filhos e netos seriam tidos como
infames e inábeis”. Embora a atuação do Tribunal do Santo Ofício
somente tenha ocorrido no final do século XVI, com a sua Primeira
Visitação à Bahia (1591), o fato é que, culminando um processo de
negociações diplomáticas iniciadas, ainda, sob D. Manuel I, o
Venturoso, a Inquisição foi instituída, em Portugal, no reinado de D.
João III, pelo Romano Pontífice, Paulo III, que promulgou a Bula
“Cum ad nihil magis”, de 23.05.1536, que restaurou anterior
documento pontifício, com igual denominação e finalidade, editado em
1531, pelo Papa Clemente VII. Esse evento, analisado por diversos
autores (PEDRO CARDIM, “Religião e Ordem Social”, in Revista de
História das Ideias, Coimbra, 2001; FRANCISCO BETHENCOURT,
“Os Equilíbrios Sociais do Poder”, in História de Portugal, organizada
por José Matoso, 1993, Lisboa, Estampa, v.g.), refletiu, naquele
momento histórico, a forte influência resultante do Concílio de Trento
(1545-1563), cujas deliberações – as denominadas resoluções
tridentinas – exacerbaram, ainda mais, a reação hostil ao
comportamento homossexual, valendo rememorar, por oportuno, o
registro feito por VERONICA DE JESUS GOMES (op. cit.):
“Marcado por ‘um entendimento da realeza onde o religioso e o
político surgem lado a lado, chegando mesmo a interpenetrar-se’, o
Estado português, ao buscar a ortodoxia religiosa e moral de seus
súditos, criou a Inquisição, uma instituição de caráter híbrido, já que,
mesmo se constituindo como ‘tribunal eclesiástico, não deixa de se
afirmar como tribunal régio’. Ainda no século XVI, o Santo Ofício
lusitano, certamente influenciado pelas ideias de reforma propostas
pelo ‘Concílio de Trento’, não se voltou apenas contra os erros de fé,
tendo recebido a incumbência de julgar certos ‘desvios morais’, isto é,
pecados/crimes que, até então, estavam sob jurisdição civil e
eclesiástica. As disposições tridentinas demonstraram ojeriza às
práticas dos sodomitas. Ao atentar para os perigos da perda da graça da
justificação, que, uma vez recebida, podia ser despojada não apenas
pela infidelidade, através da qual se extinguia a própria fé, mas
também através de qualquer outro pecado mortal, mesmo quando a fé
não acabava, as determinações do concílio lembraram as afirmações
do apóstolo Paulo que assinalou a exclusão de efeminados e sodomitas
do reino de Deus”. Vê-se, daí, que a questão da homossexualidade,
desde os pródromos de nossa História, foi inicialmente tratada sob o
signo da mais cruel das repressões (LUIZ MOTT, “Sodomia na Bahia:
O amor que não ousava dizer o nome”), experimentando, desde então,
em sua abordagem pelo Poder Público, tratamentos normativos que
jamais se despojaram da eiva do preconceito e da discriminação, como
resulta claro da punição (pena de prisão) imposta, ainda hoje, por
legislação especial, que tipifica, como crime militar, a prática de
relações homossexuais no âmbito das organizações castrenses (CPM,
art. 235), o que tem levado alguns autores (MARIANA BARROS
BARREIRAS, “Onde está a Igualdade? Pederastia no CPM”, Boletim
IBCCRIM, ano 16, n.º 187, jun./2008; CARLOS FREDERICO DE O.
PEREIRA, “Homossexuais nas Forças Armadas: tabu ou
indisciplina?”, v.g.) a sustentar a inconstitucionalidade material da
referida cláusula de tipificação penal, não obstante precedente desta
Corte em sentido contrário (HC 79.285/RJ, Rel. Min. Moreira Alves).

Mas tamanha já era a hipocrisia social que, apesar de se manter um


discurso padrão de defesa da sacralidade do matrimônio, chegou-se, em
clara filosofia de fins que justificam meios, a defender a importação de
prostitutas estrangeiras com o intuito de combater a homossexualidade123,
aparentemente na tentativa de aumentar o número de mulheres para que os
homens não tivessem necessidade de manter práticas sexuais com outros
homens, em absurda ignorância que se negava a perceber que a sexualidade
não se escolhe e não se muda por ato de vontade.
Tal contexto, como citado, existia em todas as religiões cristãs, visto
que tanto reformistas como contrarreformistas condenavam a
homoafetividade como um “costume desviante” que mereceria punição.
Contudo, aqui também a repressão ao comportamento homoafetivo não fez
a homossexualidade desaparecer, como obviamente jamais conseguiria,
visto que a sexualidade não é uma “opção”, dada a impossibilidade de uma
pessoa mudar de sexualidade por vontade própria. Essa repressão existia em
todas as esferas sociais. Os homossexuais simplesmente passaram a
disfarçar mais sua prática homossexual construindo guetos, locais onde
podiam se encontrar sem que sofressem repressão da sociedade.
Com a evolução do pensamento, os iluministas, apesar de não
aceitarem a homossexualidade, passaram a considerar uma atrocidade puni-
la com a morte, donde o Código Napoleônico de 1810 descriminalizou as
práticas privadas e consensuais entre adultos do mesmo sexo124, o que
influenciou a legislação brasileira no mesmo sentido. Contudo, relata João
Silvério Trevisan que a partir do Código Imperial surgiram os crimes “por
ofensa à moral e aos bons costumes”, sob os quais a polícia homofóbica
continuava a enquadrar a homoafetividade, com o absurdo de enquadrar o
travestismo como contravenção penal125, o que sucedeu até o atual Código
Penal.
Por outro lado, com a patologização da homossexualidade no século
XIX (supradescrita), criminalistas chegaram a defender a internação de
homossexuais em instituições especializadas, ao ponto de o médico-legisla
Viriato Fernando Nunes afirmar, em tese de 1928, defendida perante a
Faculdade de Medicina de São Paulo, que toda perversão atentaria
violentamente contra as normas sociais, merecendo repressão rigorosa, em
explícita condenação moral (pois de “científica” nada teve) à
homossexualidade126. Na mesma linha, o médico-legisla Aldo Sinisgalli
apontava que, embora a história provasse que punir homossexuais não
atingia os resultados visados (de extinguir a homossexualidade),
homossexuais eram “doentes” que deveriam ser tratados mesmo contra sua
vontade, para que a sociedade não ficasse exposta às suas “mórbidas
tendências”...127.
Por outro lado, a prática sempre demonstrou que as tentativas de
mudança médica da homossexualidade não mostraram resultado, o que,
contudo, não ensejou a libertação dos homossexuais enclausurados nos
locais psiquiátricos, por considerarem, os homofóbicos de então, que seria
“ainda mais clamoroso” deixá-los soltos...128 O preconceito e a
discriminação decorrentes de tais posturas são tão gritantes que não
precisam ser mais bem explicitados.
Tamanho era o moralismo homofóbico, que o catedrático em Direito
Penal José Soares de Melo afirmou (também dissimulando seu preconceito
na forma de pseudocientificidade) que o Código Penal seria insuficiente
ante a ausência de punição às práticas homossexuais sem violência carnal
ou corrupção, donde esses homossexuais estariam escapando da lei, sem
punição... A evidente condenação desse jurista à homossexualidade fica
ainda mais clara em sua tese no sentido de que, “mesmo antes da prática de
um crime o Estado pode segregar um indivíduo”129, com a qual visava a
segregação de homossexuais pelo simples fato de serem homossexuais, por
considerá-los “perniciosos” ao Estado e à sociedade... Claramente, tal
jurista não fazia a menor ideia do que caracteriza a “privacidade”, ou então
não se importava com esse importante direito fundamental, já que queria
criminalizar inclusive a relação homoafetiva consensual entre dois
adultos130.
Mas, como dito, tais repressões não conseguiram acabar com a
homossexualidade, como ingênua ou ignorantemente pretendiam. Como se
sabe, a literatura, seja satírica, seja romântica ou de qualquer outro tipo,
sempre relata a realidade, ainda que de forma lúdica ou lendária. No
contexto da homossexualidade131, assim, valem ser citados, entre outros, os
grandes:

(a) Gregório de Matos, com seus poemas satíricos que, por vezes,
abordavam a homossexualidade (como no poema “Marinícolas”, em
que satirizava o nome do provedor Nicolau com o termo “maricas”);
(b) Álvares de Azevedo, de quem se suspeita a homossexualidade
em virtude, por exemplo: (i) da peça “Satã e macário”, que segundo o
crítico Antonio Candido, tinha “um toque de homoerotismo”; (ii) de
dedicar ao amor às mulheres expressões como “amor filial”; (iii) ter
tido, segundo Mario de Andrade, um descaso sexual pelas mulheres;
(iv) pela carta que escreveu a seu assim chamado “amigo” Conde de
Fé, no poema “Itália”, chamada por ele de “Pátria do meu amor!”
(embora haja quem atribua o episódio a uma “veia satírica” do poeta
romântico, mas não à sua suposta homossexualidade); e especialmente
(v) por cartas escritas ao amigo Luís Antônio da Silva Nunes, colega
de república estudantil, que revelam um tom de ardente amor (como
no trecho “Assim como eu te amo, ama-me. Não esqueças entre as
Campinas do Rio Grande ... do teu amigo”), apesar do estudioso em
literatura Brito Rocha defender que se trataria de “amizade espiritual”
(como nos casos de Goethe e Schiller e Byron e Hoog), não de
homossexualidade;
(c) O cortiço, de Aluísio de Azevedo, que traz duas personagens
femininas periféricas que mantinham uma notável relação amorosa;
(d) Bom-crioulo, de Adolfo Caminha, que apresenta uma relação
amorosa entre dois rapazes como centro da história, livro este que,
para o estudioso em literatura Horácio Costa, foi massacrado pela
crítica em virtude do rechaço à homossexualidade, o que se denota das
críticas puramente ideológicas (e não literárias) ao mesmo;
(e) Grande sertão: veredas, de João Guimarães Rosa, no qual o
jagunço Riobaldo ama secretamente seu jovem parceiro Diadorim,
que, quando morto, se descobre ser uma mulher travestida de homem
jagunço, donde indaga Trevisan se teria Riobaldo amado o reflexo
feminino de um homem ou o homem pressentido (e vislumbrado)
nessa mulher;
(f) Olavo Bilac, tido como “o maior pederasta do país” (conforme
entrevista de Paschoal Carlos Magno em O Pasquim, n. 208, de 2 jul.
1973);
(g) Mario de Andrade, cuja fama de homossexual era notória,
visto ter escrito contos sobre o amor entre rapazes (“Frederico
paciência”, “Tempo de camisolinha” e “Primeiro de maio”, em Contos
novos; “Meu engraxate”, em Os filhos da Candinha), além de poemas
entre soldados e adolescentes (“Cabo Machado”, “Soneto”, “Poema
tridente”, “Canto do mal de amor”, em De pauliceia desvairada a
café: poesias completas), embora as referências homoeróticas sejam
extraídas de angustiadas lamentações de um poeta que sofria de “mal
de amor”, segundo suas próprias palavras (“Reconhecimento do
Nêmesis”, “Vinte e nove bichos”, “Os gatos”, “Estâncias”, “Dor”,
“Quarenta anos” e “Lira paulistana”, em Poesias completas, já citada).
Tamanha era sua fama de homossexual que Oswald de Andrade
chegou a afirmar que “Mario parecia um Oscar Wilde, por detrás”
(“Dias de Mário”, entrevista com José Bento, secretário particular de
Mario de Andrade”, revista Memória, n. 17, p. 9-11). Mário de
Andrade deixou diversas correspondências suas lacradas, que, por
disposição testamentária, só deveriam ser abertas cinquenta anos após
sua morte, em 1995. Uma comissão formada por familiares e
acadêmicos alegou se tratar de matéria “de muita controvérsia” decidir
quais dessas cartas deveriam ser publicadas – e, considerando a recusa
em publicar determinadas cartas e o fato de outras terem sido
encontradas com rasgões e partes arrancadas, especula-se que tais
cartas revelariam definitivamente sua homossexualidade132
(revelando-se verdadeiro absurdo o despotismo dessa “comissão” ao
não revelar ditas correspondências ao público, afinal trata-se de
correspondências de um dos maiores nomes da literatura brasileira, em
tema de inequívoco interesse público-literário).

Em suma, a forte repressão à homossexualidade continuou também no


Brasil até o final do século XX, quando, especialmente a partir da década de
1990, passou-se a tolerar mais a homossexualidade, o que se atribui à
evolução do pensamento humano no sentido do respeito à diversidade e
também do pensamento científico, que despatologizou a homossexualidade
– muito embora o surto da AIDS (na década de 1980) tenha feito a
pseudotolerância existente ruir, com os moralistas homofóbicos atribuindo à
homossexualidade, como suposta “degradação moral”, o surgimento da
doença, sendo notórias as manifestações religiosas no sentido de que a
AIDS seria uma “punição divina” à degradação moral, da qual faria parte a
homossexualidade... Isso ocorre porque, em verdade, como corretamente
afirma João Silvério Trevisan, a sociedade sempre precisou de reservatórios
negativos a funcionar como bodes expiatórios nos momentos de crise e mal-
estar, quando então, ante as necessidades circunstanciais, os ataca para lhes
atribuir a culpa por todos os males da humanidade – sendo que a
homossexualidade sempre funcionou como tal, pois, apesar de tolerada no
Brasil, a prática homoafetiva por vezes acabou se tornando caso de polícia,
mesmo quando não proibida por lei133.
De qualquer forma, percebe-se um aumento na tolerância e, por vezes,
na aceitação da homossexualidade nos grandes centros urbanos e nos países
de Primeiro Mundo. Quanto maior o entendimento de que o homossexual é
tão humano quanto o heterossexual, não havendo diferença nenhuma nesse
sentido, maior é a aceitação das pessoas homossexuais ou, no mínimo,
maior é o respeito a elas. Essa compreensão é mais fácil de ser obtida nas
grandes cidades em decorrência do constante fluxo de informações nelas
existentes, que faz que seus habitantes estejam cada vez mais atualizados e
conhecedores dos avanços científicos, no que se inclui o entendimento
médico-psicológico sobre a sexualidade humana. Nas cidades do interior, ao
inverso, existe uma maior resistência no respeito e na aceitação dos
homossexuais, justamente por inexistir um fluxo de informações que torne
possível a superação de preconceitos sociais arraigados nessas
comunidades. Nesse conflito de ideologias, é mais do que evidente que a
ideologia do respeito à diversidade (enfim, à pluralidade) deve prevalecer
sobre preconceitos arcaicos ainda arraigados em determinados locais, em
geral no interior, em virtude da ausência do influxo de informações
existente nos centros urbanos.
Em suma, a discriminação homofóbica precisa acabar, visto que não há
hoje nenhum motivo lógico-racional que justifique a sua condenação (como
nunca houve).

3. SÍNTESE CONCLUSIVA DO CAPÍTULO


A homossexualidade passou de um comportamento amplamente
tolerado, e às vezes até vangloriado pelas sociedades humanas em
determinadas circunstâncias (pederastia institucionalizada), como na
Grécia Clássica, para amplamente rejeitada, ante a influência das religiões
nesse sentido.
No mundo antigo, o amor de homens mais velhos por rapazes
adolescentes era valorizado, pois se entendia que nessa relação o tutor
ensinaria ao jovem como se portar em sociedade, além de transmitir-lhe
conhecimento e sabedoria por meio do ato sexual. Essa relação, aceitável
até que o rapaz atingisse a maturidade (quando ele deveria assumir o papel
de tutor de outro jovem adolescente), era inclusive tida como indispensável
para que o adolescente adquirisse sua masculinidade. Já as relações sexuais
entre homens adultos, apesar de existirem em grande número, eram
rechaçadas, não por se tratar do amor entre dois homens, mas porque se
entendia que um homem adulto que consentisse em assumir o papel sexual
passivo estaria “abrindo mão” de sua masculinidade, em um
comportamento tido como subversivo. Tal concepção era justificada pela
teoria de que, ao “abrir mão” de sua masculinidade, o homem sexualmente
passivo estaria assumindo uma conduta feminina – e, como a mulher era
uma “cidadã de segunda classe”, praticamente sem direitos, a essa condição
o homem passivo era equiparado.
A ausência de condenação à homossexualidade em si no Mundo Antigo
pode ser percebida no fato de que, em regra, apenas o homem sexualmente
passivo era condenado, ao passo que o ativo, que continuava sendo visto
como masculino, continuava sendo respeitado pela sociedade. Contudo,
com a crescente influência das religiões judaico-cristãs, o mundo ocidental
passou, gradativamente, a se tornar homofóbico. Tal começou a ocorrer
com grande ênfase no período de nossa história134 regido pelos Estados
Confessionais, em que o Estado era influenciado pela religião por ele
adotada como oficial (e principalmente nos Estados Teocráticos, em que
Estado e Religião se confundem). Nesse contexto, as Igrejas em geral
passaram a defender a tese de que a homossexualidade seria um pecado, um
comportamento “desviante”, “antinatural” e “contrário à vontade de Deus”,
razão pela qual deveria ser rechaçada por nossa sociedade.
Assim, pouco a pouco, arraigou-se na mente das pessoas o
preconceito135 difundido pela Igreja em relação aos homossexuais, uma vez
que vivemos sob a égide da Igreja Católica Apostólica Romana por muitos
séculos, no período denominado por “Idade Média” (também conhecida
como “Idade das Trevas”, em razão das inúmeras perseguições religiosas
que a “Santa” Inquisição promovia em face dos não católicos e de todos
aqueles que “ousavam” não seguir seus dogmas). Em verdade, a Igreja
Católica demorou aproximadamente mil anos para conseguir
institucionalizar o preconceito homofóbico nas sociedades que influenciava,
uma vez que não conseguiu mudar imediatamente o pensamento das
sociedades do Mundo Antigo, que tinham a pederastia institucionalizada
arraigada em suas culturas. Todavia, em dado momento histórico, a
homofobia ficou arraigada no pensamento social, e cada vez mais leis
criminalizando a homossexualidade foram editadas e aprovadas. Como a
homoafetividade era vista como um “pecado abominável”, na maioria das
vezes os acusados não tinham direito ao que hoje entendemos por ampla
defesa, contraditório e, em suma, devido processo legal: muitas vezes não
tinham direito sequer a advogado, sendo julgados e condenados
sumariamente a penas bárbaras.
No século XIX, com a gradativa evolução do pensamento humano,
superou-se a visão teocrática do mundo, passando as pessoas a procurar por
explicações científicas, e não teológicas, sobre os fenômenos da vida
humana. Isso fez que as pessoas deixassem de ver a homossexualidade
como um “pecado”, passando a encará-la como uma “doença” que
precisaria ser tratada. Em vez de considerarem-na normal, pela evidente
ausência de provas em sentido contrário, fizeram o oposto: consideraram-na
uma “anomalia” pela ausência de comprovação de sua normalidade, em
uma atitude inacreditavelmente ilógica – afinal, só se pode considerar
“doença” um comportamento comprovadamente prejudicial à saúde
humana, e não um comportamento simplesmente incomum (minoritário),
do qual não se tem notícia de nenhum efeito prejudicial àquele(a) que o
possui (a saber, a pessoa homossexual apenas em razão de sua
homossexualidade).
Inobstante, no final do século XX a ciência médica mundial deixou de
considerar a homossexualidade uma patologia: em 1974, a Associação
América de Psiquiatria afirmou que a homossexualidade per si não é uma
perturbação mental. Em 1993, a Organização Mundial de Saúde fez o
mesmo, excluindo-a de sua Classificação Internacional de Doenças,
afirmando que “a orientação sexual por si não deve ser vista como um
distúrbio” (CID 10/1993). No Brasil, o Conselho Federal de Psicologia, em
1999, foi ainda mais preciso, afirmando não ser ela uma doença, um desvio
psicológico nem uma perversão (Resolução 01/1999), tendo ocorrido em
nosso país processo similar no tocante ao entendimento e tolerância à
homossexualidade do que aquele supradescrito, ocorrido no resto do mundo
– com a ressalva de que os índios se encontravam, quando do
descobrimento, na mesma fase que os povos europeus da Antiguidade
Clássica no que toca à homossexualidade.
Gradativamente, a sociedade tem apresentado maior tolerância (o que
difere de aceitação) com relação à homossexualidade. Quanto maior o
entendimento de que o homossexual é tão humano quanto o heterossexual,
não havendo diferença nenhuma nesse sentido, maior é a aceitação e/ou o
respeito às pessoas homossexuais. Em termos jurídicos, entretanto, os
homossexuais ainda encontram-se muito defasados em relação aos
heterossexuais, sendo justamente isto o que o presente trabalho visa
combater.

1 SPENCER, Colin. Homossexualidade: uma história. 2. ed. Rio de Janeiro: Editora


Record, 1999. p. 10 (sem grifo no original).
2 Ibidem, p. 33.
3 SPENCER, Colin. Homossexualidade: uma história. 2. ed. Rio de Janeiro: Editora
Record, 1999, p. 20, afirma: “Vejamos as tribos Marind e Kiman. Nelas, todo menino,
passada a infância, era separado da mãe e tirado da casa das mulheres, para dormir
com o pai na casa dos homens. Aos primeiros sinais de puberdade, o tio materno era
designado para penetrar o menino analmente, fornecendo-lhe dessa maneira o
esperma que o tornaria forte. Os meninos permaneciam nessa fase por cerca de três
anos. (...) [Contudo,] O homem Marind não interrompia suas práticas homossexuais
quando se casava. No processo de produzir uma família, ele podia ser convocado para
ser o iniciador do seu sobrinho, durante três ou quatro anos (...)”.
4 “O sistema de valores tribal colocava a homossexualidade acima da
heterossexualidade, que, nos seus mitos, estava sempre associada ao medo da
castração e da morte. (...) Havia também um aspecto metafísico na relação
homossexual, pois os participantes acreditavam que ela tinha o poder de transformá-
los física e espiritualmente. (...) [Segundo Deacon,] ‘A racionalização com que os
nativos justificam suas práticas homossexuais é a de que o órgão do menino se torna
grande e forte graças aos atos homossexuais de seu marido’” (ibidem, p. 20-21 e 22 –
sem grifo no original).
5 Fez-se a ressalva porque, em muitos casos, não se tratava de bissexualidade
propriamente dita. Muitos desses homens eram efetivamente homossexuais, ou seja,
não se sentiam genuinamente atraídos por mulheres. Contudo, ditas pessoas
mantinham esporádicas relações sexuais com mulheres com o único intuito de terem
descendentes.
6 De acordo com a afirmação de Bernard Deacon, quando se refere a uma tribo primitiva:
“Todo chefe tem um certo número de meninos-amantes e comenta-se que alguns
homens são tão completamente homossexuais nos seus afetos que raramente têm
relações com suas esposas, preferindo seus rapazes” (ibidem, p. 22).
7 “Os babilônios amavam adivinhar o futuro, e ainda conservamos um de seus manuais
com profecias baseadas nos atos sexuais. Parece que se um homem possuísse por
trás um igual adquiriria proeminência entre os irmãos e colegas deste. Se mantivesse
relações com um cortesão durante um ano inteiro, estava salvo de todas as suas
preocupações. Mas se um homem tivesse relações com o seu escravo, estaria em
dificuldades. O mal o atingiria se ele se relacionasse com um prostituto. De modo que,
penetrar analmente alguém de status social superior ou do mesmo nível, podia trazer
boa sorte, porém o homem arriscava-se à má sorte se seduzisse um escravo. Os
homens que preferiam um papel passivo (a menos que fossem servidores do templo)
eram vistos como inferiores” (ibidem, p. 32 – sem grifo no original).
8 “Como os mesopotâmios e civilizações posteriores, eles [egípcios] achavam que um
homem adulto submetido à relação anal perdia a masculinidade. Chamar um homem
de mulher já era um grande insulto, mas um homem permitir ser tratado como uma
mulher significava que ele estava abaixo dos escravos. Por aí, pode-se ter uma ideia
da visão desfavorável que eles tinham das mulheres” (ibidem, p. 34 – sem grifo no
original).
9 “É como se, em não havendo uma palavra para designar a homossexualidade ou a
pessoa homossexual, tais categorias não existissem como ideia. Igualmente, não
havia um conceito, devo ressaltar, de uma pessoa bissexual – existia apenas a
sexualidade masculina (duvido que houvesse um conceito de sexualidade feminina;
somente a fertilidade, geração e maternidade femininas). Não existia, com certeza
uma ideologia baseada na iniciação dos meninos ou no ato pederástico, embora
houvesse, como vamos ver, fortes provas de que esse rito de passagem masculino
ocorria no mundo arcaico, na época da civilização egípcia. Dois costumes, acredito,
explicam o porquê disso: o casamento cedo e a ausência de qualquer tabu contra
relações sexuais de rapazes antes do casamento com escravos ou prostitutos de
ambos os sexos. O sexo era disponível, estava por toda a parte, como a bebida e o
alimento, simplesmente considerado necessário. Se alguém, por temperamento, não
considerasse sexo uma coisa fascinante, estudava o sacerdócio e se preparava para
uma vida de celibato” (ibidem, p. 36 – sem grifos no original).
10 Expressão consagrada para designar o amor entre dois homens, que ganhou ênfase
com o advento dos humanistas e foi, posteriormente, abandonada.
11 “Sabemos que a pederastia ritualizada existiu no arcaico mundo indo-europeu fora da
Grécia, na grande família de povos que se estendia do Atlântico ao Ganges. Há um
modelo comum a todos: o jovem ou menino é um aluno, discípulo ou aprendiz, ao
passo que o amante mais velho é um mestre, um guerreiro, professor e modelo”
(ibidem, p. 28 – sem grifo no original).
12 “O mais famoso casal masculino da mitologia grega é o formado por Zeus e
Ganimedes, mas Apolo também estava constantemente raptando jovens efebos:
Ciparisso, Admeto, Himeneu, Carnus, Hipólito e outros. Hércules amava Foloctetes,
Nestor, Adônis, Jasão e muitos mais. Adônis foi seduzido por Dionísio. É talvez afirmar
o óbvio, mas as mulheres não aparecem nesses mitos de iniciação. Onde estão,
poder-se-ia perguntar, as mães de todos esses jovens dourados e o que pensam elas
dessas seduções? Como vimos nos exemplos etnográficos, as mães e o restante das
mulheres aceitam o papel que os jovenzinhos estão prestes a desempenhar, já que
foram ensinadas que é dessa maneira que eles se tornam homens. Somente assim o
futuro da raça estará assegurado. Mais uma vez, podemos ver que, se a pederastia
ocupava um papel na estrutura social como um ritual sagrado, as mulheres não têm
um papel e devem existir, subservientes, fora do palco” (ibidem, p. 28-29).
13 “A transmissão de um saber, de uma ‘educação’ refinada, a procura de uma elevação”
– tradução livre efetuada por BRANDÃO, Débora Vanessa Caús. Parcerias
homossexuais – aspectos jurídicos, São Paulo: RT, 2002, p. 32, que também afirma
que “Além da estética, ao redor da homossexualidade, havia todo um ritual envolvendo
a transmissão e a aquisição de sabedoria, cujo maior exemplo é o filosofo Platão e
seus preceptores. Adolescentes buscavam o mestre para serem iniciados na arte da
retórica e da oratória. Eram denominados efebos. Após serem escolhidos pelo
preceptor, o que era motivo de muita honra, os jovens aprendizes deveriam se
submeter a favores sexuais. Nota-se que havia um fundamento para que os
preceptados servissem seus preceptores: acreditava-se que essa prática aumentaria
suas habilidades políticas e militares, além de ter como característica ‘la transmission
d’ unsavoir, d’ une ‘éducation’ raffinée, la recherche d’une élévation’” (sem grifo no
original).
14 LASSO, Pablo (Antropologia cultural e homossexualidade..., Homossexualidade –
Ciência e consciência, p. 31-43) apud BRANDÃO, Débora Vanessa Caús. Parcerias
homossexuais – aspectos jurídicos. São Paulo: RT, 2002, p. 32. “Em Esparta, a
relação homossexual era prescrita pelo governo, a ponto de se castigar o jovem que
não tivesse amante ou multá-lo se preferisse um rico a um pobre. A homossexualidade
espartana era um resultado lógico da supervalorização do mundo masculino, de
guerra, das relações entre homens etc. Como exemplo da solidariedade e
agressividade que a homossexualidade é capaz de produzir no grupo militar que a
pratica, convém não esquecer o destacamento homossexual que tinha Felipe de
Macedônia e que morreram todos na batalha de Queroneia, assombrando a quantos
os viram lutar. Evidentemente, cada um deles, ao lutar contra o inimigo, defendia seu
par, sua própria vida, a de seu amado e seu prestígio social ante os olhos daquele com
quem, efetivamente, compartilhava seus sentimentos. Não é necessário destacar a
agressividade de quem trata de vingar a morte do amante nas mãos do inimigo no
momento em que ocorria isso” (sem grifos no original).
15 SPENCER, Colin. Homossexualidade: uma história. 2. ed. Rio de Janeiro: Editora
Record, 1999, p. 73.
16 Ibidem, p. 68.
17 Cf. Spencer, op. cit., p. 71.
18 Exemplo clássico dessa afirmação foi o notório Imperador Júlio César: “César, que
tivera um caso notório com Nicomedes, rei de Bitínia, era chamado de ‘a rainha’ por
Otávio, nas assembleias públicas, por ter sido visto, num banquete dado por
Nicomedes, com outros exoledi (homossexuais passivos). César era ridicularizado em
público. Dizia-se que usava a toga de maneira a fazê-la oscilar languidamente sobre o
chão. Mas também tinha uma reputação de sedutor de mulheres, entre elas pelo
menos duas rainhas: Cleópatra, sem dúvida a mais famosa, e Eunoe, mulher do rei
Bogudes da Mauritânia. Ele também seduziu as esposas de Pompeu, Crasso e Sérvio
Sulpício. Não era à toa que costumava ser chamado de omnium virolum mulier,
omnium mulierum virum (mulher de todos os homens e homem de todas as mulheres).
(...) César, contudo, não era apenas o chefe de uma força conquistadora romana; sua
potência estava inevitavelmente ligada a suas proezas no campo de batalha. Um
homem com a reputação que tinha, acreditava-se, podia se permitir resvalar
ocasionalmente num papel passivo e ainda assim continuar um homem. Seu caráter
preenchia as expectativas romanas. César era fisicamente forte, dono de grande
habilidade militar, resistente e tenaz, e ainda altamente sexualizado. Se os soldados o
amavam e aprovavam, era por ser ele um vencedor na cama e na guerra. Ovídio
escreveu que ‘todo amante é um soldado’ – um conceito popular no mundo antigo que
remonta a Safo e Homero” (ibidem, p. 72-73 – sem grifos no original).
19 Por vezes, críticos da militância que pleiteia o reconhecimento do direito de
homossexuais aduzem que o termo homofobia seria tecnicamente equivocado, na
medida em que fobia designaria pavor/aversão de homossexuais, o que nem sempre
seria o caso. Independentemente da origem etimológica da palavra, esta claramente
evoluiu para significar, atualmente, preconceito e/ou discriminação contra
homossexuais, que, aliás, sempre esteve presente no pavor e/ou na aversão da
origem etimológica. De qualquer forma, este é o significado que se dá, no presente
trabalho, a homofobia: preconceito ou discriminação contra homossexuais. Ademais,
também entendendo que o sexismo (logo, o machismo) é a causa remota da
homofobia, RIOS, Roger Raup. O conceito de homofobia na perspectiva dos direitos
humanos e no contexto dos estudos sobre preconceito e discriminação, in: RIOS,
Roger Raupp (org.). Em defesa dos direitos sexuais. Porto Alegre: Editora Livraria do
Advogado, 2006, p. 119-122, afirma que a homofobia, além de se caracterizar como
“aversão fóbica”, caracteriza-se também pelo heterossexismo, “um sistema onde a
heterossexualidade é institucionalizada como norma social, política, econômica e
jurídica, não importa se de modo explícito ou implícito”, sendo que, nesse sentido, “a
relação umbilical entre sexismo e homofobia é um elemento importantíssimo para
perceber a homofobia como derivação do heterossexismo”, visto que “a homofobia
revela-se como contraface do sexismo e da superioridade masculina, na medida em
que a homossexualidade põe em perigo a estabilidade do binarismo das identidades
sexuais e de gênero, estruturadas pela polaridade masculino/feminino”.
20 Nesse sentido, a revista Newsweek relatou o caso do Afeganistão, no qual
fazendeiros produtores de ópio, incapazes de quitar os empréstimos tomados de
traficantes (empréstimos estes tomados para que pudessem produzir ópio e, com o
produto da colheita, quitar o débito), acabam obrigados a darem suas filhas em
casamento aos traficantes, nos denominados casamentos por débitos (debt weddings).
Entre outros casos narrados na reportagem, relatou-se a história de um fazendeiro que
teve sua plantação destruída por uma ação governamental, e que pediu o perdão do
débito ao conselho tribal (tribal council), mas ouviu, em resposta, uma deliberação
unânime no sentido de que ele teria que entregar sua filha de dez anos em casamento
ao traficante, de quarenta e cinco anos de idade (cf. MOREAU, Ron. The tale of
Afghan opium brides. Newsweek, 7 abr. 2008).
21 TREVISAN, João Silvério. Seis balas num buraco só. A crise do masculino. Rio de
Janeiro: Editora Record, 1998, p. 39-42. Segundo o autor: “Assim como existem
muitos homens cordatos, as mulheres não são necessariamente e sempre delicadas,
por natureza. Entre os índios brasileiros, por exemplo, os traços físicos distintivos dos
dois gêneros são muito menos claros do que em nossa cultura urbana: para os nossos
olhos, uma índia nhambiquara parece ‘menos’ feminina e um guerreiro kraô pode ser
‘menos’ masculino. A força masculina e a delicadeza feminina são, portanto, atributos
que foram construídos de um modo ou de outro, a partir de algum momento, na
história da cultura patriarcal. Ou seja, o masculino e o feminino não podem ser
tomados como realidades objetivas e imutáveis. (...) A virilidade, segundo Badinter,
não é um dom. Ao contrário, deve ser ‘fabricada’ de acordo com um referencial: o
‘verdadeiro homem’ – uma figura ilusória e utópica que o macho precisa alcançar
através de deveres e provações, para mostrar que também é um. Em outras palavras,
o varão é ‘uma espécie de artefato e, como tal, corre sempre o risco de apresentar
defeito’. Isso torna a virilidade uma carga pesada, desde muito cedo. O macho
dominante tem que estar sempre pronto a comprovar sua força. (...) Tais ritos
iniciáticos masculinos presentes em dezenas de culturas arcaicas indicam que,
diferentemente das mulheres, para ‘ser homem’ é preciso tornar-se homem. Em outras
palavras, ‘o caminho para a masculinidade precisa ser conquistado’, ao mesmo tempo
em que permanece sempre possível o risco de perdê-la – nas palavras do psicanalista
Paulo Roberto Ceccarelli. (...) Curiosamente, entre as meninas de ontem e de hoje, a
‘passagem’ para a feminilidade é marcada naturalmente pela primeira menstruação,
sem necessidade de provas. Nas culturas antigas, o rito de iniciação feminina, quando
existia, encontrava-se basicamente ligado à fertilidade. Segundo Paulo Roberto
Ceccarelli, se a feminilidade tem ligação direta com a procriação, a masculinidade
‘está construída num espaço social e político’. Assim, enquanto o feminino tem uma
identidade mais configurada, graças à sua relação com a natureza, o masculino
depende de circunstâncias social e culturalmente mutáveis, o que o torna fragilizado e
permanentemente ameaçado. De algum modo, seu desenvolvimento deve ser
provocado, sob o risco de não despertá-lo, e precisa ser protegido através de
proibições rigorosas, sobretudo para resguardá-lo do ‘contágio’ do feminino (...). Em
resumo, segundo Ceccarelli, a masculinidade não é uma ‘aquisição definitiva’; antes
‘resulta de um trabalho constante’, de modo que a posse do pênis não constitui, por si
mesma, nenhuma garantia palpável de virilidade. Na busca da masculinidade, o
homem tem sempre presente ‘o fantasma de estar privado dela’” (sem grifos no
original).
22 SPENCER, Colin. Homossexualidade: uma história. 2. ed. Rio de Janeiro: Editora
Record, 1999, p. 39.
23 Cf. FOUCAULT, Michel. História da Sexualidade. O uso dos prazeres. Vol. II, Tradução
de Maria Thereza da Costa Albuquerque. 12. ed. São Paulo: Graal, 2007, pp. 10-12.
24 “Deve-se entender, com isso, práticas refletidas e voluntárias através das quais os
homens não somente se fixam regras de conduta, como também procuram se
transformar, modificar-se em seu ser singular e fazer de sua vida uma obra que seja
portadora de certos valores estéticos e responda a certos critérios de estilo”
(FOUCAULT, op. cit., p. 15).
25 Cf. FOUCAULT, op. cit., pp. 14-16.
26 Cf. FOUCAULT, op. cit., p. 31.
27 Cf. FOUCAULT, op. cit., pp. 23-24. Sobre o tema, afirma Foucault que “Por ‘moral’
entende-se um conjunto de valores e regras de ação propostas aos indivíduos e aos
grupos por intermédio de aparelhos prescritivos diversos (...)”, assim como que “por
‘moral’ entende-se igualmente o comportamento real dos indivíduos em relação às
regras e valores que lhes são propostos: designa-se, assim, a maneira pela qual eles
se submetem mais ou menos completamente a um princípio de conduta”. Aponta
ainda que, entre as diferentes maneiras de se conduzir moralmente, temos a
“determinação da substância, isto é, a maneira pela qual o indivíduo deve constituir tal
parte dele mesmo como matéria principal de sua conduta moral”, o “modo de sujeição,
isto é, à maneira pela qual o indivíduo estabelece sua relação com essa regra e se
reconhece como ligado à obrigação de pô-la em prática”, a “elaboração do trabalho
ético que se efetua sobre si mesmo, não somente para tornar seu próprio
comportamento conforme a uma regra dada, mas também para tentar se transformar a
si mesmo em sujeito moral de sua própria conduta” e, por fim, uma “teleologia do
sujeito moral: pois uma ação não é moral somente em si mesma e pela sua
singularidade; ela o é também por sua inserção e pelo lugar que ocupa no conjunto de
uma conduta; ela é um elemento e um aspecto dessa conduta, e marca uma etapa em
sua duração e um progresso eventual em sua continuidade”, pois “Uma ação moral
tende à sua própria realização; além disso, ela visa, através dessa realização, a
constituição de uma conduta moral que leva o indivíduo, não simplesmente a ações
sempre conformes aos valores e às regras, mas também a um certo modo de ser
característico do sujeito moral”. (FOUCAULT, op. cit., pp. 26-28)
28 Cf. FOUCAULT, op. cit., pp. 35-37.
29 Cf. FOUCAULT, op. cit., pp. 115 e 118-121.
30 Cf. FOUCAULT, op. cit., p. 126.
31 Cf. FOUCAULT, op. cit., p. 86.
32 Cf. FOUCAULT, op. cit., p. 87.
33 Cf. FOUCAULT, op. cit., pp. 92-94.
34 Cf. FOUCAULT, op. cit., p. 96.
35 Cf. FOUCAULT, op. cit., pp. 115 e 118-121.
36 Cf. FOUCAULT, op. cit., p. 126.
37 Cf. FOUCAULT, Op. Cit., p. 86.
38 “O aforismo do Contra Nera, que parece distinguir tão nitidamente os papéis que a
cortesã, a concubina e a esposa devem desempenhar na vida de um homem, foi
algumas vezes lido como uma tripartição que implicaria funções excludentes: prazer
sexual de um lado, vida cotidiana de outro, e enfim, para a esposa somente a
continuação da linhagem. Mas é preciso levar em conta o contexto no qual essa
sentença, aparentemente brutal, foi formulada. Tratava-se de um litigante que
pretendia invalidar o casamento aparentemente legítimo de um de seus inimigos,
assim como o reconhecimento, enquanto cidadãos, dos filhos nascidos desse
casamento: e os argumentos apresentados se baseavam na origem da mulher, seu
passado como prostituta, e seu status atual, que não poderia ser outro que não o de
concubina. O ponto não era, portanto, o de mostrar que se vai buscar prazeres em
outro lugar que não junto à esposa legítima; mas que uma descendência legítima não
poderia ser obtida a não ser com a própria esposa. É por isso que Lacey observa, a
propósito desse texto, que não se deve encontrar nele a definição de três papéis
distintos, mas sim uma enumeração cumulativa que deve ser lida assim: o prazer é a
única coisa que a cortesã pode dar; a concubina pode proporcionar, além disso, as
satisfações da existência cotidiana; mas somente a esposa pode exercer uma certa
função pertinente ao seu próprio status: dar filhos legítimos e garantir a continuidade
da instituição familiar” (FOUCAULT, op. cit., p. 134. Grifos nossos).
39 “O que está em jogo nessa prática refletida da vida do casamento, o que aparece
como essencial à boa ordem da casa, à paz que aí deve reinar, e ao que a mulher
pode desejar, é que esta possa guardar, enquanto esposa legítima, o lugar eminente
que o casamento lhe conferiu: não se ver preterida por outra, não ser destituída de seu
status e de sua dignidade, não ser substituída por outra ao lado de seu marido, eis o
que lhe importa antes de mais nada. Pois a ameaça contra o casamento não vem do
prazer que o homem possa obter aqui ou acolá, mas das rivalidades que podem
nascer entre a esposa e as outras mulheres em torno do lugar a ser ocupado na casa
e das precedências a respeitar. O marido ‘fiel’ (pistos) não é aquele que ligaria o
estado de casamento à renúncia a qualquer prazer sexual obtido com outra: é aquele
que sustenta até o fim os privilégios reconhecidos à mulher pelo casamento”
(FOUCAULT, op. cit., pp. 146-147. Grifo nosso).
40 “Ora, o que mostram a Econômica de Xenofonte e o discurso de Isômaco é que,
embora a sabedoria do marido – sua enkrateia como também seu saber de chefe de
família – esteja sempre pronta a reconhecer os privilégios da esposa, em troca, ela
deve, para conservá-los, exercer o melhor possível seu papel na casa e as tarefas que
lhe são associadas” (FOUCAULT, op. cit., p. 147).
41 Cf. FOUCAULT, op. cit., pp. 129-136.
42 Cf. FOUCAULT, op. cit., pp. 139-142.
43 Cf. FOUCAULT, op. cit., pp. 150-156.
44 Cf. FOUCAULT, op. cit., pp. 156.160. Nas palavras do autor: “(...) o texto situa
nitidamente a questão das relações sexuais no quadro geral das relações de justiça
entre o marido e a mulher (...) e em particular na Ética a Nicômaco e na Política,
Aristóteles responde a essa questão quando analisa a natureza política do vínculo
conjugal – isto é, o tipo de autoridade que nele se exerce. Segundo ele, é papel do
homem governar a mulher (a situação inversa, que pode ser devida a várias razões, é
‘antinatural’). (...) Desigualdade de seres livres, mas desigualdade definitiva e baseada
sobre uma diferença de natureza. É nesse sentido que a forma política da relação
entre marido e mulher será a aristocracia: um governo onde é sempre o melhor que
comanda, mas onde cada um recebe a sua parte de autoridade, seu papel e suas
funções em proporção com seu mérito e valor. (...) o que ocasiona, como em todo
governo aristocrático, que ele delegue à sua mulher a parte em que ela é competente
(se quisesse fazer tudo sozinho, o marido transformaria seu poder numa ‘oligarquia’).
A relação com a mulher se coloca, portanto, como uma questão de justiça, que está
diretamente ligada à natureza ‘política’ do vínculo matrimonial. (...) Não se dá o mesmo
com a mulher [comparativamente à situação dos filhos]: sem dúvida esta é e será
sempre inferior ao homem, e a justiça que deve reger as relações entre esposos não
pode ser a mesma que reina entre os cidadãos; contudo, por causa de sua
semelhança, o homem e a mulher devem ter uma relação que ‘se aproxime muito da
justiça política’ [Grande Morale]” (FOUCAULT, op. cit., pp. 158-159).
45 Cf. FOUCAULT, op. cit., p. 86.
46 Discordo parcialmente de Foucault neste ponto. Entendendo-se a homossexualidade
como a atração erótico-afetiva por pessoas do mesmo sexo, a heterossexualidade
como a atração erótico-afetiva por pessoas de ambos os sexos e a bissexualidade
como a atração erótico-afetiva por pessoas de ambos os sexos, então podemos falar
em homossexuais antes do final do século XIX (quando o termo foi criado) no contexto
específico de pessoas que sentiam atração apenas por pessoas do mesmo sexo (e
bissexuais, por pessoas de ambos os sexos). Realmente não se identificavam as
pessoas como “homossexuais/heterossexuais/bissexuais” na época, mas o fato de
haver pessoas que desejavam relação conjugal com pessoa do mesmo sexo mostra
que a homossexualidade (e a bissexualidade) existiam naquela época. É uma questão
terminológica, embora, claro, o uso da terminologia contemporânea supõe sua
contextualização, como a aqui brevemente realizada. Contudo, o simples fato de se
condenar a existência de atos sexuais e relações conjugais entre dois homens adultos,
como anotado no corpo do texto, prova que havia homens que desejavam se
relacionar conjugalmente com outros homens – logo, que desejavam relações que
hoje denominamos como homoafetivas (o fato de haver a condenação a tal situação
prova que ela existia).
47 Cf. FOUCAULT, op. cit., pp. 167-174.
48 “O texto não estabelece a fronteira da honra entre aqueles que rejeitam seus
pretendentes e aqueles que os aceitam. Para um jovem grego, ser assediado por
enamorados não constituía, evidentemente, uma desonra: era, ao contrário, a marca
visível de suas qualidades; o número de pretendentes podia ser objeto de orgulho
legítimo – e às vezes de gloríola. Mas aceitar a relação amorosa, entrar no jogo
(mesmo se não representasse exatamente aquele que propunha o apaixonado)
também não era considerado uma vergonha. (...) É o ‘uso’ que determina o seu valor
moral segundo um princípio que se encontra frequentemente formulado em outro
lugar; de qualquer modo são expressões muito próximas que são encontradas no
Banquete: ‘Nessa matéria nada é absoluto; a coisa, nela mesma e somente ela, não
tem nem beleza nem feiura; mas o que a faz bela é a beleza de sua realização; e sua
fealdade o que a faz feia’. (...) A temperança – sophrosune – que é exigida como uma
das qualidades maiores dos rapazes implica uma discriminação nos contatos físicos.
Mas não se pode inferir desse texto os atos e os gestos que a honra imporia recusar.
(...) a reflexão moral então não se dedica tanto a definir com o máximo de rigor
possível os códigos a serem respeitados e o quadro dos atos permitidos e proibidos,
quanto a caracterizar o tipo de atitude, de relação consigo mesmo que é requerida”
(FOUCAULT, op. cit., pp. 184-185).
49 Cf. FOUCAULT, op. cit., pp. 174-180.
50 “Entre o homem e o rapaz não há – não pode e não deve haver – comunidade de
prazer. (...) E ninguém é tão severamente condenado como os rapazes que
manifestam, por sua facilidade em ceder, pela multiplicidade de suas ligações, ou
ainda, por sua postura, sua maquiagem, seus adornos ou seus perfumes, que eles
podem encontrar prazer em desempenhar esse papel. O que não significa, contudo,
quando acontece do rapaz ceder, que ele deva fazê-lo de certa forma na total frieza.
Ao contrário, ele só deve ceder se experimenta, por seu amante, sentimentos de
admiração ou de reconhecimento e afeição, que lhe fazem desejar dar-lhe prazer. O
verbo charizesthai é correntemente empregado para designar o fato de que o rapaz
‘aceita’ e ‘concede seus favores’. A palavra indica bem que, do amado ao amante
existe outra coisa que não uma simples ‘rendição’: o jovem ‘concede seus favores’ por
um movimento que consente a um desejo e a uma demanda do outro, mas que não é
da mesma natureza. É uma resposta: não é o compartilhar de uma sensação. O rapaz
não tem que ser o titular de um prazer físico; ele nem mesmo tem que ter prazer com o
prazer do homem; ele tem é que ressentir um contentamento em dar prazer ao outro
se ele cede quando convém, isto é, sem demasiada precipitação nem com demasiada
contrariedade. A relação sexual com o rapaz demanda, portanto, da parte de cada um
dos parceiros, condutas particulares. Como consequência do fato de que o rapaz não
pode se identificar com o papel que ele tem que desempenhar, ele deverá recusar,
resistir, fugir e esquivar-se; será também necessário que ele estabeleça condições
para o consentimento, se no final das contas ele o concede, que dizem respeito àquele
a quem ele cede (seu valor, status, virtude) e o benefício que ele pode esperar dessa
relação (benefício vergonhoso, se somente se tratar de dinheiro, mas honroso se o
que está implicado for a aprendizagem do ofício de home, apoios sociais para o futuro,
ou uma amizade durável). (...) De modo que o ato sexual, na relação entre um homem
e um rapaz, deve ser tomado num jogo de recusas, de esquivas e de fuga que tende a
adiá-lo o mais possível, mas também num processo de trocas que fixa quando, e em
que condições, é conveniente que ele se produza. Em suma, o rapaz dá por
complacência e, portanto, por outra coisa que não o seu próprio prazer, algo que seu
parceiro busca pelo prazer que nessa relação ele obterá; mas este último não pode
pedi-lo legitimamente sem a contrapartida de presentes, de benefícios, de promessas
e de engajamentos que são de outra ordem do que o ‘dom’ que lhe é pedido. (...) O
amor pelos rapazes não pode ser moralmente honrado, a não ser que ele comporte
(graças aos benefícios razoáveis do amante e graças à complacência reservada do
amado) os elementos que constituem os fundamentos de uma transformação desse
amor num vínculo definitivo e socialmente precioso, o de philia [amizade]”
(FOUCAULT, op. cit., pp. 196-198).
51 Cf. FOUCAULT, op. cit., pp. 180-198, aonde relata o autor que a exceção a esta
postura encontra-se no discurso de Aristófanes no Banquete, que admite a relação
entre homens sem dissimetria de idades e, quanto ao erasta e ao eromeno, admite
que o rapaz sinta prazer sexual na sua relação com o homem adulto (contrariamente à
aparentemente dominante posição aristotélico-platônica).
52 Cf. FOUCAULT, op. cit., pp. 206-214.
53 Cf. FOUCAULT, Michel. História da Sexualidade. O cuidado de si. Vol. III, Tradução de
Maria Thereza da Costa Albuquerque, 9. ed. São Paulo: Graal, 2007, p. 13.
54 Cf. FOUCAULT, op. cit., pp. 28-29.
55 Cf. FOUCAULT, op. cit., p. 32.
56 Cf. FOUCAULT, op. cit., pp. 34-36.
57 Cf. FOUCAULT, op. cit., pp. 36-37.
58 Cf. FOUCAULT, op. cit., pp. 37-38.
59 Cf. FOUCAULT, op. cit., p. 61. Ademais, “Podemos resumir tudo isso dizendo que o fio
diretor da interpretação de Artemidoro, no que concerne ao valor de prognóstico dos
sonhos sexuais, implica na decomposição e a análise dos sonhos sexuais em
elementos (personagens e atos) que são, por natureza, elementos sociais; e que
indica uma certa maneira de qualificar os atos sexuais em função do modo pelo qual o
sujeito sonhador mantem, enquanto sujeito do ato sonhado, sua posição de sujeito
social (...) deve, para que seu sonho seja bom, manter seu papel de ator social (...) O
sonho sexual diz, na pequena dramaturgia da penetração e da passividade, do prazer
e do dispêndio, o modo de ser do sujeito tal como o destino o preparou. (...) O órgão
masculino – o que é chamado de anagkaion (o elemento ‘necessário’, aquele cujas
necessidades nos coagem, e pela força do qual coagimos os outros) – é significante
de todo um feixe de relações e de atividades que fixam o status do indivíduo na cidade
e no mundo; aí figuram a família, a riqueza, a atividade de palavra, o status, a vida
política, a liberdade e, finalmente, o próprio nome do indivíduo. (...)” (FOUCAULT. op.
cit., pp. 39-40)
60 Cf. FOUCAULT, op. cit., pp. 45-47.
61 Cf. FOUCAULT, op. cit., pp. 49-50.
62 Cf. FOUCAULT, op. cit., pp. 53-54.
63 Cf. FOUCAULT, op. cit., pp. 96-97.
64 Cf. FOUCAULT, op. cit., p. 100.
65 Cf. FOUCAULT, op. cit., p. 59.
66 Cf. FOUCAULT, op. cit., pp. 60-61.
67 Cf. FOUCAULT, op. cit., p. 64.
68 Cf. FOUCAULT, op. cit., pp. 64-65.
69 “Nesses regimes médicos vemos produzir-se uma certa ‘patologização’ do ato sexual.
Mas entendamo-nos bem: não se trata de modo algum daquela que se produziu muito
mais tarde nas sociedades ocidentais, quando o comportamento sexual foi
reconhecido como portador de desvios doentios. Ele será organizado, então, como um
campo que terá suas formas normais e suas formas mórbidas, sua patologia
específica, sua nosografia e sua etiologia – eventualmente sua terapêutica. A medicina
greco-romana opera diferentemente; ela inscreve o ato sexual num campo onde ele
corre o risco de ser a cada instante afetado e perturbado por alterações do organismo;
e onde inversamente ele corre o risco de induzir diversas doenças, próximas e
distantes. Pode-se falar de patologização em dois sentidos (...) [é] à própria natureza
do processo – aos dispêndios, abalos, agitações que ele provoca no organismo – que
são atribuídos os efeitos perturbadores (...) [e como] um processo onde o sujeito é
levado passivamente pelos mecanismos do corpo, pelos movimentos da alma, onde
lhe é necessário restabelecer seu domínio por um ajustamento preciso unicamente
com as necessidades da natureza (...) O ato sexual não é um mal; ele manifesta um
núcleo permanente de males possíveis (...) A atenção exigida é aquela que faz com
que lhe estejam sempre presentes no espírito as regras às quais ele deve submeter
sua atividade sexual (...) Ele deve manter consigo um discurso de ‘verdade’; mas esse
discurso não tem por função dizer ao sujeito a verdade daquilo que, por natureza, são
os atos sexuais, de que maneira recorrer a eles para conformar-se o mais exata e
estritamente possível (...) o regime dos aphrodisia, o regime de sua distribuição
proposta pela medicina não deve ser nada mais, nem menos, do que a forma de sua
natureza presente para o pensamento, sua verdade habitando a conduta como sua
constante prescrição ”. (FOUCAULT, op. cit., pp. 144-145).
70 Cf. FOUCAULT, op. cit., pp. 106-109.
71 Cf. FOUCAULT, op. cit., pp. 136-139 e 142-145.
72 Cf. FOUCAULT, op. cit., pp. 116-120.
73 Cf. FOUCAULT, op. cit., pp. 125-126.
74 Cf. FOUCAULT, op. cit., pp. 129-131.
75 Que, para os homens, não se devia praticar nem muito cedo, nem muito tarde, por
supostamente prejudicarem o crescimento e desenvolvimento da puberdade e
esgotarem um corpo incapaz de reconstituir os princípios que lhe foram retirados,
respectivamente, e, para as mulheres, deveria se dar apenas a partir da primeira
menstruação, considerado o momento da maturidade corporal necessária para o ato
sexual (FOUCAULT, op. cit., pp. 131-133).
76 “De tal modo que, no final das contas, é após uma refeição moderada e antes do sono
– ou eventualmente da sesta – que o momento das relações sexuais será o mais
favorável e, segundo Rufo, a própria natureza indicaria sua preferência por esse
instante dando então ao corpo a sua mais forte excitação” (FOUCAULT, op. cit., p.
134).
77 Temperaturas estas que deveriam ser mais ou menos quentes e úmidas, sendo a
atividade sexual tida como desfavorável nas constituições frias e secas (!)
(FOUCAULT, op. cit., pp. 134-135).
78 Cf. FOUCAULT, op. cit., pp. 69-70.
79 Cf. FOUCAULT, op. cit., p. 125.
80 “Não te deitarás com homens, como fazes com mulheres: é abominação” (Levítico,
18.22).
81 A interpretação histórico-crítica nada mais é do que a interpretação teleológica dos
fatos históricos: busca compreender o contexto em que foram ditas as palavras para
entender seu real significado, o que em muito se assemelha à interpretação
teleológica, que visa superar a literalidade do enunciado normativo para entender o fim
visado pela norma, seu real significado, sua ratio essendi (seu conteúdo).
82 “(...) Paulo fala de um deus indiferente aos pagãos e que lhes deu ‘afetos vis’: pois até
mesmo suas mulheres transformaram o costume natural naquilo que é contra a
natureza; e a exemplo também dos homens, deixando o costume natural de uma
mulher, queimam de luxúria uma pela outra; homens com homens empenhando-se
naquilo que é inconcebível” (SPENCER, Colin. Homossexualidade: uma história. 2. ed.
Rio de Janeiro: Editora Record, 1999, p. 82).
83 “Devemos recordar que Paulo ensinava que a Segunda Vinda do Messias era
iminente. A Igreja primitiva acreditava que esse evento deveria ocorrer a qualquer
momento e que os anjos apareceriam para dividir a humanidade em bons e maus. Não
admira que o desejo sexual, no acaso de sua espontaneidade, lançando sua rede
aberta sobre todo tipo de objeto de luxúria, fosse visto com tão terrível medo e
repulsão. (...) Há aqui uma sutil mudança na visão da masculinidade por parte da
sociedade. Não era o homem mais masculino, o mais viril, o que mais conservava seu
espírito vital, aquele que perdia pouca semente? Quintiliano escreveu que, para
preservar a voz masculina ‘forte, rica, flexível e firme’, o homem deve se abster do
sexo. (...) O Apocalipse (14.4) descreve uma procissão dos redimidos, formada por
homens virgens, não conspurcados pelas mulheres” (ibidem, p. 83).
84 Um exemplo disso é a constatação de João Crisóstomo ao afirmar das diversas
pessoas “que ouviram as Escrituras trazidas do céu, essas que não se unem a
prostitutas tão sem cuidado quanto o fazem com jovens homens. Os pais dos jovens
aceitam isso em silêncio; não tentam salvar seus filhos, nem procuram remédio para o
seu mal. Nenhum está envergonhado (...) há algum perigo que a feminilidade se torne
desnecessária no futuro, com jovens homens satisfazendo as necessidades a que as
mulheres estão acostumadas”. Percebe-se claramente que João Crisóstomo
condenava o amor entre pessoas do mesmo sexo e que ficava surpreso com o fato de
os pais dos meninos que prestavam favores sexuais a homens mais velhos não virem
nenhum problema em tal prática. Isso demonstra que a cultura da época estava
consolidada no sentido da pederastia institucionalizada como a forma adequada de
garantir a masculinidade dos meninos, por mais que as religiões já estivessem
trabalhando pela difusão do preconceito homofóbico (ibidem, p. 84).
85 “Talvez seja impossível para nós descobrir onde estava exatamente a verdade, mas
seria de surpreender que a expressão bissexual, que continuara a ser perfeitamente
aceitável por milhares de anos, desaparecesse da noite para o dia somente porque
uma pequena elite – uns poucos religiosos ascéticos e filósofos – pregava contra ela
por alguma obscura razão. É coisa diferente quando as punições brutais de Justiniano
começam a ocorrer; tais horrores devem ter soado como uma nota de advertência até
mesmo para os mais descuidados” (ibidem, p. 85-86).
86 Ibidem, p. 84.
87 Ibidem, p. 76.
88 Ibidem, p. 76.
89 “A partir do século XIV na Europa, a homossexualidade, já associada à heresia e à
usura, foi ligada a algo mais sinistro – feitiçaria e demonismo. Não surpreende,
portanto, que a natureza humana relacionada com isso fingisse que o ato de união
homossexual era coisa que não lhe dizia respeito” (ibidem, p. 121).
90 Quanto à forma de condenação do amor entre homens e entre mulheres, é elucidativo
o seguinte trecho da obra de Colin Spencer: “As multas se tornavam maiores de
acordo com a idade do homem [pois presumia-se que, quanto mais novo, menor
compreensão tinha da suposta ‘imoralidade’ do ato realizado], mas, se não fossem
pagas em 10 dias, o criminoso era despido, atado pelos genitais, forçado a desfilar nu
pelas ruas, surrado e depois expulso da cidade. Um homem acima de 33 anos devia
ser queimado e toda a sua propriedade confiscada pela cidade. O acusado não tinha
direito a advogado ao apresentar sua defesa. A fogueira parece ter sido reservada
para os casos mais graves, como o estupro homossexual; outros criminosos foram
mais provavelmente chicoteados, multados e exilados. (...) O lesbianismo não era
considerado muito seriamente. Equiparava-se a uma espécie de masturbação, e a
penitência era de um ano sem poder comungar. Mas se uma mulher durante uma
relação homossexual montava em outra, tinha de ser chicoteada, porque usar a
posição recomendada para a relação marital heterossexual se tornava obsceno e
blasfêmico. O lesbianismo estava tradicionalmente ligado ao paganismo. Afirmava-se
que as lésbicas em meio ao ato amoroso rezavam para espíritos femininos e
comandavam rituais pagãos. Mas a associação de sexualidade ilícita com o demônio
ou alguma crença pagã ou herética não se afastava muito do que pensava o
cristianismo medieval” (ibidem, p. 123 e 127 – sem grifo no original).
91 “O que mais pode explicar o que tantos escritores e pintores tornaram público?
Flamino Nobili escreveu que Platão e outros filósofos gregos tinham julgado a beleza
de um rapaz mais apropriada para despertar o desejo do que a de uma mulher. Ariosto
(1474-1533), autor de Orlando furioso, escreveu um tanto cegamente que todos os
humanistas se envolviam em atividades homossexuais. (...) Quando seu rival,
Bandinellu, publicamente o chamou de ‘sodomita sujo’, Cellini, mentindo, no entanto
com grande atrevimento, respondeu: ‘Desejaria por deus ter sabido como ceder a uma
tão nobre prática; afinal de contas, lemos que Júpiter a desfrutou com Ganimedes no
paraíso” (ibidem, p. 130 e 132).
92 Expressão cunhada para designar o relacionamento entre duas pessoas de iguais
sexos biológicos, não necessariamente um relacionamento nos quais ambos fossem
iguais no comando da família oriunda de sua união amorosa (assim como em casais
heteroafetivos, era e é comum que, em um casal homoafetivo, um dos companheiros
tenha maior proeminência na tomada de decisões – seja por questões financeiras, seja
por qualquer outra, o que não cabe aqui investigar).
93 É curioso notar como, atualmente, a situação se inverteu: há inúmeros ramos do
mercado consumidor voltados ao público homossexual em razão de se presumir que
estes não teriam filhos e, portanto, teriam mais dinheiro para gastar consigo. Em
inglês, cunhou-se uma expressão nominada Dual Income, no Kids (em tradução livre:
“Dupla Receita, nenhuma Criança”) – embora, atualmente, cada vez mais casais
homoafetivos estejam adotando menores ou tendo filhos oriundos de inseminação
artificial e, portanto, estejam desmistificando essa compreensão.
94 Ibidem, p. 205.
95 BRANDÃO, Débora Vanessa Caús. Parcerias homossexuais – aspectos jurídicos. São
Paulo: RT, 2002, p. 15.
96 “Entendi, pela sua carta, que seu filho é homossexual. Estou muito impressionado
pelo fato da senhora não mencionar este termo nas informações sobre ele. Posso
perguntar-lhe por que o evita? A homossexualidade não traz com certeza qualquer
benefício, mas não é nada que deva ser classificado como uma doença; consideramos
que seja uma variação do desenvolvimento sexual” (In: SPENCER, Colin.
Homossexualidade: uma história. 2. ed. Rio de Janeiro: Editora Record, 1999, p. 302).
97 “A teoria da degeneração se disseminava. (...) Os médicos tinham estabelecido que o
homossexual masculino era efeminado: eles sentem ‘a necessidade de submissão
passiva, ficam facilmente maravilhados com romances e roupas’. (...) Esses médicos
eram os mesmos que se opunham a uma maior liberdade para as mulheres, alegando
que as diferenças marcantes entre os sexos tinham base biológica, e até mesmo
ameaçavam que, se essas diferenças fossem violadas, a capacidade de reprodução
das mulheres poderia se perder. / Quando o crescimento populacional caía, como
acontecia às vezes, políticos, médicos e a Igreja atacavam juntos os homossexuais e a
ampliação do movimento das mulheres. (...) Também era difundida a ideia de que a
decadência da Grécia e de Roma fora devida a uma predatória homossexualidade.
(Na verdade, essa falsa ideia recusava-se a ser desmentida)” (SPENCER, Colin.
Homossexualidade: uma história. 2. ed. Rio de Janeiro: Editora Record, 1999, p. 301 –
sem grifo no original).
98 Nessas “pseudoterapias”, fazia-se o “paciente” ingerir remédios indutores ao vômito
para, em seguida, assistir a cenas homoeróticas. Em decorrência do remédio, o
“paciente” se sentia mal e vomitava. Após, recebia uma injeção de testosterona e
assistia a filmes eróticos heterossexuais, no intuito de “despertar” a sexualidade
“normal”... A posterior prova científica de que os homossexuais não possuem
disfunções hormonais em muito decepcionou os homofóbicos que aplicaram os
referidos tratamentos.
99 FOUCAULT, Michel. História da sexualidade. A vontade de saber. Vol. I, Tradução de
Maria Thereza da Costa Albuquerque e J.A. Guilhon Albuquerque. 18. ed. São Paulo:
Graal, 2007, pp. 09-11.
100 Cf. FOUCAULT, op. cit., pp. 17-18. Mas “É necessário deixar bem claro: não pretendo
afirmar que o sexo não tenha sido proibido, bloqueado, mascarado ou desconhecido
desde a época clássica; nem mesmo afirmo que a partir daí ele o tenha sido menos do
que antes. Não digo que a interdição do sexo é uma ilusão; e sim que a ilusão está em
fazer dessa interdição o elemento fundamental e constituinte a partir do qual se
poderia escrever a história do que foi dito sexo a partir da Idade Moderna. Todos esses
elementos negativos – proibições, recusas, censuras, negações – que a hipótese
repressiva agrupa num grande mecanismo central destinado a dizer não, sem dúvida,
são somente peças que têm uma função local e tática numa colocação discursiva,
numa técnica de poder, numa vontade de saber que estão longe de se reduzirem a
isso. Em suma, gostaria de desvincular a análise dos privilégios que se atribuem
normalmente à economia da escassez e aos princípios de rarefação para, ao contrário,
buscar as instâncias de produção discursiva (que, evidentemente, também organizam
silêncios), de produção de poder (que, algumas vezes têm a função de interditar), das
produções de saber (as quais, frequentemente, fazem circular erros ou
desconhecimentos sistemáticos); gostaria de fazer a história dessas instâncias e de
suas transformações. Ora, uma primeira abordagem feita deste ponto de vista parece
indicar que, a partir do fim do século XVI, a ‘colocação do sexo em discurso’, em vez
de sofrer um processo de restrição, foi, ao contrário, submetida a um mecanismo de
crescente incitação; que as técnicas de poder exercidas sobre o sexo não obedeceram
a um princípio de seleção rigorosa mas, ao contrário, de disseminação e implantação
das sexualidades polimorfas e que a vontade de saber não se detém diante de um
tabu irrevogável, mas se obstinou – sem dúvida através de muitos erros – em constituir
uma ciência da sexualidade. São esses movimentos que gostaria de evidenciar, agora,
de maneira esquemática a partir de alguns fatos históricos que se afiguram marcantes,
e para isso, de certa forma, passarei por cima da hipótese repressiva e dos fatos de
interdição e de exclusão que ela evoca” (FOUCAULT, op. cit., pp. 18-19).
101 Cf. FOUCAULT, op. cit., pp. 23-24. “Sem dúvida, o importante é que esta obrigação
era fixada, pelo menos como ponto ideal para todo bom cristão. Coloca-se um
imperativo: não somente confessar os atos contrários à lei, mas procurar fazer de seu
desejo, de todo o seu desejo, um discurso. Se for possível, nada deve escapar a tal
formulação, mesmo que as palavras devam ser cuidadosamente neutralizadas. A
pastoral cristã inscreveu, como dever fundamental, a tarefa de fazer passar tudo o que
se relaciona com o sexo pelo crivo interminável da palavra. A interdição de certas
palavras, a decência das expressões, todas as censuras do vocabulário poderiam
muito bem ser apenas dispositivos secundários com relação a essa grande sujeição:
maneiras de torná-la moralmente aceitável e tecnicamente útil. (...) O essencial é bem
isso: que o homem ocidental há três séculos tenha permanecido atado a essa tarefa
que consiste em dizer tudo sobre seu sexo (...) e que se tenha esperado desse
discurso, cuidadosamente analítico, efeitos múltiplos de deslocamento, de
intensificação, de reorientação, de modificação sobre o próprio desejo. (...) Censura
sobre o sexo? Pelo contrário, constituiu-se uma aparelhagem para produzir discursos
sobre o sexo, cada vez mais discursos, suscetíveis de funcionar e de serem efeito de
sua própria economia” (FOUCAULT, op. cit., pp. 26-27 e 29).
102 Cf. FOUCAULT, op. cit., pp. 30-31. Ademais, “é a primeira vez em que, pelo menos
de maneira constante, uma sociedade afirma que seu futuro e sua fortuna estão
ligados não somente ao número e à virtude dos cidadãos, não apenas às regras de
casamentos e à organização familiar, mas à maneira como cada qual usa seu sexo.
(...) Entre o Estado e o indivíduo o sexo tornou-se objeto de disputa, e disputa pública;
toda uma teia de discursos, de saberes, de análise e de injunções o investiram”
(FOUCAULT, op. cit., pp. 32-33).
103 “Há, sem dúvida, aumento da eficácia e extensão do domínio sob controle, mas
também sensualização do poder e benefício e prazer. (...) O poder funciona como um
mecanismo de apelação, atrai, extrai essas estranhezas pelas quais se desvela. O
prazer se difunde através do poder cerceador e este fixa o prazer que acaba de
desvendar. O exame médico, a investigação psiquiátrica, o relatório pedagógico e os
controles familiares podem, muito bem, ter como objetivo global e aparente dizer não a
todas as sexualidades errantes ou improdutivas mas, na realidade, funcionam como
mecanismos de dupla incitação: prazer e poder. Prazer em exercer um poder que
questiona, fiscaliza, espreita, espia, investiga, apalpa, revela; e, por outro lado, prazer
que se abrasa por ter que escapar a esse poder, fugir-lhe, enganá-lo ou travesti-lo.
Poder que se deixa invadir pelo prazer que persegue e, diante dele, poder que se
afirma no prazer de mostrar-se, de escandalizar ou de resistir. (...) Tais apelos,
esquivas, incitações circulares não organizaram, em torno dos sexos e dos corpos,
fronteiras a não serem ultrapassadas, e sim, as perpétuas espirais de poder e prazer.
(...) A implantação das perversões é um efeito-instrumento: é através do isolamento,
da intensificação e da consolidação das sexualidades periféricas que as relações do
poder com o sexo e o prazer se ramificam e multiplicam, medem o corpo e penetram
nas condutas. E, nesse avanço dos poderes, fixam-se sexualidades disseminadas,
rotuladas segundo uma idade, um lugar, um gosto, um tipo de prática” (FOUCAULT,
op. cit., p. 52-53 e 56)
104 “O que se poderia chamar de discurso interno da instituição – o que ela profere para
si mesma e circula entre os que a fazem funcionar – articula-se, em grande parte,
sobre a constatação de que essa sexualidade existe: precoce, ativa, permanente. (...)
E em todas essas medidas a criança não deveria ser apenas um objeto mudo e
inconsciente de cuidados decididos exclusivamente entre adultos; impunha-se-lhe um
certo discurso razoável, limitado, canônico e verdadeiro sobre o sexo – uma espécie
de ortopedia discursiva” (FOUCAULT, op. cit., pp. 34-35).
105 Cf. FOUCAULT, op. cit., pp. 33-39. “O que é próprio das sociedades modernas não é
o terem condenado, o sexo, a permanecer na obscuridade, mas sim o terem-se
devotado a falar dele sempre, valorizando-o como o segredo” (FOUCAULT, op. cit., p.
42).
106 Cf. FOUCAULT, op. cit., pp. 45-46. “Todas estas figuras, outrora apenas entrevistas,
têm agora de avançar para tomar a palavra e fazer a difícil confissão daquilo que são.
Sem dúvida não são menos condenadas. Mas são escutadas; e se novamente
interrogada, a sexualidade regular o será a partir dessas sexualidades periféricas,
através de um movimento de refluxo. (...) [houve] uma transformação capital: a
tecnologia do sexo, basicamente, vai-se ordenar a partir desse momento, em torno da
instituição médica, da exigência de normalidade a, ao invés da questão da morte e do
castigo eterno, do problema da vida e da doença. A ‘carne’ é transferida para o
organismo” (FOUCAULT, op. cit., p. 46 e 128).
107 “Em nome de uma urgência biológica e histórica, justificava os racismos oficiais,
então iminentes. E os fundamentava como ‘verdade’” (FOUCAULT, op. cit., p. 62).
108 Cf. FOUCAULT, op. cit., pp. 61-62.
109 “É esta representação jurídica que continua presente nas análises contemporâneas
sobre as relações entre poder e sexo. Ora, o problema não consiste em saber se o
desejo é realmente estranho ao poder, anterior à lei como se imagina muitas vezes,
ou, ao contrário, se não seria a lei que o constituiria. A questão não é essa. Quer o
desejo seja isso ou aquilo, de todo modo continua-se a concebê-lo relativamente a um
poder que é sempre jurídico e discursivo – poder cujo ponto central se encontra na
enunciação da lei. Permanecemos presos a uma certa imagem do poder-lei, do poder-
soberania que os teóricos do direito e a instituição monárquica tão bem traçaram. E é
desta imagem que precisamos libertar-nos, isto é, do privilégio teórico da lei e da
soberania, se quisermos fazer uma análise do poder nos meandros concretos e
históricos de seus procedimentos. É preciso construir uma analítica do poder que não
tome mais o direito como modelo e código. (...) Portanto: analisar a formação de um
certo tipo de saber sobre o sexo, não tem termos de repressão ou de lei, mas em
termos de poder (...) poder, primeiro, como a multiplicidade de correlações de força
imanentes ao domínio onde se exercem e constitutivas de usa organização; o jogo
que, através de lutas e afrontamentos incessantes as transforma, reforça, inverte; os
apoios que tais correlações de força encontram umas nas outras, formando cadeiras
ou sistemas ou ao contrário, as defasagens que as isolam entre si; enfim, as
estratégias em que se originam e cujo esboço geral ou cristalização institucional tomo
como corpo os aparelhos estatais, na formulação da lei, nas hegemonias sociais. (...) o
poder não é uma instituição e nem uma estrutura, não é uma certa potência de que
alguns sejam dotados: é o nome dado a uma situação estratégica complexa numa
sociedade determinada” (FOUCAULT, op. cit., p. 100-103).
110 “Não se deve descrever a sexualidade como um ímpeto rebelde, estranha por
natureza e indócil por necessidade, a um poder que, por sua vez, esgota-se na
tentativa de sujeitá-la e muitas vezes fracasse em dominá-la inteiramente. Ela aparece
mais como um ponto de passagem particularmente denso pelas relações de poder;
entre homens e mulheres, entre jovens e velhos, entre pais e filhos, entre educadores
e alunos, entre padres e leigos, entre administração e população. Nas relações de
poder, a sexualidade não é o elemento mais rígido, mas um dos dotados da maior
instrumentalidade: utilizável no maior número de manobras, e podendo servir de ponto
de apoio, de articulação às mais variadas estratégias” (FOUCAULT, op. cit., p. 114).
111 “Sobre tal pano de fundo [de luta pela vida], pode-se compreender a importância
assumida pelo sexo como foco de disputa política. É que ele se encontra na
articulação entre os dois eixos ao longo dos quais se desenvolveu toda a tecnologia
política da vida. De um lado, faz parte das disciplinas do corpo: adestramento,
intensificação e distribuição das forças, ajustamento e economia das energias. Do
outro, o sexo pertence à regulação das populações, por todos os efeitos globais que
induz. (...) O sexo é acesso, ao mesmo tempo, à vida do corpo e à vida da espécie.
Servimo-nos dele como matriz das disciplinas e como princípio das regulações. É por
isso que, no século XIX, a sexualidade foi esmiuçada em cada existência, nos seus
mínimos detalhes (...) [mediante] campanhas ideológicas de moralização ou de
responsabilização: é empregada como índice da força de uma sociedade, revelando
tanto sua energia política como seu vigor biológico. De um polo a outro dessa
tecnologia do sexo, escalona-se toda uma série de táticas diversas que combinam, em
proporções variadas, o objetivo de disciplina do corpo e o da regulação das
populações” (FOUCAULT, Op. Cit., p. 158-159).
112 Cf. FOUCAULT, op. cit., pp. 65-68 e 75-78.
113 “Os valores sexuais ortodoxos se escandalizaram com os dados sobre a incidência
de comportamento homossexual. Cinquenta por cento dos homens admitiram
responder eroticamente ao seu próprio sexo, e um terço deles tivera uma experiência
pós-adolescência; quatro por cento tornaram-se exclusivamente homossexuais,
quando adultos; e um em cada oito homens tinha sido predominantemente
homossexual por um período de pelo menos três anos” (SPENCER, Colin.
Homossexualidade: uma história. 2. ed.. Rio de Janeiro: Editora Record, 1999, p. 337).
114 Há quem diga que não faria sentido ter “orgulho” de determinada orientação sexual
ou identidade de gênero e, por vezes, há quem fale em “orgulho hétero”, da mesma
forma que há quem fale em “orgulho branco” em contraposição ao “orgulho negro”.
Contudo, há aqui um mal-entendido por parte destas pessoas. Não se trata de orgulho
pura e simplesmente de determinada orientação sexual, identidade de gênero ou cor
de pele, mas de ser como se realmente é, mesmo com todo o preconceito existente
contra si por conta da característica que gera tal preconceito. Nesse sentido, o
“orgulho gay” se refere ao fato de a pessoa sentir orgulho de ser como realmente é (no
caso, homossexual), mesmo em um contexto social de flagrantes e fortes preconceitos
contra ela por força de sua orientação sexual homoafetiva – o mesmo pode ser dito
sobre o “orgulho negro”, no contexto da pessoa negra se atribuir a mesma dignidade
conferida socialmente às pessoas brancas e não se deixar menosprezar pelo
preconceito em sentido contrário (sendo que desconheço alguém falar em “orgulho
lésbico/bissexual/transgênero”, embora faça todo o sentido alguém invocar tais
“orgulhos”, por se referirem ao mesmo contexto). Por outro lado, brancos não são alvo
de preconceitos por sua cor de pele e heterossexuais não são alvo de preconceitos
por sua orientação sexual; logo, afigura-se completamente descabido falar-se em
“orgulho branco” e em “orgulho hétero” – somente um profundo simplismo acrítico que
ignora o contexto que se acabou de expor pode invocar estes últimos conceitos.
115 Para detalhes das especificidades de cada tribo, vide: TREVISAN, João Silvério.
Devassos no paraíso: A homossexualidade no Brasil, da colônia à atualidade. 6. ed.
Rio de Janeiro: Editora Record, 2004, p. 65-67 e 220-226.
116 Ibidem, p. 68.
117 Moral que sequer atenta para uma noção histórico-crítica da Bíblia, como
demonstrarei no capítulo seguinte.
118 “Na Europa dos séculos XVI, XVII e XVIII, não apenas a Espanha, Portugal, França e
Itália católicas mas também a Inglaterra, Suíça e Holanda protestantes puniam
severamente a sodomia. Seus praticantes eram condenados a punições capazes de
desafiar as mais sádicas imaginações, variando historicamente desde multas, prisão,
confisco de bens, banimento da cidade ou do país, trabalho forçado (nas galés ou
não), passando por marca com ferro em brasa, execração e açoite público até a
castração, amputação das orelhas, morte na forca, morte por fogueira, empalamento e
afogamento. Entre as vítimas podiam contar-se tanto nobres, eclesiásticos,
universitários e marinheiros, quanto simples camponeses, servos e artesãos. (...) A
verdade é que as denúncias funcionavam até o ponto de ocorrer punição contra as
pessoas omissas, como no caso do jovem Mateus, que pagou multa e cumpriu
penitência pública porque deixara de denunciar o blasfemo João Nunes, na Visitação
Inquisitorial pernambucana de 1593. Ou também o caso do carpinteiro e açougueiro
Pedrálvares, que, na Visitação Inquisitorial baiana de 1591, foi multado, penitenciado e
açoitado publicamente em Salvador, por não ter denunciado sua esposa,
supostamente herética. (...) Quanto aos delitos, a preocupação maior dos inquisitores
era com aqueles relacionados com a fé católica. Além de todo o espírito ortodoxo que
a Igreja ciosamente contrapunha à Reforma protestante e heresias afins, havia
também o perigo das práticas judaicizantes, considerando que em Portugal e Espanha
existia um grande número de judeus obrigados a se converter ao catolicismo (daí
serem chamados de cristãos-novos, em contraposição a cristãos-velhos).
Supostamente ou não, os cristão-novos continuavam a professar a fé judaica, de
maneira clandestina, merecendo por isso especial vigilância da Inquisição. Mas, além
dos crimes contra a fé, havia aqueles contra a moral e os costumes; parece que esses
raramente mereceram o castigo da pena de morte, ainda que as Ordenações do Reino
previssem morte por fogueira em casos de sodomia” (TREVISAN, op. cit., p. 127 e
131-132 – sem grifos no original).
119 Cf. o prefácio de Andréa Lombardi para Poemas, de Michelangelo Buonarroti, apud
TREVISAN, João Silvério. Devassos no paraíso: A homossexualidade no Brasil, da
colônia à atualidade. 6. ed. Rio de Janeiro: Editora Record, 2004, p. 134.
120 TREVISAN, João Silvério. Devassos no paraíso: A homossexualidade no Brasil, da
colônia à atualidade. 6. ed. Rio de Janeiro: Editora Record, 2004, p. 151-152.
121 “Amai-vos uns aos outros” significa que todos devem tolerar aqueles que são
distintos de si; “Não julgueis e não serás julgado” significa que não cabe a nenhum
humano condenar moralmente ao outro porque só a Deus cabe julgar; “Perdoe e serás
perdoado” significa que, caso você, humano, tenha usurpado a competência de Deus
e tenha julgado negativamente seus irmãos humanos, perdoe-o e serás perdoado por
Deus por ter se dado o direito de julgar moralmente o próximo, o que, repita-se, pelos
mandamentos cristãos só cabe a Deus.
122 Voto do Ministro Celso de Mello, pp. 5-11. No trecho omitido, o Ministro Celso de
Mello cita a lição de Veronica de Jesus Gomes, oriunda de sua dissertação de
mestrado, nominada “Vícios dos Clérigos: A Sodomia nas Malhas do Tribunal do Santo
Ofício de Lisboa” (Niterói: UFF, 2012), a qual peço vênia para transcrever na íntegra,
dada sua extrema pertinência para exemplificar a fala do Ministro e, ainda, todo o
exposto neste capítulo acerca da perseguição da homossexualidade a partir da Idade
Média: “As ‘Ordenações’ do Reino português foram rigorosas no julgamento do
pecado/crime ao preverem penas bastante severas aos sodomitas, incluindo a morte,
como já assinalavam, no século XV, as ‘Ordenações Afonsinas’. A pena capital foi
confirmada pelas leis posteriores, quando houve melhor sistematização e
recrudescimento das regras penais. As ‘Ordenações Manuelinas’ (1514/1521)
mantiveram a fogueira para os transgressores, equipararam o crime de sodomia ao de
lesa-majestade, ou seja, quem cometesse um ato sodomítico sofreria as mesmas
sanções de quem traísse a pessoa do rei ou o seu real estado, declarando que ‘todos
seus bens sejam confiscados pera a Coroa dos Nossos Reynos (...), assi propriamente
como os daqueles, que cometem o crime da lesa Magestade contra seu Rey e Senhor’
[sic]. Além disso, condenou seus filhos e descendentes à infâmia, proibindo-lhes a
ocupação de cargos públicos, além de incitar a delação, prometendo um terço da
fazenda dos acusados aos que apontassem culpados, ‘em segredo ou em publico’.
Aquele que soubesse de algum ‘desviante’ e não o delatasse, qualquer que fosse sua
pessoa, teria todos os bens confiscados e seria degredado para sempre dos reinos e
senhorios portugueses. Quanto aos parceiros dos sodomitas, o Código Manuelino
previa que, em caso de delação, que culminasse na prisão do acusado, lhe fosse
perdoada toda pena cível, ‘e crime contheuda nesta Ordenaçam (...)’ [sic]. As
disposições ali registrada valiam tanto para os que pecaram antes de sua promulgação
quanto para os que, porventura, cometessem o dito crime dali em diante. As regras
valiam também para a sodomia feminina, que, a partir de então, passou a configurar-
se como um crime julgado pelas ordenações régias. (...) As ordenações Filipinas
(1603) confirmaram a pena capital aos sodomitas de qualquer qualidade, incluídas as
mulheres, mantendo o confisco de bens e a infâmia de seus descendentes, da mesma
maneira que o estabelecido para os que cometessem o crime de lesa-majestade. Os
delatores agora teriam direito à metade da fazenda do culpado. Em caso de delatados
despossuídos, a Coroa pagaria cem cruzados ao ‘descobridor’, quantia que seria
devida apenas em caso de prisão do sodomita. Da mesma forma que as Manuelinas,
condenavam ao confisco total de bens e ao degredo perpétuo os que não
colaborassem com a justiça e reafirmavam a indulgência perante os que delatassem
os parceiros. Esse código legislativo apresentou inovações que merecem ser
destacadas. O discurso persecutório às práticas homoeróticas parece recrudescer. A
molície entre pessoas do mesmo sexo, que não constava nas duas primeiras
ordenações, passou a ser punidas gravemente com a pena do degredo para as galés
‘e outras penas extraordinárias, segundo o modo e perseverância do peccado’: (...)
Duas testemunhas de diferentes atos de molície eram requeridas para que o delito
fosse provado e o legislador se preocupou com a identidade das testemunhas, que
não deveriam ter seus nomes revelados, mas segundo o arbítrio do julgador. Até
então, não havia preocupação quanto às carícias homoeróticas por parte da legislação
régia. As ‘Ordenações Afonsinas’ observaram apenas os atos sodomíticos em si e as
‘Ordenações Manuelinas’ incluíram as mulheres, a bestialidade (praticada por ambos),
além do uso de roupas de homens por mulheres e vice-versa. Nos Códigos Filipinos,
ainda que os ‘tocamentos desonestos’ não fossem o bastante para comprovar o delito,
passaram a ser gravemente punidos com o degredo para as galés ou outras penas,
dependendo da contumácia e pertinácia do indivíduo. Outro aspecto que merece ser
ressaltado é a introdução da tortura no título referente à sodomia. Sempre que
houvesse culpados ou indícios de culpa, que, conforme o Direito, bastassem, o sujeito
era enviado para o tormento, para que revelasse os parceiros e quaisquer outras
pessoas que tivessem cometido sodomia ou soubessem de sua prática. A tortura de
réus negativos ou ‘vacilantes’ foi um procedimento judiciário comum nos códigos
legislativos europeus. (...) Em Portugal, a preocupação com a utilização da técnica
como forma de arrancar as confissões era tamanha que as ‘Ordenações Manuelinas’
aconselhavam que não fossem aplicadas seguidas sessões de tormento ao mesmo
réu, para que, com ‘medo da dor’, ratificasse uma falsa confissão. (...) As três
‘Ordenações’ não foram os únicos códigos legislativos portugueses que censuraram e
penalizaram sodomitas e praticantes de molície. As chamadas ‘Leis Extravagantes’
também tiveram o mesmo objetivo. Em 09 de março de 1571, uma ‘Lei Extravagante’,
promulgada por D. Sebastião, ditava que ‘as Pessoas, que com outras do mesmo sexo
cometterem o peccado de mollicie, serão castigadas gravemente com o degredo de
Galés, e outras penas extraordinárias, segundo o modo e perseverança do peccado’.
Em 1606, o rei Felipe II ratificou a lei de D. Sebastião contra a molície, em que se
determinava que os culpados fossem presos e, sendo peões, devendo ser degredados
por sete anos para as galés. Em caso de pessoas de ‘melhor qualidade’, seriam
degredadas para Angola, sem remissão. Todavia, os reincidentes mais devassos
poderiam ser condenados à morte, ‘perdendo as famílias nobres sua dignidade e
privilégios’” (Voto do Ministro Celso de Mello, pp. 5-7).
123 ALMEIDA, José Ricardo Pires de (Homossexualismo (a libertinagem no Rio de
Janeiro), p. 80-82), apud TREVISAN, João Silvério. Devassos no paraíso: A
homossexualidade no Brasil, da colônia à atualidade. 6. ed. Rio de Janeiro: Editora
Record, 2004, p. 181.
124 Cf. TREVISAN, op. cit., p. 166.
125 Ibidem, p. 166-167.
126 NUNES, Viriato Fernandes. As perversões sexuais em medicina legal, apud
TREVISAN, João Silvério. Devassos no paraíso: A homossexualidade no Brasil, da
colônia à atualidade. 6. ed. Rio de Janeiro: Editora Record, 2004, p. 187.
127 Cf. SINISGALLI, Aldo. Considerações gerais sobre o homossexualismo. Arquivos da
Polícia e Identificação, apud TREVISAN, João Silvério. Devassos no paraíso: A
homossexualidade no Brasil, da colônia à atualidade. 6. ed. Rio de Janeiro: Editora
Record, 2004, p. 187.
128 Ibidem, p. 190.
129 Cf. SINISGALLI, Aldo. Considerações gerais sobre o homossexualismo, Arquivos da
Polícia e Identificação, apud TREVISAN, João Silvério. Devassos no paraíso: A
homossexualidade no Brasil, da colônia à atualidade. 6. ed. Rio de Janeiro: Editora
Record, 2004, p. 191.
130 É irrelevante que a privacidade fosse ou não expressamente reconhecida como
direito fundamental na época, pois o que se faz sexualmente, de forma consensual e
entre quatro paredes, não é da conta de ninguém. Por outro lado, a privacidade é uma
das manifestações do direito à liberdade, em seu sentido defensivo de vedação de
interferências estatais.
131 As informações dos autores literários foram extraídas da obra TREVISAN, João
Silvério. Devassos no paraíso: A homossexualidade no Brasil, da colônia à atualidade.
6. ed. Rio de Janeiro: Editora Record, 2004, p. 249-269, à qual se remete o leitor para
maiores detalhes.
132 “Quando isso enfim ocorreu, as especulações só aumentaram, provocadas por um
patético jogo de cena que mais tem revelado do que ocultado a homossexualidade de
Mario de Andrade. Antes de tudo, ainda que teoricamente aberto, o conteúdo de cada
carta só pode ser revelado com a autorização expressa da família. Como se não
bastasse, foram encontradas cartas com rasgões, partes arrancadas, trechos
recortados a tesoura, linhas semiapagadas, sem falar no desaparecimento de um lote
de correspondência trocada semanalmente entre Mario e seu amigo íntimo Manuel
Bandeira, durante mais de vinte anos. Sabe-se da existência de pelo menos uma
dessas cartas ‘sumidas”, que ainda se encontra lacrada – por ordem expressa dos
amigos doadores – sem data para ser aberta. Sobre seu conteúdo, especialistas
desconversam, mas especula-se que nela Mario revelaria a Bandeira seus casos
homossexuais – confidência muito viável entre ambos, mesmo porque conhece-se
uma outra carta em que Bandeira aconselhava Mario a censurar seus poemas
referenciados a amores masculinos. Apesar do cerco, têm pipocado confirmações da
homossexualidade de Mario de Andrade, sem qualquer intenção de denegrir sua
‘imagem’, mas simplesmente resgatar a verdade e, no dizer do professor Davi
Arrigucci Jr., permitir uma melhor compreensão de sua obra. (...) Mais direta foi Raquel
de Queiroz. Tendo convivido com Mario no Rio, Rachel acreditava que ele se tornara
muito infeliz por não ter se assumido homossexual, o que ‘era um fato notório entre
todos nós’; e complementava: ‘A gente sentia isso nele, era visível.’ Em suas
memórias, Rachel atribui ‘ao seu sufocado homossexualismo’ o vazio da vida pessoal
de Mario, que acabava escrevendo compulsivamente aos amigos, muitos dos quais
jovens escritores que o veneravam. Em seu curto exílio carioca, trabalhando no
Instituto Nacional do Livro, Mario de Andrade sofria com seu chefe, Augusto Meyer,
que em suas constantes bebedeiras agredia Mario, chamando-o de mulato viado –
‘coisa que ele era, mas ninguém dizia’, conta Rachel (...)” (ibidem, p. 258 – sem grifo
no original).
133 Cf. ibidem, p. 22.
134 Refere-se aqui somente à história e às religiões ocidentais.
135 Adota-se aqui o mesmo sentido de preconceito adotado por Roger Raupp Rios,
segundo o qual “ao termo preconceito é aqui atribuído um sentido negativo, como
‘juízo não fundamentado’” (RIOS, Roger Raupp. O princípio da igualdade e a
discriminação por orientação sexual: A homossexualidade no direito brasileiro e norte-
americano. Porto Alegre: RT: 2002, p. 26, em nota de rodapé).
Capítulo 2

DA HOMOSSEXUALIDADE E DA
HOMOAFETIVIDADE

“Podemos definir o sentimento homossexual como a sensação de


estar apaixonado, de se envolver amorosamente, ou sentir atração
erótica por pessoa de sexo semelhante. É uma forma distinta de ser
da maioria, somente no que diz respeito à orientação sexual, pois,
nos demais aspectos, não há diferença. É a troca de afetos, é o
envolvimento íntimo entre duas pessoas pertencentes ao mesmo
sexo.” – Taísa Ribeiro Fernandes.1

1. CONCEITUAÇÃO
Terminada a contextualização histórica no que tange ao entendimento
que a humanidade deu à identidade homossexual ao longo dos tempos,
podemos agora conceituar a homossexualidade e diferenciar os dois
conceitos. Por mais que esses temas mereçam ser tratados em, pelo menos,
um livro próprio, que tenha preferencialmente um enfoque sociológico,
histórico e antropológico, é fundamental que o leitor tenha uma correta
compreensão desses conceitos (ainda que de forma sintética) para que possa
analisar corretamente o enfoque jurídico do tema tratado nesta obra.
A homossexualidade caracteriza-se pelo sentimento de amor
romântico2 por uma pessoa do mesmo sexo. Tecnicamente, pode ser
definida como a atração erótico-afetiva que se sente por uma pessoa do
mesmo sexo3. Da mesma forma, a heterossexualidade caracteriza-se pelo
sentimento de amor romântico que se sente por pessoas de sexo diverso,
sendo assim, igualmente, a atração erótico-afetiva que se sente por uma
pessoa de sexo diverso.
Por mais que isso seja dizer o óbvio, é importante ressaltar que o
homossexual é aquele que ama romanticamente uma pessoa do mesmo
sexo. Esse é o único ponto relevante no que tange à definição da orientação
sexual da pessoa: se amar apenas pessoas do mesmo sexo, será
homossexual; se amar apenas pessoas do sexo oposto, será heterossexual; se
amar pessoas de ambos os sexos (ainda que tenha um maior apelo por um
deles), será bissexual. Isso é a orientação sexual, que foi bem definida pelos
Princípios de Yogyakarta como a “capacidade de cada pessoa de ter uma
profunda atração emocional, afetiva ou sexual por indivíduos de gênero
diferente, do mesmo gênero ou de mais de um gênero, assim como ter
relações íntimas e sexuais com essas pessoas”4.
Poder-se-ia perguntar: mas o que é amor? O amor é um afeto
profundo5, podendo ser um amor fraterno ou amor romântico, cujas
diferenças são notórias.
No que tange à questão terminológica, foram cunhados os termos
homoerotismo, homoafetividade e homoessência como forma de se retirar a
carga pejorativa existente no termo homossexualismo6-7.
Embora considere o termo homoessência perfeito para seu propósito de
apontar que o amor por pessoas do mesmo sexo é algo da essência humana,
utilizarei basicamente o termo homoafetividade, que realmente descreve
com igual perfeição aquilo que se quer aqui demonstrar8: que as relações
entre pessoas do mesmo sexo são pautadas pelo amor familiar, ou seja, pelo
amor romântico que vise a uma comunhão plena de vida e interesses, de
forma pública, contínua e duradoura (conforme será pormenorizadamente
demonstrado).
Note-se, ainda, que o homossexual não tem nenhuma relação com o
transexual. Transexual é a pessoa que sofre dissociação entre seu sexo físico
e seu sexo psíquico – a pessoa tem a convicção de que nasceu no corpo
errado. É o homem que se vê como mulher, ou a mulher que se vê como
homem. Em geral, a pessoa deseja passar por uma cirurgia de adequação de
seu sexo físico ao seu sexo psíquico para acabar com a angústia de acreditar
que nasceu no corpo errado.
O homossexual, por sua vez, é uma pessoa que não tem nenhum
problema com seu sexo biológico, ou seja, que não sofre dissociação entre
seu sexo físico e seu sexo psíquico: é um homem que se entende como
homem e ama outros homens, assim como a mulher que se entende como
mulher e ama outras mulheres. Em suma, é uma pessoa que ama pessoas do
mesmo sexo sem ter nenhum problema com seu próprio sexo biológico.
Encerrada a questão sobre a homossexualidade, tratemos agora da
identidade sexual. A identidade sexual é o conjunto de características
atribuídas à pessoa em decorrência de sua sexualidade específica9. Ou seja,
compõe a variedade de pensamentos e atitudes que se espera da pessoa que
se define como homo, hétero ou bissexual em função de sua sexualidade.
Em outras palavras, é o conjunto de características que se consideram
inerentes à sexualidade – seja ela homo, hétero ou bissexual. Trata-se de um
conceito vago e relativo, especialmente no tocante à identidade
homossexual, em virtude da ignorância da maioria das pessoas sobre o que
verdadeiramente é a homossexualidade. Isso faz surgirem diversos
equívocos, que seguem abaixo desmistificados.
Muitos veem o homossexual (especialmente o masculino) como
alguém excessivamente preocupado com sua sexualidade, ou seja, como
“promíscuo” ou “devasso”. Na verdade, o homossexual em nada difere do
heterossexual no que tange aos desejos sexuais (além, é claro, do objeto de
desejo, se homem ou mulher) – o homem gay tem a mesma libido de um
homem hétero (o mesmo valendo para as mulheres). Primeiramente, deve-
se apontar que promiscuidade não é exclusividade de homossexuais e nem
mesmo mais presente na homossexualidade. Inúmeros heterossexuais
também são promíscuos (inclusive, a história jurisprudencial do
concubinato adulterino – as traições nos casamentos – serve como prova
cabal disso). Ademais, o que os heterossexuais em geral ignoram é todo um
contexto que torna o homossexual alguém extremamente reprimido
sexualmente, o que o faz buscar ambientes onde possa namorar, onde possa
simplesmente beijar seu(sua) namorado(a) sem sofrer preconceitos (em
geral, boates destinadas ao público LGBT10).
Imagine o leitor heterossexual a vivência num contexto no qual não
pudesse nem ao menos se declarar amorosamente a quem gosta por medo
de preconceito e de violência física e psicológica, na família e na sociedade.
Imagine passar todo o final de sua infância11 e sua adolescência com medo
de assumir que gosta de pessoas do sexo oposto, pensando cautelosamente
no que falar e no que deixar de falar para não passar a ideia de que é
heterossexual, não por achar que a heterossexualidade seria “errada”, mas
por simples medo de sofrer com o preconceito social. Pois bem, é por essa
situação que passa o homossexual: tem medo de se assumir enquanto
homossexual pelo medo do preconceito homofóbico lamentavelmente
existente em nossa sociedade. Esse contexto, que é parte integrante de todos
os homossexuais do mundo (pelo menos na parte inicial de suas vidas), faz
que eles busquem locais onde possam namorar livremente, como qualquer
casal heterossexual namora. A diferença é que os heterossexuais podem
namorar em praças públicas, restaurantes em geral, na faculdade, na escola
etc. sem nenhum embaraço, ao passo que os homossexuais não têm essa
liberdade pela repressão que sofreriam em muitos lugares.
Outro equívoco é o de achar que a homossexualidade seria “errada”
pelo simples fato de muitos homossexuais não se aceitarem e inclusive
acharem que seriam “pecadores” ou algo do gênero pelo simples fato de
amarem pessoas do mesmo sexo. Não há nada de errado no simples fato de
ser homossexual, mas, em decorrência da forte carga de preconceito
homofóbico que se encontra enraizado em nossa cultura e que
cotidianamente é difundido por nossa sociedade machista e heterossexista,
muitos homossexuais acabam internalizando a homofobia (preconceito
internalizado), passando assim eles mesmos a ter preconceito contra outros
homossexuais, especialmente contra os assumidos (assim como ocorre com
mulheres machistas e negros racistas).
O leitor certamente tem uma noção, ainda que inconsciente, do que se
acabou de dizer: a todo momento a mídia e a sociedade em geral pregam,
indiretamente, a heterossexualidade como a única sexualidade “aceitável”.
Isso pode ser percebido pela ausência de qualquer publicidade de massa
voltada ao público homossexual: mesmo porque, quando alguma empresa
faz esse tipo de publicidade, é atacada pelos setores conservadores da
sociedade, que dizem que a homossexualidade seria algo “contra a moral e
os bons costumes”... Um exemplo que merece ser citado ocorreu em abril
de 2006, quando a empresa DKT Brasil elaborou diversos outdoors
difundindo um preservativo com a marca Affair, voltada para o público
homossexual. O cartaz mostrava dois homens em um quase beijo e continha
a palavra: Liberdade. Houve imediata campanha homofóbica pelos setores
conservadores, que apresentaram queixas ao CONAR (Conselho de
Autorregulamentação Publicitária) contra tal publicidade. Em razão disso, o
CONAR abriu uma notificação contra o anúncio, para investigar uma
suposta ofensa à “ética na propaganda” (sic). Nesse sentido, após alguns
dias, o CONAR proferiu uma “liminar” (em processo administrativo, não
vinculativa), determinando a retirada dos outdoors sob a justificativa de
preservação da respeitabilidade12... Em seguida à retirada dos outdoors, a
DKT Brasil colocou nos locais onde estavam eles afixados outros com a
seguinte frase: “O amor não deveria incomodar”.
Esse singelo exemplo demonstra como é grande a repressão social que
sofrem os homossexuais. Ora, há inúmeros outdoors nos quais um homem
está beijando uma mulher (inclusive em posições insinuantes) e nunca
houve nenhuma reação contra eles (ao menos por parte das pessoas em
geral). Há claramente dois pesos e duas medidas quando se considera um
ato homoafetivo e um ato heteroafetivo idênticos. De forma velada, a
sociedade deixa claro que só admite a heterossexualidade, justamente por
reprimir ao máximo qualquer veiculação da homossexualidade. É isso o que
faz que muitos homossexuais acabem pensando que a homossexualidade
seria “errada” – contudo, são eles, juntamente com os homofóbicos, os que
estão errados.
Feita a digressão exemplificativa, voltemos ao tema da identidade
homossexual. Nos dias de hoje, embora não seja possível qualificar todos os
homossexuais dentro de um conjunto imutável de características, pode-se
dizer que a identidade homossexual caracteriza-se pela aceitação por parte
do homossexual do fato de que ele ama pessoas do mesmo sexo e faz parte
de uma minoria estigmatizada alvo de preconceito e discriminação pelo
simples fato de ter a sexualidade homoafetiva13. Ademais, deve supor um
sentimento de indignação em razão dessa negativa de direitos, em
decorrência da arbitrariedade de tal fato, justamente por não haver nenhum
motivo plausível para se condenar uma pessoa pelo simples fato de ela não
ser heterossexual, uma vez que o homossexual é tão digno e tão humano
como qualquer heterossexual. Esses são os únicos elementos comuns entre
todos os homossexuais – a negativa de direitos quando efetivamente vivem
uma relação amorosa com uma pessoa do mesmo sexo e a indignação que
isso deve gerar.
Uma nota importante: não se pode confundir orientação sexual com
identidade sexual: orientação sexual refere-se ao sexo para o qual sentimos
amor e desejo, ao passo que a identidade sexual refere-se ao fato de assumir
plenamente esta orientação sexual14. Logo, quem fala em
homossexualidades, heterossexualidades ou bissexualidades acaba por
misturar os conceitos de orientação sexual e de identidade sexual, pois o
plural quer significar as várias formas em que diferentes pessoas podem
viver sua homossexualidade, heterossexualidade ou bissexualidade.
Homossexualidade é a atração erótico-afetiva por pessoas do mesmo sexo;
heterossexualidade é a atração erótico-afetiva por pessoas de sexo diverso;
e bissexualidade é a atração erótico-afetiva por pessoas de ambos os sexos.
Práticas e formas de exercício da sexualidade podem variar, mas a
orientação sexual permanece a mesma.
Para finalizar o tópico, cumpre reiterar algo que já foi exposto em nota
de rodapé supra: o significado de homofobia. Como mencionado, por vezes,
críticos da militância que pleiteia o reconhecimento do direito dos
homossexuais aduzem que o termo homofobia seria tecnicamente
equivocado, na medida em que fobia designaria pavor/aversão de
homossexuais, o que nem sempre seria o caso. Independentemente da
origem etimológica da palavra, esta claramente evoluiu para significar,
atualmente, preconceito ou discriminação contra homossexuais, que, aliás,
sempre estiveram presentes no pavor e/ou na aversão da origem
etimológica. Como bem diz Daniel Borrillo, em sentido estrito, a
homofobia é a atitude de hostilidade contra as pessoas homossexuais,
bissexuais, travestis e transexuais (homofobia específica), ao passo que, em
sentido amplo, é a atitude de hostilidade contra todos aqueles que, mesmo
heterossexuais, não são conformes às normas sexuais, ensejando a
discriminação àqueles que apresentam ou têm a si atribuídas determinadas
qualidades ou defeitos imputados ao gênero oposto, de sorte que esta
homofobia geral visa denunciar os desvios e deslizes do masculino em
direção ao feminino e vice-versa, para tentar coagir tais pessoas a agirem
em conformidade com o gênero atribuído socialmente a pessoas de seu sexo
biológico15. A homofobia torna-se, assim, a guardiã das fronteiras tanto
sexuais (hétero/homo), quanto de gênero (masculino/feminino), sendo
evidenciada a diferença homo/hétero com o intuito de ordenar um regime
das sexualidades em que os comportamentos heterossexuais são os únicos
considerados merecedores da qualificação de modelo social e de referência
em termos de sexualidade normal/aceitável16. Em suma, este é o significado
que se dá, no presente trabalho, a homofobia: preconceito ou discriminação
contra homossexuais17.
Feitas essas considerações, pode-se adentrar em outros pontos cruciais
na compreensão da homossexualidade.

1.1 Homoafetividade/heteroafetividade. Pertinência terminológica


Cumpre referir, aqui, a pertinência do uso dos termos
homoafetividade/heteroafetividade, que receberam algumas críticas. A
primeira foi a de que estes termos seriam inadequados para definir uma
relação entre duas pessoas porque um filho homem sente afeto por seu pai e
uma filha mulher afeto por sua mãe, existindo, assim, uma relação
“homoafetiva”; neste caso, sem, contudo, existir atração erótico-afetiva pelo
pai ou pela mãe, assim, melhor seria a expressão “relação
homossexual/heterossexual” para definir as relações respectivas. Contudo, a
crítica faz uma leitura puramente literal do termo, ignorando a obviedade
segundo a qual a referência a uma união/relação como
homoafetiva/heteroafetiva foi cunhada por Maria Berenice Dias com o
evidente intuito de destacar o afeto romântico, não o afeto fraterno que se
sente por familiares. Da mesma forma que o Direito deve ser interpretado
de forma inteligente a fim de que a lei não resulte em absurdo (consoante
célebre máxima de Maximiliano), o mesmo deve ser feito com as palavras:
as palavras devem ser interpretadas de forma inteligente, de acordo com as
razões de sua criação, a fim de que não se tenha uma compreensão absurda
de seu significado.
Outras críticas também foram feitas.
Afirmou-se que definir uma pessoa como homoafetiva/heteroafetiva
seria uma forma de valorizá-la apenas se ela tivesse o intuito de manter uma
relação conjugal/estável com outra, menosprezando e deixando à margem
do Direito as pessoas que se encontrassem em relações sexuais
casuais/esporádicas. Já me foi afirmado, para isto justificar, que não se pode
vincular direitos humanos ao afeto, à existência de afetividade, pois isto não
abrangeria o direito ao livre exercício da sexualidade como um todo. Sobre
o tema, primeiramente, cumpre destacar que os termos em questão foram
cunhados por Maria Berenice Dias para descrever uma união/relação
romântico-afetiva (e não fraterno-afetiva), não para descrever pessoas como
homoafetivas/heteroafetivas. De qualquer forma, este autor por vezes
descreveu pessoas e mesmo a orientação sexual como
homoafetiva(s)/heteroafetiva(s), o que foi, também, largamente feito pelo
Ministro Ayres Britto em seu voto no julgamento da ADPF 132 e da ADIn
4.277 (bem como por outras pessoas). Cabe aqui analisar a questão.
Eu particularmente não vejo problema em designar pessoas como
heteroafetivas/homoafetivas porque, da mesma forma que os termos
homossexualidade/heterossexualidade têm implícitos o afeto romântico que
as pessoas sentem em suas relações conjugais a despeito de o foco das
palavras ser na sexualidade como um todo, (muitas vezes entendida
restritivamente como relativa ao desejo sexual das mesmas), os termos
homoafetividade/heteroafetividade têm pressuposta a sexualidade da pessoa
como um todo; ou seja, da mesma forma que os termos
homossexualidade/heterossexualidade não são excludentes do afeto
romântico/conjugal da pessoa apenas por seu foco terminológico na
sexualidade, os termos homoafetividade/heteroafetividade não são
excludentes da sexualidade como um todo apenas por seu foco
terminológico na afetividade romântica da pessoa (a afetividade
romântica/conjugal pressupõe a sexualidade). Afigura-se incoerente adotar
uma benevolência interpretativa para dizer que os termos
homossexualidade/heterossexualidade não excluiriam a afetividade
romântica/conjugal da pessoa e uma má-vontade interpretativa em relação
aos termos homoafetividade/heteroafetividade para se deixar de reconhecer
que estes não excluem a sexualidade como um todo da pessoa. A meu ver, a
denominação homoafetivas/heteroafetivas apenas destaca que as pessoas
têm a potencialidade de sentir atração romântica/conjugal por outras do
mesmo sexo (pessoas homoafetivas) ou do sexo oposto (pessoas
heteroafetivas), não obstante o fato de elas poderem manter relações sexuais
casuais, sem sentir tal afeto romântico/conjugal. Logo, não há nada de
excludente ou, pior, de “higienista” na definição das pessoas como
heteroafetivas/homoafetivas – somente uma profunda má-vontade com os
referidos termos pode gerar tais compreensões, sendo descabidas as
respectivas críticas.
De qualquer forma, abstraída essa discussão sobre ser ou não adequado
chamar as pessoas de heteroafetivas/homoafetivas, fato é que o debate é
completamente outro quando se define as relações/uniões como
homoafetivas/heteroafetivas. Com efeito, a referida terminologia foi criada
para justificar a inclusão das uniões entre pessoas do mesmo sexo no
âmbito de proteção dos regimes jurídicos da união estável e do casamento
civil, com o intuito de se destacar que as uniões entre pessoas do mesmo
sexo são pautadas no mesmo afeto romântico que justifica as uniões entre
pessoas de sexos opostos. Isso foi feito por conta do preconceito social que
afirmava que as uniões entre pessoas do mesmo sexo seriam motivadas por
mera luxúria, por puro desejo erótico e não pelo sentimento de amor
sublime que une duas pessoas de sexos opostos Ademais, as uniões
conjugais são necessariamente pautadas pelo afeto romântico e, consoante a
regulamentação do tema da união estável no Brasil e das uniões de fato
mundo afora, é preciso que haja continuidade e durabilidade da união, bem
como que ela seja feita de forma pública e em uma comunhão plena de vida
e interesses (ou seja, com o intuito de constituir família) – e a união estável
nada mais é do que o casamento sem papel passado, ou seja, uma união
conjugal idêntica ou análoga ao casamento civil, cuja única “diferença” é a
inexistência de sua formalização perante o Estado18, em que o casamento
civil também pressupõe uma união romântico-afetiva pautada na comunhão
plena de vida e interesses, de forma pública, contínua e duradoura.
Anote-se que homoafetividade/heteroafetividade são termos que se
referem a homoconjugalidade/heteroconjugalidade, no sentido da união
conjugal com uma pessoa do mesmo sexo ou de sexo oposto,
respectivamente19.
Nesse sentido, descabe invocar o direito a atos sexuais casuais para
criticar a expressão união heteroafetiva/homoafetiva. Com efeito, o direito a
atos sexuais casuais encontra-se no âmbito de proteção do direito
fundamental à liberdade, que garante a todos o direito de fazer o que quiser,
desde que não se prejudique terceiros e/ou a si próprios no que tange a
direitos considerados indisponíveis pelo ordenamento jurídico, ao passo que
os direitos à união estável e ao casamento civil encontram-se no âmbito de
proteção do direito fundamental à constituição de uma família conjugal, e
não da relação sexual casual. Direito à liberdade em um caso, direito à
constituição de uma família conjugal em outro. Logo, não se está limitando
a abrangência de direitos humanos por vinculá-los unicamente ao afeto,
desconsiderando a sexualidade como um todo: o direito ao livre exercício
da sexualidade encontra-se abrangido pelo direito à liberdade, ao passo que
o afeto é condição indispensável para a configuração da família. Para atos
sexuais casuais, invoque-se o direito à liberdade, mas para a caracterização
de uma família, o afeto é indispensável. A definição de família conjugal
supõe necessariamente algo maior que uma relação sexual casual, a relação
de duas pessoas que só se encontram para manter relações sexuais ou uma
relação que, apesar de afetiva, não tem a continuidade, durabilidade e
estabilidade de uma união conjugal. A família conjugal supõe
necessariamente uma união pautada pelo amor romântico/conjugal
relacionado a comunhão plena de vida e interesses, de forma pública,
continua e duradoura. Essa a sua noção basilar.
Isso, inclusive, foi amplamente afirmado pelo Supremo Tribunal
Federal no julgamento da ADPF 132 e da ADI 4.277, que reconheceu a
união homoafetiva como família conjugal em igualdade de condições com a
família conjugal heteroafetiva. Vejamos trechos dos votos dos Ministros
relativamente ao tema – não por “argumento de autoridade”, de forma
alguma, mas pela extrema pertinência de seus argumentos sobre o conceito
de família (aparentemente ignorado pelos críticos aqui censurados). Embora
o voto do Ministro Ayres Britto tenha sido o que mais se alongou na
descrição da família, cumpre iniciar com o voto do Ministro Fux, que bem
sintetizou o que aqui se pretende expor (deixando o voto do Ministro Ayres
Britto para o final, como forma de fechar com chave de ouro o que aqui se
pretende expor).
Para o Ministro Luiz Fux, “O que faz uma família é, sobretudo, o amor
– não a mera afeição entre os indivíduos, mas o verdadeiro amor familiar,
que estabelece relações de afeto, assistência e suporte recíprocos entre os
integrantes do grupo. O que faz uma família é a comunhão, a existência de
um projeto coletivo, permanente e duradouro de vida em comum. O que faz
uma família é a identidade, a certeza de seus integrantes quanto à existência
de um vínculo inquebrantável que os une e que os identifica uns perante os
outros e cada um deles perante a sociedade. Presentes esses três requisitos,
tem-se uma família, incidindo, com isso, a respectiva proteção
constitucional”20. Nesse sentido, a pertinente fala do Ministro Celso de
Mello, para quem “torna-se indiscutível reconhecer que o novo paradigma,
no plano das relações familiares, após o advento da Constituição Federal de
1988, para fins de estabelecimento de direitos/deveres decorrentes do
vínculo familiar, consolidou-se na existência e no reconhecimento do
afeto”21, donde, como bem dito pelo Ministro Lewandowski sobre o ponto:
“a ninguém é dado ignorar – ouso dizer – que estão surgindo, entre nós e
em diversos países do mundo, ao lado da tradicional família patriarcal, de
base patrimonial e constituída, predominantemente, para fins de procriação,
outras formas de convivência familiar, fundadas no afeto, e nas quais se
valoriza, de forma particular, a busca da felicidade, o bem-estar, o respeito
e o desenvolvimento pessoal de seus integrantes”22.
Vejamos, agora, as considerações do Ministro Marco Aurélio: “o
reconhecimento da entidade familiar depende apenas da opção livre e
responsável de constituição de vida comum para promover a dignidade dos
partícipes, regida pelo afeto existente entre eles”23, restando assim
consagrado o Direito “das Famílias”, “isto é, das famílias plurais, e não
somente da família matrimonial, resultante do casamento. Em detrimento
do patrimônio, elegeram-se o amor, o carinho e a afetividade entre os
membros como elementos centrais de caracterização da entidade familiar”,
razão pela qual “Alterou-se a visão tradicional sobre a família, que deixa de
servir a fins meramente patrimoniais e passa a existir para que os
respectivos membros possam ter uma vida plena comum”, deixando de se
considerar o conceito de família enquanto “instituição-fim em si mesmo”,
para nela identificar a qualidade de instrumento a serviço da dignidade de
cada um de seus membros, em que “Se o reconhecimento da entidade
familiar depende apenas da opção livre e responsável de constituição de
vida comum para promover a dignidade dos partícipes, regida pelo afeto
existente entre eles, então não parece haver dúvida de que a Constituição
Federal de 1988 permite seja a união homoafetiva admitida como tal”.
Vejamos, agora, a paradigmática manifestação do Ministro Ayres Britto
acerca da compreensão do que constitui uma família conjugal. O Ministro
descreveu o matrimônio como “um pacto afetivo que se deseja tão
publicamente conhecido que celebrado ante o juiz, ou o sacerdote
juridicamente habilitado, e sob o testemunho igualmente formal de pessoas
da sociedade. Logo, um pacto formalmente predisposto à perdurabilidade e
deflagrador de tão conhecidos quanto inquestionáveis efeitos jurídicos de
monta”24; descreveu a união estável como união interpessoal “que a vida
uniu pelo afeto”25; afirmou o reconhecimento da “família em seu coloquial
ou proverbial significado de núcleo doméstico, pouco importando se formal
ou informalmente constituída, ou se integrada por casais heterossexuais ou
por pessoas assumidamente homoafetivas. Logo, família como fato cultural
e espiritual ao mesmo tempo (não necessariamente como fato biológico)”26
em “valores que não se hierarquizam em função da heteroafetividade ou da
homoafetividade das pessoas”27; reconheceu que “a família é uma
complexa instituição social em sentido subjetivo. Logo, um aparelho, uma
entidade, um organismo, uma estrutura das mais permanentes relações
intersubjetivas (...) no sentido de centro subjetivado da mais próxima,
íntima, natural, imediata, carinhosa, confiável e prolongada forma de
agregação humana. (...) Ambiente primaz, acresça-se, de uma convivência
empiricamente instaurada por iniciativa de pessoas que se veem tomadas
da mais qualificada das empatias, porque envolta numa atmosfera de
afetividade, aconchego habitacional, concreta admiração ético-espiritual e
propósito de felicidade tão emparceiradamente permeado da franca
possibilidade de extensão desse estado personalizado de coisas a outros
membros desse mesmo núcleo doméstico. (...) esse núcleo familiar é o
principal locus de concreção dos direitos fundamentais que a própria
Constituição designa por ‘intimidade e vida privada’ (inciso X do art. 5.º),
além de, já numa dimensão de moradia, se constituir no asilo ‘inviolável do
indivíduo’, consoante dicção do inciso XI desse mesmo artigo
constitucional. O que responde pela transformação de anônimas casas em
personalizados lares, sem o que não se tem um igualmente personalizado
pedaço de chão no mundo. E sendo assim a mais natural das coletividades
humanas ou o apogeu da integração comunitária, a família teria mesmo que
receber a mais dilatada conceituação jurídica e a mais extensa rede de
proteção constitucional. Em rigor, uma palavra-gênero, insuscetível de
antecipado fechamento conceitual das espécies em que pode culturalmente
se desdobrar”28, afirmou também que “a família é, por natureza ou no
plano dos fatos, vocacionadamente amorosa, parental e protetora dos
respectivos membros, constituindo-se, no espaço ideal das mais
duradouras, afetivas, solidárias ou espiritualizadas relações humanas de
índole privada. O que a credencia como base da sociedade, pois também a
sociedade se deseja assim estável, afetiva, solidária e espiritualmente
estruturada (não sendo por outra razão que Rui Barbosa definia a família
como ‘a Pátria amplificada’), que termina sendo o alcance de uma forma
superior de vida coletiva, porque especialmente inclinada para o
crescimento espiritual dos respectivos integrantes. Integrantes humanos em
concreto estado de comunhão de interesses, valores e consciência da
partilha de um mesmo destino histórico. Vida em comunidade, portanto,
sabido que comunidade vem de ‘comum unidade’. E como toda
comunidade, tanto a família como a sociedade civil são usinas de
comportamentos assecuratórios da sobrevivência, equilíbrio e evolução do
Todo e de cada uma de suas partes. Espécie de locomotiva social ou
cadinho em que se tempera o próprio caráter dos seus individualizados
membros e se chega à serena compreensão de que ali é verdadeiramente o
espaço do mais entranhado afeto e desatada cooperação. Afinal, é no
regaço da família que desabrocham com muito mais viço as virtudes
subjetivas da tolerância, sacrifício e renúncia, adensadas por um tipo de
compreensão que certamente esteve presente na proposição spinozista de
que, ‘Nas coisas ditas humanas, não há o que crucificar ou ridicularizar. Há
só o que compreender’” ao passo que “a Constituição Federal não faz a
menor diferenciação entre a família formalmente constituída e aquela
existente ao rés dos fatos. Como também não distingue entre a família que
se forma por sujeitos heteroafetivos e a que se constitui por pessoas de
inclinação homoafetiva”29.
Nesse contexto, fica evidente a pertinência terminológica das
expressões união homoafetiva e união heteroafetiva, bem como das
expressões família conjugal heteroafetiva e família conjugal homoafetiva,
que expressam com muito mais felicidade o elemento central da família
contemporânea, que é o afeto romântico/conjugal, do que as expressões
“união homossexual/heterossexual” ou “família conjugal
heterossexual/homossexual”. Não estou dizendo que a expressão “família
conjugal homossexual/heterossexual” seria errada, pois não adoto a má-
vontade interpretativa relativamente às palavras
“homossexual/heterossexual” claramente utilizada pelos críticos aqui
refutados acerca das palavras “homoafetivo/heteroafetivo”. O que digo é
que há maior pertinência das expressões homoafetividade/heteroafetividade
para explicitar o conceito de família em relação às expressões
“homossexualidade/heterossexualidade”, pois se é certo (como é) que o
foco das palavras na sexualidade não exclui a afetividade
romântica/conjugal (pois esta é abrangida pela sexualidade), é igualmente
certo que o foco das palavras na afetividade deixa ainda mais intuitivo ao
leitor que o centro da família contemporânea é o afeto.
Claro que, por uma questão de coerência com a origem das palavras
heteroafetividade/homoafetividade (criadas para destacar o afeto romântico,
não fraterno), não parece adequado chamar-se uma família fraterna
(pautada no afeto fraterno) de homoafetiva/heteroafetiva, pois isto só
serviria para trazer confusões. Logo, embora também constituam famílias as
uniões públicas, contínuas e duradouras pautadas em uma comunhão plena
de vida e interesses motivada pelo afeto fraterno30 e não pelo afeto
romântico/conjugal, elas não devem ser chamadas de famílias
homoafetivas/heteroafetivas, pois essas expressões destinam-se a explicitar
as famílias conjugais, não as famílias fraternas.
Lembre-se, com Luc Ferry, que “O amor é o novo grande princípio da
nossa existência”, sendo que, no que tange à família conjugal, vivemos uma
era na qual as pessoas se escolhem fundamentalmente, senão
exclusivamente, por amor31 (abstraídos “casamentos por conveniência”, os
quais não visam formar uma família conjugal, mas apenas auferir os
benefícios dela, razão pela qual casos como este devem ser entendidos
como exceções, sem que isso desconfigure o fato de que, em regra, as
pessoas atualmente se casam por amor). É nesse contexto que os termos
homoafetividade/heteroafetividade devem ser compreendidos: não como
limitantes da sexualidade humana ao afeto, mas como consagradores da
noção de que a família contemporânea é caracterizada pela afetividade (no
mínimo enquanto dever ou conduta de cuidado e solidariedade para com o
outro familiar). Afinal, como bem dito pelo juiz Antônio Mônaco Neto, da
Comarca de Salvador/BA em decisão de 12.04.12, “a base da constituição
da família deixou de ser a procriação e a geração de filhos, para se
concentrar na troca de afeto e de amor”, compreensão esta que constitui o
entendimento contemporâneo sobre a importância da afetividade nas
relações familiares aliada à publicidade, durabilidade, continuidade e
intenção de constituir família [mediante comunhão plena de vida e
interesses]32.
Em suma, ao menos a utilização das expressões união
homoafetiva/heteroafetiva, família conjugal homoafetiva/heteroafetiva
afiguram-se pertinentes e aptas a demonstrar aquilo a que se destinam, a
saber, que estamos diante de uma família conjugal, em que as críticas não
merecem acolhida.

2. A BÍBLIA E A HOMOSSEXUALIDADE

2.1 O que a Bíblia realmente diz sobre a homossexualidade?


Um aspecto que as Igrejas em geral jamais divulgam é o de que não há
consenso entre os estudiosos acerca daquilo que a Bíblia realmente diz
sobre a homossexualidade. Muito pelo contrário, há muita controvérsia
quanto a esse tema. Em atenção a esta controvérsia, o padre Daniel A.
Helminiak, em obra homônima a este subtítulo, traz à baila todos os
entendimentos que comprovam que a Bíblia não traz, em seu corpo,
nenhuma condenação à homossexualidade per si. Ao contrário, a Bíblia não
se refere à homossexualidade isoladamente considerada, mas apenas
reprova algumas condutas nas quais a homossexualidade está envolvida,
apesar de não ser o foco da condenação33.
O leitor que não estudou o tema pode estranhar esta afirmação,
especialmente porque muitos padres/pastores bradam, em alto e bom som,
que a palavra de Deus seria contrária à homossexualidade, considerando-a,
portanto, um pecado. Contudo, para entender o que aqui se defende (que a
homossexualidade não constitui nem sequer um pecado), deve ser,
primeiramente, ressaltada a grande divergência que há no que tange à
interpretação da Bíblia. Têm-se aqui duas concepções: a interpretação
literal e a interpretação histórico-crítica da Bíblia, sendo que a primeira
prega que não há interpretação do texto bíblico, mas sua mera leitura e
compreensão gramatical, ao passo que a segunda afirma que o significado
do texto decorre do entendimento daquele que o escreveu, donde é
necessário compreender o contexto histórico do autor para a correta
compreensão de sua mensagem34.
Elucidada essa questão da divergência de interpretação, é seguro
afirmar que são os fundamentalistas aqueles que condenam a
homossexualidade com base na Bíblia, uma vez que a leem a partir do
entendimento que damos às palavras nos dias atuais, não se importando
com a significação que tinham na época em que foram proferidas/escritas.
Todavia, é equivocada tal espécie de interpretação (literal), seja em relação
à Bíblia seja em relação a qualquer outro documento. Deve-se entender
qualquer texto com base no contexto histórico que o escritor em análise
vivenciava, e não naquilo que o leitor/intérprete entende em relação à
situação concreta ali descrita. Cabe destacar que, com o passar do tempo,
mesmo o significado das palavras muda, palavras deixam de ser usadas, são
substituídas por outras e assim por diante, donde adotar-se uma
interpretação literal com base no entendimento que se dá hoje às palavras
pode levar (e geralmente leva) a equívocos de interpretação, uma vez que se
terá uma ideia diferente da situação realmente descrita pelo autor daquela
época. Ou seja, deve-se entender aquilo que o escritor efetivamente quis
dizer com suas palavras, não aquilo que o leitor acha que ele quis dizer35.
Assim, é equivocada a interpretação literal da Bíblia, assim como a de
qualquer documento, sendo correta a interpretação histórico-crítica, que
analisa o contexto do escritor do texto sob análise a partir dos costumes e
conceitos de sua época, o que leva a uma interpretação mais precisa do que
a literal.
Cabe, agora, analisar os argumentos usualmente utilizados por autores
religiosos para condenar a homoafetividade. Os trechos bíblicos
normalmente citados como condenatórios da homossexualidade são os que
se referem a Sodoma e Gomorra, à abominação do Levítico, à Epístola de
Paulo aos Romanos e os referentes a 1 Coríntios e 1 Timóteo. Todavia,
conforme citado, esses trechos trazem condenações outras que não a
homoafetividade em si, ou seja, condenam outras condutas, nas quais, por
acaso, a homossexualidade está envolvida.
No trecho de Sodoma e Gomorra, o que se condena é a falta de
hospitalidade e o abuso sexual cometido por seus cidadãos. Na história
bíblica, dois anjos (representados por figuras do sexo masculino), que se
encontram em longa viagem pelo deserto, chegam à noite em Sodoma e
conseguem hospedagem na casa de um cidadão (Lot), que tinha origem
estrangeira e sabia que eles eram anjos. Algum tempo depois, alguns
cidadãos (homens) da cidade batem à porta do hospedeiro e exigem
conhecer os visitantes. Temeroso em deixar seus hóspedes serem
conhecidos pelos cidadãos, o hospedeiro pede que os cidadãos
reconsiderem e inclusive oferece suas duas filhas virgens para serem
conhecidas em seu lugar, o que não é aceito. Quando os homens invadem a
casa, os dois anjos se revelam e cegam os invasores, deixando a cidade e
fazendo que a ira divina destrua o local. A questão aqui se encontra no
significado da palavra conhecer – na época, tinha ela um sentido sexual, de
conhecimento do corpo alheio. Assim, os intérpretes literais defendem que
o pecado aqui teria sido a simples homossexualidade dos cidadãos de
Sodoma, todavia se equivocam, uma vez que as condutas reprováveis destes
foram a falta de hospitalidade com relação a estranhos (pois os cidadãos,
além de conhecê-los, queriam expulsá-los da cidade, ao passo que o
deserto, que é extremamente quente durante o dia, é frio de forma
inversamente proporcional à noite) e quererem abusar sexualmente deles.
Sendo a sexualidade a questão aqui tratada, a ofensa aos padrões éticos
ocorreu pelo fato da intenção do abuso sexual e da ausência de
hospitalidade, e não do objeto sexual (se do mesmo ou de outro sexo).
É curioso notar que, nesse caso, os intérpretes literais da Bíblia adotam
uma leitura histórico-crítica do verbo conhecer, ao darem a ele o
significado que tinha na época de Sodoma e Gomorra (sentido este
inexistente nos dias atuais), ao mesmo tempo em que a interpretam de
forma literal quando analisam o contexto como um todo. Ou seja, eles
interpretam a Bíblia conforme seus interesses e preconceitos, não conforme
uma regra de interpretação36.
Por outro lado, cumpre ressaltar que o termo “sodomia” tem um
sentido consideravelmente diverso daquele amplamente utilizado há séculos
para se referir pejorativamente ao ato sexual homoafetivo. No início de sua
utilização, sodomia significava todo e qualquer ato sexual não procriativo;
com o passar do tempo, passou a significar qualquer ato sexual que não o
praticado da forma mais ortodoxa e com a única finalidade da procriação;
por fim, passou a ser usado praticamente como sinônimo de ato
homossexual masculino, o que é incorreto quando analisado o contexto da
criação da palavra37. Ou seja, como a homossexualidade se enquadra na
ideia de “ato sexual não procriativo”, então podia ela ser enquadrada nesse
conceito de “sodomia”. Contudo, é evidente que não era apenas a ela que o
criador desse termo se referia – qualquer ato sexual entre um homem e uma
mulher que não o mais tradicional era tido, inicialmente, como sodomia,
como libertinagem sexual, vedada pelos dogmas religiosos, e só julgavam
válido aquele que tivesse a finalidade exclusivamente procriativa e dentro
dos sagrados laços do matrimônio. Foi somente com o passar de séculos de
pregação homofóbica que se passou a usar esse termo exclusivamente para
se referir ao amor entre pessoas do sexo masculino, o que é, evidentemente,
equivocado, pois dito amor per si não pode ser tido como libertino, como
provam os inúmeros casais homoafetivos monogâmicos e estáveis hoje
existentes.
No segundo trecho bíblico citado, qual seja a abominação do Levítico,
a real questão aqui não é o comportamento homossexual em si, mas a
identidade judaica. Não era comum (ou pelo menos aceito) os judeus da
época relacionarem-se homoafetivamente: eles, equivocadamente,
consideravam todo e qualquer ato homossexual como “libertino”. Assim,
como eles consideravam a libertinagem como um ato “impuro”, passaram a
condenar a homossexualidade como uma “impureza” devido a esse erro
conceitual. Por outro lado, a prática homoafetiva era aceita por outros
povos, como o canaanita. Assim, considerando que a religião cristã começa
a partir do Novo Testamento (e o Levítico encontra-se no Antigo
Testamento), o Levítico vê a questão sob a ótica judaica, a partir da
definição dos atos “impuros”, donde o referido trecho vê a
homossexualidade como uma traição à identidade judaica, sendo essa a
razão da condenação a ela. Todavia, como homossexualidade não é
sinônimo de libertinagem (que era o real objeto da condenação em questão),
percebe-se que houve um equívoco conceitual dos judeus da época: se
soubessem que a homoafetividade é tão digna quanto a heteroafetividade,
não teriam criado essa condenação com relação a todo e qualquer
homossexual.
De qualquer forma, percebe-se que a homossexualidade em si não é
analisada neste trecho, somente a questão de se respeitar ou não os dogmas
de conduta judaicos da época (devendo-se ter em mente o citado erro
conceitual cometido pelos judeus)38.
No terceiro trecho, a Epístola de Paulo aos Romanos, as colocações
acerca da homossexualidade pressupõem a compreensão das lições do
Levítico, que não condenava a homossexualidade em si, mas uma traição à
identidade judaica e uma condenação à libertinagem, devido ao equívoco
supracitado. Ademais, como o Levítico colocava a homossexualidade como
uma “impureza” (classificação judaica), a Epístola de Paulo aos Romanos
denota justamente que a “impureza” não tinha significado algum em Cristo,
mesmo porque a questão da homossexualidade naquele trecho tratava
primordialmente da questão da identidade judaica, não da essência da
homoafetividade39.
Por fim, o obscuro termo grego “arsenokoitai”, encontrado em 1
Coríntios e 1 Timóteo, cuja interpretação é igualmente obscura e muito
divergente entre os estudiosos do tema, condena os abusos relacionados à
homossexualidade daquela época, quais sejam a exploração sexual e a
libertinagem (o que hoje também não é visto com bons olhos com relação à
heterossexualidade), mas não a questão da homoafetividade isoladamente
considerada40.
Ante a análise desses trechos, percebe-se que a Bíblia não condena a
homossexualidade em si: ela sequer analisa a conduta homoafetiva
isoladamente considerada. A Bíblia condena a libertinagem, a luxúria, a
prostituição e o abuso sexual, não a homoafetividade. Foi um erro
conceitual que ligou a homossexualidade àquelas práticas, donde, depois de
superado dito erro, percebe-se que a condenação bíblica não se direciona à
homoafetividade41-42.
Por fim, cabe destacar um trecho bíblico citado por Daniel A.
Helminiak que só vem a comprovar o quanto exposto, no sentido de que
reprovar o indivíduo unicamente por sua homossexualidade configura
preconceito daquele que isto defende: “Sei, estou convencido no Senhor
Jesus, de que nenhuma coisa é impura em si mesma; somente o é para quem
a considera impura – Romanos, 14:13-14”43.
Recomenda-se a leitura da obra do padre Daniel A. Helminiak para que
se tenha uma ideia mais ampla das discussões a respeito do tema (Bíblia e
homossexualidade), uma vez que o assunto foi aqui enfocado de maneira
apenas superficial, demonstrando apenas a fonte da interpretação do citado
autor a respeito do tema e suas conclusões, visto que a análise aprofundada
da questão foge dos limites do presente trabalho.
Permito-me, ainda, uma contribuição própria: como preceitos cristãos,
encontram-se os seguintes: Amai-vos uns aos outros; Não julgues e não
serás julgado; Perdoa e serás perdoado. Pois bem: esses três princípios
cristãos não permitem nenhuma condenação e agressão a homossexuais.
Sobre o amor ali citado, evidentemente não se trata de amor romântico ou
mesmo de amor fraterno, mas de tolerância, entendida como “tendência a
admitir, nos outros, maneiras de pensar, de agir e de sentir diferentes ou
mesmo diametralmente opostas às nossas”44. Sobre o tema, cabe citar o
entendimento de José Reinaldo de Lima Lopes45, ao tratar do pensamento
de Kant, para elucidar o tema: “Não é o amor da afeição que os cristãos
devem a seus inimigos, mas o amor universal que se diz respeito. Posso
respeitar um inimigo, como também um estranho, sem ter para com ele
nenhum sentimento de afeto em particular, seja ele irascível ou
concupiscível. O amor universal dos cristãos ficaria transformado em
respeito, a forma universal do amor divino, ‘caritas’, sem qualquer
intervenção do amor ‘eros’, ou mesmo do amor ‘philia’, o querer bem dos
amigos”.
Ainda segundo essa moralidade divina, o não julgues significa que não
cabe a ninguém julgar negativamente a terceiros por atitudes suas que não
prejudiquem outras pessoas, na medida em que somente a Deus cabe julgar.
Lembre-se aqui que as religiões como um todo (inclusive as de fé cristã)
pautam-se pelo livre-arbítrio, que garante às pessoas o direito de decidirem
como querem viver suas vidas – não que a homossexualidade seja uma
opção (não o é), mas caso assim (descabidamente) se entenda, então se deve
respeitar homossexuais, no mínimo, por força do livre-arbítrio que a todos
Deus garantiu, já que homossexuais não prejudicam ninguém por sua mera
homossexualidade e/ou por seus relacionamentos homoafetivos46.
Por fim, o perdoa e serás perdoado significa que, se apesar da
proibição anterior tiveres efetivamente julgado negativamente a um
terceiro, perdoe-o e serás perdoado por Deus pelo descabido julgamento
negativo.
Ademais, aqueles que condenam a homossexualidade com base na
Bíblia devem fazer-se as seguintes indagações:

Será, porém, este o ensinamento de Cristo? Será que o mesmo


Cristo redentor que abençoou os puros de espírito, que chamou a Si
todos os cansados e os oprimidos, que chamou todos sem exceção à
sua Igreja, pode apelar à segregação? Ao afastamento? À
marginalização? Serão mais dignos do amor de Deus todos os demais
fiéis que sendo homossexuais não o dizem? (...) Haverá pecado numa
relação de amor e entrega mútua entre duas pessoas que se amam? Se
Deus é amor, porque não poderá estar no meio do casal estável de
homossexuais?47

É evidente, portanto, a ausência de condenação da fé cristã à


homossexualidade, configurando equívoco interpretativo afirmação em
sentido contrário por parte de quem quer que seja – mesmo do chefe da
Igreja Católica.

3. “HOMOSSEXUALISMO” X HOMOSSEXUALIDADE:
ENTENDIMENTO MÉDICO-PSICOLÓGICO ACERCA DA
HOMOAFETIVIDADE
Com a evolução do pensamento humano ao longo dos tempos, saiu-se
de uma sociedade teocrática (em que os dogmas religiosos são tidos como
inquestionáveis e como verdades universais) para uma sociedade racional
(onde a razão pautada pela ética laica é o que determina se um
comportamento é certo ou errado), no sentido de que o ser humano
começou a procurar respostas científicas, e não religiosas, para explicar os
fenômenos humanos.
Com relação à homossexualidade, dita evolução de pensamento fez os
cientistas considerarem, a princípio, a homossexualidade não como um
“pecado”, como defendem muitas Igrejas, mas como uma “doença”,
partindo do pressuposto de que a heterossexualidade seria a conduta “sadia”
e a homossexualidade um “distúrbio”, um “desvio comportamental” etc.
Dessa ideia cunhou-se a palavra “homossexualismo”, uma vez que o sufixo
“-ismo” significa “doença”. Logo, a princípio a ciência médica classificou o
sentimento de amor por pessoas do mesmo sexo como uma doença que
deveria ser tratada.
Não é o escopo deste trabalho adentrar profundamente no mérito das
discussões médico-psicológicas a respeito da homossexualidade, contudo
pode-se afirmar que após séculos de estudos sobre o tema a ciência médica
mundial concluiu que o amor por indivíduos do mesmo sexo não constitui
uma “doença”, um “desvio psicológico”, uma “perversão” nem nada do
gênero. Tal é o entendimento esposado pela Organização Mundial da Saúde
(OMS), que, em sua Classificação Internacional de Doenças n. 10, em sua
revisão de 1993 (CID 10/1993), passou a considerar a homossexualidade
como uma das manifestações naturais da sexualidade humana, assim como
a heterossexualidade48. Dessa forma, deixada de lado a afirmação de que a
homoafetividade seria uma “doença” ou algo do gênero, passou-se então a
afirmar se tratar de conduta natural ao ser humano, assim como a
heteroafetividade.
Tal entendimento foi ratificado em nosso país por meio da Resolução
01/1999, do Conselho Federal de Psicologia, que afirmou, expressamente,
não se tratar a homossexualidade de doença, desvio psicológico, perversão
nem nada do gênero, proibindo os profissionais de psicologia de promover
qualquer tratamento de “cura” da homossexualidade, assim como reprová-la
perante seus pacientes ou participar de propagandas nesse sentido, pois não
se cura aquilo que não é patológico. Esse já era o entendimento da
Associação Americana de Psiquiatria desde a década de 197049.
Desta feita, ante o entendimento médico-psicológico de não se tratar a
homossexualidade de uma doença, desvio ou perversão psicológica, foi
substituído o sufixo “-ismo” pelo sufixo “-dade”, que significa “modo de
ser”. Assim, é tecnicamente incorreta a utilização da palavra
“homossexualismo”, sendo o correto o uso da palavra “homossexualidade”,
como se faz neste trabalho.
A propósito, é oportuno citar que aquilo que algumas Igrejas fazem no
sentido de tentar “curar” a homossexualidade das pessoas é, na verdade,
uma verdadeira violência psicológica, que apenas faz que os homossexuais
fiquem com um preconceito internalizado50 sobre si mesmos, tendo em
vista a arbitrária condenação religiosa que ditas instituições pregam de
forma contrária à homossexualidade51. Dessa forma, essas instituições
religiosas devem ser proibidas de propagar essas tentativas de “cura” da
homossexualidade, mesmo porque tal conduta configura crime de
charlatanismo, por visar “curar” uma orientação sexual que não é doença e,
consequentemente, não é passível de cura. Nem se avente que os pastores
religiosos e afins não estariam sujeitos a tal punição criminal pela liberdade
religiosa constitucionalmente consagrada, pois nenhum direito é absoluto.
A liberdade religiosa não pode ser usada como arma para difundir o
preconceito, o ódio e a intolerância. Nesse sentido, no conflito entre a
liberdade religiosa que difunde o preconceito e o direito dos cidadãos
homossexuais de terem sua honra preservada pela não difusão de mentiras
(pois é mentira que homossexuais poderiam simplesmente deixar de ser
homossexuais), obviamente prevalecerá o direito à honra dos cidadãos
homossexuais, pelo princípio da proporcionalidade largamente utilizado na
Jurisprudência do Supremo Tribunal Federal.
Nem se avente que apenas os homossexuais interessados em “mudar”
sua orientação sexual (o que é impossível) se submeteriam a essas
pseudoterapias. Afinal, a mera difusão dessa inverdade (“cura”) implica, em
muitos casos, internalização do preconceito, donde muitos homossexuais
acabam acreditando que são “doentes” ou “pecadores” e procuram essas
pseudoterapias na esperança de mudarem sua orientação sexual – o que
nunca ocorre. O que acontece é que o homossexual acaba reprimindo sua
homossexualidade após essas pseudoterapias: não deixa de amar pessoas do
mesmo sexo, apenas reprime esse sentimento. Contudo, a experiência
prática tem demonstrado que aqueles declarados como “curados” de sua
homossexualidade sempre têm “recaídas”, que se tornam cada vez mais
constantes com o passar do tempo, pois, como dito, eles não deixaram de
ser homossexuais, apenas reprimiram sua personalidade homossexual ante
as pregações homofóbicas dos pastores em questão, donde se percebe
claramente a verdadeira violência psicológica que ditas pseudoterapias
infligem aos homossexuais, em inequívoca afronta à dignidade humana
destes (o mesmo vale para os bissexuais que a elas se submetam).
Antes que o leitor eventualmente fique indignado com essa afirmação,
sob o fundamento de que a liberdade religiosa deveria ser respeitada mesmo
nesta hipótese, analise uma questão similar. Até meados do século XX,
havia religiosos que pregavam que os negros seriam pessoas menos dignas
do que os brancos. Chegavam ao absurdo de dizer que Deus teria colocado
brancos e negros em continentes diferentes com o intuito de não permitir
sua miscigenação52. Chegou-se a dizer, como fundamento da escravidão,
que os negros não seriam nem mesmo humanos, pois não teriam alma... O
maior exemplo desse ódio religioso contra negros foi o grupo Ku Klux
Klan, que difundia discursos de ódio (hate speeches) contra eles,
justificando-se com base na liberdade de expressão e também na liberdade
religiosa.
Hoje, se qualquer religioso pregar algo nesse sentido será
imediatamente preso por crime de racismo (ou injúria qualificada), pela
pregação do ódio e da intolerância contra negros. Por mais que a
discriminação por orientação sexual ainda não constitua crime específico53,
não se deve permitir a difusão do ódio e da intolerância contra
homossexuais em nenhuma hipótese, pois são pessoas merecedoras da
mesma dignidade e do mesmo tratamento que os heterossexuais. Aliás,
apesar de ainda não existir um crime específico oriundo da discriminação
por orientação sexual, tal atitude se enquadra, no mínimo, no crime de
injúria (ofensa à honra subjetiva da pessoa – aquilo que ela pensa sobre si
mesma), além do crime de difamação (ofensa à honra objetiva da pessoa –
o que os outros pensam sobre você), caso seja realizada perante outras
pessoas. Na esfera cível, caracteriza dano moral passível de indenização,
justamente pela ofensa à honra subjetiva e eventualmente objetiva do
homossexual em questão.
Portanto, não existe uma orientação sexual “correta”: a
homossexualidade e a bissexualidade são tão dignas quanto a
heterossexualidade, conforme o entendimento médico-psicológico dos
órgãos médico-científicos oficiais.

3.1 Critérios para a definição de uma doença e a homossexualidade


O médico e psiquiatra Ronaldo Pamplona da Costa colaciona seis
critérios usualmente utilizados para classificar algum comportamento como
sadio ou doente: estatístico, valorativo, sofrimento subjetivo, da
naturalidade, nosográfico e da lesão orgânica.
Quanto ao primeiro critério (estatístico), por ele entende-se que sadio
seria o usual, ou seja, aquele comportamento realizado pelo maior número
de pessoas. Dessa forma, como os homossexuais correspondem a
aproximadamente 10% (dez por cento) da população mundial54, então
seriam por esse critério “doentes”. Todavia, o fato de se fazer parte de uma
minoria não significa, necessariamente, ser “doente”. Conforme citado pelo
mencionado autor, os superdotados são igualmente uma minoria, mas não
são tidos como “doentes” em razão de sua maior inteligência (o mesmo
podendo ser dito quanto a canhotos e ambidestros). Assim, o simples fato
de se fazer parte de uma minoria não significa que a pessoa em questão seja
“doente”.
Com relação ao segundo critério (valorativo), verifica ele a adaptação,
integração e autonomia do indivíduo. Nesse sentido, os homossexuais
adaptam-se ao seu meio social tão bem quanto os heterossexuais, não
havendo diferenças nesse sentido, o mesmo valendo para a integração
psicológica deles para com seu meio social. Quanto à autonomia, têm os
homossexuais a mesma capacidade de “dirigir-se, de escolher e criar seus
objetivos”55 que os heterossexuais – mas cabe aqui destacar que, da mesma
forma que os heterossexuais não têm capacidade para alterar sua orientação
sexual por sua própria escolha, o mesmo ocorre com os homossexuais.
Quanto ao terceiro critério (sofrimento subjetivo), deve-se ressaltar que
os homossexuais não sofrem em decorrência de sua homossexualidade, mas
devido ao preconceito e à discriminação da sociedade em geral contra a
homoafetividade. Não é a homossexualidade que lhes causa sofrimento,
mas o tratamento hostil que recebem cotidianamente da sociedade pelo
simples fato de serem homossexuais, diferentes da maioria. As minorias em
geral têm esse sofrimento subjetivo, mas, repita-se, dito sofrimento ocorre
por causa do preconceito e da discriminação social, não devido à
característica que os torna diferentes. Ora, da mesma forma que não se
culpa a heterossexualidade pela depressão de inúmeros heterossexuais, é
descabida a responsabilização da homossexualidade pela depressão de
homossexuais, pois é o preconceito homofóbico que lhes causa a depressão,
não sua sexualidade. Ou seja, o sofrimento subjetivo dos homossexuais
decorre da hostilidade de que são alvo, não de sua homossexualidade.
Com relação ao quarto critério (da naturalidade), sadio seria aquilo que
está de acordo com a natureza, ou seja, aquilo que não sofreu a interferência
do ser humano. Conforme afirma Ronaldo Pamplona da Costa, “O que se
opõe ao natural seria o cultural”56-57 .
A teoria segundo a qual haveria um gene gay ganhou destaque quando,
em 1993, o geneticista Dean Hamer afirmou ter encontrado um gene que
estaria presente nos homossexuais em geral – o que o fez concluir que
haveria 99% de chance de a homossexualidade ser genética, portanto
natural de parte dos seres humanos, da mesma forma que é natural alguns
terem olhos castanhos e outros terem olhos azuis ou verdes58. Contudo, esse
entendimento tem sido altamente contestado pela ciência médica, no
sentido de não estar sendo aceita a afirmação de que a sexualidade humana
seria totalmente fixada de acordo com um determinismo biológico. O
próprio Dean Hamer passou a afirmar que a genética não seria determinante
da sexualidade, mas um dos fatores a serem considerados. A esse assunto
me aterei detidamente no próximo subtópico, mas adianto que o único
consenso dos órgãos da ciência médica mundial é no sentido de que a
orientação homoafetiva não é uma doença ou algo do gênero, assim como
não é uma “opção”, qualquer que seja sua origem.
O quinto critério (nosográfico) diz considerar-se doença um
comportamento cujas particularidades se enquadrem na Classificação
Internacional de Doenças (CID), a entidade nosográfica internacional.
Nesse sentido, não se pode dizer que a homossexualidade per si possa ser
enquadrada no rol de doenças elencado pela Classificação Internacional de
Doenças. Afinal, ansiedade, depressão e angústia não são quadros
característicos da homossexualidade, tanto que muitos heterossexuais
sofrem dessas mesmas condições e nem por isso se cogita serem elas
decorrentes da heterossexualidade dessas pessoas. Novamente, cabe
destacar que o sofrimento psíquico de que sofre parcela da população
homossexual é decorrente do preconceito e da discriminação de que é alvo
por parte da sociedade, não tendo dito sofrimento nenhuma relação com a
homossexualidade da pessoa discriminada, sendo decorrente apenas da sua
não aceitação por parte da comunidade em que vive.
Por fim, o último critério que poderia considerar a homossexualidade
como doença é o da lesão orgânica, ou seja, haveria uma disfunção no
organismo dessas pessoas que ocasionasse uma alteração de seu quadro
clínico para um que não o saudável. Todavia, “durante anos e anos a
medicina pesquisou o sistema nervoso central, os hormônios, o
funcionamento do aparelho genital, assim como as relações sexuais entre
homens, e nada encontrou neles de diferente dos homens e mulheres
heterossexuais. Diante de toda essa evidência a OMS aboliu o diagnóstico
de homossexualidade da CID”59.
São essas as razões de a Organização Mundial de Saúde entender que a
homossexualidade e a bissexualidade não constituem doença, desvio
psicológico, perversão nem nada do gênero, conforme se infere da seguinte
afirmação por ela proferida: “A orientação sexual por si não deve ser vista
como um transtorno”60, na medida em que os estudos realizados não foram
capazes de comprovar qualquer patologia inerente à homossexualidade e à
conjugalidade homoafetiva61. Isso só vem provar que a ciência médica
mundial considera a homossexualidade como uma das livres manifestações
da sexualidade humana, ao lado da heterossexualidade, não constituindo
nenhuma delas, por si só, uma doença nem nada do gênero.

3.2 Entendimento da ciência médica quanto à origem da


homoafetividade
Como demonstrado, a ciência médica mundial já afirmou que a
homossexualidade não constitui doença, desvio psicológico, perversão nem
nada do gênero, sendo assim uma das livres manifestações da sexualidade
humana, ao lado da heterossexualidade. A polêmica que resta, contudo,
reside na definição daquilo que origina a homossexualidade, questão ainda
longe de obter um consenso dos estudiosos a respeito.
Mas, primeiramente, deve-se deixar claro que a simples procura
incessante pela “causa” da homossexualidade já revela um certo
preconceito, pois ninguém se preocupa em descobrir a origem da
heterossexualidade. Ora, se algo origina uma, com certeza algo igualmente
origina a outra! Dito preconceito consiste justamente no fato de se ter como
absolutamente inquestionável a naturalidade da heterossexualidade ao passo
que ainda se colocam dúvidas acerca da naturalidade da homossexualidade.
Não se está aqui questionando o modo de ser heteroafetivo, muito pelo
contrário: afirma-se, apenas, que o homoafetivo é tão normal quanto ele. É
justamente por isso que reitero o quanto exposto na epígrafe do Capítulo
162. Mas, inobstante tais colocações, adentrarei na discussão acerca da
origem da homossexualidade.
Os críticos da teoria genética baseiam-se na constatação de que, entre
alguns gêmeos univitelinos pesquisados, haveria casos onde um seria
homossexual e o outro, heterossexual. Como os gêmeos univitelinos são
“cópias genéticas”, por serem originados do mesmo óvulo, afirmam os
críticos da teoria genética que, se a homossexualidade se originasse apenas
dos genes, não seria possível que gêmeos idênticos tivessem orientações
sexuais diversas. Hoje aparentemente há um consenso de que a sexualidade
seria definida por meio da conjugação de fatores genéticos, biológicos,
psicológicos e sociais (em síntese: fatores biopsicossociais).
Em primeiro lugar, tanto há, no mínimo, influência da genética na
determinação da sexualidade que há maior incidência de homossexuais
entre gêmeos univitelinos do que entre outros irmãos (gêmeos bivitelinos
ou irmão não gêmeos). Se se parte do pressuposto que a ausência de
homossexualidade em todos os gêmeos univitelinos pesquisados afastaria a
teoria da determinação genética da sexualidade (hétero, homo ou
bissexual), esta maior incidência da mesma sexualidade em gêmeos
univitelinos mostra inequivocamente que há, no mínimo, influência
genética na determinação da sexualidade (seja ela homo, hétero ou
bissexual)63.
Penso que o desejo sexual por pessoas do mesmo sexo, de sexo diverso
ou de ambos os sexos seja inato. Essa a minha pré-compreensão. Afinal, se
o meio ambiente isoladamente considerado fosse capaz de definir a
sexualidade de uma pessoa, por meio de mensagens expressas,
subconscientes etc., hoje não existiriam homossexuais pelo simples fato de
ser nossa sociedade heterossexista64 há muito tempo. Ora, se a criação dos
pais, a cultura e/ou o meio social definissem a sexualidade da pessoa, então
não seria possível o surgimento de homossexuais ante a constante pregação
social historicamente existente no sentido de que a heterossexualidade seria
a única sexualidade “correta”, “aceitável”, e assim por diante. Em outras
palavras: a sociedade não só faz apologia à heterossexualidade como a
exige de todas as pessoas, de forma expressa e implícita, donde me parece
ilógico defender que a sexualidade seria definida por fatores “psicossociais”
a partir do momento em que existem homossexuais em um mundo no qual
todos os fatores psicossociais direcionam a pessoa à heterossexualidade65.
Claro que isso não significa que as pessoas devam ser analisadas em sua
complexidade identitária a partir de um ponto de vista puramente biológico.
De maneira nenhuma: pensar assim seria confundir identidade sexual com
orientação sexual, supradefinidas. As atitudes da pessoa e suas reações ao
que acontece à sua volta decorrem, basicamente, do meio social em que
convive, dos seus valores e de suas pré-compreensões acerca da vida em
geral. O que defendo aqui é que o desejo sexual por pessoas do mesmo
sexo, do sexo oposto ou de ambos os sexos sofra determinação ou, no
mínimo, influência genética/biológica, o que nada tem a ver com a forma
como essa pessoa administrará sua vida e a forma como ela agirá diante dos
acontecimentos em geral.
Já tive a curiosidade de perguntar a defensores da teoria da
determinação ou influência dos fatores psicossociais na sexualidade quais
seriam tais fatores. Verifiquei duas ordens de respostas: a primeira é
inacreditável: eles não sabem! Ou seja, afirmam que a sexualidade seria
definida ou influenciada por fatores psicossociais, mas não sabem dizer
quais fatores psicossociais seriam esses! Ora, isso é um absurdo. Se alguém
afirma que algo externo à pessoa influencia ou determina sua sexualidade,
então deve necessariamente saber ao menos quais seriam esses fatores
concretos aptos a influenciar ou determinar a sexualidade do indivíduo. O
ônus da prova está com os que defendem que a influência de fatores
psicossociais influenciaria ou determinaria a orientação sexual, pois estes
fatores são externos à pessoa, plasmados por atitudes contra ela cometidas
ou realizadas, que devem, por isso, ser apontadas para que se possa
defender sua existência. Por esse raciocínio, é descabido exigir a
comprovação dos defensores da teoria genética, na medida em que, se
fatores psicossociais não influenciarem na orientação sexual, ela só poderá
ser genética, pela ausência de outra explicação possível. Como a genética é
algo interno à pessoa, que existe independentemente de fatores externos,
esse raciocínio inverso quanto ao ônus da prova é plenamente válido (ou
seja, embora seja, em tese, possível descobrir se a genética efetivamente
influencia ou determina a orientação sexual, esse raciocínio inverso é
plenamente válido). Em verdade, é muito curioso o posicionamento
daqueles que dizem que a sexualidade decorreria de fatores psicossociais,
pois tais pessoas não se dignam a dizer quais seriam esses fatores
psicossociais ensejadores da homossexualidade! Isso, a meu ver,
desprestigia qualquer possibilidade de aceitação dessa teoria, tendo em vista
que cabe àqueles que alegam ter provas de suas afirmações – sendo
aplicável, inclusive, o célebre adágio processual segundo o qual alegar sem
provar é o mesmo que não alegar. Nem se diga que caberia a quem defende
a teoria genética provar ser a sexualidade genética, tendo em vista que, não
havendo provas de ser ela influenciada por fatores psicossociais, tal
significa que ela só pode ser inata, genética. Afinal, se não for determinada
por fatores psicossociais, então só pode ser inata, genética. Essa é a
premissa (puramente lógica) de que partimos e que enseja meu
posicionamento segundo o qual o ônus da prova da origem da sexualidade
reside naqueles que alegam que seria psicossocial, pois se algo independe
do meio social para existir, isso significa que esse algo é inato, natural.
A segunda resposta apresentada, por sua vez, pauta-se na suposta
influência que um pai agressivo e distante e uma mãe superprotetora teriam
nesse sentido, ou seja, de que tal conjuntura fizesse a pessoa “se tornar”
homossexual. Contudo, tal circunstância é desprovida de comprovação
empírico-científica que a sustente. Afinal, essa foi (em geral) a conjuntura
de todo o século XX – pais distantes e despóticos; mães superprotetoras66.
Fosse essa teoria válida, a maioria das pessoas seria homossexual, o que
não é evidentemente o que ocorre67.
A única influência comprovada dos fatores psicossociais na
sexualidade ocorre na exteriorização desta às pessoas em geral (a pessoa se
apresentar como homo, hétero ou bissexual), mas nunca na sexualidade em
si (a pessoa ser homo, hétero ou bissexual). Ou seja, o que pode acontecer é
a pessoa acabar reprimindo sua verdadeira sexualidade devido ao
preconceito e à discriminação existentes na sociedade – um homossexual
que finge ser heterossexual e até mesmo mantém um relacionamento
heterossexual68 apenas para não sofrer o preconceito e a discriminação hoje
dispensados aos homossexuais.
Sobre o tema, vale citar que, quando se fala que uma pessoa
homossexual torna-se gay, se quer dizer que a pessoa, que já é homossexual
(sente atração erótico-afetiva por pessoas do mesmo sexo), precisa aceitar
sua própria homossexualidade e aceitar vivê-la plenamente, a despeito dos
preconceitos sociais existentes contra ela69. Explique-se: o adolescente
heterossexual, quando passa a ter desejos eróticos por pessoas de sexo
oposto ao seu, aceita naturalmente esse seu desejo heteroerótico e aceita,
assim, a perspectiva de eventualmente manter uma relação amorosa com
uma pessoa de sexo oposto. Na mesma situação, o adolescente
homossexual, quando passa a ter desejos eróticos por pessoas do mesmo
sexo, normalmente nega esses desejos e nega a perspectiva de
eventualmente manter uma relação amorosa com uma pessoa do mesmo
sexo por força de todo o preconceito social contra a homossexualidade, o
que lhe causa forte angústia por se conscientizar de que tem uma
característica (homossexualidade) que a sociedade (e, muitas vezes, sua
própria família70) despreza71. Ou seja, enquanto para o adolescente
heterossexual é fácil assumir sua identidade pela ausência de preconceitos
sociais contra a heterossexualidade, para o jovem homossexual é difícil
assumir sua identidade por conta dos preconceitos sociais contra a
homossexualidade72 e por temer não atender às expectativas de sua
família73. Assim, tornar-se gay é o processo de autoaceitação da pessoa
acerca de sua homossexualidade74, aceitando-se enquanto homossexual e,
preferencialmente, criando uma imagem positiva acerca de si, enquanto
pessoa homossexual75, e uma imagem positiva acerca de namoros e
relacionamentos conjugais homoafetivos. Inexiste a necessidade de um
heterossexual de tornar-se hétero porque, dada a ausência de preconceitos
sociais contra a heterossexualidade, o adolescente heterossexual já aceita
instintivamente sua heterossexualidade e sua identidade heterossexual, na
qual não sofre angústia e não tem receio nenhum de assumir sua
heterossexualidade e de manter namoros heteroafetivos76.
Sobre o tema, vale a explicação de Richard A. Isay77, fruto de seus
muito anos exercendo psicoterapia em favor de pacientes homossexuais:

A autopercepção do adolescente homossexual é a tarefa de


desenvolvimento mais importante desta etapa de sua vida, o começo da
consolidação e da integração de sua orientação sexual, o primeiro
estágio para tornar-se gay. Em termos ideais, a sua sexualidade deveria
se integrar positivamente, um processo difícil para muitos por causa da
rejeição inicial dos pais, a posterior rejeição dos amigos, a
interiorização. Seria razoável presumir que, assim como o adolescente
heterossexual, o adolescente homossexual de onze, doze ou treze anos
estaria apto a reconhecer a sua homossexualidade a partir do
surgimento dos impulsos sexuais na época da maturação psicológica.
Mas nós já vimos as muitas razões para as demoras neste processo, em
especial a sua autoestima danificada, portanto, é só depois dos dezoito,
dezenove anos, ou mesmo até depois da sua maioridade, que os
adolescentes homossexuais são capazes de assumir para si mesmos a
sua orientação homossexual. Para que o adolescente seja capaz de se
assumir para si mesmo, é preciso que ele se sinta relativamente livre
dos danos causados à sua autoestima, para poder se sobrepor à negação
de seus sentimentos por pessoas do mesmo sexo, negação esta
provocada pela sensação de ter sido rejeitado, primeiro pelos pais na
infância, depois por seus amigos, por temer desapontar os pais, pela
estigmatização social, estereótipos negativos e pela falta de modelos
saudáveis para seguir. Para se assumir para si mesmo, ele tem que ter
adquirido suficiente independência e autoconfiança a ponto de
perceber que nunca será capaz de corresponder às necessidades de seus
pais, no que diz respeito a uma vida convencional com uma família
convencional. De certo modo ele tem que desistir de fazê-lo.
Frequentemente a autoaceitação só ocorre depois que o rapaz descobre
o amor, uma paixão suficientemente poderosa para ajudá-lo a superar a
negação. Frequentes fantasias sexuais acompanhadas de masturbação
são tão importantes para consolidar a sexualidade do adolescente
homossexual quanto para o heterossexual. Experimentações sexuais no
âmbito de um relacionamento afetivo têm maior probabilidade de
provocar o início de uma integração positiva do que encontros sexuais
com parceiros anônimos. No entanto, tais relacionamentos não se
encontram tão disponíveis para jovens homossexuais quanto para
heterossexuais que estejam explorando sua sexualidade [obs.: isso em
razão do forte preconceito social contra relacionamentos amorosos
homoafetivos]. Assumir-se para outros adolescentes e adultos gays, ou
em outras palavras, a “homossocialização”, ajuda-o a superar o
desespero que é frequentemente causado pela estigmatização e rejeição
por parte dos amigos ou da família. Funciona como uma espécie de
antídoto contra a sua sensação de isolamento cognitivo e social, e é um
refúgio do abuso verbal e físico a que muitos são sujeitos,
especialmente aqueles de aparência e comportamentos menos
convencionais. Fazer amizades com outros adolescentes gays e
envolver-se em meios sociais gays propicia a estes adolescentes a
criação de alianças, o encontro de parceiros sexuais e a descoberta de
modelos que possam idealizar e com quem possam se identificar. (...)
Quando os pais o aceitam, o adolescente se reassegura do seu amor e
apoio, não apenas como homossexual, mas como uma pessoa
destacada deles, o que aumenta a probabilidade de assimilar a sua
orientação sexual de maneira positiva. Pais que rejeitam furiosamente
o filho por ser gay ou lésbica provavelmente querem que ele
corresponda às suas expectativas sociais e oferecem pouco suporte ou
respeito para o desenvolvimento de independência, individualidade e
autoconfiança do filho. Quando estes adolescentes finalmente colocam
a sua orientação sexual aos pais, costumam fazê-lo de maneira
agressiva, para machucar, mas também para abrir um espaço em meio
ao que se espera deles, de modo a poderem crescer, se expressar e
confiar em si.
Logo, quando se fala que a pessoa homossexual precisa tornar-se gay
não se está dizendo que ela vai adquirir o desejo homossexual, mas que ela
precisa aceitar seu desejo homossexual já existente e aceitar que pode ser
feliz em um relacionamento conjugal homoafetivo78, da mesma forma que
heterossexuais aceitam seu desejo heterossexual e aceitam que podem ser
felizes em relacionamentos conjugais heteroafetivos. Uma identidade
saudável como gay supõe à pessoa homossexual ter experiências sexuais
apaixonadas, assumir-se quando possível, fazer amizades com outros gays e
sustentar relacionamentos sexuais íntimos e amorosos mútuos79.
Em suma, ainda que alguém seja geneticamente homossexual, nada
impede que dita pessoa reprima sua verdadeira orientação sexual para ser
aceita pelo seu meio social e, inclusive, mantenha um relacionamento
heterossexual “de aparência”. Afinal, o meio não tem como mudar a
sexualidade da pessoa, mas tem como coagi-la a reprimir sua verdadeira
sexualidade pelo medo do preconceito social. Essa pode ser, a meu ver, a
explicação para gêmeos univitelinos que aparentemente têm sexualidades
“distintas”. Na verdade, eles têm a mesma sexualidade, contudo um deles se
aceita enquanto homossexual e o outro sofre de preconceito internalizado.
Isso é possível porque, embora geneticamente idênticos, cada um
desenvolve uma personalidade, e o fato de serem gêmeos idênticos não
significa que terão exatamente o mesmo amadurecimento psicológico.
Assim, se um dos dois acabar tendo mais medo ou ignorância que o outro
sobre o tema da homossexualidade, vai acabar reprimindo sua verdadeira
sexualidade, diferentemente do outro. Aponte-se, ainda, que as pesquisas
em geral não levam em conta essa questão do preconceito internalizado,
apenas acreditando na resposta à pergunta direta no que tange à orientação
sexual na qual a pessoa se enquadraria (pois a pessoa pode mentir ao
responder, o que ocorre com frequência com relação a esta pergunta quando
respondida por muitos homossexuais, que se dizem heterossexuais para não
sofrerem preconceito).
Outrossim, também no sentido da origem biológica da
homossexualidade, são esclarecedoras as palavras de Suzana Herculano-
Houzel, neurocientista e professora da Universidade Federal do Rio de
Janeiro, que afirma peremptoriamente não ser a sexualidade uma “opção”,
mas, ao contrário, ser ela determinada biologicamente mediante a influência
de genes e hormônios durante a formação, ainda no útero, de determinadas
regiões cerebrais, que, por sua vez, determinarão mais tarde a preferência
sexual, depois de amadurecidas na adolescência80.
Em suma, entendo ser a sexualidade inata pela ausência de provas de
que influências psicossociais certamente não determinam a orientação
sexual da pessoa, pois se a psicologia ou o meio social a determinassem,
então não seria possível a existência de homossexuais e bissexuais em uma
sociedade heterossexista como a nossa. Por outro lado, se em gêmeos
univitelinos encontrarem-se realmente orientações sexuais verdadeiramente
distintas (e não apenas homofobia internalizada naquele que se declarou
heterossexual), então parece que realmente ficará provado que a genética
tem uma influência na orientação sexual (já que a grande maioria dos
gêmeos univitelinos se identificam com a mesma orientação sexual), com
possível influência do meio psicossocial na definição da sexualidade.
Contudo, independentemente de qual das teorias (genética ou psicossocial)
sobre a origem da sexualidade esteja efetivamente correta (não há consenso
entre os especialistas no tema), o que se deve ter como objetivo é o combate
à discriminação homofóbica. Aqueles que são preconceituosos
discriminarão homossexuais e/ou bissexuais independentemente de a
sexualidade ser de origem genética ou psicossocial (se for genética,
insistirão que seriam “doenças”, ao passo que se for psicossocial, farão o
possível para que ditos fatores psicossociais sejam evitados...). Assim, o
principal enfoque da discussão sobre a homossexualidade deve ser o
combate ao preconceito, não o debate (interessante, não se dúvida) sobre a
origem da homossexualidade – assim como da hétero e da bissexualidade.

3.3 “Opção” x orientação sexual: correta colocação do tema


Uma concepção largamente difundida é a de que a homossexualidade
seria uma “opção”, uma “escolha” do indivíduo. A constatação dessa
concepção verifica-se facilmente, tendo em vista ser comum a população se
referir à homossexualidade como “opção sexual”. Contudo, essa visão é
sem dúvida equivocada, sendo isso fácil de constatar – inclusive com a
explanação da neurocientista Suzana Herculano-Houzel, transcrita em nota
de rodapé.
Com efeito, nenhuma pessoa escolhe ser homo, hétero ou bissexual: as
pessoas simplesmente se descobrem de uma forma ou de outra. Não há
“escolha”, mesmo porque, se opção houvesse, certamente as pessoas
optariam pela orientação sexual mais fácil de ser vivida, qual seja aquela
que não sofre com o preconceito social: a heterossexual. Em suma:
sexualidade não se escolhe, se descobre.
Dessa forma, não se trata de “opção sexual”, mas de orientação sexual
do indivíduo, expressão que significa que o desejo sexual está “em direção
a” determinado sexo biológico, o que não ocorre por “sugestionamento”81.
Como mencionado, a orientação sexual foi bem definida pelos Princípios
de Yogyakarta como a “capacidade de cada pessoa de ter uma profunda
atração emocional, afetiva ou sexual por indivíduos de gênero diferente, do
mesmo gênero ou de mais de um gênero, assim como ter relações íntimas e
sexuais com essas pessoas”82. Ou seja, é a identificação do gênero que se
deseja o dado revelador da orientação sexual, nada mais83. Isso porque, se
assim fosse (“escolha” e não orientação sexual), por qual motivo uma
pessoa escolheria viver toda a sua vida de uma forma que a sociedade em
geral ainda não aceita? Qual motivo levaria alguém a escolher, ainda em
tenra idade, uma forma de vida que certamente será alvo de discriminação
de muitas pessoas certamente desconhecedoras (ignorantes) do tema?
Afinal, desde tenra idade já sabemos qual é a nossa sexualidade, seja a
pessoa hétero, homo ou bissexual, sendo que os indivíduos destes dois
últimos grupos muitas vezes demoram a aceitar sua orientação sexual em
decorrência do preconceito ainda existente em nossa sociedade quanto a
essas orientações, o que não altera o fato de terem sempre sido homo ou
bissexuais.
Crianças e adolescentes, como é notório, são indivíduos que, mais do
que adultos, buscam uma vida livre de preocupações. Em sendo assim, é
óbvio que uma pessoa nessa idade, ao vislumbrar todo o preconceito
existente em face da homo e da bissexualidade, jamais escolheria, de livre e
espontânea vontade, viver de uma forma que a sociedade ainda não aceita.
Do mesmo modo, muitos homossexuais e bissexuais adultos escolheriam
mudar sua sexualidade para heterossexual se pudessem, pois estes não
sofrem preconceito por sua orientação sexual, ao contrário daqueles – aliás,
deve-se notar a existência de homossexuais que desejam genuinamente
mudar sua orientação sexual para fugir da discriminação homofóbica, mas
não conseguem, muito embora se esforcem para tanto (conseguindo no
máximo sublimar sua homossexualidade, que contudo continua existindo).
Como se sabe, a sociedade contemporânea ainda tem muitas reservas
com relação a homossexuais. Em decorrência da ignorância e de seus
preconceitos sobre o tema, acaba dispensando um tratamento muitas vezes
discriminatório com relação a homossexuais – seja por meio de agressões
físicas, verbais ou até mesmo pela proibição da manifestação homoafetiva
em determinados locais, quando manifestações heteroafetivas idênticas são
permitidas84. Faz isso por considerara homoafetividade uma conduta
“imoral”, que seria passível de reprovação. Ora, se a sexualidade da pessoa
dependesse da “opção” dela, qual pessoa escolheria de livre e espontânea
vontade ser de uma forma que sofre o repúdio social? Qual pessoa não
optaria em mudar para a orientação sexual que não é objeto de
preconceitos? Entenda-se bem o que se está dizendo: não se trata de
considerar esta ou aquela orientação sexual como “certa”, “natural”, e assim
por diante. Trata-se apenas de afirmar que as pessoas optariam viver da
forma mais fácil, sem a dificuldade “extra” do preconceito social. Afinal,
aqueles que amam pessoas do mesmo sexo têm, além das mesmas
dificuldades cotidianas daquelas que direcionam seu amor a pessoas de
sexo diverso, a dificuldade oriunda da discriminação homofóbica, do
desprezo social.
Nesse sentido, dada a existência de uma equivocada moral coletiva que
considera a homossexualidade uma conduta desviante e indigna, a taxação
da homoafetividade como uma “escolha consciente” do indivíduo só ajuda
a reforçar o preconceito existente contra ditas pessoas. Afinal, aquele que
por ela “optasse” estaria indo de livre e espontânea vontade contra os
valores tidos como corretos pela sociedade, afrontando-a por escolha
própria. Esse é o preconceito oriundo da tachação da sexualidade humana
como uma “opção consciente” do indivíduo85.
Por outro lado, sem contradizer o que se acabou de expor, deve ser
ressaltado que o respeito à diversidade humana é indispensável em qualquer
situação, seja com relação a crenças políticas, religiosas, ideológicas e
quaisquer outras possíveis. Cada pessoa tem sua própria forma de pensar e
agir desde o início dos tempos. Nunca houve uma unanimidade no
pensamento humano: sempre existiram aqueles que discordaram do
pensamento vigente, ainda que em extrema minoria, donde o simples fato
de uma pessoa ser diferente de outra em algum ponto não pode ser motivo
suficiente para ser ela discriminada em relação àqueles dos quais ela se
diferencia. A diferenciação de tratamento deve ser sempre pautada pela
lógica e pela racionalidade, para evitar que vivamos em uma sociedade
pautada pelo subjetivismo e pela arbitrariedade de alguns. A partir do
momento em que a própria Constituição da República afirma que o Brasil é
uma sociedade fraterna, plural e sem preconceitos86, então aqueles que são
diferentes devem ser respeitados.
Como se vê, apesar de ser incorreto o uso da expressão “opção sexual”,
tal diferença conceitual é irrelevante: da mesma forma que ninguém pode
ser discriminado por uma característica a si inerente (inata), também não
pode sê-lo por escolhas conscientes que não tragam prejuízos a terceiros e
que não sejam expressamente vedadas por lei (art. 5.º, II, da CF/1988). Ou
seja, mesmo que se considerasse a homossexualidade como uma “opção”
do indivíduo (e “opção” não é), ainda assim não poderia ela ser objeto de
discriminação jurídica, visto que não é proibida pela lei e que não traz
prejuízo algum a nenhuma pessoa – afinal, somente homossexuais se
relacionarão amorosamente (amor romântico) com homossexuais, não
estando nenhum heterossexual obrigado a fazê-lo pelo simples fato de se
reconhecer a normalidade e a naturalidade da relação homoafetiva, como é
ou deveria ser óbvio.
Assim, inobstante não ser a sexualidade humana uma “escolha” do
indivíduo, o fato de alguns serem homossexuais ou bissexuais, ao passo que
outros são heterossexuais, não pode isoladamente justificar a discriminação
daqueles em relação a estes , pois essa “diferença” no que tange à direção à
qual o amor está apontado (se a pessoa do mesmo sexo ou a pessoas de sexo
diverso) não altera em nada o caráter, a competência nem a dignidade das
pessoas. É uma “diferença” irrelevante, especialmente para o Direito, que
obrigatoriamente deve ser regido pela lógica e pela racionalidade.

3.4 Conceito de homofobia


Não há espaço neste trabalho, que se foca no Direito das Famílias, para
investigar profundamente o conceito de homofobia, a despeito de ter sido
demonstrado, no capítulo 1, que o machismo é a origem histórica da
homofobia ante a perseguição a homens que mantivessem uma sexualidade
passiva ter se “justificado” pelo fato de eles estarem supostamente “abrindo
mão” de sua masculinidade, que suporia necessariamente o “papel ativo” na
relação sexual. Contudo, cabe aqui anotar que concordo integralmente com
o conceito muito bem desenvolvido por Daniel Borrillo87 em seu estudo
monográfico acerca do tema, segundo o qual:

A homofobia pode ser definida como a hostilidade geral,


psicológica e social contra aquelas e aqueles que, supostamente,
sentem desejo ou têm práticas sexuais com indivíduos de seu próprio
sexo. Forma específica do sexismo, a homofobia rejeita, igualmente,
todos aqueles que não se conformam com o papel predeterminado para
seu sexo biológico. Construção ideológica que consiste na promoção
constante de uma forma de sexualidade (hétero) em detrimento de
outra (homo), a homofobia organiza uma hierarquização das
sexualidades e, dessa postura, extrai consequências jurídicas.

Nesse sentido, a negação do casamento civil, da união estável e da


adoção conjunta a casais homoafetivos implica inegavelmente uma forma
de homofobia institucional/social do Estado que, ainda que não persiga
homossexuais e tolere a conjugalidade homoafetiva, não respeita
integralmente os cidadãos homossexuais, ao não garantir, aos casais
homoafetivos, os regimes jurídicos destinados aos casais heteroafetivos, em
flagrante desrespeito ao direito a igual respeito e consideração devido a
todos e, portanto, também a homossexuais e casais homoafetivos, por isto
caracterizar verdadeira hierarquização da heterossexualidade e da
conjugalidade heteroafetiva sobre a homossexualidade e a conjugalidade
homoafetiva, na medida em que se garantem direitos e status social superior
àquelas em relação a estas.

3.5 As minorias sexuais. conceituação de orientação sexual, gênero e


identidade de gênero
Ainda não há literatura consolidada acerca do significado preciso da
expressão minorias sexuais, razão pela qual se afigura indispensável a
delimitação do que aqui se entenda por tal categoria. Entende-se aqui que as
minorias sexuais são formadas por pessoas que são discriminadas por conta
de sua orientação sexual, sua identidade de gênero, por seu gênero
dissonante do socialmente esperado para pessoas de seu sexo biológico, por
sua intersexualidade ou por exercerem práticas sexuais não aceitas pela
moralidade majoritária sem que haja motivação lógico-racional que
justifique tal discriminação. Até hoje as minorias sexuais sempre foram
formadas por homossexuais88, bissexuais89, transexuais90, travestis91 e
intersexuais92, ou seja, aqueles cuja orientação sexual não seja a
heterossexual (homossexuais e bissexuais), aqueles cuja identidade de
gênero não coincida com o gênero socialmente atribuído ao seu sexo
biológico (transexuais, travestis), aqueles cuja biologia pessoal traz
elementos de ambos os sexos (intersexuais) e aqueles que têm
comportamentos que a sociedade atribui a pessoas do outro sexo
(discriminação por motivo de gênero). Isso porque estes são grupos de
pessoas que têm sido discriminadas ao longo dos tempos unicamente por
conta de sua sexualidade93, de seu gênero ou de sua identidade de gênero,
em virtude do heterossexismo social94 ainda vigente.
Discutir-se-á, agora, o que se entende pelos elementos centrais dessa
definição, devido ao desconhecimento acerca do conteúdo das expressões
orientação sexual, gênero e identidade de gênero, assim como pela
inacreditável controvérsia existente sobre o que significaria orientação
sexual.
A orientação sexual refere-se ao sexo que atrai a pessoa de forma
erótico-afetiva, definindo-a como homossexual, heterossexual ou
bissexual95. Tal expressão se refere ao sexo biológico ao qual o sentimento
erótico-afetivo da pessoa está direcionado. Trata-se da atração erótico-
afetiva que se sente por pessoas do mesmo sexo (homossexualidade96),
pessoas de sexo diverso (heterossexualidade97) ou de ambos os sexos
(bissexualidade98). Portanto, atualmente, a homossexualidade caracteriza-se
pelo amor romântico-conjugal entre pessoas do mesmo sexo; a
heterossexualidade pelo amor romântico-conjugal entre pessoas de sexo
diverso; e a bissexualidade pelo amor romântico-conjugal entre pessoas de
ambos os sexos99. Logo, o que distingue homo, hétero e bissexualidade é o
objeto de desejo erótico-afetivo, respectivamente, pessoas do mesmo sexo,
pessoas de sexo diverso e pessoas de ambos os sexos.
Esclareça-se: quando falo em atração erótico-afetiva, não estou
querendo dizer que todo envolvimento sexual se dá com estes dois
elementos – há uma infinidade de relacionamentos sexuais que não são
pautados pelo afeto romântico da definição, mas não é esse o foco aqui
pretendido. A intenção foi destacar que o homossexual só consegue sentir
atração, tanto erótica quanto romântico-afetiva, por pessoa do mesmo sexo,
que o heterossexual só consegue sentir atração, tanto erótica quanto
romântico-afetiva, por pessoa do sexo oposto e que o bissexual consegue
sentir atração, erótica e afetiva, por pessoas de ambos os sexos – o que não
significa que a mera atração erótica (sexual) não surja nestas pessoas por
outras (as quais, portanto, podem perfeitamente sentir atração meramente
erótica/sexual por outras, sem sentiram atração afetiva/romântica por elas).
É de se refutar, aqui, o argumento por vezes utilizado no sentido de que
a expressão orientação sexual abarcaria também a pedofilia/pederastia100,
ou seja, o desejo sexual por menores de idade. Trata-se de argumento que
desafia a inteligência e beira a má-fé, argumento este normalmente
esgrimido por religiosos fundamentalistas que condenam, a priori, a
homossexualidade e buscam, a todo instante, “argumentos” para tentar
justificar seu preconceito homofóbico. Com efeito, a pedofilia é uma
prática sexual específica que independe da orientação sexual. A expressão
orientação sexual envolve o sexo biológico que constitui o objeto do
sentimento erótico-afetivo das pessoas, independentemente da idade, ao
passo que a pedofilia é uma prática sexual específica que não está
relacionada à orientação sexual (pode ser praticada por homo, hétero ou
bissexuais), praticada entre um adulto e uma criança, prática esta
moralmente condenada ao longo dos últimos séculos (embora largamente
difundida no passado, a partir da puberdade das pessoas). Logo, prática
sexual não se confunde com orientação sexual. Um mínimo de bom-senso
leva a tal constatação.
Aponte-se, ainda, que a orientação sexual independe de “opção” da
pessoa, pois a realidade empírica já demonstrou que um ato de vontade é
incapaz de alterar a orientação sexual de alguém, sendo assim tecnicamente
incorreta a expressão opção sexual. Ainda que a ciência médica não saiba
definir o que forma a sexualidade, aduzindo tratarem-se de fatores
biopsicossociais, ponto pacífico na seara científica séria é aquele segundo o
qual a pessoa não escolhe ser homo, hétero ou bissexual, simplesmente
descobre-se de uma forma ou de outra. O que pode ocorrer é a pessoa
reprimir sua verdadeira orientação sexual (normalmente, homossexuais e
bissexuais) para exteriorizar uma outra (a heterossexual) por conta do
preconceito social que teme sofrer se assumir sua verdadeira orientação
sexual101. Contudo, neste caso, não temos uma “mudança” de orientação
sexual, mas mera repressão da verdadeira orientação sexual da pessoa, em
que se pode concluir que “opção” há, apenas, na exteriorização ou não de
sua orientação sexual, mas não na definição dela.
Por fim, a orientação sexual não é passível de “ensino”, de aprendizado
nem nada do gênero, como a inacreditável interpretação literal do termo
“orientação” faz algumas pessoas pensar. Isso resta igualmente comprovado
pelas inúmeras pesquisas psicossociais que já demonstraram que a criação
de um menor por um casal homoafetivo não aumenta a possibilidade de ele
“se tornar” homossexual102 – mesmo porque a orientação sexual não se
escolhe nem se ensina, apenas se descobre.
O termo gênero significa o conjunto de características atribuídas às
pessoas por conta de seu sexo biológico103. Ou seja, a partir da presunção
de que determinadas atitudes e posturas seriam inerentes ao homem ou à
mulher (essencialismo), criaram-se os conceitos de masculinidade e
feminilidade para designar as atitudes que se espera/exige de homens
(masculinidade) e de mulheres (feminilidade) – basicamente, como forma
de se estabelecer o predomínio dos homens sobre as mulheres104, com a
atribuição de características de autonomia, liderança, racionalidade,
agressividade, competitividade, objetividade e não expressão das emoções
ao masculino105 e características de hipersensibilidade emocional,
passividade, subjetividade e criação/educação dos filhos ao feminino106.
Em suma, o masculino define-se em negação ao feminino (pois, segundo as
normas de gênero que perduram até hoje, masculino e feminino seriam
categorias antagônicas, diametralmente opostas entre si). Como se vê, neste
campo, tem-se presentes as ideologias de gênero, “que nos ensinam o
comportamento adequado, esperado e recompensado pelos outros, moldam
nossas personalidades para conformá-las às normas sociais e reprimem ou
punem comportamentos a elas não conformes” e que nos são transmitidas
desde o nosso nascimento107. Embora não seja o escopo deste trabalho
realizar as profundas digressões sociológicas inerentes ao tema já
amplamente explorado pelos estudos sociológicos (principalmente
feministas), cabe lembrar que a literatura já demonstrou que os conceitos de
masculinidade e feminilidade são relativos (construtivismo), variáveis
conforme cada sociedade e dependentes dos valores a elas inerentes108, em
que resta refutada qualquer cientificidade de argumentos que diga que
determinadas atitudes éticas e/ou morais sejam inerentes ao sexo
biológico109.
A identidade de gênero constitui-se no entendimento que a pessoa tem
relativamente ao gênero do qual faz parte110. Transexual é a pessoa na qual
há dissociação entre o seu sexo biológico e sua identidade de gênero (ou
seja, entre seu sexo físico e seu sexo psíquico). Usando-se uma expressão já
consagrada neste campo, é a pessoa que tem convicção de que nasceu no
corpo errado111. É o caso do homem que se entende como mulher e da
mulher que se entende como homem. Daí se percebe a clara distinção entre
homossexuais e transexuais: enquanto os segundos não se identificam com
seu sexo biológico, os primeiros identificam-se com ele e, apesar disso,
possuem sentimento erótico-afetivo direcionado a pessoas do mesmo sexo.

4. SÍNTESE CONCLUSIVA DO CAPÍTULO


A homossexualidade é o sentimento de amor romântico por uma pessoa
do mesmo sexo. Tecnicamente, é a atração erótico-afetiva que se sente por
uma pessoa do mesmo sexo. Não constitui doença, desvio psicológico,
perversão nem nada do gênero. Tal entendimento é esposado
internacionalmente pela Organização Mundial de Saúde, por meio de sua
Classificação Internacional de Doenças n. 10, em sua última revisão de
1993 (CID 10/1993) e, nacionalmente, pela Resolução 01/1999 do
Conselho Federal de Psicologia, e também pela Associação Americana de
Psiquiatria desde a década de 1970. Assim, percebe-se que ela é uma das
livres manifestações da sexualidade humana, ao lado da heterossexualidade.
Não é ela uma “opção” do indivíduo, pelo simples fato de que ninguém
escolhe em dado momento de sua vida se vai ser homo, hétero ou bissexual:
as pessoas simplesmente se descobrem de uma forma ou de outra. Da
mesma forma, não se consegue “trocar” de orientação sexual ao longo da
vida – os que se sentem genuinamente atraídos tanto por homens quanto por
mulheres (ainda que em gradações diferentes) são bissexuais. Note-se que a
expressão orientação sexual significa, tanto popular como tecnicamente,
que o desejo está “em direção a” determinado sexo biológico, não
significando que a pessoa teria sido “orientada” a ter esta ou aquela
sexualidade, sendo que o entendimento neste último sentido decorre de
tradução puramente literal dos significados dos termos isolados da
expressão, o que afronta seu correto entendimento. Não há
“sugestionamento” na orientação sexual – o sugestionamento é inócuo, pois
não tem nenhuma influência na sexualidade, podendo tê-la apenas na forma
como a pessoa se identifica socialmente em termos de sua sexualidade (no
apresentar-se como homo, hétero ou bissexual, não no ser homo, hétero ou
bissexual).
Hoje, há aparentemente uma predominância do entendimento segundo
o qual a homossexualidade seria originada por meio de uma conjugação de
fatores biopsicossociais. Nesse sentido, fica comprovado pela maior
existência de homossexuais entre gêmeos univitelinos do que entre irmãos
bivitelinos (ou que não sejam gêmeos) que a genética tem pelo menos
influência na determinação da sexualidade. Contudo, este autor vai além,
por aderir à teoria genética, em função: (i) de inexistir “opção” da pessoa
nesse sentido; (ii) de a cultura e o meio social não serem capazes de
determinar/transformar a sexualidade do indivíduo – pois, se assim o fosse,
a visão heterossexista, que há séculos está em vigor em nossa sociedade, já
teria extirpado todos os não heterossexuais da população humana; (iii) da
questão do preconceito internalizado, que pode justificar o fato de gêmeos
idênticos que tenham a mesma sexualidade se identificarem de forma
diversa (ou seja, um assumir e outro reprimir sua verdadeira sexualidade).
De qualquer forma, não há dúvidas de que, ao menos, influência genética há
na determinação da orientação sexual.
A orientação sexual refere-se ao sexo que atrai a pessoa de forma
erótico-afetiva, definindo-a como homossexual, heterossexual ou bissexual.
Não se confunde com a pedofilia, que é uma prática sexual específica que
pode ser cometida por pessoas de qualquer orientação sexual nem é passível
de ensinamento, tendo em vista que ela não é algo que se aprende nem se
escolhe, mas simplesmente se descobre.
O termo gênero significa o conjunto de características atribuídas às
pessoas por conta de seu sexo biológico, atribuições estas pautadas por
valores culturais relativos que variam entre os tempos e entre as diversas
sociedades humanas.
A identidade de gênero constitui-se no entendimento que a pessoa tem
em relação ao gênero do qual faz parte – embora as pessoas usualmente
tenham uma coincidência entre seu sexo físico e seu sexo psíquico,
transexuais sofrem uma disforia de gênero ensejadora da dissociação entre
seu sexo físico e seu sexo psíquico. Diferenciam-se das travestis porque
estas não se incomodam em ser identificadas como pessoas de seu sexo
biológico mesmo quando se travestem, ao passo que transexuais desejam
que as pessoas em geral não saibam que se trata de uma pessoa de sexo
biológico distinto do seu sexo aparente.
A Bíblia não condena a homossexualidade isoladamente considerada,
mas condutas a ela equivocadamente relacionadas, como o abuso sexual, a
libertinagem e a falta de hospitalidade, que são igualmente condenadas
quando associadas à heterossexualidade. Todavia, quaisquer considerações
religiosas a respeito do tema são irrelevantes para o mundo do Direito, uma
vez que o Brasil é um Estado Laico, no qual nenhuma religião deve intervir
na política e especialmente no Direito do país.
De toda forma, ainda que não se aceite a análise histórico-crítica da
Bíblia (que demonstra que ela não condena a homossexualidade), é de se
notar que o Brasil é um Estado Laico, no qual fundamentações religiosas
não podem ser válidas para ditar rumos políticos ou jurídicos da nação,
visto que, do contrário, o Estado estará em relação de aliança com a
instituição religiosa e/ou religião respectiva, o que é expressamente vedado
pelo art. 19, inc. I, da CF/1988.
1 Uniões homossexuais: efeitos jurídicos. São Paulo: Método, 2004, p. 22.
2 A expressão amor romântico não constitui redundância, mas necessária diferenciação
do mesmo para o amor fraterno, que se sente por familiares e amigos íntimos. Ainda
que seja mais do que evidente que quando se fala em homoafetividade ou
heteroafetividade está-se referindo ao amor romântico, não é incomum ouvir em
resposta à afirmação de que homossexuais amam pessoas do mesmo sexo que amor
sente-se inclusive por familiares, em referência ao amor fraterno, como se fosse
impossível amar romanticamente pessoas do mesmo sexo (este autor já ouviu isto
diversas vezes). Então, para evitar mal-entendidos (embora um mínimo de bom-senso
na interpretação já afastasse essa possibilidade), fazemos referência a amor
romântico neste trabalho como aquele que existe nas uniões amorosas e sexuais entre
duas pessoas – que evidentemente não se limita a paixão ou a desejo carnal, seja
entre heterossexuais ou gays, mas no desejo de construção de uma vida em comum,
como se casados (civilmente) fossem. Ademais, fica expresso que sempre que se
referir meramente a amor neste trabalho (sem nenhuma adjetivação), estaremos nos
referindo ao citado amor romântico. Cite-se, por fim, que, ainda que se propague que o
amor romântico seja uma invenção do século XIX, fato é que as uniões amorosas
entre duas pessoas são, atualmente, pautadas por ele, razão pela qual, ao menos no
atual contexto histórico, é correta a definição apresentada. De qualquer forma, uma
definição que se acredita inalterável por futuras mudanças de paradigmas no que
tange ao amor é a definição técnica apresentada (atração erótico-afetiva).
3 Afirma DIAS, Maria Berenice. União homoafetiva. O preconceito & a justiça. 5. ed. São
Paulo: RT, 2011, p. 43, que, etimologicamente, “o vocábulo ‘homossexualidade’ foi
criado pelo médico húngaro Karoly Benkert e introduzido na literatura técnica no ano
de 1869. É formado pela raiz da palavra grega homo, que quer dizer ‘semelhante’, e
pela palavra latina sexus, passando a significar ‘sexualidade semelhante’. Exprime
tanto a ideia de semelhança, igual, análogo, ou seja, homólogo ou semelhante ao sexo
que a pessoa almeja ter, como também significa a sexualidade exercida com uma
pessoa do mesmo sexo”.
4 Definição constante nos Princípios de Yogyakarta, p. 6. Ditos princípios foram
facilmente localizados no google por este autor. De qualquer forma, segue um link que
dá acesso a um arquivo (sob a forma de “.pdf”) contendo-
os: www.sxpolitics.org/mambo452/index.php?
option=com_docman&task=doc_download&gid=34 . Acesso em: 7 jul. 2008. Vide o
item 1.1 do Capítulo 17, em nota de rodapé, para vislumbrar os direitos garantidos por
essa declaração.
5 Extraem-se do Dicionário Houaiss da língua portuguesa as seguintes definições de
amor: “atração afetiva ou física que, devido a certa afinidade, um ser manifesta por
outro”, “forte afeição por outra pessoa, nascida de laços de consanguinidade ou de
relações sociais”; “atração baseada no desejo sexual; afeição e ternura sentida por
amantes” (2.a reimpr. com alterações, 2007, p. 193).
6 Enézio de Deus Silva Júnior sintetiza bem os motivos que ensejaram tais neologismos:
“No Brasil, dois vocábulos foram inseridos na linguagem comum, em plausíveis
iniciativas, que contribuíram para a compreensão da homossexualidade de uma forma
coerente mais natural: homoerotismo e homoafetividade. O primeiro, do psicanalista
Jurandir Costa-Freire, visa a ‘revalorizar, dar um outro peso moral às experiências
afetivo-sexuais que, hoje, são pejorativamente etiquetadas de homossexuais’ (COSTA,
1992, p. 24). A segunda expressão, da jurista e desembargadora Maria Berenice Dias,
enfatiza, com muita propriedade terminológica, o afeto, enquanto justificativa maior da
expressão erótica dos que se sentem atraídos pelo mesmo sexo. Homoafetivos,
destarte, são os vínculos entre pessoas homossexuais (que, bem mais do que sexuais
no sentido genital, encontram no amor a sua razão de se desenvolverem e de
existirem em sociedade, apesar de todo o preconceito)” (JÚNIOR, Enézio de Deus
Silva. A possibilidade jurídica de adoção por casais homossexuais, 2.a Edição, 2.a
Tiragem, Curitiba: Editora Juruá, 2007, p. 57-58).
7 Vale citar, ainda, o significado do termo homoessência: “A homossexualidade, em
sintonia com as reformulações científicas, com os novos entendimentos sobre
orientação afetivo-sexual e em conformidade com os avanços jurídicos, em matéria de
direitos humanos, deve ser vislumbrada no plano essencial da constituição humana –
assim como as outras manifestações ou variantes do desejo, como a
heterossexualidade e a bissexualidade. Pela razão de sempre ter sido alvo de
escárnio, repúdio e de preconceitos infundados, apresento, através desta obra, e
ratifico a expressão que cunhei (desde a defesa do meu trabalho monográfico):
homoessência e suas variantes (homoessencial, homoessencialidade), visando a uma
compreensão sensível da afetividade voltada para o mesmo sexo, porquanto a
estrutura humana de desejo é infindável nascente da psique e um bem fundamental,
que não se obstaculiza; no máximo, nega-se no âmbito subjetivo ou camufla-se, no
social. A atração (inclinação) afetiva para o sexo idêntico, com efeito, não surge como
escolha nem cessa por imposição ou vontade, assim como o desejo heterossexual.
Por isso, a livre manifestação da sexualidade (e, pois, da afetividade) está entre os
direitos consagrados, internacionalmente, como fundamentais e inalienáveis dos seres
humanos” (Ibidem, p. 58 – sem grifos no original).
8 Considerando que o termo erotismo significa “estado de excitação sexual” (Dicionário
Houaiss da língua portuguesa, 2.a reimpressão, 2007, p. 1190), penso que isso pode
causar os mal-entendidos que o termo homoafetivo visa justamente evitar, apesar da
boa intenção de seu autor (demonstrada na transcrição supra), razão pela qual opto
pela utilização deste último.
9 No mesmo sentido, CASTAÑEDA, Marina. A Experiência Homossexual. Explicações e
conselhos para os homossexuais, suas famílias e seus terapeutas. Tradução: Brigitte
Moonique Hervot e Fernando Silva Teixeira Filho. São Paulo: A Girafa Editora, 2007, p.
73, para quem “é importante fazer a distinção entre a orientação sexual (o sexo para o
qual sentimos amor e desejo) e a identidade sexual (o fato de assumir plenamente
esta orientação). Pode haver orientação sexual, mas não identidade; é, de fato, uma
situação bastante frequente. A primeira aparece geralmente durante a infância; a
segunda não pode tomar forma antes da adolescência (pois não temos a consciência
necessária de nós mesmos antes dessa etapa), e só pode se desenvolver plenamente
na idade adulta – isto é, depois dos vinte anos, aproximadamente”, até porque, como
diz a autora adiante, “A identidade constrói-se também conhecendo os seus
semelhantes, e nessa etapa de exploração é essencial conhecer outros
homossexuais. Assim, aprende-se que não se está só, que há inúmeras maneiras de
viver a homossexualidade, e que existem muitos parceiros possíveis. Entende-se
também que se pertence a uma comunidade, e isso é indispensável quando se passa
pelo luto da identidade heterossexual. Finalmente, o fato de compartilhar com outros
suas primeiras experiências homossexuais é o primeiro passo de um longo trabalho de
‘saída do armário’ (...)” (Ibidem, p. 94 – grifos nossos).
10 Sigla para “Lésbicas, Gays, Bissexuais e Transgêneros”.. Na 1ª edição desta obra,
afirmei que parecia que a militância havia deliberado pela alteração da sigla, de
GLBTT, para LGBTT (dois “Ts” para “Travestis e Transexuais”), de sorte a se dar maior
visibilidade às mulheres lésbicas. Pois bem, realmente colocou-se a letra “L” no início
da sigla, deixando-a como “LGBT” (com um “T” designando Travestis e Transexuais).
Assim, embora continue pensando que o importante é termos todos os grupos
representados nas letras da sigla, para evitar confusões no público não militante pela
diferença de siglas, adoto a sigla LGBT (Lésbicas, Gays, Bissexuais e Transgêneros),
que se consolidou ao longo dos últimos anos e é, ainda, a sigla utilizada pela militância
internacional.
11 Quando a pessoa começa a ter noção de sua sexualidade.
12 Vide Representação Conar 039/06, que se encontra na seção de casos de relativos a
“respeitabilidade” (Disponível em: www.conar.org.br, link “decisões e casos”, “resumo
das decisões”, “ano-2006”, “abril-2006”. Acesso em: 7 jul. 2008). Segue o resumo do
caso, oriundo do site do Conar: “Consumidores de São Paulo insurgiram-se contra
outdoor de lubrificante da DKT com a imagem de dois homens prestes a se beijar.
Segundo as queixas, a peça seria inadequada por apelo excessivo à sensualidade e
ao erotismo, temas impróprios para veiculação em mídia exterior, exposta
diuturnamente a público amplo, inclusive crianças. Antes mesmo que o Conar
aceitasse a denúncia, em meio à divulgação oferecida pela imprensa, os outdoors
passaram a ser retirados dos locais de exibição. Houve concessão de medida liminar,
seguida de pedido de reconsideração pela defesa, apoiando-se nos protestos de
pessoas contrariadas pela retirada dos cartazes. A medida liminar, no entanto, foi
mantida pelo relator. Anunciante e agência afirmaram em defesa enviada ao Conar
que a intenção da campanha era se comunicar com o público homossexual, alvo do
produto anunciado, e que o fez de modo legítimo. Alegou que a imagem mostrava um
‘quase beijo’, o que não deveria causar indignação, uma vez que a fotografia não se
valia de vulgaridades, retratando apenas uma relação afetuosa. Em seu parecer, o
relator esclareceu que a opção sexual retratada no anúncio não foi o motivo da
restrição aplicada a ele e que a peça seria igualmente ousada se, ao invés de dois
homens, mostrasse um homem e uma mulher em um ‘quase beijo’. Não pela imagem,
mas por sua associação a um produto denominado lubrificante pessoal. Para ilustrar
sua consideração, o relator levantou a hipótese de uma criança que vê o cartaz e
pergunta ao pai o que é lubrificante pessoal. Dessa forma, recomendou a sustação
definitiva da peça em função do veículo utilizado. Seu voto foi aceito unanimemente
pelos membros do Conselho de Ética” (sem grifo no original). Algumas observações
merecem ser feitas. O cartaz não tinha absolutamente nada de “erótico”, mas apenas
dois homens em um quase beijo (em vias de se beijarem). Ademais, não parece
acertada a colocação de que crianças poderiam indagar o que seria um lubrificante.
Além de ser uma mera elucubração abstrata, não há problema nenhum em um pai ou
uma mãe explicar ao filho o que seria um lubrificante, de forma sutil, para uma criança
entender – da mesma forma como se explica para crianças de onde os bebês vêm,
para usar um exemplo banal mas relativo a uma hipótese análoga. Mesmo porque as
denúncias foram feitas com base no simples fato de se tratar de duas pessoas do
mesmo sexo, não pela associação ao preservativo. Apenas para deixar claro: não digo
que a decisão foi pautada por preconceito (especialmente pelo argumento utilizado) –
preconceituosas foram as queixas de consumidores que ensejaram a denúncia (feita
de ofício). A decisão foi apenas equivocada, pelas razões já expostas. De qualquer
forma, ao menos uma notícia divulgou que a decisão foi pautada no fato de que,
apesar da campanha não ser ofensiva, o outdoor não seria o meio adequado para
exibição de cenas com “excesso de erotismo” (sic). Disponível
em: http://www.dkt.com.br/arquivos_detalhe.asp?
ARQ_CODIGO=6&GRUPO_CODIGO=&COD=CAMPANHAS&CD_TEXTO=ANUNCIO
S. Acesso em: 7 jul. 2008, que contém tanto o outdoor original quanto o segundo, com
a frase “O amor não deveria incomodar”, no que se volta a questão já citada: há
inúmeros outdoors com cenas eróticas entre casais heteroafetivos, e nenhuma
insurgência se cria contra eles.
13 Marina Castañeda parece ter entendimento análogo, senão vejamos: “Em todos esses
casos, falta algo. Esse algo é a identidade homossexual, que compreende a
consciência e a aceitação de todos os elementos já descritos. A identidade implica,
portanto, uma convergência de desejos, de práticas e de consciência, que culminam
em uma definição e uma aceitação de si como homossexual. Ora, todos esses
elementos não se manifestam ao mesmo tempo, mas geralmente em épocas
diferentes da vida. E não aparecem na mesma ordem: em uma pessoa podem surgir
primeiramente as práticas, depois o desejo, depois o amor; em outra, a ordem pode
ser invertida. Não há uma sequência nem uma progressão no tempo que sejam
comuns a todos os homossexuais. Ou melhor, talvez devêssemos falar de diferentes
fases ou graus na homossexualidade, indo desde experiências ou desejos isolados
(tais quais vivem muitas pessoas), até uma relação amorosa e um estilo de vida
abertamente homossexuais. Somente quando todos os elementos se combinam
podemos falar de uma identidade homossexual: só ‘se torna’ realmente homossexual
quando se atinge essa congruência interna” (CASTAÑEDA, Marina. Op. cit., p. 52 –
grifos nossos).
14 Cf. CASTAÑEDA, Marina. Op. cit., p. 73.
15 Cf. BORRILLO, Daniel. Homofobia. História e crítica de um preconceito. Tradução de
Guilherme João de Freitas Teixeira. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2000, pp. 13 e
24-25.
16 Ibidem, p. 16 (com leve paráfrase).
17 Nesse sentido: RIOS, Roger Raupp. O conceito de homofobia na perspectiva dos
direitos humanos e no contexto dos estudos sobre preconceito e discriminação, in:
RIOS, Roger Raupp (org.). Em defesa dos direitos sexuais. Porto Alegre: Editora
Livraria do Advogado, 2006, p. 113-114, 118-120, 122, 128-129 e 131-134. Após
apontar que, em uma abordagem psicológica, “preconceito é o termo utilizado, de
modo geral, para indicar a existência de percepções negativas por parte de indivíduos
e grupos, onde estes expressam, de diferentes maneiras e intensidades, juízos
desfavoráveis em face de outros indivíduos e grupos, dado o pertencimento ou a
identificação destes a uma categoria tida como inferior” e que, em uma abordagem
sociológica, “o preconceito é ‘definido como uma forma de relação intergrupal onde, no
quadro específico das relações de poder entre grupos, desenvolvem-se e expressam-
se atitudes negativas e depreciativas além de comportamentos hostis e
discriminatórios em relação aos membros de um grupo por pertencerem a este grupo
(Camino & Pereira, no prelo)”, afirma o autor que “homofobia é a modalidade de
preconceito e de discriminação direcionada contra homossexuais”. Anota ainda que
“as ideias de ‘aversão a homossexuais’ e de ‘heterossexismo’ operam como pontos de
convergência de algumas das controvérsias aludidas, possibilitando examinar o estado
da arte destes estudos e uma análise da homofobia dentro do paradigma dos direitos
humanos”; que o termo homofobia foi cunhado justamente com o significado de
aversão fóbica, ou seja, “o próprio termo foi cunhado a partir de elaborações
psicológicas”, mas acabou adquirindo também a condenação do heterossexismo, “um
sistema onde a heterossexualidade é institucionalizada como norma social, política,
econômica e jurídica, não importa se de modo explícito ou implícito”, sendo que, nesse
sentido, “A relação umbilical entre sexismo e homofobia é um elemento
importantíssimo para perceber a homofobia como derivação do heterossexismo”, na
medida em que “a homofobia revela-se como contraface do sexismo e da
superioridade masculina, na medida em que a homossexualidade põe em perigo a
estabilidade do binarismo das identidades sexuais e de gênero, estruturadas pela
polaridade masculino/feminino”. Adiante, precisa as diferenças entre preconceito e
discriminação, pois “o termo discriminação designa a materialização, no plano
concreto das relações sociais, de atitudes arbitrárias, comissivas ou omissivas,
originadas do preconceito, capazes de produzir violação de direitos contra indivíduos e
grupos estigmatizados”, cabendo anotar que o autor vislumbra no termo discriminação
uma carga inerentemente negativa, de diferenciação prejudicial e injusta (o que, a meu
ver, tem certa razão mas não precisa ser entendido dessa forma, bastando que se
adjetive a discriminação de positiva/benéfica ou negativa/prejudicial). Aponta o autor,
ainda, que “fica claro que a indivíduos e grupos distantes dos padrões heterossexistas
é destinado um tratamento diverso daquele experimentado por heterossexuais
ajustados a tais parâmetros. Essa experiência, comumente designada pelo termo
‘homofobia’, implica discriminação, uma vez que envolve distinção, exclusão ou
restrição, prejudicial ao reconhecimento, ao gozo ou exercício em pé de igualdade de
direitos humanos e liberdades fundamentais” para, por fim, analisar modalidades de
discriminação homofóbica direta e indireta.
18 Ausência de formalização esta que supõe prova judicial ou extrajudicial da união para
que tenha a si reconhecidos os efeitos jurídicos da relação, o que no casamento civil
se resolve com a mera apresentação da certidão de casamento, sem necessidade de
outras provas, em que se percebe que o casamento civil traz maior segurança jurídica
que a união estável.
19 Tanto que já há autores que usam tal terminologia, como se pode ver em JÚNIOR,
Aparecido Januário. CAPUCHO, Fábio Jun. MANFROI, José. Homoconjugalidade &
Justiça: da Possibilidade Jurídica do Casamento Homoafetivo à Igualdade Virtual?,
disponível em http://www.unigran.br/revistas/juridica/ed_atual/artigos/artigo09.php
(último acesso: 2 out. 2012). Essa é a forma como sempre entendi a terminologia
homoafetividade/heteroafetividade: a conjugalidade com pessoa do mesmo sexo ou de
sexo oposto.
20 ADPF 132 e ADI 4.277, voto do Ministro Luiz Fux, p. 13 – grifos nossos.
21 ADPF 132 e ADI 4.277, voto do Ministro Celso de Mello, p. 40 – grifos nossos.
Momento no qual, aliás, o Ministro fez menção a trecho desta obra que defende o
afeto como princípio jurídico-constitucional implícito ao princípio da dignidade da
pessoa humana, consoante capítulo 5, item 2.4.1 (“O Amor Familiar como o Elemento
Formador da Família Contemporânea”).
22 ADPF 132 e ADI 4.277, voto do Ministro Lewandowski, p. 10 – grifos nossos.
23 ADPF 132 e ADI 4.277, voto do Ministro Marco Aurélio, p. 8 – grifos nossos.
24 ADPF 132 e ADI 4.277, voto do Ministro Ayres Britto, p. 27 – grifos nossos.
25 ADPF 132 e ADI 4.277, voto do Ministro Ayres Britto, p. 29 – grifos nossos.
26 ADPF 132 e ADI 4.277, voto do Ministro Ayres Britto, p. 20 – grifos nossos.
27 ADPF 132 e ADI 4.277, voto do Ministro Ayres Britto, p. 21 – grifos nossos.
28 ADPF 132 e ADI 4.277, voto do Ministro Ayres Britto, pp. 21-22.
29 ADPF 132 e ADI 4.277, voto do Ministro Ayres Britto, pp. 22-23 e 24.
30 Dois amigos ou dois primos distantes podem manter uma comunhão plena de vida e
interesses, de forma pública, contínua e duradoura sem, todavia, sentirem um afeto
romântico e/ou sem manterem relações sexuais. Esse é um exemplo do que chamo de
família fraterna para diferenciar essa situação da família conjugal, necessariamente
pautada no afeto romântico/conjugal entre seus integrantes. O conceito de família
cunhado neste livro, de amor familiar como o amor que vise a uma comunhão plena de
vida e interesses, de forma pública, contínua e duradoura é amplo o suficiente para
abarcar tanto o amor romântico quanto o amor fraterno – até por isso destaco que o
amor familiar relativo ao casamento civil e à união estável é o amor romântico que vise
a uma comunhão plena de vida e interesses, de forma pública, contínua e duradoura,
justamente para diferenciar as situações. Não obstante, vale destacar a pertinência da
lição de Maria Berenice Dias no sentido do cabimento da analogia para, no caso de
falecimento de um dos integrantes de uma família fraterna, ser devida a analogia com
o regime jurídico da união estável para garantir que o(a) companheiro(a) fraterno(a)
receba herança do falecido(a) de acordo com as regras sucessórias da união estável –
afinal, apesar de não serem situações idênticas pela união estável constitucionalizada
ter visado normatizar as uniões conjugais entre duas pessoas, são análogas porque
em ambas temos o amor familiar caracterizador da família contemporânea, a despeito
de um caso versar sobre amor romântico/conjugal e outro sobre amor fraterno.
31 FERRY, Luc. A Revolução do Amor. Por uma Espiritualidade Laica, Tradução de Véra
Lucia dos Reis, 1ª edição, Rio de Janeiro: Editora Objetiva, 2010, capa interna e p. 94.,
32 Decisão disponível em
<http://www.direitohomoafetivo.com.br/anexos/juris/1204__c336240403f50dfa15db9c1
937c92c25.pdf> (último acesso em 2 out. 2012 – processo não informado), na qual
afirmou o magistrado que “amor e afeto [são] sentimentos basilares para lastrear a
vontade de formar uma entidade familiar e estabelecer objetivos em comum, além da
convivência e mútua assistência, com características de duração, publicidade ,
continuidade e intenção de constituir família”.
33 SPENCER, Colin. Homossexualidade: uma história, 2. ed., Rio de Janeiro: Record,
1999, p. 97, afirma que “Nem está essa visão [de uma suposta condenação bíblica da
homossexualidade] apoiada nas afirmações de Cristo, que pouco falou de sexo, a não
ser para desaprovar o adultério e a promiscuidade”.
34 HELMINIAK, Daniel A. O que a Bíblia realmente diz sobre a homossexualidade, 1.ª
Edição São Paulo: GLS Edições, 1998, p. 27 e 28, traz a seguinte lição: “A
interpretação literal afirma entender o texto unicamente conforme o que ele diz. Esta é
a abordagem fundamentalista. Ela afirma não interpretar o texto, mas simplesmente lê-
lo como ele é. Entretanto, é claro que mesmo o fundamentalismo segue uma regra de
interpretação. Esta regra, simples e fácil, diz que a significação do texto é dada no
presente e por quem o lê. Façamos a comparação com a outra abordagem, a da
leitura histórico-crítica. A regra aqui diz que a significação do texto é dada por aquele
que o escreveu no passado. Para afirmar qual é o ensinamento dado pelo texto bíblico
hoje, primeiro é preciso compreendê-lo em sua situação original e então transportar
seu significado para o presente. (...) Apesar de ouvirmos com mais frequência no rádio
e na TV apenas a abordagem fundamentalista, todas as principais igrejas cristãs
apoiam o método histórico-crítico. Portanto, o argumento apresentado aqui não é
novidade; ao contrário, ele é absolutamente padronizado, sendo sustentado por quase
dois séculos de estudos. De fato, ele já existia antes mesmo do fundamentalismo, que
surgiu em parte como uma oposição a ele”.
35 Nesse sentido, segura é a lição do padre Daniel A. Helminiak (Ibidem, p. 23 e 24): “É
importante prestar atenção às diversas formas de se ler um texto, especialmente
quando lidamos com textos antigos como a Bíblia. As palavras podem ter um
determinado significado para nós hoje e, na época das pessoas que a escreveram,
seu significado pode ter sido completamente diferente. Tomemos um exemplo da vida
cotidiana. Temos no Brasil a expressão jogo de cintura. Para entendê-la é preciso
conhecer algo sobre o carnaval. Quem melhor impressiona na hora de um desfile é
quem consegue rebolar, ou seja, cuja cintura não é rígida. Por associação, quem tem
jogo de cintura é flexível nas situações e consegue sair dançando dos problemas. Se
você fala português muito bem mas não sabe nada sobre carnaval nem conhece esta
expressão idiomática, ao ouvir pela primeira vez a frase: ‘Sabe o Roberto? Não tem
muito jogo de cintura’, é provável que pense que o Roberto está com muito problema
de coluna. Você entendeu as palavras, mas não o significado. Claro, você pode
argumentar que as palavras significam apenas aquilo que dizem. Você as ouviu e
entendeu. Roberto não tem jogo, ou movimento, na cintura, está imóvel, paralisado.
Afinal, você sabe falar português! Você poderá até insistir, mas todo mundo irá pensar
que você é quem não tem jogo de cintura” (grifos do original).
36 “Muitos centraram-se na violação como sendo um ato sexual em vez de um ato de
violência. Mas não fiquemos por aqui. As razões da destruição de Sodoma são melhor
esclarecidas por Ezequiel (16:49,50). Segundo o profeta os pecados de Sodoma eram
orgulho, abundância de alimentos e insolência. Nada aqui foi dito sobre a
homossexualidade, nem noutro local qualquer das Escrituras, referente à Sodoma”
(VARELLA, Luiz Salem. Homoerotismo no Direito Brasileiro & Universal: Parceria Civil
entre Pessoas do Mesmo Sexo, 1.a Edição, Campinas: Editora Agá Juris, 2000, p.
226-227, baseado em estudo da Associação Portuguesa de Homossexualidade
Masculina/APHM – antiga “A Muralha”, como referida no livro – sem grifo no original).
37 “Hincmar de Reims (806-882), um arcebispo e teólogo que muito influenciou o
pensamento cristão, aplicou o termo sodomia a todos os atos sexuais não procriativos.
(...) Hincmar coloca os atos homossexuais junto com a preguiça e a gula, afastando-os
do pecado nefando em que Crisóstomo e outros intérpretes de São Paulo os
converteram. A Igreja via o adultério, a fornicação e a bestialidade como atos muito
mais sérios. (...) São Bonifácio também redefine a ‘sodomia’ e seus pecados, quando
observa que havia boatos de que o povo da Inglaterra havia rejeitado casamentos
legais em favor do adultério e que ‘tais uniões engendrarão um povo degenerado e
ignóbil, queimando de luxúria’. Mais tarde, Bonifácio descreveria exatamente o que
queria dizer com a expressão ‘luxúria sodomítica’: desprezo pelas leis do casamento e
preferência pelo incesto, promiscuidade, adultério e união ímpia de religiosas e
mulheres nos conventos” (SPENCER, Colin. Homossexualidade: uma história, 2.ª
Edição, Rio de Janeiro: Record, 1999, p. 98-99).
38 Mas, ainda que não se aceite tal tese, é de se lembrar que “Obviamente os cristãos
dos nossos dias não se encontram vinculados pelas regras e rituais descritos no
Levítico (cfr. Gálatas, 3:22-25, em particular o versículo 25). Se estas passagens
fossem válidas para condenar a homossexualidade, então os cristãos teriam de
cumprir igualmente os demais preceitos descritos no Levítico. (...) [Por outro lado] O
termo abominação se encontra geralmente associado à idolatria e à prática religiosa
do culto da prostituição por parte dos ‘cananitas’, de acordo com Ezequiel. Dada a
associação da palavra ‘tovah’ com o culto da prostituição é pouco provável que esta se
aplique às relações estáveis e de fidelidade entre homossexuais” (ibidem, p. 227-228).
39 “Nesta passagem bíblica as palavras gregas ‘physin’ e ‘paraphysin’ têm sido
traduzidas como natural e não natural, respectivamente, o que não significa ir contra
as leis da natureza, implicando antes uma ação incaracterística para essa pessoa. A
palavra não implica em si qualquer condenação de ordem ética. Paulo vê as relações
sexuais entre homossexuais como impuras e merecendo castigo, tal como o faz para a
falta de circuncisão, ou o comer comidas proibidas. Somente menciona o fato para
fazer sobressair a parte principal de sua carta, onde as condições de pureza da lei
judaica não são relevantes para Jesus Cristo” (ibidem, p. 228 – sem grifos no original).
40 “Numa lista de vícios que excluem do Reino de Deus, o apóstolo [Paulo] introduz-nos
dois tipos de pessoas: os malakoi, os moles, os doces, isto é, os efeminados, o
homossexual passivo e o arsenokoitai, o vocábulo desconhecido do grego clássico,
mas etimologicamente muito claro e que indicaria os homossexuais ativos, porém
ambas as palavras devem ser interpretadas à luz do abuso e luxúria correntemente
associados às relações sexuais homem-homem no Império Romano” (ibidem, p. 228 –
sem grifo no original).
41 Nesse sentido é a conclusão do padre Daniel A. Helminiak (O que a Bíblia realmente
diz sobre a homossexualidade, 1.ª Edição São Paulo: GLS Edições, 1998, p. 123-125),
com a qual se concorda: “Todos estes textos tratam de temas outros que não a própria
atividade homogenital, e os cinco se resumem a apenas três diferentes questões.
Primeiro, o Levítico proíbe a homogenitalidade como uma traição à identidade judaica,
pois supostamente o sexo entre homens era uma prática canaanita. A questão tratada
pelo Levítico com relação ao sexo entre homens era a da impureza, uma ofensa contra
a religião judaica e não uma violação da natureza intrínseca do sexo. Segundo, a
Epístola aos Romanos pressupõe o ensinamento das leis judaicas do Levítico, e em
Romanos o sexo entre homens é mencionado como um exemplo de impureza.
Entretanto, a sua inclusão em Romanos tem a finalidade precisa de demonstrar que as
questões de pureza não tinham importância em Cristo. Finalmente, através do obscuro
termo arsenokoitai, 1 Corintios e 1 Timóteo condenam os abusos associados à
atividade homogenital no século I: exploração e libertinagem. Portanto, a Bíblia não
assume diretamente nenhuma posição definida sobre a moralidade dos atos
homogenitais enquanto tais, e nem sobre a moralidade dos relacionamentos de gays e
lésbicas. De fato, o mais extenso tratamento que a Bíblia concede ao assunto – em
Romanos – sugere que em si os atos homogenitais não têm qualquer significado ético.
Entretanto, compreendidos em seu contexto histórico, os ensinamentos de 1 Coríntios
e 1 Timóteo deixam claro o seguinte: as formas abusivas de sexo entre homossexuais
e entre heterossexuais devem ser evitadas. (...) Isto é tudo o que pode ser dito
honestamente acerca dos ensinamentos bíblicos sobre a homossexualidade. Se as
pessoas ainda quiserem saber com certeza se o sexo entre gays ou lésbicas em si é
bom ou ruim, se os atos homogenitais enquanto tais são certos ou errados, eles terão
de procurar a resposta em algum outro lugar. Sim, porque o simples fato é que a Bíblia
nunca aborda essa questão. E mais: a Bíblia parece deliberadamente não estar
preocupada com este assunto (sem grifos no original).
42 Ademais, é pertinente a observação de Luiz Salem Varella (Homoerotismo no Direito
Brasileiro & Universal: Parceria Civil entre Pessoas do Mesmo Sexo, 1.a Edição,
Campinas: Editora Agá Juris, 2000, p. 228-229), que, ainda em termos bíblicos, aponta
para o Gênesis 1-3, que versa sobre relações humanas, no sentido de que: “O
importante é o amor e sabedoria de Deus, que fez todas as coisas boas e não quer
nenhum mal a ninguém. Nada sugere que os autores bíblicos pretendessem dar uma
lição sobre orientação sexual” – mesmo porque a ideia que temos hoje de orientação
sexual só veio a surgir no final do século XIX, conforme demonstrado no capítulo
anterior.
43 HELMINIAK, Daniel A. O que a Bíblia realmente diz sobre a homossexualidade, 1.ª
Edição São Paulo: GLS Edições, 1998, p. 18.
44 Dicionário Houaiss da língua portuguesa, 2.a reimpr. com alterações, Rio de Janeiro:
Editora Objetiva, 2007, p. 2730.
45 LOPES, José Reinaldo de Lima. Liberdade e direitos sexuais – o problema a partir da
moral moderna, in: RIOS, Roger Raupp (org.), Em defesa dos direitos sexuais, 1.a
Edição, Porto Alegre: Editora Revista do Advogado, 2007, p. 61.
46 Aponte-se, por oportuno, que é (para dizer o mínimo) contraditória a posição da Igreja
Católica quando diz que “aceita homossexuais mas não aceita a homossexualidade” –
ora, isso é uma contradição em termos/ideias. Dita igreja quer, com isso, dizer que
homossexuais que se mantenham em celibato serão por ela aceitos, ao passo que por
homossexualidade ela entende a efetiva “prática homossexual” – o relacionamento
homoafetivo. Contudo, a homossexualidade é o sentimento de amor romântico, a
atração erótico-afetiva por pessoas do mesmo sexo. A homossexualidade sempre
existirá dentro de homossexuais, ainda que estes se mantenham celibatários, donde
ou se aceita a homossexualidade ou não há como se aceitar os homossexuais.
47 VARELLA, Luiz Salem. Homoerotismo no Direito Brasileiro & Universal: Parceria Civil
entre Pessoas do Mesmo Sexo, 1.a Edição, Campinas: Editora Agá Juris, 2000, p. 229
(sem grifo no original).
48 Explicitando a evolução da ciência médica quanto à classificação da
homossexualidade, leciona Maria Celina Bodin de Moraes (A união entre pessoas do
mesmo sexo..., p. 95-96 apud GIRARDI, Viviane. Famílias Contemporâneas, Filiação e
Afeto. A Possibilidade Jurídica da Adoção por Homossexuais, 1ª Edição, 2005, Porto
Alegre: Editora Livraria do Advogado, p. 69-70, em nota de rodapé): “Assinale-se que a
Organização Mundial de Saúde – OMS – retirou, da última ‘Classificação Internacional
de Doenças’ (CID) divulgada, qualquer referência à homossexualidade. A mudança foi
significativa. Com efeito, na CID 9, de 1975, o homossexualismo constava no capítulo
das doenças mentais (como ‘Desvios e Transtornos Sexuais’, sob o código 302), com
diagnóstico psiquiátrico. Em 1985, numa das revisões periódicas, a OMS publicou
circular na qual o homossexualismo, por si só, deixava de ser considerado como
doença. Deveria passar por isso, do capítulo das doenças mentais para o capítulo dos
‘sintomas decorrentes de circunstâncias psicossociais’. Desde 1995, porém, quando
da divulgação da CID 10, referências à homossexualidade não mais aparecem. Os
psiquiatras, incumbidos da tarefa de revisão da CID, concluíram não existirem sinais
que justifiquem considerar a orientação homossexual como doença ou mesmo como
sintoma, tratando-se apenas de uma manifestação do ser humano” (sem grifo no
original).
49 Deve-se apontar que é um absurdo afirmar que a homossexualidade só teria sido
retirada da Classificação Internacional de Doenças em virtude de pressões do
Movimento Homossexual, como se este tivesse poder para tanto – caso tivesse
tamanho poder, não teriam homossexuais já conseguido a igualdade de direitos pela
qual tanto se luta? A retirada da homossexualidade da CID ocorreu porque nunca
houve provas de que a homoafetividade constituísse uma patologia, em especial
porque ela não prejudica em nada o corpo humano (o assunto será tratado com
pormenores ainda neste capítulo). A OMS é um órgão que decide tecnicamente, não
politicamente. É o cúmulo pretender desmerecer dita retirada da homossexualidade da
Classificação Internacional de Doenças, dada a absoluta ausência de provas desta
infeliz colocação.
50 O “preconceito internalizado” é o juízo de valor irracional que alguém passa a ter
sobre si mesmo, dada uma característica sua, pelo simples fato de a sociedade repeti-
lo desde sempre. No caso dos homossexuais, é notório que vivemos em uma
sociedade heterossexista, ou seja, em uma sociedade que afirma que seria a
heterossexualidade a única orientação sexual “certa”, “natural” etc., o que é
completamente equivocado, ante a citada posição da ciência médica mundial. Mas,
inobstante isso, imagine o leitor o caso dos homossexuais, que desde pequenos
ouvem esta equivocada premissa. Isso faz que alguns passem a acreditar que seriam
pessoas indignas pelo simples fato de serem homossexuais – ou seja, são eles
enganados pelo preconceito homofóbico da sociedade, internalizando-o. Mas, repita-
se: não há nada de errado em ser homossexual, pelo simples fato de não haver prova
nenhuma nesse sentido, e pela posição da ciência médica mundial nesse sentido.
51 Segundo Marina Castañede: “Todas as pesquisas recentes mostram que é quase
impossível mudar a orientação sexual, mesmo quando uma pessoa assim o deseja.
Ademais, as tentativas desse tipo podem ter consequências graves: o homossexual
que procura ‘ser curado’ e não consegue acaba por se sentir ainda mais doente e
culpado do que antes. Como explicou a Associação Americana de Psiquiatria dos
Estados Unidos no final de 1998, ao condenar formalmente qualquer terapia visando
‘curar’ a homossexualidade, ‘a terapia reparadora pode trazer danos aos pacientes,
provocando depressão, ansiedade e condutas autodestrutivas’” (CASTAÑEDA, Marina.
A Experiência Homossexual. Explicações e conselhos para os homossexuais, suas
famílias e seus terapeutas. Tradução: Brigitte Monique Hervot e Fernando Silva
Teixeira Filho. São Paulo: A Girafa Editora, 2007, p. 31). Só uma ressalva: não há
prova nenhuma acerca da possibilidade de mudança de orientação sexual – o que
essas pseudoterapias fazem é incutir na pessoa homossexual ou bissexual o temor de
ir ao inferno por atração sexual homoafetiva e fazem, portanto, que a pessoa reprima
sua homossexualidade e passe a viver uma vida heterossexual (mesmo sem desejo
sexual heteroafetivo), sem que isso faça desaparecer seus desejos homossexuais.
Isso, data venia, não pode ser considerado como “mudança” de orientação sexual.
52 Veja-se, por exemplo, o entendimento de uma instância inferior que, felizmente, foi
reformado pela Suprema Corte dos EUA no histórico caso Loving v. Virginia (388 US 1,
1966), no qual um homem negro e uma mulher branca foram condenados a um ano de
prisão por terem se casado (pois o chamado casamento “inter-racial” era legalmente
vedado naquele país, vedação esta que só foi derrubada após este julgamento), sob o
seguinte fundamento: “O Todo-Poderoso Deus criou as raças branca, negra, amarela,
malaia e indígena, e ele as colocou em continentes separados. E não haveria motivo
para tais casamentos se não fosse por interferência no Seu arranjo. O fato Dele ter
separado as raças mostra que Ele não teve a intenção de que houvesse mistura entre
as raças” (tradução livre do original: “Almighty God created the races white, black,
yellow, malay and red, and he placed them on separate continents. And but for
interference with his arrangements there would be no cause for such marriages. The
fact that He separated the races shows that He did not intend for the races to mix”).
53 O que mudará caso seja aprovado o PLC 122/06, que visa criminalizar a
discriminação por orientação sexual (e por identidade de gênero), incluindo-o no tipo
penal de racismo. Lembre-se, nesse sentido, que o tipo penal de “racismo” engloba
hoje o preconceito por cor de pele, origem nacional, etnia e religião, sendo que a este
rol pretende o citado projeto de lei incluir a orientação sexual e a identidade de gênero.
Há ferrenhos opositores dessa inclusão, sob o fundamento de que a “liberdade de
expressão” estaria afrontada, sendo que homossexuais estariam sendo alçados a uma
“casta superior” da sociedade. Contudo, trata-se de equívocos gritantes. Em primeiro
lugar, porque não é a “discriminação homofóbica” que estará sendo criminalizada, mas
a discriminação “por orientação sexual”, donde heterossexuais discriminados também
estarão sendo vítimas do novo crime. Segundo, ninguém tem o direito de ofender
ninguém, pois a liberdade de expressão não garante o direito a ofensas e à difusão de
mentiras. Criticar um homossexual meramente por sua homossexualidade é algo tão
descabido quanto criticar alguém apenas devido à cor de pele, visto que (como a cor
de pele) a sexualidade não tem absolutamente nenhuma relação com caráter,
criminalidade, promiscuidade, pedofilia nem nada do gênero (associações que por
vezes são arbitrariamente feitas à homossexualidade...). Terceiro, a discriminação por
orientação sexual sofrida por homossexuais é tão histórica e estigmatizante quanto a
discriminação por cor de pele, etnia, procedência nacional e religião; logo, se a
discriminação por estes critérios pode gerar o crime de racismo, então não há nenhum
óbice que a orientação sexual também o seja, ante o aspecto material da isonomia
(explicitado no capítulo seguinte). Por fim, não há afronta à liberdade religiosa (de
crença, culto etc.) porque evidentemente não se punirá a mera afirmação da
homossexualidade como pecado, pois há livros sagrados de determinadas religiões
que isto afirmam em sua literalidade (embora, ao menos no caso da Bíblia, a
interpretação histórico-crítica demonstre não haver nada pecaminoso na mera
homossexualidade, como demonstram estudos específicos do tema – como o de
Daniel A. Helminiak, supraexplicitado). O que se criminalizará é a discriminação, a
ofensa, a humilhação ao homossexual. Afinal, uma coisa é um religioso dizer em seu
templo de culto, em uma abordagem da homossexualidade, que a homossexualidade
é pecado (sic). Outra bem diferente é afirmar que o homossexual seria uma pessoa
sem caráter, inerentemente promiscuo e/ou pedófilo, incapaz de criar crianças e
adolescentes com amor e dedicação etc. No primeiro caso, tem-se a descrição de algo
que está escrito em um livro religioso, donde a liberdade religiosa aliada à liberdade de
expressão permite sua divulgação; no segundo caso, tem-se afirmações não
referendadas pela literalidade de nenhum livro religioso ou doutrina religiosa e sem
nenhuma comprovação empírico-científica que lhes fundamente, pautadas unicamente
no subjetivismo (vulgo achismo) daquele que faz tais afirmações, de sorte a configurar
um verdadeiro discurso de ódio puramente discriminatório. Assim, no primeiro caso,
não ocorrerá a tipificação do crime mesmo com a aprovação do PLC 122/2006,
tipificação que ocorrerá no segundo caso. Afinal, a liberdade de expressão não abarca
discursos de ódio, mesmo que praticados sob o escudo da liberdade religiosa (para
fins históricos, cumpre lembrar que a Ku Klux Klan era uma organização terrorista que
se dizia pautada na ideologia cristã que pregava abertamente a inferioridade dos
negros relativamente aos brancos, e os ofendiam, chamando-os de animais e outros
impropérios do gênero). Pois bem: da mesma forma que a liberdade de expressão,
aliada à liberdade religiosa, não protegia os discursos de ódio perpetrados pela Ku
Klux Klan contra negros, igualmente não protege discursos que menosprezam os não
heterossexuais em relação aos heterossexuais, visto que tal menosprezo configura
discurso de ódio ou, no mínimo, um discurso preconceituoso puramente
discriminatório, visto que desprovido de comprovação empírico-científica e mesmo de
argumentos lógico-racionais que lhes justifiquem. Considerando que a liberdade é o
direito de fazer tudo o que se queira desde que não se prejudiquem terceiros e que os
discursos de ódio são manifestações ofensivas e/ou que visam perpetrar o preconceito
e/ou a discriminação contra determinada(s) pessoa(s) ou grupo de pessoas, tem-se
que os discursos de ódio não se enquadram no âmbito de proteção da liberdade de
expressão, donde não cabe sequer invocá-la para se defender a inconstitucionalidade
da discriminação por orientação sexual ou por identidade de gênero – mesmo porque
referida criminalização atende aos ditames do próprio Direito Penal Mínimo, que prega
a pertinência de criminalizações apenas quando resguardem um bem jurídico
relevante (de natureza constitucional) e que os demais ramos do Direito não sejam
aptos a resolver o problema, pois tal criminalização visa resguardar o direito à
tolerância (a ser tolerado), no sentido de não ser agredido e/ou ofendido, o que tem
base constitucional no dispositivo que veda preconceitos e discriminações de
quaisquer espécies (art. 3.º, inc. IV), ao passo que leis antidiscriminatórias de cunho
administrativo que preveem punições, como advertências, multas, suspensões e
cassações de licença de funcionamento ou, no caso de funcionários públicos,
punições de acordo com a legislação própria (como faz a Lei Estadual Paulista
10.948/2001), não têm se mostrado efetivas para coibir a discriminação por orientação
sexual ou por identidade de gênero. Não que se espere que uma lei criminal,
isoladamente considerada, resolva o problema; claro que o combate a referidas
discriminações demanda políticas públicas de sensibilização e consequente
conscientização da sociedade acerca de seu descabimento (bem como a capacitação
de funcionários públicos e do setor privado em geral sobre a necessidade de tratar
com igual respeito e consideração a população LGBT relativamente ao tratamento
dispensado às pessoas em geral (LGBT: Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e
Transexuais, cabendo mencionar também as pessoas Intersexuais), o que se afirma é
que, considerando que a ideologia do Direito Penal Mínimo prega a pertinência da
criminalização apenas quando os demais ramos do Direito não se mostrem aptos a
resolver o problema, então essa ineficiência dos demais ramos jurídicos justifica a
criminalização da(s) conduta(s) em questão. Para maiores desenvolvimentos, vide
VECCHIATTI, Paulo Roberto Iotti. Constitucionalidade da classificação da homofobia
como racismo (PLC 122/2006). In: DIAS, Maria Berenice (org.). Diversidade Sexual e
Direito Homoafetivo. São Paulo: RT, 2011, pp. 511-528.
54 Estatística esta retirada do notório “Relatório Kinsey”, elaborado pelo zoólogo
estadunidense Alfred Kinsey em suas obras “O comportamento sexual do homem” e
“O comportamento sexual da mulher”.
55 COSTA, Ronaldo Pamplona da. Homossexualidade: saúde x doença, in: VIEIRA,
Tereza Rodrigues (coord.). Bioética e sexualidade, São Paulo: Editora Jurídica
Brasileira, 2004, p. 67.
56 Ibidem, p. 68.
57 Cumpre aqui transcrever alguns trechos da obra de Luiz Salem Varella (Homoerotismo
no Direito Brasileiro & Universal: Parceria Civil entre Pessoas do Mesmo Sexo, 1.a
Edição, Campinas: Editora Agá Juris, 2000, p. 71-73), que traz uma breve coletânea
de alguns estudos que visaram identificar as origens biológicas da homossexualidade:
“Em 1952, Kallman realizou um dos primeiros estudos genéticos sérios sobre a
homossexualidade. Estudando a orientação sexual de 85 pares de gêmeos idênticos e
não idênticos, ele observou uma concordância de 100% em comportamentos
declaradamente homossexuais nos gêmeos idênticos. Concluiu pela existência de um
fator genético na homossexualidade. Entretanto, outros investigadores não
conseguiram replicar sua pesquisa com os mesmos resultados, obtendo dados
contrários. Também foi observado que devido à grande identificação existente entre os
gêmeos, e circunstâncias ambientais semelhantes, também é provável a existência de
fator não genético para esta concordância no comportamento homossexual. Não se
conseguiu provar diferenças entre cromossomos dos homossexuais e dos
heterossexuais. (...) Retomemos aqui a tese de Américo Luís Martins da Silva, que
começa por demonstrar que cientistas canadenses descobriram que a região do
cérebro ligada às funções de aprendizagem é 13% maior nos homossexuais. Este
estudo foi apresentado em 17.11.94 na reunião anual da Sociedade de Neurociência e
sugere que há um componente biológico na orientação sexual. A psiquiatra Sandra
Witelson, da Universidade de MacMaster, em Ontário, no Canadá, salienta que os
fatores biológicos têm um papel na formação da sexualidade. Se esse papel é o mais
importante não se pode ainda dizer. Os cientistas chefiados por Sandra Witelson
analisaram os cérebros de vinte e um homens (onze deles homossexuais) usando
técnicas de ressonância magnética. Eles verificaram que a região do cérebro
conhecida como corpo caloso é maior nos homossexuais. A região está ligada à
habilidade verbal e motora. (...) Em 1992, a Universidade da Califórnia apresentou um
estudo mostrando que a estrutura cerebral chamada junta anterior é 34% maior nos
homossexuais em relação aos heterossexuais. No mesmo ano, o neurologista Simon
Levay, do Instituto de Pesquisa Biológica Salk, informou que o hipotálamo – a parte do
cérebro que regula o apetite, a temperatura corporal e o comportamento sexual – é
menor nos homossexuais. E, em março de 1993, uma dupla de pesquisadores norte-
americanos, Richard Pillard e J. Michael Bailey, anunciou outra descoberta que reforça
a ideia do fator genético para explicar a homossexualidade: gêmeas idênticas tinham
três vezes mais probabilidades de ser lésbicas do que gêmeas fraternas [Cf. Dor da
descoberta, Veja, São Paulo, 12 maio 1993, Caderno Comportamento, p. 59]. Os
indícios da origem biológica da homossexualidade não param por aí. Pesquisadores
da Universidade de Ontário, no Canadá, descobriram que os homossexuais têm
impressões digitais com um padrão característico. (...) Os cientistas chefiados pela
neurobióloga Doreen Kimura compararam as impressões digitais de 66 homossexuais
com as de 182 homens heterossexuais. O resultado mostrou que os homossexuais
apresentavam 30% a mais de microestrias nos dedos da mão esquerda do que nos da
direita. A mesma característica, no entanto, só foi encontrada em 14% dos
heterossexuais. (...) Além disso, os cientistas resolveram trabalhar com impressões
digitais porque são características físicas que se formam muito cedo – entre a oitava e
a décima sexta semana de gestação – e não mudam ao longo de toda a vida da
pessoa. O estudo levanta ainda a hipótese de existir um vínculo entre as impressões
digitais e o desenvolvimento do sistema nervoso.[Cf. Homossexuais teriam digitais
características, O Globo, Rio de Janeiro, 20 dez. 1994, Caderno Ciência e Vida, p. 22].
Mais recentemente, descobriu-se que moscas-das-frutas (drosófilas) machos se
tornam bissexuais quando tratadas com genes sexuais de fêmeas. (...) Constatou-se
que moscas-das-frutas do sexo masculino cujo sistema nervoso central foi modificado
com a introdução de um gene que determina o desenvolvimento de características
femininas cortejaram tanto machos quanto fêmeas. Eles atribuíram o comportamento
sexual à feminização das estruturas nervosas, inibindo a produção de substâncias que
fazem com que os machos procurem fêmeas. [Cf. A caçada ao gene gay, Manchete,
Rio de Janeiro, 10 jun. 1995, Caderno Ciências, p. 24]. Segundo Ralph Greenspan, da
Univerdade de New York, embora os genomas das moscas e dos homens sejam
diferentes, na natureza, o que é encontrado numa espécie muitas vezes é aplicável a
outras. Apesar da polêmica sobre a orientação sexual humana, nas moscas está claro
que a biologia tem papel predominante”. [Cf. Mosca mutante é bissexual: estudo
reforça fator biológico do homossexualismo, O Globo, Rio de Janeiro, 11 fev. 1995,
Caderno O Mundo/Ciência e Vida, p. 22] (sem grifos no original).
58 COSTA, Ronaldo Pamplona da. Homossexualidade: saúde x doença, in: VIEIRA,
Tereza Rodrigues (coord.). Bioética e sexualidade, São Paulo: Editora Jurídica
Brasileira, 2004, p. 68. No original: “A genética diz que boa parte dos homossexuais
pesquisados tem um gene que predispõe à homossexualidade. A revista americana
Science, de julho de 1993, publicou pesquisa realizada por Dean Hamer e equipe,
geneticistas do Instituto Nacional do Câncer dos Estados Unidos, em que esses
estudiosos buscam saber se existe uma influência genética na determinação da
orientação sexual humana. Fez um estudo de 114 famílias de homens homossexuais e
encontrou um número maior de homossexuais no lado materno (7,5%) do que no
paterno (2%). Depois tomou para estudo 40 famílias que tivessem 2 filhos
homossexuais, ou seja, 80 pesquisados, e encontrou em 64% deles um gene que se
repete no cromossomo X, herdado da mãe. Conclusão: existe 99% de possibilidade
que exista um subtipo humano de orientação sexual masculina que sofre influência,
mas não determinação, da genética no desenvolvimento da orientação homossexual.
Ao confirmar essa teoria diremos então que a homossexualidade é congênita, é
natural” (sem grifos no original).
59 COSTA, Ronaldo Pamplona da. Homossexualidade: saúde x doença, in: VIEIRA,
Tereza Rodrigues (coord.). Bioética e sexualidade, São Paulo: Editora Jurídica
Brasileira, 2004, p. 68.
60 CID-10/1993, em nota do capítulo referente aos “Transtornos psicológicos e
comportamentais associados ao desenvolvimento sexual e à sua orientação”.
61 Segundo Marina Castañeda: “Uma parte dessas pesquisas confirmou uma ideia que
nasceu inicialmente no século XIX, e que foi adotada por Freud e retomada por
diversas associações médicas, psicológicas e psiquiátricas de nossa época, segundo
a qual a homossexualidade não é uma patologia. Essa ideia foi inicialmente
demonstrada por uma psicóloga americana, Evelyn Hooker, em 1958. Ela aplicou uma
bateria de testes psicológicos em duas amostras de homens, homossexuais e
heterossexuais, e mandou os resultados para vários especialistas a fim de que
avaliassem a saúde mental de cada indivíduo e depois o classificassem como homo
ou heterossexual. Os resultados foram surpreendentes. Os especialistas se mostraram
incapazes de diferenciar os homo dos heterossexuais, e não encontraram nenhuma
patologia que pudesse indicar a homossexualidade. Ademais, o nível de saúde mental
é quase idêntico nos dois grupos, com uma leve vantagem para os homossexuais.
Hooker concluiu que, entre outros aspectos, os homossexuais eram tão ‘normais’
quanto os heterossexuais, e que a homossexualidade, portanto, não podia ser
considerada uma categoria clínica. Foi graças a estudos desse tipo, chegando sempre
à mesma conclusão, e aos esforços de um número crescente de psiquiatras e
psicólogos homossexuais que a Associação Americana de Psiquiatria dos Estados
Unidos riscou a homossexualidade de sua lista de patologias em 1973. Foi seguida
pela Associação de Psicologia do mesmo país em 1974, e pela Organização Mundial
de Saúde em 1992. Contudo, essas organizações reconheceram, em seus respectivos
manuais de diagnóstico, que a pessoa que não aceita sua homossexualidade pode
sofrer de depressão, ansiedade e outros problemas psicológicos – mas que estes
derivam de pressões familiares e sociais e de conotações negativas geralmente
associadas à homossexualidade” (CASTAÑEDA, Marina. op. cit., pp. 35-36).
62 “Em minha opinião, a homossexualidade não deveria ser explicada, ela apenas existe.
O que precisa ser investigado é a opinião que as várias sociedades sempre tiveram
sobre ela” (Colin Spencer).
63 Embora não concorde com todas as posições da autora, valem as seguintes
considerações de Marina Castañeda acerca do tema: “Apesar das grandes
transformações sociais, demográficas e culturais que ocorreram no Ocidente desde a
Segunda Guerra Mundial, os números da homossexualidade permaneceram mais ou
menos iguais. Isso sugere que há na orientação sexual algo de irredutível, que é
independente do contexto histórico e cultural. Talvez o mais prudente seja pensar que
um dia será encontrado um componente genético ou biológico da homossexualidade,
sabendo, contudo, que não será suficiente para explicá-la. Do mesmo modo, parece
que certas aptidões musicais são hereditárias – mas todos aqueles que nascem com
elas não se tornam necessariamente músicos (e muito menos ainda bons músicos).
Isso indica, então, que a predisposição não é suficiente, não garante nada, e não
significa muita coisa, se não for conscientemente desenvolvida e cultivada”
(CASTAÑEDA, Marina. op. cit., pp. 68-69).
64 Sociedade heterossexista é aquela que prega a heterossexualidade como a única
sexualidade aceitável.
65 Sobre o tema, valem as considerações do psiquiatra estadunidense Richard A. Isay:
“Eu tive uma oportunidade ímpar em minha carreira. Na primeira metade da mesma
atendi apenas homens heterossexuais, enquanto que na segunda foram os
homossexuais que predominaram. Em 1980, comecei a trabalhar com pacientes gays
que não manifestavam interesse em mudar sua orientação sexual. Eles vinham a mim
com problemas referentes à subsistência, trabalho e relacionamentos que eram
similares aos de meus pacientes heterossexuais dos anos anteriores. Suas histórias,
somadas a estudos que indicavam que a ocorrência de homossexualismo é mais alta
em gêmeos monozigóticos que em dizigóticos e irmãos não gêmeos, me convenceram
de que o homossexualismo masculino era uma questão de constituição pessoal,
provavelmente determinada geneticamente. Essa conclusão contradizia a visão
psicanalítica vigente de que o homossexualismo era causado por uma relação
problemática com os pais na infância. Pude constatar que assim como os
heterossexuais se recordam de sentir atração pelo sexo oposto desde a mais tenra
idade, também os homossexuais relatam ter experienciado atração por pessoas do
mesmo sexo já aos quatro, cinco ou seis anos. No caso dos gays, a primeira atração é
pelo pai ou seu substituto. Esta atração é frequentemente reprimida e, da mesma
forma como a atração infantil dos heterossexuais pela mãe, é lembrada posteriormente
com muita dificuldade ou de forma distorcida, projetada em outro homem, tal como um
irmão mais velho, parente ou amigo da família. Seguindo o raciocínio da maioria dos
psicanalistas, segundo o qual o surgimento da atração pelo sexo oposto sugere uma
predisposição à heterossexualidade, concluí que isto também se aplica à atração pelo
mesmo sexo que ocorre entre os homossexuais masculinos. (...) Outra constatação
que contribuiu para a minha conclusão de que o homossexualismo era ditado
biologicamente e não pelo meio ambiente: graves danos psicológicos eram causados
pelas tentativas de terapeutas em transformar o comportamento homossexual de seus
pacientes em heterossexual ou simplesmente inibir seus impulsos homossexuais.
Apesar de o esforço em transformar qualquer comportamento cristalizado ser capaz de
gerar angústias, tenha este comportamento sido determinado por fatores ambientais
ou genéticos, foi a gravidade da depressão e ansiedade causadas por estas tentativas
que me fez pensar na possibilidade de uma base biológica na orientação sexual de
meus pacientes” (ISAY, Richard A. Tornar-se gay. O caminho da autoaceitação.
Tradução: Dinah Klebe. São Paulo: Summus, 1998, p. 12-13).
66 Segundo o psiquiatra estadunidense Richard A. Isay: “Eu não notei nenhuma
diferença determinante entre os pais de meus pacientes heterossexuais e os de meus
pacientes homossexuais. Trabalhei com homens heterossexuais que tiveram pais
distantes e mães dominadoras, e de homens homossexuais com pais amorosos de
comportamento dentro da média” (op. cit., p. 13).
67 Nesse sentido, afirma Luiz Salem Varella (Homoerotismo no Direito Brasileiro &
Universal, 1.a Edição, Campinas: Editora Agá Juris, 2000, p. 61), que: “A existência de
mãe autoritária, sedutora, e pai hostil, ou distante, é uma das teorias que prevalecem
para explicar a homossexualidade. Entretanto, estas teorias muitas vezes se
contradizem. Existem homossexuais com mães fracas e pais fortes, como existem
heterossexuais com mães autoritárias e pais distantes”. No mesmo sentido, Marina
Castañeda: “Sabe-se atualmente que as coisas não são assim tão simples. Por um
lado, não se conseguiu evidenciar diferenças sensíveis entre a infância ou a dinâmica
familiar de homossexuais e de heterossexuais: crianças que ‘tendiam’ à
homossexualidade não se tornaram homossexuais quando adultos, e muitos
homossexuais tiveram, em contrapartida, uma infância e uma vida familiar
tediosamente ‘normais’. Por outro lado, existem homens muito masculinos e mulheres
muito femininas que são homossexuais. E os anos 1980 e 90 viram surgir uma
sensibilidade e um modo de vida que poderiam ser qualificados de andrógenos. As
diferenças que permitiam outrora falar de comportamentos ou de temperamentos
propriamente masculinos ou femininos se apagaram. Não estamos mais na época em
que um eminente psiquiatra pôde escrever: ‘Podemos sempre suspeitar da
homossexualidade nas mulheres que têm os cabelos curtos, se vestem de acordo com
a moda masculina ou que cultuam os esportes ou os lazeres masculinos’ [Richard von
Kraft-Ebbing]” (CASTAÑEDA, Marina. Op. cit., pp. 26-27).
68 Por mais que um relacionamento envolva o contato sexual, muitas pessoas
conseguem manter uma relação sexual com outra sem, contudo, sentirem-se atraídas
sexualmente por dita pessoa.
69 Sobre o tema, vide ISAY, Richard A. Tornar-se gay. O caminho da autoaceitação.
Tradução: Dinah Klebe. São Paulo: Summus, 1998; e CASTAÑEDA, Marina. A
Experiência Homossexual. Explicações e conselhos para os homossexuais, suas
famílias e seus terapeutas. Tradução: Brigitte Monique Hervot e Fernando Silva
Teixeira Filho. São Paulo: A Girafa Editora, 2007.
70 Segundo Richard A. Isay: “A rejeição paterna, real ou percebida, em resposta ao
desejo do filho por alguém do mesmo sexo, interesses diferentes, ou uma
masculinidade não convencional são fatores determinantes para a baixa autoestima de
alguns meninos homossexuais recém-entrados na adolescência. (...) A percepção do
preconceito social nas atitudes dos pais e amigos em relação aos homossexuais faz
com que muitos adolescentes de doze, treze, quatorze ou até quinze anos reprimam
ou suprimam seus impulsos e fantasias sexuais e neguem para si mesmos que são
homossexuais” (op. cit., p. 64).
71 Para Richard A. Isay: “Para tornar-se gay é preciso ser capaz de se autodenominar
‘homossexual’ ou ‘gay’. Garotos homossexuais com pais amorosos, que aceitam seus
desejos sexuais distintos e seu tipo diferente de masculinidade, costumam
desenvolver uma autoimagem forte e positiva. É provável também que consigam se
assumir como ‘gays’ antes e mais facilmente do que aqueles que sentiram
necessidade de se adequar às expectativas sociais para serem amados. Meninos que
foram rejeitados pelos pais por causa de sua condição homossexual, em geral,
manifestarão, quando adultos, raiva e autopiedade, tornando-se portanto muito menos
capazes de estabelecer relações adultas de amor mútuo do que aqueles que se
sentiram aceitos e amados pelos pais. (...) A pressão dos pais e dos amigos para que
se assuma um comportamento heterossexual, a falta de uma abertura em nossa
sociedade que permita aos jovens gays se encontrar e namorar livremente, e a
facilidade com que um homem pode ter sexo com outro levam alguns adolescentes ou
até mesmo adultos gays a expressar sua sexualidade de maneira encoberta. (...) Um
adolescente gay costuma temer a rejeição dos pais, portanto ele normalmente não se
assume para eles antes da adolescência ou mesmo até o início da vida adulta, com
frequência depois de já ter se assumido para outros jovens gays, ter tido algumas
experiências sexuais e vivenciado a poderosa e positiva experiência de se apaixonar”
(op. cit., p. 15, 69 e 79).
72 Contudo, vale a advertência de Richard A. Isay: “A incerteza do adolescente
homossexual no que se refere à sua orientação sexual não deveria, no entanto, ser
entendida como uma heterossexualidade latente ou conflituada, nem como uma
heterossexualidade passível de ser desimpedida. Deveria sim ser compreendida como
uma homossexualidade inibida por conflitos internos e preconceitos sociais” (op. cit., p.
65).
73 Exemplifique-se com o relato de Richard A. Isay acerca de um paciente seu: “Ele
temia ser homossexual porque se sentia atraído por outros garotos. Suas fantasias
sexuais, eram, desde quando ele era capaz de lembrar, exclusivamente com garotos.
Ele odiava a sua homossexualidade e queria desesperadamente ser heterossexual.
(...) Ele me disse em sua primeira sessão que achava que sua mãe ficaria desolada se
ele fosse homossexual. Ele queria ser heterossexual por causa dela, viver uma vida
convencional, dar a ela os netos que ela tantas vezes disse que queria. Foi ela que o
pressionou a fazer terapia aos quinze anos, por causa de sua falta de agressividade,
que fez com que ela acreditasse que ele poderia ser homossexual” (ISAY, op. cit., p.
68).
74 “Os rapazes homossexuais costumam ingressar na adolescência esperando ser
heterossexuais, e é apenas no final dela ou no começo da vida adulta que eles são
capazes de descobrir a sua verdadeira orientação sexual. Devido à ansiedade
relacionada a esta incerteza a respeito da identidade sexual, a intervenção de
psicoterapeutas, exaustiva e difícil como é com qualquer adolescente, pode fazer
muita diferença e ser muito gratificante. O fim da incerteza e o início da consolidação
de sua orientação sexual podem fortalecer a autoestima e provocar uma significativa
diminuição da ansiedade e da depressão” (ISAY, op. cit., p. 67).
75 Segundo Richard A. Isay: “Além disso, adolescentes homossexuais têm poucos
modelos que possam seguir, alguns têm dificuldade de se identificar com os gays
visíveis, mas não convencionalmente masculinos ou socialmente desafiadores e
muitos relacionam o fato de ser homossexual ao de se adquirir AIDS. Há muito poucos
gays atletas, políticos, atores ou eminentes professores, advogados e médicos que se
assumam publicamente, a menos que tenham AIDS, achando que teriam muita coisa a
perder agindo de outra maneira. Infelizmente, um rapaz homossexual no início de sua
adolescência fica privado destes modelos que poderiam ajudá-lo a descobrir a sua
homossexualidade e fazer com que ele fosse capaz de dizer a si mesmo: ‘Eu sou gay
como você e quero ser como você quando crescer’” (op. cit., p. 64).
76 É nesse sentido que deve ser entendida a explicação de Marina Castañeda:
“homossexual nem sempre é homossexual”, ao contrário do heterossexual. Vejamos:
“Começamos com um paradoxo: homossexual nem sempre é homossexual. O
heterossexual, sim. Em todas as relações sociais, profissionais e familiares, sua
orientação sexual é sempre uma parte de sua identidade essencial. O homem
heterossexual entra em relação com os homens e as mulheres de um certo modo, que
exprime abertamente sua orientação, globalmente invariável. A mulher heterossexual
tem gestos, condutas e maneiras de falar que refletem não somente sua feminilidade,
mas também sua heterossexualidade. Nos dois casos, sexo biológico, orientação
sexual e papéis sociais tendem a convergir e formar uma identidade relativamente
estável. Em contrapartida, o homossexual não se desloca no mundo com uma
identidade constante. Suas atitudes, seus gestos, seu modo de entrar em relações
com os outros muda conforme as circunstâncias. Ele pode parecer heterossexual no
escritório, assexuado na família, e expressar sua orientação sexual somente na
presença de seus amigos. Ou, então, durante longos períodos de vida, pode negar
completamente sua homossexualidade e parecer exatamente o contrário: um Don
Juan ou uma mulher fatal sempre à procura de novas conquistas. Além do mais, o
heterossexual foi educado para sê-lo; desde a mais tenra infância, foi formado para um
papel e um lugar no mundo heterossexual. Este não é o caso do homossexual, que
muitas vezes só toma consciência de sua orientação sexual no decorrer da
adolescência ou da idade adulta. Portanto, ele não cresceu em seu papel: não foi
educado para ser homossexual. Falta-lhe todo tipo de habilidades e de códigos sociais
de que necessitará em um mundo homossexual, que será o seu. Quando descobrirem,
enfim, sua orientação sexual, devem reaprender todas as regras do amor, da amizade
e da sociabilidade. Não é surpreendente o fato de que podemos ler, na literatura
psicológica tradicional, que os homossexuais são ‘pouco maduros’ em suas relações
sociais e de casal. Contudo, não se trata de uma falta de maturidade, mas sim de
carência de aprendizagem. (...) Hoje, o termo ‘gay’ refere-se justamente a essa
coerência e a essa aceitação da homossexualidade. Mas isso não acontece de um dia
para o outro; é o resultado de um longo percurso. É por isso que podemos dizer, com
toda a certeza, que as pessoas não nascem homossexuais. A identidade gay constrói-
se aos poucos; a homossexualidade não é um estado, mas um processo”
(CASTAÑEDA, Marina. Op. cit., p. 19-20 e 52).
77 Op. cit., p. 77-80.
78 Segundo Richard A. Isay: “O antídoto mais eficaz contra a baixa autoestima da
maioria dos gays em nossa sociedade, no entanto, é a certeza do amor de outro
homem. É o amor do outro que possibilita ao longo do tempo uma maior clareza e
certeza a respeito de sua identidade pessoal como gay. Somente assim ser gay torna-
se indispensável para a própria felicidade” (op. cit., p. 16).
79 ISAY, Richard A. Op. cit., p. 107.
80 HERCULANO-HOUZEL, Suzana. Viver, mente e cérebro (scientific american) – O
cérebro homossexual, São Paulo, n. 165, ano XIV, p. 48-51. No original: “Para a
medicina, não se enquadrar na normalidade, estatisticamente, não significa ser
doente. (...) muitas vezes um parâmetro foge à normalidade em razão da herança
genética ou de fatores biológicos que não perturbam em nada o bem-estar do
indivíduo. Além disso, o que é normal em uma população pode ser anormal em outra.
Considere, por exemplo, a distribuição da cor dos olhos. No Brasil, é normal tê-los
escuros. Já na Suécia isso é exceção, pois lá a regra é ter olhos azuis. (...) Os
brasileiros de olhos castanhos que moram na Suécia não são considerados doentes
por isso, nem são coagidos a ocultá-los atrás de incômodas lentes de contato. (...) Os
homossexuais são alvo de preconceito em grande parte por causa de décadas de
teorias e lobbies políticos e religiosos para que a homossexualidade fosse considerada
doença, ou ao menos uma opção inconveniente a ser revertida. No entanto, todas as
evidências indicam o contrário: a preferência sexual é determinada biologicamente e
ainda no útero – o que faz da homossexualidade uma variação, já que a maioria da
população é heterossexual. Para desespero daqueles que acham que podem
‘consertar’ a sexualidade dos outros, as neurociências apontam para a origem
biológica da preferência sexual humana. Para infelicidade de muitos religiosos,
políticos e psicoterapeutas, não há nenhuma evidência de que fatores sociais a
influenciem. Cerca de 10% da população (masculina e feminina) procuram
preferencialmente parceiros do mesmo sexo. E esse número não muda entre os que
foram criados por pai e mãe, por dois pais gays, por duas mães lésbicas, com ou sem
religião. (...) É verdade que o primeiro contato do sistema nervoso com os hormônios
sexuais ocorre durante a gestação, pois é o pico de testosterona que determina a
masculinização do feto e faz com que todas as estruturas da via vomeronasal
produzam aromatase, a enzima que tornará possível, na adolescência, a ação do
hormônio masculino sobre o sistema nervoso. É também na puberdade que a
testosterona induz o crescimento de várias estruturas da via vomeronasal, como
pdMEA e BST, no cérebro dos homens. A sensibilização dos neurônios ao longo dela –
condição necessária para o interesse sexual – é estimulada tanto pela testosterona
quanto pelo estrogênio. Assim, o comportamento sexual resulta de ações inicialmente
organizadoras, e, mais tarde, permissivas, desencadeadas pelos hormônios sexuais. A
atração que se sente pelo outro, seja este de que sexo for, é resultado da influência de
genes e hormônios durante a formação, ainda no útero, de determinadas regiões
cerebrais. Estas, por sua vez, determinarão mais tarde a preferência sexual, depois de
amadurecidas na adolescência, pelo sexo oposto na maioria das pessoas ou pelo
mesmo sexo em algumas. Revelada quando o cérebro adolescente expressa o
caminho que tomou ainda na gestação, a preferência sexual não se escolhe:
descobre-se. (...) Pesquisas recentes revelam que o hipotálamo de homo e de
heterossexuais do mesmo sexo tem características diversas. Pesquisadores suecos
mostraram, em 2006, que nem todo hipotálamo masculino responde a feromônios
femininos e vice-versa. Usando a ressonância magnética funcional, eles observaram
que o padrão de resposta dos neurônios hipotalâmicos correlaciona-se não com o
sexo do indivíduo, mas com sua preferência sexual. (...) O que faz com que o
hipotálamo responda diferentemente aos feromônios masculino e feminino parece ser
uma combinação de herança genética com fatores hormonais durante a gestação. (...)
Até algo tão fundamental como sentir-se homem ou mulher parece ser determinado
pela biologia do cérebro. Ao examinar, em 2000, um grupo de 42 pessoas composto
de homens e mulheres hétero, homo e transexuais, pesquisadores holandeses
observaram um número duas vezes maior de neurônios num dos núcleos da via
vomeronasal (o BST) nas pessoas que se identificavam como homens em
comparação às que se identificavam como mulheres – independentemente do sexo
biológico, da preferência sexual e do fato de terem sido ou não tratadas com
hormônios sexuais. Graças a esse tipo de estudo, a atração por pessoas do mesmo
sexo [homossexuais] ou a sensação de ter nascido do sexo ‘errado’ [transexuais] não
podem mais ser consideradas aberrações psicológicas ou frutos de uma educação
‘equivocada’, seja familiar ou escolar. Trata-se de variações determinadas
biologicamente. E como todo fenômeno biológico, a determinação da identidade e da
preferência sexual está sujeita a influências químicas e genéticas nem sempre bem
compreendidas. Aliás, seria surpresa para um biólogo se todos fossem perfeitamente
iguais, sem nenhuma variação na cor dos olhos ou na preferência sexual. A
descoberta de que é o cérebro, e não os hormônios sexuais nem a genitália, que
define a identidade ou a preferência sexual é uma das lições das neurociências de
maior impacto em nossa vida cotidiana. A atração por um ou outro sexo é inata, não
opcional. Por isso as tentativas de convencer pessoas ou outros animais a mudar suas
preferências sexuais nunca deram certo. A ciência é frequentemente criticada por
‘reduzir’ a questão da homossexualidade aos domínios da biologia. Isso deixa
transparecer a incrível dificuldade que o ser humano tem de aceitar-se como animal.
Gostamos de assistir aos documentários sobre macacos ou leões, mas custa-nos
admitir que a Natureza pode ter influência – muitas vezes determinante – também
sobre nosso comportamento. (...) Se 100% da população têm preferência sexual inata
e biologicamente determinada, somos todos iguais nesse quesito – mesmo que o
cérebro da maioria responda a feromônios do sexo oposto. Tentar mudá-la [preferência
sexual] é como insistir que uma pessoa troque a cor da pele, torne-se menos alta ou
mude a cor dos olhos. É inútil, inviável e injusto” (sem grifos no original).
81 Há quem defenda que a expressão “orientação sexual” significaria que alguém teria
sido “orientado” a ter esta ou aquela sexualidade, “sugestionado” a tanto, o que é um
absurdo que parte de uma interpretação puramente gramatical dos termos isolados da
expressão. Interpretar uma expressão pela tradução de seus termos isoladamente
considerados é um erro que geralmente leva a equívocos interpretativos, como neste
caso. A expressão “orientação sexual” é usada no sentido do texto, ou seja,
significando que o desejo está “em direção a” determinado sexo biológico, sem
sugestionamento – este é o sentido popular e até mesmo o sentido geral usado pelo
meio médico-psicológico (salvo exceções).
82 Definição constante nos Princípios de Yogyakarta, p. 6. Ditos princípios foram
facilmente localizados no google por este autor. De qualquer forma, segue um link que
dá acesso a um arquivo (sob a forma de “.pdf”) contendo-os:
www.sxpolitics.org/mambo452/index.php?
option=com_docman&task=doc_download&gid=34 . Acesso em 7 jul. 2008. Vide o
item 1.1 do Capítulo 17, em nota de rodapé, para vislumbrar os direitos garantidos por
esta declaração.
83 No mesmo sentido do aqui defendido é a lição de Maria Berenice Dias (União
homoafetiva O preconceito & a justiça. 5. ed. São Paulo: RT, 2011, p. 42-43), para
quem: “Desde que se descobriu a involuntariedade do agir homossexual, não cabe
mais falar em ‘opção sexual’. Segundo os Princípios de Yogyakarta, esta é a
expressão que goza de maior aceitação. É compreendida como uma referência à
capacidade de cada pessoa em ter profunda atração emocional, afetiva ou sexual por
indivíduos de gênero diferente, do mesmo gênero ou de mais de um gênero. No dizer
de Roger Raupp Rios, orientação sexual é a afirmação de uma identidade pessoal cuja
atração e/ou conduta sexual direciona-se para alguém do mesmo sexo
(homossexualidade), sexo oposto (heterossexualidade), ambos os sexos
(bissexualidade) ou a ninguém (abstinência sexual). Assim, a identificação da
orientação sexual está condicionada à identificação do sexo da pessoa escolhida, em
relação à pessoa que escolhe. Quando alguém dirige seu interesse sexual a outrem,
ou seja, opta por outrem para manter um vínculo afetivo, elege o gênero da pessoa
com quem deseja se relacionar. A identificação do gênero do objeto do desejo, se
masculino ou feminino, é o dado revelador da orientação sexual, opção essa que não
pode merecer tratamento diferenciado” (grifo nosso). Note-se que a “escolha”
mencionada pela autora refere-se apenas à decisão de manter um relacionamento
afetivo com a pessoa em questão, no sentido de que entre todas as pessoas daquele
gênero (sexo biológico) escolheu-se esta, o que não significa que aquela pessoa teria
“optado” por se relacionar com pessoas de determinado sexo, visto que sexualidade
não é influenciável e menos ainda determinável de opção – ninguém escolhe ser
homo, hétero ou bissexual, as pessoas apenas se descobrem de uma forma ou de
outra.
84 Vide exemplo, lamentavelmente frequente, de casais homoafetivos “convidados a se
retirar” de estabelecimentos comerciais, em geral restaurantes, por um simples agrado
que deixe claro que são homossexuais, tido como normais entre casais heteroafetivos,
mas não aceito entre casais homoafetivos. Ressalte-se, nesse ponto, que diversos
Estados possuem leis próprias (em São Paulo, a Lei Estadual 10.948/2001) que
proíbem qualquer tipo de discriminação em razão da orientação sexual da pessoa
(assim como por sua identidade de gênero), sob pena de sanções administrativas, tais
como multa, suspensão e cassação da licença de funcionamento de estabelecimentos
comerciais.
85 Nesse sentido, é pertinente a observação Viviane Girardi (Famílias Contemporâneas,
Filiação e Afeto. A Possibilidade Jurídica da Adoção por Homossexuais, 1.ª Edição,
Porto Alegre: Editora Livraria do Advogado, 2005, p. 71), que afirma que: “Diante
dessas constatações, o que importa referir sobre a homossexualidade e o direito é a
necessidade de ser afastada a identificação sociomoral das pessoas por conta de suas
inclinações sexuais. Deve-se, na afirmação de Rodrigo da Cunha Pereira, abandonar a
pretensão de se ‘colocar um selo de legitimidade ou ilegitimidade em determinadas
relações sexuais’, uma vez que a sexualidade por sua essência escapa ao
normatizável”.
86 Preâmbulo da Constituição Federal: “Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos
em Assembleia Nacional Constituinte para instituir um Estado Democrático, destinado
a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o
bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma
sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e
comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das
controvérsias, promulgamos, sob a proteção de Deus, a seguinte Constituição da
República Federativa do Brasil” (sem grifo no original). Aponte-se que este autor adere
à teoria segundo a qual o preâmbulo tem significado jurídico mas não é norma
constitucional, servindo portanto como paradigma interpretativo da Constituição.
Reconheço, contudo, que na contradição entre preâmbulo e norma constitucional,
prevaleça esta. Reitere-se, por oportuno, que a expressão “sob a proteção de Deus”
não teve eficácia jurídica reconhecida pelo Supremo Tribunal Federal quando do
julgamento da ADIn 2076, em especial no voto do Ministro Sepúlveda Pertence. Cite-
se, ainda, o art. 3.o, IV, da CF/1988, segundo o qual constitui objetivo fundamental da
República Federativa do Brasil “promover o bem-estar de todos, sem preconceitos de
origem, raça, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação” (sem grifos no
original).
87 BORRILLO, Daniel. Homofobia. História e crítica de um preconceito. Tradução de
Guilherme João de Freitas Teixeira. Belo Horizonte: Autêntica, 2000, p. 34.
88 Homossexuais são as pessoas que sentem atração erótico-afetiva por pessoas do
mesmo sexo, independentemente de se considerarem ou não pertencentes à
comunidade homossexual ou mesmo como homossexuais, por ser a orientação sexual
um conceito que toma como parâmetro apenas o sexo pelo qual a pessoa sente
atração erótico-afetiva (pelos mesmos motivos, heterossexuais são as pessoas que
sentem atração erótico-afetiva por pessoas do sexo oposto). Ao contrário do
transexual, o homossexual não sofre dissociação entre seu sexo (biológico) e seu
gênero – é um homem (sexo masculino) que se entende como homem e,
independente disso, sente atração erótico-afetiva por outros homens.
89 Pelos mesmos motivos expostos na nota anterior, bissexuais são as pessoas que
sentem atração erótico-afetiva por pessoas de ambos os sexos.
90 Transexual é um termo que passou por uma evolução conceitual. Isso porque,
tradicionalmente, sempre se definiu o transexual como a pessoa que sofre uma
dissociação entre seu sexo físico e seu sexo psíquico, dissociação esta definida
tecnicamente como disforia de gênero (na expressão que se popularizou sobre o tema,
ele tem a certeza de que “nasceu no corpo errado”), tendo assim uma ojeriza a seu
órgão sexual biológico e que, por conta disso, deseja realizar uma cirurgia de
“mudança de sexo” (atualmente designada de cirurgia de transgenitalização), além de
não desejar que as pessoas em geral saibam que se trata de um transexual, mas de
uma pessoa em que o sexo biológico coincide com seu sexo psíquico. Contudo,
atualmente existem transexuais que, apesar de possuírem essa disforia de gênero,
não desejam realizar a cirurgia por uma série de fatores (medo da cirurgia, ausência
de condições financeiras e temor de não ter prazer sexual com o novo órgão sexual
construído cirurgicamente, por exemplo). Por outro lado, há transexuais que
simplesmente não sofrem de uma ojeriza por seu órgão sexual, apenas não sentindo
prazer genuíno durante a relação sexual. Assim, entende-se aqui que transexual é a
pessoa que se identifica com o gênero oposto àquele socialmente atribuído ao seu
sexo biológico, possui uma dissociação entre seu sexo físico e seu sexo psíquico, que
geralmente não sente prazer na utilização de seu órgão sexual e que não deseja que
as pessoas em geral saibam de sua condição transexual após a adequação de sua
aparência a seu sexo psíquico. Trata-se, assim, de uma questão identitária. Vide o
conceito de gênero e de identidade de gênero, em notas posteriores..
91 Em razão da evolução conceitual sofrida pelo termo transexual, a diferença deste para
a travesti tornou-se sutil, porém ela existe. Isso porque, ao contrário do transexual, a
travesti não sente ojeriza por seu órgão genital, inclusive utilizando-o prazerosamente
durante suas relações sexuais. Por outro lado, ao contrário do transexual, a travesti
não sente a necessidade de esconder seu sexo biológico. Assim, entende-se aqui que
travesti é a pessoa que, apesar de possuir uma relativa dissociação entre seu sexo
físico e seu sexo psíquico (ao menos no que tange às normas de gênero socialmente
impostas), sente prazer na utilização de seu órgão sexual e não se importa que as
pessoas em geral saibam de sua condição, embora socialmente também prefira ser
tratada como pessoa relativa à aparência que efetivamente ostenta. Trata-se, também
aqui, de uma questão puramente identitária.
92 Intersexual é a pessoa portadora de um distúrbio biológico. Na lição de Gerard
Ramsey, com base na definição do Dorland’s medical dictionary (Dicionário Médico
Dorland, de 1988), o intersexo “refere-se a ‘um indivíduo que apresenta mistura, em
vários graus, de características de cada sexo, incluindo a forma física, órgãos
reprodutivos e comportamento sexual’” (RAMSEY, Gerard. Transexuais perguntas e
respostas. Tradução: Rafael Azize. São Paulo: Edições GLS, 1998, p. 43). O
intersexual normalmente sofre uma cirurgia após o nascimento, que o médico coloca
ao arbítrio dos pais, para que seu corpo fique condizente com um dos dois sexos
(masculino ou feminino). Por vezes, quando adulto (ou mesmo adolescente), o
intersexual percebe que há algo errado com seu corpo, entendendo-se como
pertencente ao sexo oposto àquele que lhe foi determinado pela cirurgia antes
mencionada – cirurgia esta altamente discriminatória, pois o correto é deixar que a
pessoa intersexual cresça e defina, ela própria, se deseja realizar a cirurgia e qual dos
sexos será por ele determinado.
93 Não há que se confundir os termos sexo, gênero e sexualidade. Com efeito,
“Atualmente, a palavra sexo é usada em dois sentidos diferentes. Um se refere ao
gênero e define como a pessoa é, ao ser considerada do sexo masculino ou feminino.
O outro sentido se refere à parte física da relação sexual. Já a sexualidade transcende
os limites do ato sexual e inclui sentimentos, fantasias, desejos, sensações e
interpretações”. (D’ELLAS, Movimento. Direitos Humanos e Contribuição à Cidadania.
Rio de Janeiro: Movimento D’ELLAS, 2005, p. 13) [o significado do termo gênero será
explicitado adiante, no corpo do texto] Ou seja, a sexualidade é uma “dimensão
fundamental da experiência humana, [que] pode ser compreendida à luz de diferentes
perspectivas. A sexualidade tem uma faceta biológica, mas não se reduz a ela.
Aspectos psicológicos, sociais e culturais fundamentam a vivência humana da
sexualidade”, razão pela qual “A sexualidade não é sinônimo de coito, sendo uma
disposição a experimentar a si mesmo e ao outro segundo o registro do prazer e da
criação. Sexualidade é disposição que motiva o contato e a intimidade e se expressa
na forma de sentir, de ser, de se relacionar. Sexualidade, portanto, refere-se a uma
importante dimensão da experiência humana que está diretamente relacionada ao laço
social” (Texto-base da Conferência Nacional de Gays, Lésbicas, Bissexuais, Travestis
e Transexuais, 2008, p. 50). No mesmo sentido, afirma Richard Dunphy que, embora
até a década de 1970 fosse comum entender-se a sexualidade como mera prática de
atos sexuais, nas décadas de 1980 e 1990 tornou-se ponto comum ir-se além para se
entender a sexualidade “em um significado mais amplo, abrangendo desejos eróticos,
práticas e identidades, conforme ensinam Stevi Jackson e Sue Scott (1996:2)”,
definição esta que “tem o mérito de permitir que nos concentremos nos sentimentos
sexuais e nos relacionamentos, não apenas nos atos sexuais; e nas várias maneiras
pelas quais nós somos ou não definidos como sexuais por nós mesmos e pelos
outros” (DUNPHY, Richard. Sexual Politics. An Introduction. Edinburgh: Edinburgh
University Press, 2000, p. 41).
94 Heterossexismo é a ideologia que prega a heterossexualidade como a única
sexualidade aceitável no meio social (o que parte de um preconceito social que afronta
o princípio do pluralismo jurídico), donde sociedade heterossexista é aquela que prega
o heterossexismo. Assim, “Por meio do heterossexismo, se verifica a promoção
incessante, pelas instituições ou pelos indivíduos, da superioridade da
heterossexualidade e da subordinação da homossexualidade. Assim, é desvalorizada
e considerada inferior toda forma de sexualidade que venha a se distinguir da conduta
heterossexual, que a ideologia sexista dominante impõe como modelo único e
compulsório” (Texto-base da Conferência Nacional de Gays, Lésbicas, Bissexuais,
Travestis e Transexuais, 2008, p. 50).
95 A orientação sexual “É a atração afetiva e/ou sexual que uma pessoa sente pela outra.
A orientação sexual existe num continuum que varia desde a homossexualidade
exclusiva até a heterossexualidade exclusiva, passando pelas diversas formas de
bissexualidade” (D’ELLAS, Movimento. Direitos Humanos e Contribuição à Cidadania
Homossexual. Rio de Janeiro: Movimento D’ELLAS, 2005, pp. 13-14). A definição de
Yogyakarta foca no gênero e não no sexo da pessoa para fins de atração erótico-
afetiva, pois há pessoas não transexuais que se interessam por transexuais após a
adequação do sexo físico ao sexo psíquico destes (no qual a pessoa se relaciona com
outra com um corpo masculino/feminino cujo sexo biológico não é coincidente com
este corpo readequado). Sobre o tema, entendemos que pode ser usada a expressão
tradicional, atração erótico-afetiva por pessoas de sexo idêntico, distinto ou a ambos,
entendendo-se a expressão sexo masculino/feminino como atinente a corpo
masculino/feminino (não necessariamente ao sexo biológico/genético, mas à
expressão corporal da pessoa).
96 A homossexualidade caracteriza-se pela atração erótico-afetiva que se sente por
pessoas do mesmo sexo; “é a atração afetiva e sexual por uma pessoa do mesmo
sexo. Da mesma forma que a heterossexualidade (atração por uma pessoa do sexo
oposto) não tem explicação, a homossexualidade também não tem. Depende da
orientação sexual de cada pessoa” (D’ELLAS, op. cit., p. 14).
97 A heterossexualidade é a atração erótico-afetiva por pessoas de sexo diverso.
98 A bissexualidade é a atração erótico-afetiva que se sente por pessoas de ambos os
sexos, em que bissexuais são “pessoas que se relacionam sexual e/ou afetivamente
com qualquer dos sexos” (D’ELLAS, Op. cit., p. 16).
99 Reitera-se o exposto em nota anterior, no sentido da ausência de redundância da
expressão amor romântico, para se poder diferenciá-lo do amor fraterno e por ser o
amor romântico o ideal buscado nas relações conjugais.
100 A pederastia é a pedofilia entre homens, em que se pode concluir que pedofilia é
gênero do qual a pederastia é uma espécie.
101 Ou seja, “Embora tenhamos a possibilidade de escolher se vamos demonstrar ou não
os nossos sentimentos, os psicólogos não consideram que a orientação sexual seja
uma opção consciente que possa ser modificada por um ato de vontade” (D’ELLAS,
op. cit., p. 14).
102 Vide, em inglês, o estudo nominado, em tradução nossa, de “A Ausência de
Diferenças entre Pais Gays/Lésbicas e Heterossexuais: Uma Retrospectiva da
Literatura”. O estudo foi localizado, em inglês, na internet, no seguinte endereço
eletrônico: <http://www.ibiblio.org/gaylaw/issue6/Mcneill.htm> (último acesso: 30 abr.
2008) e traz os seguintes estudos: (i) sobre casais homoafetivos formados por
lésbicas: Strong & Schinfeld – 1984; Harris & Turner – 1986; Shavelson, Biaggio,
Cross, & Lehman – 1980; Pagelow – 1980; Kweskin & Cook – 1982; Green, Mandel,
Hotvedt, Gray, & Smith – 1986; Peters & Cantrell – 1991; Patterson – 1995a; McNeill,
Rienzi, & Kposowa – 1998; (ii) sobre casais homoafetivos formados por gays: Miller –
1979; Mallen – 1983; Skeen & Robinson – 1984; Bigner & Jacobsen – 1989a; Bigner &
Jacobsen – 1989b; Bigner & Jacobsen – 1992; Crosbie-Burnett & Helmbrect – 1993;
Bailey, Bobrow, Wolfe, & Mikach – 1995; (iii) sobre desenvolvimento de crianças de
pais homossexuais e heterossexuais: Weeks, Derdeyn, & Langman – 1975; Miller –
1979; Kirkpatrick, Smith, & Roy – 1981; Hoeffer – 1981; Miller, Jacobsen, & Bigner –
1982; Golombok, Spencer, & Rutter – 1983; Harris & Turner – 1986; Pennington –
1987; Bozett – 1988; Huggins – 1989; Bailey, Bobrow, Wolfe, & Mikach – 1995; Flaks,
Ficher, Masterpasqua, & Joseph – 1995; Patterson – 1995c; Tasker & Golombok –
1995; Patterson & Mason, Chan, Raboy, & Patterson. Todos eles concluíram pela
ausência de diferenças nas pessoas criadas por casais homoafetivos em relação
àquelas criadas por casais heteroafetivos por conta unicamente do fato de terem sido
criadas por um casal homoafetivo.
103 Segundo Geraldo Tadey Moreira Monteiro, “As relações de gêneros definem-se, em
primeiro lugar, por oposição ao conceito de relações entre os sexos. Os estudos
feministas da década de sessenta impuseram uma distinção curial entre sexo e
gênero, que os estudos sociológicos incorporaram amplamente”, em que “Enquanto o
primeiro tem uma acepção nitidamente biológica – o sexo é uma condição prescrita
biologicamente ao indivíduo, o segundo preconiza uma visão cultural e psicossocial da
condição sexual – o gênero é uma identidade socialmente construída à qual os
indivíduos se conformam em maior ou menor grau (Millett, 1969)” razão pela qual “o
gênero, embora ligado ao sexo, não lhe é idêntico, mas construído socialmente”
(MONTEIRO, Geraldo Tadeu Moreira. Construção Jurídica das Relações de Gênero. O
Processo de Codificação Civil na Instauração da Ordem Liberal Conservadora do
Brasil. Rio de Janeiro-São Paulo: Renovar, 2003, p. 17). Nesse sentido, segundo
Richard Dunphy, a distinção entre sexo e gênero foi popularizada por Ann Oakley, para
quem “‘Sexo’ é uma palavra que se refere às diferenças biológicas entre homens e
mulheres, a visível diferença de genitália e as respectivas diferenças de funções
procriativas. ‘Gênero’, contudo, é uma questão de cultura: refere-se à classificação
social entre ‘masculino’ e ‘feminino’ (Oakley, 1972: 16)” (OACKLEY apud DUNPHY,
Richard. Sexual Politics. An Introduction. Edinburgh: Edinburgh University Press, 2000,
p. 37). Essa é a definição tradicional que aqui se julga correta, pois contrariamente às
críticas segundo as quais o sexo biológico seria tão passível de compreensão por meio
de engenharias sociais, cabe concordar novamente com Richard Dunphy quando
afirma que há duas razões para não se ignorar essa diferença: a primeira é aquela
segundo a qual “nem o fato de o nosso entendimento do corpo mudar e evoluir e nem
o fato de não existirem simplesmente ‘duas históricas e fixas biologias – masculina e
feminina’, torna morta a distinção sexo/gênero”, pois “há importantes diferenças
biológicas entre homens e mulheres as quais seria tolo ignorar”, na medida em que,
“Como aponta Wilmott, ‘enquanto há uma sobreposição biológica, homens e mulheres
são ontologicamente distintos por suas respectivas capacidades reprodutivas (embora
homens e mulheres não sejam fundamentalmente tipos de pessoas qualitativamente
distintas)”, não fazendo sentido ignorar esse fato uma vez que “um menino de treze
anos não vai começar a menstruar apenas porque lhe é dito repetidamente que ele é
uma garota”; já a segunda razão, talvez até mais importante embora complementar à
primeira, é aquela segundo a qual “foram as diferentes capacidades reprodutivas que
foram compreendidas pelas sociedades patriarcais e foi a elas que foram dadas
interpretações desigualitárias” (DUNPHY, Richard. Op. cit., p. 40-41 – tradução livre).
Quanto ao último trecho, que aqui se considerou como de difícil tradução (embora de
clara ideia), segue o original: “it is the differences in reproductive capacities which have
been seized upon in patriarchal societies and given inegalitarian interpretations”).
104 Nesse sentido, vale ratificar a doutrina de Geraldo Tadey Moreira Monteiro no sentido
de que “As relações de gênero participam de relações de poder (...) [ou seja, de] uma
estrutura social que ‘desequilibra’ as instituições em favor de determinados grupos
sociais, facultando-lhes o acesso privilegiado a bens e recursos comuns” por meio de
um “‘poder de gênero’, isto é, o poder de um sexo sobre o outro”, que “engendra-se no
âmbito das estruturas sociais de dominação”, donde “As estruturas de dominação, que
consistem em sistemas ordenados de interações sociais,são condição das práticas
reais de poder e, naquilo que nos interessa, estabelecem uma relação direta com as
hierarquias de gênero (Connell, 1987)”, o que significa que “Em termos gerais, a
ideologia sexista dominante estabelece uma relação constitutiva entre masculinidade,
autoridade, domínio tecnológico e violência, que é suficiente para ‘mostrar’ à mulher o
‘seu lugar’ na sociedade” (MONTEIRO, Geraldo Tadeu Moreira. Construção Jurídica
das Relações de Gênero. O Processo de Codificação Civil na Instauração da Ordem
Liberal Conservadora do Brasil. Rio de Janeiro-São Paulo: Renovar, 2003, p. 19).
105 Quanto ao último exemplo, tem-se a ideia/norma social segundo a qual “homens não
choram”, claramente influenciada por normas de gênero.
106 Trata-se de um rol meramente exemplificativo. Quanto ao tema das emoções, mesmo
o amor romântico não escapa das normas de gênero. Com efeito, segundo o relato de
Richard Dunphy (Sexual Politics. An Introduction. Edinburgh: Edinburgh University
Press, 2000, p. 106-107): “O argumento central de Stevi Jackson é o de que o amor é
uma experiência de aprendizado segundo os gêneros – meninos e meninas aprendem
diferentes scripts. Homens não são encorajados a desenvolver competências relativas
a localizarem-se dentro de discursos de emoções – é por meio do idioma da fanfarra
sexual e da conquista, não da linguagem do romance, que a masculinidade é
afirmada. Encorajados a localizar o núcleo central de suas identidades no mundo
‘externo’, homens geralmente aprendem a expressar sentimentos de amor ou amizade
mediante ‘fazer coisas’ [sic – doing things] e em atividades compartilhadas em vez de
revelações íntimas [de seus sentimentos]. Mulheres, ao contrário, são socializadas na
definição de si mesmas em termos de relacionamentos e, por intermédio do penetrante
idioma da ficção romântica, são encorajadas a abraçar não apenas revelações
[intimas], mas a noção de sacrifício-próprio em nome do ‘amor’” (tradução livre).
107 Cf. DUNPHY, op. cit., p. 80 – tradução livre.
108 Assim, gênero é “o conjunto de normas, valores, costumes e práticas através das
quais a diferença entre homens e mulheres é culturalmente significada e
hierarquizada. Envolve todas as formas de construção social das diferenças entre
masculinidade e feminilidade, conferindo sentido e inteligibilidade social às diferenças
anatômicas, comportamentais e estéticas. Contemporaneamente se compreende que
não há linearidade na determinação do sexo sobre o gênero e sobre o desejo, sendo o
gênero uma construção individual, social e cultural que sustenta a apresentação social
da masculinidade e/ou da feminilidade por um indivíduo” (Texto-base da Conferência
Nacional de Gays, Lésbicas, Bissexuais, Travestis e Transexuais, p. 50).
109 Para maiores digressões sobre o tema, vide a excelente obra de João Silvério
Trevisan acerca da crise da masculinidade, na qual se demonstra que os atributos
ditos como “masculinos” e “femininos” são variáveis ao longo da história e entre as
diversas sociedades, ressaltando ainda que, enquanto o reconhecimento da condição
“feminina” na mulher é tido como natural, por uma questão biológica (primeira
menstruação e possibilidade de procriação), o reconhecimento da “masculinidade” é
algo que precisa ser conquistado por meio de posturas social e culturalmente
mutáveis, além de se correr sempre o risco de se perder dito reconhecimento se o
homem deixar de se portar conforme social e culturalmente dele se exige,
necessitando assim de um trabalho constante para sua manutenção, em que, segundo
Ceccarelli, “Na busca da masculinidade, o homem tem sempre presente ‘o fantasma
de estar privado dela’” (cf. TREVISAN, João Silvério. Seis balas num buraco só. A
crise do masculino. Rio de Janeiro: Editora Record, 1998, p. 39-42).
110 Segundo os Princípios de Yogyakarta, em definição ratificada pelo Texto-base da
Conferência Nacional de Gays, Lésbicas, Bissexuais, Travestis e Transexuais (2008,
p. 51): “Compreendemos [como] a identidade de gênero a profundamente sentida
experiência interna e individual do gênero de cada pessoa, que pode ou não
corresponder ao sexo atribuído no nascimento, incluindo o senso pessoal do corpo
(que pode envolver, por livre escolha, modificação da aparência ou função corporal por
meios médicos, cirúrgicos ou outros) e outras expressões de gênero, inclusive
vestimenta, modo de falar e maneirismos”.
111 “Sendo o fator psicológico predominante na transexualidade, o indivíduo identifica-se
como sexo oposto, embora dotado de genitália externa e interna de um único sexo”
(D’ELLAS, Movimento. Direitos Humanos e Contribuição à Cidadania Homossexual.
Rio de Janeiro: Movimento D’ELLAS, 2005, p. 16). Destaque-se apenas que a
Organização Mundial de Saúde ainda considera a dissociação entre sexo físico e sexo
psíquico uma patologia (qualificando-a como uma disforia de gênero), em que a
ciência médica ainda utiliza-se do termo transexualismo (o sufixo “-ismo”, na ciência
médica, significa “doença”, ao passo que o sufixo “-dade” significa “modo de ser”).
Contudo, o uso do sufixo “-dade” é feito por autores que defendem (com razão, a meu
ver) a experiência transexual como uma questão de gênero e não uma doença,
reivindicando, assim, a despatologização da condição transexual – é o caso, por
exemplo, de Berenice Bento, para quem “a transexualidade é uma experiência
identitária, caracterizada pelo conflito com as normas de gênero”, sendo os
transgêneros pessoas que “ousam reivindicar uma identidade de gênero em oposição
àquela informada pela genitália e, ao fazê-lo, podem ser capturados pelas normas de
gênero mediante a medicalização e patologização da experiência”. Isso porque,
segundo a autora, enquanto o heterossexismo social afirma que “Os gêneros
inteligíveis obedecem à seguinte lógica: vagina-mulher-feminino versus pênis-homem-
masculino”, de sorte a institucionalizar o entendimento de que a complementaridade
natural provaria, inquestionavelmente, que a humanidade seria necessariamente
heterossexual e que os gêneros só teriam sentido quando relacionados às
capacidades inerentes de cada corpo [ou seja, uma construção identitária que ligue
necessariamente o sexo biológico do homem ao gênero masculino e o sexo biológico
da mulher ao gênero feminino], por conta dessa presunção heterossexista, a
transexualidade passa a representar um perigo para estas normas de gênero, “à
medida que reivindica o gênero em discordância com o corpo-sexuado”. Assim, afirma
a autora que a patologização da transexualidade foi uma das formas encontradas pela
ideologia heterossexista para continuar a defender a heterossexualidade como uma
sexualidade admissível, pois, se as ações empíricas não conseguem corresponder às
expectativas estruturadas a partir das suposições oriundas das normas de gênero
heterossexistas, ocorre a desestabilização das normas de gênero, normas estas que
se defendem geralmente pelo uso da violência física e/ou simbólica para manter
práticas dissonantes à margem daquilo considerado por aquelas como humanamente
normal, em que “O processo de naturalização das identidades e a patologização fazem
parte desse processo de produção das margens, local habitado pelos seres abjetos,
que ali devem permanecer” [por decisão arbitrária da ideologia dominante]. (cf.
BENTO, Berenice. O que é a Transexualidade. São Paulo: Brasiliense, 2008, pp. 15,
18, 31-35). Recomenda-se a leitura integral da obra para se compreender com
maiores pormenores todas as nuances do tema. Por outro lado, considerando que
saúde é definida pela Organização Mundial de Saúde como o completo estado de
bem-estar físico, psíquico e social e não o mero estado de não patologia, considero
que o transexual pode ser considerado como de saúde prejudicada – não por ser
detentor de uma patologia, mas por não ter um bem-estar psíquico e/ou social por
conta da dissociação de seu sexo físico em relação a seu sexo psíquico, podendo a
expressão disforia de gênero ser entendida neste contexto. Anote-se, por oportuno,
que o Conselho Regional de Psicologia de São Paulo publicou manifesto, em
26.05.2011, defendendo a despatologização da transexualidade por argumentos
análogos aos desenvolvidos nesta nota (íntegra em
<http://www.crpsp.org.br/portal/midia/fiquedeolho_ver.aspx?id=365>. Último acesso
em: 06 jan. 2012). Por outro lado, vale notar que a atual normatização do Conselho
Federal de Medicina (CFM) sobre a cirurgia de transgenitalização é a Resolução CFM
1.955/2010 (que revogou a anterior Resolução CFM 1.652/2002, a qual, por sua vez,
já havia substituído a Resolução CFM 1.482/1997).
Capítulo 3

OS PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS DA
ISONOMIA E DA PROPORCIONALIDADE

1. O PRINCÍPIO DA IGUALDADE – NOTA INTRODUTÓRIA


O princípio da isonomia possui um duplo aspecto no ordenamento
jurídico brasileiro, a saber: um aspecto formal e um aspecto material.

1.1 Aspecto formal – conteúdo e histórico


Em seu aspecto formal, o princípio da igualdade estabelece a
denominada igualdade perante a lei, que determina a igual aplicação do
Direito vigente a todos os indivíduos, sem consideração das características
pessoais específicas dos cidadãos sujeitos à legislação a ser aplicada. Esta
concepção, extremamente legalista, criou-se a partir da Revolução Burguesa
contra o Regime Feudal que vigorava na sociedade francesa de sua época.
Surgiu especialmente para combater a série de privilégios concedidos ao
Clero e à Nobreza (como se sabe, a sociedade de então se regia pelo regime
estamental, que se dividia entre Nobreza, Clero e Povo, com a Burguesia
inclusa nesta última categoria), uma vez que praticamente todos os ônus
necessários ao desenvolvimento social recaíam sobre o Povo, existindo,
concomitantemente, uma série de privilégios às outras duas classes
estamentais. O Código Napoleônico de 1804 é exemplo clássico dessa nova
concepção de igualdade absoluta entre todos os cidadãos, no tocante aos
direitos e deveres a eles garantidos e impostos, o que visava, especialmente,
impedir a volta daquele regime estamental que se tinha acabado de
derrubar1.
Devido ao momento histórico em que foi criada, a noção meramente
formal da isonomia proporcionou ao legislador total liberdade para
estabelecer quem seriam os iguais e quem seriam os desiguais, no sentido
de que a lei poderia dispor livremente sobre a matéria sem nenhuma
restrição, ainda que oriunda do texto constitucional2. Contudo, tal visão
extremamente legalista do Direito trouxe uma série de dificuldades quanto à
aplicação dos direitos fundamentais dos cidadãos. Isso porque, tendo o
legislador o poder de definição do conteúdo jurídico preciso dos direitos
fundamentais (visto que era a lei que definia o conteúdo dos mesmos,
independentemente do que dissesse a Constituição, em verdadeira
interpretação da Constituição conforme a lei) acabou-se dando a ele
também o poder de criar discriminações extremamente contrárias
especialmente à dignidade da pessoa humana e baseadas unicamente em
critérios arbitrários (embora abstratos) do elaborador da lei3.
Assim, a realidade prática demonstrou que a aplicação do princípio da
igualdade, em seu aspecto meramente formal, abre margem para uma série
de arbitrariedades, uma vez que possibilita a inversão total da célebre
definição de Aristóteles, que serve de base ao preceito isonômico segundo a
qual se deve tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais, na
medida de sua desigualdade. Isso porque a aplicação isolada do aspecto
formal da isonomia permite tratar igualmente os desiguais, o que per si já
fere dito princípio (como, por exemplo, a cobrança do mesmo valor de
IPTU – Imposto Predial e Territorial Urbano de propriedades de 200 e 20
metros quadrados, algo intuitivamente anti-isonômico).
Dessa forma, concluiu-se pela insuficiência da compreensão
meramente formal do preceito isonômico, que demandou por uma
consideração também material, proibitiva de tratamento desigual de
situações idênticas ou análogas, mesmo que tal diferenciação arbitrária
fosse instituída por lei4. A supremacia dos direitos fundamentais passou a se
impor até mesmo sobre a vontade das maiorias parlamentares (ou seja, do
legislador democrático) a partir do momento em que se reconheceu a
supremacia da Constituição sobre os atos do Parlamento.
Dessa forma, tornou-se necessária a aplicação do aspecto material da
isonomia, que a seguir se aborda.
1.2 Aspecto material – conteúdo
Em seu aspecto material, o princípio da igualdade consagra a célebre
definição de igualdade de Aristóteles, uma vez que define que deve ser
dado o mesmo tratamento jurídico aos indivíduos que se encontrem em
situação idêntica ou análoga, ao passo que aos que se encontram em
situação diversa deve ser dado um tratamento jurídico diverso, justamente
em face da situação diferenciada em que se encontram5. É a denominada
igualdade na lei.
A partir da formulação em epígrafe, surgem, quase espontaneamente,
as seguintes indagações: Quem são os iguais e os desiguais? Qual(is) o(s)
critério(s) de que se utiliza(m) para se fazer a(s) diferenciação(ões) entre
indivíduos com o fim de aplicar-lhes tratamentos jurídicos distintos?
Para responder a essas questões, Celso Antônio Bandeira de Mello
trouxe o seguinte procedimento trifásico cumulativo: quando se pretende
dar um tratamento jurídico desigual a determinado grupo abstrato de
indivíduos, é preciso eleger um critério distintivo entre o grupo
discriminado e os demais, devendo, além disso, existir uma correlação
lógico-racional entre o critério distintivo eleito e a discriminação jurídica
que se pretende introduzir (ou seja, deve ser uma decorrência silogística –
lógica – do critério diferenciador erigido e também ser racional, ou seja, ser
embasada em fundamentos fático-científicos que a justifiquem), sendo, por
fim, também necessário que tal discriminação seja condizente com os
valores constitucionalmente consagrados, no seguinte molde:

1) eleição de um fator de desigualação que abarque pessoas


indeterminadas e indetermináveis no momento de sua escolha;
2) identificado o fator de desigualação, deve haver uma
correlação lógica abstrata entre ele e o tratamento jurídico
diferenciado que se pretende introduzir; e
3) deve existir, por fim, uma correlação lógica concreta entre o
tratamento jurídico diferenciado e os valores prestigiados pela
Constituição.

Quanto ao fator de desigualação, ressalta Celso Antônio Bandeira de


Mello que “a lei não pode erigir em critério diferencial um traço tão
específico que singularize no presente e definitivamente, de modo absoluto,
um sujeito a ser colhido pelo regime peculiar”6, apontando ainda para o fato
de que “o traço diferencial adotado, necessariamente há de residir na
pessoa, coisa ou situação a ser discriminada; ou seja: elemento algum que
não exista nelas mesmas poderá servir de base para sujeitá-las a regimes
diferentes”7. Outrossim, ressalta a proibição de eventual inviabilidade
lógica ou material das normas jurídicas, no que tange à sua reprodução em
outros casos, tratando-se a primeira de “(...) situação atual irreproduzível
por força da própria abrangência racional do enunciado”8, sendo a segunda
caracterizada por uma “(...) descrição de situação cujo particularismo revela
uma tão extrema [hipótese], da improbabilidade da recorrência que valha
como denúncia do propósito, fraudulento, de singularização atual absoluta
do destinatário”9. Assim, conclui que só não haverá agravo à isonomia com
relação a esse aspecto (fator de desigualação) se a lei “(...) atingir uma
categoria de pessoas ou então voltar-se para um só indivíduo, se, em tal
caso, visar a um sujeito indeterminado e indeterminável no presente”10.
Este primeiro aspecto é o que Alexy denomina de práxis decisional
universalizante, que é um “postulado geral de racionalidade prática, que
vale tanto para o legislador quanto para o aplicador do direito”11.
Superada a questão do critério de desigualação, deve haver uma
correlação lógico-racional entre o critério de diferenciação erigido e o
tratamento jurídico diferenciado que se pretende introduzir a determinado
grupo de indivíduos. Neste ponto, tem-se que esse tratamento jurídico
diferenciado que se pretende impor deve ser uma consequência silogística
(elemento lógico) da característica erigida como critério de diferenciação
entre os indivíduos que receberão dito tratamento diferenciado e os que
continuarão sob a égide da legislação comum, além de ser embasado em
fundamentos fático-científicos que o justifiquem (elemento racional)12. Isso
significa que somente deve ser instituído um tratamento diferenciado se for
apresentada uma fundamentação lógico-racional que o justifique, sendo
que, na inexistência de fundamentação suficiente ou válida, a isonomia
impõe a aplicação do mesmo regime jurídico a todas as situações13.
Por fim, além dos dois aspectos anteriores, deve a diferenciação
pretendida estar de acordo com os valores protegidos por nossa
Constituição, donde se conclui que a relação lógico-racional explicitada
anteriormente deve estar de acordo com a Carta Magna, sob pena de se
caracterizar tal discriminação como verdadeira inconstitucionalidade por
atentar contra a isonomia, uma vez que estará ferindo os valores protegidos
pela Lei Maior, mesmo no caso de perfeitamente lógica e racional a
diferenciação pretendida14.
Essa é a lição de Celso Antônio Bandeira de Mello. Faço apenas uma
ressalva ao pensamento do célebre doutrinador: penso que o terceiro critério
não faz parte da isonomia, mas da constitucionalidade em geral. Isso
porque, se é certo (como é) que a discriminação juridicamente válida é
aquela que, além de visar pessoas indeterminadas e indetermináveis e seja
pautada por uma motivação lógico-racional, deva ser coerente com os
valores constitucionalmente consagrados, a isonomia encontra-se satisfeita
com a presença dos dois primeiros aspectos supra-apontados, donde
eventual incoerência da diferenciação com outros valores constitucionais
ensejará inconstitucionalidade por afronta a estes, não à isonomia (o que
significa dizer que a discriminação juridicamente válida, necessariamente
tem que respeitar a isonomia, embora o respeito à isonomia nem sempre
gere uma discriminação juridicamente válida).
De qualquer forma, percebe-se que a discriminação juridicamente
válida é aquela oriunda de uma valoração lógico-racional no sentido da
necessidade de se dispensar um tratamento diferenciado a uma situação
quando comparada a outra(s), diferenciação esta que deverá, ainda, estar em
consonância com os valores consagrados em nossa Constituição Federal.
Por outro lado, é de se notar que a lição de Celso Antônio Bandeira de
Mello deve ser complementada com a ponderação de Canotilho no sentido
de que o princípio da isonomia não se resume à proibição do arbítrio (tão
bem explicitada pelo primeiro), mas também à função social da igualdade,
no sentido de ser a isonomia uma imposição constitucional relativa que, por
isso, a caracteriza como uma forma de eliminação das desigualdades
fáticas. Em outras palavras, ainda que a isonomia genericamente
considerada não fundamente um dever absoluto de legislação, fundamenta
um dever de legislação relativo, uma imposição constitucional acessória,
uma exigência de atuação relativa, no sentido de que quando existirem
pessoas essencialmente iguais àquelas que foram objeto de regulamentação
legal, o princípio da igualdade exigirá para estas uma disciplina legal igual
à estabelecida para os casos já regulados, fundamentando um dever
legislativo de atuação nesse sentido. Dessa forma, aponta o autor que
quando a disciplina legiferante favorecer certos indivíduos esquecendo-se
de outros, impor-se-á à Jurisdição e à Administração que supram a lacuna
legal por intermédio da analogia, só devendo dita lei ser declarada nula
quando as vantagens legais não puderem ser estendidas pela aplicação
analógica aos casos ou grupos reconhecidos como portadores dos mesmos
pressupostos daqueles já contemplados pela disciplina legal15.
Isso significa que, verificada a arbitrariedade, entendida como
inexistência de motivação lógico-racional que justifique o tratamento
diferenciado do grupo que foi resguardado pela regulamentação legal em
relação ao grupo não contemplado, dever-se-á constatar uma
inconstitucionalidade por omissão, que deverá ser sanada pela utilização
das técnicas hermenêuticas da interpretação extensiva ou da analogia, como
forma de se conceder ao grupo discriminado os direitos conferidos ao outro
grupo. Ressalte-se que o fato de se tratar de uma inconstitucionalidade por
omissão e não por ação torna incorreta e inoportuna uma expurgação da lei
em questão do ordenamento jurídico por vício de inconstitucionalidade, na
medida em que o grupo protegido pelo texto legal é merecedor de dita
proteção, havendo inconstitucionalidade unicamente na exclusão do outro
grupo de dita regulamentação. Assim, é de se ter em mente que
inconstitucionalidades por omissão não podem nem devem ser solucionadas
mediante declaração de nulidade da lei concessiva de direitos, mas pela
extensão de tais direitos ao grupo discriminado pela lei por intermédio da
interpretação extensiva ou da analogia, que são, afinal, técnicas
hermenêuticas decorrentes da isonomia por visarem garantir igual
tratamento aos iguais, ou fundamentalmente iguais, respectivamente.
Por outro lado, é de se notar o equívoco daqueles que dizem que as
diferenciações expressamente proibidas pela Constituição tornariam
inconstitucional toda e qualquer lei que criasse tratamento diferenciado com
base naqueles critérios. Citem-se, por exemplo, o Estatuto da Criança e do
Adolescente e o Estatuto do Idoso, que criam regimes jurídicos
diferenciados e mais benéfico a menores e idosos do que aquele existente
para adultos, mesmo a despeito da proibição de discriminação por idade
(art. 3.o, IV, da CF/1988), ou mesmo da diferença de prazo na licença-
maternidade e na licença-paternidade, mesmo a despeito da proibição de
discriminação por sexo (arts. 3.o, IV, e 5.o, I, da CF/1988). Ocorre que,
nesses casos, a Constituição erigiu tais cláusulas como classificações
suspeitas, presumindo sua inconstitucionalidade, donde a validade delas
depende de uma fundamentação lógico-racional que justifique sua
necessidade e pertinência como um importante fim estatal16. Restam, assim,
compatibilizadas as questões de proibições expressas na Constituição com o
aspecto material da isonomia e, ainda, com o postulado segundo o qual a lei
não tem palavras inúteis (lei aqui usada em sentido amplo: constitucional ou
infraconstitucional).
É por isso que o Estatuto da Criança e do Adolescente, o Estatuto do
Idoso e a licença-maternidade não são inconstitucionais, mesmo a teor dos
arts. 3.o, IV e 5.o, I, da CF/1988, na medida em que se afigura como lógica
e racional a maior proteção de menores e idosos em relação a adultos, visto
que os primeiros ainda não têm o discernimento e a experiência necessárias
para a vida em sociedade e os segundos se encontram em situação de
inferioridade física, menor resistência e maior desgaste em relação a adultos
em geral. O mesmo se diga quanto ao maior prazo da licença-maternidade
em relação à licença-paternidade, na medida em que é a mulher quem dá a
luz à criança e, ainda, ante a necessidade da amamentação, justifica-se que
ela tenha um descanso maior do que o do homem, que não tem desgaste
físico algum com o nascimento de seu(sua) filho(a), assim como não
precisa amamentá-lo(a) por meses. Vislumbra-se aqui um importante fim
estatal na garantia de uma maior proteção a crianças, adolescentes e idosos
em relação a adultos, visto que constituem numerosa parte da população
que necessita de especial proteção estatal em virtude de sua
hipossuficiência relativamente ao restante da população (adulta), de sorte a
garantir que recebam igual respeito e consideração do Estado e do restante
da sociedade contra discriminações e abusos que possam vir a sofrer.
Cabe destacar o acerto de Walter Claudius Rothemburg quando afirma
que não existem “duas igualdades”, uma formal e outra material, ou ainda
uma igualdade perante a lei e outra igualdade na lei, mas, ao contrário,
existe apenas uma igualdade, que deve respeitar todas estas
compreensões17. Nesse sentido, entendo que a igualdade formal é a regra,
ao passo que a igualdade material é a exceção, no sentido de que aquele
que propugna pelo tratamento desigual tem o ônus de provar a pertinência
lógico-racional de tal diferenciação, sob pena de ser aplicada a igualdade
formal. Ou, nas palavras do autor18: “A igualdade significa, portanto, evitar
discriminações injustificáveis, proibindo-se o tratamento desigual de quem
esteja numa mesma situação, bem como promover distinções justificáveis,
oferecendo um tratamento desigual para quem esteja numa situação
diferenciada (injusta)”. É, inclusive, o que já decidiu o Supremo Tribunal
Federal (necessidade de consideração tanto do aspecto formal quanto do
aspecto material na análise de determinada diferenciação jurídica à luz do
princípio da isonomia19).
Com essas premissas em mente, pode-se analisar o dever de respeito às
diferenças oriundo do princípio da igualdade20. Com efeito, a partir do
momento em que a isonomia exige uma fundamentação lógico-racional que
justifique a discriminação pretendida com base no critério diferenciador
erigido, tem-se que é inconstitucional o desrespeito a terceiros por puros
preconceitos e, assim, por motivos puramente arbitrários, justamente por
serem estes desprovidos de fundamentação lógico-racional que lhes
fundamente.
O pluralismo social constitucionalmente consagrado reforça essa tese.
Afinal, a partir do momento em que a Constituição consagra uma sociedade
plural, isso significa que a Constituição reconhece e protege o direito das
pessoas viverem plenamente seus diferentes projetos de vida sem que
totalitárias pretensões uniformizantes tenham qualquer respaldo
constitucional.
Isso significa que o mero moralismo majoritário não tem o condão de
justificar discriminações jurídico-sociais pelo simples fato de o grupo
discriminado ter um estilo de vida supostamente contrário à moral do grupo
majoritário/dominante. Não foi outra a conclusão da Suprema Corte dos
EUA no julgamento do caso Lawrence v. Texas, de 2003, no qual declarou a
inconstitucionalidade das leis que criminalizavam o sexo homoafetivo
(chamado de “sodomia homossexual”), entre outros motivos, pelo fato de a
mera desaprovação moral não servir de fundamento para discriminar
determinado grupo de pessoas, na medida em que a promoção de valores
morais majoritários não passa pelo teste da relação racional, que aduz que
uma discriminação será constitucional quando for pautada por uma relação
racional com uma legítima e independente finalidade constitucional (cf.
Romer v. Evans)21, no que não se enquadra o mero moralismo majoritário
não acompanhado pela promoção de uma tal finalidade constitucional. Para
tanto, referido julgado prestigiou as colocações do voto vencido do Justice
Stevens, em Bowers v. Hardwick, segundo o qual “o fato de que a maioria
governante de um Estado tradicionalmente considerou como imoral uma
determinada prática não é uma razão suficiente para justificar uma lei que
proíba esta prática”22.
Por fim, uma nota importante sobre o aspecto material da isonomia:
como é intuitivo, o que é lógico-racional para uma pessoa pode não sê-lo
para outra. Nesse tema, ingressa-se em uma questão valorativa, o que
geralmente leva a diversos entendimentos a respeito do mesmo tema e,
ainda, a evoluções/mudanças de posicionamento sobre o que é isonômico e
o que não o é23. Ou seja, o que se considera isonômico em uma determinada
época pode não mais sê-lo em épocas futuras, como a história humana já
comprovou. Nesse sentido, vale mencionar a evolução da isonomia no
ordenamento jurídico estadunidense, que: (i) partiu de uma legislação
escravista, avançando para, após a abolição: (ii) admitir que negros fossem
discriminados negativamente em relação a brancos; (iii) deixar de
considerar legítimas discriminações pautadas unicamente na cor de pele
(doutrina do Separate but Equal – Separados mais Iguais); (iv) admitir
ações afirmativas para promover a igualdade real dos cidadãos (doutrina do
Treatment as an Equal – Tratamento como um Igual)24.
Isso significa que mutações normativas do que se considera
materialmente isonômico são absolutamente normais, em razão da evolução
do pensamento humano e das novas descobertas científicas. Diz-se isto pelo
fato de que não se deve pensar que não haveria afronta à isonomia pelo não
reconhecimento do status jurídico-familiar das uniões homoafetivas ou
então pelo não reconhecimento da possibilidade jurídica do casamento civil,
da união estável e da adoção por casais homoafetivos pelo simples fato de,
no passado, não terem sido consideradas anti-isonômicas tais arbitrárias
posturas. O contexto social atual é diferente daquele do passado; o
entendimento humano sobre a homossexualidade e a homoafetividade
também (atualmente, as pessoas civilizadas respeitam a homossexualidade,
ao passo que a ciência médica mundial não mais a patologiza, vendo-a
como uma das livres manifestações da sexualidade humana, ao lado da
heterossexualidade). De uma forma ou de outra, hoje não se vislumbram
razões para negar direitos às uniões homoafetivas pelo simples fato de
serem formadas por duas pessoas do mesmo sexo, na medida em que essas
uniões são tão dignas quanto as existentes entre duas pessoas de sexos
diversos. Assim, eventuais razões do passado não podem ser importadas
acriticamente ao presente: deve-se levar em conta o atual entendimento
científico a respeito do tema. Mesmo porque não é porque algo sempre foi
assim que este algo estaria necessariamente certo – a escravidão sempre foi
assim antes de sua abolição e nem por isso esteve certa em nenhum
momento histórico. Nunca esteve, embora o pensamento da época não o
vislumbrasse, talvez por não se preocupar tanto com a dignidade da pessoa
humana quanto se preocupa hoje.
Em suma, somente não haverá agravo à isonomia se a discriminação
pretendida visar a indivíduos indeterminados e indetermináveis ao tempo da
elaboração do projeto de lei que a consagra e for, ao mesmo tempo,
racionalmente lógica em seus fundamentos e concretamente coerente com
os valores constitucionalmente consagrados, donde se impõe a aplicação da
mesma norma a todos (o aspecto formal da isonomia), sem diferenciações
de tratamento, no caso de não atendimento de qualquer um dos critérios
supraelucidados, todos necessários à aplicação do aspecto material do
preceito isonômico25. Por outro lado, constatada a arbitrariedade da
exclusão de determinados grupos do regime legal em questão, dita
inconstitucionalidade por omissão deverá ser sanada por intermédio da
interpretação extensiva ou da analogia, como forma de se estender a ditos
grupos o regime jurídico ao qual fazem jus.

1.3 A teoria tridimensional do Direito e o objeto de proteção das


normas. O Direito como ciência valorativa
Uma das principais alegações dos opositores ao reconhecimento do
status jurídico-familiar das uniões homoafetivas é o fato de inexistir “lei
expressa” permitindo tal hipótese. Usam a expressão “o homem e a mulher”
constante nos dispositivos que tratam do casamento civil e da união estável
para justificar seu ponto de vista. Apesar de esta ser uma discussão a ser
travada pormenorizadamente em capítulos próprios, cumpre tecer algumas
considerações acerca do objeto de proteção das normas, que não se
configuram por situações fáticas constantes dos enunciados normativos,
mas, ao contrário, a partir do(s) valor(es) protegido(s) por estes.
Demonstra completo desconhecimento acerca do objeto de proteção de
uma norma jurídica a afirmação de que a mera falta de texto normativo
regulamentando determinada situação fática ensejaria a absoluta falta de
proteção jurídica a esta ou, ainda, a não extensão de regime jurídico
dispensado por texto normativo a situação idêntica ou análoga àquela
situação mencionada pelo enunciado normativo. Com efeito, a norma
jurídica não protege determinadas situações fáticas devido à arbitrariedade
e/ou aos caprichos do legislador (de ter protegido apenas estas e não outras)
– a norma jurídica protege determinados fatos devido a um valor positivo a
eles conferidos. Em outras palavras, o que se protege não é um fato isolado,
mas um valor inerente à situação mencionada pela norma, seja ela
constitucional ou infraconstitucional.
Essa é a Teoria Tridimensional do Direito, segundo a qual há três
aspectos nas normas jurídicas, a saber: (i) um aspecto fático, que engloba os
fatos abarcados pela norma; (ii) um aspecto valorativo, que justifica a
proteção aos fatos abarcados em virtude de um valor positivo a eles
atribuído ou a condenação aos referidos fatos em virtude de um valor
negativo a eles vinculado; e (iii) um aspecto normativo, que instrumentaliza
em um texto normativo a proteção ou condenação legislativa aos fatos em
comento26. Isso significa que o Direito é uma ciência valorativa, no sentido
de que protege ou reprime determinados fatos em razão da valoração a eles
atribuída.
Cumpre definir aqui o que se entende por valoração: valorar quer
dizer atribuir um significado positivo ou negativo a determinado fato, por
meio de atribuição de um grau de importância ou desimportância ao
referido fato27. Isso significa que uma lei que regulamente uma situação,
garantindo-lhe proteção jurídica, valorou-a positivamente; ao passo que
uma lei que proibiu ou restringiu os direitos de outra situação, valorou-a
negativamente28.
Destarte, fica claro que o Direito protege uma situação fática, por meio
de uma norma jurídica em decorrência de um valor positivo conferido
àquele fato. Em outras palavras, a norma decorre de um fato valorado
positiva ou negativamente pelo legislador, razão pela qual se pode cunhar a
equação segundo a qual fato + valor = norma29. Fica claro, portanto, que é
o valor da norma jurídica o objeto protegido por esta, e não uma situação
fática desprovida de qualquer valoração30.
Ora, se um fato liga-se a um valor para gerar a norma, então se percebe
que a norma decorre de um fato valorado positiva ou negativamente,
conforme a equação segundo a qual norma = fato + valor. Exemplifique-
se: a norma que pune o homicídio analisa o fato (matar alguém), atribui-lhe
um valor negativo (matar é errado, condenável) e, consequentemente,
atribui-lhe uma pena (reclusão). Da mesma forma o Estatuto da Criança e
do Adolescente é um microssistema jurídico que analisa o fato
“menoridade”, atribui-lhe um juízo de valor (crianças e adolescentes
precisam de maior proteção que adultos) para a criação de diversas normas
que protegem os interesses de crianças e adolescentes. O mesmo pode ser
dito quanto ao Estatuto do Idoso: analisa o fato “idade avançada” e atribui-
lhe um juízo de valor (idosos precisam de maior proteção que adultos) para
a criação de diversas normas que protegem os idosos.
Como se pode ver, não é um fato isoladamente considerado que é
protegido pela norma: é o valor inerente a esse fato que é protegido por ela.
O Direito é uma ciência valorativa, pois o ser humano somente age em
determinado sentido por visar uma determinada finalidade, orientado por
valores – ou seja, “toda atividade humana se destina a satisfazer um valor
ou a impedir que um desvalor sobrevenha. As valorações são, pois, um dos
ingredientes ônticos do processo cultural, inseparável da ‘vida
quotidiana’”31. Por outro lado, as valorações devem ser pautadas pela
racionalidade, pelo entendimento empírico-científico a respeito do tema sob
análise, sendo inadmissível o uso de subjetivismos desprovidos de qualquer
comprovação no momento da valoração, ou seja, no momento de se atribuir
um significado positivo ou negativo ao fato analisado32. Tendo isso em
mente, chega-se a uma compreensão completa dos institutos da
interpretação extensiva e da analogia, que são técnicas hermenêuticas de
integração e interpretação jurídica que visam garantir a uma situação não
citada expressamente (interpretação extensiva) ou não regulamentada
(analogia) a mesma proteção jurídica concedida àquela tomada como
paradigma em decorrência de ambas serem idênticas (interpretação
extensiva) ou possuírem o mesmo elemento essencial (valor) protegido pela
norma (analogia).
Assim, na precisa lição de Humberto Ávila33:

A questão, então, passa a dizer respeito à motivação do


tratamento diferenciado. A igualdade pressupõe uma relação entre
dois sujeitos com base em determinado critério de diferenciação. Esse
critério de diferenciação, por sua vez, é utilizado para atingir
determinada finalidade, correlacionando os sujeitos, tendo em vista
determinadas propriedades que, relativamente àquela finalidade, são
tidas como relevantes. (...) Como a igualdade exige uma comparação
de sujeitos, há a necessidade de estabelecer uma medida de
comparação para atingir uma dada finalidade. (...) ela pressupõe uma
relação entre sujeitos com base em determinado critério de
diferenciação, que é utilizado para atingir determinada finalidade, e
correlaciona os sujeitos tendo em vista determinadas propriedade
havidas, relativamente àquela finalidade, como relevantes (...) Com
efeito, sempre que se pretende realizar a igualdade, há uma relação
entre determinados elementos (sujeitos, medida de comparação,
elemento indicativo da medida de comparação e finalidade da
comparação). (...) a igualdade é uma relação entre dois ou mais
sujeitos em razão de um critério que serve a uma finalidade. (...) Esses
juízos comparativos estão evidentemente relacionados: para saber se as
pessoas devem ser tratadas igualmente é preciso verificar, no plano dos
fatos, se elas têm as propriedades selecionadas como relevantes pela
norma (...). Vale dizer, a igualdade, enquanto dever de tratamento
igualitário, só surge quando, para alcançar determinada finalidade que
deve ser buscada, os sujeitos são comparados por critérios que, além
de serem permitidos, são relevantes e congruentes relativamente
àquela finalidade (...). A igualdade pode, portanto, ser definida como
sendo a relação entre dois ou mais sujeitos, com base em medida(s) ou
critério(s) de comparação, aferido(s) por meio de elemento(s)
indicativo(s), que serve(m) de instrumento para a realização de
determinada finalidade. (...)

Disso resulta que, considerando que o atual entendimento empírico-


científico demonstra que a homoafetividade é tão normal e tão digna
quanto a heteroafetividade, não podem os casais homoafetivos serem
discriminados em relação aos casais heteroafetivos por conta unicamente
da homogeneidade de sexos daquele casal, devendo aqueles receberem a
mesma proteção jurídica concedida a estes por intermédio das citadas
técnicas interpretativas, sendo preconceituoso o entendimento em sentido
contrário.
Nesse sentido, a interpretação extensiva é fundamentada no fato de que
o legislador pode não ter em mente todas as situações fáticas que
contenham o valor protegido pela norma por ele elaborada, donde ele pode
ter deixado expressa a proteção a uma determinada situação fática ao
mesmo tempo em que se omitiu quanto a uma outra situação idêntica,
omissão esta por ignorância ou preconceito, o que é irrelevante. Já a
analogia é baseada no fato de uma situação que seja diferente daquela
expressamente regulamentada possuir o mesmo valor (elemento essencial)
da situação expressa, razão pela qual é utilizada para estender à segunda
situação, não expressamente regulamentada, o regime jurídico conferido à
primeira situação, expressa pela lei.
Ou seja, a interpretação extensiva e a analogia nada mais são do que
formas de aplicação da isonomia, visto que com elas se pretende tratar
igualmente os iguais ou os fundamentalmente iguais por serem possuidores
do mesmo elemento essencial (valor), que é o verdadeiro objeto de proteção
da norma jurídica (no caso da analogia). Em verdade, são elas formas de
alcançar a verdadeira finalidade do Direito mesmo que a letra fria do texto
normativo, aparentemente, não abarque todas as situações que o valor que
ele visou proteger, na prática, abrange. Afinal, o legislador não é um
déspota que possui o poder de regular arbitrariamente a vida em sociedade
conforme seus caprichos: a partir do momento em que o ordenamento
jurídico consagra a igualdade como preceito fundamental, todos aqueles
que se encontram na mesma situação ou em situação fundamentalmente
idêntica devem receber o mesmo tratamento jurídico, donde é possível a
aplicação da interpretação extensiva ou da analogia nos casos onde o texto
normativo não proíba expressamente a situação omitida pelo preceito geral
da norma34.
Como se percebe, a interpretação extensiva e a analogia são
exteriorizações do princípio da igualdade, no sentido de que visam tratar
igualmente os iguais (interpretação extensiva) e os fundamentalmente
iguais (analogia), muito embora a letra fria do texto normativo não preveja
expressamente dita proteção jurídica. Isso se justifica porque o valor
protegido pela igualdade constitucionalmente assegurada é o de que as
pessoas que se encontrem nas mesmas condições, ou em condições
essencialmente idênticas, recebam o mesmo tratamento jurídico, para
evitar arbitrariedades, favorecimentos despóticos de determinados grupos
ou pessoas em relação a outros(as).
Dessa forma, deve-se sempre utilizar a interpretação teleológica
quando se interpreta um dispositivo legal. Interpretação teleológica é aquela
que visa identificar a finalidade do texto normativo, ou seja, o valor por ele
protegido para apurar seu real objeto de proteção, justamente para estender
ou mesmo restringir sua aplicação aos fatos analisados no caso concreto.
Ou seja, quando o intérprete perceber que o texto normativo não citou
expressamente determinada situação ou então foi omisso em relação a ela, e
que não há motivação lógico-racional no tratamento diferenciado das duas
situações, deverá estender a ela o mesmo tratamento jurídico dispensado à
situação expressamente citada ou regulamentada. Aliás, toda interpretação
jurídica deve ser guiada pela pauta teleológica que busque a real finalidade
do texto normativo35.

1.3.1 Caracterização da lacuna normativa


Argumento muito comum utilizado contra o reconhecimento do
casamento civil, da união estável e da adoção conjunta por casais
homoafetivos é o fato de a legislação usar a expressão “o homem e a
mulher” nos dispositivos legais/constitucionais respectivos, no sentido de
que reconhecem a união estável “entre o homem e a mulher” (arts. 226, §
3.º, da CF/1988, e 1.723 do CC/2002) e o casamento civil como o ato
celebrado “quando o homem e a mulher” comparecem perante o juiz de paz
(art. 1.514 do CC/2002), como se isso configurasse uma “proibição
implícita” ao casamento civil e à união estável entre pessoas do mesmo
sexo. Contudo, esse entendimento é absurdo, na medida em que é notório,
consoante as lições de Direito Civil Clássico consagradas pela doutrina36,
no sentido de que o fato de a legislação citar um fato sem proibir outro
configura lacuna normativa passível de colmatação por interpretação
extensiva ou analogia, por força do princípio da igualdade, que demanda
tratamento igual a situações idênticas ou idênticas no essencial,
respectivamente.
Esse tema foi tratado já na primeira edição desta obra, no Capítulo 6,
item 3 – “A Interpretação Extensiva, a Analogia e a Possibilidade Jurídica
do Casamento Civil Homoafetivo”37, bem como, no mesmo capítulo, no
item 6 – “Da Possibilidade Jurídica do Pedido de Casamento Civil
Homoafetivo”38 – tópicos mantidos (com acréscimos) nesta nova edição.
Contudo, achei por bem criar item específico acerca da caracterização da
lacuna normativa neste capítulo pela inacreditável frequência com que
argumentos no sentido de que a redação normativa “impediria” o
reconhecimento do casamento civil e da união estável por casais
homoafetivos pela mera literalidade normativa. Digo inacreditável por ser
basilar na ciência jurídica que o fato de a legislação citar um fato sem
proibir outro configurar lacuna normativa e não “proibição implícita” ao
fato não regulamentado – até porque, do contrário, restariam inviabilizadas
as técnicas hermenêuticas da interpretação extensiva e da analogia, já que
ambas pressupõem que a legislação citou um fato sem proibir outro e que o
juiz compare as duas situações para aplicar àquela não citada pelo texto
normativo o regime jurídico por este expressamente dispensado àquela por
ele mencionada caso as considere idênticas ou análogas.
Logo, absolutamente descabida a afirmação de que o fato de a
legislação citar a expressão “o homem e a mulher” ou “marido e mulher”
implicaria “proibição implícita” ao casamento civil ou à união estável entre
pessoas do mesmo sexo, na medida em que isto significa meramente a
regulamentação do fato heteroafetivo (a união entre pessoas de sexos
diversos) como casamento civil e união estável sem, todavia, que isto
signifique “proibição implícita” ao fato homoafetivo (a união entre pessoas
do mesmo sexo) como casamento civil e união estável, como demonstrado
pormenorizadamente no capítulo 6, itens 3 e 6 – pois, como bem afirmado
pelo Ministro Gilmar Mendes no julgamento da ADPF 132 e da ADI 4.277,
o fato de a legislação ter reconhecido a união entre o homem e a mulher não
significa o não reconhecimento da união entre duas pessoas do mesmo
sexo39.

1.3.2 Interpretação extensiva ou analogia para reconhecimento do


casamento civil, da união estável e da adoção por casais homoafetivos.
Despsicologização do conceito de interpretação extensiva.
Esclarecimentos
A tese principal deste trabalho é aquela segundo a qual devem ser
reconhecidos o casamento civil, a união estável e a adoção por casais
homoafetivos por interpretação extensiva ou analogia, por força do
princípio da igualdade40. Pode-se indagar porque se fala em interpretação
extensiva ou analogia. Como mencionado, as duas supõem um texto
normativo que cita um fato sem nada dispor sobre o outro, mas diferem
porque a interpretação extensiva refere-se a duas situações idênticas, e a
analogia a duas situações que, embora diferentes em algum aspecto, são
idênticas no essencial, naquilo que justifica a normatização do fato
regulamentado. Nesse sentido, considero que as uniões homoafetivas são
idênticas às uniões heteroafetivas, tendo em vista que ambas são pautadas
pelo mesmo amor familiar, sendo absolutamente irrelevante o fato de
termos duas pessoas do mesmo sexo em um caso e duas pessoas de sexos
distintos em outro, o que não configura nenhuma diferença – não mais do
que a existente entre um casal heteroafetivo formado por brancos e um
casal heteroafetivo formado por negros. Contudo, caso se considere que
isso configuraria uma “diferença” entre as situações, então só se pode
concluir que não se trata de uma diferença relevante, uma vez que ambas as
uniões são pautadas pelo mesmo elemento essencial, a saber: o amor
familiar, que é o elemento formador da família contemporânea. Dessa
forma, a interpretação teleológica dos regimes jurídicos do casamento civil
e da união estável demonstra que eles visam proteger a família oriunda de
uma união amorosa, entendida ela como a pautada pelo amor romântico que
vise a uma comunhão plena de vida e interesses, de forma pública, contínua
e duradoura (amor familiar41). Não que outras formas de amor não
configurem o amor familiar: o amor fraterno que vise a uma comunhão
plena de vida e interesses, de forma pública, contínua e duradoura também
deve ser visto como caracterizador de uma entidade familiar, embora sem
caráter romântico-sexual. Contudo, o casamento civil e a união estável são
regimes jurídicos que abarcam as uniões amorosas pautadas pelo amor
romântico, não pelo amor fraterno, desse modo, correta a definição aqui
adotada.
Lembre-se da lição de Ávila, supratranscrita: “a igualdade, enquanto
dever de tratamento igualitário, só surge quando, para alcançar determinada
finalidade que deve ser buscada, os sujeitos são comparados por critérios
que, além de serem permitidos, são relevantes e congruentes relativamente
àquela finalidade”. Nesse sentido, sendo a finalidade dos textos normativos
relativos à casamento civil e à união estável regulamentar a família
conjugal, sendo a união homoafetiva uma família conjugal, ela deverá ser
por eles abarcada, por interpretação extensiva ou analogia, visto que o não
reconhecimento da família conjugal homoafetiva não traz nenhum prejuízo
ou benefício à família conjugal heteroafetiva, além de se tratar de medida
arbitrária, por ser despida de fundamentação lógico-racional que lhe
fundamente, em que esse não reconhecimento é inconstitucional por afronta
ao princípio da isonomia. Tal afirmação será pormenorizadamente
desenvolvida nos capítulos 6 a 10.
Na definição tradicional, afirma-se que a interpretação extensiva
destina-se a complementar o texto legal/constitucional sob o fundamento de
que o legislador disse menos do que queria; no mesmo sentido, afirma-se
que a interpretação restritiva destina-se a corrigir o texto
legal/constitucional sob o fundamento de que o legislador disse mais do que
queria. Como se vê, essas definições tradicionais têm como foco o que os
parlamentares específicos que aprovaram o texto normativo pensaram ou
deixaram de pensar. Não é, todavia, meu entendimento. Entendo que,
identificado (pela interpretação) o valor protegido pela norma, deve-se
estender ou restringir o âmbito de incidência do texto normativo para
adequá-lo à finalidade normativa, independentemente do que pensou ou
deixou de pensar o legislador concreto. Se sua vontade não está
exteriorizada no texto normativo nem se adéqua ao valor protegido pela
norma, ela deve ser tida como irrelevante. Consoante já decidido pelo
Superior Tribunal de Justiça, inclusive analisando o tema da possibilidade
jurídica da união estável e do casamento civil por casais homoafetivos, se o
texto normativo não traz uma proibição específica de extensão do regime
jurídico em questão a determinada situação ou uma restrição específica
mediante termos como “apenas/somente/unicamente”, então não há
proibição normativa e, portanto, impossibilidade jurídica do pedido. Afirma
o STJ que, se o legislador desejasse, poderia incluir tais
proibições/restrições no texto normativo, mas, se não o fez, não se pode
considerar como proibida a extensão do regime jurídico em questão à
situação não mencionada pelo texto normativo42 – ainda mais no Direito
das Famílias, no qual proibições/restrições devem ser expressas ante o
caráter taxativo dos impedimentos matrimoniais.
Pelo mesmo raciocínio, não se pode considerar a vontade psicológica
do legislador concreto na interpretação do texto normativo quando tal
vontade não esteja exteriorizada nas palavras do referido texto. Dessa
forma, na linha da corrente objetiva da interpretação normativa, entendo
cabível interpretação extensiva quando a lei disse menos do que queria – a
lei objetivamente considerada, desvinculada da vontade psicológica do
legislador concreto sobre seu âmbito de incidência. A investigação da
vontade subjetiva do legislador concreto deve ser feita para se entender o
que ele quis proteger com o texto normativo em questão, mas deve-se levar
em conta o conceito que o legislador quis proteger, não a concepção pessoal
do legislador sobre o que se enquadra neste conceito. No presente caso,
parece evidente que o legislador quis proteger a família conjugal com os
regimes jurídicos do casamento civil e da união estável – este é o conceito
protegido pela legislação, no qual todas as uniões amorosas que se
enquadrarem no conceito de família conjugal devem ser abarcados pelos
regimes jurídicos do casamento civil e da união estável caso não haja
proibição/restrição normativa específica nas palavras dos textos normativos
respectivos que impeçam tal exegese extensiva. Se a concepção de família
conjugal do legislador não abarca as uniões homoafetivas, por exemplo,
isso não pode ser tido como relevante, pois o que deve ser interpretado é o
texto normativo, não a vontade psicológica do legislador – até porque criar-
se proibições não previstas no texto normativo é inconstitucional por
afronta ao princípio da legalidade, consagrado em nosso art. 5.º, II, da
CF/1988, segundo o qual ninguém será obrigado a fazer ou a deixar de
fazer algo senão em virtude de lei – em virtude de lei, e não em virtude da
vontade subjetiva do legislador não exteriorizada em texto normativo.
Aliás, o STJ já decidiu que afronta o princípio da legalidade a decisão
judicial que impõe “requisito” para acesso a determinado regime jurídico
quando dito requisito não é previsto em lei (no texto da lei) – ou seja, que
ofende o princípio da legalidade criar “requisito” não previsto em lei43, o
que reforça a posição aqui defendida, pois se o texto normativo não
estabeleceu expressamente algo como requisito de determinado regime
jurídico, não se pode ter como existente um tal “requisito”, sob pena de
afronta ao princípio da legalidade (art. 5.º, II, da CF/1988).

1.4 O princípio do Estado Laico e a proibição da utilização de


fundamentações religiosas para justificar discriminações jurídicas
Antes de iniciar esta questão, cumpre explicitar o texto normativo-
constitucional que consagra o princípio do Estado Laico no ordenamento
jurídico brasileiro, a saber, o art. 19, I, da CF/1988, que proíbe ao Estado
brasileiro manter com religiões e respectivas instituições religiosas
quaisquer relações de aliança ou dependência.
Ainda que não se aceite a conclusão do capítulo anterior sobre a
ausência de condenação divina à homossexualidade e se entenda que a
bíblia efetivamente condena a homossexualidade por si, há que se
considerar que o Brasil é um Estado Laico, no qual os rumos da nação não
podem ser definidos nem sequer influenciados pelas religiões, o que se
extrai da vedação expressa do art. 19, I, da CF/1988 no sentido de
manutenção de relações de “dependência ou aliança” com religiões e/ou
instituições religiosas44.
Ante o teor do citado dispositivo constitucional, é evidente que o
Estado Brasileiro não pode utilizar-se de fundamentações religiosas para
justificar discriminações políticas e jurídicas, ante a proibição de
manutenção de relações de dependência ou aliança com os credos
religiosos45. Ademais, é uma decorrência lógica do princípio da laicidade
estatal essa proibição, visto que as religiões baseiam-se em supostas
“verdades universais”, que não admitem discussão, por mais que toda a
racionalidade humana aponte para o sentido contrário. Afinal, as religiões
baseiam-se em um ponto que lhes é muito cômodo: a fé não necessita de
comprovação – basta que alguma colocação seja professada e que nela se
acredite, ante a afirmação de que seria baseada na “palavra de Deus”. No
entanto, ao contrário, a isonomia exige comprovação lógico-científico-
racional, sendo esta a única forma válida de se criarem discriminações
jurídicas, o que significa que, além de violar o princípio do Estado Laico,
fundamentar uma discriminação jurídica em explicações religiosas afronta
também o princípio da igualdade, que supõe a existência de pelo menos um
fundamento lógico-racional que justifique a discriminação pretendida com
base no critério discriminador erigido. Ou seja, não se podem usar
explicações religiosas para fundamentar diferenciações jurídicas, dada a sua
absoluta arbitrariedade: arbitrariedade porque não admitem discussões ou
debates. Como são colocadas como consagração da “palavra de Deus”, os
religiosos que as defendem não admitem sequer que alguém as questione.
Não é incomum alguém ser chamado de “herege”, “pecador” e outros
nomes afins, por “ousar” criticar racionalmente os dogmas religiosos.
Nesse sentido, cumpre aqui lembrar os horrores cometidos pela Igreja
Católica na Idade Média, que ensejaram inclusive a denominação desse
período como “Idade das Trevas” pelos historiadores, ante as
arbitrariedades e injustiças cometidas por dita instituição religiosa contra
aqueles que “ousavam” não concordar integralmente com seus dogmas.
Afinal, mesmo aqueles que diziam professar a fé católica na época, caso
não seguissem à risca todos os dogmas dessa Igreja eram tidos como
“hereges”, “influenciados pelo demônio” e, por isso, muitas vezes
queimados em praça pública (ante os Estados permitirem a influência da
Igreja Católica em seus domínios, inclusive por intermédio do Tribunal da
“Santa” Inquisição). Aponte-se, por exemplo, o caso de Galileu, que
“ousou” dizer que a Terra girava em torno do Sol (teoria heliocêntrica) e
que só não foi queimado por ter-se retratado perante o Tribunal da “Santa”
Inquisição...
Faço questão de ressaltar que não é meu objetivo desmerecer a fé
católica, nem qualquer outra – os seguidores desta ou daquela crença têm
todo o direito de acreditarem naquilo que lhes fizer sentido com relação a
sua fé (mesmo porque quem cometeu aquelas atrocidades foi a instituição
religiosa, em inegável deturpação dos valores cristãos de amor e respeito ao
próximo). Contudo, a Idade Média é a prova cabal de que as instituições
religiosas não podem ter o poder de determinar os rumos políticos e
jurídicos dos países, ante a absoluta arbitrariedade de muitos de seus
dogmas.

1.4.1 Conteúdo jurídico do princípio do Estado Laico


Um Estado Laico é aquele que não se confunde com determinada
religião, não adota uma religião oficial, permite a mais ampla liberdade de
crença, descrença e religião, com igualdade de direitos entre as diversas
crenças e descrenças e no qual fundamentações religiosas não podem influir
nos rumos políticos e jurídicos da nação. Ora, a partir do momento em que
se veda aos entes de Direito Público que mantenham relações de
dependência ou aliança com as religiões ou suas instituições (art. 19, I ,da
CF/1988), veda-se a utilização de fundamentos religiosos como paradigmas
válidos para a condução política e jurídica do País, pois, do contrário, teria
uma relação de aliança com a religião cujo fundamento dogmático foi
utilizado, o que é vedado constitucionalmente. Este é o conteúdo jurídico do
princípio da laicidade estatal.
Assim, ainda que se entenda que a fé cristã, assim como qualquer
outra, condene o relacionamento homoafetivo, tal consideração é inócua
para o mundo do Direito, uma vez que a religião não pode ditar os rumos
políticos e jurídicos da nação.
Afinal, restou demonstrado que uma discriminação somente não
afrontará o preceito igualitário caso haja uma justificação lógico-racional
entre o critério de desigualação erigido (no caso, a orientação sexual das
pessoas) e a discriminação que se pretende introduzir (no caso, a
discriminação entre os efeitos jurídicos conferidos à união homoafetiva em
comparação àqueles conferidos à união heteroafetiva). Ou seja, restou
demonstrado que, para que não se tenha uma inconstitucionalidade na
discriminação, deve existir um motivo fático que justifique,
inequivocamente e de maneira lógico-racional, a necessidade da
discriminação pretendida. Outrossim, será demonstrado no capítulo
seguinte, com relação ao princípio da dignidade da pessoa humana que,
considerando que as pessoas são merecedoras de igual proteção de sua
dignidade pelo simples fato de serem pessoas humanas, independentemente
de quaisquer características suas, e considerando que a eventual
relativização deste princípio deve atender aos ditames do princípio da
isonomia, ter-se-á demonstrado que a colocação da homoafetividade como
digna de menos proteção do que a heteroafetividade é igualmente
inconstitucional por afrontar a dignidade humana constitucionalmente
consagrada.
Dessa forma, considerando que o Brasil é um Estado Laico, nenhum
motivo de ordem puramente religiosa pode vir a justificar qualquer forma
de discriminação jurídica entre as pessoas, pois do contrário o Estado
manteria relação de aliança com a religião usada como tal, o que é vedado
pelo citado art. 19, I, da CF/1988. Mesmo porque os dogmas religiosos são
extremamente subjetivos e passíveis de críticas do ponto de vista científico-
racional, por elevarem determinadas afirmações a verdades universais,
inquestionáveis (os dogmas46), como se tivessem sido assim afirmadas por
Deus, o que não pode ser confirmado – basta ver a grande quantidade de
religiões existentes no mundo nos dias de hoje. Se a vontade de Deus fosse
tão clara, então a humanidade não teria apenas uma religião? Assim, a
menos que Deus desça à Terra em toda a Sua Onipresença, Onisciência e
Onipotência e Inquestionável Presença e diga o que deve e o que não deve
ser aceito e o motivo de tais colocações, o que por sinal ainda não
aconteceu, nenhum dogma religioso poderá servir de motivo para justificar
a discriminação de pessoas, quaisquer que sejam.
Tal é inclusive o posicionamento do padre Daniel A. Helminiak, que
também afirma que devem as instituições religiosas que pregam o
preconceito contra homossexuais justificarem seus motivos, não devendo
servir de base unicamente a Bíblia, pois esta não condena a
homossexualidade em si, mas condutas a ela incorretamente associadas e,
também e principalmente, porque afirmar que “Deus disse que é errado”
não é uma resposta boa o bastante, pois também Deus deve justificar suas
posições para que haja bom-senso e sabedoria na moralidade divina, visto
que, do contrário, tal moralidade seria puramente arbitrária e despótica – o
que evidentemente é um absurdo lógico inaceitável (porque a vontade
divina, perfeita por definição, não poderia ser arbitrária e despótica)47.
Nem se invoque a expressão “sob a proteção de Deus”, constante do
preâmbulo constitucional para tentar uma exegese diversa48. Com efeito, o
Supremo Tribunal Federal já definiu, no julgamento da ADI 2.076 que o
preâmbulo tem significação meramente política, não jurídica49. Ou seja,
considerando que o Supremo Tribunal Federal deixou claro no julgamento
da ADI 2.076 que a expressão “sob a proteção de Deus”, além de não ser
texto normativo de repetição obrigatória, não é juridicamente relevante, nos
termos do voto do Ministro Sepúlveda Pertence, que não foi contestado
pelos demais Ministros, não se poderá invocar tal expressão preambular
para se pretender impor entendimentos religiosos a toda a nação.
De qualquer forma, mesmo a posição da eficácia interpretativa do
preâmbulo não faz que o Estado Brasileiro possa ser tido como teocrático,
confessional ou ainda que posições religiosas possam ser utilizadas como
paradigmas interpretativos válidos em função da expressão “sob a proteção
de Deus”, na medida em que esta expressão não tem nenhuma significação
jurídica e, ainda, pela presença de texto normativo constitucional que
impossibilite tal posição – a saber, o já explicitado art. 19, I, da CF/1988,
consagrador do princípio da laicidade estatal no ordenamento jurídico-
constitucional brasileiro – e é pacífico que, na contradição entre o
preâmbulo e um dos artigos, incisos, parágrafos ou alíneas da Constituição,
estes últimos hão de prevalecer.
A ausência de normatividade da expressão “sob a proteção de Deus”
reside no fato de que ela não pode pretender instituir uma obrigação à
divindade. Ora, se uma nação efetivamente estivesse “sob a proteção de
Deus”, isso significaria que Deus deveria obrigatoriamente efetivar tal
proteção quando necessário. Mas, como não se afigura possível nem
razoável instituir uma obrigação à divindade, então se afigura
impossibilidade jurídica por impossibilidade fática de efetivação de tal
pretensão. A referida expressão é, apenas, pretensiosa afirmação no sentido
de que a divindade estaria preocupada com a Assembleia Nacional
Constituinte Brasileira. Assim, independentemente da teoria que se adote
sobre a natureza jurídica do preâmbulo constitucional e independentemente
da localização desta (ou seja, ainda que estivesse presente em artigo
constitucional), a expressão “sob a proteção de Deus” jamais terá qualquer
significação jurídica na medida em que dita expressão não tem nenhum
sentido jurídico, nenhum conteúdo jurídico, tratando-se de mera exortação
pretensiosa. Em termos mais sintéticos, foi essa a fundamentação do
Ministro Sepúlveda Pertence, em voto concordante ao julgamento da
referida ADI 2.076, com a qual se concorda50.
Mas, ainda que com isso não se concorde e se entenda (incorretamente)
que tal expressão teria significação jurídica, mesmo assim a referida
expressão não tem o condão de tornar válida a utilização de
fundamentações religiosas para pautar justificações jurídicas.
Primeiramente, porque referida expressão não é impositiva, não atribuindo
nenhuma obrigação a ninguém, donde, reconhecida a juridicidade
interpretativa do preâmbulo constitucional ou mesmo a plena normatividade
do mesmo, ela só pode ser entendida como proibição a uma postura ateísta
do Estado que proíba manifestações religiosas e especialmente a
religiosidade privada das pessoas – o que se encontra vedado ainda pelos
textos normativos que consagram as liberdades de consciência, de crença,
de estabelecimento de cultos religiosos, assim como pela proteção aos
locais de culto e liturgia, constantes do art. 5.o, VI, da CF/1988.
Afinal, como demonstrado, o princípio da laicidade estatal veda a
utilização de fundamentações religiosas para embasar discriminações
juridicamente válidas, donde a contraposição entre dita expressão e o art.
19, I, da CF/1988 só pode levar à prevalência deste último em relação à
expressão preambular. Ademais, mesmo isoladamente considerada, dita
expressão somente expressa que o Brasil não é um Estado Ateísta
(proibidor de qualquer crença teísta), mas um Estado Laico, que permite a
liberdade religiosa, embora vede, por força do citado dispositivo
constitucional, a utilização de fundamentações religiosas para embasar
discriminações juridicamente válidas.
Assim, resta evidente que fundamentações religiosas não podem servir
de paradigma válido para justificar discriminações jurídicas, sob pena de
permitir a volta da arbitrariedade e do preconceito de forma
institucionalizada em nosso Estado de Direito, o que é inadmissível. É por
esse motivo que o Brasil consagrou o princípio da laicidade estatal,
justamente para evitar as barbaridades cometidas sob a égide de Estados
Teocráticos (nos quais Estado e Igreja se confundem) ou mesmo
Confessionais (nos quais o Estado adota uma religião oficial). Ou seja, a
laicidade estatal brasileira impede que fundamentações religiosas sejam
validamente utilizadas para pautar decisões jurídicas e políticas.

2. OS PRINCÍPIOS DA PROPORCIONALIDADE E DA
RAZOABILIDADE – CONTEÚDO JURÍDICO
Oriundo inicialmente de construção jurisprudencial do Tribunal
Constitucional Alemão, o princípio da proporcionalidade51 visa,
precipuamente, servir como método de controle dos atos estatais no sentido
de averiguar a adequação, a necessidade e a proporcionalidade em sentido
estrito das medidas estatais em debate para, neste terceiro momento (que
supõe necessariamente o reconhecimento da adequação e da necessidade
citadas), solucionar o conflito entre dois ou mais direitos fundamentais em
choque por parte dessas medidas, por meio de um juízo de ponderação entre
os mesmos para, identificado aquele que seria mais relevante no caso
concreto, sacrificar-se (o menos possível) o outro52.
Assim, como forma de controle da atividade estatal e mesmo de
solução de conflito entre dois ou mais direitos, o princípio da
proporcionalidade é subdividido em três subprincípios a ele inerentes, a
saber: o da adequação, o da necessidade e o da proporcionalidade em
sentido estrito. A adequação significa que a medida impugnada deve ser
apta a atingir o fim por ela pretendido; a necessidade aponta que deve ser
utilizado o meio menos gravoso para atingir aquele fim; por fim, a
proporcionalidade em sentido estrito significa que o que se ganha com a
restrição deve ser maior do que o que se perde com ela, o que se verifica
por meio de uma ponderação entre os direitos em conflito para apurar qual
deles deverá ser sacrificado (na menor medida possível), por ser menos
relevante, ou qual a forma de compatibilização entre eles para evitar o
conflito efetivo e acabar com a tensão existente53. Ou, na lição de Luís
Roberto Barroso54: “Cuida-se, aqui, de uma verificação entre os danos
causados e os resultados a serem obtidos. Nas palavras de Canotilho, trata-
se ‘de uma questão de ‘medida’ ou ‘desmedida’ para se alcançar um fim:
pesar as desvantagens dos meios em relação às vantagens do fim’. (...) é a
ponderação entre o ônus imposto e o benefício trazido, para constatar se é
justificável a interferência na esfera dos direitos dos cidadãos”.
Assim, se a medida impugnada não for apta a atingir o fim por ela
pretendido, se houver outra menos gravosa aos atingidos que possa atingir o
mesmo fim ou, ainda, se o direito que ela vise proteger tiver menor
relevância do que o outro direito com o qual ela colida, então dita medida
será inconstitucional por afronta ao princípio da proporcionalidade.
Ademais, uma discriminação somente será juridicamente válida (ou
seja, respeitadora do aspecto material da isonomia) se igualmente respeitar
os ditames do princípio da proporcionalidade, visto que somente haverá
racionalidade na diferenciação se ela for: adequada a atingir os fins
pretendidos; necessária, ante a inexistência de outra forma menos gravosa
para tanto; e, por fim, proporcional em sentido estrito, uma vez que o valor
protegido com a desequiparação deve ser maior do que o valor por ela
restringido ou sacrificado no caso concreto55 (ou seja, se não for possível
uma concordância prática de forma a viabilizar a convivência de ambos os
bens em conflito, ainda que um seja mais relativizado que o outro, será
necessário o sacrifício de um deles no caso concreto, o que supõe
necessariamente a ponderação apontada).
Outrossim, cumpre apontar que não equiparo os princípios da
razoabilidade e da proporcionalidade, entendendo que ambos possuem
conteúdos jurídicos distintos. Sobre o princípio da razoabilidade, deve-se
concordar com Jane Reis Gonçalves Pereira56, que traz à lume quatro
concepções doutrinário-jurisprudenciais acerca do princípio da
razoabilidade – plenamente cumuláveis para a definição do conteúdo
jurídico do princípio da razoabilidade, a saber: (i) como antônimo de
arbitrariedade (são irrazoáveis os atos estatais destituídos de causa ou
fundamento, assim como os que se amparam em razões irrelevantes, o que
supõe um imperativo de congruência às medidas adotadas pelo Poder
Público); (ii) como justiça do caso concreto (são irrazoáveis posturas que
desconsiderem as regras da lógica ou da experiência comum; razoabilidade
como sinônimo de equidade); (iii) como exigência de consistência e
coerência lógica das leis e decisões judiciais (coerência interna, de
ausência de contradição entre os diversos fundamentos contidos no ato
normativo ou na sentença, e coerência externa, harmonia entre o ato
controlado e os valores imanentes do ordenamento jurídico); (iv) como
equivalência (imposição constitucional de correspondência equilibrada
entre as grandezas analisadas). Percebe-se, assim, que a razoabilidade deve
ser utilizada no processo de ponderação (proporcionalidade em sentido
estrito), embora com ela não se confunda.

3. SÍNTESE CONCLUSIVA DO CAPÍTULO: DA DISCRIMINAÇÃO


JURIDICAMENTE VÁLIDA (ISONÔMICA E
PROPORCIONALMENTE)
Uma ideia comum quando se estuda pela primeira vez a isonomia é a
de que ela vedaria toda forma de discriminação. Tal concepção,
indiretamente demonstrada acima, é equivocada. Toda norma é
discriminatória; toda norma garante uma série de direitos e/ou obrigações
aos indivíduos. O Estatuto da Criança e do Adolescente e o Estatuto do
Idoso são exemplos perfeitos: garantem uma discriminação benéfica aos
menores, no primeiro caso, e aos idosos no segundo, e em ambos os casos
em detrimento de adultos (que ficam em uma situação jurídica inferior
àquela de menores e idosos). A Lei dos Crimes Hediondos, por sua vez, traz
uma discriminação negativa àqueles que se enquadram em suas disposições.
O princípio da igualdade não é absoluto: admite relativização por meio
de seu aspecto material. Para tanto, uma discriminação juridicamente válida
deverá respeitar o procedimento trifásico-cumulativo consagrado por Celso
Antônio Bandeira de Mello, segundo o qual a discriminação juridicamente
válida será: a que tiver como objeto pessoas indeterminadas e
indetermináveis no momento da elaboração do texto normativo em questão;
seja uma decorrência lógico-racional do critério discriminador erigido, ou
seja, deverá ser uma decorrência silogística (aspecto lógico) do critério de
desigualação eleito e, por mais silogística que seja, deverá ser motivada
com fundamentos fático-científicos que a justifiquem (aspecto racional); e,
por fim, por maiores que sejam a lógica e a racionalidade que a embasem,
seja coerente com os valores constitucionalmente consagrados. Somente
quando respeitados esses três requisitos é que se terá uma discriminação
juridicamente válida57, do que, ao revés, vale dizer que quando um ou mais
desses requisitos restar desrespeitado, ter-se-á o caso de uma discriminação
inconstitucional por afrontar a isonomia.
Por outro lado, cumpre ressaltar que as normas jurídicas não protegem
meras situações fáticas, mas determinados valores nelas presentes, o que
pode ser facilmente vislumbrado por meio da Teoria Tridimensional do
Direito (norma = fato + valor), donde o fato de o texto normativo ser
omisso em relação a determinada situação fática (como o é hoje no que
tange às uniões homoafetivas) não significa, necessariamente, que dita
situação não expressamente citada ou não regulamentada não possa usufruir
do regime jurídico dispensado à outra situação expressamente protegida
pelo texto normativo. O que deve ser levado em conta nesse ponto é o fato
de existir ou não o mesmo valor protegido pela norma na situação não
citada/não regulamentada, hipótese na qual será cabível a extensão
daquele regime jurídico a esta, seja por meio da interpretação extensiva ou
da analogia, que são princípios gerais de Direito oriundos do aspecto
material da isonomia, no sentido de garantirem o mesmo tratamento
jurídico aos iguais (interpretação extensiva) e aos fundamentalmente iguais
(analogia). Essa é a exteriorização da interpretação teleológica, que se
baseia no objeto de proteção da norma (em sua finalidade), em vez de se
ater a sua fria letra. Ou seja, interpreta-se uma norma de acordo com o seu
objeto de proteção, com a sua finalidade, e não segundo a letra fria e
eventualmente desatualizada do texto normativo.
Ressalte-se, ainda, que nenhum motivo de ordem religiosa serve para
fundamentar uma discriminação juridicamente válida, pois o Brasil é um
Estado Laico, no qual a religião não pode influir na política e/ou no
ordenamento jurídico pátrio, pois, do contrário, ter-se-ia relação de aliança
com a religião em questão, o que é expressamente vedado pelo art. 19, I, da
CF/1988. Isso porque fundamentações religiosas são dotadas de alto grau de
arbitrariedade, visto que baseadas em supostas “verdades universais”
(dogmas) que não admitem discussão, mesmo que toda a razão humana
aponte para o sentido contrário. Assim, percebe-se que a adoção de
fundamentações religiosas para fundamentar discriminações jurídicas, além
de violar o princípio da laicidade estatal, viola também o princípio da
igualdade, que supõe uma motivação lógico-racional que justifique a
discriminação pretendida com base no critério diferenciador erigido.
Por sua vez, o princípio da proporcionalidade é uma forma de controle
dos atos públicos que visa invalidar aqueles que se mostrem inaptos a obter
o fim por eles pretendido, que sejam mais gravosos do que outros possíveis
para que se atinja tal fim e, ainda, aqueles cujos direitos que visam proteger
sejam menos relevantes do que outros direitos que com eles conflitem no
caso concreto. Nesse sentido, é de se notar que somente haverá respeito à
isonomia na diferenciação se esta for: adequada para atingir os fins
pretendidos; necessária, ante a inexistência de outra forma menos gravosa
para tanto; e, por fim, proporcional em sentido estrito, no sentido de que o
valor protegido com a desequiparação deve ser maior do que o valor
sacrificado por ela no caso concreto (ou seja, somente se respeitados esses
três subprincípios do princípio instrumental da proporcionalidade). Apenas
assim a discriminação perpetrada será proporcional e, consequentemente,
válida.

1 Nesse sentido, explica Roger Raupp Rios (O Princípio da Igualdade e a Discriminação


por Orientação Sexual: a Homossexualidade no Direito brasileiro e Norte-Americano,
São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002, p. 41) que: “Neste contexto, o
imperativo da igualdade exige igual aplicação da mesma lei a todos endereçada. Disto
decorre que a norma jurídica deve tratar de modo igual pessoas e situações diversas,
uma vez que os destinatários do comando legal são vistos de modo universalizado e
abstrato, despidos de suas diferenças e particularidades. O resultado que daí advém é
a regulação igual de situações subjetivas e objetivas desiguais: eis a aplicação formal
da igualdade, contrariando materialmente a consagrada máxima segundo a qual ser
justo é tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais na medida de suas
desigualdades. (...) Deste modo, ainda que dirigida ao aplicador da lei, tal formulação
nada diz a respeito dos critérios fundantes das distinções entre os possíveis
destinatários da regra jurídica, bastando para a observância da igualdade a fixação e a
lealdade ao critério estabelecido”. Explicitando o intuito da igualdade formal, afirma
Viviane Girardi (Famílias Contemporâneas, Filiação e Afeto. A Possibilidade Jurídica
da Adoção por Homossexuais, 1.ª Edição, 2005, Porto Alegre: Editora Livraria do
Advogado, p. 75): “Tem-se, pois, que o sistema jurídico cria mecanismos e forja
categorias chamando para si a definição de quem é o sujeito de direito, ou seja, aquele
que, atingindo a maioridade que é dada pelo sistema, contrata, compra e vende, casa-
se com quem o sistema também define que pode se casar e, ao morrer, pode testar e
transmitir seu patrimônio. Nesse contexto está embutida a igualdade formal, ou seja,
com base na autonomia da vontade, todos podem contratar, comprar, contrair
matrimônio e transmitir patrimônio. Percebe-se, pois, que a igualdade formal de todos
perante a lei migra para o sistema jurídico positivado como uma conquista que não
realiza concretamente a igualdade de todos, mas só daqueles que detêm patrimônio e
interesses patrimoniais”.
2 Como se sabe, o constitucionalismo tal como concebemos hoje, com a supremacia da
Constituição sobre a legislação criada pelo Parlamento, surgiu nos EUA com a decisão
Marbury v. Madison no final do século XVIII. Contudo, na Europa prevaleceu a ideia de
supremacia absoluta do Parlamento, uma vez que o entendimento da época não via
na Constituição uma condicionante material das normas infraconstitucionais,
concepção esta que só ganhou força efetiva no final do século XX. Assim, o relevante
para o tema aqui discutido é que na Europa o Parlamento era livre para a criação de
normas mesmo que contrariamente ao texto constitucional. A ideia de controle de
constitucionalidade pelo Judiciário somente começou a vingar na teoria constitucional
europeia ao longo do século XX quando os horrores do nazi-fascismo demonstraram
que mesmo o Parlamento democraticamente eleito pode cometer as mais flagrantes
injustiças.
3 Quanto ao tema, afirma Roger Raupp Rios (O Princípio da Igualdade e a Discriminação
por Orientação Sexual: a Homossexualidade no Direito brasileiro e Norte-Americano,
São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002, p. 36) que: “Especificamente no
âmbito dos direitos fundamentais, onde se insere o princípio da igualdade, admitiu-se a
definição do conteúdo dos direitos fundamentais pelo legislador. O esvaziamento
material deste conteúdo, cujos contornos ficavam à mercê da legislação, acabou por
tolerar a adoção de medidas flagrantemente contrárias à dignidade humana, como
claramente ilustra a admissão de discriminações pelo regime nazista, mesmo no
quadro de um ordenamento jurídico onde previsto o princípio da igualdade. Diante
desta concepção, verificou-se a mais completa ineficácia dos direitos fundamentais
que, muito além de uma perspectiva formal, reclamam conteúdo e disciplina jurídica
próprios” (sem grifo no original). Nesse sentido, leciona Robert Alexy (Teoria dos
direitos fundamentais. Tradução de Virgílio Afonso da Silva, 5.a Edição Alemã, 1.a
Edição Brasileira, São Paulo: Malheiros Editores, 2008, p. 398) acerca da insuficiência
desse critério (por ele denominado práxis decisional universalizante, ou seja, um
“postulado geral de racionalidade prática, que vale tanto para o legislador quanto para
o aplicador do direito”, pois “ele nada diz sobre que características, de que indivíduos,
devem ser tratados de que forma. Se o enunciado geral de igualdade se limitasse ao
postulado de uma práxis decisória universalizante, o legislador poderia, sem violá-lo,
realizar qualquer discriminação, desde que sob a forma de uma norma universal, o que
é sempre possível. A partir dessa interpretação, a legislação nazista sobre judeus não
violaria o enunciado ‘os iguais devem ser tratados igualmente’”.
4 “Assim sendo, a afirmação da igualdade meramente formal, preconizada no quadro do
Estado de Direito formal, corresponde a um princípio de racionalidade universalista
que nada acrescenta à questão da justiça ou da injustiça das equiparações ou
diferenciações. Nada diz a respeito de como devem ser tratados os indivíduos com tais
ou quais características. Nesta esteira, aliás, estariam o legislador e o aplicador da lei
autorizados a praticar qualquer discriminação sem ofender ao princípio da igualdade,
donde que, por exemplo, não ofenderia ao princípio da igualdade a legislação nazista
endereçada contra judeus, ciganos ou homossexuais. Fica patente, pois, a
insuficiência da afirmação abstrata e universalizante da igualdade perante a lei,
enraizada tão só na superação da sociedade estamental do derrotado Antigo Regime”
(RIOS, Roger Raupp. O Princípio da Igualdade e a Discriminação por Orientação
Sexual: a Homossexualidade no Direito brasileiro e Norte-Americano, Porto Alegre:
Editora Revista dos Tribunais, 2002, p. 41 e 42 – sem grifo no original).
5 O que significa, nos termos da célebre frase aristotélica, que se deve “tratar igualmente
os iguais e desigualmente os desiguais na medida de sua desigualdade”.
6 MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Conteúdo jurídico do princípio da igualdade, 3.ª
Edição, 11.ª Tiragem, Maio-2003, São Paulo: Malheiros Editores, p. 23.
7 Ibidem, p. 23.
8 Ibidem, p. 25.
9 Ibidem, p. 25.
10 Ibidem, p. 25.
11 ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais. Tradução de Virgílio Afonso da Silva,
5.a Edição Alemã, 1.a Edição Brasileira, São Paulo: Malheiros Editores, 2008, p. 398.
Na mesma página, todavia, o autor afirma a insuficiência desse critério, pois: “Ele nada
diz sobre que características, de que indivíduos, devem ser tratadas de que forma. Se
o enunciado geral de igualdade se limitasse ao postulado de uma práxis decisória
universalizante, o legislador poderia, sem violá-lo, realizar qualquer discriminação,
desde que sob a forma de uma norma universal, o que é sempre possível. A partir
dessa interpretação, a legislação nazista sobre judeus não violaria o enunciado ‘os
iguais devem ser tratados igualmente’”. Sobre a insuficiência deste critério para o
respeito à isonomia, vide nota 4, também com a lição de Alexy.
12 Afirma Celso Antônio Bandeira de Mello que: “(...) é agredida a igualdade quando o
fator diferencial adotado para qualificar os atingidos pela regra não guarda relação de
pertinência lógica com a inclusão ou exclusão no benefício deferido ou com a inserção
ou arredamento do gravame imposto. (...) Em outras palavras: a discriminação não
pode ser gratuita ou fortuita. Impende que exista uma adequação racional entre o
tratamento diferenciado construído e a razão diferencial que lhe serviu de supedâneo.
Segue-se que, se o fator diferencial não guardar conexão lógica com a disparidade de
tratamentos jurídicos dispensados, a distinção estabelecida afronta o princípio da
isonomia” (Conteúdo jurídico do princípio da igualdade, 3.ª Edição, 11.ª Tiragem, São
Paulo: Malheiros Editores, Maio 2003, p. 38 e 39 – sem grifo no original).
13 Não é outra a lição de Roger Raupp Rios (O Princípio da Igualdade e a Discriminação
por Orientação Sexual: a Homossexualidade no Direito brasileiro e Norte-Americano,
Porto Alegre: Editora Revista dos Tribunais, 2002, p. 53 e 54), que afirma que:
“Somente diante de uma razão suficiente para a justificação do tratamento desigual,
portanto, é que não haverá violação do princípio da igualdade. Ora, a suficiência ou
não da motivação da diferenciação é exatamente um problema de valoração. Neste
quadro, ante a inexistência de uma razão suficiente, a máxima da igualdade ordena
um tratamento igual; para tanto expressar, Alexy assim formula, de modo mais preciso,
a máxima de igualdade: ‘Se não há nenhuma razão suficiente para a permissão de um
tratamento desigual, então está ordenado um tratamento igual’. Inexiste razão
suficiente sempre que não for alcançada fundamentação racional para a instituição da
diferenciação; este dever de fundamentação impõe uma carga de argumentação para
que se justifiquem tratamentos desiguais. (...) (sem grifos no original). Roger Raupp
Rios sintetizou bem a lição de Alexy, razão pela qual se a mantém neste trabalho. Para
acesso ao original, vide Robert Alexy (Teoria dos direitos fundamentais. Tradução de
Virgílio Afonso da Silva, 5.a Edição Alemã, 1.a Edição Brasileira, São Paulo: Malheiros
Editores, 2008, p. 407-409), para quem “a necessidade de haver uma razão suficiente
que justifique uma diferenciação, e também que a qualificação dessa razão como
suficiente é um problema de valoração. Neste ponto, interessa apenas a primeira
questão. A necessidade de se fornecer uma razão suficiente que justifique a
admissibilidade de uma diferenciação significa que, se uma tal razão não existe, é
obrigatório um tratamento igual. Essa ideia pode ser expressa por meio do seguinte
enunciado, que é um refinamento da concepção fraca do enunciado geral de
igualdade, a que aqui se deu preferência: (7) Se não houver uma razão suficiente para
a permissibilidade de um tratamento desigual, então, o tratamento igual é obrigatório.
(...) o enunciado geral de igualdade estabelece um ônus argumentativo para o
tratamento desigual”.
14 Nesse sentido, afirma Celso Antônio Bandeira de Mello (Conteúdo jurídico do princípio
da igualdade, 3.ª Edição, 11.ª Tiragem, São Paulo: Malheiros Editores, Maio 2003, p.
41 e 42), que: “(...) não é qualquer diferença, conquanto real e logicamente explicável,
que possui suficiência para discriminações legais. (...) Requer-se, demais disso, que o
vínculo demonstrável seja constitucionalmente pertinente. É dizer: as vantagens
calçadas em alguma peculiaridade distintiva hão de ser conferidas prestigiando
situações conotadas positivamente ou, quando menos, compatíveis com os interesses
acolhidos no sistema constitucional” (sem grifos no original).
15 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Constituição dirigente e vinculação do legislador:
Contributo para a Compreensão das Normas Constitucionais Programáticas, 2.a
Edição, Coimbra: Coimbra Editora, 2001, p. 380-390.
16 Tal é o que ocorre no ordenamento jurídico dos EUA em relação à isonomia local,
denominada Equal Protection Doctrine (Doutrina da Igual Proteção), por força de
criação jurisprudencial que considero válida também para o Brasil, com a ressalva de
que a inexistência de disposição expressa na Constituição no sentido de se
considerarem algumas classificações mais suspeitas do que outras (sendo que se
ocorre tal distinção entre classificações é reconhecido pela jurisprudência
estadunidense) torna necessário reconhecer que todas as cláusulas suspeitas
sujeitam-se à necessidade de igual fundamentação para serem tidas como válidas.
Justifico a escolha do “importante fim estatal” em detrimento do “fim estatal primordial”
do strict scrutiny (análise estrita) estadunidense por afigurar-se aquele como mais
razoável, tornando efetivamente possíveis diferenciações jurídicas nessas hipóteses
(visto a experiência jurisprudencial dos EUA ter demonstrado a quase impossibilidade
de superação do stricty scrutiny), ao mesmo tempo em que exige uma maior atenção a
critérios historicamente estigmatizados, o que atende às preocupações do Constituinte
Originário, sem, todavia, impedir que a liberdade de conformação do legislador corrija
desigualdades fáticas devidamente justificadas. Para um aprofundamento um pouco
maior sobre essa questão, vide: VECCHIATTI, Paulo Roberto Iotti. Da
constitucionalidade e da conveniência da Lei Maria da Penha. Jus Navigandi, Teresina,
ano 12, n. 1711, 8 mar. 2008. Disponível em: http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?
id=11030. Acesso em: 8 mar. 2008. Sobre o conteúdo jurídico da Equal Protection
Doctrine, manifestar-me-ei brevemente no capítulo atinente ao Direito Comparado,
também em nota de rodapé.
17 Cf. ROTHEMBURG, Walter Claudius. Igualdade. In: LEITE, George Salomão.
SARLET, Ingo Wolfgang (orgs.). Direitos Fundamentais e Estado Constitucional. São
Paulo: RT, 2009, p. 359.
18 ROTHEMBURG, op. cit., p. 354.
19 Para nossa Suprema Corte: “O princípio da isonomia, que se reveste de
autoaplicabilidade, não é – enquanto postulado fundamental de nossa ordem político-
jurídica – suscetível de regulamentação ou de complementação normativa. Esse
princípio – cuja observância vincula, incondicionalmente, todas as manifestações do
Poder Público – deve ser considerado, em sua precípua função de obstar
discriminações e de extinguir privilégios (RDA 55/114), sob duplo aspecto: (a) o da
igualdade na lei; e (b) o da igualdade perante a lei. A igualdade na lei – que opera
numa fase de generalidade puramente abstrata – constitui exigência destinada ao
legislador que, no processo de sua formação, nela não poderá incluir fatores de
discriminação, responsáveis pela ruptura da ordem isonômica. A igualdade perante a
lei, contudo, pressupondo lei já elaborada, traduz imposição destinada aos demais
poderes estatais, que, na aplicação da norma legal, não poderão subordiná-la a
critérios que ensejem tratamento seletivo ou discriminatório. A eventual inobservância
desse postulado pelo legislador imporá ao ato estatal por ele elaborado e produzido a
eiva de inconstitucionalidade” (STF, MI 58, Plenário, Rel. para acórdão Min. Celso de
Mello, j. 14.12.1990, DJ 19.04.1991). No mesmo sentido, julgado mais recente, que
inclusive cita o MI n.º 58 para ratificá-lo, a saber: AI 360.461-AgR, Segunda Turma,
Rel. Min. Celso de Mello, DJE 28.03.2008).
20 No mesmo sentido, artigo de minha autoria: VECCHIATTI, Paulo Roberto Iotti.
Igualdade e Respeito às Diferenças. In: DIAS, Maria Berenice (org.). Diversidade
Sexual e Direito Homoafetivo. São Paulo: RT, p. 214-222.
21 Vide a íntegra de Romer v. Evans em CHOPPER et al. Constitutional Law.. Cases –
Comments – Questions, 10ª Edição, St. Paul: Thomson/West, 2009, pp. 1334-1341 (a
menção à doutrina da igual proteção encontra-se nas páginas 1.336-1.337).
22 Tradução livre. A decisão, em inglês, encontra-se em CHOPPER et al, op. cit., pp.
498-509 (o trecho transcrito encontra-se na p. 502). Este livro não traz a íntegra do
voto da Justice O’Connor, que pode ser encontrado em KOMMERS, Donald P.; FINN,
John E.; JACOBSOHN, Gary J. American Constitutional Law. Liberty, Community and
the Bill of Rights. Essays, Cases and Comparative Notes. 3. ed., Lanham/Maryland:
Rowman & Littlefield Publishers, Inc., 2009, pp. 359-369. v. 2, (o qual, curiosamente,
omite o trecho transcrito no corpo do texto).
23 Quanto à questão da valoração, parece ter a mesma opinião Robert Alexy (Teoria dos
direitos fundamentais. Tradução de Virgílio Afonso da Silva, 5.a Edição Alemã, 1.a
Edição Brasileira, São Paulo: Malheiros Editores, 2008, p. 400 e 411) para quem:
“Como não existe uma igualdade ou uma desigualdade em relação a todos os
aspectos (igualdade/desigualdade fática universal) entre indivíduos e situações
humanas, e visto que uma igualdade (desigualdade) fática parcial em relação a algum
aspecto qualquer não é suficiente como condição de aplicação da fórmula, então, ela
só poder dizer respeito a uma coisa: à igualdade e à desigualdade valorativa. Para
possibilitar uma ordem jurídica diferenciada, a igualdade (desigualdade) valorativa tem
que ser relativizada de duas maneiras. Ela tem que ser uma igualdade valorativa em
relação às igualdades (desigualdades) fáticas parciais, pois se ela se esgotasse em
uma igualdade valorativa dos indivíduos, pura e simplesmente, ela em nada poderia
contribuir para a fundamentação de tratamentos diferenciados. Além disso, ela tem
que ser uma igualdade valorativa em relação a determinados tratamentos, pois, se não
fosse assim, não seria possível explicar porque duas pessoas que, em um aspecto,
devem ser tratada de forma igual não são assim tratadas sob todos os aspectos. A
essas duas relativizações, que são as condições de possibilidade de um tratamento
diferenciado, soma-se uma terceira, em relação ao critério de valoração, que permite
dizer o que é valorativamente igual e desigual. O enunciado ‘o igual deve ser tratado
igualmente; o desigual, desigualmente’ não contém, em si mesmo, um tal critério; mas
sua aplicação pressupõe um. Assim, a igualdade material leva, necessariamente, à
questão da valoração correta e, com isso, à questão sobre o que seja uma legislação
correta, racional ou justa. Isso torna claro o principal problema do enunciado geral de
igualdade. Ele pode ser expressado por meio de duas questões intimamente
relacionadas. A primeira: se e em que medida os necessários juízos de valor no
âmbito do enunciado geral de igualdade são passíveis de fundamentação racional; a
segunda: no sistema jurídico, a quem compete – ao legislador ou ao juiz constitucional
– decidir de forma vinculante em última instância acerca desses juízos de valor. Essas
questões indicam a problemática a ser considerada por qualquer interpretação do art.
3.º, § 1.º, enquanto norma que vincula substancialmente o legislador”. Contudo,
adverte o autor que “a interpretação do enunciado geral de igualdade como uma regra
de ônus argumentativo permite estruturar um pouco mais a questão da valoração, mas
não consegue solucioná-la. Saber o que é uma razão suficiente para a
permissibilidade ou a obrigatoriedade de uma discriminação não é algo que o
enunciado da igualdade, enquanto tal, pode responder. Para tanto são exigíveis outras
considerações, também elas valorativas”. Quanto àquela segunda pergunta, o autor se
manifesta pela prevalência da decisão judicial na valoração quando adotada uma
concepção fraca de igualdade, que é aquela “cujo objetivo é a manutenção dos limites
da liberdade de conformação do legislador, definidos por meio do conceito de arbítrio;
ela não diz respeito, portanto, a uma igualdade valorativa em um sentido ideal, mas a
uma igualdade em um sentido restrito” – isso em contraposição a uma descabida
concepção forte de igualdade, que daria ao Tribunal Constitucional a capacidade de
buscar a solução ideal, mais justa e mais adequada, o que se revela inaceitável
porque ,“como não há uma cognição segura acerca da norma mais justa ou mais
adequada, a tarefa do legislador se resumiria a aceitar o que o Tribunal Constitucional
Federal entende como o mais justo ou o mais adequado”, sendo que “não é
necessária fundamentação alguma para demonstrar que não pode ser [este último] o
sentido do enunciado da igualdade” (ibidem, p. 406).
24 Para uma análise da evolução do pensamento estadunidense no que tange à
isonomia (ali denominada Equal Protection Doctrine – Doutrina da Igual Proteção),
inclusive com análise dos principais casos que moldaram a posição da Suprema Corte
dos EUA, vide: TAVARES, André Ramos. Curso de direito constitucional, 5.a Edição,
São Paulo: Editora Saraiva, 2007, p. 534-547. Em síntese, o autor menciona que: (i)
no período pré-guerra civil, a escravidão ainda existia nos EUA (nos Estados do Sul) e
era tolerada pela Suprema Corte (Jones v. Von Zandt, Ableman v. Booth, Moore v.
Illinois e Dred Scott v. Sandford – no último, a Suprema Corte expressamente aduziu
que negros não poderiam ser enquadrados como cidadãos por terem sido
considerados como seres inferiores e subordinados no momento da promulgação da
Constituição, donde não poderiam utilizar nenhum dos direitos ou privilégios que a
Constituição assegurava aos cidadãos dos EUA); (ii) no período pós-guerra civil, foi
aprovada emenda constitucional que consagrou o equal treatment, que garantia a
isonomia formal, tendo sido declarada a inconstitucionalidade de diversas leis que
discriminavam cidadãos tão somente pela cor da pele, etnia, gênero ou qualquer outro
critério arbitrário de discriminação (Strauder v. West Virginia e Yick Wo v. Hopkins); (iii)
a doutrina do Separate but Equal, no sentido de que “tal Doutrina aceitava a
separação, o isolacionismo das raças, porém com a imposição de que os serviços
prestados a cada uma seriam os mesmos, é dizer, que os serviços prestados à raça
negra deveriam possuir a mesma qualidade daqueles prestados à raça branca”
(Roberts v. City of Boston, Plessy v. Ferguson, Roberts v. City of Boston), pelos quais a
Suprema Corte entendia que tal doutrina não teria a tendência de destruir a igualdade
entre as duas “raças”, assim como não implicaria a ideia de que uma seria inferior à
outra, entendimento este superado apenas em Brown v. Board of Education of Topeka,
no qual se julgou que instalações separadas são intrinsecamente desiguais; (iv)
doutrina do Treatment as an Equal, que: “Segundo Dworkin, ‘este não é o direito a uma
distribuição igualitária de bens e oportunidades, mas sim um direito a uma
preocupação e respeito igual no âmbito das decisões políticas sobre a forma de
distribuição de tais bens’. Esse tipo de doutrina permite a adoção de políticas públicas
ou privadas que tratam de forma diferente aqueles que, de fato, são diferentes:
essencial para efetivamente combater a discriminação (capitaneada pelo Chief Justice
Earl Warren, na maior fase do chamado “ativismo judicial” da Suprema Corte – case
Jeness v. Fortson, “em que a Suprema Corte observou que, ‘às vezes, a maior
discriminação pode residir em tratar coisas que são diferentes como se fossem iguais’
[Tribe]”; Grutter v. Bollinger, em que se decidiu que “com vistas a obter um grupo de
líderes legitimados aos olhos da sociedade, é necessário que o caminho à liderança
esteja aberto a talentosos e qualificados indivíduos de todas as raças e etnias”, e
mesmo Gratz v. Bollinger, que reiterou a doutrina mas entendeu que o critério (cor de
pele) era ilegítimo porque não fornecia um “fator a mais” à cor de pele, mas um fator
“determinante” a ela. “O que se depreende dessas decisões é que a ação afirmativa,
na jurisprudência norte-americana, é considerada uma medida juridicamente
admissível, não atentatória à igualdade, ao menos no âmbito educacional. Porém, o
critério raça ou minoria que esta encampa não pode afigurar-se como elemento
essencial no momento da admissão do indivíduo na instituição de ensino. O indivíduo
há de ser minimamente capaz e poder, efetivamente, contribuir para o ambiente
universitário”.
25 É esse o entendimento de Roger Raupp Rios (O Princípio da Igualdade e a
Discriminação por Orientação Sexual: a Homossexualidade no Direito brasileiro e
Norte-Americano, 1.ª Edição, Porto Alegre: Editora Revista dos Tribunais, 2002, p. 54),
que afirma que: “Em princípio, portanto, está exigido um tratamento igual, sendo
permitido um tratamento desigual se e somente se for possível justificá-lo. (...) A
garantia do direito de igualdade dá-se, pois, mediante a imposição de um ônus de
argumentação e de prova por conta de quem afirmar a desigualdade e reivindicar um
tratamento desigual” (sem grifos no original).
26 Na definição de Miguel Reale (Lições preliminares de direito, 27.ª Edição, 2004, São
Paulo: Editora Saraiva, p. 64-65): “(...) Uma análise em profundidade dos diversos
sentidos da palavra Direito veio demonstrar que eles correspondem a três aspectos
básicos, discerníveis em todo e qualquer momento da vida jurídica: um aspecto
normativo (o Direito como ordenamento e sua respectiva ciência); um aspecto fático (o
Direito como fato, ou em sua efetividade social e histórica) e um aspecto axiológico (o
Direito como valor de Justiça). Nas últimas décadas o problema da tridimensionalidade
do Direito tem sido objeto de estudos sistemáticos, até culminar numa teoria, à qual
penso ter dado uma feição nova, sobretudo pela demonstração de que: a) onde quer
que haja um fenômeno jurídico, há, sempre e necessariamente, um fato subjacente
(fato econômico, geográfico, demográfico, de ordem técnica etc.); um valor, que
confere determinada significação a esse fato, inclinando ou determinando a ação dos
homens no sentido de atingir ou preservar certa finalidade ou objetivo; e, finalmente,
uma regra ou norma, que representa a relação ou medida que integra um daqueles
elementos ao outro, o fato ao valor; b) tais elementos ou fatores (fato, valor e norma)
não existem separados uns dos outros, mas coexistem numa unidade concreta; c)
mais ainda, esses elementos ou fatores não só se exigem reciprocamente, mas atuam
como elos de um processo (já vimos que o Direito é uma realidade histórico-cultural),
de tal modo que a vida do Direito resulta da integração dinâmica e dialética dos três
elementos que a integram” (sem grifos no original).
27 Devo a segunda parte desta definição, posterior à vírgula, a diálogo com o Professor
Roberto Francisco Daniel, em aula de Mestrado na Instituição Toledo de Ensino/Bauru.
28 “Dizer que o homem é um ser racional é o mesmo que dizer que é um ser que se
dirige. A atuação, portanto, implica sempre uma valoração. Todo valor, por
conseguinte, é uma abertura para o dever ser. Quando se fala em valor, fala-se
sempre em solicitação de comportamento ou em direção para o atuar. Valor e dever
ser implicam-se e exigem-se reciprocamente. Sem a ideia de valor, não temos a
compreensão do dever ser. Quando o dever ser se origina do valor, e é recebido e
reconhecido racionalmente como motivo da atuação ou do ato, temos aquilo que se
chama um fim. Fim é o dever ser do valor reconhecido racionalmente como motivo de
agir. (...) A nosso ver, a noção de fim é decorrência da de valor. O fim é valor enquanto
racionalmente pode ser captado e reconhecido como modo de agir. (...) O que
declaramos fim não é senão um momento de valor abrangido por nossa racionalidade
limitada, implicando um problema de meio adequado à sua realização” (REALE,
Miguel. Filosofia do direito, 20.a Edição, 5.a tiragem, São Paulo: Editora Saraiva, 2008,
p. 379 e 380).
29 Esta equação é subjacente às lições de Miguel Reale. Afinal, afirma o autor que “a
estrutura do Direito é tridimencional, visto como o elemento normativo, que disciplina
os comportamentos individuais e coletivos, pressupõe sempre uma dada situação de
fato, referida a valores determinados”, sendo preciso observar “a unidade ou a
correlação essencial existente entre os aspectos fático, axiológico e prescritivo do
Direito” (REALE, Miguel. Filosofia do direito, 20.a Edição, 5.a tiragem, São Paulo:
Editora Saraiva, 2008, p. 511); ou ainda que “a tridimensionalidade específica do
Direito resulta de uma apreciação inicial da correlação existente entre fato, valor e
norma no interior de um processo de integração, de modo a abranger, em unidade
viva, os problemas do fundamento, da vigência e da eficácia do Direito” (ibidem, p.
515). Cite-se, ainda, o entendimento do autor no sentido de que “duas são as
condições primordiais para que a correlação entre fato, valor e norma se opere de
maneira unitária e concreta: uma se refere ao conceito de valor, reconhecendo-se que
ele desempenha o tríplice papel de elemento constitutivo, gnoseológico e deontológico
da experiência ética; a outra é relativa à implicação que existe entre o valor e a
história, isto é, entre as exigências ideais e a sua projeção na circunstancialidade
histórico-social como valor, dever-ser e fim. (...) Dizemos que o valor constitui a
experiência jurídica porque os bens materiais ou espirituais, construídos pelo homem
através da História, são, por assim dizer, ‘cristalizações de valor’ ou
‘consubstanciações de interesses’ (ibidem, p. 543). Ora, se a estrutura do Direito é
tridimensional porque o elemento normativo supõe uma situação fática referida a
valores determinados (primeira citação), isso significa que a norma é formada pela
atribuição de um valor a um fato. Logo, a equação apresentada (norma = fato + valor)
afigura-se correta.
30 Na explicação de Miguel Reale (Lições preliminares de direito, 27.ª Edição, São Paulo:
Editora Saraiva, 2004, p. 66: “Há, por exemplo, norma legal que prevê o pagamento de
uma letra de câmbio na data de seu vencimento, sob pena do protesto do título e de
sua cobrança, gozando o credor, desde logo, do privilégio de promover a execução do
crédito. (...) Mais tarde, estudaremos melhor essa questão. O que por ora desejamos
demonstrar é que, nesse exemplo, a norma de direito cambial representa uma
disposição legal que se baseia num fato de ordem econômica (o fato de, na época
moderna, as necessidades do comércio terem exigido formas adequadas de relação) e
que visa a assegurar um valor, o valor do crédito, a vantagem de um pronto
pagamento com base no que é formalmente declarado na letra de câmbio. Como se
vê, um fato econômico liga-se a um valor de garantia para se expressar através de
uma norma legal que atende às relações que devem existir entre aqueles dois
elementos” (sem grifos no original).
31 Na lição de Miguel Reale (Filosofia do direito, 20.a Edição, 5.a tiragem, São Paulo:
Editora Saraiva, 2008, p. 543). Fundamenta-se o autor: “O específico do homem é
conduzir-se, é escolher fins e pôr em correspondência meios a fins. A ação dirigida
finalisticamente (o ato propriamente dito ou a ação em seu sentido próprio e
específico) é algo que só pertence ao homem. Não se pode falar, a não ser por
metáfora, de ação ou de ato de um cão ou de um cavalo. O ‘ato’ é algo pertinente,
exclusivamente, do ser humano. Os outros animais movem-se; só o homem atua. A
atuação pressupõe consciência de fins, possibilidade de opção, projeção singular no
seio da espécie, aprimoramento de atitudes, aperfeiçoamento nos modos de ser e de
agir. Seu problema liga-se ao da cultura, e, como esta, tem sua raiz na liberdade, no
poder de síntese que permite ao homem instaurar novos processos, tendo consciência
de estar integrado na natureza e no complexo vital condicionado por esta. (...) A ação,
em seu sentido rigoroso, ou o ato, é energia dirigida para algo, que é sempre um valor.
O valor, portanto, é aquilo a que a ação humana tende, porque se reconhece, em um
determinado momento, ser motivo, positivo ou negativo da ação mesma. Não se
indaga aqui da natureza ou das espécies de valores, mas apenas se verifica que o
homem atua, objetiva ou contraria a algo de valioso. (...) Se a ação humana se
subordina a um fim ou a um alvo, há direção, ou pauta assinalando a via ou a linha de
desenvolvimento do ato. A expressão dessa pauta de comportamento é o que
chamamos de norma ou de regra. Não existe possibilidade de ‘comportamento social’
sem norma ou pauta que não lhe corresponda. A cada forma de conduta corresponde
a norma que lhe é própria” (REALE, Miguel. Filosofia do direito, 20.a Edição, São
Paulo: Editora Saraiva, 2008, p. 378-379 e 384).
32 Segundo Miguel Reale (Filosofia do direito, 20.a Edição, 5.a tiragem, São Paulo:
Editora Saraiva, 2008, p. 362): “O primeiro dever do estudioso, ao aplicar o método
fenomenológico, é procurar afastar de si todos os preconceitos, todos os prejuízos
porventura formados a respeito do mesmo fenômeno, notadamente quanto à sua
transcendência, ou realidade fora da consciência (‘époque’ fenomenológica). Devemos
colocar-nos em um estado de disponibilidade perante o objeto, no sentido de procurar
captá-lo, na sua pureza, assim como é dado na consciência, sem refrações que
resultem de nosso coeficiente pessoal de preferências, para poder descrevê-lo
integralmente, com todas as suas qualidades e elementos, recebendo-o ‘tal como se
oferece originariamente na intuição’ (descrição objetiva). Posto o sujeito perante o
objeto, é necessário descrevê-lo de maneira neutra, como é dado imediatamente à
consciência, sem se formular, logo de início, qualquer pergunta sobre a existência
extramental do objeto, como algo de separável ou independente do sujeito. (...) Nota-
se, desde logo, que o método fenomenológico implica uma mudança de atitude com
referência ao objeto que se quer descrever, atitude esta que brota de uma exigência
crítica de rigor e de evidência” (sem grifo no original).
33 ÁVILA, Humberto. Teoria da Igualdade Tributária. 2. ed. São Paulo: Malheiros
Editores, 2009, p. 24, 29, 39, 40, 41 e 42.
34 Ressalte-se, neste ponto, que a legislação brasileira não proíbe o casamento civil, a
união estável e a adoção por casais homoafetivos: a expressão “o homem e a mulher”,
presente em diversos dispositivos, não tem esse condão. Ao contrário, ressalta apenas
que a lei dispôs expressamente sobre a relação heteroafetiva, omitindo-se, por outro
lado, em relação à homoafetiva. Essas premissas centrais do presente trabalho serão
esmiuçadas nos capítulos próprios, tendo sido aqui citadas apenas por se tratar de
menção oportuna.
35 É essa a lição de Miguel Reale (Lições preliminares de direito, 27.ª Edição, São Paulo:
Editora Saraiva, 2004, p. 290-292), que afirma que o “fim da lei é sempre um valor,
cuja preservação ou atualização o legislador teve em vista garantir, armando-o de
sanções, assim como também pode ser fim da lei impedir que ocorra um desvalor.
Ora, os valores não se explicam segundo nexos de causalidade, mas só podem ser
objeto de um processo compreensivo que se realiza através do confronto das partes
com o todo e vice-versa, iluminando-se e esclarecendo-se reciprocamente, como é
próprio do estudo de qualquer estrutura social. (...) Estas considerações iniciais visam
pôr em realce os seguintes pontos essenciais da que denominamos hermenêutica
estrutural: a) toda interpretação jurídica é de natureza teleológica (finalística) fundada
na consistência axiológica (valorativa) do Direito; b) toda interpretação jurídica dá-se
numa estrutura de significações, e não de forma isolada; c) cada preceito significa algo
situado no todo do ordenamento jurídico. Pois bem, dessa compreensão estrutural do
problema resulta, em primeiro lugar, que o trabalho do intérprete, longe de reduzir-se a
uma passiva adaptação a um texto, representa um trabalho construtivo de natureza
axiológica, não só por se ter de captar o significado do preceito, correlacionando-o
com outros da lei, mas também porque se devem ter presentes os da mesma espécie
existentes em outras leis: a sistemática jurídica, além de ser lógico-formal, como se
sustentava antes, é também axiológica ou valorativa. (...) Mais do que qualquer outro
autor, Emilio Betti soube dar realce ao papel da interpretação jurídica, distinguindo-a
cuidadosamente de outras formas de interpretação, como a histórica, a literária ou a
musical. O intérprete do Direito, consoante demonstrações convincentes daquele
mestre, não fica preso ao texto, como o historiador aos fatos passados, e tem mesmo
mais liberdade do que o pianista diante da partitura. Se o executor de Beethoven pode
dar-lhe uma interpretação própria, a música não pode deixar de ser de Beethoven. No
Direito, ao contrário, o intérprete pode avançar mais, dando à lei uma significação
imprevista, completamente diversa da esperada ou querida pelo legislador, em virtude
de sua correlação com outros dispositivos, ou então pela sua compreensão à luz de
novas valorações emergentes no processo histórico” (sem grifos no original).
36 Cite-se, exemplificativamente, as lições de Carlos Roberto Gonçalves e de Sílvio de
Salvo Venosa. Para o primeiro: “O legislador não consegue prever todas as situações
para o presente e para o futuro, pois o direito é dinâmico e está em constante
movimento social, acompanhando a evolução da vida social, que traz em si novos
fatos e conflitos. (...) Tal estado de coisas provoca a existência de situações não
previstas de modo específico pelo legislador e que reclamam solução por parte do juiz.
Como este não pode eximir-se de proferir decisão sob o pretexto de que a lei é
omissa, deve valer-se dos mecanismos destinados a suprir as lacunas da lei, que são:
a analogia, os costumes e os princípios gerais de direito. (...) Nisso se resume o
emprego da analogia, que consiste em aplicar a caso não previsto a norma legal
concernente a uma hipótese análoga prevista e, por isso mesmo, tipificada [analogia
legal] (...) A segunda baseia-se e um conjunto de normas, para obter elementos que
permitam a sua aplicação a um caso sub judice” (GONÇALVES, Carlos Roberto.
Direito Civil Brasileiro. Parte Geral. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 48-50. v. I – grifos
nossos); para o segundo: “O ideal seria o ordenamento jurídico preencher todos os
acontecimentos da sociedade. Não é, como vimos, o que ocorre. O juiz não pode, em
hipótese alguma, deixar de proferir decisão nas causas que lhe são apresentadas. Na
falta de lei que regule a matéria, recorre às fontes subsidiárias, entre as quais
podemos colocar a analogia. Na realidade, a analogia não constitui propriamente uma
técnica de interpretação, como a princípio possa parecer, mas verdadeira fonte do
Direito, ainda que subsidiária e assim tida pelo legislador no art. 4.º da Lei de
Introdução ao Código Civil. Trata-se de um processo de raciocínio lógico pelo qual o
juiz estende um preceito legal a casos não diretamente compreendidos na descrição
legal. O juiz pesquisa a vontade da lei, para transportá-la aos casos que a letra do
texto não havia compreendido. Para que esse processo tenha cabimento, é necessária
a omissão no ordenamento. (...) Na analogia legal, o aplicador do Direito busca uma
norma que se aplique a casos semelhantes. (...) O intérprete procura institutos que têm
semelhança com a situação sob enfoque. (...) Tenta extrair do pensamento dominante
em um conjunto de normas uma conclusão particular para o caso em exame. Essa é
chamada analogia jurídica. A analogia é um processo de semelhança (...) Para o uso
da analogia, é necessário que haja lacuna na lei e semelhança com a relação não
imaginada pelo legislador. A seguir, no derradeiro passo do raciocínio, o intérprete
procura uma razão de identidade entre a norma encontrada, ou o conjunto de normas,
e o caso compreendido. A utilização da técnica analógica para o preenchimento de
lacunas presta grandes serviços, mas só pode ser utilizada com eficiência quando o
aplicador não foge à ratio legis aplicada, quando então daria amplitude perigosa ao
princípio, arriscando-se a julgar contra a lei” (VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito Civil.
Parte Geral. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2005, p. 48-50 – grifos nossos).
37 VECCHIATTI, 2008, p. 257-271.
38 VECCHIATTI, 2008, p. 288-290.
39 ADPF 132 e da ADI 4.277, voto do Ministro Gilmar Mendes, p. 11 e 44, aqui
parafraseado. No original: “O fato de a Constituição proteger, como já destacado pelo
eminente Relator, a união estável entre homem e mulher não significa uma negativa de
proteção – nem poderia ser – à união civil, estável, entre pessoas do mesmo sexo”.
40 Sobre a analogia ser uma decorrência do princípio da igualdade para garantia de
tratamento igual a situações “substancialmente semelhantes”, vide DINIZ, Maria
Helena, Lei de Introdução ao Código Civil Brasileiro Interpretada. 11. ed. São Paulo:
Saraiva, 2005, p. 112-114 – trecho integralmente transcrito em nota de rodapé do
capítulo 6, item 3 – “A Interpretação Extensiva, a Analogia e a Possibilidade Jurídica
do Casamento Civil Homoafetivo” [em que acrescento, com muito mais razão, também
a interpretação decorrente da isonomia por, neste caso, termos situações idênticas].
41 Cf. Capítulo 5, item 2.4.1 “O Amor Familiar como o elemento formador da família
contemporânea”.
42 Cf., v.g.: STJ, REsp 820.475/RJ, DJe 06.10.2011, e REsp 827.962/RS, DJe
08.08.2011 – este segundo peremptório ao afirmar que “É juridicamente possível
pedido de reconhecimento de união estável de casal homossexual, uma vez que não
há, no ordenamento jurídico brasileiro, vedação explícita ao ajuizamento de demanda
com tal propósito” e que “Os arts. 4.º e 5.º da Lei de Introdução do Código Civil
autorizam o julgador a reconhecer a união estável entre pessoas de mesmo sexo”,
pois “A extensão, aos relacionamentos homoafetivos, dos efeitos jurídicos do regime
de união estável aplicável aos casais heterossexuais traduz a corporificação dos
princípios constitucionais da igualdade e da dignidade da pessoa humana” (grifo
nosso). No mesmo sentido, o histórico julgamento que reconheceu a licitude do
casamento civil homoafetivo: STJ, REsp 1.183.378/RS, DJe 01.02.2012.
43 Segundo o STJ, “A jurisprudência desta Corte entende que ofende o princípio da
legalidade a decisão que determina a interrupção do prazo para a aquisição da
benesse do Decreto 5.295 em razão do cometimento de falta de natureza grave, uma
vez que acaba por criar requisito objetivo não previsto em lei” (STJ, HC 80.103/SP,
DJe 06.10.2008).
44 “Art. 19. É vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios: I –
estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-los, embaraçar-lhes o
funcionamento ou manter com eles ou seus representantes relações de dependência
ou aliança, ressalvada, na forma da lei, a colaboração de interesse público” (sem grifos
no original).
45 Para maiores aprofundamentos sobre o tema, vide VECCHIATTI, Paulo Roberto Iotti.
Tomemos a sério o princípio do Estado laico. Jus Navigandi, Teresina, ano 12, n. 1830,
5 jul. 2008. Disponível em: http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=11457. Acesso
em: 7 jul. 2008 (artigo também disponível em www.clubjus.com.br, em 02.07.2008, no
seguinte link: <http://www.clubjus.com.br/?artigos&ver=2.19499>). Para uma análise
da consequência prática de dita vedação de utilização de fundamentações religiosas
para pautar decisões políticas e jurídicas, ou seja, sobre a inconstitucionalidade de: (i)
afixação de símbolos religiosos em órgãos públicos; (ii) custeio de despesas de
instituições religiosas e chefes religiosos – com enfoque no caso do chefe da Igreja
Católica; (iii) concordatas com o Vaticano; (iv) aceitação de cartas psicografadas como
provas; e, por fim, (v) comentário crítico sobre a posição de outros autores, vide:
VECCHIATTI, Paulo Roberto Iotti. Laicidade Estatal tomada a sério. Jus Navigandi,
Teresina, ano 12, n. 1.830, 5 jul. 2008. Disponível
em: http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=11463. Acesso em: 7 jul. 2008
(disponível também em: www.clubjus.com.br, no seguinte
link: http://www.clubjus.com.br/?artigos&ver=2.19500).
46 Dogma é aqui entendido como o “ponto fundamental de uma doutrina religiosa,
apresentado como certo e indiscutível, cuja verdade se espera que as pessoas
aceitem sem questionar”; “qualquer doutrina de caráter indiscutível em função de
supostamente ser uma verdade aceita por todos”; “opinião sustentada em
fundamentos irracionais e propagada por métodos que tb. o são”; “nas religiões, esp.
entre cristãos, doutrina a que é atribuída uma autoridade acima de qualquer opinião ou
dúvida particular que possa ter um crente” (Dicionário Houaiss da língua portuguesa,
2.a reimpressão com alterações, Rio de Janeiro: Editora Objetiva, 2007, p. 1071).
47 No original: “Uma atitude é julgada errada por algum motivo. Se o motivo não mais
existe e nenhum outro é fornecido, como esta atitude pode continuar sendo
considerada errada? A simples afirmação de que ‘Deus disse que isto é errado’ não é
uma resposta boa o suficiente, pois o princípio é válido mesmo em se tratando de
Deus: também Deus deve fornecer o motivo pelo qual algo é errado. Isto significa dizer
que há bom-senso, que há sabedoria na moralidade exigida por Deus. Se não houver,
então toda a moralidade será arbitrária e Deus considerará as coisas como certas ou
erradas segundo um capricho divino. Neste caso, toda a reflexão sobre a ética deixaria
de existir, pois não haveria um princípio racional por trás da moralidade e as
exigências de Deus não seriam razoáveis. Tal conclusão, porém, é um absurdo. É
completamente ridícula. Logo, é preciso que haja um motivo pelo qual algo seja
considerado errado, e deve ser por este mesmo motivo que Deus o proíba. Bem, mas
Deus não poderia ter razões que escapem à nossa compreensão? Claro que sim. Mas
se fosse este o caso, nunca poderíamos conhecer a vontade de Deus – a menos que
Deus a revelasse. E onde Deus a revelaria? Uma resposta óbvia é: ‘Na Bíblia, claro!’.
Esta resposta é perfeitamente válida. Mas ela nos traz de volta exatamente ao ponto
de partida: como podemos determinar o que Deus quis dizer na Bíblia? As opções
ainda são as mesmas: as abordagens literal e histórico-crítica” (HELMINIAK, Daniel A.
O que a Bíblia realmente diz sobre a homossexualidade, 1.ª Edição, São Paulo: GLS
Edições, 1998, p. 36 – sem grifo no original).
48 Como se sabe, há três correntes acerca da natureza jurídica do preâmbulo
constitucional. A primeira nega-lhe qualquer eficácia jurídica, apontando que seria
mera exortação política de nenhum conteúdo jurídico; a segunda atribui-lhe a mesma
natureza das normas constitucionais, aduzindo que o fato de se encontrar no texto
constitucional lhe dá o mesmo caráter dos textos normativos constitucionais em geral;
e a terceira, intermediária, reconhece-lhe eficácia interpretativa da Constituição, pois,
embora reconheça que na contradição entre preâmbulo e texto normativo
constitucional, deve este prevalecer, o fato de o preâmbulo estar no corpo da
Constituição lhe dá força jurídica. Como inclusive apontado pelo Supremo no referido
acórdão, tais posições podem ser vistas em Jorge Miranda (Manual de direito
constitucional: Constituição, 5.a Edição, Coimbra: Coimbra Editora, 2003, tomo II, p.
261-267), onde o constitucionalista português aponta seu entendimento no sentido de
que o preâmbulo é parte integrante da Constituição, dela não se distinguindo pela
origem, sentido ou instrumento que se contem, mas apenas por seus efeitos, não
atribuindo a ele a mesma eficácia própria dos artigos da Constituição pelo fato de ele
não ser um conjunto de preceitos, mas um conjunto de princípios que se projetam
sobre os preceitos e sobre os restantes setores do ordenamento, donde não pode ser
invocado isoladamente nem há inconstitucionalidade por sua violação isolada.
49 Ou seja, o Supremo adotou a primeira das correntes descritas na nota anterior.
50 Segue o inteiro teor da manifestação do Ministro Sepúlveda Pertence (ADIn 2.076):
“Sr. Presidente, independentemente da douta análise que o Eminente Ministro-Relator
procedeu sobre a natureza do preâmbulo das Constituições, tomado em seu conjunto,
esta locução ‘sob a proteção de Deus’ não é uma norma jurídica, até porque não se
teria a pretensão de criar obrigação para a divindade invocada. Ela é uma afirmação
de fato – como afirmou Clemente Mariani, em 1946, na observação recordada pelo
eminente Ministro Celso de Mello – jactanciosa e pretensiosa, talvez – de que a
divindade estivesse preocupada com a Constituição do Brasil. De tal modo, não sendo
norma jurídica, nem princípio constitucional, independentemente de onde esteja, não é
ela de reprodução compulsória aos Estados-membros. Julgo improcedente a ação
direta”.
51 Não desconheço a crítica segundo a qual a proporcionalidade não poderia ser um
princípio porque ela não poderia ser ponderada com outros princípios, justamente por
ser ela que determina a ponderação. Contudo, além de não me limitar a classificar
princípios como meros mandamentos de otimização (já que, segundo penso, princípios
são mandamentos nucleares do sistema, em questão que não cabe aqui desenvolver),
cabe citar aqui a correta colocação de Luís Roberto Barroso e Ana Paula de Barcellos
(O começo da história. A nova interpretação constitucional e o papel dos princípios no
direito brasileiro, in: BARROSO, Luís Roberto (org.). A nova interpretação
constitucional. Ponderação, Direitos Fundamentais e Relações Privadas, 2.a Edição,
Rio de Janeiro-São Paulo-Recife, editora??, 2006, p. 361), no sentido de que “O
emprego do termo princípio, nesse contexto, prende-se à proeminência e à
precedência desses mandamentos dirigidos ao intérprete, e não propriamente ao seu
conteúdo, à sua estrutura ou à sua aplicação mediante ponderação. Os princípios
instrumentais de interpretação constitucional constituem premissas conceituais,
metodológicas ou finalísticas que devem anteceder, no processo intelectual do
intérprete, a solução concreta da questão posta”. É o caso do princípio instrumental da
proporcionalidade.
52 Na definição de Gustavo Ferreira Santos (O princípio da proporcionalidade na
jurisprudência do Supremo Tribunal Federal – Limites e Possibilidades, 1.a Edição,
2001, Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, p. 107-108): “(...) o princípio da
proporcionalidade é um instrumento específico, identificado e desenvolvido em uma
dada experiência jurídico-constitucional, que permite a limitação do poder estatal.
Trata-se de um instrumento segundo o qual a medida a ser tomada pelo Estado há de
ser adequada e necessária à finalidade apontada pelo agente, bem como deve ser
garantida uma relação de proporcionalidade entre o bem protegido pela atividade
estatal e aquele que, por ela, é atingido ou sacrificado. O princípio da
proporcionalidade faz essa mediação entre grandezas, combinando,
proporcionalmente à importância para o caso concreto, diferentes valores contidos no
sistema. As normas em colisão serão comparadas e testadas de forma a se chegar a
uma conclusão consagradora de uma das duas ou que compatibilize as duas. Ordena
o princípio da proporcionalidade a ponderação e a harmonização de interesses
reconhecidos na Constituição, com o fito de encontrar uma justa decisão em situações
de tensão entre direitos. Trata-se aqui da aplicação da ideia de uma dupla dimensão
dos direitos fundamentais, uma subjetiva, titularizada pelo indivíduo e fundamentadora
de status, e uma objetiva, que baseia uma ordem jurídica da comunidade (cf. Hesse,
1998, p. 228). Nessa dimensão objetiva, são justificáveis diversas restrições aos
direitos em nome da harmonia entre os vários elementos” (sem grifos no original).
53 Na lição de Gilmar Ferreira Mendes (Moreira Alves e o controle de constitucionalidade
no Brasil, 1.a Edição, São Paulo: Editora Saraiva, 2004, p. 83), tem-se que: “A doutrina
constitucional mais moderna enfatiza que, em se tratando de imposição de restrições a
determinados direitos, deve-se indagar não apenas sobre a admissibilidade
constitucional da restrição eventualmente fixada (reserva legal), mas também sobre a
compatibilidade das restrições estabelecidas com o princípio da proporcionalidade.
Essa nova orientação, que permitiu converter o princípio da reserva legal
(Gesetzesvorbehalt) no princípio da reserva legal proporcional (Vorbehalt des
verhältnismässigen Gesetzes), pressupõe não só a legitimidade dos meios utilizados e
dos fins perseguidos pelo legislador, mas também a adequação desses meios para a
consecução dos objetivos pretendidos (Geeignetheit) e a necessidade de sua
utilização (Notwendigkeit oder Erforderlichkeit). Um juízo definitivo sobre a
proporcionalidade ou razoabilidade da medida há de resultar da rigorosa ponderação
entre o significado da intervenção para o atingido e os objetivos perseguidos pelo
legislador (proporcionalidade ou razoabilidade em sentido estrito). O pressuposto da
adequação (Geeignetheit) exige que as medidas interventivas adotadas mostrem-se
aptas a atingir os objetivos pretendidos. O requisito da necessidade ou da exigibilidade
(Notwendigkeit oder Erforderlichkeit) significa que nenhum meio menos gravoso para o
indivíduo revelar-se-ia igualmente eficaz na consecução dos objetivos pretendidos.
Assim, apenas o que é adequado pode ser necessário, mas o que é necessário não
pode ser inadequado”. Especificamente sobre a proporcionalidade em sentido estrito,
afirma Robert Alexy (Teoria dos direitos fundamentais. Tradução de Virgílio Afonso da
Silva, 5.a Edição Alemã, 1.a Edição Brasileira, São Paulo: Malheiros Editores, 2008, p.
117) que: “Princípios são mandamentos de otimização em face das possibilidades
jurídicas e fáticas. A máxima da proporcionalidade em sentido estrito, ou seja,
exigência de sopesamento, decorrente da relativização em face das possibilidades
jurídicas. Quando uma norma de direito fundamental com caráter de princípio colide
com um princípio antagônico, a possibilidade jurídica para a realização dessa norma
depende do princípio antagônico”.
54 BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e aplicação da Constituição, 6.a Edição, São
Paulo: Editora Saraiva, 2006, p. 228-229.
55 É essa a lição de Luís Roberto Barroso (Interpretação e aplicação da Constituição, 6.a
Edição, São Paulo: Editora Saraiva, 2006, p. 244), com quem se deve concordar
quando afirma que: “De plano, portanto, não será legítima a desequiparação arbitrária,
caprichosa, aleatória. O elemento de discriminação tem de ser relevante e residente
nas pessoas por tal modo diferenciadas. Não pode ser externo ou alheio a elas. (...)
De parte isto, tem de haver racionalidade na desequiparação, vale dizer: adequação
entre o meio e o fim. (...) A desequiparação, ademais, terá de ser necessária para a
realização do objetivo visado, vedado o excesso, isto é, o tratamento diferenciado
além do que é imprescindível. (...) E, por fim, terá de haver proporcionalidade em
sentido estrito. É imperativo que o valor promovido com a desequiparação seja mais
relevante do que o que está sendo sacrificado. (...)”.
56 PEREIRA, Jane Reis Gonçalves. Interpretação Constitucional e Direitos
Fundamentais, 1.a Edição, Rio de Janeiro-São Paulo-Recife: Editora Renovar, 2006, p.
358-366.
57 Embora, ao contrário de Celso Antonio Bandeira de Mello, eu pense que a isonomia
se satisfaça com os dois primeiros aspectos, sendo o terceiro relativo à
constitucionalidade em geral.
Capítulo 4

OS PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS DA
DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA E DA
INTERPRETAÇÃO CONFORME A
CONSTITUIÇÃO

1. O PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA

1.1 Considerações preliminares


Hoje, no mundo, é pacífico o entendimento de que a dignidade da
pessoa humana constitui um princípio jurídico essencial de todo Estado que
se considere Democrático de Direito. Sem entrar na questão da árdua
evolução do pensamento humano para chegar a essa conclusão (de
indispensabilidade da proteção da dignidade da pessoa humana), pode-se
com certeza afirmar que a Segunda Guerra Mundial foi o verdadeiro divisor
de águas nessa questão. A consciência dos horrores trazidos, por exemplo,
pelo regime nazista (que existia em um Estado de Direito, vale ressaltar),
fez a maior parte dos Estados preocuparem-se com a consagração da
dignidade humana como princípio jurídico fundamental. A principal prova
dessa tomada de consciência é a Declaração Universal dos Direitos do
Homem, que em 1948 (três anos após o término da Segunda Grande
Guerra) colocou o respeito à dignidade como direito de toda a família
humana1.
Todavia, apesar de não haver dúvida com relação ao direito de todas as
pessoas humanas no sentido do respeito à sua dignidade, muito
controvertida é a questão referente ao conteúdo jurídico de dito princípio
jurídico2.

1.2 O princípio da dignidade da pessoa humana e o direito à busca da


felicidade
A dignidade humana constitucionalmente consagrada garante a todos o
direito à felicidade3, na medida em que a realidade empírica demonstra que
a própria existência humana destina-se a evitar o sofrimento e a buscar
aquilo que acreditamos que nos trará a felicidade. Parafraseando Luiz
Alberto David Araújo, a própria noção de contrato social implica a
compreensão de que esse pacto coletivo só é aceito pelas pessoas em geral
por acreditarem que a vida em sociedade, com todos os seus ônus e
benefícios, propiciará maiores condições de alcançar a felicidade do que se
vivessem isoladamente4.
Tal constatação é muito simples, mas supõe uma digressão histórica
que demonstre a evolução do pensamento humano, em especial ao longo do
século XX. Até meados do referido século, a humanidade era regida por um
sistema jurídico que valorizava uma visão extremamente patrimonialista da
vida humana. A família, tida como um fim em si mesmo, visava unicamente
garantir a perpetuação da espécie e que os bens do homem fossem herdados
por alguém que fosse efetivamente seu descendente, “do seu sangue”,
donde se valorizava sobremaneira a virgindade da mulher. Afinal, como as
técnicas de verificação da paternidade da época não forneciam uma posição
precisa no que tange à filiação, a virgindade feminina anterior ao casamento
passou a ser vista como requisito de respeitabilidade da mulher, justamente
para garantir a certeza da filiação masculina.
A questão da família será abordada no próximo capítulo. Contudo, essa
visão da entidade familiar voltada exclusivamente para a transmissão
patrimonial do homem (pessoa do sexo masculino) e para a procriação
mesmo em detrimento da realização pessoal de cada um de seus membros
mostra que nossa antiga legislação não se importava com a pessoa humana,
mas sim com o patrimônio humano.
Essa visão perdurou até meados do século XX, quando os horrores do
nazi-fascismo mostraram que o ser humano é capaz de dizimar
determinados grupos de pessoas humanas por motivos preconceituosos,
absolutamente arbitrários. Disso resultou o entendimento de que a
dignidade humana, ou melhor, o direito de todos viverem suas vidas da
melhor maneira possível, de acordo com suas próprias escolhas e/ou
características, desde que não prejudiquem terceiros, deve ser respeitado
acima de tudo.
Nesse sentido, nunca se deve esquecer que os campos de concentração
nazistas eram palcos de extermínio de pessoas humanas pelo simplesmente
por terem esta ou aquela crença (judeus), esta ou aquela orientação sexual
(homo e bissexuais) e assim por diante. Ou seja, o preconceito (juízo de
valor arbitrário) foi usado para determinar quem poderia viver e quem
deveria morrer, donde restou indispensável, naquela época, alçar a
dignidade humana ao topo hierárquico do Direito.
Assim, a valorização da pessoa humana e a sua proteção acima de
qualquer outro valor visa justamente proteger o ser humano do próprio ser
humano, para que aqueles que se encontrem em melhores condições físicas,
militares etc. não possam se aproveitar disso para subjugar outros, em pior
situação fática.
Consequentemente, a superação daquela visão patrimonialista da
pessoa humana ensejou a preocupação do Direito com os valores que
efetivamente trazem a felicidade às pessoas, a saber: o amor, o respeito
recíproco, a solidariedade, entre outros. Quanto à família, um longo tempo
após a realidade social ter demonstrado que muitos casais encontravam-se
infelizes em sua união matrimonializada, até então indissolúvel, a legislação
passou a admitir o divórcio como forma de assegurar a essas pessoas o
direito de buscarem a felicidade por meio do amor romântico, que havia
deixado de existir naquela união meramente formal. Mesmo porque o fato
social era inevitável: muitos casamentos já haviam “falido”, ensejando o
término fático da relação mesmo com o não reconhecimento da licitude de
dito comportamento pelo Direito. Destarte, considerando que o Direito deve
acompanhar o fato social, a menos que haja um fundamento válido ante a
isonomia ou a outro princípio constitucional que justifique o contrário
(inexistente neste caso), foi mera questão de tempo a aprovação do
divórcio, mesmo com a pressão de instituições como a Igreja Católica em
sentido contrário.
Fica, pois, claro que o ordenamento jurídico brasileiro passou a dar
mais importância ao amor, aos laços fraternos e à solidariedade em
detrimento da antiga visão patrimonialista de nossa legislação anterior, por
mais que não o tenha dito de forma expressa. Afinal, reconheceu-se
expressamente o caráter jurídico-familiar da união estável (o “casamento de
fato”), que se mantém unicamente pelo amor existente na relação,
garantindo-lhe muitos direitos anteriormente só garantidos ao casamento
civil5.
Desta feita, não há como negar que o Direito Brasileiro alçou a
dignidade da pessoa humana a valor máximo de seu ordenamento jurídico,
especialmente em atenção ao art. 1.º, III, da CF/1988, que coloca a
dignidade da pessoa humana como um dos objetivos fundamentais da
República Federativa do Brasil, e que esta garante a todos o direito à
felicidade, dentro evidentemente dos limites constitucionais.

1.3 As classificações insular e da nova ética. A posição de Antônio


Junqueira de Azevedo
Na classificação trazida por Antônio Junqueira de Azevedo6, há duas
concepções acerca da dignidade humana: a insular e a da nova ética. A
primeira afirma o ser humano como razão e vontade para uns e, para outros,
como autoconsciência; ao passo que a segunda, por ele defendida, vê o ser
humano integrado à natureza, sendo capaz “de sair de si, reconhecer no
outro um igual, usar a linguagem, dialogar e, ainda, principalmente, na sua
vocação para o amor, como entrega espiritual a outrem”7.
Deve restar claro que os conceitos supraexpostos referem-se ao traço
diferenciador da pessoa humana com relação aos demais seres vivos. Isso
porque toda e qualquer forma de vida merece ter proteção jurídica que evite
abusos arbitrários – o que pode ser constatado pela proteção conferida ao
meio ambiente e aos direitos dos animais de não serem tratados com
crueldade. Contudo, o que a dignidade humana visa garantir é uma proteção
especial à pessoa humana, uma vez que tem ela atributos que a diferenciam
positivamente das demais formas de vida, e que lhe garantem direitos a uma
maior proteção do que a ofertada aos demais seres vivos.
Assim, para a concepção insular, o que diferencia o ser humano dos
demais seres vivos e garante especial proteção à sua dignidade são a razão e
a vontade a ele inerentes, na medida em que são a sua capacidade de pensar
racionalmente (analisando as questões sob fundamentos fático-científicos) e
de agir de acordo com o seu próprio pensamento (vontade livre) que o
diferenciam dos demais seres vivos. Ou então, para outra vertente desta
concepção, a sua capacidade de autoconsciência, ou seja, de ter a
compreensão de si mesmo, no sentido de se autodeterminar, o que, a meu
ver, supõe, necessariamente, o uso da razão e da vontade.
Vale ressaltar que a concepção insular consagrou-se pelas lições de
Kant, adepto que era da teoria racionalista do conhecimento. Kant defendia,
em síntese, que o ser humano é um fim em si mesmo pelas suas capacidades
de autonomia de vontade e de autodeterminação, que o diferenciariam dos
demais seres vivos e, portanto, garantir-lhe-iam o direito a uma dignidade
maior do que a conferida àqueles. Ressaltava que os demais seres vivos não
possuem autonomia de vontade e capacidade de autodeterminação, estando
sempre sujeitos ao determinismo da Natureza, mas não à sua própria
vontade8.
Por outro lado, a concepção da nova ética, conforme explicitada por
Antônio Junqueira de Azevedo9, afirma que:

(...) A pessoa humana, na verdade, se caracteriza por participar do


magnífico fluxo vital da natureza (é seu gênero mais amplo),
distinguindo-se de todos os demais seres vivos pela sua capacidade de
reconhecimento do próximo, de dialogar, e, principalmente, pela sua
capacidade de amar e sua abertura potencial para o absoluto (é sua
principal diferença) (concepção da pessoa humana fundada na vida e
no amor); c) com esse fundamento antropológico, a dignidade da
pessoa humana como princípio jurídico pressupõe o imperativo
categórico da intangibilidade da vida humana e dá origem, em
sequência hierárquica, aos seguintes preceitos: 1 – respeito à
integridade física e psíquica das pessoas; 2 – consideração pelos
pressupostos materiais mínimos para o exercício da vida; e 3 – respeito
às condições mínimas de liberdade e convivência social igualitária
(sem grifos no original).
Conforme citado, o mencionado autor é adepto dessa segunda
concepção, qual seja a da nova ética, conforme a denomina. Para tanto,
desmistifica a posição do ser humano como razão e vontade ou mesmo
como autoconsciência, justificando que tais características não são
exclusivas da pessoa humana: outros animais também as possuem. No caso
da razão e da vontade, são comuns não só ao ser humano como também aos
animais superiores, ao passo que, quanto à autoconsciência, é ela
igualmente comum, pelo menos ao chimpanzé, conforme atesta (ainda que
em graus diferentes entre a pessoa humana e tais animais, em ambos os
casos, cumpre acrescentar).
Os animais têm vontade própria, não há dúvida, pois do contrário
seriam todos dóceis e facilmente controláveis pelo ser humano, o que não
ocorre desde o início dos tempos. Ademais, alguns, como o chimpanzé, têm
autoconsciência e autodeterminação, conforme comprovado pela
denominada “experiência do espelho”10, explicitada pelo mencionado autor.
Assim, conclui Antônio Junqueira Azevedo pela insuficiência da
concepção insular no tocante ao critério diferenciador da pessoa humana em
relação aos demais seres vivos, trazendo o entendimento de que o ser
humano se diferencia dos demais seres vivos pela sua capacidade de
reconhecer o próximo, de dialogar, de amar e de se abrir para o absoluto. A
partir daí, da efetiva diferenciação do ser humano para com os demais seres
vivos, posiciona-se o autor pela intangibilidade da vida humana, que, para
ele, é o pressuposto da dignidade da pessoa humana. Consequentemente,
supõe que é absolutamente necessária a proteção da integridade física e
psíquica das pessoas, além da garantia dos pressupostos materiais mínimos
para a existência, liberdade e igualdade entre todas as pessoas humanas.
Vale ressaltar a posição do autor pelo grau absoluto de seu “pressuposto”,
que é a intangibilidade da vida humana11, o que o leva a classificá-la como
“imperativo jurídico categórico”12, em alusão à célebre concepção de Kant
que considerava os imperativos categóricos como preceitos absolutos, não
passíveis de crítica e/ou negação. Por outro lado, o citado autor discorre
sobre as “consequências” desse seu “pressuposto” como fundamentais, mas
não como imperativos categóricos, classificando-as como “imperativos
jurídicos relativos”13.
1.4 Dignidade da pessoa humana como dimensão simultaneamente
defensiva e prestacional. A posição de Ingo Wolfgang Sarlet e de
Luís Roberto Barroso
Defende Ingo Wolfgang Sarlet que a dignidade da pessoa humana não é
algo que seja exclusivamente inerente ao ser humano, ao contrário da
doutrina racionalista de Kant. Entende que o desenvolvimento cultural das
sociedades humanas e sua consequente evolução também caracterizam o
conteúdo do que efetivamente se considera como “dignidade da pessoa
humana”, especialmente quanto às condutas que a ofendem, em
complementação à concepção biológica da dignidade. Nesse sentido,
entende o autor que a dignidade humana é tanto um limite para a atuação
estatal, que não pode invadi-la, quanto um dever prestacional do Estado,
que deve tomar todas as medidas necessárias para garantir que todas as
pessoas humanas tenham sua dignidade respeitada por toda a coletividade14.
Por outro lado, é de se notar que o autor não formula um conceito
abstrato sobre o que caracterizaria o objeto de proteção concreto da
dignidade da pessoa humana, por não considerar possível uma conceituação
da mesma que não se atenha ao caso concreto. Aponta que as características
que garantem o tratamento beneficamente diferenciado à pessoa humana
seriam a autonomia e o direito de autodeterminação, conforme reconhecido
pela Declaração Universal da ONU15.
Ademais, defende o autor uma necessária ponderação e hierarquização
entre o princípio da dignidade da pessoa humana e os demais direitos
fundamentais na análise do caso concreto. Isso porque as demandas
envolvendo pessoas que tiveram sua dignidade atacada por outrem
geralmente levam a um conflito entre o direito de a pessoa ter a sua
dignidade humana respeitada e, eventualmente, algum direito fundamental
do ofensor. Tal se justifica pelo fato de que “(...) o princípio da dignidade da
pessoa humana acaba por justificar (e até mesmo exigir) a imposição de
restrições a outros bens constitucionalmente protegidos, ainda que se cuide
de normas de cunho jusfundamental”16. Outrossim, exemplifica tal
colocação no plano do Direito Comparado com o fato de que
(...) o Tribunal Constitucional de Portugal, no Acórdão n.
349/1991, ao apreciar a alegação de inconstitucionalidade da penhora
da pensão em demanda executiva, decidiu que ‘perante conflito entre o
direito do pensionista a receber pensão condigna e o direito do credor,
deve o legislador, para tutela do valor supremo da dignidade da pessoa
humana, sacrificar o direito do credor na medida do necessário e, se
tanto for preciso, totalmente’17.

Dessa colocação pode surgir a seguinte indagação: mas por que se deve
necessariamente sacrificar outro direito que não o do respeito à dignidade
da pessoa humana no caso concreto, e não o contrário (ou seja, o sacrifício
desse direito de respeito à dignidade em relação ao outro)? Tal se dá pelo
fato de ter o Constituinte de 1988 alçado o princípio da dignidade da pessoa
humana ao topo hierárquico de nossa Constituição, no sentido de ser ele o
princípio fundamental (logo, de maior hierarquia axiológico-normativa) da
Carta Magna, sendo, nas palavras do citado autor18, o seu “valor-guia”, uma
vez que constitui um dos fundamentos da República Federativa do Brasil,
nos termos do art. 1.º, III, da CF/1988.
Outrossim, cumpre destacar o fato de que os direitos fundamentais são
assim considerados (como fundamentais) justamente por se partir do
pressuposto de que, sem eles, o ser humano não pode ter uma vida digna na
sua condição de pessoa humana. Ou seja, os direitos fundamentais são
exteriorizações do princípio da dignidade da pessoa humana, no sentido de
visarem garantir uma vida digna a todos os cidadãos. Assim, por mais que
os direitos alçados à condição de fundamentais por nossa Constituição
Federal tenham diferentes gradações de dignidade humana em seu conteúdo
(ou seja, o fato de alguns desses direitos possuírem maior carga de proteção
à dignidade humana do que outros), todos eles19 representam a
exteriorização de uma vertente da dignidade humana que o Constituinte
quis proteger.
Ainda nesse mister, ressalte-se que a previsão disposta no art. 5.º, § 2.º,
da CF/198820 permite concluir que os direitos previstos em seu Título II
(“Dos Direitos e Garantias Fundamentais”) não são os únicos direitos
fundamentais, configurando, assim, a existência de direitos fundamentais
implícitos, além dos ali previstos (assim como de outros oriundos dos
tratados internacionais dos quais o Brasil faça parte). Dessa forma, tendo
em conta o princípio da dignidade da pessoa humana, sempre que se
identificar na Constituição algum direito que possua em seu conteúdo21 a
proteção da dignidade humana, dever-se-á classificá-lo como um direito
humano fundamental, assim como os constantes do mencionado Título II de
nossa Carta Magna, na qualidade de direito fundamental implícito.
Todavia, é preciso tomar cuidado para que não se banalize o princípio
da dignidade da pessoa humana, o que poderia ocorrer ao tentar colocá-lo
como fundamento de todo e qualquer dispositivo de nossa Carta Magna,
sob pena de esvaziar o seu conteúdo fundamental. É preciso muita cautela
do intérprete ao classificar algum outro dispositivo da Constituição como
direito fundamental, o que só pode acontecer em sendo esse outro
dispositivo materialmente um direito humano fundamental, em que pese
não estar ele formalmente colocado no título referente a esses direitos22.
Por fim, cumpre tecer algumas considerações sobre o problema do
conflito doutrinário acerca do caráter absoluto ou relativo do princípio da
dignidade da pessoa humana. Com efeito, sustenta a maior parte da doutrina
e da jurisprudência ser a dignidade humana absoluta intangível pelo
legislador e pelo juiz, no sentido de que deve prevalecer, de modo absoluto,
sobre todos os demais direitos. Todavia, seguindo caminho diverso, Ingo
Wolfgang Sarlet aponta para o problema dessa concepção absoluta da
dignidade humana. Conforme atesta, em se considerando que todas as
pessoas humanas possuiriam um direito absoluto, intangível em qualquer
hipótese de respeito à sua dignidade, então num caso concreto traria
enormes dificuldades para o julgador decidir uma lide envolvendo esse
direito, se houvesse um efetivo conflito direto entre as dignidades de autor e
réu da demanda. Tome-se o exemplo dado, ainda que com outras palavras,
pelo citado doutrinador23: o criminoso. Aquele que comete homicídio
qualificado pela utilização de meio cruel, uma vez comprovado tal fato pelo
devido processo legal, será evidentemente recolhido a um estabelecimento
prisional. Contudo, nesse caso, em se tomando como absoluto o princípio
da dignidade da pessoa humana, poder-se-á alegar que a dignidade do preso
resta ofendida pelo fato de ser ele recolhido a uma prisão, pois será tolhido
não só em sua liberdade de locomoção, mas em uma série de outros direitos
pelo espaço de tempo em que estiver preso24. Todavia, o que se usa para
justificar a prisão do criminoso é o fato de que a sociedade não pode ficar à
mercê dele, que é potencialmente mais propenso a cometer um crime que os
demais cidadãos que nunca o cometeram. Assim, deixá-lo solto traria uma
constante situação de apreensão e medo à sociedade, o que se tem por
inaceitável. Dessa forma, resta claro o confronto supranoticiado: por um
lado, tem-se a dignidade (e segurança) da coletividade; e, de outro, a
dignidade humana do criminoso.
Esse exemplo enfatiza o grande problema existente ao considerar o
princípio da dignidade da pessoa humana como absoluto, pois, nesse caso, o
juiz do caso concreto ver-se-ia em um verdadeiro beco sem saída, porque
ou sacrifica uma fração da dignidade de uma das partes ou então não terá
como decidir a questão.
Assim, é correta a posição do autor no sentido de que “a dignidade,
ainda que não se trate como o espelho no qual todos veem o que desejam,
inevitavelmente já está sujeita a uma relativização (de resto comum a todos
os conceitos jurídicos) no sentido de que alguém (não importa aqui se juiz,
legislador, administrador ou particular) sempre irá decidir qual o conteúdo
da dignidade e se houve, ou não, uma violação no caso concreto”25.
Mas, ainda aqui, surge a seguinte indagação: como se deve proceder à
escolha de qual dignidade humana deve prevalecer; qual critério utilizar
nesse mister? Conforme colaciona o autor, na doutrina e na jurisprudência
alemãs parece haver “certo consenso quanto ao fato de que, em princípio,
nenhuma restrição de direito fundamental poderá ser desproporcional e/ou
afetar o núcleo essencial do direito objeto da restrição”26, o que se afigura
plenamente razoável e, portanto, acertado.
Destarte, os princípios da igualdade e da proporcionalidade devem ser
os nortes utilizados quando da decisão sobre qual dignidade humana deve
prevalecer no confronto direto que as lides concretas podem trazer ao juiz.
Isso porque, conforme já demonstrado no capítulo referente à isonomia, um
dos critérios para que a discriminação seja constitucionalmente válida é a
existência de um motivo lógico-racional que justifique a discriminação
pretendida em face do critério desigualador erigido, o que visa evitar a
desproporcionalidade da restrição a todo e qualquer direito27.
Dessa forma, somente deve o juiz proceder à relativização da
dignidade humana em questão se verificar a existência de um fundamento
lógico-racional no caso concreto que o justifique, assim como se dita
relativização for proporcional (adequada, necessária e proporcional em
sentido estrito). No exemplo supracolacionado, o motivo é o fato de que o
criminoso tirou a vida de outrem e, ainda por cima, com a utilização de
meio cruel. Considerando que a vida humana é um direito fundamental
assim erigido por nossa Carta Magna, é plenamente cabível que seja o
criminoso em questão preso, para que se cumpra a tríplice função da pena
(aspectos retributivo/punitivo, preventivo de novos crimes e
ressocializante), e que, inclusive, tenha uma pena maior do que aquele
agente que cometeu um homicídio simples, pelo fato de este não ter contra
si nenhuma condição qualificadora do crime.
Anote-se, para finalizar, a pertinente lição de Luís Roberto Barroso28
acerca do tema:

Após estabelecer que a dignidade humana deve ser considerada


um princípio legal – e não um direito fundamental autônomo – eu
proponho três elementos como o seu conteúdo mínimo e derivo uma
série de direitos e implicações de cada. Para fins legais, a dignidade
humana pode ser dividida em três componentes: valor intrínseco, o
qual identifica o status especial dos seres humanos no mundo; a
autonomia, que expressa o direito de toda pessoa, como ser moral e
como indivíduo livre e igual, de tomar decisões e perseguir sua própria
ideia de vida boa [good life]; e valor comunitário, convencionalmente
definido como a legítima interferência estatal e social na determinação
dos limites da autonomia pessoal. Essa dimensão comunitária da
dignidade humana deve ser sujeita a um exame minucioso, próximo e
permanente [permanent and close scrutiny], dados os riscos de
paternalismos e moralismos afetarem as legítimas escolhas e os
[legítimos] direitos das pessoas. Na estruturação de argumentações
legais em casos mais complexos e polêmicos [complex and divisive
cases], é útil identificar e discutir as questões relevantes que surgem
em cada um dos três níveis de análise e, assim, prover maior
transparência e controle à justificação e às escolhas feitas pelas cortes
ou outros intérpretes.

1.5 Posição pessoal. Dignidade da pessoa humana e o direito à


felicidade. ADPF 132 e ADI 4.277
O cerne do entendimento aqui esposado é o seguinte: a dignidade
humana constitucionalmente consagrada garante a todos o direito à
felicidade, na medida em que a realidade empírica demonstra que a própria
existência humana destina-se a evitar o sofrimento e a buscar aquilo que
acreditamos nos trará a felicidade, pois, parafraseando Luiz Alberto David
Araújo, a própria noção de contrato social implica a compreensão de que
esse pacto coletivo só é aceito pelas pessoas em geral por acreditarem que a
vida em sociedade, com todos os seus ônus e benefícios, propiciará maiores
condições de alcançar a felicidade do que a vida de forma isolada29.
O princípio da dignidade da pessoa humana garante a todos a mesma
dignidade pelo simples fato de serem pessoas humanas. A proteção especial
do ser humano em relação aos demais seres vivos é justificada pelo fato de
o ser humano diferenciar-se positivamente daqueles, o que lhe garante o
reconhecimento de dignidade maior daquela reconhecida aos demais seres
vivos. Todavia, é absolutamente irrelevante saber quais seriam estas
características específicas que diferenciam o ser humano dos demais seres
vivos (embora a doutrina majoritária pareça seguir a concepção kantiana ao
dizer que o ser humano se diferencia dos demais seres vivos por força de
sua racionalidade – por agir conforme a razão, a autonomia da vontade e a
liberdade, e não necessariamente em função de seus puros instintos): afinal,
qualquer um sabe diferenciar um ser humano de outro animal. Assim, o
princípio da dignidade da pessoa humana garante a todos o mesmo respeito
e a mesma dignidade pelo simples fato de serem pessoas humanas, sendo
absolutamente irrelevantes quaisquer condições externas nesse contexto.
Não se pode aceitar sem reservas teorias que pretendam dar à cultura o
poder de definir a dignidade da pessoa humana. O que a cultura pode fazer
é estabelecer valores, ou seja, princípios gerais a determinar aquilo que se
considera digno ou não30. Contudo, é inaceitável a arbitrariedade cultural
que subjuga determinadas pessoas humanas em detrimento de outras –
como ocorria, até bem pouco tempo atrás, com as mulheres no Ocidente e
ainda hoje ocorre com elas em países teocráticos, como o Irã e Afeganistão,
entre outros (no Ocidente, de prisioneiras dos pais, passavam a prisioneiras
dos maridos, submetidas aos desígnios despóticos destes –, tanto que, no
Brasil pelo menos, por muito tempo a mulher sofreu uma absurda
diminuição de capacidade civil com o casamento; de absolutamente capaz
passava a relativamente capaz... Em países teocráticos em geral, as
mulheres são ainda hoje enclausuradas dentro de burcas ou, ainda que não,
são verdadeiras prisioneiras dos pais e, posteriormente, passam a sê-lo dos
maridos, que mandam e desmandam nelas como se objetos fossem).
Não se desconhece a dificuldade de se estabelecer padrões mundiais de
dignidade a serem conferidos a todos os seres humanos. Penso que os
diferentes Estados conseguem fazê-lo por terem o monopólio legítimo da
força dentro de seus territórios. Mas, ao contrário, a ONU e a OTAN não
conseguem se impor sobre os Estados por não aplicarem efetivas sanções
econômicas e/ou mesmo intervenções nos Estados que desrespeitam os
direitos humanos. O grande problema, do ponto de vista da efetividade
jurídica da questão, cinge-se à ausência de vinculação jurídica das
Constituições aos ditames da ONU, o que propicia a cada Estado a
liberdade de criar os textos normativos que melhor lhe convenham. Isso é
positivo dentro da ótica de respeito às especificidades culturais, não há
dúvida, mas mesmo as especificidades culturais devem respeito ao
conteúdo material do princípio da dignidade da pessoa humana; portanto, o
respeito é devido a todos, pelo simples fato de serem seres humanos – pois
este respeito, como visto, é inerente ao próprio princípio do Estado de
Direito e, portanto, à própria noção de contrato social.
Com isso parece concordar Peter Häberle, para quem: “Já com vista a
concepções interculturalmente válidas de identidade, verifica-se que
determinados componentes fundamentais da personalidade humana devem
ser levados em consideração em todas as culturas: eles representam, com
isso, também o conteúdo de um conceito de dignidade humana insuscetível
de uma redução culturalmente específica”31.
Tal significa que, mesmo no âmbito de uma compreensão intersubjetiva
do princípio da dignidade da pessoa humana, deste deve ser extraída uma
obrigação de respeito pela pessoa individualmente considerada em sua
autonomia individual quando isto não prejudique terceiros32 (como a
homossexualidade e a homoafetividade, que efetivamente não prejudicam
ninguém).
Ou seja, “a dignidade da pessoa humana (assim como – na esteira de
Hannah Arendt – a própria existência e condição humana), sem prejuízo de
sua dimensão ontológica e, de certa forma, justamente em razão de se tratar
do valor próprio de cada uma e de todas as pessoas, apenas faz sentido no
âmbito da intersubjetividade e da pluralidade. Aliás, também por esta razão
é que se impõe o seu reconhecimento e proteção pela ordem jurídica, que
deve zelar para que todos recebam igual (já que todos são iguais em
dignidade) consideração e respeito por parte do Estado e da comunidade, o
que, de resto, aponta para a dimensão política da dignidade, igualmente
subjacente ao pensamento de Hannah Arendt, no sentido de que a
pluralidade pode ser considerada como a condição (e não apenas como uma
das condições) da ação humana e da política”33. Em outras palavras, “a
noção da dignidade como produto do reconhecimento da essencial
unicidade de cada pessoa humana e do fato de esta ser credora de um dever
de igual respeito e proteção no âmbito da comunidade humana”34.
Para o magistrado germânico Dieter Grimm, isso significa que “a
dignidade, na condição de valor intrínseco do ser humano, gera para o
indivíduo o direito de decidir de forma autônoma sobre seus projetos
existenciais e felicidade e, mesmo onde esta autonomia lhe faltar ou não
puder ser atualizada, ainda assim, ser considerado e respeitado pela sua
condição humana”35.
Ainda segundo Ingo W. Sarlet, a dignidade da pessoa humana não pode
ser conceituada de maneira fixista, pois isso não se coaduna com a
pluralidade e a diversidade de valores inerentes à sociedade democrática
contemporânea, apontando o autor, ainda, o entendimento de Carmem
Lúcia Antunes Rocha, para quem a dignidade humana é um conceito em
permanente processo de construção e desenvolvimento, donde, como Peter
Habërle, conclui que suas dimensões natural e cultural se complementam e
interagem mutuamente36.
Por outro lado, a dificuldade em garantir a dignidade inerente a todo
ser humano em todos os países do mundo não torna os seres humanos de
determinada localização merecedores de tratamento menos digno do que
aqueles que estão em outras localidades. Localização geográfica não é
critério nem motivo legítimo de diferenciação. Da mesma forma,
despotismos culturais também não o são, pois, como visto, a cultura deve
respeito ao conteúdo material do princípio da dignidade da pessoa humana
e, ainda, ao ordenamento jurídico em geral, no sentido de que serão
injurídicos comportamentos contrários ao ordenamento jurídico, ainda que
profundamente arraigados na cultura em questão.
A dificuldade efetivamente existente na conceituação positiva sobre o
que seria a dignidade da pessoa humana, se cria embaraços à efetivação de
políticas prestacionais a concretizarem-na (ações positivas visando a sua
implementação); inexiste, por outro lado, no que tange à constatação do que
efetivamente afronta a dignidade humana. Há que se utilizar, aqui, a célebre
“fórmula objeto” do alemão Günter Dürig (de base kantiana), segundo a
qual a dignidade da pessoa humana resta afrontada quando o ser humano é
usado como meio para a consecução de outros fins. Isso significa, a meu
ver, que a dignidade da pessoa humana impõe o respeito à individualidade
das pessoas, à liberdade de consciência delas, no sentido de terem
autonomia moral, ou seja, poderem viver suas vidas da forma que melhor
lhes convenha desde que, evidentemente, não prejudiquem terceiros37,
prejuízo este que inexiste na homoafetividade.
Nesse sentido, apesar de dizer que tal fórmula não oferece uma solução
para a globalidade dos casos, por não definir previamente o que deve ser
protegido, mas apenas a verificação, no caso concreto, da violação da
dignidade da pessoa humana, afirma Ingo W. Sarlet que “o que se percebe,
em última análise, é que onde não houver respeito pela vida e pela
integridade física e moral do ser humano, onde as condições mínimas para
uma existência digna não forem asseguradas, onde não houver limitação do
poder, enfim, onde a liberdade e a autonomia, a igualdade (em direitos e
dignidade) e os direitos fundamentais não forem reconhecidos e
minimamente assegurados, não haverá espaço para a dignidade da pessoa
humana e esta (a pessoa), por sua vez, poderá não passar de mero objeto de
arbítrio e injustiças”38.
Nesse sentido, o voto do Ministro Marco Aurélio39 no julgamento da
ADPF 132 e da ADI 4.277, tanto sobre a vedação de instrumentalizações,
como concepção negativa do princípio da dignidade da pessoa humana,
quanto, especialmente, na proteção da busca da realização do projeto de
vida como parte do conteúdo positivo deste: “A proibição de
instrumentalização do ser humano compõe o núcleo do princípio, como
bem enfatizado pelo requerente. Ninguém pode ser funcionalizado,
instrumentalizado, com o objetivo de viabilizar o projeto de sociedade
alheio, ainda mais quando fundado na visão coletiva preconceituosa ou em
leitura de textos religiosos. A funcionalização é uma característica típica
das sociedades totalitárias, nas quais o indivíduo serve à coletividade e ao
Estado, e não o contrário. As concepções organicistas das relações entre
indivíduo e sociedade, embora ainda possam ser encontradas aqui e acolá,
são francamente contrárias incompatíveis com a consagração da dignidade
da pessoa humanal. Incumbe a cada indivíduo formular as escolhas de vida
que levarão ao desenvolvimento pleno da personalidade. A Corte
Interamericana de Direitos Humanos há muito reconhece a proteção jurídica
conferida ao projeto de vida (v. Loayza Tamayo versus Peru, Cantoral
Benavides versus Peru), que indubitavelmente faz parte do conteúdo
existencial da dignidade da pessoa humana. Sobre esse ponto, consignou
Antônio Augusto Cançado Trindade no caso Gutiérrez Soler versus
Colômbia, julgado em 12 de setembro de 2005: ‘Todos vivemos no tempo,
que termina por nos consumir. Precisamente por vivermos no tempo, cada
um busca divisar seu projeto de vida. O vocábulo ‘projeto’ encerra em si
toda uma dimensão temporal. O projeto de vida tem, assim, um valor
essencialmente existencial, atendo-se à ideia de realização pessoal integral.
É dizer, no marco da transitoriedade da vida, a cada um cabe proceder às
opções que lhe pareçam acertadas, no exercício da plena liberdade pessoal,
para alcançar a realização de seus ideais. A busca da realização do projeto
de vida desvenda, pois, um alto valor existencial, capaz de dar sentido à
vida de cada um’ [afinal] O Estado existe para auxiliar os indivíduos na
realização dos respectivos projetos pessoais de vida, que traduzem o livre e
pleno desenvolvimento da personalidade”.
Ademais, sobre o direito à busca da felicidade encontrar-se implícito ao
princípio da dignidade da pessoa humana, são valiosas as lições do Ministro
Celso de Mello40 no citado julgamento: “Reconheço que o direito à busca
da felicidade – que se mostra gravemente comprometido, quando o
Congresso Nacional, influenciado por correntes majoritárias, omite-se na
formulação de medidas destinadas a assegurar, a grupos minoritários, a
fruição de direitos fundamentais – representa derivação do princípio da
dignidade da pessoa humana, qualificando-se como um dos mais
significativos postulados constitucionais implícitos cujas raízes mergulham,
historicamente, na própria Declaração de Independência dos Estados
Unidos da América, de 4 de julho de 1776. (...) Não é por outra razão que
STEPHANIE SCHWARTZ DRIVER (‘A Declaração de Independência dos
Estados Unidos’, p. 32/35, tradução de Mariluce Pessoa, Jorge Zahar, Ed.
2006), referindo-se à Declaração de Independência dos Estados Unidos da
América como típica manifestação do Iluminismo, qualificou o direito à
busca da felicidade como prerrogativa fundamental inerente a todas as
pessoas: ‘Em uma ordem social racional, de acordo com a teoria iluminista,
o governo existe para proteger o direito do homem de ir em busca da sua
mais alta aspiração, que é, essencialmente, a felicidade ou o bem-estar. O
homem é motivado pelo interesse próprio (sua busca da felicidade), e a
sociedade/governo é uma construção social destinada a proteger cada
indivíduo, permitindo a todos viver juntos de forma mutuamente benéfica’.
(...) Desnecessário referir a circunstância de que a Suprema Corte dos
Estados Unidos da América tem aplicado esse princípio em alguns
precedentes – como In re Slaughter-House Cases (83 U.S. 36, 1872),
Butchers’ Union Co. v. Crescent City Co. (111 U.S. 356, 1886), Meyer v.
Nebraska (262 U.S. 390, 1923), Pierce v. Society of Sisters (268 U.S. 510,
1925), Griswold v. Connecticut (381 U.S. 479, 1965), Loving v. Virginia
(388 U.S. 1, 1967), Zablocki v. Redhail (434 U.S. 374, 1978), v.g. –, nos
quais esse Alto Tribunal, ao apoiar os seus rulings no conceito de busca da
felicidade (‘pursuit of happiness’), imprimiu-lhes significativa expansão,
para, a partir da exegese da cláusula consubstanciadora desse direito
inalienável, estendê-lo a situações envolvendo a proteção da intimidade e a
garantia dos direitos de casar-se com pessoa de outra etnia, de ter a custódia
dos filhos menores, de aprender línguas estrangeiras, de casar-se
novamente, de exercer atividade empresarial e de utilizar
anticoncepcionais”.
Vale, ainda, trazer o preciso conceito de dignidade da pessoa humana
de Sarlet, que corrobora o aqui exposto, segundo o qual “tem-se por
dignidade da pessoa humana a qualidade intrínseca e distintiva reconhecida
em cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração
por parte do Estado e da comunidade, implicando, nesse sentido, um
complexo de direitos e deveres fundamentais que assegurem a pessoa tanto
contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano, como também
que venham a lhe garantir as condições existenciais mínimas para uma vida
saudável, além de propiciar e promover sua participação ativa e
corresponsável nos destinos da própria existência e da vida em comunhão
com os demais seres humanos”41.

1.5.1 Do direito fundamental ao respeito (implícito ao princípio da


dignidade da pessoa humana)
Que o respeito é inerente à dignidade da pessoa humana é algo
afirmado ou, no mínimo, não refutado pela doutrina em geral. É um
pensamento inclusive clássico, que remonta a Kant e Hegel.
Kant já vislumbrava o respeito como um dever de virtude do ser
humano, embora não passível de imposição pela violência42. Nesse ponto, o
equívoco kantiano restou em não reconhecer o respeito como imponível
coativamente (por considerar que o respeito deveria partir do próprio
sujeito, não podendo ser imposto externamente43), ou seja, como dever
jurídico, já que, como visto, o respeito é pressuposto da vida em sociedade
– afinal, respeito deve ser entendido como não repressão física ou
psicológica, o que caracteriza uma imposição de refreamento de atitudes
plenamente possível (e desejável) de se impor coativamente por meio do
aparelho estatal. Contudo, a posição kantiana já denota o respeito como
uma obrigação inerente à dignidade da pessoa humana, na medida de seu
entendimento no sentido de que a dignidade do ser humano exige que ele
efetivamente respeite a dignidade do outro (além da sua própria)44
justamente para que não se instrumentalize o outro para a consecução de
determinados fins (ante a concepção kantiana de que o ser humano é um
fim em si mesmo e, portanto, não pode ser usado como meio para se atingir
outros fins).
Só não se pode incorrer no equívoco kantiano de considerar que agir
racionalmente seria apenas a obediência da “lei moral”45, ou seja, daquilo
que a maioria da sociedade entende como correto (já que moral é o conjunto
de usos e costumes aceitos pela coletividade)46. A razão independe da
moral. A moral pode ser pautada por subjetivismos (vulgos achismos), ou
seja, por concepções arbitrárias que foram eleitas pela maioria como
corretas (vide, como exemplos: (i) o aprisionamento da mulher no lar,
reprimindo-a sempre que queria se igualar ao marido em direitos; e (ii) os
totalitarismos aprovados por maiorias). Racionalidade deve ser entendida
como uma compreensão advinda de comprovações lógico-científico-
empíricas (sendo racional, por exemplo, uma não condenação por ausência
de comprovações lógico-científico-empíricas justificadoras da
47
condenação) – e a comprovação é incompatível com subjetivismos, com
arbitrariedades. Não que toda moral seja arbitrária: muitas questões de
moralidade são comprováveis, mas essa simples possibilidade
(historicamente comprovada) de arbitrariedade da moral demonstra que não
se pode equiparar racionalidade a respeito de leis morais.
Hegel, por sua vez, entende o respeito como um imperativo prático-
motivador do estabelecimento de um estado jurídico – ou seja, o respeito é
um imperativo jurídico ao ser humano, falando, inclusive, em uma
pretensão de respeito à particularidade, àquilo que é distinto,
característico48.
O dever de respeito se impõe mesmo a visões puramente liberalistas
(individualistas), segundo as quais a liberdade nada mais é do que a
primeira das propriedades sociais – a propriedade de si49, na medida em que
“a liberdade engendra o dever de reconhecer a liberdade do outro”50.
Afinal, a liberdade implica o direito de respeito à autonomia individual,
para que cada um viva sua vida da forma que melhor lhe aprouver (desde
que não prejudicados terceiros), donde é inerente à própria noção de
liberdade o respeito à liberdade do outro – logo, o respeito ao próximo é
inerente à própria noção de liberdade.
Ou seja, é devido à sua intangível dignidade que o ser humano tem
direito ao respeito, extraindo-se daí um subelemento fundamental à noção
de dignidade: a igualdade51. Ainda segundo Béatrice Maurer, é porque
cada ser humano é dotado da dignidade, que todos são iguais, donde negar
a alguém a dignidade significa considerá-lo inferior e, portanto, não mais
um ser humano – tal qual ocorreu com judeus, homossexuais e deficientes
físicos no que tange ao tratamento que receberam dos nazistas52, já que
foram considerados “inferiores” à pseudo “raça ariana” idealizada por
Hitler.
Assim, há um efetivo direito ao respeito à dignidade que todos podem
opor contra todos. “O que permanece indiscutível é que o respeito à
dignidade do outro acarreta certas obrigações tanto por parte das
autoridades públicas como por parte de qualquer indivíduo”53. Nesse
sentido, vale citar a posição do Tribunal Federal Constitucional da
Alemanha, ao afirmar que “uma Constituição que situa a dignidade humana
no ponto central de seu sistema de valores não pode, em princípio, conceder
na ordenação das relações inter-humanas direito à pessoa de outro que não
respeite, ao mesmo tempo, a dignidade humana dos outros e seja vinculado
a deveres”54. Ou ainda a posição de Günter Dürig, para quem a dignidade
da pessoa humana garante uma pretensão de respeito ético-individual nas
relações sociais55.
Adalbert Podlech aparenta seguir o mesmo raciocínio ao elencar suas
cinco condições centrais para a garantia da dignidade da pessoa humana, a
saber: (i) a liberdade do medo existencial no Estado Social por meio da
possibilidade do trabalho e de um seguro social mínimo; (ii) a igualdade
normativa dos seres humanos, permitidas apenas desigualdades fáticas
justificáveis; (iii) a defesa da identidade e da integridade humanas por meio
da garantia do livre desenvolvimento espiritual do indivíduo; (iv) a
limitação do poder estatal; e (v) o respeito ao ser humano em sua
corporalidade como momento de sua individualidade autônoma e
responsável56.
No mesmo sentido, Peter Häberle afirma que, considerando que o
Poder Estatal decorre do povo, “o respeito e a proteção da dignidade
humana constitui um ‘dever fundamental’ (Grundpflicht) do Estado
constitucional, ou, de forma mais precisa: um ‘dever jurídico-
fundamental’”57, garantindo a dignidade da pessoa humana “um direito
público subjetivo, direito fundamental do indivíduo contra o Estado (e
contra a sociedade) e ela é, ao mesmo tempo, um encargo constitucional
endereçado ao Estado, no sentido de um dever de proteger o indivíduo em
sua dignidade humana em face da sociedade (ou de seus grupos)”58. Ainda
que levando em conta o texto positivo da Lei Fundamental Alemã, também
Michael Koepfler vê uma obrigação de respeito extraída da cláusula
constitucional da dignidade da pessoa humana59.
De toda essa exposição fica evidente que é inadmissível que se
subjuguem as minorias em função do que a maioria pensa ser a forma
supostamente “correta” de viver a vida, sob pena de afronta à dignidade
humana daquelas. Cada pessoa possui uma autonomia individual que lhe
garante o direito de viver a vida da forma como melhor lhe aprouver,
portanto o direito de ser respeitada pelos demais membros da coletividade,
desde que não prejudique terceiros – nesse sentido é a afirmação de John
Rawls de que “cada pessoa possui uma inviolabilidade fundada na justiça
que nem mesmo o bem-estar da sociedade pode sobrepujar”60. Ora, se as
pessoas têm autonomia para decidir como viver sua vida também têm o
direito de serem respeitadas, pois o respeito não supõe a “aceitação”, a
concordância, mas apenas a tolerância e a aceitação do diferente enquanto
igual, bem como a não agressão e o tratamento cordial que é inerente à
vida em sociedade. Isso é tão evidente que é inacreditável que tenha que ser
difundido.
Ou seja, existe um direito fundamental ao respeito implícito ao
princípio da dignidade da pessoa humana.
Todos sabem o que é respeito, mas para evitar problemas, cumpre
conceituá-lo. Respeitar é o ato de demonstrar tolerância com terceiros e
tratá-los enquanto iguais, ou seja, é o ato de admitir maneiras de pensar e
agir diversas das suas próprias. Respeitar é, portanto, não reprimir e não
discriminar uma pessoa pelo simples fato de ela pensar ou agir de forma
diferente da sua e tratá-la enquanto igual, o que, em nosso ordenamento
jurídico, é respaldado, ainda, pelo direito fundamental à liberdade de
consciência, que é “a faculdade de o indivíduo formular juízos e ideias
sobre si mesmo e sobre o meio externo que o circunda”61, afirmando
também que o Estado não pode interferir nesse âmbito íntimo do indivíduo,
“não lhe cabendo impor concepções filosóficas aos cidadãos”62. Tolerar
supõe não ofender e não discriminar, ao passo que respeitar supõe o ato de
tolerar e, ainda, de tratar o outro enquanto igual. Ora, se todos têm direito
de autodeterminar a forma como viverão suas vidas, é evidente que têm o
direito de ter a sua autodeterminação respeitada pelos demais membros da
sociedade quando isso não implique prejuízos a terceiros, prejuízos que
inexistem na homoafetividade.
Note-se, ainda, que a homoafetividade não causa nenhum prejuízo a
heterossexuais, como é evidente. Se um heterossexual se sente incomodado
ao vislumbrar um casal homoafetivo, isso decorre de profundo preconceito,
ou seja, de juízo de valor dezarrazoado, irracional, desprovido de lógica e
racionalidade a fundamentá-lo63.
Em suma, do princípio da dignidade da pessoa humana também
decorre a obrigação de respeito ao próximo, o que significa que todas as
pessoas merecem o mesmo respeito pelo simples fato de serem pessoas
humanas64.

2. O PRINCÍPIO DA INTERPRETAÇÃO CONFORME A


CONSTITUIÇÃO

2.1 A interpretação conforme a Constituição no ordenamento jurídico


brasileiro: natureza jurídica
A interpretação conforme a Constituição surgiu na jurisprudência da
Corte Constitucional Alemã com o intuito de conferir a determinada lei, que
possui mais de uma interpretação possível, aquela que esteja de acordo com
o ordenamento constitucional do país em questão.
No que tange à natureza jurídica da interpretação conforme, há três
correntes que tentam explicá-la: a primeira afirma que seria um método de
interpretação das leis infraconstitucionais; a segunda classifica-a como um
princípio da Constituição; e a terceira coloca-a como mecanismo de
controle da constitucionalidade das leis e dos atos normativos.
Para a primeira corrente, a interpretação conforme seria uma mera
técnica de interpretação da legislação infraconstitucional que visaria
conformá-la com o texto constitucional, evitando assim a declaração de sua
inconstitucionalidade, em atenção ao princípio da supremacia da
Constituição Federal65. A crítica feita a essa corrente baseia-se no fato de
que coloca o intérprete basicamente como uma longa manus do legislador,
ou seja, como mero instrumento de exteriorização da vontade deste, o que
não corresponde à verdade66. Afinal, como as leis visam proteger
determinados valores, e não meras circunstâncias fáticas, pode ser que o
legislador tenha expressado, na redação do dispositivo de lei em questão,
apenas uma ou algumas das situações fáticas possuidoras daquele valor
protegido. Assim, a função do intérprete é, ao verificar dita omissão de uma
situação idêntica ou, ao menos, possuidora do mesmo elemento essencial da
primeira, estender àquela o mesmo regime jurídico conferido a esta, por
meio da interpretação extensiva ou da analogia. Como se pode ver, a
interpretação conforme não pode ser equiparada às interpretações extensiva
ou restritiva ou, ainda, à analogia, uma vez que é por meio dela que se
verifica a necessidade de utilização de uma destas no caso concreto, em
decorrência da omissão legal. Ou seja, a interpretação conforme a
Constituição constitui um mecanismo de verificação da pertinência da
utilização da interpretação extensiva, da interpretação restritiva ou da
analogia (ou seja, das técnicas hermenêuticas de interpretação jurídica), o
que ocorrerá se os valores constitucionais assim o exigirem.
A segunda corrente afirma que a interpretação conforme seria um
princípio implícito de nossa Carta Magna, a saber: um princípio verificador
da conformidade da legislação infraconstitucional em relação à
Constituição. A crítica a essa corrente baseia-se no fato de que (em que
pese ser a interpretação conforme utilizada para que sejam efetivamente
respeitadas as normas constitucionais) ela não pode ser considerada um
princípio voltado unicamente para esse fim tendo em vista que isso a levaria
a se confundir com o já existente princípio da supremacia das normas
constitucionais. “Em outras palavras, o princípio constitucional da
interpretação conforme seria mais um efeito do princípio da supremacia do
que propriamente um princípio constitucional, motivo pelo qual não se
aceita esta natureza jurídica sem reservas”67-68.
Já a terceira corrente, ao classificá-la como um instrumento de controle
da constitucionalidade das leis e dos atos normativos, coloca-a como um
modo de salvaguardar a supremacia das normas constitucionais em face das
infraconstitucionais, no sentido de que, na existência de diversas
interpretações possíveis, seja delimitada a única que seria válida diante do
ordenamento jurídico-constitucional69. Ou seja, de acordo com essa
concepção, aquele que pleiteia uma interpretação conforme está afirmando,
em princípio, que a lei impugnada é inconstitucional se interpretada “desta
ou daquela forma”, razão pela qual pleiteia-se o reconhecimento da
interpretação “x” como sendo a única válida para evitar o reconhecimento e
a declaração da inconstitucionalidade da lei em questão.
A pergunta que pode ser formulada após esta colocação é a seguinte:
mas por que se pleiteia uma interpretação conforme e não a declaração da
inconstitucionalidade propriamente dita da lei, se se apresenta como
inconstitucional mediante determinada interpretação? Isso se dá pelo fato de
que, apesar da aparência da inconstitucionalidade da lei em questão, dita
inconstitucionalidade não se refere ao objeto (núcleo essencial)
propriamente dito da lei, mas apenas ao âmbito de sua abrangência, além do
fato de que a lei, apesar de ser inconstitucional se adotada determinada
interpretação, possui uma importante relevância para a sociedade, razão
pela qual precisa ser mantida70. Em outras palavras, a inconstitucionalidade
configura-se pela eventual discriminação ou afronta do texto constitucional
existente na lei em questão se interpretada “desta ou daquela forma”,
discriminação ou afronta estas tidas como inconstitucionais e que podem
ser evitadas se adotada uma das interpretações possíveis.
A terceira corrente parece-me a mais correta. Com efeito, realmente
não pode a interpretação conforme ser equiparada a mecanismos
hermenêuticos de interpretação, porque, em verdade, é ela que define se
deverão (ou não) ser utilizados para que se obtenha o respeito às normas
constitucionais. Ou seja, não é ela um método de interpretação: é, em
verdade, o mecanismo hermenêutico a ser utilizado para aferir se
determinado método de interpretação deve ou não ser utilizado no caso
concreto com o intuito de salvaguardar os valores protegidos pela Carta
Magna. Por outro lado, não se pode deixar de concordar que, se vista como
mero princípio constitucional, confundir-se-ia com o princípio da
supremacia das normas constitucionais. Aliás, esse princípio da supremacia
constitucional demanda pela declaração da inconstitucionalidade dos textos
normativos que afrontem a Constituição, no caso de impossibilidade de se
conferir a eles uma interpretação condizente com a Constituição por meio
da interpretação conforme.
Imagine-se, por exemplo, uma lei que permita indistintamente a pena
de morte no Brasil. Como se sabe, a pena de morte a civis em tempos de
paz é vedada pela cláusula pétrea atinente ao direito à vida71. Assim,
imaginando-se uma redação peremptória da lei em questão (do gênero:
“Será condenado à morte aquele que reincidir na prática de crime doloso
qualificado contra a vida que tenha gerado o resultado morte”), será
impossível a utilização da interpretação conforme a Constituição, porque
por mais que se faça uma interpretação restritiva ainda assim a lei estará
afrontando a cláusula pétrea que estabelece o direito fundamental à vida em
tempos de paz, donde a única forma de salvaguardar a Constituição será
com a declaração da inconstitucionalidade da lei em questão.

2.2 Requisitos da interpretação conforme a Constituição


São dois os requisitos da interpretação conforme a Constituição, a
saber: a necessidade e a utilidade.
A necessidade da interpretação conforme divide-se, em verdade, em
duas esferas: necessidade de sua utilização e necessidade de manutenção
da lei impugnada no ordenamento jurídico. A primeira baseia-se no fato de
que o texto normativo, se tiver a si atribuída uma interpretação gramatical
(literal), estará carreado de inconstitucionalidade. Ou seja, “apresenta sinais
evidentes de sua nulidade, caso interpretada em seu sentido literal,
permitindo ao aplicador do Direito declarar a sua nulidade, amparado no
princípio da supremacia formal da Constituição”72. A segunda, por sua vez,
funda-se no fato de que a lei, apesar de possuir variantes interpretativas
inconstitucionais, é extremamente relevante à sociedade se interpretada da
forma constitucional, donde a simples declaração de sua
inconstitucionalidade e consequente expurgação do ordenamento jurídico
traria mais malefícios do que benefícios ao interesse público. É ela fundada,
assim, no “princípio da otimização ou da máxima eficácia das leis do
ordenamento, as quais, após publicadas, produzem efeitos na tessitura
social de uma determinada comunidade”73.
A utilidade, por sua vez, consiste no fato de que a mesma será
efetivamente útil àquele que a pleiteia, no sentido de garantir-lhe ao mesmo
um bem da vida que não lhe seria garantido caso fosse adotada uma das
variantes inconstitucionais da lei em questão. Ou seja, a utilidade aqui
apontada refere-se ao efetivo interesse de agir do autor da demanda, no que
se confunde com essa condição da ação.

2.3 Limites da interpretação conforme a Constituição. ADPF 132 e ADI


4.277
Considerando que a interpretação conforme é oriunda de pura criação
jurisprudencial da Corte Constitucional Alemã, os seus limites foram
igualmente criados pela doutrina e pela jurisprudência.
A maior parte da doutrina sobre o tema entende que o intérprete não
poderia “ultrapassar os limites literais” do texto normativo sob o pretexto de
fornecer-lhe uma interpretação conforme a Constituição, assim como não
poderia o julgador decidir de forma que afrontasse a “finalidade pretendida
pelo legislador”. Baseiam-se na Teoria da Separação dos Poderes74, no
sentido de que, se o legislador tiver sido claro no seu intuito, o intérprete
não poderia dar ao texto normativo uma interpretação diversa, ainda que
fosse a única condizente com a Constituição, pois isso configuraria uma
usurpação da competência do Poder Legislativo, em uma “legislação
positiva” do intérprete-juiz que seria vedada pelo citado sistema da
Tripartição de Poderes. Isso se justificaria pelo fato de que o parlamentar
tem mandato popular, ao contrário do magistrado, na eterna celeuma acerca
da legitimidade democrática do Poder Judiciário (ou, especificamente, da
ausência de tal legitimidade apontada pelos críticos).
Contudo, essas limitações só podem ser aceitas com reservas. Isso
porque, apesar de os textos normativos em geral possuírem em seu corpo
determinadas situações fáticas, nem sempre correspondem a todos os fatos
que possuem o valor protegido pelos textos normativos em questão. Com
efeito, conforme explicitado em tópico anterior relativo à Teoria
Tridimensional do Direito, toda norma decorre de um valor atribuído a
determinado fato, donde é o valor o elemento essencial da norma, e não o
fato em si (norma = fato + valor).
Assim, quando se analisa a questão do “limite da literalidade” da
interpretação conforme, é preciso ter em mente que o que deve ser
preservado é o valor atribuído pelo legislador à norma em questão, e não
ao(s) fato(s) porventura citado(s) por ele. Afinal, quando o legislador criou
o texto normativo, ele poderia ter a impressão de que apenas as situações
por ele citadas no texto legal possuíam o valor que ele visou proteger,
quando, em verdade, outras situações possuem esse mesmo valor, apesar da
sua ignorância conceitual nesse sentido. Ou seja, o fato de o legislador ter
citado apenas uma ou algumas circunstâncias fáticas no texto normativo
não significa que outras situações fáticas não citadas não possam ter a si
estendido o regime jurídico em questão por um suposto “limite literal”
oriundo da Separação de Poderes. As situações de fato que o texto
normativo deixou de citar apenas não receberão o mesmo tratamento
jurídico daquelas expressamente citadas se não possuírem o mesmo valor
(elemento essencial) que ensejou a proteção destas pelo texto legal. Disso
não ocorrerá afronta à Separação dos Poderes em razão de ser o Direito uma
ciência valorativa, que protege valores e não fatos isoladamente
considerados.
O mesmo ocorre quanto ao limite da “finalidade do legislador”. Isso
porque, como dito, a legislação protege valores e não meros fatos
isoladamente considerados. Afinal, a proteção de um valor cria um caráter
abstrato e indeterminado na norma, que, por sua vez, abarca todos os fatos
possuidores de dito valor, evitando subjetivismos e caprichos pessoais do
legislador quando da elaboração da legislação em geral, que certamente
ocorreriam caso se permitisse que ele protegesse uma situação em
detrimento de outra, apesar de serem elas idênticas ou análogas, assim, é
obrigatória a extensão do regime jurídico destinado a uma situação descrita
pelo texto da norma a outras que a ela sejam idênticas ou análogas (mas não
tenham sido expressamente citadas pelo texto normativo), por interpretação
extensiva ou analogia, por força da isonomia.
Entendimento em sentido contrário tornaria inúteis os institutos da
interpretação extensiva e da analogia, que visam justamente garantir que
situações absolutamente idênticas ou então idênticas no essencial àquela(s)
citada(s) pelo(s) texto(s) normativo(s), mas que, por algum motivo não
foram expressamente citadas/regulamentadas recebam o mesmo tratamento
jurídico daquelas que o foram, justamente por possuírem o mesmo valor
que ensejou a normatização do regime jurídico em questão.
Assim, considerando os termos do art. 4.º da Lei de Introdução às
Normas do Direito Brasileiro75 e do art. 126 do Código de Processo
Civil76, fica evidente o poder-dever de extensão a determinada situação
fática não citada pelo texto normativo do mesmo regime jurídico conferido
àquela expressamente citada, quando idêntica, por meio da interpretação
conforme a Constituição, em decorrência da isonomia constitucionalmente
consagrada – lembrando aos críticos da legitimidade democrática do
Judiciário que foi o Legislador democraticamente eleito que criou os
institutos da interpretação extensiva e da analogia, expressamente previstos
na legislação.
Afinal, considerando que a interpretação extensiva e a analogia são
sucedâneos do princípio da igualdade, no sentido de garantirem aos iguais e
aos fundamentalmente iguais o mesmo tratamento jurídico, então a
interpretação conforme configura-se como técnica necessária para garantir
dita isonomia jurídica, não havendo nenhum problema e nenhuma afronta
ao “limite da literalidade” e ao “limite da finalidade do legislador” aqui
explicitados77.
Note-se que é impossível descobrir a efetiva vontade do legislador pelo
fato de o projeto de lei nunca ser fruto da vontade de apenas uma pessoa,
mas de uma série de parlamentares com interesses e opiniões por vezes
totalmente díspares com relação ao tema, donde não se pode deixar de
concordar com o fato de que o texto normativo, uma vez aprovado, assume
vida própria, independentemente da vontade daqueles que o aprovaram,
sendo que é da interpretação do texto normativo que se extrairá a norma
aplicável78.
Na verdade, seguindo ou não a “vontade do legislador”, deve restar
claro que este só pode proteger valores por intermédio das normas jurídicas,
e não meras circunstâncias fáticas. Aceitar um positivismo extremado, no
sentido de conferir ao legislador o poder absoluto de, despoticamente,
proteger uma situação, mas não outra, apesar de idênticas ou então fundadas
no mesmo valor (elemento essencial), significa afrontar violentamente a
isonomia constitucionalmente consagrada, que determina o tratamento
igualitário dessas situações, sendo esta a razão de só poderem ser aceitos
com as reservas supraexpostas esses “limites da literalidade e da finalidade
do legislador” no que tange à interpretação conforme. Entendimento
contrário ao aqui defendido significa, em verdade, admitir posturas
totalitárias, absolutamente arbitrárias por ilógicas, irracionais, sem nenhuma
razoabilidade ou proporcionalidade, como as ocorridas no positivismo
extremado do nazi-fascismo.
Sobre o tema, vale citar o voto do Ministro Gilmar Mendes79 no
julgamento da ADPF 132 e da ADI 4.277, no qual reconheceu que a
jurisprudência do STF não se atenta à vontade do legislador quando realiza
a interpretação conforme à Constituição, mas apenas aos limites literais do
texto normativo, consoante os diversos julgados que cita, senão vejamos:

A prática demonstra que o Tribunal não confere maior significado


à chamada intenção do legislador, ou evita investigá-la, se a
interpretação conforme à Constituição se mostra possível dentro dos
limites da expressão literal do texto (Rp 1.454, Rel. Min. Otávio
Gallotti, RTJ, 125:997; Rp. 1.389, Rel. Min. Oscar Corrêa, RTJ
126:514; Rp. 1.399, Rel. Min. Aldir Passarinho, DJ 9 set. 1988). (...) O
Supremo Tribunal Federal, quase sempre imbuído do dogma
kelseniano do legislador negativo, costuma adotar uma posição de self-
restraint ao se deparar com situações em que a interpretação conforme
possa descambar para uma decisão corretiva da lei (ADI 2.405-RS,
Rel. Min. Carlos Britto, DJ 17.02.2006; ADI 1.344, Rel. Min. Moreira
Alves, DJ 19.04.1996; Rp 1.417-DF, Rel. Min. Moreira Alves, DJ
15.04.1988). Ao se analisar detidamente a jurisprudência do Tribunal,
no entanto, é possível verificar-se que, em muitos casos, a Corte não se
atenta para os limites, sempre imprecisos, entre a interpretação
conforme delimitada negativamente pelos sentidos literais do texto e a
decisão interpretativa modificativa desses sentidos originais postos
pelo legislador (ADI 3.324, ADI 3.046, ADI 2.652, ADI 1.946, ADI
2.209, ADI 2.596, ADI 2.332, ADI 2.084, ADI 1.797, ADI 2.087, ADI
1.668, ADI 1.344, ADI 2.405, ADI 1.105, ADI 1.127). No julgamento
das ADIs 1.105 e 1.127, ambas de relatoria do Min. Marco Aurélio, o
Tribunal, ao conferir interpretação conforme à Constituição a vários
dispositivos do Estatuto da Advocacia (Lei 8.906/1994), acabou
adicionando-lhes novo conteúdo normativo, convolando a decisão em
verdadeira interpretação corretiva da lei (ADIn 1.105-DF e ADIn
1.127, rel. orig. Min. Marco Aurélio, rel. p/ o acórdão Min. Ricardo
Lewandowski). Em outros vários casos mais antigos (ADI 3.324, ADI
3.046, ADI 2.652, ADI 1.946, ADI 2.209, ADI 2.596, ADI 2.332, ADI
2.084, ADI 1.797, ADI 2.087, ADI 1.668, ADI 1.344, ADI 2.405, ADI
1.105, ADI 1.127), também é possível verificar-se que o Tribunal, a
pretexto de dar interpretação conforme à Constituição a determinados
dispositivos, acabou proferindo o que a doutrina constitucional,
amparada na prática da Corte Constitucional italiana, tem denominado
de decisões manipulativas de efeitos aditivos (...). Portanto, é certo que
o Supremo Tribunal Federal já está se livrando do vetusto dogma do
legislador negativo, aliando-se, assim, à mais progressiva linha
jurisprudencial das decisões interpretativas com eficácia aditiva, já
adotada pelas principais Cortes Constitucionais do mundo. A assunção
de uma atuação criativa pelo Tribunal pode ser determinante para a
solução de antigos problemas relacionados à inconstitucionalidade por
omissão, que muitas vezes causa entraves para a efetivação de direitos
e garantias fundamentais assegurados pelo texto constitucional. (...) Eu
comemoro e comungo também desse entendimento. É sabido que sou
um crítico ferrenho daquele argumento de que, quando em vez,
lançamos mão: de que não podemos fazer isto ou aquilo porque
estamos nos comportando como legislador positivo ou coisa que o
valha. Não há nenhuma dúvida de que aqui o Tribunal está assumindo
um papel ativo, ainda que provisoriamente, pois se espera que o
legislador autêntico venha a atuar. Mas é inequívoco que o Tribunal
está dando uma resposta de caráter positivo. Na verdade, essa
afirmação – eu já tive oportunidade de destacar – tem de ser
relativizada diante de pretensões que envolvem a produção de norma
ou a produção de um mecanismo de proteção. Deve haver aí uma
resposta de caráter positivo. E se o sistema jurídico, de alguma forma,
falha na composição desta resposta aos cidadãos, e se o Poder
Judiciário é chamado, de alguma forma, a substituir o próprio sistema
político nessa inação, óbvio que a resposta só pode ser de caráter
positivo. É certo que essa própria afirmação já envolve certo engodo
metodológico. Eu diria que até a fórmula puramente anulatória,
quando se cassa uma norma por afirmá-la inconstitucional – na linha
tradicional de Kelsen –, já envolve também uma legislação positiva no
sentido de se manter o status quo, um modelo jurídico contrário à
posição que estava anteriormente em vigor.

Como se vê, no mínimo estamos vivenciando uma revisitação ao tema


dos limites da interpretação conforme à Constituição para entender que
somente os limites semânticos do texto constituiriam óbice à atribuição de
uma interpretação que adequasse o texto normativo à Constituição, não
assumindo relevância a vontade subjetiva do legislador concreto para o
tema, pois, como dito acima, a legislação protege valores e não meros fatos
isoladamente considerados, donde a proteção de um valor cria um caráter
abstrato e indeterminado na norma, que, por sua vez, abarca todos os fatos
possuidores de dito valor, em que é obrigatória a extensão do regime
jurídico destinado a uma situação descrita pelo texto da norma a outras que
a ela sejam idênticas ou análogas (mas não tenham sido expressamente
citadas pelo texto normativo), por interpretação extensiva ou analogia, de
sorte a se evitarem subjetivismos e caprichos pessoais do legislador quando
da elaboração da legislação em geral, que certamente ocorreriam caso se
permitisse que ele protegesse uma situação em detrimento de outra, apesar
de serem elas idênticas ou análogas, por força da isonomia.

2.4 Da diferença entre a interpretação conforme a Constituição e a


declaração parcial de nulidade sem redução de texto de lei
Em decorrência do fato de a interpretação conforme ter sido criada no
âmbito jurisprudencial, sem contornos legislativos claros para tanto,
acabou-se, de início, tratando-a como sinônimo de “declaração parcial de
nulidade sem redução de texto de lei”, sendo que a própria jurisprudência
do Supremo Tribunal Federal já decidiu dessa forma.
Contudo, no caso brasileiro, considerando que o parágrafo único do art.
28 da Lei 9.868/1999 diferenciou ditos institutos (apesar de não conceituá-
los), essa equiparação já não se afigura possível em nosso ordenamento
jurídico, apesar de apresentarem certas similitudes – pelo menos em função
do célebre brocardo segundo o qual “a lei não possui palavras inúteis”, pois
restaria inútil uma das expressões do citado artigo legal caso ambas
tivessem atribuído a si o mesmo significado jurídico. Tendo isso em mente,
cabe diferenciá-las.
Na interpretação conforme, a lei se apresenta como manifestamente
inconstitucional, em decorrência da discriminação arbitrária ou outra
afronta à Constituição decorrente de sua interpretação meramente literal
(gramatical). Por outro lado, na declaração de nulidade parcial sem redução
de texto, a lei se apresenta como aparentemente constitucional, sendo que
apenas algumas de suas variantes interpretativas afiguram-se como
inconstitucionais.
Essa diferença gera uma consequência considerável na decisão judicial
respectiva: sendo adotada a declaração de nulidade sem redução de texto,
são proibidas determinadas variantes interpretativas da lei em questão –
afinal, como a lei é substancialmente constitucional, então são vedadas
apenas as possíveis interpretações que se mostrem inconstitucionais. Por
outro lado, sendo adotada a interpretação conforme, é fixada a única
interpretação válida perante a Constituição Federal, sendo todas as demais
tidas como inconstitucionais80.

3. SÍNTESE CONCLUSIVA DO CAPÍTULO


O princípio da dignidade da pessoa humana estabelece que todos são
merecedores de igual proteção de sua dignidade pelo simples fato de serem
pessoas humanas. Garante a todos, ainda, o direito de busca da felicidade,
desde que não prejudiquem outros nesse processo. Dessa forma, todos os
cidadãos são merecedores da garantia da mesma dignidade pelo
ordenamento jurídico: nem mais, nem menos.
Todavia, as demandas jurídicas em geral põem em confronto as
dignidades de pelo menos duas pessoas (autor e réu), uma vez que todos os
direitos fundamentais têm, além de seu próprio conteúdo essencial, um
conteúdo maior ou menor de proteção à dignidade humana que os
justificam. Por essa razão, admite-se a relativização do princípio da
dignidade da pessoa humana, caso contrário seria impossível ao juiz decidir
o litígio. Mas, para tanto, deve o magistrado (assim como o legislador e o
aplicador do Direito) valer-se do aspecto material da isonomia, que
necessariamente deve respeitar o princípio da proporcionalidade. Ou seja,
para que seja válida a relativização da dignidade humana de um em relação
à de outro(s), deve haver um fundamento lógico-racional que a justifique e
tal medida deve ser adequada, necessária e proporcional em sentido estrito,
sob pena de inconstitucionalidade por afronta aos princípios da dignidade
da pessoa humana, da isonomia e da proporcionalidade.
Por sua vez, a interpretação conforme a Constituição é um mecanismo
de controle de constitucionalidade que visa garantir que determinado texto
normativo que possua mais de uma interpretação possível, sendo apenas
uma delas constitucional e as demais inconstitucionais, tenha a si atribuída
apenas a interpretação constitucional, uma vez presentes os requisitos da
necessidade e da utilidade. Nesse sentido, há um equívoco na sua
equiparação com a declaração parcial de nulidade sem redução de texto de
lei, porque nesta é proibido o uso de determinadas interpretações
inconstitucionais, ao passo que na interpretação conforme o julgador define
a única interpretação constitucionalmente válida. Ou seja, no primeiro caso
tem-se mais de uma interpretação constitucionalmente válida, ao passo que,
no segundo, tem-se apenas uma que o seja. Considerando que ambas as
expressões estão previstas no art. 28 da Lei 9.868/1999, entendimento em
sentido contrário que desse a ambas o mesmo significado jurídico tornaria
inútil uma das expressões, em afronta ao célebre princípio geral de Direito
segundo o qual “a lei não possui palavras inúteis”, sendo este mais um
motivo para diferenciá-las.
Quanto aos limites da interpretação conforme, a doutrina majoritária
aponta para uma “literalidade do texto normativo” e uma “finalidade do
legislador”, no sentido de que não poderia o intérprete-julgador ultrapassar
o suposto sentido literal do enunciado normativo nem contrariar a
finalidade do legislador o elaborou. Contudo, esses limites só podem ser
aceitos com reservas; pois, considerando que a norma jurídica protege
valores e não fatos arbitrariamente selecionados, tem-se que mesmo que o
legislador não tenha citado expressamente determinada situação fática, se
for idêntica ou, no mínimo, possuir o mesmo valor (elemento essencial) que
conferiu proteção à situação expressamente regulamentada, então o regime
jurídico do texto normativo em questão deverá ser estendido à situação não
citada/não regulamentada pela interpretação extensiva ou pela analogia,
conforme o caso, como decorrência da interpretação conforme a
Constituição, visto serem aquelas técnicas hermenêuticas sucedâneos do
princípio da igualdade constitucionalmente consagrado.

1 “Considerando que o reconhecimento da dignidade inerente a todos os membros da


família humana e de seus direitos iguais e inalienáveis é o fundamento da liberdade,
da justiça e da paz no mundo” (...) Art. 1.º Todos os homens nascem livres e iguais em
dignidade e direitos. São dotados de razão e consciência e devem agir em relação uns
aos outros com espírito de fraternidade” (grifos do original).
2 Neste ponto, afirma Ingo Wolfgang Sarlet (Dignidade da Pessoa Humana e Direitos
Fundamentais na Constituição Federal de 1988, 2.ª Edição, Porto Alegre: Livraria do
Advogado Editora, 2002, p. 37) que: “(...) o fato é que esta – a dignidade da pessoa
humana – continua, talvez mais do que nunca, a ocupar um lugar central no
pensamento filosófico, político e jurídico, do que dá conta a sua já referida qualificação
como valor fundamental da ordem jurídica, para expressivo número de ordens
constitucionais, pelo menos as que nutrem a pretensão de constituírem um Estado
democrático de Direito. Da concepção jusnaturalista – que vivenciava seu apogeu
justamente no século XVIII – remanesce, indubitavelmente, a constatação de que uma
ordem constitucional que – de forma direta ou indireta – consagra a ideia da dignidade
da pessoa humana, parte do pressuposto de que o homem, em virtude tão somente de
sua condição humana e independentemente de qualquer outra circunstância, é titular
de direitos que devem ser reconhecidos e respeitados por seus semelhantes e pelo
Estado” (sem grifo no original).
3 Na lição de Viviane Girardi (Famílias Contemporâneas, Filiação e Afeto: A Possibilidade
Jurídica da Adoção por Homossexuais, 1.a Edição, Porto Alegre: Editora Livraria do
Advogado, 2005, p. 92-93): “(...) como ensina Guilherme Calmon Nogueira da Gama
ao falar das novas posturas do direito contemporâneo de família: ‘Cuida-se de adotar
posturas que sejam coerentes com o significado da própria existência do homem na
Terra, elucidando os mistérios e segredos da pessoa humana e do meio que a
circunda, tentando atingir o bem existencial mais desejado: o bem-estar social ou,
mais individualmente, a felicidade’”, tendo em vista que “Com os auspícios da família
contemporânea de característica plural, fundada na plena igualdade entre os
membros, diárquica quanto à sua direção, ao contrário do modelo anterior que tinha na
figura do pai e marido o chefe absoluto da sociedade conjugal, e eudemonista porque
seus membros possuem um direito moral à felicidade, surge um novo personagem
com voz e fala nesse cenário, qual seja: o filho, a criança, o adolescente, a pessoa
ainda em desenvolvimento” (ibidem, p. 99 – sem grifos no original).
4 Vide Luiz Alberto David Araújo (A proteção constitucional do transexual, 1.a Edição,
São Paulo: Editora Saraiva, 2000, p. 74), para quem: “Não se concebe a ideia de que
o Estado Moderno deva buscar um caminho diferente daquele que pressupõe a
felicidade de seus componentes. O homem se organiza para obter felicidade.
Submete-se ao regramento do Estado, aceita suas regras, paga os impostos, limita-se,
sabendo, no entanto, que os fins dessa associação só podem levar à busca da
felicidade. (...) Ao arrolar e assegurar princípios como o do Estado Democrático, o da
dignidade da pessoa humana e o da necessidade de promoção do bem de todos, sem
qualquer preconceito, o constituinte garantiu o direito à felicidade. Não o escreveu de
forma expressa, mas deixou claro que o Estado, dentro do sistema nacional, tem a
função de promover a felicidade, pois a dignidade, o bem de todos, pressupõe o direito
de ser feliz. Ninguém pode conceber um Estado que tenha como objetivo a promoção
do bem de todos possa colaborar para a infelicidade do indivíduo. Portanto, a
interpretação constitucional leva à busca da felicidade do indivíduo, não de sua
infelicidade. E, como veremos adiante, felicidade pressupõe atenção aos valores da
minoria” (sem grifos no original). Muito embora o entendimento consagrado seja no
sentido de que o contrato social teria existido com fins à garantia da segurança das
pessoas em geral (o que não deixa de ser verdade), este é só um dos aspectos da
questão. As pessoas só se unem para ficar mais seguras porque entendem que, com
isso, terão melhores condições de alcançarem a felicidade. Logo, percebe-se que a
teoria aqui defendida não é contraditória à clássica explicação sobre o contrato social:
ao contrário, a teoria aqui esposada é complementar a esta, por explicar o fundamento
teleológico do contrato social.
5 Viviane Girardi (Famílias Contemporâneas, Filiação e Afeto. A Possibilidade Jurídica da
Adoção por Homossexuais, 1ª Edição, 2005, Porto Alegre: Editora Livraria do
Advogado, p. 48 e 50) afirma que: “A sociedade brasileira, refletida na Constituição de
1988, se pretende mais justa e os direitos fundamentais, de forma explícita no
conteúdo do seu artigo 5.º, afirmaram a proibição de toda e qualquer forma de
preconceito ou discriminação. Festejando a igualdade e tendo como fundamento a
dignidade da pessoa humana, buscou inaugurar um novo momento para o povo
brasileiro, em que a ciência do direito, mais do que garantir, deverá promover direitos
e, assim, efetivar o sentido maior de cidadania. (...) O expresso reconhecimento da
dignidade da pessoa humana como fundamento da República, nas palavras de Sérgio
Ferraz, constitui-se na ‘(...) base da própria existência do Estado Brasileiro e, ao
mesmo tempo, fim permanente de todas as atividades, é a criação e manutenção das
condições para que as pessoas sejam respeitadas, resguardadas e tuteladas em sua
integridade física e moral, assegurados o desenvolvimento e a possibilidade de plena
realização de suas potencialidades e aptidões’ (sem grifos no original).
6 Caracterização jurídica da dignidade da pessoa humana, Revista dos Tribunais, São
Paulo: Editora Revista dos Tribunais, ano 91, vol. 797, 2002.
7 Ibidem, p. 13.
8 Essa posição parece ser a da doutrina majoritária que trata do tema, conforme
reconhecido por Antônio Junqueira de Azevedo e colacionado por Ingo Wolfgang
Sarlet (Dignidade da Pessoa Humana e Direitos Fundamentais na Constituição
Federal de 1988, 2.ª Edição, Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2002, p. 32 e
33): “Construindo sua concepção a partir da natureza racional do ser humano, Kant
sinala que a autonomia da vontade, entendida como a faculdade de determinar a si
mesmo e agir em conformidade com a representação de certas leis, é um atributo
apenas encontrado nos seres racionais, constituindo-se no fundamento da dignidade
da natureza humana. Com base nesta premissa, Kant sustenta que ‘o Homem, e,
duma maneira geral, todo o ser racional, existe como um fim em si mesmo, não
simplesmente como meio para o uso arbitrário desta ou daquela vontade. Pelo
contrário, em todas as suas ações, tanto nas que se dirigem a ele mesmo como nas
que se dirigem a outros seres racionais, ele tem sempre de ser considerado
simultaneamente como um fim... Portanto, o valor de todos os objetos que possamos
adquirir é sempre condicional. Os seres cuja existência depende, não em verdade da
nossa vontade, mas da natureza, têm, contudo, se são seres irracionais, apenas um
valor relativo como meios e por isso se chamam coisas, ao passo que os seres
racionais se chamam pessoas, porque a sua natureza os distingue já como fins em si
mesmos, quer dizer, como algo que não pode ser empregado como simples meio e
que, por conseguinte, limita nessa medida todo o arbítrio (e é um objeto de respeito)’”.
9 AZEVEDO, Antônio Junqueira de. Caracterização jurídica da dignidade da pessoa
humana. Revista dos Tribunais, São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, ano 91, vol.
797, 2002, p. 25.
10 Na qual são colocados animais na frente de um espelho e se verificam quais
conseguem entender que estão olhando para a sua imagem refletida e não para outro
ser – essa experiência demonstrou que os chimpanzés isso entendem; logo, se
autodeterminam.
11 Tanto que, v.g., posiciona-se contrariamente à eutanásia, em juízo de valor cuja
cuidadosa e necessária análise ultrapassa os limites do presente trabalho.
12 AZEVEDO, Antônio Junqueira de. Caracterização jurídica da dignidade da pessoa
humana. Revista dos Tribunais, São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, ano 91, vol.
797, 2002, p. 19.
13 Ibidem, p. 19.
14 Cf. Ingo Wolfgang Sarlet (Dignidade da Pessoa Humana e Direitos Fundamentais na
Constituição Federal de 1988, 2. ª Edição, Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora,
2002, p. 46 a 48), para quem: “Por outro lado, há quem aponte para o fato de que a
dignidade da pessoa humana não deve ser considerada exclusivamente como algo
inerente à natureza humana (no sentido de uma qualidade inata pura e simplesmente),
isto na medida em que a dignidade possui também um sentido cultural, sendo fruto do
trabalho de diversas gerações e da humanidade em seu todo, razão pela qual as
dimensões natural e cultural da dignidade da pessoa se complementam e interagem
mutuamente. (...) É justamente nesse sentido que assume particular relevância a
constatação de que a dignidade da pessoa humana é simultaneamente limite e tarefa
dos poderes estatais e, no nosso sentir, da comunidade em geral, de todos e de cada
um, condição dúplice esta que também aponta para uma paralela e conexa dimensão
defensiva e prestacional da dignidade, que voltará a ser referida oportunamente.
Recolhendo aqui a lição de Podlech, poder-se-á afirmar que, na condição de limite da
atividade dos poderes públicos, a dignidade necessariamente é algo que pertence a
cada um e que não pode ser perdido ou alienado, porquanto deixando de existir, não
haveria mais limite a ser respeitado (este sendo considerado o elemento fixo e
imutável da dignidade). Como tarefa (prestação) imposta ao Estado, a dignidade da
pessoa reclama que este guie as suas ações tanto no sentido de preservar a
dignidade existente, quanto objetivando a promoção da dignidade, especialmente
criando condições que possibilitem o pleno exercício e fruição da dignidade, sendo
portanto dependente (a dignidade) da ordem comunitária, já que é de se perquirir até
que ponto é possível ao indivíduo realizar, ele próprio, parcial ou totalmente, suas
necessidades existenciais básicas ou se necessita, para tanto, do concurso do Estado
ou da comunidade (este seria, portanto, o elemento mutável da dignidade)” (sem grifos
no original).
15 SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais, 6.a Edição, Porto
Alegre: Editora Livraria do Advogado, 2006, p. 118-119 e 121: “Inicialmente, cumpre
salientar que a dignidade, como qualidade intrínseca da pessoa humana, é algo que
simplesmente existe, sendo irrenunciável e inalienável, na medida em que constitui
elemento que qualifica o ser humano como tal e dele não pode ser destacado, de tal
sorte que não se pode cogitar na possibilidade de determinada pessoa ser titular de
uma pretensão a que lhe seja concedida a dignidade. Esta, portanto, como elemento
integrante e irrenunciável da natureza da pessoa humana, é algo que se reconhece,
respeita e protege, mas não que possa ser criado ou lhe possa ser retirado, já que
existe em cada ser humano como algo que lhe é inerente. Não é, portanto, sem razão
que se sustentou até mesmo a desnecessidade de uma definição jurídica da dignidade
da pessoa humana, na medida em que, em última análise, se cuida do valor próprio,
da natureza do ser humano como tal. Além disso, como já visto, não se deve olvidar
que a dignidade independe das circunstâncias concretas, sendo algo inerente a toda e
qualquer pessoa humana, de tal sorte que todos, mesmo o maior dos criminosos – são
iguais em dignidade. Na formulação feliz de Jorge Miranda, o fato de os seres
humanos (todos) serem dotados de razão e consciência representa justamente o
denominador comum a todos os homens e que expressa em que consiste sua
igualdade. (...) Nesta mesma linha, situa-se a doutrina de Günter Dürig (...). Segundo
este renomado autor, a dignidade da pessoa humana consiste no fato de que ‘cada ser
humano é humano por força de seu espírito, que o distingue da natureza impessoal e
que o capacita para, com base em sua própria decisão, tornar-se consciente de si
mesmo, de autodeterminar sua conduta, bem como de formatar a sua existência e o
meio que o circunda’. À luz do que dispõe a Declaração Universal da ONU, bem como
dos entendimentos citados a título exemplificativo, verifica-se que o elemento nuclear
da dignidade da pessoa humana parece residir – e a doutrina majoritária conforta este
entendimento – primordialmente na autonomia e no direito de autodeterminação da
pessoa (de cada pessoa). Importa, contudo, ter presente a circunstância de que esta
liberdade (autonomia) é considerada em abstrato, como sendo a capacidade potencial
que cada ser humano tem de autodeterminar sua conduta, não dependendo da sua
efetiva realização no caso da pessoa em concreto, de tal sorte que também o
absolutamente incapaz (por exemplo, o portador de grave deficiência mental) possui
exatamente a mesma dignidade que qualquer outro ser humano física e mentalmente
capaz. (...) Com base em tudo que até agora foi exposto, verifica-se que reduzir a uma
fórmula abstrata e genérica aquilo que constitui o conteúdo da dignidade da pessoa
humana, em outras palavras, seu âmbito de proteção, não parece ser possível, a não
ser mediante a devida análise no caso concreto. Como ponto de partida, vale citar a
fórmula desenvolvida na Alemanha por G. Dürig, para quem a dignidade da pessoa
humana poderia ser considerada atingida sempre que a pessoa concreta (o indivíduo)
fosse rebaixada a objeto, a mero instrumento, tratada como uma coisa, em outras
palavras, na descaracterização da pessoa humana como sujeito de direitos. Esta
fórmula, por evidente, não oferece uma solução global para o problema (já que não
define previamente o que deve ser protegido), mas permite a verificação, no caso
concreto, da existência de uma efetiva agressão contra a dignidade da pessoa
humana, fornecendo, ao menos, uma direção a ser seguida” (sem grifos no original)
No mesmo sentido, reiterando o citado posicionamento: SARLET, Ingo Wolfgang. As
dimensões da dignidade da pessoa humana: construindo uma compreensão jurídico-
constitucional necessária e possível, in SARLET, Ingo Wolfgang (org.), Dimensões de
Dignidade: Ensaios de Filosofia do Direito e Direito Constitucional, Porto Alegre:
Editora Livraria do Advogado, 2005, p. 21-22.
16 SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da Pessoa Humana e Direitos Fundamentais na
Constituição Federal de 1988, 2.ª Edição, Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora,
2002, p. 115.
17 Ibidem, p. 117.
18 No original (ibidem, p. 70 e 74): “(...) Inspirando-se – neste particular – especialmente
no constitucionalismo lusitano e hispânico, o Constituinte de 1988 preferiu não incluir a
dignidade da pessoa humana no rol dos direitos e garantias fundamentais, guindando-
a, pela primeira vez – consoante já reiteradamente frisado – à condição de princípio (e
valor) fundamental (artigo 1.º, inciso III). (...) a qualificação da dignidade da pessoa
humana como princípio fundamental traduz a certeza de que o artigo 1.º, inciso III, de
nossa Lei Fundamental não contém apenas (embora também e acima de tudo) uma
declaração de cunho ético e moral, mas que constitui norma jurídico-positiva dotada,
em sua plenitude, de status constitucional formal e material e, como tal,
inequivocamente carregado de eficácia, alcançando, portanto – tal como sinalizou
Benda – a condição de valor jurídico fundamental da comunidade. Importa considerar,
neste contexto, que, na sua qualidade de princípio fundamental, a dignidade da
pessoa humana constitui valor-guia não apenas dos direitos fundamentais mas de toda
a ordem jurídica (constitucional e infraconstitucional), razão pela qual, para muitos, se
justifica plenamente sua caracterização como princípio constitucional de maior
hierarquia axiológico-normativa (höchstes wertsetzendes Verfassungsprinzip) (sem
grifos no original).
19 Ou, ao menos, a sua maior parte, sendo os demais oriundos de outros princípios
fundamentais da Carta da República.
20 “Art. 5.º, § 2.º: Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem
outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados
internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte.”
21 Vide, nesse sentido: SARLET, Ingo Wolfgang, Dignidade da Pessoa Humana e
Direitos Fundamentais na Constituição Federal de 1988, 2.ª Edição, Porto Alegre:
Livraria do Advogado Editora, 2002, p. 104 e ss. Vale aqui ressaltar, como o faz o
autor, que o fato de um direito humano fundamental possuir conteúdo em dignidade da
pessoa humana não significa, em hipótese alguma, que esse direito confunde-se com
a noção de dignidade da pessoa humana. Ainda que exista quem defenda o contrário,
tem-se que, apesar de esses direitos fundamentais já estarem impregnados de certa
quantia de dignidade humana em seu conteúdo, têm eles conteúdo essencial distinto
do conteúdo essencial da dignidade humana, sendo esta a razão que os diferencia e
inclusive que possibilita deduzir-se autonomamente da dignidade humana (ou seja,
sem a necessidade de apelar a um dos direitos fundamentais), nas palavras do citado
autor, “pretensões jurídico-subjetivas fundamentais”.
22 Nesse sentido, a advertência do autor (ibidem, p. 100, 102-104) no sentido de que:
“Nesta quadra, um dos maiores desafios para quem se ocupa do estudo da abertura
material do catálogo dos direitos e garantias é justamente o de identificar quais os
critérios que poderão servir de fundamento para a localização daquelas posições
jurídico-fundamentais como tais não expressamente designadas pelo Constituinte. (...)
Aplica-se aqui a concepção subjacente ao pensamento de Laurence Tribe, no sentido
de que a dignidade (assim como a Constituição) não deve ser tratada como um
espelho no qual todos veem o que desejam ver, pena de a própria noção de dignidade
e sua força normativa ser banalizada e esvaziada. O que se pretende demonstrar,
nesse contexto, é que o princípio da dignidade da pessoa humana assume posição de
destaque, servindo como diretriz material para a identificação de direitos implícitos
(tanto de cunho defensivo como prestacional) e, de modo especial, sediados em
outras partes da Constituição. (...) Assim, o fato é que – e isto temos por certo –
sempre que se puder detectar, mesmo para além de outros critérios que possam incidir
na espécie, estamos aqui diante de uma posição jurídica diretamente embasada e
relacionada (no sentido de essencial à sua proteção) à dignidade da pessoa,
inequivocamente estaremos diante de uma norma de direito fundamental, sem
desconsiderar a evidência de que tal tarefa não prescinde do acurado exame de cada
caso (sem grifos no original).
23 Ibidem, p. 123 e seguintes.
24 Cumpre ressaltar que Ingo Sarlet ressalva a possibilidade de se entender que, a partir
do pressuposto de que o núcleo essencial dos direitos fundamentais não se confunde
necessariamente com seu conteúdo em dignidade (isso naqueles direitos que têm na
dignidade humana seu fundamento mediato), ter-se-ia, nesse caso, uma restrição do
direito à liberdade da pessoa com sua prisão, sem descurar do fato de que, mesmo
tolhida de sua liberdade, a pessoa merece receber um tratamento digno do Estado
(ibidem, p. 139). Todavia, parece-me que uma pessoa que viva em uma prisão acaba
por ter uma vida menos digna que uma pessoa que viva em liberdade, na medida em
que uma vida digna não se afigura possível em um ambiente sem privacidade e
mesmo intimidade, como nos presídios (ainda que o núcleo essencial da dignidade da
pessoa humana não se confunda com o dos direitos fundamentais em geral, pelo
menos estes aqui citados, que constituem concretização da dignidade humana, razão
pela qual uma vida sem privacidade e intimidade acaba sendo menos digna do que a
vida com tais condições).
25 Ibidem, p. 129.
26 Ibidem, p. 120.
27 Esta parece ser a posição de Ingo Wolfgang Sarlet quando afirma que: “Assim,
considerando que também o princípio isonômico (no sentido de tratar os desiguais de
forma desigual) é, por sua vez, corolário direto da dignidade, forçoso admitir – pena de
restarem sem solução boa parte dos casos concretos – que a própria dignidade
individual acaba, ao menos de acordo com o que admite parte da doutrina
constitucional contemporânea, por admitir certa relativização, desde que justificada
pela necessidade de proteção da dignidade de terceiros, especialmente quando se
trata de resguardar a dignidade de todos os integrantes de uma determinada
comunidade” (ibidem, p. 133-134 – sem grifo no original).
28 BARROSO, Luís Roberto. “Here, there and everywhere”. Human Dignity in
contemporary law and in the transnational discourse, pp. 70-71. Disponível em:
<http://ssrn.com/abstract=1945741> (último acesso em: 08 jan. 2012).
29 Cf. ARAUJO, Luiz Alberto David. A proteção constitucional do transexual, 1.a Edição,
São Paulo: Editora Saraiva, 2000, p. 74 (trecho original já transcrito em nota anterior).
30 Nesse sentido, Ingo Wolfgang Sarlet (As dimensões da dignidade da pessoa humana:
construindo uma compreensão jurídico-constitucional necessária e possível, in:
SARLET, Ingo Wolfgang (org.), Dimensões de Dignidade: Ensaios de Filosofia do
Direito e Direito Constitucional, Porto Alegre: Editora Livraria do Advogado, 2005, p.
23) apesar de afirmar que “a própria dimensão ontológica (embora não
necessariamente biológica) da dignidade assume seu pleno significado em função do
contexto da intersubjetividade que marca todas as relações humanas e, portanto,
também o reconhecimento dos valores (assim como princípios e direitos fundamentais)
socialmente consagrados pela e para a comunidade de pessoas humanas”, afirma,
com base em Pérez Luño, que se “sustenta uma dimensão intersubjetiva da dignidade,
partindo da situação básica do ser humano em sua relação com os demais (do ser
com os outros), em vez de fazê-lo em função do homem singular, limitado a sua esfera
individual sem que com isto – importa frisá-lo desde logo – se esteja a advogar a
justificação de sacrifícios da dignidade pessoal em prol da comunidade, no sentido de
uma funcionalização da dignidade” (sem grifo no original).
31 HÄBERLE, Peter. A dignidade humana como fundamento da comunidade estatal,
Tradução de Ingo W. Sarlet e Pedro Scherer de Mello Aleixo, in: SARLET, Ingo
Wolfgang (org.), Dimensões de Dignidade: Ensaios de Filosofia do Direito e Direito
Constitucional, Porto Alegre: Editora Livraria do Advogado, 2005, p. 126.
32 Nesse sentido, a lição de J. C. Gonçalves Loureiro, para quem “a dignidade da pessoa
humana – no âmbito de sua perspectiva intersubjetiva – implica uma obrigação geral
de respeito pela pessoa (pelo seu valor intrínseco como pessoa), traduzida num feixe
de deveres e direitos correlativos, de natureza não meramente instrumental, mas sim,
relativos a um conjunto de bens indispensáveis ao ‘florescimento humano’”
(LOUREIRO, J. C. Gonçalves, O Direito à Identidade Genética do Ser Humano, p. 281,
apud SARLET, Ingo Wolfgang. As dimensões da dignidade da pessoa humana:
construindo uma compreensão jurídico-constitucional necessária e possível, in
SARLET, Ingo Wolfgang (org.), Dimensões de Dignidade: Ensaios de Filosofia do
Direito e Direito Constitucional, Porto Alegre: Editora Livraria do Advogado, 2005, p.
24).
33 Ibidem, p. 24-25 (sem grifo no original).
34 Ibidem, p. 26 (sem grifo no original).
35 Ibidem, p. 32 (sem grifo no original).
36 Ibidem, p. 27.
37 Em sentido similar, por eles melhor trabalhado, afirmam José Joaquim Gomes
Canotilho e Vital Moreira (CRP – Constituição da República Portuguesa Anotada, 1.a
Edição brasileira, 4.a Edição portuguesa, Coimbra: Coimbra Editora e São Paulo:
Editora Revista dos Tribunais, 2007, p. 609) que a liberdade de consciência “é a
convicção ética e a autónoma responsabilidade reivindicada por qualquer indivíduo
para justificar o seu comportamento”, ou seja, “a liberdade de formação das próprias
convicções (forum internum)” e a “exteriorização da decisão de consciência (forum
externum)”.
38 SARLET, Ingo Wolfgang. As dimensões da dignidade da pessoa humana: construindo
uma compreensão jurídico-constitucional necessária e possível, in: SARLET, Ingo
Wolfgang (org.), Dimensões de Dignidade: Ensaios de Filosofia do Direito e Direito
Constitucional, Porto Alegre: Editora Livraria do Advogado, 2005, p. 34-35.
39 ADPF 132 e ADI 4.277, voto do Ministro Marco Aurélio, pp. 11-12.
40 ADPF 132 e ADI 4.277, voto do Ministro Celso de Mello, p. 35, 36 e 37-38 – grifos
nossos.
41 Ibidem, p. 37 (sem grifos no original).
42 KANT apud SEELMAN, Kurt. Pessoa e dignidade da pessoa humana na filosofia de
Hegel, Tradução de Rita Dostal Zanini in: SARLET, Ingo Wolfgang (org.), Dimensões
de Dignidade: Ensaios de Filosofia do Direito e Direito Constitucional, Porto Alegre:
Editora Livraria do Advogado, 2005, p. 46.
43 Ibidem, p. 47.
44 Cf. MAURER, Béatrice. Notas sobre o respeito da dignidade da pessoa humana… ou
pequena fuga incompleta em torno de um tema central, Tradução de Rita Dostal
Zandini, in: SARLET, Ingo Wolfgang (org.), Dimensões de Dignidade: Ensaios de
Filosofia do Direito e Direito Constitucional, Porto Alegre: Editora Livraria do Advogado,
2005, p. 83.
45 SEELMAN, Kurt. Pessoa e dignidade da pessoa humana na filosofia de Hegel,
Tradução de Rita Dostal Zanini, in: SARLET, Ingo Wolfgang (org.), Dimensões de
Dignidade: Ensaios de Filosofia do Direito e Direito Constitucional, Porto Alegre:
Editora Livraria do Advogado, 2005, p. 76.
46 Vale aclarar que este não é o conceito de moral de Kant, para quem o agir de forma
moral está relacionado ao imperativo categórico, ou seja (e parafraseando), agir de tal
forma que sua conduta possa ser universalizada. Claro, exigir que as pessoas ajam
apenas de tal forma que suas condutas possam ser universalizadas acaba por abrir
espaço para totalitarismos, ou seja, imposição de uma homogeneidade de condutas
incompatível com o pluralismo social do mundo contemporâneo. Não estou dizendo
que Kant tinha esse ideal totalitário em mente, de forma alguma, o que digo é que
essa exigência pode levar a alguma espécie de totalitarismo, o que imagino que não
tenha sido percebido por Kant.
47 Meu conceito de racionalidade deriva de uma construção a partir das conceituações
do Dicionário Houaiss, para o qual razão significa a “faculdade de raciocinar, de
apreender, de compreender, de ponderar, de julgar (...) raciocínio que conduz à
indução ou dedução de algo (...) capacidade de avaliar com correção, com
discernimento; bom-senso, juízo (...) justificação de um ato; explicação de um fato;
argumento, motivo” (Dicionário Houaiss da língua portuguesa, Rio de Janeiro, 2.a
reimpressão com alterações, 2007, p. 2389); raciocinar implica “fazer uso da razão
para estabelecer relações entre (coisas e fatos), para entender, calcular, deduzir, julgar
(algo); refletir (...) apresentar razões, ponderar” (ibidem, p. 2373); sendo, portanto,
racional aquilo “em que há coerência, lógica (...) que demonstra bom-senso ou juízo
ponderado; sensato” (ibidem, p. 2373).
48 SEELMAN, Kurt. Pessoa e dignidade da pessoa humana na filosofia de Hegel,
Tradução de Rita Dostal Zanini, in: SARLET, Ingo Wolfgang (org.), Dimensões de
Dignidade: Ensaios de Filosofia do Direito e Direito Constitucional, Porto Alegre:
Editora Livraria do Advogado, 2005, p. 53. Ainda segundo a concepção hegeliana:
“Aquele que não reconhece o outro como livre, isto é, não o reconhece como igual na
competência da titularidade de direitos ou como indivíduo particular com suas
necessidades específicas, degrada-o” (ibidem, p. 54-55). Ademais, “Sua concepção de
dignidade da pessoa humana deixa-se compreender, mais provavelmente, como uma
diretriz no sentido da proteção da possibilitação de realizar prestações – e não como
uma compensação por tais prestações. O reconhecimento recíproco é o fundamento
da dignidade e, ao mesmo tempo, a consequência por um estado juridicamente
ordenado” (ibidem, p. 59).
49 CHAUNU apud MAURER, Béatrice. Notas sobre o respeito da dignidade da pessoa
humana… ou pequena fuga incompleta em torno de um tema central, Tradução de
Rita Dostal Zandini, in: SARLET, Ingo Wolfgang (org.), Dimensões de Dignidade:
Ensaios de Filosofia do Direito e Direito Constitucional, Porto Alegre: Editora Livraria
do Advogado, 2005, p. 78.
50 Ibidem, p. 79.
51 MAURER, Béatrice. Notas sobre o respeito da dignidade da pessoa humana… ou
pequena fuga incompleta em torno de um tema central, Tradução de Rita Dostal
Zandini, in: SARLET, Ingo Wolfgang (org.), Dimensões de Dignidade: Ensaios de
Filosofia do Direito e Direito Constitucional, Porto Alegre: Editora Livraria do Advogado,
2005, p. 80.
52 Ibidem, p. 81.
53 Ibidem, p. 85.
54 BverfGE 24, 119 (144) apud HÄBERLE, Peter. A dignidade humana como fundamento
da comunidade estatal, Tradução de Ingo W. Sarlet e Pedro Scherer de Mello Aleixo,
in: SARLET, Ingo Wolfgang (org.), Dimensões de Dignidade: Ensaios de Filosofia do
Direito e Direito Constitucional, Porto Alegre: Editora Livraria do Advogado, 2005, p.
100 (em nota de rodapé).
55 DÜRIG apud HÄBERLE, Peter. A dignidade humana como fundamento da
comunidade estatal, Tradução de Ingo W. Sarlet e Pedro Scherer de Mello Aleixo, in:
SARLET, Ingo Wolfgang (org.), Dimensões de Dignidade: Ensaios de Filosofia do
Direito e Direito Constitucional, Porto Alegre: Editora Livraria do Advogado, 2005, p.
119.
56 PODLECH apud HÄBERLE, Peter. A dignidade humana como fundamento da
comunidade estatal, Tradução de Ingo W. Sarlet e Pedro Scherer de Mello Aleixo, in:
SARLET, Ingo Wolfgang (org.), Dimensões de Dignidade: Ensaios de Filosofia do
Direito e Direito Constitucional, Porto Alegre: Editora Livraria do Advogado, 2005, p.
123 (sem grifos no original).
57 HÄBERLE, Peter. A dignidade humana como fundamento da comunidade estatal,
Tradução de Ingo W. Sarlet e Pedro Scherer de Mello Aleixo, in: SARLET, Ingo
Wolfgang (org.), Dimensões de Dignidade: Ensaios de Filosofia do Direito e Direito
Constitucional, Porto Alegre: Editora Livraria do Advogado, 2005, p. 132-133 (sem
destaques no original).
58 Ibidem, p. 137.
59 KOEPFLER, Michael. Vida e dignidade da pessoa humana. Tradução de Rita Dostal
Zanini, in: SARLET, Ingo Wolfgang (org.), Dimensões de Dignidade: Ensaios de
Filosofia do Direito e Direito Constitucional, Porto Alegre: Editora Livraria do Advogado,
2005, p. 163.
60 RAWLS apud VIEIRA, Oscar Vilhena. A Constituição como reserva de justiça, Lua
Nova, n. 42, p. 62.
61 MENDES, Gilmar Ferreira, COELHO, Inocêncio Mártires e BRANCO, Paulo Gustavo
Gonet. Curso de Direito Constitucional, 1.a Edição, São Paulo: Editora Saraiva, 2007,
p. 403 (posição de Paulo Gustavo Gonet Branco).
62 Ibidem, p. 403.
63 Peço que não se desafie a inteligência dizendo que isso faria que se permitissem atos
obscenos, como muitos opositores do Projeto de Lei da Câmara 122/06 fazem (o PLC
122/06 visa criminalizar a discriminação por orientação sexual e por identidade de
gênero, incluindo ditas discriminações no tipo penal de racismo, projeto este já
aprovado na Câmara dos Deputados e que aguarda votação pelo Senado). Ora, é
mais do que evidente que a proibição à repressão da manifestação da afetividade dos
casais homoafetivos visa garantir a estes que manifestem publicamente seu afeto da
mesma forma que é permitido a casais heteroafetivos manifestarem – nem mais, nem
menos, donde, como não se permitem atos obscenos entre casais heteroafetivos,
também não se permitirão entre casais homoafetivos, sendo que, em nenhum
momento, se pleiteia “direito a obscenidades”. Mas os locais que permitem
manifestações de afeto não obscenas – tais como andar de mãos dadas,
abraçados(as), tratar-se reciprocamente como namorados(as) etc. – entre casais
heteroafetivos devem, obrigatoriamente (mesmo hoje), permiti-las aos casais
homoafetivos por força do princípio constitucional da igualdade, que veda
diferenciações desprovidas de uma fundamentação lógico-racional que as
fundamentem. Visa este projeto garantir que casais homoafetivos e LGBTs (Lésbicas,
Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais) em geral sejam respeitados, garantindo
que sejam tratados isonomicamente e com igual dignidade em relação a casais
heteroafetivos e heterossexuais em geral, donde se afigura plenamente constitucional.
Não se trata de “mordaça gay” como muitos inacreditavelmente pregam: trata-se
apenas de imposição legal de respeito devido à histórica discriminação sofrida por
homossexuais e transexuais ao longo da história. Não afronta a liberdade de
expressão porque esta não é absoluta (como nenhum direito fundamental é) e não
garante o direito a ofender ou arbitrariamente reprimir terceiros, sendo que o PLC
122/06 visa tão somente impedir ditas ofensas e discriminações contra homossexuais
e transexuais. Com efeito, o PLC 122/2006 visa criminalizar a discriminação por
orientação sexual e por identidade de gênero, incluindo-a no tipo penal de racismo.
Lembre-se, nesse sentido, de que o tipo penal de “racismo” engloba hoje a
discriminação por cor de pele, etnia, procedência nacional e religião, sendo que a este
rol pretende o citado projeto de lei incluir a orientação sexual e a identidade de gênero.
Há ferrenhos opositores dessa inclusão, sob o fundamento de que a “liberdade de
expressão” estaria afrontada, sendo que homossexuais estariam sendo alçados a uma
“casta superior” da sociedade. Contudo, trata-se de equívoco gritante. Em primeiro
lugar, porque não é a “discriminação homofóbica” que estará sendo criminalizada, mas
a discriminação “por orientação sexual”, em que heterossexuais discriminados também
estarão sendo vítimas do novo crime. Segundo, ninguém tem o direito de ofender nem
de discriminar arbitrariamente o outro, pois as liberdades de expressão, de religião e
de crença não garantem o direito a ofensas e à difusão de mentiras. Criticar um
homossexual por sua mera homossexualidade é algo tão descabido quanto criticar um
negro por sua mera cor de pele, visto que (como a cor de pele) a orientação sexual
não tem absolutamente nenhuma relação com caráter, criminalidade, promiscuidade,
pedofilia nem nada do gênero (associações que, por vezes, são arbitrariamente feitas
à homossexualidade por homofóbicos ou ignorantes – pessoas que desconhecem o
tema). Terceiro, a discriminação por orientação sexual e por identidade de gênero
sofrida é tão histórica e estigmatizante quanto a discriminação por cor de pele, etnia,
procedência nacional e religião, logo, se a discriminação por estes critérios pode gerar
o crime de racismo, então não há nenhum óbice que a orientação sexual também o
seja, ante o aspecto material da isonomia (explicitado no capítulo seguinte). Por fim,
não há afronta à liberdade religiosa (de crença, culto etc.) porque evidentemente não
se punirá a mera afirmação da homossexualidade como pecado, pois há livros
sagrados de determinadas religiões que isto afirmam em sua literalidade (embora, ao
menos no caso da Bíblia, a interpretação histórico-crítica demonstre não haver nada
pecaminoso na mera homossexualidade, como demonstram estudos específicos do
tema – por exemplo, o de Daniel A. Helminiak, exposto neste trabalho). O que se
criminalizará é a discriminação, a ofensa, a humilhação do homossexual. Afinal, uma
coisa é um religioso dizer em seu templo de culto, em uma abordagem da
homossexualidade, que a homossexualidade é pecado (sic). Outra, bem diferente, é
afirmar que o homossexual seria uma pessoa sem caráter, inerentemente promíscuo
e/ou pedófilo, incapaz de criar crianças e adolescentes com amor e dedicação etc. No
primeiro caso, tem-se a descrição de algo que está escrito em um livro religioso, no
qual a liberdade religiosa aliada à liberdade de expressão permite sua divulgação; no
segundo caso, tem-se afirmações não referendadas pela literalidade de nenhum livro
religioso ou doutrina religiosa e sem nenhuma comprovação empírico-científica que
lhes fundamente, pautadas unicamente no subjetivismo (vulgo achismo) daquele que
faz tais afirmações, de sorte a configurar um verdadeiro discurso de ódio puramente
discriminatório. Assim, no primeiro caso, não ocorrerá a tipificação do crime mesmo
com a aprovação do PLC 122/2006, tipificação que ocorrerá no segundo caso. Afinal,
a liberdade de expressão não abarca discursos de ódio, mesmo que praticados sob o
escudo da liberdade religiosa (para fins históricos, cumpre lembrar que a Ku Klux Klan
era uma organização terrorista que se dizia pautada na ideologia cristã que pregava
negros como seres inferiores aos brancos, os ofendiam e os chamavam de animais e
outros impropérios do gênero). Pois bem: da mesma forma que a liberdade de
expressão aliada à liberdade religiosa não protegia os discursos de ódio perpetrados
pela Ku Klux Klan contra negros, elas igualmente não protegem discursos que
menosprezam os não heterossexuais em relação aos heterossexuais, visto que tal
menosprezo configura discurso de ódio ou, no mínimo, um discurso preconceituoso
puramente discriminatório, visto que desprovido de comprovação empírico-científica e
mesmo de argumentos lógico-racionais que lhes justifiquem. Considerando que a
liberdade é o direito de fazer tudo o que se queira desde que não se prejudiquem
terceiros e considerando que os discursos de ódio são manifestações ofensivas e/ou
que visam perpetrar o preconceito e/ou a discriminação contra determinada(s)
pessoa(s) ou grupo de pessoas, tem-se que os discursos de ódio não se enquadram
no âmbito de proteção da liberdade de expressão, em que não cabe sequer invocá-la
para se defender a inconstitucionalidade da discriminação por orientação sexual ou por
identidade de gênero – mesmo porque referida criminalização atende aos ditames do
próprio Direito Penal Mínimo, que prega a pertinência de criminalizações apenas
quando resguardem um bem jurídico relevante (de natureza constitucional) e que os
demais ramos do Direito não sejam aptos a resolver o problema, pois tal
criminalização visa resguardar o direito à tolerância (a ser tolerado), no sentido de não
ser agredido e/ou ofendido, o que tem base constitucional no dispositivo que veda
preconceitos e discriminações de quaisquer espécies (art. 3.º, inc. IV), ao passo que
leis antidiscriminatórias de cunho administrativo que preveem punições como
advertências, multas, suspensões e cassações de licença de funcionamento ou, no
caso de funcionários públicos, punições de acordo com a legislação própria (como faz
a Lei Estadual Paulista 10.948/2001) não têm se mostrado efetivas para coibir a
discriminação por orientação sexual ou por identidade de gênero. Não que se espere
que uma lei criminal, isoladamente considerada, resolva o problema; claro que o
combate a referidas discriminações demanda políticas públicas de sensibilização e
consequente conscientização da sociedade acerca de seu descabimento (bem como a
capacitação de funcionários públicos e do setor privado em geral sobre a necessidade
de tratar com igual respeito e consideração a população LGBT relativamente ao
tratamento dispensado às pessoas em geral (LGBT: Lésbicas, Gays, Bissexuais,
Travestis e Transexuais, cabendo mencionar também as pessoas Intersexuais), o que
se afirma é que, considerando que a ideologia do Direito Penal Mínimo prega a
pertinência da criminalização apenas quando os demais ramos do Direito não se
mostrem aptos a resolver o problema, então essa ineficiência dos demais ramos
jurídicos justifica a criminalização da(s) conduta(s) em questão. Para maiores
desenvolvimentos, vide Constitucionalidade da classificação da homofobia como
racismo (PLC 122/2006). Diversidade Sexual e Direito Homoafetivo. DIAS, Maria
Berenice (org.). São Paulo: RT, 2011, p. 511-528.
64 Por oportuno, aponto ainda que entendo ser o direito ao respeito um direito
fundamental implícito: (i) ao princípio do Estado de Direito (art. 1.o da CF/1988), que
consagra a noção de contrato social da sociedade, se a vida em sociedade supõe que
se abra mão da liberdade absoluta para ter uma liberdade relativa, entendida como
aquela que não afronta os ditames do ordenamento jurídico (em especial os direitos
fundamentais dos demais cidadãos), então é evidente que o respeito ao próximo é
inerente à própria vida em sociedade, pois quem desrespeita outrem age como se
tivesse liberdade absoluta para tratar este terceiro como bem entendesse, o que é
contrário à própria noção de contrato social que rege a vida em sociedade; (ii) aos
princípios da justiça, da pluralidade político-ideológica e da proibição de preconceitos
(art. 3.o, I e IV, da CF/1988), pois a noção de justiça implica ter sua pessoa respeitada
por terceiros.
65 Quanto a essa teoria, afirma Eduardo Fernando Appio (Interpretação Conforme a
Constituição: Instrumentos de Tutela Jurisdicional dos Direitos Fundamentais, 1.ª
Edição (ano 2002), 3.ª tiragem, Curitiba: Juruá Editora, 2004, p. 29) que: “Os autores
que pugnam em favor desta concepção entendem que, diante de uma ‘polissemia
semântica’, quando forem possíveis vários sentidos em relação a uma mesma norma
legal, extraída de um texto de lei, o intérprete, após esgotar os meios interpretativos
tradicionais, deve-se socorrer da Constituição Federal, como ‘topos’ hermenêutico,
optando por uma interpretação restritiva ou ampliativa do dispositivo, no intuito de
conformá-lo com a Constituição Federal. Partindo-se da concepção de que, na
interpretação das leis, existiriam duas correntes tradicionais básicas – a objetivista e a
subjetivista – a interpretação conforme, enquanto método, estaria vinculada à última
corrente, ou seja, estar-se-ia buscando a vontade do legislador. Partindo-se da
premissa de que o legislador não exerceria sua atividade em desconformidade com as
normas constitucionais, o intérprete do texto infraconstitucional opta por uma
ampliação, ou redução, de seu sentido, de modo a preservar a chamada ‘presunção
de constitucionalidade das leis’”.
66 Esta é a posição do autor citado na nota anterior, com a qual se concorda.
67 Nesse sentido, afirma Eduardo Fernando Appio: “Caso a interpretação conforme
redunde na eliminação do núcleo essencial de um determinado princípio previsto na
Constituição Federal, não restará ao julgador alternativa senão a declaração de
inconstitucionalidade, de modo a permitir a edição de uma lei futura que corrija a
nulidade ou mesmo a resolução posterior dos casos que pretendia regular, através da
aplicação de outras leis ou mesmo de princípios jurídicos” (ibidem, p. 32-33).
68 Ibidem, p. 43.
69 “Portanto, com a utilização da interpretação conforme, o julgador ressalva que a lei
examinada em princípio se apresenta como nula, porque maculada com o vício da
inconstitucionalidade, seja material (afronta aos princípios e regras da Constituição),
seja formal (inobservância do devido processo legislativo), excluindo determinadas
‘construções exegéticas’ em prol da supremacia da Constituição e do máximo
aproveitamento dos atos legislativos. (...) Nesse ponto, a interpretação da norma em
conformidade com a Constituição serve como fundamento para expulsão de variantes
hermenêuticas do texto, na medida em que a solução para a lide depende de um juízo
acerca da constitucionalidade da norma” (ibidem, p. 35-36).
70 Tal pode ser melhor compreendido após a análise do requisito da “necessidade” da
interpretação conforme, que se encontra explicitado no próximo tópico.
71 Em verdade, há uma possibilidade de pena de morte no Brasil, oriunda do art. 5.º,
XLVII, que define que “não haverá pena de morte, salvo no caso de guerra declarada,
nos termos do art. 84, XIX” (grifo nosso). O Código Penal Militar regulamenta a
hipótese de pena de morte em caso de guerra declarada.
72 APPIO, Eduardo Fernando. Interpretação Conforme a Constituição: Instrumentos de
Tutela Jurisdicional dos Direitos Fundamentais, 1.ª Edição (ano 2002), 3.ª tiragem,
Curitiba: Juruá Editora, 2004, p. 39.
73 Ibidem, p. 41.
74 Mais bem definida como teoria da separação das funções do poder, que é uno,
conforme lição consagrada da doutrina constitucionalista, que ressalva a utilização da
referida expressão pela sua tradição.
75 “Art. 4.º Quando a lei for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os
costumes e os princípios gerais de direito.”
76 “Art. 126. O juiz não se exime de sentenciar ou despachar alegando lacuna ou
obscuridade da lei. No julgamento da lide caber-lhe-á aplicar as normas legais; não as
havendo, recorrerá à analogia aos costumes e aos princípios gerais de direito.”
77 Pode-se dizer que o debate relativo a este tema da limitação da interpretação
conforme coloca frente a frente as correntes subjetivista e objetivista do Direito. Nesse
sentido, afirma Eduardo Fernando Appio (Interpretação Conforme a Constituição:
Instrumentos de Tutela Jurisdicional dos Direitos Fundamentais, 1.ª Edição (ano 2002),
3.ª tiragem, Curitiba: Juruá Editora, 2004, p. 45): “Em verdade, trava-se o debate entre
a corrente subjetivista – a qual almeja alcançar a verdadeira a única vontade do
legislador – e a corrente objetivista, a qual, de modo inverso, advoga que, a partir da
edição da lei, a ‘criatura’ se desprende e se autonomiza em relação ao seu ‘criador’.
Em outras palavras, para os adeptos desta última vertente doutrinal, a vontade efetiva
do legislador é um dado irrelevante – e sua descoberta efetiva impossível – sendo
certo que a lei possui autonomia tal que permite ao intérprete dar-lhe a sua
conformação, na medida em que reputa que o legislador pode ter editado uma lei com
outra finalidade, tendo produzido efeitos (válidos) não desejados”. À evidência, adere-
se aqui à corrente objetivista.
78 Cf. MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e aplicação do direito, 19.a Edição, Rio de
Janeiro: Editora Forense, 2007, p. 15-27. No mesmo sentido, vale citar novamente a
lição de Eduardo Fernando Appio, ao criticar a corrente que classifica a natureza
jurídica da interpretação conforme como um método de interpretação equiparável às
interpretações extensiva e restritiva, pois: “(...) agregada à corrente subjetivista, [essa
corrente] desconsidera o fato de que, em qualquer interpretação, existe uma fusão de
horizontes entre o texto interpretando e seu intérprete, sendo ultrapassada a premissa
fundada na filosofia da consciência. Ou seja, o sujeito (intérprete) não se apropria de
um conhecimento ontológico da coisa em si (texto de lei interpretado), mas sim, funde
sua concepção de mundo e suas pré-compreensões com a norma que se pretende
interpretar. Neste quadrante, a vontade do legislador ingressa como um dos elementos
através dos quais se chegará ao resultado do processo hermenêutico, mas não o
único e nem o mais importante. Recorde-se, ainda, que o texto de um projeto de lei é
fruto de várias vontades, passando por diversas comissões temáticas, durante o
processo legislativo, inclusive com a possibilidade de sua emenda, até que seja votada
na Casa Legislativa. Deste modo, nem mesmo com o atento acompanhamento do
processo legislativo ou leitura da justificativa do projeto seria possível inferir a vontade
de um grupo de legisladores. Em verdade, após a edição da lei, esta assume tal
autonomia que o seu alcance e sentido serão, efetivamente, definidos pela
comunidade jurídica, incluindo as pessoas leigas de uma determinada sociedade. Um
mesmo texto de lei, após reiterada interpretação, vai ‘amadurecendo’ seu sentido e
alcance, seja no debate que se estabelece nos meios de comunicação social, seja na
leitura que se faz nos Tribunais. Assim, somente com a edição de uma lei interpretativa
posterior, teríamos uma possível, mas ainda contestável, definição da ‘vontade do
legislador’, mesmo assim com ressalvas dada a alteração no contingente das Casas
Legislativas” (APPIO, op. cit., pp. 29-30 – sem grifos no original).
79 Voto do Ministro Gilmar Mendes, p. 4-5, 7-8, 10-11 e 16-17.
80 “A diferença, portanto, é de sinal. Enquanto a declaração parcial de nulidade possui
efeito principal negativo (em relação a determinadas interpretações, hipotetizadas pelo
julgador), a interpretação conforme tem efeito principal positivo, na medida em que
elege a única interpretação possível, vinculando juízes e administração” (ibidem, p. 79
– sem grifos no original).
Capítulo 5

A FAMÍLIA JURIDICAMENTE PROTEGIDA E


A HOMOAFETIVIDADE NO
ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO

“O afeto merece ser visto como uma realidade digna de tutela.”1 –


Maria Berenice Dias, Desembargadora aposentada do Tribunal de
Justiça do Rio Grande do Sul; Advogada, Fundadora e Vice-
Presidente do IBDFAM – Instituto Brasileiro de Direito de Família.

1. O VAZIO LEGISLATIVO QUANTO ÀS UNIÕES


HOMOAFETIVAS. DA AUSÊNCIA DE PROIBIÇÃO LEGAL
A legislação brasileira nada dispõe acerca da união homoafetiva – não
a proíbe, mas também não trata especificamente do tema. Dessa forma, há
um vazio legislativo no que concerne à relação homoafetiva entre pessoas
brasileiras2, em que se caracteriza uma lacuna normativa acerca do tema.
Ante a inexistência de regulamentação expressa de dita relação, muitos
magistrados já entenderam por impossível juridicamente o pedido de um
homossexual que requer a meação do patrimônio formado durante anos de
convivência com seu parceiro quando este vem a falecer ou quando do
término do relacionamento entre ambos. Justificam esta posição por
entenderem que a relação entre duas pessoas do mesmo sexo não seria
geradora de uma entidade familiar, ao contrário do que ocorre com as
relações heteroafetivas. Assim, partindo da visão equivocada de que
somente as relações heteroafetivas mereceriam proteção do Direito, ante a
inexistência de textos normativos que regulamentem expressamente as
relações homoafetivas, acaba a Justiça por cometer graves injustiças, uma
vez que deixa à margem do Direito uma parcela considerável dos cidadãos,
“sob o fundamento simplista de inexistir uma norma legal que, de modo
expresso, assegure [o] direito”3 daqueles que fogem dos padrões
considerados “corretos” pela maioria.
Todavia, mesmo diante da atual legislação brasileira, omissa em
relação ao tema, há meios de se garantir que a relação homoafetiva seja
devidamente protegida, conforme se passa a demonstrar.

1.1 Soluções ao vazio legislativo: a analogia, a interpretação extensiva e


os princípios gerais do Direito
Data maxima venia, o entendimento jurisprudencial apontado no tópico
anterior não merece prosperar, haja vista termos em nosso ordenamento
jurídico mecanismos que garantem a preservação dos direitos dos cidadãos
mesmo nos casos de vazios legislativos.
Em primeiro lugar, não obstante a inexistência de regulamentação
expressa das relações homoafetivas, tem-se como princípio geral de Direito
que aquilo que não é expressamente proibido tem-se por permitido. É a
célebre máxima de Kelsen4, inclusive positivada por nossa Constituição em
seu art. 5.º, II, segundo a qual ninguém será obrigado a deixar de fazer algo
senão em virtude de lei (leia-se: texto normativo expresso). Como a lei não
proíbe expressamente as uniões homoafetivas, tem-se que o não
reconhecimento de efeitos jurídicos a estas, na exata medida em que são
reconhecidos às uniões heteroafetivas, conforme adiante se analisará
detidamente, caracteriza uma afronta aos princípios constitucionais da
isonomia e da dignidade da pessoa humana, os quais constituem cláusulas
pétreas da Constituição Federal, normas constitucionais de eficácia plena e
inclusive direitos humanos fundamentais, assim reconhecidos pela mesma.
Dessa forma, o não reconhecimento de efeitos jurídicos atinentes ao
Direito das Famílias às uniões homoafetivas caracteriza afronta à
Constituição Federal, tendo em vista que o princípio da isonomia não
admite tratamento preconceituoso para quem quer que seja. Ademais, exige
o mencionado princípio que tal tratamento diferenciado deva ser
necessariamente fundamentado com provas de sua pertinência, sendo que a
discriminação juridicamente válida supõe, ainda, que dita diferenciação seja
coerente com os demais valores constitucionais. Outrossim, a dignidade da
pessoa humana garante que todas as pessoas são igualmente dignas pelo
simples fato de serem pessoas humanas, independentemente de quaisquer
características suas, donde é incoerente com esse princípio, e
consequentemente inconstitucional, o tratamento menos digno hoje ofertado
às uniões homoafetivas em comparação com as heteroafetivas.
Isso se confirma pela leitura do próprio caput do art. 5.º de nossa
Constituição Federal, que proíbe discriminações de qualquer natureza, o
que, obviamente, proíbe a discriminação por orientação sexual (por
consequência do princípio da isonomia em seus aspectos formal e material,
já explicitados no capítulo 3), e pelo fato de seu art. 1.º, III, erigir a
dignidade da pessoa humana como um dos fundamentos de nosso Estado
Democrático e Social de Direito.

1.2 A função do legislador


Há o entendimento de que caberia ao Direito regulamentar apenas as
situações comuns, corriqueiras e cotidianas da sociedade, “sendo que tudo
aquilo que for excepcional deve ser tratado sob regime de exceção”5.
Partindo dessa premissa, há o entendimento doutrinário de que o “comum”,
no tocante à sexualidade humana, seria a relação heteroafetiva, tendo assim
o legislador que se preocupar unicamente em regulamentar a vida dos
heterossexuais, deixando de lado os homossexuais, minoria que são em
relação àqueles. Contudo, é equivocado esse entendimento. Cabe ao
legislador regulamentar todas as situações existentes em sua sociedade,
tanto as concernentes à maioria da população quanto, e especialmente, as
referentes aos direitos das minorias. Tal se justifica porque aquele que faz
parte de uma minoria costuma ser discriminado justamente por ser
diferente, por não se enquadrar ao “padrão” imposto pela sociedade.
O ser humano parece ter uma grande dificuldade em aceitar aquilo que
não entende; aquilo que, por ser diferente, não está acostumado a lidar.
Destarte, pessoas pertencentes a grupos minoritários nas sociedades são
comumente discriminadas pelas maiorias. Assim, cabe ao legislador
garantir a essas minorias mecanismos legais específicos para que, tendo
seus direitos desrespeitados, possam ingressar no Judiciário contra o
ofensor6.
Por outro lado, é de se ressaltar que, a rigor, não seriam necessários tais
instrumentos em hipótese alguma, devido ao já explicitado princípio da
isonomia: sendo todos iguais perante a lei e garantindo a todos o direito à
igualdade, admitida a discriminação apenas quando comprovada lógica e
racionalmente a sua pertinência, não haveria que se falar da necessidade de
leis específicas proibindo discriminações específicas. Afinal, em
decorrência da interpretação extensiva e da analogia, todas as situações
idênticas ou fundamentalmente similares às já tratadas por lei já existente
teriam a si aplicados os mesmos ditames jurídicos utilizados nos assuntos já
regulamentados. Caberia, assim, unicamente, a aplicação de lei existente à
situação não citada ou não regulamentada pela interpretação extensiva ou
pela analogia, respectivamente. Todavia, as leis específicas facilitam em
muito a prova daquilo que se alega: é muito mais fácil para o autor de uma
demanda judicial obter êxito quando alega que uma lei foi descumprida
pelo réu do que quando tem que provar que foi desrespeitado um princípio
geral de Direito, norma genérica que é (como o da isonomia e o da
dignidade da pessoa humana, em que pese o status constitucional destes).
Isso porque a lei específica, como o próprio nome diz, trata de uma situação
particular, estabelecendo contornos claros à situação por ela regulamentada.
Dessa forma, sendo tais regras descumpridas, cabe reparação do dano
causado contra aquele particular que se encaixa naquela situação singular.
Sem falar no fato de que uma lei expressa tende a evitar os próprios litígios
judiciais: sendo um direito expressamente reconhecido, as pessoas tendem a
não se opor ao reconhecimento de tal direito àqueles que o pleiteiam.
Por outro lado, deve-se ter em mente que o legislador não tem como
prever absolutamente todas as situações que podem ocorrer na vida fática,
dada a imperfeição humana nesse sentido. Essa é uma lição clássica da
doutrina civilista ao tratar da colmatação de lacunas por analogia: como o
legislador não tem como prever todas as situações fáticas, cabe ao Estado-
juiz colmatar as lacunas normativas por analogia, inclusive como
consequência da vedação ao juiz de deixar de julgar pela alegação de
inexistência de lei expressa que reconheça o direito em questão (vedação ao
non liquet)7. Assim, ao elaborar determinado texto normativo, pode ter o
legislador se omitido quanto a determinado ponto, o que não significa que
essa situação omitida deva ser tida como proibida, uma vez que em Direito
não existem “proibições implícitas” e, ainda, ante a existência da
interpretação extensiva e da analogia como técnicas de interpretação
jurídica, que visam garantir que situações idênticas ou fundamentalmente
idênticas àquelas expressamente regulamentadas recebam o mesmo
tratamento jurídico, como sucedâneo da isonomia constitucionalmente
consagrada8.
Nesse sentido, a inexistência de ditas leis específicas não impossibilita
a defesa dos direitos daqueles que vivem à margem da lei ante a existência
dos princípios da isonomia e da dignidade da pessoa humana, os quais
garantem às pessoas, individual ou coletivamente, a proteção de seus
direitos ao proibir discriminações arbitrárias e ao garantir que todas as
pessoas humanas sejam merecedoras da mesma dignidade. Mesmo porque o
art. 4.º da LINDB assevera que, na omissão da lei, o juiz julgará segundo a
analogia, os costumes e os princípios gerais de Direito (entre eles a
isonomia, a dignidade humana e a interpretação extensiva), ao passo que o
art. 126 do CPC proíbe o juiz de sentenciar alegando lacuna da lei, hipótese
na qual deve se socorrer das citadas fontes (analogia, costumes e princípios
gerais de Direito).
Especificamente com relação às uniões homoafetivas, considerando
que constituem entidades familiares que se enquadram no modelo
juridicamente consagrado (conforme se demonstra nos próximos tópicos),
os preceitos constitucionais são suficientes para garantir os efeitos jurídico-
familiares delas decorrentes, conforme se demonstrará detidamente em
capítulos específicos.

2. A QUESTÃO DA FAMÍLIA

2.1 A importância da família na história da humanidade

“A família contemporânea constitucionalizada afasta-se do


standard talhado em séculos passados. É o afeto o elemento
unificador dessa família em busca do novo milênio. Os laços de
família, conforme grafava Cecília Meireles, afastam-se dos
tradicionais critérios patrimoniais e biológicos, edificando-se sobre
os vínculos de amor e de afeição que aportam como os verdadeiros
elementos solidificadores da unidade familiar.” – Luiz Edson
Fachin9 (Professor Titular de Direito Civil da Universidade Federal
do Paraná).

Desde os primórdios da humanidade tem-se a noção mais ou menos


clara de que a felicidade verdadeira e genuína (se é que existe algum outro
tipo) só pode ser alcançada mediante a vida a dois. Talvez isso se justifique
pela falta de sentido em obter êxitos atrás de êxitos sem que haja alguém
com quem desfrutar as alegrias deles decorrentes, e mesmo alguém a quem
beneficiar e com quem compartilhar todos os frutos decorrentes dos
sucessos alcançados. Certa ou errada essa concepção, é no que acredita a
maior parte da população.
Ainda que de maneiras distintas, a humanidade sempre prezou a vida a
dois, dando cada vez mais importância aos relacionamentos afetivos entre
pessoas com o passar dos séculos, tendo em vista que é deles que surgem as
famílias.
Essa evolução constante e gradativa da importância da família no
contexto social pode ser vislumbrada no caput do art. 226 de nossa
Constituição Federal, que coloca a família como base da sociedade
brasileira. Tal ênfase deixa claro qual é o objetivo maior do Estado
brasileiro: a proteção da família. Todas as leis criadas, todos os objetivos
expressamente citados por estas, visam, ainda que indiretamente, à proteção
da entidade familiar, haja vista ser esta a base de nossa sociedade – vale
lembrar que não há estrutura que não venha a ruir quando sua base é
destruída.

2.2 A família brasileira – Breves considerações históricas

2.2.1 A Família na Sociedade Rural e o “Modelo Institucional” do Código


Civil de 1916
“[A princípio] Compreendida como um fato natural, inexistiu a
preocupação parlamentar de definir sua estrutura, ante a naturalidade da
noção de família”10. Esse entendimento baseou-se na concepção tradicional
da família, qual seja a formada pela união matrimonializada de um homem
com uma mulher e os descendentes do casal (a típica família heteroafetiva)
e nos costumes extremamente machistas da época (que consideravam a
mulher casada como relativamente incapaz). Isso porque a família
inicialmente codificada não tinha como ponto de preocupação o bem-estar
de seus componentes: visava apenas garantir que o modelo econômico da
época fosse cada vez mais revigorado, no sentido de que, em uma sociedade
rural, a existência de mão de obra numerosa era indispensável para que se
alcançasse uma boa produção.
Em verdade, conforme esclarece Engels, a palavra família foi
inicialmente utilizada pelos romanos antigos para designar apenas os
escravos, na medida em que famulus queria dizer escravo e família era o
conjunto de escravos pertencentes a um mesmo homem, ao passo que o
termo família passou eventualmente a ser utilizado pelos romanos para
designar um organismo social cujo chefe tinha sob suas ordens a mulher, os
filhos e um certo número de escravos submetidos a seu poder patriarcal,
com direito de vida e morte sobre todos eles11. A família das codificações
liberais burguesas permaneceu no obscurantismo pré-iluminista, não se lhe
aplicando os ideais de liberdade e igualdade em razão disso estar à margem
dos interesses patrimonializantes que passaram a determinar as relações
civis12. A família era um mero núcleo de produção, sendo estimulada a
procriação como forma de garantir o seu sustento na velhice e,
especialmente, o sustento do modelo consumista do sistema capitalista.
Esse foi o modelo prevalente na sociedade até meados do século XX.
Ou seja, a família jurídica do início do século XX, do Código Civil de
1916, de modelo predominantemente rural, não se preocupava com o amor
ou com as pessoas nela existentes: tinha um intuito meramente
patrimonialista de garantir que o modelo econômico do País se mantivesse
intacto. Nessa forma familiar, o afeto era completamente ignorado. Nela, o
marido era o chefe da sociedade conjugal, cabendo exclusivamente a ele a
direção desta e restando à mulher a mera tarefa de administradora do lar e
responsável pela educação dos filhos, sempre de acordo com os desígnios
de seu marido – tanto que, ao casar, a mulher deixava de ser plenamente
capaz para atuar na vida civil, tornando-se relativamente incapaz e passando
a ter o seu patrimônio administrado pelo marido. Mesmo porque esse era o
papel visto como “decente” à mulher, tanto que ela tinha enorme
dificuldade para conseguir trabalhos remunerados devido à forte carga de
preconceito que sofria nesse sentido.
Essa colocação do homem em posição hierarquicamente superior à da
mulher no casamento civil decorreu da postura machista da época, na qual a
mulher não era considerada como tão capaz quanto o homem para atuar na
vida social – preconceito até então historicamente consagrado13. Dito
modelo não visava (ao menos primordialmente) a manutenção de uma
determinada moralidade familiar, mas principalmente preservar o modelo
patrimonialista, que, editado sob a inspiração do liberalismo individualista,
alçou a propriedade e os interesses patrimoniais a pressupostos nucleares de
todos os direitos privados, inclusive do Direito de Família14.
Roger Raupp Rios sintetiza bem esse modelo familiar: é o que ele
chama de modelo institucional, hierarquizado de família, que era
considerada em si mesma e que visava atender, primordialmente, aos
interesses estatais e, apenas secundariamente, aos interesses particulares da
família, sobrepondo-se o interesse público sobre o privado do casal15.
Ademais, o objetivo fundamental da família juridicamente protegida
do Código Civil de 1916 era, além de manter o modelo econômico da
época, de garantir que o patrimônio do homem continuasse com membros
“do seu sangue”. Nesse sentido, a castidade da mulher era colocada como
condição para sua respeitabilidade, visto que, embora a verificação da
maternidade sempre tenha sido de fácil constatação e certeza, porque a
mulher é quem traz a criança ao mundo, com relação ao homem essa
certeza já não existia, uma vez que inexistiam exames médicos que
comprovassem com segura margem de certeza que o(a) filho(a) era dele,
donde a lei civil fixava prazos dentro dos quais se presumia que o filho
fosse do homem, segundo o lapso temporal do nascimento comparado com
o início ou término da relação amorosa.
Assim, essa noção simplista do conceito familiar, derivada
indubitavelmente da influência das religiões, fez surgir o entendimento de
que a família somente seria formada por meio da união amorosa entre um
homem e uma mulher oficializada pelo matrimônio. O Código Civil de
1916 é prova disso: o casamento civil, como vínculo indissolúvel, foi
considerado como a única maneira de se formar a família considerada
“legítima”, sendo deixadas de lado quaisquer uniões amorosas que não
fossem ratificadas pela figura do casamento civil, mesmo aquelas entre
heterossexuais. Não se admitia que qualquer um desses relacionamentos
amorosos pudesse ensejar quaisquer efeitos jurídicos, donde se criaram os
conceitos de família “legítima” e “ilegítima”. Assim, nas palavras de
Euclides Benedito de Oliveira, “legítima era apenas a família formada por
meio do casamento; ilegítima, a resultante de união informal, de fato, pela
convivência de fim amoroso entre homem e mulher, sem as formalidades do
‘papel passado’”.16
Contudo, a evolução da sociedade demonstrou que não é tão simples
assim o conceito de família. As chamadas “uniões de fato” passaram a ser
cada vez mais comuns no transcorrer do século XX, deixando claro que as
pessoas mantinham-se unidas como famílias apenas quando da existência
de amor na relação, o que tornou imperiosa a regulamentação sobre o tema,
uma vez que a elas não era reconhecido nenhum efeito jurídico, fosse no
campo do Direito das Famílias, fosse no campo do Direito Obrigacional17.
A família atual busca sua identificação na solidariedade (art. 3.º, I, da
CF/1988), como um dos fundamentos da afetividade, após o individualismo
triunfante dos últimos séculos, ainda que não retome o papel predominante
que exerceu no mundo antigo18.
Assim, em face das inúmeras injustiças cometidas nesses casos,
especialmente em relação às mulheres quando do término de sua relação
amorosa considerada como concubinato, a jurisprudência passou
gradativamente a reconhecer efeitos jurídicos às relações concubinárias,
donde foi erigida a Súmula 380 do STF, segundo a qual: “Comprovada a
existência de sociedade de fato entre os concubinos, é cabível sua
dissolução judicial, com a partilha do patrimônio adquirido pelo esforço
comum”. Essa súmula, apesar de não reconhecer a condição de entidade
familiar às uniões extramatrimoniais, passou a, pelo menos, dar-lhes efeitos
jurídico-patrimoniais, garantindo à concubina parte do patrimônio
amealhado durante sua convivência com o parceiro falecido mediante a
efetiva prova de contribuição a dito crescimento patrimonial19.
Toda essa construção justifica-se porque, na época, “a finalidade
essencial da família era sua continuidade. Para haver a certeza biológica da
filiação, valorizava-se a fidelidade da mulher, sendo a virgindade um sinal
externo de respeitabilidade”20. Afinal, a sociedade brasileira, no início, era
basicamente rural, e nela quanto maior fosse a família, melhores eram as
chances de sobrevivência desta, tendo em vista que dito crescimento trazia
um igual crescimento, ainda que futuro, de mão de obra a ser utilizada na
lavoura.

2.2.2 A família na sociedade urbana – A mulher no mercado de trabalho


Com a crescente urbanização, o modelo familiar descrito anteriormente
(institucional/hierárquico) passou a sofrer mudanças. Devido à crescente
necessidade de mão de obra, os papéis de marido e mulher, antes rígidos,
passaram a se entrelaçar, tendo em vista o ingresso desta no mercado de
trabalho, o que obrigou o homem a auxiliá-la nos afazeres domésticos –
comportamento este contrário ao de até então, que definia como função do
homem trazer o “pão” para a casa e como função da mulher a mera
organização do lar, segundo as ordens do marido.
Dessa forma, com o ingresso da mulher no mercado de trabalho,
passou ela a questionar e lutar contra a discriminação jurídica que sempre
sofrera, passando a exigir os mesmos direitos amplamente reconhecidos aos
homens. Ademais, as próprias regras de convívio marital passaram a ser
revistas pelos casais a partir daí formados, tendo em vista que, “com a
industrialização, ocorreu o êxodo rural, e a própria diminuição das
dimensões da casa forçou uma maior convivência no ambiente familiar,
levando a uma maior aproximação entre seus membros”21. Esse aumento no
tempo de convivência do casal passou a influenciar em muito a maneira
como ambos passaram a “administrar” a relação – o amor familiar22 passou
a ter fundamental importância nesse convívio, pois somente uma relação
afetiva verdadeira é capaz de tornar eterno um relacionamento entre duas
pessoas que convivem diariamente em regime familiar.
Com a revolução industrial, surge um modelo de entidade
familiar, cuja função preponderante é desenvolver os valores morais,
afetivos e espirituais de seus membros, enfatizando sempre a
assistência recíproca que deve existir entre eles. Atualmente, a
entidade familiar deixa de ter feição meramente econômica e alcança
uma compreensão igualitária dos seus membros, que tem, por fim
promover o desenvolvimento de seus integrantes. Agora, assume uma
feição distinta fundada, sobretudo, no afeto, amor e felicidade,
sentimentos que se complementam. Com estas premissas, estabelece-se
que a família é formada através de uniões homoafetivas, incestuosas,
uniões estáveis, famílias monoparentais, originadas do casamento, e
por quantas outras que a capacidade e engenhosidade humana puder
organizar e compor. Corrobora com este entendimento Euclides
Benedito de Oliveira quando expõe, de forma sucinta, que “Resulta
claro que o ordenamento constitucional consagrou a definição ampla
de família, como base da sociedade, garantindo-lhe proteção especial
do Estado, independente do modo pelo qual tenha se originado a
união”. (...) À caracterização de qualquer forma de união entre
pessoas que se denomine familiar não há como dispensar que a mesma
ostente publicidade, comunhão, estabilidade e propósito de
constituição de família. Com as uniões incestuosas não poderia ser
diferente; da mesma forma, devem estar permeadas por esses
caracteres.23
Por conseguinte, considerando que a família deixou de ser uma
mera unidade de produção, vale destacar o entendimento de Antunes
Varela, segundo o qual ela se converteu, “ao fim de cada semana, num
lugar de refúgio da intimidade das pessoas contra a massificação da
sociedade de consumo. Ela constitui hoje um centro de restauração
semanal da personalidade do indivíduo contra o anonimato da rua”.
(...) Não percamos de vista que o grupo familiar ajuda na formação e
crescimento da identidade individual, comunicação e objetivos comuns
dos seus integrantes, garantindo o substrato para a consolidação do
afeto e da solidariedade familiar, através do reconhecimento, tutela e
da cooperação, antes mesmo que como cônjuge ou filho, como pessoa.
Para Pietro Perlingieri, “o controle sobre as vicissitudes pessoais e
familiares se justifica se e na medida em que for feito em função da
garantia dos direitos fundamentais”.24

Todos esses fatores ensejaram uma transformação no conceito de


família. Desatrelou-se ela do trinômio “sexo, casamento e procriação”, que
regia o Direito de Família até então, para fixar-se em verdadeira sociedade
de afeto, cujo único objetivo é a felicidade25. A função econômica perdeu
seu sentido, pois a família não era mais uma unidade produtiva nem uma
espécie de seguro contra a velhice, atribuição que foi transferida à
previdência social, tendo contribuído para tanto a emancipação econômica,
social e jurídica da mulher e a drástica redução do número médio de filhos
das entidades familiares, fortalecendo-se a noção de família como uma
comunhão de afetos26.
Diante de tal objetivo, as famílias extramatrimoniais passaram a ser
cada vez mais comuns, mesmo não havendo qualquer regulamentação
específica sobre o tema. Afinal, como a felicidade é muito mais importante
do que um conjunto de regras supostamente estanques, nada mais natural
que passarem os indivíduos a buscá-la independentemente do que diga a
legislação vigente. Por outro lado, o não reconhecimento de tal fato pelo
Direito fez que muitas pessoas do passado (em geral, as mulheres-
concubinas das classes mais baixas da sociedade) se encontrassem em
situação de desamparo jurídico, tendo em vista que, após o término de sua
relação amorosa com determinado homem, ficavam sem patrimônio algum,
donde a jurisprudência se viu obrigada a criar soluções para tais casos, a
fim de que não mais fossem perpetuadas verdadeiras injustiças nos casos
concretos.

2.3 As soluções encontradas pela jurisprudência para as uniões não


regulamentadas
Conforme citado, a Jurisprudência passou a buscar maneiras de
contornar o fato de inexistir regulamentação às relações extramatrimoniais,
visando evitar que continuassem a se perpetuar verdadeiras injustiças com
os casais em questão, em especial as concubinas. Contudo, em nenhum
momento reconheceu que as mencionadas relações formavam, naquela
época, entidades familiares. Os magistrados deixavam claro que apenas
estavam sendo reconhecidos efeitos patrimoniais àquelas uniões, para evitar
o enriquecimento ilícito de uma das partes em detrimento da outra, e nada
mais.

2.3.1 Analogia com o Direito do Trabalho – Indenização pelos serviços


prestados. Julgados contemporâneos do STJ
Uma vez que o entendimento dominante da época era o de que o papel
“decente” da mulher na sociedade era o de administradora do lar, o de
instrumento para a perpetuação da espécie e o de babá dos filhos (ressalte-
se essa figura de babá, tendo em vista que era do homem todo o poder
relativo aos filhos, o assim chamado “pátrio poder” – atual poder familiar),
passou a Jurisprudência, em princípio, a considerar que, nas relações
extramatrimoniais, a concubina se encontrava em uma espécie de relação
laboral com o parceiro, merecendo, por consequência, uma indenização
pelo “tempo de serviço prestado” ao mesmo, ante os trabalhos domésticos
por ela realizados na residência “ilegítima” do casal, por analogia ao Direito
do Trabalho27.
Note-se que em nenhum momento se tratava do patrimônio amealhado
pelo casal: este ia sempre para os descendentes legais (“legítimos”), nos
quais não estavam inclusos a concubina e seus filhos em hipótese alguma.
Anote-se, por oportuno, que, em data posterior à 1ª edição desta obra,
alguns julgados do Superior Tribunal de Justiça rejeitaram o cabimento
desta analogia, ante a união estável (antigo concubinato puro) ter sido
reconhecido pela Constituição e pela legislação como entidade familiar,
havendo julgados que, inclusive, negam tal pleito a relações concubinárias
(concubinatos impuros)28, sob o fundamento de que isto alçaria as uniões
concubinárias a patamar superior ao das uniões matrimonializadas e das
uniões estáveis29, por estas não concederem tal direito indenizatório após o
término da relação, de sorte a ocasionar, segundo tal entendimento, uma
discriminação positiva do concubinato (impuro) frente ao casamento civil,
que teria primazia sobre o concubinato por força do art. 1.727 do
CC/200230. Contudo, como a jurisprudência do STJ estava consolidada no
sentido do cabimento de tal pleito e houve, inclusive, julgado recente que a
reiterou31, somente o julgamento de Embargos de Divergência pela Corte
Especial do Tribunal poderá dizer, com certeza, se o mesmo irá realmente
mudar sua jurisprudência acerca do tema.
Tal digressão final se deu apenas para situar o leitor no estágio atual
deste entendimento sobre a concessão de indenização por serviços prestados
à pessoa concubina após o término da relação. Embora não caiba
aprofundar o tema por ser estranho ao cerne do presente trabalho, vale dizer
que concordo com Maria Berenice Dias quando afirma que, nos casos de
união estável, não é cabível a concessão de indenização pelos serviços
prestados porque este era um subterfúgio da jurisprudência para garantir
subsistência da mulher que se encontrava fora do mercado de trabalho e,
portanto, sem condições de se sustentar por conta própria, já que hoje são
devidos alimentos após o término da união estável32; contudo, igualmente
concordo com a autora quando afirma que, nos casos de concubinato do art.
1.727 do CC/2002 (antigo concubinato impuro), é imperativo garantir a
sobrevivência de quem dedicou uma vida a alguém que não lhe foi leal,
mantendo outro relacionamento, mesmo porque permitir que a pessoa
casada ou que estivesse em união estável prévia não tenha nenhuma
responsabilidade para com seu(sua) concubino(a) implicará premiar tal
pessoa por sua infidelidade, justamente por se afastar qualquer
responsabilidade sua para com a pessoa com quem manteve anos de relação
concubinária33. Por outro lado, a aplicação de tal analogia deve supor,
necessariamente, o prazo prescricional de cinco anos para tais verbas
indenizatórias, já que tal é o prazo que o Direito do Trabalho prevê para
reclamações trabalhistas, em que a indenização jamais alcançaria valores
milionários, mesmo após décadas de convívio, em especial se compensada
a indenização com eventuais doações feitas ao concubino e não anuladas no
prazo legal fixado para o cônjuge pleitear tal anulação.

2.3.2 Analogia com o Direito Comercial – Teoria das sociedades de Fato


Após aquele primeiro momento, passou a Jurisprudência a perceber
que a analogia com o Direito do Trabalho não era suficiente, tendo em vista
que todo o patrimônio amealhado pelo casal de concubinos ia
inexoravelmente à família do homem, independentemente de quanto
houvesse contribuído a parceira para sua construção. Assim, sendo
novamente desconsiderado o afeto existente entre o casal, passaram os
magistrados a vislumbrar semelhança das relações extramatrimoniais às
sociedades de fato do Direito Comercial (sociedade não registrada na Junta
Comercial), do que resultou o entendimento de que dita sociedade poderia
ser dissolvida judicialmente, mediante a apuração de haveres dos “sócios”,
como forma de evitar o enriquecimento ilícito de uma das partes em relação
à outra. Dessa forma, cabia à parte autora (a concubina) provar o quanto
tinha contribuído para a construção do patrimônio de dita sociedade para
que pudesse receber a sua “quota” respectiva. Foi dessa construção
jurisprudencial que resultou a já transcrita Súmula 380 do STF, que
consagra exatamente o que se acabou de expor34-35.
Apesar do significativo avanço atingido por esse entendimento, um
problema restava: como a concubina normalmente ficava em casa cuidando
da família dita “ilegítima”, em geral não tinha como provar sua
contribuição monetária para a construção do patrimônio amealhado, uma
vez que, em regra, não tinha feito tal espécie de contribuição. Assim, ante a
absoluta falta da presunção legal de condomínio existente entre as partes,
como já ocorria nos casos das relações ratificadas pelo casamento civil, nas
quais se presumia a contribuição de 50% de cada parte, cuja divisão dos
bens (razão pela qual tal divisão rege-se pelo regime de bens escolhido pelo
casal), ficava a concubina a ver navios, tendo em vista que não havia
contribuído com valores para a construção do patrimônio. Já nos
relacionamentos reconhecidos como entidades familiares, mesmo que não
haja nenhuma contribuição monetária por parte de um dos parceiros para a
construção do patrimônio do casal, parte-se da presunção absoluta (aquela
que não admite prova em contrário) de que sem o amor familiar desse
parceiro que nada contribuiu monetariamente, o outro não teria tido forças
para construir o patrimônio existente no momento da separação. Esta
presunção garante ao outro parceiro a meação do patrimônio existente, de
acordo com o regime de bens por eles escolhido, independentemente de
prova de efetiva contribuição patrimonial por parte dele.
Todavia, com relação às uniões concubinárias, o aspecto do apoio
emocional que qualquer parceiro afetivo traz ao outro era (e ainda hoje é)
totalmente desconsiderado, ao contrário do que acontecia (e acontece) em
relação às uniões matrimonializadas e, hoje, às decorrentes da união estável.
2.4 A evolução histórica do conceito de família
Independentemente do entendimento jurisprudencial, que ainda
denegava a condição de família legítima às relações de concubinato, o
número cada vez maior de relacionamentos extramatrimoniais fez a
doutrina, gradativamente, entender que o casamento civil não é pressuposto
fundamental à formação de famílias, superando-se aos poucos o conceito da
já citada família institucional/hierárquica. Nesse sentido, leciona Maria
Berenice Dias36:

Segundo Rosana Fachin, nessa evolução, a função procriacional


da família e seu papel econômico perdem terreno para dar lugar a
uma “comunhão de interesses e de vida, em que laços de afeto marcam
a estabilidade da família”. Os novos modelos familiares estão quase a
desafiar a possibilidade de encontrar-se uma conceituação única para
sua identificação. Hoje as relações de afeto caminham à frente
[Silvana Maria Carbonera]. As premissas básicas em que sempre
esteve apoiado o Direito das Famílias – sexo, casamento e reprodução
–, conforme bem observa Rodrigo da Cunha Pereira, desatrelaram-se.
(...)

Assim, no final do século XX, a Doutrina e a Jurisprudência viram-se


obrigadas a reconhecer a verdadeira entidade familiar formada pelos
relacionamentos afetivos extramatrimoniais. Afinal, os próprios juristas que
a isto se opunham admitiam, por mais que não fosse sua intenção, que ditos
relacionamentos formavam famílias, com a ressalva de serem famílias
“ilegítimas” (leia-se: não protegidas pelo Direito). Logo, reconheciam que
formavam famílias sociológicas, famílias de fato, embora a legislação a elas
não reconhecesse efeitos jurídicos.
Nesse sentido, o número cada vez maior de relacionamentos
concebidos fora do casamento foi tornando cada vez mais evidente que não
se reconhecia a entidade familiar formada entre os companheiros por puro
preconceito – preconceito este decorrente da concepção difundida pelas
religiões em geral de que o casamento seria a única forma de constituição
de uma família “legítima”, sendo as demais uniões afetivas mero pecado
dos envolvidos (ainda hoje, a Igreja Católica considera o casamento como a
única forma de ter uma família “legítima”). É inegável a influência da
Igreja Católica Apostólica Romana nesse sentido, uma vez que, antes da
separação entre Estado e Igreja, esta efetivamente regulamentava, ainda que
indiretamente, a vida de todas as pessoas sob seu poder (em especial na
Idade Média), ante sua notória influência sobre os Estados de então, em que
se consagrou a ideia de que o matrimônio heteroafetivo seria a única forma
“aceitável” de relação amorosa entre duas pessoas (lembrando-se que o
Brasil Imperial foi um Estado Confessional-católico, só surgindo a laicidade
estatal no Brasil com a primeira República).

Até bem pouco tempo, percebia-se a família, na proximidade de


um casal heterossexual, vinculado pelos laços indissolúveis do
matrimônio e a descendência proveniente desse enlace. A simbologia
mental representativa da família, para muitos ainda hoje, é a desse
agrupamento tradicional, portanto, casado. As razões que uniam e
mantinham tais famílias eram diversas; o afeto entre os membros que
as integravam, era uma delas, todavia, sem o poder conferido pela
liberdade de estar, sair, acolher, afastar, uma vez que o casamento era
indissolúvel; a importância exagerada conferida ao patrimônio, a
desigualdade entre filhos e entre homens e mulheres, conferiam razões
para o ‘estar junto’ que podiam coincidir ou não, com um sentimento
de inclinação emocional pelo outro. Não há, nesse modelo
formalizado, dificuldades em se enxergar a família, pois o sangue e,
principalmente, o documento, materializava a relação. Talvez
existissem mais dificuldades para viver a família.37
O Código Civil de 1916, refletindo as concepções morais de seu
momento histórico, somente considerava como legítimas em jurígenas
as uniões de homens e mulheres quando resultantes do casamento.
Todas as outras uniões entre pessoas de sexos diferentes ou de mesmo
sexo, com a finalidade de vida em comum eram tidas (a) como ilícitas,
(b) simplesmente imorais. (...) À família legítima eram assegurados
todos os direitos e deveres possíveis resultantes das relações de
parentesco, que eram juridicizadas (= reconhecidas como relações
jurídicas). Paralelamente, negava-se à família ilegítima a geração de
qualquer eficácia jurídica, sendo até proibido o reconhecimento de
filhos nascidos no seu seio, exceto quando se tratava de filho natural (=
filho havido de relações entre pessoas que não ostentavam qualquer
impedimento dirimente absoluto para casar, v.g. os solteiros, viúvos,
sem parentesco, consanguíneo ou afim, em grau proibido.38
O Código Civil de 1916 foi elaborado em um contexto marcado
pela transição do contexto do direito individualista para um direito de
cunho social, e seus dispositivos refletiam, ainda, influências advindas,
não só do Código Napoleônico, assimiladas pela maioria das
codificações da época, como também do Direito Canônico, face às
influências da Igreja Católica na organização da sociedade. Para a
Igreja, a família advinha do casamento, monogâmico, indissolúvel e
percebido como um sacramento. No Código de Napoleão, a família
também era formada pelo casamento e o direito de família seguia o
padrão fundamentado na autoridade paterna, no poder marital, na
incapacidade e submissão da mulher, na dependência e na
desigualdade entre os filhos em razão da origem. (...) Natural,
portanto, que a legislação civil refletisse o estilo da sociedade, cuja
estrutura familiar baseava-se no patriarcado, na desigualdade e na
submissão. Neste sentido, a norma considerava uma única forma de
família, a família legítima, constituída pelo casamento, e, a partir deste
paradigma, disciplinava as relações pessoais e patrimoniais entre os
cônjuges, os efeitos do matrimônio, a filiação, o parentesco, a
autoridade parental. Qualquer união diferente do padrão legal era
objeto de discriminação, bem como a filiação fora do casamento era
considerada ilegítima.39

Nesse sentido, como bem dito pelo juiz Antônio Mônaco Neto, da
Comarca de Salvador/BA em decisão de 12.04.2012, “a base da
constituição da família deixou de ser a procriação e a geração de filhos,
para se concentrar na troca de afeto e de amor”, compreensão esta que
constitui o entendimento contemporâneo sobre a importância da afetividade
nas relações familiares aliada à publicidade, durabilidade, continuidade e
intenção de constituir família [mediante comunhão plena de vida e
interesses]40, na medida em que dita decisão afirmou que “amor e afeto
[são] sentimentos basilares para lastrear a vontade de formar uma entidade
familiar e estabelecer objetivos em comum, além da convivência e mútua
assistência, com características de duração, publicidade , continuidade e
intenção de constituir família”. Em suma, tem-se que a afetividade está na
gênese das relações familiares, devendo-se garantir proteção às diversas
formas de entidades familiares baseadas no afeto e no desejo sincero de
constituir uma relação estável e duradoura, visto que o ponto comum entre
todas as famílias contemporâneas é o amor41.
Toda essa evolução no conceito de família só vem demonstrar que não
se pode ter a pretensão de classificá-la em apenas um determinado tipo de
relação. Deve-se ter em mente que o amor familiar42 entre os envolvidos é
o principal elemento a ser considerado quando se visa o reconhecimento de
uma relação como sendo pertencente ao ramo do Direito das Famílias – isto
porque aqueles diretamente envolvidos já têm a certeza de que são, sim,
uma verdadeira família, por mais que o legislador ou parte dos profissionais
do Direito ainda não o reconheçam em face dos seus próprios preconceitos.
Nessa linha, conforme se demonstra adiante, verifica-se que o nosso
ordenamento jurídico não admite a discriminação das uniões homoafetivas
em relação às heteroafetivas, uma vez que dita discriminação afronta os
princípios da isonomia e da dignidade da pessoa humana.

2.4.1 O amor familiar como o elemento formador da família


contemporânea. STF, ADPF 132 e ADI 4.277
Como se sabe, a Constituição Federal de 1988 mudou completamente o
paradigma do Direito de Família pátrio. A Carta Magna, ao deixar de
considerar o casamento civil como requisito indispensável à constituição de
uma família legítima (entendida como aquela protegida pelo Direito),
passou a considerar o amor familiar43 como requisito indispensável à
formação da família juridicamente protegida (aqui entendido como o amor
que vise a uma comunhão plena de vida e interesses, de forma pública,
contínua e duradoura). Ou seja, ao deixar de reconhecer expressamente
apenas um modelo familiar como juridicamente legítimo, o art. 226 da
CF/1988 consagrou o princípio da pluralidade de entidades familiares
justamente por reconhecer que mais de um tipo de união amorosa forma
uma família juridicamente protegida – logo, o art. 226 da CF/1988
consagrou o Direito das Famílias, no plural, em detrimento do Direito de
Família, no singular, por garantir proteção a todas as uniões que se
enquadrem no conceito ontológico/material de família.
Ademais, não são taxativas as hipóteses de família apontadas na
Constituição (casamento civil, união estável e monoparental), pois, se assim
o fosse, o constituinte teria elaborado um dispositivo com a dicção: “Só são
protegidas as famílias oriundas de...” ou similar, o que não existe em nosso
ordenamento jurídico. Ou seja, é claramente exemplificativo o rol de
entidades familiares citado pelo art. 226 da CF/198844.
Assim, se para o Código Civil de 1916 era irrelevante o amor existente
na relação, sendo apenas considerada a cerimônia de casamento civil para a
formação da família juridicamente protegida daquela época pelo cunho
eminentemente patrimonialista daquela codificação, que não se importava
com a pessoa humana, mas apenas com o patrimônio do homem45, isto
deixou de ser juridicamente aceitável com o advento da Constituição de
1988. A partir do momento em que reconheceu a união estável como
entidade familiar, consagrou ela uma realidade social já há muito existente,
qual seja a de que só se forma uma família quando existe amor romântico
na relação entre duas pessoas, visto que é o elemento que diferencia as
entidades familiares formadas por casais das relações comerciais ou de
amizade (embora a família não se forme apenas pelo amor romântico, como
adiante se verá).

A transição se dá, como precisamente explica o Prof. Paulo Lôbo,


com a implementação do estado social, que “desenvolvido ao longo do
séc. XX caracterizou-se pela intervenção nas relações privadas e no
controle dos poderes econômicos, tendo por filtro a proteção dos mais
fracos. Sua nota dominante é a solidariedade de seus membros ou a
promoção da justiça social. O intervencionismo também alcança a
família. Com o intuito de redução dos poderes domésticos –
notadamente do poder marital e do poder paterno –, da inclusão e
equalização dos seus membros e na compreensão de seu espaço para a
promoção da dignidade humana”. Interessante é a percepção de alguns
estudiosos sobre o papel social exercido pela família moderna, locus
de amor, de intimidade e da vida privada, qual seja o de verdadeiro
repositório do sagrado, antes encarnado em noções como as de
Divindade, nação e pátria. É a retomada, em outras bases que não a do
liberalismo oitocentista, de um humanismo entranhado no conceito de
família do afeto. Nas palavras do filósofo francês Luc Ferry, “a história
da família moderna, fundada no sentimento, vai nos mostrar que a
única causa que vale a pena, afinal, é a da pessoa”. Cumpre, portanto,
indagar se, dentro da perspectiva jurídica dessa família plural,
igualitária, democrática e afetiva, teria lugar a aplicação da Teoria da
Perda de uma Chance.46

Segundo Breezy Miyazato, Vizeu Ferreira e Rita de Cássia Resquetti


Tarifa Espolador47, “A família clássica, representada pelo Código Civil de
1916, extremamente hierarquizada e patriarcal, e fundada na
transpessoalidade, cede espaço para a família contemporânea, que, ao
contrário da codificada, tem por pressuposto o aspecto eudemonista, ou
seja, a realização pessoal de seus membros, estes ligados por laços afetivos,
de comunhão de vida e de afeto (...) A superação da família clássica
matrimonializada cedeu espaço para a família eudemonista, ou seja, a
família contemporânea deve ser um lugar de comunhão de afeto e
realização pessoal, de ajuda e esforços mútuos entre todos os componentes
daquela relação familiar”.
A constatação disso é muito simples: em primeiro lugar, duas pessoas
não ficam juntas se não estiverem ligadas por um forte vínculo afetivo
(amor familiar), e isso já há muito tempo em nossa história. Em segundo
lugar, nem a doutrina nem a jurisprudência trazem outro fundamento para
justificar a formação da família contemporânea oriunda do amor romântico
que vise a uma comunhão plena de vida e interesses, de forma pública,
contínua e duradoura (ou seja, da relação amorosa e conjugal não eventual
de duas pessoas), limitando-se a dizer elas passam a ser protegidas com o
casamento civil e com a união estável.

Incorporando uma metodologia constitucionalizada do direito


civil, o direito de família abandona o viés patrimonializante próprio
do direito civil clássico liberal e passa a valorar as relações familiares
segundo seu prioritário aspecto existencial, pondo em segundo plano
o caráter econômico nelas envolvido.48
No âmbito das relações e família somos protagonistas do florescer
de um modelo fundado sobre os pilares da repersonalização, da
afetividade, da funcionalização, da pluralidade e do eudemonismo.49
A pós-modernidade e, com ela, a fragmentação das regras lineares
de conduta, viabilizou o descortinamento dessas famílias marginais. A
liberdade de extinguir e criar núcleos familiares e, em alguns
momentos, a “independência”, no sentido de não ser essencial o
cumprimento de alguns papéis biologicamente e/ou culturalmente
assinalados para a espécie humana dividida (até hoje) em gênero, pelos
modelos masculino e feminino, vem clamar pela tutela de interesses
materiais e existenciais para quem, até pouco tempo, era invisível ao
Direito. Assim, retirado o invólucro da formalidade, emerge o afeto
que passa a ser visto como aquilo que origina e mantém as famílias.
(...) 50
Assim temos que o princípio da liberdade, em relação aos
cônjuges ou companheiros, se verifica na escolha do tipo de entidade
familiar que será constituída, na sua manutenção ou não.51

Nesse sentido, conforme nos ensina Maria Berenice Dias52, a


compreensão do que constitui a família contemporânea supõe a
identificação do elemento que autorize reconhecer a origem do
relacionamento das pessoas – elemento este que é o afeto, ou seja, é o
envolvimento emocional que leva a subtrair um relacionamento do campo
obrigacional para trazê-lo ao âmbito familiar53. A autora bem ressalta a
evolução histórica do conceito de família, que é um agrupamento cultural,
uma construção social que, em seu início, em dado momento histórico, teve
no casamento civil uma convenção social criada para impor limites ao
homem, ser desejante que, na busca do prazer, tende a fazer do outro um
objeto, donde o conservadorismo social relegou os vínculos afetivos a um
segundo plano, só merecendo aceitação social se chancelados pelo que se
convencionou chamar de matrimônio, em uma concepção puramente
hierarquizada e patriarcal da família, que servia aos propósitos capitalistas
de unidade de produção54 (e, acrescento, de consumo). Contudo, ressalta a
autora que esse quadro não resistiu à Revolução Industrial, visto que o
ingresso da mulher no mercado de trabalho fez que o homem deixasse de
ser a única fonte de subsistência da família, além do que a migração das
famílias para as cidades fê-las viver em espaços menores, o que levou à
aproximação de seus membros e ao prestígio do vínculo afetivo entre seus
integrantes muito mais do que às formalidades do casamento civil, donde a
família transformou-se, de hierarquizada e patriarcal, em nuclear, restrita ao
casal e sua prole55. Justifica-se, portanto, a compreensão da família como
uma comunidade de afeto, um verdadeiro LAR – Lugar de Afeto e
Respeito56, ou seja, relação de pessoas: a família como a relação das
pessoas ligadas por um vínculo de consanguinidade, afinidade ou
afetividade57.
Ainda segundo Maria Berenice Dias58, “A união pelo amor é que
caracteriza a entidade familiar e não a diversidade de sexo. E, antes disso,
é o afeto a mais pura exteriorização do ser e do viver, de forma que a
marginalização das relações mantidas entre pessoas do mesmo sexo
constitui forma de privação do direito à vida, em atitude manifestamente
preconceituosa e discriminatória. Deixemos de lado as aparências e
vejamos a essência”. Essa é uma compreensão que vem se consolidando, de
sorte a podermos falar realmente em um Direito das Famílias em
detrimento de um Direito de (uma única) Família. Com efeito, como bem
diz a psicanalista Malvina Ester Muszkat59, parece que “todas as disciplinas
envolvidas no estudo das famílias contemporâneas compartilham, em
menor ou maior grau, a ideia de que enquanto na família tradicional é o
‘casamento que legitima o amor’, na família contemporânea é ‘o amor que
legitima o casamento’”.
Afinal, como bem afirma Luc Ferry, “O amor é o novo grande
princípio da nossa existência”, sendo que, no que tange à família conjugal,
vivemos uma era na qual as pessoas se escolhem fundamentalmente, senão
exclusivamente, por amor60 (abstraídos “casamentos por conveniência”, os
quais não visam formar uma família conjugal, mas apenas auferir os
benefícios dela, razão pela qual casos como este não devem afastar a
conclusão de que, no mundo contemporâneo, as pessoas formam famílias
conjugais por conta do amor que sentem uma pela outra).
Dessa forma, “O direito de família contemporâneo ganha novos
contornos com a conquista da valorização da afetividade em suas relações,
constituindo importante fator a ser considerado na prática judicante,
devendo nossos operadores, ante [a] falta de regulamentação específica,
adequar as necessidades imanentes do direito de família, por meio de
interpretação que venha tutelar a dignidade da pessoa humana aos anseios e
necessidades das complexas estruturas familiares de nossa sociedade”61.
Sobre o tema, vale citar a lição da psicanalista Giselle Câmara
Groeninga62, para quem “a família deve ser reduto de amor (...) sua
finalidade está em cuidar dos mais ou menos dependentes”. Cite-se, neste
ponto, a posição de Antonio Jorge Pereira Jr.63, segundo a qual “Amar
pressupõe conhecer, ou seja, possuir intelectualmente a forma do bem que
nos atrai. Amar leva o sujeito a trabalhar para o bem do ser amado, a
despeito de si próprio. Quem ama, gasta-se pelo bem do outro. (...) Amar,
mais que sentir-se bem, é dar-se e doar-se”. Nesse sentido, a família
contemporânea só se forma e se sustenta enquanto houver reciprocamente
no casal este amor de bem querer o amado (e não o mero desejo que o
amado nos complete), o que demonstra ser o amor o elemento fundador e
primordial da família contemporânea (embora o amor isoladamente
considerado não forme a família, como adiante se demonstra).
Assim, como bem diz Jorge Duarte Pinheiro, não se pode desconsiderar
o amor no Direito das Famílias, pois isso seria desistir do próprio Direito
das Famílias, por ter este na sua essência o amor, que é o elemento
subjacente a todas as relações jurídico-familiares e que é objeto de tutela
constitucional no que tange ao direito do desenvolvimento da personalidade
(que abarca as relações afetivas)64. Parece ser esta a posição do citado autor
quando afirma que “A decisão de amar que gera vínculo sólido é
intermediada pela capacidade racional de aderir a um projeto de doação de
si e pela vontade forte de determinar-se. Vai além da satisfação sensorial
(...). A relação de amor verdadeiro consolida-se mediante compromisso
sério e firme de doação. (...) Um amor autêntico requer uma autêntica
liberdade, que se manifesta na atitude de compromisso de amar com
plenitude no tempo – por toda a vida – e no espaço – fidelidade”65.
É a posição da doutrina contemporânea.
Nas precisas palavras de Luiz Edson Fachin66:
Clama-se, e não é de agora, por um direito de família que veicula
amor e solidariedade. (...) O desenho familiar não tem mais uma única
configuração. A família se torna plural. Da superação do antigo
modelo da grande-família, na qual avultava o caráter patriarcal e
hierarquizado da família, uma unidade centrada no casamento, nasce a
família constitucional, com a progressiva eliminação da hierarquia,
emergindo uma restrita liberdade de escolha; o casamento fica
dissociado da legitimidade dos filhos. Na família constitucionalizada
começam a dominar as relações de afeto, de solidariedade, de
cooperação. Proclama-se, com mais assento, a concepção eudemonista
de família: não é mais o indivíduo que existe para a família e para o
casamento, mas a família e o casamento existem para o seu
desenvolvimento pessoal, em busca de sua aspiração à felicidade.

Para a psicanalista Giselle Câmara Groeninga67:

De uma família matrimonializada, patrimonializada, sacralizada e


biologizada chegamos atualmente na família eudemonista – em que o
foco central são os relacionamentos em que cada um tem o direito à
sua realização e bem-estar, na complementariedade das funções que
compõem esta estrutura pavimentada pelo afeto, sobretudo do amor, e
que encontra sua forma particular de composição e sua identidade
peculiar, dependendo das características de seus membros. E as formas
de convivência são particulares a cada família, em estreita ligação
também com o tratamento dado à questão do patrimônio (...).

Nos termos do voto do Ministro Luiz Fux68, no julgamento da ADPF


132 e da ADI 4.277:

O que faz uma família é, sobretudo, o amor – não a mera afeição


entre os indivíduos, mas o verdadeiro amor familiar, que estabelece
relações de afeto, assistência e suporte recíprocos entre os integrantes
do grupo. O que faz uma família é a comunhão, a existência de um
projeto coletivo, permanente e duradouro de vida em comum. O que
faz uma família é a identidade, a certeza de seus integrantes quanto à
existência de um vínculo inquebrantável que os une e que os identifica
uns perante os outros e cada um deles perante a sociedade. Presentes
esses três requisitos, tem-se uma família, incidindo, com isso, a
respectiva proteção constitucional. (...) Pois bem. O que distingue, do
ponto de vista ontológico, as uniões estáveis, heteroafetivas, das
uniões homoafetivas? Será impossível que duas pessoas do mesmo
sexo não tenham entre si relação de afeto, suporte e assistência
recíprocos? Que criem para si, em comunhão, projetos de vida
duradoura em comum? Que se identifiquem, para si e para terceiros,
como integrantes de uma célula única, inexoravelmente ligados? A
resposta a essas questões é uma só: Nada as distingue. Assim como
companheiros heterossexuais, companheiros homossexuais ligam-se e
apoiam-se emocional e financeiramente; vivem juntos as alegrias e
dificuldades do dia a dia; projetam um futuro comum. Se,
ontologicamente, união estável (heterossexual) e união (estável)
homoafetiva são simétricas, não se pode considerar apenas a primeira
como entidade familiar. Impõe-se, ao revés, entender que a união
homoafetiva também se inclui no conceito constitucionalmente
adequado de família, merecendo a mesma proteção do Estado de
Direito que a união entre pessoas de sexos opostos. (...) É certo que o
ser humano se identifica no agrupamento social em que vive, desde a
sua célula mais elementar: a família. Permitir ao indivíduo identificar-
se publicamente, se assim o quiser, como integrante da família que ele
mesmo, no exercício da sua autonomia, logrou constituir, é atender ao
princípio da dignidade da pessoa humana; permitir ao homossexual
que o faça nas mesmas condições que o heterossexual é observar o
mesmo respeito e a mesma consideração – é atender à igualdade
material consagrada na Constituição. (...) A aplicação da política de
reconhecimento dos direitos dos parceiros homoafetivos é imperiosa,
por admitir a diferença entre os indivíduos e trazer para a luz relações
pessoais básicas de um segmento da sociedade que vive parte
importantíssima de sua vida na sombra. Ao invés de forçar os
homossexuais a viver de modo incompatível com sua personalidade,
há que se acolher a existência ordinária de orientações sexuais
diversas e acolher uma pretensão legítima de que suas relações
familiares mereçam o tratamento que o ordenamento jurídico confere
aos atos da vida civil praticados de boa-fé, voluntariamente e sem
qualquer potencial de causar dano às partes envolvidas ou a terceiros.
Ressalte-se este último ponto: uma união estável homoafetiva, por si
só, não tem o condão de lesar a ninguém, pelo que não se justifica
qualquer restrição ou, como é ainda pior, a limitação velada, disfarçada
de indiferença. (grifos do original)

Nesse sentido, é de se reconhecer o status jurídico-familiar das uniões


homoafetivas69, visto que pautadas no mesmo amor que as heteroafetivas,
das comunidades anaparentais70, pois pautadas por um afeto análogo ao do
casamento civil e da união estável e de toda e qualquer comunidade
eudemonista71, que, baseada no princípio jurídico do afeto72, na busca pela
felicidade e na solidariedade, define-se como a família que “busca a
felicidade individual vivendo um processo de emancipação de seus
membros”.73 Estes são os exemplos atuais, porém a extensão do Direito das
Famílias não cabe só a eles, mas a todas as relações interpessoais marcadas
pelo afeto que vise a uma comunhão plena de vida e interesses, de forma
pública, contínua e duradoura, por meio de analogia à interpretação
teleológica do art. 1.511 do CC/2002 – analogia porque, apesar de diversos,
os afetos (romântico e fraterno, respectivamente) são idênticos no essencial
– que é a construção de uma família na relação interpessoal em questão.
Ou seja, o texto constitucional consagrou expressamente a mudança do
conceito de família, tendo em vista ter considerado o amor como o
elemento central na sua formação ao reconhecer a união estável como
entidade familiar. Então, a diferença entre a união estável e uma relação
pública, contínua e duradoura entre dois amigos é o amor romântico
existente na relação (considerando que a relação entre dois amigos é
marcada pelo amor fraterno), mas ambas merecem a mesma proteção
jurídica diante do fato de serem formadas pelo amor familiar, o amor
romântico que vise a uma comunhão plena de vida e interesses, de forma
pública, contínua e duradoura (sendo irrelevante, para fins de divisão
patrimonial, o fato de uma ser pautada pelo amor romântico e outra pelo
amor fraterno).
Assim, tem-se por inequívoco que foi mudado o conceito da família no
mundo contemporâneo. Enquanto durante a maior parte do século XX
reconhecia-se apenas a família sacralizada pelo casamento civil, a partir do
final do referido século as famílias passaram a se formar principalmente por
meio das uniões amorosas em detrimento do modelo institucional anterior,
cuja crise derrocou no ingresso da afetividade como fundamento maior da
família contemporânea74. Tal mudança decorreu do fato de que, ao longo do
século XX, a sociedade passou a dar muito mais importância à affectio
maritalis75 (que é a “vontade específica de firmar uma relação íntima e
estável de união, entrelaçando as vidas e gerenciando em parceria os
aspectos práticos da existência”76) do que à mera formalidade do casamento
civil para a formação de suas famílias. Isso porque, apesar de o Código
Civil de 1916 estabelecer que o vínculo matrimonial era indissolúvel
(embora a sociedade conjugal, na época, pudesse ser dissolvida pelo antigo
desquite), quando o casamento civil “fracassava” ou quando os
companheiros simplesmente não queriam se casar civilmente, passavam
eles a manter uma relação amorosa não matrimonializada, mesmo não
sendo isso aceito pelo referido diploma legal – o que se caracterizava como
“concubinato impuro” (que é o atual concubinato): ou seja, a união amorosa
de duas pessoas impedidas de se casar, no caso, por se encontrarem
formalmente casadas, embora separadas pelo fracasso do seu casamento
indissolúvel77.
Com o passar das décadas, tal situação foi-se tornando cada vez mais
comum, tendo sido esta a causa da criação da notória Súmula 380 do
Supremo Tribunal Federal78, que, sem dar ares de legitimidade ao
concubinato, pelo menos passou a garantir-lhe os efeitos jurídicos oriundos
da “teoria das sociedades de fato”, por meio de uma analogia às sociedades
empresariais não registradas do Direito Comercial. Assim, mesmo não
sendo juridicamente reconhecidas como famílias “legítimas”, as uniões
concubinárias se multiplicaram com o passar dos anos – principalmente no
que tange ao antigo concubinato puro (aquele entre pessoas não impedidas
de se casar).
Como se pode ver, a sociedade humana deixou de considerar a mera
formalidade do matrimônio civil como o elemento determinante da família.
Com a maior convivência dos casais, oriunda da passagem da sociedade
rural para a sociedade urbana, passaram as pessoas a valorizar cada vez
mais o amor existente na relação, sendo que o término de dito sentimento
ensejava o término da relação familiar, em que pese a legislação da época
não possibilitar o divórcio. Dada a ausência dessa possibilidade, as pessoas
passavam a viver em “casamentos de conveniência”, separadas de fato ou
então desquitadas, não obstante o repúdio da sociedade da época a estas
últimas condutas. Afinal, o que sempre importou a partir do século XX foi a
busca pela felicidade, mesmo que isso importasse em uma vida fora dos
contornos do Direito.
Dessa simples exposição vê-se que a sociedade atual considera o amor
familiar como o elemento formador da família contemporânea, uma vez que
é ele que determina a união familiar de duas pessoas, e não a mera
formalidade do matrimônio civil79.
Por outro lado, convém deixar claro que o amor não é capaz de,
isoladamente, formar uma entidade familiar, muito embora seja seu
principal elemento. Uma família não se forma apenas pelo amor, mas pela
conjugação do amor a uma comunhão plena de vida e interesses, de forma
pública, contínua e duradoura, de forma a que o casal: (i) efetivamente
desenvolva uma vida em comum, com divisão de alegrias e tristezas; (ii) se
identifique perante seu grupo de convivência enquanto tal; (iii) esteja em
união amorosa por um período de tempo contínuo, ou seja, sem intervalos
de separação; e, por fim, (iv) esteja em união amorosa duradoura, dentro de
um lapso temporal a caracterizar a estabilidade da relação. É o afeto
familiar80 citado por Sérgio Rezende Barros, claramente oriundo da
interpretação teleológica dos arts. 1.511 e 1.723 do CC/2002.
Ou seja, é a soma do amor a uma comunhão plena de vida e
interesses81, de forma pública, contínua e duradoura82, com o intuito de
constituir família, o que basta para a formação da família juridicamente
protegida. Fica claro, dessa forma, que o amor que vise a uma comunhão
plena de vida e interesses, de forma pública, contínua e duradoura é o
amor familiar que forma a família contemporânea, tendo sido superado o
antigo modelo de “família institucional”, que era aquela formada por um
modelo fechado, existente por si mesmo independentemente do sentimento
de seus membros, e que tinha que cumprir com determinadas formalidades
para ser juridicamente protegido, para ser reconhecida a família afetiva,
oriunda do amor existente na relação83-84.
Ademais, a constatação de que o elemento formador da família
contemporânea é o amor que vise a uma comunhão plena de vida e
interesses, de forma pública, contínua e duradoura foi, inclusive,
positivada, o que se percebe pela interpretação teleológica dos arts. 1.511 e
1.723 do Código Civil85. Ou seja, nota-se que o casamento civil, que ainda
é visto como o modelo ideal de família pelo nosso ordenamento jurídico-
constitucional visa ao estabelecimento de uma comunhão plena de vida
entre os cônjuges, donde não se admite uma família que não seja pautada na
convivência plena e integral de interesses entre os parceiros – o que só
existe na ocorrência de amor na relação, pois uma convivência pública,
contínua e duradoura entre dois amigos como se irmãos fossem (familiares,
portanto) não configura a união estável constitucionalmente consagrada
(ainda que tal família fraterna merece proteção equivalente à da união
estável, por analogia, por ambas formarem entidades familiares, embora
uma forme uma família fraterna e outra uma família conjugal) – mesmo
que tal relação se dê entre homem e mulher, para aqueles que
descabidamente se apegam à literalidade normativa sem atentar para a
teleologia do dispositivo constitucional em questão. A essa questão (que
constitui um dos cernes deste trabalho) se voltará no momento oportuno.
Por outro lado, a união estável reconhecida como entidade familiar é
aquela baseada no amor e exteriorizada em uma relação pública, contínua e
duradoura, com o intuito de constituir que seja família, ou seja, com o
intuito de estabelecimento de uma comunhão plena de vida entre os
companheiros, donde se percebe claramente que o amor familiar é o
elemento diferencial entre a união estável e as relações negociais ou de
amizade. É de se notar, ainda, que “constituir família” não significa “ter
filhos” (prole), tendo em vista que a capacidade procriativa não é condição
elencada pela legislação constitucional e/ou infraconstitucional para a
válida formação do casamento civil e da união estável, assim como a
ausência de fertilidade não constitui causa de nulidade ou anulação do
casamento civil, impedimento matrimonial nem nada do gênero, por
ausência de disposição normativa nesse sentido (lembrando-se que os
impedimentos matrimoniais são taxativos).
Disso fica ainda mais claro que “constituir família” significa manter
uma relação amorosa que vise a uma comunhão plena de vida e interesses,
de forma pública, contínua e duradoura, tendo em vista que a interpretação
teleológica dos textos normativos relativos ao casamento civil e à união
estável demonstra que a família constitui-se pela comunhão plena de vida e
interesses entre os parceiros, em uma comunidade de amor pública,
contínua e duradoura que vise à construção de uma vida em comum, nada
mais86. No mesmo sentido, a lição de Marcos Bernardes de Mello87, para
quem “Esse requisito de que haja, entre os conviventes, o objetivo de
constituir família tem recebido a crítica doutrinária, porque não deve haver,
apenas, o objetivo, mas, efetivamente, constituir uma família. Que significa
isto? Inicialmente, o desejo de uma vida em comum. Não que precisem ter a
intenção de ter filhos. Requer-se, apenas, que os conviventes passem a viver
perante as pessoas que formam seu círculo social como uma família,
assumindo um estado em tudo semelhante ao de pessoas casadas,
concedendo-se, mutuamente, o tratamento, a consideração, o respeito que
se devem dispensar, reciprocamente, os esposos, conforme sugere Zeno
Veloso”.
Outrossim, destaque-se que a expressão “o homem e a mulher” não
constitui “proibição implícita” ao reconhecimento da união estável
homoafetiva assim como do casamento civil homoafetivo, tendo em vista
que não existem proibições implícitas em Direito. Ou o texto normativo
proíbe expressamente determinado fato ou a extensão de determinado
regime jurídico, ou ele é tido como totalmente permitido, nos termos do art.
5.o, II, da CF/1988, que estabelece que ninguém será obrigado a deixar de
fazer algo senão em virtude de lei, donde, da mesma forma, somente o texto
normativo expresso pode excluir determinadas pessoas da proteção de
determinados regimes jurídicos, como o casamento civil e a união estável.
Nesse sentido, como não há texto normativo que proíba expressamente o
casamento civil e a união estável entre pessoas do mesmo sexo, e
igualmente não há legislação que diga que a união homoafetiva não
constituiria uma família juridicamente protegida, tem-se como descabido o
entendimento interpretativo que vise excluir as uniões amorosas formadas
por pessoas do mesmo sexo da proteção do Direito de Família pátrio,
inclusive por violar lição clássica de Direito Civil segundo a qual o fato de
a lei citar um fato e não proibir outro ao regulamentar um regime jurídico
implica lacuna normativa, passível de colmatação por interpretação
extensiva ou analogia, e não “proibição implícita”, na medida em que a lei
deixar de citar um fato quando regulamenta outro é pressuposto da
aplicação de tais técnicas interpretativas para colmatação de lacunas
normativas. Esse assunto será tratado pormenorizadamente em capítulos
próprios, que tratam da possibilidade jurídica do casamento civil e da união
estável entre pessoas do mesmo sexo.
É de se notar, ainda, que o Direito das Famílias pretende tutelar a
família, ou seja, todas as uniões que se caracterizem como famílias no
sentido ontológico do termo, em que não pode a família juridicamente
protegida deixar de tutelar aquelas famílias que não estejam expressamente
proibidas pelo Direito de receberem efeitos jurídicos. Afinal, “ninguém será
obrigado a fazer ou a deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei”,
nos termos do art. 5.º, II, da Constituição Federal – e deixar de conceder
efeitos jurídicos a determinada “família” é o mesmo que dizer que ela não
é aceita pelo Direito, o que só pode ser feito de forma expressa ante o
princípio de que não há nulidade sem texto (sendo que a interpretação
teleológica desta regra denota que, igualmente, não há restrição de direitos
sem texto), decorrente do citado artigo constitucional.
Cabe agora um esclarecimento: o leitor poderá estar se perguntando
sobre o porquê do uso da expressão amor familiar em vez de simplesmente
amor ou afeto. Isto decorre do fato da experiência deste autor, ao defender
perante outros juristas o afeto como o elemento formador da família
juridicamente protegida, ter ouvido como resposta, por vezes, algo como:
“ora, mas se assim o fosse então toda sociedade comercial formaria uma
família, em decorrência da affectio societatis ali existente”. Contudo, tal
colocação é absolutamente equivocada, tendo em vista que a affectio
societatis é completamente distinta da affectio maritalis existente nas
famílias oriundas das uniões amorosas. Com efeito, a affectio societatis
visa unicamente à formação de uma sociedade empresarial em decorrência
da mera afinidade dos sócios entre si, que visam ou a um conteúdo
econômico (lucro) ou a uma atividade beneficente (no caso de associações
e/ou fundações sem fins lucrativos). A affectio maritalis (o amor familiar),
por outro lado, busca uma comunhão plena de vidas e interesses, baseada
no amor, por meio da vida em comum, auxiliando o companheiro/cônjuge
em todos os momentos de dificuldade de sua vida, estando presente e
comemorando todos os seus sucessos e momentos felizes, e assim por
diante – conforme preconizado pelo já transcrito art. 1.511 do Código Civil.
Assim, tem-se que a affectio societatis e a affectio maritalis são sentimentos
completamente distintos, sendo o segundo o elemento formador da família
contemporânea e, consequentemente, da atual família juridicamente
protegida, e não o primeiro. Esta é a razão pela qual me refiro ao afeto
protegido pelo Direito das Famílias como amor familiar ao longo desta
obra, para que não haja a menor possibilidade de confusão de dito conceito
com a affectio societatis do Direito Comercial.
Desta feita, considerando-se que as famílias homoafetivas têm o
mesmo elemento determinante da formação das famílias heteroafetivas,
qual seja o amor familiar/afeto familiar88, afeto este que vise a uma
comunhão plena de vida e interesses, de forma pública, contínua e
duradoura, é inconstitucional a discriminação jurídica89 das primeiras em
relação às segundas, levando-se em conta unicamente a orientação sexual
do par, por afronta aos princípios da isonomia e da dignidade da pessoa
humana, normas constitucionais de eficácia plena que são, conforme se
demonstrará detidamente nos próximos capítulos.
Cabe, aqui, um último esclarecimento para finalizar o tópico. Muitos
juristas (e inclusive alguns julgados) costumam negar o caráter jurídico-
familiar das uniões homoafetivas e, quando confrontados com a constatação
de que o amor familiar é o elemento formador da família contemporânea,
dizem que a lei estaria sendo “clara” ao citar a união “entre o homem e a
mulher”, donde o afeto seria irrelevante para o deslinde da causa. Ou seja,
partem de uma visão de extremo legalismo, já totalmente ultrapassada pela
ciência jurídica, recusando-se a realizar uma interpretação teleológica
acerca do tema – dizem que a união homoafetiva não formaria uma família
juridicamente protegida, mas não se dignam a dizer o que formaria a
família juridicamente protegida segundo seu entendimento. Esse
posicionamento, contudo, é equivocado. Com efeito, é de se notar que a
união estável não se forma por uma mera “convivência pública, contínua e
duradoura” entre duas pessoas. Se dois amigos ou dois irmãos morarem
juntos de forma pública, contínua e duradoura eles não estarão formando
nenhuma união estável90. Da mesma forma, um homem e uma mulher que
não mantenham um vínculo amoroso entre si, mas morem juntos de forma
pública, contínua e duradoura por questão de conveniência (como para mera
divisão de despesas), não estarão formando uma “união estável”.
Ou seja, é evidente que é o amor romântico o elemento essencial da
união estável e, consequentemente, da família juridicamente protegida e do
casamento civil. Quanto a este, ninguém nunca se deu ao trabalho de
questionar qual seria o seu elemento essencial pelo fato de que a prova do
casamento civil se dá pela mera certidão de casamento, ao contrário da
união estável, que é uma união de fato e que, por isso, precisa ser
comprovada pela via judicial.
De qualquer forma, conforme salientado, uma união pública, contínua e
duradoura entre duas pessoas que não mantenham entre si uma união
amorosa, mas mera relação de amizade não forma a união estável, visto que
esta se caracteriza justamente por ser uma união amorosa. A legislação
exige para o reconhecimento de uma união amorosa de fato como união
estável o seu caráter público, contínuo e duradouro. Contudo, reitere-se que
é o amor romântico o elemento diferencial da união estável da relação de
amizade entre duas pessoas, donde o amor não é “irrelevante” no
julgamento de uma ação que vise a reconhecer uma união estável – ele é o
aspecto mais relevante, justamente por ser o elemento formador da família
contemporânea. Reitere-se, ainda, para que não se vislumbre inexistente
contradição entre o que se disse aqui e acima, que a união pública, contínua
e duradoura entre dois amigos deverá ser considerada como uma família
fraterna se houver amor fraterno pautado em uma comunhão plena de vida
e interesses entre eles, a despeito da inexistência de relações sexuais entre
ambos. A união pública, contínua e duradoura despida de comunhão plena
de vida não constitui família, ao passo que a união pública, contínua e
duradoura caracterizada por uma comunhão plena de vida e interesses (ou
seja, com o intuito objetivamente caracterizado de constituir família)
caracteriza uma entidade familiar, seja o afeto/amor em questão romântico
ou fraterno.

2.5 A família e a Constituição Federal de 1988


A família é a base da sociedade brasileira e deve receber especial
proteção do Estado. É o que dispõe o art. 226, caput, da CF/1988.
Um grande avanço trazido pela Constituição Federal de 1988 foi o
reconhecimento jurídico-familiar das uniões amorosas, de caráter estável,
formadas por duas pessoas (além da família monoparental). É o que dispõe
o art. 226, § 3.º, da CF/1988 (a inexistência de restrição da união estável às
uniões heteroafetivas será abordada em capítulo próprio). Assim, a ideia do
casamento civil como indispensável à constituição de uma família
“legítima” foi extirpada de nosso ordenamento jurídico com o advento da
Constituição Federal de 1988, uma vez que esta passou a reconhecer a
união estável como entidade familiar.
Foi consagrada, ainda, a tese de que a capacidade procriativa da
entidade familiar não é indispensável à constituição da família, uma vez que
elevou à condição de entidade familiar a família monoparental, que é a
comunidade formada por um dos pais e seu(s) descendente(s). Ora, se a
capacidade procriativa da família fosse indispensável à existência jurídica
da família, então seria extremamente contraditório o reconhecimento dessa
modalidade (monoparental), sendo que a Constituição não prega que seja
uma exceção ao conceito de família – a Constituição sequer conceituou a
família. Ou, como diz Paulo Lôbo91:

O modelo igualitário da família constitucionalizada se contrapõe


ao modelo autoritário do Código Civil anterior. O consenso, a
solidariedade, o respeito à dignidade das pessoas que a integram são os
fundamentos dessa imensa mudança paradigmática, que inspiraram o
marco regulatório estampado nos arts. 226 a 230 da Constituição de
1988.

Verifica-se, assim, que a Constituição Federal não restringiu a família à


união formada por duas pessoas que tenham contraído entre si o casamento
civil, uma vez que admitiu expressamente que ela se forma, também, a
partir do momento em que duas pessoas unem-se amorosamente com o
intuito de uma comunhão de vida e interesses de forma pública, contínua e
duradoura (união estável), assim como pela família monoparental. Cumpre
esclarecer que esses modelos não são taxativos, porque, se esse fosse o
intuito da Constituição o constituinte teria elaborado um dispositivo que
declarasse expressamente tal restrição – mesmo porque restrições a direitos
devem ser expressas, pois tudo que não é por lei expressamente proibido
tem-se por permitido, conforme explicita o art. 5.º, II, da CF/1988, em
interpretação a contrario sensu.
Ademais, ao contrário do que pregam alguns, a Constituição Federal
não restringiu a família decorrente da união amorosa somente àquela
formada por pessoas de sexos diversos e igualmente não definiu o
casamento civil como “regra” de família a ser seguida – esse era o modelo
das Constituições anteriores, que não se repetiu com o advento da Carta
Magna de 1988. Isso porque, em primeiro lugar, a Constituição não
conceituou a família – apenas fala que a família é a base da sociedade
brasileira. Por outro lado, a Carta Magna não proibiu as uniões
homoafetivas, além de não dizer que somente se forma a família oriunda da
união amorosa por meio da união heteroafetiva.
Nesse sentido, cumpre ressaltar que a restrição de direitos somente se
faz mediante enunciado normativo expresso. Pois bem: onde está o texto
normativo que restringe o Direito das Famílias às uniões heteroafetivas? A
resposta: em lugar nenhum! Essa vedação normativa não existe. Defender
que a redação do § 3.º do art. 226 da Lei Maior proibiria a união estável
entre pessoas do mesmo sexo, ou ainda que restringiria a entidade familiar
às uniões amorosas formadas por pessoas de sexo diverso, significa
simplesmente ignorar uma série de princípios de hermenêutica jurídica,
além dos princípios da igualdade, da dignidade da pessoa humana, da
analogia e da interpretação extensiva (estes dois decorrentes da isonomia e
consagrados por lei – arts. 4.o da LICC e 126 do CPC). Os conteúdos
jurídicos dos dois primeiros já foram explicitados neste trabalho – em
síntese, vedam eles a arbitrariedade jurídica, ou seja, a discriminação
arbitrária, que é aquela que não é dotada de uma motivação lógico-racional
que a justifique ante o critério desigualador erigido (que, nesse caso, é a
conjugação dos sexos do casal, caracterizadora da orientação sexual das
pessoas envolvidas). A discriminação efetuada nos dias de hoje é clara:
enquanto se garantem às uniões heteroafetivas todas as benesses do Direito
de Família, colocam-se as uniões homoafetivas em um grau inferior, visto
que a sua exclusão do conceito de família juridicamente protegida implica a
não concessão dos efeitos benéficos do Direito das Famílias a estas, no que
importa atribuir-lhes os efeitos concedidos às uniões concubinárias, o que
ocasiona uma proteção jurídica bem menor. Nesse sentido, conforme será
demonstrado nos capítulos subsequentes, considerando que inexiste
motivação lógico-racional a justificar dita discriminação, tem-se que ela
afronta os princípios da igualdade e da dignidade da pessoa humana e,
portanto, deve ser afastada por interpretação extensiva ou analogia.
Afinal, a interpretação extensiva visa estender o regime jurídico da
situação citada pelo texto normativo à situação não citada devido a serem
idênticas, visto que estabelece que, caso o legislador ou mesmo o
constituinte tenha exemplificado na redação do dispositivo legal quando
pretendeu garantir proteção jurídica a um fato jurídico, ou então, caso
desconhecesse que outras situações também se enquadravam na proteção
por ele pretendida, deveria tal proteção ser igualmente garantida a todas as
variações daquele fato jurídico, não expressamente citadas no dispositivo
legal, por se tratar de situações idênticas. Já a analogia implica a concessão
dos efeitos jurídicos garantidos a determinado fato jurídico a outro que,
apesar de não regulamentado, tem o mesmo elemento essencial daquele
expressamente regulamentado, pois, apesar de serem distintos, são idênticos
naquilo que é essencial à regulamentação, donde merecem a mesma
proteção jurídica. A diferença entre a interpretação extensiva e a analogia é
que, na primeira, trata-se de uma variação do mesmo fato expressamente
citado, ao passo que, na segunda, trata-se de um fato diferente, mas
semelhante naquilo que é fundamental àquele expressamente
regulamentado, razão pela qual se garante ao último a mesma proteção
jurídica conferida ao primeiro. Como se vê, são elas instrumentos
hermenêuticos de integração do Direito decorrentes da isonomia, criadas
em decorrência da impossibilidade de regulamentar todos os fatos jurídicos
existentes, devido às constantes mudanças da sociedade, cujos envolvidos e
suas necessidades não podem ser ignorados e marginalizados pelo Direito.
No caso das famílias decorrentes da união amorosa entre duas pessoas,
como suprademonstrado, o elemento que as caracteriza é o amor existente
na relação, que vise a uma comunhão plena de vida e interesses, de forma
pública, contínua e duradoura, razão pela qual considero as uniões
homoafetivas idênticas às heteroafetivas, visto serem ambas situações nas
quais temos duas pessoas que se amam romanticamente em uma comunhão
plena de vida e interesses, de forma pública, contínua e duradoura – mas,
ainda que assim não se entenda, é inegável que são idênticas pelo menos no
essencial, que é o amor familiar, visto que é ele o elemento formador da
família contemporânea.
Assim, sendo reconhecida a entidade familiar decorrente das uniões
amorosas entre pessoas de sexos diversos, deve ela ser igualmente
reconhecida naquelas uniões formadas por pessoas do mesmo sexo, em
decorrência da interpretação extensiva ou da analogia, uma vez que o amor
familiar existente nos dois casos é idêntico, visando os pares a uma
comunhão plena de vida, em caráter estável, público, contínuo e duradouro,
ou seja, visando a constituição de uma família – e constituir família não é
algo vinculado à filiação.
Portanto, não reconhecer a família formada pela união amorosa
formada entre duas pessoas do mesmo sexo implica criar uma
proibição/discriminação que não existe em nosso ordenamento jurídico-
legal-constitucional, o que é expressamente defeso pelo já citado art. 5.º, II,
da CF/1988, já que nossa Lei Maior não diz que uniões homoafetivas não
formam entidades familiares. Ressalte-se, novamente, que esse assunto será
tratado pormenorizadamente adiante.

2.5.1 Dos dispositivos constitucionais que tratam da família. Da ausência


de proibição às famílias homoafetivas ou de dispositivo que não as
reconheça. A interpretação do Ministro Ayres Britto no julgamento da
ADPF 132 e na ADI 4.277
Os opositores do reconhecimento da família homoafetiva alegam, em
geral, que a Constituição Federal teria previsto “apenas” a família formada
por um homem e uma mulher, ou seja, a família heteroafetiva. Todavia, é
equivocado este entendimento. Com efeito, é de se ressaltar que a
Constituição Federal não prevê, taxativamente, quais seriam os modelos de
família por ela protegidos. Se o fizesse, teria sido redigido um dispositivo
que dissesse que “Somente serão protegidas as seguintes famílias...”,
“Apenas serão protegidas as seguintes famílias...” ou algo similar, o que
não é o que ocorre em nosso texto constitucional.
O art. 226, caput, estabelece apenas que a família é a base da sociedade
brasileira e tem especial proteção do Estado. Em nenhum momento coloca
o casamento civil como “regra” da família juridicamente protegida, como
faziam as Constituições anteriores, assim como também não afirma que o
que se entende por família seria apenas o casamento civil, a união estável e
a comunidade formada por qualquer dos pais com seus descendentes, como
aduzem alguns. Igualmente, não proíbe em nenhum momento o
reconhecimento do status jurídico-familiar das uniões homoafetivas – como
bem reconhecido pelo Ministro Ayres Britto em seu voto no julgamento da
ADPF 132 e na ADI 4.277, em longa manifestação que concluiu,
acertadamente, que “a Constituição Federal não faz a menor diferenciação
entre a família formalmente constituída e aquela existente ao rés dos fatos.
Como também não distingue entre a família que se forma por sujeitos
heteroafetivos e a que se constitui por pessoas de inclinação homoafetiva”,
em que, interpretando de forma não reducionista o conceito de família,
penso que o STF fará o que lhe compete: manter a Constituição na posse do
seu fundamental atributo de coerência, pois o conceito contrário implicaria
forçar o nosso Magno Texto a incorrer, ele mesmo, em discurso
indisfarçavelmente preconceituoso ou homofóbico”, entende que “a família
é, por natureza ou no plano dos fatos, vocacionadamente amorosa, parental
e protetora dos respectivos membros, constituindo-se, no espaço ideal das
mais duradouras, afetivas, solidárias ou espiritualizadas relações humanas
de índole privada. O que a credencia como base da sociedade, pois também
a sociedade se deseja assim estável, afetiva, solidária e espiritualmente
estruturada”, a saber, “uma forma superior de vida coletiva, porque
especialmente inclinada para o crescimento espiritual dos respectivos
integrantes. Integrantes humanos em concreto estado de comunhão de
interesses, valores e consciência da partilha de um mesmo destino
histórico. Vida em comunidade, portanto, sabido que comunidade vem de
‘comum unidade’” 92.
Os parágrafos do referido dispositivo, da mesma forma, não definem o
que seria a “família constitucionalmente protegida”, conforme se passa a
demonstrar:
§ 1.º: este dispositivo afirma que o casamento juridicamente válido é
apenas o civil, não tendo nenhum valor para o Direito o casamento
meramente religioso (que serve, apenas, como prova de união estável). Em
nenhum momento traz alguma proibição ao casamento civil homoafetivo ou
alguma relação do casamento civil com o casamento religioso;
§ 2.º: aqui a Constituição apenas aduz que o casamento religioso
somente produzirá efeitos jurídicos caso seja ratificado pelo ordenamento
jurídico – é o denominado casamento religioso com efeitos civis. Este
dispositivo apenas possibilita que aqueles que queiram consagrar sua união
amorosa de acordo com seu credo religioso possam, igualmente, ter os
direitos civis oriundos da relação matrimonial juridicizada garantidos à sua
união. Contudo, em nenhum momento afirma o referido dispositivo que o
casamento civil não seria possível a casais homoafetivos – e o simples fato
de o casamento religioso em geral não ser possível de ser contraído por
pessoas do mesmo sexo por conta de arbitrários dogmas religiosos não
implica o fato de isso ocorrer com o casamento civil em decorrência do
princípio do Estado Laico, que veda a influência de qualquer religião na
vida política e jurídica do País, além do referido dispositivo não trazer
nenhuma relação necessária entre casamento civil e casamento religioso;
Nenhum desses dispositivos limita o casamento civil a casais
heteroafetivos, consoante voto do Ministro Ayres Britto na ADPF 132 e na
ADI 4.27793, apenas servindo-se, teleologicamente, a prestigiar o
casamento civil como “um pacto afetivo que se deseja tão publicamente
conhecido que celebrado ante o juiz, ou o sacerdote juridicamente
habilitado, e sob o testemunho igualmente formal de pessoas da sociedade.
Logo, um pacto formalmente predisposto à perdurabilidade e deflagrador de
tão conhecidos quanto inquestionáveis efeitos jurídicos de monta (...) uma
forma de constituição da família que se apresenta com as vestes da mais
ampla notoriedade e promessa igualmente pública de todo empenho pela
continuidade do enlace afetivo, pois, ao fim e ao cabo, esse tipo de prestígio
constitucional redunda em benefício da estabilidade da própria família”.
§ 3.º: este parágrafo consagra a grande evolução da Constituição
Federal de 1988, qual seja o reconhecimento da união amorosa não
consagrada pelo casamento civil como entidade familiar. Em nenhum
momento define este dispositivo o que seria a família juridicamente
protegida, apenas reconhece que a união estável formada por duas pessoas
que não sejam casadas também é considerada como entidade familiar, uma
das espécies das famílias juridicamente reconhecidas. Assim, consagra este
dispositivo o “amor familiar”94 como o elemento formador da família
contemporânea, visto que se não é alguma formalidade que gera a entidade
familiar juridicamente protegida, então só pode ser o sentimento de amor,
aliado à comunhão plena de vida e interesses, de forma pública, contínua e
duradoura, o que forma a entidade familiar protegida pela Constituição
Federal.
Quanto a este dispositivo especificamente, os opositores ao
reconhecimento da família conjugal homoafetiva em geral apoiam-se
exclusivamente na expressão “o homem e a mulher”, entendendo que seria
ela proibitiva da união estável e, em suma, da entidade familiar
homoafetiva. Chegam inclusive a afirmar que, em sendo a diversidade de
sexos “exigida” para a união estável, também o seria para o casamento
civil, sob o fundamento de que o que se exige ao “menos” também se
exigiria ao “mais”. Contudo, em um enorme equívoco hermenêutico,
esquecem-se aqueles que isso afirmam que toda norma tem como objeto de
proteção determinado elemento por ela considerado como importante por
meio de uma valoração. Ou seja, não é a letra fria do texto normativo que
prevalece, mas sua a finalidade, o seu objeto de proteção. Mesmo porque,
como tive oportunidade de afirmar em sustentação oral perante o Supremo
Tribunal Federal no julgamento da ADPF 132 e da ADI 4.277, o art. 226, §
3.º, diz que é reconhecida a união estável “entre o homem e a mulher” não
significa que ele disse que a união estável é reconhecida “apenas entre o
homem e a mulher” – como o apenas não está escrito, não há limites
semânticos no texto que impeçam a exegese constitucional inclusiva aqui
pretendida, de extensão da união estável a casais homoafetivos por
interpretação extensiva ou analogia (pois não se diz que a expressão “o
homem e a mulher” abarcaria a união homoafetiva, mas que ela é apenas
exemplificativa, não proibitiva da exegese extensiva/analógica inclusiva da
união homoafetiva no conceito de união estável).
Nesse sentido, cabe indagar: qual foi o elemento valorativamente
protegido pelo Constituinte quando elaborou o § 3.º do art. 226 da
Constituição Federal? A mesma pergunta deve ser feita quanto ao objeto de
proteção do casamento civil no art. 1.514 do Código Civil. A resposta a
estas perguntas é que determinará se as uniões homoafetivas podem ou não
ser reconhecidas como famílias juridicamente protegidas nos dias de hoje.
Por uma questão de ordem, no que tange ao conteúdo, prefiro tratar
dessa questão no Capítulo 7, que versa especificamente sobre a união
estável e sua aplicabilidade às uniões homoafetivas, razão pela qual remeto
o leitor àquele Capítulo para a continuação deste debate. Em síntese, o que
se pode dizer é que o elemento protegido pela norma constitucional e pelas
normas infraconstitucionais que versam sobre a união estável é a família
conjugal, formada pelo amor familiar, ou seja, pelo amor que vise a uma
comunhão plena de vida e interesses, de forma pública, contínua e
duradoura, sentimento este que é o elemento formador da família
contemporânea. Assim, apesar da omissão do enunciado normativo no que
tange às uniões homoafetivas, a união estável é possível entre elas, por
meio da interpretação extensiva ou da analogia, que são técnicas de
integração do ordenamento jurídico decorrentes da isonomia que visam
tratar igualmente os iguais ou então os fundamentalmente iguais, visto que
os princípios constitucionais são a forma correta de interpretar a
Constituição Federal (conforme explicitado naquele capítulo).
Não foi outra a conclusão do Ministro Ayres Britto no julgamento da
ADPF 132 e da ADI 4.277 ao afirmar que este nada tem a ver com a
dicotomia da heteroafetividade e da homoafetividade; afinal, “que não se
faça uso da letra da Constituição para matar o seu espírito”, mas apenas a
consagração da noção de que o casamento civil não é a única forma de
constituição de uma família legítima de proteção estatal, bem como garantia
contra o preconceito inferiorizante da mulher relativamente ao homem nas
relações conjugais entre companheiros95.
§ 4.º: este dispositivo apenas prevê, expressamente, que a comunidade
formada por qualquer um dos pais com seus descendentes também
configura uma entidade familiar, pelo mesmo motivo exposto
anteriormente: o preconceito que existia antes de 1988 com esse modelo
familiar, que gerava sua exclusão do Direito das Famílias, o que fez que o
Constituinte Originário deixasse expressa sua proteção jurídico-familiar. Ou
seja, não há nada a ser interpretado como proibição ou restrição de direitos
às uniões homoafetivas – também foi esta a conclusão do Ministro Ayres
Britto, ou seja, que este dispositivo constitucional serviu-se ao
reconhecimento da família monoparental como entidade familiar, não
significando que o rol de entidades familiares constitucionalmente
enunciadas seria taxativo96;
§ 5.º: o mesmo motivo que levou o constituinte a prever no inc. I do
art. 5.º da Constituição que homens e mulheres são iguais perante a lei o fez
deixar expresso que o homem e a mulher são iguais na sociedade conjugal,
mesmo já tendo consagrado a isonomia no caput do art. 5.o. Com efeito, sob
a égide do Código Civil de 1916 o marido-homem era o chefe da sociedade
conjugal, cabendo a ele dirigi-la, segundo seus próprios desígnios, em nada
importando a vontade da esposa-mulher para aquele diploma legal. Tanto
era assim que a mulher deixava de ser plenamente capaz para se tornar
relativamente capaz quando contraía núpcias (em uma absurda capitis
diminutio). Somente após o Estatuto da Mulher Casada é que a esposa-
mulher passou a ter alguma participação na direção da sociedade conjugal,
como colaboradora na direção da sociedade conjugal, mesmo assim
prevalecendo a vontade do marido em caso de discordância até sentença
judicial que dispusesse em contrário.
Enfim, este dispositivo constitucional tem apenas o condão de
esclarecer que no casamento civil heteroafetivo ambos os cônjuges têm
exatamente os mesmos direitos e obrigações no comando da sociedade
conjugal, ao contrário do que ocorria antes de 1988, quando a vontade do
marido prevalecia sobre a da mulher. Nas palavras do Ministro Ayres Britto,
esse dispositivo “se deve ao propósito constitucional de não perder a menor
oportunidade de estabelecer relações jurídicas horizontais ou sem hierarquia
entre as duas tipologias do gênero humano”97; todavia, não tem o condão de
restringir o casamento civil apenas a casais heteroafetivos, mas apenas o de
disciplinar os direitos e deveres dos cônjuges heteroafetivos, nada mais. Em
outras palavras, não traz nenhuma disposição sobre a relação homoafetiva
(permitindo-a ou proibindo-a), apenas estabelece uma regra atinente à
relação heteroafetiva, nada mais. Defender o contrário significa dar ao
dispositivo constitucional um alcance proibitivo que ele, efetivamente, não
tem;
§ 6.º: este dispositivo apenas estabelece que o vínculo matrimonial
pode ser dissolvido pelo divórcio98, na forma da lei infraconstitucional.
Nada traz que possa levar ao entendimento da proibição do matrimônio
civil homoafetivo ou da família homoafetiva;
§ 7.º: trata este dispositivo do planejamento familiar, estabelecendo
caber livremente ao casal elaborá-lo com base no princípio da dignidade da
pessoa humana e da paternidade responsável, devendo o Estado propiciar
recursos educacionais e científicos para o exercício desse direito, vedando
apenas qualquer forma coercitiva por parte das instituições oficiais ou
privadas nesse sentido. Não traz, em nenhum momento, qualquer proibição
ao reconhecimento da família conjugal homoafetiva ou ao casamento civil
homoafetivo;
§ 8.º: estabelece este dispositivo que deve o Estado assegurar
assistência a cada um dos membros da família, criando mecanismos para
coibir a violência no âmbito de suas relações. Não proíbe, em nenhum
momento, a família conjugal homoafetiva, nem limita o Direito de Família
apenas às heteroafetivas, o mesmo valendo quanto ao casamento civil;
Art. 227: o caput e seus parágrafos esmiúçam o princípio da integral
proteção à criança e ao adolescente, apontando os direitos do menor e os
deveres correlatos do Estado e da sociedade. Em nenhum momento proíbe a
família conjugal homoafetiva ou ainda o casamento civil homoafetivo.
Relativamente a seu § 5.º, o Ministro Ayres Britto reitera a inexistência de
qualquer distinção constitucional entre adotantes homoafetivos ou
heteroafetivos, de sorte a possibilitar a adoção tanto por um homossexual
isoladamente considerado quanto a um casal homoafetivo99.
Os dispositivos acima esmiuçados são todos aqueles que tratam da
família na Constituição Federal. A análise de todos eles não tem como levar
à conclusão de que a família conjugal constitucionalmente protegida seria
apenas a heteroafetiva, e muito menos que estariam proibidos o casamento
civil homoafetivo e a união estável homoafetiva, pelas razões supraexpostas
(interpretação sistemática com a isonomia e a dignidade da pessoa humana).

2.5.1.1 O princípio da pluralidade de entidades familiares. Art. 226, caput,


da CF/1988
Rodrigo da Cunha Pereira100 bem explicita o princípio constitucional
da pluralidade de entidades familiares nos seguintes termos:

Alguns doutrinadores defendem que o art. 226 da Constituição é


uma “norma de clausura”, na medida em que elenca as entidades
familiares que são objeto da proteção do Estado. Não se afigura
adequada tal argumentação, pois várias outras entidades familiares
existem além daquelas ali previstas, e independentemente do Direito.
A vida como ela é vem antes da lei jurídica. Jacques Lacan, em 1938,
demonstrou, em seu texto A família (publicado no Brasil com o nome
Complexos familiares), a dissociação entre família como fato da
natureza e como um fato cultural, concluindo por essa última vertente.
Ela não se constitui apenas de pai, mãe e filho, mas é antes uma
estruturação psíquica em que cada um de seus membros ocupa um
lugar, uma função, sem estarem necessariamente ligados
biologicamente. Desfez-se a ideia de que a família se constituiu,
unicamente, para fins de reprodução e de legitimidade para o livre-
exercício da sexualidade. Paulo Luiz Netto Lobo, com a autoridade de
um dos grandes civilistas brasileiros da atualidade, baseando-se na
principiologia constitucional, conclui que “a exclusão não está na
Constituição, mas na interpretação”. Ao contrário dos textos
constitucionais anteriores, a Carta Magna de 1988, embora não tenha
nominado todas as entidades de família existentes (tarefa de difícil
execução), chancelou-lhes proteção ao suprimir a locução
“constituída pelo casamento”, presente nas Constituições de 1967 e
de 1969. O jurista alagoano garante que a enumeração é apenas
exemplificativa. (...) A família passou a ser, predominantemente, locus
de afeto, de comunhão do amor, em que toda forma de discriminação
afronta o princípio basilar do Direito de Família. Com a
personalização dos membros da família eles passaram a ser respeitados
em sua esfera mais íntima, na medida em que disto depende a própria
sobrevivência da família, que é um “meio para a realização pessoal de
seus membros. Um ideal em construção”, conforme salienta Rosana
Fachin. É na busca da felicidade que o indivíduo viu-se livre dos
padrões estáticos para construir sua família. É, portanto, da
Constituição da República que se extrai o sustentáculo para a
aplicabilidade do princípio da pluralidade de família, uma vez que,
em seu preâmbulo, além de instituir o Estado Democrático de Direito,
estabelece que deve ser assegurado o exercício dos direitos sociais e
individuais, bem como a liberdade, o bem-estar, a igualdade e a justiça
como valores supremos da sociedade. Sobretudo da garantia da
liberdade e da igualdade, sustentadas pelo macroprincípio da
dignidade, é que se extrai a aceitação da família plural, que vai além
daquelas previstas constitucionalmente e, principalmente, diante da
falta de previsão legal. Diante da hermenêutica do texto constitucional
e, sobretudo, da aplicação do princípio da pluralidade das formas de
família, sem o qual estar-se-ia dando um lugar de indignidade aos
sujeitos da relação que se pretende seja família, tornou-se imperioso o
tratamento tutelar a todo grupamento que, pelo elo do afeto,
apresente-se como família, já que ela não é um fato da natureza, mas
da cultura, repita-se (ver item 7, deste Capítulo). Por tratamento tutelar
entenda-se o reconhecimento pelo Estado de que tais grupamentos não
são ilegítimos e, portanto, não estarão excluídos do laço social. (grifos
e destaques nossos)

No citado item 7, Rodrigo da Cunha Pereira, com base na lição de


Sérgio Resende de Barros e de Paulo Lôbo, afirma que não é qualquer afeto
que gera a entidade familiar, porque do contrário qualquer namoro o
geraria, afirmando que o que gera a entidade familiar é o afeto/a afetividade
(fundamento e finalidade da família, com desconsideração do móvel
econômico) conjugado(a) com a ostensibilidade (que exclui
relacionamentos casuais, sem compromisso) e a estabilidade (que
pressupõe uma entidade familiar reconhecida pela sociedade enquanto tal,
que assim se apresenta publicamente). Acrescenta, ainda, um outro
elemento (“que, na verdade, reúne todos eles”), a saber, uma estrutura
psíquica, pois é a partir dela que Lacan pôde definir a família como uma
estruturação psíquica em que cada um de seus membros ocupa um lugar,
uma função, sem estarem necessariamente ligados biologicamente101 –
estrutura psíquica familiar esta existente nas uniões homoafetivas, à
identidade ou, no mínimo, à análoga semelhança das uniões heteroafetivas
agora que foi superada a visão patriarcal/hierarquizada de família para se
entender a família sob o enfoque eudemonista, ou seja, aquele voltado à
felicidade de seus membros, em igualdade de condições e funções na
dinâmica familiar.
Assim102, tem-se a consagração implícita do princípio da pluralidade
das entidades familiares pelo caput do art. 226 da CF/1988, o que significa
que o rol de famílias exposto nos seus parágrafos é meramente
exemplificativo e não taxativo – no qual o não reconhecimento do status
jurídico-familiar das uniões homoafetivas é inconstitucional por afronta ao
caput do art. 226 da CF/1988, na medida em que a união homoafetiva
preenche os requisitos materiais de formação da família (afetividade,
estabilidade e convivência pública, contínua e duradoura, na lição de Paulo
Lôbo103 – é dizer, o amor familiar defendido neste trabalho104, ou seja, o
amor que vise a uma comunhão plena de vida e interesses, de forma
pública, contínua e duradoura), razão pela qual a união homoafetiva é uma
família conjugal constitucionalmente protegida e não pode, portanto, deixar
de ser reconhecida pelo Poder Judiciário e protegida com igualdade de
condições com a família conjugal heteroafetiva.

2.5.2 Do objeto de proteção do Direito das Famílias


Tendo como base a Teoria Tridimensional do Direito, cabe agora
indagar: qual o elemento valorativamente protegido pelo Direito das
Famílias e, consequentemente pelo casamento civil e pela união estável?
Esta pergunta é de fundamental importância, tendo em vista que sua
resposta é que determinará a possibilidade ou impossibilidade de extensão
do Direito das Famílias aos casais homoafetivos.
A resposta, no atual estágio de nosso ordenamento jurídico, é
inequívoca: o elemento protegido pelo Direito de Família é o amor que vise
a uma comunhão plena de vida e interesses, de forma pública, contínua e
duradoura, pois é esse sentimento que forma a família juridicamente
protegida contemporânea.
Essa afirmação é baseada na evolução do pensamento social acerca da
importância da família: afinal, como acima exposto, apesar de o Código
Civil de 1916 não garantir nenhum direito às uniões extramatrimoniais,
estas se proliferaram de forma irrefutável no decorrer do século XX. Isso
ocorreu pelo fato de ter a sociedade brasileira passado a dar mais
importância à sua felicidade do que às formalidades previstas pela lei para a
consagração das uniões amorosas, no sentido de que as pessoas passaram a
dar mais importância à sua felicidade fática (real) do que ao modelo
jurídico considerado ideal para a felicidade, que era o casamento civil
indissolúvel, como demonstrado em tópico supra.
Vale a pena citar a posição de Paulo Lôbo105 a respeito do tema, que
muito bem delineia a questão:

A família, ao converter-se em espaço de realização da afetividade


humana, marca o deslocamento da função econômico-político-
religioso-procracional para essa nova função. Essas linhas de
tendências enquadram-se no fenômeno jurídico-social denominado
repersonalização das relações civis, que valoriza o interesse da pessoa
humana mais do que suas relações patrimoniais. É a recusa da
coisificação ou reificação da pessoa, para ressaltar sua dignidade. A
família é o espaço por excelência da repersonalização do direito. (...) A
excessiva preocupação com os interesses patrimoniais que marcou o
direito de família tradicional não encontra eco na família atual,
vincada por outros interesses de cunho pessoal ou humano, tipificados
por um elemento aglutinador e nuclear distinto – a afetividade. Esse
elemento nuclear define o suporte fático da família tutelada pela
Constituição, conduzindo ao fenômeno que denominamos
repersonalização. (...) A restauração da primazia da pessoa, nas
relações de família, na garantia da realização da afetividade, é a
condição primeira de adequação do direito à realidade. Essa mudança
de rumos é inevitável. (...) A família tradicional aparecia através do
direito patrimonial e, após as codificações liberais, pela multiplicidade
de laços individuais, como sujeitos de direito atomizados. Agora, é
fundada na solidariedade, na cooperação, no respeito à dignidade de
cada um de seus membros, que se obrigam mutuamente em uma
comunidade de vida. A família atual é apenas compreensível como
espaço de realização pessoal e afetiva, no qual os interesses
patrimoniais perderam seu papel de principal protagonista. A
repersonalização de suas relações revitaliza as entidades familiares, em
seus variados tipos ou arranjos. (...) A família é sempre socioafetiva,
em razão de ser grupo social considerado base da sociedade e unida
na convivência afetiva. A afetividade, como categoria jurídica, resulta
da transeficácia de parte dos fatos psicossociais que a converte em
fato jurídico, gerador de efeitos jurídicos.

Assim, sendo o objeto de proteção do Direito das Famílias o amor que


vise a uma comunhão plena de vida e interesses, de forma pública, contínua
e duradoura, então é inegável que as uniões homoafetivas são famílias
conjugais juridicamente protegidas, inseridas no Direito das Famílias, por
força da interpretação extensiva ou, no mínimo, da analogia.

2.5.3 O afeto como princípio jurídico-constitucional. STF, ADPF 132 e ADI


4.277
Os próximos quatro parágrafos foram citados pelo Ministro Celso de
Mello106 no seu voto relativo ao julgamento da ADPF 132 e da ADI 4.277,
no tópico em que reconheceu o afeto enquanto princípio jurídico-
constitucional implícito, oportunidade na qual afirmou, com perfeição, que
“torna-se indiscutível reconhecer que o novo paradigma, no plano das
relações familiares, após o advento da Constituição Federal de 1988, para
fins de estabelecimento de direitos/deveres decorrentes do vínculo familiar,
consolidou-se na existência e no reconhecimento do afeto”107 para, pouco
depois, transcrever os parágrafos a seguir (além de trecho da petição inicial
da ADIn 4.277 e da lição de Maria Berenice Dias – e citação de outras
obras doutrinárias em sentido análogo).
Como suprademonstrado, mudou-se o paradigma da família: de uma
entidade fechada dentro de si, válida por si mesma, passou a existir somente
em função do amor entre os cônjuges/companheiros, tendo em vista que a
sociedade passou a dar mais relevância à felicidade, portanto à afetividade
amorosa, do que à mera formalidade do casamento civil ou a qualquer outra
forma preconcebida de família.
Nesse sentido, o reconhecimento do status jurídico-familiar da união
estável, por si, alçou o afeto à condição de princípio jurídico implícito, na
medida em que é ele, afeto (amor romântico, no caso), o motivo que faz que
duas pessoas decidam manter uma união estável. O elemento formador da
família contemporânea é o amor familiar, mas é o amor romântico que dá o
passo inicial para a constituição da união estável, embora haja outros
argumentos a corroborar a afirmação de que o afeto é um princípio jurídico.
Assim, tendo em mente essa mudança da concepção de família,
Rodrigo da Cunha Pereira demonstra como o art. 226, § 8.o, da Constituição
Federal e o princípio da dignidade da pessoa humana alçam a afetividade à
condição de princípio jurídico, pois priorizam a necessidade da realização
da personalidade de seus membros em detrimento de qualquer concepção
preestabelecida de entidade familiar, no sentido de que a família só faz
sentido para o Direito a partir do momento em que é veículo
funcionalizador à promoção da dignidade de seus membros, donde o afeto
tornou-se um valor jurídico de suma relevância para o Direito de
Família108.
Assiste razão ao autor. Com efeito, a partir do momento em que a
Constituição Federal reconheceu o amor como o principal elemento
formador da entidade familiar não matrimonializada, alçou a afetividade
amorosa à condição de princípio constitucional implícito, que pode ser
extraído em função do art. 5.o, § 2.o, da CF/1988, que permite o
reconhecimento de princípios implícitos por decorrentes dos demais
princípios e do sistema constitucional (além dos tratados internacionais de
direitos humanos dos quais o Brasil faça parte).
Essa evolução social quanto à compreensão da família elevou o afeto à
condição de princípio jurídico oriundo da dignidade da pessoa humana no
que tange às relações familiares, visto que estas, para garantirem o direito à
felicidade e a uma vida digna (inerentes à dignidade humana), precisam ser
pautadas pelo afeto e não por meras formalidades como a do casamento
civil109. Assim, o princípio do afeto é um princípio constitucional implícito,
decorrente da dignidade da pessoa humana e, ainda, da própria união
estável, que tem nele o principal elemento para reconhecimento do status
jurídico-familiar de uniões não matrimonializadas. Ademais:

(...) Paulo Luiz Netto Lôbo identifica na Constituição Federal


quatro fundamentos essenciais do princípio da afetividade: a igualdade
de todos os filhos independentemente da origem (CF 227 § 6.o); a
adoção como escolha afetiva com igualdade de direitos (CF 227 §§ 5.o
e 6.o); a comunidade formada por qualquer dos pais e seus
descendentes, incluindo os adotivos, com a mesma dignidade da
família (CF 227, § 4.o) e o direito à convivência familiar como
prioridade absoluta da criança e do adolescente (CF 227)110.

Outrossim, o próprio Código Civil, implicitamente, reconhece o


princípio da afetividade. Com efeito, o diploma civilista:

Invoca somente o laço de afetividade como elemento para a


definição da guarda do filho quando da separação dos pais (1584, §
único). (...) Belmiro Welter identifica em outras passagens a valoração
do afeto no Código Civil: (a) ao estabelecer a comunhão plena de vida
no casamento (art. 1.511); (b) quando admite outra origem à filiação
além do parentesco natural e civil (1.593); (c) na consagração da
igualdade na filiação (1.596); (d) ao fixar a irrevogabilidade da
perfilhação (1.604) e (e) quando trata do casamento e de sua
dissolução, fala antes das questões pessoais do que dos seus aspectos
patrimoniais111.

No mesmo sentido, o reconhecimento jurídico da adoção socioafetiva


não deixa nenhuma dúvida acerca do caráter jurídico do afeto, donde as
decisões judiciais que negam o status jurídico-familiar das uniões
homoafetivas, sob o fundamento de que o afeto seria irrelevante ao deslinde
da causa, são absolutamente equivocadas, ante a juridicidade do princípio
da afetividade.
Ou seja, “os tipos de entidades familiares explicitados são meramente
exemplificativos, sem embargo de serem os mais comuns, por isso mesmo
merecendo referência expressa”112, embora se deva ressaltar que “não só
nesse limitado universo se flagra a presença de uma família”113, família esta
que existe em toda comunidade de pessoas que possua, nas relações entre
si, um afeto tendente a uma comunhão plena de vida e interesses, de forma
pública, contínua e duradoura114. Em suma, “O elemento distintivo da
família, que a coloca sob o manto da juridicidade, é a presença de um
vínculo afetivo a unir as pessoas com identidade de projetos de vida e
propósitos comuns, gerando comprometimento mútuo”115.
Analisemos os desenvolvimentos que a doutrina tem feito sobre o
tema, a qual tem diferenciado afeto enquanto sentimento psíquico e
afetividade enquanto exteriorização (objetiva) do afeto, afetividade esta
passível de apreensão jurídica independentemente de efetivamente existir o
sentimento de afeto na relação interpessoal em questão.

Afetividade. Atividade com afeto. As relações são, muito


frequentemente, pautadas por esse elo que impulsiona as
aproximações, a permanência, o cuidado, a sobrevivência. (...) O afeto
é parte da vida. Contudo, para o Direito, o afeto foi deixado de lado
por muito tempo. Afinal, a grande vedete, o patrimônio, material,
econômico, não tinha quase nada a ver com ele. (...) Hoje em dia, o
afeto é tão importante para o direito que é comum a realização de
congressos que se voltem, quase que exclusivamente, para sua
análise.116

O princípio da afetividade, embora relacionado a valores, com


vieses psicológicos e filosóficos, como dito alhures, não se restringe a
uma destas perspectivas. Afeto e afetividade, embora dividam a mesma
origem, não se confundem: a afetividade é a dinâmica das relações
afetivas, é a constante transição dos sentimentos humanos entre os
mundos interno e externo; afeto é sentimento. Esse também é o
pensamento de Paulo Lôbo: Por outro lado, a afetividade sob o ponto
de vista jurídico, não se confunde com o afeto, como fato psicológico
ou anímico, este de decorrência real necessária. O direito, todavia,
converteu a afetividade em princípio jurídico, que tem força
normativa, impondo dever e obrigação aos membros da família, ainda
que na realidade existencial entre eles tenha desaparecido o afeto.
Assim, pode haver desafeto entre pai e filho, mas o direito impõe o
dever de afetividade (LÔBO, 2006, p. 2).117

Haveria, apenas, um tipo de afetividade com vários humores, ou


seriam coisas diferentes? Isso porque, a pluralidade de famílias aponta
para afetividades (sentimento/justificante) diferentes. A afetividade do
casal (heterossexual ou não) é diferente da afetividade entre pais e
filhos, entre irmãos, etc. O certo é que a afetividade, como expressão
do amor, é o que se espera fazer parte de qualquer relação familiar.
(...)118

Percebe-se que esse nível de amor [caridade], sai da subjetividade


e encontra-se no agir com cuidado, respeito e afeto para com aqueles
que carecem. Quem é caridoso é solidário. E como conceito de
“solidariedade”, temos: “compromisso pelo qual as pessoas se obrigam
umas às outras e cada uma delas a todas” [Houaiss]. Como se vê, a
solidariedade, também remete a um compromisso com o intuito de
favorecer o outro. Ocorre que, diferentemente da caridade, na
solidariedade, haverá reciprocidade no comprometimento. É clara a
relação de proximidade entre caridade e solidariedade, sendo que na
segunda, temos acrescentado, o caráter de reciprocidade. Note-se que,
ambas as definições, não comportam sentimentos, mas, condutas.
Como visto anteriormente, Paulo Lôbo afirma que “a afetividade
especializa os princípios da solidariedade e da dignidade”, assim,
finalmente, encontramos que tipo de afetividade figura como direito e
dever. É a que depende mais do braço, do ombro e da razão do que do
coração. Seguindo esse raciocínio, o reconhecimento jurídico do
afeto, nada mais é do que o reconhecimento jurídico de uma conduta
solidária, que pode ou não, estar acompanhada de bons sentimentos.
Assim como um dano moral pode apresentar por consequência, a dor,
não sendo sua ausência, descaracterizadora do dano indenizável, a
solidariedade pode estar antecedida pelo afeto (sentimento), ou não.
Sentir dor, tristeza, amor, afeto, está fora do controle das pessoas. A
ação é escolha. Cooperar é efetivar afeto, ainda que não se sinta
afeto. Ao confundir a afetividade que pode ser realizada,
independentemente do sentimento que se tenha, com aquelas outras
expressões do amor (eros, philia e até storghé), corre-se o risco de
afastar da proteção do Judiciário, situações que tenham esse princípio
como cerne, como por exemplo, o abandono afetivo, o que justificaria
o argumento contrário de que a lei não pode obrigar ninguém a amar.
Pode sim. Objetivamente.119

Para ajudar a compreender o afeto em seu sentido objetivo,


propõe-se comparar com o que foi discutido, no passado, com relação
à posse. Obviamente que, trazer à baila as teorias da posse para
auxiliar na compreensão do afeto-objetivo, não aproxima, nem
pretende aproximar pessoas de coisas. São, é claro, relações
marcadamente distintas. Pessoas não são objeto de propriedade e,
ainda, tais teorias, ao terem a finalidade de conceituar posse, trabalham
no sentido de mostrar aquilo que parece ser (propriedade), enquanto
que, por meio dessa comparação, pretende-se mostrar aquilo que é
(família). A intenção, aqui, é mostrar, comparativamente, que, como
aconteceu em relação à posse, pensar no animus, unicamente na
perspectiva do sentimento (ou da vontade), por mais que, de início,
pareça acertado, inviabiliza muitos direitos. Para explicar a posse,
duas teorias clássicas apontam os elementos que a integrariam: seriam
o corpus (elemento físico) e o animus (elemento moral). A presença de
ambos seria necessária para distinguir posse e detenção. Um dos
teóricos da posse, Friedrich Karl von Savigny, em seu “Tratado da
Posse”, dispõe que, configuraria a posse o controle material de uma
coisa, conjugado com a intenção de tê-la para si. (...) Em relação à
família, se pensarmos em afeto, nesta perspectiva subjetiva de
sentimento, como um de seus elementos constitutivos (animus), ao
lado do corpus, que seria a proximidade física de seus membros, como
elemento identificador da existência ou não, de uma entidade familiar,
haveria o mesmo problema levantado com relação à posse, ou seja,
muitas famílias não poderiam, ser assim consideradas e,
consequentemente, não teriam a tutela jurídica, por não ser possível
provar o seu animus. Haveria uma grande instabilidade nas relações
familiares, uma vez que, não existindo as amarras genéticas e do
casamento, sua permanência ficaria à mercê das oscilações
sentimentais, o que é mais grave quando pensamos em filiação. A
outra teoria conhecida como Teoria Objetiva da Posse, é de autoria de
Rudolf von Ihering e, também apresenta como elementos constitutivos,
o corpus e o animus, em uma perspectiva diferente da de Savigny. Para
Ihering, a presença de tais elementos se faz indispensável para dizer-se
uma relação entre pessoa e coisa seria mesmo, posse ou mera
detenção. No entanto, uma das distinções em relação à teoria subjetiva
é que não se pode pensar no animus sem vinculá-lo ao corpus, uma
vez que funcionam como a palavra e o pensamento; como o
pensamento é interno e toma corpo na palavra, a vontade de possuir é
interna e toma corpo no corpus. Assim, ao refutar o animus, apenas
verifica-o sob uma ótica diversa. Refere-se à conduta em relação à
coisa. (...) Adaptando a lição de Ihering, com relação à posse, para a
família, podemos dizer que a afetividade, enquanto seu animus, estaria
vinculada, intrinsecamente, ao corpus, consistindo, conjuntamente, na
relação entre pessoas que se apresentem, sociualmente, como família.
Assim, é o agir com afeto que cria laços familiares. Dessa forma, ao
ostentar de forma estável, condutas tipicamente familiares (convívio,
assistência material, psicológica, proteção, atenção, comprometimento,
interesse etc.), estará se apresentando, de maneira objetiva, o afeto, o
que faz presumir a presença do sentimento de afeto que, normalmente,
motiva tais condutas, mas que inexistindo, não as exclui.120

O que se nota, sobretudo, é que os sentimentos ganham relevância


na ordem jurídica brasileira. Consagra-se um universo de novos
valores, nos quais se observa o respeito à família não fundada no
casamento, preservando-se o desejo individual de cada um em
conviver no tipo de família que mais lhe satisfaz enquanto indivíduo.
Assim, por tudo o que foi exposto, ao não se admitir comunidades
afetivas como entidades familiares, ao argumento de não estarem
expressamente consignadas no texto constitucional, tem-se uma
orientação que além e afrontar este princípio da liberdade, viola os
ditames da igualdade, da dignidade da pessoa humana, do pluralismo
e do direito à convivência familiar.121

A solidariedade familiar é uma projeção do objetivo fundamental


de solidariedade social (art. 3º, I, da Constituição) para as relações de
família, revelando-se constitucionalmente por meio da proteção à
família (art. 226), à criança e ao adolescente (art. 227) e ao idoso (art.
230), o que impõe um convívio pautado no feto e responsabilidade (no
plano fático), bem como pela definição de novos direitos e deveres (no
plano jurídico), para a entidade familiar e seus membros. A
afetividade enquanto princípio jurídico decorre da conversão do afeto
no principal alicerce das relações de família, pois a denominada
família-função somente consegue justificar a permanência da entidade
familiar nele apoiada. Esse princípio logrou primazia sobre os aspectos
de caráter patrimonial e biológico que envolviam o modelo anterior de
família, redefinindo os contornos de diversos dos seus institutos
jurídicos, como a paternidade, a adoção etc. A função social da família
responde ao processo de funcionalização dos institutos jurídicos de
direito privado, podendo ser vislumbrada na previsão do caput do art.
226 da Constituição, ao proclamar a família como base da sociedade,
importando compreender que esta representa atualmente um locus
privilegiado de busca da realização pessoal e da felicidade de cada
um de seus integrantes.122

Concorda-se aqui que é necessário construir um sentido objetivo para o


princípio da afetividade para lhe dar uma maior operacionalidade jurídica,
sendo que considero a analogia traçada por Catarina Almeida de Oliveira
entre o princípio da afetividade com a teoria da posse na antepenúltima
transcrição acima uma importante contribuição para tal ponto. Contudo,
entendo que o afeto enquanto elemento psíquico também deve ser
valorizado como princípio jurídico porque em muitos casos é possível
comprová-lo (por testemunhas, por exemplo). Claro que a afetividade em
sentido objetivo deve ser valorizada no sentido de que atitudes de
solidariedade e cuidado (por exemplo) devem ser entendidas como
manifestações afetivas em sentido objetivo para fins de se dar maior
operacionalidade ao princípio do afeto (objetivamente considerado),
consoante a última das transcrições acima. Contudo, reitero, acho
importante não desconsiderar a importância do afeto enquanto sentimento
subjetivo nas relações familiares, porque muitas vezes ele pode ser provado
(por algum dos meios em Direito admitidos), donde não pode ser
menosprezado.
Portanto, considerando que a família hoje só pode ser compreendida
sob a luz da dignidade da pessoa humana, que é a base de toda a
Constituição Federal, e considerando que a valorização da afetividade na
entidade familiar é decorrência da dignidade da pessoa humana, então se
torna inegável que a afetividade tem a condição de princípio jurídico-
constitucional, ainda que implícito.

2.6 A família homoafetiva. STF, ADPF 132 e ADI 4.277

O afeto é elemento essencial das relações interpessoais, sendo um


aspecto do exercício do direito à intimidade garantido pela
Constituição Federal. A afetividade não é indiferente ao Direito, pois é
o que aproxima as pessoas, dando origem aos relacionamentos que
geram relações jurídicas, fazendo juz ao status de família. Imperioso
reconhecer o surgimento de uma nova família, a chamada família
‘eudemonista’, doutrina que considera ser a felicidade individual ou
coletiva o fundamento da conduta humana.
Cabe ser lembrado o diálogo entre Hans Kelsen e Cossio perante
a congregação da Universidade de Buenos Aires. Cossio, autor da
teoria ecológica, desafiou Kelsen a citar um exemplo de relação
intersubjetiva que estivesse fora do Direito. Kelsen respondeu: Oui
monsieur, l’amour. O Direito não regula sentimentos, mas ‘as uniões
que associam afeto a interesses comuns, e que, ao terem relevância
jurídica, merecem proteção legal, independentemente da orientação
sexual do par’.
Como a família é uma relação de ordem da sexualidade, tem o
afeto como pressuposto. Portanto, todas as espécies de vínculos que
tenham por base o afeto são merecedoras da proteção do Estado
(...)123.

Com essas palavras, Maria Berenice Dias expõe a solução à questão


das uniões homoafetivas nos dias atuais. Tais uniões são por muitos
relegadas a um segundo plano sem qualquer fundamento normativo, donde
se percebe que tal ocorre por mera construção doutrinária contra legem
criada pelos profissionais do Direito. Contudo, ao contrário do que estes
entendem, o amor familiar é o elemento essencial das relações
interpessoais que dão origem às famílias oriundas da união amorosa. Sem
ele, não há como falar em “casal”, pois duas pessoas que não sintam amor
profundo uma pela outra não terão a livre vontade de se relacionar em uma
comunhão de vida e interesses. Por mais que o Direito não regule os
sentimentos puros, isoladamente considerados, a partir do momento em que
estes são associados a outros fatores (comunhão plena de vida e interesses,
de forma pública, contínua e duradoura), passam a produzir efeitos no
mundo jurídico e, portanto, a merecer a proteção jurídica do Estado. É a
célebre diferenciação entre “fato” e “fato jurídico” – o primeiro não gera
efeitos no mundo do Direito, ao passo que o segundo tem relevância
jurídica, razão pela qual este é regulamentado e aquele não. Afinal,
consoante disse a autora nas edições seguintes de sua obra, “A afetividade
não é indiferente ao Direito, pois é o que aproxima as pessoas, dando
origem aos relacionamentos que geram as relações jurídicas, fazendo jus ao
status de família”124, pois “O centro de gravidade das relações de família
situa-se modernamente na mútua assistência afetiva, elemento essencial das
relações interpessoais que não é indiferente ao Direito”125.
No caso das uniões homoafetivas, que são fatos jurídicos, é necessário
o reconhecimento do seu status jurídico-familiar para que passem a gozar
da proteção legal existente para a família, tendo em vista que ditas uniões
formam, sim, uma entidade familiar, não passando de puro preconceito a
colocação destas no âmbito do Direito Obrigacional. Afinal, não há
qualquer fundamentação doutrinário-jurisprudencial válida ante a isonomia
para tal diferenciação com o paradigma das uniões heteroafetivas, além de
serem os homossexuais merecedores da mesma dignidade humana
conferida aos heterossexuais, como impõe o princípio da dignidade da
pessoa humana.
Nesse sentido, como já demonstrado neste trabalho, a família
contemporânea formada por casais forma-se através de uma comunhão
plena de vida e interesses, de caráter público, contínuo e duradouro, o que
significa que as uniões homoafetivas constituem famílias, uma vez que são
fundadas no referido sentimento, que é o que motiva seus membros a
manterem a citada comunhão plena de vida e interesses, pública, contínua e
duradoura, razão pela qual devem ser protegidas pelo Direito das Famílias,
que, por óbvio, visa proteger as famílias fáticas que não sejam proibidas
expressamente pelo Direito, mesmo porque inexistem “proibições
implícitas” em nosso ordenamento jurídico, como decorrência do art. 5.º, II,
da CF/1988, segundo o qual ninguém está proibido de fazer algo senão em
virtude de lei.
O ponto a que se quer chegar é o seguinte: as uniões homoafetivas
possuem o mesmo elemento valorativamente protegido nas uniões
heteroafetivas, que é o amor que vise a uma comunhão plena de vida e
interesses, de forma pública, contínua e duradoura, que é o elemento
formador da atual família juridicamente protegida (affectio maritalis),
razão pela qual merece ser enquadrada no âmbito de proteção do Direito
das Famílias. Afinal, o Direito das Famílias visa garantir especial proteção
às famílias que não sejam expressamente proibidas pela lei
constitucionalmente válida. Assim, considerando que as uniões
homoafetivas formam famílias, não são expressamente proibidas e não têm
seus direitos diminuídos de forma expressa por nenhum enunciado
normativo, então se enquadram no conceito de família juridicamente
protegida, merecendo, portanto, toda a proteção do Direito de Família
pátrio.
Nesse sentido, consoante inclusive reconhecido pelas peremptórias
palavras Ministro Celso de Mello no julgamento do RE 477.554 AgR/MG,
segundo o qual “Ninguém, absolutamente ninguém, pode ser privado de
motivo de sua orientação sexual. Os homossexuais, por tal razão, têm
direito de receber a igual proteção tanto das leis quanto do sistema político-
jurídico instituído pela Constituição da República, mostrando-se arbitrário e
inaceitável qualquer estatuto que puna, que exclua, que discrimine, que
fomente a intolerância, que estimule o desrespeito e que desiguale as
pessoas em razão de sua orientação sexual”, razão pela qual “Toda pessoa
tem o direito fundamental de constituir família, independentemente de sua
orientação sexual ou de identidade de gênero. A família resultante da união
homoafetiva não pode sofrer discriminação, cabendo-lhe os mesmos
direitos, prerrogativas, benefícios e obrigações que se mostrem acessíveis a
parceiros de sexo distinto que integrem uniões heteroafetivas”.
Ademais, é incoerente a eventual alegação de que um casal
heteroafetivo pode acabar constituindo uma família sem ter entre si um
sentimento de amor profundo pelo simples fato de uma relação sexual
ocasional poder gerar um(a) filho(a). Como expõe a legislação, para a
configuração da união estável, modalidade de família, é necessária uma
comunhão plena de vida e interesses, de forma pública, contínua e
duradoura, estabelecida com o objetivo de constituir família, nos termos do
art. 1.511 e da parte final do art. 1.723 do CC/2002. Assim, no exemplo
aqui descrito, não há “comunhão plena, pública, contínua e duradoura”, e
muito menos o “objetivo de constituir família”, justamente por ser uma
situação ocasional, onde não pretendiam os consortes unirem-se
afetivamente e muito menos constituir família. É óbvio que o nascimento de
um(a) filho(a) cria uma série de obrigações familiares para os pais, mas
somente em relação à criança, e não de um em relação ao outro. Ficarão
eles, nesse caso, responsáveis pela criação do(a) menor, com todos os
encargos que a legislação atribui a quaisquer pais, contudo não ficarão
obrigados um em relação ao outro, visto inexistir qualquer vínculo de
Direito (casamento civil) ou de fato (união estável) entre eles. Ficam eles na
mesma situação de um ex-casal após o divórcio.
Outrossim, considerando especialmente que a existência de prole e/ou
capacidade procriativa não é indispensável à caracterização da proteção
normativa para as uniões afetivas entre duas pessoas, é incoerente que o
Estado (por meio do Legislativo e/ou do Judiciário) continue a relegar à
marginalidade as relações homoafetivas sob o fundamento de estas não
possuírem capacidade procriativa. Além disso, a partir do momento em que
nosso ordenamento jurídico não proíbe as uniões amorosas entre pessoas do
mesmo sexo, tem-se que são permitidas por ele e, se assim o são, não tem o
Estado o direito de, ainda que indiretamente, não lhes conceder os efeitos
jurídico-familiares do Direito das Famílias. Assim, nas palavras do Ministro
Marco Aurélio126 no julgamento da ADPF 132 e da ADI 4.277: “Se o
reconhecimento da entidade familiar depende apenas da opção livre e
responsável de constituição de vida comum para promover a dignidade dos
partícipes, regida pelo afeto existente entre eles, então não parece haver
dúvida de que a Constituição Federal de 1988 permite seja a união
homoafetiva admitida como tal. Essa é a leitura normativa que faço da
Carta e dos valores por ela consagrados, em especial das cláusulas contidas
nos artigos 1.º, inciso III, 3.º, incisos II IV, e 5.º, cabeça e inciso I”. Afinal,
como bem anotado pelo Ministro Celso de Mello127 acerca do tema, “torna-
se indiscutível reconhecer que o novo paradigma, no plano das relações
familiares, após o advento da Constituição Federal de 1988, para fins de
estabelecimento de direitos/deveres decorrentes do vínculo familiar,
consolidou-se na existência e no reconhecimento do afeto”, pois, como bem
anotado pelo Ministro Ayres Britto128, o próprio matrimônio hoje é “um
pacto afetivo (...) predisposto à perdurabilidade” uma vez que a família é
caracterizada por “uma convivência empiricamente instaurada por iniciativa
de pessoas que se veem tomadas da mais qualificada das empatias, porque
envolta numa atmosfera de afetividade, aconchego habitacional, concreta
admiração ético-espiritual e propósito de felicidade tão emparceiradamente
permeado da franca possibilidade de extensão desse estado personalizado
de coisas a outros membros desse mesmo núcleo doméstico”, visto que “a
família é, por natureza ou no plano dos fatos, vocacionadamente amorosa,
parental e protetora dos respectivos membros, constituindo-se, no espaço
ideal das mais duradouras, afetivas, solidárias ou espiritualizadas relações
humanas de índole privada. O que a credencia como base da sociedade, pois
também a sociedade se deseja assim estável, afetiva, solidária e
espiritualmente estruturada (não sendo por outra razão que Rui Barbosa
definia a família como ‘a Pátria amplificada’). Que termina sendo o alcance
de uma forma superior de vida coletiva, porque especialmente inclinada
para o crescimento espiritual dos respectivos integrantes. Integrantes
humanos em concreto estado de comunhão de interesses, valores e
consciência da partilha de um mesmo destino histórico. Vida em
comunidade, portanto, sabido que comunidade vem de ‘comum unidade’”.
Assim, nas palavras do Ministro Lewandowski129: “a ninguém é dado
ignorar – ouso dizer – que estão surgindo, entre nós e em diversos países do
mundo, ao lado da tradicional família patriarcal, de base patrimonial e
constituída, predominantemente, para fins de procriação, outras formas de
convivência familiar, fundadas no afeto, e nas quais se valoriza, de forma
particular, a busca da felicidade, o bem-estar, o respeito e o
desenvolvimento pessoal de seus integrantes”.
Nesse sentido, vale transcrever o caput e das alíneas “a”, “b” e “f” do
Princípio 24130 dos Princípios de Yogyakarta, postulação destinada aos
Estados Nacionais realizada na Indonésia, no ano de 2006 (igualmente feita
no voto do Ministro Celso de Mello no julgamento da ADPF 132 e da ADI
4.277, à exceção daquela relativa à alínea “e”, nas páginas 45-46 de seu
voto):

DIREITO DE CONSTITUIR FAMÍLIA


Toda pessoa tem o direito de constituir uma família, independente
de sua orientação sexual ou identidade de gênero. As famílias existem
em diversas formas. Nenhuma família pode ser sujeita à discriminação
com base na orientação sexual ou identidade de gênero de qualquer de
seus membros. Os Estados deverão: a) Tomar todas as medidas
legislativas, administrativas e outras medidas necessárias para
assegurar o direito de constituir família, inclusive pelo acesso à adoção
ou procriação assistida (incluindo inseminação de doador), sem
discriminação por motivo de orientação sexual ou identidade de
gênero; b) Assegurar leis e políticas que reconheçam a diversidade de
formas de família, incluindo aquelas não definidas por descendência
ou casamento e tomar todas as medidas legislativas, administrativas e
outras medidas necessárias para garantir que nenhuma família possa
ser sujeita à discriminação com base na orientação sexual ou
identidade de gênero de qualquer de seus membros, inclusive no que
diz respeito à assistência social relacionada à família e outros
benefícios públicos, emprego e imigração; (...) e) Tomar todas as
medidas legislativas, administrativas e outras medidas necessárias para
garantir que nos Estados que reconheçam o casamento ou parceria
registrada entre pessoas do mesmo sexo, qualquer prerrogativa,
privilégio, obrigação ou benefício disponível para pessoas casadas ou
parceiros/as registrados/as de sexo diferente esteja igualmente
disponível para pessoas casadas ou parceiros/as registrados/as do
mesmo sexo; f) Tomar todas as medidas legislativas, administrativas e
outras medidas necessárias para assegurar que qualquer obrigação,
prerrogativa, privilégio ou benefício disponível para parceiros não
casados de sexo diferente esteja igualmente disponível para parceiros
não casados do mesmo sexo; (...).

Não vivemos mais sob a égide do Absolutismo Totalitário, regime de


governo no qual o monarca determina despoticamente aquilo que lhe vem à
mente. Vivemos em uma Democracia, regime que estabelece que todo o
poder emana do povo, que o povo governa o país em questão, ainda que
indiretamente, por meio de representantes legitimamente eleitos para tanto,
e no qual a maioria define os rumos da nação desde que respeite os direitos
das minorias (democracia não é ditadura da maioria, mas governo da
maioria que respeita os direitos das minorias). Dessa forma, o povo deve ter
os seus direitos respeitados pelos governantes, especialmente as minorias
ali existentes – e a discriminação por orientação sexual caracteriza
verdadeira violação dos direitos constitucionais fundamentais à isonomia e
ao respeito da dignidade da pessoa humana.
Cabe ser debatida uma interessante questão: na eleição presidencial
estadunidense de 2004: vários Estados-membros colocaram em votação se
deveriam ou não as uniões homoafetivas ser regulamentadas pelo
Legislativo. Todas essas votações tiveram a mesma resposta majoritária:
não131. Assim, com base no exposto no parágrafo anterior, cabe a seguinte
indagação: pode a maioria da população restringir os direitos das minorias?
Resposta: depende. Se essa mesma população consagrou em sua
Constituição (ou em seu ordenamento jurídico em geral) princípios
jurídicos que vedam a discriminação arbitrária (isonomia) e que colocam
todas as pessoas humanas em igual grau de dignidade (dignidade da pessoa
humana), como é o caso brasileiro, então a resposta é não. Essa decisão da
população estadunidense é incoerente com um ordenamento jurídico que
consagre a isonomia. Isso porque, se a sociedade (por meio de seu
Legislativo) decidiu que devem reger o Estado os princípios da isonomia e
da dignidade da pessoa humana, então devem esses princípios ser aplicados
de maneira igual a todos os cidadãos, sejam eles heterossexuais ou
homossexuais, loiros ou morenos, canhotos ou destros, católicos ou judeus,
e assim por diante. Aliás, a resposta será negativa em qualquer Estado
Constitucional de Direito, pois é da essência do constitucionalismo que as
maiorias não podem oprimir as minorias e/ou negar-lhes direitos civis e/ou
fundamentais sem uma motivação lógico-racional que isto justifique.
A real questão nesse caso é a de que deve o ordenamento jurídico do
país em questão ser respeitado e aplicado a todas as pessoas, nos termos
consagrados pelo Constituinte Originário e/ou pelo Legislativo. Ora, pelo
menos no caso brasileiro e mesmo no estadunidense (que consagram a
isonomia), mesmo que a esmagadora maioria da população queira que os
homossexuais tenham menos direitos que os heterossexuais, tal é
incompatível com os citados ordenamentos jurídicos que consagram os
princípios da isonomia e da dignidade da pessoa humana (que vedam
qualquer discriminação arbitrária como essa) como direitos humanos
fundamentais, não podendo, portanto, tal vontade majoritária, se algum dia
vier a existir, prevalecer.
Em outras palavras: o povo brasileiro decidiu, por meio da Assembleia
Nacional Constituinte, alçar a isonomia e a dignidade humana a direitos
fundamentais de eficácia plena aplicáveis em todo o território nacional.
Nesse sentido, o povo brasileiro, como um todo, proibiu a
institucionalização do preconceito no novo ordenamento jurídico oriundo
da Constituição Federal de 1988. Isso significa que, até que seja
promulgada uma nova Constituição que extirpe a isonomia de seu corpo, ou
então que seja apresentada uma fundamentação lógico-racional que
justifique a discriminação negativa das uniões homoafetivas em relação às
heteroafetivas, qualquer manifestação popular nesse sentido, ainda que
amplamente majoritária, será inconstitucional e não deverá produzir
nenhuma consequência jurídica132.
Isso serve de resposta àqueles que tanto desejam colocar em votação
popular, por meio de plebiscito, a questão da regulamentação das uniões
homoafetivas. Ora, o reconhecimento de direitos às uniões amorosas
constitui-se como direito fundamental de todo cidadão, tendo em vista todo
o arquétipo social existente em torno da união civil matrimonializada entre
duas pessoas. Direitos fundamentais não podem ser colocados em votação:
devem ser conferidos a todos os brasileiros, ponto. Será inconstitucional
qualquer plebiscito que vise restringir direitos de quaisquer cidadãos, visto
que os direitos são conferidos como cláusulas pétreas pela Constituição,
que não admite que o preconceito de quem quer que seja, ainda que da
maioria da população, sirva de paradigma válido para a restrição de direitos
das pessoas.
Em especial, será inconstitucional um plebiscito que dê à maioria o
direito de decidir sobre algo que afeta unicamente a minoria: ora, uma lei de
“união civil homoafetiva” só será relevante para homossexuais e bissexuais,
não tendo heterossexuais nenhum legítimo interesse nesse tema, visto que
não serão atingidos nem abarcados por tal lei.
Democracia não significa despotismo da maioria sobre a minoria:
como ensina José Afonso da Silva, “democracia é o regime de garantia
geral para a realização dos direitos fundamentais do homem”133. Essa
concepção decorre da correta noção segundo a qual o Estado Democrático
de Direito visa a realizar o princípio democrático como garantia geral dos
direitos fundamentais da pessoa humana134 – ou seja, a democracia existe
para garantir a prevalência dos direitos fundamentais, donde, ainda que a
maioria queira desrespeitar os direitos fundamentais de quem quer que seja,
a vontade majoritária será inválida por inconstitucional, encontrando-se a
maioria condicionada pelos termos da Constituição, o que só pode ser
superado por uma nova Assembleia Nacional Constituinte. O princípio
democrático existe na forma como reconhecido pela Constituição.
Isso fica claro na lição do autor quando fala que igualdade e liberdade,
embora não sejam “princípios” democráticos, são “valores democráticos, no
sentido de que a democracia constitui instrumento de sua realização no
plano prático”, delineando que “a igualdade é o valor fundante da
democracia, não a igualdade formal, mas a igualdade material”135. Por
outro lado, é oportuna a colocação do autor no sentido de que maioria não é
princípio, mas simples técnica de que se serve a democracia para tomar
decisões governamentais no interesse geral, não no interesse da maioria,
que é contingente136. Aponta que “precisamente porque não é princípio nem
dogma da democracia, senão mera técnica que pode ser substituída por
outra mais adequada, é que se desenvolveu a da representação proporcional,
que amplia a participação do povo, por seus representantes, no poder”137.
Assim, conclui o autor que a democracia repousa sobre dois princípios
fundamentais: o da soberania popular, segundo o qual o povo é a única
fonte do poder, e a participação, direta ou indireta, do povo no poder, para
que este seja a efetiva expressão da vontade popular138.
Nesse sentido, considerando que uma lei de união civil homoafetiva
não envolve heterossexuais, estes não têm o direito de impor sua vontade
arbitrária sobre homossexuais e bissexuais, donde se percebe inclusive
afronta ao princípio democrático se um plebiscito que isso possibilite venha
a acontecer. Há verdadeira afronta ao princípio democrático por tal votação
na medida em que heterossexuais não são atingidos em nenhum momento
por uma lei regulamentadora das uniões homoafetivas, donde não têm o
direito de intervir nesse assunto. Somente homossexuais e bissexuais têm
interesse jurídico em tal questão.
Dessa forma, como a isonomia proíbe discriminações arbitrárias, e a
dignidade da pessoa humana estabelece que todas as pessoas humanas são
iguais em dignidade (podendo esta ser relativizada apenas pela isonomia), é
incoerente com esses princípios, e consequentemente inconstitucional, que
se defenda a discriminação das uniões homoafetivas em relação às
heteroafetivas, uma vez que é arbitrária essa discriminação por colocar as
pessoas homossexuais em situação de inferior dignidade do que as
heterossexuais, conforme se demonstrará detidamente em capítulos
próprios.
Outro aspecto a ser contra-argumentado é o de que parte dos juristas
defende ser a enumeração constitucional referente à família taxativa, não
admitindo, portanto, a Carta Magna outros modelos que não os
constitucionalmente consagrados. Todavia, a interpretação constitucional é
integrativa, ou seja, parte do pressuposto de que o constituinte não teve a
intenção de regular todas as situações existentes na sociedade, tendo a
Constituição, pelo contrário, um caráter aberto e amplo, no sentido de que
as lacunas podem ser preenchidas pelo Legislativo e pelo Judiciário.
Entender que as lacunas constitucionais importariam em proibição das
“situações lacunosas” implica contrariar o já mencionado princípio da
legalidade (legalidade constitucional, inclusive), no sentido de que aquilo
que não é expressamente proibido tem-se por permitido (art. 5.º, II, da
CF/1988)139.
Assim, uma vez que as uniões homoafetivas são dotadas do mesmo
amor familiar existente nas uniões heteroafetivas, configuram verdadeiras
entidades familiares, a exemplo do casamento civil e da união estável,
merecendo, portanto, a mesma proteção ofertada pelo Direito das Famílias
aos casais heteroafetivos, visto que o referido amor familiar é o elemento
essencial à configuração da família contemporânea.
2.6.1 As Gerações/Dimensões de Direitos. STF, ADPF 132 e ADI 4277
A doutrina tem apontado a existência de três dimensões140 de direitos
existentes na humanidade, oriundas do ideal de “liberdade, igualdade e
fraternidade” da Revolução Francesa de 1789.
A Primeira Dimensão, subsequente à Revolução Francesa, foi a
garantidora da liberdade individual das pessoas, impondo limites ao Estado
com o intuito de resguardar os direitos dos cidadãos (marca da transição do
Absolutismo para os Regimes Democráticos de Direito – consagrando,
assim, o Estado Liberal de Direito). A Segunda Dimensão, reconhecida a
partir da Constituição Mexicana de 1917 e da Constituição Alemã de
Weimar, de 1919, caracteriza os direitos socioeconômico-culturais dos
cidadãos, que passaram a impor ao Estado atitudes positivas com o intuito
de garantir a igualdade de todos, prevenindo ou remediando as diferenças
sociais (consagrando, assim, o Estado Social de Direito). Já a Terceira
Dimensão, superveniente à Segunda Guerra Mundial, veio assegurar a
dignidade humana por meio da garantia a direitos difusos e coletivos da
humanidade, com o intuito de evitar que uma categoria de seres humanos
fosse extirpada por outra141.
Expostas estas dimensões de direitos, não pode ser outra a conclusão
senão a de que o livre exercício da sexualidade humana constitui expressão
das três dimensões de direitos, visto que isso decorre dos postulados
fundamentais da liberdade individual, da igualdade e da solidariedade
humana, portanto como direito fundamental ao mesmo tempo individual,
categorial e difuso142. Afinal, a manifestação homoafetiva (assim como a
heteroafetiva) caracteriza, na verdade, o pleno exercício dos direitos
constitucionais fundamentais:

a) da isonomia (art. 5.º, caput), porque se todos são iguais perante


a lei e se a todos é garantido o direito à igualdade, sendo assim
vedadas discriminações arbitrárias de qualquer natureza, então é
incompatível com a isonomia qualquer discriminação em razão da
orientação sexual da pessoa, que configura parte indissociável da
consciência do indivíduo homossexual. Isso porque não há
fundamentação lógico-racional que justifique nem prova da
necessidade de tal discriminação, considerando especialmente que a
homossexualidade e a relação homossexual afetiva não são proibidas
por nosso ordenamento jurídico;
b) da dignidade da pessoa humana (art. 1.º, III), uma vez que tal
princípio garante a todos o direito da busca pela felicidade, desde que
respeitados os direitos alheios, sendo que não é direito dos
heterossexuais a extirpação da homossexualidade e mesmo da
homoafetividade ou então de seus efeitos jurídicos. Ademais, por certo
os homossexuais somente atingirão tal sublime estado de espírito
(felicidade) se pudessem manifestar livremente sua afetividade para
com seu/sua companheiro(a), da mesma forma que os heterossexuais,
o que só será possível com o reconhecimento jurídico-familiar da
legitimidade de suas uniões amorosas, visto que o contrário implica
juízo de valor negativo do Estado, que estará considerando as uniões
homoafetivas como menos dignas do que as heteroafetivas, o que é um
absurdo inverídico;
c) da liberdade de consciência (art. 5.o, VI), que garante a todos o
direito à autonomia moral, ou seja, a viver da forma como são, no
sentido de agirem em conformidade com o seu íntimo, vivendo a vida
da forma que entendem correta desde que não prejudiquem terceiros
(prejuízo este que inexiste na mera homoafetividade), donde não pode
o Estado atribuir menor dignidade de forma arbitrária às uniões
homoafetivas em relação às uniões heteroafetivas, pois isso implica
descabida intromissão na vida íntima dos cidadãos ao pretender impor
a concepção que ele, Estado, julga mais correta143;
d) da intimidade e da privacidade (art. 5.o, X), que garantem a
todos o direito a terem respeitada a sua vida íntima, seja dentro do seu
lar ou em ambiente restrito (intimidade), seja no seio social
(privacidade), donde, novamente, não pode o Estado atribuir menor
dignidade de forma arbitrária às uniões homoafetivas em relação às
uniões heteroafetivas, pois isso implica desmerecer a intimidade
homoafetiva dos cidadãos homossexuais.

Dessa forma, tendo em vista que o livre exercício da homoafetividade é


decorrência lógica dos direitos constitucionais fundamentais
supraexplicitados, tem-se por consequência lógica que o livre exercício da
sexualidade é também um direito humano fundamental, nos termos de nossa
Constituição Federal. Em outras palavras, o direito à identidade
homossexual e ao livre exercício da homoafetividade144 é um direito
fundamental implícito, decorrente dos princípios da isonomia, da dignidade
da pessoa humana e da liberdade de consciência. Muito embora aqui se
concorde com a doutrina que advoga a tese segundo a qual os direitos
fundamentais implícitos não necessitam de norma constitucional que os
reconheça, é inegável que o art. 5.o, § 2.o, da Carta Magna declara
expressamente a sua existência145.
Ademais, já há quem defenda a existência de direitos de quarta
dimensão, que seriam consubstanciados por um direito à diferença146. Essa
questão de uma quarta dimensão de direitos é controvertida, na medida em
que outros autores apontam outras questões, como a democracia direta e o
direito a um meio ambiente saudável como direitos de quarta dimensão
(havendo quem aponte, inclusive, uma quinta dimensão). O importante aqui
é delinear-se o direito à tolerância, ao respeito às diferenças, seja qual for a
dimensão ou a forma de reconhecimento de tal direito, mesmo porque o
respeito e a tolerância são pressupostos da vida em sociedade, na medida
em que ninguém é igual a ninguém, donde todos têm o dever de se respeitar
reciprocamente. Por outro lado, o direito à diferença e o respeito à
tolerância devem ser reconhecidos como os genuínos direitos de quarta
dimensão na medida em que a ordem das dimensões de direitos surgiu por
conta da sucessão histórica da demanda da população em geral por tais
direitos (primeiro veio a demanda à liberdade individual, depois a demanda
da igualdade real e, após, a demanda por solidariedade humana – as três
dimensões clássicas), ao passo que, após a Segunda Guerra Mundial (marco
histórico da consagração dos direitos de terceira dimensão), as demandas
sociais que se seguiram foram aquelas atinentes à luta por direitos civis da
população negra, de populações étnico-culturais e da população LGBT.
Logo, faz sentido que o direito à diferença e o respeito à tolerância sejam
qualificados como constituindo o conteúdo da quarta dimensão de direitos
fundamentais.
No que tange ao dito direito à tolerância147, é ele aplicável à
homossexualidade se a orientação sexual da pessoa for considerada um
elemento diferencial entre os seres humanos, no sentido de classificar em
rótulos estanques as pessoas heteroafetivas e as pessoas homoafetivas.
Aponte-se, apenas, que este autor não concorda com tal diferenciação.
Afinal, tanto homossexuais quanto heterossexuais são pessoas humanas
idênticas no que tange ao sentimento que nutrem pela pessoa com a qual
querem passar o resto de suas vidas. Não é a orientação sexual da pessoa
que importa nesse ponto, mas o sentimento que se nutre pelo(a) seu(sua)
companheiro(a), que, no caso aqui discutido, é o amor familiar, ou seja, o
amor que vise a uma comunhão plena de vida e interesses, de forma
pública, contínua e duradoura. Assim, considerando que o mesmo amor
familiar existente na união heteroafetiva existe na união homoafetiva, então
não há que se falar em “diferença” neste caso ante a simples divergência de
sexo de um dos pares das duas relações (quando comparadas) e da
orientação sexual de seus componentes, tendo em vista que ditos elementos
são irrelevantes no que tange às uniões amorosas. O que importa é a
existência do amor, e nesse ponto as uniões são idênticas. Mas, por outro
lado, se for considerada a orientação sexual de ambos os companheiros e
consequentemente o sexo de um deles como elementos “importantes” à
caracterização das uniões amorosas (com o que não se concorda), então ter-
se-á uma diferença entre ambas as situações, a saber: em uma teremos
pessoas de sexos diversos e, em outra, pessoas do mesmo sexo. Contudo,
mesmo nesse caso deve-se ter em mente que o elemento fundamental da
relação amorosa é o amor familiar, donde, considerando que ele existe tanto
nas uniões heteroafetivas quanto nas uniões homoafetivas, então não se
pode dispensar um tratamento diferenciado a ditas situações, uma vez que
baseadas no mesmo valor primordial, que é o elemento protegido pelas leis
do casamento civil e da união estável, razão pela qual são ditos regimes
jurídicos aplicáveis àquelas duas hipóteses. Esse tema será detidamente
analisado nos Capítulos 6 a 9.
Sobre o tema, cabem as preciosas considerações de Adriana Caldas do
Rego Freitas Dabus Maluf148 no sentido da sexualidade como direito
personalíssimo do ser humano e do direito ao amor como um dos direitos da
personalidade e como um direito humano fundamental a justificar o
reconhecimento do status jurídico-familiar das uniões homoafetivas, senão
vejamos:
A sexualidade, vista como direito personalíssimo do ser humano,
passou a adotar uma moral autônoma, onde é de livre decisão pessoal a
expressão de sua sexualidade; houve a separação entre a realização
sexual e a procriação – separando-se a ética da sexualidade da ética da
reprodução. (...) O direito geral da personalidade, interpretado como
direito de autodeterminação ético-existencial, projeta-se sobre as
escolhas atinentes ao sentido da vida, as quais se manifestam aos
direitos do corpo bem como o direito à identidade sexual. (...) No que
tange ao relacionamento amoroso, é sabido que o ser humano é
gregário pela própria natureza, logo, ao ser levado a viver em grupo,
busca relações de afeto. A estrutura da família mudou com o passar
dos tempos. Na atualidade é fincada no amor, no afeto e na busca da
realização sexual e de intimidade (um dos componentes do amor).
Esses laços de afetividade iniciam-se no namoro e podem perdurar ou
não. A intimidade enquanto bem da personalidade abrange em nossa
concepção uma feição de múltiplos aspectos que passam pela afinidade
sexual, espiritual, intelectual, valorativa, afetiva, visando acima de
tudo à realização pessoal do ser humano em sua mais rica diversidade.
O direito à identidade sexual encontra-se intimamente ligado à
intimidade pessoal e à própria imagem individual, que favorece a
entrada do indivíduo na sociedade, no mercado de trabalho,
possibilitando o pleno desenvolvimento da própria sociedade. O direito
à identidade sexual como expressão do direito à intimidade é
reconhecido expressamente por inúmeras decisões do Tribunal
Europeu de Direitos Humanos. (...) Entendemos que os direitos da
personalidade traduzem as emanações mais íntimas da pessoa humana,
possibilitando a sua autodeterminação, a elucidação dos seus valores
mais íntimos, a sua maneira particular de existir, suas crenças e seus
valores, sua forma de se demonstrar na sociedade em que vive. Por
permear-se com sua constituição psicofísica. Consiste plenamente na
sua própria individualidade. (...) Além de ser a felicidade um bem
perquirido por todos os seres humanos, é também um direito
fundamental e uma obrigação do Estado de procurar fornecer todos os
subsídios necessários para sua assunção. (...) Com base na dialética
socrática, tem-se que o homem, ao conceber suas próprias ideias, vai
ao encontro de si mesmo, faz de si próprio o seu ponto de partida.
Tenta ser ele mesmo sua própria alma. A recuperação da saúde da sua
própria alma se dá através do conhecimento de si mesmo. Assim é o
amor, esse sentimento de pertencimento, de engrandecimento das
potencialidades individuais da alma humana. O direito de vivê-lo, sem
sombra de dúvida, seja no seio da família, em suas diversas
modalidades, seja através das relações de parentalidade, corresponde
a direitos personalíssimos do ser humano. (...) Nesse sentido,
entendemos que, dada a magnitude da abrangência dos direitos
humanos, bem como da profunda inter-relação que existe entre o
direito e o amor, que a liberdade de manifestação deste último em sua
mais rica diversidade representa um direito humano fundamental. (...)
[Segundo Sérgio Resende de Barros] O afeto seria, portanto, em seu
entender, um direito amálgama que contribui para a concretização da
família. O direito ao afeto é o sentimento maior que garante o
agrupamento humano por um laço mais forte do que uma simples
conjunção de interesses e, assim, dá consistência aos demais direitos
humanos da família. Realmente, desde sua origem, a família é
recoberta com um manto de ternura e carinho, de dedicação e
empenho, mas também de responsabilidade para com quem se cativa.
Esse manto protetor é o afeto, ao qual o direito deve dedicar especial
atenção, sob pena de pôr em risco a própria garantia jurídica. (...)
[Ainda segundo Sérgio Resende de Barros] O direito ao amor é a
máxima expressão do direito ao afeto. O amor é a substância e a
culminância do afeto. Não se desenvolve um sem o outro. O mais puro
afeto é o amor. O amor faz do indivíduo um ser humano. Identifica os
entes humanos, uns com os outros, tão fortemente, que gera em todos
nós a solidariedade humana, que é a única força capaz de construir –
dignamente – a humanidade em toda a humanidade, a partir de seu
grupo inicial: a família. E repita-se: não só construir, mas assegurar a
humanidade construída, o que é o fim próprio dos direitos
humanos149. (...) Os princípios primordiais que norteiam a
aproximação aos direitos sobre orientação sexual se referem à
igualdade (o respeito à diferença) e à não discriminação, visando
assegurar a justiça social e garantir a dignidade de lésbicas, gays,
bissexuais e transgêneros, que por sua vez não reivindicam ‘direitos
adicionais’ ou ‘especiais’, mas a observância dos mesmos direitos das
pessoas heterossexuais, dentre os quais ao status familiae em seus
relacionamentos.

O direito fundamental à liberdade de orientação sexual foi reconhecido


pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento da ADPF 132 e da ADI
4.277. Com efeito, nas palavras do Ministro Ayres Britto150, que, após
ressaltar a licitude das relações homoafetivas ante a ausência de proibição
normativa a elas (cf. art. 5.º, II, da CF/1988), afirmou que “nessa altaneira
posição de direito fundamental e bem de personalidade, a preferência sexual
se põe como direta emanação do princípio da ‘dignidade da pessoa humana’
(inciso III do art. 1.º da CF), e, assim, poderoso fator de afirmação e
elevação pessoal. De autoestima no mais elevado ponto da consciência.
Autoestima, de sua parte, a aplainar o mais abrangente caminho da
felicidade, tal como positivamente normada desde a primeira declaração
norte-americana de direitos humanos (Declaração de Direitos do Estado da
Virgínia, de 16 de junho de 1776) e até hoje perpassante das declarações
constitucionais do gênero. Afinal, se as pessoas de preferência
heterossexual só podem se realizar ou ser felizes heterossexualmente, as de
preferência homossexual seguem na mesma toada: só podem se realizar ou
ser felizes homossexualmente. Ou ‘homoafetivamente’, como hoje em dia
mais e mais se fala, talvez para retratar o relevante fato de que o século
XXI já se marca pela preponderância da afetividade sobre a biologicidade.
Do afeto sobre o biológico, este último como realidade tão somente
mecânica ou automática, porque independente da vontade daquele que é
posto no mundo como consequência da fecundação de um individualizado
óvulo por um também individualizado espermatozoide”, em que
“Consignado que a nossa Constituição vedou às expressas o preconceito em
razão do sexo e intencionalmente nem obrigou nem proibiu o concreto uso
da sexualidade humana, o que se tem como resultado dessa conjugada
técnica de normação é o reconhecimento de que tal uso faz parte da
autonomia de vontade das pessoas naturais, constituindo-se em direito
subjetivo ou situação jurídica ativa. Direito potestativo que se perfila ao
lado das clássicas liberdades individuais que se impõem ao respeito do
Estado e da sociedade (...). 36. Não pode ser diferente, porque nada mais
íntimo e mais privado para os indivíduos do que a prática da sua própria
sexualidade. Implicando o silêncio normativo da nossa Lei Maior, quanto a
essa prática, um lógico encaixe do livre uso da sexualidade humana nos
escaninhos jurídico-fundamentais da intimidade e da privacidade das
pessoas naturais. Tal como sobre essas duas figuras de direito dispõe a parte
inicial do art. 10 da Constituição, verbis: ‘são invioláveis a intimidade, a
vida privada, a honra e a imagem das pessoas’. Com o aporte da regra da
autoaplicabilidade possível das normas consubstanciadoras dos direitos e
garantias fundamentais, a teor do § 1.º do art. 5.º da nossa Lei Maior, assim
redigido: ‘As normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm
aplicabilidade imediata. 37. Daqui se deduz que a liberdade sexual do ser
humano somente deixaria de se inscrever no âmbito de incidência desses
últimos dispositivos constitucionais (inciso X e § 1.º do art. 5.º), se
houvesse enunciação igualmente constitucional em sentido diverso. Coisa
que não existe. Sendo certo que o direito à intimidade consigo mesmo
(pense-se na lavratura de um diário), tanto quanto a privacidade se
circunscreve ao âmbito do indivíduo em face dos seus parentes e pessoas
mais chegadas (como se dá na troca de e-mails, por exemplo)”.
Nas palavras do Ministro Gilmar Mendes151: “A orientação sexual e
afetiva deve ser considerada como o exercício de uma liberdade
fundamental, de livre desenvolvimento da personalidade do indivíduo, a
qual deve ser protegida, livre de preconceito ou de qualquer outra forma de
discriminação – como a que poderia se configurar por meio da
impossibilidade de reconhecimento da manifestação de vontade de pessoas
do mesmo sexo em se unir por laços de afetividade, convivência comum e
duradoura, bem como de possíveis efeitos jurídicos daí decorrentes. A rigor,
a pretensão que se formula aqui tem base nos direitos fundamentais, na
proteção de direitos de minorias, a partir da própria ideia do direito de
liberdade. Trata-se da afirmação do reconhecimento constitucional da união
de pessoas do mesmo sexo, como concretização do direito de liberdade – no
sentido de exercício de uma liberdade fundamental, de livre
desenvolvimento da personalidade do indivíduo”.
Assim, nas pertinentes palavras do Ministro Celso de Mello no
julgamento do RE 477.554 AgR/MG: “Ninguém, absolutamente ninguém,
pode ser privado de direitos nem sofrer quaisquer restrições de ordem
jurídica por motivo de sua orientação sexual”, assim, “Os homossexuais,
por tal razão, têm direito de receber a igual proteção tanto das leis quanto
do sistema político-jurídico instituído pela Constituição da República,
mostrando-se arbitrário e inaceitável qualquer estatuto que puna, que
exclua, que discrimine, que fomente a intolerância, que estimule o
desrespeito e que desiguale as pessoas em razão de sua orientação sexual”
(g.n.).

2.6.2 O reconhecimento legal do status jurídico-familiar das uniões


homoafetivas – arts. 2.o e 5.o, parágrafo único, da Lei Maria da Penha
(Lei 11.340/2006)
Questão ainda não muito debatida pela jurisprudência no que tange ao
reconhecimento do status jurídico-familiar das uniões homoafetivas é a
relativa à legalização das mesmas como entidades familiares pelos arts. 2.o
e 5.o, parágrafo único, da Lei Maria da Penha. Analisemos ditos
dispositivos:

Art. 2.º Toda mulher, independentemente de classe, raça, etnia,


orientação sexual (...) goza dos direitos fundamentais inerentes à
pessoa humana.
Art. 5.º Para os efeitos desta Lei, configura violência doméstica e
familiar contra a mulher qualquer ação ou omissão baseada no gênero
que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e
dano moral ou patrimonial:
(...)
II – no âmbito da família, compreendida como a comunidade
formada por indivíduos que são ou se consideram aparentados, unidos
por laços naturais, por afinidade ou por vontade expressa;
III – em qualquer relação íntima de afeto, na qual o agressor
conviva ou tenha convivido com a ofendida, independentemente de
coabitação.
Parágrafo único. As relações pessoais enunciadas neste artigo
independem de orientação sexual. (grifos nossos).

A partir do momento em que se concebe a formação de uma família


como direito fundamental inerente à pessoa humana, o art. 2.o da Lei Maria
da Penha reconheceu expressamente que as pessoas homossexuais têm o
direito de formarem famílias conjugais homoafetivas e, consequentemente,
de terem elas reconhecidas e protegidas pelo Direito das Famílias. Ademais,
quando o parágrafo único do art. 5.o da referida lei enunciou que as relações
pessoais dispostas no mesmo independem de orientação sexual, ele
reconheceu expressamente o status jurídico-familiar das uniões
homoafetivas, alçando-as expressamente à condição de entidades
familiares, embora não tenha regulado seus efeitos na esfera cível.
Com efeito, ao apontar que a família compreende-se como a
comunidade formada por indivíduos que são ou se consideram aparentados
por vontade expressa (art. 5.o, II) ou por relações de afeto (art. 5.º, III) e que
as relações pessoais dispostas em todo esse artigo independem de
orientação sexual (art. 5.o, parágrafo único), então a Lei Maria da Penha
afirmou que entende por família também a união homoafetiva – pois, do
contrário, as relações pessoais dispostas nos incisos II e III dependeriam de
orientação sexual, o que contraria frontalmente o parágrafo único deste
dispositivo legal.
Como se sabe, a Lei Maria da Penha versa sobre a violência doméstica
contra a mulher. Nesse sentido, a violência só será “doméstica” se
perpetrada em ambiente familiar. Assim, é inegável o reconhecimento do
status jurídico-familiar das uniões homoafetivas por força do art. 5.o,
parágrafo único, da referida lei152. Por outro lado, muito embora a Lei
Maria da Penha destine-se a endurecer a punição criminal em face da
violência contra as mulheres (não contra os homens), a mesma reconheceu
a família conjugal homoafetiva como um todo, seja formada por casais
homoafetivos masculinos ou femininos. As punições da Lei aplicar-se-ão
apenas à violência cometida contra a mulher, mas, considerando que as
uniões homoafetivas masculinas e femininas são idênticas quanto a seu
caráter familiar, o princípio da igualdade demanda pela extensão do
conceito de família aos casais homoafetivos masculinos, ante a ausência de
motivação lógico-racional que justifique o contrário.153
Assim, finalmente foi aprovada lei que serve de base para o
reconhecimento do status jurídico-familiar das uniões homoafetivas,
descabendo a milenar alegação de lacuna na legislação nesse sentido.
2.6.3 Da competência das varas de família para julgamento das causas
envolvendo uniões homoafetivas

2.6.3.1 Da mudança do paradigma do direito das famílias contemporâneo.


Do amor familiar como novo paradigma do Direito de Família
Conforme supraexposto, o Direito das Famílias brasileiro passou por
uma mudança de paradigma. Passou do conceito de que a entidade familiar
seria formada unicamente pelo trinômio “casamento, sexo e procriação”
para o entendimento de que a família forma-se pelo amor existente entre o
casal, amor este somado à comunhão plena de vida, em caráter público,
contínuo e duradouro. Assim, a comunidade familiar atual se forma
independentemente da consagração da união afetiva pelo matrimônio – a
união estável constitucionalmente consagrada no art. 226, § 3.º, da CF/1988
é prova disso, ou seja, de que o amor existente entre o casal é o elemento
fundamental para que este seja considerado uma entidade familiar passível
da proteção do Direito das Famílias.
O Brasil não se encontra mais em um sistema jurídico que só se
importa com a forma em que se encontra o casal em questão (estado de
casados) para considerá-los como família digna de proteção jurídica, e que
não dá a mínima importância para a existência ou não de afeto na relação –
sistema este do Código Civil de 1916, que consagrava uma visão
meramente patrimonialista da família. O atual sistema jurídico-familiar
pátrio protege a união amorosa pelo sentimento de construção de uma vida
plena em comum, com a conjugação de esforços para a obtenção da
felicidade do casal. Este é o valor protegido pelas normas do Direito das
Famílias, e não a mera forma como se apresenta – casamento, união estável
ou qualquer outra.
Não foi outro norte que orientou a árdua evolução doutrinário-
jurisprudencial referente ao Direito Concubinário no que tange ao antigo
“concubinato puro” (que é a atual união estável) – de mera relação de
emprego (analogia com o Direito do Trabalho) à equiparação com a
sociedade empresarial de fato (analogia com o Direito Comercial), hoje a
relação não eventual entre duas pessoas que não se encontrem em sociedade
conjugal e não estejam incluídas nas hipóteses de impedimentos
matrimoniais taxativamente previstas no art. 1.521 do CC/2002 é
reconhecida como entidade familiar, em igualdade de condições com o
casamento civil nesse sentido (de reconhecimento como família).
Assim, como suprademonstrado, hoje o amor familiar é o elemento
essencial para a configuração da entidade familiar merecedora de proteção
pelo Direito das Famílias no que tange aos relacionamentos amorosos entre
duas pessoas. Nesse sentido, é inequívoco que a união homoafetiva
enquadra-se no atual conceito de família juridicamente protegida, uma vez
que nela existe esse amor romântico que visa à comunhão plena de vida e
interesses, de forma pública, contínua e duradoura. Afinal, se o referido
amor familiar é o elemento formador da família contemporânea, então toda
a união afetiva que o contenha e que não seja expressamente proibida por
uma lei constitucionalmente válida é merecedora da proteção do Direito das
Famílias, em que é seguro afirmar que a união amorosa formada por
pessoas do mesmo sexo enquadra-se nesse âmbito de proteção jurídico-
familiar. Dessa forma, é imperioso o reconhecimento da competência das
varas de família para o julgamento das causas envolvendo casais
homoafetivos.
Ninguém contesta racionalmente o fato de ser o amor existente nas
uniões homoafetivas o mesmo existente nas uniões heteroafetivas. Todavia,
em postura contraditória, muitos não reconhecem a condição jurídico-
familiar às uniões entre pessoas do mesmo sexo. Mas, se o elemento afetivo
é o mesmo nos dois modelos de relação (heteroafetiva e homoafetiva), e se
presentes os mesmos requisitos da união estável heteroafetiva
constitucionalmente consagrada (publicidade, continuidade e durabilidade),
então é inconstitucional a discriminação das uniões homoafetivas em
relação às heteroafetivas, uma vez que ausente fundamento lógico-racional
que justifique essa discriminação, qual seja a de exclusão das uniões
amorosas formadas por pessoas do mesmo sexo do âmbito do Direito das
Famílias, com base no critério discriminador erigido, qual seja a orientação
sexual do par. Assim, a marginalização das uniões homoafetivas ao campo
do Direito Obrigacional ao passo que às heteroafetivas são conferidos todos
os benefícios do Direito das Famílias afronta o preceito isonômico, sendo
assim inconstitucional.
Reitere-se, ainda, que o elemento valorativamente protegido pelo
Direito das Famílias é justamente o amor que visa a uma comunhão plena
de vida e interesses, de forma pública, contínua e duradoura. Ainda que a
letra fria da lei utilize-se da expressão “o homem e a mulher”, é inequívoco
que a norma protege a família decorrente do amor familiar154 por meio das
leis do casamento civil e da união estável, o que se conclui pela
interpretação teleológica. Isso porque uma interpretação teleológica que
analise o objeto de proteção do enunciado normativo e não se limite à sua
letra fria impõe a aplicação de uma interpretação extensiva ou, no mínimo,
de uma analogia (que decorrem da isonomia) nas normas do Direito de
Família e que sejam estendidas às uniões amorosas formadas por pessoas do
mesmo sexo.
Ora, se o objeto de proteção do Direito das Famílias é a família, a partir
do momento em que as uniões homoafetivas formam famílias idênticas ou,
no mínimo, análogas às uniões heteroafetivas, nota-se que elas encontram-
se protegidos pelo regime jurídico-familiar de nosso ordenamento jurídico.
Só se poderia admitir dito julgamento nas varas cíveis no caso de não
se reconhecer o status jurídico-familiar das uniões homoafetivas, o que
implica necessariamente discriminação decorrente da negação da aplicação
do Direito das Famílias a elas. Contudo, não há fundamento válido ante a
isonomia que justifique a discriminação negativa das uniões homoafetivas
em relação às heteroafetivas. Tal discriminação dá-se, unicamente, por
preconceito, que é juízo de valor injustificado e que surgiu ou pelo menos
se fortaleceu sobremaneira devido à influência de vertentes religiosas,
especialmente por parte da Igreja Católica Apostólica Romana, no que
concerne ao Ocidente.
Assim, considerando que as uniões homoafetivas formam famílias
conjugais e que as varas de família são competentes para julgar demandas
atinentes a quaisquer famílias não proibidas por leis constitucionalmente
válidas, é inconteste a competência das varas de família para o julgamento
das causas envolvendo as uniões amorosas formadas por pessoas do mesmo
sexo, como decorrência lógica dos princípios da isonomia, da dignidade da
pessoa humana e da interpretação extensiva ou da analogia.

3. SÍNTESE CONCLUSIVA DO CAPÍTULO


O ordenamento jurídico brasileiro nada dispõe acerca da união
homoafetiva: não a proíbe, mas da mesma forma não traz nenhuma
disposição expressa sobre ela. Disto resulta que os direitos dos casais
homoafetivos normalmente têm que ser decididos em juízo, por meio de
ações que visem a comprovar que os companheiros conviveram em uma
relação pública, contínua e duradoura, como entidade familiar, e que o
patrimônio deles foi construído com o esforço comum de ambos – com a
ressalva de que o julgamento destas ações sob a égide do Direito
Obrigacional, e não do Direito das Famílias, implica clara discriminação
jurídica das uniões homoafetivas quando comparadas às uniões
heteroafetivas.
O legislador tem a obrigação de resguardar os direitos de todos os
cidadãos, especialmente os direitos das minorias, que são discriminadas
justamente por não serem da mesma forma que a sociedade em geral.
Todavia, enquanto o Legislativo não cumpre com sua obrigação
constitucional de resguardar os direitos fundamentais das minorias de forma
expressa, pode e deve o Judiciário, no alto de sua imparcialidade,
neutralidade e independência, aplicando os valores constantes no
ordenamento jurídico para resguardar o Direito (como os princípios da
isonomia e da dignidade da pessoa humana), garantir que os direitos
daqueles marginalizados pela legislação expressa sejam respeitados pela
comunidade em geral, a partir de uma interpretação teleológica que perceba
que, inobstante a letra fria do enunciado normativo (texto de lei), o Direito
das Famílias é aplicável às uniões homoafetivas por meio da interpretação
extensiva ou da analogia, que decorrem da isonomia.
Afinal, o conceito de família não é mais o mesmo tradicionalmente
consagrado pelo Código Civil de 1916. Naquele diploma legal, a família era
taxada de “legítima” e “ilegítima”, sendo somente aquela considerada como
merecedora de proteção por parte do ordenamento jurídico – ademais,
“legítima” era apenas a família consagrada pelo casamento civil. Mesmo a
união estável hoje constitucionalmente consagrada era considerada como
concubinato, no que ficava fora do Direito das Famílias e era, assim como o
são as uniões homoafetivas antes da decisão do STF na ADPF 132 e na
ADI 4.277155, considerada apenas uma “sociedade de fato” que deveria ser
judicialmente dissolvida, mediante os ditames do Direito das Obrigações,
visando assim evitar o enriquecimento sem causa de uma parte em relação à
outra – entendimento este consagrado pela Súmula 380 do Supremo
Tribunal Federal.
Mas, hoje, a família oriunda de uma união forma-se através do amor
que vise uma comunhão plena de vida e interesses, de forma pública,
contínua e duradoura, sentimento este que é o amor familiar que forma a
família juridicamente protegida contemporânea – família esta que
independe da existência de filhos e mesmo de capacidade procriativa do
casal, uma vez que a Constituição Federal em nenhum momento dispôs
dessa forma. Isso porque deixou a família de derivar do antigo trinômio
“casamento, sexo e procriação” para se formar, atualmente, por meio do
amor que os companheiros nutrem um pelo outro em sua união, nos termos
expostos no início deste parágrafo. Nesse sentido, a união homoafetiva
forma, sim, tanto uma família conjugal quanto uma família juridicamente
protegida, assim como a união heteroafetiva, haja vista existir naquela o
mesmo amor existente nesta.
Note-se, ainda, que tanto o amor é relevante para a discussão e tanto é
ele o elemento formador da família contemporânea, que uma união pública,
contínua e duradoura entre dois amigos não forma uma “união estável”,
justamente porque esta se diferencia das demais uniões pelo fato de ser uma
união amorosa. Relacionamentos de amizade estáveis não geram uniões
estáveis no conceito técnico-jurídico de entidade familiar, sendo esta a
prova cabal de que o amor é efetivamente relevante – em verdade,
fundamental – à análise da existência de uma família juridicamente
protegida. Somente uma união pautada pelo amor familiar, seja ele fraterno
ou romântico, pode ser reconhecida como entidade familiar e merecer a
proteção do Direito das Famílias.
Ademais, o livre exercício da afetividade, no que se inclui a
homoafetividade, constitui um direito humano fundamental, posto ser a
exteriorização das célebres três dimensões de direitos, assim como da
quarta dimensão (direito à diferença e à tolerância) na hipótese de se
considerar a sexualidade dos companheiros e o sexo de um deles como
motivo suficiente a diferenciar uma situação (união homoafetiva) da outra
(união heteroafetiva), razão pela qual não pode o ordenamento jurídico vir a
restringir aquelas sem uma motivação válida ante a isonomia que a
justifique (matéria esta que será tratada adiante, nos capítulos referentes ao
casamento civil e à união estável). Outrossim, a união homoafetiva constitui
uma família conjugal justamente por ser o elemento formador desta o amor
que vise a uma comunhão plena de vida e interesses, de forma pública,
contínua e duradoura – sentimento efetivamente este existente na união
amorosa entre pessoas do mesmo sexo. Assim, ao constituir uma família
conjugal, por óbvio as uniões homoafetivas se enquadram no conceito de
família juridicamente protegida, razão pela qual o julgamento das causas
que envolvam dita união amorosa devem ser decididas pelas varas de
família, especializadas nesse ramo do Direito.
Só se poderia admitir dito julgamento nas varas cíveis no caso de não
se reconhecer o status jurídico-familiar das uniões homoafetivas, o que
implica necessariamente na discriminação decorrente da negação do Direito
das Famílias a tais uniões. Contudo, não há fundamento válido ante a
isonomia que justifique a discriminação negativa das uniões homoafetivas
em relação às heteroafetivas. Tal discriminação dá-se, unicamente, por
preconceito, que é juízo de valor injustificado e que surgiu ou pelo menos
se fortaleceu sobremaneira devido à influência de vertentes religiosas,
especialmente por parte da Igreja Católica Apostólica Romana, no que
concerne ao Ocidente.
Assim, é inconteste a competência das varas de família para o
julgamento das causas envolvendo as uniões amorosas formadas por
pessoas do mesmo sexo, como decorrência lógica dos princípios da
isonomia, da dignidade da pessoa humana e da interpretação extensiva ou
da analogia.

1 Frase que abriu a 2.ª Edição de seu livro União Homossexual: o Preconceito & a
Justiça. Disponível em: www.mariaberenicedias.com.br. Acesso em: 14 out. 2007.
2 O que existem são projetos de lei. O mais notório é o Projeto de Lei 1.151/1995 da
então Deputada Marta Suplicy, e o respectivo Substitutivo, que se encontram
“engavetados” na Câmara dos Deputados desde sua criação pela absoluta falta de
interesse político em sua votação. Há, ainda, o projeto de lei nominado Estatuto das
Famílias – PL 674/2007, que visa revogar o livro de Direito de Família do Código Civil
de 2002 para criar um microssistema jurídico específico para as relações familiares, o
qual prevê, em sua redação originária, a “união homoafetiva” como entidade familiar
autônoma (embora, em seu substitutivo, fruto de acordo com a bancada
fundamentalista, dita evangélica, do Congresso Nacional, tenha retirado tal previsão
do projeto de Estatuto, em que, se o substitutivo for aprovado, continuaremos com o
vácuo normativo acerca da união homoafetiva). Assim, como os referidos projetos não
foram convertidos em lei, deixa-se de comentá-los no presente trabalho, que analisa a
possibilidade de aplicação da legislação hoje existente às uniões homoafetivas.
3 DIAS, Maria Berenice. União Homoafetiva. O Preconceito & a Justiça. 5. ed. São Paulo:
RT, 2011, p. 15.
4 KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. Tradução: João Baptista Machado, São Paulo:
Martins Fontes, 2007, p. 270, para quem: “a ordem jurídica regula a conduta humana
não só positivamente, prescrevendo uma certa conduta, isto é, obrigado a esta
conduta, mas também negativamente, enquanto permite uma determinada conduta
pelo fato de a não proibir. O que não é juridicamente proibido é juridicamente
permitido. (...) a conduta de um indivíduo não juridicamente proibida e, neste sentido,
permitida, pode ser garantida pela ordem jurídica, na medida em que os outros
indivíduos são obrigados a tolerar esta conduta, quer dizer, a não impedir ou de
alguma forma dificultar”. A fundamentação desta posição encontra-se em trecho
anterior da obra: “o Direito regula a conduta humana não apenas num sentido positivo
– enquanto prescreve uma tal conduta ao ligar um ato de coerção, como sanção, à
conduta oposta e, assim, proíbe esta conduta – mas também por uma forma negativa
– na medida em que não liga um ato de coerção a determinada conduta e, assim, não
proíbe esta conduta nem prescreve a conduta oposta. Uma conduta que não é
juridicamente proibida ou é – neste sentido negativo – juridicamente permitida. Visto
que uma determinada conduta humana ou é proibida ou não o é, e que, se não é
proibida, deve ser considerada como permitida pela ordem jurídica, toda e qualquer
conduta de um indivíduo submetido à ordem jurídica pode considerar-se como
regulada – num sentido positivo ou negativo – pela mesma ordem jurídica. Na medida
em que a conduta de um indivíduo é permitida – no sentido negativo – pela ordem
jurídica, porque esta não a proíbe, o indivíduo é juridicamente livre. (...) A ordem
jurídica pode limitar mais ou menos a liberdade do indivíduo enquanto lhe dirige
prescrições mais ou menos numerosas. Fica sempre garantido, porém, um mínimo de
liberdade, isto é, de ausência de vinculação jurídica, uma esfera de existência humana
na qual não penetra qualquer comendo ou proibição” (Ibidem, p. 46 e 48).
5 BRANDÃO, Débora Vanessa Caús. Parcerias homossexuais – aspectos jurídicos, 1.ª
Edição, São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002, p. 66 e 67.
6 Segundo MORAES (A união entre pessoas do mesmo sexo..., p. 96), apud GIRARDI,
Viviane. Famílias Contemporâneas, Filiação e Afeto. A Possibilidade Jurídica da
Adoção por Homossexuais, 1.ª Edição, Porto Alegre: Editora Livraria do Advogado,
2005, p. 69 e 81: “Como se sabe, o papel do legislador numa sociedade democrática e
pluralista é, substancialmente, o de proteção das minorias, através da tutela dos
interesses dos mais fracos, desde que considerados aqueles interesses como direitos
fundamentais, direitos esses que são postos para a proteção da pessoa humana em
sua vida de relação, em sua liberdade, igualdade, participação política e social, bem
como de qualquer outro aspecto que se refira ao pleno desenvolvimento de sua
personalidade. (...) O Estado Democrático de direito material implica o respeito e a
garantia de realização dos direitos fundamentais para todos os cidadãos
individualmente considerados, e na questão atinente aos homossexuais implica, além
da possibilidade do reconhecimento dessa identidade sexual, na proibição de
discriminação ou de tratamento diferenciado oriundo única e exclusivamente da
identidade, ou da orientação sexual das pessoas” (sem grifo no original).
7 Cite-se, v.g., GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil Brasileiro. Parte Geral, 5. ed.
São Paulo: Saraiva, 2007, pp. 48-49, para quem “O legislador não consegue prever
todas as situações para o presente e para o futuro, pois o direito é dinâmico e está em
constante movimento. (...) Tal estado de coisas provoca a existência de situações não
previstas de modo específico pelo legislador e que reclamam solução por parte do juiz.
Como este não pode eximir-se de proferir decisão sob o pretexto de que a lei é
omissa, deve valer-se dos mecanismos destinados a suprir as lacunas da lei, que são:
a analogia, os costumes e os princípios gerais de direito”, pois “Efetivamente, sob o
ponto de vista dinâmico, o da aplicação da lei, pode ela ser lacunosa, mas o sistema
não. Isso porque o juiz, utilizando-se dos aludidos mecanismos, promove a integração
das normas jurídicas, não deixando nenhum caso sem solução (plenitude lógica do
sistema). O direito estaticamente considerado pode conter lacunas. Sob o aspecto
dinâmico, entretanto, não, pois ele próprio prevê os meios para suprir-se os espaços
vazios e promover a integração do sistema”, daí o cabimento da analogia, “que
consiste em aplicar a um caso não previsto a norma legal concernente a uma hipótese
análoga prevista e, por isso mesmo, tipificada [cf. Carlos Maximiliano]”. Dessa forma,
como ensina VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito Civil. Parte Geral. 4. ed. São Paulo:
Saraiva, 2004, pp. 48-49, “O ideal seria o ordenamento jurídico preencher todos os
acontecimentos da sociedade. Não é, como vimos, o que ocorre”, assim, deve o juiz
decidir os casos lacunosos por analogia, que é “um processo de raciocínio lógico pelo
qual o juiz estende um preceito legal a casos não diretamente compreendidos na
descrição legal. O juiz pesquisa a vontade da lei, para transportá-la aos casos que a
letra do texto não havia compreendido”.
8 É oportuna, aqui, a observação de Viviane Girardi (Famílias Contemporâneas, Filiação
e Afeto. A Possibilidade Jurídica da Adoção por Homossexuais, 1.ª Edição, Porto
Alegre: Editora Livraria do Advogado, 2005, p. 56): “Decorrente da impossibilidade de
se aferir quais seriam os direitos que, uma vez assegurados juridicamente, realizariam
a personalidade de todos os indivíduos, o mecanismo legal disponível para a
concretização da possibilidade de reivindicação dos direitos individuais de
personalidade se dá por meio da utilização do princípio da dignidade da pessoa
humana, como cláusula geral a recepcionar e tutelar todo e qualquer direito
relacionado com a realização pessoal de cada pessoa. ‘A personalidade é, portanto,
não um direito, mas um valor (o valor fundamental do ordenamento) e está na base de
uma série aberta de situações existenciais, nas quais se traduz a sua incessantemente
mutável exigência de tutela’”.
9 Ibidem – Prefácio.
10 DIAS, Maria Berenice, União Homossexual – o Preconceito & a Justiça, 3.ª Edição,
Porto Alegre: Editora Livraria do Advogado, 2006, p. 61.
11 ENGELS (A origem da família, da propriedade privada e do Estado, 1944, p. 80-85)
apud LÔBO, Paulo. Direito Civil: Famílias, 1.a Edição, São Paulo: Editora Saraiva,
2008, p. 8.
12 Ibidem, p. 4.
13 Preconceito este que só foi definitivamente superado, do ponto de vista jurídico, com o
advento da Constituição Federal de 1988, que decretou a igualdade jurídica entre o
homem e a mulher na sociedade conjugal (art. 226, § 5.º, da CF/1988).
14 Ibidem, p. 8.
15 Cf. RIOS, Roger Raupp. A homossexualidade no Direito, 1.ª Edição, Porto Alegre:
Editora Livraria do Advogado, 2001, p. 99-100 – o trecho encontra-se transcrito na
nota de rodapé n.º 81, deste capítulo.
16 OLIVEIRA (União estável e seus reflexos no Direito Penal, p. 14) apud DIAS, Maria
Berenice, União Homossexual – o Preconceito & a Justiça, 3.ª Edição, Porto Alegre:
Editora Livraria do Advogado, 2006, p. 63.
17 Cf. RIOS, Roger Raupp. A homossexualidade no Direito, Porto Alegre: Editora Livraria
do Advogado, 2001, pp. 103-105 – o trecho encontra-se transcrito na nota de rodapé
n.º 81, deste capítulo.
18 LÔBO, Paulo. Direito Civil: Famílias, 1.a Edição, São Paulo: Editora Saraiva, 2008, pp.
2-3.
19 Essa foi uma importante vitória, na medida em que a totalitária cláusula da moral e
dos bons costumes poderia eventualmente ensejar a conclusão de que aquilo que não
fosse considerado “moral” ou como de “bons costumes” seria algo ilícito e, portanto,
impassível de ter a si reconhecidas consequências jurídicas de qualquer espécie –
logo, foi uma evolução inicial.
20 DIAS, Maria Berenice. União Homossexual – o Preconceito & a Justiça, 3.ª Edição,
Porto Alegre: Editora Livraria do Advogado, 2006, p. 63.
21 Ibidem, p. 64.
22 Aqui entendido como o “amor que vise a uma comunhão plena de vida e interesses,
de forma pública, contínua e duradoura”, o elemento formador da família
contemporânea. Adiante neste capítulo será desenvolvida pormenorizadamente tal
questão, inclusive com seu embasamento normativo.
23 RIBEIRO, Ana Cecília Rosário; ARAÚJO, Marcelo de Jesus Monteiro. A Relação
Incestuosa como Entidade Familiar: uma Revolução do Estatuto das Famílias. In:
ALBUQUERQUE, Fabíola Santos. EHRHARDT JR, Marcos; OLIVEIRA, Catarina
Almeida de (orgs.). Famílias no Direito Contemporâneo. Estudos em homenagem a
Paulo Luiz Netto Lobo, 1ª edição, Salvador: JusPodivm, 2010, pp. 295 e 317. Grifos
nossos.
24 EHRARDT JÚNIOR, Marcos A. de A. Responsabilidade Civil no Direito das Famílias:
vicissitudes do Direito Contemporâneo e o paradoxo entre o dinheiro e o afeto. In:
ALBUQUERQUE, Fabíola Santos. EHRHARDT JR., Marcos; OLIVEIRA, Catarina
Almeida de (orgs.). Famílias no Direito Contemporâneo. Estudos em homenagem a
Paulo Luiz Netto Lobo. Salvador: JusPodivm, 2010, pp. 356 e 362-363. Grifos nossos.
25 DIAS, Maria Berenice. União Homossexual: o Preconceito & a Justiça! 2. ed. Porto
Alegre: Livraria do Advogado, 2001, p. 64.
26 LÔBO, Paulo. Direito Civil: Famílias. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 3.
27 O tema, contudo, não era pacífico. Washington de Barros Monteiro se opunha a tal
postura, sob o fundamento de que “a concessão de salários ou de indenização à
concubina situa o concubinato em posição jurídica mais vantajosa que a do próprio
matrimônio, redundando em manifesto contrassenso e detrimento da justiça” (Curso de
Direito Civil. Parte Geral, 36.a Edição, São Paulo: Editora Saraiva, 2001, p. 24). Ao
menos no que tange ao concubinato puro (a atual união estável), não assiste razão ao
autor, na medida em que ele se configura como uma união tão digna quanto a
matrimonializada. Por outro lado, a indenização pelos serviços prestados constitui
medida que meramente atenua a ausência de direitos da união concubinária, o que
está longe de lhe garantir os mesmos direitos conferidos ao casamento civil. Por outro
lado, se for feita a analogia com o Direito do Trabalho, deve ser fixado o prazo
prescricional de cinco anos para os “salários” que a concubina irá cobrar, já que este é
o prazo fixado por tal ramo do Direito para o trabalhador que ingressa com reclamação
trabalhista.
28 STJ, REsp 874.443/RS, DJe 14.09.2010, segundo o qual “A jurisprudência do STJ
firmou-se no sentido de que a relação concubinária, mantida simultaneamente a
matrimônio, não gera, após seu encerramento, direito à indenização patrimonial ou
direitos hereditários”.
29 STJ, REsp 988.090/MS, DJe 22.02.2010, segundo o qual “Inviável a concessão de
indenização à concubina, que mantivera relacionamento com homem casado, uma vez
que tal providência eleva o concubinato a nível de proteção mais sofisticado que o
existente no casamento e na união estável, tendo em vista que nessas uniões não se
há falar em indenização por serviços domésticos prestados, porque, verdadeiramente,
de serviços domésticos não se cogita, senão de uma contribuição mútua para o bom
funcionamento do lar, cujos benefícios ambos experimentam ainda na constância da
união”, que ainda afirmou: “Na verdade, conceder a indigitada indenização
consubstanciaria um atalho para se atingir os bens da família legítima, providência
rechaçada por doutrina e jurisprudência”, razão pela qual concluiu que “por qualquer
ângulo que se analise a questão, a concessão de indenizações nessas hipóteses
testilha com a própria lógica jurídica adotada pelo Código Civil de 2002, protetiva do
patrimônio familiar, dado que a família é a base da sociedade e recebe especial
proteção do Estado (art. 226 da CF/1988), não podendo o Direito conter o germe da
destruição da própria família”.
30 STJ, REsp 872.659/MG, DJe 19.10.2009, segundo o qual “Se com o término do
casamento não há possibilidade de se pleitear indenização por serviços domésticos
prestados, tampouco quando se finda a união estável, muito menos com o cessar do
concubinato haverá qualquer viabilidade de se postular tal direito, sob pena de se
cometer grave discriminação frente ao casamento, que tem primazia constitucional de
tratamento”, pois “se o cônjuge no casamento nem o companheiro na união estável
fazem jus à indenização, muito menos o concubino pode ser contemplado com tal
direito, pois teria mais do que se casado fosse”, algo tido como “incompatível com as
diretrizes constitucionais fixadas pelo art. 226 da CF/1988 e com o Direito de Família,
tal como concebido”, em que entender o fornecimento de tal indenização por serviços
prestados após o término da relação amorosa como “locupletação ilícita” em situação
de “conivência e até mesmo estímulo àquela conduta reprovável em que uma das
partes serve-se sexualmente da outra e, portanto, recompensa-a com favores”, razão
pela qual concluiu “Inviável o debate acerca dos efeitos patrimoniais do concubinato
quando em choque com os do casamento pré e coexistente, porque definido aquele,
expressamente, no art. 1.727 do CC/2002, como relação não eventual entre o homem
e a mulher, impedidos de casar; a disposição legal tem o único objetivo de colocar a
salvo o casamento, instituto que deve ter primazia, ao lado da união estável, para fins
de tutela do Direito”.
31 STJ, REsp 982.664/RJ, DJe 15.04.2011, segundo o qual “Nos termos da
jurisprudência da 4ª Turma do STJ, a companheira faz jus à indenização pelos
serviços prestados pelo período de vida em comum (REsp 331.511/SE, Rel. Min. Aldir
Passarinho Junior, DJ 17.05.2004, p. 228)”.
32 DIAS, Maria Berenice. Manual do Direito das Famílias. Porto Alegre: Editora Livraria
do Advogado, 2005, p. 182-183.
33 Ibidem, p. 183.
34 Pelo que se depreende da lição de Washington de Barros Monteiro, esse
entendimento da Súmula 380 do STF foi um retrocesso aos direitos anteriormente
reconhecidos à concubina, pois o autor relata que, anteriormente à referida súmula:
“Entendia-se antigamente que a simples presença da concubina, à testa do lar,
presidindo a economia doméstica, assegurava-lhe direito à meação no patrimônio
adquirido ou aumentado pelo companheiro” (ibidem, p. 25).
35 Ademais, como relata a doutrina, desse entendimento passou-se, gradativamente, a
reconhecer à concubina o direito à indenização pela morte do concubino por acidente
do trabalho e de trânsito, desde que fosse beneficiária, além de alguns outros direitos
de natureza previdenciária, no sentido da permissão (antes negada) de constar ela
como beneficiária do contribuinte falecido. Mas, na falta dessa menção expressa (sua
nomeação como beneficiária), passaram a ser igualmente deferidos esses direitos no
caso de prova de convivência ou da existência de filhos comuns com o concubino.
36 DIAS, Maria Berenice. União Homossexual: o Preconceito & a Justiça!, 2.a Edição,
Porto Alegre: Editora Livraria do Advogado, 2001, p. 64.
37 OLIVEIRA, Catarina Almeida de. Refletindo o Afeto nas Relações de Família. Pode o
Direito impor o Amor? In: ALBUQUERQUE, Fabíola Santos; EHRHARDT JR., Marcos;
OLIVEIRA, Catarina Almeida de (orgs.). Famílias no Direito Contemporâneo. Estudos
em homenagem a Paulo Luiz Netto Lobo. Salvador: JusPodivm, 2010, p. 51. Grifos
nossos.
38 MELLO, Marcos Bernardes de. Sobre a classificação do fato jurídico da união estável.
In: ALBUQUERQUE, Fabíola Santos; EHRHARDT JR., Marcos; OLIVEIRA, Catarina
Almeida de (orgs.). Famílias no Direito Contemporâneo..., Salvador: JusPodivm, 2010,
pp. 145 e 146. Grifos nossos.
39 LACERDA, Carmen Sílvia Maurício de. Famílias Monoparentais: Conceito.
Composição. Responsabilidade. In: ALBUQUERQUE, Fabíola Santos; EHRHARDT
JR., Marcos; OLIVEIRA, Catarina Almeida de (orgs.). Famílias no Direito
Contemporâneo..., Salvador: JusPodivm, 2010, pp. 166-167. Grifos nossos.
40 Decisão disponível em
<http://www.direitohomoafetivo.com.br/anexos/juris/1204__c336240403f50dfa15db9c1
937c92c25.pdf> (último acesso em 02/10/12 – processo não informado).
41 MALUF, Adriana Caldas do Rego Freitas Dabus. Direito das famílias. Amor e bioética,
1ª edição, São Paulo: Campus Jurídico, 2012, pp. 41, 277, capa interna e contracapa.
42 “Essa valorização do espaço familiar, próprio e inerente à realização do ser humano,
dota a entidade familiar de função e reconhece a afetividade como o laço a mantê-la
unida e existente” (in: GIRARDI, Viviane. Famílias Contemporâneas, Filiação e Afeto:
A Possibilidade Jurídica da Adoção por Homossexuais, 1.ª Edição, Porto Alegre:
Editora Livraria do Advogado, 2005, p. 41).
43 Expressão adiante explicada.
44 Nesse sentido, é elucidativa a lição de Paulo Luiz Netto Lôbo: “No caput do art. 226
operou-se a mais radical transformação no tocante ao âmbito de vigência da tutela
constitucional à família. Não há qualquer referência a determinado tipo de família,
como ocorreu com as constituições anteriores. Ao suprimir a locução ‘constituída pelo
casamento’ (art. 175 da Constituição de 1967-1969), sem substituí-la por qualquer
outra, pôs sob a tutela constitucional ‘a família’, ou seja, qualquer família. A cláusula
de exclusão desapareceu. O fato de, em seus parágrafos, referir a tipos determinados,
para atribuir-lhes certas consequências jurídicas, não significa que reinstituiu a
cláusula de exclusão, como se ali estivesse a locução ‘a família, constituída pelo
casamento, pela união estável ou pela comunidade formada por qualquer dos pais e
seus filhos’. A interpretação de uma norma ampla não pode suprimir de seus efeitos
situações e tipos comuns, restringindo direitos subjetivos. O objeto da norma não é a
família, como valor autônomo, em detrimento das pessoas que a integram. Antes foi
assim, pois a finalidade era reprimir ou inibir as famílias ‘ilícitas’, desse modo
consideradas todas aquelas que não estivessem compreendidas no modelo único
(matrimonial), em torno do qual o direito de família se organizou. ‘A regulamentação
legal da família voltava-se, anteriormente, para a máxima proteção da paz doméstica,
considerando-se a família fundada no casamento como um bem em si mesmo,
enaltecida como instituição essencial’ [Gustavo Tepedino]. O caput do art. 226 e,
consequentemente, a cláusula geral de inclusão, não sendo admissível excluir
qualquer entidade que preencha os requisitos de afetividade, estabilidade e
ostensividade”. A regra do § 4.º do art. 226 integra-se à cláusula geral de inclusão,
sendo esse o sentido do termo “também” nela contido. “Também” tem o significado de
igualmente, da mesma forma, outrossim, de inclusão de fato sem exclusão de outros.
“Se dois forem os sentidos possíveis (inclusão ou exclusão), deve- ser prestigiado o
que melhor responda à realização da dignidade da pessoa humana, sem
desconsideração das entidades familiares reais não explicitadas no texto” (LÔBO,
Paulo. Direito Civil. Famílias. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 60-61). Como diz Vivane
Girardi, após comentar tal lição de Paulo Lôbo: “Portanto, de plano se pode perceber
que a exclusão de outros arranjos familiares não está no texto da Constituição, mas
sim na interpretação que dele é feita (GIRARDI, Viviane. Famílias Contemporâneas,
Filiação e Afeto. A Possibilidade Jurídica da Adoção por Homossexuais. Porto Alegre:
Editora Livraria do Advogado, 2005, p. 136).No mesmo sentido: FERREIRA, Breezy
Miyazato Vizeu; ESPOLADOR, Rita de Cássia Resquetti Tarifa. O papel do afeto na
formação das famílias recompostas no Brasil. In: DIAS, Maria Berenice; BASTOS,
Eliane Ferreira; MORAES, Naime Márcio Martins (Orgs.). Afeto e Estruturas
Familiares. Belo Horizonte: Del Rey, 2010, p. 115, afirmando que a Constituição
“incluiu, em seu artigo 226, uma cláusula de inclusão, não sendo possível, neste
sentido, desconsiderar estruturas familiares baseadas no princípio da afetividade, na
comunhão de vida e solidariedade entre seus membros, na medida em que a
‘afetividade desponta como elemento nuclear e definidor da união familiar’ [Paulo
Lôbo]”.
45 Destacando esse caráter patrimonialista com uma leve ironia no nome que
(corretamente) concedeu ao Código Civil de 1916, afirma FACHIN, Luiz Edson.
Inovação e tradição no Direito de Família contemporâneo. In: DIAS, Maria Berenice;
BASTOS, Eliane Ferreira; MORAES, Naime Márcio Martins (Orgs.). Afeto e Estruturas
Familiares. Belo Horizonte: Del Rey, 2010, p. 342, que “O código patrimonial
imobiliário, com imensas repercussões no Direito de Família, dava conta do
individualismo oitocentista num modelo único de sociedade. Adotou, por essa mesma
razão, um standard de família, de vínculo e de titularidade, e promoveu a exclusão
legislativa das pessoas, bens, culturas e símbolos estrangeiros a sua definição. Nada
obstante, o sentido de permanência indefinida ou da vizinhança com a imutabilidade
esteve mais em quem do Código se serviu e menos em quem o elaborou. Sem
embargo de tratar-se, no plano axiológico, de um projeto do século XIX promulgado
em 1916, fruto da belle époque do movimento codificador, o Código Civil brasileiro, a
seu modo e a seu tempo, resultou numa grande projeção dos interesses que
alinhavaram esse corpo legislativo. A historicidade da codificação ressalta o desenho
jurídico de suas instituições de base que se alteram na medida em que vão se
transformando os valores que governam o projeto parental, as titularidades e os
contratos”.
46 EHRARDT JÚNIOR, Marcos A. Responsabilidade Civil no Direito das Famílias:
vicissitudes do Direito Contemporâneo e o paradoxo entre o dinheiro e o afeto. In:
ALBUQUERQUE, Fabíola Santos; EHRHARDT JR., Marcos; OLIVEIRA, Catarina
Almeida de (orgs.). Famílias no Direito Contemporâneo..., Salvador: JusPodivm, 2010,
pp. 382-383.
47 FERREIRA e ESPOLADOR, op. cit., p. 104, 107 e 116.
48 ALBUQUERQUE JUNIOR, Roberto Paulino de. Ensaio Introdutório sobre a Teoria da
Responsabilidade Civil Familiar. In: ALBUQUERQUE, Fabíola Santos; EHRHARDT
JR., Marcos; OLIVEIRA, Catarina Almeida de (orgs.). Famílias no Direito
Contemporâneo..., Salvador: JusPodivm, 2010, p. 398. Grifo nosso.
49 ALBUQUERQUE, Fabiola Santos. Os Princípios Constitucionais e sua Aplicação nas
Relações Jurídicas de Família. In: ALBUQUERQUE, Fabíola Santos; EHRHARDT JR.,
Marcos; OLIVEIRA, Catarina Almeida de (orgs.). Famílias no Direito Contemporâneo...,
Salvador: JusPodivm, 2010, p. 39. Grifo nosso.
50 OLIVEIRA, Catarina Almeida de. Refletindo o Afeto nas Relações de Família. Pode o
Direito impor o Amor? Famílias no Direito Contemporâneo..., Salvador: JusPodivm,
2010, p. 52. Grifos nossos.
51 ALBUQUERQUE, Fabiola Santos. Os Princípios Constitucionais e sua Aplicação nas
Relações Jurídicas de Família. Famílias no Direito Contemporâneo..., Salvador:
JusPodivm, 2010, p. 39. Grifo nosso.
52 DIAS, Maria Berenice. Manual do Direito das Famílias. Porto Alegre: Editora Livraria
do Advogado, 2005, p. 15-35.
53 Vale a pena transcrever o original. Segundo a autora (ibidem, p. 16 e 40-41): “Cada
vez mais a ideia de família se afasta da estrutura do casamento. A possibilidade do
divórcio e o estabelecimento de novas formas de convívio revolucionaram o conceito
sacralizado de matrimônio. A existência de outras entidades familiares e a faculdade
de reconhecer filhos havidos fora do casamento operaram verdadeira transformação
na própria família. Assim, na busca do conceito de entidade familiar, é necessário ter
uma visão pluralista, que albergue os mais diversos arranjos vivenciais. É preciso
achar o elemento que autorize reconhecer a origem do relacionamento das pessoas.
(...) O desafio dos dias de hoje é achar o toque identificador das estruturas
interpessoais que permita nominá-las como família. Este referencial só pode ser
identificado na afetividade. É o envolvimento emocional que leva a subtrair um
relacionamento do âmbito do direito obrigacional – cujo núcleo é a vontade – para
inseri-lo no direito das famílias, que tem como elemento estruturante o sentimento do
amor que funde as almas e confunde patrimônios; gera responsabilidades e
comprometimentos mútuos. Esse é o divisor entre o direito obrigacional e o familiar: os
negócios têm por substrato exclusivamente a vontade, enquanto o traço diferenciador
do direito de família é o afeto. A família é um grupo social fundado essencialmente nos
laços de afetividade após o desaparecimento da família patriarcal que desempenhava
funções procriativas, econômicas, religiosas e políticas. (...) A teoria e a prática das
instituições de família dependem, em última análise, da competência em dar e receber
amor. A família continua, e mais empenhada do que nunca, em ser feliz. A
manutenção da família visa, sobretudo, buscar a felicidade. Não é mais obrigatório
manter a família, ela só sobrevive quando vale a pena. É um desafio” (sem grifos no
original).
54 Ibidem, p. 24.
55 Ibidem, p. 24.
56 Ibidem, p. 24.
57 Ibidem, p. 31.
58 TJ/RS, AC 70012836755, Rel. Dra. Maria Berenice Dias, v.u., j. 21.12.2005.
59 MUSZKAT, Malvina Ester. O mal-estar na cultura do afeto e da felicidade. In: DIAS,
Maria Berenice; BASTOS, Eliane Ferreira; MORAES, Naime Márcio Martins (Orgs.).
Afeto e Estruturas Familiares. Belo Horizonte: Del Rey, 2010, p. 349.
60 FERRY, Luc. A Revolução do Amor. Por uma Espiritualidade Laica. Tradução de Véra
Lucia dos Reis. Rio de Janeiro: Objetiva, 2010, capa interna e p. 94.
61 FERREIRA, Breezy Miyazato Vizeu; ESPOLADOR, Rita de Cássia Resquetti Tarifa. O
papel do afeto na formação das famílias recompostas no Brasil. In: DIAS, Maria
Berenice; BASTOS, Eliane Ferreira; MORAES, Naime Márcio Martins (Orgs.). Afeto e
Estruturas Familiares. Belo Horizonte: Del Rey, 2010, p. 116.
62 GROENINGA, Giselle Câmara. A função do afeto nos “contratos” familiares. In: DIAS,
Maria Berenice; BASTOS, Eliane Ferreira; MORAES, Naime Márcio Martins (Orgs.).
Afeto e Estruturas Familiares. Belo Horizonte: Del Rey, 2010, p. 205.
63 PEREIRA JR., Antonio Jorge. Da Afetividade à Efetividade nas Relações de Família.
In: DIAS, Maria Berenice; BASTOS, Eliane Ferreira; MORAES, Naime Márcio Martins
(Orgs.). Afeto e Estruturas Familiares. Belo Horizonte: Del Rey, 2010, p. 64 e 69.
Anote-se que o autor diferencia amor de afeto, considerando o afeto como o fator de
aproximação de pessoas, mas insuficiente para consolidar uma autêntica estrutura
familiar (ibidem, p. 69), tanto que defende que não é o afeto o objeto de preocupação
do Direito, mas o amor, na forma por ele conceituada e transcrita no corpo do texto
(ibidem, p. 70). Contudo, não adoto esta distinção, mesmo porque desde a 1ª edição
desta obra utilizo a palavra amor ao invés de afeto justamente para evitar mal-
entendidos do gênero (nem a adotam os autores das transcrições doutrinárias
constantes deste trabalho que falam no afeto como elemento formador da família
contemporânea – como a psicanalista Giselle Câmara Groeninga, na obra citada na
nota anterior, que, como visto, claramente chama de afeto este amor de bem querer o
amado). Ademais, por vezes o autor fala no amor “entre homem e mulher” (v.g.:
ibidem, p. 69), embora não diga expressamente se exclui (ou não) as uniões
homoafetivas do conceito de família que adota – parece que exclui, pois fala que a
família não é produto on demand (sic) e que há quem defenda um batismo legal
jusfamiliar (sic) a situações diferentes daquelas preconizadas como base da
sociedade, ou seja, “Para situações que não são necessárias e suficientes para
constituir e perpetuar a sociedade” (ibidem, p. 73 – grifo nosso) – pelo perpetuar,
parece que o autor considera a capacidade procriativa como elemento indispensável à
formação da família, argumento este desmistificado adiante neste trabalho. Contudo,
qualquer que seja a posição do autor, entendemos que o seu conceito de amor aplica-
se às uniões homoafetivas, por serem elas pautadas neste sublime sentimento da
mesma forma que o são as uniões heteroafetivas.
64 Cf. PINHEIRO, Jorge Duarte. Afecto e Justiça do caso concreto no Direito de Família.
In: DIAS, Maria Berenice; BASTOS, Eliane Ferreira; MORAES, Naime Márcio Martins
(Orgs.). Afeto e Estruturas Familiares. Belo Horizonte: Editora Del Rey, 2010, pp. 238 e
242. Este autor português manifesta preocupação sobre como considerar o afeto no
Direito das Famílias, pois embora anote que o afeto que merece consideração jurídica
é o exteriorizado (“o sentimento enquanto facto psíquico puro não interessa ao Direito.
Mas, na sequência de uma exteriorização, o sentimento torna-se acessível ao Direito.
O Direito permite e proíbe comportamentos, mas não é indiferente às motivações das
condutas e às consequências emocionais que as mesmas têm sobre terceiros. (...)
Não procede, portanto, a ideia de que o Direito esteja absolutamente inibido de intervir
na área do sentimento, por força de uma limitação de cariz técnico”. Ibidem, p. 240-
241), preocupa-se em evitar julgamentos com base na subjetividade e na
unilateralidade do julgador, razão pela qual entende que “Talvez possa ajudar a evitar
a subjectividade e a unilateralidade o chamado método do julgamento com base na
‘empatia imparcial’, proposto por Alexander Nikolaevich Shytov, na obra ‘Conscience
and Love in Making Judicial Decisions’ – ‘Consciência e Amor na Tomada da Decisão
Judicial’. No julgamento com base na ‘empatia imparcial’, o juiz procura decidir sem se
deixar dominar pelas suas crenças e preferências pessoais; acima de tudo, tem de
conhecer os sentimentos e compreender os motivos das partes, rejeitar atitudes
precipitadas, ter cuidado na ponderação dos factos, ser rigoroso, paciente e humano.
Como se vê, isto não é propriamente um método científico, mas um conjunto de
atitudes ditadas pelo bom-senso. Não há, enfim, fórmulas mágicas e infalíveis. A
justiça, tal como a injustiça, é resultado da acção humana” (ibidem, pp. 243-244).
Parece-me que este método sugerido pelo autor é análogo (se não idêntico) à
neutralidade que se exige do intérprete positivista, segundo a qual o intérprete deve
deixar seus valores pessoais de lado para interpretar o enunciado normativo com base
no valor que se pretendeu proteger com a norma em questão. De qualquer forma, vê-
se que mesmo um autor preocupado com a subjetividade da consideração do afeto no
Direito das Famílias reconhece corretamente que o afeto (amor) é uma parte inerente
e essencial deste ramo do Direito, em que ele não pode ser ignorado pelo jurista.
65 PEREIRA JR., Antonio Jorge. Op. cit., p. 70.
66 FACHIN, Luiz Edson. Inovação e tradição no Direito de Família contemporâneo. In:
DIAS, Maria Berenice; BASTOS, Eliane Ferreira; MORAES, Naime Márcio Martins
(Orgs.). Afeto e Estruturas Familiares. Belo Horizonte: Del Rey, 2010, p. 328 e 339.
67 GROENINGA, Giselle Câmara. A função do afeto nos “contratos” familiares. In: DIAS,
Maria Berenice; BASTOS, Eliane Ferreira; MORAES, Naime Márcio Martins (Orgs.).
Afeto e Estruturas Familiares. Belo Horizonte: Del Rey, 2010, p. 206.
68 ADPF 132 e ADI 4.277, voto do Ministro Luiz Fux, p. 13-14.
69 Cf., v.g., TJ/RS, AC 70012836755, Relatora: Dra. Maria Berenice Dias, v.u.,
julgamento de 21.12.2005.
70 Novamente segundo Maria Berenice Dias: “A convivência entre parentes ou entre
pessoas, ainda que não parentes, dentro de uma estruturação com identidade de
propósito, impõe o reconhecimento da existência de uma entidade familiar a merecer o
nome de família anaparental. (...) A solução que melhor se aproxima de um resultado
justo é conceder à irmã, com quem a falecida convivia, a integralidade do patrimônio,
pois ela, em razão da parceria de vidas, antecede aos demais irmãos na ordem de
vocação hereditária. Ainda que inexista qualquer conotação de ordem sexual,
convivência identifica comunhão de esforços, cabendo aplicar, por analogia, as
disposições que tratam do casamento e da união estável. Cabe lembrar que estas
estruturas de convívio em nada se diferenciam da entidade familiar de um dos pais
com seus filhos e que também merece proteção constitucional” (DIAS, Maria Berenice.
Manual do Direito das Famílias, 1.a Edição, Porto Alegre: Editora Livraria do
Advogado, 2005, p. 47).
71 Como bem diz Maria Berenice Dias (União Homossexual. O Preconceito & a Justiça,
3.ª Edição, 2006, Porto Alegre: Editora Livraria do Advogado, p. 68 e 69): “O afeto é
elemento essencial das relações interpessoais, sendo um aspecto do exercício do
direito à intimidade garantido pela Constituição Federal. A afetividade não é indiferente
ao Direito, pois é o que aproxima as pessoas, dando origem aos relacionamentos que
geram relações jurídicas, fazendo juz ao status de família. Imperioso reconhecer o
surgimento de uma nova família, a chamada família ‘eudemonista’, doutrina que
considera ser a felicidade individual ou coletiva o fundamento da conduta humana.
Cabe ser lembrado o diálogo entre Hans Kelsen e Cossio perante a congregação da
Universidade de Buenos Aires. Cossio, autor da teoria ecológica, desafiou Kelsen a
citar um exemplo de relação intersubjetiva que estivesse fora do Direito. Kelsen
respondeu: Oui monsieur, l’amour. O Direito não regula sentimentos, mas as uniões
que associam afeto a interesses comuns, e que, ao terem relevância jurídica,
merecem proteção legal, independentemente da orientação sexual do par. Como a
família é uma relação de ordem da sexualidade, tem o afeto como pressuposto.
Portanto, todas as espécies de vínculos que tenham por base o afeto são
merecedoras da proteção do Estado. (...)” (grifos nossos). Na 5.ª edição, a autora
alterou a redação do trecho, mantendo a ideia central: “O centro de gravidade das
relações de família situa-se modernamente na mútua assistência afetiva, elemento
essencial das relações interpessoais que não é indiferente ao Direito. É o afeto que
aproxima as pessoas, dando origem aos relacionamentos que geram as relações
jurídicas” (DIAS, Maria Berenice. União Homoafetiva. O Preconceito & a Justiça, 5. ed.
São Paulo: RT, 2011, p. 108).
72 O princípio jurídico do afeto será trabalhado em item próprio, adiante.
73 WELTER apud DIAS, Maria Berenice. Manual do Direito das Famílias, 1.a Edição,
Porto Alegre: Editora Livraria do Advogado, 2005, p. 48.
74 “Como a crise é sempre perda dos fundamentos de um paradigma em virtude do
advento de outro, a família atual está matizada em paradigma que explica sua função
atual: a afetividade. Assim, enquanto houver affectio haverá família, unida por laços de
liberdade e responsabilidade, e desde que consolidada na simetria, na colaboração, na
comunhão de vida” (LÔBO, Paulo Luiz Netto. Direito Civil: Famílias, 1.a Edição, São
Paulo: Editora Saraiva, 2008, p. 1).
75 Muito embora costume-se definir affectio maritalis como “o ânimo de serem marido e
mulher” (sic) (Disponível em: http://www.redejuridica.com.br/expest.jsp?
idpalavra=82&letra=A. Acesso em: 1.º ago. 2008), dito sentimento significa, em
verdade, o ânimo de desenvolver uma vida em conjunto, ao lado do(a)
companheiro(a). Aquela definição, voltada para a heterossexualidade, é oriunda do
fato de ter a humanidade se “acostumado” a pensar na família oriunda da união
amorosa como formada unicamente entre um homem e uma mulher, o que é um
equívoco, conforme se demonstra neste tópico e neste trabalho como um todo. Afinal,
quando se diz que duas pessoas de sexos diversos visam se tornar “marido e mulher”,
significa que querem manter uma união amorosa em comunhão plena de vida e
interesses, de forma pública, contínua e duradoura estabelecida pelo casamento civil,
conforme demonstra a conjugação dos arts. 1.511 e 1.723 do Código Civil, pois os
requisitos da união estável são pautados pelo paradigma da “vida de casados”.
76 BARROSO, Luís Roberto. Diferentes mas iguais: o reconhecimento jurídico das
relações homoafetivas no brasil, Revista de Direito do Estado, n. 5, p. 167 e ss, 2007,
p. 30. Meu agradecimento ao autor consta expressamente em nota de rodapé do
capítulo relativo à união estável. Faz-se aqui a mesma ressalva que ali: a paginação
mencionada (p. 30) tem por base folhas de tamanho A4 (p. 01-41), que pode inclusive
ser encontrado no link referido em meu agradecimento.
77 Destaque-se, apenas, que o concubinato puro, ou seja, aquele entre pessoas não
impedidas de se casar, era quase exclusivo dos homens e suas relações com
mulheres, em geral de classes mais pobres, tendo em vista que as mulheres “de
família” da época, ou seja, aquelas provenientes de famílias respeitadas e/ou
abastadas, não tinham nenhuma liberdade para se relacionarem com nenhuma outra
pessoa senão aquela que seu pai (paterfamilias) permitisse. Em hipóteses extremas,
fugiam com seus amados, mas não tinham liberdade para se relacionarem
amorosamente com outras pessoas caso não se casassem com elas, sob pena de
serem rechaçadas do convívio social pelo moralismo hipócrita que regia a sociedade
da época.
78 Súmula 380 do STF: “Comprovada a existência de sociedade de fato entre os
concubinos, é cabível a sua dissolução judicial, com a partilha do patrimônio adquirido
pelo esforço comum”.
79 Em uma análise da evolução do pensamento humano no que tange à compreensão
da família, que deixou de se caracterizar por um modelo institucionalizado que visava
unicamente a produção de cada vez mais mão de obra rural para abarcar a união
amorosa entre duas pessoas, tem-se como claro o magistério de Maria Berenice Dias,
razão pela qual novamente pede-se vênia para transcrever integralmente a sua lição:
“Origem da Família – Vínculos afetivos não são uma prerrogativa da espécie humana.
O acasalamento sempre existiu entre os seres vivos, seja em decorrência do instinto
de perpetuação da espécie, seja pela verdadeira aversão que todas as pessoas têm
da solidão. Tanto é assim, que se considera natural a ideia de que a felicidade só pode
ser encontrada a dois, como se existisse um setor da felicidade ao qual o sujeito
sozinho não tem acesso. Não importa a posição que o indivíduo ocupa na família, ou
qual a espécie de grupamento familiar a que ele pertence, o que importa é pertencer
ao seu âmago, é estar naquele idealizado lugar onde é possível integrar sentimentos,
esperanças, valores e se sentir, por isso, a caminho da realização de seu projeto de
felicidade. Mesmo sendo a vida aos pares um fato natural, em que os indivíduos se
unem por uma química biológica, a família é um agrupamento cultural. Preexiste ao
Estado e está acima do Direito. A família é uma construção social organizada através
de regras culturalmente elaboradas que conformam modelos de comportamento.
Dispõe de uma estruturação psíquica na qual cada um ocupa um lugar, possui uma
função. Lugar do pai, lugar da mãe, lugar dos filhos, sem, entretanto, estarem
necessariamente ligados biologicamente [cf. Rodrigo da Cunha Pereira]. É essa
estrutura familiar que interessa investigar e trazer para o Direito. É a preservação do
LAR no seu aspecto mais significativo: Lugar de Afeto e Respeito. O intervencionismo
estatal levou à instituição do casamento, convenção social para organizar os vínculos
interpessoais. A própria organização da sociedade dá-se em torno da estrutura
familiar, e não em torno de grupos outros ou de indivíduos em si mesmos. A
sociedade, em determinado momento histórico, instituiu o casamento como regra de
conduta. Essa foi a forma encontrada para impor limites ao homem, ser desejante que,
na busca do prazer, tende a fazer do outro um objeto. É por isso que o
desenvolvimento da civilização impõe restrições à total liberdade, e a lei jurídica exige
que ninguém fuja dessas restrições. Em uma sociedade conservadora, os vínculos
afetivos, para merecerem aceitação social e reconhecimento jurídico, necessitavam
ser chancelados pelo que se convencionou chamar de matrimônio. A família tinha uma
formação extensiva, verdadeira comunidade rural, integrada por todos os parentes,
formando uma unidade de produção, com amplo incentivo à procriação. Sendo uma
entidade patrimonializada, seus membros eram força de trabalho. O crescimento da
família ensejava melhores condições de sobrevivência a todos. O núcleo familiar
dispunha de um perfil hierarquizado e patriarcal. Esse quadro não resistiu à revolução
industrial, que fez aumentar a necessidade de mão de obra, principalmente nas
atividades terciárias. Assim, a mulher ingressou no mercado de trabalho, deixando o
homem de ser a única fonte de subsistência da família, que se tornou nuclear, restrita
ao casal e a sua prole. Acabou a prevalência do caráter produtivo e reprodutivo da
família, que migrou para as cidades e passou a conviver em espaços menores. Isso
levou à aproximação dos seus membros, sendo mais prestigiado o vínculo afetivo que
envolve seus integrantes. Existe uma nova concepção da família, formada por laços
afetivos de carinho, de amor. A valorização do afeto nas relações familiares não pode
cingir-se apenas ao momento de celebração do casamento, devendo perdurar por toda
a relação. Disso resulta que, cessado o afeto, está ruída a base de sustentação da
família, e a dissolução do vínculo é o único modo de garantir a dignidade da pessoa”
(DIAS, Maria Berenice. Manual de Direito das Famílias. 2005, Porto Alegre: Editora
Livraria do Advogado, p. 23-25 – sem grifos no original).
80 É de se ressaltar que não estou isolado neste argumento. Muito pelo contrário. A
doutrina tem-se debruçado sobre o tema e tem chegado à mesma conclusão. Nesse
sentido, é elucidativa a lição de Rodrigo da Cunha Pereira, que, apesar de
fundamentação levemente distinta, traz entendimentos de célebres doutrinadores para
chegar à mesma conclusão, após citar a evolução do entendimento social a respeito
da família, que demonstrei nas páginas precedentes e no início deste tópico: “Diante
deste quadro estrutural, o que se conclui é ser o afeto um elemento essencial de todo
e qualquer núcleo familiar, inerente a todo e qualquer relacionamento conjugal ou
parental. Mas será que o contrário é verdadeiro, ou seja, sempre que existir afetividade
estará presente uma entidade familiar? Segundo Sérgio Resende de Barros, não é
qualquer afeto que compõe um núcleo familiar. Se assim fosse, uma amizade seria elo
formador de família, o que ratifica a sua posição de ser necessário o afeto familiar,
como garantia à existência de uma família. Mas, além da afetividade, quais os
elementos necessários para que haja uma família? Paulo Luiz Netto Lobo identifica
como elementos definidores de um núcleo familiar, além da afetividade, a
ostensibilidade e a estabilidade. Ele define tais requisitos da seguinte forma: a
afetividade é o fundamento e finalidade da família, com desconsideração do ‘móvel
econômico’; a estabilidade implica em comunhão de vida e, simultaneamente, exclui
relacionamentos casuais, sem compromisso; já a ostensibilidade pressupõe uma
entidade famíliar reconhecida pela sociedade enquanto tal, que assim se apresenta
publicamente. Os pressupostos apontados pelo grande jurista alagoano são essenciais
e são requisitos que devem estar presentes em um relacionamento para que se
conclua pela existência de uma entidade familiar. Em suma: não obstante a relevância
do afeto como vínculo formador de família, ele, por si só, não é o único elemento para
se verificar a existência de um núcleo familiar. Ele deve coexistir com outros, embora
sua presença seja decisiva e justificadora para a constituição e subsistência de uma
família. Acrescentamos a estes elementos trazidos pelo Professor Paulo Lôbo, um
outro, que, na verdade, reúne todos eles. Esse elemento, ou melhor, essa noção de
família sustentada pelo afeto, deve conter, em seu núcleo, uma estrutura psíquica. É a
partir desses pressupostos que Lacan pôde definir a família como uma estruturação
psíquica” (CUNHA, Rodrigo Pereira da. Princípios fundamentais norteadores do Direito
de Família, 1.a Edição, Belo Horizonte: Editora Del Rey, 2005, p. 180-182 – sem grifos
no original).
81 Nos termos do art. 1.511 do Código Civil.
82 Nos termos do art. 1.723 do Código Civil.
83 “O sentido atual que informa o Direito de Família transborda de sua origem.
Atualmente, o enfoque centra-se na affectio – a família como o lugar privilegiado de
abrigo, de ninho e de solidariedade com base no afeto”, donde “De uma família
instituída de forma hierarquizada, destinada à procriação biológica e voltada para sua
produção econômica, chega-se a um modelo de cooperação mútua dentro de um
espaço de exercício da afetividade” (MATOS, Ana Carla Harmatiuk. União entre
pessoas do mesmo sexo: aspectos sociais e jurídicos, 1.a Edição, Belo Horizonte:
Editora Del Rey, 2004, p. 27-28 – sem grifos no original).
84 Nesse sentido, ensina-nos Roger Raupp Rios, cuja lição, de tão elucidativa, pede-se
venia para se transcrever na íntegra: “De acordo com os citados V. Poncar e P. Rofani,
o modelo de família institucional vem declinando na segunda metade do século XX.
Diversas inovações legislativas, refletindo as profundas mudanças na dinâmica familiar
nestes tempos, foram paulatinamente enfraquecendo o modelo institucional
hierárquico e patriarcal. Dentre estas, merecem destaque a nova compreensão do
divórcio e a igualdade de direitos entre os cônjuges. Neste caminho, observou-se
primeiramente no mundo dos fatos a instauração de um tipo de relação familiar que
privilegiava a satisfação afetiva conjunta dos cônjuges, informado pelas aspirações de
intimidade e reciprocidade no seio familiar – a chamada ‘família fusional’. A partir da
década de oitenta, esta configuração vai alterar-se ainda mais, configurando a
chamada ‘família pós-moderna’, que se caracteriza pelo predomínio da individualidade
de cada um dos seus membros sobre a comunidade familiar. Segundo F. Singly, ‘o que
muda é o fato de que as relações sejam menos valorizadas por si mesmas e mais
pelas gratificações que devem trazer a cada um dos componentes da família. Hoje, a
‘família feliz’ atrai menos, o que conta é ser feliz por si mesmo’. A percepção destas
mudanças é essencial para a adequada concretização do direito de família
contemporâneo, seja para o enfrentamento da questão a quem particularmente se
dedica este trabalho, seja para a compreensão daquilo que o ordenamento jurídico
dispõe sobre o fenômeno familiar como um todo. Este dinamismo culminou, no
ordenamento jurídico brasileiro, na promulgação da Constituição da República de
1988, onde foram inseridas diversas normas a respeito da família, objeto de todo um
capítulo da Ordem Social. Nesta evolução, há de se frisar, primeiramente, a superação
da visão que subordinava a dinâmica familiar à consecução de determinados fins
sociais e estatais, estabelecidos no interior de uma única e determinada cosmovisão
estatal. De fato, com o reconhecimento da dignidade constitucional de outras formas
de vida comum diversas da tradicional família legítima, até a igualdade de direitos e
deveres entre homem e mulher na sociedade conjugal, o regime jurídico da família
hoje vigente operou uma ruptura com o paradigma institucional antes prevalente. Este
aspecto é muito importante, uma vez que em virtude desta nova disciplina
constitucional pode-se conferir ao ordenamento jurídico a abertura e a mobilidade que
a dinâmica social lhe exige, sem a fixidez de um modelo único que desconheça a
pluralidade de estilos de vida e de crenças e o pluralismo que caracterizam nossos
dias. De fato, nesta trilha têm sido desenvolvidas as abordagens atuais do direito de
família. Conforme sumariou Sérgio Gischkow Pereira, as linhas gerais do direito de
família contemporâneo apresentam (1) o amor como valor capaz de dar origem,
sentido e sustentação ao casamento; (2) a completa paridade entre os cônjuges; (3) a
igualdade dos filhos de qualquer natureza, incluídos os adotivos; (4) o reconhecimento
e a proteção do concubinato [leia-se o antigo “concubinato puro”, atualmente
denominado como “união estável”]; (5) o novo conteúdo do pátrio poder [hoje
denominado como “poder familiar”]; (6) a menor dificuldade na obtenção do divórcio;
(7) a adequação do regime de bens aos verdadeiros significados do casamento; (8) a
atuação mais intensa do Estado sobre a família e (9) a influência dos avanços
científicos e tecnológicos. Na mesma linha, Munir Karam salienta que a configuração
jurídica da família no século XXI tende claramente a valorizar mais o elemento afetivo
sobre o matrimônio formal, a procriação ou o estrato social. Como disse Maria Cláudia
Crespo Brauner, os pilares da família moderna assentam-se nas relações de
solidariedade e afeto, muito além da mera função de reprodução, sustento e educação
dos filhos. Nesta dinâmica, observa-se mais e mais a valorização do direito pessoal de
família sobre o direito patrimonial. Não só isso. A atualização do direito de família hoje
exigida pela realidade social requer, além da superação do paradigma da família
institucional, o reconhecimento dos novos valores e das novas formas de convívio
constituintes das concretas formações familiares contemporâneas, que alcançam não
só a citada ‘família fusional’, mas também a ‘família pós-moderna’. Neste sentido,
aliás, poder-se-ia melhor explorar e refletir a respeito do § 8.º do artigo 226 da
Constituição Federal de 1988, onde fica clara a relevância e a autonomia de cada
indivíduo participante da comunidade familiar, sem se adotar uma visão ‘institucional’
ou ‘fusional’ da família. Diante desta tarefa, como devem os operadores jurídicos atuar,
cientes de que as novas dinâmicas familiares tendem cada vez mais a valorizar a
construção da felicidade e do bem-estar dos indivíduos considerados autonomamente,
ao invés da consagração do grupo familiar em si mesmo? Haveria fundamento jurídico
para a qualificação destas ‘novas comunidades familiares’, daí extraindo os
operadores jurídicos as pautas normativas para a concretização do ordenamento que
a história lhes exige? As questões que surgem da conjunção de tais fenômenos
sociais com o amplo espectro de direitos e deveres pertinentes ao direito de família
são inumeráveis. Nos limites deste artigo, assim conduzido o raciocínio, devo
desenvolver uma resposta ao problema da união de pessoas do mesmo sexo no
âmbito do direito de família. Ainda que não tenha a pretensão de responder
cabalmente à questão, abarcando todos os seus aspectos, creio que um dado
fundamental, que não pode ser esquecido no cumprimento desta tarefa, é que o
respeito à dignidade humana também se dá por intermédio do reconhecimento da
pertinência das uniões de pessoas do mesmo sexo ao âmbito do direito de família. Eis
aqui uma conexão entre a dignidade humana e o reconhecimento destas uniões no
âmbito jurídico familiar, especialmente se se atentar para a sistemática rejeição de
direitos a homossexuais em virtude da alegada impertinência de suas relações afetivas
a este domínio jurídico” (RIOS, Roger Raupp, A homossexualidade no Direito, 1.ª
Edição, Porto Alegre: Editora Revista dos Tribunais, 2001, p. 102-106 - sem grifos no
original).
85 “Art. 1.511. O casamento estabelece comunhão plena de vida, com base na igualdade
de direitos e deveres dos cônjuges.” “Art. 1.723. É reconhecida como entidade familiar
a união estável entre o homem e a mulher, configurada na convivência pública,
contínua e duradoura e estabelecida com o objetivo de constituição de família.” (sem
grifos no original).
86 Nesse mesmo sentido, apesar de usar outro enfoque, afirma Maria Berenice Dias,
cuja lição vale aqui ser reiterada no sentido de que “o afrouxamento dos laços entre
Estado e Igreja acarretou uma profunda evolução social e a mutação do próprio
conceito de família, que se transformou em verdadeiro caleidoscópio de relações que
muda no tempo de sua constituição e se consolida em cada geração. Começaram a
surgir novas estruturas de convívio sem uma terminologia adequada que as
identifique. Famílias formadas por pessoas que saíram de outras relações, sem que
seus componentes tenham lugares definidos. Os novos contornos da família estão
desafiando a possibilidade de encontrar-se uma conceituação única para sua
identificação. Faz-se necessário ter uma visão pluralista da família, abrigando os mais
diversos arranjos familiares, devendo-se buscar a identificação do elemento que
permita enlaçar no conceito de entidade familiar todos os relacionamentos que têm
origem em um elo de afetividade, independente de sua conformação. O desafio dos
dias de hoje é achar o toque identificador das estruturas interpessoais que permita
nominá-las como família. Este referencial só pode ser identificado na afetividade. É o
envolvimento emocional que leva a subtrair um relacionamento do âmbito do direito
obrigacional – cujo núcleo é a vontade – para inseri-lo no direito das famílias, que tem
como elemento estruturante o sentimento do amor que funde as almas e confunde
patrimônios; gera responsabilidades e comprometimentos mútuos. Esse é o divisor
entre o direito obrigacional e o familiar: os negócios têm por substrato exclusivamente
a vontade, enquanto o traço diferenciador do direito de família é o afeto. A família é um
grupo social fundamento essencialmente nos laços de afetividade após o
desaparecimento da família patriarcal que desempenhava funções procriativas,
econômicas, religiosas e políticas (DIAS, Maria Berenice. Manual de Direito das
Famílias. Porto Alegre: Editora Livraria do Advogado, 2005, p. 40-44 – destaques do
original; grifos nossos).
87 MELLO, Marcos Bernardes de. Sobre a classificação do fato jurídico da união estável.
In: ALBUQUERQUE, Fabíola Santos; EHRHARDT JR., Marcos; OLIVEIRA, Catarina
Almeida de (orgs.). Famílias no Direito Contemporâneo. Estudos em Homenagem a
Paulo Luiz Netto Lôbo. Salvador: JusPodivm, 2010, p. 160. Grifos nossos.
88 Como dito, a expressão afeto familiar é de Sérgio Rezende de Barros, que o define
(afeto familiar) como “um afeto que enlaça e comunica as pessoas, mesmo quando
estejam distantes no tempo e no espaço, por uma solidariedade íntima e fundamental
de suas vidas – de vivência, convivência e sobrevivência – quanto aos fins e meios de
existência, subsistência e persistência de cada um e do todo que formam” (“A
ideologia do afeto”, Revista Brasileira de Direito de Família, v. 4, n. 14, p. 9, apud
CUNHA, Rodrigo Pereira da. Princípios fundamentais norteadores do Direito de
Família, 1.a Edição, 2005, Belo Horizonte: Editora Del Rey, p. 180). Apenas para que
não haja qualquer margem para dúvidas, esclareço que uso amor familiar e afeto
familiar como expressões sinônimas, até porque cunhei a expressão amor familiar por
influência do afeto familiar de Sérgio Rezende de Barros.
89 Discriminação jurídica caracterizada pela concessão de menos direitos aos casais
homoafetivos quando comparados aos direitos garantidos aos casais heteroafetivos.
90 Podem até formar outra espécie de entidade familiar formada pelo amor fraterno que
vise a uma comunhão plena de vida e interesses, de forma pública, contínua e
duradoura, mas não a união estável, que é pautada necessariamente pelo amor
romântico.
91 LÔBO, Paulo Luiz Netto. Direito Civil: Famílias. São Paulo: Editora Saraiva, 2008, p. 5.
92 Cf. voto do Ministro Ayres Britto, p. 19-26 (trechos a fls. 24-26). Valem as longas (e
pertinentes) considerações que fizeram o Ministro Ayres Britto chegar a tal conclusão
em sua análise do caput do art. 226 da CF/1988: “39. Se é assim, e tratando-se de
direitos clausulados como pétreos (inciso IV do § 4.º do artigo constitucional de n.º 60),
cabe perguntar se a Constituição Federal sonega aos parceiros homoafetivos, em
estado de prolongada ou estabilizada união, o mesmo regime jurídico-protetivo que
dela se desprende para favorecer os casais heteroafetivos em situação de voluntário
enlace igualmente caracterizado pela estabilidade. Que, no fundo, é o móvel da
propositura das duas ações constitucionais sub judice. 40. Bem, para responder a
essa decisiva pergunta, impossível deixar de começar pela análise do capítulo
constitucional que tem como seu englobado conteúdo, justamente, as figuras jurídicas
da família, do casamento civil, da união estável, do planejamento familiar e da adoção.
É o capítulo de n.º VII, integrativo do título constitucional versante sobre a ‘Ordem
Social’ (Título VIII). Capítulo nitidamente protetivo dos cinco mencionados institutos,
porém com ênfase para a família, de logo aquinhoada com a cláusula expressa da
especial proteção do Estado, verbis: ‘A família, base da sociedade, tem especial
proteção do Estado’ (caput do art. 226). Em sequência é que a nossa Lei Maior aporta
consigo os dispositivos que mais de perto interessam ao equacionamento das
questões de que tratam as duas ações sob julgamento, que são os seguintes: (...)
[aqui o Ministro Ayres Britto transcreve os §§ 1.º a 8.º do art. 226 e os §§ 5.º e 6.º do
art. 227 da CF/1988] 41. De toda essa estrutura de linguagem prescritiva (‘textos
normativos’, diria Friedrich Müller), salta à evidência que a parte mais importante é a
própria cabeça do art. 226, alusiva à instituição da família, pois somente ela – insista-
se na observação – é que foi contemplada com a referida cláusula da especial
proteção estatal. Mas família em seu coloquial ou proverbial significado de núcleo
doméstico, pouco importando se formal ou informalmente constituída, ou se integrada
por casais heterossexuais ou por pessoas assumidamente homoafetivas. Logo, família
como fato cultural e espiritual ao mesmo tempo (não necessariamente como fato
biológico). Tanto assim que referida como parâmetro de fixação do salário mínimo de
âmbito nacional (inciso IV do art. 7.º) e como específica parcela da remuneração
habitual do trabalhador (‘salário-família’, mais precisamente, consoante o inciso XII do
art. 5.º), sem que o Magno Texto Federal a subordinasse a outro requisito de formação
que não a facticidade em si da sua realidade como autonomizado núcleo doméstico. O
mesmo acontecendo com outros dispositivos constitucionais, de que servem de
amostra os incisos XXVI, LXII e LXIII do art. 5.º; art. 191; inciso IV e §12 do art. 201;
art. 203; art. 205 e inciso IV do art. 221, nos quais permanece a diretriz do não
atrelamento da formação da família a casais heteroafetivos nem a qualquer
formalidade cartorária, celebração civil ou liturgia religiosa; vale dizer, em todos esses
preceitos a Constituição limita o seu discurso ao reconhecimento da família como
instituição privada que, voluntariamente constituída entre pessoas adultas, mantém
com o Estado e a sociedade civil uma necessária relação tricotômica. Sem embargo
de, num solitário § 1.º do art. 183, referir-se à dicotomia básica do homem e da mulher,
mas, ainda assim: a) como forma especial de equiparação da importância jurídica do
respectivo labor masculino e feminino; b) como resposta normativa ao fato de que, não
raro, o marido ou companheiro abandona o lar e com mais facilidade se predispõe a
negociar seu título de domínio ou de concessão de uso daquele bem imóvel até então
ocupado pelo casal. Base de inspiração ou vetores que já obedecem a um outro tipo
de serviência a valores que não se hierarquizam em função da heteroafetividade ou da
homoafetividade das pessoas. 42. Deveras, mais que um singelo instituto de Direito
em sentido objetivo, a família é uma complexa instituição social em sentido subjetivo.
Logo, um aparelho, uma entidade, um organismo, uma estrutura das mais
permanentes relações intersubjetivas, um aparato de poder, enfim. Poder doméstico,
por evidente, mas no sentido de centro subjetivado da mais próxima, íntima, natural,
imediata, carinhosa, confiável e prolongada forma de agregação humana. Tão insimilar
a qualquer outra forma de agrupamento humano quanto a pessoa natural perante
outra, na sua elementar função de primeiro e insubstituível elo entre o indivíduo e a
sociedade. Ambiente primaz, acresça-se, de uma convivência empiricamente
instaurada por iniciativa de pessoas que se veem tomadas da mais qualificada das
empatias, porque envolta numa atmosfera de afetividade, aconchego habitacional,
concreta admiração ético-espiritual e propósito de felicidade tão emparceiradamente
permeado da franca possibilidade de extensão desse estado personalizado de coisas
a outros membros desse mesmo núcleo doméstico, de que servem de amostra os
filhos (consanguíneos ou não), avós, netos, sobrinhos e irmãos. Até porque esse
núcleo familiar é o principal locus de concreção dos direitos fundamentais que a
própria Constituição designa por ‘intimidade e vida privada’ (inciso X do art. 5.º), além
de, já numa dimensão de moradia, se constituir no asilo ‘inviolável do indivíduo’,
consoante dicção do inciso XI desse mesmo artigo constitucional. O que responde
pela transformação de anônimas casas em personalizados lares, sem o que não se
tem um igualmente personalizado pedaço de chão no mundo. E sendo assim a mais
natural das coletividades humanas ou o apogeu da integração comunitária, a família
teria mesmo que receber a mais dilatada conceituação jurídica e a mais extensa rede
de proteção constitucional. Em rigor, uma palavra-gênero, insuscetível de antecipado
fechamento conceitual das espécies em que pode culturalmente se desdobrar. 43.
Daqui se desata a nítida compreensão de que a família é, por natureza ou no plano
dos fatos, vocacionadamente amorosa, parental e protetora dos respectivos membros,
constituindo-se, no espaço ideal das mais duradouras, afetivas, solidárias ou
espiritualizadas relações humanas de índole privada. O que a credencia como base da
sociedade, pois também a sociedade se deseja assim estável, afetiva, solidária e
espiritualmente estruturada (não sendo por outra razão que Rui Barbosa definia a
família como ‘a Pátria amplificada’). Que termina sendo o alcance de uma forma
superior de vida coletiva, porque especialmente inclinada para o crescimento espiritual
dos respectivos integrantes. Integrantes humanos em concreto estado de comunhão
de interesses, valores e consciência da partilha de um mesmo destino histórico. Vida
em comunidade, portanto, sabido que comunidade vem de ‘comum unidade’. E como
toda comunidade, tanto a família como a sociedade civil, é usina de comportamentos
assecuratórios da sobrevivência, equilíbrio e evolução do Todo e de cada uma de suas
partes. Espécie de locomotiva social ou cadinho em que se tempera o próprio caráter
dos seus individualizados membros e se chega à serena compreensão de que ali é
verdadeiramente o espaço do mais entranhado afeto e desatada cooperação. Afinal, é
no regaço da família que desabrocham com muito mais viço as virtudes subjetivas da
tolerância, sacrifício e renúncia, adensadas por um tipo de compreensão que
certamente esteve presente na proposição spnozista de que, ‘Nas coisas ditas
humanas, não há o que crucificar ou ridicularizar. Há só o que compreender’. 44. Ora
bem, é desse anímico e cultural conceito de família que se orna a cabeça do art. 226
da Constituição. Donde a sua literal categorização com ‘base na sociedade’. E assim
normada como figura central ou verdadeiro continente para tudo o mais, ela, família, é
que deve servir de norte para a interpretação dos dispositivos em que o capítulo VIII se
desdobra, conforme transcrição acima feita. Não o inverso. Artigos que têm por objeto
os institutos do casamento civil, da união estável, do planejamento familiar, da adoção
etc., todos eles somente apreendidos na inteireza da respectiva compostura e
funcionalidade na medida em que imersos no continente (reitere-se o uso da metáfora)
em que a instituição da família consiste. 45. E se insistimos na metáfora do ‘continente’
é porque o núcleo doméstico em que a família se constitui ainda cumpre explícitas
funções jurídicas do mais alto relevo individual e coletivo, amplamente justificadoras da
especial proteção estatal que lhe assegura o citado art. 226. Refiro-me a preceitos que
de logo tenho como fundamentais pela sua mais entranhada serventia para a
concreção dos princípios da cidadania, da dignidade da pessoa humana e dos valores
sociais do trabalho, que são, respectivamente, os incisos II, III e IV do art. 1.º da CF.
Logo, preceitos fundamentais por reverberação, arrastamento ou reforçada
complementariedade, a saber: (...) [transcrição dos arts. 205, 227 e 230, por sua
referência à família]. 46. E assim é que, mais uma vez, a Constituição Federal não faz
a menor diferenciação entre a família formalmente constituída e aquela existente ao
rés dos fatos. Como também não distingue entre a família que se forma por sujeitos
heteroafetivos e a que se constitui por pessoas de inclinação homoafetiva. Por isso
que, sem nenhuma ginástica mental ou alquimia interpretativa, dá para compreender
que a nossa Magna Carta não emprestou ao substantivo ‘família’ nenhum significado
ortodoxo ou da própria técnica jurídica. Recolheu-o com o sentido coloquial
praticamente aberto que sempre portou como realidade do mundo do ser. Assim como
dá para inferir que, quanto maior o número dos espaços doméstica e autonomamente
estruturados, maior a possibilidade de efetiva colaboração entre esses núcleos
familiares, o Estado e a sociedade, na perspectiva do cumprimento de conjugados
deveres que são funções essenciais à plenificação da cidadania, da dignidade da
pessoa humana e dos valores sociais do trabalho. Isso numa projeção exógena ou
extramuros domésticos, porque endogenamente ou interna corporis, os beneficiários
imediatos dessa multiplicação de unidades familiares são os seus originários
formadores, parentes e agregados. Incluído nestas duas últimas categorias dos
parentes e agregados o contingente das crianças, dos adolescentes e dos idosos.
Também eles, crianças, adolescentes e idosos, tanto mais protegidos quanto
partícipes dessa vida em comunhão que é, por natureza, a família. (...) 47. Assim
interpretando de forma não reducionista o conceito de família, penso que este STF
fará o que lhe compete: manter a Constituição na posse do seu fundamental atributo
de coerência, pois o conceito contrário implicaria forçar o nosso Magno Texto a
incorrer, ele mesmo, em discurso indisfarçavelmente preconceituoso ou homofóbico.
Quando o certo – data vênia de opinião divergente – é extrair do sistema de comandos
da Constituição os encadeados juízos que precedentemente verbalizamos, agora
arrematados com a proposição de que a isonomia entre casais heteroafetivos e pares
homoafetivos somente ganha plenitude de sentido se desembocar no igual direito
subjetivo à formação de uma autonomizada família. Entendida esta, no âmbito das
duas tipologias de sujeitos jurídicos, como um núcleo doméstico independente de
qualquer outro e constituído, em regra, com as mesmas notas factuais da visibilidade,
continuidade e durabilidade. Pena de se consagrar uma liberdade homoafetiva pela
metade ou condenada a encontros tão ocasionais quanto clandestinos ou
subterrâneos. Uma canhestra liberdade ‘mais ou menos’, para lembrar um poema
alegadamente psicografado pelo tão prestigiado médium brasileiro Chico Xavier, hoje
falecido, que, iniciando pelos versos de que ‘A gente pode morar numa casa mais ou
menos/Numa rua mais ou menos/Numa cidade mais ou menos/E até ter um governo
mais ou menos’, assim conclui a sua lúcida mensagem: ‘O que a gente não pode
mesmo/Nunca, de jeito nenhum/É amar mais ou menos/É sonhar mais ou menos/É ser
amigo mais ou menos/(...) Senão a gente corre o risco de se tornar uma pessoa mais
ou menos’” (grifos parcialmente nossos).
93 Voto do Ministro Ayres Britto, p. 26-27, nos seguintes termos: “I – ‘O casamento é civil
e gratuita a celebração’. Dando-se que ‘O casamento religioso tem efeito civil, nos
termos da lei’ (§§ 1.º e 2.º). Com o que essa figura do casamento perante o Juiz, uma
das modalidades de constituição da família. Não a única forma, como, agora sim,
acontecia na Constituição de 1967, litteris: ‘A família é constituída pelo casamento e
terá direito à proteção dos Poderes Públicos’ (caput do art. 175, já considerada a
Emenda Constitucional n.º 1, de 1969). É deduzir: se, na Carta Política vencida, toda a
ênfase protetiva era para o casamento, visto que ele açambarcava a família como
entidade, agora, na Constituição vencedora, a ênfase tutelar se desloca para a
instituição da família mesma. Família que pode prosseguir, se houver descendentes ou
então agregados, com a eventual dissolução do casamento (vai-se o casamento, fica a
família). Um liame já não umbilical como o que prevalecia na velha ordem
constitucional, sobre a qual foi jogada, em hora mais que ansiada, a última pá de cal.
Sem embargo do reconhecimento de que essa primeira referência ao casamento de
papel passado traduza uma homenagem da nossa Lei Fundamental de 1988 à
tradição. Melhor dizendo, homenagem a uma tradição ocidental de maior prestígio
sociocultural-religioso a um modelo de matrimônio que ocorre à vista de todos, com
pompa e circunstância e revelador de um pacto afetivo que se deseja tão publicamente
conhecido que celebrado ante o juiz, ou o sacerdote juridicamente habilitado, e sob o
testemunho igualmente formal de pessoas da sociedade. Logo, um pacto formalmente
predisposto à perdurabilidade e deflagrador de tão conhecidos quanto inquestionáveis
efeitos jurídicos de monta, como, por exemplo, a definição do regime de bens do casal,
sua submissão a determinadas regras de direito sucessório, pressuposição de
paternidade na fluência do matrimônio e mudança do estado civil dos contraentes, que
de solteiros ou viúvos passam automaticamente à condição de casados. A justificar,
portanto, essas primeiras referências que a ele, casamento civil, faz a nossa
Constituição nos dois parágrafos em causa (§§ 1.º e 2.º do art. 226); ou seja, nada
mais natural que prestigiar por primeiro uma forma de constituição da família que se
apresenta com as vestes da mais ampla notoriedade e promessa igualmente pública
de todo empenho pela continuidade do enlace afetivo, pois, ao fim e ao cabo, esse tipo
de prestígio constitucional redunda em benefício da estabilidade da própria família. O
continente que não se exaure em nenhum dos seus conteúdos, inclusive esse do
casamento civil.
94 Ou seja, o amor que vise a uma comunhão plena de vida e interesses, de forma
pública, contínua e duradoura.
95 Cf. voto do Ministro Ayres Britto, p. 27-29. Em suas palavras: “II – com efeito, após
falar do casamento civil como uma das formas de constituição da família, a nossa Lei
maior adiciona ao seu art. 226 um § 3.º para cuidar de uma nova modalidade de
formação de um autonomizado núcleo doméstico, por ela batizado de ‘entidade
familiar’. É o núcleo doméstico que se constitui pela ‘união estável entre o homem e a
mulher, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento’. Donde a necessidade de
se aclarar: II.1 – que essa referência à dualidade básica homem/mulher tem uma
lógica inicial: dar imediata sequência àquela vertente constitucional de incentivo ao
casamento como forma de reverência à tradição sociocultural-religiosa do mundo
ocidental de que o Brasil faz parte (§ 1.º do art. 226 da CF), sabido que o casamento
civil brasileiro tem sido protagonizado por pessoas de sexos diferentes, até hoje.
Casamento civil, aliás, regrado pela Constituição Federal sem a menor referência aos
substantivos ‘homem’ e ‘mulher’. II.2 – que a normação desse novo tipo de união,
agora expressamente referida à dualidade do homem e da mulher, também se deve ao
propósito constitucional de não perder a menor oportunidade de estabelecer relações
jurídicas horizontais ou sem hierarquia entre as duas tipologias do gênero humano,
sabido que a mulher que se une ao homem em regime de companheirismo ou sem
papel passado ainda é vítima de comentários desairosos de sua honra objetiva, tal a
renitência desse ranço do patriarcalismo entre nós (não se pode esquecer que até
1962, a mulher era juridicamente categorizada como relativamente incapaz, para os
atos da vida civil, nos termos da redação original do art. 6.º do Código Civil de 1916);
tanto é assim que o § 4.º [rectius: 5.º] desse mesmo art. 226 (antecipo o comentário)
reza que ‘Os direitos referentes à sociedade conjugal são exercidos igualmente pelo
homem e pela mulher’. Preceito, este último, que também relança o discurso do inciso
I do art. 5.º da Constituição (‘homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações’)
para atuar como estratégia de reforço normativo a um mais eficiente combate àquela
renitência patriarcal dos nossos costumes. Só e só, pois esse combate mais eficaz ao
preconceito que teimosamente persiste para inferiorizar a mulher perante o homem é
uma espécie de briga particular ou bandeira de luta que a nossa Constituição desfralda
numa outra esfera de arejamento mental da vida brasileira, nada tendo a ver com a
dicotomia da heteroafetividade e da homoafetividade. Logo, que não se faça uso da
letra da Constituição para matar o seu espírito, no fluxo de uma postura interpretativa
que faz ressuscitar o mencionado caput do art. 175 da Constituição de 1967/1969. Ou
como diria Sérgio da Silva Mendes, que não se separe por um parágrafo (esse de n.º
3) o que a vida uniu pelo afeto. Numa nova metáfora, não se pode fazer rolar a cabeça
do artigo 226 no patíbulo do seu parágrafo terceiro, pois esse tipo acanhado ou
reducionista de interpretação jurídica seria o modo mais eficaz de tornar a Constituição
ineficaz...” (grifos parcialmente nossos).
96 ADPF 132 e ADI 4.277, voto do Ministro Ayres Britto, p. 31-32. Em suas palavras: “III –
salto para o § 4.º do art. 226, apenas para dar conta de que a família também se forma
por uma terceira e expressa modalidade, traduzida na concreta existência de uma
‘comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes’. É o que a doutrina
entende por ‘família monoparental’, sem que se possa fazer em seu desfavor, pontuo,
qualquer inferiorizada comparação com o casamento civil ou união estável. Basta
pensar no absurdo que seria uma mulher casada enviuvar e manter consigo um ou
mais filhos do antigo casal, passando a ter que suportar o rebaixamento da sua família
à condição de ‘entidade familiar’; ou seja, além de perder o marido, essa mulher
perderia o status de membro de uma consolidada família. Sua nova e rebaixada
posição seria de membro de uma simplória ‘entidade familiar’, porque sua antiga
família morreria com seu antigo marido. Baixaria ao túmulo com ele. De todo modo,
também aqui a Constituição é apenas enunciativa no seu comando, nunca taxativa,
pois não se pode recusar a condição de família monoparental àquela constituída, por
exemplo, por qualquer dos avós e um ou mais netos, ou até mesmo por tios e
sobrinhos. Como não se pode pré-excluir da candidatura à adoção ativa pessoas de
qualquer preferência sexual, sozinhas ou em regime de emparceiramento”.
97 ADPF 132 e ADI 4.277, voto do Ministro Ayres Britto, p. 28.
98 Na 1ª edição desta obra, afirmei que o dispositivo afirmava a possibilidade da
dissolução do casamento civil pelo divórcio “após um ano de separação judicial” ou
“após dois anos de separação fática”, contudo, a EC 66 extirpou a separação judicial
do mundo jurídico e suprimiu a referência a lapso temporal para o divórcio. Embora
isso tenha feito surgir celeuma doutrinária sobre se as normas do Código Civil em
relação a separação judicial permanecessem válidas, alguns defendendo a favor da
liberdade de conformação do legislador na regulamentação das normas
constitucionais, e outros entendendo que não (por ausência de lógica na manutenção
da separação judicial após dita emenda constitucional), acreditamos que a vontade
objetivamente constatável da alteração foi abolir a separação judicial do mundo
jurídico, com a consequente nulificação ou revogação tácita das normas
infraconstitucionais respectivas – do contrário, teria feito alguma ressalva em sentido
contrário (“nulificação ou revogação” consoante a corrente adotada sobre a
consequência da inconstitucionalidade decorrente de norma constitucional posterior à
norma infraconstitucional em questão – adoto a tese minoritária que aceita o fenômeno
da inconstitucionalidade superveniente, embora o STF perfilhe a tese da mera
revogação, consoante julgamento da ADIn 02, sobre a qual não cabe aqui ingressar
(mas cujos argumentos da corrente minoritária não foram desmistificados pela maioria,
já que inconstitucionalidade é um juízo de incompatibilidade vertical de normas que
independe de “intenção” do legislador de afrontar a Constituição, ao passo que a
nulificação da norma infraconstitucional pela norma constitucional posterior tem os
mesmos efeitos práticos da revogação, em que ausente “privilégio” da lei sobre a
Constituição por lei posterior ter poder de revogar, na medida em que a norma
constitucional posterior tem o poder de nulificar a norma infraconstitucional (a ela
inferior).
99 ADPF 132 e ADI 4.277, voto do Ministro Ayres Britto, p. 32. Em suas palavras: “Por
último, anoto que a Constituição remete à lei a incumbência de dispor sobre a
assistência do Poder Público à adoção, inclusive pelo estabelecimento de casos e
condições da sua (dela, adoção) efetivação por parte de estrangeiros (§ 5.º do art.
227). E também nesta parte do seu estoque normativo não abre distinção entre
adotante ‘homo’ ou ‘heteroafetivo’. E como possibilita a adoção por uma pessoa
adulta, também sem distinguir entre o adotante solteiro e o adotante casado, ou então
em regime de união estável, penso aplicar-se ao tema o mesmo raciocínio de
proibição do preconceito e da regra do inciso II do art. 5.º da CF, combinadamente com
o inciso IV do art. 3.º e o § 1.º do art. 5.º da Constituição. Mas é óbvio que o
mencionado regime legal há de observar, entre outras medidas de defesa e proteção
do adotando, todo o conteúdo do art. 227, cabeça, da nossa Lei Fundamental”.
100 PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Princípios Fundamentais Norteadores do Direito de
Família. Belo Horizonte: Del Rey, 2005, pp. 165-168.
101 Op. cit., pp. 166 e 181-182.
102 Desenvolvi essa argumentação no amicus curiae que apresentei perante o Supremo
Tribunal Federal para o julgamento da ADPF 132 e da ADI 4.277, em favor da AIESSP
– Associação de Incentivo à Educação e Saúde de São Paulo. Posteriormente, ela
constou em VECCHIATTI, Paulo Roberto Iotti. União Estável Homoafetiva e a
Constitucionalidade de seu Reconhecimento Judicial. Revista do Direito das Famílias e
Sucessões, fev.-mar. 2010, ano XI, n.º 14, pp. 66-88, logo após breve demonstração
do conceito material de família conjugal, exteriorizado pelo amor familiar.
103 LÔBO, Paulo. Famílias. São Paulo: Saraiva, 2008, pp. 57-58.
104 Cf. Capítulo 5, item 2.4.1 – “O Amor Familiar como o Elemento Formador da Família
Contemporânea”.
105 LÔBO, Paulo Luiz Netto. Direito Civil: Famílias. São Paulo: Editora Saraiva, 2008, p.
11-14 (sem grifos no original).
106 Cf. ADPF 132 e ADI 4.277, voto do Ministro Celso de Mello, pp. 41-43.
107 Ibidem, p. 40.
108 No original, afirma o autor que “(...) o art. 226, § 8.o, da Constituição Brasileira de
1988 assimila o marco ora tratado da nova família, com contornos diferenciados, pois
prioriza a necessidade da realização da personalidade dos seus membros, ou seja, a
família-função, em que subsiste a afetividade, que, por sua vez, justifica a
permanência da entidade familiar. Esta é a família constitucionalizada, que trazemos a
lume no presente trabalho. Por isso, insista-se, a família só faz sentido para o Direito a
partir do momento em que ela é veículo funcionalizador à promoção da dignidade de
seus membros. Em face, portanto, da mudança epistemológica ocorrida no bojo da
família, a ordem jurídica assimilou tal transformação, passando a considerar o afeto
como um valor jurídico de suma relevância para o Direito de Família. Seus reflexos
crescentes vêm permeando todo o Direito, como é exemplo a valorização dos laços de
afetividade e da convivência familiar oriundos da filiação, em detrimento, por vezes,
dos vínculos de consanguinidade. Além disso, todos os filhos receberam o mesmo
tratamento constitucional, independente da sua origem e se são biológicos ou não”
(CUNHA, Rodrigo Pereira da. Princípios fundamentais norteadores do Direito de
Família, 1.a Edição, Belo Horizonte: Editora Del Rey, 2005, p. 180 – sem grifos no
original).
109 Lembre-se que o CC/1916 só reconhecia como famílias legítimas, entendidas como
protegidas pelo Direito, aquelas consagradas pelo casamento civil, sendo o afeto
completamente desconsiderado pela legislação pretérita.
110 LÔBO apud DIAS, Maria Berenice. Manual do Direito das Famílias, 1.a Edição, Porto
Alegre: Editora Livraria do Advogado, 2005, p. 66.
111 WELTER apud DIAS, Maria Berenice. Manual do Direito das Famílias, 1.a Edição,
Porto Alegre: Editora Livraria do Advogado, 2005, p. 66-67.
112 Ibidem, p. 39.
113 Ibidem, p. 39.
114 Falo em “amor que vise a uma comunhão plena de vida e interesses, de forma
pública, contínua e duradoura” por dois motivos: (i) porque o elo afetivo isoladamente
considerado nunca foi capaz de constituir uma família, necessitando dos laços de
publicidade, continuidade e durabilidade para tanto, de forma a diferenciar a família da
mera amizade; e (ii) como interpretação teleológica do art. 1.511 do CC/2002, que
afirma que o casamento civil estabelece uma comunhão plena de vida entre os
cônjuges, donde dita comunhão afigura-se como indispensável à constituição de uma
família, aliada aos referidos laços de publicidade, continuidade e durabilidade exigidos
para a união estável (art. 1.723 do CC/2002).
115 Ibidem, p. 39.
116 OLIVEIRA, Catarina Almeida de. Refletindo o Afeto nas Relações de Família. Pode o
Direito impor o Amor? In: ALBUQUERQUE, Fabíola Santos; EHRHARDT JR., Marcos;
OLIVEIRA, Catarina Almeida de (orgs.). Famílias no Direito Contemporâneo. Estudos
em homenagem a Paulo Luiz Netto Lobo. Salvador: JusPodivm, 2010, p. 47.
117 ANDRADE, Renata Cristina Othon Lacerda de. Aplicabilidade do Princípio da
Afetividade às Relações Paterno-Filiais: a difícil escolha entre os laços de sangue e o
afeto sem vínculos. In: ALBUQUERQUE, Fabíola Santos; EHRHARDT JR., Marcos;
OLIVEIRA, Catarina Almeida de (orgs.). Famílias no Direito Contemporâneo...,
Salvador: JusPodivm, 2010, pp. 73-74. Grifos nossos.
118 OLIVEIRA, Catarina Almeida de. Refletindo o Afeto nas Relações de Família. Pode o
Direito impor o Amor? In: ALBUQUERQUE, Fabíola Santos; EHRHARDT JR., Marcos;
OLIVEIRA, Catarina Almeida de (orgs.). Famílias no Direito Contemporâneo...,
Salvador: JusPodivm, 2010, pp. 60-61. Grifo nosso.
119 Ibidem, pp. 65-66. Grifos nossos.
120 Ibidem, pp. 56-59. Grifos nossos.
121 RIBEIRO, Ana Cecília Rosário e ARAÚJO, Marcelo de Jesus Monteiro. A Relação
Incestuosa como Entidade Familiar: uma Revolução do Estatuto das Famílias. In:
ALBUQUERQUE, Fabíola Santos. EHRHARDT JR, Marcos e OLIVEIRA, Catarina
Almeida de (orgs.). Famílias no Direito Contemporâneo..., 1ª edição, Salvador: Editora
Podivm, 2010, pp. 310-311. Grifos nossos.
122 BARROSO, Lucas Abreu. Desmistificando as Relações de Família no Novo Direito
Civil. In: ALBUQUERQUE, Fabíola Santos. EHRHARDT JR, Marcos e OLIVEIRA,
Catarina Almeida de (orgs.). Famílias no Direito Contemporâneo..., 1ª edição,
Salvador: Editora Podivm, 2010, p. 127. Grifos nossos.
123 DIAS, Maria Berenice. União Homossexual. O Preconceito & a Justiça. 3. ed. Porto
Alegre: Editora Livraria do Advogado, 2006, p. 68-69. A autora alterou a redação deste
trecho na 4ª e na 5ª edições de sua obra. Vide, no corpo do texto, as transcrições, já
no final do primeiro parágrafo deste tópico.
124 DIAS, Maria Berenice. União Homoafetiva. O preconceito & a justiça. 4. ed. São
Paulo: RT, 2009, p. 129.
125 DIAS, Maria Berenice. União Homoafetiva. O preconceito & a justiça. 5. ed. São
Paulo: RT, 2011, p. 108.
126 ADPF 132 e ADI 4.277, voto do Ministro Marco Aurélio, p. 8 – grifos nossos.
127 ADPF 132 e ADI 4.277, voto do Ministro Celso de Mello, p. 40.
128 ADPF 132 e ADI 4.277, voto do Ministro Ayres Britto, p. 20-24 – grifos nossos.
129 ADPF 132 e ADI 4.277, voto do Ministro Lewandowski, p. 10 – grifo nosso.
130 Os demais referem-se, em síntese, a proibição da orientação sexual e da identidade
de gênero dos pais e/ou pretendentes à adoção serem consideradas, isoladamente,
como incompatível com o melhor interesse de crianças e adolescentes (alínea “c”),
consideração da opinião de crianças e adolescentes capazes de expressas suas
opiniões (alínea “d”) e garantia de consentimento pleno e livre como requisito para
casamentos e parcerias civis entre duas pessoas (alínea “g”).
131 Vide, nesse sentido, a reportagem da“50 anos após Kinsey, sexo volta a chocar
EUA”, Folha de S. Paulo, de 19 dez. 2004, caderno Mundo).
132 O tema é inacreditavelmente polêmico. Com efeito, há quem entenda que o
constitucionalismo traria uma afronta à democracia caso seja entendido como limitador
da vontade das maiorias sociais por meio de suas cláusulas pétreas. Apontam que a
maioria não poderia ser limitada pela Constituição sob pena de afronta ao princípio
democrático. Contudo, tal posição é completamente descabida e falaciosa. É
descabida porque a democracia existe na forma como foi constitucionalmente
consagrada. É a Constituição Federal que define o conteúdo jurídico dos princípios
nela consagrados, não o contrário, donde, repita-se, a democracia existe na forma
como foi constitucionalmente consagrada. Por outro lado, é falaciosa porque a maioria
não está nem um pouco impedida a fazer que o país passe a vigorar de forma diversa
daquela instituída pelas cláusulas pétreas. Basta que, para tanto, convoque uma nova
Assembleia Nacional Constituinte e elabore uma nova Constituição Federal, sem as
cláusulas pétreas que impedem a vontade majoritária. Plebiscitos não são formas de
consulta ao Poder Constituinte Originário, aptas a superar as cláusulas pétreas: nos
termos da Constituição, plebiscitos são formas de elaboração de leis e, com
interpretação teleológica extremamente condescendente, no máximo de emendas
constitucionais que, contudo, devem respeitar as cláusulas pétreas da Constituição.
Ou seja, na forma como foi concebido pela Constituição, o plebiscito não tem o condão
de levar à superação das cláusulas pétreas, entre as quais os direitos fundamentais.
Muito embora haja quem alegue que essa noção de cláusulas pétreas traria
insegurança jurídica na medida em que não é possível prever os exatos resultados de
uma nova Constituinte, acabar com essa compreensão de cláusulas pétreas e,
portanto, com o núcleo material intangível da Constituição traz a mesma insegurança
jurídica, na medida em que também é incerto o que as deliberações de maiorias
ocasionais podem trazer a um sistema jurídico. O nazismo que o diga, já que existiu
em um regime no qual não havia vinculação material do legislador democrático à
Constituição. Portanto, para que não se permita uma verdadeira fraude constitucional,
é preciso respeito às cláusulas pétreas da Constituição, mesmo que contra a vontade
da maioria, que, se quiser, deverá convocar uma nova Constituinte para elaborar uma
nova Constituição sem a cláusula pétrea que proibia o que ela, maioria, desejava.
Essa é a lógica da teoria constitucional contemporânea: conclusão em sentido
contrário implica a negação da própria noção de supremacia constitucional. Nesse
sentido, embora com desenvolvimentos próprios, vide: VIEIRA, Oscar Vilhena. A
Constituição como reserva de justiça, Lua Nova – Revista de Cultura e Política, n. 42,
1997, p. 53-97; e ROCHA, Carmem Lúcia Antunes. Reforma total da Constituição:
remédio ou suicídio institucional, in: SAMPAIO, José Adércio Leite (coord.), CRISE E
DESAFIOS DA CONSTITUIÇÃO, Belo Horizonte: Del Rey, 2004, p. 147-174. Por outro
lado, essa posição segundo a qual democracia e constitucionalidade seriam conceitos
antagônicos encontra-se pautada em um conceito pré-jurídico de democracia, que leva
em conta tão somente o conceito de maioria. Pauta-se na excessiva confiança no
legislador democrático, na presunção de que aqueles eleitos pelo povo estariam
sempre representando os interesses do povo – ou, pelo menos, da maioria. Todavia, a
história já comprovou, com o nazi-fascismo, que o legislador democrático não é imune
a arbitrariedades, comete injustiças das mais diversas e massacra as minorias por
esdrúxulos preconceitos. Essa é uma razão de ordem sociológica a justificar a
legitimidade das limitações constitucionais às vontades majoritárias.
133 SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo, 25.a Edição, São
Paulo: Editora Malheiros, 2005, p. 132.
134 Ibidem, p. 117.
135 Ibidem, p. 132.
136 Ibidem, p. 130.
137 Ibidem, p. 130.
138 Ibidem, p. 131.
139 Não é outra a lição de Roger Raupp Rios: “(...) Com efeito, alguns juristas sustentam
que a Constituição, ao enumerar tais e quais espécies de comunidade familiar,
inadmite o reconhecimento de outras comunidades familiares, sendo vedado ao
legislador ordinário e ao Poder Judiciário avançar nesta questão. A interpretação da
Constituição, em face deste problema, todavia, deve ser conduzida de outra forma. Na
verdade, colocar o problema nestes termos em nada colabora para sua elucidação, na
medida em que perquirir da natureza taxativa ou enumerativa das comunidades
familiares previstas no texto constitucional seria concebê-lo de acordo com o dogma
da completude, isto é, ideia de que a Constituição já tenha definido de antemão a
resposta para o problema. No entanto, quando se trata de interpretação constitucional,
deve-se partir de premissa diversa, segundo a qual a Constituição se caracteriza por
sua abertura e amplitude, não se propondo de antemão ‘à pretensão de ausência de
lacunas ou até de unidade sistemática’. Tomando como referência a obra de Konrad
Hesse, deve-se primeiramente fixar que a interpretação constitucional é, em primeiro
lugar, concretização. Vale dizer, ‘exatamente aquilo que, como conteúdo da
Constituição, ainda não é unívoco deve ser determinado sob a inclusão da ‘realidade’
a ser ordenada’. Desse modo, a interpretação constitucional possui uma nota criadora,
pois o conteúdo da norma objeto de interpretação só pode ser concluído pela
interpretação – tudo sem abandonar a vinculação à norma. Para tanto, assinala o
jurista alemão, é necessário o ‘entendimento’ da norma a ser concretizada, num
proceder essencialmente ligado à (pré)-compreensão do intérprete e ao problema
concreto. (...) Nas palavras do próprio Konrad Hesse, ‘não existe interpretação
constitucional independente de problemas concretos’. (...) Inexistindo na Constituição
um sistema concluído e uniforme, lógico-axiomático ou hierárquico de valores, mostra-
se necessário tal procedimento de concretização. Nele, o intérprete deve buscar
pontos de vista relacionados com o problema concreto e indicar o que a Constituição
fornece para a consideração desses elementos na resolução do problema” (RIOS,
Roger Raupp. A homossexualidade no Direito, Porto Alegre: Editora Livraria do
Advogado, 2001, p. 116 e 117 – sem grifos no original).
140 No que tange à nomenclatura “dimensões” em vez de “gerações” de direitos
fundamentais, concordamos com a posição de Ingo Wolfgang Sarlet (A eficácia dos
direitos fundamentais, 6.a Edição, Porto Alegre: Editora Livraria do Advogado, 2006, p.
54-55), que aduz que: “Num primeiro momento, é de se ressaltarem as fundadas
críticas que vêm sendo dirigidas contra o próprio termo ‘gerações’ por parte da
doutrina alienígena e nacional. Com efeito, não há como negar que o reconhecimento
progressivo de novos direitos fundamentais tem o caráter de um processo cumulativo,
de complementaridade, e não de alternância, de tal sorte que o uso da expressão
‘gerações’ pode ensejar a falsa impressão da substituição gradativa de uma geração
por outra, razão pela qual há quem prefira o termo ‘dimensões’ dos direitos
fundamentais, posição esta que aqui optamos por perfilhar, na esteira da mais
moderna doutrina. (...) Ressalte-se, todavia, que a discordância reside essencialmente
na esfera terminológica, havendo, em princípio, consenso no que diz com o conteúdo
das respectivas dimensões e ‘gerações’ de direitos. (...) Assim sendo, a teoria
dimensional dos direitos fundamentais não aponta, tão somente, para o caráter
cumulativo do processo evolutivo e para a natureza complementar de todos os direitos
fundamentais, mas afirma, para além disso, sua unidade e indivisibilidade no contexto
do direito constitucional interno e, de modo especial, na esfera do moderno ‘Direito
Internacional dos Direitos Humanos’”.
141 Nesse sentido, ensina-nos Maria Berenice Dias: “Os direitos que foram consagrados
principalmente pela declaração francesa de 1789 passaram a ser considerados de
primeira geração. Tendo como tônica a preservação da liberdade individual,
caracterizam-se como verdadeira imposição de limites ao Estado, gerando simples
‘obrigações de não fazer’. Assim, o sujeito do direito é o indivíduo, e o objeto, a
liberdade. (...)Os direitos econômicos, sociais e culturais que vieram a ser positivados
nos textos constitucionais a partir da Constituição de Weimar, de 1919, são tidos como
direitos de segunda geração. Cobram atitudes positivas do Estado, verdadeiras
‘obrigações de fazer’, com a finalidade de promover a igualdade. Não a mera
igualdade formal de todos frente à lei, mas a igualdade material de oportunidades,
ações e resultados entre partes ou categorias sociais desiguais, protegendo e
favorecendo juridicamente os hipossuficientes em relações sociais específicas, como
as relações de trabalho, de consumo, etc. (...) São valores que recebem proteção do
Estado, para prevenir ou remediar o detrimento de uma categoria social por outra.
Garantem uma prestação do Estado a determinados indivíduos, a fim de promover a
igualdade social buscando igualar os desiguais na medida que se desigualam. Os
direitos de terceira geração, sobrevindos à Segunda Guerra Mundial, asseguram a
dignidade humana pelo implemento das condições gerais e básicas que lhe sejam
necessárias, postas como direitos difusos de toda a humanidade. Necessário se
tornou garantir, não indivíduo contra indivíduo, mas a humanidade contra a própria
humanidade, reagindo aos extermínios em massa praticados na primeira metade do
século XX por regimes totalitários (stalinismo, nazismo) e democráticos (destruição de
cidades indefesas, até por bombas atômicas). (...)” (DIAS, Maria Berenice. União
Homoafetiva. O Preconceito & a Justiça. 5. ed. São Paulo: RT, 2011, pp 82-83).
142 Com efeito, aponta Maria Berenice Dias que “É crescente a positivação dos direitos
humanos em nível constitucional, fenômeno que decorre do constante processo de
evolução dos valores histórico-sociais. Assim, imperioso reconhecer que a garantia do
livre exercício da sexualidade integra as três gerações de direitos, porque está
relacionada com os postulados fundamentais da liberdade individual, da igualdade
social e da solidariedade humana. As gerações de direitos servem para alcançar a
realização de todos os cidadãos, havendo a necessidade de que as relações
homossexuais, crivadas pelos preconceitos, não sejam excluídas do mundo do Direito,
pois a higidez dos conceitos jurídicos deve-se contrapor à intolerância social. Além de
estarem amparadas pelo princípio fundamental da isonomia, cujo corolário é a
proibição de discriminações injustas, impositiva a inclusão das relações homossexuais
no rol dos direitos humanos fundamentais, como expressão de um direito subjetivo ao
mesmo tempo individual, categorial e difuso. Também se albergam sob a liberdade de
expressão, como garantia do exercício da liberdade individual, cabendo incluí-las, da
mesma forma, entre os direitos de personalidade, precipuamente no que diz com a
identidade pessoal e a integridade física e psíquica. Acresce, ainda, visualizar a
segurança da inviolabilidade da intimidade e da vida privada, que é a base jurídica
para a construção do direito à orientação sexual, como direito personalíssimo, atributo
inerente e inegável da pessoa humana [citação de Luiz Edson Fachin] (...).Se o direito
à identidade sexual é direito humano fundamental, necessariamente também o é o
direito à identidade homossexual, melhor dizendo: o direito à homoafetividade.
Portanto, a relação homoafetiva corresponde a um direito humano fundamental”
(ibidem, 3. ed. p. 74-75 – grifos nossos).
143 Vale reiterar a lição do Ministro Gilmar Ferreira Mendes (In: MENDES, Gilmar
Ferreira, COELHO, Inocêncio Mártires e BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de
Direito Constitucional, 1.a Edição, São Paulo: Editora Saraiva, 2007, p. 403), para
quem a liberdade de consciência é “a faculdade de o indivíduo formular juízos e ideias
sobre si mesmo e sobre o meio externo que o circunda”, afirmando ainda que o Estado
não pode interferir nessa esfera íntima do indivíduo, “não lhe cabendo impor
concepções filosóficas aos cidadãos”.
144 Por “livre exercício da homoafetividade” entenda-se o direito de casais homoafetivos
de apresentarem à sociedade como casal (assim como fazem os casais
heteroafetivos), sem discriminações normativas ou sociais em virtude de sua
homossexualidade e consequente homoafetividade, sendo vedado, por exemplo, a
estabelecimentos comerciais impedirem o acesso a seu estabelecimento a casais
homoafetivos. Note-se, por oportuno, que em São Paulo a Lei Estadual 10.948/2001
proíbe a discriminação por orientação sexual e identidade de gênero (esta última
contra travestis e transexuais), em explicitação legislativa do princípio da isonomia e
do direito constitucional implícito de livre exercício da afetividade (seja ela homo ou
heteroafetiva). Da mesma forma, uma lei que criminalizasse a homossexualidade
(lamentavelmente existente em muitos países teocráticos) seria flagrantemente
inconstitucional, por afronta aos princípios da igualdade, da dignidade da pessoa
humana, da liberdade de consciência, da liberdade em geral, da intimidade e da vida
privada, além do direito implícito ao livre exercício da afetividade.
145 Nesse sentido, é valiosa a lição de Ingo Wolfgang Sarlet: “Atente-se, nesse contexto,
para o significado da expressão ‘implícitos’, que, no sentido etimológico, pode ser
considerado o que está subentendido, o que está envolvido, mas não de modo claro.
Neste sentido, verifica-se que a categoria dos direitos implícitos pode corresponder
também – além da possibilidade de dedução de um novo direito fundamental com
base nos constantes do catálogo – a uma extensão (mediante o recurso à
hermenêutica) do âmbito de proteção de determinado direito fundamental
expressamente positivado, cuidando-se, nesta hipótese, não tanto da criação
jurisprudencial de um novo direito fundamental, mas, sim, de redefinição do campo de
incidência de determinado direito fundamental. (...) Seja qual for o critério utilizado
(direitos implícitos ou direitos decorrentes do regime e dos princípios) (...), o fato é que
para o art. 5.o, § 2.o – para o efeito de dedução de posições jurídicas fundamentais –
assume caráter essencialmente declaratório (já que, em princípio, desnecessário, pelo
menos se considerarmos que implícito é o que já está subentendido). (...) Os direitos
fundamentais implícitos têm, isto sim, sua existência indiretamente reconhecida pelo
citado preceito constitucional. Assim sendo, tenho para mim que a dedução de direitos
implícitos é algo inerente ao sistema, existindo, ou não, norma permissiva expressa
neste sentido” (SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais, 6.a
Edição, Porto Alegre: Editora Livraria do Advogado, 2006, p. 104 e 108-109 – sem
grifos no original).
146 Segundo Viviane Girardi (Famílias Contemporâneas, Filiação e Afeto: A Possibilidade
Jurídica da Adoção por Homossexuais, 1.ª Edição, Porto Alegre: Editora Livraria do
Advogado, 2005, p. 59), com base na lição de Lorenzetti e de Gregório Robles: “Esses
direitos, porque supõem um comportamento distinto de uns em relação aos demais
indivíduos, podem ser englobados sob o rótulo de ‘direito a ser diferente’. E ‘quanto
maior é a diferenciação social, maior é a complexidade no terreno das concepções do
mundo e da vida’. Sob essa linha de raciocínio, poder-se-ia afirmar que o
reconhecimento dos direitos dos homossexuais se caracteriza como uma reivindicação
de ingresso na pauta da igualdade mais do que na da diferença, na medida em que
esta reivindicação visa antes ao reconhecimento de um direito de igualdade de
tratamento, pois primeiro os homossexuais pretendem o reconhecimento de serem
considerados como ‘sujeitos de direitos’ para, uma vez tomado assento no discurso
jurídico a partir desse lugar de igualdade, poderem reivindicar o respeito à diferença”.
147 Pelo menos diante da concepção adotada, tendo em vista que ainda não há
consenso em relação às dimensões posteriores à terceira, visto que existe quem
defenda a existência de direitos de quinta dimensão, debate em que não ingressarei,
por fugir aos limites do presente trabalho.
148 MALUF, Adriana Caldas do Rego Freitas Dabus. Direito das famílias. Amor e bioética.
São Paulo: Campus Jurídico, 2012, pp. 18, 41-42, 45, 47-48, 56, 60 e 64. Grifo nosso.
149 O restante da citação é, novamente, de Adriana Caldas do Rego Freitas Dabus Maluf
e não mais de Sérgio Resende de Barros.
150 Cf. voto do Ministro Ayres Britto, p. 14-15 – grifos nossos.
151 ADPF 132 e ADI 4.277, voto do Ministro Gilmar Mendes, p. 29-30.
152 Nesse sentido, a lição de Maria Berenice Dias (A Lei Maria da Penha na Justiça: A
efetividade da Lei 11.340/2006 de combate à violência doméstica e familiar contra a
mulher, 1.a Edição, Porto Alegre: Editora Livraria do Advogado, 2007, p. 35-36): “Como
é assegurada proteção legal a fatos que ocorrem no ambiente doméstico, isso quer
dizer que as uniões de pessoas do mesmo sexo são entidades familiares. Violência
doméstica, como diz o próprio nome, é violência que acontece no seio de uma família.
Assim, a Lei Maria da Penha ampliou o conceito de família alcançando as uniões
homoafetivas. (...)Ao ser afirmado que está sob o abrigo da Lei a mulher, sem
distinguir sua orientação sexual, encontra-se assegurada proteção tanto às lésbicas
como às travestis, as transexuais e os transgêneros do sexo feminino que mantêm
relação íntima de afeto em ambiente familiar ou de convívio. Em todos esses
relacionamentos as situações de violência contra o gênero feminino justificam especial
proteção. (...) agora, a partir da nova definição de entidade familiar, trazida pela Lei
Maria da Penha, não mais cabe questionar a natureza dos vínculos formados por
pessoas do mesmo sexo. Ninguém pode continuar sustentando que, em face da
omissão legislativa, não é possível emprestar-lhes efeitos jurídicos. Há uma nova
regulamentação legislativa da família. No dizer de Roberto Lorea, derruba-se, enfim, a
última barreira – meramente formal – para a democratização do acesso ao casamento
no Brasil: A nova definição legal da família brasileira se harmoniza com o conceito de
casamento ‘entre cônjuges’ do art. 1.511, do Código Civil, não apenas deixando de
fazer qualquer alusão à oposição de sexos, mas explicitando que a
heterossexualidade não é condição para o casamento.
153 Também nesse sentido, a lição de Maria Berenice Dias (Ibidem, p. 38): “O conceito
legal de família trazido pela Lei Maria da Penha insere no sistema jurídico as uniões
homoafetivas. Quer as relações de um homem e uma mulher, quer as formadas por
duas mulheres ou constituídas entre dois homens, todas configuram entidade familiar.
Ainda que a Lei tenha por finalidade proteger a mulher, acabou por cunhar um novo
conceito de família, independente do sexo dos parceiros. Assim, se família é a união
entre duas mulheres, igualmente é família a união entre dois homens. Ainda que eles
não se encontrem ao abrigo da Lei Maria da Penha, para todos os outros fins impõe-se
este reconhecimento. Basta invocar o princípio da igualdade. A entidade familiar
ultrapassa os limites da previsão jurídica para abarcar todo e qualquer agrupamento
de pessoas onde permeie o elemento afeto [Leonardo Barreto Moreira Alves. O
reconhecimento legal do conceito moderno de família..., p. 149].
154 Amor romântico, no caso.
155 Proferida no dia 05.05.2011, essa decisão reconheceu expressamente a união
homoafetiva como família conjugal constitucionalmente protegida em igualdade de
condições com a união estável heteroafetiva.
SEGUNDA PARTE

DAS TESES PROPRIAMENTE DITAS


Capítulo 6

UNIÕES HOMOAFETIVAS E ISONOMIA:


CASAMENTO CIVIL

“A união pelo amor é que caracteriza a entidade familiar e não a


diversidade de sexo. E, antes disso, é o afeto a mais pura
exteriorização do ser e do viver, de forma que a marginalização das
relações mantidas entre pessoas do mesmo sexo constitui forma de
privação do direito à vida, em atitude manifestamente
preconceituosa e discriminatória. Deixemos de lado as aparências e
vejamos a essência.” – Maria Berenice Dias1, Desembargadora
aposentada do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, advogada,
Fundadora e Vice-Presidente do IBDFAM – Instituto Brasileiro de
Direito de Família – destaque nosso.

1. CONSIDERAÇÕES PRELIMINARES
Neste capítulo analisarei os enunciados normativos que regem o
casamento civil sob a luz do princípio da igualdade, enfrentando, assim, a
questão da possibilidade jurídica do casamento civil homoafetivo. Todavia,
para a total compreensão do que aqui se expõe, é fundamental a leitura e
compreensão dos capítulos anteriores (sobre a homossexualidade, a
isonomia e a evolução da concepção da família) – o mesmo devendo ser
observado quanto ao capítulo seguinte.

1.1 Evolução histórica do conceito de casamento. Da patrimonialização


do afeto à concepção eudemonista de casamento
As considerações deste tópico são pautadas no volume três da História
da Sexualidade, de Michel Foucault, que resta aqui parafraseado.
Na Antiguidade Clássica (greco-romana), o casamento era visto como
um ato privado e institucional que dizia respeito à família, à sua autoridade
e às regras que ela reconhecia como suas, de modo a não exigir a
intervenção do Estado, o que se fazia mediante a entrega para o marido da
tutela da filha-mulher-esposa, até então exercida pelo pai desta – um ato
cujo interesse e razão de ser exclusivamente para a transmissão do nome
(status), constituição de herdeiros, organização de um sistema de alianças e
junção de fortunas2. Foi progressivamente, no mundo helênico, que o
casamento tomou lugar na esfera pública (publicização do casamento),
mediante a aprovação de uma série de leis sobre o tema, como a lei do
adultério, que condenava a mulher casada que mantivesse relações com
outro homem, e o homem que mantivesse relações com uma mulher casada
(que não era, contudo, condenado se cometesse adultério com uma mulher
solteira), de sorte a transferir para o poder público uma sanção que, até
então, incumbia apenas à autoridade familiar3.
Os imperativos econômico-políticos que comandavam o casamento
perderam parte de sua importância quando o status e a fortuna das classes
privilegiadas passaram a depender mais da proximidade com o príncipe, da
carreira civil ou militar e do sucesso nos negócios do que da aliança entre
grupos familiares, em que o casamento se tornou mais livre no que tange à
escolha da esposa, na decisão de casar-se e nas razões pessoais de contraí-
lo, ao passo que, também nas classes não privilegiadas, o casamento passou
a ser uma forma de vínculo oriundo de fortes relações pessoais pautadas na
comunhão de vida, na ajuda mútua e no apoio moral, assim, o casamento
passou a aparecer mais como uma união livremente consentida entre dois
parceiros cuja desigualdade foi atenuada, sem, contudo, desaparecer4. O
casamento se tornou um contrato desejado pelos dois cônjuges, que nele se
engajavam pessoalmente, mediante o declínio da autoridade paterna sobre o
tema, declínio este reconhecido, inclusive, por decisões judiciais, fazendo
com que homem e mulher entrassem em um sistema de deveres ou
obrigações que, embora desiguais, eram compartilhados5. Assim, a relação
de superioridade exercida na casa e sobre a esposa teve que compor-se com
algumas formas de reciprocidade e de igualdade, em um certo equilíbrio
entre desigualdade e reciprocidade na vida matrimonial6.
Destaca Foucault, contudo, que os textos que representam estes ideais
não podem ser considerados como representação daquilo que realmente
ocorria na prática matrimonial do Império, não obstante a sinceridade de
seus testemunhos – devem ser vistos como a formulação de uma exigência
daquilo que deveria ser a prática matrimonial, mostrando que o casamento
passou a ser interrogado como um modo de vida cujo valor é visto na
relação entre dois parceiros e que, nessa relação, o homem deveria regular
sua conduta não somente a partir de um status, de privilégios e de funções
domésticas, mas também a partir de um papel relacional com a sua esposa,
em que seu papel não era mais o de mera função governamental de
formação, educação e direção da esposa, por se inscrever agora em um jogo
complexo de reciprocidade afetiva e dependência recíproca, por meio de
sua colocação enquanto sujeito moral na relação de conjugalidade7.
A naturalidade do casamento heteroafetivo foi defendida, basicamente,
com fundamento na necessidade de procriação e de uma ligação estável
para assegurar a educação aos filhos, assim como nas ajudas, comodidades
e prazeres que a vida a dois proporciona e na consideração da família como
a base da cidade [e, portanto, da sociedade] – para Musonius, o casamento
teve a si atribuídos os objetivos de uma descendência a obter e uma vida a
compartilhar, mediante um companheirismo de vida no qual os cônjuges
trocam cuidados recíprocos; nesse sentido, ele e Platão definiram o homem
como animal conjugal, por considerarem que o ser humano é binário por
constituição, ou seja, é feito para a vida a dois, numa relação que lhe dê
uma descendência e lhe permita passar a vida com um parceiro, em que a
natureza e a razão o impulsionariam para o casamento (embora também
destaquem que o ser humano é um animal social, por isso, ao mesmo tempo
conjugal e social, por serem os humanos feitos para viver a dois e também
para viver em multiplicidade)8.
De qualquer forma, passou-se a problematizar o casamento enquanto
um estilo particular de conduta, sobretudo na posição do homem casado
enquanto chefe de família, um cidadão honrado ou um homem que
pretendia exercer um poder sobre os outros, em que a arte de ser casado
passou a supor um domínio de si relativamente ao homem sábio, algo a
ensejar uma mudança nas relações conjugais entre homens e mulheres no
casamento, de sorte a valorizar cada vez mais a relação pessoal entre os
dois esposos, o vínculo que pode uni-los e o comportamento de um para
com o outro – instaurando-se um princípio de moderação de conduta do
homem casado, com base no dever de reciprocidade para com a sua
esposa9. A partir dos textos estoicos, o casamento não é mais pensado
apenas como uma forma matrimonial fixadora da complementaridade dos
papéis na gestão da casa, mas, sobretudo, como um vínculo conjugal, uma
relação pessoal entre os cônjuges10 – destacou-se, assim, a dimensão afetiva
da relação conjugal11.
Assim, pensado como a relação mais fundamental e mais estreita do
que qualquer outra, o vínculo conjugal passou a definir todo um modo de
existência, deixando de ser caracterizado por uma mera repartição de
encargos e comportamentos da complementaridade entre os sexos para dar
ênfase a uma vida compartilhada de existência comum12 – daí a ideia de
que a vida conjugal deve ser também a arte de constituir a dois uma nova
unidade, o que englobou uma unidade ética que o casal deveria constituir
na vida conjugal, com uma fusão total entre os cônjuges, de sorte a
representar um modelo forte de existência conjugal, no qual a relação com o
outro, tida como a mais fundamental dos cônjuges, se organiza sob a forma
institucional do casamento e na vida comum que a ela se superpõe13.
Nesse contexto, passou-se a exigir-se do homem uma ética do domínio
de si, de sorte a que reservasse todos os seus prazeres sexuais para a própria
mulher e somente a ela, em uma conjugalização das relações sexuais, de
maneira à atividade sexual só ocorrer no interior do casamento14. Musonius
falou em prazeres legítimos justamente para designar aqueles nos quais os
parceiros realizam juntos no casamento e para o nascimento dos filhos, uma
vez que a conjugalidade foi tida para a atividade sexual como a condição
para o seu exercício legítimo15, considerando Musonius que, para o ser
humano racional e social, seria de sua própria natureza que o ato sexual se
inscrevesse na relação matrimonial para nela produzir uma descendência
legítima, sob o fundamento de que retirar daí os prazeres sexuais para
desvinculá-los da relação conjugal causaria dano àquilo que constitui o
essencial do ser humano16.
Dessa forma, houve uma evolução no conceito de adultério: antes
moralmente condenado a título de injustiça feita por um homem a outro
homem cuja mulher ele desencaminhara (portanto, entendido unicamente
como dano aos direitos do marido da mulher adúltera), passou ele a ser
entendido sob o foco do princípio da simetria entre o homem e a mulher,
por força do respeito que se deve ter para com o vínculo pessoal entre os
esposos17. Em defesa dessa fidelidade sexual do homem, Musonius
argumenta que permitir ao homem fazer aquilo que se pede à mulher não
fazer equivaleria a dizer que a mulher seria mais capaz do que o homem de
dominar e governar seus desejos, ideia inaceitável naquela época [pois
colocaria a mulher em situação de superioridade em relação ao homem no
que tange ao controle de si], visto que, para que o homem fosse, de fato,
aquele a prevalecer, seria preciso a ele renunciar a fazer aquilo que se
interdita que uma mulher faça18. Em termos análogos, Plutarco defendeu a
mesma ideia, embora recomendando certa tolerância à mulher contra as
faltas de seus maridos, faltas estas que deveriam ser resolvidas no interior
do próprio casamento19.
Assim, justamente por força dessa intensificação do valor dos
aphrodisia nas relações conjugais, por causa do papel a eles atribuído na
comunicação entre os esposos, é que se começa a interrogar de modo cada
vez maior os privilégios até então reconhecidos ao amor pelos rapazes,
diante do fato de o casamento passar a ser visto como vínculo individual
suscetível de integrar as relações de prazer e de dar-lhes o valor positivo
que vai constituir o foco mais ativo para a definição de uma estilística da
vida moral20. Embora ainda corrente e considerado natural nos dois
primeiros séculos da era cristã, a relação com os rapazes passou a ser mais
interrogada em tom comparativo com a relação com as mulheres, no
contexto das esposas legítimas21. Basicamente, invoca-se o argumento da
hipocrisia pederástica, no sentido de que o amador de rapazes se invocava
um ar de filósofo e de sábio para dizer que sua relação seria desprovida de
prazer sexual quando, na verdade, este prazer evidentemente existia, de
sorte a ter-se chegado em um dilema: ou os amadores de rapazes teriam
decaído da dignidade do amor por sentirem prazer sexual com seus amados
(efebos estes que eram proibidos de sentirem prazer com seu preceptor, por
ser isto considerado uma característica feminina/efeminada, inaceitável para
a época), ou então, aceitando-se que as volúpias físicas ocorram na amizade
e no amor, então não haveria de excluir destes a relação com as mulheres22,
apontando Plutarco que a mesma amizade existente no amor pelos rapazes
(vida em comum, benevolência mútua, comunidade perfeita, unidade de
almas e temperança recíproca) também pode marcar a relação de um
homem e uma mulher no casamento, tomando assim da Erótica tradicional
do amor pelos rapazes seus elementos centrais e aplicando-os ao amor com
a própria mulher no interior do casamento23.
Traço que me parece fundamental da exposição de Foucault deste
debate é a colocação da noção da época de que, no amor pelos rapazes, ou
as relações sexuais seriam impostas pela violência e aquele que as sofresse
só poderia experimentar cólera, ódio e desejo de vingança, ou então elas
eram consentidas pelo rapaz que, assim, passava a ser considerado pessoa
feminina, por obter prazer em ser sexualmente passivo (hedomenos toi
paschein) e, portanto, objeto de vergonha, pela consideração da
antinaturalidade dessa postura, tida como a mais ínfima do ser humano24.
Nesse sentido, os opositores do amor pelos rapazes apontaram que, no amor
pelas mulheres, este consentimento de bom grado era admitido, de modo a
se possibilitar que se inscrevesse o prazer físico na amizade conjugal25, o
que afastaria toda aquela problematização sobre a sexualidade passiva do
rapaz – sendo, portanto, este consentimento (charis) o elemento
discriminante na comparação entre o amor pelas mulheres relativamente ao
amor pelos rapazes26. Destacou-se um princípio da reciprocidade sobre o
tema, no sentido de que porque cada um ama o outro é que aceita o seu
amor, é que consente em receber as suas marcas e que assim ama ser
amado, em uma relação de duplo amor, em que cada um é, do ponto de
vista do Eros, o sujeito ativo, e por causa da reciprocidade no ato de amar,
as relações sexuais podem ter lugar na forma da afeição e do consentimento
mútuos, o que [supostamente] inexistia no dilema da passividade relativo
ao amor pelos rapazes27.

Desenvolveu-se, assim, uma Erótica diferente daquela que teve


seu ponto de partida no amor pelos rapazes, mesmo se, tanto numa
como na outra, a abstenção dos prazeres sexuais desempenha um papel
importante: ela se organiza em torno da relação simétrica e recíproca
entre o homem e a mulher, em torno do alto valor atribuído à
virgindade28 e da união total em que vem a completar-se.
(...)
Do lado da Dietética e da problematização da saúde, a mudança
marcou-se por meio de uma inquietação mais intensa, uma definição
mais extensa e mais detalhada das correlações entre o ato sexual e o
corpo, uma atenção mais viva à ambivalência de seus efeitos e a suas
consequências perturbadoras. E não se trata simplesmente de um
cuidado maior pelo corpo, trata-se também de uma outra maneira de
focalizar a atividade sexual, e de temê-la pelo conjunto de seus
parentescos com as doenças e o mal. Do lado da mulher e da
problematização do casamento, a modificação consiste sobretudo na
valorização do vínculo conjugal e da relação dual que o constitui; a
justa conduta do marido e a moderação que ele deve se impor não se
justificam simplesmente por considerações de status, mas pela
natureza do vínculo, sua forma universal e [d]as obrigações recíprocas
que dele decorrem. E finalmente, do lado dos rapazes, a necessidade
da abstinência é cada vez menos percebida como uma maneira de dar,
a formas de amor, os mais altos valores espirituais, e cada vez mais
como o signo de uma imperfeição que lhe é própria.
(...)
(...) Os elementos do código concernentes à economia dos
prazeres, à fidelidade conjugal, às relações entre homens, poderão
muito bem permanecer análogos. Eles então farão parte de uma ética
profundamente remanejada e de uma outra maneira de constituir-se a si
mesmo enquanto sujeito moral de suas próprias condutas sexuais29.
(grifo nosso)

Pois bem. Da análise histórica supra, percebe-se claramente que há


séculos o casamento civil tem tido a si reconhecida a função de garantir
uma comunhão plena de vida entre os cônjuges, com gradativa superação
de sua função patrimonial inicial para ganhar proeminência sua função
enquanto locus de realização pessoal dos cônjuges em sua comunhão plena
de vida e interesses, o que não é contrastado pelo fato de somente em 1988
termos, no Brasil, atingido a igualdade normativa expressa entre os
cônjuges heteroafetivos na sociedade conjugal. Como se nota pela lição de
Foucault, já na época do Império Romano se lutava para o reconhecimento
do casamento enquanto locus de reciprocidade afetiva e dependência
recíproca, com ênfase a uma vida compartilhada de existência comum,
defendendo-se a vida conjugal como uma unidade ética na qual o casal
deveria constituir na vida conjugal, com uma fusão total entre os cônjuges,
de sorte a representar um modelo forte de existência conjugal, no qual a
relação com o outro, tida como a mais fundamental dos cônjuges, se
organiza sob a forma institucional do casamento e na vida comum que a ela
se superpõe. Logo, o casamento há séculos é visto socialmente como local
de realização afetiva entre os cônjuges, o que restou finalmente consagrado
socialmente no final do século XX e normativamente com a Constituição
Federal de 1988, tendo em vista que uma compreensão puramente
patrimonial do casamento civil fere de morte o princípio da dignidade da
pessoa humana, que demanda a releitura deste como locus de realização da
felicidade dos cônjuges e não como algo voltado a mera transmissão
patrimonial, consoante a célebre repersonalização do Direito Civil já
consagrada na dogmática jurídica contemporânea.

1.1.1 Conceito contemporâneo de casamento


No capítulo 5, foi demonstrado que a família conjugal passou de uma
instituição hierárquico-patriarcal, na qual o homem era o chefe da sociedade
conjugal e a mulher era completamente submetida aos desígnios de seu
marido, para uma relação que valoriza primordialmente o vínculo afetivo
entre seus membros, em um afeto romântico público, contínuo e duradouro
pautado em uma comunhão plena de vida e interesses (que é o intuito de
constituir família), e que se pauta na igualdade de direitos e obrigações no
comando da sociedade conjugal e na criação e educação dos filhos. Essa é a
família pós-moderna, do final do século XX.
Nesse sentido, não poderia ser diferente a evolução do conceito de
casamento. De instituição voltada inicialmente para a proteção do
patrimônio e da honra do homem-marido, o casamento evoluiu para ser
compreendido como um contrato entre duas pessoas que se amam e se
comprometem, em uma relação conjugal, a uma comunhão plena de vida e
interesses, de forma pública, contínua e duradoura, mediante um
companheirismo de mútua assistência material e espiritual para superação
das dificuldades da vida, para o aproveitamento conjunto das alegrias e
conquistas de cada um.
Nas precisas palavras de Evan Wolfson30:

Não importa que língua as pessoas falam (...) – casamento é o que


nós usamos para descrever um específico relacionamento de amor e
dedicação a outra pessoa. É como nós designamos as famílias que são
unidas por causa do amor. E ele universalmente significa um nível de
abnegação [self-sacrifice] e responsabilidade e um estágio da vida
diferente de qualquer outro. (...) Considere-se todas as diferentes
dimensões do casamento (...). Primeiro, casamento é um
comprometimento pessoal e uma escolha importante que pertence a
casais que se amam [belongs to couples in love]. De fato, muitas
pessoas consideram a escolha de um parceiro [conjugal] a escolha
mais significativa de suas vidas. (...) Casamento é ainda uma
declaração social que, com proeminência, descreve e define os
relacionamentos pessoais e o seu lugar na sociedade. O status marital,
juntamente com o que nós fazemos para viver, é muitas vezes uma das
primeiras peças de informação que nós damos aos outros sobre nós
mesmos. Ele é tão importante que a maior parte das pessoas casadas
ostentam um símbolo do seu casamento nas suas mãos. (...) Casamento
tem um significado espiritual para muitos de nós e um significado
familiar para quase todos nós. Parentes perguntam inquisitivamente
quando iremos nos casar, muitas vezes ao ponto de importunação
[often to the point of nagging]. (...) Casamento é agora o vocabulário
que nós usamos para falar de amor, família, dedicação, abnegação e
fases da vida. Casamento é uma linguagem de amor, igualdade e
inclusão. (...)

No mesmo sentido, já se manifestou a Suprema Corte dos EUA, no


julgamento Turner v. Safley, de 1989, que reconheceu o direito dos
prisioneiros de se casarem mesmo que a prisão lhes impedisse de manter
relações sexuais e, assim, lhes impedisse de procriar. Segundo Evan
Wolfson31:
Após cuidadosas considerações, os Justices destacaram quatro
“importantes atributos” do casamento: Primeiro, eles disseram, o
casamento representa uma oportunidade de fazer uma declaração
pública de comprometimento e amor um ao outro, e uma oportunidade
de receber apoio público para aquele comprometimento. Segundo, os
Justices disseram, casamento tem para muitas pessoas uma importante
dimensão espiritual ou social. Terceiro, casamento oferece a
perspectiva de “consumação” física, o que, claro, a maior parte de nós
designa por um nome distinto. E quarto, os Justices disseram,
casamento nos Estados Unidos é a única e indispensável entrada, a
“precondição”, para uma vasta gama de proteções, responsabilidades e
benefícios – públicos e privados, tangíveis e intangíveis, legais e
econômicos – que tem importância real para pessoas reais. A Suprema
Corte obviamente entendeu, como supra discutido, que o casamento
tem outros propósitos e outros aspectos na esfera religiosa, nos
negócios e nas vidas pessoais das pessoas. Os Justices sabiam, por
exemplo, que para muitas pessoas, o casamento é ainda importante
como uma estrutura na qual eles podem ter e criar filhos. Mas quando
o examinaram com a Constituição Federal em mente, esses quatro
atributos ou interesses identificados pela Corte são aqueles que têm
peso legal. E, após sopesar esses atributos, os Justices decidiram – em
uma decisão unânime – que o casamento é uma escolha tão importante
que ele não pode ser arbitrariamente negado pelo governo.
Consequentemente, eles ordenaram que o governo parasse de recusar
licenças de casamento ao grupo de Americanos que trouxeram o caso
[a julgamento] Aquele grupo de Americanos era o dos prisioneiros.

No mesmo sentido, a decisão do juiz Kevin Chang32, ao analisar o


argumento estatal de que o casamento civil só seria acessível àqueles que
tivessem capacidade procriativa:

No Havaí, e em qualquer lugar, as pessoas se casam por uma


variedade de razões, incluindo, mas não se limitando, as seguintes: (1)
ter ou criar filhos; (2) estabilidade e comprometimento; (3) intimidade
emocional [emotional closeness]; (4) intimidade e monogamia; (5) o
estabelecimento de uma rede de apoio [framework] para um
relacionamento duradouro; (6) significação pessoal [personal
significance]; (7) reconhecimento da sociedade; e (8) obter proteções,
benefícios e obrigações legais e econômicas. Homens gays e mulheres
lésbicas possuem esse mesmo conjunto de razões [mix of reasons] para
quererem se casar. (...)

Ou seja, o que é relevante, para fins de casamento civil, é o fato de


termos duas pessoas que se amam romanticamente e se encontrem em uma
comunhão plena de vida e interesses, de forma pública, contínua e
duradoura, pautada no companheirismo e na mútua assistência (dedicação
recíproca), o que independe de ter filhos, querer ter filhos ou poder ter
filhos. Ademais, em um país pautado pela laicidade estatal33, a importância
espiritual e religiosa que o casamento tem para muitas pessoas não pode ser
considerado um elemento discriminatório para o casamento civil – os
requisitos que as religiões elegem para os seus casamentos religiosos não
podem ser impostos, em um Estado Laico, àqueles que não compartilham
das crenças religiosas que sustentam estes requisitos, da mesma forma que
não pode o Estado interferir na forma como as religiões lidam com os seus
casamentos religiosos. A menção à importância espiritual e religiosa do
casamento para os cidadãos só pode servir como elemento a destacar a
importância que o casamento civil tem para todas as pessoas,
independentemente de suas crenças e religiões, de sorte a destacar o direito
das pessoas não cristãs (ou não pertencentes à religião dominante no país)
ao casamento, mesmo quando a religião cristã/dominante não reconheça a
validade do referido casamento.
O próprio Justice Scalia34, conservador membro da Suprema Corte dos
EUA, reconheceu que a capacidade procriativa não é um argumento forte
para não reconhecer o casamento civil homoafetivo, quando afirmou que
“Se a desaprovação moral da conduta homossexual ‘não é um interesse
estatal’ para propósitos de proibir sexo privado entre adultos [private sex
between adults], que justificação poderia possivelmente existir para negar
os benefícios do casamento a casais homossexuais? Certamente não o
encorajamento da procriação, considerando que pessoas estéreis e idosas
são autorizadas a se casar”.
2. PRELIMINARMENTE: DA EFETIVA DISCRIMINAÇÃO
SOFRIDA PELOS CASAIS HOMOAFETIVOS EM
DECORRÊNCIA DA NEGATIVA AO RECONHECIMENTO DE
SEU STATUS JURÍDICO-FAMILIAR
Quando se discute a questão das uniões homoafetivas sob o enfoque do
princípio da igualdade, deve-se inicialmente demonstrar a efetiva existência
de uma discriminação jurídica decorrente da não extensão do Direito das
Famílias a estas. Isso porque, apesar de ela ser absolutamente clara, por
diversas vezes me deparei com pessoas que disseram simplesmente que não
haveria nenhuma discriminação jurídica decorrente da negação ao direito ao
casamento civil homoafetivo e do não reconhecimento da união estável
homoafetiva. Uma vez me foi dito, inclusive, que “eles [homossexuais]
podem fazer um contrato e pronto” (sic), como se um mero contrato de
Direito Obrigacional fosse equivalente às benesses do Direito das Famílias.
Contudo, é somente com o casamento civil ou com a união estável que
um casal pode auferir os benefícios do Direito das Famílias, ao passo que as
uniões que não são reconhecidas nem como união estável (a saber, o
namoro e o concubinato) não recebem proteção nenhuma do Direito.
Assim, defender que não haveria discriminação jurídica ao não se
reconhecer a possibilidade jurídica do casamento civil e da união estável a
determinado grupo de indivíduos implica aduzir que ditos regimes jurídicos
teriam os mesmos efeitos jurídicos do concubinato! Data maxima venia,
este entendimento é absolutamente equivocado.
Isso porque o casamento civil e a união estável estão protegidos pelo
Direito das Famílias, sendo que todos os direitos dos
cônjuges/companheiros decorrem unicamente de sua união amorosa. Já no
concubinato, o amor existente no casal é completamente ignorado pelo
Direito, sendo que o único direito que o “parceiro” da “sociedade de fato”
considerada como formada por ambos terá é o da divisão dos bens
amealhados durante a “parceria”, desde que prove, monetariamente, quanto
contribuiu para a construção do patrimônio comum (por meio de notas
fiscais, depósitos bancários etc.). Isso decorre do fato de que a dissolução
da união concubinária se faz como se estivéssemos diante de uma
“sociedade comercial de fato”, com uma verdadeira “apuração de haveres”
para determinar com quanto cada um dos “sócios” contribuiu, para que seja
feita uma divisão equânime do patrimônio formado (assim como na
dissolução das sociedades comerciais em geral).
Já no casamento civil e na união estável, por outro lado, não é
necessária a prova da efetiva contribuição monetária/patrimonial para que
se faça a divisão dos bens do casal no caso de separação, porque há uma
presunção absoluta de mútua contribuição em favor dos consortes, no
sentido de que, por mais que um parceiros não tenha contribuído em nada
em termos monetários, parte-se do pressuposto de que, não fosse pelo amor
familiar decorrente dessa relação, o outro não teria tido forças para
construir seu patrimônio. Assim, no casamento civil a divisão patrimonial é
feita segundo o regime de bens do casal, ao passo que na união estável
dividem-se igualmente os bens adquiridos onerosamente na constância da
união, ou então da forma estipulada pelo contrato de união estável firmado
pelos companheiros, devendo unicamente ser provada a união estável do
casal. Em suma, o casamento civil é uma relação complexa por meio da
qual assumem os cônjuges direitos e deveres recíprocos que acarretam
sequelas de ordem não só pessoal, mas também patrimonial, na medida em
que a situação patrimonial dos bens altera-se a partir de sua celebração,
sendo que o estado civil serve justamente para dar publicidade não só à
condição pessoal, mas especialmente à condição patrimonial da pessoa,
destinando-se a garantir segurança a terceiros35.
Desta breve exposição das consequências jurídicas do concubinato, do
casamento civil e da união estável, percebe-se claramente que há uma
efetiva discriminação jurídica perpetrada contra homossexuais nos dias de
hoje, tendo em vista que o vazio legislativo hoje imposto às uniões
homoafetivas tem feito que os magistrados em geral atribuam-lhes os
mesmos efeitos jurídicos do concubinato (teoria das “sociedades de fato”),
donde têm os homossexuais um ônus muito maior que os heterossexuais
que vivem amorosamente para conseguir sua meação patrimonial: enquanto
estes só precisam provar sua união amorosa e seu intuito de constituir
família (no caso da união estável), aqueles precisam provar o quanto
contribuíram monetariamente na construção do patrimônio existente quando
do término da união afetiva de ambos, o que é uma prova muito difícil de se
fazer, como a história do concubinato já provou.
Segundo Evan Wolfson36:

Casamento é ainda um relacionamento entre um casal e o


governo. Casais precisam da participação governamental para entrar e
sair do casamento. Por ser uma instituição legal e “civil”, o casamento
é a porta de entrada legal a uma vasta gama de proteções,
responsabilidades e benefícios – a maior parte dos quais não pode ser
replicada de nenhuma outra forma, não importa o quanto você se
previna [forethought] ou quanto você pode gastar com honorários
advocatícios e juntando procurações e documentos [assembling
proxies and papers].

Ademais, além da discriminação decorrente desse ônus maior do que o


exigido aos casais heteroafetivos, a revista Superinteressante, de julho de
2004, listou 34 direitos que são negados aos pares homoafetivos caso não se
lhes reconheça o direito ao casamento civil (ou ao menos à união estável),
aos quais o Grupo Leões do Norte acrescentou outros 34 direitos, o que
totaliza um total de 78 direitos negados a casais homoafetivos por quem não
os reconhece como merecedores dos benefícios do Direito das Famílias37.
A esse respeito vale a pena conferir o que disse a Suprema Corte do
Estado de Massachusetts (EUA)38, ao declarar a inconstitucionalidade da
proibição ao casamento civil homoafetivo:

“O casamento também confere uma enormidade de vantagens na


esfera privada e social àqueles que decidem se casar”. O casamento
civil é no momento um comprometimento pessoal para com outro ser
humano e uma altamente pública celebração dos ideais de
reciprocidade, companheirismo, intimidade, fidelidade e da família.
“É uma associação que promove uma forma de vida, não causas; uma
harmonia em viver, não em crenças políticas; uma lealdade bilateral, e
não um projeto comercial ou social” Griswold v. Connecticut, 381,
U.S. 479, 486 (1965). O casamento civil é uma instituição estimada
porque satisfaz anseios por segurança, bem-estar e união que
expressão a nossa humanidade comum, e a decisão de quando ou com
quem se casar é um dos momentos de definição pessoal de nossas
vidas. “Benefícios tangíveis e intangíveis defluem do casamento. A
licença de casamento concede valiosos direitos de propriedade para
aqueles que se enquadram nos requisitos de sua concessão, e àqueles
que concordam com o que poderia ser, em outras circunstâncias, ser
um oneroso grau de regulação governamental em suas atividades”. (...)
O Legislativo conferiu a “cada parte (no casamento civil)
consideráveis direitos concernentes a bens da outra os quais
conviventes não casados não têm” Wilcox v. Trautz, 427, Mass., 326,
334 (1998). (...) Os benefícios acessíveis apenas pela obtenção de uma
licença de casamento são enormes, abrangendo aproximadamente
todos os aspectos de vida e morte. O Estado atesta que “centenas de
estatutos” estão relacionados com o casamento e com os benefícios
matrimoniais. Sem a intenção de sermos exaustivos, nós apontamos
que alguns dos benefícios estatutários conferidos pelo Legislativo
àqueles que ingressam no casamento civil incluem, quanto à
propriedade: declaração tributária conjunta (...); arrendamento pela
integralidade (uma forma de propriedade que confere certas proteções
contra credores e permitem a transmissão automática da propriedade
ao consorte sobrevivente sem necessidade de homologação) (...);
extensão do benefício de proteção do bem de família (...) para o
consorte sobrevivente e filhos (...); direito automático à herança da
propriedade do consorte falecido que não deixar testamento (...); os
direitos de ações e de dote (que permitem aos consortes sobreviventes
certos direitos de propriedade quando o falecido consorte não tiver
feito adequada provisão ao sobrevivente em testamento) (...); direito a
salários pertencentes ao empregado falecido (...); habilitação para
continuar com certos negócios do consorte falecido (...); o direito a
partilhar do plano de saúde do consorte (...); continuação de trinta e
nove semanas na cobertura de saúde para o consorte de uma pessoa
inválida ou morta (...); opções preferenciais no sistema de pensões (...);
proteções financeiras a consortes de certos funcionários públicos
(bombeiros, policiais, promotores, entre outros) mortos em serviço
(...); divisão equitativa da propriedade marital no divórcio (...); direito
temporário e permanente a pensão alimentícia (...); e o direito de
reclamar contra a morte injusta e a perda da sociedade conjugal, por
despesas funerárias e de sepultamento e indenização resultante de
danos civis (...). Benefícios maritais exclusivos que não estão
diretamente ligados a direitos de propriedade incluem presunções de
legitimidade e de parentesco a crianças nascidas na constância do
casamento (...) e direitos comprobatórios, como a proibição contra o
testemunho dos cônjuges um contra o outro sobre suas conversas
privadas, aplicáveis tanto na esfera civil quanto criminal (...). Outros
benefícios legais de natureza própria daqueles que se encontram
casados incluem a qualificação para licença médica para cuidar de
pessoas relacionadas por sangue ou casamento (...); uma preferência
automática de “membro da família” para tomar decisões médicas por
um consorte incapacitado ou inábil que não tiver deixado uma
procuração em sentido contrário (...); o pedido para o estabelecimento
de regras para a custódia de filhos, visitação, auxílio e remoção (...);
direito prioritário à administração do estado do consorte falecido que
morre sem testamento (...). Quando o casal matrimonializado tem
filhos, seus filhos são também diretamente ou indiretamente, mas não
menos auspiciosamente, os destinatários de proteções legais e
econômicas obtidas pelo casamento civil. Não obstante a forte política
pública que visa abolir as distinções legais entre filhos oriundos ou não
do casamento (...), fato é que filhos oriundos do casamento colhem
uma medida de estabilidade familiar e segurança econômica baseadas
no status legalmente privilegiado de seus pais que são largamente
inacessíveis, ou não tão prontamente acessíveis, a filhos cujos pais não
estão casados. Alguns desses benefícios são sociais, como a acentuada
aprovação que ainda atende o status de ser um filho cujos pais
encontram-se casados. Outros são materiais, como a maior facilidade
de acesso a benefícios familiares estatais que atendem à presunção de
paternidade.

E, como bem destacado por Evan Wolfson39, virtualmente, todos estes


direitos e consequências do casamento civil [e da união estável] não podem
ser obtidos mediante a contratação de um advogado ou a elaboração de
acordos privados, mesmo que o casal tenha muita disposição prévia
[forethought] para discutir todas essas questões (previamente) e tenha muito
dinheiro extra para gastar com advogados.
Assim, é irrefutável que é perpetrada uma discriminação contra as
uniões homoafetivas pelo simples fato de se lhes negar o reconhecimento de
seu status jurídico-familiar e, consequentemente, de seu direito ao
casamento civil e à união estável. Afinal, dita discriminação implica a
negação de todos os direitos supratranscritos. Ou seja, fica clara a presença
de um dano efetivo aos casais homoafetivos, qual seja a negação de uma
série de direitos garantidos apenas pelo Direito das Famílias, sendo que a
negação de direitos importa em um maior ônus ao casal para provar sua
união e receber, assim, a proteção do Direito.
Afinal, quando consideradas como “sociedades de fato”, as uniões
homoafetivas não têm a si garantidas a presunção legal (que é absoluta) de
que ambos contribuíram igualmente para a construção do patrimônio
existente na época da sua dissolução. Disso resulta que devem comprovar
monetariamente quanto contribuíram, o que, além de ser uma prova
extremamente perniciosa, acaba inevitavelmente gerando uma divisão
altamente desproporcional, com um dos pares ficando, v.g., com 80% do
patrimônio e o outro apenas com 20% caso as provas apontem para uma tal
divisão nas contribuições patrimoniais de cada um – quando não ocorre de
este último, no caso de não ter nenhuma prova de contribuição monetária,
ficar sem nada.
A referida discriminação, mais do que uma discriminação por
orientação sexual, é uma verdadeira discriminação sexual, uma vez que a
orientação sexual do indivíduo só pode ser determinada pelo sexo biológico
da pessoa eleita por ele(a) para receber o seu amor familiar. Nesse sentido,
se uma pessoa não é discriminada juridicamente por direcionar o seu amor
familiar a outra de sexo diverso, não pode sofrer represália do Direito pelo
simples fato de amar uma pessoa do mesmo sexo40.
Por outro lado, ponto importantíssimo é aquele segundo o qual a partir
do momento em que o Estado brasileiro não proíbe a orientação sexual
homoafetiva, não pode ele discriminar as uniões amorosas formadas por
pessoas do mesmo sexo no sentido de conceder-lhes menos direitos do que
aqueles conferidos às uniões heteroafetivas. Afinal, tal conduta implica
discriminação arbitrária às pessoas homossexuais em razão de sua
orientação sexual e mesmo em razão de seu sexo, o que é expressamente
vedado por nossa Constituição Federal de forma explícita pelo seu art. 3.º,
IV.
Demonstrada a discriminação jurídica imposta atualmente às pessoas
homossexuais, passa-se agora a efetivamente demonstrar o porquê de o
princípio da igualdade demandar um tratamento igualitário entre as uniões
homoafetivas e a heteroafetivas e, consequentemente, demandar a
possibilidade jurídica do casamento civil homoafetivo.

2.1 Da necessidade da nomenclatura “casamento civil” e “união


estável” para a garantia da isonomia jurídica entre as uniões
homoafetivas quando comparadas às heteroafetivas nos dias de
hoje
Muitas pessoas resistem a conceder a nomenclatura “casamento” aos
casais homoafetivos, por considerarem-na “exclusiva” das uniões
heteroafetivas, diante do fato de historicamente somente terem ocorrido
casamentos heterossexuais, mesmo os civis.
Assim, cabe aqui fazer um esclarecimento fundamental: no que tange à
isonomia, o que se pleiteia por meio deste trabalho é a igualdade de direitos
entre as uniões homoafetivas e as heteroafetivas, e não uma simples
atribuição de nomenclatura àquelas, embora a nomenclatura seja
importantíssima para efeito do princípio da dignidade da pessoa humana,
conforme se demonstra em capítulo posterior. Contudo, as únicas figuras
jurídicas que protegem as uniões amorosas em nosso atual ordenamento
jurídico são o casamento civil e a união estável, donde se torna
indispensável serem elas estendidas aos casais homoafetivos. Não se trata
de preciosismo terminológico: trata-se da única forma de conseguirem os
casais homoafetivos obter os mesmos direitos concedidos aos casais
heteroafetivos.
Muito se fala acerca do Projeto de Lei 1.151/1995 de autoria da ex-
deputada Marta Suplicy, que visa regulamentar a “união civil”41 entre
pessoas do mesmo sexo, atribuindo-lhe alguns efeitos na esfera patrimonial.
Contudo, até que esse projeto seja efetivamente votado e aprovado, não
pode servir como parâmetro, uma vez que somente a sua aprovação o fará
entrar no mundo jurídico. Por outro lado, a simples leitura do projeto de lei
demonstra que ele não confere os mesmos direitos concedidos pelo
casamento civil ou mesmo pela união estável às uniões homoafetivas, o que
significa que a isonomia continuará afrontada mesmo com a sua aprovação
nos atuais termos. Além do mais, com a decisão do STF no julgamento da
ADPF 132 e da ADI 4.277, que reconheceu a união estável homoafetiva
como entidade familiar com igualdade de direitos relativamente à união
estável heteroafetiva, a aprovação de dito projeto traria um verdadeiro
retrocesso, na medida em que ele trata as uniões homoafetivas como meras
parcerias de Direito Obrigacional e não como as famílias conjugais que
são, atribuindo-lhes menos direitos (e obrigações) do que aqueles atribuídos
pelo Direito das Famílias.
Dessa forma, o que os opositores da extensão das expressões
“casamento civil” e “união estável” aparentemente ignoram é que será
somente por meio deles que terão os casais homoafetivos a plenitude da
proteção do Direito das Famílias no atual estágio de nossa legislação. Hoje
não existe uma lei de “união civil” ou de “parceria civil” disponível a
homossexuais (que, se vier a existir, deverá garantir a eles os mesmos
direitos conferidos aos heterossexuais, sob pena de inconstitucionalidade
por omissão, por afronta à isonomia), donde resta irrefutável a necessidade
da extensão de ditos regimes jurídicos aos casais homoafetivos, como
consequência lógica do princípio da isonomia, por meio da interpretação
extensiva ou da analogia.
Por outro lado, no que tange à diferença entre casamento civil e união
estável, ainda que a união estável venha a eventualmente garantir os
mesmos direitos concedidos pelo casamento (o que não ocorre hoje, visto
que o companheiro tem uma herança menor que o cônjuge na sucessão
segundo a redação originária do CC/2002), o fato é que o casamento civil
torna a vida das pessoas muito mais fácil, pois a certidão de casamento
constitui prova absoluta de que o casal em questão forma uma família
conjugal, ao passo que os companheiros em união estável precisam
apresentar prova de que se encontram em união pública, contínua e
duradoura, com o intuito de constituir família – sendo que cada
empresa/instituição exige diferentes documentos para tanto, muitas vezes
não aceitando mera declaração notarial de união estável obtida pelo casal
em um cartório de notas (exige-se normalmente a comprovação de que um
dos companheiros é dependente do outro no Imposto de Renda e/ou que um
seja beneficiário do outro em seguros de vida, que um seja dependente do
outro em plano de saúde ou no Imposto de Renda etc. – sendo que
diferentes empresas/instituições exigem diferentes combinações de
documentos para a comprovação da união estável). Logo, a certidão de
casamento civil torna a vida do casal muito mais prática do que a vida do
casal em união estável, sem falar que garante ao casal matrimonializado
maior segurança jurídica pelo fato de ele não precisar apresentar nada além
do que a certidão de casamento para comprovar seu status jurídico-familiar,
não deixando o casal preocupado em ter diversos documentos para poder
apresentar determinada combinação deles consoante as exigências feitas por
cada empresa/instituição com que se relacionem.
Assim, reconhecer a união homoafetiva como união estável não resolve
a questão relativamente à isonomia, por ainda permanecer uma
discriminação jurídica contra ela ao não se permitir a sua consagração pelo
casamento civil.
Para finalizar o tópico, restam algumas considerações quanto à
definição que os dicionários em geral trazem para a palavra casamento. Em
paráfrase, pode-se dizer que definem o casamento como a “união amorosa
entre o homem e a mulher”, o que é comumente utilizado pelos opositores
do casamento civil homoafetivo para negar sua possibilidade. Contudo, a
questão não é tão simples assim.
Deve-se lembrar que quando o conceito de casamento foi criado, não se
acreditava que duas pessoas do mesmo sexo pudessem manter entre si uma
relação de amor verdadeiro, ou seja, o sentimento sublime de querer
desenvolver uma união amorosa pública, contínua e duradoura, em
comunhão plena de vida e interesses. Por um erro conceitual, acreditava-se
que as relações homoafetivas visassem à mera libertinagem, entendimento
hoje já totalmente superado por qualquer pessoa que não seja totalmente
ignorante ou preconceituosa sobre o tema.
Pois bem: o conceito literal de casamento civil levou isso em
consideração ao disciplinar apenas a união heteroafetiva, ignorando a união
homoafetiva. Mas, considerando que atualmente já se sabe que aquela ideia
configurava um erro conceitual, visto que não se discute seriamente o fato
de ser a união homoafetiva baseada no mesmo amor familiar que funda a
união heteroafetiva, então se verifica que um casal homoafetivo pode
consagrar sua união pelo casamento civil, por possuir em si o elemento
valorativamente protegido por esse regime jurídico, a saber o amor
romântico que vise a uma comunhão plena de vida e interesses, de forma
pública, contínua e duradoura, que é o elemento formador da família
contemporânea42. É um típico caso de mutação normativa oriunda de
interpretação evolutiva do Direito.
Assim, as definições de dicionário que restringem o casamento civil à
união entre um homem e uma mulher estão equivocadas, por usarem (ainda
que inconscientemente) um conceito evidentemente ultrapassado, visto que
casais homoafetivos podem perfeitamente se enquadrar no valor de família
que funda o casamento civil43.

3. A INTERPRETAÇÃO EXTENSIVA, A ANALOGIA E A


POSSIBILIDADE JURÍDICA DO CASAMENTO CIVIL
HOMOAFETIVO
Aduz o art. 1.514 do Código Civil que: “O casamento se realiza no
momento em que o homem e a mulher manifestam, perante o juiz, a sua
vontade de estabelecer vínculo conjugal, e o juiz os declara casados”. É a
partir desta redação que a doutrina e a jurisprudência em geral consideram a
diversidade de sexos como “condição de existência” do casamento civil,
ante a ausência de menção expressa ao casamento civil homoafetivo.
Afirmam que duas pessoas do mesmo sexo somente poderiam se casar se a
lei fosse expressa nesse sentido, o que não ocorreria hoje em razão da
expressão “o homem e a mulher” daquele dispositivo legal. Ou seja:
enxergam uma “proibição implícita” ante a redação do citado dispositivo
legal.
Primeiramente, é de se notar que dita interpretação é puramente
ideológica, desprovida de fundamento normativo que a justifique, na
medida em que o Código Civil não define nem tenta definir o que seria
família ou mesmo casamento, também não identificando o sexo dos
nubentes, limitando-se a estabelecer requisitos para a celebração do
matrimônio, elencar direitos e deveres aos cônjuges e disciplinar diversos
regimes de bens, regulamentando, por fim, o seu término e as questões
patrimoniais daí decorrentes44. A expressão “o homem e a mulher” não tem
o condão de impedir o casamento civil homoafetivo, na medida em que os
impedimentos matrimoniais são as proibições explicitamente apostas pela
lei no art. 1.521 ou em outros dispositivos esparsos que declaram a nulidade
ou anulabilidade do casamento civil. A referência a homem e mulher
significa tão somente a regulamentação do fato heteroafetivo, sem que isso
signifique a proibição do fato homoafetivo para a mesma finalidade, por
interpretação extensiva ou analogia.
Tanto é puramente ideológica a referida interpretação, que existia
mesmo na vigência do Código Civil de 1916, que não possuía nenhum
dispositivo com redação idêntica ou mesmo similar à do atual art. 1.514.
Foi por isso que sempre se afirmou que se trataria de hipótese de
“inexistência jurídica” do casamento civil entre pessoas do mesmo sexo,
por suposta ausência de “pressuposto fático essencial” a dito fato jurídico.
O completo descabimento da teoria da inexistência será enfocado em
capítulo posterior, mas adianta-se que não passa dita teoria de puro
subjetivismo doutrinário sem nenhum embasamento normativo que o
fundamente, que serve unicamente para burlar a regra segundo a qual não
há nulidade sem texto (ou seja, a obrigatoriedade de texto normativo
expresso que declare a ineficácia jurídica do fato em questão), tendo em
vista que o resultado prático da declaração de “inexistência jurídica” é
exatamente o mesmo da declaração de nulidade absoluta: a expurgação de
todos os efeitos jurídicos produzidos pelo fato em questão – ou seja,
eficácia ex tunc da decisão. Em razão disso, a teoria da inexistência jurídica
de atos que existiram no mundo fático é completamente inválida,
desprovida de embasamento técnico-jurídico, sendo inconstitucional por
afronta ao art. 5.º, II, da CF/1988, que exige enunciado normativo expresso
para se ter uma situação como juridicamente impossível ou, o que dá no
mesmo, a priori proibida, bem como ilícita por afrontar o caráter taxativo
dos impedimentos matrimoniais do artigo 1.521 do CC/2002, razão pela
qual não pode ser aceita.
Por outro lado, aquela interpretação proibitiva do casamento civil
homoafetivo é, evidentemente, discriminatória, pois visa garantir aos casais
homoafetivos menos direitos do que aqueles conferidos aos casais
heteroafetivos, tendo em vista que é só por meio do casamento civil que as
uniões amorosas podem usufruir de todas as benesses do Direito das
Famílias. Contudo, à luz do conteúdo jurídico do princípio da isonomia,
tem-se que qualquer lei que pretenda instituir um tratamento jurídico
diferenciado a determinada classe de indivíduos deve ter uma
fundamentação lógico-racional que justifique a discriminação pretendida
com base no critério distintivo erigido. Ou seja: nem mesmo o legislador
poderá criar discriminações arbitrárias, visto ter ele sua liberdade de
conformação materialmente restrita tanto pelo princípio da igualdade
quanto pelos dispositivos constitucionais em geral45.
Em outras palavras, caso a discriminação analisada não seja pautada
pela lógica e pela racionalidade, será flagrantemente inconstitucional e,
portanto, completamente descabida. Não é outra a lição da doutrina em
geral, da qual se pode citar, exemplificativamente, Roger Raupp Rios46,
Celso Antônio Bandeira de Mello47 e Viviane Girardi48.
No mesmo sentido, a decisão da Suprema Corte do Estado de
Massachusetts (EUA)49, ao declarar a inconstitucionalidade do não
reconhecimento do casamento civil homoafetivo:

A Constituição exige, no mínimo, que o exercício da autoridade


regulatória do Estado não seja “arbitrária ou caprichosa”
Commonwealth v. Henry’s Drywall Co. (...). Sob a égide das garantias
da igualdade e da liberdade, a autoridade regulatória deve, no
mínimo, trazer “um propósito legítimo de uma forma racional”; uma
lei deve “ter uma relação racional com um objetivo legislativo
permissível” Rushworth v. Registrar of Motor Vehicles (...)

Ademais, é de se lembrar que não existem “proibições implícitas” em


Direito, ante o teor do art. 5.o, II, da CF/1988, segundo o qual ninguém será
obrigado a fazer ou deixar de fazer algo senão em virtude de lei, pois se as
pessoas só estão proibidas de fazer algo em virtude de lei (leia-se, texto
normativo), isso significa que somente é proibido juridicamente algo que
seja expressamente vedado pela lei50. Nesse sentido, caso a lei se limite a
regulamentar um fato e deixar outro sem regulamentação e sem proibição,
isso significa a existência de uma lacuna na lei, não de uma “proibição
implícita”. Afinal, a legalidade estrita não se aplica a particulares, mas
apenas à Administração Pública, donde, considerando que não está proibido
o casamento civil entre cidadãos do mesmo sexo, tem-se que tal situação
configura uma lacuna da lei.
Por outro lado, os defensores da tese da “proibição implícita”
aparentemente ignoram que, havendo omissão da lei, deve o aplicador do
Direito enfrentar a questão sob a ótica da analogia, dos costumes e dos
princípios gerais do Direito, nos termos dos arts. 4.º da LINDB e 126 do
CPC. Isso significa que, dada a omissão da lei sobre as uniões
homoafetivas, os intérpretes devem verificar se tal lacuna não é passível de
supressão mediante a interpretação extensiva e a analogia. Portanto,
considerando que a lei não proíbe em nenhum momento o casamento civil
homoafetivo, mas apenas se limita a regulamentar o casamento civil
heteroafetivo, sem nada dispor sobre aquele, tem-se o caso de verdadeira
omissão legal, que se caracteriza pela ausência de disposição expressa no
ordenamento jurídico acerca do tema, seja pelo seu reconhecimento ou pela
sua proibição. No entanto, em hipóteses de omissão legal, a proteção
jurídica ofertada à situação expressamente citada pela norma deverá ser
estendida à situação não citada caso esta seja idêntica ou fundamentalmente
idêntica à regulamentada, por meio da interpretação extensiva ou da
analogia, respectivamente.
Afinal, a interpretação extensiva é técnica hermenêutica de
interpretação que visa à integração do ordenamento jurídico com a
realidade, no sentido de suprir (assim como a analogia) as omissões
cometidas pelo legislador (constituinte e/ou infraconstitucional) quando da
elaboração do texto normativo, superando o entendimento que usualmente
se tem sobre ele51. Pois bem: o “entendimento que usualmente se tem” nos
dias de hoje, no que tange ao casamento civil e à união estável, é o de que
estes poderiam ser formados apenas por pessoas de sexos diversos.
Contudo, isso é apenas consequência do fato de constituírem os
heterossexuais cerca de 90% da população mundial. Todavia, é de se
ressaltar que o fato de alguém pertencer a uma minoria não significa, de
forma alguma, que este alguém terá seus direitos tolhidos tão somente por
fazer parte de um grupo minoritário. Isso porque, como demonstrado, a
discriminação juridicamente válida supõe necessariamente uma
fundamentação logicamente racional que a fundamente, sob pena de
inconstitucionalidade por afronta à isonomia.
Assim, como a lei foi omissa no que tange à união homoafetiva, no
sentido de não proibi-la, mas, igualmente, não regulamentá-la, deve-se
verificar se a legislação existente no que tange à união heteroafetiva pode
ser estendida àquela primeira. Isso se faz pela interpretação teleológica, por
meio da qual se analisa o verdadeiro intuito (objeto de proteção) do texto
normativo, indo-se além da letra fria deste, mesmo porque a interpretação
teleológica sempre prevalece sobre a interpretação gramatical, visto que
esta existe tão somente para materializar, em palavras, a teleologia
(finalidade) pretendida com o texto normativo em questão. Em outras
palavras, deve-se verificar se existe na situação não citada pelo texto
normativo o mesmo elemento valorativamente protegido naquela por ele
expressamente citada – se existir, estende-se o regime jurídico à situação
não mencionada, por meio da interpretação extensiva ou da analogia.
No que tange ao casamento civil e à união estável, o elemento
protegido pelos textos normativos respectivos é a família, família esta que
se forma pelo amor romântico que vise a uma comunhão plena de vida e
interesses, de forma pública, contínua e duradoura, amor este que é o
elemento formador da família contemporânea (amor familiar). O sentido da
relação matrimonial melhor se expressa pela noção de comunhão de vidas,
ou comunhão de afetos52. Ademais, se nada fala sobre homoafetividade ou
heteroafetividade, o Código Civil declina a finalidade do casamento civil no
seu art. 1.511: a comunhão plena de vida, com base na igualdade de direitos
e deveres dos cônjuges53. É inquestionavelmente o envolvimento afetivo
que gera o desejo de constituir família54 e, portanto, o desejo de casar.
Nesse sentido, é de se lembrar que o pressuposto da interpretação
extensiva é o de que o legislador apenas exemplificou na redação do
dispositivo legal, ao citar a situação mais corriqueira e não ter expressado a
forma menos comum, o que teria ocorrido por um lapso ou mesmo por
ignorância acerca do tema. Ignorância porque pode ele não ter tido ciência
de que a situação por ele não citada expressamente se enquadra
perfeitamente no objeto de proteção da norma por ele criada.
No que tange à homoafetividade, é notório que durante a maior parte
do século XX foi ela considerada uma doença, uma patologia que mereceria
tratamento médico para ser “curada”, o que só foi definitivamente
desmistificado em 1993, quando a Organização Mundial de Saúde extirpou
o diagnóstico de “homossexualismo” de sua Classificação Internacional de
Doenças, passando a definir tal conduta como “homossexualidade”, visto
que o sufixo “-ismo” significa “doença” e o sufixo “-dade” significa “modo
de ser”. O que se quer dizer é que, quando foi elaborado e aprovado o
Código Civil de 1916 e mesmo o Projeto do Código Civil de 2002, o
legislador tinha a errônea compreensão (e/ou o preconceito) de ser a
homoafetividade uma doença ou um desvio, donde teria se referido ao
casamento civil apenas como o ato realizado por um homem e uma mulher.
Contudo, conforme explicitado em capítulo anterior, o objeto de proteção
do Direito das Famílias contemporâneo, no que tange às uniões amorosas, é
o amor que vise a uma comunhão plena de vida e interesses, de forma
pública, contínua e duradoura, donde o elemento essencial do casamento
civil e da união estável protegido pela lei é a família conjugal, formada por
dito amor familiar. Dessa forma, considerando que o mesmo amor familiar
existente nas uniões heteroafetivas está presente nas uniões homoafetivas, é
inegável que ambas as relações merecem a proteção legal do casamento
civil.
O leitor deve se fazer a seguinte pergunta: por que a lei confere
especial proteção jurídica à união amorosa por meio do casamento civil? A
resposta para esta questão é simples: essa proteção decorre do interesse do
Estado em proteger a entidade familiar formada pelo amor que vise a uma
comunhão plena de vida e interesses, de forma pública, contínua e
duradoura, existente nessa união (pois a família existente entre casais é
formada por esse amor), além de querer a estabilidade das relações
familiares por meio do casamento civil. Dita estabilidade ocorre pela
extensa preocupação que a legislação tem com os contornos do casamento
civil, que é uma união que o Estado quer que dure, o que só ocorrerá se
presente o dito amor familiar, donde se percebe claramente que é ele que
fundamenta as leis do casamento civil e da união estável e,
consequentemente, é por elas protegido.
Nessa linha de raciocínio, considerando que o amor familiar é o
elemento formador da família contemporânea no que tange à união amorosa
de duas pessoas e que esse mesmo amor familiar existente nas uniões
heteroafetivas existe nas uniões homoafetivas, então fica evidente que o
elemento que a lei do casamento civil visa proteger existe nas duas
situações, por ser ele o elemento caracterizador da família conjugal, que é o
elemento valorativamente protegido pelo casamento civil e pela união
estável.
Reitere-se aqui, por oportuno, o conteúdo jurídico da Teoria
Tridimensional do Direito, que demonstra que a norma é oriunda da
valoração de um fato (norma = fato + valor), donde é o valor que enseja a
proteção da norma jurídica, e não o fato propriamente dito. Vale dizer, o
valor é o que atribui significação ao fato abarcado pela norma55, razão
pela qual, se o elemento valorativo que ensejou a proteção de determinada
situação fática estiver presente em outra, a interpretação extensiva ou a
analogia demandará pela extensão do regime jurídico normatizado a esta
última. Isso quer dizer que, por mais que a lei atualmente traga a expressão
“o homem e a mulher” (ou seja, o “fato” heteroafetivo), o valor por ela
protegido não é a heterossexualidade, mas o amor de duas pessoas que
gera uma entidade familiar, por meio de uma comunhão plena de vida e
interesses, contínua, duradoura e com o intuito de constituir família.
Ou seja, as uniões homoafetivas são idênticas às heteroafetivas, tendo
em vista que em ambos os casos temos duas pessoas que se amam e querem
desenvolver uma comunhão plena de vida e interesses, de forma pública,
contínua e duradoura uma com a outra, amor este que é o elemento
formador da família contemporânea. Dessa forma, é aplicável a
interpretação extensiva à lei do casamento civil para possibilitá-lo às uniões
homoafetivas. Contudo, lamentavelmente, não tem sido incomum a
existência de argumentações no sentido de que as uniões homoafetivas
seriam diversas das heteroafetivas, embora não se diga o que caracterizaria
tal “diferença” – o que só pode decorrer da premissa equivocada de que a
diversidade de sexos em um caso e a homogeneidade deles em outro
caracterizaria uma “diferença” entre as duas uniões amorosas, o que é
absurdo, pois a família oriunda da união amorosa de duas pessoas é
formada pelo amor familiar, existente em ambas as uniões, sendo este o
único elemento a considerar na hipótese concreta. Contudo, na hipótese de
se considerar que o fato de termos um homem e uma mulher em um caso e
duas pessoas do mesmo sexo em outro caracterizaria uma “diferença”, com
o que não concordo, mesmo nesse caso deve ser reconhecida a
possibilidade jurídica do casamento civil homoafetivo. Isso porque, por
mais que se vislumbre essa pseudodiferença, terá que se considerar que as
duas situações são idênticas no essencial, visto que ambas formam uma
família conjugal por serem pautadas pelo amor romântico que vise a uma
comunhão plena de vida e interesses, de forma pública, contínua e
duradoura, que é o elemento formador da família contemporânea. Ora, se o
amor familiar é a base da família (e, portanto, do Direito das Famílias),
então é inafastável a conclusão segundo a qual as uniões homoafetivas são
idênticas no essencial às uniões heteroafetivas, razão pela qual deverá ser
reconhecida a possibilidade jurídica do casamento civil homoafetivo por
analogia, que, juntamente com a interpretação extensiva, é sucedâneo da
isonomia56.
No sentido de ser o casamento civil uma comunidade de amor, veja-se
o trecho inicial da citada decisão da Suprema Corte do Estado de
Massachusetts (EUA)57:

O casamento é uma instituição social vital. O compromisso


exclusivo de duas pessoas uma à outra nutre amor e mútua
assistência; ele traz estabilidade à nossa sociedade. Para aqueles que
decidem se casar, e para os seus filhos, o casamento proporciona uma
fartura de benefícios legais, financeiros e sociais. Em troca, ele impõe
pesadas obrigações legais, financeiras e sociais. A questão diante de
nós é se, de acordo com a Constituição, o Estado pode negar estas
proteções, benefícios e obrigações conferidas pelo casamento civil a
duas pessoas do mesmo sexo que desejam se casar. Nós concluímos
que ele não pode. A Constituição afirma a dignidade e a igualdade de
todos os indivíduos. Ela proíbe a criação de cidadãos de segunda
classe. Ao chegar à nossa conclusão, nós demos total deferência aos
argumentos trazidos pelo Estado. Mas ele falhou na incumbência de
identificar alguma razão constitucionalmente adequada para a
negativa do casamento civil aos casais formados por pessoas do
mesmo sexo. Nós estamos cientes de que a nossa decisão marca uma
mudança na história da nossa lei do casamento. Muitas pessoas têm
convicções religiosas, morais e éticas profundamente consolidadas no
sentido de que o casamento deveria ser limitado à união de um homem
e uma mulher, e que a conduta homossexual é imoral. Muitos têm
igualmente fortes convicções religiosas, morais e éticas no sentido de
que os casais formados por pessoas do mesmo sexo têm o direito se
casar, e que as pessoas homossexuais não deveriam ser tratadas de
forma diferente daquela conferida a seus vizinhos heterossexuais.
Nenhuma dessas visões responde à pergunta diante de nós. Nossa
preocupação é com a Constituição como uma carta de governo para
todas as pessoas dentro do seu alcance. “Nossa obrigação é definir a
liberdade de todos, não estabelecer o nosso próprio código moral”.
Lawrence v. Texas (...). Uma pessoa que entra em uma união íntima e
exclusiva com outra do mesmo sexo e tem acesso barrado às
proteções, benefícios e obrigações do casamento civil é arbitrariamente
privada do acesso a uma das instituições mais estimadas e
compensatórias da nossa comunidade. Essa exclusão é incompatível
com os princípios constitucionais do respeito à autonomia individual e
à igualdade perante a lei.

Em suma: a lei foi omissa no que tange à menção da união entre duas
pessoas do mesmo sexo – não a proibiu, mas ao mesmo tempo não a
regulamentou de forma expressa. Para casos como estes, existem a
interpretação extensiva e a analogia, que visam justamente estender, para
uma situação que possua exatamente o mesmo valor protegido pela norma,
a mesma proteção jurídica conferida à situação enunciada de forma
expressa, não obstante a omissão legal.
Assim, no caso do casamento civil, apesar de o art. 1.514 do CC/2002
não ter deixado expresso que ele é possível a duas pessoas do mesmo sexo,
tal possibilidade jurídica é uma decorrência lógica dos princípios da
igualdade e da interpretação extensiva ou da analogia, uma vez que ditas
técnicas de interpretação jurídica visam garantir que pessoas em situações
idênticas ou idênticas no essencial a outras expressamente
citadas/regulamentadas pelo texto normativo recebam um tratamento
igualitário em relação a estas, em que pese a eventual omissão da norma
jurídica.
Ou seja, as uniões homoafetivas são idênticas às heteroafetivas, tendo
em vista que, em ambos os casos, temos duas pessoas que se amam e que
visam uma comunhão plena de vida e interesses, de forma pública, contínua
e duradoura. Assim, deve ser aplicada a interpretação extensiva ao art.
1.514 do CC/2002 para possibilitar o casamento civil homoafetivo.
Contudo, caso se entenda que ditas uniões não seriam idênticas pelo
simples fato de termos, em um caso, duas pessoas do mesmo sexo e, em
outro, duas pessoas de sexos diversos (o que considero irrelevante, pois a
família forma-se pela união amorosa pública, contínua e duradoura, amor
este presente em ambos os casos), é inequívoco que se trata de duas
situações fundamentalmente idênticas, visto que o elemento formador da
família contemporânea é o citado amor familiar. Adotada essa posição,
deverá ser aplicada a analogia no citado dispositivo legal para possibilitar o
casamento civil homoafetivo.
Dessa forma, verifica-se inexistir no ordenamento jurídico brasileiro
qualquer proibição ao casamento civil homoafetivo, mas apenas uma lacuna
na lei, passível de supressão pela interpretação extensiva ou pela analogia.
A única hipótese em que se poderia proibir legalmente o casamento civil
homoafetivo seria a inserção expressa de tal hipótese entre os taxativos
impedimentos matrimoniais, como fazia o ordenamento jurídico português
até 2010 (quando foi alterado o Código Civil Português para se permitir
expressamente o direito ao casamento civil homoafetivo), muito embora
isso ensejasse uma flagrante inconstitucionalidade por afronta à isonomia,
já que as situações (uniões homoafetiva e heteroafetiva) são idênticas ou, no
mínimo, idênticas no essencial, donde, sendo o casamento civil um direito
de todos, passível de restrição tão somente pelo aspecto material da
isonomia, torna-se evidente que homossexuais têm o direito de se casar com
pessoas do mesmo sexo, dada a arbitrariedade de posição em sentido
contrário58.
Por outro lado, reitere-se que a Lei Maria da Penha reconheceu o status
jurídico-familiar das uniões homoafetivas em seus arts. 2.o e 5.o, parágrafo
único. Com efeito, a partir do momento em que se concebe a formação de
uma família como direito fundamental inerente à pessoa humana, tem-se
que o art. 2.o da Lei Maria da Penha reconheceu expressamente que as
pessoas homossexuais têm o direito de formarem famílias conjugais
homoafetivas e, consequentemente, de terem-nas reconhecidas e protegidas
pelo Direito das Famílias. Ademais, quando o parágrafo único do art. 5.o da
referida lei enunciou que as relações pessoais dispostas no mesmo
independem de orientação sexual, reconheceu expressamente o status
jurídico-familiar das uniões homoafetivas, alçando-as expressamente à
condição de entidades familiares, embora não tenha regulado seus efeitos na
esfera cível.
Com efeito, ao apontar que a família é compreendida como uma
comunidade formada por indivíduos que são ou se consideram aparentados
por vontade expressa (art. 5.o, II), e que as relações pessoais dispostas em
todo esse artigo independem de orientação sexual (art. 5.o, parágrafo único),
a Lei Maria da Penha afirmou que entende por família também a união
homoafetiva – pois, do contrário, as relações pessoais dispostas no inc. II
dependeriam de orientação sexual ou do sexo de um dos companheiros, o
que contraria frontalmente o parágrafo único desse dispositivo legal.
Dessa forma, caracterizando-se as uniões homoafetivas como entidades
familiares, é inafastável o cabimento da interpretação extensiva ou da
analogia como forma de se possibilitar o casamento civil homoafetivo,
tendo em vista que este visa proteger/abarcar justamente as
famílias/entidades familiares.
Nesse sentido, vale reiterar a lição de Maria Berenice Dias59 quando
afirma que “agora, a partir da nova definição de entidade familiar, trazida
pela Lei Maria da Penha, não mais cabe questionar a natureza dos vínculos
formados por pessoas do mesmo sexo. Ninguém pode continuar
sustentando que, em face da omissão legislativa, não é possível emprestar-
lhes efeitos jurídicos. Há uma nova regulamentação legislativa da família.
No dizer de Roberto Lorea, ‘derruba-se, enfim, a última barreira –
meramente formal – para a democratização do acesso ao casamento no
Brasil: A nova definição legal da família brasileira se harmoniza com o
conceito de casamento entre cônjuges do art. 1.511, do Código Civil, não
apenas deixando de fazer qualquer alusão à oposição de sexos, mas
explicitando que a heterossexualidade não é condição para o casamento’”.
Ou, na lição de Roberto Lorea Arriada: “Essa discussão adquire novos
contornos quando a Lei n. 11.340, de 2006 [Lei Maria da Penha], traz uma
nova definição do que seja a família, que passa a ser juridicamente
compreendida como a ‘comunidade formada por indivíduos que são ou se
consideram aparentados, unidos por laços naturais, por afinidade ou por
vontade expressa; independentemente de orientação sexual’ (art. 5.o, inciso
II, e parágrafo único)”, donde afirma com precisão que “a nova definição
legal da família brasileira se harmoniza com o conceito de casamento ‘entre
cônjuges’ do art. 1.511 do Código Civil, não apenas deixando de fazer
qualquer alusão à oposição de sexos, mas explicitando que a
heterossexualidade não é condição para o casamento”, razão pela qual
“derruba-se, enfim, a última barreira – meramente formal – para a
democratização do acesso ao casamento no Brasil”60.
Por todo o exposto, verifica-se a total possibilidade de o casamento
civil homoafetivo nos dias de hoje por meio da interpretação extensiva ou,
no mínimo, da analogia, tendo em vista que o mesmo valor protegido na
união heteroafetiva existe na união homoafetiva, valor este que é o amor
romântico que vise a uma comunhão plena de vida e interesses, de forma
pública, contínua e duradoura, que é o elemento formador da família
contemporânea.

3.1 Uma inconstitucionalidade por omissão. Inexistência de “ativismo


judicial” no reconhecimento do casamento civil, da união estável e
da adoção por casais homoafetivos. Alternativamente:
constitucionalidade de supressão de lacunas inconstitucionais
mediante “práticas de ativismo judicial” concretizadoras dos
princípios constitucionais (cf. Ministro Celso de Mello). STF,
ADPF 132 e ADI 4.277
Demonstrou-se no tópico anterior que a letra da lei não proíbe o
casamento civil homoafetivo, sendo que tal “proibição” decorre unicamente
de uma descabida interpretação restritiva que se aplica aos dispositivos
legais relativos à união matrimonializada civilmente, restrição esta que se
afigura inconstitucional por afronta à isonomia. Demonstrou-se, assim, que
o que existe é uma lacuna normativa, nada mais.
Disso decorre uma inconstitucionalidade por omissão, na medida em
que o benefício concedido aos casais heteroafetivos é legítimo: estes
evidentemente têm o direito de se casar civilmente e de auferir os citados
benefícios do casamento civil. A inconstitucionalidade consiste apenas no
fato de a lei não abarcar expressamente as uniões homoafetivas em seu
âmbito, sendo que a inconstitucionalidade por omissão enseja
necessariamente a extensão do regime jurídico à situação não citada/não
regulamentada por meio da interpretação extensiva ou da analogia, como
exigência da isonomia.
Assim, apenas para que não reste nenhuma dúvida, deve-se notar que,
dada a ausência de motivação lógico-racional que justifique a concessão de
menos direitos às uniões homoafetivas em relação aos direitos concedidos
às uniões heteroafetivas, percebe-se a inconstitucionalidade por omissão no
que tange à lacuna normativa que deixa de reconhecer expressamente a
possibilidade jurídica do casamento civil homoafetivo, razão pela qual tal
lacuna inconstitucional deve ser colmatada pela interpretação extensiva ou
pela analogia, como exige a isonomia.
Nesse sentido, valem as considerações do Ministro Celso de Mello61 no
julgamento da ADPF 132 e da ADI 4.277:

Nem se alegue, finalmente, no caso ora em exame, a ocorrência


de eventual ativismo judicial exercido pelo Supremo Tribunal Federal,
especialmente porque, dentre as inúmeras causas que justificam esse
comportamento afirmativo do Poder Judiciário, de que resulta uma
positiva criação jurisprudencial do direito, inclui-se a necessidade de
fazer prevalecer a primazia da Constituição da República, muitas vezes
transgredida e desrespeitada, como na espécie, por pura e simples
omissão dos poderes públicos. Na realidade, o Supremo Tribunal
Federal, ao suprir as omissões inconstitucionais dos órgãos estatais e
ao adotar medidas que objetivem restaurar a Constituição violada pela
inércia dos poderes do Estado, nada mais faz senão cumprir a sua
missão constitucional e demonstrar, com esse gesto, o respeito
incondicional que tem pela autoridade da Lei Fundamental da
República. Práticas de ativismo judicial, embora moderadamente
desempenhadas pela Corte Suprema em momentos excepcionais,
tornam-se uma necessidade institucional, quando os órgãos do Poder
Público se omitem ou retardam, excessivamente, o cumprimento de
obrigações a que estão sujeitos, ainda mais se se tiver presente que o
Poder Judiciário, tratando-se de comportamentos estatais ofensivos à
Constituição, não pode se reduzir a uma posição de pura passividade.
A omissão do Estado – que deixa de cumprir, em maior ou em menor
extensão, a imposição ditada pelo texto constitucional – qualifica-se
como comportamento revestido da maior gravidade político-jurídica,
eis que, mediante inércia, o Poder Público também desrespeita a
Constituição, também ofende direitos que nela se fundam e também
impede, por ausência (ou insuficiência) de medidas concretizadoras, a
própria aplicabilidade dos postulados e princípios da Lei Fundamental
(...) O desprestígio da Constituição – por inércia de órgãos meramente
constituídos – representa um dos mais graves aspectos da patologia
constitucional, pois reflete inaceitável desprezo, por parte das
instituições governamentais, da autoridade suprema da Lei
Fundamental do Estado, que não tolera, porque inadmissível, o
desrespeito, pela maioria, dos direitos e interesses de grupos
minoritários. Esse protagonismo do Poder Judiciário, fortalecido pelo
monopólio da última palavra de que dispõe o Supremo Tribunal
Federal em matéria constitucional (MS 26.603/DF, Rel. Min. Celso de
Mello, v.g.), nada mais representa senão o resultado da expressiva
ampliação das funções institucionais conferidas ao próprio Judiciário
pela vigente Constituição, que converteu os juízes e os Tribunais em
árbitros dos conflitos que se registram no domínio social e na arena
política, considerado o relevantíssimo papel que se lhes cometeu,
notadamente a esta Suprema Corte, em tema de jurisdição
constitucional. Daí a plena legitimidade jurídico-constitucional da
decisão que o Supremo Tribunal Federal está a proferir neste
julgamento, que representa verdadeiro marco histórico no processo de
afirmação e de consolidação dos direitos da minoria homossexual em
nosso País. Torna-se de vital importância reconhecer, Senhor
Presidente, que o Supremo Tribunal Federal – que é o guardião da
Constituição, por expressa delegação do poder constituinte – não pode
renunciar ao exercício desse encargo, pois, se a Suprema Corte falhar
no desempenho da gravíssima atribuição que lhe foi outorgada, a
integridade do sistema político, o amparo das liberdades públicas (com
a consequente proteção dos direitos das minorias), a estabilidade do
ordenamento normativo do Estado, a segurança das relações jurídicas e
a legitimidade das instituições da República restarão profundamente
comprometidas.

Afinal, consoante bem delineado pelo Ministro Celso de Mello62 no


referido voto, “A força normativa de que se acham impregnados os
princípios constitucionais e a intervenção decisiva representada pelo
fortalecimento da jurisdição constitucional exprimem aspectos de alto
relevo que delineiam alguns dos elementos que compõem o marco
doutrinário que confere suporte teórico ao neoconstitucionalismo, em
ordem a permitir, numa perspectiva de implementação concretizadora, a
plena realização, em sua dimensão global, do próprio texto normativo da
Constituição”, visto que, no caso em análise, “o postulado constitucional da
busca da felicidade, que decorre, por implicitude, do núcleo de que se
irradia o princípio da dignidade da pessoa humana, assume papel de
extremo relevo no processo de afirmação, gozo e expansão dos direitos
fundamentais, qualificando-se em função de sua própria teleologia, como
fator de neutralização de práticas ou de omissões lesivas cuja ocorrência
possa comprometer, afetar ou, até mesmo, esterilizar direitos e franquias
individuais”.
Cite-se, em complemento, as considerações do Ministro Gilmar
Mendes63 no julgamento da ADPF 132 e da ADI 4.277, relativamente à
necessidade de uma atuação positiva da jurisdição constitucional para
garantia de direitos fundamentais dos cidadãos quando estes estejam sendo
obstados por conta de inércia inconstitucional do legislador: “A assunção de
uma atuação criativa pelo Tribunal pode ser determinante para a solução de
antigos problemas relacionados à inconstitucionalidade por omissão, que
muitas vezes causa entraves para a efetivação de direitos e garantias
fundamentais assegurados pelo texto constitucional. (...) Eu comemoro e
comungo também desse entendimento. É sabido que sou um crítico
ferrenho daquele argumento de que, quando em vez, lançamos mão: de que
não podemos fazer isto ou aquilo porque estamos nos comportando como
legislador positivo ou coisa que o valha. Não há nenhuma dúvida de que
aqui o Tribunal está assumindo um papel ativo, ainda que provisoriamente,
pois se espera que o legislador autêntico venha a atuar. No entanto, é
inequívoco que o Tribunal está dando uma resposta de caráter positivo. Na
verdade, essa afirmação – eu já tive oportunidade de destacar – tem de ser
relativizada diante de pretensões que envolvem a produção de norma ou a
produção de um mecanismo de proteção. Deve haver aí uma resposta de
caráter positivo. E se o sistema jurídico, de alguma forma, falha na
composição desta resposta aos cidadãs, e se o Poder Judiciário é chamado,
de alguma forma, a substituir o próprio sistema político nessa inação, óbvio
que a resposta só pode ser de caráter positivo. É certo que essa própria
afirmação já envolve certo engodo metodológico. Eu diria que até a fórmula
puramente anulatória, quando se cassa uma norma por afirmá-la
inconstitucional – na linha tradicional de Kelsen –, já envolve também uma
legislação positiva no sentido de se manter o status quo, um modelo
jurídico contrário à posição que estava anteriormente em vigor”.
Ou, nas palavras do Ministro Luiz Fux64, com base nas lições de
Dworkin: “O governo – e nós somos o governo, nós praticamos atos de
governo também, atos que são inerentes ao Poder Público – se o legislador
não faz, compete ao Tribunal suprir essa lacuna. E aqui ‘governo’ significa
a administração dos interesses das partes que não conseguiram, por
autocomposição, chegar a uma solução” (g.n.).
Em verdade, consoante instigante título de artigo de Jorge Luiz Ribeiro
de Medeiros, interpretar a Constituição não é ativismo judicial65, ao menos
no sentido pejorativo usualmente atribuído a tal expressão, normalmente
compreendida como uma decisão que usurpa a competência do Parlamento
(“uma disfunção no exercício da função jurisdicional em detrimento,
notadamente, da função legislativa”66), ou, no mínimo, que atua em área
que inicialmente seria de competência de um dos outros Poderes
(“associando a palavra a uma conduta invasiva das competências dos
demais poderes e, por que não dizer, arbitrária, porque seria implementada
ao arrepio do que a própria Constituição fixa quando cuida da divisão do
exercício do Poder”67). Não se pode entender a decisão do STF aqui
comentada como “ativista” neste sentido pejorativo. Afinal, como bem dito
pelo Ministro Gilmar Mendes em seu voto no julgamento da ADPF 132 e
da ADI 4.277, o fato de a Constituição proteger a união estável entre
homem e mulher não significa uma negativa de proteção à união estável
homoafetiva68, razão pela qual concluiu no sentido de que “A inexistência
de expressa vedação constitucional à formação de uma união homoafetiva,
a constatação de sua aproximação às características e finalidades das
demais formas de entidades familiares e a sua compatibilidade, a priori,
com os fundamentos constitucionais da dignidade da pessoa humana, da
liberdade, da autodeterminação do desenvolvimento do indivíduo, da
segurança jurídica, da igualdade e da vedação à discriminação por sexo e,
em sentido mais amplo, por orientação sexual apontam para a possibilidade
de proteção e de reconhecimento jurídico da união entre pessoas do mesmo
sexo no atual estágio de nosso constitucionalismo”, pois “há um tipo de
inércia legislativa relacionada a um dever de proteção de direitos
fundamentais básicos, de direitos de minoria. Isso reivindica, então, a
atuação da Corte”69.
Logo, o reconhecimento da união estável homoafetiva por
interpretação extensiva ou analogia não gera nenhum “rompimento” com o
texto constitucional, por ele não possuir texto normativo que proíba essa
exegese constitucional inclusiva, na medida em que dizer que é reconhecida
a união estável “entre o homem e a mulher” é algo distinto de uma fala que
dissesse que a união estável seria reconhecida “apenas” entre o homem e a
mulher – como não há um tal “apenas/somente/unicamente”, não há limites
semânticos no texto do art. 226, § 3.º, da CF/1988 que impeçam a exegese
constitucional inclusiva aqui defendida”.
Ademais, como bem diz o Jorge Luiz Ribeiro de Medeiros, no citado
artigo, “A interpretação que reconhece as relações homoafetivas e as
equipara a união estável não rompe com o texto constitucional nem parte da
ideia de normas constitucionais inconstitucionais; o que esse
reconhecimento propicia, em verdade, é a interpretação da Constituição de
maneira unitária, a partir de direitos já existentes no plano constitucional,
não caracterizando, dessa forma, um ativismo judicial que cria direitos não
previstos pelo ordenamento”, pois “Negar a possibilidade de uma entidade
familiar homossexual e de uma união estável homossexual, que embora não
numerada, está presente na Constituição, é negar que a família deve ser
regulamentada de maneira coerente com o princípio de liberdade, presente
em nosso ordenamento, quanto à sua constituição e de igualdade, também
presente em nosso ordenamento, quanto à possibilidade de acesso a
diferentes casais, independentemente de sua orientação sexual. É entender
que todas as famílias são livres e iguais, mas algumas são mais livres e
iguais que outras”. Continua o autor no sentido de que “O entendimento
pela necessidade de alteração textual para a inclusão e reconhecimento de
famílias homossexuais, por mais que tenha uma preocupação legítima com
aspectos democráticos, acaba por ser antidemocrático, na medida em que
procura submeter a uma discussão majoritária uma proteção que o
ordenamento já concede à diversidade de maneira contramajoritária”,
explicando que “Não se pode submeter a uma discussão de maioria a
possibilidade ou não de casais homossexuais terem uma constituição
familiar reconhecida pelo Direito. [pois] Esse reconhecimento já existe
como decorrência de uma interpretação adequada, voltada para a afirmação
de pluralidade, igualdade e liberdade, que nada tem de meramente moral,
tampouco pode ser retirada (ou negada) pela simples vontade da maioria”.
Cita como exemplo a situação da África do Sul: “A aprovação do
casamento homossexual na África do Sul se deu de modo muito semelhante
ao ocorrido no Canadá. A discussão iniciou-se na Suprema Corte de
Apelações da África do Sul, na decisão exarada no caso 232/2003, em que o
tribunal entendeu, a partir da reconstrução do significado de casamento com
base em princípios constitucionais, notadamente o princípio da igualdade, a
constitucionalidade do casamento entre pessoas do mesmo sexo e, além, a
inconstitucionalidade da manutenção da exclusão da possibilidade do
casamento homossexual”. Continua a justificação da validade desta exegese
com as seguintes considerações da Exposição de Motivos da Ley 13/2005,
que promulgou o casamento civil homoafetivo na Espanha, segundo a qual
“Certamente, a Constituição, ao encomendar ao legislador a configuração
normativa do matrimônio, não exclui de forma alguma uma relação que
delimite as relações de casal de uma forma diferente do que já tenha
existido ao momento, regulação que dê abrigo às novas formas de relação
afetiva. (...) Assim, a promoção da igualdade efetiva dos cidadãos no livre
desenvolvimento de sua personalidade (artigos 9.2 e 10.1 da Constituição),
a preservação da liberdade em que as formas de convivência se referem
(artigo 1.1 da Constituição) e a instauração de um marco de igualdade real
no desfrute dos direitos sem discriminação alguma por razão de sexo,
opinião ou qualquer outra condição pessoal ou social (artigo 14 da
Constituição) são valores consagrados constitucionalmente, plasmados que
devem ser no reflexo da regulação de normas que delimitam o status do
cidadão, em uma sociedade livre, pluralista e aberta”, e conclui que:

O direito à união estável homossexual já se encontra garantido


no ordenamento jurídico com base nos princípios elencados
(igualdade, liberdade, dignidade e abertura para entidades familiares
para além daquelas expressamente previstas no texto constitucional).
(...) Se pretende-se levar os direitos a sério e interpretar-se a
Constituição principiologicamente de forma a garantir sua unidade,
deve-se reconhecer que não existe hoje, em nosso ordenamento,
fundamento jurídico algum apto a conferir normatividade a um
entendimento excludente da possibilidade de proteção constitucional
de famílias homossexuais. Reconhecer a possibilidade da união estável
homossexual se demonstra como consequência da garantia da
igualdade como forma de proteção da diferença e da diversidade,
permitindo, por conseguinte, o exercício de um desenvolvimento livre
de vida, inclusive quanto à possibilidade de escolha da forma de
proteção jurídica às diversas formas de relacionamento existentes, algo
já protegido e previsto em nosso ordenamento, como uma garantia
contramajoritária à diferença, não sendo possível de se submeter a uma
decisão política da maioria.

Logo, entendo que não se pode falar em “ativismo judicial” no


reconhecimento do casamento civil, da união estável e da adoção por casais
homoafetivos porque esse reconhecimento se pauta em lições de Direito
Civil Clássico, segundo as quais o fato de um texto normativo regulamentar
um fato sem proibir outro configura lacuna normativa passível de
colmatação por interpretação extensiva ou analogia e não “proibição
implícita” ao reconhecimento de igual juridicidade do fato não citado pelo
texto da norma relativamente àquele por ela expressamente regulamentado.
Não há como considerar como “ativismo judicial”, no sentido pejorativo
que a expressão tradicionalmente carrega (de atuação fora de suas funções
típicas ou, pior, de atuação ilegítima), uma decisão que cumpre dispositivo
legal que consagra a analogia como método decisório de competência do
Poder Judiciário, como fazem os arts. 4.º da LINDB e 126 do CPC, que
afirmam que, na omissão da lei, decidirá o juiz por analogia, por costumes e
pelos princípios gerais de Direito (que consagram a interpretação
extensiva). A menos que se venha dizer o absurdo de que a decisão por
analogia configuraria “ativismo judicial” supostamente “contrário” à teoria
da separação “dos poderes” e se pretenda declarar a “inconstitucionalidade”
de todas as decisões que aplicam o raciocínio analógico desde que o Direito
é Direito, não se pode dizer que a decisão do STF configuraria “ativismo
judicial” já que ela é justificável por raciocínio oriundo de lições de Direito
Civil Clássico.
Contudo, caso se entenda (equivocadamente) que haveria “ativismo
judicial” no raciocínio extensivo/analógico aqui defendido, então se tem por
pertinente a supracitada posição do Ministro Celso de Mello70, no sentido
de que “Práticas de ativismo judicial, embora moderadamente
desempenhadas pela Corte Suprema em momentos excepcionais, tornam-se
uma necessidade institucional, quando os órgãos do Poder Público se
omitem ou retardam, excessivamente, o cumprimento de obrigações a que
estão sujeitos, ainda mais se se tiver presente que o Poder Judiciário,
tratando-se de comportamentos estatais ofensivos à Constituição, não pode
se reduzir a uma posição de pura passividade”, uma vez que “O
desprestígio da Constituição – por inércia de órgãos meramente constituídos
– representa um dos mais graves aspectos da patologia constitucional, pois
reflete inaceitável desprezo, por parte das instituições governamentais, da
autoridade suprema da Lei Fundamental do Estado, que não tolera, porque
inadmissível, o desrespeito, pela maioria, dos direitos e interesses de grupos
minoritários”, restando aí “a plena legitimidade jurídico-constitucional” da
decisão do STF na ADPF 132 e da ADI 4.277, pois, nas palavras do
Ministro Gilmar Mendes neste julgamento, “é dever do Estado e ultima
ratio. É dever da Corte Constitucional e da jurisdição constitucional dar
essa proteção se, de alguma forma, ela não foi engendrada ou concebida
pelo órgão competente”71. Na verdade, parece-me que aqui a expressão
“ativismo judicial” foi usada pelo Ministro Celso de Mello como antônimo
de “autocontenção judicial”, sem entrar no mérito de ser uma decisão que
estaria a entrar em tema de competência do Congresso Nacional. Como
supramencionado, entendo que não há usurpação de competência do
Parlamento porque a colmatação de lacunas normativas está desde sempre
entre as competências do Poder Judiciário e, portanto, do Supremo Tribunal
Federal, o que se quis dizer aqui é que, ainda que se considere
(equivocamente) que a princípio essa lacuna teria que ser colmatada
unicamente pelo Parlamento, o fato de se tratar de uma lacuna
inconstitucional então investe no Poder Judiciário a prerrogativa de
colmatá-la para, assim, afastar o estado de inconstitucionalidade por
omissão.
De qualquer forma, entendemos absolutamente pertinente a afirmação
de Walter Claudius Rothenburg72 no sentido de que “importa mais a
finalidade de cumprir a Constituição, do que o sujeito (órgão) a quem as
atribuições (competências) foram conferidas. Seria possível, portanto,
admitir que outro sujeito, inicialmente não dotado de atribuição
constitucional, implementasse o comando constitucional. O controle de
constitucionalidade, realizado por órgão e procedimentos legítimos,
poderia chegar a esse ponto: destituir um sujeito constitucionalmente
previsto e autorizar outro a dar efetividade à Constituição. (...) Deste modo,
por meio da fiscalização da omissão inconstitucional, pode-se atingir o
âmago do problema, que se situa antes no objeto do controle (o desrespeito
constitucional) do que no sujeito responsável. (...) Ora, o que importa
fundamentalmente é suprir a lacuna inconstitucional, que constitui o objeto
do controle. A preocupação passa então novamente pelo sujeito, só que para
desinvestir o titular omisso e buscar outro capaz de colmatar a lacuna
indevida, realizando a tarefa constitucionalmente imposta. Agora, no
entanto, a questão do sujeito não aparece como principal (esta é a efetivação
do direito constitucional), apenas como meio de se obter aquele resultado. A
troca de sujeito apresenta-se, assim, como um momento da evolução dos
vínculos constitucionais e como uma satisfação à exigência de
implementação dos comandos constitucionais (particularmente os vazados
em termos programáticos). O órgão encarregado do controle de
constitucionalmente (principalmente o Judiciário) tem-se apresentado
como o mais adequado para conduzir (e às vezes mesmo assumir) esse
câmbio. Portanto, para dar cumprimento satisfatório aos fins estabelecidos
para o Estado (e a sociedade), instaura-se uma polêmica concorrência de
legitimidade entre, fundamentalmente, o legislador (tradicional
encarregado de emprestar integração aos ditames constitucionais carentes
de autoexecutoriedade) e o órgão judiciário incumbido de realizar a
fiscalização de constitucionalidade. (...) Já aqui se inicia o deslocamento
de competências constitucionalmente estabelecidas, com a vantagem –
marcante sob o aspecto prático – de que goza o Judiciário, de situar o
controle do descumprimento constitucional em um campo de mais fácil e
imediata aferição jurídica: a partir do instante em que o Judiciário
interfere na determinação do sujeito responsável pelo desempenho de
competências constitucionais, especifica-se uma ordem judicial, cujo
desrespeito é de mais simples caracterização e punição”. Afinal, consoante
a doutrina de Sarlet, Marinoni e Mitidiero:

Ao não se conceder a elaboração da norma faltante ao


Judiciário, confere-se ao Legislativo, implicitamente, o poder de
anular a Constituição, retornando-se, assim, ao tempo em que a
Constituição dependia da ‘boa vontade’ do legislador. Ora, não há
como compatibilizar o princípio da supremacia da Constituição com a
ideia de que esta pode vir a falhar em virtude da não atuação
legislativa. Isso seria, bem vistas as coisas, dar ao legislador o poder
de fazer a Constituição desaparecer. Ademais, admitir que o Judiciário
nada pode fazer quando o Legislativo se nega a tutelar as normas
constitucionais é não perceber que o dever de tutela da Constituição é
acometido ao Estado e não apenas ao Legislativo. Quando o
Legislativo não atua, um Tribunal Supremo ou uma Corte
Constitucional tem inescondível dever de proteger a Constituição.
Assim, se é a norma legislativa que falta para dar efetividade à
Constituição, cabe ao Judiciário, sem qualquer dúvida, elaborá-la,
evitando, assim, a desintegração da ordem constitucional. O princípio
da separação dos poderes confere ao Legislativo o poder de elaborar
as leis, mas, evidentemente, não lhe dá o poder de inviabilizar a
normatividade da Constituição. Aliás, tal poder certamente não é, nem
poderia ser, absoluto ou imune. Bem por isso, nos casos em que a
Constituição depende de lei ou tutela infraconstitucional, a inação do
Legislativo, exatamente por não ser vista como discricionariedade ou
manifestação de liberdade e sim violação de dever, deve ser suprida
pelo Judiciário mediante a elaboração da norma que deixou de ser
editada. Note-se, aliás, que há contradição em admitir a nulificação
judicial de norma legislativa e não aceitar a elaboração judicial da
norma que o Legislativo deixou de editar. Sem dúvida, há maior
censura quando se nulifica o ato do legislador do que quando se supre
a sua inação. A menos que se imagine, em total descompasso com o
constitucionalismo contemporâneo, que o legislador apenas pode
descurar da Constituição ao agir e não ao deixar de agir. (...) Assim, se
o prazo conferido ao Legislativo não é cumprido, e, portanto, a
declaração judicial da omissão inconstitucional não surte efeito, isto
não permite ao Judiciário parar por aí, como se o seu dever não fosse
o de remediar a ausência de tutela normativa, bastando-lhe declará-la.
Lembre-se de que o Judiciário tem o dever de suprir a falta de tutela do
Legislativo e não o de simplesmente pronunciá-la. Portanto, do não
atendimento do prazo o Judiciário pode extrair consequência de modo
a fazer surgir a norma, como no caso em que há norma legal para
situação idêntica, conforme ocorre na hipótese de omissão parcial no
sentido horizontal, em que se deixa de beneficiar grupo em violação ao
princípio da igualdade.

Assim, omissões inconstitucionais do Parlamento devem ser supridas


pela jurisdição constitucional (especialmente pela Suprema Corte ou
Tribunal Constitucional) para se garantir a supremacia da Constituição,
inclusive contra o Parlamento, razão pela qual, ou não se pode atribuir a
alcunha de “ativismo judicial” à decisão do STF na ADPF 132 e na ADI
4.277, ou, alternativamente, deve-se admiti-la como um “ativismo judicial
constitucionalmente válido (e obrigatório)”.

3.2 Mesmo instituições milenares, quando inseridas em um


ordenamento jurídico, devem respeitar os princípios e a
sistemática que o regem
Apesar de ser clara, em uma visão estritamente jurídica da questão, a
possibilidade jurídica do casamento civil homoafetivo, a grande
problemática consiste no fato de que, historicamente, o casamento (civil e
especialmente religioso) ter sido realizado basicamente entre pessoas de
sexos diversos. Os opositores do reconhecimento da possibilidade jurídica
do casamento civil homoafetivo utilizam, como um de seus “fundamentos”,
o fato de que o matrimônio sempre foi realizado entre pessoas de sexos
diversos, em que entendem que somente a união heteroafetiva poderia ser
consagrada pela lei.
Como se vê, os defensores dessa tese entendem que o casamento civil
seria uma “instituição”, algo imutável mesmo com a evolução do
pensamento social. Nessa seara, entra-se na célebre discussão acerca da
natureza jurídica do casamento: se seria um contrato, uma instituição ou um
misto entre contrato e instituição. Mesmo sem adentrar nessa polêmica
discussão, que divide os juristas até hoje73, um aspecto que deve ser
ressaltado de plano é o de que, a partir do momento em que uma
“instituição” é inserida em um ordenamento jurídico, deve ela respeitar
obrigatoriamente os princípios que regem a ordem jurídica em questão. Não
importa a origem desta, se religiosa, cultural ou qualquer outra: deve ela
obrigatoriamente obedecer aos ditames legais e constitucionais que regem o
Direito que a consagra, mesmo que isso venha eventualmente a alterar parte
de seu conteúdo histórico “pré-jurídico”.
Que fique bem claro que não se está aqui aderindo em nenhum
momento à teoria institucional do casamento civil: a polêmica discussão
acerca da natureza jurídica do casamento não é objeto pertinente ou, pelo
menos, relevante ao presente estudo. Todavia, ainda que se entenda que o
casamento civil seja uma instituição, deve ele obedecer aos ditames
estabelecidos pelos princípios da igualdade e da dignidade da pessoa
humana, que vedam o preconceito jurídico. Afinal, o ordenamento
constitucional brasileiro consagrou ditos princípios como basilares de seu
Estado Democrático e Social de Direito. Com efeito, a isonomia estabelece
que uma discriminação somente será juridicamente válida caso haja uma
motivação lógico-racional que a justifique quando considerado o critério
discriminador erigido, ao passo que a dignidade humana só admite sua
relativização por meio da isonomia. No caso aqui debatido, a discriminação
pretendida é a negação de direitos decorrentes do não reconhecimento da
possibilidade jurídica do casamento civil homoafetivo, sendo o critério
diferenciador a orientação sexual do par, uma vez que é só por meio desse
regime jurídico (e da união estável) que se estende o Direito de Família e
todas as suas benesses a duas pessoas que mantenham uma união amorosa.
Todavia, essa discriminação não é juridicamente válida, visto que
inexiste fundamentação válida ante a isonomia que a justifique com base na
orientação sexual do par. Isso porque, considerando que o objeto de
proteção do Direito das Famílias pátrio é o amor que vise a uma comunhão
plena de vida e interesses, de forma pública, contínua e duradoura, e que o
mesmo amor familiar existente nas uniões heteroafetivas é o que existe nas
uniões homoafetivas, tratando-se assim de situações idênticas ou, no
mínimo, análogas, inexiste fundamentação razoável, lógico-racional, que
justifique a discriminação de umas em relação a outras tomando-se em
conta unicamente a orientação sexual do par, como se faz atualmente.
A inconstitucionalidade da referida discriminação encontra-se, ainda,
na terceira fase da verificação de validade da discriminação jurídica, a
saber: a verificação da discriminação perpetrada com os valores
constitucionalmente consagrados. Ou seja, ainda que se considerasse como
“lógico-racional” a concessão de menos direitos aos casais homoafetivos
em relação aos conferidos aos casais heteroafetivos (e tal não ocorre), essa
concessão de menos direitos implica afronta ao valor consagrado no art. 19,
III, da Constituição Federal, que estabelece ser vedado ao Estado brasileiro
“criar distinções entre brasileiros ou preferências entre si”74. Afinal, a
referida discriminação estará denotando a preferência do Estado brasileiro
aos brasileiros heterossexuais em relação aos brasileiros homossexuais, na
medida em que o Estado estará concedendo especial proteção jurídica aos
casais heteroafetivos e recusando proteção jurídica aos casais homoafetivos.
Dita discriminação afronta, ainda, os valores constitucionais: (a) da
dignidade humana (art. 1.º, III), pois uma vida digna supõe necessariamente
que seja reconhecida pela sociedade, ao menos juridicamente, a mesma
dignidade de seu relacionamento em relação aos demais; (b) da promoção
do bem-estar de todos (art. 3.º, IV, parte final), pelo mesmo motivo; (c) da
sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos (preâmbulo, que vale
como vetor interpretativo da Constituição75; e arts. 1.o, IV, e 3.o, IV),
também pelo mesmo motivo; e (d) da liberdade de consciência (art. 5.º,
VI), pois a concessão de menos direitos implica o menosprezo à
consciência homossexual em relação à aceitação da consciência
heterossexual.
Dessa forma, é inconstitucional a discriminação jurídica das uniões
entre pessoas do mesmo sexo em relação àquelas formadas por pessoas de
sexos diversos, por afronta aos princípios da isonomia, da dignidade da
pessoa humana, da promoção do bem-estar de todos, da sociedade fraterna,
pluralista e sem preconceitos e da liberdade de consciência.
Nesse sentido, sendo inconstitucional a discriminação, somente uma
interpretação conforme a Constituição, que respeite os citados princípios,
pode evitar um conflito efetivo entre a norma do casamento civil e as
supraexplicitadas, razão pela qual é indispensável o reconhecimento da
possibilidade jurídica do casamento civil homoafetivo como decorrência
lógica de nosso ordenamento jurídico-constitucional, pela interpretação
extensiva ou da analogia, sob pena de declaração da inconstitucionalidade
do art. 1.514 do Código Civil e de todos os dispositivos legais que usem a
expressão “o homem e a mulher” quando tratam do casamento civil, em
virtude da descabida interpretação restritiva a eles imposta.

3.2.1 Casamento civil x Casamento religioso. Diferença entre ambos


Como dito, a argumentação dos opositores do casamento civil
homoafetivo em geral é no sentido de que o “casamento” sempre teria sido
entendido como a união entre um homem e uma mulher, razão pela qual
seria “da essência”, “da natureza” do “casamento” a diversidade de sexos,
visto ter sido inspirado no “casamento religioso”. O argumento, contudo, é
falacioso.
Em primeiro lugar, tais casamentos não são idênticos. O casamento
civil é um direito, é um regime jurídico disponibilizado às uniões amorosas
para que sejam protegidas pelo Direito e que precisa respeitar a sistemática
do ordenamento jurídico. O casamento religioso é um dogma, uma
instituição oriunda de preceitos de determinada religião, devendo respeito
aos seus preceitos. Lembre-se, ainda, que o casamento que é protegido pelo
Direito Pátrio é o casamento civil, tendo em vista que o casamento religioso
não produz nenhum efeito jurídico (a Constituição diz que a lei deverá
atribuir efeitos civis ao casamento religioso, donde se percebe que este não
produz nenhum efeito jurídico per si). O casamento religioso serve apenas
como prova de união estável caso não tenha a si atribuídos efeitos civis.
Assim, é inequívoco que o casamento civil e o casamento religioso são
completamente distintos, não tendo identidade necessária em seus
pressupostos. É a legislação (constitucional e/ou infraconstitucional) que
define as condições do casamento civil, sendo que tais pressupostos devem
respeitar a isonomia, sob pena de inconstitucionalidade e necessidade de
interpretação extensiva ou analogia no caso de lacunas normativas. Ou seja,
o casamento aqui pleiteado não é o religioso.
É de se notar, ainda, que o casamento civil não é um sacramento da
Igreja Católica ou de qualquer religião que seja. O casamento civil é um
regime jurídico de Direito Civil que inclusive nem tem como requisito
essencial a diversidade de sexos, pois em nenhum momento a lei o diz –
conclusão diversa decorre de interpretações simplistas do seu texto literal,
que desconsideram a teleologia de tal regime jurídico. Se foi convencionado
no passado que o casamento civil ocorreria apenas entre um homem e uma
mulher e muitos não aceitam ainda hoje o casamento civil homoafetivo,
isso se deve, primeiro, a uma construção social vinda de tempos remotos
baseada em conceitos equivocados e, segundo, a uma interpretação
restritiva e retrógrada de tal regime jurídico nos dias de hoje, por parte de
pessoas que meramente reproduzem preconceitos longinquamente
estabelecidos. Nosso ordenamento jurídico não veda que homossexuais se
casem civilmente. Inclusive, por um detalhe denominado princípio da
igualdade, o não reconhecimento do casamento civil homoafetivo afigura-se
absolutamente inconstitucional dada a ilógica e irracionalidade da
discriminação jurídica daí consequente, concepção esta facilmente
perceptível por qualquer pessoa que compreenda minimamente o Direito, a
interpretação teleológico-sistemática, a interpretação extensiva ou a
analogia e que saiba identificar o elemento formador da família conjugal
contemporânea formada por casais – família esta que é o objeto de proteção
das leis do casamento civil e da união estável. Por outro lado, com relação
às colocações de que deveria ser elaborada uma legislação específica às
uniões homoafetivas, é de se notar que o casamento civil já é uma união
civil. Se já existe uma união civil para regulamentar uniões amorosas, para
que criar outra união civil também para regulamentar uniões homoafetivas?
76

Dessa forma, percebe-se que, se há algum casamento que teria na sua


“essência” a diversidade de sexos, seria apenas o casamento religioso de
determinadas religiões, ou melhor, de determinadas interpretações
religiosas, visto que há Igrejas que consagram pelo casamento as uniões
homoafetivas. Não questiono o fato de o casamento civil ter sido criado
com base no casamento religioso, todavia quando uma instituição ingressa
no ordenamento jurídico, deve respeitar a sistemática do Direito em
questão, visto que em Direito nada se interpreta de forma isolada, mas
sistêmica.
Também argumentam os opositores do casamento civil homoafetivo
que mesmo o casamento civil sempre teria sido entendido como a união
entre o homem e a mulher, para dizer que a “diversidade de sexos” seria
“essencial”. Em primeiro lugar, tanto essa compreensão não impede em
nada o reconhecimento de tal direito que Holanda, Espanha, Bélgica,
Argentina, Canadá e África do Sul, os Estado de Massachusetts, de Nova
Iorque e da Califórnia (EUA) reconheceram expressamente o direito ao
casamento civil homoafetivo. Ademais, o fato de “sempre ter sido assim”
não significa que não possa haver mudanças: pode-se citar como exemplo a
escravidão – até a abolição, negros sempre tinham sido escravos de brancos,
assim como até a Constituição de 1988 as mulheres sempre tinham sido
inferiores juridicamente a seus maridos (em casamentos civis
heteroafetivos).
O fato de se repetir uma mentira por séculos/milênios não a torna
verdade. Quando as pessoas se conscientizam do equívoco de suas atitudes
e daquelas de seus antepassados não só podem como devem mudar seu
entendimento sobre diversas questões: no Legislativo, com a aprovação de
novas leis; no Judiciário, com a mudança da interpretação jurídica, em
interpretações construtivas do Direito.
Ou seja, considerando que a isonomia veda a discriminação arbitrária;
considerando que é arbitrária a concessão de menos direitos às uniões
homoafetivas do que às heteroafetivas; considerando que a interpretação
extensiva e a analogia decorrem da isonomia; então é plenamente possível o
casamento civil homoafetivo pela interpretação extensiva ou pela analogia,
tendo em vista que as uniões homoafetivas formam famílias e que a família
contemporânea é formada pelo amor que vise a uma comunhão plena de
vida e interesses, de forma pública, contínua e duradoura.

4. ALTERNATIVAMENTE: DA INCONSTITUCIONALIDADE DA
SUPOSTA “PROIBIÇÃO IMPLÍCITA” AO CASAMENTO
CIVIL HOMOAFETIVO
Em que pese todo até o momento discutido, não se ignora que
substancial parcela da doutrina e da jurisprudência entende que haveria uma
“proibição implícita” ao casamento civil homoafetivo, ante a expressão “o
homem e a mulher” constante do art. 1.514 do CC/2002. Apesar de não
concordar em nenhum momento com tal posição, especialmente porque em
Direito não há nulidade sem texto e, consequentemente, não há proibição
sem texto (art. 5.o, II, da CF/88), donde um regime jurídico só pode ser
negado a determinadas pessoas se a lei assim dispuser de maneira expressa,
caso se entenda pela existência de tal “proibição implícita”, mesmo assim o
casamento civil homoafetivo permanece como pedido juridicamente
possível, dada a absoluta inconstitucionalidade de entendimento em sentido
contrário77.
Com efeito, como já amplamente exposto neste trabalho, não há uma
motivação lógico-racional que justifique a concessão de menos direitos às
uniões homoafetivas quando comparados àqueles concedidos às uniões
heteroafetivas, tendo em vista que o mesmo elemento protegido nestas
existe naquelas, qual seja o amor romântico que vise a uma comunhão
plena de vida e interesses, de forma pública, contínua e duradoura, amor
este que é o elemento formador da família contemporânea. Assim, na
ausência de fundamento válido ante a isonomia que justifique a
discriminação jurídica pretendida78, com base no critério diferenciador
erigido79, e mesmo de correlação concreta entre dita discriminação e os
valores constitucionalmente consagrados80, tem-se que a lei do casamento
civil (assim como a da união estável) é flagrantemente inconstitucional por
ofensa ao princípio da isonomia no que tange à suposta restrição de dito
regime jurídico apenas às uniões heteroafetivas. Dessa forma, ante a
ausência de fundamento lógico-racional para a discriminação das uniões
homoafetivas em relação às heteroafetivas e o tratamento jurídico que se
quer impor àquelas (aplicação do Direito das Obrigações e não do Direito
de Família), e mesmo de correlação lógica concreta entre dita discriminação
e os valores constitucionalmente consagrados, tem-se por inconstitucional o
art. 1.514 do Código Civil em virtude da suposta “proibição implícita” do
direito ao casamento civil a homossexuais por ofensa direta ao princípio da
isonomia81.
Assim, não é passível de compreensão o motivo pelo qual ilustres
doutrinadores mantêm um entendimento no sentido da discriminação aqui
combatida, como é o caso de Maria Helena Diniz82, ao afirmar que:

O casamento tem como pilar o pressuposto fático da diversidade


de sexo dos nubentes (CC, arts. 1.514, 1.517, 1.565; CF, art. 226, §
5.o), embora não haja nenhuma referência legislativa a respeito, ante a
sua evidência essa condição impõe-se por si mesma. Se duas pessoas
do mesmo sexo, como aconteceu com Nerus e Sporus, convolarem
núpcias, ter-se-á casamento inexistente, uma farsa. Absurdo seria
admitir-se matrimônio de duas mulheres ou de dois homens tivesse
qualquer efeito jurídico, devendo ser invalidado por sentença judicial
(grifos do original).

Pergunta-se: onde está a fundamentação racionalmente lógica que


justifique o tratamento jurídico diferenciado defendido pela autora? Por que
a mesma considera “absurda” a hipótese de casamento civil entre pessoas
do mesmo sexo? Em que pese meu respeito à notoriedade da autora e a seu
inegável conhecimento jurídico, como não trouxe ela quaisquer argumentos
que justifiquem validamente seu entendimento ante a isonomia, assim como
não trouxe uma correlação concreta dele com os valores
constitucionalmente consagrados, só se pode concluir que foi ela
preconceituosa (no sentido de arbitrária, imotivada) em suas colocações,
donde se tem como inconstitucional a discriminação por ela pretendida, por
agredir frontalmente o preceito igualitário de nossa Carta Magna. É
interessante notar, ainda, que a própria autora reconhece que inexiste
referência legislativa expressa proibindo o casamento civil homoafetivo ao
mesmo tempo em que defende tal suposta “proibição”. Fica evidente a
arbitrariedade de seu pensamento, que, por isso, não pode ser aceito como
válido.
Assim, se nem a doutrina nem a jurisprudência trazem uma correlação
lógico-racional entre a discriminação jurídica que defendem e o critério de
discriminação por elas erigido, então é flagrantemente inconstitucional a
proibição do casamento civil homoafetivo por afrontar o preceito
isonômico.
Aponte-se uma questão que é totalmente ignorada por muitos daqueles
que são contrários a esta tese: cabe aos que pretendem a discriminação
provar a sua pertinência, tendo em vista que a igualdade de tratamento é a
regra, ao passo que a diferenciação é a exceção. Em outras palavras: são os
opositores do casamento civil homoafetivo que pleiteiam por uma
discriminação, donde são eles que estão obrigados a provar a pertinência
lógico-racional da mesma. Contudo, milênios de pregação homofóbica
institucionalizaram o preconceito contra homossexuais no pensamento
social, donde grande parte da sociedade tornou-se contrária à concessão da
igualdade jurídica aos casais homoafetivos. Isso obriga os defensores da
isonomia, como este autor, a elaborarem trabalhos demonstrando a
inexistência de motivação razoável que justifique a discriminação de
homossexuais em relação a heterossexuais quando o ônus de argumentação,
em verdade, é daqueles que pleiteiam pelo tratamento diferenciado, como
os opositores do reconhecimento da possibilidade jurídica do casamento
civil homoafetivo. Ou seja, quem tem de apresentar provas são os
opositores ao casamento civil homoafetivo: eles têm que demonstrar a
necessidade da proibição do mesmo, assim como da união estável. Como
não o fazem, o entendimento jurídico correto é aquele segundo o qual a
mesma lei deve ser aplicada a todos, no sentido de que, como a lei permite
o casamento civil, então deve este ser permitido a todos,
independentemente da orientação sexual e da pessoa para quem se direciona
o seu amor familiar.
Isso foi reconhecido em todos os países cujos Judiciários declararam a
inconstitucionalidade da proibição ao casamento civil homoafetivo. Ou
seja, impuseram aos Estados respectivos que apresentassem uma
fundamentação lógico-racional que justificasse a referida discriminação e,
como estes Estados não conseguiram fazê-lo, declararam aquela
inconstitucionalidade.
Veja-se, assim, o caso no qual a Suprema Corte da África do Sul83
declarou tal inconstitucionalidade do não reconhecimento do casamento
civil homoafetivo, após refutar as argumentações trazidas pelo Estado para
tentar se justificar:

Justificação
(110) Tendo aceito que a necessidade de um grau apropriado de
respeito aos conceitos tradicionais de casamento não constitui, nos
termos da lei, uma barreira para a defesa dos direitos constitucionais
dos casais formados por pessoas do mesmo sexo, uma ulterior questão
surge: houve demonstração da justificação exigida pela seção 36 da
Constituição84 para a violação da igualdade e da dignidade desses
casais? O Estado fez a mera alegação em suas razões escritas que
havia justificação, sem avançar em considerações diferentes daqueles
por ele já referidas em relação à injusta discriminação. O Sr. Smyth,
por outro lado, devotou considerável atenção ao argumento de que
existia justificação para a discriminação mesmo se ela tivesse um duro
impacto nos casais formados por pessoas do mesmo sexo. Seu
argumento central era que o propósito da limitação dos direitos dos
casais formados por pessoas do mesmo sexo era a manutenção do
casamento como um conhecido pilar da sociedade, e para proteger as
crenças religiosas de muitos Sul-Africanos. A Aliança do Casamento
similarmente defendeu que qualquer discriminação à qual casais
formados por pessoas do mesmo sexo estivessem sujeitos era
justificável sob o fundamento de que a exclusão dos casais formados
por pessoas do mesmo sexo do casamento era destinada a proteger e
assegurar a existência e a vitalidade do casamento como uma
importante instituição social. Há consequentemente duas proposições
inter-relacionadas colocadas como justificativas que precisam ser
consideradas. A primeira é que a inclusão de casais formados por
pessoas do mesmo sexo iria abalar instituição do casamento. A
segunda é a de que essa inclusão iria ofender e impor-se sobre fortes
suscetibilidades religiosas de certos setores do público. (111) A
primeira proposição foi enfrentada por pelo Juiz Ackerman em Home
Affairs. Referindo-se à possível justificação relacionada à exclusão de
conviventes do mesmo sexo dos benefícios concedidos aos casais
casados pela lei de imigração, ele afirmou: “Não há interesse no outro
lado que entre no processo de ponderação (para justificação). É
verdade... que a proteção à família e à vida familiar em
relacionamentos convencionais entre cônjuges é um importante
objetivo governamental, mas a extensão para a qual isso poderia ser
feito jamais seria limitada ou afetada se conviventes do mesmo sexo
fossem incluídos de forma apropriada sob a proteção dessa (seção).”
As mesmas considerações se aplicam em relação à permissão de casais
formados por pessoas do mesmo sexo usufruíssem dos benefícios
aliados às responsabilidades que a lei do casamento proporciona aos
casais heterossexuais. Garantir acesso aos casais formados por
pessoas do mesmo sexo não iria de forma alguma atenuar a
capacidade de casais heterossexuais de se casarem na forma que eles
desejarem e de acordo com os dogmas de suas religiões. (112) A
segunda proposição é baseada na assertiva derivada de particulares
crenças religiosas segundo as quais permitir que casais formados por
pessoas do mesmo sexo ingressassem na instituição do casamento iria
desvalorizar aquela instituição. Qualquer que seja a sua origem,
objetivamente falando esse argumento é de fato profundamente
degradante de casais formados por pessoas do mesmo sexo, e
inconsistente com a exigência constitucional que todos sejam tratados
com igual consideração e respeito. (113) Conquanto fortes e sinceras
as crenças subjacentes à segunda proposição possam ser, essas crenças
não podem, por meio do Estado-lei, ser impostas sobre toda a
sociedade e de uma forma que negue os direitos fundamentais àqueles
negativamente afetados. A assertiva expressa ou implícita segundo a
qual trazer os casais formados por pessoas do mesmo sexo sob a
proteção da lei do casamento iria macular aqueles já abrangidos por
esta proteção só pode ser baseada em um prejulgamento, ou
preconceito contra a homossexualidade. Isso é exatamente o que a
seção 9 da Constituição [isonomia] protege contra. Pode até ser que
aquelas pressuposições negativas sobre a homossexualidade ainda
estejam largamente imiscuídos em certos setores da nossa sociedade. A
ubiquidade do preconceito não pode validar sua legitimidade. Como o
Juiz Ngcobo disse em Hoffmann: “O preconceito nunca pode justificar
uma discriminação injusta. Este país emergiu recentemente de um
preconceito institucionalizado. Nossos estudos legais estão repletos de
casos nos quais o preconceito foi levado em consideração na negativa
de direitos que hoje nós consideramos como básicos. Nossa
democracia constitucional entrou em uma nova era – é uma era
caracterizada pelo respeito à dignidade humana por todos os seres
humanos. Nessa era, preconceito e estereotipização não têm vez.
Realmente, se como uma nação nós pretendemos atingir o ideal de
igualdade que nós estampamos na nossa Constituição, nós nunca
deveremos tolerar o preconceito, seja direta ou indiretamente. (...)” Eu
concluo, portanto, que os argumentos ofertados a amparar a
justificação [da proibição do casamento civil homoafetivo] não podem
ser aceitos. (...)

Dessa forma, tem-se por coerente com o atual ordenamento jurídico


brasileiro a possibilidade jurídica do casamento civil homoafetivo, uma vez
que é inconstitucional a suposta restrição contida no art. 1.514 do
CC/200285, que possibilitaria apenas o casamento civil entre pessoas de
sexos diversos, na hipótese de se considerar a validade da teoria das
“proibições implícitas” em nosso Direito, com o que, data maxima venia,
não concordo.
Por fim, uma observação: afirmo pela inconstitucionalidade do art.
1.514 do CC/2002 caso se considere que este traria uma “proibição
implícita” ao casamento civil homoafetivo. Poderia, com isso, surgir a
preocupação de dita declaração de inconstitucionalidade expurgar o regime
jurídico do casamento civil do ordenamento jurídico e, portanto, a
declaração da inconstitucionalidade trazer uma situação ainda mais
perniciosa do que a existente (pois se homossexuais têm direito a se casar,
obviamente heterossexuais também o têm). Contudo, esse é um falso-
problema, pois, muito embora dito dispositivo traga um conceito legal de
casamento civil, é de se notar que inexistia dispositivo similar no Código
Civil de 1916, o que prova ser irrelevante um “conceito legal” de casamento
civil para que o mesmo continue existindo juridicamente. Afinal, todos os
contornos e as consequências do mesmo estão reguladas nos dispositivos
legais subsequentes.
Por outro lado, todos sabem muito bem o que é um casamento civil: a
união amorosa entre duas pessoas que assumem reciprocamente direitos e
obrigações oriundos de normas cogentes – e que o fazem formalmente, de
papel passado. Isso evidencia que a declaração da inconstitucionalidade do
dispositivo que traz dita definição legal não trará nenhum prejuízo aos
cidadãos, que poderão continuar se casando sem nenhum problema.
De qualquer forma, para evitar inconvenientes, poder-se-ia declarar a
inconstitucionalidade do não reconhecimento do casamento civil
homoafetivo por meio das técnicas da interpretação conforme a
Constituição ou da declaração de nulidade sem redução de texto, técnicas
de controle de constitucionalidade que mantêm o dispositivo impugnado em
questão e determinam qual interpretação é ou não (respectivamente)
constitucional. O tema será tratado em capítulo próprio.

4.1 Da ação judicial necessária ao casamento civil homoafetivo


Na primeira edição desta obra afirmou-se que, em que pese todo o
exposto até o momento, era notório que os Cartórios competentes se
recusavam a celebrar o casamento civil homoafetivo, adotando a
interpretação proibitiva, flagrantemente inconstitucional, que se acabou de
expor, razão pela qual se afirmou que o casal homoafetivo encontrava-se
obrigado a ingressar com uma ação declaratória de possibilidade jurídica
de casamento civil pelo procedimento ordinário. Nessa ação86, afirmou-se
que além de serem demonstrados os pressupostos de validade do
casamento, deve-se demonstrar, primeiramente, a possibilidade jurídica do
pedido por meio da interpretação extensiva ou da analogia, por força dos
princípios da isonomia, da dignidade da pessoa humana, da promoção do
bem-estar de todos, da laicidade estatal e da liberdade de consciência. Nesse
caso, apontou-se que se deve pleitear pela aplicação de uma interpretação
conforme a Constituição, segundo a qual a única interpretação válida do art.
1.514 do CC/2002, assim como de todos os outros dispositivos atinentes à
matéria, é aquela em que não se proíbe o casamento civil homoafetivo,
sendo absolutamente necessária a aplicação da interpretação extensiva ou
da analogia.
Por outro lado, como pedido alternativo, para o caso de não ser aceita
tal tese pelo Judiciário, e este entender que haveria uma descabida
“proibição implícita” ao casamento civil homoafetivo, afirmou-se a
necessidade de se requerer a declaração incidental de inconstitucionalidade
do disposto nesses textos legais, considerando-se que o sistema pátrio de
controle de constitucionalidade possui tanto elementos de controle difuso
como de controle concentrado, sendo assim perfeitamente possível a
declaração de inconstitucionalidade por qualquer juiz, e não apenas pelo
Supremo Tribunal Federal, mesmo porque a eficácia da sentença que
declarar a citada inconstitucionalidade terá apenas eficácia inter partes87.
Apontou-se, ainda, que a ação deve ser “declaratória de possibilidade
jurídica”, porque o juiz de Direito não poderia simplesmente constituir o
par no estado de casados, tendo em vista que o Código Civil prevê uma
série de formalidades preliminares ao matrimônio civil, como, entre outras,
a expedição de proclamas com a abertura de prazo para objeções. Assim, o
magistrado, em sua sentença, determinará que o Cartório de Registro Civil
competente aceite o pedido do casal e inicie os trâmites legais para a
realização do casamento civil, da mesma forma como atualmente age com
os casais heteroafetivos.
Recomendou-se, por fim, que se obtenha uma negativa oficial do
Cartório de Registro Civil competente para que não haja o risco de adotar
um equivocado entendimento de que não teria sido comprovado o interesse
de agir (a pretensão resistida estatal) – o que constitui uma das condições
da ação (muito embora seja notória tal negativa estatal e fatos notórios não
precisem ser comprovados, por força do art. 334, I, do CPC, trata-se de
medida salutar para evitar problemas).
Contudo, como veremos no item 9, abaixo, após a decisão do STF na
ADPF 132 e na ADI 4.277, diversos juízes, em sua competência
administrativa, autorizaram a conversão de união estável homoafetiva em
casamento civil e mesmo o casamento civil homoafetivo direto (sem prévia
união estável), o que é maravilhoso e torna desnecessária a ação judicial em
questão, a qual só será necessária caso o Cartório de Registro Civil e/ou
o(a) Juiz(íza) respectivo(a) negue tal direito ao casal homoafetivo em
questão.

5. DA UNIÃO HOMOAFETIVA COMO UMA “SOCIEDADE DE


AFETO”, MUITO MAIS SIMILAR À UNIÃO
HETEROAFETIVA DO QUE A UMA “SOCIEDADE DE FATO”
Seja qual for a tese a ser adotada, de possibilidade jurídica do
casamento civil homoafetivo por meio da interpretação extensiva ou da
analogia, como decorrência dos princípios da isonomia, da dignidade da
pessoa humana88 e inclusive da interpretação conforme a Constituição, ou
então pela declaração da inconstitucionalidade do art. 1.514 do Código
Civil ante a arbitrária discriminação jurídica decorrente de sua interpretação
restritiva, deve ficar claro o absoluto equívoco decorrente da classificação
das uniões homoafetivas como meras “sociedades de fato”. Isso porque,
enquanto as sociedades empresariais em geral (sejam elas “de fato” ou “de
Direito”) têm como seu elemento essencial a affectio societatis, que é a
afinidade existente entre determinadas pessoas com o intuito exclusivo de
auferir lucro ou então de propiciar uma atividade filantrópica, as uniões
homoafetivas, assim como as heteroafetivas, são baseadas na affectio
maritalis – que é o sentimento de amor profundo que uma pessoa nutre por
outra, amor este que visa a uma comunhão plena de vida e interesses, de
forma pública, contínua e duradoura e que forma, por isso, a família
contemporânea – em suma, no amor familiar.
Como se vê, os elementos fundadores de uma e outra situação são
completamente distintos, impossíveis de serem confundidos, donde a união
homoafetiva não poder ser equiparada a uma “sociedade de fato”, mas à
sociedade de afeto consagrada pelas leis do casamento civil e da união
estável, posto serem elas, se não idênticas, no mínimo análogas. Note-se
que a união homoafetiva assemelha-se muito mais à união matrimonializada
consagrada pelo Código Civil do que às “sociedades de fato” do Direito
Comercial. Assim, entendendo-se elas como situações distintas, a analogia
que deve ser aplicada é com o casamento civil, e não com as “sociedades de
fato”.
Já se demonstrou neste trabalho que não existe diferença entre as
uniões homoafetivas e as heteroafetivas, e isso pelo simples fato de que não
é o sexo de um dos pares e/ou a sexualidade deles que deve ser levada em
conta na comparação de ambas as situações, mas o sentimento que uma
pessoa sente pela outra, a saber o amor romântico que vise a uma
comunhão plena de vida e interesses, de forma pública, contínua e
duradoura, donde é aplicável a interpretação extensiva para possibilitar o
casamento civil homoafetivo. Afinal, o casamento civil e a união estável
versam sobre uniões amorosas, sendo a união homoafetiva possuidora do
mesmo amor existente na união heteroafetiva. Mas, por outro lado, caso se
entenda que o sexo de um dos pares e/ou a sexualidade deles caracterizaria
uma “diferença”, com o que, data maxima venia, não concordo, então é
inegável que se trata de situações análogas, visto que baseadas no mesmo
elemento essencial, que é aquele amor que forma a entidade familiar
juridicamente protegida, donde é aplicável a analogia para possibilitar o
casamento civil homoafetivo89.
O que se quer exprimir com estas colocações é que, caso se considere
que as uniões homoafetivas não seriam idênticas às heteroafetivas, então é
inafastável o reconhecimento de que ambas as situações são baseadas no
mesmo elemento essencial, a saber a affectio maritalis, razão pela qual
merecem aquelas o mesmo tratamento jurídico concedido a estas, como
decorrência lógica do princípio da igualdade constitucionalmente
consagrado.

6. DA POSSIBILIDADE JURÍDICA DO PEDIDO DE CASAMENTO


CIVIL HOMOAFETIVO
A possibilidade jurídica do pedido consubstancia-se pelo fato de ser o
pleito formulado admissível no ordenamento jurídico pátrio, ainda que tal
admissibilidade se dê em abstrato. Ou seja, há dois tipos de pedidos
juridicamente possíveis: aquele que a lei expressamente permite e aquele
que é implicitamente permitido pelo ordenamento jurídico. Quanto a esta
segunda hipótese (permissão implícita), não pode haver proibição legal
expressa e deve o pedido ser possível por meio das técnicas hermenêuticas
de interpretação, como a interpretação extensiva e a analogia.
Aponte-se, ainda, que a permissão implícita é uma decorrência lógica
dos princípios da interpretação sistemática, da legalidade e da isonomia,
pois, respectivamente: (i) em Direito nada se interpreta de forma isolada e
todos são iguais (ou pelo menos fundamentalmente iguais); (ii) ninguém é
obrigado a deixar de fazer algo senão em virtude de lei; e (iii) todos devem
receber o mesmo tratamento jurídico. Por outro lado, a ausência de
“proibições implícitas” no Direito brasileiro não enseja a proibição de
permissões implícitas, em decorrência também do art. 5.º, II, da CF/1988,
que proíbe a existência daquelas. Ora, se ninguém está obrigado a deixar de
fazer algo senão em virtude de lei, então pode fazer tudo o que a lei não
proíbe, donde está reconhecida a admissibilidade implícita dos atos não
expressamente proibidos. Por outro lado, mas sob o mesmo fundamento, se
ninguém está obrigado a deixar de fazer algo senão em virtude de lei, então
só estará proibido de fazê-lo ou só terá expurgados os efeitos jurídicos do
ato praticado no caso em que texto normativo expresso assim o determinar,
donde está reconhecida a inadmissibilidade da “proibição implícita” e a
admissibilidade da permissão implícita. Trata-se do princípio da legalidade
lata, que rege a vida dos particulares.
É esse o entendimento consagrado na jurisprudência do Superior
Tribunal de Justiça acerca da possibilidade jurídica do pedido, ou seja, de
que há possibilidade jurídica do pedido sempre que não haja proibição
normativa expressa a tal pleito, ou, sob outro ângulo, só há impossibilidade
jurídica do pedido quando haja proibição normativa a tal pleito90. Essa a
lógica que consagrou a virada da jurisprudência do STJ para reconhecer a
possibilidade jurídica da união estável homoafetiva no REsp 820.475/RJ,
DJe 06.10.2008, que pela primeira vez aplicou expressamente tal
entendimento para reconhecer o cabimento da analogia para reconhecer a
possibilidade jurídica da união estável homoafetiva ao afirmar que “Os
dispositivos legais limitam-se a estabelecer a possibilidade de união estável
entre homem e mulher, dês que preencham as condições impostas pela lei,
quais sejam, convivência pública, duradoura e contínua, sem, contudo,
proibir a união entre dois”, em que “Admite-se, se for o caso, a integração
mediante o uso da analogia, a fim de alcançar casos não expressamente
contemplados, mas cuja essência coincida com outros tratados pelo
legislador homens ou duas mulheres”, entendimento este reiterado no REsp
827.962/RS, DJe 08.08.2011, que peremptoriamente afirmou que “É
juridicamente possível pedido de reconhecimento de união estável de casal
homossexual, uma vez que não há, no ordenamento jurídico brasileiro,
vedação explícita ao ajuizamento de demanda com tal propósito.
Competência do juízo da vara de família para julgar o pedido”.
Percebe-se, portanto, que, ao menos no que tange à possibilidade
jurídica do pedido, o STJ consagrou a máxima de Kelsen91, no sentido de
que aquilo que não é expressamente proibido, tem-se por juridicamente
possível.
Em suma: se a lei não proíbe expressamente determinada conduta,
então ela pode ser praticada. Da mesma forma, se a lei não proíbe
expressamente determinado regime jurídico a determinado grupo de
pessoas, então ele é aplicável a estas (como os regimes jurídicos do
casamento civil e da união estável aos casais homoafetivos).
Assim, para sintetizar o quanto exposto ao longo deste trabalho:
considerando que inexiste proibição legal e/ou constitucional para o
casamento civil entre pessoas do mesmo sexo; considerando que a
isonomia exige que os iguais ou fundamentalmente iguais recebam o
mesmo tratamento jurídico; considerando que o amor que vise à comunhão
plena de vida e interesses, de forma pública, contínua e duradoura é o
elemento formador da família contemporânea; considerando que o amor
familiar existente nas uniões homoafetivas é idêntico ao que existe nas
uniões heteroafetivas, sendo, no mínimo, situações idênticas no essencial;
considerando que é este amor que forma a entidade familiar juridicamente
protegida entre casais; considerando que a interpretação extensiva e a
analogia são técnicas hermenêuticas de integração do ordenamento jurídico
que servem para estender o regime jurídico da situação expressamente
prevista para aquela que não foi citada pela lei, seja por se tratar de
situações absolutamente idênticas (no primeiro caso) ou idênticas no
essencial (no segundo caso), como decorrência da interpretação teleológica,
da isonomia, da dignidade humana e da Teoria Tridimensional do Direito; e
considerando que a isonomia exige a aplicação da interpretação extensiva
ou da analogia quando for o caso, o mesmo ocorrendo com a interpretação
conforme a Constituição; conclui-se que é possível o casamento civil
homoafetivo nos dias de hoje por meio da interpretação extensiva ou, no
mínimo, da analogia, como decorrência lógica da isonomia e da dignidade
humana constitucionalmente consagradas, normas constitucionais de
eficácia plena que proíbem discriminações arbitrárias como a hoje existente
com a negação do direito ao casamento civil a casais homoafetivos.

7. DA AÇÃO CIVIL PÚBLICA PROPOSTA PELO MINISTÉRIO


PÚBLICO FEDERAL PLEITEANDO PELO
RECONHECIMENTO DO CASAMENTO CIVIL
HOMOAFETIVO
Merece ser aqui destacada a iniciativa do Procurador da República Dr.
João Gilberto Gonçalves Filho, que, em 18 de janeiro de 2005, ingressou
com ação civil pública na qual requer o reconhecimento legal do casamento
civil homoafetivo perante o ordenamento jurídico brasileiro.
Nesta ação (cuja petição inicial tem 99 páginas), o Procurador da
República, em síntese: a) parte da premissa fundamental de que “o Estado
Brasileiro não pode discriminar pessoas em razão de sua orientação
sexual”92, sendo tal entendimento inferido a partir do princípio da
dignidade da pessoa constitucionalmente consagrado; b) afirma que um
Estado Democrático de Direito, que “garante a inviolabilidade da vida
privada como direito fundamental do indivíduo (artigo 5.º, X), não pode (...)
querer manipular os comportamentos íntimos dos seres humanos por um
sistema de segregação, tratando-os de forma diferente e discriminando-os
no seu status jurídico apenas em virtude da opção sexual que escolheram
para si93 [especialmente quando veda quaisquer formas de discriminação,
nos termos do art. 3.º, IV, da CF/1988]”; c) aduz que a suposta proibição do
casamento civil homoafetivo é, na verdade, um dogma cultural, no sentido
de que essa proibição é considerada como certa pelo simples fato de
ninguém questioná-la e pairar a “sensação geral de que as coisas foram
assim, são assim e vão ser sempre assim”94; d) afirma que os arts. 1.517 e
1.565 do CC/2002 e o art. 226, §§ 3.º e 5.º, da CF/1988 devem ser lidos por
meio de interpretação sistemática com outros dispositivos constitucionais e
infraconstitucionais, no sentido de que não trazem eles uma suposta
proibição ao casamento civil homoafetivo, posto ser isso decorrência da
interpretação sistemática desses dispositivos com os princípios da isonomia
e da dignidade da pessoa humana, constitucionalmente consagrados; e)
ressalta que “o próprio preâmbulo da Constituição Federal, que serve para
orientar a interpretação de todos os seus dispositivos, enfatiza o que o
Estado Brasileiro destina-se a assegurar ‘a liberdade, a segurança, o bem-
estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de
uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia
social (...)’”95, o que não vem ocorrendo em relação aos homossexuais, ante
a não celebração do seu casamento civil; f) afirma que o Brasil fere a
isonomia quando proíbe os casamentos entre pessoas do mesmo sexo, uma
vez que “trata os cidadãos [homossexuais] de forma diversa, sem que o
critério de discriminação esteja apoiado numa relevante razão lógica.
Afinal, o bem jurídico tutelado com essa discriminação é apenas um padrão
moral de conduta, alicerçado sobre a ideia preconceituosa de que o
homossexualismo é pecado. Não há problema algum que as religiões
pensem isso e divulguem essa ideia a seus fiéis, já que é admitida a
liberdade de crença religiosa; não há problema algum que as autoridades
dos Três Poderes também pensem assim, intimamente, já que fora garantida
a liberdade de pensamento; contudo, o Estado Brasileiro, como pessoa
jurídica que não se confunde com suas autoridades, como instituição que
deve velar pelo igual tratamento dispensado a seus cidadãos, não pode
valer-se de um código de ética moral para discriminá-los. A partir do
momento em que vivemos num Estado de Direito, sendo separado de
qualquer religião, que preza pelas liberdades individuais, cabe-lhe abrir os
braços para o diferente, com tolerância e inclusão”96; g) ressalta que a
homossexualidade “não se contrapõe à ideia de família. A ideia de família
deve sobrepor, acima de tudo, cooperação, respeito e harmonia. Há tantas
famílias de casais heterossexuais que não têm isso: filhos consumidos pelas
drogas, casais atordoados pela quebra do dever de fidelidade, separações e
divórcios que se multiplicam, brigas por dinheiro, abandono e desamparo.
O álcool, a miséria e a exaltação sem limites dos valores materialistas da
nossa sociedade, que é explosivamente consumista, ajudam a engrossar o
caldo de desagregação da família, não só no Brasil mas no mundo inteiro.
De outra parte, há casais homossexuais, ainda não devidamente legalizados
pelo Estado, que dão um exemplo de fraternidade e harmonia: mantêm-se
fiéis aos parceiros sexuais, dão o apoio necessário na desgraça, na miséria e
na doença, sabem falar e sabem ouvir, fazem da existência em comum uma
fortaleza de cooperação, sem gritos nem brigas, com amor e compaixão
(...)”97; h) e, finalmente, aduz que: “Se é objetivo da República Federativa
do Brasil a construção de uma sociedade livre, justa e solidária, as pessoas
devem ter liberdade para escolher seus parceiros sexuais sem que essa
escolha implique injustas restrições de tratamento por parte do aparato
administrativo estatal. A solidariedade pressupõe acolher e dar apoio às
escolhas individuais, abrindo oportunidade a qualquer pessoa para que
possa concretizar o seu direito constitucional de ser feliz, mormente quando
essas escolhas não atrapalham em nada os direitos individuais das demais
ou os direitos coletivos em geral, como é o caso do casamento de
homossexuais”98.
Como se vê, nessa ação o Procurador da República põe em prática
muito do que se expôs no presente trabalho. Ou seja: partindo do
pressuposto de que a homossexualidade não constitui doença, desvio
psicológico, perversão nem nada do gênero, sendo uma das livres
manifestações da sexualidade humana ao lado da heterossexualidade, e de
que o atual entendimento proibitivo do casamento civil homoafetivo
configura afronta à isonomia e à dignidade da pessoa humana
constitucionalmente consagradas, requer que o Poder Judiciário obrigue a
União, os Estados e o Distrito Federal a celebrarem o casamento civil entre
pessoas do mesmo sexo, para que seja assim respeitada a Constituição
Federal no mister da igualdade entre homossexuais e heterossexuais.
Todavia, Gonçalves Filho se utiliza de alguns termos diversos dos
utilizados nesta ação, quais sejam a adoção do termo “homossexualismo” e
a colocação da homossexualidade como uma “opção” do indivíduo. Quanto
ao termo utilizado, em que pese seu uso, o Procurador da República deixa
claro que não considera o sentimento de amor por pessoas do mesmo sexo
uma doença, inclusive deixando isso expresso em sua petição inicial. Por
outro lado, apesar de colocar o autor da ação a homossexualidade como
uma “opção” do indivíduo (embora use tal termo de forma sinônima à
expressão “orientação sexual”), o que é um equívoco, sua proposição
jurídica é igualmente válida. Isso porque, sendo a característica em debate
(qualquer que seja) uma “opção” ou algo “inerente” ao indivíduo, não pode
o Estado discriminar as pessoas detentoras de dita característica sem um
fundamento lógico-racional que justifique essa diferenciação com base no
critério desigualador erigido, fundamento este que deve ainda estar de
acordo com o ordenamento constitucional pátrio, sob pena de afronta aos
princípios da isonomia e da dignidade da pessoa humana, nos termos já
expostos neste trabalho.
Entre os pedidos dessa ação, o autor pleiteou a antecipação dos efeitos
da tutela pretendida, no sentido de possibilitar o casamento civil
homoafetivo até o trânsito em julgado da decisão da ação. Como se sabe,
para o deferimento da antecipação dos efeitos da tutela é necessário que
haja verossimilhança das alegações (ou seja, fortes indícios de que a ação é
procedente) e periculum in mora (que é configurado pela perda da eficácia
da decisão definitiva, caso seus efeitos não sejam concedidos no momento
pleiteado). Com relação à verossimilhança, ela existe, ante os termos dos
princípios da isonomia e da dignidade da pessoa humana, nos termos aqui e
naquela ação expostos, e o contrário não foi dito pelo juiz da ação.
Contudo, o periculum in mora não foi reconhecido pelo magistrado, razão
pela qual não foi deferida a antecipação de tutela pleiteada. Na petição
inicial, o Procurador da República expôs que a longa espera pelo
julgamento definitivo da ação tornaria impossível remediar a infração ao
direito difuso dos homossexuais que se veem hoje impossibilitados de casar
até que tal decisão definitiva seja proferida. Com outra visão, o magistrado
entendeu que esse tipo de decisão somente deve ser deferida
definitivamente, para ser resguardada a ordem social e a segurança jurídica,
que no seu entender restariam prejudicadas no caso de a sentença julgar
improcedente a ação (o que resultaria na anulação de inúmeros casamentos
realizados até este momento).
Realmente, era difícil a concessão da antecipação dos efeitos da tutela
nesse caso. Isso porque, por maior que seja a verossimilhança das alegações
(que efetivamente existe), o periculum in mora não se afigura, porque os
homossexuais que nunca puderam se casar não terão nenhum prejuízo com
a continuidade dessa proibição. O direito deles resta violado com a
proibição, não há dúvida, mas sua situação não piorará com a espera pela
decisão definitiva da ação: apenas continuará como está (o que é distinto no
que tange à união estável, na medida em que é uma situação fática que,
finda, deve ensejar a meação do patrimônio amealhado na constância da
união, o que causa um prejuízo efetivo àquele que não tem a referida
divisão patrimonial após o término da união estável).
Na primeira edição desta obra, afirmamos que, sem adentrar
profundamente no mérito dessa negativa da antecipação de tutela pleiteada,
este autor tinha a certeza de que um julgamento imparcial, neutro e despido
de quaisquer preconceitos99 deveria julgar totalmente procedente a referida
ação civil pública em seu mérito, sob pena de afronta aos preceitos
constitucionais explicitados, ante tudo o que se falou neste trabalho e na
petição inicial daquele processo, mesmo porque todas as contestações
apresentadas neste processo tentam justificar a proibição do casamento civil
homoafetivo por meio dos pontos devidamente impugnados neste trabalho
em capítulo próprio (adiante): ausência de lei expressa permissiva (o que se
resolve pela interpretação extensiva ou analogia); ausência de capacidade
procriativa (requisito inexistente, pois não consta dos taxativos
impedimentos matrimoniais do art. 1.521 do CC/2002, da mesma forma que
não se proíbe o casamento civil entre heterossexuais estéreis); e “teoria da
inexistência” (que não passa de pura invenção doutrinária, sem qualquer
embasamento legal que a fundamente, que se configura como forma de
discriminar e de burlar a regra segundo a qual não há nulidade sem texto ,
que precisa, assim, respeitar os ditames da isonomia).
Ademais, foi levantada a questão de que o casamento civil seria um
“ato administrativo” do Estado, que seria regido, assim, pelo princípio da
legalidade estrita (pelo qual só se pode fazer o que a lei permite de forma
expressa). Contudo, essa posição é evidentemente equivocada, pois a
legalidade estrita existe para limitar a atuação do administrador público, e
não dos direitos dos cidadãos. Assim, como o casamento civil é um direito
dos cidadãos, e não do Estado, é ele regido pelo princípio da legalidade lata,
donde a ausência de menção legislativa expressa em nada impede o
casamento civil homoafetivo pela interpretação extensiva ou pela analogia.
Outrossim, aventou-se que a mera existência do Projeto de Lei
1.151/1995, que visa regular a “união civil” (denominada “parceria civil
registrada”) entre casais homoafetivos impediria o reconhecimento da
possibilidade jurídica do casamento civil homoafetivo. Todavia, essa
posição é igualmente equivocada. Com efeito, apesar de a justificativa de
dito projeto de lei não o equiparar ao casamento civil, isto não impede que
haja uma concomitância entre um e outro. Em outras palavras, nada impede
que exista tanto a parceria civil registrada quanto o casamento civil. Uma
prova disso é o que ocorre na França desde 1999. Foi aprovado naquele ano
o denominado “Pacto Civil de Solidariedade”, que reconhece uniões
amorosas que não são consagradas pelo casamento civil. Apesar de ter sido
claramente criado para albergar as uniões homoafetivas, é de se ressaltar
que é possível tanto a heterossexuais quanto a homossexuais. Nesse sentido,
para a surpresa geral, apesar da óbvia aceitação desse modelo pela
comunidade homossexual francesa, a maioria das pessoas que dele se utiliza
é formada por casais heteroafetivos. Como é de notório conhecimento e já
foi citado neste trabalho, a doutrina do Direito das Famílias ainda está
muito longe de chegar a um consenso sobre a natureza jurídica do
casamento civil: uns dizem que é um contrato, outros dizem que é uma
instituição, e outros ainda dizem que é um misto de contrato e instituição.
Sem voltar ao mérito dessa discussão, que é irrelevante para os limites do
presente trabalho, é seguro afirmar que o Pacto Civil de Solidariedade
francês (assim como o nosso Projeto de Parceria Civil Registrada) nada
mais é do que uma vertente da teoria que consagra o casamento civil como
um contrato. Apesar de não ser equiparado ao casamento civil (pois garante
menos direitos do que este), nada mais é do que um contrato do Direito
Obrigacional que rege a vida pessoal de um casal, assim como faz o
casamento civil100.
Destaque-se, ainda, que apesar de não ser permitido que uma pessoa
que esteja sob a égide do Pacto Civil de Solidariedade possa se casar, tanto
o PACS quanto o casamento civil são regimes jurídicos disponibilizados a
heterossexuais, sendo que a existência de um não implica a impossibilidade
da existência de outro – o que será o caso da “Parceria Civil Registrada”,
caso o projeto de lei em questão seja aprovado (pois proíbe que pessoas que
não sejam solteiras firmem dito contrato – assim como aquelas que já o
tenham firmado com outra pessoa). Assim, resta equivocada a tese da
impossibilidade de existência concomitante da parceria civil registrada e do
casamento civil, visto que tais regimes jurídicos não são excludentes um do
outro, como o exemplo francês nos demonstra.
Aponte-se, por oportuno, que este autor atua nesse processo como
advogado de duas associações de defesa dos direitos dos homossexuais que
figuram como assistentes do Ministério Público Federal, ao lado do Dr.
Fernando Quaresma de Azevedo (que, em verdade, é o advogado dessas
associações e gentilmente substabeleceu-me, com reserva de iguais, os seus
poderes, naquele feito). Dessa forma, apresentamos uma manifestação sobre
as contestações, com base em nosso direito de petição constitucionalmente
assegurado (art. 5.º, XXXIV, alínea “a”, da CF/1988) rechaçando as citadas
teses defensivas apresentadas pelos réus daquela ação, por meio da
explicitação do entendimento contemporâneo sobre a família e da
demonstração da possibilidade jurídica do casamento civil homoafetivo
pela interpretação extensiva ou pela analogia, como decorrência dos
princípios da igualdade e da dignidade da pessoa humana.
Como dito acima, afirmei na primeira edição desta obra que aguardava
por uma sentença de procedência da ação, contudo, não foi o que ocorreu.
Redistribuído o processo para a Justiça Federal da Comarca de São Paulo
por força do acolhimento de exceção de incompetência, o magistrado que
recebeu a ação primeiramente disse que deveria aguardar a decisão do STF
no julgamento da ADPF 132 e da ADI 4.277, que versavam sobre o
reconhecimento da união estável homoafetiva ou então (o que, para efeitos
práticos, gera o mesmo resultado) o reconhecimento da união homoafetiva
como entidade familiar com igualdade de direitos relativamente à união
estável heteroafetiva. Julgadas procedentes as ações pelo STF, no dia
05.05.2011, referido magistrado houve por bem julgar improcedente a
demanda. Embora afirmando que a decisão do Supremo, que reconheceu a
união homoafetiva como união estável ou, caso se prefira, como entidade
familiar autônoma com igualdade de direitos relativamente à união estável
heteroafetiva, gera o direito de casais homoafetivos terem acesso ao
casamento civil mediante conversão de sua união estável homoafetiva em
casamento civil, uma vez que tanto a lei quanto a Constituição
determinaram a conversibilidade da união estável em casamento civil (art.
226, § 3.º, parte final, da CF/1988, e art. 1.726 do CC/2002), afirmou que o
reconhecimento do direito de casais homoafetivos ao casamento civil direto
(sem prévia união estável) implicaria a necessidade de declaração de
inconstitucionalidade de dispositivos do Código Civil, o que não seria
possível em sede de ação civil pública pelo controle concentrado de
constitucionalidade ser de competência do STF, que extinguiu o processo,
sem resolução de mérito, por tal motivo.
Sobre tal decisão, algumas considerações: (i) não deveria o magistrado
ter condicionado sua sentença à decisão do STF, pois além de a ação civil
pública em questão versar sobre casamento civil e as ações perante o STF
sobre união estável, o referido magistrado não era obrigado a aguardar a
decisão do STF neste caso; (ii) equivocada sua compreensão sobre
necessidade de declaração de inconstitucionalidade abstrata de artigos do
Código Civil para a procedência da ação, seja pelo cabimento de
interpretação extensiva ou analogia para reconhecer a possibilidade jurídica
do casamento civil homoafetivo (tese principal deste trabalho), na medida
em que o pedido da ação era de aplicação de interpretação conforme a
Constituição para se reconhecer o direito de casais homoafetivos ao
casamento civil; (iii) ou, alternativamente, por ser possível a declaração de
inconstitucionalidade incidental em sede de ação civil pública, consoante
melhor doutrina e jurisprudência acerca do tema – o objeto da ação não era
a inconstitucionalidade abstrata de nenhuma norma, mas o reconhecimento
do direito de casais homoafetivos ao casamento civil, donde possível a
declaração da incidental de inconstitucionalidade da (suposta) proibição
implícita ao casamento civil homoafetivo para, assim, possibilitar a
procedência da ação para se reconhecer o direito de casais homoafetivos ao
casamento civil. Se é admissível a declaração incidental de
inconstitucionalidade em ações individuais, também deve sê-lo em ações
coletivas, ante a ausência de proibição normativa que impeça tal exegese.
Só resta então esperar para ver se os acórdãos dos Tribunais que vierem
a apreciar a ação terão a coragem de aplicar os princípios da isonomia e da
dignidade da pessoa humana nesse caso, ou se continuarão a relegar, por
preconceito, as uniões homoafetivas a um segundo plano do contexto social
de uma forma inequivocamente arbitrária, ou seja, ilógica e irracional.

8. SENTENÇA GAÚCHA AFIRMANDO SEREM O CASAMENTO E


A UNIÃO ESTÁVEL APLICÁVEIS AOS CASAIS
HOMOAFETIVOS
Em decisão inédita, o Juiz Roberto Arriada Lorea, da 2.ª Vara da
Família e Sucessões da Comarca de Porto Alegre, julgou procedente a ação
de dissolução de união estável homoafetiva (Processo 001.181.480-80)
formulada pelos autores.
A Justiça Gaúcha se notabilizou por ser vanguardista no que tange à
defesa dos direitos homoafetivos, já sendo comum o reconhecimento da
união estável homoafetiva (por analogia) naquele Estado. Assim, o fato
inédito desta decisão foi a declaração do magistrado no sentido de que o
casamento civil (assim como a união estável) é aplicável inclusive a
homossexuais, sendo assim vedada a discriminação por orientação sexual.
Em sua decisão, afastou o juiz a preliminar de mérito do Ministério
Público, que alegava que a atual redação do art. 226, § 3.º, da CF/1988
vedaria a união estável homoafetiva e que haveria falta de embasamento
legal que fundamentasse entendimento diverso, entendimento este que
poderia acarretar “preocupantes” reflexos fáticos. Todavia, como o
Ministério Público não explicitou quais seriam esses “preocupantes”
reflexos fáticos, o magistrado descartou essa alegação, ante a ausência de
provas acerca da pertinência da discriminação pretendida por aquele órgão.
Ademais, ressaltou o juiz o entendimento trazido pela Associação
Americana de Antropologia101, que em resposta às declarações feitas pelo
presidente estadunidense George W. Bush, contrário ao casamento civil
homoafetivo, atestou que:

Os resultados de mais de um século de pesquisas antropológicas


sobre unidades domésticas, relações de parentesco e famílias, em
diferentes culturas e ao longo do tempo, não fornecem qualquer tipo
de evidência científica que possa embasar a ideia de que a civilização
ou qualquer ordem social viável dependa do casamento ser uma
instituição exclusivamente heterossexual. Ao contrário, as pesquisas
antropológicas fundamentam a conclusão de que um imenso leque de
tipos de famílias, incluindo famílias baseadas em parcerias entre
pessoas do mesmo sexo, podem contribuir na promoção de sociedades
estáveis e humanitárias.
Ademais, assevera o magistrado que a redação do art. 226, § 3.º, da
CF/1988 não proíbe, em nenhum momento, que a união estável
homoafetiva possa ser protegida pelo ordenamento jurídico, tratando-se tal
questão de lacuna normativa – que, como atesta, de acordo com o art. 4.º da
LINDB, deve ser resolvida pela analogia, pelos costumes e pelos princípios
gerais do Direito. Assim, ante a ausência de proibição expressa na lei,
aliada ao princípio da igualdade e ao fato de que deve o Direito interagir
com as demais ciências (que atestam o fato de serem a homossexualidade e
a bissexualidade tão normais quanto a heterossexualidade, conforme
amplamente demonstrado neste trabalho), aduz o magistrado que não
merece acolhimento a tese de impossibilidade jurídica do pedido levantada
pelo Ministério Público.
Com relação ao mérito, o Ministério Público alegou que não haveria
provas suficientes da união estável dos ex-parceiros homossexuais,
argumento este afastado pelo magistrado ante as provas constantes dos
autos (discussão esta que não interessa ao presente trabalho, que aborda a
questão da possibilidade jurídica do pedido, reconhecida pelo magistrado
que julgou tal ação).
Mas deve ser aplaudida uma luz no fim do túnel: o magistrado Roberto
Lorea Arriada. Já em 2005 proferira sentença que, além de reconhecer a
união estável homoafetiva, afirmou que o próprio casamento civil é possível
de ser contraído por homossexuais, por força do princípio da igualdade. O
autor é peremptório: “... à luz do artigo 3.º, inciso IV, da Constituição
Federal, conforme fundamentação supra, tenho que (não apenas a união
estável, mas também) o casamento, nos moldes como atualmente regulado
pelo legislador, é um instituto passível de ser acessado por todas as pessoas,
independentemente de sua orientação sexual...”102. Em decisão posterior,
afirmou o magistrado com perfeição que: “O casamento civil é um direito
humano – não um privilégio heterossexual”103.
Como se pode ver, nessa sentença o magistrado aplicou na prática parte
daquilo que se defende neste trabalho, qual seja a equiparação dos direitos
dos casais homoafetivos em relação aos heteroafetivos, uma vez que o
contrário configura afronta ao princípio da isonomia. Por mais que a ofensa
à dignidade humana constitucionalmente protegida pela não aplicação do
ordenamento jurídico-familiar em dissoluções de uniões homoafetivas não
tenha sido referida pelo magistrado, a fundamentação deste é suficiente para
demonstrar a possibilidade jurídica do pedido de aplicação dos preceitos do
Direito das Famílias às uniões homoafetivas.
Assim, espera-se que todos aqueles que vierem a julgar pedidos de
casais homoafetivos pleiteando o acesso ao regime jurídico do casamento
civil tenham o mesmo entendimento, pois o contrário configurará ofensa
aos princípios da isonomia e da dignidade da pessoa humana e se
“justificaria”, unicamente, em razão do preconceito ainda existente quando
se trata da homossexualidade.

9. DECISÕES JUDICIAIS QUE RECONHECERAM O DIREITO AO


CASAMENTO CIVIL HOMOAFETIVO APÓS A DECISÃO DO
STF NA ADPF 132 E NA ADI 4.277
Como visto, na primeira edição desta obra dei muita ênfase à decisão
proferida pelo juiz gaúcho Roberto Lorea Arriada, na qual este, após
reconhecer a possibilidade jurídica da união estável homoafetiva, afirmou,
em obter dictum, que não só a união estável, mas também o casamento civil
estão à disposição de homossexuais e, portanto, de casais homoafetivos. A
ênfase, que gerou a transcrição de seu inteiro teor (aqui mantida, no tópico
anterior), se deu porque, na época, era a única decisão de que tive ciência
que mencionava a possibilidade jurídica do casamento civil homoafetivo –
até a notícia que trouxe dito inteiro teor destacava: juiz dá base legal para
casamento homossexual.
Por outro lado, após o histórico julgamento do STF acerca da ADPF
132 e da ADI 4.277, no qual reconheceu o status jurídico-familiar das
uniões homoafetivas e aplicou a elas o regime jurídico da união estável
(reconhecendo-as, inclusive, no conceito constitucional de união estável,
ainda que por analogia), diversas decisões reconheceram o direito de casais
homoafetivos converterem suas uniões estáveis em casamentos civis e
mesmo se casarem diretamente, sem necessidade de prévia união estável.
Com efeito, o ponto comum da fundamentação de tais decisões104 encontra-
se no fato de que, tendo o STF reconhecido a união homoafetiva como
união estável e sendo um dos efeitos da união estável a possibilidade de sua
conversão em casamento civil por força da parte final do art. 226, § 3.º, da
CF/1988 e do art. 1.526 do CC/2002, tem-se por juridicamente possível – e
obrigatória – a possibilidade de conversão de união estável homoafetiva em
casamento civil. Ainda que se prefira entender (equivocadamente) que o
STF não teria reconhecido a união homoafetiva como união estável, mas
como entidade familiar autônoma com igualdade de direitos relativamente à
união estável heteroafetiva, referida igualdade demanda pela possibilidade
de conversão da entidade familiar homoafetiva em casamento civil, sob
pena de se afrontar referida igualdade. Ademais, outros juízes
reconheceram, inclusive, a possibilidade do casamento civil homoafetivo de
maneira direta, o que foi referendado, inclusive, pelo Superior Tribunal de
Justiça, no julgamento do REsp 1.183.378/RS, explicitado no capítulo
anterior, o qual, em síntese, afirmou que os dispositivos legais que
regulamentam o tema se limitam a reconhecer o casamento civil entre o
homem e a mulher sem, todavia, proibir o casamento civil entre pessoas do
mesmo sexo, donde juridicamente possível o pedido de casamento civil
homoafetivo, que deve ser reconhecido pela união homoafetiva configurar
uma família conjugal, que é o objeto valorativamente protegido pelo regime
jurídico do casamento civil (e da união estável). Outras decisões que
permitiram o casamento civil direto a casais homoafetivos entenderam que,
por isonomia relativamente a casais heteroafetivos, se estes podem se casar
diretamente (sem necessidade de prévia união estável), aqueles também
devem ter a si reconhecido tal direito.
Analisemos, assim, os fundamentos das decisões que reconheceram o
direito ao casamento civil homoafetivo após a decisão do STF na ADPF
132 e da ADI 4.277. Iniciemos pelas decisões que deferiram o pedido de
conversão de união estável homoafetiva em casamento civil.
O juiz Fernando Henrique Pinto, de Jacareí/SP, foi o primeiro a
realizar a conversão de união estável homoafetiva em casamento civil, em
decisão proferida em 27.06.2011, sob o fundamento de que: (i) o maior e
mais repetido princípio constitucional é a igualdade; (ii) a Constituição
consagra a dignidade da pessoa humana (art. 1.º, III) e veda preconceitos e
quaisquer formas de discriminação (art. 3.º, inc. IV); (iii) a Constituição
demanda pela conversão da união estável em casamento civil; (iv) o art.
226, § 5.º, ao afirmar a igualdade de direitos entre homens e mulheres na
sociedade conjugal, não declara que o casamento civil se daria
necessariamente entre homem e mulher, até porque sociedade conjugal não
é o mesmo que casamento civil, já que a primeira sempre pôde ser
dissolvida pela separação judicial e o segundo somente pelo divórcio;105
(v) a ADPF 132 e a ADI 4.277 pediam o reconhecimento da união
homoafetiva como entidade familiar com extensão de direitos e deveres dos
companheiros às uniões homoafetivas [e tais ações foram julgadas
procedentes pelo STF]; (vi) os prováveis entraves a esse entendimento
derivam de posições religiosas que não podem ser acolhidas pelo Brasil ser
um Estado Laico (art. 19, inc. I, da CF/1988), em que o Estado não é
vinculado a religião nenhuma, o que é considerado positivo diante de
alguns dogmas religiosos se chocarem contra princípios e garantias da
Constituição; (vii) a discriminação contra homossexuais decorre, ainda, de
equívocos de origem psíquica sobre a homossexualidade, por considerá-la
uma “opção” do indivíduo, o que se afirmou equivocado, pois ninguém
escolhe o sexo por quem sente atração, tratando-se de característica
individual dos seres humanos tão independente de sua vontade quanto a cor
do cabelo, da pele, o caráter, as aptidões etc.; (viii) a discriminação contra
homossexuais também decorre do entendimento religioso segundo o qual o
casamento se destinaria à procriação, algo descabido em termos de
casamento civil, já que “o motivo maior da união humana é – ou deveria
ser – o Amor”, inclusive pregado pela maioria das religiões como valor e
virtude máxima e fundamental; (ix) aqueles que se preocupam com o
potencial envolvimento de crianças e adolescentes na entidade familiar
homoafetiva se esquecem que a falta de planejamento familiar que gera
crianças sem a menor condição de sustento e educação e os abomináveis
assassinatos ou abandonos destas em latas de lixo são diariamente
protagonizados por casais formados por pessoas de sexos opostos, ditos
“normais” por sua heterossexualidade, bem como que o Brasil tem
situações de fato e de Direito muito mais graves para se preocupar do que
com a vida de dois seres humanos desejosos de paz e de felicidade ao seu
modo, sem infringir direitos de ninguém; (x) em 17.05.2011, o Conselho de
Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas (ONU) aprovou uma
resolução histórica destinada a promover a igualdade de todos os seres
humanos sem distinção de orientação sexual; (xi) por tais motivos, julgou
procedente o pedido.
A juíza Junia de Souza Antunes, de Brasília/DF, também converteu
união estável homoafetiva em casamento civil em decisão proferida em
28.06.2011, relativa a processo no qual figuraram como advogadas Maria
Berenice Dias e Eliene Ferreira de Bastos, que fundamentaram o pedido no
fato de o tratamento constitucional destinado à família não fazer referência
ao sexo de seus integrantes, bem como no fato de a disciplina constitucional
do casamento civil nada dizer acerca da identidade sexual dos cônjuges,
uma vez ausente qualquer proibição constitucional ou legal que impeça o
tratamento igualitário dos casais homoafetivos relativamente aos
heteroafetivos, ao passo que obstar a conversão da união estável
homoafetiva em casamento civil configuraria discriminação por orientação
sexual. A magistrada julgou procedente o pedido de conversão sob o
fundamento de que: (i) a decisão do STF em ações de controle concentrado
de constitucionalidade tem efeito vinculante e eficácia erga omnes, donde
ausente espaço para discricionariedade ou livre convencimento do
magistrado; (ii) a decisão do STF no julgamento da ADPF 132 e da ADI
4.277 conferiu interpretação conforme à Constituição ao art. 1.723 do
CC/2002 “para dele excluir qualquer significado que impeça o
reconhecimento da união contínua, pública e duradoura entre pessoas do
mesmo sexo como ‘entidade familiar’, entendida como sinônimo perfeito
de ‘família’. Reconhecimento que é de ser feito segundo as mesmas regras
e mesmas consequências da união estável heteroafetiva”, donde referida
decisão aboliu qualquer interpretação que pretendesse diferenciar as
relações homoafetivas das heteroafetivas, ressaltando que o instituto da
família abarca e protege ambas, uma vez que a união estável homoafetiva
existe nos mesmos moldes da união estável heteroafetiva; (iii) a ressalva do
Ministro Lewandowski no sentido de que a integração analógica em
questão não abarcaria as prescrições legais “que exijam a diversidade de
sexo para o seu exercício, até que sobrevenham disposições normativas
específicas que regulem tais relações” não foi encampada pela conclusão da
Suprema Corte, que ampliou o conceito de união estável para nele incluir
qualquer relação duradoura, pública e contínua, com o intuito de constituir
família, independente do sexo ou da orientação sexual do casal, destacando,
para fundamentar tal conclusão, o voto do Ministro Fux no trecho que
afirma que nada distingue ontologicamente uma união estável heteroafetiva
de uma homoafetiva, de sorte a ambas merecerem o mesmo tratamento
diante da inexistência de fundamento válido ante a isonomia que justifique
tratamento diferenciado entre ambas; (iv) a união estável não é um gênero
que se dividiria entre união estável homoafetiva e união estável
heteroafetiva, pois não existem espécies de união estável, que é um instituto
uno de requisitos únicos, donde configurada relação duradoura, pública e
contínua com o intuito de constituir família, caracterizada estará a união
estável, seja ela formada por pessoas do mesmo sexo ou de sexos diversos,
ou seja, “sem qualquer distinção em relação à orientação sexual daqueles
que a integram”; (v) todos os efeitos e consequências decorrentes da união
estável se aplicam a qualquer união pública, contínua e duradoura, com
intuito de constituir família, formada por duas pessoas, cediço que a
possibilidade de conversão em casamento civil é uma das consequências da
união estável; (vi) a Constituição de 1988 conferiu status de autonomia e
independência à família relativamente ao casamento civil; (vii) persistem
importantes diferenças entre a união estável e o casamento civil, havendo
diferenças nas relações pessoais, patrimoniais e sucessórias, bem como
quanto à prova da união [mais árdua na união estável, já que no casamento
civil basta apresentação da certidão de casamento], entre outros aspectos, já
que, na medida em que o casamento civil apresenta mais direitos [e
facilidades] relativamente à união estável, efeitos estes, inclusive, mais
benéficos, resta evidente o interesse jurídico do pleito de conversão de
união estável em casamento civil; (viii) o casamento civil é um instituto
eminentemente jurídico, a despeito de tradições culturais ou religiosas
relativas ao tema; (ix) citando artigo do autor deste livro,106 no sentido da
inconstitucionalidade do não reconhecimento do casamento civil
homoafetivo por afronta aos princípios da igualdade e da dignidade da
pessoa humana perante a ausência de motivação lógico-racional que
justifique a discriminação de casais homoafetivos relativamente a casais
heteroafetivos por conta unicamente da orientação sexual e do sexo de um
dos membros do casal (pois, se um deles fosse de sexo oposto ao seu, não
se pretenderia obstar seu casamento civil), ante os direitos negados
(isonomia) e pelo arbitrário menosprezo aos casais homoafetivos disso
decorrente, que só serão verdadeiramente felizes se puderem consagrar sua
união amorosa pelo casamento civil [para aqueles que isto desejam],
afirmou que não se sustenta mais, após a decisão do STF, excluir os casais
homoafetivos do direito ao casamento civil; (x) um dos interesses do Estado
em facilitar a conversão da união estável em casamento civil é trazer
segurança jurídica à família e à sociedade, o que não se obtém pela
exclusão de qualquer entidade familiar do instituto do casamento civil; (xi)
o pleito de conversão de união estável homoafetiva em casamento civil se
justifica por força da interpretação conforme à Constituição atribuída pelo
STF ao art. 1.723 do CC/2002, já que o referido reconhecimento se deu
“segundo as mesmas regras e mesmas consequências da união estável
heteroafetiva”, visto que uma dessas consequências é a possibilidade de
conversão da união estável em casamento civil; (xii) por tais razões, julgou
procedente o pedido.
No mesmo sentido, citando essa decisão, o juiz Josmar Gomes de
Oliveira, também de Brasília/DF, converteu união estável homoafetiva em
casamento civil, citando os mesmos fundamentos, em decisão proferida em
30.08.2011, e acrescentando que: (i) “reconhecida a união estável
homoafetiva, não há óbice à conversão daquela em casamento, em
conformidade com o disposto no artigo 1.726 do Código Civil” e que “Essa
conformação jurisprudencial exalta o conceito contemporâneo de família
assentado na afetividade de seus integrantes, independentemente da
formatação (heteroafetiva, homoafetiva, matrimonial, monoparental,
anaparental, pluraparental etc.)”, donde “mostrando-se legítimas as
pretensões das requerentes, na medida em que se apresentam conforme os
preceitos constitucionais que vedam a discriminação em razão do sexo e
sobrelevam a dignidade da pessoa humana” e considerando que “não estão
presentes nenhum dos impedimentos [matrimoniais] relacionados no art.
1.521 do Código Civil, bem como demonstrada a convivência pública,
contínua e duradoura”, a procedência do pedido é medida de rigor.
O juiz Clicério Bezerra e Silva, de Recife/PE, converteu união estável
homoafetiva em casamento civil em decisão proferida em 02.08.2011, pelos
seguintes fundamentos: (i) o tema em discussão transcende uma simples
usurpação principiológica dos princípios da dignidade da pessoa humana,
da cidadania e dos direitos fundamentais à igualdade, liberdade e não
discriminação, por resvalar na própria matriz estruturante do Estado
Republicado – a democracia, donde, em uma sociedade democrática na qual
prevalecem o pluralismo e a convivência harmônica dos contrários, não há
espaço para prevalência de normas jurídicas que conduzam a interpretações
polissêmicas e/ou excludentes dos direitos das minorias, “como se dá no
bojo das normas que restringem a legitimação estatal às relações puramente
heteroafetivas” [se interpretadas de maneira puramente literal], cujo
literalismo acabaria por “estrangular a democracia e, via oblíqua, o próprio
Estado Pluralista de Direito”, pois não mais se admite, vencida a primeira
década do século XXI, que seja negada a plenitude de direitos a uma
parcela significativa dos cidadãos sob torpes justificativas; (ii) um Estado
Democrático de Direito é incompatível com uma cidadania de segunda
classe usurpadora da fruição de direitos e garantias fundamentais a quase
cidadãos ou meios cidadãos, “notadamente, o direito personalíssimo à livre
escolha sexual e à constituição de família com acesso direto e/ou indireto ao
casamento”; (iii) o Brasil é um Estado Laico ou não confessional, o que se
consolidou desde a proclamação da República com a separação entre
Estado e Igreja (Decreto 119-A, de 17.01.1890), sendo sua premissa básica
o acolhimento de todos os segmentos da sociedade brasileira em uma
sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia
social, consoante preconizado pelo preâmbulo constitucional; (iv) os
conceitos constitucionais comprovam o mais eloquente atestado de
evolução democrática “na qual preconceitos ancestrais, vertidos às
minorias, dentre as quais se incluem os cidadãos homoafetivos, sejam
combatidos e extirpados do seio social”; (v) no presente caso temos dois
cidadãos buscando a pura e simples “progressão de uma sociedade conjugal
‘precária’ para um vínculo civil, com o fito de obter a devida tutela estatal
para a nova entidade familiar, a homoafetiva, no perfil das demais
constelações familiares – tidas como legítimas pela inteligência do
ordenamento jurídico posto”; (vi) temos aqui a consagração de uma marcha
social que urge por um denso processo de revisão do arcabouço jurídico
brasileiro, “com vista a garantir o direito personalíssimo à livre orientação
sexual e à proclamação da legitimação ético-jurídica da união homoafetiva
como entidade familiar”, uma “marcha de gente digníssima que se lança ao
sol da liberdade, após décadas viventes sob o pálio sombrio da
discriminação e do medo (de origens externas e internas) e que parece ter
ouvido um chamado audível da autodeterminação e da busca da felicidade”,
donde, diante de tal contexto, o Poder Judiciário, no exercício de sua função
de intérprete da lei, deve estar a isto atento, ciente de que a interpretação de
textos normativos nada mais é do que sua colocação no tempo [atual] ou
sua integração à realidade social, consoante lição de Peter Häberle; (vii) os
dispositivos infraconstitucionais em questão configuram normas de caráter
procedimental tendentes a tornar efetivos os direitos constitucionalmente
assegurados; (viii) acurado procedimento hermenêutico, pautado em uma
interpretação pluralista e aberta dos dispositivos constitucionais que
guardem correspondência com os princípios fundantes do Estado
Democrático de Direito, deve abolir do sistema jurídico dispositivos [e,
acrescento, interpretações de textos normativos] que constituam embaraço à
plena fruição de direitos fundamentais pelos cidadãos, donde o art. 226, §
3.º, da CF/1988 deve ser interpretado de forma abrangente, à luz de seu
próprio caput, que visa proteger a família, sendo que o conceito de família
foi ampliado pela Constituição de 1988, cuja ratio de consagração jurídico-
familiar da união estável foi a de “privilegiar a família socioafetiva à luz da
dignidade da pessoa humana”, com superação do ultrapassado modelo
patriarcal e hierarquizado de família do Código Civil de 1916 em prol de
um sistema que alberga “múltiplas formatações de entidades familiares que
nele coexistem, desde que estas restem atadas com o laço mais visceral que
permeia as relações humanas – a afetividade”, donde imperiosa a inclusão
na esteira de entidades familiares dessa “nova modalidade de configuração
familiar, mantida por pessoas do mesmo sexo, haja vista, dentre outras
razões já esposadas, que estas se fundam, igualmente, nos pilares da
afetividade”; (ix) não parece razoável “à luz da hermenêutica, das
considerações históricas, ideológicas, econômicas, políticas e sociais do
Estado Brasileiro, que aos homoafetivos seja resguardado, tão somente, o
direito de ver[em] reconhecidas suas uniões, que, aprioristicamente, são
estáveis, nos requisitos e formas da lei”, por isto trazer “mitigações sérias
aos direitos fundamentais dos homoafetivos (igualdade, liberdade,
intimidade, não discriminação, etc.)”, assim, se o Estado já previu a
possibilidade de conversão do precário vínculo de afeto (união estável) ao
vínculo institucionalizado (casamento civil) “em prol da verdadeira e mais
abrangente segurança jurídica dos nubentes, no atendimento aos seus
direitos patrimoniais, previdenciários, sucessórios, de procriação, ação,
etc.”, então os arts. 1.723 e 1.726 do CC/2002 devem ser interpretados “de
forma arqueável, a fim de trazer maior robustez à pretensão dos
homoafetivos em ver suas vidas e relações familiares albergadas e
reguladas pelas mesmas normas aplicáveis aos seus pares sociais, sem
distinção ou discriminação de qualquer espécie”, de forma a
concretizarmos o catálogo de direitos fundamentais que vêm sendo negado
aos homoafetivos há décadas; (x) a decisão do STF no julgamento da ADPF
132 e da ADI 4.277, de efeito vinculante e eficácia erga omnes, corrobora o
entendimento supraesposado ao excluir do art. 1.723 do CC/2002 qualquer
significado que impeça o reconhecimento da união contínua, pública e
duradoura entre pessoas do mesmo sexo como entidade familiar, entendida
como sinônimo perfeito de família, em “Reconhecimento que é de ser feito
segundo as mesmas regras e mesmas consequências da união estável
heteroafetiva”, visto que dita decisão reconheceu a união entre pessoas do
mesmo sexo como entidade familiar e lhes estendeu os mesmos direitos e
deveres dos companheiros nas uniões estáveis, “incluindo, aqui, o direito à
conversão da união estável entre pessoas do mesmo sexo em casamento”;
(xi) “Os homoafetivos têm o direito à proteção do Estado às suas relações
afetivas do mesmo modo que os heteroafetivos” e “A questão interessa
apenas aos nubentes que buscam a segurança do ordenamento jurídico para
proteção de sua relação afetiva”, consoante afirmado no parecer do
Ministério Público, da lavra da Dra. Fernanda Ferreira Branco, constante
dos autos; (xii) por silogismo, afirmou a premissa maior, segundo a qual o
STF instituiu [rectius: reconheceu] uma nova entidade familiar – a união
homoafetiva –, equiparando-a à união estável em decisão de efeito
vinculante e eficácia erga omnes, a premissa menor, segundo a qual a
Constituição determina que seja facilitada a conversão da união estável em
casamento civil, e a conclusão, de que, logo, à união homoafetiva também
deve ser facilitada a sua conversão em casamento civil, donde, por
atendidos os requisitos legais e procedimentais da legislação para tanto,
julgou procedente o pedido que lhe foi formulado nesse sentido, findando
com célebre citação de Fernando Pessoa, segundo a qual o amor é que é
essencial, o sexo é só um acidente, pode ser igual ou diferente; o homem
não é um animal, é uma carne inteligente.
O juiz Bruno Machado Miano, de Dracena/SP, converteu união estável
homoafetiva em casamento civil em decisão proferida em 04.08.2011, pelos
seguintes fundamentos: (i) “Só é possível entender a decisão de nossa
Suprema Corte, na Ação Direta de Inconstitucionalidade 4.277 e na
Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 132, tendo em
mente – sempre – a interpretação sistemática que os excelsos Ministros
efetuaram ao analisar a regra do art. 226, § 3.º, da Constituição Federal,
cotejando-a com Princípios, Valores e Objetivos maiores e mais caros ao
Estado Brasileiro, como o da dignidade da pessoa humana (art. 1.º, III,
CF); o da promoção do bem de todos, sem preconceitos de sexo e quaisquer
outras formas de discriminação (art. 3.º, IV, CF); o da igualdade de todos
perante a lei (art. 5.º, caput, CF); e o da vedação de qualquer
discriminação atentatória dos direitos fundamentais (art. 5.º, XLI, CF)”;
(ii) assim, “se os Ministros da Suprema Corte entenderam que a expressão
‘entre o homem e a mulher’, constante no § 3.º do art. 226 da Constituição
Federal, é discriminatória, porque existentes, possíveis e válidas as uniões
entre homem e homem bem como entre mulher e mulher, não parece cabível
manter a constitucionalidade das demais regras vigentes no ordenamento
jurídico brasileiro que estabeleçam essa discriminação, verdadeira
segregação de alguns institutos a apenas alguma espécie de seres humanos
(os heterossexuais)”, sendo que “O que o Supremo Tribunal Federal
pretendeu, julgando tais ações, foi fazer prevalecer aqueles Valores,
Princípios e Objetivos face às regras discriminatórias existentes em nosso
arcabouço jurídico, não permitindo que o afeto e o amor sirvam como razão
de discrímen para institutos como união estável, casamento e adoção, por
exemplo”; (iii) citou as decisões de Jacareí/SP e Brasília/DF,
supratranscritas, bem como uma de Cajamar/SP, que também adotaram essa
exegese para permitir a conversão de união estável homoafetiva em
casamento civil; (iv) afirmou que, “Acima de tudo, trata-se do
reconhecimento do Amor como Valor Jurídico extremamente importante, e
fundante das sociedades humanas”;107 (iv) com base nessas razões, julgou
procedente o pedido em questão.
O juiz Fernando Dominguez Guiguet Leal, de Franco da Rocha/SP,
converteu união estável homoafetiva em casamento civil em decisão
proferida em 19.08.2011, com base nos seguintes fundamentos: (i) a
decisão do STF no julgamento da ADPF 132 e da ADI 4.277 “afastou-se
qualquer interpretação do artigo 1.723 do C. Civil que impeça o
reconhecimento da união entre pessoas do mesmo sexo como entidade
familiar”, anotando que mostrou-se acertada a decisão, já que no Brasil e no
mundo diversas pessoas vivem em união estável homoafetiva, ao passo que
o casamento civil garante mais direitos que a união estável, razão pela qual
entende que, por força dos “princípios da igualdade, da dignidade humana e
da proibição de discriminação, não há justificativa legítima a sustentar a
proibição”; (iii) a laicidade estatal justifica tal posicionamento, já que
estamos a tratar de casamento civil e não de casamento religioso; (iv)
irrelevante o argumento da ausência de procriação, já que não se proíbe o
casamento civil entre casais heteroafetivos estéreis; (v) “a redação dos
artigos 1.514 e 1.535 do C. Civil, por se referir ao homem e à mulher e à
marido e mulher, respectivamente, não pode servir de empecilho ao
casamento civil homoafetivo, já que tratou da regulamentação do
casamento heteroafetivo, sem, contudo, dispor qualquer proibição ao
casamento ora pretendido, permitindo, portanto, a aplicação da analogia e
da interpretação extensiva decorrente dos princípios constitucionais já
citados, que se encontram no topo da hierarquia das normas”; (vi) “a Lei
Maria da Penha, em seu artigo 5.º, inciso II, parágrafo único, traçou novos
contornos ao conceito de família, tendo estabelecido compreender a família
como unidade formada por indivíduos que são ou se consideram
aparentados, unidos por laços naturais, por afinidade ou por vontade
expressa, cujas relações pessoais independem de orientação sexual”; (vii)
para finalizar, afirmou que “para que a sociedade evolua de forma pacífica,
equilibrada e harmoniosa, é que estejam presentes nas famílias, qualquer
que seja sua formação, o amor familiar, o respeito, o entendimento, a
compreensão, a orientação e a tolerância, sentimentos e virtudes
imprescindíveis para o sadio desenvolvimento de seus integrantes”; (viii)
por esses fundamentos, deferiu o pedido formulado.
O juiz Mario Sergio de Menezes, da Corregedoria Permanente de
Limeira/SP108, converteu união estável homoafetiva em casamento civil em
decisão de 30.08.2011 sob os seguintes fundamentos: (i) sobre a afirmação
do parecer ministerial contrária à possibilidade jurídica da conversão por
ausência de dispositivo legal que a autorize para casais formados por
pessoas do mesmo sexo, afirmou que “tal interpretação tampão é pouco
para solucionar algo que envolve direitos fundamentais com muitas
implicações”, pois o sistema normativo consagra a regra segundo a qual
todos os comportamentos humanos ou estão positivamente regulados ou
estão negativamente permitidos [Regis de Oliveira], donde sua atuação
judicial não configura ação de “legislador positivo”, mas de respeito à
eficácia do direito já existente, “que é o direito fundamental, previsto na
Constituição”; (ii) “Cuida-se, desse modo, de cumprimento da importante
missão conferida aos juízes e tribunais, consistente em zelar pelos direitos
fundamentais dos cidadãos”, donde “Não se trata de ultrapassagem dos
limites da atribuição constitucional da jurisdição”, pois no nosso sistema
possui permissivo legal que confere ao julgador o poder de colmatar
lacunas no art. 4.º da LICC [atual LINDB]”; (iii) “o Estado investido de
representante da sociedade paulatinamente passou a reconhecer e conceder
direitos civis aos casais do mesmo sexo vivendo em união habitual”; (iv) o
STF, no julgamento da ADPF 132 e da ADI 4.277, “deu eficácia jurídica à
união estável entre casais do mesmo sexo, equiparando-a a entidade
familiar, com efeito vinculante e normativo segundo a regra do art. 102,
§2º, da CR/88”, sendo que “O resultado do julgamento proferido pela
Excelsa Corte passou a constituir disposição jurídica integrada ao sistema,
o que permite ao juiz aplicá-lo através de uma interpretação extensiva,
tendo como pressuposto que, se o Supremo Tribunal Federal reconheceu a
união estável para casais do mesmo sexo, dando interpretação conforme a
Constituição Federal (princípios da igualdade e da dignidade da pessoa
humana), para excluir qualquer significado do art. 1.723 do Código Civil
que impeça o reconhecimento da união entre pessoas do mesmo sexo como
entidade familiar, é porque o entendimento consolidado na Corte Maior é
de que no nosso atual sistema já não subsiste a diferença jurídica entre
homens, mulheres e homossexuais ou, para ser mais específico, entre
heterossexuais e homossexuais. Portanto, conclui-se que não se justifica
tratamento distinto dos dois e que os direitos civis devem estender-se, por
analogia, aos homossexuais”; (iii.1) assim, “Examinando a questão à luz
das considerações de Alf Ross109, é possível sustentar cum grano salis que
o Supremo Tribunal Federal afirmou que não há mais distinção, no âmbito
dos direitos civis, entre sujeitos heterossexuais e homossexuais. É dizer, em
outras palavras, se ele disse estar excluído do texto do art. 1.723 do CC
qualquer significado que impeça o reconhecimento da união estável entre
pessoas do mesmo sexo como entidade familiar, com efeito vinculante e
normativo, permitiu extrair que a nova interpretação do referido artigo seja
compreendida em relação a outros casos, cuja situação equipara-se àquele,
mas não está normatizada”; (iv) embora afirme que tais fundamentos
bastassem para a procedência do pedido, acrescenta que: (iv.1) não cabe o
uso de dogmática religiosa para decidir o tema, porque “As interpretações
das religiões em temas de interesse da sociedade são, em sua maioria, muito
duras, quando conflitam com seus dogmas. O problema é que a sociedade
se modificou muito no último século, resultado da Secularização, de modo
que ela apresenta novas relações, novas necessidades, que as religiões,
engessadas por dogmas, não conseguem se adaptar”; (iv.2) a gradativa
evolução dos direitos fundamentais está ligada ao poder transformador do
Poder Judiciário – diversas mudanças na sociedade tiveram início nos
Tribunais “através da atuação transformadora dos juízes, ante a recusa ou
demora na criação de dispositivos legais”, como no período denominado
como crise da sociedade escravista dos vinte anos finais do Império,
decorrente de novas interpretações baseadas no “princípio do direito natural
à liberdade individual”, de sorte a precipitar, também pela via judicial, o fim
da escravidão, interpretação esta acolhida por alguns juízes que
reconheceram a liberdade de inúmeras pessoas escravizadas ilegalmente
[André Koerner], donde se percebe que “a atuação dos juízes em prol da
efetividade dos direitos e garantias fundamentais, como se pode observar,
desde o Império, precede a criação de dispositivos legais que depois
acabam sendo introduzidos no ordenamento jurídico, mas sempre e somente
após a corajosa atuação de juízes então considerados heterodoxos, outsiders
etc., mas que não se acomodaram em atuar na promoção dos direitos
fundamentais”; (iv.3) “No caso desta temática, é incontestável que, na
atualidade, a união entre pessoas do mesmo sexo é uma realidade e toma
conta da sociedade, eu não a repudia, ao contrário, recebeu-a de braços
abertos. Em 1975, quando o atual Código Civil foi redigido, era
inconcebível falar em união de pessoas do mesmo sexo e em 1916, ano de
criação do Código Civil revogado talvez isso nem fosse pensado. Até
porque, basta lembrar que este último continha dispositivo que dava ao
marido direito de devolver a noiva à casa paterna, se descobrisse nas
núpcias que ela já tinha sido deflorada. Os tempos são outros, e a união
estável de pessoas do mesmo sexo constitui uma realidade imposta ao
direito. Seus operadores devem enfrentá-la desapegados de dogmas
religiosos e preconceitos sociais”, pois “Negar o acesso a estas pessoas aos
mesmos direitos civis que gozam as pessoas heterossexuais configura uma
forma legalizada de segregação e isso não representa o espírito da
Constituição Federal. Os princípios da igualdade e da dignidade da pessoa
humana foram erigidos à categoria de direitos fundamentais com a
finalidade de agregar e não de excluir, acabar com as desigualdades, não
criar barreiras. Na definição de Karl Engisch, ‘O Direito é, historicamente,
produto de interesses’, como tal, deve ser visto como algo que está a serviço
da sociedade. Destinado a resolver e pacificar os interesses particulares e
coletivos, não deve existir constrangimento quando mudanças na sociedade
exigem configuração diferente das leis e alteração da interpretação dos
comportamentos. Quase nada há de justo ou injusto que não mude de
natureza com a mudança de clima. (...) Enfim, na atualidade, a promoção
da igualdade entre os seres humanos, sem distinção de orientação sexual, é
uma tendência universal o que pode ser entendido com a aprovação da
Resolução ‘Direitos Humanos, orientação sexual e identidade de gênero’,
pelo Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas, apresentada por
África do Sul e Brasil”. Por tais razões, converteu a união estável
homoafetiva em questão em casamento civil.
O juiz Wlademir Paes de Lira, da 26ª Vara Cível/Família da Comarca
de Alagoas, converteu união estável homoafetiva em casamento civil em
decisão de 25.11.11110 pelos seguintes fundamentos: (i) afirmou que sempre
entendeu a união homoafetiva como entidade familiar autônoma, pelo
caráter aberto (exemplificativo) do rol de entidades familiares do art. 226 da
CF/88 e, embora entendesse que casamento civil e união estável suporiam a
diversidade de sexos, por força da “perspectiva de uniformização ética das
decisões [judiciais]” curvou-se ao entendimento do STF que qualificou a
união homoafetiva como união estável, donde reconheceu o direito ao
casamento civil a casais homoafetivos, na medida em que o mesmo
raciocínio (de interpretação extensiva) que reconhece a união estável
homoafetiva se aplica para o reconhecimento do casamento civil
homoafetivo111; (ii.1) com efeito, “Se a não inclusão dos casais
homossexuais no artigo 1.723, o torna inconstitucional, por ferir direitos
fundamentais como os da igualdade, da proibição de discriminação em
função da orientação sexual e o da liberdade de se constituir em família,
entre muitos outros, a não extensão no dispositivo que trata do casamento,
às uniões entre pessoas do mesmo sexo, torna este último igualmente
inconstitucional, por ferir exatamente os mesmos direitos que na decisão da
união estável o STF procurou garantir”. Assim, permitiu a habilitação do
casamento em questão.
Na 2ª Vara de Família e Sucessões da Comarca de Santos/SP foi
convertida união estável homoafetiva em casamento civil em decisão de
12.12.2011112 afirmando que “é de rigor reconhecer a constituição de união
estável e, consequentemente, de entidade familiar entre as correquerentes,
desde 31/7/2009, com fundamento nos termos do artigo 226, § 3º, da
Constituição da República e no artigo 1.723 do Código Civil, interpretados
de acordo com os princípios da dignidade da pessoa humana, da igualdade,
da vedação da discriminação e da busca pela felicidade” e que “O direito
das correquerentes a se casarem civilmente ou terem sua união estável
convertida em casamento civil é inequívoco pelos motivos já expostos no
item anterior e pelo fato do já citado § 3º do artigo 226 da Constituição
Federal determinar que a lei deve facilitar a conversão da união estável em
casamento. Neste sentido, foi o recente posicionamento da 4ª Turma do
Superior Tribunal de Justiça, que, no julgamento do Recurso Especial n.º
1183378 do RS, realizado no dia 25/10/2011, proveu recurso de duas
mulheres que pediam para ser habilitadas ao casamento civil e concluiu que
a dignidade da pessoa humana, consagrada pela Constituição, não é
aumentada nem diminuída em razão do uso da sexualidade, e que a
orientação sexual não pode servir de pretexto para excluir famílias da
proteção jurídica representada pelo casamento”.
A juíza Rafaela de Melo Rolemberg, da Comarca de Guarulhos/SP113,
converteu união estável homoafetiva em casamento civil em decisão de
07.02.2012 sob os seguintes fundamentos: (i) “resta superada a discussão
acerca da aplicação dos direitos oriundos da união estável aos casais do
mesmo sexo” em razão da decisão do STF na ADPF 132 e na ADI 4277;
(ii) “a decisão acima mencionada, cujos efeitos são vinculantes e erga
omnes, ao afastar qualquer interpretação discriminatória do art. 1.723 do
Código Civil que impedia o reconhecimento da união entre pessoas do
mesmo sexo como entidade familiar, não só reconheceu como união estável
a união contínua, pública e duradoura entre pessoas do mesmo sexo, como
também garantiu todos os efeitos jurídicos dela decorrentes, dentre os quais
o recebimento de pensão e herança, partilha de bens, adoção, mudança de
nome e, em especial o direito da conversão ao casamento civil. Nesse
contexto, perfeitamente aplicável o art. 1.726 do Código Civil Brasileiro,
segundo o qual os conviventes podem requerer a conversão da união
estável em casamento, mediante pedido ao juiz para posterior assento no
Registro Civil da Circunscrição de seus domicílios”, especialmente porque
“conferir tratamento isonômico à união estável entre pessoas do mesmo
sexo nada mais é do que efetivar os princípios constitucionais da dignidade
da pessoa humana, igualdade e da promoção do bem de todos sem
discriminação ou preconceito”.
A 8ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, relator
Desembargador Luiz Felipe Francisco, converteu união estável homoafetiva
em casamento civil em decisão de 17.04.2012114 sob o fundamento de que
“O Supremo Tribunal Federal, em decisão proferida na ADI 4.277/DF,
atribuiu eficácia erga omnes e efeito vinculante à interpretação dada ao art.
1.723, do Código Civil, para excluir qualquer significado que impeça o
reconhecimento das uniões homoafetivas como entidades familiares, desde
que configurada a convivência pública, contínua e duradoura e estabelecida
com o objetivo de constituição de família. A Constituição da República
determina seja facilitada a conversão da união estável em casamento.
Portanto, presentes os requisitos legais do art. 1.723, do Código Civil, não
há como se afastar a recomendação constitucional, conferindo à união
estável homoafetiva os mesmos direitos e deveres dos casais heterossexuais,
tal como sua conversão em casamento”, bem como destacando o
“Precedente do STJ [REsp n.º 1.183.378/RS] que admitiu o próprio
casamento homoafetivo, a ser realizado por simples habilitação in casu,
forçoso é de concluir que merece reforma a decisão monocrática,
convertendo-se a união estável caracterizada nos autos em casamento”.
O juiz Adonias Barbosa da Silva, da 03ª Vara da Família de Tocantins,
converteu união estável homoafetiva em casamento civil em decisão de
23.04.12115 pelos seguintes fundamentos: (i) “até há pouco a jurisprudência
orientava apenas no sentido de reconhecimento das uniões formadas entre
homem e mulher, mas com o avanço doutrinário e jurisprudencial, passou a
considerar a existência, também, de família entre pessoas do mesmo sexo
que buscam a felicidade juntas”; (ii) “O casamento é um ato festejado tanto
pelos poetas, quanto pelos teólogos. É exercitado pelos povos ricos e pelos
mais humildes, porém todos o consideram meio sereno de se alcançar a
felicidade”; (iii) cita julgado do TJRS segundo o qual o caput do art. 226 da
CF/88 é uma norma de inclusão, donde não ser lícito excluir qualquer
entidade familiar que preencha os requisitos da efetividade [sic116],
estabilidade e notoriedade, sendo exemplificativo o rol de entidades
familiares ali previsto, de sorte a se garantir a inclusão das entidades
familiares implícitas (AC n.º 700039676776); (iv) cita o art. 5.º, §§ 1.º e 2.º,
segundo os quais as normas de direitos e garantias fundamentais têm
aplicabilidade imediata e não excluem outras decorrentes do regime
constitucional, dos princípios constitucionais e dos tratados internacionais
dos quais o Brasil faça parte; (v) afirma que está pacificado que a união
estável é uma forma de família e, agora, com a decisão da Suprema Corte,
que é possível a constituição de união estável por pessoas do mesmo sexo,
donde, tendo a Constituição garantido às pessoas que vivam em união
estável o direito de convertê-la em casamento civil (art. 226, § 3.º, parte
final), tem-se que “o caminho mais seguro é a procedência do pedido
inicial, autorizando assim que as Requerentes exercitem o direito de busca
da felicidade, estando afastados quaisquer óbices à conversão de união
estável homoafetiva em casamento civil entre pessoas do mesmo sexo por
força da decisão do STF na ADPF 132 e na ADI 4.277 [momento no qual
pediu venia a seus ex-alunos por ter dito o contrário quando lecionou a
disciplina].
O Conselho Superior da Magistratura do Tribunal de Justiça de São
Paulo, relator Corregedor José Renato Nalini, proveu diversos recursos e
negou provimento a outro para reconhecer o direito de casais homoafetivos
converterem sua união estável homoafetiva em casamento civil em decisão
de 31.05.2012117 sob o fundamento de que a decisão do STF na ADPF 132
e na ADI 4.277 reconheceu como entidade familiar a união estável
homoafetiva em um “Reconhecimento que é de ser feito segundo as
mesmas regras e as mesmas consequências da união estável heteroafetiva”,
donde, sendo uma das consequências da união estável a possibilidade de
conversão em casamento civil, o efeito vinculante da decisão do STF obriga
ao reconhecimento do direito de conversão da união estável homoafetiva
em casamento civil. A decisão destacou, ainda, a decisão do STJ no REsp
n.º 1.183.378/RS, que permitiu o casamento civil a duas mulheres, donde
decidiu motivado nestas duas decisões – razão pela qual entendo que
também reconheceu o direito ao casamento civil direto, sem necessidade de
prévia união estável.
O Registro Civil de Pessoas Naturais de Florianópolis/SC converteu
união estável homoafetiva em casamento civil em decisão de 11.07.2012118
sob os seguintes fundamentos: (i) “Embora a mencionada decisão do
Supremo Tribunal Federal [ADPF 132 e ADI 4.277] não se refira à
possibilidade de casamento, a própria Constituição da República, art. 226, §
3.º, parte final, menciona que a Lei deverá facilitar a conversão da união
estável em casamento. Portanto, a partir da mesma tônica presente na
razão de decidir do Supremo Tribunal Federal, caso não haja tal
conversão, haverá descumprimento àquela decisão; se o Supremo Tribunal
Federal decidiu, com eficácia erga omnes e efeito vinculante, que casais do
mesmo sexo poderão constituir união estável, é possível, dentro da mesma
razão de decidir, autorizar a conversão desta em casamento”; (ii) o STJ, no
REsp 1.183.378/RS, reconheceu o direito a duas mulheres se casarem
civilmente porque, “Seguindo o voto do relator, ministro Luis Felipe
Salomão, a Turma concluiu que a dignidade da pessoa humana, consagrada
pela Constituição, não é aumentada nem diminuída em razão do uso da
sexualidade, e que a orientação sexual não pode servir de pretexto para
excluir famílias da proteção jurídica representada pelo casamento”, sendo
que “o Poder Legislativo poderia, se quisesse, ter utilizado expressão
restritiva, de modo que o casamento entre pessoas do mesmo sexo ficasse
definitivamente excluído da abrangência legal, o que não ocorreu” [e,
segundo o magistrado, “nem poderia” fazer] e na afirmação de que “Por
consequência, o mesmo raciocínio utilizado, tanto pelo STJ quanto pelo
Supremo Tribunal Federal (STF), para conceder aos pares homoafetivos os
direitos decorrentes da união estável, deve ser utilizado para lhes
franquear a via do casamento civil, mesmo porque é a própria Constituição
Federal que determina a facilitação da conversão da união estável em
casamento”; (ii.1) destacou o voto do Ministro Marco Buzzi no sentido de
que “a união homoafetiva é reconhecida como família. Se o fundamento de
existência das normas de família consiste precisamente em gerar proteção
jurídica ao núcleo familiar, e se o casamento é o principal instrumento para
essa opção, seria despropositado concluir que esse elemento não pode
alcançar os casais homoafetivos. Segundo ele, tolerância e preconceito não
se mostram admissíveis no atual estágio do desenvolvimento humano”; (iii)
citou a decisão do TJRJ na AC n.º 007252-35.2012.8.19.0000 na colocação
de que “o ordenamento jurídico não veda expressamente o casamento entre
pessoas do mesmo sexo e que, ‘portanto, ao se enxergar uma vedação
implícita ao casamento entre pessoas do mesmo sexo, estar-se-ia afrontando
princípios consagrados na Constituição da República, quais sejam, os da
igualdade, da dignidade da pessoa humana e do pluralismo’” e de que “se a
Constituição da República determina que seja facilitada a conversão da
união estável em casamento, e se o STF determinou que não fosse feita
qualquer distinção entre uniões hetero e homoafetivas, ‘não há que se
negar aos requerentes a conversão da união estável em casamento, máxime
porque consta dos autos a prova de convivência contínua, estável e
duradoura’. ‘Ressalte-se, por oportuno, que o Direito não é estático,
devendo caminhar com a evolução dos tempos, adaptando-se a uma nova
realidade que permita uma maior abrangência de conceitos, de forma a
permitir às gerações que nos sucederão conquistas dos mais puros e lídimos
ideais’”; (iv) citou a lição de Maria Berenice Dias no sentido de que a
família homoafetiva, no contexto das famílias plurais, merece proteção
constitucional e a afirmação da autora de que entre os impedimentos para o
casamento, de fato, não se impõe como condição a diversidade de sexos,
donde o argumento de que o pedido não poderia ser conhecido por inexistir
lei sobre o tema colide com a determinação de que o juiz não poderá se
omitir de julgar na ausência de lei, ante a determinação do próprio sistema
de que julgue mesmo havendo omissão da lei, segundo a analogia, os
costumes e os princípios gerais do direito, razão pela qual concluiu que, em
face das razões expostas pelo STF da ADPF 132, é de se aplicar tal regra,
a fim de reconhecer, analogicamente, a possibilidade da conversão da
união estável homoafetiva em casamento civil; (v) “O parecer do Ministério
Público de f. 61119 beira à homofobia. Não posso no espaço público impor
minhas concepções de mundo, especialmente preconceituosas e
discriminatórias. Padrão de normalidade em sexualidade, conforme
apontado pela manifestação, parece ser a autoritária família monogâmica,
hetero, machista e monocromática. Essa decisão aceita a diversidade, o
colorido, porque não pode acreditar que o Estado deve exigir modelo único
de felicidade familiar. Aliás, por fim, cabe dizer que o Estado – e a
Constituição da República – deve garantir, conforme Habermas (mas talvez
seja querer demais), a cláusula do Livres e Iguais. E iguais não se
distinguem pela cor, idade, sexo ou profissão!”. Por essas razões, julgou
procedente o pedido [grifos nossos].
O juiz Frederico dos Santos Messias, da 4ª Vara Cível da Comarca de
Santos/SP, converteu união estável homoafetiva em casamento civil em
decisão de 17.07.2012120 sob os seguintes fundamentos: (i) a decisão do
STF na ADPF 132 e na ADI 4.277 conferiu interpretação conforme ao art.
1.723 do CC/2002 para dele excluir qualquer significado que impeça o
reconhecimento de união estável entre pessoas do mesmo sexo, atribuindo-
lhe o caráter de “entidade familiar”, entendida esta como sinônimo perfeito
de “família”; (ii) “Na esteira da decisão proferida pelo Supremo Tribunal
Federal, sobreveio decisão do Superior Tribunal de Justiça, no Recurso
Especial 1.183.378-RS, com origem na 4ª Turma, por maioria de votos,
para deferir a habilitação de casamento para a hipótese de um
relacionamento homoafetivo, fundada a conclusão no princípio da
dignidade da pessoa humana”; (iii) “a entidade familiar formada a partir de
uma união homoafetiva sempre mereceu a proteção conferida pelo artigo
226, ‘caput’, da Constituição Federal, mesmo antes das decisões proferidas
pelos Tribunais Superiores, na medida em que somente fizeram reconhecer
o preexistente caráter familiar do relacionamento homoafetivo”, donde
continuar e concluir da seguinte forma:

Indago: O caráter familiar da relação entre pessoas do mesmo


sexo, baseada no princípio da afetividade, nasceu da decisão judicial?
É claro que não! A formação da família, enquanto entidade fundada na
afetividade dos seus membros, nasce do amor, da cooperação mútua,
do respeito, características que independem do sexo das pessoas que a
integram. Por isso mesmo, com o devido acatamento, é desnecessária a
edição de qualquer diploma legislativo para reconhecer a possibilidade
do casamento entre pessoas do mesmo sexo nos mesmos moldes do
casamento entre pessoas de sexos diferentes. Por que tratar diferente
os iguais? Sim, porque não vislumbro diferença substancial entre
relacionamentos formados por pessoas do mesmo sexo ou por pessoas
de sexos diferentes. Ofende o princípio da dignidade humana a
decisão judicial que se propõe omissa ao argumento da falta de lei. As
relações estáveis homoafetivas têm direito ao casamento e não se
revela consentâneo com o espírito da igualdade, impregnado no Texto
Constitucional, impedir o casamento baseado no amor. Por fim, anoto
que estamos diante uma nova geração, com valores e conceitos
diversos das gerações anteriores, que muitas das vezes oprimiam os
relacionamentos homoafetivos, cabendo-nos agora a função de nos
educarmos e de educarmos nossos filhos a aprender conviver com uma
nova família, que em nada difere do modelo até então conhecido, pois
que todas são baseadas no princípio da afetividade. Pelo exposto,
DEFIRO A HABILITAÇÃO” [grifo nosso].

A 3ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Norte,


relatora Desembargadora Sulamita Bezerra Pacheco, deu provimento a
recurso para converter união estável homoafetiva em casamento civil em
decisão de 23.08.12121 pelos seguintes fundamentos: (i) errou o juízo a quo
ao afirmar a impossibilidade jurídica do pedido, “porquanto a
‘possibilidade jurídica do pedido’ decorre da ausência de proibição legal da
conversão da união estável homoafetiva em casamento, o que torna
plenamente aferível a sua procedência ou não, até por interpretação
extensiva ou analógica”, donde passou a decidir o mérito do tema por se
tratar de questão exclusivamente de Direito (cf. art. 515, § 1.º, do
CPC/1973); (ii) “como sabido, o Plenário do Supremo Tribunal Federal, à
unanimidade de votos, na análise conjunta da ADPF 132-RJ e da ADI
4.277, reconheceu a união contínua, pública e duradoura de pessoas do
mesmo sexo como legítima entidade familiar, abolindo quaisquer distinções
interpretativas entre as relações homoafetivas das heteroafetivas. Ou seja,
consagrou, no julgado histórico referido, a igualdade de direitos das
pessoas independentemente de sexo ou orientação, garantindo as mesmas
regras e consequências das uniões estáveis heteroafetivas às homoafetivas,
equiparando-as, pois, de modo igualitário (isonômico) sem quaisquer
diferenciações. Nele, a Corte Maior Constitucional, esteando-se nos
princípios, direitos e garantias fundamentais (preâmbulo, arts. 1.º III, 3.º, I e
IV e 5.º, caput, I, II e X, da CF) explicou o verdadeiro sentido axiológico do
art. 226, § 3.º, da CF, bem como deu ao art. 1.723 do CC interpretação
conforme à Constituição, dissipando quaisquer questionamentos em
contrário, ante a eficácia erga omnes e efeito vinculante da orientação içada
em sede de controle abstrato de constitucionalidade (§ 2.º, do art. 102 da CF
e parágrafo único, do art. 28, da Lei 9.868/1999)”, momento no qual
transcreveu a ementa e trechos dos votos dos Ministros Ayres Britto e Fux –
aquele na vedação a discriminações por sexo e na vedação à discriminação
dos heteroafetivos relativamente aos homoafetivos (do que se destaca a
“proposição de que a isonomia entre casais heteroafetivos e pares
homoafetivos somente ganha plenitude de sentido se desembocar no igual
direito subjetivo à formação de uma autonomizada família” e a afirmação
de que o “Casamento civil, aliás, [é] regrado pela Constituição Federal
sem a menor referência aos substantivos ‘homem’ e ‘mulher’”), este na
afirmação de que nada distingue ontologicamente as uniões estáveis
heteroafetivas das homoafetivas por ambas manterem entre si uma relação
de afeto, suporte e assistência recíprocos criadora, em comunhão, de
projetos de vida duradoura em comum, donde merecer esta a mesma
proteção constitucional conferida àquela; (iii) “Desta feita, inafastável a
decisão suprema da aludida Augusta Casa, a qual expressou
peremptoriamente a condição igualitária de tratamentos da união estável
homoafetiva com a heteroafetiva, e as caracterizou, de forma equiparada,
como ‘núcleo familiar’. E, como positivado no art. 226, § 3.º, da CF, a
conversão da união estável em casamento deve ser facilitada pela lei. (...)
De mais a mais, não há no Código Civil qualquer imposição restritiva no
sentido de que o casamento civil se perfectibilize apenas com sexos
diversos, isto é, não há proibição para a sua concretização entre pessoas
do mesmo sexo. Contrariamente, a possível omissão legislativa é suprível
pela Lei de Introdução as Normas do Direito Brasileiro (antiga Lei de
Introdução ao Código Civil), especificamente no seu art. 4º: (...) Logo,
perfeitamente admissível no nosso ordenamento jurídico brasileiro o pleito
communis consensus de Conversão da União Estável Homoafetiva em
Casamento Civil, de modo identicamente permitido a de natureza
Heteroafetiva. Doutro turno, o STJ, Órgão competente máximo para análise
da legislação infraconstitucional do País, aí inserida o Código Civil,
recentemente (j. 01.02.2012), elucidou mais ainda a matéria, textualmente
proclamando, de forma incisiva, no REsp 1.183.378/RS (j. 25.10.2011, p.
01.02.2012) que ‘...os arts. 1.514, 1.521, 1.523, 1.535 e 1.565, todos do
Código Civil de 2002, não vedam expressamente o casamento entre pessoas
do mesmo sexo, e não há como se enxergar uma vedação implícita ao
casamento homoafetivo sem afronta a caros princípios constitucionais,
como o da igualdade, o da não discriminação, o da dignidade da pessoa
humana e os do pluralismo e livre planejamento familiar ...’”; (iv) “Aliás,
pensar de modo diferente, é o mesmo que fomentar insegurança jurídica a
estas situações (dirimidas pelos Guardiões Máximos Constitucional e
Infraconstitucional), afrontar a dignidade da pessoa humana, discriminar
preconceituosamente o optante [sic] pelo mesmo sexo, vilipendiar os
princípios da isonomia e da liberdade, e retirar da família constituída pelo
casal homoafetivo a proteção Estatal arraigada na Carta Magna, reduzindo-
a a uma subcategoria de cidadão e conduzindo-a ao vale do ostracismo. (...)
Frise-se que o Conselho de Direitos Humanos da ONU, no dia 17/06/11,
elaborou a Resolução A/HRC/17/19 (na qual o Brasil, inclusive, votou pela
sua aprovação) objetivando promover a igualdade das pessoas sem
distinção da orientação sexual e encontrar meios para estancar a violência e
a violação dos direitos humanos cometidas por motivo de orientação sexual
e identidade de gênero (...)”; (v) “a família é a base da sociedade e sua
concretização formal se dá de forma mais ampla através do casamento,
buscado por muitos no incessante almejo do bem maior da vida, ‘O
AMOR’, desaguador da sonhada ‘FELICIDADE’”122; (vi) “Ademais, a
opção sexual [sic] do ser humano voltada à formação da família, não deve
ser motivo de críticas destrutivas, mas sim de integral proteção estatal, até
porque, como há muito apregou o poeta Machado de Assis em seu primeiro
romance denominado Ressurreição ‘Cada qual sabe amar a seu modo; o
modo pouco importa; o essencial é que saiba amar’. (...). Por derradeiro,
sob a ótica da justiça e do respeito real ao Estado Democrático de Direito, é
de se focar a sempre lembrada doutrinadora Maria Berenice Dias: ‘... O
caminho está aberto. Basta que os juízes cumpram com sua verdadeira
missão: fazer justiça. Acima de tudo, precisam ter sensibilidade para tratar
de temas tão delicados como as relações afetivas, cujas demandas precisam
ser julgadas com mais sensibilidade e menos preconceito. Os princípios da
justiça, igualdade e humanidade devem presidir as decisões judiciais.
Afinal, o símbolo da imparcialidade não pode servir de empecilho para o
reconhecimento de que a diversidade necessita ser respeitada, Não mais se
concebe conviver com a exclusão e com o preconceito em um Estado
Democrático de Direito...’ (Revista Magister de Direito Civil e Processual
Civil, 32 – set./out. 2009, p. 47/60)”. [grifos nossos]. Assim, deferiu a
conversão da união estável homoafetiva em casamento civil em questão.
Analisemos, agora, as decisões que deferiram casamento civil
homoafetivo diretamente, sem que houvesse prévia união estável.
A juíza Gardênia Carmelo Prado, da 02ª Vara Privativa de Assistência
Judiciária da Comarca de Sergipe, permitiu habilitação em casamento civil
(direto) a um casal homoafetivo em decisão de 03.05.12123 sob os seguintes
fundamentos: (i) não vislumbra dificuldade “no trato jurídico de um aspecto
tão inerente à condição humana: amar e ser amado. Afinal, o amar entre
pessoas adultas e em plena capacidade de pensar e de determinar-se de
acordo com isso deve ser sempre respeitado e honrado”124; (i.1); (ii) “A
diversidade dos papéis socioculturais, e em especial a orientação sexual dos
indivíduos não deve importar a colocação dos casais homossexuais à
margem da lei. Eles, como os casais heterossexuais, são tão destinatários
dos princípios constitucionais da igualdade, da dignidade da pessoa
humana, da nuclearização da família, da intimidade, da privacidade, e de
outros atrelados à condição dos indivíduos em relação a si mesmo[s] e em
relações entre si e com a sociedade, como quaisquer outros cidadãos”; (iii)
“A par da necessidade de interpretar a norma constitucional conforme ela
própria, não devemos deslembrar que, em que pese a previsão
constitucional não haver expressado, linguisticamente, o casamento entre
pessoas do mesmo sexo, em nenhuma passagem proibiu tal ‘modalidade’
(pedindo permissão pelas aspas porque, na verdade, não há mesmo
modalidade, mas um único instituto, num trato que deve ser uniforme e
linear, único) casamento. E isso é juridicamente (muito) significativo.
Assim, a interpretação das normas, no âmbito exclusivamente da própria
constituição, deve ser inclusiva e integrativa, à vista dos princípios que ela
traz, como acima citamos alguns, e das circunstâncias sociais e históricas
da época da promulgação da Carta Federal em 1988, e dos dias atuais”125;
(iii) após citar a decisão do STJ no REsp 1.183.378/RS, afirmou que “Não
obstante a Carta Federal crie uma certa igualdade de tratamento entre
casamento e união estável, o primeiro, inegavelmente, ainda tem muito
mais aspectos de proteção jurídica imediatos que a segunda. (...) as
requerentes querem estabelecer o contrato de casamento se submetendo
apenas e tão somente às mesmas exigências que quaisquer outros tipos de
pares que são admitidos ao processo de habilitação. Elas pleiteiam ser
tratadas com igualdade em relação a quaisquer outros cidadãos nas mesmas
condições civis e humanas que elas. Por isso a questão, como acima já
destacamos, é tão simples, e deve ser encarada nessa exata medida”, donde
destacando a ausência de prejuízo aos heteroafetivos pelo reconhecimento
de direitos dos homoafetivos (voto do Ministro Ayres Britto), afirmou que
“se há reconhecimento da família formada por casais homoafetivos, se a
união homoafetiva foi equiparada à união estável entre pessoas de sexo
diferente, e se inexiste vedação constitucional discriminatória, segundo
orientação e interpretação das questões pela Corte Máxima do país, o
Supremo Tribunal Federal, guardião da Constituição, razão não há para
que os cidadãos, independentemente de gênero, tenham o seu direito
reconhecido e garantido de realizar o seu casamento civil diretamente, sem
submissão à via prévia da união estável (a fim de que consigam a
conversão de tal união estável em casamento). Por fim, cabe lembrar que a
V Jornada de Direito Civil realizada pelo Centro de Estudos Judiciários
(CEJ) do Conselho da Justiça Federal (CJF) concluiu, no informativo 525,
que ‘é possível a conversão de união estável entre pessoas do mesmo sexo
em casamento, observados os requisitos exigidos para a referida
habilitação’, o que fortifica ainda mais a possibilidade de realização do
casamento civil pela via direta”. Assim, permitiu a habilitação do
casamento em questão. [grifos nossos]
O juiz Áureo Virgílio Queiroz, da Comarca de Cacoal/RO, permitiu
habilitação em casamento civil (direto) a casal homoafetivo em decisão de
25.01.2012126, seguindo parecer do Ministério Público, segundo o qual,
com a decisão do STF na ADPF 132 e na ADI 4277 e do STJ no REsp n.º
1.183.378/RS, “não há argumentos jurídicos-constitucionais aptos a impedir
que duas pessoas do mesmo sexo busquem a sua realização pessoal através
da constituição de uma família, direito que não é restrito aos casais
heteroafetivos, mas sim a todo ser humano”, parecer este que aduziu que
“os mesmos argumentos tecidos pelo STF em relação à união estável são
aplicáveis ao casamento entre pessoas do mesmo sexo”, e “com fundamento
no artigo 1.526 do Código Civil”, razão pela qual permitiu a habilitação do
casamento em questão.
A juíza Lindalva Soares Silva, da 6ª Zona do Registro Civil de Pessoas
Naturais – 12ª Circunscrição do Rio de Janeiro, em decisão de 26.01.12127,
permitiu habilitação de casamento civil (direto) a casal homoafetivo sob
afirmando que, “Quanto à redação dos artigos 1514 e 1535 do Código Civil
se referir ao homem e à mulher e a marido e mulher, respectivamente, não
vislumbro como obstáculo ao casamento entre os requerentes, já que as
normas trataram da regulamentação do casamento heterossexual não
havendo disposição proibitiva expressa ao casamento ora requerido
permitindo-se a aplicação da analogia e da interpretação extensiva
decorrente do princípio constitucional da dignidade, que se encontra no
topo da hierarquia das normas”128, razão pela qual permitiu a habilitação
do casamento em questão.
O juiz Antonio C.A. Nascimento e Silva, da Vara de Registros Públicos
da Comarca de Porto Alegre/RS, homologou pedido de habilitação em
casamento civil (direto) a casal homoafetivo em decisão de 23.03.2012129
sob o seguinte fundamento: “Considerando que a decisão do STF no
julgamento da ADI nº 4.277 e, principalmente, do STJ no julgamento do
Recurso Especial nº 1.18[3].378/RS, homologo a presente habilitação, sem
necessidade de acrescer outra fundamentação”, pois “foram atendidos todos
os preceitos legais do art. 1525 da Lei n.º 10.406/02 [Código Civil]”.
O juiz Walteir José da Silva, da Comarca de Manhaçu/MG, homologou
habilitação de casamento civil (direto) a casal homoafetivo em decisão de
26.03.2012130, sob os seguintes fundamentos: “Essa decisão do STF fez
com que todos os direitos que são dados aos companheiros heterossexuais
em nosso sistema legislativo sejam estendidos às pessoas que vivem em
união estável homoafetiva”, donde, destacando a afirmação do STF
segundo a qual “o reconhecimento da união homoafetiva deve ser feito
segundo as mesmas regras e com as mesmas consequências da união estável
heteroafetiva”, afirmou, sobre a possibilidade do casamento civil
homoafetivo, que “Concordamos com essa possibilidade, haja vista que se
os homossexuais podem se casar, convertendo a união estável homoafetiva
em casamento, devem, também, poder casar independentemente de viverem
previamente em união estável, em veneração ao princípio da isonomia,
consagrado no art. 5º, caput, da Constituição Federal, pois as pessoas que
estão em situações iguais (homossexuais), não podem ser tratados de forma
desigual (quem vive em união homoafetiva casa e quem não vive está
proibido)”, pois “não há nenhum artigo no Código Civil que estabeleça ser
a diversidade de sexo um pressuposto do casamento. Esse requisito sempre
foi colocado pela doutrina (e não pela lei), em razão do costume histórico
exigir tal requisito”. Concluiu com as seguintes colocações: “Embora a
decisão do Supremo não aborde casamento, porque este não fazia parte do
pedido, a sentença foi muito importante para que eu tomasse a minha
decisão nesta oportunidade. O que ficaria difícil seria fundamentar o
indeferimento do casamento e não o seu deferimento, ante os argumentos
legais ora expendidos. Fico feliz em contribuir para que os direitos
humanos e a igualdade prevaleçam, de acordo com as Normas
Constitucionais vigentes”. Com tais colocações, permitiu o casamento civil
homoafetivo em questão. [grifo nosso]
A 6ª Turma Cível do Tribunal de Justiça do Distrito Federal, relator
Desembargador Jair Soares, em decisão de 11.04.2012131, afirmou que
“Reconhecida a união homoafetiva como entidade familiar – desde a
decisão proferida na ADPF n.º 132 e ADI n.º 4.277, a qual conferiu-se
efeito vinculante e eficácia erga omnes - não há razão para não conferir
igual proteção legal ao casamento entre pessoas do mesmo sexo,
legalmente realizado no estrangeiro, sobretudo para efeitos de comprovação
de relacionamento afetivo com a finalidade de obtenção de visto
permanente do cônjuge estrangeiro”, donde “descabida qualquer
interpretação, pautada em critérios discriminatórios em razão do sexo dos
contraentes do casamento no exterior, que enseje a recusa de direitos
conferidos aos contraentes heterossexuais de casamento ou uniões estáveis,
sejam esses nacionais ou estrangeiros. Se os autores são legalmente
casados no estrangeiro, ausente a inevitabilidade de sujeição ao Poder
Judiciário para que obtenham a situação jurídica favorável que pretendem,
bem como ineficaz o procedimento eleito”132. [grifos nossos]
O juiz corregedor Renato Bariani Neves, da Corregedoria do Serviço
Extrajudicial da Comarca de Mogi das Cruzes133, permitiu habilitação em
casamento civil (direto) a casal homoafetivo em decisão de 17.05.2012, a
qual merece ser integralmente transcrita:

O ato civil deve ser autorizado. A Constituição Federal não


estabelece nenhum conceito de casamento. Limita-se a disciplinar que
a família é a base da sociedade, recebendo especial proteção do
Estado, e que o casamento é civil, sendo gratuita a sua celebração (art.
226 e § 1.º). Por tais razões, muitos concluem que o regime jurídico do
casamento e o seu conteúdo são integralmente regidos em lei ordinária.
Neste âmbito, o Código Civil (Lei nº 10.406, de 10.01.2002),
especialmente nos artigos 1.514 e 1.565, restringe a noção de
casamento às uniões entre homem e mulher. Qualquer alteração neste
conceito dependeria de necessária inovação legislativa
infraconstitucional. A referida interpretação, contudo, é
inconstitucional. Se é certo que a Constituição Federal não define
casamento, é igualmente certo que ela impõe respeito aos direitos
fundamentais do indivíduo, que merecem tutela do Estado, pelo Estado
e até mesmo contra o Estado e a sociedade civil. O legislador
ordinário, enquanto autoridade estatal, não tem a liberdade integral
para reger a matéria de casamento, pois também se submete ao
respeito ao estatuto dos direitos fundamentais. Daí porque qualquer
norma infraconstitucional ou interpretação de texto legal que afronte
direitos fundamentais deve ser afastada. Em primeiro lugar, seguindo
regras de interpretação sistemática, para além dos grilhões da leitura
meramente gramatical daqueles artigos já referidos, o Código Civil
não proíbe o casamento entre homossexuais, uma vez que o art. 1.521
não prevê qualquer impedimento para tanto. Daí porque a menção a
‘homem e mulher’ constante dos artigos 1.514 e 1.565 do Código Civil
não merece leitura restritiva, tal como se pretende emprestar àquelas
normas, sendo apenas o caso de se conferir uma interpretação
conforme ao texto constitucional. A ausência de referência às pessoas
do mesmo sexo não significa um silêncio eloquente do Código Civil, a
ponto de se interpretar haja uma proibição ao casamento homossexual.
O fato de o texto omitir qualquer alusão à união entre pessoas do
mesmo sexo não implica, necessariamente, que não se assegure o seu
reconhecimento. Mas ainda que se admita, por epítrope, a restrição
legal, tem-se que o Estado Legislativo, na medida em que limita o
casamento às pessoas de sexos opostos, pratica, em verdade, violência
legal não consentida pela carta constitucional, que expressamente
prevê a dignidade da pessoa humana como um dos fundamentos da
República Federativa do Brasil (art. 1.º, inc. III), que tem por objetivos
fundamentais a promoção do bem de todos, sem preconceitos de
origem raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras forma de
discriminação (art. 3.º, inc. IV). A liberdade, a autodeterminação, a
igualdade, o pluralismo e a intimidade são outros princípios de igual
status constitucional que impõem o reconhecimento do direito
personalíssimo à orientação sexual e da legitimidade ético-jurídica da
união homossexual como entidade familiar. A lei civil veicula um
tratamento discriminatório, uma vez que o sexo das pessoas, salvo
disposição constitucional expressa ou implícita em sentido contrário,
não se presta como fator de desigualação jurídica (ADPF 132/RJ). Por
idênticas razões, na Arguição de Descumprimento de Preceito
Fundamental nº 132/RJ, julgada em 05.05.2011, Relator Min. Ayres
Britto, o E. Supremo Tribunal Federal reconheceu a possibilidade de
união estável entre pessoas do mesmo sexo. Referido julgamento
histórico consagrou, em verdade, a possibilidade de homossexuais
constituírem família na acepção jurídica do termo, e não institutos de
direito das obrigações que teriam aplicação artificial ao caso, como
sociedade de fato ou sociedade empresária. A garantia da espécie de
entidade familiar que a união estável representa configura, em verdade,
a garantia de pertencer ao próprio gênero familiar, o que não afasta,
portanto, outras espécies de constituição de família, tal como o
casamento. Pouco importa, portanto, a roupagem jurídica que a união
homossexual ganhe para fins de constituição de família: união estável
ou casamento. Uma vez que homossexuais podem constituir família,
podem igualmente fazer uso de quaisquer das modalidades garantidas
na lei civil para tanto. Aliás, a própria Constituição Federal prevê que
deverá ser facilitada a conversão da união estável em casamento, uma
vez que esta última espécie de família é aquela que confere mais
segurança jurídica e publicidade aos envolvidos no ato. Assim, pode-
se dizer que o casamento homossexual entrou pela porta dos fundos do
ordenamento jurídico. Permitiu-se, em um primeiro momento, por
julgamento da corte suprema, uma modalidade menos controversa de
constituição de família (união estável), incumbindo à primeira
instância do judiciário consagrar a máxima eficácia da interpretação
constitucional, cumprindo com a sua missão histórica de conferir o
tratamento jurídico-familiar mais amplo possível àquelas uniões, agora
pela via do casamento. A Constituição Federal de 1988 em muito se
notabilizou no avanço jurídico no plano dos costumes. Resta garantir
ainda mais este progresso, de modo a reduzir a distância entre a
constituição escrita e a vivida, em prol da efetivação dos direitos
humanos, ainda que esta missão envolva a releitura de uma das mais
clássicas instituições de direito civil: o casamento. A distinção entre
moral e direito é premissa fundamental do garantismo constitucional,
de tal modo que o direito não deve ser nunca utilizado como um
instrumento de coação moral. Que certas concepções morais e
religiosas condenem esta forma de união não significa que o direito
não possa consagrá-la. A união de casais homossexuais é um fato
social cada vez mais evidente, que necessita de reconhecimento
jurídico, sob pena de se condenar à marginalidade legal a minoria
homossexual, pelo não reconhecimento dos direitos civis emergentes
de uma entidade familiar. Dentre estes direitos estão o casamento, a
meação, a pensão alimentícia, o direito real de habitação, a herança, a
adoção, além de outros, como o reconhecimento de dependência
econômica para fins previdenciários (pensão por morte) e fiscais
(imposto de renda), dependência esta há muito já reconhecida em
diversos julgados pelo país afora, responsáveis por uma verdadeira
revolução silenciosa na esfera do direito de família. Numa democracia
constitucional como a nossa, os direitos fundamentais constituem o
próprio fundamento do Estado, legitimando, definindo e limitando a
atuação deste. Os direitos fundamentais são direitos de todos e de
cada um, e não podem ser suprimidos nem reduzidos pela maioria,
ainda que esta ganhe expressão pela via legislativa. Daí a função
contramajoritária que ao Poder Judiciário incumbe no âmbito do
Estado democrático de direito, em ordem a conferir efetiva proteção
às minorias. No plano da jurisdição das liberdades, o Judiciário é o
órgão investido do poder e da responsabilidade institucional de
proteger as minorias contra eventuais excessos da maioria ou, ainda,
contra omissões que, imputáveis aos grupos majoritários, tornem-se
lesivas, em face da inércia do Estado, aos direitos daqueles que sofrem
os efeitos perversos do preconceito, da discriminação e da exclusão
jurídica. É preciso, pois, por um ponto final no banimento civil em que
casais homossexuais sempre foram condenados a viver, em razão tão
só de sua orientação sexual e conceder-lhes a necessária segurança
jurídica que reivindicam ao estado de fato em que já vivem. Assim,
ainda que pesquisas indiquem que a maioria da população seja
contrária à união homossexual, cabe ao Poder Judiciário, enquanto
agente de transformação social, desempenhar aquela função
contramajoritária e didática, indicando à sociedade civil os rumos
essenciais à convivência necessária entre a maioria e as minorias
existentes, rumos que devem caracterizar uma sociedade fraterna,
pluralista e sem preconceitos (preâmbulo da Constituição Federal).
Dispositivo. Ante o exposto, autorizo a habilitação para que,
observados os demais requisitos e procedimentos legais, seja ao final
celebrado o casamento entre as requerentes. [grifos parcialmente
nossos]

O juiz corregedor Guilherme da Costa Manso Vasconcellos, da


Corregedoria Permanente do Registro Civil da Comarca de São Vicente/SP,
permitiu habilitação em casamento civil (direto) a casal homoafetivo em
decisão de 20.05.12134, sob o fundamento de que, por força do julgamento
do STF na ADPF 132 e na ADI 4277 e do STJ no REsp 1.183.378/RS,
“Diante das tão contundentes conclusões dos acima citados julgamentos, há
de se curvar esta Corregedoria Permanente ao que foi decidido pelas duas
mais altas cortes de Justiça do país para reconhecer e endossar as decisões
por seus próprios, extensos e aprofundados fundamentos, não ousando deles
discordar. O STJ decretou com todas as letras, no corpo e na ementa do
acórdão, a inconstitucionalidade dos artigos 1.514, 1.521, 1.523, 1.535 e
1.565 na parte em que vedam implicitamente o casamento civil entre duas
pessoas do mesmo sexo. Ignorar essa decisão, considerando-a apenas ‘um
julgado a mais’ seria desprestigiar por completo, e de maneira obtusa, o
trabalho jurídico hercúleo levado a efeito por ambas as cortes nos citados
julgamentos. Se é certo que o STF não declarou com todas as letras a
possibilidade do casamento civil homoafetivo, limitando-se a reconhecer a
união estável homoafetiva como instituto de família nos exatos termos dos
artigos 226 da CF e 1.723 do Código Civil, à semelhança da união estável
heteroafetiva, o STJ o fez, logo na sequência, deixando explícito o que o
STF não fizera, tal seja, reconhecendo e declarando a extensão da decisão
do STF para o instituto do casamento civil. Quem não interpretar o
acórdão do STJ desta maneira estará agindo como o avestruz em caso de
sensação de perigo: enterrando a cabeça na areia para não ver a
realidade, imaginando-a de outra forma”, referendou a decisão do STJ
também na parte em que afirma que a omissão legislativa não pode
significar negativa de direitos fundamentais, de que a função
contramajoritária do Poder Judiciário deve garantir os direitos fundamentais
de todos, mesmo das minorias e de que “Enquanto o Congresso Nacional,
no caso brasileiro, não assume, explicitamente, sua coparticipação nesse
processo constitucional de defesa e proteção dos socialmente vulneráveis,
não pode o Poder Judiciário demitir-se desse mister, sob pena de aceitação
tácita de um Estado que somente é ‘democrático’ formalmente, sem que tal
predicativo resista a uma mínima investigação acerca da universalização
dos direitos civis”. Assim, por entender que, a depender do atual Congresso
Nacional, “tão cedo não teremos reformas modernizadoras do Código Civil
para explicitar o casamento civil homoafetivo, [tal] tarefa [resta] delegada
pelo tempo ao Judiciário que, corajosamente, no exercício do legítimo
ativismo jurídico a defender a sociedade da inércia dos legisladores,
pronunciou-se de forma efetiva e definitiva através de suas mais altas
cortes, a quem rendo minhas homenagens”135, razão pela qual autorizou o
casamento civil homoafetivo em questão.
O juiz Luís Antônio de Abreu Johnson, do Ofício das Pessoas Naturais
da Comarca de Lajeado//RS, deferiu pedido de registro de união civil
homoafetiva formalizada na Inglaterra em decisão de 31.05.2012136 sob os
seguintes fundamentos, oriundos do parecer do Ministério Público
elaborado pela Promotora Velocy Melo Pivatto: (i) embora na Inglaterra
tenha sido lavrada união civil e não casamento civil, “deve ser reconhecida
a equivalência dos institutos para fins registrais no Brasil. Isso porque no
Reino Unido, Estado no qual foi celebrado o ato, não há diferença, em
perspectivas jurídicas, entre o casamento e a união civil. A única razão pelo
não emprego naquele Estado do mesmo termo é que foi dada a
nomenclatura de ‘união civil’ para o matrimônio entre pessoas do mesmo
sexo para não haver impasses religiosos, posto que somente casais
heterossexuais podem confirmá-lo frente à autoridade eclesiástica”, pois “os
direitos e obrigações são os mesmos”; “Assim, ao contrário do Brasil, em
que normalmente se emprega o termo ‘união civil’ apenas para as ‘uniões
estáveis’137, as quais possuem tratamento legal um pouco diferenciado do
casamento, não há divergência jurídica com o regime matrimonial. O ato,
portanto, a ser reconhecido neste território soberano, é o casamento do
requerente, cujo debate é imperioso de ser feito através de uma abordagem
não exclusivamente jurídica, mas também social, psicológica e histórica”;
(ii) “A família não é apenas um instituto social, mas também jurídico, tanto
que tem proteção especial iniciada com a Carta Magna e decorrente na
legislação infraconstitucional. Em análise do ordenamento jurídico, extrai-
se que tanto o constituinte como o legislador ordinário buscaram dar
guarida à entidade familiar através da formação de um escudo dos laços de
afetividade, elos que geram, assim, consequentes direitos e deveres entre os
integrantes da célula social. A partir desse pressuposto, demonstra-se que o
Direito de Família, ao contrário dos demais ramos do direito civil,
ultrapassa o tratamento patrimonial, porquanto blinda os vínculos
familiares, no intuito de respeitar o preceito constitucional máximo que
irradia todos os demais direitos fundamentais do indivíduo: a dignidade da
pessoa humana. Portanto, o enfoque da proteção constitucional e legal tem
como base a relação pessoal, sentimental, psicológica, social e afetiva,
muito além da tradicional relação puramente biológica antes preservada nas
Leis Fundamentais e legislações infraconstitucionais anteriores. Com o
advento do recente Código Civil, em 2002, essa nova visão de família foi
apenas ratificada e ampliada. A concepção de família unida pelo afeto
permitiu o reconhecimento dessas diversas novas famílias que hoje
circulam na contemporaneidade: uniões estáveis, monoparentais, avoengas
e – como no caso em tela – as construídas a partir de casais homossexuais,
hoje definidas pela doutrina e jurisprudência como homoafetivas, termo
cunhado e defendido por Maria Berenice Dias, expoente notável na
literatura e na produção jurisdicional quando desenvolvia a atividade da
magistratura junto do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. Com
efeito, nota-se que, ao contrário das famílias anteriormente referidas, o
legislador não cuidou em dar tratamento especial às relações homoafetivas.
Tanto a Constituição Federal quanto o Código Civil hodierno expõem em
seus textos as alcunhas de ‘homem e mulher’ quando abordam o casamento
e a união estável. Muito embora haja textualmente uma diferenciação, tal
fato não implica a atribuição de [menos] direitos aos casais homoafetivos,
eis que o ordenamento jurídico não é apenas cunhado por letras, mas,
sobretudo, por normas principiológicas e fatores sociais, o que exige do
intérprete da lei não uma abordagem literal, mas também uma leitura
teleológica e de acordo com todos os preceitos relacionados à dignidade.
Seguindo a linha de se falar em dignidade, mister que seja compreendido o
conceito histórico da Constituição Federal. A atual Carta Magna é fruto de
processo social objetivando a isonomia de direito, em um combate com os
diversos panoramas discriminatórios havidos nos anos deste país. Vale
lembrar que a história brasileira é marcada por casos de opressão de
minorias étnicas, escravidão de povos, marginalização de casais formados
em casamentos que à época eram indissolúveis, destrato em relação a filhos
adotados ou tidos fora do matrimônio, a ineficiência da tutela jurisdicional
no combate a violência doméstica. (...) Outrossim, inegável não dizer que a
inserção da terminologia exclusivamente heteroafetiva nos textos legais e
na própria Constituição é resultado de grupos conservadores, em grande
parte atrelados às instituições religiosas. Em que pese legítimo e livre o
exercício de suas convicções políticas e teológicas, respeito igual merece
ser dado àqueles que não compartilham com a mesma visão do mundo. Se
há liberdade de escolha de credo, idêntica liberdade é conferida à
formação das relações afetivas. Ademais, nossa atual forma de Estado
preserva a laicidade, separando-o de qualquer religião, ainda mais nesse
país, em que há um incontável número de crenças”, donde “fica cristalino
que o não reconhecimento desta união obtida pelas partes em território
estrangeiro estaria contrariando todos os princípios estabelecidos em nosso
país no que tange ao combate ao preconceito diante da opção sexual
adquirida por cada cidadão e, principalmente, a questão das inúmeras
agressões praticadas por pessoas, hoje identificadas como ‘homofóbicas’.
Reconhecer tal situação, trata-se de mero ato de formalizar o que de fato já
existe, pois o casal homoafetivo já vive e se comporta como duas pessoas
casadas, que além do afeto e da harmonia, acabam construindo um lar e
vivendo toda a rotina que um casal heteroafetivo vivencia, e muitas vezes
fazendo valer de forma mais significativa as questões que envolvem um
casamento”; (iii) “aqueles que optam pelas relações homoafetivas possuem
os mesmos deveres e obrigações de qualquer cidadão: pagam tributos,
prestam concurso público, são condenados ao cometerem algum ilícito
penal, votam obrigatoriamente em seus representantes políticos etc. Se esse
grupo é considerado cidadão para o cumprimento de obrigações,
igualmente assim deve ser considerado para o reconhecimento de seus
direitos”; (iv) referendando a lição de Gabriela Soares Balestro, afirmou
que “diante do reconhecimento constitucional da homoafetividade pelo
Supremo Tribunal Federal, as relações homoafetivas foram inseridas no
conceito de entidade familiar, havendo, portanto, a possibilidade da
conversão das uniões civis entre pessoas do mesmo sexo em casamento,
tendo em vista que, se os mesmos direitos civis e efeitos patrimoniais e
sucessórios que regulamentam as uniões estáveis heteroafetivas, com o
atual entendimento do STF, devem ser estendidos aos casais homoafetivos,
o casamento, sendo instituo de direito civil também é juridicamente
possível”, pois “as relações homoafetivas devem ter igual tratamento e
proteção legal que as relações heteroafetivas em prol do respeito ao
princípio da igualdade e à dignidade da pessoa humana, sendo o
casamento um direito civil fundamental de todo ser humano”138, razão pela
qual permitiu o registro da união civil homoafetiva firmada na Inglaterra no
Brasil como casamento civil. [grifos nossos]
O juiz Menandro Taufner Gomes, da Vara da Fazenda Pública,
Registros Públicos e Meio Ambiente da Comarca de Colatina/ES, permitiu
habilitação em casamento civil (direto) a casal homoafetivo em decisão de
30.07.12139, sob os seguintes fundamentos: “À prima facie, é necessário
entender a natureza jurídica das normas constitucionais e
infraconstitucionais, que conceituaram os institutos da família e do
casamento. Teriam estas, estabelecido de lege ferenda, que o casamento
civil só poderia ser realizado entre homem e mulher, e que o termo família
englobaria apenas um conglomerado humano composto entre os
descendentes e qualquer um dos seus ascendentes? Absolutamente não. As
relações íntimas, quais sejam, aquelas que decorrem dos vínculos de
afetividade, não podem ser constituídas por leis. Encontra-se além do
poder legiferante estatal, a possibilidade de criar, estabelecer, restringir ou
modificar uma relação interpessoal. Em suma, o Legislador e o Estado não
dispõem de poder para impor às pessoas maiores e capazes, a forma, o
modo e com quem poderão se relacionar. O Estado não pode intervir em
órbita exclusivamente privada, numa questão que atine puramente à
intimidade pessoal. Logo, o poder estatal não cria as relações emocionais,
amorosas ou de afeto, porque tais são frutos da cultura, da sociedade, e da
orientação de cada indivíduo, no âmbito sociológico e antropológico. Nesta
esteira, a função estatal, como dito, não seria capaz de criar, transformar, e
nem extinguir as relações íntimas, conjugais, sexuais e familiares entre
indivíduos, mas apenas de reconhecê-las e declará-las, para fins de direitos
e obrigações. As relações homoafetivas são uma realidade, e esta realidade
não pode ficar à margem da proteção legal e social. Sequer pode ser
restringida ou minimizada, à pretexto da orientação sexual. Interpretar que
a legislação tupiniquim estabeleceu de forma taxativa e exaustiva, (e não de
lege lata), o conceito de família e casamento, seria admitir que o Legislador
tivesse o poder de engessar e estagnar as transformações sociais as quais
vivenciamos. O conceito de família está em constante evolução. Prova disto
é a paternidade socioafetiva. Até alguns anos atrás, seria inconcebível, em
nossa ordem jurídica, a proclamação de uma paternidade não biológica.
Diante disto, indaga-se: Poderia o Legislador restringir a evolução social e
deixar de reconhecer a união homoafetiva como entidade familiar?”, o que
responde, com base no fato de a Constituição de 1988 ter consagrado a
ideia de família plural e não mais um modelo único de família [doutrina
Cezar Fiuza e de Farias e Rosenvald], no sentido de que “o Legislador não
poderia tolher ou restringir em um único modelo, as entidades familiares
que se estabeleceram através das mutações culturais, ideológicas e
sociais”; (ii) assim, “A alegação do Ministério Público de que a Ação de
Declaração de Preceito Fundamental nº 132/RJ e a ADI 4277/DF,
permitiriam somente a união estável homoafetiva e a conversão desta em
casamento, não prospera. A Ação de Declaração de Preceito Fundamental
nº 132/RJ e a ADI 4277/DF embora não tenham enfrentado expressamente
o tema aqui proposto, ou seja, da possibilidade da realização direta do
casamento entre pessoas do mesmo sexo, deu importante passo rumo à
aceitação da união civil homoafetiva, apesar do § 3.º, do art. 226, e o
Código Civil, trazerem como protagonistas da união estável e do
casamento, os gêneros homem e mulher. No julgamento da ADPF, que tem
efeito erga omnes, reconheceu-se a vedação do Estado em fazer qualquer
acepção de reconhecimento de direitos civis, sob o argumento de se
tratarem de pessoas do mesmo sexo, prestigiando assim, aos princípios da
paridade e da isonomia real, além da dignidade da pessoa humana, da
intimidade e da autonomia da vontade nas relações afetivas”, donde “O que
a Constituição e Código Civil construíram, em termos dogmáticos, sobre a
definição de casamento e entidade familiar, foi apenas um modelo básico e
tradicional, não implicando que fosse o único. O fato dos arts. 1.514 e
1.565 do Código Civil, preconizarem a realização do casamento civil entre
homem e mulher, deve ser interpretado de forma harmônica e sistemática
com a Constituição Federal em seu artigo 5º, caput, inciso I, do qual
emerge o comando normativo, que não haverá qualquer restrição ou
impedimento ao exercício de direitos ou garantias fundamentais, em razão
do sexo ou da orientação sexual, conforme anotado na ADPF acima citada.
Neste compasso, mesmo à míngua de norma expressa permissiva, deixar à
margem da proteção estatal as relações homoafetivas, justo por serem
homoafetivas, implicaria em violar os princípios da paridade e da
isonomia, além da garantia fundamental da dignidade e da não violação à
intimidade. O Estado, na hipótese de não reconhecer a união civil e o
vínculo matrimonial entre pessoas do mesmo sexo, estaria determinando
com quem os indivíduos poderiam se relacionar amorosa, afetiva e
sexualmente. Sendo maiores e capazes, não tem o Estado o poder de
interferir no relacionamento individual, e nem lhes negar proteção legal,
prevalecendo o princípio da autonomia das vontades. O que se pretende é
[que] o Estado declare os integrantes da união homoafetiva, como
detentores de direitos e obrigações recíprocas, e para com terceiros. Neste
âmbito, não há nenhum impedimento legal para que o Estado assim o faça.
À luz do Estado Brasileiro, a união de pessoas com a finalidade de
estabelecimento de uma vida em comum, deverá ser tutelada pelo ente
estatal, independente de ser heteroafetiva ou homoafetiva. A lavratura do
casamento não se confunde com a conversão de união estável em
casamento, já que são dois institutos totalmente distintos. Nesta esteira, a
interpretação do Ministério Público, de que para realizar o casamento civil
homoafetivo, haveria necessidade da prévia existência de união estável,
deverá se restringir apenas a hipótese de conversão desta em casamento.
Aliás, esse requisito é tanto para união hetero quanto homoafetiva, pois, do
contrário, pelo princípio da isonomia, também o casamento civil entre
pessoas de sexo oposto, só poderia se realizar havendo prévia união estável,
seguindo esta ótica. Por fim, finalizo expondo que o reconhecimento da
possibilidade de matrimônio para pessoa do mesmo sexo, vem para evitar
que injustiças sociais continuem acontecendo, como por exemplo, o não
reconhecimento de direitos previdenciário; alimentos; direitos sucessórios;
direito de habitação, e principalmente, o tratamento digno no âmbito social
e familiar. Do exposto, REJEITO a impugnação Ministerial, DEFERINDO
a permissão para o registro do casamento civil, decorrente de relação
homoafetiva, após deferida a Habilitação junto à autoridade competente.
Ressalvo, entretanto, que esta decisão restringe-se apenas ao permissivo
para a realização do CASAMENTO CIVIL, sendo que as celebrações de
casamento NO ÂMBITO RELIGIOSO, deverão respeitar ao direito de
crença e credo”.
Outras decisões foram proferidas, embora a elas não tenha tido acesso.
Não é possível atingir a completude, embora ela fosse desejável. De
qualquer forma, o que todas essas decisões demonstram com seus
argumentos, que se complementam reciprocamente, é que não há como
deixar de entender que o reconhecimento da união homoafetiva como
família conjugal pela decisão do STF no julgamento da ADPF 132 e da
ADI 4.277 torna obrigatório o reconhecimento da possibilidade jurídica do
casamento civil homoafetivo, principalmente mediante conversão de união
estável homoafetiva em casamento civil, já que a família conjugal é o
objeto valorativamente protegido pelos regimes jurídicos do casamento
civil e da união estável (é ela o fato jurígeno por eles regulamentado),
donde ausente proibição legal, de rigor o reconhecimento do direito de
casais homoafetivos ao casamento civil.
Ademais, especificamente quanto à questão da conversão de união
estável em casamento civil, foi bem anotado pela juíza Junia de Souza
Antunes que a união estável é um instituto uno que não se divide em “união
estável homoafetiva” e “união estável heteroafetiva”, uma vez caracterizado
que o casal vive uma união pública, contínua e duradoura com o intuito de
constituir família, ela será reconhecido como “união estável”, seja formada
por um casal homoafetivo ou por um casal heteroafetivo. Quando se fala em
união estável homoafetiva e união estável heteroafetiva visa-se apenas
destacar, com o adjetivo, se ela é formada por duas pessoas do mesmo sexo
ou por duas pessoas de sexos diversos, mas isso não tem o condão de
significar que a uma seria devido um regime jurídico e, a outra, um outro,
mais ou menos amplo. Reconhecida a união como união estável, a ela serão
devidos todos os direitos e deveres do regime jurídico da união estável, sem
distinções. A única distinção que havia na legislação, na época da existência
da separação judicial, consistia na impossibilidade de conversão em
casamento civil da união estável existente entre uma pessoa casada, mas
separada de fato do(a) cônjuge, mas isso pela lógica atinente ao fato de não
ser permitida a bigamia no Brasil. Afora este caso, não se pode falar em
nenhuma diferença entre uniões estáveis, donde descabido alguém defender
que parte dos direitos garantidos pela legislação à união estável seria devida
apenas à união estável heteroafetiva e não à união estável homoafetiva.
Ainda sobre a conversão da união estável homoafetiva em casamento
civil, publiquei parecer discorrendo sobre um argumento formal e um
argumento material que isto justifica140: o argumento formal consiste no
fato de que tanto a Constituição (art. 226, § 3.º, parte final, da CF/1988)
quanto o Código Civil (art. 1.726 do CC/2002) determinam a possibilidade
de conversão de união estável em casamento civil, visto que reconhecida a
união homoafetiva como união estável ou, como preferem alguns, como
entidade familiar autônoma com igualdade de direitos à união estável
heteroafetiva, de rigor o reconhecimento do direito de casais homoafetivos
que vivam em união estável converterem-na em casamento civil; o
argumento material consiste em uma questão de lógica: o casamento civil e
a união estável são regimes jurídicos destinados a proteger/regulamentar as
famílias conjugais, donde, sendo a união homoafetiva uma família conjugal,
ela deve ter a si garantidos tanto o casamento civil quanto a união estável,
pois não faz sentido jurídico nenhum dizer que a união homoafetiva é uma
família conjugal e, por isso, forma uma união estável constitucionalmente
protegida ou tem direito ao mesmo regime jurídico da união estável, por
analogia, mas que não poderia ser consagrada pelo casamento civil, pois,
repita-se, tanto o casamento civil quanto a união estável destinam-se a
proteger/regulamentar as famílias conjugais, donde é contraditório o não
reconhecimento do casamento civil homoafetivo quando se reconhece a
união estável homoafetiva – afinal, a redação constitucional sobre união
estável e a redação dos artigos do Código Civil que tratam do casamento
civil são análogas relativamente à menção a homem e mulher ou marido e
mulher – em ambos os casos, cita-se o fato heteroafetivo (homem e mulher)
sem, contudo, proibir o reconhecimento do fato homoafetivo (homem e
homem ou mulher e mulher) como casamento civil ou união estável.
Decisões que negaram a conversão de união estável homoafetiva em
casamento civil afirmaram, em síntese, que o STF se limitou a tratar do
tema da união estável, sem julgar o tema do casamento civil, bem como que
a não conversão da união estável homoafetiva em casamento civil não
implicaria hierarquização de entidades familiares, já que a união
homoafetiva restaria devidamente protegida pela aplicação a ela do regime
jurídico da união estável, ao passo que seria necessária alteração legislativa
para se poder reconhecer o casamento civil homoafetivo. Contudo, essa
linha argumentativa não se sustenta. Além de todos os argumentos das
decisões que converteram uniões estáveis homoafetivas em casamento civil,
que por si demonstram o descabimento dessa exegese discriminatória das
decisões que indeferiram pleitos idênticos, cabe anotar o seguinte: afirmar
que o STF tratou da união estável, mas não do casamento civil, demonstra
que o(a) magistrado(a) em questão não entendeu ou não quis entender toda
a lógica e a teleologia da decisão do STF no julgamento da ADPF 132 e da
ADI 4.277: como dito pelo Ministro Gilmar Mendes, o fato de a
Constituição reconhecer a união estável entre o homem e a mulher não
significa negativa de proteção à união estável ou à união civil entre pessoas
do mesmo sexo – ora, pelo mesmíssimo fundamento, o fato de a legislação
reconhecer o casamento civil entre o homem e a mulher não significa o não
reconhecimento do casamento civil entre pessoas do mesmo sexo, até
porque ele não se encontra proibido pelos taxativos impedimentos
matrimoniais do art. 1.521 do CC/2002. Como se vê, a argumentação para o
reconhecimento do casamento civil homoafetivo é a mesma utilizada para o
reconhecimento da união estável homoafetiva. É uma profunda incoerência
reconhecer-se a união estável homoafetiva, mas não o casamento civil
homoafetivo, já que ambos os regimes jurídicos visam regulamentar a
família conjugal, uma vez que, reconhecida a união homoafetiva como
família conjugal, a ela são devidos ambos os regimes jurídicos. Por outro
lado, essa exegese discriminatória efetivamente hierarquiza a entidade
familiar heteroafetiva acima da entidade familiar homoafetiva, já que
àquela reconhece o direito ao casamento civil, que resta negado a esta (por
tal exegese discriminatória). Até porque o casamento civil traz maior
segurança jurídica ao casal do que a união estável, já que a singela
apresentação da certidão de casamento constitui prova absoluta de que o
casal em questão forma uma família conjugal, comprovação esta mais
dificultosa a um casal que vive em união estável, sendo que cada
empresa/pessoa exige diferentes documentos para comprovação da união
estável (não bastando, em muitos casos, mera declaração notarial feita por
tabelião de notas, por exemplo). Sem falar que o casamento civil, ao menos
na redação original do Código Civil de 2002, garante mais direitos do que a
união estável para fins sucessórios (o cônjuge herda mais bens que o
herdeiro, o tema ainda carece de enfrentamento pelo STJ e pelo STF no que
tange à sua constitucionalidade, ante o dever de tratamento igualitário pela
legislação às entidades familiares). Logo, ao menos por questão de
segurança jurídica, o casamento civil traz maiores comodidades do que a
união estável, donde há efetiva discriminação jurídica pela negativa de
acesso ao casamento civil a casais em união estável, consoante bem
demonstrado pela juíza Junia de Souza Antunes, de Brasília/DF, na decisão
supraexplicitada.
Argumento curioso apresentado por uma juíza de Bauru na negativa de
conversão de união estável homoafetiva em casamento civil foi o de que
“não cabe ao juiz instituir ou alargar previsão legal a situação não
normatizada” (sic). Contudo, como inclusive argumentei em recurso que
ainda carece de julgamento pelo TJ/SP, alargar previsão legal é
precisamente o que a analogia faz! Interpretação extensiva e analogia
destinam-se justamente para alargar previsão legal a situação não
normatizada, por esta ser idêntica, ou idêntica no essencial, à situação
normatizada pelo texto da norma, respectivamente. É um absurdo afirmar
que o juiz não poderia alargar previsão legal, já que isto é o que os arts. 4.º
da LINDB e 126 do CPC/1973 permitem141.
Por outro lado, apesar das referidas decisões terem autorizado o
casamento civil homoafetivo basicamente por força da decisão do STF no
julgamento da ADPF 132 e da ADI 4.277 (inclusive como decorrência
obrigatória do efeito vinculante e da eficácia erga omnes dela relativamente
à conversão de união estável homoafetiva em casamento civil), vale lembrar
o posicionamento desta obra, cuja primeira edição é anterior à referida
decisão, no sentido de que o fato de a legislação dizer que o casamento é o
ato realizado quando “o homem e a mulher” comparecem perante o juiz de
paz e que este declarará os cônjuges “marido e mulher” não significa
“proibição implícita” ao casamento civil homoafetivo, mas mera
regulamentação do fato heteroafetivo (união entre homem e mulher como
casamento civil) sem proibição do fato homoafetivo (união entre duas
pessoas do mesmo sexo como casamento civil), o que caracteriza lacuna
normativa passível de colmatação por interpretação extensiva ou analogia,
por força do princípio da igualdade142 – como, aliás, referido pelo juiz
Fernando Dominguez Guiguet Leal, de Franco da Rocha/SP, bem como
pelo Ministro Luís Felipe Salomão no julgamento do REsp 1.183.378/RS.
Logo, deve-se destacar que mesmo que não tivesse sido proferida a decisão
da ADPF 132 e da ADI 4.277, o casamento civil homoafetivo já seria
juridicamente possível.
Fato inegável é que referidas decisões se tornaram tão corriqueiras
porque os(as) magistrados(as) respectivos(as) se sentiram encorajados(as) a
reconhecer o direito ao casamento civil homoafetivo por conta da histórica
decisão do STF, muito embora evidentemente pudessem ter sido proferidas
independentemente da mesma. Claro que referidas decisões são
importantíssimas, na medida em que a decisão do STF realmente não tratou
do tema do casamento civil pelo fato de a ADPF 132 e da ADI 4.277 terem
como objeto apenas o regime jurídico da união estável – sendo que eu tinha
“certeza” de que a maioria da magistratura adotaria justamente a simplória
fundamentação (usada por aqueles/as que negam o casamento civil
homoafetivo) segundo a qual “o STF tratou da união estável homoafetiva e
não do casamento civil homoafetivo” – trata-se de um (data maxima venia)
simplismo acrítico inacreditável de pessoas que não entenderam ou não
quiseram entender a lógica e a teleologia da referida decisão (já que, tendo
ela reconhecido a união homoafetiva como família conjugal e sendo a
família conjugal o objeto de proteção também do casamento civil, é
absolutamente contraditório com referida decisão não reconhecer o direito
de casais homoafetivos também ao casamento civil, pois as mesmas razões
do referido julgado justificam o direito dito direito), mas eu sinceramente
temia que essa absurda exegese restritiva fosse prevalecer. Foi com grande
(e agradabilíssima) surpresa que vi que a maioria das decisões não adotou
essa exegese restritiva. Assim, merecem aplausos as magistradas e os
magistrados que fizeram a leitura adequada da decisão do STF para
reconhecer o direito ao casamento civil homoafetivo – elas e elas
certamente merecem ser reconhecidas(os) pela história, sendo este o motivo
pelo qual fiz questão de citar seus nomes neste tópico quando da explicação
de suas decisões143. De qualquer forma, o que faço questão de anotar é que
o direito ao casamento civil homoafetivo não depende unicamente de uma
decisão com força de lei do Supremo Tribunal Federal reconhecendo a
união homoafetiva como família conjugal – ele pode (e deve) ser
reconhecido independentemente disto, obviamente com base no mesmo
raciocínio. Mas, como se viu, o caráter vinculante e a eficácia erga omnes
da decisão do STF serviu de norte seguro à magistratura brasileira para
reconhecer este direito por acabar com a possibilidade de entendimentos
contrários ao reconhecimento da união homoafetiva como família conjugal,
donde jamais se poderá menosprezar a extrema importância do histórico
julgamento de nossa Suprema Corte dos dias 04 e 05 de maio de 2011.

10. SÍNTESE CONCLUSIVA DO CAPÍTULO


O casamento civil homoafetivo é um pedido juridicamente possível no
ordenamento jurídico brasileiro na medida em que inexiste disposição legal
expressa que o proíba. Além disso, é possível também por uma
interpretação sistemática do Direito (que afinal é a única interpretação
juridicamente válida), visto ser a união amorosa formada por pessoas do
mesmo sexo idêntica ou, no mínimo, análoga à união heteroafetiva, o que
demanda por um tratamento jurídico igualitário de acordo com os princípios
da igualdade e da dignidade da pessoa humana, direitos humanos
fundamentais e normas constitucionais de eficácia plena que são. A
ausência de menção legislativa expressa que o permita é irrelevante, em
razão da existência da interpretação extensiva e da analogia previstas nos
arts. 4.º da LINDB e 126 do CPC.
Entendendo-se que a união homoafetiva é idêntica à heteroafetiva,
como entende este autor, deve ser aplicada a interpretação extensiva do art.
1.514 do Código Civil, tendo em vista que a situação (casamento civil)
encontra-se devidamente regulamentada e permitida a todos. Por outro lado,
entendendo-se ser ela diferente da união amorosa heteroafetiva pelo simples
fato de termos, em um caso, duas pessoas de sexos diversos e, em outro,
duas pessoas do mesmo sexo (com o que não se concorda), deve-se
reconhecer que se trata de duas situações idênticas no essencial, pois ambas
são fundadas no amor romântico que visa a uma comunhão plena de vida e
interesses, de forma pública, contínua e duradoura, sentimento este que é o
elemento formador da família contemporânea (amor familiar) – sendo
evidente que a lei do casamento civil visa proteger a família conjugal,
donde ela também deve ser aplicada para resguardar a família conjugal
homoafetiva. Afinal, ela é muito mais próxima da união matrimonializada
(affectio maritalis) do que da “sociedade de fato” (affectio societatis),
devendo ser aplicada analogia com aquela e não com esta.
De qualquer forma, caso prevaleça o equivocado entendimento
restritivo do casamento civil apenas a casais heteroafetivos em razão da
expressão “o homem e a mulher” existente nos dispositivos legais
(entendimento este que ignora as questões supra-apontadas, tendo em vista
que não as enfrenta), resta evidente a inconstitucionalidade do art. 1.514 do
Código Civil (assim como de todos os outros dispositivos legais que tragam
tal expressão), tendo em vista a ausência de motivação lógico-racional que
justifique a necessidade da discriminação dos casais homoafetivos em
relação aos heteroafetivos quando considerado o critério diferenciador
erigido, que é a homogeneidade de sexos em um caso e diversidade de
sexos em outro, caracterizadora da orientação sexual do par. Assim,
declarada a referida inconstitucionalidade, deverá ser o casamento civil
reconhecido tanto a duas pessoas de sexos diversos quanto a duas pessoas
do mesmo sexo, em interpretação conforme a Constituição.
Ressalte-se, ainda, que a declaração da inconstitucionalidade desse
dispositivo legal não trará nenhum prejuízo aos cidadãos, pois traz um mero
conceito legal de casamento civil – conceito este dispensável, visto todos
saberem que o casamento civil é a união amorosa entre duas pessoas que
assumem reciprocamente direitos e obrigações oriundos de normas
cogentes.
Não obstante, tendo em vista o fato notório de que os Cartórios de
Registro Civil se recusam a celebrar o casamento civil homoafetivo, o par
interessado em se casar encontra-se obrigado a ingressar com uma ação
declaratória de possibilidade jurídica de casamento civil homoafetivo, pelo
rito ordinário, onde demonstre os requisitos de validade do casamento e
apresente a fundamentação supraexposta no sentido de sua possibilidade
jurídica decorrente da interpretação extensiva ou da analogia. Por outro
lado, deve constar pedido alternativo de declaração de inconstitucionalidade
do art. 1.514 do Código Civil, caso o Judiciário entenda pela suposta
“proibição implícita” do casamento civil homoafetivo em atenção à redação
do citado dispositivo legal.

1 AC 70012836755, TJ/RS, Relatora: Dra. Maria Berenice Dias, v.u., julgamento


21.12.2005.
2 Cf. FOUCAULT, Michel. História da Sexualidade. O cuidado de si. 9. ed. Tradução de
Maria Thereza da Costa Albuquerque. São Paulo: Graal, 2007, p. 79 e 81. v. III.
3 Cf. FOUCAULT, op. cit., p. 79-81.
4 Cf. FOUCAULT, op. cit., p. 81-82.
5 Cf. FOUCAULT, op. cit., p. 82-83. Outrossim, “(...) A institucionalização do casamento
por consentimento mútuo, escreve Cl. Vatin, faz ‘nascer a ideia de que existia uma
comunidade conjugal e que essa realidade, constituída pelo casal, tem um valor
superior ao de seus componentes. É uma evolução análoga que P. Veyne ressalta na
sociedade romana: ‘Cada um dos esposos tinha, sob a República, um papel definido a
ser desempenhado, e uma vez realizado esse papel, as relações afetivas entre
esposos eram o que pudessem ser... Sob o Império... o próprio funcionamento do
casamento supostamente repousa no bom entendimento e na lei do coração. (...)
Múltiplos serão, portanto, os paradoxos na evolução dessa prática matrimonial. Ela
busca suas cauções do lado da autoridade pública; e torna-se algo cada vez mais
importante na vida privada. Libera-se dos objetivos econômicos e sociais que a
valorizavam; e ao mesmo tempo se generaliza. Passa a ser para os esposos cada vez
mais coercitiva e, ao mesmo tempo, suscita atitudes cada vez mais favoráveis como
se, quanto mais exigia mais ela atraísse. O casamento passaria a ser mais geral
enquanto prática, mais público enquanto instituição, mais privado enquanto modo de
existência, mais forte para ligar os cônjuges e, portanto, mais eficaz para isolar o casal
no campo das outras relações sociais. (...) E por casamento não se deve entender
somente a instituição útil para a família ou para a cidade, nem a atividade doméstica
que se desenrola no quadro e segundo as regras de uma boa casa, mas sim o ‘estado’
de casamento como forma de vida, existência compartilhada, vínculo pessoal e
posição respectiva dos parceiros nessa relação. (...)” (FOUCAULT, op. cit., p. 83-84 –
grifos nossos).
6 Cf. FOUCAULT, op. cit., p. 101.
7 Cf. FOUCAULT, op. cit., p. 86-87.
8 Cf. FOUCAULT, op. cit., p. 153-155.
9 Cf. FOUCAULT, op. cit., p. 149-151.
10 Cf. FOUCAULT, op. cit., p. 152.
11 Cf. FOUCAULT, op. cit., p. 160.
12 “A arte da conjugalidade faz parte integrante da cultura de si” (FOUCAULT, op. cit., p.
164).
13 Cf. FOUCAULT, op. cit., p. 161-164.
14 Cf. FOUCAULT, op. cit., p. 167.
15 Cf. FOUCAULT, op. cit., p. 169.
16 Cf. FOUCAULT, op. cit., p. 171.
17 Cf. FOUCAULT, op. cit., p. 171-172.
18 Cf. FOUCAULT, op. cit., p. 173.
19 Cf. FOUCAULT, op. cit., p. 173-174. Sobre a questão dos prazeres no casamento
(como eles eram admitidos, as recomendações de não se tratar a esposa com a
devassidão que se trata uma cortesã, para, ao contrário, tratá-la com honestidade e
comedimento, por se entender na época que os prazeres do casamento deveriam
servir apenas para propagar a espécie), com destaque às recomendações de
austeridade intraconjugal nas práticas dos prazeres sexuais, vide FOUCAULT, op. cit.,
p. 177-186.
20 Cf. FOUCAULT, op. cit., p. 186 e 192.
21 Cf. FOUCAULT, op. cit., p. 189-191.
22 Cf. FOUCAULT, op. cit., p. 200-201.
23 Cf. FOUCAULT, op. cit., p. 203-204.
24 Cf. FOUCAULT, op. cit., p. 204-205.
25 “O prazer sexual está, portanto, no coração da relação matrimonial como princípio e
como garantia da relação de amor e de amizade. Ele a fundamenta ou, em todo caso,
dá-lhe novo vigor como a um pacto de existência (...) para a constituição de uma
unidade conjugal, viva, sólida e durável. (...)” (FOUCAULT, op. cit., p. 206-207).
26 Cf. FOUCAULT, op. cit., p. 205.
27 Cf. FOUCAULT, op. cit., p. 207-208. Daí “vermos constituir-se em Plutarco uma nova
estilística do amor: ela é monista, na medida em que inclui os aphrodisia, mas faz
dessa inclusão um critério que lhe possibilita reter apenas o amor conjugal, e excluir as
relações com os rapazes, por causa da falta que as marca: elas não podem mais ter
lugar nessa grande, única e integrativa cadeira onde o amor se vivifica na
reciprocidade do prazer” (FOUCAULT, op. cit., p. 208).
28 Foucault assim explica essa crença dos pensadores dos dois primeiros séculos da era
cristã em prol da virgindade: “Vê-se: a virgindade não é simplesmente uma abstenção
preliminar à prática sexual. Ela é uma escolha, um estilo de vida, uma forma elevada
de existência que o herói escolhe, no cuidado que tem consigo mesmo. Quando as
mais extraordinárias peripécias (...) [entre os] piores perigos, o mais grave será,
evidentemente, estar às voltas com a concupiscência sexual dos outros; e a mais
elevada prova de seu próprio valor e de seu amor recíproco será a de resistir a todo
custo e de salvar essa essencial virgindade. Essencial para a relação consigo mesmo,
essencial para a relação com o outro. (...)” (FOUCAULT, op. cit., p. 227).
29 FOUCAULT, op. cit., p. 228 e 233-235.
30 WOLFSON, Evan. Why Marriage Matters. America, Equality and Gay People’s Right to
Marry. New York, London, Toronto e Sidney: Simon & Schuster Paperbacks, 2004, p.
03-05. Tradução livre.
31 WOLFSON, Evan. Why Marriage Matters…, p. 08-09. Tradução livre. Grifos nossos.
32 In: Baehr v. Miike (1996).
33 Como o Brasil – art. 19, inc. I, da CF/1988.
34 In: Lawrence v. Texas (2003, voto vencido). Vale destacar, contudo, que a leitura do
voto do Justice Scalia deixa claro que ele proferiu tais palavras para inflamar a opinião
pública estadunidense contra a decisão majoritária da Suprema Corte neste caso, de
declarar a inconstitucionalidade de leis que criminalizassem a chamada “sodomia
homossexual” (ato sexual não procriativo entre pessoas do mesmo sexo), mediante a
afirmação de que, tendo a Suprema Corte (finalmente) afirmado que a mera
desaprovação moral, isoladamente considerada, não justifica racionalmente uma lei
perante o princípio da igualdade, então nada obstaria que ela impusesse o casamento
civil homoafetivo, como fez o Canadá. Embora certo no raciocínio, Scalia o utilizou
claramente com o nefasto intuito de desacreditar a decisão da Suprema Corte naquele
caso, por força dos preconceitos sociais homofóbicos contra o casamento civil
homoafetivo...
35 DIAS, Maria Berenice. Manual de Direito das Famílias, 1.a Edição, Porto Alegre:
Editora Livraria do Advogado, 2005, p. 144.
36 WOLFSON, Evan. Why Marriage Matters…, p. 4 (tradução livre, grifo nosso).
37 A saber (seguindo-se a lista do Grupo Leões do Norte): (01) Não podem se casar; (02)
Não têm reconhecida a união estável; (03) Não adotam sobrenome do parceiro; (04)
Não podem somar renda para aprovar financiamentos; (05) Não somam renda para
alugar imóvel; (06) Não inscrevem parceiro como dependente de servidor público; (07)
Não podem incluir parceiros como dependentes no plano de saúde; (08) Não
participam de programas do Estado vinculados à família; (09) Não inscrevem parceiros
como dependentes da previdência; (10) Não podem acompanhar o parceiro servidor
público transferido; (11) Não têm a impenhorabilidade do imóvel em que o casal reside;
(12) Não têm garantia de pensão alimentícia em caso de separação; (13) Não têm
garantia à metade dos bens em caso de separação [precisando comprovar quanto
efetivamente contribuíram, por meio da “teoria das sociedades de fato”]; (14) Não
podem assumir a guarda do filho do cônjuge; (15) Não adotam filhos em conjunto; (16)
Não podem adotar o filho da parceira; (17) Não têm licença-maternidade para
nascimento de filho da parceira; (18) Não têm licença maternidade ou paternidade se o
parceiro adota um filho; (19) Não recebem abono-família; (20) Não têm licença-luto,
para faltar ao trabalho na morte do parceiro; (21) Não recebem auxílio-funeral; (22)
Não podem ser inventariantes do parceiro falecido; (23) Não têm direito à herança;
(24) Não têm garantida a permanência no lar quando o parceiro morre; (25) Não têm
usufruto dos bens do parceiro; (26) Não podem alegar dano moral se o parceiro for
vítima de um crime [embora isso seja, no mínimo, discutível]; (27) Não têm direito à
visita íntima na prisão; (28) Não acompanham a parceira no parto; (29) Não podem
autorizar cirurgia de risco; (30) Não podem ser curadores do parceiro declarado
judicialmente incapaz; (31) Não podem declarar o parceiro como dependente do
Imposto de Renda (IR); (32) Não fazem declaração conjunta do IR; (33) Não abatem
do IR gastos médicos e educacionais do parceiro; (34) Não podem deduzir no IR o
imposto pago em nome do parceiro; (35) Não dividem no IR os rendimentos recebidos
em comum pelos parceiros; (36) Não são reconhecidos como entidade familiar, mas
sim como sócios [por meio da citada “teoria das sociedades de fato”, fato este que não
lhes permite a meação patrimonial sem prova efetiva da contribuição à construção do
patrimônio do(a) parceiro(a), o que não é exigido dos casais heteroafetivos]; (37) Não
têm suas ações legais julgadas pelas varas de família [que estão mais habituadas a
tratar das questões envolvendo as famílias, ou seja, as questões oriundas de
agrupamentos humanos ligados pelo amor familiar]; (38) Não têm direito real de
habitação, decorrente da união (art.1831 CC); (39) Não têm direito de converter união
estável em casamento; (40) Não têm direito a exercer a administração da família
quando do desaparecimento do companheiro (art.1570 CC); (41) Não têm direito à
indispensabilidade do consentimento quando da alienação ou gravar de ônus reais
bens imóveis ou alienar direitos reais (art.235 CC); (42) Não têm direito a formal
dissolução da sociedade conjugal, resguardada pela lei; (43) Não têm direito a exigir
que cesse a ameaça, ou a lesão, a direito da personalidade, e reclamar perdas e
danos na hipótese do companheiro falecido (art.12, Par. Único, CC); (44) Não têm
direito a proibir a divulgação de escritos, a transmissão da palavra, ou a publicação, a
exposição ou a utilização da imagem do companheiro falecido ou ausente (art.20 CC);
(45) Não têm direito a posse do bem do companheiro ausente (art.30, par. 2º CC); (46)
Não têm direito a deixar de correr prazo de prescrição durante a união (art,197, I, CC);
(47) Não têm direito a anular a doação do companheiro adúltero a seu cúmplice
(art.550, CC); (48) Não têm direito a revogar a doação, por ingratidão, quando o
companheiro for o ofendido (art.558, CC); (49) Não têm direito a proteção legal que
determina que o companheiro deve declarar interessa na preservação de sua vida, na
hipótese de seguro de vida (art.790, parág. único); (50) Não têm direito a figurar como
beneficiário do prêmio do seguro na falta de indicação de beneficiário (art.792, CC);
(51) Não têm direito de incluir o companheiro nas necessidades de sua família para
exercício do direito de uso da coisa e perceber os seus frutos (art.1412, par. 2º, CC);
(52) Não têm direito de remir o imóvel hipotecado, oferecendo o valor da avaliação, até
a assinatura do auto de arrematação ou até que seja publicada a sentença de
adjudicação (art.1482 CC); (53) Não têm direito a ser considerado aliado aos parentes
do outro pelo vínculo da afinidade (art.1595 CC); (54) Não têm direito a demandar a
rescisão dos contratos de fiança e doação, ou a invalidação do aval, realizados pelo
outro (art.1641, IV CC); (55) Não têm direito a reivindicar os bens comuns, móveis ou
imóveis, doados ou transferidos pelo outro companheiro ao amante (art.1641, V CC);
(56) Não têm direito a garantia da exigência da autorização do outro, para
salvaguardar os bens comuns, nas hipóteses previstas no artigo 1647 do CC; (57) Não
têm direito a gerir os bens comuns e os do companheiro, nem alienar bens comuns
e/ou alienar imóveis comuns e os móveis e imóveis do companheiro, quando este não
puder exercer a administração dos bens que lhe incumbe (art.1651 do CC); (58) Não
têm direito, caso esteja na posse dos bens particular do companheiro, a ser
responsável como depositário, nem usufrutuário (se o rendimento for comum),
tampouco procurador (se tiver mandato expresso ou tácito para os administrar) –
(art.1652 CC); (59) Não têm direito a escolher o regime de bens que deseja que regule
em sua união; (60) Não têm direito a assistência alimentar (art.1694 CC); (61) Não têm
direito a instituir parte de bens, por escritura, como bem de família (art.1711 CC); (62)
Não têm direito a promover a interdição do companheiro (art.1768, II CC); (63) Não
têm direito a isenção de prestação de contas na qualidade de curadora do
companheiro (art,1783 CC); (64) Não têm direito de excluir herdeiro legítimo da sua
herança por indignidade, na hipótese de tal herdeiro ter sido autor, coautor ou partícipe
de homicídio doloso, ou tentativa deste contra seu companheiro (art.1814, I CC); (65)
Não têm direito de excluir um herdeiro legítimo de sua herança por indignidade, na
hipótese de tal herdeiro ter incorrido em crime contra a honra de seu companheiro
(art.1814, II CC); (66) Não têm direito a Ordem da Vocação Hereditária na sucessão
legítima (art.1829 CC); (67) Não têm direito a concorrer a herança com os pais do
companheiro, na falta de descendentes destes (1836 CC); (68) Não têm direito ser
deferida a sucessão por inteiro ao companheiro sobrevivente, na falta de
descendentes e ascendentes do companheiro falecido (art.1838 CC); (69) Não têm
direito a ser considerado herdeiro “necessário” do companheiro (art.1845 CC); (70)
Não têm direito a remoção/transferê ncia de servidor público sob justificativa da
absoluta prioridade do direito à convivência familiar (art.226 e 227 da CF) com
companheiro; (71) Não têm direito a transferência obrigatória de seu companheiro
estudante, entre universidades, previstas na Lei 8112/90, no caso, ser servidor público
federal civil ou militar estudante ou dependente do servidor; (72) Não têm direito a
licença para acompanhar companheiro quando for exercer mandato eletivo ou, sendo
militar ou servidor da Administração Direta, de autarquia, de empresa pública, de
sociedade de economia mista ou de fundação instituída pelo Poder Público, for
mandado servir, ex-officio, em outro ponto do território estadual, nacional ou no
exterior; (73) Não têm direito a receber os eventuais direitos de férias e outros
benefícios do vínculo empregatício se o companheiro falecer; (74) Não têm direito ao
DPVAT (Seguro Obrigatório de Danos Pessoais Causados por Veículos Automotores
de Vias Terrestres, ou por sua Carga, a Pessoas Transportadas ou Não), no caso de
morte do companheiro em acidente com veículos; (75) Não têm direito a licença gala,
quando o trabalhador for celebrar sua união, podendo deixar de comparecer ao
serviço, pelo prazo três dias (art.473, II da CLT) e se professor, período de nove dias
(§ 3º., do art. 320 da CLT); (76) Não têm direito, de oferecer queixa ou de prosseguir
na ação penal, caso o companheiro seja o ofendido e morra ou seja declarado ausente
(art.100 § 4º CP); (77) Não têm direito as inúmeras previsões criminais que agravam
ou aumentam a pena contra os crimes praticados contra o seu companheiro; (78) Não
têm direito a isenção de pena no caso do crime contra o patrimônio praticado pelo
companheiro (art.181 CP) e nem na hipótese do auxílio a subtrair-se a ação da
autoridade policial (art.348 § 2º CP). Cf. http://mixbrasil.uol.com.br/pride/seus-
direitos/grupo-pernambucano-lista-direitos-negados-a-gays-no-brasil.html#rmcl (último
acesso em 30 set. 2012). Ressalte-se que o fato de eventualmente se conseguir esses
direitos por decisão judicial (por analogia) não afasta a discriminação, pois eles são
reconhecidos automaticamente a casais heteroafetivos, ao passo que não se pode
considerar existente igualdade se os homoafetivos precisam contratar advogado,
pagar honorários advocatícios e custas judiciais para, após longos anos, conseguir o
reconhecimento judicial de direitos para ter a si reconhecidos direitos automaticamente
reconhecidos aos heteroafetivos.
38 Goodridge v. Department of Public Health, p. 9. Disponível
em: http://www.mass.gov.br/courts/courtsandjudges/courts/supremejudicialcourt/goodri
dge.html. Acesso em: fev. 2007. Sem grifos e destaques no original.
39 WOLFSON, Evan. Why Marriage Matters…, p. 15. Tradução livre.
40 Nesse sentido, afirma Maria Berenice Dias que: “O fato de a atenção ser direcionada a
alguém do mesmo ou de distinto sexo não pode ser alvo de tratamento discriminatório,
pois tem por base o próprio sexo da pessoa que faz a escolha. A decisão judicial que
adote por critério, não afetiva conjunção das pessoas, de suas próprias vidas, mas a
mera coincidência de sexos parte de um preconceito social. A espécie humana é a
única em que há a separação psíquica e física entre o ato sexual prazeroso e a função
procriativa. Dessa separação, e na medida em que ela ocorre, nasce a liberdade de
orientação sexual, que se tornou inerente ao homem. Indivíduos de ambos os sexos
têm o direito de entreter uma relação sexual além da simples necessidade de
reprodução, inclusive com pessoa do mesmo sexo, o que não afronta os conceitos das
sociedades historicamente desenvolvidas. Não cabe mais desfigurar para desproteger,
senão por preconceitos que, presos ao passado, distorcem no presente a evolução e a
história da humanidade. Todos dispõem da liberdade de escolha, desimportando o
sexo da pessoa eleita, se igual ou diferente do seu. Se um indivíduo nada sofre ao se
vincular a uma pessoa do sexo oposto, mas recebe o repúdio social por dirigir seu
desejo a alguém do mesmo sexo, está sendo discriminado em função de sua
orientação sexual. O tratamento diferenciado, pela inclinação a um ou a outro sexo,
evidencia uma clara discriminação à própria pessoa, em função de sua identidade
sexual. Como a orientação sexual só é passível de distinção diante do sexo da pessoa
eleita escolhida, é direito que goza de proteção constitucional em face da vedação de
discriminação por motivo de sexo. O gênero da pessoa eleita não pode gerar
tratamento desigualitário com relação a quem escolhe, sob pena de se estar
diferenciando alguém pelo sexo que possui: se igual ou diferente do sexo da pessoa
escolhida” (DIAS, Maria Berenice. União Homossexual – o Preconceito & a Justiça, 3.ª
Edição, Porto Alegre: Editora Livraria do Advogado, 2006, p. 76 – sem grifos no
original). Destaque-se, apenas, que a sexualidade da pessoa independe de escolha: a
pessoa não tem como mudar sua orientação sexual. O que a autora quis dizer nesse
trecho foi que, a partir do momento em que alguém que direciona seu amor a alguém
de sexo diverso não é discriminada juridicamente, também não pode sê-lo uma pessoa
que direciona seu amor a outra do mesmo sexo.
41 Denominada como “Parceria Civil Registrada” no substitutivo apresentado, projeto
este que se encontra “engavetado” na Câmara dos Deputados ante a absoluta falta de
interesse político dos parlamentares em votá-lo, a uma pelo preconceito de muitos em
relação ao tema (em especial das bancadas religiosas que entendem que a Bíblia
condenaria a homossexualidade, e cuja decisão de não comparecer às votações por
esse motivo caracteriza ampla afronta ao princípio do Estado Laico, da mesma forma
que o seria um voto pela não aprovação em decorrência do mesmo motivo), e a outra
pelo medo que muitos têm de, ao votar e especialmente aprovar esse projeto,
perderem votos dos setores “conservadores” (leia-se, preconceituosos) da população.
42 No mesmo sentido é a lição de Ana Carla Harmatiuk Matos, que aduz: “O casamento,
hoje, não é mais uma instituição. Sua função deve ser instrumento para a realização
personalística de seus membros na formação familiar, ao lado das demais
possibilidades de entidades familiares. Por esses motivos, utiliza-se a expressão
Família Eudemonista, traduzindo-se o modelo de família voltado para a realização
personalística de seus membros. Sobre o tema, João Batista Villela aduz a ‘passagem
de um organismo preordenado a fins externos para um núcleo de companheirismo a
serviço das próprias pessoas que a constituem’. A família instaura-se prioritariamente
como um núcleo de apoio e solidariedade. Percebe-se, em consequência, no Direito
de Família, um reconhecimento cada vez mais amplo dos efeitos jurídicos do afeto”
(MATOS, Ana Carla Harmatiuk. Uniões entre pessoas do mesmo sexo: aspectos
jurídicos e sociais, 1.a Edição, Belo Horizonte: Editora Del Rey, 2004, p. 27 – sem
grifos no original).
43 Nesse sentido, ensina-nos Andrew Sullivan: “Alguns podem argumentar que
casamento é, por definição, entre homem e mulher; e que é difícil contrapor-se a uma
definição. Mas, se o casamento for articulado mais além desse decreto circular, então
o motivo de ser exclusivo a um homem e a uma mulher desaparece. O cerne do
contrato público [de casamento civil] é um vínculo emocional, financeiro e psicológico
entre duas pessoas; nesse aspecto, héteros e homos são idênticos” (SULLIVAN,
Andrew, Praticamente normal: um estudo sobre a construção social da conjugalidade
homossexual, p. 151, apud MATOS, Ana Carla Harmatiuk. União entre pessoas do
mesmo sexo: aspectos jurídicos e sociais, 1.a Edição, Belo Horizonte: Editora Del Rey,
2004, p. 64-65 – sem grifos no original).
44 DIAS, Maria Berenice. Manual de Direito das Famílias, 1.a Edição, Porto Alegre:
Editora Livraria do Advogado, 2005, p. 142.
45 Nesse sentido, afirma Alexandre de Moraes que: “O princípio da igualdade
consagrado pela Constituição opera em dois planos distintos. De uma parte, frente ao
legislador ou ao próprio executivo, na edição, respectivamente, de leis, atos
normativos e medidas provisórias, impedindo que possam criar tratamentos
abusivamente diferenciados a pessoas que encontram-se em situações idênticas. Em
outro plano, na obrigatoriedade ao intérprete, basicamente, a autoridade pública, de
aplicar a lei e atos normativos de maneira igualitária, sem estabelecimento de
diferenciações em razão de sexo, religião, convicções filosóficas ou políticas, raça,
classe social. (...) Importante, igualmente, apontar a tríplice finalidade limitadora do
princípio da igualdade: ‘limitação ao legislador, ao intérprete/autoridade pública e ao
particular’. O legislador, no exercício de sua função constitucional de edição normativa,
não poderá afastar-se do princípio da igualdade, sob pena de flagrante
inconstitucionalidade. Assim, normas que criem diferenciações abusivas, arbitrárias,
sem qualquer finalidade lícita, serão incompatíveis com a Constituição Federal. O
intérprete/autoridade pública não poderá aplicar as leis e atos normativos aos casos
concretos de forma a criar ou aumentar desigualdades arbitrárias. Ressalte-se que, em
especial o Poder Judiciário, no exercício de sua função jurisdicional de dizer o direito
no caso concreto, deverá utilizar os mecanismos constitucionais no sentido de dar uma
interpretação única e igualitária às normas jurídicas. Nesse sentido a intenção do
legislador constituinte ao prever o recurso extraordinário ao Supremo Tribunal Federal
(uniformização na interpretação da Constituição Federal) e o recurso especial ao
Superior Tribunal de Justiça (uniformização na interpretação da legislação federal).
Além disso, sempre em respeito ao princípio da igualdade, a legislação processual
deverá estabelecer mecanismos de uniformização de jurisprudência a todos os
Tribunais. Finalmente, o particular não poderá pautar-se por condutas discriminatórias,
preconceituosas ou racistas, sob pena de responsabilidade civil e penal, nos termos da
legislação em vigor” (MORAES, Alexandre de, Direito Constitucional. 20.ª Edição, São
Paulo: Editora Atlas, 2006, p. 65 – sem grifos no original). No mesmo sentido, pode-se
citar, como um todo, a obra clássica de José Joaquim Gomes Canotilho (Constituição
Dirigente e Vinculação do Legislador: Contributo para a Compreensão das Normas
Constitucionais Programáticas, 2.a Edição, Coimbra: Coimbra Editora, 2001), na qual o
constitucionalista português demonstra que todas as normas constitucionais, mesmo
as programáticas, vinculam materialmente o legislador democrático, ainda que apenas
de forma negativa (conforme o caso).
46 “(...) é obrigatório afirmar, como diretriz geral para todos os casos, que a dimensão
material do princípio da igualdade torna inconstitucional qualquer discriminação que
utilize preconceitos ou lance mão de juízos mal fundamentados a respeito da
homossexualidade. Vale dizer, em cada uma das questões onde surgir a indagação
sobre a possibilidade da equiparação ou da diferenciação em função da orientação
sexual, é de rigor a igualdade de tratamento, a não ser que fundamentos racionais
possam demonstrar suficientemente a necessidade de tratamento desigual, cujo ônus
de argumentação será tanto maior quanto mais intensa a distinção examinada. No
caso da homossexualidade (...) constata-se que o estágio do conhecimento humano
que hoje compartilhamos desautoriza juízos discriminatórios com base exclusiva no
critério da orientação sexual. Com efeito, a evolução experimentada pelas ciências
humanas e biológicas desde a metade do século XX já é suficiente para a superação
dos preconceitos que anteriormente turvavam a mentalidade contemporânea diante da
homossexualidade” (RIOS, Roger Raupp. O Princípio da Igualdade e a Discriminação
por Orientação Sexual: A Homossexualidade no Direito Brasileiro e Norte-Americano.
1.ª Edição, Porto Alegre: Editora Revista dos Tribunais, 2002, p. 136 – sem grifos no
original).
47 “Esclarecendo melhor: tem-se que investigar, de um lado, aquilo que é erigido em
critério discriminatório e, de outro, se há justificativa racional para, à vista do traço
desigualador adotado, atribuir o específico tratamento jurídico construído em função da
desigualdade afirmada. (...) Em outras palavras: a discriminação não pode ser gratuita
ou fortuita. Impende que exista uma adequação racional entre o tratamento
diferenciado construído e a razão diferencial que lhe serviu de supedâneo. Segue-se
que, se o fator diferencial não guardar conexão lógica com a disparidade de
tratamentos jurídicos dispensados, a distinção estabelecida afronta o princípio da
isonomia” (MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Conteúdo jurídico do princípio da
igualdade. 3.ª Edição, 11.ª Tiragem, São Paulo: Malheiros Editores, 2004, Maio 2003,
p. 37-39 – sem grifos no original).
48 “Assim, diante da ausência de uma justificação racionalmente lógica, o que exige um
alto grau de fundamentação para embasar o tratamento diferenciado, a
obrigatoriedade do tratamento isonômico se impõe na medida em que essa aplicação
pode significar restrição e mesmo afronta direta ao direito fundamental da igualdade
(...)” (GIRARDI, Viviane. Famílias Contemporâneas, Filiação e Afeto. A Possibilidade
Jurídica da Adoção por Homossexuais, 1.ª Edição, Porto Alegre: Editora Livraria do
Advogado, 2005, p. 80 – sem grifo no original).
49 Goodridge v. Department of Public Health, p. 9. Disponível
em: http://www.mass.gov.br/courts/courtsandjudges/courts/supremejudicialcourt/goodri
dge.html. Acesso em: fev. 2007. Sem destaques no original.
50 Apenas para evitar eventuais mal-entendidos, não tive tal compreensão quando
elaborei minha monografia de conclusão do curso de Direito no Instituto Presbiteriano
Mackenzie, intitulada Homoafetividade & Família: Da Possibilidade Jurídica do
Casamento, da União Estável e da Adoção por Homossexuais, na qual acreditei
acriticamente na existência de “proibições implícitas” ante a redação do art. 1.514 do
CC/2002, pelo que me penitencio. Em outras palavras, o pensamento deste autor
evoluiu ao constatar a inexistência de proibições implícitas em Direito ante o teor do
art. 5.o, II, da CF/1988.
51 Quanto à definição da interpretação extensiva e sua diferença da analogia, cite-se a
saudosa lição de Miguel Reale: “(...) o pressuposto do processo analógico é a
existência reconhecida de uma lacuna na lei [ao passo que] Na interpretação
extensiva, ao contrário, parte-se da admissão de que a norma existe, sendo suscetível
de ser aplicada ao caso, desde que estendido o seu entendimento além do que
usualmente se faz. É a razão pela qual se diz que entre uma e outra há um grau a
mais na amplitude do processo integrativo” (REALE, Miguel, Lições preliminares de
direito, 27.ª Edição, 4.ª tiragem, São Paulo: Editora Saraiva, 2004, p. 298 – sem grifos
no original).
52 DIAS, Maria Berenice. Manual de Direito das Famílias, 1.a Edição, Porto Alegre:
Editora Livraria do Advogado, 2005, p. 143.
53 Cf. DIAS, op. cit., p. 144.
54 Ibidem, p. 145.
55 BARROSO, Luís Roberto. O Direito Constitucional e a efetividade de suas normas, 8.a
Edição, São Paulo: Editora Renovar, 2006, p. 78.
56 Nesse sentido, vide: Maria Helena Diniz (Lei de Introdução ao Código Civil Brasileiro
Interpretada, 11.ª Edição, São Paulo: Editora Saraiva, 2005, p. 112-114): “Para integrar
a lacuna, o juiz recorre, preliminarmente, à analogia, que consiste em aplicar, a um
caso não contemplado de modo direto ou específico por uma norma jurídica, uma
norma prevista para uma hipótese distinta, mas semelhante ao caso não contemplado.
É a analogia um procedimento quase lógico, que envolve duas fases: ‘a constatação
(empírica), por comparação, de que há uma semelhança entre fatos-tipos diferentes e
um juízo de valor que mostra a relevância das semelhanças sobre as diferenças, tendo
em vista uma decisão jurídica procurada’. A nosso ver, a analogia é um instrumento
lógico-decisional, pois sua aplicação leva à decisão do magistrado, sem, contudo,
haver interferências lógico-silogísticas, implicando uma seleção, um juízo avaliativo,
por parte do órgão judicante, dos elementos relevantes. (...) Percebe-se que o
problema da aplicação analógica não está na averiguação das notas comuns entre o
fato-tipo e o não previsto, mas sim em verificar se essa coincidência sobreleva, em
termos valorativos, de maneira a justificar plenamente um tratamento jurídico idêntico
para os fatos ora em exame (AJ, 30:156, 51:87, 53:156; RF, 128:998; RT, 131:569,
209:262, 433:178, 446:154, 635:263). A analogia é apenas um processo revelador de
normas implícitas. O fundamento da analogia encontra-se na ‘igualdade jurídica’, já
que o processo analógico constitui um raciocínio ‘baseado em razões relevantes de
similitude’, fundando-se na identidade de razão, que é o elemento justificador da
aplicabilidade da norma a casos não previstos, mas substancialmente semelhantes,
sem contudo ter por objetivo perscrutar o exato significado da norma, partindo, tão só,
do pressuposto de que a questão sub judice, apesar de não se enquadrar no
dispositivo legal, deve cair sob sua égide por semelhança de razão. É necessário,
portanto, que além da semelhança entre o caso previsto e o não regulado haja a
mesma razão, para que o caso não contemplado seja decidido de igual modo. Daí o
célebre adágio romano: ubi eadem legis ratio, ibi eadem dispositio” (sem grifos no
original). Ressalte-se, ainda, que o fato de a referida autora defender em sua obra que
o casamento civil homoafetivo seria “absurdo” é irrelevante, pois não traz ela uma
motivação lógico-racional que justifique a pertinência de dita discriminação, limitando-
se apenas a propagá-la, o que não atende ao aspecto material da isonomia e, por isso,
não pode ser considerado como válido – mesmo porque, como se diz na esfera
contenciosa, “alegar sem provar é o mesmo que não alegar”. Está ela certa quando
trata da analogia, conforme o trecho ora transcrito, mas não quando defende que o
casamento civil homoafetivo seria um “absurdo”, pelas razões expostas neste trabalho.
57 Goodridge v. Department of Public Health, p. 9. Disponível
em: http://www.mass.gov.br/courts/courtsandjudges/courts/supremejudicialcourt/goodri
dge.html. Acesso em: fev. 2007. Sem destaques no original.
58 Com relação ao ordenamento jurídico português, a inconstitucionalidade da proibição
do casamento civil homoafetivo é ainda mais evidente, na medida em que, além de
consagrar a isonomia genericamente considerada, a Constituição Portuguesa possui
cláusula expressa de proibição de discriminação por orientação sexual ao dispor que:
“Ninguém pode ser privilegiado, beneficiado, prejudicado, privado de qualquer direito
ou isento de qualquer dever em razão de (...) orientação sexual” (art. 13, item 2). Além
de dispor que: “Todos têm o direito de constituir família e de contrair casamento em
condições de plena igualdade” (art. 20, item 1). Que a negativa do casamento civil
homoafetivo constitui discriminação por orientação sexual e/ou por motivo de sexo é
questão já demonstrada neste trabalho. Mas, no ordenamento jurídico português, isso
fica ainda mais evidente na medida em que a Constituição Portuguesa aduz
expressamente que o casamento civil é um direito de todos, logo um direito também
dos homossexuais. Contudo, é de se anotar que Canotilho e Vital Moreira têm posição
diversa, com a qual não se pode concordar. Aduzem os autores que “o alargamento do
âmbito de protecção do preceito à realidade de comunidades familiares diversas e
plurais não se transfere de plano para o casamento de pessoas do mesmo sexo.
Seguramente, basta o princípio do Estado de direito democrático e o princípio da
liberdade e autonomia pessoal, a proibição de discriminação em razão da orientação
homossexual, o direito ao desenvolvimento da personalidade, que lhe vai naturalmente
associado, para garantir o direito individual de cada pessoa a estabelecer vida em
comum com qualquer parceiro de sua escolha (cfr. anotação ao art. 13.o) (embora
sempre com a limitação dos impedimentos impedientes do casamento em sentido
restrito, o que leva a proibir, é óbvio, uniões homossexuais de irmãs, irmãos, mães-
filhos, pais-filhos etc. e de pessoas sem idade nupcial). Mas a recepção constitucional
do conceito histórico de casamento como união entre duas pessoas de sexo diferente
radicado intersubjectivamente na comunidade como instituição não permite retirar da
Constituição um reconhecimento directo e obrigatório dos casamentos entre pessoas
do mesmo sexo (como querem alguns a partir da nova redacção do art. 13.o-2), sem
todavia proibir necessariamente o legislador de proceder ao seu reconhecimento ou à
sua equiparação aos casamentos (como querem outros)” (CANOTILHO, José Joaquim
Gomes e MOREIRA, Vital. CRP – Constituição Portuguesa Anotada, 1.a Edição
Brasileira, 4.a Edição Portuguesa, São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2007, vol.
I, p. 567-568). Todavia, equivocam-se os autores. Primeiramente, a liberdade e
autonomia pessoal para permitir uniões fáticas com quem se pretenda não afasta o
citado conteúdo discriminatório, na medida em que o casamento civil é o único regime
jurídico que confere integral proteção do Direito às uniões amorosas, donde configura
inequívoca discriminação o não reconhecimento do casamento civil de determinados
grupos, que, como dito, precisa respeitar o aspecto material da isonomia para ser
válido. Por outro lado (e em especial), a mera existência de dispositivo aduzindo
expressamente ser o casamento civil um direito de todos já permite extrair um
reconhecimento direitamente constitucional do casamento civil homoafetivo, na medida
em que, se o casamento civil é um direito de todos, então evidentemente é também
um direito de homossexuais, que podem se casar, obviamente, com pessoas do
mesmo sexo. A conjugação desse dispositivo com aquele relativo à proibição de
discriminação por orientação sexual torna isso ainda mais evidente, pois tal cláusula
constitucional já torna suspeita qualquer diferenciação por esse motivo (assim como
pelos demais arrolados no citado art. 13, item 2, da Constituição Portuguesa, conforme
explicitei no capítulo em que tratei da isonomia), havendo presunção de
inconstitucionalidade de diferenciações com base nesse critério, donde necessária
uma motivação lógico-racional que justificasse sua necessidade como forma de se
alcançar um importante fim estatal – motivação esta inexistente. Por outro lado,
inexiste “recepção constitucional” do conceito de casamento civil como entre pessoas
de sexos diversos – a Constituição Portuguesa (e a Brasileira) nada dispõe nesse
sentido, limitando-se a tratar do “casamento” de forma genérica, sem limitá-lo a
heterossexuais em nenhum momento. Ainda que se considere o casamento civil como
“instituição” (o que é um equívoco, pois ele é tão somente um contrato típico de Direito
das Famílias), é de se notar que mesmo instituições milenares, quando ingressam em
um ordenamento jurídico, devem respeitar a sua sistemática, donde, havendo
proibição à arbitrariedade pela cláusula da isonomia, então o reconhecimento da
possibilidade do casamento civil homoafetivo passa a ser inafastável na medida em
que configura arbitrariedade o seu não reconhecimento – donde o arbitrário caráter
pré-jurídico do casamento, que o limitava apenas a pessoas de sexos diversos, não é
válido nas ordens constitucionais que vedam a arbitrariedade. Assim, é de se notar o
equívoco de Canotilho e Vital Moreira nesse ponto, sendo que a função social do
princípio da igualdade, tão bem explicitada por Canotilho, impõe o reconhecimento da
possibilidade jurídica do casamento civil homoafetivo também (e especialmente) no
ordenamento jurídico português, por força da interpretação extensiva ou da analogia,
que, afinal, decorrem da própria isonomia no sentido de tratar-se igualmente os iguais
ou fundamentalmente iguais, respectivamente. Lamentavelmente, o Tribunal
Constitucional Português, em 2009, afirmou ser constitucional dita proibição ao
casamento civil homoafetivo do Código Civil Português, rasgando assim sua
Constituição sobre o ponto. O tema não será, todavia, aqui analisado.
59 DIAS, Maria Berenice. A Lei Maria da Penha na Justiça: A efetividade da Lei
11.340/2006 de combate à violência doméstica e familiar contra a mulher, 1.a Edição,
Porto Alegre: Editora Livraria do Advogado, 2007, p. 35-36.
60 ARRIADA, Roberto Lorea. A influência religiosa no enfrentamento jurídico de questões
ligadas à cidadania sexual: Análise de um acórdão do Tribunal de Justiça do RS, in:
RIOS, Roger Raupp (org.). Em defesa dos direitos sexuais, 1a Edição, Porto Alegre:
Editora Livraria do Advogado, 2006, p. 192 (para todas as citações).
61 ADPF 132 e ADI 4.277, voto do Ministro Celso de Mello, p. 45-48 – grifos nossos.
62 Idem, p. 36-37.
63 Cf. ADPF 132 e ADI 4.277, voto do Ministro Gilmar Mendes, p. 11 e 17.
64 ADPF 132 e ADI 4.277, aditamento ao voto do Ministro Luiz Fux, p. 5-6.
65 MEDEIROS, Jorge Luiz Ribeiro de. Interpretar a Constituição não é ativismo judicial
(ou “ADPF 132 e ADPF 178 buscam uma interpretação adequada de direitos já
existentes na Constituição”). Disponível em: <http://www.ibdfam.org.br/?
artigos&artigo=554> (publicado em 7 out. 2009; último acesso em: 1º jan. 2012).
66 RAMOS, Elival da Silva. Ativismo Judicial. Parâmetros Dogmáticos. 1ª edição, 2ª
tiragem, São Paulo: Saraiva, 2010, p. 107.
67 LEAL, Saul Tourinho. Ativismo ou Altivez? O Outro Lado do Supremo Tribunal Federal,
1ª edição, Belo Horizonte: Fórum, 2010, p. 18.
68 Cf. ADPF 132 e ADI 4.277, voto do Ministro Gilmar Mendes, p. 44. No original: “O fato
de a Constituição proteger, como já destacado pelo eminente Relator, a união estável
entre homem e mulher não significa uma negativa de proteção – nem poderia ser – à
união civil, estável, entre pessoas do mesmo sexo”.
69 Cf. ADPF 132 e ADI 4.277, voto do Ministro Gilmar Mendes, p. 54.
70 Cf. ADPF 132 e ADI 4.277, voto do Ministro Celso de Mello, p. 45-48 – grifos nossos.
71 Cf. ADPF 132 e ADI 4.277, voto do Ministro Gilmar Mendes, p. 54-55.
72 ROTHENBURG, Walter Claudius. Inconstitucionalidade por Omissão e Troca de
Sujeito. A perda de competência como sanção à inconstitucionalidade por omissão.
1.ed. São Paulo: RT, 2005, pp. 13 e 90-91. Grifos nossos.
73 Muito embora pareça haver prevalência do entendimento intermediário, que coloca o
casamento civil como um misto entre contrato e instituição. Apenas para não deixar de
me posicionar sobre o tema, entendo que o casamento civil nada mais é do que um
contrato, assim como qualquer outro, com a peculiaridade de ser um contrato típico, ou
seja, ter seus contornos totalmente regulados pelo Código Civil, sendo que a vontade
das partes praticamente só tem relevância na decisão de contrair o matrimônio, na
escolha do regime de bens, na escolha do domicílio do casal, na forma de criação de
eventuais filhos (naturais ou adotivos) e, por fim, no momento da dissolução da
sociedade conjugal. Como bem diz Maria Berenice Dias, “quase se poderia dizer que o
casamento é um contrato de adesão, pois os efeitos e formas estão previamente
estabelecidos, não havendo espaço para a vontade dos noivos, que se limitam a dizer
‘sim’ diante da autoridade civil, o que tem o alcance da concordância com os deveres
do casamento” (DIAS, Maria Berenice. Manual de Direito das Famílias, 1.a Edição,
Porto Alegre: Editora Livraria do Advogado, 2005, p. 145), embora conclua a autora
ser descabido tentar identificar o casamento com institutos com finalidade
exclusivamente de ordem obrigacional, sob o fundamento de o casamento ser um
negócio jurídico que não está afeito à teoria dos atos jurídicos, razão pela qual opina
pela qualificação deste como “negócio de direito de família” para diferenciá-lo dos
demais negócios de Direito Privado (ibidem, p. 145).
74 Por “preferência” deve-se entender preferência arbitrária, não pautada pela lógica e
racionalidade. Afinal, considerando que a isonomia permite diferenciações lógico-
racionais, o referido dispositivo constitucional só faz sentido quando interpretado de
forma a vedar a instituição de preferências arbitrárias dos brasileiros entre si, ou seja,
de forma a proibir preferências entre cidadãos idênticos ou então idênticos no
essencial. Exemplo de preferência válida é a instituição de preferência do idoso no que
tange a determinados assentos nos transportes públicos e no atendimento em
instituições financeiras e estabelecimentos públicos em geral.
75 Como se sabe, há três correntes acerca da natureza jurídica do preâmbulo
constitucional. A primeira nega-lhe qualquer eficácia jurídica; a segunda atribui-lhe a
mesma natureza das normas constitucionais; e a terceira, intermediária, reconhece-lhe
eficácia interpretativa da Constituição, embora reconheça que na contradição entre
preâmbulo e norma constitucional prevaleça esta. Este autor adere à terceira corrente,
visto que os valores que inspiraram a elaboração de uma carta constitucional não
podem ser desprezados, embora, contudo, não constituam norma constitucional
propriamente dita, donde devem ser tidos como paradigmas interpretativos da Carta
Constitucional (ressalto que não desconheço que o Supremo Tribunal Federal adotou
a concepção que nega qualquer eficácia jurídica ao preâmbulo quando do julgamento
da ADIn 2.076. Contudo, entendo que o Supremo errou na referida posição, pois se é
verdade, como é, que o preâmbulo não prevalece sobre o texto normativo de artigos
da Constituição, ele não pode ter negada qualquer força jurídica, sob pena de ser tido
como juridicamente inútil, o que se afigura contraditório na medida em que o
preâmbulo faz parte do texto constitucional e, ainda, em atenção ao célebre princípio
hermenêutico segundo a qual a lei não pode ter palavras inúteis – no que inclusa
também a lei constitucional, evidentemente –, aspectos estes não considerados pelo
Supremo). Ainda no que tange ao preâmbulo, é de se notar que a expressão “sob a
proteção de Deus” não significa que as religiões poderiam influir na interpretação
constitucional: visto que o princípio do Estado Laico veda a utilização de
fundamentações religiosas para embasar discriminações juridicamente válidas, donde
a contraposição entre dita expressão e o art. 19, I, da CF/1988 só pode levar à
prevalência deste em relação à expressão preambular. Ademais, mesmo isoladamente
considerada, dita expressão somente expressa que o Brasil não é um Estado Ateísta,
proibidor de qualquer crença teísta, mas um Estado Laico, que permite a liberdade
religiosa embora vede, por força do citado dispositivo constitucional, a utilização de
fundamentações religiosas para embasar discriminações juridicamente válidas. Note-
se, por fim, que o Supremo deixou claro no julgamento da referida ADIn 2.076 que a
expressão “sob a proteção de Deus”, além de não ser texto normativo de repetição
obrigatória, não é juridicamente relevante, nos termos do voto Sepúlveda Pertence,
que não foi contestado pelos demais Ministros, quando disse que tal expressão não
constitui norma jurídica na medida em que não se pode obrigar a divindade a cumprir
com a promessa supostamente feita (!).
76 Este parágrafo é baseado em espirituosa manifestação de uma amiga jurista, cuja
modéstia fez com que pedisse que seu nome não fosse citado neste trabalho.
77 Esta foi justamente a tese que defendi em minha citada monografia de conclusão do
curso de Direito do Instituto Presbiteriano Mackenzie, nominada Homoafetividade &
Família: Da Possibilidade Jurídica do Casamento Civil, da União Estável e da Adoção
por Casais Homoafetivos, na qual, como dito anteriormente, tive como pressuposto a
existência de tal “proibição implícita” por uma aceitação acrítica do quanto defendido
pela doutrina nesse sentido.
78 Qual seja a concessão de menos direitos às uniões homoafetivas quando comparadas
às heteroafetivas.
79 Que é a identidade de sexos em um caso e a diversidade de sexos em outro,
caracterizadoras da orientação sexual não heteroafetiva do casal.
80 Como a dignidade humana (art. 1.º, III), a promoção do bem-estar de todos (art. 3.º,
IV, parte final); a sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos (preâmbulo); a
liberdade de consciência (art. 5.º, VI); e a proibição da criação de distinções
(arbitrárias) entre brasileiros ou preferências entre si (art. 19, III).
81 Nesse sentido, é oportuna a lição de Viviane Girardi, para quem: “Olhando a questão
da homossexualidade pelo prisma do princípio da igualdade na lei, não há como se
negar a quem possui identidade homossexual os mesmos direitos concedidos aos
heterossexuais, unicamente por causa da orientação sexual daqueles. De fato, o
princípio da igualdade será violado sempre que o fator diferencial utilizado para
embasar o tratamento diferenciado for única e exclusivamente a orientação sexual do
indivíduo. Ou seja, quando este fator diferencial não guardar conexão lógica com a
disparidade de tratamento jurídico dispensado, estar-se-á diante de uma
arbitrariedade, e não de um tratamento legitimamente diferenciado. O princípio
isonômico em relação aos homossexuais estará violado quando a homossexualidade
for utilizada como um critério discriminatório, sem justificativas racionais, as quais
encontram sua base nos valores estabelecidos na ordem constitucional, especialmente
nos direitos fundamentais” (GIRARDI, Viviane. Famílias Contemporâneas, Filiação e
Afeto: A Possibilidade Jurídica da Adoção por Homossexuais, 1.ª Edição, Porto Alegre:
Editora Livraria do Advogado, 2005, p. 80-81 – sem grifos no original).
82 DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil Brasileiro: Direito de Família, 22.a Edição,
2.a tiragem, São Paulo: Editora Saraiva, 2007, p. 52.
83 Case CCT 60/04 e Case CCT 10/05. Disponível
em: http://www.constitutionalcourt.org.za (link “Judgments”, “Search”, Keyword
“homosexual” – caso “Minister of Home Affairs and Another v Fourie and Another
(Doctors for Life International and Others, Amicus Curiae); Lesbian and Gay Equality
Project and Others v Minister of Home Affairs and Others”). Acesso em: 13 out. 2006.
84 Que exige fundamentação lógico-racional para a limitação dos direitos constitucionais
por meio da consideração de cinco critérios: a natureza do direito, a importância do
propósito da limitação, a natureza e a extensão da limitação, a relação entre a
limitação e o seu propósito e a forma menos restritiva de se chegar àquele propósito –
critérios estes utilizados, ainda que com outras palavras, pela doutrina e pela
jurisprudência brasileiras no que tange aos nossos princípios da igualdade material e
da proporcionalidade.
85 Restrição esta que só existirá para aqueles que, contrariando o art. 5.o, II, da CF/1988,
admitam a existência de “proibições implícitas” em Direito.
86 Na 1ª edição desta obra, afirmamos que nesta ação deveriam constar como réus a
União Federal (que é a responsável por legislar sobre Direito Civil – art. 22, I, da
CF/1988); o Estado-Membro onde morem os(as) autores(as), na qualidade de
litisconsorte necessário (ou, no mínimo, facultativo), pelo casamento civil ter de ser
celebrado no Estado onde morem eles(as). Tive tal entendimento em razão da Ação
Civil Pública 2005.61.18.000028-6, movida pelo Ministério Público Federal contra a
União, todos os Estados e o Distrito Federal pleiteando pelo reconhecimento do direito
de casais homoafetivos terem acesso ao casamento civil. Contudo, atualmente penso
de forma distinta. Entendo que o casal deve se dirigir ao cartório de registro civil e,
caso haja negativa do juiz de Direito responsável pela circunscrição em questão em
celebrar seu casamento civil por conta de processo de dúvida suscitado pelo tabelião,
deve o casal ingressar com a referida ação perante uma das varas de família,
colocando o Juízo no polo passivo da ação, pleiteando a nulidade de dita decisão que
negou seu direito de acesso ao casamento civil. Isso supõe que o cartório de registro
civil tenha recebido o pedido de habilitação em casamento homoafetivo, o remeteu ao
juiz de Direito e este efetivou a recusa, caso em que será o juízo o polo passivo da
ação. Contudo, se próprio cartório se recusar a receber o pedido de habilitação em
casamento civil do casal homoafetivo, como alguns têm absurdamente feito após a
decisão do STF no julgamento da ADPF 132 e da ADI 4.277 (ou seja, após
05.05.2011), então o próprio cartório de registro civil deverá constar do polo passivo da
ação, mediante prova da recusa (negativa formal fornecida por este, notificação
extrajudicial não respondida no prazo nela solicitado, depoimento de testemunhas de
tal negativa etc.).
87 Demonstrando o controle misto de controle de constitucionalidade vigente no Brasil e
a questão da eficácia da sentença nesse sentido, é pacífica a doutrina
constitucionalista pátria, da qual se cita, exemplificativamente, José Afonso da Silva:
“Em suma, à vista da Constituição vigente, temos a inconstitucionalidade por ação ou
por omissão, e o controle de constitucionalidade é o jurisdicional, combinando os
critérios difuso e concentrado, este de competência do Supremo Tribunal Federal.
Portanto, temos o exercício do controle por via de exceção e por ação direta de
inconstitucionalidade e ainda por ação declaratória de constitucionalidade. De acordo
com o controle por exceção, qualquer interessado poderá suscitar a questão da
inconstitucionalidade, em qualquer processo, seja de que natureza for, qualquer que
seja o juízo. (...) Em primeiro lugar, temos que discutir a eficácia da sentença que
decide a inconstitucionalidade na via de exceção, e que se resolve pelos princípios
processuais. Nesse caso, a arguição de inconstitucionalidade é questão prejudicial e
gera um procedimento incider tantum, que busca a simples verificação da existência
ou não do vício alegado. E a sentença é declaratória. Faz coisa julgada no caso e
entre as partes. Mas, no sistema brasileiro, qualquer que seja o tribunal que a proferiu,
não faz ela coisa julgada em relação à lei declarada inconstitucional, porque qualquer
tribunal ou juiz, em princípio, poderá aplicá-la por entendê-la constitucional, enquanto
o Senado Federal, por resolução, não suspender sua executoriedade, como já vimos.
O problema deve ser decidido, pois, considerando-se dois aspectos. No que tange ao
caso concreto, a declaração surte efeitos ex tunc, isto é, fulmina a relação jurídica
fundada na lei inconstitucional desde o seu nascimento. No entanto, a lei continua
eficaz e aplicável até que o Senado suspenda sua executoriedade; essa manifestação
do Senado, que não revoga nem anula a lei, mas simplesmente lhe retira a eficácia, só
tem efeitos, daí por diante, ex nunc. Pois, até então, a lei existiu. Se existiu, foi
aplicada, revelou eficácia, produziu validamente seus efeitos” (SILVA, José Afonso da.
Curso de Direito Constitucional Positivo, 25.ª Edição, São Paulo: Malheiros Editores,
2005, p. 51, 53 e 54 – sem grifos no original).
88 Princípio este que será enfocado no próximo capítulo.
89 Nessa mesma linha de raciocínio, a saber o fato de que a conceituação de uma união
amorosa como uma “sociedade de fato obrigacional” estar muito longe de abarcar toda
a complexidade de uma relação amorosa, ensina-nos Roger Raupp Rios: “A razão da
pertinência de tais uniões ao direito de família é o reconhecimento da importância e da
especificidade delas, uma vez que outras figuras jurídicas, mesmo aproximadas, não
se mostrariam adequadas para retratá-las. De fato, se se quiser subsumir relações
desta espécie ao quadro conceitual, onde sobreleva o elemento econômico, ignorar-
se-á gravemente o elemento afetivo que diferencia a união estável constitucionalmente
protegida, pertinente ao direito de família, da sociedade de fato, prevista no direito
obrigacional. Pode-se argumentar, atento para o magistério de Clóvis do Couto e Silva,
que as relações humanas, permeadas de intensa intimidade, constituintes de tal
comunhão de vida, não se ajustam aos conceitos clássicos de direito subjetivo, tendo
em vista o elemento afetivo que as informa. Como visto, o direito de família caminha
cada vez mais em direção ao reconhecimento da natureza familiar de relações
humanas, estáveis e duradouras, fundadas na sexualidade e no afeto, com a intenção
de estabelecer-se uma plena comunhão de vida. Aí a marcha histórica e dogmática
que indiscutivelmente fez adentrar no texto constitucional a enumeração das
comunidades familiares acima mencionada. Neste rumo, foram superados antigos
dogmas relativos às finalidades reprodutivas destas comunidades, antes apresentadas
como condições necessárias para o reconhecimento da entidade familiar; também
foram ultrapassadas exigências formais, antes satisfeitas unicamente pela celebração
do casamento civil ou religioso. As chamadas ‘uniões homossexuais’, onde vínculos
afetivos e sexuais constroem uma comunhão de vida estável e durável, satisfazem,
portanto, estas notas distintivas requeridas pela regulação jurídica da família
estampada na Constituição de 1988. Com efeito, diante do perfil destas relações, faz-
se necessário o seu acolhimento no âmbito do direito de família, uma vez que é este o
domínio jurídico adequado para a juridicização desta modalidade de relação social.
Como apontou Luiz Edson Fachin, no direito de família a afetividade sobrepuja a
patrimonialidade” (RIOS, Roger Raupp. A homossexualidade no direito. Porto Alegre:
RT, 2001, p. 108-109 – sem grifos no original). No mesmo sentido, conclui Maria
Berenice Dias: “As uniões de duas pessoas do mesmo sexo – agora chamadas de
união homoafetiva – merecem ser abrigadas no Direito de Família, e não relegadas ao
campo dos negócios, pois não são sociedades de fato cujos sócios visam ao lucro, são
sociedades de afeto (DIAS, Maria Berenice. Conversando sobre a Homoafetividade.
Porto Alegre: Editora Livraria do Advogado, 2004, p. 22 – grifo nosso).
90 Cf., v.g., STJ, REsp 827.962/RS, DJe de 08.08.2011; MS 14.050/DF, DJe 21.05.2010;
REsp 782.601/RS, DJe 15.12.2009; AR 3.387/RS, DJe 01.03.2010; MS 13.17/DF, DJe
29.06.2009; AgRg no REsp 853.234/RJ, DJe de 19.12.2008; REsp 820.475/RJ, DJe
06.10.2008; AgRg no REsp 863.073/RS, DJe 24.03.2008; REsp 797.387/MG, DJ
16.08.2007, p. 289; MS 11.513/DF, DJ 07.05.2007, p. 274; RMS 13.684/DF, DJ
25.02.2002, p. 406; REsp 220.983/SP, DJ 25.09.2000, p. 72.
91 A qual, como visto, define que o que não é juridicamente proibido é juridicamente
permitido, cf. KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. Tradução:João Baptista
Machado. São Paulo: Martins Fontes, 2007, p. 46-48 e 270.
92 Processo 2005.61.18.000028-6, p. 8. Dita ação foi distribuída perante a Justiça
Federal da Comarca de Guaratinguetá/SP, mas foi redistribuída para a Justiça Federal
da Comarca de São Paulo/SP, ante acolhimento de exceção de incompetência
respectiva.
93 Ibidem, p. 8.
94 Ibidem, p. 9.
95 Processo 2005.61.18.000028-6, p. 8.
96 Ibidem, p. 16 (grifo do original).
97 Ibidem, p. 20 (sem grifo no original).
98 Loc. cit.
99 Como se exige do julgamento realizado por um juiz de Direito.
100 Quanto ao conteúdo jurídico do PACS, ensinam-nos Maria Berenice Dias e Débora
Vanessa Caús Brandão, assim citadas por Taísa Ribeiro Fernandes (Uniões
homossexuais: efeitos jurídicos, 1.ª Edição, São Paulo: Editora Método, 2004, p. 126-
127): “Trata-se de declaração conjunta em cartório, cujo registro marca o início de sua
vigência. É livre a deliberação de caráter patrimonial e, em caso de omissão,
presumem-se comuns os bens adquiridos durante sua vigência. O contrato é oponível
a terceiros, gerando obrigações solidárias. O acordo, que pode ser alterado
consensualmente a qualquer tempo, cria a obrigação de auxílio mútuo, a ser
livremente regulada entre as partes. É vedada sua estipulação entre ascendentes e
descendentes, bem como entre afins em linha reta e colaterais até o 3.º grau inclusive.
Tampouco pode ser firmado por pessoas casadas ou por quem esteja vinculado por
outro pacto. A dissolução consensual é feita por declaração conjunta ao cartório do
registro ou unilateralmente, mediante comunicação ao outro e ao cartório, passando a
vigorar após o decurso do prazo de três meses. O casamento de um dos parceiros põe
fim ao ajuste, bastando haver a comunicação acompanhada da certidão do
casamento. Ocorrida a morte de um, o sobrevivente ou qualquer interessado pode
comunicar o fato ao cartório. Não havendo consenso sobre a liquidação dos direitos e
obrigações, cabe a dissolução judicial, independente da reparação de danos
eventualmente sofridos [lição de Maria Berenice Dias]. (...) Conforme o art. 515-3 do
Código Civil francês, o PACS deve ser apresentado por escrito em duas vias,
mencionando, expressamente, que as cláusulas ali contidas reger-se-ão pela Lei 944,
de 15.11.1999. Além da qualificação das partes, é mister a descrição da forma com a
qual cada celebrante contribuirá para a vida em comum (divisão das despesas do
aluguel, por exemplo); sobrevindo ruptura do Pacto, a forma de divisão dos bens
também já estará prevista. O procedimento para que o PACS passe a produzir efeitos
jurídicos almejados é bastante simples. As partes deverão comparecer ao cartório do
tribunal de instância da localidade onde tenham fixado a residência comum e
apresentar todos os documentos pertinentes à prova da idade, residência,
nacionalidade, inexistência de impedimento matrimonial etc. Note-se que a
competência é fixada pelo critério territorial. Sendo uma das partes de nacionalidade
estrangeira, o PACS será celebrado no consulado ou embaixada correspondente.
Após a homologação pelo tribunal de instância, as partes deverão registrar o PACS no
cartório do tribunal de instância do local de nascimento de cada uma das partes (se
uma delas for estrangeira, o PACS deverá ser levado a registro no tribunal de grande
instância de Paris [lição de Débora Vanessa Caús Brandão].”
101 LOREA, Roberto Arriada. União estável: Sentença dá base legal para casamento
entre gays. Fev. 2005, Seção Notícias. Disponível
em: http://conjur.uol.com.br/textos/252505/. Acesso em: 20 fev. 2005 (sem destaque no
original). Vale a pena conferir-se o original: “Em relação à impossibilidade jurídica do
pedido, ponderou o representante do Parquet, em suas manifestações, que o art. 226,
§ 3.º, da CF, vedaria a possibilidade de reconhecimento da união entre pessoas do
mesmo sexo. Salientou, também, a falta de embasamento legal para fundamentar
entendimento diverso, explicitando em seu parecer a necessidade de cautela por parte
do julgador, porquanto o reconhecimento de união estável entre pessoas do mesmo
sexo poderia se traduzir no reconhecimento do direito ao casamento entre pessoas do
mesmo sexo, o que implicaria em reflexos ‘preocupantes’ no mundo dos fatos. Cabe
referir, quanto a essa preocupação manifestada pelo Ministério Público, a necessidade
de que fossem explicitadas as preocupações mencionadas, para o fim de que
pudessem ser adequadamente enfrentadas todas as questões afetas ao pedido posto
em lide. Nesse sentido, buscando contemplar ditas preocupações, trago à colação a
importante manifestação da Associação Americana de Antropologia [1], objetivando
esclarecer uma série de equívocos consagrados pelo senso comum acerca dos
reflexos sociais decorrentes do casamento entre pessoas do mesmo sexo. Declaração
sobre o Casamento e a Família feita pela Associação Americana de Antropologia
(AAA). Arlington, Virgínia; o Comitê Executivo da Associação Americana de
Antropologia, a maior organização do mundo de antropólogos, que são as pessoas
que estudam a cultura, vem a público fazer a seguinte declaração em resposta à
chamada feita pelo Presidente Bush para uma emenda constitucional proibindo o
casamento gay por entender que este seja uma ameaça à civilização. ‘Os resultados
de mais de um século de pesquisas antropológicas sobre unidades domésticas,
relações de parentesco e famílias, em diferentes culturas e ao longo do tempo, não
fornecem qualquer tipo de evidência científica que possa embasar a ideia de que a
civilização ou qualquer ordem social viável dependa do casamento ser uma instituição
exclusivamente heterossexual. Ao contrário, as pesquisas antropológicas
fundamentam a conclusão de que um imenso leque de tipos de famílias, incluindo
famílias baseadas em parcerias entre pessoas do mesmo sexo, podem contribuir na
promoção de sociedades estáveis e humanitárias.’ De resto, para além dessa
contundente nota, é importante salientar que a demanda deverá ser enfrentada à luz
do ordenamento jurídico pátrio, postas de lado convicções pessoais, moral religiosa,
ou qualquer outra instância argumentativa que se afaste do direito vigente entre nós,
sem que com isso se despreze uma interpretação criativa do arsenal jurídico posto à
disposição da sociedade brasileira, sem perder de vista que ao direito convém agregar
outros saberes, como já ensinava Caio Mário [2]: A todos vós posso afirmar com
irrefutável segurança que o Direito deve buscar, também em outras ciências,
sobretudo sociais e humanas, apoio e parceria para afirmar seus princípios,
reorganizando, metodologicamente, estudos e pesquisas. (...) Outras ciências indicam
novos rumos ao Direito’. De fato, outras fontes de saber oportunizam que se reflita
sobre a resistência dos operadores jurídicos em garantir o direito constitucionalmente
assegurado àquelas pessoas cuja orientação sexual se dirige a indivíduos do mesmo
sexo. Dados esses pressupostos, adentro à análise da preliminar de impossibilidade
jurídica do pedido, a qual, em consonância com os ensinamentos de Nelson Nery
Junior [3], apenas poderia ocorrer nos casos em que o nosso ordenamento jurídico
proíbe, expressamente, o objeto da pretensão. Da leitura do art. 226, § 3.º, da CF, não
decorre a conclusão ‘somente entre homens e mulheres’ adotada no parecer do fiscal
da lei (fl. 11). Ao contrário, conclui-se que este dispositivo não veda a possibilidade da
proteção jurídica das relações estáveis entre pessoas do mesmo sexo. Vislumbra-se
neste dispositivo uma lacuna, eis que não há norma expressa sobre este ponto
específico, não existindo, portanto, a impossibilidade de ocorrência das referidas
uniões estáveis entre homossexuais. Nos casos de vazio normativo deve o juiz decidir
de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais do direito (art. 4.º, da Lei
de Introdução ao Código Civil). Assim, consoante o art. 3.º, inciso IV, da Carta Magna,
que preconiza o princípio da igualdade, não há óbice para que esta regra
constitucional, hierarquicamente superior, possa suprir a lacuna acima referida. O
princípio da igualdade, estampado no artigo supramencionado, possibilita que o pedido
formulado pelo autor seja analisado, não podendo este ser fulminado pela preliminar
levantada à luz do art. 267 do CPC. Cumpre ressalvar que este princípio não possui
um rol taxativo de casos para sua ocorrência. O mesmo se perfectibiliza não pelo
questionamento sobre se os direitos são válidos apenas para uns ou para outros, mas
pela simples aplicação ampla destes a todos, ou seja, a obtenção da igualdade
material. O desrespeito a este princípio constitucional fundamental também foi
ressaltado no artigo “Direitos fundamentais, homossexualidade e uniões homoafetivas”
do doutrinador Romualdo Flávio Dropa [4], que afirmou: ‘A questão envolvendo os
direitos relativos às uniões homossexuais pertence, realmente, à esfera moral. Mas
não à falsa moral de alguns conservadores e retrógrados que insistem em negar a
proteção e salvaguarda da justiça a seres humanos que escolheram conviver
embasados em sentimentos de amor e afeto fora dos ‘padrões’ socialmente
convencionados, numa tentativa frustrante de tentar demonstrar que a sociedade e
seus valores são estáticos no tempo e no espaço. Ao falar em moral, deve-se ter em
mente que esta deve, sobretudo, enfatizar a guarda e respeito da justiça de maneira
igual para todos. Quem quer que seja privado daquilo que lhe é devido estará sofrendo
a agressão de um ato imoral. E os parceiros homossexuais, ao não terem seus direitos
respeitados e salvaguardados, estão sendo vítimas de uma imoralidade que, no
mínimo, deve ser reformulada ou revista, sob pena do Judiciário brasileiro atravessar
décadas enaltecendo a injustiça para alguns em prol da falsa moral de outros’.
Portanto, o reconhecimento da impossibilidade jurídica do pedido, pela falta de
expressa disposição legal, configuraria uma resistência imotivada para a efetiva
análise do tema. Ademais, como referido acima, existem normas que possibilitam a
admissão deste questionamento. O Direito não é uma ciência exata, possibilitando que
as regras existentes em nosso ordenamento sejam interpretadas e complementadas,
objetivando amparar todos os casos concretos em consonância com as constantes
modificações sociais. Neste sentido, o Des. José Carlos Teixeira Giorgis [5], no artigo
“A Natureza Jurídica da Relação Homoerótica”, referiu: ‘As uniões homoafetivas são
uma realidade que se impõe e não podem ser negadas, estando a reclamar tutela
jurídica, cabendo ao Judiciário solver os conflitos trazidos. É incabível que as
convicções subjetivas impeçam seu enfrentamento e vedem a atribuição de seus
efeitos, relegando à margem determinadas relações sociais, pois a mais cruel
consequência do agir omissivo é a perpetração de grandes injustiças’. O Tribunal de
Justiça do Rio Grande do Sul tem firmado posicionamento no sentido de entender
possível o pedido de reconhecimento de uniões entre pessoas do mesmo sexo, senão
vejamos: ‘Homossexuais. União estável. Possibilidade jurídica do pedido. É possível o
processamento e o reconhecimento de união estável entre homossexuais, ante
princípios fundamentais insculpidos na Constituição Federal que vedam qualquer
discriminação, inclusive quanto ao mesmo sexo, sendo descabida discriminação
quanto à união homossexual. E é justamente agora, quando uma onda renovadora se
estende pelo mundo, com reflexos acentuados em nosso país, destruindo preceitos
arcaicos, modificando conceitos e impondo a serenidade científica da modernidade no
trato das relações humanas, que as posições devem ser marcadas e amadurecidas,
para que os avanços não sofram retrocesso e para que as individualidades e
coletividades possam andar seguras na tão almejada busca da felicidade, direito
fundamental de todos. Sentença desconstituída para que seja instruído o feito.
Apelação provida’ (Apelação n. 598362655, Oitava Câmara Cível, Tribunal de Justiça
do Rio Grande do Sul, Rel. Des. José Trindade, data do julgamento 01/03/2000). Não
se desconhece que neste mesmo Tribunal (Apelação n. 599348562) já houve pedido
de reconhecimento de união entre pessoas de mesmo sexo que foi julgado extinto, sob
o argumento de ausência de regulamentação sobre a matéria. Entretanto, não parece
ser esta a interpretação jurídica mais acertada, conforme, aliás, destacado na
fundamentação do voto vencido naquela oportunidade, da lavra do Des. José
Trindade, que sustentava: ‘Sobre odiosa discriminação e preconceitos que possam ser
lançados sobre qualquer pessoa em relação a sua orientação sexual serve como
paradigma a passagem do voto proferido quando do julgamento da Apelação Cível n.
tal, na terceira Câmara Cível deste Tribunal, sendo o relator o Desembargador Luiz
Gonzaga Pilla Hofmeister, que transcrevo: ‘É preciso, inicialmente, dizer que o homem
e a mulher pertencem à raça humana. Ninguém é superior. Sexo é contingência.
Discriminar um homem é tão abominável como odiar um negro, um judeu, um
palestino, um alemão ou um homossexual. As opções de cada pessoa, principalmente
no campo sexual, hão de ser respeitadas, desde que não façam mal a terceiros. O
direito à identidade pessoal é um dos direitos fundamentais da pessoa humana. A
identidade pessoal é a maneira de ser, como uma pessoa se realiza em sociedade,
com seus atributos e defeitos, com suas características e aspirações, com sua
bagagem cultural e ideológica. É o direito que tem todo o sujeito de ser ele mesmo. A
identidade sexual, considerada como um dos aspectos mais importantes e complexos
compreendidos destro da identidade pessoal forma-se em estrita conexão com a
pluralidade de direitos, como são aqueles atinentes ao livre desenvolvimento da
personalidade, etc. para dizer assim ao final: se bem que não é ampla, nem rica a
doutrina jurídica sobre o particular, é possível comprovar que a temática não tem sido
alienada para o Direito vivo, quer dizer, para a jurisprudência comparada. Com efeito,
em Direito vivo, tem sido buscado, correspondido e atendido pelos juízes na falta de
exposições legais expressas. No Brasil aí está o art. 4.º da Lei de Introdução ao
Código Civil a permitir a equidade e a busca da justiça’. Ainda acerca da falta de
regulamentação do casamento entre pessoas do mesmo sexo, oportuno referir que o
Ministério Público Federal, através de seu procurador em Guaratinguetá, SP, vem de
ajuizar ação civil pública contra os entes federados, no sentido de assegurar em todo o
país a possibilidade de casamento entre pessoas do mesmo sexo, justamente sob o
argumento de que não é possível interpretar restritivamente os dispositivos que
regulam o casamento entre pessoas de sexos diferentes. Nem poderia ser de outro
modo, na medida em que a jurisprudência vem consagrando a possibilidade de que se
vejam reconhecidas as uniões estáveis entre pessoas do mesmo sexo, sem embargo
de que o artigo 1.723, do Novo Código Civil ainda refira ser reconhecida como
entidade familiar a união estável ‘entre o homem e a mulher’ (...). Ora, deixando de
referir aqui dezenas de outras decisões de Tribunais Regionais e Estaduais, até
mesmo o Tribunal Superior Eleitoral já se manifestou sobre esse tema, reconhecendo
a possibilidade de união estável entre duas pessoas do mesmo sexo, quando
determinou a inelegibilidade de candidata nas recentes eleições municipais de 2004 ao
equiparar a união estável heterossexual à homossexual: ‘Ementa Registro de
candidato. Candidata ao cargo de prefeito. Relação estável homossexual com a
prefeita reeleita do município. Inelegibilidade. Art. 14, § 7.º, da Constituição Federal.
Os sujeitos de uma relação estável homossexual, à semelhança do que ocorre com os
de relação estável, de concubinato e de casamento, submetem-se à regra de
inelegibilidade prevista no art. 14, § 7.º, da Constituição Federal. Recurso a que se dá
provimento. Decisão: O Tribunal, por unanimidade, conheceu do recurso e lhe deu
provimento, nos termos do voto do relator. (Acórdão 24564 Viseu-PA 01/10/2004
Relator(a) Gilmar Ferreira Mendes Relator(a) designado(a) Publicação PSESS –
Publicado em Sessão, Data 01/10/2004’. Assim, à luz do artigo 3.º, inciso IV, da
Constituição Federal, conforme fundamentação supra, tenho que (não apenas a união
estável, mas também) o casamento, nos moldes como atualmente regulado pelo
legislador, é um instituto passível de ser acessado por todas as pessoas,
independentemente de sua orientação sexual, razão pela qual rejeito a preliminar de
impossibilidade jurídica do pedido. No mérito, não deve prosperar a manifestação do
Ministério Público, no sentido de não existirem nos autos provas suficientes para
configurar a existência da união estável objeto da pretensão inicial. Primeiramente,
verifica-se que todos os requisitos básicos para configuração da união estável, quais
sejam: publicidade, continuidade, perenidade e o objetivo de constituir família são
facilmente identificáveis no caso em exame. A globalidade da prova produzida: a
escritura pública firmada pelas partes (fl. 06), o posterior contrato particular de
dissolução de união estável (fls. 07/08), a ratificação feita pelos autores, tanto em
audiência quanto por declarações escritas, das afirmações feitas na peça inicial (fl. 16)
e as demais provas acostadas (fls. 24/29), demonstram que as partes mantiveram a
união estável alegada. Paralelamente a este fato, o procedimento adotado no presente
feito nada difere de quando o objeto da lide é uma união estável heterossexual.
Nestas, tem-se como base, para a homologação pretendida, as afirmações feitas na
peça inicial e a posterior confirmação destas em audiência, adotando-se como praxe,a
juntada de declarações em substituição aos testemunhos prestados em audiência. Tais
declarações, no caso dos autos, estão acostadas a fls. 17 e 18, ambas com firma
reconhecida. Portanto, atribuir-se tratamento diferenciado aos jurisdicionados
homossexuais seria um desrespeito ao analisado princípio da igualdade. Nesse
sentido, seria um absurdo aceitar que o Poder Judiciário fechasse seus olhos não só
para as modificações de nossa sociedade, como para a Constituição Federal que rege
nossa nação. Buscando na ‘falta de legislação expressa’ razão suficiente para julgar
injustamente fatos que ocorrem entre ‘minorias sociais’ que já são constantemente
discriminadas. Isto posto, afastada a preliminar de impossibilidade jurídica do pedido,
julgo procedente o pedido inicial e decreto a dissolução de união estável, nos moldes
em que pretendida. NOTAS: [1] Texto livremente traduzido do inglês, cujo original se
encontra no site da entidade: http://www.aaanet.org. [2] Citado por Mauro Nicolau
Júnior in Revista Brasileira de Direito de Família n. 21, pág. 124. Síntese, Porto Alegre,
dez/jan 2004. [3] Nery Junior, Nelson. Código de Processo Civil Comentado: e
legislação extravagante. Atualizado até 7 de julho de 2003. 7. ed. rev. e ampl. São
Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2003. [4] Dropa, Romualdo Flávio, “Direitos
fundamentais, homossexualidade e uniões homoafetivas”, texto publicado no
site http://www1.jus.com.br/doutrina/texto.asp?id=5229, 09/02/2005, 18h. [5] Giorgis,
José Carlos Teixeira, “A Natureza Jurídica da Relação Homoerótica”, texto publicado
no site http://www.revistapersona.com.ar/8Giorgis.htm, 09/02/2005, 19h”.
102 Sentença proferida no Processo 001.181.480-80, perante a 2.ª Vara da Família e
Sucessões da Comarca de Porto Alegre, in: LOREA, Roberto Arriada. União estável:
Sentença dá base legal para casamento entre gays. Fev. 2005, Seção Notícias.
Disponível em: http://conjur.uol.com.br/textos/252505/. Acesso em: 20 fev. 2005.
103 Cf. “Reconhecida a união estável durante 25 anos entre duas mulheres”. Disponível
em: site Universo Jurídico (www.uj.com.br). Acesso em: 8 jan. 2008. mesmo dia (sem
grifo no original).
104 A íntegra das decisões aqui comentadas encontra-se no site:
<www.direitohomoafetivo.com.br> (links jurisprudência/casamento; especificamente no
link: <http://www.direitohomoafetivo.com.br/JurisprudenciaList.php?
idJurisAssunto=4&idJurisSubAssunto=62>; último acesso: 5 jan. 2012).
105 Com a EC 66, que aboliu a separação judicial do mundo jurídico ao permitir o divórcio
direto, esse argumento específico perdeu força.
106 O artigo citado é: VECCHIATTI, Paulo Roberto Iotti. Homoafetividade e família.
Casamento civil, união estável e adoção por casais homoafetivos à luz da isonomia e
da dignidade humana. Uma resposta a Rafael D’Ávila Barros Pereira. Jus Navigandi,
Teresina, ano 13, n. 1824, 29 jun. 2008. Disponível em:
<http://jus.com.br/revista/texto/11441>. Acesso em: 6 jan. 2012.
107 Vale citar a íntegra das transcrições doutrinárias feitas pelo magistrado: “Discorrendo
sobre o assunto, ensina Silvio de Macedo, verbis: “(...) O amor é um valor vital,
estético, metafísico, ético, social, jurídico como consequência. O sistema jurídico,
aberto, permite certa permeabilidade do amor. Daí se caracterizar também como valor
jurídico. Se o amor pode sacudir as estruturas sociais e se estas só mantêm
estabilidade pelo direito, então amor e direito se aglutinam no sistema jurídico,
formando o valor jurídico. Polivalente e tocando os diversos níveis da escala
axiológica, o AMOR é idôneo para tocar e sensibilizar as demais estruturas sociais, a
heterorrealização social, onde se aperfeiçoa e se realiza, instaurando a ordem não
apenas jurídica, mas metajurídica. Grandes contatos do direito com o amor, em
determinadas circunstâncias históricas e individuais, mostram não só a subjetividade,
mas a objetividade da fé, da esperança e do amor no plano das realizações sociais,
daí não se justificando a não inclusão do amor como valor social, ao lado dos demais
valores” (Curso de Axiologia Jurídica. Rio de Janeiro: Forense, 1986, p. 93). “E se o
Amor é não apenas um Valor jurídico, como também a causa das causas de todos os
direitos e da própria Convivência Humana, não há razão para indeferir o pedido ora
formulado, baseado justamente nesse valor, tão raro nos dias atuais. ‘O amor pelo
próximo é princípio subliminar da ordem. É o sentimento primeiríssimo, o primeiríssimo
elã da alma, dos que são levados a conviver numa comunidade. Mesmo quando
obumbrado, não bem percebido ou expresso, ele é o cimento subjacente da união dos
seres na sociedade. É o elo tácito da comunhão humana numa Nação. Em verdade, o
amor constitui, no imo da consciência de legisladores e intérpretes, a matriz silenciosa,
o submerso manancial, a inspiração geradora da Disciplina da Convivência. É a
origem mais pura, mais profunda da legislação: a causa das suas causas. É a fonte
natural do Direito’” (O primeiro mandamento, Estudos... São Paulo: Juarez de Oliveira,
2005, p. 7).
108 Processo 3.859/2009.
109 “O problema subjacente à interpretação extensiva (interpretação por analogia) pode
ser descrito da maneira que se segue. Se segundo seu sentido linguístico natural uma
regra se aplica à esfera A), sua extensão à esfera B) pressupõe: 1) Que atua uma
valoração jurídica em favor da aplicação da regra à esfera B). Essa valoração pode
fundar-se em particular na concepção de que a regra é uma formulação parcial, uma
revelação incompleta e esporádica de um ponto de vista mais geral. 2) Que não há
diferenças entre A) e B) que possam justificar o tratamento distinto dos dois casos. Se,
por exemplo, uma lei antiga utiliza palavras tais como ‘ele’ e ‘homem’, pode-se
sustentar que no direito atual não subsiste a diferenciação jurídica entre ‘homens’ e
‘mulheres’, e que a lei, portanto, deve estender-se, por analogia, às ‘mulheres’” (Alf
Ross, Direito e Justiça. 2. ed. São Paulo: Edipro, 2007, p. 179. Referência do original;
aspas simples nossas).
110 Processo não informado.
111 “Como disse, sempre estive entre os que entende a união homossexual como
entidade familiar específica, interpretando-se o artigo 226, da Constituição Federal,
sistematicamente com os demais dispositivos da Lei Maior, principalmente com o
catálogo de direitos fundamentais previsto no artigo 5o, visando a efetivação da
dignidade da pessoa humana pela concretização dos referidos direitos, e neste
diapasão, tanto a união estável quanto o casamento estariam vinculados
constitucionalmente a necessidade de diferenciação de sexos, embora fosse a união
homossexual também uma entidade familiar. Não me parece ser de grande relevância
o meu entendimento pessoal, se o STF já decidiu, em caráter erga omnes, que o artigo
que trata da união estável, previsto no Código Civil, se estende aos casais do mesmo
sexo. Sendo essa a decisão do Supremo, me parece inafastável a possibilidade de se
reconhecer a possibilidade de casamento civil entre tais casais, até porque, a mesma
linha de raciocínio utilizada para uma hipótese se aplica integralmente à outra. (...) Não
podemos esquecer que no voto vencedor no STF, o Ministro Carlos Ayres conclui que
deve ser interpretado extensivamente o artigo 1723 do Código Civil, para alcançar as
uniões homoafetivas, sob pena de inconstitucionalidade. Não há como se dar
interpretação diferente ao artigo 1.514, que trata do casamento, sob pena de incorrer
em semelhante inconstitucionalidade”. Sobre o tema, anote-se apenas que, embora
louvando o magistrado por se curvar ao posicionamento do STF sobre o tema, o
mesmo se equivoca[va] ao dizer que casamento civil e união estável estariam
“vinculados constitucionalmente à necessidade de diferenciação de sexos”, pois a
Constituição e o Código Civil não dizem que união estável e casamento civil se dão
“apenas” entre homem e mulher, donde o fato de citarem a expressão “o homem e a
mulher” significa a regulamentação do fato heteroafetivo como união estável e
casamento civil sem proibição do fato homoafetivo como tal, donde caracterizada
lacuna colmatável por interpretação extensiva ou analogia.
112 Processo 562.01.2011.036208-2 (2136/2011).
113 Processo 224.01.2011.081916-6.
114 AC 0007252-35.21012.8.19.0000.
115 Processo n.º 5003849-43.2011.827.2729.
116 Provavelmente o magistrado quis dizer “afetividade” e não “efetividade”.
117 Apelações Cíveis (AC) n.º 0034412-55.2011.8.26.0071, 0001093-72.2011.8.26.0564,
0001545-82.2011.8.26.0564, 0004335-34.2012.8.26.0037 e 0000050-
38.2011.8.26.0326, julgadas conjuntamente (a primeira de autoria deste autor, que
realizou sustentação oral no referido julgamento).
118 Processo não informado. Para a íntegra de minha sustentação oral, vide
http://pauloriv71.wordpress.com/2012/06/01/sustentacao-oral-no-tjsp-em-prol-da-
conversao-de-uniao-estavel-homoafetiva-em-casamento-civil/ (último acesso em: 2
out. 2012).
119 No relatório, a decisão assim descreveu os fundamentos do parecer: “O Ministério
Público se manifestou desfavoravelmente ao pleito, aduzindo que, nos termos da letra
da Constituição da República, e da lei, seria impossível o deferimento do pleito (fl. 61)”.
120 Processo não informado.
121 Apelação Cível (AC) 2012.003093-8.
122 Aqui o Tribunal trouxe argumentações religiosas que consideramos que não
deveriam ser apresentadas em uma decisão judicial pelo Estado ser Laico, a significar
que fundamentações religiosas não podem embasar decisões jurídicas, mas, como foi
apenas um complemento da decisão, transcrevemos seu teor, até para mostrar aos
religiosos em geral como conjugalidade homoafetiva é condizente com os valores
divinos (no caso das transcrições abaixo, valores cristãos) da mesma forma que a
conjugalidade heteroafetiva: “Neste aspecto, me escoro aos ensinamentos de
Cristiane Bicca (praticante da doutrina espírita), promanados em palestras difundidas
no site ‘www.espirito.org.Br’: ‘... Deus não nos castiga, não nos premia, nós é que
construímos através do livre-arbítrio. É aí que entra a felicidade de servir. A arte de
viver é a arte de servir. Feliz é quem ama, não aquele que se faz amado. Felicidade é
a arte de exalar alegria, a proposta da felicidade é esta autossuperação, da dominação
das nossas más inclinações. Somos filhos de Deus. A felicidade é possível e já, não
precisamos transferi-la. Quando buscamos e achamos Deus, não reclamamo-no mais,
podemos dizer a este Pai que amamos a vida, amamos o amor. Encaremos a vida
com os olhos do bem, com a visão do amor e com o concreto desejo de olharmos à
nossa volta e verificarmos que o Pai tudo nos legou para que a nossa felicidade se
efetive já. Abençoemos o trabalho em que a vida nos situou; santifiquemos a família
terrena do jeito que os familiares são; enfrentemos com dinamismo e alegria os
obstáculos da vida e assim, amando e servindo, haveremos de encontrar a felicidade
que há muito tempo espera por nós ...’. ‘... Com uma convivência aberta, cada um vai
ficando menos egoísta, porque aceita o outro como ele é e acredita que também pode
aprender algo com o outro. É um processo de muita interação, que só ocorre quando
aceitamos os outros e quando saímos da condição de ‘certinhos’, de perfeitos. Todos
nós precisamos de contrastes, das adversidades, por isso é que o benfeitor Emmanuel
afirmou ser o lar o purificador das almas individadas [sic]. As carências de hoje
representam os abusos do passado. É preciso, pois, estar atento ao aprendizado que
a vida familiar está lhe oferecendo. Só a família é capaz de propiciar essa experiência
tão enriquecedora. Sem esquecer, ainda, que na família é que nós encontramos as
nossas melhores companhias... Portanto vamos amar nossa família do jeito que ela é.
E se eles não são aquilo que gostaríamos que fossem, lembrem-se de que nós
também não somos o que eles gostariam que fôssemos. Sem esquecer, ainda, que
provavelmente já convivemos com eles em vidas passadas e devemos ter nossa
parcela de responsabilidade nessa história de capítulos tristes, mas cujo final poderá
ser muito feliz, se soubermos amá-los como nossos irmãos. Eles, nossos familiares,
são nossos próximos mais próximos. Não adianta querer amar o mundo, se ainda não
somos capazes de amá-los. Se houver muito ódio, perdoe. Esqueça as ofensas. Seja
você aquele que ama. Não guarde o amor dos outros nem o reconhecimento pelos
seus gestos. Dê o primeiro passo para a sua família ser mais feliz ...’. (...) E, como dito
por Chico Xavier, ‘O Cristo não pediu muita coisa, não exigiu que as pessoas
escalassem o Everest ou fizessem grandes sacrifícios. Ele só pediu que nos
amássemos uns aos outros’” (BACCELLI, Carlos. O Evangelho de Chico Xavier. São
Paulo: Didier, 2000, p. 109)”.
123 Processo 201230200270.
124 Explicou que “a simplicidade da questão fática não retira a necessidade de se expor
as razões do julgamento, que são jurídicas, e as quais a sociedade tem o direito de
conhecer, a par do dever da Julgadora de expor os fundamentos de suas decisões”,
pois embora não apresente uma tal fundamentação para casamentos civis
heteroafetivos, tal é aqui realizado “por necessidade de fincar um marco de
inauguração de uma nova vertente de pensamento, de mais um passo de
consolidação de tratamento igualitário entre iguais nesta Vara Judicial, e (quem sabe)
de fomentar a proibição de que as cercas da desigualdade se levantem, ou teimem em
ficar em pé, em outros rincões, sempre respeitando os sentires e olhares diferentes do
meu”.
125 Continuo a magistrada sobre o tema: “as instituições humanas, ainda carentes de
certos elementos externos de referência coletiva e individual, são sempre as últimas a
se adequarem a essas mudanças, apesar de testemunharmos um movimento salutar e
crescente que prioriza a afetividade nas relações humanas, que se desloca silenciosa
e constantemente do ter para o ser, da periferia para o núcleo dos seres dotados de
alma e inteligência”, sendo que “apesar do tremendo avanço, a Carta Federal/1988
não teve como, onipresentemente, prever tudo, usar todas as expressões, esgotar
todas as possibilidades, usar todas as palavras para todos os casos possíveis, abarcar
todos os fenômenos que a sociedade nem suspeitava poder existir ou se estabelecer
naquele contexto temporal. Querer diferente seria lançar a lei máxima do país à
condição de mero arquivo linguístico de regulamentação, de mero repertório
prescritivo, e de uma espécie de oráculo pós-moderno, o que é um absurdo em todas
as perspectivas que se adote. Havia uma novidade a caminho, em todo o mundo, em
todos os âmbitos, talvez apenas ao alcance da percepção ou do vislumbre de uns
poucos visionários. Por isso o trabalho de integração e de interpretação da norma é
contínuo”. Sobre a união homoafetiva na jurisprudência, afirmou que “Primeiro foi
considerada pelos Tribunais como mera sociedade de fato (enquanto muitos juízes já
avançavam para o sentido da união estável mesma), e depois como uma espécie de
união onde apenas alguns direitos do companheirismo eram reconhecidos, até se
chegar ao reconhecimento da união estável propriamente dita, igual à existente entre
pessoas de sexo diferente; e, por fim, chegou-se à histórica decisão do Supremo
Tribunal Federal, em 5 de maio de 2011, afastou as especulações e estabeleceu as
bases de tratamento da questão para todos os demais julgamentos semelhantes no
país (o efeito vinculante)
126 Processo não informado.
127 Processo 16.249/11.
128 Ademais, afirmou o magistrado que “A união entre pessoas do mesmo sexo não é
fato novo, havendo lenta e custosa aceitação social tendo como base a
fundamentação de que a dignidade de uma pessoa não está atrelada à sua orientação
sexual. Neste início de século XXI a sociedade brasileira vem sendo movida por novos
parâmetros de liberdade quanto àqueles que exercitam a própria sexualidade. Não
restam dúvidas de que a orientação sexual é um direito de cada um devendo a todos,
mesmo aqueles contrários por motivos pessoais e religiosos, respeitar e tolerar para
que haja uma convivência harmoniosa sem conflitos sectários típicos de sociedades
antigas. A tolerância é um sinal de sabedoria e quem não pensa igual a mim não pode
ser tratado com desprezo como lamentavelmente ainda verificamos todos os dias na
imprensa. O Juiz brasileiro, mesmo aqueles com formação religiosa mais rigorosa
trabalha em um Estado laico com os princípios e normas jurídicas laicas cujo valor
principal é a dignidade humana. Não podemos com base em valores morais pessoais
de formação distinguir indivíduos pela sua orientação sexual. (...) Ouvido o Ministério
Público, este manifestou desfavoravelmente ao argumento de ausência de menção
expressa na norma civil que regula o casamento entre pessoas do mesmo sexo. Com
a devida vênia compreendo sua opinião baseada na nossa cansada tradição romano-
germânica de ver o Direito. Na verdade todo este problema hermenêutico decorre da
inércia legislativa que devido a interesses diversos não cumpre seu papel
constitucional de pacificar relações sociais conflituosas deixando para o Judiciário
essa função positiva. Para evitar conflitos a interpretação do Direito deve sucumbir à
visão mais abrangente da realidade, examinando e debatendo os diversos aspectos
jurídicos que emergem das novas formas de entidades familiares”
129 Processo não informado.
130 Processo não informado.
131 Recurso 2011.01.1.194803-2 (acórdão 578.792).
132 A curiosidade deste caso é a de que o Tribunal extinguiu o processo sem resolução
de mérito porque, como se tratava de ação de reconhecimento de união estável para
fins de concessão de visto de permanência no Brasil, a Corte entendeu que, como não
há óbice ao deferimento do casamento civil a casais homoafetivos, o casal deveria
homologar seu casamento civil no Brasil, donde não teria “interesse de agir” para
mover ação de reconhecimento de união estável porque o visto de permanência seria
uma decorrência lógica do casamento civil [só admitindo a ação caso isso fosse
negado pelas autoridades brasileiras].
133 Processo 92/2012.
134 Processo não informado.
135 Afirmou o magistrado, contudo, que se não tivesse sido publicada a íntegra da
decisão do STJ no REsp n.º 1.183.378/RS no dia 01.02.2012, teria concordado com o
Ministério Público acerca da necessidade de ação judicial do casal homoafetivo para
garantir seu direito de acesso ao casamento civil, donde fica claro que o permitiu por
força do posicionamento do STJ.
136 Processo (RD) 00802.00355/2011.
137 Entendo que “união civil” não é sinônimo de “união estável”. União civil é um contrato
formal ao qual o Estado reconhece direitos e deveres; “união estável” é a união
informal (sem necessidade de formalizações contratuais) pública, contínua e
duradoura com o intuito de constituir família, nos termos do art. 1.723 do CC/02.
138 Cf. https://exch2007.tj.rs.gov.br/owa/?ae=Item&a=New&t=IPM.Note#sdfootnote6sym
(fonte do original).
139 Processo não informado.
140 Cf. VECCHIATTI, Paulo Roberto Iotti. Possibilidade de Conversão de União Estável
Homoafetiva em Casamento Civil, 2011b. Disponível em: <http://www.ibdfam.org.br/?
artigos&artigo=767>. Acesso em: 5 jan. 2012 (argumentos aqui explicados no corpo do
texto). Ditos argumentos já tinham sido afirmados em outro artigo, que criticou
decisões do TJRS que negaram o direito ao casamento civil homoafetivo apesar de
afirmarem que reconheciam o direito à união estável homoafetiva, a saber:
VECCHIATTI, Paulo Roberto Iotti. A Família Juridicamente Protegida, a Lei Maria da
Penha e a Proteção Constitucional da Família Homoafetiva – Equívocos dos
Julgamentos do TJRS que Negaram o Direito ao Casamento Civil Homoafetivo.
Revista do Direito das Famílias e Sucessões, n.º 16, Jun-Jul/2010, pp. 93-117. No
mesmo sentido, mas de forma sintética: VECCHIATTI, Paulo Roberto Iotti. O STF e a
união estável homoafetiva. Resposta aos críticos, primeiras impressões,
agradecimentos e a consagração da homoafetividade no Direito das Famílias. Jus
Navigandi, Teresina, ano 16, n. 2870, 11 maio 2011. Disponível em:
<http://jus.com.br/revista/texto/19086>. Acesso em: 4 jan. 2012.
141 Referida decisão foi reformada pelo Conselho Superior de Magistratura do TJSP, em
decisão de 31/05/12, em recurso de autoria deste autor, julgado conjuntamente com
outros sobre o mesmo tema.
142 Cf., na primeira edição desta obra, o Capítulo 6, item 3 – “A Interpretação Extensiva,
a Analogia e a Possibilidade Jurídica do Casamento Civil Homoafetivo” (VECCHIATTI,
2008, p. 257-271), bem como, no mesmo capítulo, o item 6 – “Da Possibilidade
Jurídica do Pedido de Casamento Civil Homoafetivo” (VECCHIATTI, 2008, p. 288-290)
– tópicos mantidos (com acréscimos) nesta nova edição.
143 Cabe reiterar que as decisões aqui não citadas não o foram por eu não ter localizado
seu inteiro teor, mas evidentemente as magistradas e magistrados que as proferiram
também merecem o reconhecimento histórico mencionado no corpo do texto.
Capítulo 7

UNIÕES HOMOAFETIVAS E ISONOMIA:


UNIÃO ESTÁVEL

1. CONSIDERAÇÕES PRELIMINARES ACERCA DA UNIÃO


ESTÁVEL. INTRODUÇÃO AO TEMA DA UNIÃO ESTÁVEL
HOMOAFETIVA
A Constituição Federal de 1988, ao manter a família como base da
sociedade, garantiu proteção à união estável mantida como entidade
familiar, enunciando que a lei deve facilitar a sua conversão em casamento
(art. 226, caput e § 3.º, da CF/1988).
Cabe aqui a primeira ressalva acerca da união estável: tem-se que a
Carta Magna, ao definir a família como base da sociedade brasileira, deu ao
casamento civil o status maior do Direito de Família, colocando-o como a
situação ideal para uma entidade familiar – disso, porém, não se deve
admitir que o Estado conceda mais direitos ao casamento civil
relativamente à união estável, por força do princípio da igualdade, na
medida em que são situações inequivocamente análogas. Embora a
afirmação constitucional de que a lei deve permitir a conversão da união
estável em casamento civil indique uma preferência constitucional pela
situação de casamento civil relativamente à situação de união estável, ela
deve ser entendida em razão de o casamento civil trazer maior segurança
jurídica ao casal e ao Estado, na medida em que a certidão de casamento
civil constitui prova absoluta de que o casal em questão forma uma família
conjugal, o que não ocorre na união estável, que precisa ser provada pelo
casal para que ele faça jus aos direitos (e obrigações) inerentes a uma
família conjugal (a declaração notarial de união estável não tem a mesma
força legal da certidão de casamento civil, donde empresas distintas exigem
documentos distintos para a prova da união estável do casal – como
declaração de dependência em Imposto de Renda, em plano de saúde, conta
bancária conjunta etc.). Assim, devem ser consideradas inconstitucionais
quaisquer regulamentações que venham a conceder menos direitos à união
estável do que aqueles relativos ao casamento civil.
A grande problemática no que tange ao reconhecimento da união
estável homoafetiva encontra-se na redação do § 3.º do art. 226 da CF/1988,
que, na visão de muitos, restringiria sua aplicação apenas àquela união
estabelecida entre o homem e a mulher, estando portanto excluídas as
homoafetivas. É o que defende, por exemplo, Débora Vanessa Caús
Brandão, ao comentar a posição doutrinária de Rainer Czajkowski, da dupla
José Lamartine Corrêa de Oliveira e Francisco José Ferreira Muniz e de
Guilherme Calmon Nogueira da Gama, no sentido de que: “Ao referir-se,
entretanto, à diferença entre sexos, não possui em nenhum momento o
intuito de admitir uma terceira posição, relacionada às preferências
homossexuais, preservadas contra a discriminação, ante a ausência de lei
que a vede, mas sem proteção especificamente orientada pelo exercício da
opção de relacionamento sexual feita por cada um”1.
Note-se pela primeira parte do texto transcrito que a autora adere
firmemente à teoria de que a homossexualidade seria uma “opção” do
indivíduo, como aquela que se faz ao prestar vestibular para Direito e não
para Engenharia. Em primeiro lugar, conforme já demonstrado neste
trabalho, tal posição está muito longe de corresponder à realidade dos fatos,
uma vez que não há uma “escolha” do indivíduo: ele simplesmente é
homossexual, heterossexual ou bissexual, sem nunca ter “optado” por esse
estado. O indivíduo simplesmente descobre que tem desejo sexual por
pessoas do mesmo sexo, de sexo diverso ou de ambos os sexos, sem,
entretanto, ter havido “opção” alguma. Ademais, ante a posição da
Organização Mundial da Saúde2 e do nosso Conselho Federal de
Psicologia3, tem-se que tanto a homossexualidade quanto a bissexualidade
não configuram doença, desvio psicológico, perversão nem nada do gênero,
tratando-se ambas de simples variações da rica sexualidade humana, sendo
assim tão naturais quanto a heterossexualidade. Assim, não há que se falar
em uma “terceira posição” sexual, como faz Débora Vanessa Caús Brandão:
há indiscutivelmente dois sexos na comunidade humana – o masculino e o
feminino. Aqui se está tratando das orientações sexuais de cada indivíduo,
que pode ser tanto homo quanto hétero ou bissexual.
Destarte, não há que se falar em possibilidade de aplicação do instituto
da união estável somente aos casais heteroafetivos, tendo em vista que tal
entendimento afronta diretamente o princípio da isonomia, protegido
constitucionalmente, inclusive como cláusula pétrea de nossa Carta Magna.
Isso porque o não reconhecimento da união estável homoafetiva caracteriza
discriminação por orientação sexual e mesmo discriminação sexual, tendo
em vista que, se não fosse especificamente ele (ou ela) do seu sexo, mas
alguém do sexo oposto em sua situação, não haveria discussão alguma
quanto ao reconhecimento do Direito das Famílias como o aplicável à sua
relação, com todas as consequências benéficas que dito reconhecimento traz
– como o direito a alimentos, meação patrimonial de acordo com o regime
de bens escolhido etc. Afinal, a orientação sexual do indivíduo só pode ser
verificada quando da exteriorização do amor dele para com aquele(a) com
quem mantém um relacionamento amoroso, ou seja, pela verificação do
sexo da pessoa para com a qual exterioriza seu amor romântico.
Assim, ante a clara existência de verdadeira discriminação sexual
contra o indivíduo que se relaciona com outro do mesmo sexo,
discriminação esta totalmente arbitrária e sem qualquer fundamento lógico-
racional com relação ao critério desigualador erigido, é imperiosa a
aplicação do instituto da interpretação extensiva ou da analogia no caso de
uniões estáveis homoafetivas, para evitar a total inconstitucionalidade ou
incompatibilidade do disposto no § 3.º do art. 226 da Constituição Federal
em relação aos princípios da isonomia e da dignidade da pessoa humana. O
termo (inconstitucionalidade ou incompatibilidade) dependerá da tese a que
se adere (se possível ou não a declaração da inconstitucionalidade de
normas oriundas do Poder Constituinte Originário), o que, sem embargo, na
prática, leva ao mesmo resultado, como se passa a analisar.

2. DA UNIÃO ESTÁVEL HOMOAFETIVA


Enuncia o art. 226, § 3.º, da CF/1988 que: “Para efeito da proteção do
Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como
entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento”.
Pelas mesmas razões expostas quanto ao casamento civil homoafetivo,
tem-se por inequívoca a possibilidade jurídica da união estável
homoafetiva, por interpretação extensiva ou analogia, que são técnicas
interpretativas que visam justamente suprir lacunas da legislação
(constitucional e infraconstitucional). Afinal, é inegável que a família
contemporânea constituída por casais forma-se pelo amor que vise a uma
comunhão plena de vida e interesses, de forma pública, contínua e
duradoura (amor familiar), que é o elemento valorativamente protegido
pelas normas que consagram a união estável (amor romântico/conjugal, no
caso do casamento civil e da união estável). Em outras palavras,
considerando que as uniões heteroafetivas são protegidas pelo regime
jurídico da união estável em virtude de formarem famílias conjugais, e que
ditas famílias formam-se pelo amor familiar, então as uniões homoafetivas
merecem a mesma proteção jurídica, devendo ser reconhecidas como
uniões estáveis por meio da interpretação extensiva ou da analogia, em
virtude de serem pautadas pelo mesmo amor familiar existente nas uniões
heteroafetivas, tratando-se, pois, de situações idênticas ou, no mínimo,
idênticas no essencial a estas.
Contudo, a não aceitação dessa proposição ensejará uma tensão entre o
dispositivo constitucional da união estável e outras normas constitucionais,
como as da isonomia e da dignidade da pessoa humana, tensão que
precisará ser resolvida – seja mediante a adoção da tese dos “conflitos
aparentes” entre as normas constitucionais, seja pela adoção da tese dos
“conflitos efetivos” entre elas, teorias estas abaixo explicitadas.

2.1 Da incompatibilidade do art. 226, § 3.º, com a isonomia e a


dignidade humana em caso de negação da união estável
homoafetiva. STF, ADPF 132 e ADI 4.277
Da mesma forma que no capítulo anterior, não se ignora que há muitas
vozes na doutrina e na jurisprudência que consideram que a redação do art.
226, § 3.º, da CF/1988 restringiria o regime jurídico da união estável apenas
aos casais heteroafetivos. Que isso configura uma interpretação simplista,
baseada em um legalismo positivista de há muito ultrapassado, não resta a
menor dúvida. Contudo, a questão é que tal posição é adotada por
considerável parte dos juristas, que se limitam a dizer que o Constituinte
teria sido “claro” ao permitir a união estável supostamente “apenas” a
casais heteroafetivos e, pelo caráter ilimitado e incondicionado do Poder
Constituinte Originário, isso se afiguraria possível em qualquer hipótese.
Todavia, fato é que a absoluta arbitrariedade dessa posição afronta o próprio
núcleo essencial da isonomia, que veda discriminações arbitrárias – e, como
se sabe, as restrições a direitos fundamentais nunca podem afrontar o
núcleo essencial de tais direitos.
Nesse sentido, vale citar a manifestação do Ministro Luiz Fux no
julgamento da ADPF 132 e da ADI 4.277 para destacar o descabimento da
invocação da lacuna normativa para fins de negação do direito de casais
homoafetivos ao casamento civil (e à união estável):

Diante disso, ignorar a existência e a validade jurídica das uniões


homoafetivas é o mesmo que as por em situação de injustificada
desvantagem em relação às uniões estáveis heterossexuais. Compete
ao Estado assegurar que a lei conceda a todos a igualdade de
oportunidades, de modo que cada um possa conduzir sua vida
autonomamente segundo seus próprios desígnios e que a orientação
sexual não constitua óbice à persecução dos objetivos pessoais. O
raciocínio se aplica, decerto, em todos os aspectos da vida e não
apenas os materiais ou profissionais – sob esse prisma, submeter um
indivíduo homossexual ao constrangimento de ter que ocultar seu
convívio com o(a) parceiro(a) ou de não poder esperar de suas relações
os efeitos legalmente decorrentes das uniões estáveis é, sem dúvida,
reduzir arbitrariamente as suas oportunidades.

Assim, poder-se-ia, a princípio, dizer que o § 3.o do art. 226 da


CF/1988 está carreado de inconstitucionalidade parcial por permitir o
regime jurídico da união estável somente às uniões heteroafetivas, em uma
suposta “vedação implícita” às uniões homoafetivas. Afinal, não há
qualquer fundamento lógico-racional para a discriminação das uniões entre
pessoas do mesmo sexo em relação às uniões entre pessoas de sexos
diversos, estando inclusive ausente qualquer correlação lógica concreta
entre dita discriminação e os valores constitucionalmente consagrados.
Dessa forma, assim como no caso do casamento civil, há afronta aos
princípios da isonomia e da dignidade da pessoa humana no tocante a tal
interpretação discriminatória.
Contudo, a doutrina constitucionalista é amplamente majoritária ao não
admitir a possibilidade de declaração de inconstitucionalidade de normas
constitucionais oriundas do Poder Constituinte Originário, por considerar
como absoluto e ilimitado o caráter de dito poder, que assim poderia
instituir o regime jurídico que considerasse mais apropriado para o país por
meio da Constituição que elabora, além de, supostamente, tal situação ferir
o princípio da unidade constitucional. O Supremo Tribunal Federal,
inclusive, manifestou tal entendimento no julgamento da ADIn 815-3/DF,
relatada pelo Ministro Moreira Alves4.
Dessa forma, a doutrina constitucionalista pátria não tem aceito
integralmente a teoria das normas constitucionais inconstitucionais de Otto
Bachoff 5, admitindo apenas a eventual declaração de inconstitucionalidade
de normas constitucionais decorrentes do Poder Constituinte Derivado e do
Legislador Ordinário, limitados e relativizados que são pelo Constituinte
Originário pelas cláusulas pétreas da Constituição (e pela Constituição
como um todo, no caso do legislador ordinário).
Por outro lado, também não se pode permitir que normas incompatíveis
entre si subsistam em um mesmo corpo normativo, especialmente na
Constituição Federal, que condiciona a validade de toda a legislação
infraconstitucional devido à hierarquia das normas vigentes em
ordenamentos jurídicos como o nosso. Isso porque um texto normativo deve
sempre ser interpretado sistematicamente, isto é, nunca se deve interpretar
um dispositivo normativo de forma isolada, mas sim de forma sistêmica, em
consonância com os demais textos normativos que visam reger a matéria
em questão, sob pena de eventuais incompatibilidades entre dispositivos
pertencentes à mesma lei, o que é inaceitável em um sistema jurídico (pois
um sistema supõe um conjunto harmônico de normas).
Assim, em casos tais de incompatibilidade entre normas de uma mesma
lei (constitucional ou infraconstitucional), tem-se duas alternativas: ou
altera-se/revoga-se parte dos dispositivos legais contraditórios para resolver
dita incompatibilidade ou então se utilizam os princípios gerais de
hermenêutica para a resolução da mesma. Esta é, a propósito, a orientação
de nossa doutrina constitucionalista, que entende que nunca existiriam
conflitos efetivos entre normas constitucionais oriundas do Poder
Constituinte Originário entre si, dado o citado caráter absoluto e ilimitado
do mesmo. Consideram que eventuais conflitos entre ditas normas seriam,
na verdade, meros conflitos aparentes, ante a presunção absoluta de que as
regras dali emanadas são todas compatíveis entre si, solucionáveis pela
utilização de ditos princípios gerais de hermenêutica, dentre os quais se
encontram a analogia e a interpretação extensiva.
Tal entendimento decorre do princípio da unidade da Constituição, que
impõe ao intérprete que harmonize as tensões existentes entre as normas
constitucionais originárias entre si sempre que possível. Dito princípio
exige, ainda, a aplicação de uma interpretação sistemática à Constituição,
justamente no intuito de se harmonizarem as tensões existentes entre
distintos preceitos constitucionais originários6.
No caso aqui analisado, são inegáveis a tensão e a incompatibilidade
entre o art. 226, § 3.o, da CF/1988 e diversos outros princípios
constitucionais quando interpretado de forma que não reconheça a união
estável homoafetiva, a saber:
a) o princípio da isonomia estabelece que qualquer discriminação
jurídica que se pretenda introduzir deve ser uma decorrência lógico-racional
do critério diferenciador erigido e que, ainda, deve tal discriminação ser
condizente com os valores constitucionalmente consagrados por nossa
Carta Magna, ao passo que o art. 226, § 3.º, da CF/1988, quando
interpretado de uma forma que proíba a união estável homoafetiva, traz um
critério de diferenciação (por sexo/orientação sexual) que não contém uma
correlação lógico-racional com a discriminação jurídica que efetivamente
introduz (diferenciação dos regimes jurídicos aplicáveis à união estável
homoafetiva e à heteroafetiva em razão da orientação sexual – e,
consequentemente, do sexo – dos companheiros) e, ainda, que não é
condizente com outros valores constitucionalmente consagrados, como:
a.1.) o princípio da dignidade da pessoa humana (art. 1.º, III, da
CF/1988), que estabelece que todos são merecedores de igual proteção de
sua dignidade pelo simples fato de serem pessoas humanas, garantindo a
todos o direito à felicidade7. Isso porque tal discriminação implica,
indiretamente, a reprovação do Estado ao amor homoafetivo, o que é
incompatível com o direito de respeito à dignidade, que necessariamente
implica a liberdade de envolvimento afetivo com quem se quiser, sem que
isso seja motivo para ser menosprezado jurídica ou socialmente;
a.2.) o princípio de que constitui um dos objetivos fundamentais da
Constituição a promoção do bem-estar de todos (art. 3.º, IV, da CF/1988),
donde se infere que se busca inclusive o bem-estar de homossexuais, o que
fica impossibilitado pelo não reconhecimento tanto do casamento civil
quanto da união estável aos mesmos, pelo desprezo à conjugalidade
homoafetiva inerente a tal postura estatal;
a.3.) o princípio da liberdade de consciência (art. 5.º, VI, da CF/1988),
que garante a todos o direito à autonomia moral, ou seja, a viver da forma
como são, no sentido de agirem em conformidade com o seu íntimo,
vivendo a vida da forma que entendem correta8, uma vez que a
homossexualidade e a bissexualidade são características inerentes aos seres
humanos que as possuem, sendo assim parte integrante de sua
personalidade, tendo eles o direito a não ser discriminados jurídica ou
socialmente em razão de sua consciência homoafetiva, visto não causar
prejuízos a terceiros.
a.4.) o princípio da liberdade, que garante o direito à autonomia moral
ao indivíduo, para que este viva sua vida da forma que mais sentido lhe
faça, desde que não prejudique terceiros, prejuízo este que inexiste no que
tange à homoafetividade9. Destaque-se que é a liberdade real, substancial
que resta afrontada, na medida em que não adianta existir uma liberdade
formal de escolha se o Estado dificulta a vida daquele que escolhe viver sua
vida de forma diversa da pretendida pelo Estado (ressaltando-se que a
escolha existente no que tange à homossexualidade é a de vivenciar sua
orientação sexual em sua plenitude, como fazem heterossexuais, ou reprimi-
la, não no sentido de decisão sobre amar pessoas do mesmo sexo ou de sexo
diverso).
Dessa forma, ante o entendimento acerca da impossibilidade de
declaração de inconstitucionalidade de normas constitucionais derivadas do
Poder Constituinte Originário, é claro o conflito “aparente” do art. 226, §
3.º, da CF/1988 em relação ao princípio da isonomia e todos os outros
supraexplicitados quando se considera cabível o regime jurídico da união
estável apenas às uniões heteroafetivas, deixando assim desamparadas as
homoafetivas.
Quanto à forma de resolver os conflitos aparentes de normas
constitucionais, leciona Alexandre de Moraes10, aderindo às posições de
Canotilho e Jorge Miranda:

“Canotilho enumera diversos princípios e regras interpretativas


das normas constitucionais:
– da unidade da constituição: a interpretação constitucional deve
ser realizada de maneira a evitar contradições entre suas normas;
(...)
– da máxima efetividade ou da eficiência: a uma norma
constitucional deve ser atribuído o sentido que maior eficácia lhe
conceda;
(...)
– da concordância prática ou da harmonização: exige-se a
coordenação e combinação dos bens jurídicos em conflito de forma a
evitar o sacrifício total de uns em relação aos outros;
– da força normativa da constituição: entre as interpretações
possíveis, deve ser adotada aquela que garanta maior eficácia,
aplicabilidade e permanência das normas constitucionais.
Aponta, igualmente, com Vital Moreira, a necessidade de
delimitação do âmbito normativo de cada norma constitucional,
vislumbrando-se sua razão de existência, finalidade e extensão.
Esses princípios são perfeitamente completados por algumas
regras propostas por Jorge Miranda:
– a ‘contradição dos princípios’ deve ser superada, ou por meio
da redução proporcional do âmbito de alcance de cada um deles, ou,
em alguns casos, mediante a preferência ou a prioridade de certos
princípios;
– deve ser fixada a premissa de que todas as normas
constitucionais desempenham uma função útil no ordenamento, sendo
vedada e interpretação que lhe suprima ou diminua a finalidade;
– os preceitos constitucionais deverão ser interpretados tanto
explicitamente quanto implicitamente, a fim de colher-se seu
verdadeiro significado.
A aplicação dessas regras deverá, em síntese, buscar a harmonia
do texto constitucional com suas finalidades precípuas, adequando-as
à realidade e pleiteando a maior aplicabilidade dos direitos, garantias
e liberdades públicas” (grifos nossos).

Verifica-se claramente que todas essas premissas encontram-se


desrespeitadas pelo não reconhecimento da união estável homoafetiva, visto
que tal interpretação restritiva: (i) estará criando uma tensão entre normas
constitucionais; (ii) não estará dando máxima efetividade, eficiência,
aplicabilidade e permanência ao texto normativo da união estável, visto que
exclui a hipótese da união estável homoafetiva, plenamente compatível com
dito texto normativo, por intermédio da interpretação extensiva ou da
analogia; (iii) estará sacrificando integralmente o princípio da isonomia,
que terá seu significado suprimido dada a afronta a seu núcleo essencial,
que veda o estabelecimento de distinções arbitrárias; (iv) estará afrontando
a razão de existência, finalidade e extensão da união estável, que visa
proteger famílias conjugais não matrimonializadas pautadas pelo amor
familiar, conceito este no qual se enquadram as uniões homoafetivas; (v)
consagrará afronta a um princípio, que é mandamento nuclear do sistema,
por parte de uma regra, que é necessariamente uma concretização dos
princípios do documento normativo em questão11.
Torna-se inequívoco, portanto, que a única forma de solucionar dito
conflito “aparente” de normas é mediante: (i) a aplicação da interpretação
extensiva, reconhecendo-se que ambas as situações fáticas são idênticas,
uma vez que baseadas no mesmo elemento valorativamente protegido pelas
normas que regem a união estável (amor familiar), donde merecem,
portanto, o mesmo tratamento jurídico; ou (ii) a aplicação da analogia, no
sentido de se reconhecer que, se não forem idênticas, as uniões
homoafetivas guardam extrema similitude em relação às heteroafetivas,
visto que a elas são idênticas naquilo que lhes é fundamental (e é
igualmente fundamental à união estável), que é a existência do amor
romântico que vise a uma comunhão plena de vida e interesses, de forma
pública, contínua e duradoura, que é o elemento formador da família
conjugal contemporânea. Vista a questão de outra forma, tem-se por cabível
a analogia pelo fato de que a única “diferença” entre as uniões estáveis
heteroafetivas e homoafetivas configurar-se-ia, tão somente, pelo sexo dos
parceiros, que, em um caso, são diversos e, em outro, homogêneos, além da
orientação sexual de ambos, não havendo ademais nenhum fundamento
lógico-racional entre a discriminação pretendida (não aplicação do Direito
das Famílias) com relação ao critério de desigualação erigido (orientação
sexual e sexo do par), e muito menos correlação lógica concreta entre tal
diferenciação e os preceitos constitucionais vigentes.
Assim, tanto se admitindo a possibilidade de declaração de
inconstitucionalidade parcial do § 3.º do art. 226 da CF/1988 no que tange à
expressão “entre o homem e a mulher” por afrontar diretamente os
princípios da isonomia, da dignidade da pessoa humana, da liberdade de
consciência e o de que constitui objetivo do Estado promover o bem-estar
de todos12, quanto se admitindo que não se declara a inconstitucionalidade
de normas constitucionais derivadas do Poder Constituinte Originário13,
tem-se que a união estável é um regime jurídico que deve ser aplicado tanto
às uniões heteroafetivas quanto às uniões homoafetivas, uma vez satisfeitas
as condições de convivência pública, contínua e duradoura, seja esta
situação decorrente de interpretação extensiva seja de analogia ante a atual
redação do citado dispositivo legal.
Que fique claro: não considero existir proibição à união estável
homoafetiva na redação do art. 226, § 3.º, da CF/1988, pelo simples fato de
ali constar a expressão “entre o homem e a mulher”, na medida em que,
como manifestei perante o Supremo Tribunal Federal em sustentação oral
na ADPF 132 e na ADI 4.277, dizer que a união estável é reconhecida
“entre o homem e a mulher” não é o mesmo que dizer que ela é reconhecida
“apenas entre o homem e a mulher” – como o apenas não está escrito, não
há limites semânticos no texto que impeçam a exegese constitucional
inclusiva da união estável homoafetiva por interpretação extensiva ou
analogia, donde a união homoafetiva enquadra-se no conceito
constitucional de união estável por formar uma família conjugal, que é o
elemento valorativamente protegido pelo regime jurídico da união estável
(e, também, do casamento civil). Não há limites semânticos no texto porque
não se diz em nenhum momento que a expressão “entre o homem e a
mulher” abarcaria a união homoafetiva – o que se defende é que tal
expressão não tem o condão de criar uma proibição implícita à união
estável homoafetiva, mas de simplesmente informar que a Constituição
reconheceu a união estável entre o homem e a mulher como entidade
familiar sem nada dispor sobre a união estável entre duas pessoas do
mesmo sexo, o que, consoante lições de Direito Civil Clássico, configura
lacuna normativa passível de colmatação por interpretação extensiva ou
analogia, que é a solução aplicável pelo fato de a união homoafetiva formar
uma família conjugal, que é o elemento valorativamente protegido pela
união estável e pelo casamento civil.
É perfeitamente cabível, portanto, que casais homoafetivos ingressem
no Judiciário com ações declaratórias de união estável alegando a
possibilidade jurídica da união estável homoafetiva, por interpretação
extensiva ou analogia, ou, alternativamente, por incompatibilidade da
interpretação discriminatória que limite a união estável apenas a casais
heteroafetivos com a principiologia constitucional supraexplicitada, ou,
caso assim não entenda o juiz, requerer incidentalmente a
inconstitucionalidade da suposta “vedação implícita” à união estável
homoafetiva supostamente erigida pelo art. 226, § 3.º, da Carta Magna. Em
se aderindo à teoria da inconstitucionalidade, note-se que se tratará de
inconstitucionalidade parcial, acerca da expressão “entre o homem e a
mulher”, visto que a sua ausência não prejudicará em nada o regime
jurídico da união estável.
Nessa linha, leciona Taísa Ribeiro Fernandes14 no sentido de que há
identidade de situações entre as uniões homoafetivas e heteroafetivas, visto
que ambas são pautadas pela vida em comum, respeito, afeto, solidariedade,
mútua assistência e tantos outros, donde, superada a letra fria da norma e
tendo em conta a sua substância, seu fim social (em suma, acrescento, sua
interpretação teleológica), percebe-se que as uniões homoafetivas
representam efetivas entidades familiares e têm, portanto, que receber o
mesmo tratamento jurídico dispensado às uniões heteroafetivas, razão pela
qual é cabível o tratamento analógico para que isto seja possível.
Maria Berenice Dias15 tem idêntica conclusão, no sentido de que em
nada se diferencia a convivência homoafetiva da união estável atualmente
reconhecida a casais heteroafetivos, donde imperiosa uma interpretação
analógica que leve à aplicação do regramento legal conferido a
heterossexuais também a homossexuais, visto que em ambos os casos temos
relacionamentos pautados pelo amor romântico/conjugal.
A lição de Maria Berenice Dias16 é paradigmática a esse respeito, no
sentido de que o silêncio constitucional e a omissão legiferante não podem
levar à negativa de efeitos jurídicos aos vínculos homoafetivos em atenção
às disposições normativas dos arts. 4.o da LINDB e 126 do CPC, donde não
há como fugir da analogia com as demais relações que têm o afeto por
causa e, assim, reconhecer a existência de uma entidade familiar à
semelhança daquela existente entre casais heteroafetivos, visto que
presentes nas relações homoafetivas os mesmos pressupostos hoje
valorizados pelo Direito das Famílias e consagrados pela Constituição.
Nesse sentido, arremata Berenice17 no sentido de que não é dezarrazoado
ter-se a união homoafetiva como forma de união estável por força dos
princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana e da igualdade,
afirmando ainda que uma visão unitária e coerente do texto constitucional
demanda pela aplicação da analogia nesse caso.
Note-se, ainda, a posição de Luís Roberto Barroso18. Em parecer
monográfico sobre o tema, o constitucionalista demonstrou categoricamente
como restam afrontados os princípios da isonomia19, da liberdade pessoal20,
da dignidade da pessoa humana21 e da segurança jurídica22 quando se
interpreta o art. 226, § 3.o, da CF/1988 de forma proibitiva da união estável
homoafetiva, concluindo no sentido da possibilidade jurídica do
reconhecimento da união estável homoafetiva, (i) pelo fato do texto
normativo da união estável ser uma norma de inclusão, criada com o intuito
de acabar com a discriminação antes ocorrida em relação às uniões
extramatrimoniais, donde uma norma de inclusão não pode ser interpretada
de forma discriminatória, sob pena de contrariar os princípios
constitucionais e os fins que a justificaram, além do que os citados
princípios impõem o reconhecimento da possibilidade jurídica da união
estável homoafetiva23; ou, não aceita esta tese e admitindo-se a existência
de lacuna no referido texto normativo, entende (ii) pelo inequívoco
cabimento da analogia, visto que presentes na união homoafetiva os
mesmos elementos essenciais configuradores da união estável, a saber a
convivência pacífica e duradoura, caracterizada pela afetividade, comunhão
de vida e assistência mútua, emocional e prática, com o intuito de constituir
família24.
Como se vê, a doutrina de Luís Roberto Barroso acerca da função
ordenadora dos princípios na interpretação constitucional demanda pelo
reconhecimento das uniões homoafetivas como uniões estáveis, visto que,
como normas de hierarquia axiológica superior à das regras, os princípios
condicionam a interpretação das demais normas constitucionais, no sentido
de que as regras devem ser interpretadas obrigatoriamente em consonância
com os princípios, justamente por serem estes axiologicamente superiores
às regras25. Ou seja, mesmo para aqueles que não aceitam a hierarquização
de normas constitucionais entre si, a compreensão dos princípios
constitucionais como vetores interpretativos da Constituição não implica
hierarquização vertical (formal) de certas normas constitucionais sobre
outras. Ao contrário, justamente em atenção ao princípio da unidade
constitucional é que se deve realizar uma ponderação dos valores em jogo
para que o “conflito aparente” em questão seja realmente só “aparente”, e
não “real”, sendo dita ponderação a única forma de evitar um choque entre
normas constitucionais originárias.
Assim, uma vez afrontadas a isonomia, a dignidade humana e outros
princípios constitucionais pelo não reconhecimento da união estável
homoafetiva, isso significa que tal interpretação discriminatória mostra-se
inadequada justamente por contrariar os citados princípios constitucionais,
axiologicamente superiores que são às regras, donde a regra da união
estável deve ser interpretada em consonância com eles e, portanto, ser
reconhecida a união estável homoafetiva pela interpretação extensiva ou
pela analogia.
No mesmo sentido do parecer de Luís Roberto Barroso, tem-se a
Representação de Daniel Sarmento e outros visando à impetração de
Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental para o
reconhecimento da união estável homoafetiva26, que com desenvolvimentos
próprios também alega afronta aos princípios da igualdade, da dignidade da
pessoa humana, da liberdade e da segurança jurídica para, em seguida,
defender uma interpretação teleológica do art. 226, § 3.o, da CF/1988,
norma de inclusão que é, de forma a reconhecer a possibilidade jurídica da
união estável homoafetiva – seja pela aplicação direta das referidas normas
constitucionais, seja pela aplicação da analogia. Dita representação,
claramente, foi o norte utilizado para a elaboração da ADPF 178,
posteriormente convertida em ADIn 4.277, julgada pelo STF em conjunto
com a ADPF 132 para o reconhecimento da união estável homoafetiva,
cujos argumentos seguem infraexplicitados.
Ademais, no mesmo sentido do aqui defendido, manifestaram-se
diversas vozes na Jurisprudência, embora de forma minoritária antes do
julgamento do STF de 05.05.2011 (que reconheceu a união estável
homoafetiva – ADPF 132 e ADI 4.277), reconhecendo (i) o direito
fundamental à felicidade (TJ/RS27), inequivocamente decorrente da
dignidade da pessoa humana; (ii) que as uniões homoafetivas baseiam-se no
mesmo amor familiar existente nas uniões heteroafetivas e, portanto,
merecem aquelas o mesmo tratamento a estas dispensado por força da
isonomia e da dignidade humana, configurando verdadeiro farisaísmo
(TJ/RS28) e preconceito (TJ/BA29) entendimento em sentido contrário; (iii)
que a natureza da relação amorosa, de afeto e peculiar confiança, se
coaduna muito mais com o Direito de Família do que com o Direito das
Obrigações (TJ/RS30); já há jurisprudência reconhecendo o caráter jurídico-
familiar das uniões homoafetivas e enquadrando-as, portanto, no conceito
jurídico de união estável, por analogia. Essa linha jurisprudencial (não
limitada ao Rio Grande do Sul) admitiu que o reconhecimento da união
estável homoafetiva configura medida necessária ao respeito das cláusulas
constitucionais da isonomia, da dignidade humana, da liberdade (TJ/MG31 e
TJ/RS32) e da proibição de preconceitos (TJ/RJ33), assim como defendem a
prevalência dos princípios constitucionais sobre as regras da própria
Constituição (TJ/RJ34).
Vale a consulta ao site www.direitohomoafetivo.com.br para se
vislumbrar a enorme quantidade de decisões acerca do tema.
No presente caso, dada a tensão entre os dispositivos constitucionais da
união estável e da isonomia, verificada a verdadeira lacuna constitucional
no que tange à união estável homoafetiva, considerando a inexistência de
motivação lógico-racional na negação do regime jurídico da união estável
às uniões homoafetivas (afronta à isonomia) e considerando que a união
estável heteroafetiva não será prejudicada pela extensão de dito regime
jurídico aos casais homoafetivos, o princípio da unidade constitucional
exige a extensão da união estável aos casais homoafetivos, seja pela
interpretação extensiva, seja pela analogia (conforme se considerem as
situações idênticas ou idênticas no essencial).
Assim, é cabível a união estável homoafetiva pela interpretação
extensiva ou pela analogia, visto ser a união homoafetiva idêntica ou, no
mínimo, análoga à união estável heteroafetiva constitucionalmente
reconhecida, e serem ambas pautadas pelo amor romântico que vise a uma
comunhão plena de vida e interesses, de forma pública, contínua e
duradoura, que é o elemento formador da família conjugal contemporânea
(amor familiar).

2.1.1 A ADPF 132 e a ADI 4.277

2.1.1.1 Argumentações expostas nas ações


Em 27.02.2008, o Governador do Estado do Rio de Janeiro Sérgio
Cabral impetrou Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental
13235, visando ao reconhecimento da união estável homoafetiva pelo
Supremo Tribunal Federal.
Na petição inicial (aparentemente baseada no parecer de Luís Roberto
Barroso e na representação constantes do tópico anterior, por trazer
sinteticamente, senão todos, diversos dos argumentos ali expostos), após
justificar o cabimento da ADPF36, demonstrou a violação:
(i) ao princípio da igualdade, pela Constituição proibir todas as formas
de preconceito e discriminação arbitrária (irrazoável), o que abrange a
desequiparação fundada na orientação sexual das pessoas, implícita que está
no gênero (sexo) da pessoa – que, como a origem e a cor de pele, configura
classificação suspeita, assim erigida pelo constituinte (art. 3.o, IV),
discriminação esta que afronta o núcleo essencial da isonomia na medida
em que trata diferentemente situações substancialmente iguais, o que
demanda a interpretação das leis em conformidade com a Constituição, com
interpretações corretivas delas quando respeitado seu conteúdo semântico.
Afirmou, ainda, que não é necessário elencar razões para impedir o
tratamento diferenciado, pois a lógica é inversa: onde não existem motivos
legítimos a exigir a distinção, a regra há de ser o tratamento igualitário,
apontando que, em um Estado democrático e pluralista, tais motivos devem
ser pautados por argumentos de razão pública e não por visões de mundo
particulares, de ordem moral ou religiosa pois estas, ainda quando
majoritárias, não são obrigatórias e, portanto, não podem ser impostas pelo
Poder Público. Nesse sentido, anotou que nenhum princípio ou valor
constitucional é promovido pelo não reconhecimento das uniões
homoafetivas, mas, ao contrário, esse não reconhecimento implica a
violação direta do propósito constitucional de construir uma sociedade
pluralista e refratária do preconceito, ao passo que argumentos de ordem
religiosa são inadmissíveis para justificar práticas discriminatórias pelo
Brasil ser um Estado Laico (art. 19, inc. I, da CF/1988). Apontou também
que a união estável visa ao respeito e ao apoio mútuos e não à procriação,
que, se exigida, deveria servir para negar reconhecimento também às uniões
formadas por casais estéreis ou àqueles que simplesmente não desejem ter
filhos e, a rigor, mesmo às famílias monoparentais [o que não ocorre];
(ii) ao direito à liberdade e o decorrente à autonomia privada, pois um
Estado Democrático de Direito deve não apenas formalmente assegurar aos
indivíduos direito de escolha entre diferentes projetos de vida lícitos, mas
também propiciar condições efetivas para que estes possam se concretizar,
destacando que, no caso da orientação sexual, a escolha não reside no
estabelecimento de relações com pessoas do mesmo sexo ou de sexo
diverso, mas entre se abster de sua orientação sexual ou vivê-la
clandestinamente, sendo que as pessoas devem ter liberdades individuais
que não podem ser cerceadas pela maioria (Dworkin). Justifica-se
apontando que a liberdade é pressuposto para o desenvolvimento da
personalidade, como a liberdade de escolher a pessoa com quem manter
relações de afeto e companheirismo de maneira plena, não clandestina,
donde não reconhecer a um indivíduo o direito de viver sua orientação
sexual em todos os seus desdobramentos significa privá-lo de uma das
dimensões que dão sentido à sua existência, na medida em que a exclusão
das uniões homoafetivas do regime jurídico da união estável implica não
apenas uma lacuna (omissão), mas também uma forma comissiva de
embaraçar o exercício da liberdade e o desenvolvimento da personalidade
de um número expressivo de pessoas, depreciando a qualidade de seus
projetos de vida e dos seus afetos, fazendo que sejam menos livres para
fazer suas escolhas, donde afronta a autonomia privada das mesmas.
Aponta que, embora a autonomia privada dos cidadãos possa ser
restringida, tal não pode ocorrer caprichosamente, mas somente com base
no princípio da razoabilidade ou da proporcionalidade (sic37), de forma que
ditas restrições visem à promoção de outros bens jurídicos de mesma
hierarquia, o que não ocorre na espécie, pois nenhum outro bem
constitucional resta promovido com o não reconhecimento da união estável
homoafetiva, mas apenas a concepções (subjetivas) particulares, ainda que
majoritárias, que não são vinculantes em uma sociedade democrática e
pluralista, donde esta restrição gera (ou decorre de) um autoritarismo moral,
próprio de regimes totalitários, que não se limitam a organizar e promover a
convivência pacífica, mas têm a pretensão de moldar indivíduos adequados,
razão pela qual tal postura afronta os direitos à liberdade e à autonomia
privada de homossexuais;
(iii) ao princípio da dignidade da pessoa humana, pois ninguém pode
ser tratado como meio, devendo cada indivíduo ser tratado como um fim em
si mesmo, ao mesmo tempo em que todos os projetos pessoais e coletivos
de vida, quando razoáveis, são dignos de igual respeito e consideração e,
portanto, merecedores de igual reconhecimento, ao passo que o não
reconhecimento das uniões homoafetivas viola esses dois núcleos da
dignidade humana. Isso porque (iii.1) tal exclusão funcionaliza as relações
afetivas a um projeto determinado de sociedade que, embora majoritário,
não é juridicamente obrigatório, tratando o indivíduo como um meio para a
realização desse projeto, só sendo reconhecido aquele que se molda ao
papel designado pela tradição, no caso o papel de membro de família
heteroafetiva destinada à procriação; e (iii.2) a discriminação das uniões
homoafetivas equivale a não atribuir igual respeito a uma identidade
individual (homoafetiva) ao afirmar que esse determinado estilo de vida não
mereceria ser tratado com a mesma dignidade e consideração dos demais,
porque o não reconhecimento se converte em desconforto, levando muitos
indivíduos a negarem sua própria identidade à custa de grande sofrimento
pessoal, distinção esta que perpetua a dramática exclusão e estigmatização
que homossexuais têm sofrido ao longo da história, caracterizando
verdadeira política oficial de discriminação;
(iv) ao princípio da segurança jurídica, que envolve a tutela de valores
como a previsibilidade de condutas, a estabilidade das relações jurídicas e a
proteção da confiança, indispensáveis à paz de espírito e, portanto, à paz
social, sendo que a exclusão das uniões homoafetivas do regime jurídico da
união estável implica insegurança jurídica, pois ditas uniões são lícitas e
continuarão a existir ainda que persistam dúvidas sobre seu enquadramento
jurídico, dúvidas estas que geram um quadro de incerteza – inclusive com
decisões judiciais conflitantes, de modo a afetar a segurança jurídica tanto
do casal homoafetivo entre si como em suas relações com terceiros, criando
assim problemas tanto para as pessoas diretamente envolvidas como para a
sociedade. Afirma que o desenvolvimento de um projeto de vida em
comum tende a produzir reflexos existenciais e patrimoniais, donde querem
os parceiros ter previsibilidade em temas envolvendo herança, partilha de
bens, deveres de assistência recíproca, alimentos etc., todos equacionados
no Código Civil por meio da regulamentação da união estável, donde sua
extensão às uniões homoafetivas teria o condão de superar a insegurança
jurídica na matéria. Por outro lado, a indefinição sobre o regime aplicável
às uniões homoafetivas também afeta terceiros que com elas mantenham
relações estatutárias ou comerciais – no primeiro caso, nas relações entre
Estado e servidores públicos, o que envolve uma série de direitos atribuídos
aos servidores e seus familiares, como direito a licenças por motivo de
doenças do companheiro ou para acompanhá-lo em caso de transferência,
do direito à inclusão do companheiro no plano de saúde funcional, auxílio
funeral etc., direitos estes já reconhecidos às relações heteroafetivas
estáveis, de modo que a discussão se restringe à (i)legitimidade de se
discriminar homossexuais em função de sua orientação sexual. No segundo,
considerando que as relações negociais realizadas por companheiros em
união estável necessitam da anuência do outro, como para alienar bens e
conceder garantias, dúvidas existem quanto a tais questões, assim como
quanto à responsabilidade por dívidas individuais ou comuns aos
companheiros homoafetivos. Aponta que tais constatações demonstram
incertezas jurídicas quanto a formalidades e aspectos de Direito Material
envolvendo os companheiros homoafetivos e terceiros, razão pela qual se
faz necessário dar um verdadeiro enquadramento jurídico às uniões
homoafetivas, sendo perfeitamente possível interpretar o Direito posto de
forma a obter esse resultado dada a ausência de qualquer outro valor
constitucional que aponte em outro sentido.
Em razão do exposto, concluiu pela inclusão das uniões homoafetivas
no regime jurídico da união estável, atribuindo-se interpretação conforme a
Constituição ao Estatuto dos Servidores Públicos do Rio de Janeiro para
reconhecer que os direitos ali previstos também se estendem aos
companheiros homoafetivos, assim como a declaração pelo STF de que, à
luz da ordem constitucional e legal em vigor, as uniões homoafetivas devem
receber o mesmo tratamento jurídico das uniões estáveis convencionais
(leia-se, heteroafetivas), sob pena de serem violados os citados preceitos
fundamentais.
Apontou, por oportuno, que esta conclusão não é afetada pelo teor do
art. 226, § 3.o, da CF/1988, que protege expressamente a união estável entre
o homem e a mulher, pois dito dispositivo foi cunhado para afastar qualquer
discriminação contra as companheiras (caracterizando-se, portanto, como
norma de inclusão), consolidando uma longa evolução que teve início,
sintomaticamente, com decisões judiciais, razão pela qual não faria nenhum
sentido interpretar dito dispositivo a contrario sensu, de modo a expandir
seu sentido e convertê-lo em norma de exclusão, pois tal interpretação seria
incompatível com os preceitos fundamentais referidos, razão pela qual deve
ser rejeitada.
Alternativamente, pleiteia pelo reconhecimento de uma lacuna
normativa a ser colmatada pela analogia, pois, ainda que o STF entendesse
impossível a aplicação direta dos referidos preceitos fundamentais para
reconhecer a união homoafetiva como união estável, afirma que parece
inegável que há uma situação de fato a exigir tratamento jurídico, pois a
orientação homoafetiva, que é indiscutivelmente lícita, gera como
consequência inevitável o surgimento de relacionamentos homoafetivos
igualmente lícitos, que possuem relações existenciais e patrimoniais, com
repercussões no casal e perante terceiros, que demandam por
regulamentação. Assim, afirma que seria no mínimo anacrônico fingir que
tal situação inexiste, mantendo os casais homoafetivos e aqueles que com
eles estabelecem relações (comerciais) em um verdadeiro limbo jurídico,
razão pela qual a utilização do método de integração da analogia é intuitivo,
pois as duas situações apresentam os mesmos elementos essenciais,
elementos estes identificados no Código Civil, a saber: convivência pacífica
e duradoura, movida pelo intuito de constituir entidade familiar,
destacando a doutrina e a jurisprudência contemporâneas que a família deve
servir de ambiente adequado para o desenvolvimento de seus membros,
apresentando como traços característicos a comunhão de vida e a
assistência mútua entre os envolvidos, emocional e prática, parecendo
impossível negar a existência desses elementos nas uniões homoafetivas
sem incorrer em preconceito contra os indivíduos homossexuais, pois isto
implicaria dizer que estes não seriam capazes de estabelecer vínculos
afetivos e de confiança, ou que seriam incapazes de amor e
companheirismo, embora nenhum argumento de ordem pública embase
essas assertivas.
Dessa forma, apontou pelo cabimento da aplicação de analogia ao art.
1.723 do CC/2002 (que trata da união estável), destacando que não se trata
de mera interpretação da lei, mas de interpretação da legislação ordinária
em conformidade com a Constituição.
Ante o exposto, formulou:
(i) pedido cautelar para que o STF declare, liminarmente, a validade
das decisões administrativas que equiparem as uniões homoafetivas às
uniões estáveis e, ainda, suspenda os processos e os efeitos das decisões
judiciais que hajam se pronunciado em sentido contrário, apontando como
fumus boni iuris (fumaça do bom Direito) a exposição supra e como
periculum in mora (perigo na demora) os riscos a que está sujeito o Estado
ao tomar decisões que podem ser impugnadas judicialmente e, também, a
frustração dos direitos fundamentais dos companheiros homoafetivos até o
julgamento definitivo da demanda;
(ii) pedido principal para que o STF declare o regime jurídico da união
estável como aplicável às uniões homoafetivas, seja como decorrência
direta dos preceitos fundamentais de igualdade, liberdade, dignidade e
segurança jurídica, seja pela aplicação analógica do art. 1.723 do CC/2002,
interpretado conforme a Constituição, bem como aplique a mesma
interpretação conforme aos arts. 19, II e V, do Estatuto dos Servidores
Públicos do Rio de Janeiro.
No mesmo sentido, foi proposta a ADPF 178, posteriormente
convertida em ADI 4.277, a qual apresentou argumentos análogos a estes
(que nos parece claramente baseada no supra citado parecer de Daniel
Sarmento e outros), invocando os mesmos princípios da igualdade, da
dignidade da pessoa humana, da liberdade e da segurança jurídica para
pleitear por uma interpretação sistemático-teleológica da Constituição apta
a reconhecer o reconhecimento da união homoafetiva como união estável
constitucionalmente protegida.

2.1.1.2 Comentários sobre a ADPF 132 e sobre a ADI 4.277


Merece aplausos Sérgio Cabral pela impetração da ADPF 132, por
visar acabar com a discriminação sofrida por homossexuais em virtude do
não reconhecimento de sua união estável, por interpretação extensiva ou
analogia.
Preliminarmente, cumpre reconhecer o cabimento formal da ação, visto
que cumpridos os requisitos constitucionais de versar ela sobre preceitos
fundamentais (como o são a isonomia, a liberdade, a dignidade e a
segurança jurídica), assim como pela efetiva existência de decisões judiciais
contraditórias a respeito do tema – como as transcritas na petição inicial e
aqui neste trabalho em contraposição a outras que negam reconhecimento à
união estável homoafetiva (como as do STJ, enfrentadas em capítulo
próprio).
No mérito, as ações eram inequivocamente procedentes. Como se
percebe, a sua argumentação tem muitos traços em comum com as do
presente trabalho, em especial no que tange aos argumentos de afronta aos
princípios da isonomia e da dignidade da pessoa humana pela discriminação
sofrida por homossexuais ao negar reconhecimento a sua união estável
(muito embora este trabalho vá além e defenda o mesmo com relação ao
casamento civil e à adoção conjunta por casais homoafetivos). Por outro
lado, os argumentos de afronta aos princípios da liberdade e da segurança
jurídica, que coincidem com a posição de Luís Roberto Barroso, supra-
analisada38, são altamente pertinentes e procedentes.
No mesmo sentido, merece aplausos a então Procuradora-Geral da
República Deborah Duprat, pela propositura da ADPF 178, convertida em
ADI 4.277, o que foi feito provavelmente pela discussão que se iniciou
sobre se a decisão do STF na ADPF 132 teria efeito vinculante e eficácia
erga omnes apenas no Estado do Rio de Janeiro, já que proposta contra uma
lei estadual carioca, donde proposta esta ação contra o disposto no art.
1.723 do CC/2002 para que não restasse dúvida de que uma decisão
favorável do STF seria de cumprimento obrigatório em todo o país.
Nesse processo, tivemos sete amici curiae que se manifestaram
favoravelmente à procedência das ações e dois que a elas foram contrários,
tendo este autor tido o privilégio histórico de poder participar deste
julgamento, representando a Associação de Incentivo à Educação e Saúde
de São Paulo (AIESSP), por intermédio de manifestação de amicus curiae e
sustentação oral no dia 04/05/11, a qual consta do Anexo 2 desta obra.
Proferido o voto do relator, favorável à procedência das ações, o
julgamento foi suspenso para o dia seguinte (05.05.2011), no qual, por
fantástica unanimidade, as ações foram julgadas procedentes pelo Supremo
Tribunal Federal, tendo nossa Suprema Corte reconhecido que o art. 1.723
do CC/2002 não pode ser interpretado de forma a impedir o reconhecimento
da união homoafetiva como entidade familiar, ante a inconstitucionalidade
de tal interpretação discriminatória, razão pela qual determinou a aplicação
de interpretação conforme a Constituição do referido dispositivo legal para
dele afastar qualquer interpretação que negue reconhecimento da união
homoafetiva como entidade familiar. A explicação de cada um dos votos
dos ministros do STF será feita no capítulo 13, que analisa todas as decisões
proferidas pelo STF acerca do tema da união homoafetiva proferidas até o
lançamento desta 2ª edição.
2.1.2 Inexistência de limites semânticos no texto do art. 226, § 3.º, da
CF/1988 impeditivos do reconhecimento da união estável homoafetiva,
por interpretação extensiva ou analogia. Possibilidade jurídica do
pedido de união estável homoafetiva
Os críticos do reconhecimento da união estável homoafetiva, desde
muito antes da decisão do STF na ADPF 132 e na ADI 4.277, sempre
afirmaram que isso não seria possível pela redação do art. 226, § 3.º, da
CF/1988. Sempre alegaram que a Constituição teria reconhecido a união
estável “apenas” (sic) entre o homem e a mulher, de sorte que o
reconhecimento da união estável entre duas pessoas do mesmo sexo
demandaria emenda constitucional que a isto autorizasse. Contudo, o
argumento não se sustenta. Analisemos o tema do início.
Como se sabe, texto e norma não se confundem. A norma é o fruto da
interpretação do texto normativo. Com a superação da visão do juiz como
mera boca que pronuncia as palavras da lei (Montesquieu), a ciência
jurídica reconheceu a participação ativa do intérprete na criação da norma
jurídica por intermédio de suas valorações e pré-compreensões, respeitados,
todavia, os limites semânticos do texto. Ou seja, a despeito de a norma ser
fruto da interpretação do texto normativo, a norma oriunda de tal
interpretação não pode desrespeitar os limites semânticos do texto, a saber,
o significado das palavras e o significado semântico das expressões
linguísticas constantes dos textos normativos.
Com base nessa correta compreensão, os opositores da união estável
homoafetiva defendem a incorreta tese segundo a qual haveria limites
semânticos no texto do art. 226, § 3.º, da CF/1988 que impossibilitariam do
reconhecimento da união estável homoafetiva por conta de dito dispositivo
constitucional afirmar que “é reconhecida a união estável entre o homem e
a mulher como entidade familiar”. Contudo, equivocada tal compreensão,
pois, como tive a oportunidade de dizer perante a tribuna do STF em
sustentação oral do julgamento da ADPF 132 e da ADI 4.277, dizer que “é
reconhecida a união estável entre o homem e a mulher” é diferente de dizer
que ela é reconhecida “‘apenas’ entre o homem e a mulher”, pois o
“apenas” não está escrito e, assim, se não está escrito, não há limites
semânticos no texto que impeçam a exegese constitucional inclusiva
pleiteada pelas duas ações, de sorte a se permitir a perquirição sobre o
cabimento de interpretação extensiva ou analogia, caso se considere as
situações idênticas ou, a despeito de alguma diferença vislumbrada,
idênticas naquilo que é essencial, respectivamente, ante a caracterização da
possibilidade jurídica do pedido de união estável homoafetiva oriunda da
ausência de texto normativo expresso que a proibisse ou limitasse a união
estável apenas/somente/unicamente à união heteroafetiva, texto normativo
este que não existe – pois a possibilidade jurídica do pedido existe sempre
que não haja texto normativo (expresso) que proíba o pedido formulado,
consoante reconhecido pelo STJ no REsp 820.475/RJ39, leading case do
tema em termos de união estável homoafetiva, por se tratar de julgado que
reconheceu a união estável homoafetiva, por analogia – valendo ainda citar
o maravilhoso voto da Ministra Nancy Andrighi, seguido pelos demais
ministros julgadores, no REsp 1.026.981/RJ40, segundo o qual “O manejo
da analogia frente à lacuna da lei é perfeitamente aceitável para alavancar,
como entidade familiar, na mais pura acepção da igualdade jurídica, as
uniões de afeto entre pessoas do mesmo sexo”, visto que “Os princípios da
igualdade e da dignidade humana, que têm como função principal a
promoção da autodeterminação e impõem tratamento igualitário entre as
diferentes estruturas de convívio sob o âmbito do direito de família,
justificam o reconhecimento das parcerias afetivas entre homossexuais
como mais uma das várias modalidades de entidade familiar” (STJ, REsp
930.460/PR, DJe de 03.10.2011; no mesmo sentido: REsp 1.085.646/RS,
DJe de 26.09.2011 e REsp 1.199.667/MT, DJe de 04.08.2011).
O advogado da CNBB, Dr. Hugo Sarubbi Cysneiros, que realizou
sustentação oral logo após minha fala, tentou me contestar, dizendo que a
falta deste “apenas” não poderia significar necessariamente a procedência
das ações – contudo, o nobre patrono não compreendeu ou não quis
compreender o que eu disse, pois afirmei que a ausência do “apenas” afasta
a existência de limites semânticos do texto, de sorte a permitir que se
investigue se a união estável homoafetiva é idêntica ou análoga à união
estável heteroafetiva e, portanto, permitir a equiparação pretendida caso se
considere a união homoafetiva idêntica ou análoga à união heteroafetiva
para fins de união estável. Logo, a ausência do “apenas” não traz a
procedência automática da tese da união estável homoafetiva, mas permite
que se faça a averiguação de sua identidade ou caráter análogo com a união
estável heteroafetiva, tornando juridicamente possível o pedido formulado.
Analisemos isso sob outro (mas complementar) enfoque. Segundo
Gadamer41 e sua hermenêutica filosófica, na interpretação de um texto
precisamos deixar que o texto nos diga algo, pois, como diz Streck, o
intérprete não pode dizer qualquer coisa sobre qualquer coisa42, o que se
coaduna com a lição supra de que a norma precisa respeitar os limites
semânticos do texto normativo interpretado. Com isso em mente,
analisemos o art. 226, § 3.º, da CF/1988: o que ele nos diz? Parece claro
que ele diz que está normatizada a união estável heteroafetiva, ponto – ele
nos diz apenas isso. O texto normativo do art. 226, § 3.º, da CF/1988 não
“diz” que estaria “proibida” a união estável homoafetiva ou que a união
estável seria juridicamente possível ou viável “apenas/somente/unicamente”
entre um homem e uma mulher. Essa “proibição/limitação” não está no
texto; logo, se não está escrito (no texto) que a união estável seria
reconhecida “apenas/somente/unicamente” entre homem e mulher, não se
pode dizer que haveria limites semânticos no texto impeditivos do
reconhecimento da união estável homoafetiva, por interpretação extensiva
ou analogia. Como se vê, tomar o texto a sério não traz uma suposta (e
inexistente) impossibilidade jurídica da união estável homoafetiva – quem o
faz são os intérpretes a ela contrários ou então pautados em um legalismo
cego avalorativo que só entende como juridicamente possível aquilo que
está expressamente escrito no texto normativo, postura esta já, felizmente,
superada pela ciência jurídica contemporânea.
Logo, “É juridicamente possível pedido de reconhecimento de união
estável de casal homossexual, uma vez que não há, no ordenamento
jurídico brasileiro, vedação explícita ao ajuizamento de demanda com tal
propósito”, ao passo que “Os arts. 4.º e 5.º da Lei de Introdução ao Código
Civil autorizam o julgador a reconhecer a união estável entre pessoas do
mesmo sexo”, visto que “A extensão, aos relacionamentos homoafetivos,
dos efeitos do regime de união estável aplicável aos casais heterossexuais
traduz a corporificação dos princípios constitucionais da igualdade e da
dignidade da pessoa humana” (STJ, REsp 827.962/RS, DJe de 08.08.2011).
Afinal, “a impossibilidade jurídica do pedido configura-se quando há
vedação no direito positivo a que se instaure a relação processual em torno
da pretensão do autor”, donde, como a lei “limitou-se a prever a
possibilidade de união estável entre homem e mulher, desde que observados
os requisitos nela estabelecidos, mas não proibiu que tal união se desse
entre pessoas do mesmo sexo”, razão pela qual “se a pretensão de ver
declarada a união estável homoafetiva não é vedada pelo ordenamento
jurídico, deve ser afastada a impossibilidade jurídica do pedido deduzido
na petição inicial, devendo o juiz, após regular processamento da causa,
apreciar o mérito à luz do ordenamento jurídico vigente” (STJ, AgRg no
REsp 805.582/MG, DJe de 08.08.2011, voto da Ministra Maria Isabel
Gallotti).

2.1.2.1 Votos da ADPF 132 e da ADI 4.277 sobre a questão de ausência de


limites semânticos no texto
Para o Ministro Ayres Britto: “que não se faça uso da letra da
Constituição para matar o seu espírito, no fluxo de uma postura
interpretativa que faz ressuscitar o mencionado caput do art. 175 da
Constituição de 1967/1969. Ou como diria Sérgio da Silva Mendes, que não
se separe por um parágrafo (esse de n.º 3) o que a vida uniu pelo afeto.
Numa nova metáfora, não se pode fazer rolar a cabeça do artigo 226 no
patíbulo do seu § 3.º, pois esse tipo acanhado ou reducionista de
interpretação jurídica seria o modo mais eficaz de tornar a Constituição
ineficaz...”43.
Para o Ministro Luiz Fux44:

Os fatos concretos, como antes afirmado, apontam para o


enquadramento jurídico – e, com isso, o oferecimento de segurança
jurídica às uniões homoafetivas – na moldura jurídica estabelecida
para as uniões heterossexuais, à míngua de qualquer distinção. E,
especificamente quanto aos dispositivos de legislação estadual
assinalados, é até mesmo uma questão de coerência, pois o próprio
Estado do Rio de Janeiro, posteriormente, editou as leis acima
mencionadas que reconhecem, para os fins do regime próprio de
previdência social de seus servidores, a união homoafetiva.
Saliente-se, ainda, que não se há de objetar que o art. 226, § 3.º,
constituiria obstáculo à equiparação das uniões homoafetivas às uniões
estáveis heterossexuais, por força da previsão literal (“entre homem e
mulher”). Assiste razão aos proponentes das ações em exame em seus
comentários à redação do referido dispositivo constitucional. A norma
foi inserida no texto constitucional para tirar da sombra as uniões
estáveis e incluí-las no conceito de família. Seria perverso conferir a
norma de cunho indiscutivelmente emancipatório interpretação
restritiva, a ponto de concluir que nela existe impeditivo à legitimação
jurídica das uniões homoafetivas, lógica que se há de estender ao art.
1.723 do Código Civil.
Urge, pois, renovar esse mesmo espírito emancipatório e, nesta
quadra histórica, estender a garantia institucional da família também às
uniões homoafetivas.
É importante que se diga que o próprio Supremo Tribunal Federal
já se manifestou favoravelmente à produção válida de efeitos de
relações homoafetivas, em decisões monocráticas multicitadas nestes
autos (Pet 1.984, Rel. Min. Marco Aurélio, j. 10.02.2003 e ADI 3.300,
Rel. Min. Celso de Mello).

Para a Ministra Cármen Lúcia45:

Sistema que é, a Constituição haverá de ser interpretada como um


conjunto harmônico de normas, no qual se põe uma finalidade voltada
à concretização de valores nela adotados como princípios.
(...)
No exercício desta tarefa interpretativa, não me parece razoável
supor que qualquer norma constitucional possa ser interpretada fora do
contexto das palavras e do espírito que se põe no sistema.
É exato que o § 3.º do art. 226 da Constituição é taxativo ao
identificar que “Para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a
união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar”.
Tanto não pode significar, entretanto, que a união homoafetiva, a
dizer, de pessoas do mesmo sexo seja, constitucionalmente, intolerável
e intolerada, dando azo a que seja, socialmente, alvo de intolerância,
abrigada pelo Estado Democrático de Direito. Esse se concebe sob o
pálio de Constituição que firma os seus pilares normativos no princípio
da dignidade da pessoa humana, que impõe a tolerância e a
convivência harmônica de todos, com integral respeito às livres
escolhas das pessoas.
(...)
Mas é exato que a referência expressa a homem e mulher garante
a eles, às expressas, o reconhecimento da união estável como entidade
familiar, com os consectários jurídicos próprios. Não significa, a meu
ver, contudo, que se não for um homem e uma mulher, a união não
possa vir a ser também fonte de iguais direitos. Bem ao contrário, o
que se extrai dos princípios constitucionais é que todos, homens e
mulheres, qualquer que seja a escolha do seu modo de vida, têm os
seus direitos fundamentais à liberdade, a ser tratado com igualdade em
sua humanidade, ao respeito, à intimidade devidamente garantidos.
(...)
Se a República põe, entre os seus objetivos, que o bem de todos
haverá de ser promovido sem preconceito e de qualquer forma de
discriminação, como se permitir, paralelamente, seja tida como válida
a inteligência de regra legal, que se pretenda aplicada segundo tais
princípios, a conduzir ao preconceito e à discriminação?
(...)
Aqueles que fazem opção pela união homoafetiva não pode[m]
ser desigualado[s] em sua cidadania. Ninguém pode ser tido como
cidadão de segunda classe porque, como ser humano, não aquiesceu
em adotar modelo de vida não coerente com o que a maioria tenha
como certo ou válido ou legítimo.
E a igual cidadania é direito fundamental posta na própria
estrutura do Estado Democrático de Direito (art. 1.º, inc. III, da
Constituição). Seria de se indagar se qualquer forma de preconceito
poderia acanhar a cidadania de quem, por razões de afeto e opções de
vida segundo o sentir, resolvesse adotar modo de convivência estável
com outrem que não o figurino tido como “o comum”.
(...)
A interpretação correta da norma constitucional parece-me,
portanto, na sequência dos vetores constitucionais, ser a que conduz ao
reconhecimento do direito à liberdade de que cada ser humano é titular
para escolher o seu modo de vida, aí incluído a vida afetiva com o
outro, constituindo uma instituição que tenha dignidade jurídica,
garantindo-se, assim, a integridade humana de cada qual.
(...)
Daí a escolha da vida em comum de duas pessoas do mesmo sexo
não poder ser tolhida, por força de interpretação atribuída a uma norma
legal, porque tanto contrariaria os princípios constitucionais que
fundamentam o pluralismo político e social.
As escolhas pessoais livres e legítimas, segundo o sistema
jurídico vigente, são plurais na sociedade e, assim, terão de ser
entendidas como válidas.
Para o Ministro Lewandowski46:
Convém esclarecer que não se está, aqui, a reconhecer uma
“união estável homoafetiva”, por interpretação extensiva do § 3.º do
art. 226, mas uma “união homoafetiva estável”, mediante um processo
de integração analógica. Quer dizer, revela-se, por esse método, outra
espécie de entidade familiar, que se coloca ao lado daquelas formadas
pelo casamento, pela união estável entre um homem e uma mulher e
por qualquer dos pais e seus descendentes, explicitadas no texto
constitucional.
Cuida-se, enfim, a meu juízo, de uma entidade familiar que,
embora não esteja expressamente prevista no art. 226, precisa ter a sua
existência reconhecida pelo Direito, tendo em conta a ocorrência de
uma lacuna legal que impede que o Estado, exercendo o indeclinável
papel de protetor dos grupos minoritários, coloque sob seu amparo as
relações afetivas públicas e duradouras que se formam entre pessoas
do mesmo sexo.
Em suma, reconhecida a união homoafetiva como entidade
familiar, aplicam-se a ela as regras do instituto que lhe é mais próximo,
qual seja, a união estável heterossexual, mas apenas nos aspectos em
que são assemelhados, descartando-se aqueles que são próprios da
relação entre pessoas de sexo distinto, segundo a vetusta máxima ubi
eadem ratio ibi idem ius, que fundamenta o emprego da analogia no
âmbito jurídico.

Para o Ministro Joaquim Barbosa47:


Comungo do entendimento do relator, em seu brilhante voto, de
que a Constituição Federal de 1988 prima pela proteção dos direitos
fundamentais e deu acolhida generosa ao princípio da vedação de todo
tipo de discriminação. São inúmeros os dispositivos constitucionais
que afirmam e reafirmam o princípio da igualdade e da vedação da
discriminação, como todos sabemos. Como já tive oportunidade de
mencionar, a Constituição Federal de 1988 fez uma clara opção pela
igualdade material ou substantiva, assumindo o compromisso de
extinguir ou, pelo menos, de mitigar o peso das desigualdades sociais,
das desigualdades fundadas no preconceito, estabelecendo de forma
cristalina o objetivo de promover a justiça social e a igualdade de
tratamento entre os cidadãos48. Este é, a meu ver, o sentido claramente
concebido no art. 3.º da Constituição, quando inclui dentre os objetivos
fundamentais da República promover o bem de todos, sem
preconceitos de raça, sexo, cor, idade ou quaisquer outras formas de
discriminação.
Assim, nessa ordem de ideias, eu concordo com o que foi
sustentado da tribuna pelo ilustre professor Luís Roberto Barroso, isto
é, creio que o fundamento constitucional para o reconhecimento da
união homoafetiva não está no art. 226, § 3.º, da Constituição, que
claramente se destina a regulamentar as uniões entre homem e mulher
não submetidas aos rigores do casamento civil. Dispositivo que,
segundo Gustavo Tepedino, representa o coroamento de um processo
histórico surgido na jurisprudência cível e que objetivava a inclusão
social e a superação do preconceito existente contra os casais
heterossexuais que convivam sem a formalização de sua união pelo
casamento.
Entendo, pois, que o reconhecimento dos direitos oriundos de
uniões homoafetivas encontra fundamento em todos os dispositivos
constitucionais que estabelecem a proteção dos direitos fundamentais,
no princípio da dignidade da pessoa humana, no princípio da igualdade
e da não discriminação. Normas, estas, autoaplicáveis, que incidem
diretamente sobre essas relações de natureza privada, irradiando sobre
elas toda a força garantidora que emana do nosso sistema de proteção
dos direitos fundamentais.
Para o Ministro Gilmar Mendes: “O fato de a Constituição proteger,
como já destacado pelo eminente Relator, a união estável entre homem e
mulher não significa uma negativa de proteção – nem poderia ser – a união
civil, estável, entre pessoas do mesmo sexo”. Vejamos o trecho integral da
manifestação do Ministro acerca do tema49:

E o texto, em si mesmo, nessa linha, não é excludente – pelo


menos essa foi a minha primeira pré-compreensão – da possibilidade
de se reconhecer a união estável entre pessoas do mesmo sexo, não
com base no texto legal (art. 1.723 do Código Civil) nem na norma
constitucional (art. 226, § 3.º), mas com suporte em outros princípios
constitucionais.
(...)
A rigor, a pretensão que se formula aqui tem base nos direitos
fundamentais, na proteção de direitos de minorias, a partir da própria
ideia do direito de liberdade. Trata-se da afirmação do reconhecimento
constitucional da união de pessoas do mesmo sexo, como
concretização do direito de liberdade – no sentido de exercício de uma
liberdade fundamental, de livre desenvolvimento da personalidade do
indivíduo.
(...)
Portanto, parto da premissa de que aqui há outros fundamentos e
direitos envolvidos, direitos de perfil fundamental associados ao
desenvolvimento da personalidade, que justificam e justificariam a
criação de um modelo de proteção jurídica para essas relações
existentes, com base no princípio da igualdade no princípio da
liberdade, de autodesenvolvimento e no princípio da não discriminação
por razão de opção sexual.
(...)
(...) O fato de a Constituição proteger, como já destacado pelo
eminente Relator, a união estável entre homem e mulher não significa
uma negativa de proteção – nem poderia ser – a união civil, estável,
entre pessoas do mesmo sexo.
(...)
A meu ver, se não fosse possível resolver a controvérsia aqui
posta à luz da aplicação direta da disposição citada, do artigo 226, §
3.º, poderíamos, sem dúvida, encaminhar a solução de reconhecimento
da constitucionalidade da união homoafetiva a partir da aplicação do
direito fundamental à liberdade de livre desenvolvimento da
personalidade do indivíduo e da garantia de não discriminação dessa
liberdade de opção, em concordância com outros princípios e garantias
constitucionais que destaquei na fundamentação deste voto, a saber: os
fundamentos da cidadania e da dignidade da pessoa humana (art. 1.º, II
e III); os objetivos fundamentais de se construir uma sociedade livre,
justa e solidária e de se promover o bem de todos, sem preconceitos de
origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de
discriminação (art. 3.º, I e IV); a prevalência dos direitos humanos (art.
4.º, II); a igualdade de todos perante a lei, sem distinção de qualquer
natureza, garantida a inviolabilidade do direito à liberdade e à
igualdade (art. 5.º, caput); a punição a qualquer discriminação
atentatória dos direitos e liberdades fundamentais (art. 5.º, XLI); bem
como a aplicabilidade imediata dos direitos fundamentais (art. 5.º, §
1.º) e a não exclusão de outros direitos e garantias decorrentes do
regime constitucional e dos princípios por ela adotados ou
incorporados por tratados internacionais (art. 5.º, § 2.º).
Além disso, é a falta (lacuna) de um modelo normativo de
proteção institucional para a união homoafetiva que torna adequada a
utilização do pensamento do possível para se aplicar norma existente –
em termos de um modelo de proteção institucional semelhante – no
que for cabível. Então, a meu ver, é preciso que nós, pelo menos,
explicitemos essa questão delicada, porque ela se faz presente no nosso
sistema.
(...)
É que, como já mencionei aqui, entendo existirem fundamentos
jurídicos suficientes e expressos que autorizam o reconhecimento da
união entre pessoas do mesmo sexo, não com base no texto legal (art.
1723 do Código Civil), nem com base na norma constitucional (art.
226, § 3.º), mas, sim, como decorrência de direitos de minorias, de
direitos fundamentais básicos em nossa Constituição, do direito
fundamental à liberdade de livre desenvolvimento da personalidade do
indivíduo e da garantia de não discriminação dessa liberdade de opção
(art. 5.º, XLI, CF) – dentre outros explicitados em minha
fundamentação –, os quais exigem um correspondente dever de
proteção, por meio de um modelo de proteção institucional que até
hoje não foi regulamentado pelo Congresso.
Nesse sentido, diferentemente do que expôs o Ministro Relator
Ayres Britto – ao assentar que não haveria lacuna e que se trataria
apenas de um tipo de interpretação que supera a literalidade do
disposto no art. 226, § 3.º, da Constituição e conclui pela paridade de
situações jurídicas –, evidenciei o problema da constatação de uma
lacuna valorativa ou axiológica quanto a um sistema de proteção da
união homoafetiva, que, de certa forma, demanda uma solução
provisória desta Corte, a partir da aplicação, por exemplo, do
dispositivo que trata da união estável entre homem e mulher, naquilo
que for cabível, ou seja, em conformidade com a ideia da aplicação do
pensamento do possível.
Destaco que a decisão do Supremo não significa óbice à atuação
do Poder Legislativo. Pelo contrário, a nossa decisão deve ser
entendida como um imperativo de regulação da união homoafetiva,
como decorrência da necessidade de concretização de um dever de
proteção de direitos fundamentais relacionados a essa relação jurídica.
Trata-se de um estímulo institucional para que, de fato, as mais
diversas situações jurídicas que envolvem a união entre pessoas do
mesmo sexo venham a ser disciplinadas.

Para o Ministro Marco Aurélio50:

Consubstancia objetivo fundamental da República Federativa do


Brasil promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça,
sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação (inciso IV
do artigo 3.º da Carta Federal). Não é dado interpretar o arcabouço
normativo de maneira a chegar-se a enfoque que contrarie esse
princípio basilar, agasalhando-se preconceito constitucionalmente
vedado. Mostra-se inviável, porque despreza a sistemática integrativa
presentes princípios maiores, a interpretação do artigo 226, § 3.º,
também da Carta Federal, no que revela o reconhecimento da união
estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, até porque o
dispositivo não proíbe esse reconhecimento a pessoas de gênero igual.
(...)
Quanto à equiparação das uniões homoafetivas ao regime das
uniões estáveis, previsto no artigo 1.723 do Código Civil de 2002, o
óbice gramatical pode ser contornado com o recurso a instrumento
presente nas ferramentas tradicionais de hermenêutica. Não é recente
a evolução doutrinária relativa à teoria das normas jurídicas, nas quais
se ampliou a compreensão da função e do papel dos princípios no
ordenamento jurídico. Ana Paula de Barcellos (A eficácia dos
princípios constitucionais, 2010) relembra que os princípios são
dotados de múltiplas possibilidades de eficácia jurídica, destacando-se
a utilização como vetor hermenêutico-interpretativo. Casos há em que
os princípios possuem eficácia positiva, o que ocorre precisamente
quando o núcleo essencial de sentido deles é violado. Por isso Celso
Antônio Bandeira de Mello, em Elementos de direito administrativo,
1980, p. 14, ressalta: “Violar um princípio é muito mais grave que
transgredir uma norma. A desatenção ao princípio implica ofensa não
apenas a um específico mandamento obrigatório, mas a todo o sistema
de comandos. É a mais grave forma de ilegalidade ou
inconstitucionalidade, conforme o escalão do princípio violado, porque
representa insurgência contra todo o sistema, subversão de seus valores
fundamentais, contumélia irremissível a seu arcabouço lógico e
corrosão de sua estrutura mestra”.
Extraio do núcleo do princípio da dignidade da pessoa humana a
obrigação de reconhecimento das uniões homoafetivas. Inexiste
vedação constitucional à aplicação do regime da união estável a essas
uniões, não se podendo vislumbrar silêncio eloquente em virtude da
redação do § 3.º do artigo 226. Há, isso sim, a obrigação
constitucional de não discriminação e de respeito à dignidade humana,
às diferenças, à liberdade de orientação sexual, o que impõe o
tratamento equânime entre homossexuais e heterossexuais. Nesse
contexto, a literalidade do artigo 1.723 do Código Civil está muito
aquém do que consagrado pela Carta de 1988. Não retrata fielmente o
propósito constitucional de reconhecer direitos a grupos minoritários.
Por isso, Senhor Presidente, julgo procedente o pedido formulado
para conferir interpretação conforme à Constituição ao artigo 1.723 do
Código Civil, veiculado pela Lei 10.406/2002, a fim de declarar a
aplicabilidade do regime da união estável às uniões entre pessoas de
sexo igual.

Para o Ministro Celso de Mello51:

Também não vislumbro, no texto normativo da Constituição, no


que concerne ao reconhecimento da proteção do Estado às uniões entre
pessoas do mesmo sexo, a existência de lacuna voluntária ou
consciente (NORBERTO BOBBIO, Teoria do Ordenamento Jurídico,
p. 143/145, item n. 7, 1989, UnB/Polis), de caráter axiológico, cuja
constatação evidenciaria a existência de “silêncio eloquente”, capaz de
comprometer a interpretação exposta neste voto, no sentido de que a
união estável homoafetiva qualifica-se, constitucionalmente, “como
entidade familiar” (CF, art. 226, § 3.º).
Extremamente precisa, quanto a esse aspecto, a autorizada
observação de DANIEL SARMENTO (“Casamento e União Estável
entre Pessoas do mesmo Sexo: Perspectivas Constitucionais”,
Igualdade, Diferença e Direitos Humanos, p. 619/659, 649/652, 2008,
Lumen Juris), cuja lição, apoiando-se em consistente interpretação
sistemática e teleológica do art. 226, § 3.º, da Constituição,
corretamente enuncia o exato sentido da norma constitucional em
referência: “Um obstáculo bastante invocado contra a possibilidade de
reconhecimento da união estável entre pessoas do mesmo sexo é a
redação do art. 226, § 3.º, da Constituição, segundo o qual “para o
efeito de proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o
homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar a sua
conversão em casamento”. Os adversários da medida alegam que o
preceito em questão teria barrado a possibilidade do reconhecimento
da união homoafetiva no Brasil, pelo menos enquanto não fosse
aprovada emenda alterando o texto constitucional. Contudo, o
argumento, que se apega exclusivamente na literalidade do texto, não
procede. Com efeito, sabe-se que a Constituição, em que pese o seu
caráter compromissório, não é apenas um amontoado de normas
isoladas. Pelo contrário, trata-se de um sistema aberto de princípios e
regras, em que cada um dos elementos deve ser compreendido à luz
dos demais. A noção de sistema traduz-se num importantíssimo
princípio de hermenêutica constitucional, que é o da unidade da
Constituição. (...) No sistema constitucional, existem princípios
fundamentais que desempenham um valor mais destacado no sistema,
compondo a sua estrutura básica. (...). No caso brasileiro, nem é
preciso muito esforço exegético para identificá-los. O constituinte já
tratou de fazê-lo no Título I da Carta, que se intitula exatamente “Dos
Princípios Fundamentais”. E é lá que vão ser recolhidas as cláusulas
essenciais para a nossa empreitada hermenêutica: princípios da
dignidade da pessoa humana, do Estado Democrático de Direito, da
construção de uma sociedade livre, justa e solidária, livre de
preconceitos e discriminações, dentre outros. Estes vetores apontam
firmemente no sentido de que a exegese das normas setoriais da
Constituição – como o nosso § 3.º do art. 226 –, deve buscar a
inclusão e não a exclusão dos estigmatizados; a emancipação dos
grupos vulneráveis e não a perenização do preconceito e da
desigualdade. (...) Da leitura do enunciado normativo reproduzido,
verifica-se que ele assegurou expressamente o reconhecimento da
união estável entre homem e mulher, mas nada disse sobre a união
civil dos homossexuais. Esta ausência de referência não significa,
porém, silêncio eloquente da Constituição. O fato de que o texto omitiu
qualquer alusão à união entre pessoas do mesmo sexo não implica,
necessariamente, que a Constituição não assegure o seu
reconhecimento. Não bastasse, o elemento teleológico da interpretação
constitucional também não é compatível com a leitura do art. 226, §
3.º, da Constituição, segundo o qual do referido preceito decorreria, “a
contrario sensu”, o banimento constitucional da união entre pessoas do
mesmo sexo. Com efeito, o referido preceito foi inserido no texto
constitucional no afã de proteger os companheiros das uniões não
matrimonializadas, coroando um processo histórico que teve início na
jurisprudência cível, e que se voltava à inclusão social e à superação
do preconceito. Por isso, é um contrassenso interpretar este
dispositivo constitucional, que se destina a “inclusão”, como uma
cláusula de exclusão social, que tenha como efeito discriminar os
homossexuais.
O eminente Professor (e Advogado) Luís Roberto Barroso, por
sua vez, expondo esse mesmo entendimento e ao também afastar a
objeção fundada na estrita literalidade do texto normativo inscrito no §
3.º do art. 226 da Constituição (que se refere à união estável “entre o
homem e a mulher”), expendeu, a meu juízo, considerações que
corretamente enfatizam a alusão à diversidade de gênero, “não traduz
uma vedação de extensão do mesmo regime às relações
homoafetivas”, pois – segundo assinala esse ilustre jurista –, “Extrair
desse preceito tal consequência seria desvirtuar a sua natureza: a de
uma norma de inclusão. De fato, ela foi introduzida na Constituição
para superar a discriminação que, historicamente, incidira sobre as
relações entre homem e mulher que não decorressem do casamento”. E
aduz, ainda, em seu douto magistério: “Insista-se, para que não haja
margem a dúvida: não tem pertinência a invocação do argumento de
que o emprego da expressão ‘união estável entre o homem e a mulher’
importa, ‘a contrario sensu’, em proibição à extensão do mesmo
regime a uma outra hipótese. Tal norma foi o ponto culminante de uma
longa evolução que levou à equiparação entre companheira e esposa.
Nela não se pode vislumbrar uma restrição – e uma restrição
preconceituosa – de direito. Seria como condenar alguém com base na
lei de anistia. O Código Civil, por sua vez, contém apenas uma norma
de reprodução, na parte em que se refere a homem e mulher, e não uma
norma de exclusão. Exclusão que, de resto, seria inconstitucional”.
Nesse perspectiva, Senhor Presidente, entendo que a extensão, às
uniões homoafetivas, do mesmo regime jurídico aplicável à união
estável entre pessoas de gênero distinto justifica-se e legitima-se pela
direta incidência, dentre outros, dos princípios constitucionais da
igualdade, da liberdade, da dignidade, da segurança jurídica e do
postulado constitucional implícito que consagra o direito à busca da
felicidade, os quais configuram, numa estrita dimensão que privilegia
o sentido de inclusão decorrente da própria Constituição da República
(art. 1.º, III, e art. 3.º, IV), fundamentos autônomos e suficientes aptos
a conferir suporte legitimador à qualificação das conjugalidades entre
pessoas do mesmo sexo como espécie do gênero entidade familiar.
Para o Ministro Peluso52:

E a segunda consequência é que, na disciplina dessa entidade


familiar recognoscível à vista de uma interpretação sistemática das
normas constitucionais, não se pode deixar de reconhecer – e este é o
meu fundamento, a cujo respeito eu peço vênia para divergir da
posição do ilustre Relator e de outros que o acompanharam nesse
passo – que há uma lacuna normativa, a qual precisa de ser preenchida.
E se deve preenchê-la, segundo as regras tradicionais, pela aplicação
da analogia, diante, basicamente, da similitude – não da igualdade –,
da similitude factual entre ambas as entidades de que cogitamos: a
união estável entre o homem e a mulher e a união entre pessoas do
mesmo sexo. E essa similitude entre ambas é que me autoriza dizer
que a lacuna consequente tem que ser preenchida por algumas normas.
(...) E fui o primeiro a aplicar, no Tribunal de Justiça de São Paulo, em
caso de união estável, as normas de Direito de Família. Por quê?
Porque realmente essas uniões, ou essas associações, ou essas relações
marcadas sobretudo por afetividade, evidentemente não podem ser
submetidas às normas que regulam sociedades de ordem comercial ou
de ordem econômica. De modo que, na solução da questão posta, a
meu ver e de todos os Ministros da Corte, só podem ser aplicadas as
normas correspondentes àquelas que, no Direito de Família, se aplicam
à união estável entre o homem e a mulher. (...)

2.2 Alternativamente: da inconstitucionalidade do art. 226, § 3.º, da


CF/1988 por afronta aos princípios fundamentais da Constituição
Federal
Com o julgamento do STF de 04 e 05.05.2011 (ADPF 132 e ADI
4.277), poder-se-ia dizer que a manutenção deste tópico neste livro seria
desnecessária, contudo, decidi mantê-lo aqui diante do fato de ser possível,
embora improvável, que ocorra mudança de posicionamento de nossa
Suprema Corte acerca do tema (ao menos quando a maioria dos ministros
que participaram de tal julgamento não mais estiver na Corte).
Aqueles que não aceitam a hierarquização de normas constitucionais
entre si com base no princípio da unidade da Constituição se limitam a
afirmar que não seria crível admitirem-se conflitos entre normas
constitucionais originárias, e, portanto, eventuais tensões configurariam
meros “conflitos aparentes”, solucionáveis por técnicas hermenêuticas de
interpretação. Ou seja, negam categoricamente a possibilidade abstrata de
conflitos entre normas constitucionais entre si e determinam que se
resolvam as tensões existentes pela hermenêutica jurídica, ou então pelo
princípio da proporcionalidade.
Contudo, na hipótese de não se admitir a aplicação do regime jurídico
da união estável aos casais homoafetivos pela interpretação extensiva ou
pela analogia, estar-se-á afrontando o núcleo essencial do princípio
constitucional da isonomia, por estar-se perpetrando uma arbitrariedade
jurídica, visto inexistir fundamento lógico-racional que justifique a
discriminação das uniões homoafetivas em relação às uniões heteroafetivas
(já que ambas são baseadas no mesmo amor familiar), além de se ofender
diretamente outros valores constitucionais, como a dignidade da pessoa
humana, a promoção do bem-estar de todos, a liberdade de consciência e a
vedação da criação de preferências de brasileiros entre si. Assim, verifica-se
que a negativa do reconhecimento da possibilidade jurídica da união estável
homoafetiva implica um inevitável conflito efetivo, uma antinomia real
entre normas constitucionais originárias: art. 226, § 3.º com o art. 5.o, caput,
e o art. 3.o, IV (isonomia), com o art. 1.o, III (dignidade humana), além dos
valores constitucionais da liberdade de consciência e da vedação de criação
de preferências de brasileiros entre si.
Dada esta situação, não será de nenhuma validade uma afirmação
genérica, de cunho puramente ideológico, de que seria inadmissível o
conflito entre normas constitucionais entre si, pois, nessa hipótese, o
conflito existe e é inegável. Dizer o contrário implicará fechar os olhos à
realidade. Assim, resta procurar uma solução para dito conflito em vez de
fechar os olhos a ele, pois isto não fará que desapareça.
Primeiramente, é de se concordar com a tese esposada por Virgílio
Afonso da Silva no sentido da efetiva existência de uma hierarquia formal
das cláusulas pétreas em relação às demais normas constitucionais, na
medida em que, considerando que a superior hierarquia das normas
constitucionais em relação às normas infraconstitucionais é aferida em
função da maior dificuldade de alteração daquelas em relação a estas, o
critério de hierarquia formal reside na dificuldade de alteração do texto
normativo. Nesse sentido, se a maior dificuldade na alteração de textos
normativos enseja supremacia formal destes sobre os textos normativos
mais facilmente modificáveis, então é inegável que as cláusulas pétreas,
imodificáveis (ao menos em seu núcleo essencial) encontram-se em
superior hierarquia às cláusulas constitucionais modificáveis pela via da
emenda constitucional, já que aquelas são imodificáveis e estas,
modificáveis53. Assim, reconhecendo-se a hierarquia formalmente superior
das cláusulas pétreas em relação às demais normas constitucionais, a
interpretação restritiva do art. 226, § 3.o, da CF/1988, que impossibilita o
reconhecimento da união estável homoafetiva, por contrariar cláusulas
pétreas, implica inconstitucionalidade da referida restrição, por afronta a
norma constitucional hierarquicamente superior54. Assim, resolvido ficaria
o problema com a declaração da inconstitucionalidade da expressão “entre
o homem e a mulher” constante do § 3.o do art. 226 da CF/1988.
Mas há outros enfoques que podem ser dados à questão.
Há quem defenda que o Constituinte Originário, por seu caráter
absoluto e ilimitado, poderia ele próprio excepcionar seus próprios
princípios constitucionais – ou seja, consagrada a isonomia como regra,
poderia perpetrar uma arbitrariedade como exceção. Todavia, data maxima
venia, tal entendimento é absurdo, sendo inadmissível em um sistema
jurídico. Ora, se em Direito nada se interpreta de forma isolada, mas sempre
sistêmica, isto significa que uma lei não pode ser contraditória consigo
mesma, donde as regras excepcionais serão válidas apenas no caso de não
afrontarem o núcleo essencial dos princípios do documento normativo do
qual fazem parte. A interpretação sistemática supõe necessariamente que
haja coerência das normas de um documento legislativo entre si. Não é
demais lembrar a lição do Ministro Eros Roberto Grau, no sentido de que
“as regras são concreções, são aplicações dos princípios (Boulanger)”,
donde “por isso mesmo não se manifesta jamais antinomia jurídica entre
princípios e regras jurídicas. [pois] Estas operam a concreção daqueles”55.
Assim, é inadmissível a premissa segundo a qual seria válida uma
arbitrariedade jurídica constante do corpo da Constituição pelo simples fato
de ter sido perpetrada deliberadamente pelo Constituinte Originário. Isso
porque o próprio Constituinte Originário deliberou no sentido de que toda a
Constituição deve estar pautada pelos princípios que iniciam seu corpo
normativo – como a dignidade humana, a isonomia, a liberdade, a
democracia etc. – razão pela qual deve-se entender que o Constituinte
Originário encontra-se autonomamente vinculado pelos princípios que ele
livremente erigiu para a Constituição. Afinal, os princípios devem ser
respeitados pelas regras constantes do corpo do documento normativo que
instruem, justamente por ditarem os parâmetros a serem seguidos por este
documento legislativo. Nesse sentido, é clássica a lição de Celso Antônio
Bandeira de Mello56 no sentido de que:

3. Princípio – já averbamos alhures – é, por definição,


mandamento nuclear de um sistema, verdadeiro alicerce dele,
disposição fundamental que se irradia sobre diferentes normas
compondo-lhes o espírito e servindo de critério para sua exata
compreensão e inteligência exatamente por definir a lógica e a
racionalidade do sistema normativo, no que lhe confere a tônica e lhe
dá sentido harmônico. É o conhecimento dos princípios que preside a
intelecção das diferentes partes componentes do todo unitário que há
por nome sistema jurídico positivo.
4. Violar um princípio é muito mais grave do que transgredir uma
norma [rectius: regra] qualquer. A desatenção ao princípio implica
ofensa não apenas a um específico mandamento obrigatório, mas a
todo o sistema de comandos. É a mais grave forma de ilegalidade ou
inconstitucionalidade, conforme o escalão do princípio atingido,
porque representa insurgência contra todo o sistema, subversão de seus
valores fundamentais, contumélia irremissível a seu arcabouço lógico e
corrosão de sua estrutura mestra.
Isto porque, com ofendê-lo, abatem-se as vigas que o sustêm e
alui-se toda a estrutura neles esforçada.

Assim, caso a interpretação que se dê a um caso concreto leve à


constatação de colisão efetiva entre um princípio e uma regra, o princípio
deverá prevalecer, justamente por caracterizar aquilo que deve ser seguido
por todo o documento legislativo, ou seja, por todas as regras constantes da
lei ou Constituição em questão. Tal é o que ocorrerá mesmo em se tratando
de normas constitucionais originárias, visto que foi o próprio Constituinte
Originário que determinou que o ordenamento jurídico-constitucional deve
ser regido pelos princípios que consagra. Afinal, tomar a sério a teoria dos
princípios como mandamentos nucleares do sistema implica,
necessariamente, a colocação destes em patamar hierarquicamente superior
(formalmente falando) ao das regras.
Ademais, vale conferir a opinião de Jorge Miranda57, que, muito
embora aponte seu entendimento no sentido de que, no interior de uma
mesma Constituição originária, obra do mesmo poder constituinte formal,
não vê como poderiam existir normas inconstitucionais, afirma adiante que,
se a Constituição é um conjunto de regras e princípios, tem de ser tomada
como um todo, devendo-se procurar definir as relações entre suas normas
de forma harmônica, então “quando pelos processos lógicos de trabalho
dos juristas não for possível superar um conflito de normas, será,
porventura, legítimo recorrer a interpretação corretiva ou ab-rogante (...)
sem embargo de, quando a Constituição não se reduzir à mera Constituição
instrumental ou legal e fizer apelo a princípios suprapositivos (...) ser
obrigatório tomá-los em consideração e buscar um sentido e um alcance
para os desvios ou as excepções aos princípios que, dentro do razoável,
sejam os menos desconformes possíveis com o sentido e o alcance dos
princípios fundamentais da Constituição”. Embora o autor seja partidário de
uma corrente que propugna um “Direito Natural” por meio de uma
“axiologia transpositiva”58, com o que não se concorda pelo subjetivismo
inerente a tais concepções jusnaturalistas, que não possuem critérios
objetivos a controlá-las, sua lição é pertinente no sentido da admissão da
interpretação corretiva ou ab-rogante das normas constitucionais quando
sejam conflitantes entre si, em antinomia real.
Nesse sentido, Maria Helena Diniz admite a existência de antinomias
reais mesmo entre normas constitucionais originárias. Afirma que a
ocorrência de uma antinomia real, que supõe necessariamente a presença de
absoluta incompatibilidade, indecidibilidade pelos critérios hermenêuticos
tradicionais (hierarquia, cronologia e especialidade) e necessidade de
decisão59 demandará pela correção do Direito, visto que sua solução é
indispensável à manutenção da coerência do sistema jurídico, correção esta
que deverá ocorrer pela prevalência do valor justum, ou seja, pela
prevalência do princípio supremo de Justiça, donde prevalecerá a norma
mais justa, aquela mais razoável ao caso concreto, o que se definirá com
base nos critérios da plena sabedoria, justiça, prudência, eficiência e
coerência com seus princípios. Justifica sua posição com base no art. 5.o da
LINDB, que permite ao juiz a interpretação conforme os fins sociais a que a
norma se destine e às exigências do bem comum60. Segundo a autora, a
correção do Direito deverá se dar por intermédio da interpretação corretivo-
equitativa pautada pela lógica do razoável, conforme os fins e valores que
inspiraram a norma61. Em suma, da lição da autora extrai-se que, na
resolução de antinomias reais, o que deve ser levado em conta são apenas
os fins e valores que inspiraram a norma62. É a posição que aqui se adota
quanto ao tema.
Sobre o restante da posição de Maria Helena Diniz, algumas
considerações são necessárias. Ao longo de sua lição, a autora afirma que
primeiramente se deve verificar se não seria o caso de uma antinomia de
primeiro grau, solucionável pelos critérios hierárquico, cronológico ou da
especialidade. Em seguida, afirma ser necessária a verificação de não ser o
caso de uma antinomia de segundo grau – ou seja, conflito entre os critérios
(hierarquia x cronologia, hierarquia x especialidade ou cronologia x
especialidade). Nenhuma das hipóteses ocorre no presente caso, por tratar-
se de normas constitucionais originárias em conflito – norma-princípio x
regra (que deve necessariamente ser a concretização do princípio).
Assim, verifica-se a existência de uma antinomia real entre a regra da
união estável e a norma-princípio da isonomia quando negada a aplicação
da união estável aos casais homoafetivos. Nesse sentido, um princípio
supremo de justiça inequivocamente demanda a prevalência da isonomia no
caso concreto, com a supressão, no caso concreto, da (suposta) restrição da
mesma apenas aos casais heteroafetivos, de forma a possibilitar tal regime
jurídico às uniões homoafetivas, dada a absoluta arbitrariedade da referida
restrição, que afronta o núcleo essencial da isonomia. Mesmo porque, como
dito, uma norma-princípio prevalece sobre uma regra por esta dever sempre
respeito àquela, para manutenção da lógica do sistema. Ou, seguindo o
raciocínio da autora, pelo fato de que a aplicação da isonomia de forma a
permitir a união estável homoafetiva resguarda os fins sociais aos quais a
norma da união estável se destina, a saber: a proteção da família, formada
pelo amor romântico que vise a uma comunhão plena de vida e interesses,
de forma pública, contínua e duradoura, que é o elemento formador da
família conjugal contemporânea.
Mas nem seria preciso ir tão longe a ponto de buscar um princípio
supremo de justiça para tal resultado. É inegável que a própria Constituição
Federal hierarquizou suas normas entre si ao definir quais seriam seus
“princípios fundamentais” e os “direitos fundamentais” dos cidadãos
(devendo-se atribuir o mesmo grau de fundamentalidade aos direitos
fundamentais implícitos, passíveis de identificação consoante o art. 5.º, §
2.º, da CF/1988). Ora, se estas são normas fundamentais, então as demais
normas constitucionais não são da mesma hierarquia delas, por não terem
sido reconhecidas como fundamentais ao sistema jurídico brasileiro pelo
Constituinte Originário (ou por não se configurarem como direitos
fundamentais implícitos). Note-se, ainda, que a união estável é um direito
fundamental fora do catálogo do art. 5.o da CF/1988; contudo, a
discriminação oriunda da interpretação restritiva que venha a não
reconhecer a possibilidade jurídica da união estável homoafetiva não pode
ser tida como fundamental, pois: (a) discriminar não é um direito; (b)
inexiste manifestação do Constituinte Originário nesse sentido; (c) essa
suposta restrição não se encontra embasada em nenhum outro princípio
fundamental; (d) dita restrição não tem um fundamento lógico-racional que
a sustente.
Nesse sentido, a dignidade da pessoa humana é princípio fundamental
da República Federativa do Brasil, ao passo que a isonomia é direito
fundamental dos brasileiros – assim hierarquizados pelas palavras do
próprio Constituinte Originário. Dessa forma, tais normas fundamentais63
devem prevalecer em um conflito efetivo com regras constitucionais64,
como a regra da união estável na parte em que estaria supostamente
“vedando implicitamente” a união estável homoafetiva65.
É de se notar que o próprio Supremo Tribunal Federal, no julgamento
da citada ADIn 815-3/DF, reconheceu que é válida a hierarquização
efetivada expressamente pelo Constituinte Originário, citando nesse sentido
o art. 178 da Constituição do Império, que dizia que só era constitucional
aquilo que se referisse ao que entendia por normas materialmente
constitucionais, sendo as demais modificáveis pelo procedimento ordinário
de reforma legislativa. Tem-se, assim, que as palavras positivadas do
Constituinte Originário podem hierarquizar dispositivos constitucionais
originários entre si (a mesma hierarquia devendo ser admitida entre normas
implícitas que tenham a si reconhecido o caráter de fundamentalidade).
Ou seja, há hierarquia na Constituição Federal de 1988, pois
evidentemente um texto normativo que é classificado como fundamental foi
inequivocamente valorado de forma superior a um texto normativo que não
foi classificado como fundamental66 e que não tenha a si atribuído o caráter
de fundamentalidade implícita. Assim, considerando que a isonomia é um
direito fundamental e a restrição supostamente constante do § 3.o do art.
226 da CF/1988 não é algo fundamental à Constituição Federal, tem-se
igualmente supremacia formal a justificar a invalidade da expressão “entre
o homem e a mulher”, se interpretada de forma proibitiva da união estável
homoafetiva.
Também admitindo a hierarquia abstrata de normas constitucionais
entre si, Maria Berenice Dias afirma que a eleição de fator sexista para
subtrair de homossexuais os direitos deferidos aos heterossexuais (pois a
exigência de diversidade de sexos para a união estável revela dissimulada
discriminação por orientação sexual), além de desrespeitar a dignidade
humana, a liberdade pessoal e a liberdade sexual, afronta a isonomia em
virtude de tal discriminação não guardar relação de pertinência lógica com a
exclusão do benefício deferido a heterossexuais, em afronta ao mais
elementar princípio constitucional, donde, adotando a posição de Bachof,
classifica a isonomia e a dignidade humana como normas de Direito
Suprapositivo a prevalecerem no conflito com a restrição supostamente
existente no texto normativo da união estável, afirmando ser esta também a
posição de Rios, Suannes e, inclusive, da Suprema Corte dos EUA, que
atestou a ilegitimidade de norma constitucional discriminatória ante seu
caráter arbitrário. Apontou, por fim, que Krüger e Giese foram além de
Bachof, no sentido de admitirem hierarquia entre normas constitucionais
meramente positivas entre si67. Como se vê, a autora adere à teoria das
normas suprapositivas, que teriam sido positivadas pelo Constituinte
Originário e que, portanto, teriam grau superior às demais normas
constitucionais.
É de se notar, contudo, que não é preciso chegar a tanto. Há normas de
diferentes hierarquias no corpo constitucional, não por algumas serem
“suprapositivas” e outras não, mas simplesmente por umas serem mais
importantes do que outras, ressalvando-se que essa maior importância
depende de manifestação expressa do próprio Constituinte Originário nesse
sentido ou do caráter implicitamente fundamental de uma norma
relativamente a outra não fundamental. Como se averigua a importância de
cada norma constitucional afora das cláusulas pétreas? Ora, pela forma
como o Constituinte as positivou – e é inegável que a positivação de uma
norma como fundamental a coloca em um grau superior a uma norma não
positivada como fundamental, pois isto significa que esta última foi
positivada como norma “não fundamental” – ressalvando-se tal exegese
positivista apenas no que tange aos direitos fundamentais implícitos, que
são aqueles aos quais, apesar de não expressamente reconhecidos pelo texto
constitucional como fundamentais, têm relação direta com o princípio da
dignidade da pessoa humana e, portanto, têm a si reconhecida a
fundamentalidade constitucional.
Assim, de uma forma ou de outra, ao não admitir a interpretação
extensiva ou a analogia para reconhecer a união estável homoafetiva, ter-se-
á um conflito efetivo (uma antinomia real) entre normas constitucionais
originárias (união estável x isonomia/dignidade humana) que redundará
inegavelmente na prevalência da regra isonômica, por ter espectro
inequivocamente superior ao da regra supostamente restritiva da união
estável. Reitere-se que a isonomia é superior à regra constitucional da união
estável: (a) por ser ela (isonomia) um mandamento nuclear do sistema, que,
portanto, deve ser respeitado por todas as regras constitucionais; e (b) por
ser ela (isonomia) um princípio denominado fundamental pelo Constituinte
Originário, o que a coloca inegavelmente em grau superior à suposta
restrição constante do § 3.o do art. 226 da CF/1988, que não foi denominada
como fundamental (pois é o mesmo que denominá-la como “não
fundamental”); (c) pelo fato de uma discriminação arbitrária não poder ser
considerada como algo “fundamental” ao sistema jurídico – a união estável
é um direito fundamental fora do catálogo, mas a interpretação restritiva da
união estável apenas a casais heteroafetivos não pode ser tida como
fundamental por não resguardar nenhum bem/valor constitucionalmente
relevante (consoante exposto no Capítulo 9, quando se trata do princípio
instrumental da proporcionalidade).
Por outro lado, a inconstitucionalidade da interpretação proibitiva da
união estável homoafetiva também afronta os princípios da dignidade da
pessoa humana, da promoção do bem-estar de todos, da liberdade de
consciência e da liberdade (autonomia moral), conforme exposto no item
2.1 (supra), donde também por esses princípios constitucionais afigura-se
correta a invalidação parcial do § 3.o do art. 226 da CF/1988, na hipótese
aqui debatida.
Dessa forma, fica clara a possibilidade jurídica da união estável
homoafetiva nos dias de hoje, seja através da interpretação extensiva ou da
analogia, seja pela hierarquização da isonomia e dos demais princípios
fundamentais sobre a (suposta) regra restritiva da união estável, por sua
hierarquia superior, sendo absolutamente inconstitucional (ou então,
incompatível com os valores constitucionais expressos) entendimento em
sentido contrário.

3. SÍNTESE CONCLUSIVA DO CAPÍTULO


Na mesma linha defendida quanto ao casamento civil, a união estável é
um regime jurídico possível de ser reconhecido às uniões homoafetivas,
uma vez que o valor inerente a ela, que configura o objeto de proteção da(s)
lei(s) da união estável, é o amor familiar, ou seja, o amor romântico que
vise a uma comunhão plena de vida e interesses, de forma pública, contínua
e duradoura, que é o elemento formador da família contemporânea no que
tange a casais. Isso é possível pela interpretação extensiva, em se
considerando idênticas as uniões heteroafetivas e homoafetivas, visto serem
formadas por aquele mesmo amor, ou então pela analogia, na hipótese de se
as considerar como situações diferentes que, todavia, possuem o mesmo
elemento essencial, a saber: o amor familiar.
Todavia, muitos na doutrina e na jurisprudência em geral ainda não
aceitam tal tese, apesar de não cumprirem o encargo de justificar lógica e
racionalmente a pertinência da discriminação por elas pretendida, como
lhes impõe o aspecto material da isonomia, donde aplicam uma
interpretação restritiva/discriminatória à união estável em decorrência da
expressão “entre o homem e a mulher”, constante do art. 226, § 3.º, da
CF/1988 (e mesmo das leis que regem a união estável). Assim, poder-se-ia,
a princípio, defender a inconstitucionalidade dessa discriminação por
afronta à isonomia e à dignidade humana, normas constitucionais
igualmente originárias que são os valores-guia de nossa Carta Magna.
Todavia, considerando que o Supremo Tribunal Federal não tem
admitido a declaração da inconstitucionalidade/invalidade de normas
constitucionais originárias e mesmo o reconhecimento de hierarquia dessas
normas entre si, essa ausência de fundamentação válida ante o preceito
igualitário faz que a proibição tácita da união estável homoafetiva imposta
pelo § 3.º do art. 226 da CF/1988 seja incompatível com os princípios da
isonomia (que proíbe discriminações arbitrárias), da dignidade da pessoa
humana (que declara que todos são merecedores de igual proteção de sua
dignidade pelo simples fato de serem pessoas humanas, e que tem na
isonomia a única forma válida de sua relativização), da promoção do bem-
estar de todos, da liberdade de consciência e da vedação de instituição de
preferências de brasileiros entre si, em clara “tensão” com esses princípios.
Assim, a única forma de evitar que esse conflito “aparente” se torne um
conflito real entre normas constitucionais originárias é a aplicação do
regime jurídico conferido às uniões estáveis heteroafetivas às homoafetivas
por meio: (i) da interpretação extensiva, reconhecendo-se que ambas as
situações fáticas são idênticas, uma vez que baseadas no mesmo valor
protegido pelas normas que regem a união estável (amor familiar), donde
merecem, portanto, o mesmo tratamento jurídico; ou (ii) da analogia, no
sentido de se reconhecer que, se não são idênticas, as uniões homoafetivas
guardam extrema similitude em relação às heteroafetivas naquilo que lhes é
fundamental (e é igualmente fundamental à união estável), que é a
existência do amor romântico que vise a uma comunhão plena de vida e
interesses, de forma pública, contínua e duradoura, que é o sentimento que
forma a família conjugal contemporânea (que independe de futura
existência de filhos, mesmo porque a capacidade procriativa do casal não é
fundamental à configuração de dito regime jurídico, da mesma forma que
não o é para o casamento civil).
Ambas as soluções, como se pode ver, têm o mesmo resultado prático,
sendo elas as únicas formas de evitar que o conflito hoje considerado como
“aparente”, qual seja o do art. 226, § 3.º (proibição da união estável
homoafetiva), com os art. 1.º, III (dignidade da pessoa humana), 3.º, IV
(bem-estar de todos e proibição de discriminações de qualquer natureza),
5.º, caput (isonomia) e VI (liberdade de consciência), assim como 19, III
(vedação da criação de preferências de brasileiros entre si), todos da
Constituição Federal, se transforme em um conflito efetivo de normas.
Contudo, na hipótese de não se admitir a aplicação do regime jurídico
da união estável aos casais homoafetivos pela interpretação extensiva ou
pela analogia, estar-se-á incorrendo em antinomia real entre o texto
normativo da união estável e o núcleo essencial princípio constitucional da
isonomia, que estará afrontado por estar-se perpetrando uma arbitrariedade
jurídica, visto inexistir fundamento lógico-racional que justifique a
discriminação das uniões homoafetivas em relação às uniões heteroafetivas
(já que ambas são baseadas no mesmo amor familiar), além de se ofender
diretamente valores constitucionalmente consagrados, como a dignidade da
pessoa humana, a promoção do bem-estar de todos, a liberdade de
consciência e a vedação da criação de preferências de brasileiros entre si.
Dada essa situação, não será de nenhuma validade uma afirmação
genérica, de cunho puramente ideológico, de que seria inadmissível o
conflito entre normas constitucionais entre si, pois nessa hipótese o conflito
existe e é inegável. Dizer o contrário implicará fechar os olhos à realidade.
Assim, resta procurar uma solução a dito conflito em vez de ignorá-lo, pois
isso não fará que ele desapareça.
Nesse sentido, essa antinomia real redundará inegavelmente na
prevalência do princípio isonômico, por ter espectro inequivocamente
superior ao da regra supostamente restritiva da união estável, por meio de
uma interpretação corretiva do art. 226, § 3.o, da CF/1988. Reitere-se que a
isonomia é superior à regra constitucional da união estável: (a) por ser ela
(isonomia) um mandamento nuclear do sistema, que portanto deve ser
respeitado por todas as regras constitucionais; e (b) por ser ela (isonomia)
um princípio denominado fundamental pelo Constituinte Originário, o que
o coloca inegavelmente em grau superior à suposta restrição constante do §
3.o do art. 226 da CF/1988, que não foi denominada como fundamental
(pois é o mesmo que denominá-la como “não fundamental”) e que não tem
a si reconhecido o caráter de fundamentalidade implícita. O mesmo se diga
quanto aos demais princípios constitucionais apontados: eles prevalecerão
sobre a regra supostamente restritiva da união estável (ou melhor, à exegese
restritiva atribuída a tal regra). Aderindo-se a tal teoria da
inconstitucionalidade, será ela uma inconstitucionalidade parcial, relativa à
expressão “entre o homem e a mulher” do citado dispositivo constitucional,
visto que a ausência desta não prejudicará em nada o regime jurídico da
união estável.
Assim, fica clara a possibilidade jurídica da união estável homoafetiva
nos dias de hoje, seja por meio da interpretação extensiva ou da analogia,
seja pela hierarquização da isonomia e dos demais valores constitucionais
invocados sobre a (suposta) regra restritiva da união estável, por seu
espectro superior, sendo absolutamente inconstitucional (ou, então,
incompatível com os valores constitucionais expressos) entendimento em
sentido contrário.

1 BRANDÃO, Débora Vanessa Caús. Parcerias homossexuais: Aspectos Jurídicos, 1.ª


Edição, São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002, p. 82.
2 Por intermédio da CID 10/1993.
3 Por intermédio da Resolução 1/1999.
4 A decisão, unânime, fundamentou-se no sentido de que: “Essa tese – a de que há
hierarquia entre normas constitucionais originárias dando azo à declaração de
inconstitucionalidade de umas em face de outras – se me afigura incompossível com o
sistema de Constituição rígida”, donde “na atual Carta Magna ‘compete ao Supremo
Tribunal Federal, precipuamente, a guarda da Constituição’ (art. 102, caput), o que
implica dizer que essa jurisdição lhe é atribuída para impedir que se desrespeite a
Constituição como um todo, e não para, com relação a ela, exercer o papel de fiscal do
poder constituinte originário, a fim de verificar se este teria, ou não, violado os
princípios de direito suprapositivo que ele próprio havia incluído no texto da mesma
Constituição”. Nesse aresto, o Supremo também rejeitou a tese de que as cláusulas
pétreas teriam uma hierarquia superior às demais normas constitucionais sob o
argumento de que “as cláusulas pétreas não podem ser invocadas para a sustentação
da tese de inconstitucionalidade de normas inferiores em face das normas
constitucionais superiores, porquanto a Constituição as prevê apenas como limites ao
Poder Constituinte derivado de rever ou ao emendar a Constituição elaborada pelo
Constituinte originário com relação às outras que não sejam consideradas como
cláusulas pétreas”.
5 A polêmica formulação do autor alemão, oriunda de sua obra Normas constitucionais
inconstitucionais?, consiste na afirmação de que haveria preceitos de Direito
suprapositivo, positivados ou não, que deveriam ser respeitados sempre, inclusive pelo
Constituinte Originário, em colocação que inequivocamente remete à adesão à teoria
do Direito Natural no que tange a tais preceitos pretensamente suprapositivos, que
seriam aqueles que supostamente existiriam em qualquer ordem jurídica, fundados no
ideal abstrato de Justiça que deveria sempre guiar o Direito. Supõe, ainda, a
compreensão que as normas constitucionais positivadas de Direito suprapositivo
seriam meramente declaratórias, e não constitutivas, visto que não estariam criando,
mas meramente reconhecendo direitos preexistentes.
6 Sobre o que usualmente se entende sobre o conteúdo jurídico do princípio da unidade
da Constituição, vide, por todos, a lição de Luís Roberto Barroso, que afirma: “(...) O
princípio da unidade é uma especificação da interpretação sistemática, e impõe ao
intérprete o dever de harmonizar as tensões e contradições entre normas. Deverá
fazê-lo guiado pela grande bússola da interpretação constitucional: os princípios
fundamentais, gerais e setoriais inscritos ou decorrentes da Lei Maior. (...) O fim
primário do princípio da unidade é procurar determinar o ponto de equilíbrio diante das
discrepâncias que possam surgir na aplicação das normas constitucionais, cuidando
de administrar eventuais superposições. (...) Mais que isso: do ponto de vista lógico,
as normas constitucionais, frutos de uma vontade unitária e geradas simultaneamente,
não podem jamais estar em conflito no momento de sua concretização. Portanto, ao
intérprete da Constituição só resta buscar a conciliação possível entre proposições
aparentemente antagônicas, cuidando, todavia, de jamais anular integralmente uma
em favor da outra. (...) O papel do princípio da unidade é o de reconhecer as
contradições e tensões – reais ou imaginárias – que existam entre normas
constitucionais e delimitar a força vinculante e o alcance de cada uma delas. Cabe-lhe,
portanto, o papel de harmonização ou ‘otimização’ das normas, na medida em que se
tem de produzir um equilíbrio, sem jamais negar por completo a eficácia de qualquer
delas. (...) A doutrina mais tradicional divulga como mecanismo adequado à solução
de tensões entre normas a chamada ponderação de bens ou valores. Trata-se de uma
linha de raciocínio que procura identificar o bem jurídico tutelado por cada uma delas,
associá-lo a um determinado valor, isto é, ao princípio constitucional ao qual se
reconduz, para, então, traçar o âmbito de incidência de cada norma, sempre tendo
como referência máxima as decisões fundamentais do constituinte (...)” (BARROSO,
Luís Roberto. Interpretação e aplicação da Constituição, 6.a Edição, 3.a tiragem, São
Paulo: Editora Saraiva, 2006, p. 196, 197, 198 e 200-201).
7 O que foi expressamente afirmado pelo Ministro Celso de Mello em seu voto no
julgamento de 05.05.2011, que reconheceu a união estável homoafetiva (ADPF 132 e
ADI 4.277).
8 Como já mencionado, é o sentido, por eles mais bem trabalhado, que lhe dão José
Joaquim Gomes Canotilho e Vital Moreira (CRP – Constituição da República
Portuguesa Anotada, 1.a Edição brasileira, 4.a Edição portuguesa, Coimbra: Coimbra
Editora e São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2007, p. 609), para os quais a
liberdade de consciência “é a convicção ética e a autónoma responsabilidade
reivindicada por qualquer indivíduo para justificar o seu comportamento”, ou seja, “a
liberdade de formação das próprias convicções (forum internum)” e a “exteriorização
da decisão de consciência (forum externum)”.
9 No que tange ao conteúdo jurídico da liberdade jurídica, assim como seu
enquadramento nos chamados “direitos sexuais”, a meu ver melhor entendidos como
direitos a determinar sua vida amorosa, leciona José Reinaldo de Lima Lopes
(Liberdade e direitos sexuais – o problema a partir da moral moderna, in: RIOS, Roger
Raupp (org.), Em defesa dos Direitos Sexuais, 1.a Edição, Porto Alegre: Editora
Revista do Advogado, 2007, p. 43, 46, 47, 52, 53, 56, 57, 64 e 69-71): “Liberdade
jurídica indica a existência de um campo de ação em que o sujeito está imune às
imposições alheias, de um igual ou de um superior. (...) Liberdade, criticamente
compreendida, significa dar à vida de cada um o valor de algo insubstituível. Essa
vida, porque é capaz de se desenvolver até certo ponto por si mesma, pode ser
valorizada como algo em si mesmo bom. (...) a imunidade ou liberdade jurídica serve
para proteger uma outra coisa valiosa em si mesma que é a autonomia. A autonomia
consiste na faculdade de cada um ser um ser suficientemente capaz de conduzir sua
vida e fazer suas escolhas. (...) O que dizer no campo da própria vida sexual? Posso
dispor de mim da mesma maneira? Sim: a resposta é que cada um pode conduzir sua
vida como quiser, e que o paternalismo não tem lugar apoiado no sistema jurídico.
Pode-se recomendar, pode-se aconselhar, mas não se pode impor a cada um o bom
[Mill]. (...) A direção que nosso argumento toma é, pois, que a liberdade fundamental
de cuidar de sua vida e conduzir sua atividade sexual é uma liberdade civil, fundada
por seu turno na liberdade moral ou autonomia dos indivíduos. (...) o direito de
liberdade, e de liberdade fundamental na forma da constituição, significa que as
pessoas podem viver mais ou menos como bem lhes aprouver, garantida igual e
simultânea liberdade para todos. Dentro dessa perspectiva, os direitos sexuais não
parecem oferecer maior dificuldade. ‘Cada um cuide de sua vida’, como princípio
legítimo de liberdade e mesmo de justiça (Lucas, 1999). A liberdade moral (cada um
se desenvolve para tornar-se dono de sua vida e de suas escolhas) e a liberdade civil
(todos têm igual liberdade até o limite do dano causado a outrem) dão suficiente apoio
ao ponto de partida da tese de que os direitos sexuais são perfeitamente
reconhecíveis como liberdades fundamentais na esfera da vida sexual. (...) ‘A única
liberdade que merece o nome é a de buscar nosso próprio bem de nosso próprio jeito,
desde que não tentemos privar os outros dos seus ou impedir seus esforços para obtê-
los’ (Mill, 1974, 138). (...) Sem autonomia, não há liberdade. Logo, é preciso combater
também as restrições desnecessárias à liberdade, aquelas que impedem a autonomia
dos sujeitos. (...) ‘A única parte da conduta de qualquer um que deve ser aberta à
sociedade é a que diz respeito aos outros. (...) Sobre si mesmo, sobre seu próprio
corpo e mente, o indivíduo é soberano’ (Mill, 1974, 135) (...). Mill afasta o paternalismo
(obrigar as pessoas a fazerem o que é bom para si, mesmo que não queiram) e a
condução da consciência alheia. A ação moral só tem valor se for realizada livremente;
logo, aquilo que é bom para alguém ou para algum modo de vida não pode ser
legalmente obrigatório. Somente aquilo que prejudica os outros deve ser proibido. (...)
Direitos sexuais significam primeiramente a liberdade de o indivíduo conduzir sua
atividade ou vida sexual de tal maneira que não lese igual liberdade dos outros. Trata-
se do conceito mais corriqueiro de liberdade que se pode ter. Na mesma medida da
liberdade alheia, é a liberdade de conduzir-se. (...) Assim, a forma de experimentar sua
sexualidade, por aqueles que não se subordinam a credos religiosos ou à moral
convencional, desde que exercida de forma que respeite a liberdade e o
consentimento dos que com eles se engajam em atividades sexuais, não pode ser
impedida porque ela é considerada ‘ofensiva’ a alguém, ou a algum grupo. É que esta
ofensa ao sentimento alheio não prejudica absolutamente a vida alheia, a não ser que
a vida alheia incorpore um direito a determinar para os outros, e não para si, a forma
de viver. (...) Claro que entre as liberdades do outro não se conta sua liberdade de
continuar negando a autonomia dos que pensam diferente de si, pois nesse caso sua
liberdade seria excludente das liberdades alheias.
10 MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 20.ª Edição, São Paulo: Editora Atlas,
2006, p. 10-11.
11 Sendo o princípio um mandamento nuclear do sistema (como efetivamente é), a regra
tem necessariamente que ser uma concretização do princípio, sob pena de afronta à
lógica, pois é inadmissível que a concretização do abstrato afronte a ideia defendida
pelo abstrato.
12 O que resultaria em procedimento similar ao exposto no caso do casamento civil, qual
seja o ingresso com ação declaratória de união estável, com pedido incidental de
declaração da inconstitucionalidade desse dispositivo, sendo que a união estável aí
declarada teria eficácia reconhecida desde o início da relação fática – como inclusive
ocorre com as heteroafetivas após o término da união fática. Aponte-se, por oportuno,
que é muito estranha a negativa geral da doutrina constitucionalista acerca da
impossibilidade absoluta de conflitos efetivos entre normas constitucionais originárias.
Isso porque os defensores dessa tese se limitam a dizer que não seria admissível tal
hipótese pelo princípio da unidade constitucional e ponto final, sem analisar o Direito
Positivo concreto – contudo, dita postura ideológica não tem o condão de afastar
eventuais conflitos entre normas constitucionais conflitantes. É evidente que o
intérprete deve se esforçar para tentar atribuir uma interpretação harmoniosa a todos
os dispositivos constitucionais, no que a noção de princípios como mandamentos
nucleares do sistema auxilia no sentido de que a interpretação das regras é
necessariamente condicionada pelo conteúdo jurídico dos princípios, donde uma regra
deve necessariamente ser interpretada de forma a não afrontar os princípios do
documento jurídico em questão. Contudo, é igualmente evidente que a interpretação
de um texto normativo não pode alterar o significado de suas palavras, donde, caso a
interpretação definitiva da regra constitucional afronte o princípio também
constitucional da igualdade, este deverá prevalecer sobre aquela. Afinal, o princípio (a
norma-princípio) de um documento normativo (como a Constituição) condiciona as
regras de dito sistema de normas, donde se uma regra constitucional for interpretada
de forma a colidir abstratamente com o princípio da igualdade, então este deverá
prevalecer, seja por ele ser um dos objetivos fundamentais da República Federativa do
Brasil (art. 3.o, IV, da CF/1988), seja pelo fato de as normas-princípio condicionarem as
regras do documento normativo em questão. Verifique-se que a tese aqui defendida
não afronta o significado das palavras do § 3.o do art. 226 da CF/1988, visto que não
se está alterando o significado da expressão “o homem e a mulher”, apenas dizendo
que isso não implica proibição implícita à união estável homoafetiva, restando
configurada uma lacuna, suprimível pela interpretação extensiva ou pela analogia.
Note-se, por fim, que não estou aderindo a nenhuma teoria de “Direito Natural” nem
mesmo aceitando que o princípio da igualdade (entre outros) teria caráter
suprapositivo: apenas estou dizendo que as normas-princípio condicionam as regras
de determinado documento normativo, visto que aquelas são mandamentos nucleares
do sistema, ao passo que estas têm que ser necessariamente concretizações de tais
mandamentos, donde, na hipótese de preponderar uma interpretação das regras que
afronte os princípios de tal forma a gerar um conflito abstrato entre tais espécies
normativas, a norma-princípio deverá prevalecer. Tomar a sério a teoria dos princípios
como mandamentos nucleares do sistema leva, inevitavelmente, a colocações dos
princípios como hierarquicamente superiores às regras.
13 Por não se admitir hierarquia entre normas constitucionais originárias, hipótese na
qual se deve usar a interpretação extensiva ou a analogia para se estender às uniões
homoafetivas o regime jurídico da união estável, como única forma hermenêutica de
evitar que tal “tensão” se transforme em antinomia real.
14 FERNANDES, Taísa Ribeiro. Uniões homossexuais: efeitos jurídicos. 1.ª Edição, São
Paulo: Editora Método, 2004, p. 68 a 70. No original: “Argumenta-se, numa leitura
literal do art. 226, § 3.º, da CF, que ele reconhece e protege a união estável entre
homem e mulher como entidade familiar. E somente esta! (...) [Mas] Isto [a atual
redação do art. 226 da Constituição Federal] não quer dizer, absolutamente, que a Lei
Fundamental rejeite, proíba ou discrimine as relações afetivas homossexuais. (...) Tais
parcerias representam, sim, uniões estáveis; só não são, é claro, as uniões estáveis
entre homem e mulher de que trata a Constituição naquele dispositivo. Mas todo o
regramento sobre as uniões estáveis heterossexuais pode ser estendido às parcerias
homossexuais, dada a identidade das situações, ou seja, estão presentes tanto em
uma quanto em outra, os requisitos de uma vida em comum, como respeito, afeto,
solidariedade, assistência mútua e tantos outros. Portanto, clamam por um tratamento
analógico. Pondera Virgílio de Sá Pereira: ‘O homem quer obedecer ao legislador, mas
não pode desobedecer à natureza, e por toda parte ele constitui a família, dentro da
lei, se é possível, fora dela, se é necessário’. Pensar diferente é não estar atento para
os vários princípios e normas constitucionais que se aplicam ao tema, desde o da
igualdade, da dignidade da pessoa humana, da não discriminação em razão do sexo e
outros. As uniões entre pessoas do mesmo sexo, ou com o nome de uniões estáveis,
ou de uniões homoafetivas, ou ainda de parcerias homoafetivas, representam,
realmente, entidades familiares, e têm de receber o tratamento que as entidades
familiares merecem receber. Ou a República é democrática para todos, menos para os
que têm uma orientação sexual diferente da maioria? Pelo exposto, se dois parceiros
homossexuais, com nítido interesse processual, ingressarem na justiça com uma ação
declaratória, para que seja reconhecida a união estável que eles mantêm (CPC, art.
4.º, I), não deve o juiz, de plano, considerar inepta a petição e decidir pela
impossibilidade jurídica do pedido (CPC, art. 295, parágrafo único, III), alegando que,
nos termos da Constituição Federal (art. 226, § 3.º) e do Código Civil (art. 723), a
união estável é o nomen juris do relacionamento afetivo entre o homem e a mulher,
uma união heterossexual, portanto. Tendo em vista, menos, a letra fria das normas e
procurando a substância das mesmas, o fim social a que se dirigem, numa
interpretação evolutiva, coincidente com os fatos e as exigências sociais, recorrendo,
ademais, à analogia, o juiz pode, sim – e a nosso ver, com certeza, deve –, declarar a
existência da relação jurídica, do relacionamento qualificado, diante das provas dos
fatos constitutivos que lhe foram apresentados, estando configuradas a convivência
duradoura, pública, contínua entre os requerentes, e a relação afetiva, constitutiva de
família. E, se num resíduo de excesso formalístico, estando convencido do pedido, o
juiz não se sentir à vontade para proclamar que ali existe uma ‘união estável’, que
declare, então, que a situação configura uma entidade familiar, uma relação
inequívoca, uma união homossexual, em que os efeitos, praticamente, serão os
mesmos, atendendo-se sobretudo o fundamento constitucional que rejeita o
preconceito em razão do sexo – ou de orientação sexual, como preferimos (art. 3.º,
IV)” (sem grifos no original).
15 DIAS (Efeitos patrimoniais das relações de afeto, p. 293-294) apud BRANDÃO,
Débora Vanessa Caús. Parcerias homossexuais: Aspectos Jurídicos, 1.ª Edição, São
Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002, p. 80. No original: “Em nada se diferencia a
convivência homossexual da união estável. Não pode ser vista exclusivamente pela
restrição contida na Carta Maior, mas imperioso é que, através de uma interpretação
analógica, se passe a aplicar o mesmo regramento legal, pois inquestionavelmente
que se trata de um relacionamento, tendo por base o amor” (sem grifos no original).
16 DIAS, Maria Berenice. União homossexual: O Preconceito & a Justiça, 3a Edição,
Porto Alegre: Editora Livraria do Advogado, 2006, p. 93. No original: “O silêncio
constitucional e a omissão legiferante não podem levar à negativa de se extraírem
efeitos jurídicos de tais vínculos [homoafetivos], devendo o juiz atender à
determinação do art. 4.o da Lei de Introdução ao Código Civil, e fazer uso da analogia,
dos costumes e princípios gerais de direito. Não há como fugir da analogia com as
demais relações que têm o afeto por causa e, assim, reconhecer a existência de uma
entidade familiar à semelhança do casamento e da união estável. O óbice
constitucional, estabelecendo a distinção de sexos ao definir a união estável, não
impede o uso dessa forma integrativa de um fato existente e não regulamentado no
sistema jurídico. A identidade sexual não serve de justificativa para se buscar qualquer
outro ramo do Direito que não o Direito das Famílias. Não há dúvida de que a analogia
tem o mérito de reconhecer o caráter familiar das uniões homossexuais que
satisfazem os pressupostos hoje valorizados pelo direito de família e consagrados pela
Constituição” (sem grifos no original). É de se notar que, quando a autora faz
referência ao “óbice constitucional”, ela se refere ao fato de a definição constitucional
referir-se à união heteroafetiva ao mencionar a união estável. Contudo, é notório no
meio jurídico que o fato de termos uma definição constante em um texto normativo que
abarque um fato e não outro não implica impossibilidade de utilização da interpretação
extensiva ou da analogia (como aqui se defende), sendo que afirmação em sentido
contrário denota profundo desconhecimento a respeito de hermenêutica jurídica ou
então má-fé de quem a propugna – é da essência da interpretação extensiva e da
analogia que o texto da norma cite um fato e não o outro, pois é justamente essa
omissão normativa que justificou a criação de tais técnicas interpretativas pela ciência
jurídica!
17 Ibidem, p. 82. No original: “Não é desarrazoado, firme nos princípios constitucionais da
dignidade da pessoa humana e da igualdade, considerada a visão unitária e coerente
da Constituição, com o uso da analogia e suporte nos princípios gerais do direito, ter-
se a união homoerótica como forma de união estável. Indispensável é reconhecer que
os vínculos homoafetivos são muito mais do que meras relações homossexuais. Em
verdade, configuram uma categoria social que não pode mais ser discriminada ou
marginalizada pelo preconceito, sob pena de o Direito falhar como Ciência e, o que é
pior, como Justiça”.
18 BARROSO, Luís Roberto. “Diferentes mas iguais: o reconhecimento jurídico das
relações homoafetivas no Brasil”, Revista de Direito do Estado, n. 5, p. 167 e ss, 2007.
Aproveito a oportunidade para agradecer ao Professor Luís Roberto Barroso por ter-
me enviado cópia do parecer, via e-mail, antes mesmo dele ter sido publicado. Assim,
em que pese esse excelente trabalho ter sido publicado na referida revista, as páginas
citadas nas próximas notas de rodapé a tal parecer referem-se à paginação em folhas
de tamanho A4 – p. 01-41. O trabalho está disponível, neste formato, no seguinte
link: http://pfdc.pgr.mpf.gov.br/grupos-de-trabalho/dir-sexuais-
reprodutivos/docs_atuacao/ParecerBarroso%20uniao%20homossexuais.pdf. Acesso
em: 28 set. 2007.
19 Ibidem, p. 16-21, no sentido de que: “a Constituição é refratária a todas as formas de
preconceito e discriminação, binômio no qual hão de estar abrangidos o menosprezo
ou a desequiparação fundada na orientação sexual das pessoas”, donde demonstra
inexistir razoabilidade e legitimidade na negação de direitos em virtude da orientação
sexual das pessoas em virtude de que: (i) “A impossibilidade de procriação não é uma
justificativa para o tratamento desigual”, visto que “no cerne da noção contemporânea
de família está a afetividade, o projeto de comunhão de vidas, independentemente da
sexualidade” e em especial porque, no conceito de união estável, “não há qualquer
referência à procriação”; (ii) “Em uma sociedade democrática e pluralista, deve-se
reconhecer a legitimidade de identidades alternativas ao padrão majoritário”,
especialmente porque “o estabelecimento de standards de moralidade já justificou, ao
longo da história, variadas formas de exclusão social e política, valendo-se do discurso
médico, religioso ou da repressão direta do poder”, donde “não há razão para
reproduzir o erro”; (iii) A questão dos valores cristãos “pode ter importância no debate
que se instaura no interior das confissões religiosas. Mas, como intuitivo, não pode
prevalecer no espaço público de um Estado laico”, muito embora seria de se discutir
“se os valores cristãos não seriam realizados de forma melhor pela compreensão, pela
tolerância e pelo amparo, em lugar da negação”.
20 Ibidem, p. 22-23. Ressalta o autor que “não reconhecer a um indivíduo a possibilidade
de viver sua orientação sexual em todos os seus desdobramentos é privá-lo de uma
das dimensões que dão sentido a sua existência”, ressaltando corretamente que “para
um indivíduo de orientação homossexual, a escolha não é entre estabelecer relações
com pessoas do mesmo sexo ou de sexo diferente, mas entre abster-se de sua
orientação sexual ou vivê-la clandestinamente”, no sentido de que “a exclusão das
relações homoafetivas do regime da união estável não daria causa, simplesmente, a
uma lacuna, a um espaço não regulado pelo Direito”, mas a “uma forma comissiva de
embaraçar o exercício da liberdade e o desenvolvimento da personalidade de um
número expressivo de pessoas, depreciando a qualidade dos seus projetos de vida e
dos seus afetos. Isto é: fazendo que sejam menos livres para viver as suas escolhas”.
21 Ibidem, p. 26-27. Isso porque “a discriminação das uniões homoafetivas equivale a
não atribuir igual respeito a uma identidade individual, a se afirmar que determinado
estilo de vida não merece ser tratado com a mesma dignidade e consideração
atribuída aos demais”, pois “as identidades particulares, ainda que minoritárias, são
dignas de reconhecimento”, uma vez que “tal exclusão funcionaliza as relações
afetivas a um projeto determinado de sociedade, que é majoritário, por certo, mas não
juridicamente obrigatório”, visto que “as relações afetivas são vistas como meio para a
realização de um modelo idealizado, estruturado à imagem e semelhança de
concepções morais ou religiosas particulares”, com o indivíduo sendo “tratado, então,
como meio para a realização de um projeto de sociedade”, só sendo reconhecido “na
medida em que se molda ao papel social que lhe é designado pela tradição: o papel de
membro da família heterossexual, dedicada à reprodução e à criação de filhos”.
22 Ibidem, p. 27-29. Afirma o autor que: “A exclusão das relações homoafetivas do
regime jurídico da união estável, sem que exista um outro regime específico aplicável,
é inequivocamente geradora de insegurança jurídica”, visto que “as uniões entre
pessoas do mesmo sexo são lícitas e continuarão a existir, ainda que persistam as
dúvidas a respeito do seu enquadramento jurídico”, donde “esse quadro de incerteza –
alimentado por manifestações díspares do Poder Público, inclusive decisões judiciais
conflitantes – afeta o princípio da segurança jurídica, tanto do ponto de vista das
relações entre os parceiros quanto das relações com terceiros”, o que significa que
“criam-se problemas para as pessoas diretamente envolvidas e para a sociedade”.
Isso porque “o desenvolvimento de um projeto de vida em comum tende a produzir
reflexos existenciais e patrimoniais”, diante do que “é natural que as partes queiram ter
previsibilidade em temas envolvendo herança, partilha de bens, deveres de assistência
recíproca e alimentos, dentre outros”, aspectos estes equacionados no tratamento
dispensado pelo Código Civil às uniões estáveis, donde “sua extensão às relações
homoafetivas teria o condão de superar a insegurança jurídica na matéria”. Por outro
lado, “a indefinição sobre o regime aplicável pode afetar, igualmente, terceiros que
venham a estabelecer relações negociais com algum dos envolvidos na parceria
homoafetiva”, uma vez que “como regra, pessoas que vivem em união estável
necessitam de anuência do companheiro, por exemplo, para alienar bens e conceder
garantia”, donde “se é possível interpretar o direito posto de modo a prestigiar o
princípio da segurança jurídica, e inexistindo outro valor de estatura constitucional que
a ele se oponha, será contrária à Constituição a interpretação que frustre a
concretização de tal bem jurídico”.
23 Ibidem, p. 34-36. No original: “Insista-se, para que não haja margem a dúvida: não tem
pertinência a invocação do argumento de que o emprego da expressão ‘união estável
entre o homem e a mulher’ importa, a contrario sensu, em proibição à extensão do
mesmo regime a uma outra hipótese. Tal norma foi o ponto culminante de uma longa
evolução que levou à equiparação entre companheira e esposa. Nela não se pode
vislumbrar uma restrição – e uma restrição preconceituosa – de direito. Seria como
condenar alguém com base na lei de anistia. O Código Civil, por sua vez, contém
apenas uma norma de reprodução, na parte em que se refere a homem e mulher, e
não uma norma de exclusão. Exclusão que, de resto, seria inconstitucional”. Termina o
autor essa tese no sentido de que sequer há lacuna normativa uma vez que os
princípios da igualdade, da dignidade da pessoa humana, da liberdade e da segurança
jurídica impõem a extensão do regime jurídico da união estável às relações
homoafetivas.
24 Ibidem, p. 37. No original: “De fato, os elementos essenciais da união estável,
identificados pelo próprio Código Civil – convivência pacífica e duradoura com o intuito
de constituir família – estão presentes tanto nas uniões heterossexuais quanto nas
uniões homoafetivas. Os elementos nucleares do conceito de entidade familiar –
afetividade, comunhão de vida e assistência mútua, emocional e prática – são
igualmente encontrados nas duas situações. Diante disso, nada mais natural do que o
regime jurídico de uma ser estendido à outra. Admitida a analogia, chegar-se-ia à
seguinte conclusão: a Constituição teria reconhecido expressamente três tipos de
família: a decorrente do casamento (art. 226, §§ 1.o e 2.o); a decorrente de união
estável entre pessoas de sexos diferentes (art. 226, § 3.o); e a família monoparental,
ou seja, aquela formada por apenas um dos pais e seus descendentes (art. 226, § 4.o).
Haveria, contudo, um tipo comum de família não expressamente reconhecido: a união
homoafetiva. Apesar da falta de norma específica, o reconhecimento dessa quarta
modalidade seria imposto pelo conjunto da ordem jurídica e pela presença dos
elementos essenciais que caracterizam as uniões estáveis e as entidades familiares”.
25 BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e aplicação da Constituição, 6.a Edição, 3.a
tiragem, São Paulo: Editora Saraiva, 2006, p. 202-203. No original: “Tudo o que se viu
até aqui em nome da unidade constitucional reforça ‘o papel dos princípios
constitucionais como condicionantes da interpretação das normas da Lei Maior’. São
eles que conferem unidade e coerência ao sistema e é a eles que se recorre na
solução das tensões normativas. A grande premissa sobre a qual se alicerça o
raciocínio desenvolvido é a de que inexiste hierarquia normativa entre as normas
constitucionais, sem qualquer distinção entre normas materiais ou formais ou entre
normas-princípio e normas-regra. Isso porque, em direito, hierarquia traduz a ideia de
que uma norma colhe o seu fundamento de validade em outra, que lhe é superior. Não
é isso que se passa entre normas promulgadas originariamente com a Constituição.
Não obstante isso, é inegável o destaque de algumas normas, quer por expressa
eleição do constituinte, quer pela lógica do sistema. No direito constitucional positivo
brasileiro, foram expressamente prestigiadas as normas que cuidam das matérias
integrantes do núcleo imodificável da Constituição, que reúne as chamadas cláusulas
pétreas. Consoante o elenco do § 4.o do art. 60, não podem ser afetadas por emendas
que tendam a abolir os valores que abrigam as normas que cuidam: a) da forma
federativa do Estado; b) do voto direto, secreto, universal e periódico; c) da separação
dos Poderes; d) dos direitos e garantias individuais. Todos os itens acima, não é difícil
constatar, estão ligados a algum dos princípios fundamentais do ordenamento, a
saber: o princípio federativo, o princípio democrático e o princípio republicano
(periodicidade de voto). Aliás, ao menos idealmente, a Democracia, a República e a
Federação constituem, de longa data, o trinômio essencial do Estado brasileiro. É
natural que esses princípios fundamentais, notadamente os que foram objeto de
distinção especial no § 4.o do art. 60, sejam os grandes vetores interpretativos do
Texto Constitucional. Em seguida, vêm os princípios gerais e setoriais. Porque assim
é, deve-se reconhecer a existência, no Texto Constitucional, de uma hierarquia
axiológica, resultado da ordenação dos valores constitucionais, a ser utilizada sempre
que se constatarem tensões que envolvam duas regras entre si, uma regra e um
princípio ou dois princípios” (sem grifos no original).
26 Dita representação foi assinada pelos Procuradores Regionais da República Daniel
Sarmento, Luiza Cristina Frischeisen, Paulo Gilberto Cogo Leivas, pelo Procurador
Regional dos Direitos do Cidadão Sérgio Gardenghi Suiama, pelos Procuradores da
República Renato de Freitas Souza Machado e Caroline Maciel da Costa, por Antônio
Luiz Martins dos Reis (da ABGLT), por Nelson Matias Pereira (pela Associação da
Parada do Orgulho GLBT/SP), pelo advogado Paulo Tavares Mariante (pelo Identidade
– Grupo de Ação pela Cidadania Homossexual) e por Edmilson Alves de Medeiros (do
grupo CORSA – Cidadania, Orgulho, Respeito, Solidariedade e Amor).
27 Ementa: Homossexuais. União estável. Possibilidade jurídica do pedido. É possível o
processamento e o reconhecimento de união estável entre homossexuais, ante os
princípios fundamentais insculpidos na Constituição Federal que vedam qualquer
discriminação, inclusive quanto ao sexo. E é justamente agora, quando uma onda
renovadora se estende pelo mundo, com reflexos acentuados em nosso país,
destruindo preceitos arcaicos, modificando conceitos e impondo serenidade científica
da modernidade no trato das relações humanas, que as posições devem ser marcadas
e amadurecidas, para que os avanços não sofram retrocesso e para que as
individualidades e coletividades possam andar seguras na tão almejada busca da
felicidade, direito fundamental de todos. Sentença desconstituída para que seja
instruído o feito (TJ/RS, Apelação Cível 598362655, 8.ª Câmara Cível, Relator
Desembargador José Trindade, em 01.03.2000, v.u.) (sem grifos e destaques no
original).
28 Ementa: União homossexual. Reconhecimento. Partilha do patrimônio. Meação.
Paradigma. Não se permite mais o farisaísmo de desconhecer a existência de uniões
entre pessoas do mesmo sexo e a produção de efeitos jurídicos derivados dessas
relações homoafetivas. Embora permeadas de preconceitos, são realidades que o
Judiciário não pode ignorar, mesmo em sua natural atividade retardatária. Nelas
remanescem consequências semelhantes às que vigoram nas relações de afeto,
buscando-se sempre a aplicação da analogia e dos princípios gerais do direito,
relevados sempre os princípios constitucionais da dignidade humana e da igualdade.
Desta forma, o patrimônio havido na constância do relacionamento deve ser partilhado
como na união estável, paradigma supletivo onde se debruça a melhor hermenêutica.
Apelação provida, em parte, por maioria, para assegurar a divisão do acervo entre os
parceiros (TJ/RS, Apelação Cível 70001388982, 7.ª Câmara Cível, Relator
Desembargador José Carlos Teixeira Giorgis, por maioria – grifos nossos).
29 Ementa: Apelação cível. Ação de reconhecimento de dissolução de sociedade de fato
cumulada com partilha. Demanda julgada procedente. Recurso improvido. Aplicando-
se analogicamente a Lei 9.278/1996, a recorrente e sua companheira têm direito
assegurado de partilhar os bens adquiridos durante a convivência, ainda que tratando-
se de pessoas do mesmo sexo, desde que dissolvida a união estável. O Judiciário não
deve distanciar-se de questões pulsantes, revestidas de preconceitos só porque
desprovidas de norma legal. A relação homossexual deve ter a mesma atenção
dispensada às outras relações. Comprovado o esforço comum para a ampliação ao
patrimônio das conviventes, os bens devem ser partilhados. Recurso Improvido
(TJ/BA, Apelação Cível 16313-9/99, 3.ª Câmara Cível, Relator Desembargador Mário
Albiani, v.u., julgado em 04.04.2001 – grifos nossos).
30 Ementa: Justificação judicial. Convivência homossexual. Competência. Possibilidade
jurídica do pedido. 1. É competente a Justiça Estadual para julgar a justificação de
convivência entre homossexuais pois os efeitos pretendidos não são meramente
previdenciários, mas também patrimoniais. 2. São competentes as Varas de Família, e
também as Câmaras Especializadas em Direito de Família, para o exame das
questões jurídicas decorrentes da convivência homossexual pois, ainda que não
constituam entidade familiar, mas mera sociedade de fato, clamam, pela natureza da
relação, permeada de afeto e peculiar carga de confiança entre o par, um tratamento
diferenciado daquele próprio do direito das obrigações. Essas relações encontram
espaço próprio dentro do Direito de Família, na parte assistencial, ao lado da tutela,
curatela e ausência, que são relações de cunho protetivo, ainda que também com
conteúdo patrimonial. 3. É viável juridicamente a justificação pretendida pois a sua
finalidade é comprovar o fato da convivência entre duas pessoas homossexuais, seja
para documentá-la, seja para uso futuro em processo judicial, onde poderá ser
buscado efeito patrimonial ou até previdenciário. Inteligência do art. 861 do CPC.
Recurso conhecido e provido (TJ/RS, Apelação Cível 70002355204, 7.ª Câmara Cível,
Relator Desembargador Sérgio Fernando de Vasconcellos Chaves, v.u., julgado em
11.04.2001 – grifos nossos).
31 Ementa: União homoafetiva. Pensão. Sobrevivente. Prova da relação. Possibilidade. À
união homoafetiva que irradia pressupostos de união estável deve ser conferido o
caráter de entidade familiar, impondo reconhecer os direitos decorrentes deste vínculo,
pena de ofensa aos princípios constitucionais da liberdade, da proibição de
preconceitos, da igualdade e dignidade da pessoa humana (TJ/MG, Apelação Cível
1.0024.05.750258-5/002(1), Relator Desembargador Belizário de Lacerda, v.u., julgado
em 04.09.2007 – grifos nossos).
32 Ementa: apelação cível. União estável. Relação entre pessoas do mesmo sexo.
Alegação de incompetência da vara de família e de impossibilidade jurídica do pedido.
Inocorrência de nulidade da sentença. Precedentes. (...) 3. Não há falar em
impossibilidade jurídica do pedido, pois a Constituição Federal assegura a todos os
cidadãos a igualdade de direitos e o sistema jurídico encaminha o julgador ao uso da
analogia e dos princípios gerais para decidir situações fáticas que se formam pela
transformação dos costumes sociais. 4. Não obstante a nomenclatura adotada para a
ação, é incontroverso que o autor relatou a existência de uma vida familiar com o
companheiro homossexual. Este relacionamento sequer é negado pela mãe do
falecido. 5. (...) Por fim, uma vez reconhecida que a convivência formou entre eles uma
entidade familiar, aplicam-se, por analogia, ao caso os efeitos pessoais e patrimoniais
comuns às uniões estáveis com presunção de formação patrimonial que dispensa
prova da contribuição econômica do parceiro. Afastadas as preliminares, negaram
provimento, por maioria (TJ/RS, Apelação Cível 70015169626, Relator
Desembargador Luiz Felipe Brasil Santos, por maioria, julgado em 02.08.2006) (grifos
nossos).
33 Ementa: Constitucional. Civil. Família. União estável. Pessoas do mesmo sexo.
Relação homoafetiva. Artigo 3.o inciso IV, da Constituição Federal. A Constituição
Federal é expressa no sentido de que constitui objetivo fundamental da República a
promoção do bem de todos, tornando defeso qualquer tipo de preconceito ou
discriminação ligada a condições que sejam inerentes à pessoa humana (TJ/RJ,
Apelação Cível 2006.001.06195, Relator Desembargador Marco Antonio Ibrahim,
julgado em 04.07.2006) (sem grifos e destaques no original). No inteiro teor, afirmou o
Relator que, “de acordo com disposição expressa da própria Constituição Federal, um
dos fundamentos da República é o de promover o bem de todos, sem discriminação.
Esta norma, evidentemente, é dirigida não apenas às pessoas físicas e jurídicas, mas,
também, aos poderes constituídos. Não pode, portanto, o legislador criar leis, nem o
juiz interpretar as que existem, de forma contrária a um dispositivo programático da
Constituição. Considerar que uma relação estável homoafetiva, amplamente
caracterizada, não pode ser juridicamente reconhecida, é o mesmo que dizer que não
se está a promover o bem por óbvia discriminação pela opção (rectius: determinismo)
sexual de um ser humano. Que bem faz o legislador a um homossexual ao lhe vedar o
reconhecimento de um direito que a qualquer outra pessoa é garantido? Que bem faz
o juiz ao interpretar de forma discriminatória uma lei que se encontra frontalmente
contrária a um princípio fundamental da República? Releia-se o dispositivo acima
referido. Poderia a lei vedar o reconhecimento de sociedade estável entre negros ou
entre judeus, ou entre idosos, ou entre paraplégicos?”.
34 TJ/RJ, Apelação Cível 2005.001.22849, Relator Desembargador Ferdinaldo
Nascimento, v.u., julgado em 11.04.2006. A ementa nada diz sobre a tese, razão pela
qual se extrai do inteiro teor o seguinte trecho: “(...) não obstante respeitáveis os
posicionamentos em sentido contrário, entendo perfeitamente cabível o
processamento e o reconhecimento de uma união estável entre homossexuais. É certo
que a Constituição Federal, consagrando princípios democráticos de direito, proíbe
qualquer espécie de discriminação, principalmente quanto a sexo, sendo incabível,
pois, discriminação quanto à união homossexual. Com efeito, a Carta Magna traz
como princípio fundamental da República Federativa do Brasil a construção de uma
sociedade livre, justa e solidária (art. 3.o, I) e a promoção do bem de todos, sem
preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de
discriminação (art. 3.o, IV). Como direito e garantia fundamental, dispõe a Constituição
Federal que todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza (art.
5.o, caput). Conforme ensinamento mais básico do Direito Constitucional, tais regras,
por retratarem princípios, direitos e garantias fundamentais, se sobrepõem a quaisquer
outras, inclusive àquela esculpida no art. 226, § 3.o., CF/1988, que prevê o
reconhecimento da união estável entre o homem e a mulher” (...).Não é preciso
esperar a aprovação no Congresso Nacional do Projeto de Lei 1.151/1995, que
disciplina a ‘parceria civil registrada entre pessoas do mesmo sexo’, para reconhecer-
se a possibilidade de reconhecimento de uma união estável entre homossexuais,
porque, além dos dispositivos legais elencados, nossa legislação permite que o juiz
decida o caso de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais do direito
(art. 4.o da LICC). O direito tem caminhado com segurança ao retratar o descabimento
de preconceitos e discriminações” (sem grifos no original).
35 O inteiro teor da petição inicial encontra-se disponível no site do Supremo Tribunal
Federal (www.stf.gov.br), link “processos”, no qual basta colocar o número “132”,
selecionar a “ADPF 132” e, em seguida, o link “petição inicial” para que se possa ter
acesso ao arquivo em “.pdf”.
36 Em síntese, pela invocação dos preceitos fundamentais da igualdade, liberdade,
dignidade e segurança jurídica, assim como pela existência de decisões contraditórias
a respeito do tema.
37 Aponto que não equiparo os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade,
entendendo que ambos possuem conteúdos jurídicos distintos, conforme demonstrado
no Capítulo 3, quando explicitado o princípio instrumental da proporcionalidade.
38 No parecer “Diferentes mas iguais...”.
39 DJe de 06.10.2008.
40 DJe de 23.02.2010.
41 GADAMER, Hans-Georg. Verdade e Método I. Traços Fundamentais de uma
Hermenêutica Filosófica. Tradução de Flávio Paulo Meurer. Nova revisão da tradução
por Enio Paulo Giachini. 7. ed. Petrópolis: Vozes/Bragança Paulista: Editora
Universitária São Francisco, 2005, p. 358.
42 A afirmação tem origem na lição de Gadamer, citada na nota anterior.
43 Voto do Ministro Ayres Britto, p. 29.
44 Voto do Ministro Fux, p. 23.
45 Voto da Ministra Cármen Lúcia, pp. 4-5, 6, 7, 8 e 9-10.
46 Voto do Ministro Lewandowski, p. 12.
47 Voto do Ministro Joaquim Barbosa, p. 4.
48 Em momento anterior, afirmou o Ministro Joaquim Barbosa: “Quanto à Constituição
Federal, muitos poderão dizer que ela é silente sobre a matéria. Porém, cumpre
indagar o seguinte: o silêncio da Constituição deve ser interpretado como indiferença,
desprezo ou hostilidade? Quis mesmo o constituinte de 1988 manter em ostracismo,
numa espécie de limbo jurídico, juridicamente banidas, as escolhas afetivas feitas por
um número apreciável de cidadãos, com as consequências jurídicas e materiais daí
decorrentes? Creio que não. E por acreditar que não foi esta a intenção do legislador
constituinte, eu entendo que cumpre a esta Corte buscar na rica pallette axiológica que
informa todo o arcabouço constitucional criado em 1988; verificar se o desprezo
jurídico que se pretende dar a essas relações é compatível com a Constituição. Aí,
sim, estará a Corte a desempenhar uma das suas mais nobres missões: a de impedir
o sufocamento, o desprezo, a discriminação pura e dura de um grupo minoritário pelas
maiorias estabelecidas. Nessa linha de pensamento, é imperioso notar, de início, que
não há, no texto constitucional, qualquer alusão ou mesmo proibição ao
reconhecimento jurídico das uniões homoafetivas. Mas não podemos esquecer, por
outro lado, que a própria Constituição estabelece que o rol de direitos fundamentais
não se esgota naqueles expressamente por ela elencados. Isto é, outros direitos
podem emergir a partir do regime e dos princípios que ela própria, Constituição,
adotou, ou dos tratados internacionais firmados pelo Brasil” (voto do Ministro Joaquim
Barbosa, pp. 2-3).
49 Voto do Ministro Gilmar Mendes, pp. 16, 30, 31, 44, 50-51, 52 e 53 – grifo nosso.
50 Voto do Ministro Marco Aurélio, pp. 13 e 14-15 – grifos nossos.
51 Voto do Ministro Celso de Mello, pp. 19-23 – grifos nossos.
52 Voto do Ministro Peluso, pp. 2-3.
53 SILVA, Luís Virgílio Afonso da. Interpretação Constitucional e Sincretismo
Metodológico, in: SILVA, Luís Virgílio Afonso da (org.), Interpretação Constitucional,
São Paulo: Malheiros Editores, 2005, p. 122. Ressalto que parafraseei a lição do autor.
54 Aponte-se, contudo, que esta não é a conclusão do próprio Luís Virgílio Afonso da
Silva. Isso porque o autor diz, textualmente, que “É claro que se poderá argumentar
que, quando se aceita uma hierarquia formal no seio da constituição, necessário seria
também aceitar a possibilidade de normas constitucionais inconstitucionais. Não há,
contudo, razão para tanto. Como ficou claro acima, essa hierarquia a que me refiro
somente tem consequências quando do processo de mudança constitucional – o que
só autorizaria um juízo de inconstitucionalidade de normas constitucionais
supervenientes, e não entre as normas da constituição ‘original’. Essa ressalva não
impede, todavia, que se fale em hierarquia formal no seio da constituição” (ibidem, p.
122-123). Data maxima venia, penso que o autor foi contraditório, pois, existente
hierarquia formalmente superior de uma norma em relação a outra, então a
incompatibilidade entre elas enseja necessariamente a invalidade desta, por
hierarquicamente inferior àquela (formalmente falando). A posição de uma hierarquia
de normas constitucionais sobre outras sem consequência de invalidade
(inconstitucionalidade) das hierarquicamente inferiores afigura-se-me coerente apenas
com a noção de hierarquia axiológica de Luís Roberto Barroso, também citada em
nota de rodapé. Dessa forma, adotada a posição aqui defendida, fica evidente o
equívoco do Supremo Tribunal Federal no julgamento da ADIn 815-3/DF, na medida
em que as cláusulas pétreas são hierarquicamente superiores às demais cláusulas
constitucionais e, em razão disso, afigura-se possível juridicamente a declaração de
invalidade (inconstitucionalidade) das normas constitucionais hierarquicamente
inferiores às cláusulas pétreas.
55 GRAU, Eros Roberto. Ensaio sobre a interpretação/aplicação do direito, 4.a Edição,
São Paulo: Malheiros Editores, 2006, p. 53. Acrescento, apenas, que as regras são
concretizações dos princípios quando ambas as normas estejam contidas em um
mesmo documento legislativo, visto que a declaração de inconstitucionalidade de uma
regra legal por afronta a um princípio constitucional comprova a existência de normas
infralegais contraditórias às normas constitucionais, a elas hierarquicamente
superiores.
56 MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo, 19.a Edição, São
Paulo: Malheiros Editores, 2005, p. 888-889 – grifos nossos.
57 MIRANDA, Jorge. Manual de Direito Constitucional: inconstitucionalidade e garantia
da Constituição, 2.a Edição, Coimbra: Coimbra Editora, 2005, tomo VI, p. 18-19 (grifo
nosso).
58 Ibidem, p. 17, onde consta: “Também nós perfilhamos uma ‘axiologia transpositiva que
não está na disponibilidade do positivo constitucional ou de que não é titular sem
limites o poder constituinte’; e, por conseguinte, temos afirmado a existência de um
Direito natural, tal como, em cada época e em cada lugar, este se refrange na vida
social”.
59 Ou seja: “(a) ambas as normas devem ser jurídicas; (...) (b) ambas sejam vigentes e
pertencentes a um mesmo ordenamento jurídico; (...) (c) ambas devem emanar de
autoridades competentes num mesmo âmbito normativo, prescrevendo ordens ao
mesmo sujeito; (...) (d) ambas devem ter operadores opostos (uma permite, outra
obriga) e os seus conteúdos (atos e omissões) devem ser a negação interna um do
outro; (v) o sujeito, a quem se dirigem as normas conflitantes, deve ficar numa posição
insustentável, isto é, ensina-nos Tercio Sampaio Ferraz Jr., não deve ter meios para se
livrar dela, por faltarem critérios (...)” (DINIZ, Maria Helena. Conflito de normas, 8.a
Edição, São Paulo: Editora Saraiva, 2008, p. 21-24).
60 Cf. DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil Brasileiro. 1. Teoria Geral do Direito
Civil, 24.a Edição, São Paulo: Editora Saraiva, 2007, p. 85, 89, 92-95. Em outra obra,
afirma a autora: “A lógica do razoável ajusta-se à solução das antinomias, ante o
disposto no art. 5.o da nossa Lei de Introdução ao Código Civil [atualmente
denominada ‘Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro’], que prescreve que,
na aplicação da lei, deverá atender-se aos fins sociais a que se dirige e às exigências
do bem comum. O órgão judicante deverá verificar os resultados práticos que a
aplicação da norma produziria em determinado caso concreto, pois somente se esses
resultados concordarem com os fins e valores que inspiram a norma, em que se funda,
é que ela deverá ser aplicada. Assim, se produzir efeitos contraditórios às valorações e
fins conforme os quais se modela a ordem jurídica, a norma, então, não deverá ser
aplicada àquele caso. De modo que entre duas normas plenamente justificáveis deve-
se opinar pela que permitir a aplicação do direito com sabedoria, justiça, prudência,
eficiência e coerência com seus princípios. Na aplicação do direito deve haver
flexibilidade do entendimento razoável do preceito e não a uniformidade lógica do
raciocínio matemático. O art. 5.o da Lei de Introdução ao Código Civil, por fornecer
critérios hermenêuticos assinalando o modo de aplicação e entendimento das normas,
estendendo-se a toda a ordenação jurídica, permite corrigir o conflito que se apresenta
nas normas, adaptando a que for mais razoável à solução do caso concreto,
constituindo uma válvula de segurança que possibilita aliviar a antinomia e a revolta
dos fatos contra as normas” (DINIZ, Maria Helena. Conflito de normas, 8.a Edição, São
Paulo: Editora Saraiva, 2008, p. 57-58).
61 DINIZ, Maria Helena. Conflito de normas, 8.a Edição, São Paulo: Editora Saraiva,
2008, p. 56 e ss.
62 A dúvida surge pelo fato de a autora dizer que é a ideologia, a experiência ideológica
do momento atual que deve reger o magistrado na compreensão dos fatos e valores
sob análise no momento de optar pela que for mais favorável (DINIZ, Maria Helena.
Curso de Direito Civil Brasileiro. 1. Teoria Geral do Direito Civil, 24.a Edição, São
Paulo: Editora Saraiva, 2007, p. 94). Não poderei concordar com tal afirmação se com
isto a autora quis dizer que é o entendimento acriticamente majoritário que deve
prevalecer (diz-se acriticamente para o caso do entendimento ideológico ser adotado
apenas por ser majoritário) – pois o termo ideologia pode ser entendido como “sistema
de ideias (crenças, tradições, princípios e mitos) interdependentes, sustentadas por
um grupo social de qualquer natureza ou dimensão, as quais refletem, racionalizam e
defendem os próprios interesses e compromissos institucionais, sejam estes morais,
religiosos, políticos ou econômicos (...); conjunto de convicções filosóficas, sociais,
políticas etc. de um indivíduo ou grupo de indivíduos” (Dicionário Houaiss da língua
portuguesa, 2.a reimpressão com alterações, Rio de Janeiro: Editora Objetiva, 2007, p.
1565 – sem grifos no original). Afinal, o que deve ser levado em conta na interpretação
do Direito (e, portanto, na resolução de antinomias reais) são apenas os fins e valores
que inspiraram o texto normativo sob análise, não a ideologia dominante, tendo em
vista que esta, por vezes, é arbitrária e age por motivos puramente preconceituosos na
interpretação dos fatos e atos da vida. Somente um entendimento lógico-racional,
inerente à razoabilidade, deve pautar a interpretação jurídica, mesmo que
contrariamente ao entendimento majoritário. Mesmo porque é de todo descabido
pretender investigar a vontade do legislador, pois o texto normativo ganha autonomia
do legislador assim que aprovado, independendo sua interpretação da vontade
subjetiva daquele, sendo a interpretação dependente apenas da finalidade do texto
normativo, dos valores que pretendeu proteger (para um aprofundamento nesta crítica,
vide o capítulo 11, item 6.2. Irrelevância da vontade subjetiva do legislador.
Prevalência da ratio legis sobre a mens legislatoris).
63 Que são princípios naturalmente superiores às regras, nos termos já expostos.
64 Note-se, contudo, que isso ocorre apenas no conflito entre ditos princípios
fundamentais e regras. Na hipótese de colidência com outros direitos fundamentais,
estar-se-á diante de um conflito entre normas-princípio de mesma hierarquia, o que só
é solucionável pela aplicação do princípio instrumental da proporcionalidade, por meio
de seu subprincípio da proporcionalidade em sentido estrito (ponderação).
65 Consignado, sempre, o entendimento deste autor contrariamente à existência de
“proibições implícitas” em Direito, por força do art. 5.o, II, da CF/1988.
66 Nesse sentido, afigura-se ilógica a posição do Supremo Tribunal Federal no
julgamento da ADIn 815-3/DF, quando disse que as cláusulas pétreas não seriam
hierarquicamente superiores às demais disposições constitucionais visto que
implicariam meramente a proibição de sua abolição pelo Constituinte Derivado. Ora, as
cláusulas pétreas foram alçadas a núcleo intangível da Constituição justamente por
serem mais relevantes que as cláusulas assim não consideradas, visto que constituem
(as cláusulas pétreas) o núcleo essencial, intangível, logo hierarquicamente superior
da Constituição, aspecto este não considerado por aquela decisão (não considerado
porque não refutado). Assim, errou o Supremo Tribunal Federal neste ponto.
67 DIAS, Maria Berenice. União homossexual: O Preconceito & a Justiça, 3.a Edição,
Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006, p. 79-83 – parafraseei. É de se notar,
contudo, que a tese primária de Berenice consiste na aplicação da analogia, de forma
a evitar a antinomia real por ela enfrentada, conforme inclusive citação de sua obra
constante de item anterior deste trabalho.
Capítulo 8

UNIÕES HOMOAFETIVAS E DIGNIDADE DA


PESSOA HUMANA: CASAMENTO CIVIL E
UNIÃO ESTÁVEL

“Com efeito, é por meio da dignidade da pessoa humana, alicerce


concreto do direito fundamental à liberdade, neste incluso o direito
subjetivo à liberdade de orientação sexual, que a nova concepção
de família será gerada.” –
Luiz Edson Fachin1 (Professor Titular de Direito
Civil da Universidade Federal do Paraná).

1. DA DIGNIDADE HUMANA E AS UNIÕES HOMOAFETIVAS.


AFRONTA À DIGNIDADE HUMANA DE HOMOSSEXUAIS
PELO NÃO RECONHECIMENTO DO CASAMENTO CIVIL
HOMOAFETIVO E DA UNIÃO ESTÁVEL HOMOAFETIVA.
STF, ADPF 132 E ADI 4.277
Já foi exposto que o princípio da dignidade humana garante a todos o
direito à felicidade, sempre de acordo com suas opções e características
(ressalte-se, novamente, que a sexualidade não constitui escolha, mas mera
característica humana). Sob esse prisma, percebe-se que todas as pessoas
humanas devem ter exatamente os mesmos direitos, só se admitindo
discriminações jurídicas quando pautadas por uma motivação lógico-
racional que lhes justifique, como sucedâneo do princípio da igualdade, que
configura a única forma válida de se relativizar a dignidade de uns em
relação à de outros.
Por outro lado, ao não se admitir a realização do casamento civil e ao
não se reconhecer a união estável entre pessoas do mesmo sexo, está quem
o faz a afirmar que a união homoafetiva não possuiria o mesmo valor de
dignidade que a união heteroafetiva. Afinal, é inegável que o casamento
civil sempre foi colocado ao longo dos séculos como a consagração máxima
da união amorosa entre duas pessoas, no sentido de dar uma condição de
legitimidade a essa união afetiva, tanto que o Código Civil de 1916 só
considerava como legítima a família consagrada pelo casamento civil,
assim como legítimos somente eram os filhos que fossem oriundos do casal
que tivesse contraído o matrimônio entre si. Há um verdadeiro arquétipo
social construído em torno da consagração da união amorosa pelo
casamento civil, pois desde pequenos ouvimos direta e subliminarmente
que só seremos felizes quando nos casarmos com a pessoa que amamos.
Assim, quando o ordenamento jurídico proíbe uma união amorosa ou,
mesmo que não a proíba, não lhe garante os mesmos direitos conferidos a
outra2, está a dizer que essa união proibida/tolhida de direitos não é tão
digna quanto a outra ou, em outras palavras, que se encontra em inferior
condição de dignidade que aquela à qual se garantem uma série de direitos a
ela vedados.
No caso das uniões homoafetivas, em se aderindo à tese da “proibição
implícita” do casamento civil e da união estável a casais homoafetivos,
estar-se-á vedando a eles, de maneira implícita, os direitos e a dignidade
conferidos às uniões heteroafetivas pela não extensão dos benefícios do
Direito das Famílias. Agora, cabe indagar: qual motivo justifica tal
discriminação? E, principalmente: é este motivo uma decorrência lógico-
racional do critério desigualador erigido?
Como o leitor pode perceber, a questão volta ao aspecto material da
isonomia, que é o único critério válido que pode ser usado para se
relativizar a dignidade de uns em relação à de outros, tendo em vista que a
arbitrariedade de tratamento não é só vedada pela isonomia, mas também
pela dignidade da pessoa humana. Afinal, não há como se cogitar de uma
vida digna quando a pessoa é discriminada negativamente de forma
arbitrária (preconceituosa)3.
Portanto, o que deve ser considerado no presente caso é que as uniões
homoafetivas são formadas pelo mesmo valor existente nas uniões
heteroafetivas, que é o amor romântico que vise a uma comunhão plena de
vida e interesses, de forma pública, contínua e duradoura, amor este que é
o elemento formador da família conjugal contemporânea. Assim, a partir do
momento em que as uniões amorosas formadas por pessoas do mesmo sexo
têm em si o valor protegido pelas leis do casamento civil e da união estável,
nota-se que são elas dignas de proteção por ditas leis, da mesma forma que
as uniões amorosas formadas por pessoas de sexos diversos4.
Já foi utilizada toda essa fundamentação quando colocado o problema
sob o prisma do princípio da igualdade. Todavia, dita questão se repete
quando analisada sob a ótica da dignidade da pessoa humana, uma vez que:
(a) todas as pessoas humanas são igualmente dignas, não por quaisquer
atitudes ou características suas, mas pelo simples fato de serem pessoas
humanas; e (a.1) em se tratando de relativização da dignidade humana de
uns quando em confronto com a de outros, tem-se que essa relativização
somente pode ser aceitável quando utilizado o critério estabelecido pelo
preceito isonômico, ou seja, pela existência de um motivo lógico-racional
entre o critério desigualador erigido e a discriminação efetivamente
pretendida, o que não ocorre no caso de discriminação negativa das uniões
homoafetivas em relação às heteroafetivas, para que não se caia em
arbitrariedade/despotismo daquele que decide por esta.
Analisem-se agora os dois pontos que se acabou de expor. Em primeiro
lugar, a pessoa humana é considerada merecedora de uma dignidade
especial com relação aos demais seres vivos, pelas qualidades que a
diferenciam deles. Ou seja, é merecedora de proteção especial de sua
dignidade pelo simples fato de ser uma pessoa humana. Nesse sentido, tem-
se que tanto homossexuais como heterossexuais são pessoas humanas
dotadas das mesmas capacidades potenciais, razão pela qual merecem que
lhes seja garantido o mesmo direito ao respeito de sua dignidade.
Outrossim, a isonomia é, em verdade, uma exteriorização da proteção que
se confere à dignidade humana, ainda que esta última possua um núcleo de
dignidade distinto daquele existente nos demais direitos fundamentais
(assim como todos os direitos alçados à condição de fundamentais).
Dessa forma, uma afronta à isonomia configura, simultaneamente, uma
afronta à dignidade da pessoa humana – não por terem elas o mesmo núcleo
essencial a ser protegido, mas pelo fato de ser a isonomia uma
exteriorização da dignidade humana, uma vez que seu núcleo essencial é o
de garantir que todos sejam tratados igualmente, a menos que haja pelo
menos um motivo logicamente racional que justifique o tratamento
diferenciado com base no critério diferenciador erigido, ao passo que a
dignidade humana tem como núcleo essencial garantir que todos tenham
sua dignidade integralmente respeitada, o que, conforme se percebe, é algo
muito mais amplo que o defendido pela isonomia e todos os demais direitos
fundamentais5.
Assim, a colocação das uniões homoafetivas em condição de inferior
dignidade em relação às uniões heteroafetivas configura afronta ao
princípio da dignidade da pessoa humana, daí a sua inconstitucionalidade6.
Veja-se, a esse respeito, a posição da Suprema Corte do Estado de
Ontário (Canadá)7, ao declarar a inconstitucionalidade do não
reconhecimento do casamento civil homoafetivo:

(199) Argumenta-se que pela exclusão de pessoas gays e lésbicas


do casamento há uma negativa da sua oportunidade de participação
igualitária em nossa sociedade. Ou seja, sustenta-se que há um direito
fundamental ao casamento reconhecido na jurisprudência canadense,
estadunidense e internacional. Eu aceito totalmente esse argumento e
concordo que:
... a decisão de se casar ou não se casar pode, realmente, ser uma
das decisões mais pessoais que um indivíduo tomará no curso de sua
vida. Ela pode ser tão fundamental quanto importante e pessoal como
uma escolha referente, por exemplo, à cidadania ou mesmo à religião.
[Miron v. Trudel, 1995, CanLII 97 (S.C.C.) (...)]
(200) O primeiro fator contextual que eu preciso considerar
através dessa análise é a decisão sobre a existência na sociedade
canadense de uma ‘desvantagem, vulnerabilidade, estereotipização ou
preconceito preexistente’ experimentada por pessoas gays e lésbicas.
Na minha opinião, essa questão tem poucos argumentos contrários, ou
mesmo nenhum – ela seguramente existe.
(201) Nossas cortes têm frequentemente reconhecido que os
relacionamentos formados por pessoas do mesmo sexo não têm
recebido a mesma preocupação, o mesmo respeito e a mesma
consideração. Eu concordo com a visão segundo a qual ‘a negativa de
casamento igualitário pode – e sem dúvida o faz – refletir e reforçar os
existentes entendimentos incorretos sobre o mérito, as capacidades e o
valor dos relacionamentos entre lésbicas e gays na sociedade
canadense. Ademais, eu concordo que, dada a sua ocorrência, ela
deve ter um efeito que resulta em maior estigmatização’.
(202) A exclusão de gays e lésbicas do casamento desconsidera
as necessidades, capacidades e circunstâncias de companheiros(as) do
mesmo sexo e de seus filhos. Ela declara toda uma classe de pessoas
como não merecedoras de reconhecimento e apoio da sanção estatal
aos seus casamentos. Em suma, o casamento – como atualmente
definido – falha na harmonização ou na consideração das questões de
gays e lésbicas. (grifos nossos)

Por outro lado, a dignidade humana de homossexuais também resta


afrontada pelo não reconhecimento de seu status jurídico-familiar, uma vez
que isto é uma forma de instrumentalizar as pessoas para se atingir a
finalidade pretendida pelo Estado8, a saber: o projeto de vida por ele tido
como correto (heteroafetivo), em clara afronta à liberdade, à autonomia
moral de homossexuais conduzirem sua vida da forma que lhes faça mais
sentido (mesmo porque não podem simplesmente “se transformar” em
heterossexuais). Isso ocorre porque a não concessão da isonomia às relações
homoafetivas visa a demonstrar que o Estado somente valoriza as uniões
heteroafetivas, razão pela qual a isonomia e igual dignidade do
reconhecimento são medidas de rigor para se evitar afronta ao princípio da
dignidade da pessoa humana neste caso.
É a posição defendida na petição inicial da ADPF 132 e da ADI 4.277,
que afirmaram (parafraseando aqui a primeira) que afrontada a dignidade
humana de homossexuais pelo não reconhecimento da união estável
homoafetiva sob o fundamento de que ninguém pode ser tratado como
meio, devendo cada indivíduo ser tratado como um fim em si mesmo, ao
mesmo tempo em que todos os projetos pessoais e coletivos de vida,
quando razoáveis, são dignos de igual respeito e consideração e, portanto,
merecedores de igual reconhecimento, ao passo que o não reconhecimento
das uniões homoafetivas viola esses dois núcleos da dignidade humana
porque (iii.1) tal exclusão funcionaliza as relações afetivas a um projeto
determinado de sociedade que, embora majoritário, não é juridicamente
obrigatório, tratando o indivíduo como um meio para a realização desse
projeto, só sendo reconhecido aquele que se molda ao papel designado pela
tradição, no caso o papel de membro de família heteroafetiva destinada à
procriação; e (iii.2) a discriminação das uniões homoafetivas equivale a não
atribuir igual respeito a uma identidade individual (homoafetiva) ao afirmar
que esse determinado estilo de vida não mereceria ser tratado com a mesma
dignidade e consideração dos demais, porque o não reconhecimento se
converte em desconforto, levando muitos indivíduos a negarem sua própria
identidade à custa de grande sofrimento pessoal, distinção esta que perpetua
a dramática exclusão e estigmatização que homossexuais têm sofrido ao
longo da história, caracterizando verdadeira política oficial de
discriminação
É essa também a posição de Daniel Sarmento9, para quem “subjacente
à negação ao reconhecimento jurídico da união entre pessoas do mesmo
sexo, seja sob a forma do casamento, seja a da união estável, existe o mal-
disfarçado propósito de subordinar as escolhas existenciais do indivíduo,
no que tange aos seus relacionamentos afetivos mais duradouros e
profundos, a um determinado modelo tradicional de sociedade e de família.
Trata-se a pessoa humana como um meio para a garantia de fins que ela
não partilha, nem pode ser obrigada a compartilhar: a manutenção de
valores sociais tradicionais e o engessamento de uma sociedade estruturada
sobre famílias heterossexuais, dedicadas basicamente à reprodução e à
criação da prole”. Ademais, aponta o autor que, em razão da negativa de
direitos relativos a condições básicas de existência oriunda do não
reconhecimento do tatus jurídico-familiar das uniões homoafetivas (como
pensão alimentícia, previdenciária etc.), tem-se que constatar que “privar os
membros de uniões afetivas destes e de outros direitos, atenta contra a sua
dignidade, expondo-os a situações de risco social injustificado, em que
pode haver comprometimento às suas condições materiais mínimas de
subsistência”, além do que este não reconhecimento estatal das uniões
homoafetivas tem “um significado muito claro: simboliza a posição do
Estado de que a afetividade dos homossexuais não tem valor e não merece
respeito social”, o que é inadmissível porque “a desvalorização social das
características típicas e do modo de vida dos integrantes de determinados
grupos, como os homossexuais, tende a gerar nos seus membros conflitos
psíquicos sérios, infligindo dor, angústia e crise na sua própria identidade”,
sendo isso inaceitável porque “ao negar reconhecimento à união entre
pessoas do mesmo sexo, o Estado atenta profundamente contra a identidade
dos homossexuais, alimentando e legitimando uma cultura homofóbica de
sociedade”, pois “De fato, o que caracteriza o homossexual é exatamente o
fato de que a sua afetividade e sexualidade são dirigidas às pessoas do
mesmo sexo. Assim, rejeitar o valor das relações amorosas entre iguais é o
mesmo que desprezar um traço essencial da sua personalidade”.
Perfeitas as palavras do autor. Conforme mencionado, negar o
reconhecimento do status jurídico-familiar das uniões homoafetivas implica
pura e simplesmente na afirmação estatal de que as pessoas deveriam adotar
o projeto de vida heteroafetivo, por ele referendado, para que obtenham
pleno reconhecimento estatal, o que acaba por instrumentalizar a pessoa
humana para que se consiga atingir uma finalidade, a saber, a prevalência
do modelo familiar heteroafetivo. Isso é inaceitável em um Estado
Democrático e Social de Direito pautado pelo pluralismo social por
significar um profundo desrespeito àquelas pessoas que não são
heterossexuais e, portanto, não têm como formar vínculos familiares
heteroafetivos sem um profundo sofrimento subjetivo de sua parte, visto
que um homossexual não sente atração erótico-afetiva por pessoas de sexo
oposto e, portanto, não deseja se relacionar de forma conjugal com uma
pessoa do outro sexo, mas apenas com uma pessoa do mesmo sexo.
Somente o medo do preconceito social faz com que homossexuais
mantenham uma relação conjugal com uma pessoa de sexo diverso, mesmo
sem sentirem um desejo romântico genuíno por tal pessoa, o que demonstra
a absoluta arbitrariedade de quem deseja que homossexuais se relacionem
de forma conjugal com pessoas de sexo diverso. Por outro lado, é
inaceitável a preferência estatal pelo modelo familiar heteroafetivo pela
profunda arbitrariedade de tal posição, que implicaria o estabelecimento de
preferência entre os brasileiros heterossexuais relativamente aos brasileiros
homossexuais pela preferência atribuída à família conjugal heteroafetiva
sobre a família conjugal homoafetiva, o que viola o art. 19, inc. III, da
CF/1988.
Nesse sentido, o voto do Ministro Marco Aurélio neste histórico
julgamento, o qual, após afirmar a vedação de instrumentalizações (aspecto
negativo) e a proteção da busca da realização do projeto de vida (aspecto
positivo) como integrantes do princípio da dignidade da pessoa humana10,
afirmou o seguinte: “Extraio do núcleo do princípio da dignidade da pessoa
humana a obrigação de reconhecimento das uniões homoafetivas. Inexiste
vedação constitucional à aplicação do regime da união estável a essas
uniões, não se podendo vislumbrar silêncio eloquente em virtude da redação
do § 3.º do artigo 226. Há, isso sim, a obrigação constitucional de não
discriminação e de respeito à dignidade humana, às diferenças, à liberdade
de orientação sexual, o que impõe o tratamento equânime entre
homossexuais e heterossexuais. Nesse contexto, a literalidade do artigo
1.723 do Código Civil está muito aquém do que consagrado pela Carta de
1988. Não retrata fielmente o propósito constitucional de reconhecer
direitos a grupos minoritários. Por isso, Senhor Presidente, julgo procedente
o pedido formulado para conferir interpretação conforme à Constituição ao
artigo 1.723 do Código Civil, veiculado pela Lei 10.406/2002, a fim de
declarar a aplicabilidade do regime da união estável às uniões entre pessoas
de sexo igual”.
Valem, ainda, as palavras do Ministro Celso de Mello no referido
julgamento relativamente ao direito fundamental implícito à busca da
felicidade, implícito à dignidade da pessoa humana, diante da compreensão
de que o governo de uma sociedade racional existe para proteger o direito
da pessoa de ir em busca da felicidade ou bem-estar11, no sentido de que, “o
postulado constitucional da busca da felicidade, que decorre, por
implicitude, do núcleo de que se irradia o princípio da dignidade da pessoa
humana, assume papel de extremo relevo no processo de afirmação, gozo e
expansão dos direitos fundamentais, qualificando-se em função de sua
própria teleologia, como fator de neutralização de práticas ou de omissões
lesivas cuja ocorrência possa comprometer, afetar ou, até mesmo, esterilizar
direitos e franquias individuais”, em que parece “irrecusável, desse modo,
considerado o objetivo fundamental da República de ‘promover o bem de
todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras
formas de discriminação’ (CF, art. 3.º, IV), que o reconhecimento do direito
à busca da felicidade, enquanto ideia-força que emana, diretamente, do
postulado constitucional da dignidade da pessoa humana, autoriza, presente
o contexto em exame, o rompimento dos obstáculos que impedem a
pretendida qualificação da união civil homossexual como entidade familiar”
(considerando especialmente a ausência de limites semânticos no texto do
art. 226, § 3.º, da CF/1988 que impedissem tal exegese inclusive, consoante
demonstrado pelo Ministro em momento anterior de seu voto).
Cite-se, ainda, a precisa lição de Luís Roberto Barroso12 acerca do
tema:

A análise do casamento entre pessoas do mesmo sexo à luz da


ideia de dignidade humana apresentada neste artigo é muito menos
complexa do que uma tal análise relativamente ao aborto. Realmente,
no nível do valor intrínseco, há um direito fundamental em favor da
legalização do casamento entre pessoas do mesmo sexo: a igualdade
perante a lei. Negar aos casais do mesmo sexo o acesso ao casamento
– e a todas as consequências sociais e legais dele decorrentes –
representa uma forma de discriminação por orientação sexual. Não há
nenhum argumento relativo ao valor intrínseco [do ser humano] que
poderia ser razoavelmente empregado para se contrapor ao direito dos
homossexuais à igual proteção e respeito. Quanto à autonomia, o
casamento entre pessoas do mesmo sexo envolve dois adultos em
consenso que escolhem, sem coerção ou manipulação, como exercitar
o seu afeto e sexualidade. Não há violação à autonomia de nenhuma
outra pessoa nem prejuízo a quem quer que seja que pudesse justificar
uma proibição. Finalmente, no nível do valor comunitário, não se pode
deixar de reconhecer que números segmentos da sociedade civil, e
particularmente grupos religiosos, desaprovam o comportamento
homossexual e o casamento entre pessoas do mesmo sexo. Mas negar
o direito de casais gays de se casarem seria uma restrição não
autorizada à sua autonomia em prol de um impróprio moralismo ou da
tirania da maioria. Primeiramente, há um direito fundamental
envolvido, seja o direito à igualdade ou à privacidade (liberdade de
escolha). Se esse não fosse o caso, o fato inegável é que não há
nenhum prejuízo a terceiros ou a quem quer que seja em questão aqui.
E finalmente, não se pode mais encontrar um forte nível de consenso
social contra o casamento entre pessoas do mesmo sexo em um mundo
aonde, pelos menos na maioria das sociedades ocidentais, a
homossexualidade é largamente aceita. Claro, qualquer pessoa tem o
direito de advogar contra o casamento entre pessoas do mesmo sexo e
tentar convencer as pessoas a se absterem de dele participar. Mas isso é
diferente de pedir ao Estado a que não reconheça um legítimo
exercício de autonomia pessoal por cidadãos livres e iguais.

Assim, é evidente que a negativa do casamento civil homoafetivo


(assim como da união estável homoafetiva) implica na colocação das uniões
amorosas formadas por pessoas do mesmo sexo em uma posição de menor
dignidade do que aquela conferida às uniões amorosas formadas por
pessoas de sexos diversos por motivos arbitrários, irracionais, razão pela
qual dita desconsideração da dignidade homoafetiva é inconstitucional por
afronta ao princípio da dignidade da pessoa humana constitucionalmente
consagrado.

2. DA IMPORTÂNCIA DO TERMO “CASAMENTO”


Demonstrada, em capítulo anterior, a absoluta necessidade de se
estender o casamento civil às uniões homoafetivas em virtude de ser ele o
único regime jurídico que confere às uniões amorosas a totalidade da
proteção do Direito das Famílias, fundamentação relativa à isonomia, passo
agora a demonstrar a necessidade de dito termo para fins da proteção da
dignidade humana dos casais homoafetivos.
Como já mencionado, os opositores do casamento civil homoafetivo
reivindicam uma suposta “exclusividade” deste termo para as uniões
heteroafetivas, por entenderem que, historicamente, se tem entendido ele
como exclusivo das uniões entre pessoas de sexos diversos. No máximo,
chegam a afirmar que devem elas ser regulamentadas de forma diversa pelo
Legislativo, deixando-se o “casamento” apenas para os casais
heteroafetivos. Contudo, essas colocações são inaceitáveis.
Em primeiro lugar, cumpre relembrar que tais afirmações são
completamente arbitrárias. Aparentemente, seus defensores pregam que o
simples fato de se ter agido de forma preconceituosa por milênios
justificaria a continuidade de dita discriminação, o que obviamente não
pode ser aceito como válido. Afinal, após a institucionalização da
homofobia pela Igreja Católica, as pessoas passaram a ter a errônea
compreensão de que a homossexualidade consistiria em um “pecado” ou,
posteriormente, em uma “doença”, razão pela qual as uniões homoafetivas
não receberam a mesma dignidade conferida às uniões heteroafetivas.
Todavia, esse entendimento encontra-se superado, tendo a ciência
médica demonstrado que a homossexualidade não constitui doença, desvio
psicológico, perversão nem nada do gênero, sendo assim uma das livres
manifestações da sexualidade humana ao lado da heterossexualidade, além
do fato de vivermos em um Estado Laico, no qual fundamentações
religiosas não podem justificar discriminações jurídicas e/ou políticas.
Assim, fica claro que o fundamento que supostamente justificava a
segregação dos casais homoafetivos no passado não existe mais, razão pela
qual o simples fato de “sempre ter sido assim” não pode servir de
justificação válida para a continuidade desta discriminação.
Atualmente, não se questiona seriamente o fato de que as uniões
homoafetivas são baseadas no mesmo amor existente nas uniões
heteroafetivas, a saber: o amor romântico que vise a uma comunhão plena
de vida e interesses, de forma pública, contínua e duradoura, que é o
elemento formador da família conjugal contemporânea (amor familiar).
Isso, per si, justifica a concessão dos mesmos direitos e, especialmente, da
mesma dignidade conferida às uniões heteroafetivas.
Ademais, é de se notar que o casamento civil é tido pela sociedade
como a consagração máxima de uma união amorosa, praticamente como
um selo de qualidade e de respeitabilidade da referida união. Desde crianças
ouvimos que só seremos felizes se encontrarmos nossa “alma gêmea”, nos
casarmos e tivermos filhos (próprios ou adotivos). Esse é o ideal de família
existente em nossa sociedade, sendo que somos estimulados a atingi-lo
desde nossa infância.
Pois bem, homossexuais também desejam essa família ideal, tendo em
vista terem crescido ouvindo esse mesmo ideal de família. Há um
verdadeiro arquétipo social voltado para o casamento civil, razão pela qual
a sua negativa aos casais homoafetivos implica em afronta à dignidade
humana deles. A única diferença é que querem essa família ideal com um
companheiro do mesmo sexo.

Como discutido ao longo deste livro, há o sempre importante uso


geral [currency] da palavra casamento. Quando se trata do
entendimento das pessoas sobre o que significa estar em um casal –
apaixonado, comprometido e responsável um pelo outro – as palavras
união civil simplesmente não podem ser comparadas, mesmo se eles
de alguma forma englobarem todos os direitos tangíveis e sistêmicos e
as responsabilidade conferidas pelo casamento. Como dito por Beth
Robinson, que sustentou o caso de Vermont perante a suprema corte
estadual, “ninguém escreve músicas sobre” uniões civis. Enquanto
todo mundo sabe o que você quer dizer quando fala “Nós nos
casamos”, a união civil não tem sequer um verbo. Willian Safire, que
se descreve como um conservador liberal, fez um bom trabalho ao
descrever essa distinção na sua coluna no [jornal] New York Times: “O
conservador em mim imagina: se direitos iguais podem ser garantidos
por uma união civil, porque estão alguns gays pressionando tanto pela
palavra ‘casamento?’”, escreveu em dezembro de 2003. “A resposta é
que a antiga palavra traz uma poderosa mensagem. A união civil
denota tolerância à homossexualidade, com o seu reconhecimento dos
direitos civis de um indivíduo; mas o casamento denota a total
aprovação social à homossexualidade, com a reversão de prévios
julgamentos morais”.13

Veja-se, nesse sentido, a colocação feita pela Suprema Corte do Estado


de Massachussets (EUA)14, quando julgou inconstitucional o não
reconhecimento do casamento civil homoafetivo:

Sem o direito ao casamento – ou mais adequadamente, o direito à


escolha de com quem se casar – a pessoa é excluída de uma totalidade
de experiências humanas e negada a total proteção das leis para o
‘declarado comprometimento a uma relação humana íntima e
duradoura’. Baker v. State (...). ‘Nossas leis assiduamente protegem o
direito individual ao casamento contra a indevida incursão
governamental porque o casamento civil é central nas vidas dos
indivíduos e ao bem-estar da comunidade’. Zablocki v. Redhall (...)
Perez v. Sharp (...) (‘Não pode haver proibição ao casamento a não
ser por um importante objetivo social e por meios razoáveis’).

Outrossim, são esclarecedoras as colocações da Suprema Corte de


Ontário (Canadá)15, também ao julgar inconstitucional o não
reconhecimento do casamento civil homoafetivo:

(206) O último fator contextual a ser analisado foca-se no exame


da natureza e da finalidade do interesse afetado pela lei impugnada.
Isto é, quão duramente a lei do casamento afeta gays e lésbicas pela
exclusão destes de seu regime jurídico? Essa análise inclui um exame
da natureza fundamental e do alcance da finalidade do casamento, em
contrapartida ao impacto discriminatório da negativa de casamento
igualitário aos Requerentes. Como notado no caso Law:
O calibre discriminatório do tratamento diferencial não pode ser
totalmente apreciado sem a avaliação não apenas do significado
econômico, mas também do significado constitucional e social
atribuído ao interesse ou aos interesses afetados de forma adversa
pela legislação em questão. Ademais, é relevante considerar se a
distinção restringe o acesso a uma instituição social fundamental, ou
afeta “um aspecto básico da total participação da sociedade
canadense”, ou “constitui um completo não reconhecimento de um
grupo em particular” [Law (...); Egan (...)].
(207) Como apontado previamente, parece ser universalmente
aceito que a liberdade de se casar com aquele a quem se escolhe e o
direito de ter aquele relacionamento reconhecido pela sociedade é de
fundamental importância na nossa sociedade. Como comparação, no
caso M. v. H., o Juiz Cory reconheceu tanto os aspectos tangíveis
quanto o impacto simbólico da negativa de acesso às proteções do
sistema de auxílio esponsal:
O significado social do benefício conferido pela legislação não
pode ser demasiadamente enfatizado. “A exclusão dos parceiros do
mesmo sexo dos benefícios da legislação do casamento civil promove
a visão que M., e indivíduos em relacionamentos formados por
pessoas do mesmo sexo em geral, seriam menos merecedoras de
reconhecimento e proteção. Isso implica que eles são julgados como
incapazes na formação de relações íntimas de interdependência
econômica quando comparadas a casais formados por pessoas de sexos
diversos, sem considerar as suas efetivas circunstâncias”. Como o
interveniente EGALE apontou, dita exclusão perpetua as desvantagens
sofridas pelos indivíduos nos relacionamentos formados por pessoas
do mesmo sexo e contribui para a erradicação da sua existência. (...)
(208) Eu imagino que poucos poderiam, ou iriam, discordar da
noção de que o acesso igualitário ao casamento é pelo menos
equiparável com apoio esponsal, e talvez ainda mais fundamental e
importante do que ele [obs.: trata-se de outra legislação que disciplina
uniões amorosas não matrimonializadas]. Há benefícios distintos e
profundos no casamento, direitos e obrigações entre alguns outros
expedientes. Tais métodos alternativos simplesmente não têm o mesmo
sentido ou significado como o acesso a eles pelo direito de entrada em
uma basilar instituição social e cultural.
(209) A título ilustrativo, a Juíza L’Heureux-Dubé, em sua
opinião divergente no caso Egan, entendeu que os postulantes do
mesmo sexo daquele caso não sofreram preconceito econômico na sua
distinção em relação à legislação da Seguridade da Terceira Idade.
Contudo, ela entendeu que, por causa da exclusão dos postulantes
“como um casal” daqueles em relacionamentos “análogos ao
casamento” – isso implicava em um interesse merecedor da proteção
da Carta de Direitos. Ela expressou dito interesse como sendo:
… “uma faceta importante de total e igual admissão na sociedade
canadense. Dada a posição marginal de homossexuais na sociedade, a
mensagem que flui quase inevitavelmente da exclusão dos casais
formados por pessoas do mesmo sexo desta importante instituição
social é essencialmente que a sociedade considera tais
relacionamentos como menos merecedores de respeito, preocupação e
consideração do que os relacionamentos envolvendo membros de
sexos opostos.” Esse interesse fundamental é consequentemente
afetado de forma severa e palpável pela impugnada distinção.
(210) Se a conclusão da Juíza L’Heureux-Dubé no caso Egan é
válida nas circunstâncias daquele caso – e eu concordo que seja –
então deve ser mais do que igualmente correto para a instituição social
do casamento. Eu consequentemente entendo que a negativa do
casamento igualitário viola a seção 15 da Carta de Direitos.
Especificamente, eu entendo que ela implica uma distinção substantiva
que nega o igual benefício da lei, com base em sexo e orientação
sexual, de uma maneira que ofende a dignidade de gays, lésbicas e
bissexuais.

O que faz com que haja oposição à extensão da palavra casamento para
casais homoafetivos decorre da noção de que casais homoafetivos seriam
inferiores/menos dignos do que os casais heteroafetivos, o que denota uma
descabida noção de superioridade de heterossexuais sobre homossexuais,
por força do heterossexismo social. Ou seja, relegar as uniões homoafetivas
a uniões civis configura puro e simples racismo (entendido como toda
ideologia segregacionista que pregue a superioridade/inferioridade de um
grupo relativamente a outro, entendimento este esposado também por
Guilherme de Souza Nucci16, com base em precedente do Supremo
Tribunal Federal (STF, HC 82.424/RS). É o que pensa a jurista
estadunidense Barbara J. Cox17, para quem:

O heterossexismo inerente a relegar os casais do mesmo sexo


apenas às uniões civis é uma reminiscência do racismo que relegou os
afro-americanos em vagões de trens separados e em escolas separadas,
e do sexismo que relegou mulheres a escolas separadas. Nossas
experiências sociais com o “separados, mas iguais” têm repetidamente
mostrado que dita separação nunca pode resultar em igualdade porque
a separação é pautada na crença da distância necessária a ser mantida
entre aqueles que ocupam a posição privilegiada e aqueles colocados
na posição inferior.

Sobre o tema do chamado casamento inter-racial, a Suprema Corte dos


EUA declarou a inconstitucionalidade das leis que o proibiam no
julgamento do caso Loving v. Virginia, por reconhecer que tal restrição se
pautava na premissa da superioridade da “raça” branca sobre as demais
“raças” da humanidade, o que ficou evidente porque o que se vedava era o
casamento de pessoas da “raça” branca com pessoas de outras “raças”, mas
não destas entre si. Logo, temos aqui uma analogia perfeita, pois da mesma
forma que a proibição do chamado casamento inter-racial se pautava na
premissa da superioridade de brancos relativamente às pessoas de outras
“raças”, relegar as uniões homoafetivas a uniões civis e não lhes permitir o
acesso ao casamento civil decorre unicamente da noção de que as uniões
heteroafetivas seriam superiores e, portanto, detentoras de maior dignidade
quando comparadas às uniões homoafetivas, em um raciocínio racista
totalmente incompatível com a dignidade da pessoa humana
constitucionalmente consagrada.
Dessa forma, resta evidente que a dignidade dos casais homoafetivos é
afrontada quando não se permite que eles se casem civilmente, em virtude
da importância cultural do casamento (civil), visto que nossa sociedade
entende-o como legitimador das uniões amorosas, razão pela qual é
inconstitucional a sua proibição por afronta à dignidade humana dos pares
homoafetivos.

2.1 Do casamento civil como um direito fundamental implícito


Ante as considerações dos tópicos anteriores, no sentido da especial
dignidade conferida ao casamento civil em relação às demais espécies de
uniões amorosas, verifica-se que este é um direito fundamental implícito
oriundo do princípio da dignidade da pessoa humana.
A dignidade da pessoa humana é o pilar do ordenamento constitucional
brasileiro, sendo o elemento fundante dos direitos fundamentais, seja de
forma direta ou indireta. O Constituinte os considera fundamentais porque
configuram diferentes exteriorizações da dignidade humana, no sentido de
que uma pessoa natural só poderá ter uma vida digna e feliz se tiver
respeitados os direitos fundamentais.
Nesse sentido, independente da possibilidade de se sustentar que o
reconhecimento de direitos fundamentais implícitos é inerente ao nosso
sistema constitucional (com o que concordo), visto que implícitos são os
direitos já existentes, mas não expressos, é de se notar que o art. 5.º, § 2.º,
da CF/1988 reconheceu expressamente tal possibilidade, ao enunciar que
“Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros
decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados
internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte”.
Assim, considerando que o princípio constitucional da dignidade da
pessoa humana constitui um dos fundamentos da República Federativa do
Brasil, então é evidente que, por força do art. 5.º, § 2.º, da Carta Magna,
podem ser extraídos direitos fundamentais implícitos oriundos da dignidade
humana.
Nessa linha de raciocínio, considerando que o princípio da dignidade
da pessoa humana garante a todos o direito à felicidade e a uma vida digna
e considerando que, em virtude do arquétipo social existente em torno do
casamento civil, as pessoas que querem se casar somente serão felizes se
puderem se casar civilmente, então verifica-se que o casamento civil é um
direito fundamental implícito decorrente do princípio da dignidade da
pessoa humana. Afinal, como bem apontado pela Suprema Corte dos EUA
no caso Loving vs. Virginia (1967), a liberdade de casar tem sido
historicamente reconhecida como um dos direitos vitais mais essenciais
para a busca da felicidade entre as pessoas, (tido por muitos como)
fundamental à própria existência e sobrevivência, donde declarou
inconstitucional a restrição legal que impedia a pessoa de escolher com
quem ela desejava se casar, no contexto do casamento inter-racial – sendo a
lógica da decisão plenamente aplicável ao tema do casamento civil
homoafetivo, pois da mesma forma que a proibição do casamento inter-
racial visava, implicitamente, manter um sistema de supremacia de brancos
sobre negros, a negativa do casamento civil homoafetivo implicitamente
acaba por consagrar um heterossexismo social que prega a união
heteroafetiva mais digna que a união homoafetiva, de sorte a garantir
apenas à primeira o direito de acesso ao casamento civil por ser este tido
como a consagração máxima da união entre duas pessoas, em exclusão que
se pauta em profundos preconceitos, por irracionalmente negar igual
dignidade da união homoafetiva relativamente à união heteroafetiva).
Ressalte-se que o caráter de direito fundamental do casamento civil foi
reiterado pela Suprema Corte dos EUA nos casos Zablocki vs. Redhail
(1978, que declarou inconstitucional a negativa de casamento civil a quem
não comprovasse pagamento de pensões alimentícias, afirmando que o
poder estatal de regulamentar o casamento civil não garante o poder de
excluir pessoas dele) e Turner vs. Safley (1987, que declarou
inconstitucional a restrição de direito ao casamento civil de presos por
entender que legítimas preocupações de segurança prisional não
justificavam, no caso concreto, as restrições concretamente impostas, tidas
como exageradas). De tudo isso, conclui-se que a Constituição garante a
todos o direito de se casar com uma pessoa de sua escolha, salvo se houver
motivação válida ante a isonomia ou a razoabilidade (ou seja, motivação
lógico-racional) que justifique a discriminação oriunda da negativa de
acesso ao direito fundamental ao casamento civil18, o que não existe no
presente caso.
Dessa forma, o casamento civil é um direito fundamental de todos os
cidadãos brasileiros e, portanto, também dos homossexuais, razão pela qual
a sua negativa arbitrária aos casais homoafetivos configura
inconstitucionalidade por afronta ao princípio da dignidade da pessoa
humana (além de afronta a dito direito fundamental implícito).

2.2 Da insuficiência de uma “Lei de União Civil” para a proteção da


dignidade humana de homossexuais
Muito se fala no Brasil acerca do Projeto de Lei 1.151/1995, de autoria
da ex-deputada Marta Suplicy, cujo substitutivo visa a instituir a chamada
Parceria Civil Registrada entre pessoas do mesmo sexo. Contudo,
ignorando que dito projeto encontra-se engavetado no Congresso Nacional,
devido ao preconceito de muitos parlamentares, que não têm interesse
político em sua votação pelo medo de perderem votos dos setores
conservadores da sociedade, mesmo a sua aprovação não seria suficiente
para afastar as questões levantadas nesta obra.
Em primeiro lugar, dito projeto de lei não garante, nem de longe, os
mesmos direitos que o casamento civil e mesmo a união estável garantem
atualmente. Na 1ª edição desta obra afirmei que a aprovação desse projeto
melhoraria em muito a vida dos casais homoafetivos em comparação à
omissão legislativa a eles imposta (pois é melhor ter poucos direitos
reconhecidos do que não ter nenhum), todavia estes ainda estariam em
situação de menor proteção que os casais heteroafetivos, possuindo menos
direitos que eles, pois a isonomia, assim, continuaria afrontada mesmo com
a aprovação do referido projeto de lei. Contudo, com a decisão do STF no
julgamento da ADPF 132 e da ADI 4.277, a aprovação de dito projeto de lei
configuraria flagrante retrocesso jurídico para a união homoafetiva, na
medida em que a esta foram reconhecidos os mesmos direitos da união
estável (heteroafetiva), razão pela qual a aprovação de dito projeto, que
trata a união homoafetiva como mera sociedade de fato do Direito
Obrigacional, geraria uma lei inconstitucional por afronta ao princípio da
vedação do retrocesso, vedando a aprovação de leis que retirem direitos de
pessoas e/ou grupos sociais quando tais direitos sejam fundamentais – e o
direito à constituição de família conjugal com igualdade de direitos às
demais famílias conjugais configura inequivocamente um direito
fundamental.
Por outro lado, ainda que dito projeto (ou outro similar) garantisse os
mesmos direitos do casamento civil, hipótese na qual a questão da isonomia
estaria superada, ainda assim a dignidade humana dos casais homoafetivos
estaria afrontada. Isso em decorrência daquilo que foi supraexplanado, ou
seja, do verdadeiro arquétipo social existente em torno da figura do
casamento em nossa sociedade, que o vê como consagração máxima de
uma união amorosa.
Afinal, a consagração das uniões homoafetivas por intermédio de
parcerias civis registradas e não por meio do casamento (civil) implicaria,
obviamente, na sua rotulação como menos dignas do que as uniões
matrimonializadas. Afinal, a parceria civil registrada nada mais é do que
um contrato do Direito Obrigacional, ao contrário do casamento civil, que é
um regime jurídico do Direito das Famílias. Só neste ponto já se percebe
como o casamento civil tem a si atribuída uma dignidade muito maior do
que aquela que se pretende conferir à parceria civil registrada.
Isso porque a exclusão dos casais formados por pessoas do mesmo
sexo do regime jurídico do casamento civil traz implícita a ideia de que a
relação homoafetiva não seria tão digna quanto a heteroafetiva; que ela não
mereceria o mesmo respeito, a mesma preocupação e a mesma consideração
que se garantem às uniões formadas por pessoas de sexos diversos
(conforme citado na decisão canadense supra transcrita). Contudo, qualquer
afirmação nesse sentido (de menor dignidade das uniões homoafetivas em
relação às heteroafetivas) é inconstitucional pela sua arbitrariedade, tendo
em vista a inexistência de motivação lógico-racional que corrobore com
este deturpado entendimento acerca do amor homoafetivo.
Outrossim, não se pode deixar de concordar com a Jurisprudência de
Direito Comparado que, ao julgar inconstitucional o não reconhecimento do
casamento civil homoafetivo por afronta à isonomia e à dignidade da pessoa
humana, afirma que, quanto a esta, a instituição de uma lei paralela àquela
do casamento civil apenas para os casais homoafetivos implicaria na volta à
política do “separate but equal” (separados, mas iguais) que tanto assolou a
convivência entre negros e brancos nos Estados Unidos e na África do Sul e
que só serviu para estigmatizar ainda mais os negros19.
Veja-se, nesse sentido, a decisão da Suprema Corte de Ontário
(Canadá)20, ao declarar a inconstitucionalidade do não reconhecimento do
casamento civil homoafetivo:

(187) A essência da primeira parte das colocações do Estado


requer que esta corte aceite que “casamento” é uma palavra que
meramente identifica uma instituição única. Aquele argumento implica
que, se os Requerentes tiverem a si garantidos todos os direitos,
privilégios e benefícios da instituição do casamento – mas sob outra
nomenclatura – então não haverá nenhuma discriminação porque não
haveria nenhuma diferença de tratamento. Isso, na minha opinião, está
errado.
(188) “Casamento é mais que uma nomenclatura – mais que
apenas uma palavra”. Poderia ser dito que o primeiro indicador da sua
importância é o fato que esse longo e complexo processo
aparentemente tivesse que ocorrer. Na minha opinião, “a paixão e
sinceridade de todos que arguiram perante esta corte é um testemunho
às profundamente nutridas visões do casamento”. Os Requerentes
fervorosamente pleiteiam por sua inclusão naquela instituição; os
Contestantes pleiteiam intensamente pela proteção da sua
exclusividade. Eu estou totalmente convencido que “casamento é
muito mais que uma palavra e eu concordo com a observação de que o
casamento – para a maior parte da sociedade canadense é”:
... a instituição que concede a uma união o profundo selo social
de aprovação e aceitação do relacionamento como sendo do maior
valor. [MacDougall, B. “A Celebração do Casamento entre Pessoas do
Mesmo Sexo” (2000) 32:2 Ottawa Law Rev. 235 at 242].
(189) Eu também concordo com aqueles outros que o descrevem
como:
... legal, religioso, social, vocacional e pessoal ... O poder do
casamento vem não do que ele é em abstrato, ou como ele é definido,
ou ainda no que ele simboliza, mas de como ele é transubstanciado
pelo foco social na condição marital como o elemento chave na
definição de todas as pessoas. [ibid, MacDougall aponta que essa
opinião é de alguém que pretende excluir os casais formados por
pessoas do mesmo sexo do casamento. A citação é de L. S. Eckols, “A
Miragem do Casamento: As Implicações nas Identidades Pessoais e
Sociais do Matrimônio entre Pessoas do Mesmo Sexo”. (1995) 5 Mich.
J. of Gender and L. 353 at 354 (notas de rodapé omitidas)].
(190) No caso Egan, os Juízes Cory e Iacobucci foram da opinião
que a lei que oferece uma “escolha significante” pode também oferecer
um “valoroso benefício”. E onde a definição daquela lei confere o
estado de reconhecimento e legitimidade de um status particular, a
negação da habilidade de escolher aquele status a lésbicas e gays
implica em violação à seção 15(1) da Carta de Direitos. Isso, eu
acredito, é o que ocorreu no caso em tela.
(191) Em apoio à minha conclusão eu volto mais uma vez à
decisão da Juíza Greer no caso Layland para assistência e em
particular onde ela examinou alguns pronunciamentos judiciais
existentes em 1993 sobre a seção 15(1). Confiando na linguagem do
Juiz Wilson no caso R. v. Turpin, a Juíza Greer expressou a conclusão
com a qual eu concordo, nomeadamente:
Não se pode levar em consideração apenas o que os casos Pré-
Carta de Direitos sustentaram que era o casamento. É importante que
o tema seja adequadamente colocado no amplo contexto da nossa
sociedade moderna e seus costumes e expectativas.
Os casos referentes à Carta de Direitos mostram que nossas
cortes entenderam que “escolha” é um benefício da lei. No caso em
tela, os requerentes tiveram negado seu direito à escolha de com quem
eles querem se casar. Na minha visão, o direito à escolha é um direito
fundamental e se aplica ao contexto do casamento na nossa sociedade.
É uma teoria básica na nossa sociedade que o Estado respeitará as
escolhas feitas pelos indivíduos e o Estado evitará subordinar essas
escolhas a qualquer outra concepção. As garantias individuais da seção
15 são designadas para proteger o direito de escolha dos indivíduos.
Nossas cortes e o Estado sempre se empenharam a separar o
preconceito histórico e a intolerância através da aplicação da lei. Na
minha visão, isso é o que a Carta de Direitos visou fazer.
Eu também rejeito o argumento do Estado segundo o qual os
benefícios proporcionados através da instituição do casamento podem
ser remediados por alteração na legislação que de outra forma
concedam ditos benefícios aos casais coabitantes. Na minha opinião
aquela colocação remonta ao argumento do “separados mas iguais”
que foi há tanto rejeitado no Canadá como justificativa para uma lei
outrora discriminatória.
(193) Eu entendo que não responde às preocupações dos
Requerentes simplesmente dizer a eles que os casais formados por
pessoas do mesmo sexo têm – ou terão – todos os benefícios que os
casais casados têm através de outras medidas legislativas tais como
“parcerias domésticas”.
(194) Aceitar aquele argumento significaria que eu concordo que
os casais formados por pessoas do mesmo sexo têm direito a todos os
benefícios e privilégios que os casais formados por pessoas de sexos
diversos têm garantidos através do casamento, mas não o direito a
serem reconhecidos como casados. Em outras palavras, eu teria que
abraçar o conceito segundo o qual casais formados por pessoas do
mesmo sexo têm o direito de se casar; eles apenas não poderiam se
apropriar da palavra casamento porque ela pertenceria
exclusivamente a casais heterossexuais. Isso seria um conceito
equivocado para essa corte abraçar.
(195) Deve ser lembrado que em algum momento
afrodescendentes tinham o direito a sentar no mesmo ônibus dos
‘brancos’ e em assentos que eram igualmente confortáveis aos outros
assentos. Eles apenas não poderiam sentar na parte da frente do ônibus
porque aqueles assentos iguais eram reservados para ‘pessoas brancas’.
Da mesma forma, afrodescendentes tinham o direito a beber água e a
usar banheiros que eram em todos os aspectos iguais àqueles usados
por pessoas brancas. Mais uma vez, eles não poderiam fazê-lo na
mesma fonte ou usar o mesmo banheiro dos brancos. Cada um dos
quais eram – apesar de serem conceitos aparentemente merecedores de
crédito – desconsiderados e rejeitados pelas cortes nos Estados Unidos.
(196) No caso Andrews a nossa Suprema Corte – com igual
ênfase judicial – rejeitou dita doutrina no Canadá. Naquela questão eu
concordo com a fala de Linden J. A. no seu voto divergente no caso
Egan v. Canadá que entendeu que:
“Não se pode fugir da conclusão segundo a qual o oferecimento
de benefícios às parcerias de gays e lésbicas através de um esquema
diferente daquele conferido às parcerias heterossexuais é uma versão
da doutrina do ‘separados mas iguais’”. Aquela doutrina estarrecedora
não deve ser ressuscitada no Canadá quatro décadas após a sua tão
proclamada morte nos Estados Unidos.
(197) Em conclusão, eu entendo que a resposta a este primeiro
aspecto da análise da seção 15(1) da Carta de Direitos é que a regra
tradicional do casamento sujeita os Requerentes a um tratamento
diferenciado daquele conferido a outros. Isso significa dizer que eu
considero que lésbicas e gays são tratados diferentemente de
heterossexuais quando é-lhes negados o direito de entrada na
instituição social do casamento.

Verifica-se, assim, sob todos os ângulos, que a única forma de não se


afrontar arbitrariamente a dignidade dos casais homoafetivos é pelo
reconhecimento da possibilidade jurídica de seu casamento civil e de sua
união estável, razão pela qual se têm por possível juridicamente o
casamento civil e a união estável por pessoas do mesmo sexo (por meio da
interpretação extensiva ou da analogia), uma vez que a proibição da
consagração dessas uniões mediante matrimônio civil e da união estável é
inconstitucional/incompatível com os princípios da igualdade e da
dignidade humana, direitos humanos fundamentais e normas constitucionais
de eficácia plena que são.

3. SÍNTESE CONCLUSIVA DO CAPÍTULO


O princípio da dignidade da pessoa humana garante a todos o direito à
felicidade, além de conferir aos seres humanos o direito à mesma dignidade,
pelo simples fato de serem pessoas humanas, independentemente de
quaisquer diferenças existentes entre si. Só se admite a relativização da
dignidade de uns em relação à de outros na existência de uma motivação
lógico-racional que justifique a relativização de uns em relação a outros
(aspecto material da isonomia). Assim, a ausência de motivação válida ante
a isonomia leva à afronta do princípio da dignidade da pessoa humana, uma
vez que o preceito igualitário é a única forma válida de se relativizar esse
princípio, visto que não se concebe uma existência digna se a pessoa vier a
ser tratada de forma arbitrária (preconceituosa).
Nesse sentido, a partir do momento em que as uniões homoafetivas têm
em si o elemento protegido pelas leis do casamento civil e da união estável,
que é o amor romântico que vise à comunhão plena de vida e interesses, de
caráter público, contínuo e duradouro (amor familiar), então nota-se que
são elas tão dignas quanto as uniões heteroafetivas, merecendo, portanto, os
regimes jurídicos de maior dignidade existentes em nosso ordenamento
jurídico para lhes proteger, a saber, o casamento civil e a união estável,
tendo em vista que estes são conferidos às uniões heteroafetivas.
Ademais, considerando que o princípio da dignidade da pessoa humana
garante a todos o direito à felicidade e a uma vida digna e que, em virtude
do arquétipo social existente em torno do casamento civil, as pessoas que
querem se casar somente serão felizes se puderem se casar civilmente,
verifica-se que o casamento civil é um direito fundamental implícito
decorrente do princípio da dignidade da pessoa humana, por força do art.
5.º, § 2.º, da CF/1988, razão pela qual a sua negativa arbitrária aos casais
homoafetivos configura inconstitucionalidade por afronta ao princípio da
dignidade da pessoa humana e a dito direito fundamental implícito. Negar
igual tratamento aos casais homoafetivos significa instrumentalizá-los para
que o Estado consiga um nefasto intuito de impor o padrão conjugal
heteroafetivo a todos, em postura que atenta contra a dignidade humana e a
liberdade de consciência de homossexuais.
É de se notar, ainda, que a nomenclatura casamento (civil) é da máxima
importância, não apenas por ser, atualmente, a única forma de obtenção de
todos os direitos conferidos pelo Direito das Famílias (questão da
isonomia), mas, especialmente, pelo verdadeiro arquétipo social existente
no que tange ao desejo que as pessoas em geral têm de se casar (dentre as
quais, obviamente, os homossexuais). Ou seja, mesmo que uma outra lei
visasse a garantir exatamente os mesmos direitos do casamento civil aos
casais homoafetivos (o que não é o caso do atual projeto de Parceria Civil
Registrada, que visa a conferir menos direitos do que os conferidos pelo
casamento civil e mesmo pela união estável), isso resolveria apenas a
questão da isonomia, mas não a da dignidade humana, tendo em vista que o
casamento civil é tido pela sociedade como a consagração máxima das
uniões amorosas, ou, ainda, como legitimador destas (tanto que o Código
Civil de 1916 só considerava como “legítimas” as famílias formadas pelo
casamento civil).
Outrossim, a elaboração de uma lei paralela à do casamento civil para
abarcar unicamente as uniões homoafetivas implicaria em uma política de
segregação idêntica àquela dos “separados, mas iguais” que assolou a
convivência entre negros e brancos em diversos países do mundo, só
servindo para aumentar a estigmatização daqueles, donde incompatível com
o princípio da dignidade da pessoa humana. Afinal, considerando o
entendimento social no sentido de que o casamento civil é a consagração
máxima da dignidade e do valor das uniões amorosas, instituir uma lei com
nomenclatura diferenciada apenas para os casais homoafetivos implicaria
inegavelmente em rotulá-las como menos valorosas do que as uniões
heteroafetivas, o que não é verdade e seria feito apenas sob a égide do
preconceito, visto que o mesmo amor familiar existente nas uniões
heteroafetivas existe nas homoafetivas, não havendo justificação válida,
perante a isonomia, que justifique diferenciá-las legalmente.
Dessa forma, considerando que não há fundamento lógico-racional que
justifique a discriminação das uniões homoafetivas em relação às
heteroafetivas, não pode o Direito pátrio colocar as uniões entre pessoas do
mesmo sexo em situação de menor dignidade do que as uniões entre
pessoas de sexos diversos, sob pena de inconstitucionalidade deste ato por
afronta ao princípio da dignidade da pessoa humana.

1 In GIRARDI, Viviane. Famílias Contemporâneas, Filiação e Afeto: A Possibilidade


Jurídica da Adoção por Homossexuais, 1ª Edição, Porto Alegre: Editora Livraria do
Advogado, 2005 – Prefácio.
2 Como é o caso das uniões homoafetivas em relação às heteroafetivas, quando se nega
àquelas os regimes jurídicos do casamento civil e da união estável, bem como o direito
à adoção conjunta.
3 Veja-se, nesse sentido, SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais,
6a Edição, Porto Alegre: Editora Livraria do Advogado, p. 121-122, onde o autor
afirma: “(...) Neste sentido, diz-se que, para a preservação da dignidade da pessoa
humana, se torna indispensável não tratar as pessoas de tal modo que se lhes torne
impossível representar a contingência de seu corpo como momento de sua própria,
autônoma e responsável individualidade. Uma outra dimensão intimamente associada
ao valor da dignidade da pessoa humana consiste na garantia de condições justas e
adequadas de vida para o indivíduo e sua família, contexto no qual assumem relevo de
modo especial os direitos sociais ao trabalho, a um sistema efetivo de seguridade
social, em última análise, à proteção da pessoa contra as necessidades de ordem
material e à asseguração de uma existência com dignidade. Para além disso, constitui
pressuposto essencial para o respeito da dignidade da pessoa humana a garantia da
isonomia de todos os seres humanos, que não podem ser submetidos a tratamento
discriminatório e arbitrário, razão pela qual são intoleráveis a escravidão, a
discriminação racial, perseguições em virtude de motivos religiosos, etc. Também a
garantia da identidade (no sentido de autonomia e integridade psíquica e intelectual)
pessoal do indivíduo constitui uma das principais expressões do princípio da dignidade
da pessoa humana, concretizando-se, dentre outros aspectos, na liberdade de
consciência, de pensamento, de culto, na proteção da intimidade, da honra, da esfera
privada, enfim, de tudo que esteja associado ao livre desenvolvimento de sua
personalidade, bem como ao direito de autodeterminação sobre os assuntos que
dizem respeito à sua esfera particular, assim como à garantia de um espaço privativo
no âmbito do qual o indivíduo se encontra resguardado contra ingerências na sua
esfera pessoal. (...)” (grifos nossos).
4 Dessa forma, conforme já demonstrado anteriormente, não há hoje uma motivação
aceitável ante a isonomia que justifique a discriminação das uniões homoafetivas em
relação às heteroafetivas. Isto, considerando que o mesmo amor familiar existente nas
uniões heteroafetivas existe nas uniões homoafetivas; considerando que a capacidade
procriativa do casal não é essencial à configuração do casamento civil e mesmo da
união estável (porque, se assim o fosse, também se vedaria o casamento civil e a
união estável entre casais heteroafetivos estéreis); considerando que motivos de
ordem religiosa são inaceitáveis para justificar uma discriminação jurídica pelo fato de
vivermos em um Estado Laico; e considerando especialmente que a diversidade de
sexos não pode ser considerada como essencial à proteção jurídico-familiar do Direito
das Famílias, por não haver motivação lógico-racional que justifique a colocação das
uniões heteroafetivas em condição superior à das homoafetivas; tem-se por
inconstitucional a discriminação negativa das uniões homoafetivas para com as
heteroafetivas, tanto por afronta ao princípio da igualdade quanto por ofensa ao
princípio da dignidade da pessoa humana. Nesse sentido, sendo inconstitucional a
interpretação proibitiva da consagração das uniões homoafetivas pelo casamento civil
e, inclusive, o não reconhecimento destas como uniões estáveis, tem-se que a única
interpretação juridicamente válida é aquela que permita o casamento civil homoafetivo
e reconheça a união estável homoafetiva, em decorrência dos citados princípios
constitucionais, para que se evite um conflito efetivo entre as normas jurídicas em
questão (de um lado, os dispositivos legais que regulam o casamento civil e a união
estável, e, de outro, aqueles que preveem a isonomia e a dignidade da pessoa
humana).
5 Sem adentrar profundamente em tal discussão, que foge aos limites do presente
trabalho, pode-se dizer que isto que se acabou de expor se justifica pelo fato de não
ser o rol de direitos fundamentais trazidos pela Constituição Federal taxativo (mesmo
quando já considerados os direitos fundamentais implícitos), no que implica
reconhecer a necessidade de proteção da dignidade humana mesmo onde não esteja
ela positivada, em que pese ser inequivocamente mais fácil a sua defesa onde esteja
ela efetivamente consagrada pelo ordenamento jurídico. Tal é, inclusive, o que defende
SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da Pessoa Humana e Direitos Fundamentais na
Constituição Federal de 1988. 2ª Edição, Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora,
2002, p. 41 e ss.
6 São oportunas, ainda, as colocações de Viviane Girardi, ao afirmar que: “A razão da
inclusão da reivindicação dos direitos relativos às uniões [homoafetivas] ou mesmo do
direito ao exercício da homossexualidade se justifica no fato de, por pertencer à
comunidade humana, as pessoas de orientação sexual homossexual devem ter o
direito à realização de suas capacidades e necessidades humanas respeitadas, tanto
pelos demais membros da comunidade como pelo próprio Estado. Trata-se de se
assegurar no plano individual a tutela ao direito personalíssimo de orientação sexual e,
no plano público, o respeito a esse direito, com práticas jurídicas e políticas legislativas
que vedem qualquer forma de discriminação por conta de preferência ou orientação
sexual de cada pessoa. A efetivação do princípio da dignidade da pessoa humana,
estampado na Carta Constitucional brasileira, confere a cada cidadão o poder de
autodeterminar o que parece essencial à realização plena da sua personalidade.
Nesse sentido, é a afirmação de Ingo Wolfgang Sarlet ao citar o pensamento de G.
Dürig, segundo o qual ‘cada ser humano é humano por força de seu espírito, que o
distingue da natureza impessoal e que o capacita para, com base em sua própria
decisão, tornar-se consciente de si mesmo, de autodeterminar a sua conduta, bem
como de formatar a sua existência e o meio que o circunda’. O princípio da dignidade
da pessoa humana assegura a toda e a qualquer pessoa o direito de tratamento
igualitário, que no seu reverso é o direito a não ser discriminado” (GIRARDI, Viviane.
Famílias Contemporâneas, Filiação e Afeto: A Possibilidade Jurídica da Adoção por
Homossexuais, 1ª Edição, Porto Alegre: Editora Livraria do Advogado, 200, p. 52-53 –
sem grifos no original).
7 Halpern v. Canadá (Attorney General), 2002, CanLII 42749 (ON S.C.D.C.).
Inhttp://www.canlii.org/on/cas/onscdc/2002/2002onscdc10000.html (acesso em
20/10/2006 – tradução livre. Sem grifos e destaques no original).
8 Como bem enfatizado pela representação apresentada ao Procurador-Geral da
República, visando à impetração de Arguição de Descumprimento de Preceito
Fundamental pleiteando o reconhecimento da possibilidade jurídica da união estável
homoafetiva, já analisada no capítulo relativo à união estável.
9 SARMENTO, Daniel. Casamento e União Estável entre Pessoas do Mesmo Sexo.
Perspectivas Constitucionais. Igualdade, Diferença e Direitos Humanos. 1ª ed. 2ª
Tiragem. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010, pp. 643-646.
10 Cf. ADPF 132 e ADI 4.277, voto do Ministro Marco Aurélio, pp. 11-12 (trecho transcrito
no capítulo 4, item 1.5 “Posição Pessoal. Dignidade da Pessoa Humana e o Direito à
Felicidade”).
11 Neste ponto, do governo de uma sociedade racional existir para garantir o direito à
busca da felicidade ou bem-estar, o Ministro se baseou na lição de Stephanie
Schwartz Driver.
12 BARROSO, Luís Roberto. “Here, there and everywhere”. Human Dignity in
contemporary law and in the transnational discourse, pp. 63-64. Disponível em:
<http://ssrn.com/abstract=1945741> (último acesso em: 08 jan. 2012).
13 WOLFSON, Evan. Why Marriage Matters..., p. 134. Tradução livre.
14 Goodridge v. Department of Public Health, p. 9, in
http://www.mass.gov.br/courts/courtsandjudges/courts/supremejudicialcourt/goodridge.
html (acesso em fev./2007; sem grifos e destaques no original).
15 Halpern v. Canadá (Attorney General), 2002, CanLII 42749 (ON S.C.D.C.). In
http://www.canlii.org/on/cas/onscdc/2002/2002onscdc10000.html (acesso em
20/10/2006 – tradução livre; sem grifos no original).
16 NUCCI, Guilherme de Souza. Leis Penais e Processuais Comentadas. 5. ed. São
Paulo: RT, 2010, p. 305, aonde se afirma que “Racismo é o pensamento voltado à
existência de divisão dentre seres humanos, por qualquer pretensa virtude ou
qualidade, aleatoriamente eleita, a outros, cultivando-se um objetivo segregacionista,
apartando-se a sociedade em camadas e estratos, merecedores de vivência distinta
(...) o racismo, como acabamos de expor, é, basicamente, uma mentalidade
segregacionista (...)”. O autor afirma, ainda, com base no mesmo precedente do STF,
que “raça é termo infeliz e ambíguo, pois quer dizer tanto um conjunto de pessoas com
os mesmos caracteres somáticos como também um grupo de indivíduos de mesma
origem étnica, linguística ou social. Raça, enfim, um grupo de pessoas que comunga
de ideais ou comportamentos comuns, ajuntando-se para defendê-los, sem que,
necessariamente, constituam um homogêneo conjunto de pessoas fisicamente
parecidas. Aliás, assim pensando, homossexuais discriminados podem ser, para os
fins de aplicação desta Lei [de Racismo], considerados como grupo racial. (...) Ora, se
o STF considerou racismo, para efeito de considerar imprescritível o art. 20 desta Lei,
atitudes de antissemitismo são imprescritíveis, mesmo se considerando que o judeu é
o adepto da religião denominada judaísmo, podendo ser qualquer pessoa, inclusive o
que nasceu e se formou católico, mas, posteriormente, converteu-se. Dessa forma,
parece-nos possível, igualmente, considerar racismo a busca da exclusão de outros
grupos sociais homogêneos, exteriormente identificados por qualquer razão. E mais,
podemos incluir nessa possibilidade a discriminação ao ateu – aquele que não acredita
em Deus e em nenhuma força sobrenatural, regente do Universo ou das relações
humanas. (...) Parece-nos que é racismo, desde que, na esteira da interpretação dada
pelo STF, qualquer forma de fobia, dirigida ao ser humano, pode ser manifestação
racista. (...) Nem se fale em utilização de analogia in malam partem. Não se está
buscando, em um processo de equiparação por semelhança, considerar o ateu ou o
homossexual alguém parecido com o integrante de determinada raça. Ao contrário,
está-se negando existir um conceito de raça, válido para definir qualquer agrupamento
humano, de forma que racismo ou, se for preferível, a discriminação ou o preconceito
de raça é somente uma manifestação de pensamento segregacionista, voltado a dividir
os seres humanos, conforme qualquer critério leviano e arbitrariamente eleito, em
castas, privilegiando umas em detrimento de outras. (...) Logo, ser ateu, homossexual,
pobre, entre outros fatores, também pode ser elemento de valoração razoável para
evidenciar a busca de um grupo hegemônico qualquer de extirpar da convivência
social indivíduos indesejáveis. (...) raça é um termo enigmático e ambíguo, merecedor,
pois, de uma interpretação segundo os preceitos da igualdade, apregoada pela
Constituição Federal, em função do Estado Democrático de Direito” (Ibidem, pp. 304-
305).
17 COX apud WOLFSON, Evan. Why Marriage Matters…, p. 135. Tradução livre.
18 Cf. GERSTMANN, Evan. Same-Sex Marriage and the Constitution. 2. ed. Cambridge:
Cambridge University Press, 2008, pp. 73-90.
19 Para contextualizar o leitor que não esteja familiarizado com aquela nefasta e vetusta
política, o “separate but equal” visava a garantir aos negros os mesmos direitos
conferidos aos brancos com a diferença de que os negros não poderiam ocupar os
mesmos espaços que os brancos. Por exemplo, nos ônibus, os negros teriam
assentos da mesma qualidade que aqueles dos brancos, mas só poderiam sentar nos
assentos da parte de trás dos ônibus (sendo, aliás, intuitivo que sentar-se atrás tem
uma menor dignidade do que sentar-se à frente); nos tribunais, teriam direito a um
local idêntico àquele conferido aos brancos, mas jamais poderiam utilizar o local
destinado aos brancos.
20 Halpern v. Canadá (Attorney General), 2002, CanLII 42749 (ON S.C.D.C.). In
http://www.canlii.org/on/cas/onscdc/2002/2002onscdc10000.html (acesso em
20/10/2006 – tradução livre; sem grifos e destaques no original).
Capítulo 9

INTERPRETAÇÃO CONFORME A
CONSTITUIÇÃO E UNIÕES HOMOAFETIVAS

“O axioma jurídico de que em sendo o texto claro, não existe


interpretação, certamente não corresponde à realidade do processo
intelectivo através do qual o operador do sistema jurídico e, mais
especificamente, o julgador da causa, concebe a solução para o
problema que lhe é exposto. Tal ideologia, de matriz essencialmente
racionalista, vez que derivada do iluminismo francês do século
XVIII, desconsidera dados de capital importância na análise do
processo decisional, dentre os quais avulta de interesse a chamada
‘fusão de horizontes’ entre o texto legal e seu intérprete, através da
qual o intérprete não se desliga de suas pré-compreensões acerca
da realidade estudada: muito ao contrário, utiliza-a cônscio de que
impossível conceber o intérprete como uma mera ‘longa manus’ do
legislador.” – Eduardo Fernando Appio.1

1. A INTERPRETAÇÃO CONFORME A CONSTITUIÇÃO


REALIZADA PELO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL NA
ADPF 132 E NA ADI 4.277. CONSIDERAÇÕES
PRELIMINARES AO CAPÍTULO.
No histórico julgamento de 05.05.2011, o Supremo Tribunal Federal
julgou procedentes a ADPF 132 e a ADI 4.277 para atribuir interpretação
conforme à Constituição ao art. 1.723 do Código Civil para dele excluir
qualquer interpretação que implique o não reconhecimento da união
homoafetiva como entidade familiar: nas palavras do Tribunal: “para dele
excluir qualquer significado que impeça o reconhecimento da união
contínua, pública e duradoura entre pessoas do mesmo sexo como entidade
familiar, entendida como sinônimo perfeito de família. Reconhecimento que
é de ser feito segundo as mesmas regras e com as mesmas consequências da
união estável heteroafetiva”2.
Desde a primeira edição desta obra defendi a possibilidade de
atribuição de interpretação conforme aos dispositivos legais atinentes ao
casamento civil e à união estável para se possibilitar o casamento civil e a
união estável entre casais homoafetivos, na medida em que é a única
interpretação constitucionalmente válida acerca do tema.
Nesse sentido, se na primeira edição este capítulo visava demonstrar a
possibilidade do uso da referida técnica (ou, no mínimo, da técnica da
declaração de nulidade sem redução de texto para excluir dos dispositivos
do casamento civil e da união estável interpretações que não reconhecessem
o direito ao casamento civil e à união estável por casais homoafetivos),
nesta segunda edição ele visa, ainda, justificar a correção da decisão do STF
acerca do tema.

2. DA NECESSIDADE DE UMA INTERPRETAÇÃO CONFORME A


CONSTITUIÇÃO EM TODAS AS HIPÓTESES
Os opositores ao reconhecimento da possibilidade jurídica do
casamento civil homoafetivo e da união estável homoafetiva por vezes
alegam que uma interpretação nesse sentido, ainda que fundada na isonomia
e na dignidade humana, direitos humanos fundamentais e normas
constitucionais originárias de eficácia plena que são, implicaria na
“subversão” do atual sistema jurídico pátrio, que exigiria, a seu ver, a
heterossexualidade como “condição” de ditos regimes jurídicos. Todavia,
este posicionamento é muito estranho. Afinal, a interpretação de quaisquer
normas deve ser feita em conformidade com a Constituição, pois ela é a lei
das leis, devendo toda lei infraconstitucional (como o Código Civil)
respeitá-la.
Mesmo no que tange à interpretação de normas constitucionais, elas
devem ser lidas em consonância com os princípios consagrados pela Lei
Maior. Afinal, os princípios indicam o ponto de partida do legislador
(especialmente do constituinte), mostrando o que ele preza acima de tudo.
Isso nada mais é do que decorrência da interpretação conforme a
Constituição – ora, se a Carta Magna erige princípios como normas
jurídicas de eficácia plena, ainda mais na qualidade de direitos humanos
fundamentais (como a isonomia e a dignidade humana), então toda a leitura
constitucional e infraconstitucional deve ser feita com base neles, ainda que
seja necessária a interpretação extensiva ou a analogia para tanto.
No caso de nossa Constituição, o Constituinte alçou a dignidade da
pessoa humana e a isonomia à qualidade de princípios basilares
fundamentais, donde todas as normas da Carta Magna devem ser lidas de
acordo com esses princípios, o mesmo valendo, com muito mais razão, no
que tange às normas infraconstitucionais. Assim, se o Constituinte erigiu
princípios que vedam o preconceito (como a isonomia e a dignidade da
pessoa humana) como o norte constitucional, então não podem os demais
textos normativos constitucionais e infraconstitucionais ser interpretados de
uma forma preconceituosa, sob pena de afronta à interpretação sistemática
exigida de toda leitura de um sistema jurídico. Não se lê um dispositivo
isoladamente, mas sempre de forma sistemática, sob pena de se desvirtuar o
sistema jurídico.
Dessa forma, a leitura dos dispositivos que tratam da família
constitucional deve ser feita de acordo com a isonomia e a dignidade da
pessoa humana, pois este foi o intuito do Constituinte: garantir uma
legislação (constitucional e infraconstitucional) que não seja
preconceituosa. Nesse sentido, defender que o casamento civil seria
possível de ser contraído apenas por heterossexuais significa em proclamar
o preconceito, que é constitucionalmente vedado pela isonomia e pela
dignidade da pessoa humana, donde é equivocado este posicionamento.
Ou seja, o que os opositores do reconhecimento do status jurídico-
familiar das uniões homoafetivas aparentemente ignoram (e por vezes
negam) é o fato de que os princípios constitucionais, especialmente quando
configuram direitos humanos fundamentais, como a isonomia e a dignidade
da pessoa humana, configuram o verdadeiro método de interpretação
constitucional e infraconstitucional. Com efeito, em Direito nada se
interpreta de forma isolada, mas sempre sistêmica. A célebre lição jurídica
de que “a lei não possui palavras inúteis” vem justamente corroborar esta
afirmação. Ora, se nada nos textos normativos é inútil, então não pode
haver um conflito efetivo entre dois textos normativos de um mesmo
documento, sob pena de uma contradição que é defesa pelo Direito e que,
por isso, é inadmissível – contradição esta que, se ocorrer entre regras e
princípios, deverá ser solucionada com a prevalência destes sobre aquelas,
visto serem eles mandamentos nucleares do sistema que condicionam a
interpretação e mesmo a validade das regras do mesmo documento
legislativo (seja ele uma lei, a Constituição etc.).
Nesse sentido, dada a imperfeição do legislador, pessoa humana que é,
os textos normativos não abarcam todas as situações possíveis existentes na
sociedade. Por vezes não se trata de exclusão premeditada, e por vezes é
uma exclusão oriunda de um equívoco conceitual: simplesmente, o
legislador não prevê todas as hipóteses possíveis em seu texto de lei ou
protege apenas uma situação, quando outra também se insere no mesmo
contexto axiológico.
No caso específico aqui discutido, claramente o legislador pretendeu
proteger o amor familiar com o casamento civil e com a união estável. Para
tanto, visualizou apenas a forma heteroafetiva como família digna de
proteção. Esta concepção decorreu, ressalte-se, da equivocada compreensão
que perdurou até o final do século XX, no sentido de que a
homossexualidade seria uma “doença”, um “desvio” ou uma “perversão”.
Contudo, esse entendimento foi ultrapassado pela Organização Mundial da
Saúde e pelos nossos Conselhos Federais de Medicina e Psicologia, que
aduzem não ser a homossexualidade uma doença, um desvio psicológico
nem uma perversão, mas uma das livres manifestações da sexualidade
humana, ao lado da heterossexualidade. Se o legislador tivesse esta
compreensão, certamente teria deixado expresso que as uniões
homoafetivas são protegidas pelo casamento civil e pela união estável, uma
vez que formam entidades familiares da mesma forma que o fazem as
uniões heteroafetivas. Assim, temos aqui uma lacuna normativa oriunda da
ignorância conceitual do legislador acerca do tema da homossexualidade.
Nesse sentido, desde sempre são utilizadas técnicas de integração do
Direito para os casos de lacunas normativas, que visam justamente a evitar
que as omissões cometidas pelo legislador, quando regulou determinada
matéria, não venham a prejudicar as pessoas que se encontram
aparentemente excluídas da norma legal/constitucional. Essas técnicas,
como já se disse, são a interpretação extensiva e a analogia, que são
decorrentes da isonomia – ou seja, visam a tratar igualmente os que se
encontram em situações idênticas ou análogas. Em outras palavras, como
em Direito nada se interpreta de forma isolada, mas sempre sistêmica, não
se pode afirmar que os dispositivos que usam a expressão “o homem e a
mulher” para se referir ao casamento civil e à união estável estariam
“vedando implicitamente” que as uniões homoafetivas fossem assim
definidas, uma vez que isso configura uma discriminação preconceituosa3,
que é vedada pela isonomia e pela dignidade humana. Mesmo porque não
existem proibições implícitas em Direito, em decorrência do art. 5.º, II, da
CF/1988, que aduz que “ninguém será obrigado a fazer ou a deixar de fazer
alguma coisa senão em virtude de lei”, donde somente a lei expressa pode
restringir os direitos das pessoas, o que não ocorre com relação às uniões
homoafetivas.
Assim, a partir do momento em que é possível interpretar-se uma
norma jurídica de duas formas e uma delas é inconstitucional, é obrigatória
a utilização da outra, para se evitar um conflito efetivo entre ditos
dispositivos normativos4.
Ou seja, os princípios constitucionais da isonomia e da dignidade da
pessoa humana, que possuem a qualidade de efetivas normas de eficácia
plena, devem ser usados como paradigma na interpretação tanto das normas
constitucionais quanto das infraconstitucionais. Afinal, ditos princípios
demonstram a vontade primordial do constituinte, a saber, a proibição de
discriminações arbitrárias, donde só se pode ter como possível a extensão
dos regimes jurídicos do casamento civil e da união estável aos casais
homoafetivos.

3. DA INTERPRETAÇÃO DAS LEIS DO CASAMENTO CIVIL E DA


UNIÃO ESTÁVEL EM CONFORMIDADE COM A
CONSTITUIÇÃO
Ante os conceitos supra expostos, verifica-se que uma norma não pode
ser interpretada de forma preconceituosa, pois isto implica em
discriminação arbitrária, vedada que é pelos princípios da isonomia e da
dignidade da pessoa humana constitucionalmente consagrados. Assim, se
um texto normativo possui uma interpretação preconceituosa e outra não
preconceituosa, esta última deverá ser a adotada, sob pena de afronta à
Constituição.
Dessa forma, em termos de interpretação conforme, os dispositivos
legais e constitucionais que versam sobre a família, o casamento civil e a
união estável só podem ser interpretados de uma forma que não proíba o
reconhecimento do status jurídico-familiar das uniões homoafetivas,
mesmo porque dito status não é proibido pelo ordenamento jurídico de
forma expressa, lembrando-se que inexistem “proibições implícitas” em
Direito (art. 5.º, II, da CF/1988). Ou seja, a expressão “o homem e a
mulher”, existente nos dispositivos legais que regulam o casamento civil e a
união estável, não pode ser interpretada de forma proibitiva do casamento
civil e da união estável entre pessoas do mesmo sexo, tendo em vista que
estas são pautadas pelo mesmo amor familiar que aquelas. A única
interpretação constitucionalmente válida em termos de interpretação
conforme para ditos dispositivos é aquela segundo a qual aquela expressão
se limita a regulamentar expressamente o direito de duas pessoas de sexos
diversos se casarem e manterem união estável sem que isso signifique o não
reconhecimento de tais direitos aos casais homoafetivos.
O mesmo pode ser dito quanto ao art. 226, § 3.º, da CF/1988, mesmo
que não se aceite a tese da inconstitucionalidade/invalidade de normas
constitucionais originárias, para que ele seja interpretado no sentido de que
meramente normatizou a união estável heteroafetiva, sem que isso
signifique que proibiu a união estável homoafetiva. Isso porque, nesse caso,
parte-se do pressuposto segundo o qual inexistiriam conflitos efetivos entre
normas constitucionais originárias entre si, mas meros conflitos aparentes
solucionáveis pelos princípios gerais de hermenêutica. Consequentemente,
a única forma hermenêutica de evitar que o “conflito aparente” entre o art.
226, § 3.º (união estável) e os arts. 5.º, caput (isonomia), 1.º, III (dignidade
humana), 3.º, IV (promoção do bem-estar de todos) e 5.º, VI (liberdade de
consciência), todos da Constituição, é por meio de uma interpretação
extensiva ou de uma analogia que reconheça a possibilidade jurídica da
união estável homoafetiva.
Raciocínio idêntico, novamente, aplica-se ao art. 226, § 5.º, da
CF/1988: a única forma de ele não colidir com os citados preceitos
constitucionais originários é na sua interpretação, de forma meramente
normatizante, do casamento civil heteroafetivo, sem que isso signifique a
proibição do casamento civil homoafetivo, no sentido de que ele apenas
estabelece a igualdade de direitos entre o homem e a mulher em um
casamento civil heteroafetivo, o que não implica em nenhuma proibição
àquele.
Note-se, por oportuno, que se trata de hipótese de interpretação
conforme e não de declaração de nulidade sem redução de texto. Isso
porque a única interpretação constitucional dos dispositivos que regulam o
casamento civil e a união estável é aquela que reconheça o direito dos
casais homoafetivos a ditos regimes jurídicos – não há nenhuma outra
interpretação possível que não conflite com a isonomia e a dignidade
humana (além dos princípios da promoção do bem-estar de todos e da
liberdade de consciência), razão pela qual se aplica a interpretação
conforme para o caso aqui explicitado.
Assim, considerando que a união homoafetiva possui o mesmo
elemento valorativamente protegido que enseja a regulamentação da união
heteroafetiva pelas leis do casamento civil e da união estável, a saber, o
amor romântico que vise a uma comunhão plena de vida e interesses, de
forma pública, contínua e duradoura, que é o elemento formador da família
contemporânea no que tange a casais (amor familiar), então a interpretação
conforme exige que seja aplicada a interpretação extensiva ou a analogia,
para que tais regimes jurídicos sejam disponibilizados às uniões amorosas
entre pessoas do mesmo sexo, como sucedâneo dos princípios da igualdade,
da dignidade da pessoa humana, da liberdade de consciência, da promoção
do bem-estar de todos.
Ressalte-se, por fim, que tal interpretação não ultrapassa o proclamado
limite da “literalidade” dos referidos textos normativos: (i) primeiramente
porque a literalidade destes textos normativos realmente se limita a
normatizar aspectos das uniões heteroafetivas sem, em nenhum momento,
proibir a extensão dos regimes jurídicos do casamento civil e da união
estável às uniões homoafetivas; (ii) ademais, os textos normativos (e, com
mais razão, as normas jurídicas) não protegem fatos isoladamente
considerados, mas valores a eles inerentes, donde se uma situação fática
não citada pelo texto normativo possuir o mesmo elemento essencial,
valorativamente protegido, que se visou regulamentação na situação fática
expressamente citada pelo mesmo, então a interpretação conforme a
Constituição demandará pela aplicação da interpretação extensiva ou da
analogia para que o fato não citado ou não regulamentado receba o mesmo
tratamento jurídico daquele outro expressamente citado/regulamentado, em
virtude de ambos possuírem o mesmo elemento que ensejou a proteção
normativa em questão – ao passo que a união homoafetiva possui o mesmo
elemento valorativamente protegido pelas leis do casamento civil e da união
estável, que é o amor familiar.

3.1 Não caracterização do art. 1.723 do Código Civil como norma de


mera repetição do art. 226, § 3.º, da Constituição. Possibilidade de
interpretação conforme. A posição do STF na ADPF 132 e na ADI
4.277
No julgamento da ADPF 132 e da ADI 4.277, o Supremo Tribunal
Federal enfrentou questão preliminar relativamente à possibilidade de
aplicação da técnica de interpretação conforme à Constituição no art. 1.723
do CC/2002, objeto do pedido de interpretação conforme de ditas ações,
ante a preocupação de alguns ministros (em especial, do Ministro Gilmar
Mendes) sobre a possibilidade de referido dispositivo legal se caracterizar,
ou não, como norma de mera repetição do art. 226, § 3.º, da CF/1988.
Levantou-se o tema porque, se referido dispositivo legal fosse mera
repetição do disposto na Constituição Federal, ele não poderia ser objeto de
interpretação conforme porque isto implicaria, por via transversa, a
aplicação de interpretação conforme a Constituição de um dispositivo da
própria Constituição Federal, o que se entendeu não ser possível.
Os ministros que se manifestaram sobre o tema entenderam que o art.
1.723 do CC/2002 não se configura como mera repetição do art. 226, § 3.º,
da CF/1988 e que, por aquele dispositivo legal estar sendo interpretado por
muitos como impeditivo do reconhecimento da união [estável] entre
pessoas do mesmo sexo, o que entenderam ser descabido por conta da
interpretação sistemático-teleológica da Constituição.
Nesse sentido, o Ministro Gilmar Mendes afirmou que entende possível
a aplicação de interpretação conforme nesse caso porque o art. 1.723 do
CC/2002 estava sendo interpretado por muitos juízes e tribunais como
impeditivo do reconhecimento da união homoafetiva como entidade
familiar, razão pela qual entendeu pertinente a aplicação de interpretação
conforme para afastar tal exegese das possibilidades interpretativas do
referido dispositivo legal, por (corretamente) entender que a afirmação
normativa de que é protegida a união estável entre o homem e a mulher não
implica necessariamente a ausência de proteção à união estável entre duas
pessoas do mesmo sexo5. Afinal, em sua conclusão peremptória sobre o
tema: “O fato de a Constituição proteger, como já destacado pelo eminente
Relator, a união estável entre homem e mulher não significa uma negativa
de proteção – nem poderia ser – à união civil, estável, entre pessoas do
mesmo sexo”6.
No mesmo sentido, afirmou o Ministro Peluso que entende possível o
pedido por não ser referido dispositivo legal uma norma de mera repetição
da Constituição, razão pela qual entendeu possível a aplicação de
interpretação conforme ao caso7.
Nas palavras do relator, Ministro Ayres Britto: “Ante a possibilidade de
interpretação em sentido preconceituoso ou discriminatório do art. 1.723
do CC, não resolúvel à luz dele próprio, faz-se necessária a utilização da
técnica de ‘interpretação conforme à Constituição’. Isso para excluir do
dispositivo em causa qualquer significado que impeça o reconhecimento da
união contínua, pública e duradoura entre pessoas do mesmo sexo como
família. Reconhecimento que é de ser feito segundo as mesmas regras e
com as mesmas consequências da união estável heteroafetiva”.
Perfeita a exegese dos Ministros sobre o tema. Com efeito, o art. 1.723
do CC/2002 tanto não é uma norma de mera repetição do art. 226, § 3.º, da
CF/1988, que tem uma redação maior e traz os requisitos para a
caracterização da união estável, a saber, os requisitos da publicidade,
continuidade, durabilidade e do intuito de constituir família, não constantes
do citado dispositivo constitucional. Aliás, tanto não é norma de mera
repetição que, se fosse, o art. 226, § 3.º, da CF/1988 seria uma norma
autoaplicável, mas não foi essa a exegese que lhe atribuiu o Supremo
Tribunal Federal quando analisou o tema8. Ora, a se entender que dita
norma dependia de regulamentação infraconstitucional para produzir
efeitos, então não se pode concluir que a norma do art. 1.723 do CC/2002
seria mera repetição do art. 226, § 3.º, da CF/1988, pois se a norma
constitucional dependia de regulamentação infraconstitucional para
produzir efeitos por se entender que a lei precisaria trazer os requisitos
caracterizadores da união estável, então não se pode dizer que o texto
normativo legal que traz tais requisitos seria mera repetição do texto
normativo constitucional que não menciona tais requisitos. Por outro lado,
mesmo que se entenda (corretamente) que a união estável deveria produzir
efeitos positivos desde a promulgação da Constituição de 1988, ainda assim
não se pode concluir que o art. 1.723 do CC/2002 seria mera repetição do
art. 226, § 3.º, da CF/1988, pois o texto normativo legal que traz requisitos
caracterizadores do texto normativo constitucional que não menciona tais
requisitos não pode ser tido como mera repetição deste último, pela óbvia
constatação de que ele não menciona tais requisitos.
Nem se diga que o fato de constar a expressão entre o homem e a
mulher em ambos os dispositivos inviabilizaria a utilização de
interpretação conforme no caso. Primeiro porque para um texto normativo
legal ser considerado como de mera repetição do constitucional, ambos têm
que ser totalmente idênticos, o que não é o caso. Contudo, mesmo que
assim não fosse, não se pode esquecer que o pedido de interpretação
conforme a Constituição supõe necessariamente uma interpretação prévia
da Constituição para uma posterior interpretação do dispositivo legal em
análise para a este atribuir uma interpretação conforme a Constituição:
logo, se o pedido das ações era para que se excluísse do art. 1.723 do
CC/2002 qualquer interpretação que impedisse o reconhecimento da união
pública, contínua e duradoura entre pessoas do mesmo sexo como entidade
familiar, então evidentemente o STF teria que interpretar o art. 226, § 3.º,
da CF/1988 para saber se sua redação eventualmente impediria a proteção
estatal à família conjugal homoafetiva. Logo, tendo corretamente decidido
que a afirmação do art. 226, § 3.º, da CF/1988, de que é reconhecida a união
estável entre o homem e a mulher não significa que não é reconhecida a
união estável entre pessoas do mesmo sexo, então o Tribunal evidentemente
podia atribuir interpretação conforme ao art. 1.723 do CC/2002 para dizer
que ele deveria ser interpretado em conformidade com aquele dispositivo
constitucional, no sentido da norma legal não poder ser interpretada para
proibir o reconhecimento da união estável homoafetiva justamente porque a
referida norma constitucional não proíbe o reconhecimento da união estável
homoafetiva ou, no mínimo, da união homoafetiva como família conjugal
com igualdade de direitos em relação à união estável heteroafetiva.
Sobre o tema, o Tribunal pertinentemente afirmou a “Competência do
Supremo Tribunal Federal para manter, interpretativamente, o Texto Magno
na posse do seu fundamental atributo de coerência, o que passa pela
eliminação de preconceito à orientação sexual da pessoa”. Ora,
considerando que o princípio instrumental da concordância prática das
normas constitucionais traz a necessidade destas serem interpretadas de
forma harmônica/não contraditória e considerando a competência precípua
do STF para dar a palavra final na interpretação da Constituição, então
evidentemente que o STF tem competência e legitimidade para interpretar o
art. 226, § 3.º, da CF/1988 de forma sistemática com os princípios da
igualdade, da dignidade da pessoa humana, da liberdade e da segurança
jurídica para dele afastar exegese discriminatória relativamente à união
homoafetiva (que não decorre de seu texto normativo) para, ato contínuo,
atribuir ao art. 1.723 do CC/2002 interpretação conforme ao art. 226, § 3.º,
da CF/1988 para dele excluir qualquer interpretação que impedisse o
reconhecimento da união pública, contínua e duradoura entre pessoas do
mesmo sexo como entidade familiar, mediante as mesmas regras e
requisitos impostos à união estável heteroafetiva.
Entendo, inclusive, que o Tribunal poderia fazê-lo ainda que
considerasse o art. 1.723 do CC/2002 como norma de “mera repetição” do
art. 226, § 3.º, da CF/1988, pois poderia o STF, interpretando a “norma
repetida”, afirmar que ela não poderia ser interpretada desta ou daquela
maneira (ou que deveria ser interpretada unicamente de determinada
maneira) para, assim, aplicar interpretação conforme a norma que repete no
sentido de que ela deve ser interpretada da mesma maneira. Logo, não há
motivos para se excluir o cabimento da interpretação conforme pelo simples
fato de se tratar de “norma de mera repetição”, ao menos no contexto citado
– o que, de qualquer forma, não é o caso ora analisado, já que o art. 1.723
do CC/2002, como visto, não constitui “mera repetição” do art. 226, § 3.º,
da CF/1988, diante da não identidade entre seus textos normativos (são
parcialmente coincidentes, mas não idênticos).
Logo, não há nada a criticar na posição do STF de entender possível
aplicar a técnica da interpretação conforme ao disposto no art. 1.723 do
CC/2002, tanto por não ser ele mera reprodução do disposto do art. 226, §
3.º, da CF/1988, quanto por ser inerente à aplicação da interpretação
conforme a interpretação das normas constitucionais paradigmas para, com
base nela, interpretar-se a norma legal em questão para a ela atribuir
interpretação em conformidade com a Constituição Federal.

3.1.1 Seria o caso de declaração de nulidade parcial sem redução de texto


e não de interpretação conforme? Irrelevância da discussão
Como visto no capítulo 4, a diferença entre a interpretação conforme a
Constituição e a declaração de nulidade sem redução de texto é que, na
primeira, o juiz ou tribunal atribui uma única interpretação possível ao texto
normativo, ao passo que, na segunda, o juiz ou tribunal exclui uma ou mais
interpretações possíveis do texto normativo, donde, no segundo caso,
podem (em tese) haver mais de uma interpretação juridicamente válida ao
texto normativo.
Pela linguagem utilizada pelo STF no julgamento da ADPF 132 e na
ADI 4.277, deve-se “excluir qualquer significado que impeça o
reconhecimento da união contínua, pública e duradoura entre pessoas do
mesmo sexo como entidade familiar, entendida como sinônimo perfeito de
família. Reconhecimento que é de ser feito segundo as mesmas regras e
com as mesmas consequências da união estável heteroafetiva”9, assim,
pode-se indagar se o STF deveria ter aplicado a técnica da declaração de
nulidade parcial sem redução de texto em vez da técnica da interpretação
conforme.
Entendo correto o uso da interpretação conforme, pois o tema discutido
era saber qual, das duas interpretações possíveis (“proibição implícita” ou
ausência de proibição à união estável homoafetiva), seria a única
constitucionalmente válida. Logo, sendo a interpretação conforme a técnica
válida para atribuir, entre diversas variantes, a única interpretação
constitucionalmente válida, cabível seu uso para afirmar que o art. 1.723 do
CC/2002 não pode ser interpretado de forma a impedir o reconhecimento da
união estável homoafetiva, por interpretação extensiva ou analogia.
De qualquer forma, essa discussão beira o tecnicismo da “forma pela
forma”. Quem eventualmente entender que o STF teria sido “atécnico” ao
invocar a interpretação conforme em vez da nulidade parcial sem redução
de texto não pode dizer que, apenas por isso, a decisão de mérito do
Tribunal tenha sido equivocada. Seria absurdo defender que o Tribunal
deveria ter deixado de conhecer a ação pelo pedido ser de interpretação
conforme e não de declaração de nulidade sem redução de texto – o
formalismo exacerbado (da “forma pela forma”) de determinada posição
seria simplesmente inacreditável. No mínimo, que se reconheça a
fungibilidade entre as técnicas decisórias da interpretação conforme e da
declaração de nulidade parcial sem redução de texto para se entender que,
tendo a parte requerido uma quando seria o caso de outra, o juiz ou Tribunal
conhecer do pedido e aplicar a correta. Ora, reconhecida a fungibilidade
entre ações (por exemplo, entre ADIn e ADPF), com maior acerto o
reconhecimento da fungibilidade entre pedidos tão análogos. Se
reconhecida a fungibilidade entre o mais (as ações), há de ser reconhecida a
fungibilidade entre o menos (os pedidos de uso de técnicas interpretativas).
Logo, nada aqui poderia ser seriamente invocado para defender o não
conhecimento da ADPF 132 e da ADI 4.277 pelo STF.

4. SÍNTESE CONCLUSIVA DO CAPÍTULO


Com relação às leis do casamento civil e da união estável, tem-se que a
única interpretação constitucionalmente válida dos referidos dispositivos
legais e constitucionais é aquela segundo a qual a expressão “o homem e a
mulher” deles constante significa meramente a normatização das uniões
heteroafetivas, sem que isto signifique que estariam proibidos o casamento
civil e a união estável entre pessoas do mesmo sexo, tendo em vista que a
discriminação decorrente de entendimento em sentido contrário é arbitrária,
pois afronta a isonomia e a dignidade humana, além dos princípios da
promoção do bem-estar de todos e da liberdade de consciência, dispositivos
estes que se configuram como direitos humanos fundamentais e normas
constitucionais de eficácia plena. Trata-se, assim, de hipótese de
interpretação conforme e não de declaração de nulidade sem redução de
texto ante a existência de apenas uma interpretação constitucionalmente
válida – esta que se acabou de expor.
Raciocínio idêntico aplica-se aos §§ 3.º e 5.º do art. 226 da CF/1988: a
única forma de eles não colidirem com os citados preceitos constitucionais
originários é na sua interpretação de forma meramente normatizadora das
uniões heteroafetivas, sem que isto signifique que estariam proibidos o
casamento civil e a união estável entre pessoas do mesmo sexo. Isso
porque, considerando que a doutrina majoritária, apesar de não aceitar a
tese da inconstitucionalidade/invalidade de normas constitucionais
originárias, afirma igualmente que não haveria conflitos efetivos entre estas,
mas meros “conflitos aparentes” solucionáveis pelos princípios gerais de
hermenêutica, donde a única forma de se evitar que o “conflito aparente”
entre os dispositivos supracitados se transforme em conflito efetivo, é por
meio de uma interpretação extensiva ou analogia que possibilite o
casamento civil e a união estável a pessoas do mesmo sexo, pois a
discriminação em sentido contrário é arbitrária, irracional, conflitante com o
núcleo essencial da isonomia e da dignidade humana (além dos princípios
da promoção do bem-estar de todos e da liberdade de consciência).
Dessa forma, considerando que a união homoafetiva possui o mesmo
elemento valorativamente protegido que enseja a regulamentação da união
heteroafetiva pelas leis do casamento civil e da união estável, a saber: o
amor romântico que vise a uma comunhão plena de vida e interesses, de
forma pública, contínua e duradoura, que é o elemento formador da família
contemporânea no que tange às uniões amorosas (casais), então, a
interpretação conforme exige que seja aplicada a interpretação extensiva ou
a analogia para que tais regimes jurídicos sejam disponibilizados às uniões
amorosas entre pessoas do mesmo sexo, como sucedâneo dos princípios da
igualdade, da dignidade da pessoa humana, da liberdade de consciência e da
promoção do bem-estar de todos.
Ressalte-se, por fim, que tal interpretação não ultrapassa o proclamado
limite da “literalidade” dos referidos textos normativos: (i) primeiramente,
porque a literalidade destes textos normativos realmente se limita a
normatizar aspectos das uniões heteroafetivas sem, em nenhum momento,
proibir a extensão dos regimes jurídicos do casamento civil e da união
estável às uniões homoafetivas; (ii) ademais, os textos normativos (e, com
mais razão, as normas jurídicas) não protegem fatos isoladamente
considerados, mas valores a eles inerentes, donde se uma situação fática
não citada pelo texto normativo possuir o mesmo elemento essencial,
valorativamente protegido, que se visou regulamentação na situação fática
expressamente citada pelo mesmo, então a interpretação conforme a
Constituição demandará pela aplicação da interpretação extensiva ou da
analogia (conforme o caso) para que o fato não citado ou não
regulamentado receba o mesmo tratamento jurídico daquele outro
expressamente citado/regulamentado, em virtude de ambos possuírem o
mesmo elemento que ensejou a proteção normativa em questão – ao passo
que a união homoafetiva possui o mesmo elemento valorativamente
protegido pelas leis do casamento civil e da união estável, que é o amor
familiar.
Consoante afirmado pelo STF no julgamento da ADPF 132 e da ADI
4.277, possível a aplicação de interpretação conforme para permitir a união
estável homoafetiva porque o art. 1.723 do CC/2002 estava sendo
interpretado por muitos juízes e tribunais como impeditivo do
reconhecimento da união homoafetiva como entidade familiar, razão pela
qual entendeu pertinente a aplicação de interpretação conforme para afastar
tal exegese das possibilidades interpretativas do referido dispositivo legal,
por (corretamente) entender que a afirmação normativa do art. 226, § 3.º, da
CF/1988, de que é protegida a união estável entre o homem e a mulher, não
implica necessariamente na ausência de proteção à união estável entre duas
pessoas do mesmo sexo.
Ademais, entendo correto o uso da interpretação conforme em
detrimento da declaração de nulidade parcial sem redução de texto, pois o
tema discutido era saber qual, das duas interpretações possíveis (“proibição
implícita” ou ausência de proibição à união estável homoafetiva), seria a
única constitucionalmente válida. Logo, sendo a interpretação conforme a
técnica válida para atribuir, entre diversas variantes, a única interpretação
constitucionalmente válida, cabível seu uso para afirmar que o art. 1.723 do
CC/2002 não pode ser interpretado de forma a impedir o reconhecimento da
união estável homoafetiva, por interpretação extensiva ou analogia. De
qualquer forma, para quem entender correto o cabimento da declaração de
nulidade parcial sem redução de texto, considerando que seria absurdo
defender que o Tribunal deveria ter deixado de conhecer a ação pelo pedido
ser de interpretação conforme e não de declaração de nulidade sem redução
de texto ante o formalismo exacerbado (da “forma pela forma”) de uma tal
posição (simplesmente inacreditável), então seria o caso de reconhecimento
da fungibilidade entre as técnicas decisórias da interpretação conforme e da
declaração de nulidade parcial sem redução de texto para se entender que,
tendo a parte requerido uma quando seria o caso de outra, o juiz ou Tribunal
conhecer do pedido e aplicar a correta.

1 APPIO, Eduardo Fernando. Interpretação Conforme a Constituição: Instrumentos de


Tutela Jurisdicional dos Direitos Fundamentais, 1ª Edição (ano 2002), 3ª tiragem,
Curitiba: Juruá Editora, 2004, p. 17.
2 Cf. voto do relator, Ministro Ayres Britto, p. 32 do acórdão.
3 Isso porque toda discriminação que não seja fundamentada em uma motivação lógico-
racional é preconceituosa.
4 Quanto ao valor hermenêutico do princípio constitucional da dignidade da pessoa
humana (no que se estende esse entendimento aos demais), afirma Viviane Girardi,
citando Ingo Wolfgag Sarlet: “(...) ainda que considerada a mudança do eixo central da
codificação para a ordem constitucional e a proliferação de estatutos normativos
específicos, o sistema jurídico guarda sua unidade, exigindo diante dessa aparente
fragmentação uma interpretação coerente com os valores atuais que informam e
possibilitam a leitura sistematizada da ordem legal positivada. E, nesse aspecto, a
normativa constitucional é imperativa. (...)Poder-se-ia, então, afirmar que as decisões
jurisprudenciais no que concerne ao reconhecimento e respeito à homossexualidade
estariam concretizando a base antropológica da Carta Constitucional, que tem sua raiz
no princípio constitucional da dignidade da pessoa humana e sua irradiação na
efetivação e concretude dos direitos e garantias fundamentais, os quais, segundo Ingo
Wolfgang Sarlet ‘(...) constituem parâmetro hermenêutico e valores superiores de toda
a ordem constitucional e jurídica (...)’. Significa, em última análise, o reconhecimento
da singularidade do potencial humano, na medida em que todas as pessoas merecem
o tratamento isonômico porque ‘são iguais em dignidade’”. (GIRARDI, Viviane.
Famílias Contemporâneas, Filiação e Afeto: A Possibilidade Jurídica da Adoção por
Homossexuais, 1ª Edição, Porto Alegre: Editora Livraria do Advogado, 2005, p. 38 e
51).
5 O Ministro Gilmar Mendes foi o que mais se alongou na análise do tema. Em suas
palavras: “Desde o começo deste julgamento, eu fiquei preocupado com essa questão
e cheguei até a comentar com o Ministro Relator Ayres Britto, tendo em vista, como
amplamente confirmado, que o texto do Código Civil reproduz, em linhas básicas,
aquilo que consta do texto constitucional. E, de alguma forma, a meu ver, eu cheguei a
pensar que isso era um tipo de construto meramente intelectual-processual, que
levava os autores a propor a ação, uma vez que o texto, em princípio, reproduzindo a
Constituição, não comportaria esse modelo de interpretação conforme. Ele não se
destinava a disciplinar outra instituição que não fosse a união estável entre homem e
mulher, na linha do que estava no texto constitucional. Daí não ter polissemia, daí não
ter outro entendimento que não aquele constante do texto constitucional. Talvez o
único argumento que pudesse justificar a tese da aplicação ao caso da técnica da
interpretação conforme à Constituição seria a invocação daquela previsão normativa
de união estável entre homem e mulher como óbice ao reconhecimento da união entre
pessoas do mesmo sexo, como uma proibição decorrente daquele dispositivo. E, de
fato, é com base nesse argumento que entendo pertinente o pleito trazido nas ações
diretas de inconstitucionalidade. É preciso, portanto, que deixemos essa questão muito
clara, porque ela terá implicações neste e em outros casos quanto à utilização e,
eventualmente, à manipulação da interpretação conforme, que se trata inclusive de
uma interpretação conforme com muita peculiaridade, porque o texto é quase um
decalque da norma constitucional e, portanto, não há nenhuma dúvida quanto àquilo
que o legislador quis dizer, na linha daquilo que tinha positivado o constituinte. E o
texto, em si mesmo, nessas linhas, não é excludente – pelo menos essa foi a minha
primeira pré-compreensão – da possibilidade de se reconhecer a união estável entre
pessoas do mesmo sexo, não com base no texto legal (art. 1.723 do Código Civil),
nem na norma constitucional (art. 226, §3), mas com suporte em outros princípios
constitucionais. Todavia eu não diria que isso decorre do texto legal nem que está nele
albergada alguma proibição, mas tão somente – por isso que me parece e pelo menos
esse seria o meu juízo neste momento – que o único argumento forte a justificar aqui a
interpretação conforme à Constituição é o fato de o dispositivo do Código Civil estar
sendo invocado para impossibilitar o reconhecimento da união entre pessoas do
mesmo sexo. Do contrário, nós estaríamos a fazer um tipo de interpretação conforme
muito extravagante. É, dessa forma, portanto, que fundamento neste julgamento a
possibilidade de utilização da interpretação conforme à Constituição. Colhe-se dos
elementos dos autos e das sustentações orais dos amici curiae, bem como do
conteúdo do voto do Eminente Ministro Relator Ayres Britto e dos votos daqueles que
o sucederam, que o argumento determinante da ação é o de que essa norma legal tem
servido para fundamentar decisões no sentido negativo à pretensão formulada em
juízo, com o objetivo de se reconhecer a formalização da união entre pessoas do
mesmo sexo. Assim, o entendimento que autoriza a interpretação conforme à
Constituição é que o dispositivo impugnado está sendo aplicado de forma generalizada
para a proibição do reconhecimento da união entre pessoas do mesmo sexo. Tanto é
que, no pedido do Governador do Estado do Rio de Janeiro, formulou-se a
impugnação das próprias decisões judiciais que assim teriam decidido” (voto do
Ministro Gilmar Mendes, pp. 15-17. Grifos nossos).
6 Voto do Ministro Gilmar Mendes, p. 44.
7 Segundo o Ministro Peluso: “Começo por dizer que teria alguma dificuldade de ordem
teórica para conhecer das demandas como ações diretas de inconstitucionalidade, não
fosse o fato de que o disposto no artigo 1.723 do Código Civil não é reprodução estrita
do artigo 226, § 3.º, da Constituição Federal. Porque, se o fosse, obstáculo teórico e, a
meu ver, constitucional, estaria em que não seria possível cogitar-se de interpretação
conforme à Constituição de norma infraconstitucional que se limitaria, nessa hipótese,
a reproduzir texto constitucional. Estaríamos, sim, diante de um caso de pura
interpretação constitucional, que não poderia ser objeto de ação de
inconstitucionalidade sob pretexto de que teríamos que interpretar a própria
Constituição de acordo com a Constituição. Mas a diversidade de redação das normas
permite, e acho que isto é, de modo muito consistente, a sua racionalidade, a decisão
da Corte de conhecer das demandas, exatamente com base na não coincidência
semântica entre as duas normas, de tal modo que é possível enxergar o disposto no
artigo 1723 como preceito susceptível de revisão à luz do artigo 226, § 3.º, e de outras
normas constitucionais, que constam, aliás, como causa de pedir de ambas as
demandas” (voto do Ministro Peluso, p. 1. Grifo nosso).
8 STF, RE 158.700, DJ de 22/02/2002, segundo o qual “Não seria, entretanto, possível,
desde logo, extrair da regra do art. 226 e seu § 3.º, da Constituição, consequência no
sentido de reconhecer-se, desde logo, sem disciplina legislativa específica,
determinação de comunhão de bens entre homem e mulher, em união estável, de tal
forma que a morte de um deles importe o recolhimento automático de meação pelo
sobrevivente” No mesmo sentido: STF, MS 21.449, DJ de 17/11/05, que chega a
afirmar que “a norma do § 3.º do art. 226 da Constituição de 1988, que, além de haver
entrado em vigor após o óbito do instituidor, coloca, em plano inferior ao do
casamento, a chamada união estável, tanto que deve a lei facilitar a conversão desta
naquele”, em posição superada pelo julgamento da ADPF 132 e da ADI 4.277, que
afirmou a igualdade das entidades familiares constitucionalmente previstas (logo, a
igualdade da união estável relativamente ao casamento civil, que não é “superior”
àquela (vide capítulo 07, item 1). Seguindo a classificação de José Afonso da Silva, o
Supremo entendeu que dito dispositivo seria uma norma de eficácia limitada,
dependente de regulamentação legislativa para produzir efeitos (embora seja um erro
dizer que a norma não teria “entrado em vigor” antes de tal regulamentação – era
estava em vigor, mas, segundo tal entendimento, não seria passível de produzir efeitos
positivos, apenas negativos – não garantia direitos a uniões de fato pela ausência de
regulamentação, mas tornaria inconstitucionais leis que viessem a negar direitos à
união estável). Embora criticável (pois poderia entende-lo como norma de eficácia
contida, já que havia legislação previdenciária prévia que garantia direitos à concubina
quando a união tivesse pelo menos cinco anos de duração, o que poderia ser usado
como parâmetro suplementar à Súmula 380 do STF referente à comprovação da
sociedade de fato entre os concubinos para a divisão dos bens comprovadamente
adquiridos na constância da mesma), essa foi a posição do STF que prevaleceu até
1994, quando promulgada a primeira das leis de união estável. Assim, somente com a
promulgação da Lei 8.971/1994, a primeira a regulamentar o art. 226, § 3.º, da CF/88,
donde, devido a tal posicionamento do STF, foi somente em 1994 que a união estável
passou a ser efetivamente protegida pelo Estado. Posteriormente, foi promulgada a Lei
9.278/1996, que também regulamentou a união estável e, portanto, derrogou a Lei
8.971/1994 naquilo em que fossem incompatíveis. Com a promulgação do Código Civil
de 2002, que entrou em vigor em 11/01/03, surgiu o entendimento de que o Código
Civil revogou tacitamente as referidas leis de união estável por tratar de forma
específica do tema – foi a posição esposada pelo Ministro Celso de Mello na ADIn
3.300, em sua decisão monocrática que julgou extinta referida ação por ter atacado o
art. 1.º da Lei 9.278/1996, que o Ministro entendeu revogado pelo art. 1.723 do CC/02.
O tema, contudo, não é pacífico – Silvio de Salvo Venosa entende que as Leis
8.971/1994 e 9.278/1996 continuam em vigor, juntamente com os dispositivos do
Código Civil que também regulamentam a união estável, naquilo em que aquelas não
forem incompatíveis com a regulamentação disposta neste último, discussão esta que,
todavia, supera os limites deste trabalho (embora valha anotar que concordamos com
Venosa sobre o tema).
9 Cf. voto do relator, Ministro Ayres Britto, p. 32 do acórdão.
Capítulo 10

O PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE E
OS DIREITOS DOS CASAIS HOMOAFETIVOS

1. DA AUSÊNCIA DE RELAÇÃO RACIONAL ENTRE A


FINALIDADE DE SE PROTEGER A PROCRIAÇÃO COM A
PROIBIÇÃO DO CASAMENTO CIVIL HOMOAFETIVO E A
DISCRIMINAÇÃO (SUBPRINCÍPIOS DA ADEQUAÇÃO E DA
NECESSIDADE)
Como se verá em capítulo posterior, no qual demonstro o completo
descabimento das argumentações trazidas pela doutrina em geral para negar
a extensão do casamento civil e da união estável a casais homoafetivos, em
verdade se tem apenas uma única tentativa de argumentação material, a
saber, a questão da procriação, no sentido de que, por mais que o amor
existente nas uniões homoafetivas seja idêntico ao das uniões
heteroafetivas, a ideia de família jamais poderia perder de vista a noção de
procriação, pois, do contrário, a sociedade humana chegaria à sua extinção.
Ou seja, segundo os opositores da tese aqui perfilhada, a finalidade da
vedação ao casamento civil e à união estável entre casais homoafetivos
seria a proteção da procriação.
Contudo, mesmo essa argumentação é completamente arbitrária, não
sendo pautada pela lógica e pela racionalidade. Em primeiro lugar, é ilógica
essa argumentação, tendo em vista que não se proíbe o casamento civil de
heterossexuais estéreis, que não possuem capacidade procriativa, nem
mesmo potencial. Ou seja, argumenta-se, de um lado, que casais
homoafetivos não poderiam se casar em virtude de sua incapacidade de ter
prole biológica ao mesmo tempo em que não se levanta nenhum óbice ao
casamento civil a casais heteroafetivos estéreis, que são igualmente
incapazes de procriar... Admitir essa argumentação implicaria a aceitação de
se tratar desigualmente os iguais, tendo em vista que o critério de
discriminação que seus defensores dizem levarem conta é a capacidade
procriativa, e tanto casais homoafetivos quanto casais heteroafetivos
estéreis não possuem capacidade procriativa, sendo absolutamente iguais
neste quesito.
A ausência de lógica desta argumentação também pode ser aferida pelo
fato de que não constitui causa para anulação do casamento civil
heteroafetivo a infertilidade do cônjuge, ou ainda a sua recusa em manter
relações sexuais sem preservativos ou mesmo a sua recusa em manter
qualquer tipo de relações sexuais. Essas questões podem eventualmente
ocasionar o divórcio injustificado (sem culpa), mas jamais anulação do
casamento. Talvez pudesse ser defendido que dito casamento poderia ser
anulado por “erro quanto à pessoa” do outro cônjuge, caso o outro tivesse
se casado com o único intuito de procriar. Contudo, esta seria uma hipótese
excepcional, que teria que ser fartamente comprovada nos autos por meio
de testemunhas e/ou ampla dilação probatória para que pudesse ser
defendida.
Isso será demonstrado em capítulo posterior. A questão, aqui, refere-se
ao fato de que, ainda que se admitisse que a proibição do casamento civil
homoafetivo seria pautada unicamente na intenção de se proteger a
procriação, com o intuito de proteger os relacionamentos amorosos dos
quais possam nascer descendentes, mesmo assim verificar-se-ia a
inconstitucionalidade dessa discriminação, desta vez por afronta ao
princípio da proporcionalidade, especificamente pelo subprincípio da
adequação.
Afinal, o não reconhecimento do casamento civil homoafetivo não
trará nenhum benefício para as uniões heteroafetivas – a possibilidade ou
impossibilidade do mesmo é absolutamente irrelevante a estas. É absurdo
pensar que a mera regulamentação do casamento civil homoafetivo faria
que menos pessoas se engajassem em relacionamentos heteroafetivos e,
consequentemente, houvesse algum risco à perpetuação da espécie humana
(que é a conclusão a que se chega com o argumento ad terrorem ora
rebatido) – reitere-se: é completamente absurda essa ideia, totalmente
irracional, ilógica e inaceitável por quem tenha um mínimo de bom-senso e
conhecimento acerca da orientação sexual humana, pois esta não decorre de
uma “escolha” do indivíduo: as pessoas simplesmente se descobrem homo,
hétero ou bissexuais, inexistindo “opção” nessa seara. Assim, a
regulamentação do casamento civil homoafetivo não traria nenhum risco à
espécie humana, sendo completamente irracionais argumentações em
sentido contrário, especialmente porque ditos “argumentos” não são
acompanhados de provas, sendo baseados em meros subjetivismos daqueles
que o defendem. Mas, por mero amor ao debate, ainda que fosse
considerada esta absurda hipótese, atualmente existem técnicas de
fertilização artificial que poderiam perfeitamente superar os temores desse
absurdo argumento ad terrorem.
Por outro lado, as pessoas que defendem essa pseudoargumentação
aparentemente menosprezam a força da heterossexualidade, pois claramente
partem do pressuposto de que a mera regulamentação do casamento civil
homoafetivo faria que todas as pessoas, ou a sua maioria, passassem a
manter exclusivamente relacionamentos homoafetivos... Como dito, essa
hipótese é absurda, não merecendo outras considerações, sendo ela ainda
inacreditável justamente pelo absurdo que propugna.
Em outras palavras, para fins do princípio da proporcionalidade, é
absolutamente inadequada a medida utilizada (não reconhecimento do
casamento civil homoafetivo) com a finalidade pretendida (defesa da
procriação), ante a inutilidade daquela medida para alcançar essa pretensa
finalidade, restando, portanto, afrontado o subprincípio da adequação.
Nesse sentido, veja-se a decisão da Suprema Corte de Ontário
(Canadá)1, ao julgar inconstitucional o não reconhecimento do casamento
civil homoafetivo:

(a) Relação racional


(248) Admitindo que parte do que constitua o propósito do
casamento seja a criação de apoio institucional a relacionamentos
adultos que permita a possibilidade da procriação e da educação
infantil – ‘a restrição contra o casamento entre pessoas do mesmo
sexo, a meu ver, não tem uma relação racional com este objetivo’.
(249) Casais formados por pessoas do mesmo sexo têm e criam
crianças como resultado de uma variedade de arranjos reprodutivos e
parentais, nenhum dos quais seja único de parceiros do mesmo sexo.
Tanto casais formados por pessoas do mesmo sexo quanto
heterossexuais criam, adotam e concebem crianças através de
reprodução assistida e disposições testamentárias, formando
combinações familiares com crianças de prévios relacionamentos. O
fato de que muitos casais heterossexuais também concebem crianças
através de sexo heterossexual não é, a meu ver, uma base racional
para a distinção entre todos os heterossexuais e os casais formados
por pessoas do mesmo sexo pela concessão apenas àqueles de acesso
aos amparos institucionais do casamento [M. v. H. (…)].
(250) Eu acato o pedido e considero que a restrição contra o
casamento entre pessoas do mesmo sexo falha no teste da relação
racional porque ela tanto:
– é muito inclusiva quando permite que heterossexuais inférteis
se casem; e
– é pouco inclusiva ao negar aos pais do mesmo sexo e pretensos
pais o direito ao casamento [ibidem].

Ademais, a inadequação da medida a torna, evidentemente,


desnecessária, em afronta ao subprincípio da necessidade. Ou seja,
considerando que o não reconhecimento do casamento civil homoafetivo
não trará nenhum benefício aos relacionamentos heteroafetivos férteis,
então obviamente existem outras medidas menos gravosas aos direitos dos
casais homoafetivos do que o não reconhecimento da possibilidade jurídica
do casamento civil ou da união estável entre pessoas do mesmo sexo.
Qualquer outra medida seria menos gravosa e seria muito mais adequada
para que se atinja o propagado objetivo de estímulo aos relacionamentos
dos quais possam advir filhos biológicos, tendo em vista que o não
reconhecimento do casamento civil homoafetivo não ajudará em nada na
busca de dito objetivo, razão pela qual resta evidente que o subprincípio da
necessidade resta igualmente violado pela proibição do casamento civil
homoafetivo, donde inconstitucional tal medida restritiva também por esse
fundamento.
Essa é uma constatação objetiva, que não precisa de maiores
elucubrações ou constatações empírico-probantes para ser aferida. Assim,
plenamente cabível o reconhecimento desta inconstitucionalidade por
afronta aos subprincípios da adequação e da necessidade.
Aponte-se, por oportuno, que mesmo a aprovação do Projeto de Lei
1.151/1995, cujo substitutivo visa instituir a Parceria Civil Registrada entre
pessoas do mesmo sexo, não resolve nem a questão da isonomia (porque
concede menos direitos que o casamento civil) nem a da dignidade humana
(pois as “parcerias civis” ou “uniões civis” paralelas ao casamento civil
inegavelmente seriam vistas como menos dignas que os “casamentos
civis”), razão pela qual o reconhecimento de tais direitos aos casais
homoafetivos é medida adequada e necessária a atingir o fim pretendido.

2. DA ADEQUAÇÃO E DA NECESSIDADE DO
RECONHECIMENTO DA POSSIBILIDADE JURÍDICA DO
CASAMENTO CIVIL HOMOAFETIVO PARA O RESGUARDO
DA ISONOMIA E DA DIGNIDADE HUMANA DOS CASAIS
HOMOAFETIVOS
Demonstrou-se acima a absoluta inadequação e desnecessidade do não
reconhecimento do casamento civil homoafetivo para que se atinja o
propagado objetivo que se diz que se visa proteger, a saber, a procriação.
Neste subtópico, por sua vez, restará demonstrado que o reconhecimento do
direito ao casamento civil e à união estável aos casais homoafetivos é
medida adequada e necessária para resguardar a isonomia e a dignidade
humana destes – que é o objetivo deste trabalho.
Em verdade, isso já foi demonstrado nos capítulos anteriores. Ou seja,
no que tange ao princípio da igualdade, considerando que o casamento civil
é o único regime jurídico que confere todos os benefícios do Direito das
Famílias às uniões amorosas, a isonomia só será respeitada, ou seja, os
casais homoafetivos só terão os mesmos direitos conferidos aos casais
heteroafetivos caso seja reconhecido o direito destes ao casamento civil. Da
mesma forma, aqueles pares homoafetivos que não desejem se casar só
terão os mesmos direitos conferidos aos pares heteroafetivos que também
não desejam se casar caso seja reconhecida a sua união estável.
Por outro lado, com relação ao princípio da dignidade da pessoa
humana, considerando o arquétipo social existente em torno do casamento
civil, que faz as pessoas em geral acreditarem que só serão verdadeiramente
felizes ao se casarem, do que decorre que a sociedade em geral considera
que as uniões matrimonializadas se encontram em grau de superior
dignidade do que aquelas não matrimonializadas, a única maneira de não
afrontar a dignidade humana dos casais homoafetivos é pelo
reconhecimento de seu direito ao casamento civil.
Quanto à união estável, é indubitável que o status de “união estável” é
tido como muito mais digno do que o status de “sociedade de fato”
atualmente atribuído às uniões homoafetivas, que recebem o tratamento das
uniões concubinárias. Ora, enquanto a união estável é tratada pelo Direito
das Famílias, a “sociedade de fato” é regida pelo Direito das Obrigações,
justamente porque nesta se desconsidera o fato relevantíssimo de que se
trata de uma união amorosa para considerar o par como uma “sociedade
empresarial de fato”, que precisa ser dissolvida judicialmente para se apurar
o patrimônio de cada um. Assim, a única forma de resguardar a dignidade
humana dos pares homoafetivos que não desejem se casar, garantindo-lhes a
mesma dignidade conferida aos pares heteroafetivos que também não
desejem se casar, é por meio do reconhecimento da união estável
homoafetiva.
Inexiste outra medida apta a gerar tais resultados. Somente o
reconhecimento do casamento civil e da união estável entre casais
homoafetivos é capaz de chegar a tal resultado.
Dessa forma, o reconhecimento da possibilidade jurídica do casamento
civil e da união estável entre pessoas do mesmo sexo revela-se como
medida adequada e necessária para resguardar os direitos materiais
(isonomia) e imateriais (dignidade humana) das uniões homoafetivas, sendo
dito reconhecimento coerente com os subprincípios da adequação e da
necessidade, oriundos do princípio da proporcionalidade.

3. DA AUSÊNCIA DE DIREITO DE HETEROSSEXUAIS E CASAIS


HETEROAFETIVOS PREJUDICADO PELA POSSIBILIDADE
JURÍDICA DO CASAMENTO CIVIL E DA UNIÃO ESTÁVEL
ENTRE CASAIS HOMOAFETIVOS – SUBPRINCÍPIO DA
PROPORCIONALIDADE EM SENTIDO ESTRITO. STF, ADPF
132 E ADI 4.277
Como demonstrado em capítulo anterior, o subprincípio da
proporcionalidade em sentido estrito determina que, sendo a medida
perseguida adequada e necessária, deve ser feita uma ponderação entre o
bem que se visa proteger com dita medida e aquele que é por ela atingido
ou sacrificado, de forma a harmonizar os interesses constitucionalmente
consagrados, se possível, ou estabelecer uma hierarquia entre eles no caso
concreto, o que se faz com vistas a proferir a decisão mais justa possível em
casos de tensão entre direitos, no sentido de que o que se ganha com a
restrição ou sacrifício deve ser mais relevante do que o que se perde.
Nessa linha, o subprincípio da proporcionalidade em sentido estrito só
poderia ser utilizado para proibir o casamento civil homoafetivo caso
houvesse algum direito dos casais heteroafetivos em conflito com o direito
dos casais homoafetivos a se casarem civilmente para que fosse feita uma
ponderação entre os mesmos e se concluísse que o direito daqueles seria
mais relevante que o direito destes. Contudo, inexiste qualquer direito dos
casais heteroafetivos em conflito com o direito dos casais homoafetivos de
consagrarem suas uniões amorosas pelo casamento civil. Afinal, o não
reconhecimento do casamento civil homoafetivo não traz nenhum prejuízo
aos casais heteroafetivos, donde inexiste conflito de direitos no caso aqui
discutido; assim, não há que se falar em ponderação para justificar o não
reconhecimento do casamento civil e da união estável entre pessoas do
mesmo sexo.
Nesse sentido, verifica-se que inexiste direito de heterossexuais e de
casais heteroafetivos prejudicado pela possibilidade jurídica do casamento
civil e da união estável entre casais homoafetivos. Afinal, o fato de estes
serem reconhecidos não impedirá que heterossexuais continuem se casando
heteroafetivamente e não trará nenhum prejuízo ao que se entende por
casamento civil, tendo em vista que os casais homoafetivos que pretendem
se casar intencionam exatamente o mesmo que os casais heteroafetivos:
uma união baseada na fidelidade e na comunhão plena de vida e interesses,
de forma pública, contínua e duradoura, ou seja, pautada pelo amor
familiar.
Nesse sentido, a decisão do STF no julgamento da ADPF 132 e da ADI
4.277, que destacou a ausência de prejuízos a heterossexuais e casais
heteroafetivos pelo simples reconhecimento do direito de homossexuais e
casais homoafetivos terem suas uniões conjugais reconhecidas como
entidades familiares (como famílias conjugais).
Nas palavras do relator Ministro Ayres Britto: “não assiste às pessoas
heteroafetivas o direito de se contrapor à sua equivalência jurídica perante
os sujeitos homoafetivos”, mas, ao contrário, assiste “o direito dos
homoafetivos a tratamento isonômico com os heteroafetivos”2, pois “não se
pode alegar que os heteroafetivos perdem se os homoafetivos ganham”,
donde, dada a ausência de proibição normativa à união estável homoafetiva,
é de se reconhecer o regime jurídico da união estável a casais homoafetivos,
porque “não se proíbe nada a ninguém senão em face de um direito ou de
proteção de um interesse de outrem”3.
No mesmo sentido, o voto do Ministro Celso de Mello, ao afirmar que
esta decisão “não é nem pode ser qualificada como decisão proferida
contra alguém”4.
Ou seja, nas peremptórias palavras do Ministro Luiz Fux: “uma união
estável homoafetiva, por si só, não tem o condão de lesar a ninguém, pelo
que não se justifica qualquer restrição ou, como é ainda pior, a limitação
velada, disfarçada de indiferença”5 [o mesmo valendo, acrescento, para o
casamento civil].
Prevaleceu, assim, tese esposada na ADI 4.277, expressamente
referendado pelo voto do Ministro Celso de Mello, segundo a qual “não há
qualquer interesse legítimo que justifique o não reconhecimento da união
entre pessoas do mesmo sexo. O reconhecimento em questão não afeta
qualquer direito de terceiros ou bem jurídico que mereça proteção
constitucional. A sua recusa consubstancia medida autoritária, que busca
impor uma concepção moral tradicionalista e excludente a quem não a
professa, vitimizando os integrantes de uma minoria que sofre com o
preconceito social e a intolerância. Daí a grave ofensa ao princípio
constitucional de proteção da liberdade”6.
Ademais, as convicções religiosas de quem quer que seja não podem
servir de justificativa em sentido contrário, tendo em vista que: (a) o que se
pleiteia é o casamento civil, não ficando nenhuma religião obrigada a
abençoar as uniões homoafetivas pelo seu matrimônio religioso; (b) existem
muitas pessoas que entendem que Deus não condena a homossexualidade,
pessoas estas que também merecem ter sua liberdade de religião e crença
respeitada; e, especialmente, (c) a liberdade religiosa é um direito criado
para que as minorias religiosas sejam respeitadas e não para que a vontade
da maioria religiosa possa ser arbitrariamente imposta, lembrando-se aqui a
lição de Canotilho e de Vital Moreira no sentido de que a liberdade religiosa
significa o direito de não ter sua vida influenciada pela religião alheia7; (d)
o princípio do Estado Laico veda que argumentos religiosos influenciem
nos rumos políticos e jurídicos da nação.
Assim, fica evidente que, em verdade, não existe conflito de direitos
em discussão: temos apenas que o direito de os casais homoafetivos serem
tratados de forma isonômica e igualmente digna desrespeitado pelo não
reconhecimento do casamento ‘civil’ e da união estável entre eles (visto
que tais direitos são conferidos aos casais heteroafetivos), em flagrante
desrespeito ao Estado Laico (ante o inequívoco fundo religioso subjacente a
tal discriminação) e, ainda, em posição que acaba criando diferenças
arbitrárias e preferências de brasileiros entre si, o que resulta em afronta
direta ao já citado art. 19, III, da CF/19888.
Dessa forma, não há que se invocar o princípio da proporcionalidade
para justificar o atual preconceito jurídico existente contra os casais
homoafetivos, tendo em vista que nem sequer há direito dos casais
heteroafetivos em conflito com o direito dos casais homoafetivos que
justifique tal posição. Ao contrário, é a posição arbitrariamente
discriminatória que não reconhece tais direitos que afronta o princípio da
proporcionalidade, dada a completa inexistência de correlação lógico-
racional que justifique a concessão de menos direitos aos casais
homoafetivos do que aos casais heteroafetivos, o que denota a completa
irrazoabilidade de tal discriminação negativa.
Por outro lado, é de se lembrar que o casamento civil é o único regime
jurídico que confere a uma união amorosa a totalidade da proteção e
segurança jurídica do Direito das Famílias, assim como a união estável é o
único regime jurídico que garante o Direito das Famílias às uniões
amorosas não matrimonializadas. Assim, a isonomia exige o
reconhecimento da possibilidade jurídica do casamento civil e da união
estável entre pessoas do mesmo sexo pela interpretação extensiva ou pela
analogia. Da mesma forma, a dignidade humana também exige o
reconhecimento do casamento civil homoafetivo devido ao arquétipo social
existente em torno do mesmo, ou seja, pelo fato de as pessoas em geral
acreditarem que é somente por meio dele que se atingirá a verdadeira
felicidade e pelo fato de ele ser visto como legitimação máxima de uma
união amorosa, donde mesmo uma lei de união civil seria insuficiente para
garantir a proteção da dignidade humana dos casais homoafetivos. Quanto à
união estável, considerando que garante muito mais dignidade do que a
teoria das “sociedades de fato” atualmente aplicada pela maioria da
jurisprudência às uniões homoafetivas, o princípio da dignidade da pessoa
humana também exige o reconhecimento desse regime jurídico aos casais
homoafetivos.
Veja-se, nesse sentido, a decisão da Suprema Corte de Ontário
(Canadá),9 que declarou a inconstitucionalidade do não reconhecimento do
casamento civil homoafetivo:

(c) Ponderação entre os efeitos danosos e benéficos


(257) Sob este título esta corte deve decidir “se as consequências
da violação são tamanhas quando comparadas aos benefícios que
pretende atingir” [Thompson Newspaper (...)]. Nesse sentido, os
benefícios que ela pretende atingir, afirma o Estado, incluem a
assertiva de que as preocupações sociais relativas ao casamento –
como instituição fundante na sociedade moderna – são extremamente
complexas. Afirma que quando os benefícios são comparados contra a
exclusão de gays e lésbicas daquela instituição, as consequências aos
mesmos não são muito grandes.
(258) A essência das alegações do Estado no tema dos efeitos
danosos a gays e lésbicas é centrada na noção de que a marginalização
e a desvantagem histórica sofrida pelos mesmos não decorre da sua
incapacidade de se casar. Ao contrário, afirma, o preconceito que eles
têm sofrido não lhes tem sido direcionado por não poderem se casar –
mas por causa das atitudes sociais ante a homossexualidade.
(259) O Estado afirma que os benefícios historicamente negados a
gays e lésbicas como resultado da sua exclusão do casamento agora
lhes estão disponíveis pela legislação federal e em algumas províncias.
Em virtude da concessão dos benefícios materiais do casamento, o
Estado contende que o argumento dos Requerentes quanto aos efeitos
danosos da exclusão é reduzido ao mero reconhecimento que
atualmente é conferido aos casais formados por pessoas de sexos
diversos.
(260) Como já apontado em diversas ocasiões nessas razões,
aquela proposição é simplesmente errada. Para repetir, esse não é um
caso que envolve meramente nomenclatura, e ainda que se pudesse
dizer que se trata de “mero reconhecimento” – o reconhecimento em
questão que está sendo perseguido é por igualdade. ‘A essência do
que o Estado afirma já existir, e que ele diz que garante
reconhecimento legislativo às uniões de gays e lésbicas – realmente
implica nada mais do que tolerância – não se trata de total aceitação
legislativa’.
(261) No caso em tela, assim como no caso Vriend, “os efeitos
danosos da exclusão... são numerosos e claros” [Vriend v. Alberta]. A
restrição contra o casamento entre pessoas do mesmo sexo é uma
ofensa à dignidade de lésbicas e gays porque ela limita o alcance das
opções de relacionamentos disponíveis a eles. ‘O resultado é que lhes
é negada a autonomia para decidir se querem se casar’. Isso, ainda,
implica a sinistra mensagem de que eles não seriam merecedores do
casamento. Para aqueles casais formados por pessoas do mesmo sexo
que desejam se casar, a restrição impugnada representa uma rejeição
a suas aspirações pessoais e a negativa de seus sonhos.
(262) ‘Não há nenhuma evidência significativa que aponte para
qualquer benefício legítimo oriundo da negativa de direitos’. Nesse
caso, um impedimento absoluto à liberdade de casais formados por
pessoas do mesmo sexo se casarem não constitui o meio ‘menos
intrusivo’ pelo qual o Estado poderia atingir o proclamado objetivo de
prover apoio institucional aos casais que têm e criam crianças. Ao
contrário, esse objetivo é facilmente atingível sem a negativa da
liberdade de casamento aos casais formados por pessoas do mesmo
sexo.
(263) Ademais, não há nenhum mérito no argumento de que os
direitos e interesses de heterossexuais seria afetado pela concessão da
liberdade de se casar aos casais formados por pessoas do mesmo sexo.
Ao contrário da afirmação da Coalizão Interfé, ‘não se pode concluir
que a liberdade de religião seria ameaçada ou prejudicada pela sanção
legal ao casamento entre pessoas do mesmo sexo. Nenhuma instituição
religiosa seria compelida a solenizar um casamento entre pessoas do
mesmo sexo contra seus desejos e todas as pessoas religiosas – de
qualquer fé – continuariam a desfrutar da liberdade de manter e adotar
suas crenças. Outrossim, não há nenhuma necessidade de quaisquer
violações aos direitos igualitários de lésbicas e gays que decorram da
restrição ao casamento entre pessoas do mesmo sexo’.
(264) Neste caso, estou convencido de que, mesmo que a exclusão
dos casais formados por pessoas do mesmo sexo do reconhecimento
pelo casamento fosse, ao contrário, apropriada, ‘os danos da exclusão
são tão severos que a violação dos seus direitos e liberdades não
poderia ser justificada’. Dadas as sérias violações de direitos e
liberdades fundamentais, e à evidência de numerosos efeitos danosos
para um segmento já em desvantagem na sociedade, ‘eu não
vislumbro nenhum benefício que seja da exclusão’.

No mesmo sentido, Luís Roberto Barroso afirma restar afrontada a


proporcionalidade em sentido estrito pela restrição de direitos em virtude
da orientação sexual por ela não promover nenhum bem jurídico relevante,
mas mero moralismo totalitário de determinado grupo, que, embora
numeroso, não pode impor seus subjetivismos à ordem pluralista e
democrática em que vivemos10 – acrescento, ainda, que democracia não
significa ditadura da maioria, mas governo voltado ao respeito aos direitos
fundamentais, mesmo e especialmente quando se trate de direitos de grupos
minoritários. O autor é peremptório: “O não reconhecimento jurídico das
uniões homoafetivas não beneficia, em nenhuma medida, as uniões
convencionais e tampouco promove qualquer valor constitucionalmente
protegido”11.
Assim, enquanto a proporcionalidade em sentido estrito, de um lado,
não justifica o não reconhecimento do casamento civil e da união estável
entre pessoas do mesmo sexo pela ausência de direito de casais
heteroafetivos em conflito com tais direitos dos casais homoafetivos, de
outro impõe o reconhecimento desses direitos pelo mesmo motivo, razão
pela qual é novamente inconstitucional o não reconhecimento do casamento
civil e da união estável entre pessoas do mesmo sexo, por afronta ao
subprincípio da proporcionalidade em sentido estrito.

4. SÍNTESE CONCLUSIVA DO CAPÍTULO


Não se justifica o não reconhecimento do casamento civil e da união
estável entre pessoas do mesmo sexo sob o fundamento do princípio da
proporcionalidade em quaisquer de seus subprincípios, em virtude de:

a) inadequação, por não haver relação lógico-racional entre a


medida tomada (não reconhecimento daqueles direitos) e o fim que se
diz que se visa proteger (uniões amorosas que tenham capacidade
procriativa);
b) desnecessidade, pois, se a medida é inadequada, obviamente
existem outras menos gravosas para atingir o propagado objetivo; e
c) desproporção em sentido estrito, em virtude da ausência de
direito dos casais heteroafetivos em conflito com o direito dos casais
homoafetivos de terem reconhecidos seus direitos ao casamento civil e
à união estável.

Por outro lado, no que tange ao direito dos casais homoafetivos de


terem seu relacionamento amoroso regulamentado de forma isonômica em
relação ao dos casais heteroafetivos, deve-se lembrar: que o casamento civil
e a união estável são os únicos meios aptos a obter tal fim; que inexiste
meio menos gravoso para a sua obtenção (mesmo porque não há que se
falar em “gravame/prejuízo” a heterossexuais e a casais heteroafetivos em
virtude do reconhecimento de tais direitos); e, ainda, que inexiste direito de
casais heteroafetivos em conflito com o direito dos casais homoafetivos de
receberem um tratamento isonômico, o que só será possível mediante a
celebração de seu casamento civil e o reconhecimento de sua união estável.
Por outro lado, a aprovação do Projeto de Lei 1.151/1995, cujo
substitutivo visa instituir a “Parceria Civil Registrada” entre pessoas do
mesmo sexo, não resolve nem a questão da isonomia (porque concede
menos direitos que o casamento civil) nem a da dignidade humana (pois
“parcerias civis” e “uniões civis” paralelas ao casamento civil
inegavelmente seriam vistas como menos dignas que os “casamentos
civis”), razão pela qual o reconhecimento de tais direitos aos casais
homoafetivos é medida adequada e necessária a atingir o fim pretendido.
Assim, é a posição discriminatória que não reconhece tais direitos que
afronta o princípio da proporcionalidade, dada a completa inexistência de
correlação lógico-racional que justifique a concessão de menos direitos aos
casais homoafetivos do que aqueles conferidos aos casais heteroafetivos, o
que denota a completa irrazoabilidade de tal discriminação negativa.
É, inclusive, o que restou reconhecido pelo STF no julgamento da
ADPF 132 e na ADI 4.277, pois, nas palavras do Ministro Ayres Britto,
“não se pode alegar que os heteroafetivos perdem se os homoafetivos
ganham” 12, ao passo que, nas peremptórias palavras do Ministro Luiz Fux:
“uma união estável homoafetiva, por si só, não tem o condão de lesar a
ninguém, pelo que não se justifica qualquer restrição ou, como é ainda pior,
a limitação velada, disfarçada de indiferença”13 [o mesmo valendo,
acrescento, para o casamento civil].

1 Halpern v. Canadá (Attorney General), 2002, CanLII 42749 (ON S.C.D.C.). Disponível
em: http://www.canlii.org/on/cas/onscdc/2002/2002onscdc10000.html . Acesso em: 20
out. 2006 (tradução livre; sem grifos e destaques no original).
2 Vejamos o trecho integral dessa pertinente fala do relator: “Não se prestando como
fator de merecimento inato ou de intrínseco desmerecimento do ser humano, o
pertencer ao sexo masculino ou então ao sexo feminino é apenas um fato ou
acontecimento que se inscreve nas tramas do imponderável. Do incognoscível. Da
química da própria natureza. Quem sabe, algo que se passa nas secretíssimas
confabulações do óvulo feminino e do espermatozoide masculino que o fecunda, pois
o tema se expõe, em sua facticidade mesma, a todo tipo de especulação metajurídica.
Mas é preciso aduzir, já agora no espaço da cognição jurídica propriamente dita, que a
vedação e o preconceito em razão da compostura masculina ou então feminina das
pessoas também incide quanto à possibilidade do concreto uso da sexualidade de que
eles são necessários portadores. Logo, é tão proibido discriminar as pessoas em razão
da sua espécie masculina ou feminina quanto em função da respectiva preferência
sexual. Numa frase: há um direito constitucional líquido e certo à isonomia entre
homem e mulher: a) de não sofrer discriminação pelo fato em si da contraposta
conformação anátomo-fisiológica; b) de fazer ou deixar de fazer uso da respectiva
sexualidade; c) de, nas situações de uso emparceirado da sexualidade, fazê-lo com
pessoas adultas do mesmo sexo, ou não; quer dizer, assim como não assiste ao
espécime masculino o direito de não ser juridicamente equiparado ao espécime
feminino – tirante suas diferenças biológicas –, também não assiste às pessoas
heteroafetivas o direito de se contrapor à sua equivalência jurídica perante sujeitos
homoafetivos. O que existe é precisamente o contrário: o direito da mulher a
tratamento igualitário com os homens, assim como o direito dos homoafetivos a
tratamento isonômico com os heteroafetivos” (voto do Ministro Ayres Britto, pp. 16-17.
Grifos nossos).
3 Observemos o trecho integral dessa relevante fala do relator, sobre o § 3.º do art. 226
da CF/88: “As diferenças nodulares entre ‘união estável’ e ‘casamento civil’ já são
antecipadas pela própria Constituição, como, por ilustração, a submissão da união
estável à prova dessa estabilidade (que só pode ser um requisito de natureza
temporal), exigência que não é feita para o casamento. Ou quando a Constituição
cuida da forma de dissolução do casamento civil (divórcio), deixando de fazê-lo quanto
à união estável (§ 6.º do art. 226). Mas tanto numa quanto noutra modalidade de
legítima constituição da família, nenhuma referência é feita à interdição, ou à
possibilidade de protagonização por pessoas do mesmo sexo. Desde que
preenchidas, também por evidente, as condições legalmente impostas aos casais
heteroafetivos. Inteligência que se robustece com a proposição de que não se proíbe
nada a ninguém senão em face de um direito ou de proteção de um interesse de
outrem. E já vimos que a contraparte específica ou o focado contraponto jurídico dos
sujeitos homoafetivos só podem ser os indivíduos heteroafetivos, e o fato é que a tais
indivíduos não assiste o direito a não equiparação jurídica com os primeiros. Visto que
sua heteroafetividade em si não os torna superiores em nada. Não os beneficia com a
titularidade exclusiva do direito à constituição de uma família. Aqui, o reino é da
igualdade pura e simples, pois não se pode alegar que os heteroafetivos perdem se os
homoafetivos ganham. E quanto à sociedade como um todo, sua estruturação é de se
dar, já o dissemos, com fincas na fraternidade, no pluralismo e na proibição do
preconceito, conforme os expressos dizeres do preâmbulo da nossa Constituição [e]
do inciso IV do seu art. 3.º” (voto do Ministro Ayres Britto, pp. 30-31. Grifos nossos).
4 Vejamos, de forma integral, essa pertinente fala do Ministro Celso de Mello: “Esta
decisão – que torna efetivo o princípio da igualdade, que assegura respeito à liberdade
pessoal e à autonomia individual, que confere primazia à dignidade da pessoa humana
e que, rompendo paradigmas históricos e culturais, remove obstáculos que, até agora,
inviabilizavam a busca da felicidade por parte de homossexuais vítimas de tratamento
discriminatório – não é nem pode ser qualificada como decisão proferida contra
alguém, da mesma forma que não pode ser considerada um julgamento a favor de
alguns. Com este julgamento, o Brasil dá um passo significativo contra a discriminação
e contra o tratamento excludente que têm marginalizado grupos minoritários em nosso
País, o que torna imperioso acolher novos valores e consagrar uma nova concepção
de Direito fundada em nova visão de mundo, superando os desafios impostos pela
necessidade de mudança de paradigmas, em ordem a viabilizar, como política de
Estado, a instauração e a consolidação de uma ordem jurídica genuinamente
inclusiva” (voto do Ministro Celso de Mello, pp. 13-14. Grifos nossos).
5 Como complemento e fundamento de tal afirmação, o Ministro Fux citou a lição da
espanhola María Martín Sánchez em sua tese de doutoramento (Matrimonio
Homosexual y Constituición. Valencia: Tirant Lo Blanch, 2008, p. 115), para quem
“limitar a liberdade de atuação do indivíduo através do não reconhecimento – como,
até há muito pouco, no caso de contrair matrimônio entre pessoas do mesmo sexo –
ou através de omissão na Lei – neste caso, nas leis que, até há pouco, vinham
disciplinando o casamento – só teria justificação se se argumentasse que dita
limitação ou restrição da liberdade obedece à proteção de algum valor, princípio ou
bem constitucional, de modo que, efetuada uma ponderação de bens em jogo, seria
conveniente estabelecer essa limitação. No entanto, não parece existir nenhum valor,
princípio ou bem constitucional em risco, cuja proteção necessite de tal restrição. A
esse respeito, faz-se preciso, ademais, ter presentes o resto de argumentos e
fundamentos constitucionais já aportados anteriormente, tais como a igualdade e a
proibição de discriminação, e a dignidade da pessoa, para além desse direito genérico
à liberdade individual” (voto do Ministro Luiz Fux, pp. 19-20. Grifos, tradução e fonte do
original).
6 Cf. voto do Ministro Celso de Mello, p. 33.
7 CANOTILHO, José Joaquim Gomes e MOREIRA, Vital. Constituição Portuguesa
Anotada, 1.a Edição Brasileira, 4.a Edição Portuguesa, São Paulo: Editora Revista dos
Tribunais e Coimbra: Coimbra Editora, 2007, vol. I, p. 609. No original: “(...) A liberdade
de religião é a liberdade de adoptar ou não uma religião, de escolher uma determinada
religião, de fazer proselitismo num sentido ou noutro, de não ser prejudicado por
qualquer posição ou atitude religiosa ou antirreligiosa. (...)” (sem grifo no original).
8 “Art. 19. É vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios: (...) III –
criar distinções entre brasileiros ou preferências entre si.”
9 Halpern v. Canadá (Attorney General), 2002, CanLII 42749 (ON S.C.D.C.). Disponível
em: http://www.canlii.org/on/cas/onscdc/2002/2002onscdc10000.html. Acesso em: 20
out. 2006 (tradução livre; grifos nossos).
10 BARROSO, Luís Roberto. Diferentes mas iguais: O reconhecimento jurídico das
relações homoafetivas no brasil, Revista de Direito do Estado, n. 5, p. 167 e ss, 2007.
No original: “Ocorre, porém, que o não reconhecimento das uniões estáveis entre
pessoas do mesmo sexo não promove bem jurídico que mereça proteção em um
ambiente republicano. Ao contrário, atende apenas a uma determinada concepção
moral, que pode até contar com muitos adeptos, mas que não se impõe como
juridicamente vinculante em uma sociedade democrática e pluralista, regida por uma
Constituição que condena toda e qualquer forma de preconceito. Esta seria uma forma
de perfeccionismo ou autoritarismo moral, próprio dos regimes totalitários, que não se
limitam a organizar e promover a convivência pacífica, tendo a pretensão de moldar
indivíduos adequados. Em suma, o que se perde em liberdade não reverte em favor de
qualquer outro princípio constitucionalmente protegido” (sem grifos e destaques no
original).
11 Ibidem, p. 33.
12 Voto do Ministro Ayres Britto, p. 31.
13 Voto do Ministro Luiz Fux, p. 19.
Capítulo 11

DA INCOERÊNCIA DAS JUSTIFICAÇÕES DA


DOUTRINA PARA O NÃO
RECONHECIMENTO DA
FAMÍLIA/ENTIDADE FAMILIAR
HOMOAFETIVA

“A lei não acolhe razões que têm por fundamento o preconceito e a


discriminação, portanto o que a lei não proíbe não pode o intérprete
inovar.” – Siro Darlan, Magistrado da 1.ª Vara da Infância e da
Juventude do Rio de Janeiro, em sentença proferida no Processo
97/1/03710-8, em 20.01.1998.

Deixa-se de manter a íntegra de tal capítulo nesta versão impressa para


que não se aumentasse consideravelmente o número de páginas do livro por
força das atualizações e, portanto, seu preço aumentasse. O que aqui consta
é o equivalente à síntese conclusiva da 1ª Edição, com as devidas
atualizações. A ideia é disponibilizar a íntegra das considerações aqui
sintetizadas em versão online – para maiores informações, remete-se o
leitor para o seguinte link:
http://pauloriv71.wordpress.com/2012/10/02/manual-da-homoafetividade-
segunda-edicao-capitulos-online/
A doutrina e a jurisprudência em nenhum momento provam a
necessidade e a pertinência da discriminação das uniões homoafetivas em
relação às heteroafetivas. O máximo que fazem é alegar que a ausência de
capacidade procriativa potencial nas uniões entre pessoas do mesmo sexo
impossibilitaria a sua colocação como entidades familiares. Todavia, não
constando do rol taxativo do art. 1.521 do Código Civil que pessoas estéreis
não podem se casar, e considerando especialmente que nenhum óbice se
levanta quando casais heteroafetivos inférteis pretendem o reconhecimento
de sua condição jurídico-familiar, assim como tendo em conta a ausência de
prejuízos à criação de crianças e adolescentes por casais homoafetivos
(como diversos estudos empíricos já demonstraram), fica evidente que o
elemento discriminador erigido não é a capacidade procriativa, mas a
homogeneidade/diversidade de sexos do casal. Nessa linha, considerando
que não há fundamentação válida ante a isonomia [lógico-racional] que
justifique a discriminação negativa de casais homoafetivos em relação aos
heteroafetivos, e mesmo de casais sem capacidade procriativa em relação
àqueles que a possuem, é inconstitucional qualquer interpretação que vise
vedar o casamento civil e a união estável entre pessoas do mesmo sexo.
Não há que se invocar a definição tradicional de casamento para se
dizer que casamento só poderia ocorrer entre homem e mulher, pois é
preciso analisar se discriminação às uniões homoafetivas daí decorrente é
compatível ou não com o princípio da igualdade – e, como não é pela
absoluta arbitrariedade de tal discriminação, tem-se que essa “definição
tradicional” é inconstitucional e, portanto, não pode ser aceita. Ademais, o
cabimento de interpretação extensiva ou analogia por termos situações
idênticas ou, no mínimo, equivalentes por ambas formarem uma família
conjugal demanda pelo reconhecimento do direito de casais homoafetivos
ao casamento civil, tanto por lições de Direito Civil Clássico (colmatação
de lacunas por interpretação extensiva ou analogia) quanto pela irradiação
das normas constitucionais na interpretação das leis, donde o princípio da
igualdade impõe o reconhecimento do direito ao casamento civil a casais
homoafetivos por tais técnicas hermenêuticas de interpretação. Até porque
o “conceito de casamento” já foi alterado diversas vezes para permitir, por
exemplo, que as mulheres pudessem escolher seus maridos (sem ficarem
submissas à vontade de seus pais nesse tema), para se admitir o casamento
entre pessoas de “raças” diferentes (o casamento entre brancos e negros já
foi criminalizado no passado, nos EUA), a igualdade de direitos entre
homens e mulheres na sociedade conjugal heteroafetiva e a igualdade entre
filhos advindos da relação matrimonial e de relações extramatrimoniais,
questões estas vedadas pelo “conceito de casamento” do passado1.
Nesse sentido, considerando que homossexuais em geral crescem no
mesmo contexto social cujo inconsciente coletivo que prega como “ideal de
família” aquela consagrada pelos laços do casamento civil, o direito à busca
da felicidade dos mesmos demanda pelo reconhecimento do direito
daqueles casais homoafetivos que o desejarem de consagrarem suas uniões
pelo casamento civil. É irrelevante ser incorreta tal percepção acerca do
“ideal de família” pela igual dignidade dos diversos modelos familiares que
não gerem prejuízos e opressões a terceiros: fato é que uma concepção não
totalitária de mundo demanda que se reconheça aos casais homoafetivos
que o quiserem consagrarem suas uniões amorosas pelo regime jurídico do
casamento civil e o análogo regime jurídico da união estável. Até porque o
casamento não é um modelo heterossexual/heteroafetivo, o casamento é um
modelo humano de relações romântico-conjugais que, por motivos
arbitrários e preconceituosos, teve sua aplicação restrita apenas a casais
heteroafetivos ao longo da história humana até a sua extensão pontual a
casais homoafetivos em alguns lugares do mundo a partir da década de
1990. Nessa linha, é absolutamente natural que homossexuais desejem
consagrar suas uniões amorosas pelo casamento, na medida em que são
criados no interior do mesmo inconsciente coletivo no qual são criados os
heterossexuais, segundo o qual a pessoa só atingirá a genuína felicidade se
consagrar sua união amorosa pelo casamento e se tiver filhos (biológicos ou
adotivos, via sexualidade heteroafetiva ou via inseminação artificial). Certa
ou errada, essa é a concepção na qual estamos inseridos e na qual somos
moldados a acreditar pelo inconsciente coletivo social respectivo. Logo, é
absolutamente inadequado defender que homossexuais deveriam procurar
modelos próprios de família (seja lá o que isso queira dizer) e não aderir ao
modelo humano de família romântico-conjugal do casamento civil (que não
é exclusivamente heterossexual) – quem quiser a este aderir, tem que ter o
direito de fazê-lo, pois, como bem diz Roberto Lorea Arriada, “O
casamento civil é um direito humano, não um privilégio heterossexual” 2.
Ademais, é de se notar que inexiste afronta à liberdade de crença e de
religião de pessoa nenhuma com o reconhecimento da possibilidade jurídica
do casamento civil homoafetivo. Afinal, nenhuma religião estará obrigada a
celebrar um casamento religioso homoafetivo se tal não estiver em
consonância com seus dogmas. Consequentemente, não há que se falar nem
sequer em “conflito de direitos” e, assim, em ponderação, visto que inexiste
tensão entre tais direitos no caso aqui discutido. Isso porque o
reconhecimento do direito dos casais homoafetivos a consagrarem suas
uniões pelo casamento civil não prejudicará o direito dos casais
heteroafetivos a igualmente se casarem. Em outras palavras, ao contrário do
que muitos aparentam defender, o reconhecimento do direito de
homossexuais se casarem civilmente com pessoas do mesmo sexo não
impedirá que heterossexuais se casem com pessoas de sexo oposto e muito
menos influenciará estes a se casarem com pessoas do mesmo sexo – é
absurda essa ideia, inconcebível a quem tenha um mínimo de bom senso e
de conhecimento acerca do tema da orientação sexual (justamente pela
sexualidade não ser uma “opção” do indivíduo, pois ninguém escolhe ser
homo, hétero ou bissexual: as pessoas simplesmente se descobrem de uma
forma ou de outra).
Ao revés, é a liberdade religiosa de homossexuais que resta afrontada,
na medida em que estes têm sua vida ditada pela religião alheia, o que
caracteriza inequívoca afronta à sua liberdade religiosa, nos termos da lição
de Canotilho e Vital Moreira3, segundo os quais a liberdade religiosa
garante o direito a não ter sua vida regida pela religião alheia.
Ademais, a sociedade não terá nenhum prejuízo pelo reconhecimento
do direito de casais homoafetivos ao casamento civil, na medida em que
isto não obrigará heterossexuais a se casarem com uma pessoa do mesmo
sexo e, portanto, não impedirá que heterossexuais continuem a manter
relacionamentos conjugais heteroafetivos, donde o mundo não acabará pelo
simples fato de se reconhecer a união homoafetiva como família conjugal
merecedora da proteção dos regimes jurídicos do casamento civil e da união
estável, como inacreditavelmente algumas pessoas aparentam sustentar ao
se oporem a tanto sob o “fundamento” de que o mundo pode acabar se
homens passarem a se relacionar com homens e mulheres com mulheres
(argumento absurdo que parece presumir que o simples reconhecimento do
direito ao casamento civil a casais homoafetivos faria com que
heterossexuais deixassem de desejar manter relacionamentos heteroafetivos
e fossem preferir os homoafetivos, “temor” este manifestamente descabido
pela obviedade segundo a qual heterossexuais não deixarão de sê-lo pelo
simples fato de se reconhecer a casais homoafetivos o direito aos regimes
jurídicos do casamento civil e da união estável). Chega a ser desrespeitoso à
própria heterossexualidade a noção de que o reconhecimento estatal do
casamento civil homoafetivo traria o risco de o mundo acabar (!), pois uma
tal concepção denota uma fragilidade da heterossexualidade, no sentido de
que o simples reconhecimento do direito ao casamento civil homoafetivo
faria com que heterossexuais desejassem manter relacionamentos conjugais
homoafetivos... logo, absolutamente descabida a absurda argumentação ad
terrorem aqui criticada.
Descabido, ainda, pretender-se conceder a casais homoafetivos os
mesmos direitos do casamento civil mediante uma “união civil” paralela,
pois isto implicaria em institucionalizar a nefasta política do “separados,
mas iguais”, que tanto assolou a convivência entre negros e brancos no
passado mediante a garantia àqueles de direitos equivalentes aos destes,
mas em locais separados (assentos separados, escolas separadas etc).
Parafraseando decisão da Suprema Corte de Ontário/Canadá que
reconheceu o direito ao casamento civil homoafetivo, estabelecer-se uma
união civil paralela específica para casais homoafetivos implicaria em o
Estado difundir a sinistra mensagem segundo a qual estes não seriam
dignos do casamento civil, de sorte a se classificar as uniões heteroafetivas
como “mais dignas” e/ou “mais iguais” do que as uniões homoafetivas, algo
absolutamente inaceitável pelo dever de igual respeito e consideração
devido às pessoas em geral (logo, também a homossexuais e casais
homoafetivos relativamente a heterossexuais e casais heteroafetivos)
decorrente dos princípios da isonomia e da dignidade da pessoa humana
(direito ao igual respeito e consideração), já que aquele veda diferenciações
arbitrárias e esta garante igual dignidade a todas as pessoas humanas por
sua mera humanidade, bem como veda a instrumentalização das pessoas no
sentido de se garantir-lhes direitos apenas caso adotem um modo de vida
específico, considerado como “mais adequado” pelo Estado. O direito ao
respeito às individualidades decorrente do princípio da igualdade material
demanda por igual respeito e consideração às uniões homoafetivas
relativamente às heteroafetivas, o que supõe o reconhecimento do direito ao
casamento civil àquelas.
No que tange à “teoria da inexistência do ato jurídico”, ela nada mais é
do de uma forma disfarçada de discriminação, cuja consequência é idêntica
à de declaração de nulidade (extirpação dos efeitos jurídicos do ato em
questão), sendo, assim, uma tentativa de burlar a regra de que não há
nulidade sem texto. Trata-se, ainda, de uma construção puramente
doutrinária, sem nenhum amparo legal/normativo que a fundamente. Em
suma, é uma invenção doutrinária que visa burlar a regra segundo a qual
não há nulidade sem texto (oriunda do art. 5.o, II, da CF/1988, em
interpretação teleológica) para atribuir ao ato tachado de “inexistente” a
mesma punição atribuída ao ato nulo, a saber, a extirpação dos efeitos por
ele produzidos, com a enorme diferença que as “condições de validade” que
geram a nulidade precisam estar previstas em lei, ao passo que as supostas
“condições de existência” não estão previstas em texto normativo nenhum,
donde se percebe ser absurda dita teoria, porque atribui ao subjetivismo do
intérprete o poder de fazê-lo ao mesmo tempo em que erigiu a regra
segundo a qual não há nulidade sem texto justamente para fins de segurança
jurídica, que resta inequivocamente afrontada por essa despótica e arbitrária
teoria da inexistência de atos existentes, além de afrontar o princípio da
separação dos poderes ao atribuir ao intérprete o poder de legislação
positiva para vedar situações não vedadas pela lei.
Ou seja: a partir do momento em que a consequência final da
declaração judicial de inexistência é a mesma da declaração judicial de
nulidade, tem-se por absolutamente descabida aquela teoria no que tange a
fatos que efetivamente existiram, visto implicar em afronta direta ao
preceito de que não há nulidade sem texto, que é oriundo do princípio da
legalidade (art. 5.o, II, da Constituição Federal). Admitir o contrário implica
dar ao intérprete e ao juiz o poder de extirpar do ordenamento jurídico um
ato ou negócio unicamente de acordo com o seu subjetivismo pessoal, o que
é inaceitável em um Estado que se considere de Direito e, especialmente,
Democrático e Social, como o brasileiro.
Desta feita, como em nenhum momento o Direito das Famílias pátrio
consagra a “teoria da inexistência de atos faticamente existentes”, tem-se
que ela nada mais é do que uma forma criada pela doutrina para burlar o
princípio geral de Direito de que não há nulidade sem texto. Sendo assim,
como toda forma de discriminação, para que seja válida há que estar de
acordo com o princípio da isonomia, o que não ocorre no presente caso,
ante a ausência de motivação lógico-racional que justifique a discriminação
negativa das uniões homoafetivas em relação às heteroafetivas com base,
unicamente, na homogeneidade/diversidade de sexos do casal, donde se tem
por inconstitucional dita teoria.
No mesmo sentido, nem se avente invocar um suposto “silêncio
eloquente” do art. 226, § 3.o, da CF/1988 para negar a união estável
homoafetiva (e mesmo o casamento civil homoafetivo) em virtude de ser tal
teoria inaceitável, na medida em que: (i) afronta o art. 5.o, II, da CF/1988,
que determina que somente texto expresso pode proibir determinada
situação ou conduta [no máximo, norma implícita decorrente de texto
expresso]; (ii) contraria histórica praxe legislativa nesse sentido [de que,
quando o legislador quer proibir algo, ele o faz – expressamente]; (iii) parte
de puro subjetivismo do intérprete para definir quais situações teriam sido
deliberadamente não regulamentadas pelo legislador. Mas, ainda que aceita
a referida teoria, é de se notar que inexistem provas que demonstrem que
teria havido um “silêncio eloquente” do Constituinte Originário no que
tange às uniões homoafetivas: há mero subjetivismo de intérpretes nesse
sentido, pois dita teoria é inaplicável na ausência de prova robusta no
sentido do suposto silêncio intencional do Constituinte. Com efeito, ainda
que se adote o originalismo interpretativo que o Ministro Lewandowski
aplicou no seu voto no julgamento da ADPF 132 e da ADI 4277, para se
interpretar a Constituição apenas de acordo com a vontade dos
Constituintes e se entenda como ele que o Constituinte de 1988 teria
decidido não abarcar a união homoafetiva no conceito de união estável
(voto vencido neste ponto, por tal tese não ter sido acolhida pela maioria
dos demais Ministros e Ministras), deve-se considerar que dita “proibição
implícita” impediria somente o reconhecimento da união homoafetiva como
“união estável”, sem que se proíba o reconhecimento da mesma como
“entidade familiar autônoma” (que foi o que fez o Ministro Lewandowski:
reconheceu a “união homoafetiva estável” como entidade familiar
autônoma pelo fato de o rol de entidades familiares do art. 226 da CF/88 ser
meramente exemplificativo e não taxativo).
Nesse sentido, sendo a família conjugal o objeto de proteção dos
regimes jurídicos do casamento civil e da união estável, a teoria das
garantias institucionais não justifica o não reconhecimento de tais direitos
aos casais homoafetivos. Com efeito, considerando que o que dita teoria
impede é que o núcleo de determinados institutos jurídicos seja afrontado
pelo legislador, considerando que o núcleo dos regimes jurídicos do
casamento civil e da união estável é a proteção das famílias conjugais, tem-
se que o fato de a união homoafetiva constituir-se, fática e materialmente,
uma família conjugal significa que o reconhecimento do direito ao
casamento civil e à união estável por casais homoafetivos não afronta a
teoria das garantias institucionais, justamente pelo fato de tal
reconhecimento ser coerente com o núcleo de tais regimes jurídicos, que é a
proteção das famílias conjugais. Logo, absolutamente lícito o
reconhecimento do casamento civil e da união estável a casais
homoafetivos por estes se enquadrarem no suporte fático das normas
respectivos, no fato jurígeno que as mesmas visam regulamentar, que é a
família conjugal.
Ressalte-se, ainda, que a decisão nesse sentido não implica usurpação
da competência do Congresso Nacional e, consequentemente, afronta ao
princípio da separação dos poderes decorrente de “legislação positiva” do
Poder Judiciário. Afinal, reconhecer a possibilidade jurídica do casamento
civil homoafetivo com base na interpretação extensiva ou na analogia (que
não são formas de legislação positiva, mas de integração do ordenamento
jurídico no caso concreto) implica apenas reconhecer o real objeto de
proteção das leis do casamento civil e da união estável, a saber, a família
conjugal, formada pelo amor familiar (o amor romântico que vise à
comunhão plena de vida e interesses, de forma pública, contínua e
duradoura), amor este que é o elemento formador da família conjugal
contemporânea. Isso porque, a partir do momento em que temos textos
normativos expressos que permitem a utilização da interpretação extensiva
e da analogia para colmatar lacunas normativas (art. 4º da LINDB e art. 126
do CPC), tem-se que o ordenamento jurídico defere ao Judiciário o dever-
poder de garantir à situação não citada ou não regulamentada pela norma o
regime jurídico desta, como consequência do princípio constitucional da
igualdade, que demanda por tratamento igual a situações idênticas ou
equivalente. Nesse sentido, se o próprio Poder Legislativo permitiu ao
Poder Judiciário integrar as lacunas normativas pela interpretação extensiva
ou pela analogia, então não há que se falar em afronta ao princípio da
separação dos poderes quando dita integração é efetivamente realizada. A
lei já existe: a questão é que determinada situação (fato), que se encontra no
objeto de proteção da norma (interpretação teleológica – valor) não foi por
ela citada, razão pela qual deve ela ser protegida por ditas técnicas de
integração do sistema jurídico e motivo este que demonstra inexistir
“criação de lei” pelo Judiciário ao fazê-lo. Entendimento em sentido
contrário significa nada menos do que negar vigência aos dispositivos
legais que consagram a interpretação extensiva e a analogia ou então
considera-los “inconstitucionais”, o que claramente não é o posicionamento
correto por serem tais técnicas integrativas de lacunas concretizações da
isonomia. Afinal, o ordenamento jurídico brasileiro admite a integração de
lacunas normativas pela interpretação extensiva ou pela analogia, inclusive
por imposição da isonomia – qualquer que seja a natureza da norma, mesmo
que de ordem pública, dada a ausência de proibição quanto a colmatação de
lacunas de normas de ordem pública.
Relativamente à hermenêutica jurídico-filosófica4, tem-se que,
considerando a inexistência de texto normativo expresso que proíba o
reconhecimento do casamento civil e da união estável a casais
homoafetivos, tem-se que referida hermenêutica nos faz reconhecer que é
ilegítima a tradição social que interpreta restritivamente o art. 226, §3º, da
CF/88 e os arts. 1514 e 1723 do CC/02 para não reconhecer tais regimes
jurídicos a casais homoafetivos, visto que a razão crítica demonstra que a
união homoafetiva é pautada pelo mesmo elemento valorativamente
protegido pelos regimes jurídicos do casamento civil e da união estável
quando citam o fato heteroafetivo em sua literalidade normativa, a saber, o
amor familiar, o amor conjugal que vise a uma comunhão plena de vida e
interesses, de forma pública, contínua e duradoura, o que ocorre justamente
pela situação de estranhamento oriunda de tratamento desigual a situações
idênticas ou, no mínimo, análogas, a saber, o fato homoafetivo (união
homoafetiva) relativamente ao fato heteroafetivo (união heteroafetiva). A
questão se resume no fato de que não há nada no texto normativo do art.
226, §3º, da CF/88 que impossibilite a aplicação da interpretação extensiva
ou da analogia para reconhecer a possibilidade jurídica do casamento civil e
da união estável a casais homoafetivos.
Ainda sobre a hermenêutica filosófica, é perfeitamente aplicável aqui a
lição de Konrad Hesse5 no sentido de que “A interpretação adequada é
aquela que consegue concretizar, de forma excelente, o sentido (Sinn) da
proposição normativa dentro das condições reais dominantes numa
determinada situação”, razão pela qual “uma mudança das relações fáticas
pode - ou deve - provocar mudanças na interpretação da Constituição”.
Claro, Hesse fala a seguir que o sentido da proposição jurídica estabelece o
limite de qualquer mutação normativa, o que significa, como diz Gadamer,
que não está autorizado o intérprete a “dizer qualquer coisa sobre qualquer
coisa”6. Contudo, a lição de Hesse é aplicável na medida em que dizer que é
reconhecida a união estável entre o homem e a mulher é diferente de dizer
que ela é reconhecida apenas entre o homem e a mulher - o apenas só é
“lido” por quem entende que a união homoafetiva não configura
(materialmente) uma união estável. Eis a questão: a união estável é um
conceito jurídico indeterminado (assim como é a família, do caput do art.
226 da CF/88), sendo que dizer que a expressão entre o homem e a mulher
impossibilitaria por si, por esta mera literalidade normativa, o
reconhecimento da possibilidade jurídica do casamento civil e da união
estável entre casais homoafetivos significa adotar (ainda que apenas neste
caso) um puro legalismo acrítico, ou seja, aquele que só reconhece como
juridicamente possível aquilo que está expressamente previsto na
legislação, algo descabido pelo notório e inegável cabimento de
interpretação extensiva ou analogia para se estender tais regimes jurídicos a
casais homoafetivos por força do art. 4º da LINDB e do art. 126 do CPC/73.
Esse legalismo cego avalorativo negador da tese aqui defendida significa
deixar de compreender a união estável e o casamento civil em seu ser-no-
mundo por conta da mera literalidade normativa do texto legal e
constitucional, ignorando a lição basilar da hermenêutica filosófica de que
todo ser é o ser de um ente7 por se deixar de interrogar os entes da união
estável e do casamento civil em seu ser8 no contexto do mundo
contemporâneo (que abarca da união homoafetiva) para compreendê-los
enquanto entes abstratos e imutáveis que arbitrariamente se limitariam à
união entre homem e mulher, em clara contradição com os pressupostos da
hermenêutica filosófica aqui enfocada; significa entificar o ser a união
estável e o casamento civil dentro da união entre o homem e a mulher por
mais que o ser-no-mundo de união estável e casamento civil do mundo
contemporâneo demandem a inclusão da união homoafetiva em seus
âmbitos de proteção ante a ausência de proibição normativa que isto
impeça.
Em outras palavras, como o conceito de união estável e do casamento
civil não está ligado indissociavelmente à diversidade de sexos pelo texto
constitucional (o que ocorreria se estivesse escrito nos textos normativos
que tais regimes jurídicos são reconhecidos “apenas entre” o homem e a
mulher ou algo do gênero), não há afronta ao conteúdo mínimo-estrutural
do texto jurídico da união estável e do casamento civil9 na sua extensão a
casais homoafetivos, donde não parece que haja algo que o texto diga que
impossibilite o intérprete de adotar a tese aqui defendida (não há
discricionariedade/decisionismo nesta conclusão, mas mera constatação de
ausência de proibição explícita a tal exegese, o que possibilita o uso da
interpretação extensiva ou da analogia) - pois a união estável enquanto
entidade familiar e o casamento civil enquanto entidade familiar, em seu
sentido estrutural mínimo, devem ser compreendidos como a união de fato
pautada pelo amor conjugal que vise a uma comunhão plena de vida e
interesses, de forma pública, contínua e duradoura, pela qual os
companheiros vivem como se casados fossem (o amor tem que ser conjugal
para evitar que afetos fraternos sejam enquadrados no regime jurídico da
união estável e do casamento civil, o que não se afigura correto pela ratio
normativa, embora aquelas uniões, se pautadas por um amor familiar
fraterno, devam ser entendidas como entidades familiares).
Anote-se, ainda, a inexistência de quaisquer prejuízos a crianças e
adolescentes pelo simples fato de serem criados por um casal homoafetivo e
não por um casal heteroafetivo, na medida em que diversos estudos
psicológicos e sociais já comprovaram que tais crianças e adolescentes têm
a mesma capacidade de adaptação social e estabilidade emocional
relativamente àquelas criadas por casais heteroafetivos. Cite-se, sobre o
tema, o posicionamento da Academia Americana de Pediatria10, segundo o
qual:

As crianças merecem saber que o seu relacionamento com ambos


os seus pais é estável e legalmente reconhecida. Isso se aplica a todas
as crianças, sejam seus pais do mesmo sexo ou de sexos opostos. A
Academia Americana de Pediatria reconhece que um considerável
corpo de literatura profissional traz evidências de que crianças com
pais que são homossexuais podem ter as mesmas vantagens e as
mesmas expectativas para saúde, ajustamento e desenvolvimento que
aquelas crianças cujos pais são heterossexuais. Quando dois adultos
participam da criação de uma criança, eles e essa criança merecem a
serenidade decorrente do reconhecimento legal. Crianças nascidas ou
adotadas em famílias encabeçadas por parceiros que são do mesmo
sexo geralmente têm, legalmente, apenas um pai biológico ou adotivo.
O outro parceiro na função parental é chamado de ‘co-pai/mãe’ [co-
parent] ou ‘segundo(a)-pai/mãe’ [second parent]. Em razão dessas
famílias e crianças necessitarem da permanência e segurança providas
mediante a presença de dois pais totalmente definidos e reconhecidos
[two fully sanctioned and legally defined parents], a Academia apoia a
adoção legal de crianças por copais/mães ou segundos(as)-pais/mães.
Negar o status de ascendente legal através da adoção a copais/mães ou
segundos(as)-pais/mães impede essas crianças de se beneficiarem da
segurança psicológica e legal que decorre de ter dois pais que têm
desejo, capacidade e amor a dar a seus filhos [two willingly, capable
and loving parents].

Segundo Evan Wolfson, essa é também a posição também esposada


pela Academia Americana de Médicos Familiares, pela Associação
Americana de Psiquiatria, pela Associação Americana de Psicanálise, pela
Liga Americana de Bem-Estar Infantil, pelo Conselho Norte-Americano de
Crianças Adotivas, pela Associação de Educação Nacional [dos EUA] e
pela Associação Nacional de Trabalhadores Sociais [dos EUA]11.

Wald resumiu as evidências: nenhum dos estudos constatou que


crianças de mães lésbicas ou pais gays [lesbian or gay parents]
experimentaram ‘problemas emocionais, intelectuais ou sociais por
causa da orientação sexual de seus pais’. Nenhuma das crianças de
pais gays [gay parents] estudadas tiveram maiores problemas em seus
relacionamentos familiares, tiveram qualquer dificuldade na escola,
sofreram quaisquer problemas adicionais de autoestima ou estiveram
de qualquer forma mais propensas a engajar em comportamentos
autodestrutivos do que as crianças criadas por pais heterossexuais.
Ademais, um estudo que acompanhou as crianças de pais gays e mães
lésbicas do nascimento à fase adulta concluíram que a habilidade
dessas crianças para a transição à idade adulta [transition to
adulthood] e de encontrar emprego de forma alguma diferiu das
crianças criadas por pais heterossexuais12.

Esse tema será retomado no Capítulo 16, relativamente à adoção por


homossexuais e casais homoafetivos.
Por fim, é de se notar que o amor existente na relação é relevante, na
medida em que é o amor romântico/conjugal que vise a uma comunhão
plena de vida e interesses, de forma pública, contínua e duradoura o
elemento formador da família contemporânea formada por casais. Assim, é
completamente descabida a desconsideração do amor familiar existente na
união homoafetiva, visto ser ele o diferencial entre as relações de amizade e
as relações familiares oriundas de uniões amorosas.

1 Com efeito, os argumentos ad terrorem utilizados pelos opositores do casamento civil


homoafetivo são rigorosamente os mesmos que os fundamentalistas religiosos do
passado utilizavam para se opor ao casamento entre pessoas brancas e pessoas
negras ou de distintos grupos étnicos. É o que demonstrou, em 1996, Eric Zoom,
colunista do jornal Chicago Tribune’s, que substituiu as referências a raças por
referências à orientação sexual, nos seguintes termos, transcritos por Evan Wolfson
(Cf. WOLFSON, Evan. Why Marriage Matters..., pp. 57-59. Tradução livre):
“Considere-se, por exemplo, esses outros exemplos de tristeza e tragédia compilados
em uma coluna de Eric Zorn, em 1996, no Chicago Tribune’s: ‘1. Um senador
Republicano de Wisconsin disse que casamentos entre casais gays devem ser
proibidos ‘simplesmente porque o instinto natural se revolta contra isso por considerá-
lo algo errado’. 2. Um grupo antigay declarou que a extensão do direito ao casamento
a casais gays iria resultar em ‘uma população degradada e ignóbil incapaz de
desenvolvimento moral e intelectual’. Membros deste grupo disseram que eles
baseiam a sua posição na ‘superioridade natural que Deus conferiu a heterossexuais’.
3. Um psicólogo disse que ‘a tendência a classificar as pessoas que se opõem ao
casamento gay como ‘preconceituosas’ é em si um preconceito’. Ele adicionou: ‘Nada
de qualquer significado se ganha por tal casamento’. 4. Um legislador da Geórgia
declarou que permitir às pessoas gays se casarem ‘necessariamente envolve a
degradação’ do casamento tradicional, uma instituição que ‘merece admiração ao
invés de execração’.5. Um congressista do Kentucky advertiu, ‘O próximo passo será
que gays e lésbicas irão demandar uma lei autorizando-os, sem restrição, a ... ter
livres e irrestritos atos sexuais com seus filhos e filhas não casados. Ele adicionou:
‘Inevitavelmente chegaremos a isso. Não há distinção entre tais fatos. E quanto mais
cedo o alarme seja dado e as pessoas tomem alguma atitude, melhor será para a
nossa civilização’. 6. Um juiz do Missouri decidiu, ‘Quando pessoas do mesmo sexo se
casam, eles não podem ter descendentes [progeny]... E tal é um fato que
suficientemente justifica aquelas leis que proíbem o seu casamento. 7. Uma lei
estadual da Virginia diz que casamentos entre casais gays são ‘abomináveis’ e iriam
‘poluir’ a sociedade Americana. 8. Ao negar uma apelação de casais do mesmo sexo
que tentaram se casar, uma corte da Geórgia decidiu que tais casamentos ‘não são
apenas antinaturais, mas sempre produzem resultados deploráveis’, tais como o
aumento de comportamento efeminado na população. ‘Eles são o produto do mal, e
apenas do mal, sem o correspondente bem... (de acordo com) o Deus da natureza’. 9.
Um congressista de Illinois opinou no sentido de que os banimentos contra a liberdade
de casar não são inconstitucionais porque eles se aplicam ‘igualmente entre homens e
mulheres’. 10. Advogados do estado do Tenessee disseram que casais gays e lésbicos
deveriam ser proibidos de se casar porque eles são ‘desagradáveis ao nosso povo e
inadequados para produzir a raça humana...’. A suprema corte estadual concordou,
decidindo que a extensão da liberdade de casar iria ser ‘uma calamidade cheia do
mais triste e melancólico presságio para as gerações que estão para vir (‘a calamity
full of the saddest and gloomiest portent to the generations that are to come after us’).
11. Advogados do estado da Califórnia disseram que uma lei que previna casais gays
de se casarem é necessária para prevenir que ‘o casamento tradicional seja
contaminado pelo reconhecimento dos relacionamentos que são fisicamente e
mentalmente inferiores (e formados pela) escória da sociedade [gregs of society]. 12.
Em resposta a uma ação judicial desafiando a lei anticasamento gay da Virginia, um
juiz estadual decidiu, ‘A lei concernente ao casamento deve ser entendida apenas em
relação àquelas pessoas que aquela lei se relaciona... e não a uma classe de pessoas
claramente fora da ideia da legislatura quando esta contemplou o tema do casamento’.
A sacada da coluna de Zorn é que essas doze declarações não foram, de fato, feitas
sobre a liberdade de casar das pessoas gays. Na verdade, elas foram feitas entre
1823 e 1964 por oponentes do casamento inter-racional e da igual cidadania de Afro-
Americanos. Zorn substituiu as referências a raça por referências à orientação sexual
para demonstrar como a batalha contemporânea sobre a liberdade de casar das
pessoas gays não se limita a pessoas gays e lésbicas. Ela é um capítulo em uma luta
por direitos civis tão antiga quanto a própria instituição do casamento, uma luta que
também foi enfrentada por mulheres buscando a igualdade, pessoas procurando fazer
as suas próprias decisões sobre parentalidade e sexo [planejamento familiar por
contraceptivos] e por casais casados procurando encerrar as suas uniões falidas ou
abusivas [divórcio]” (tradução livre). Ou seja, os opositores do casamento civil
homoafetivo utilizam rigorosamente os mesmos argumentos que eram utilizados, no
passado, para as pessoas se oporem ao casamento entre pessoas de “raças”
distintas. Troque o leitor as referências a gays e lésbicas por brancos e negros e verá
o quão absurdos são tais argumentos.
2 Cf. notícia do site Universo Jurídico (www.uj.com.br) , notícia de 08/01/2008, nominada
“Reconhecida a união estável durante 25 anos entre duas mulheres” (acesso no
mesmo dia; grifo nosso).
3 CANOTILHO, José Joaquim Gomes e MOREIRA, Vital. Constituição Portuguesa
Anotada, 1.a Edição Brasileira, 4.a Edição Portuguesa, São Paulo: Editora Revista dos
Tribunais e Coimbra: Coimbra Editora, 2007, vol. I, p. 609.
4 Oriunda das obras de Heidegger e Gadamer, bem como, no Brasil, das obras de Lenio
Streck, a qual, a meu ver, pode ser sintetizada na seguinte explicação: Interpreta-se
porque se compreende, compreende-se por conta da pré-compreensão, pré-
compreensão esta decorrente da tradição social, tradição esta que, portanto, define o
conteúdo da interpretação, sendo que a tradição pode ser superada caso não resista à
análise da razão crítica (caso no qual será tida como tradição ilegítima). Ressalte-se
que tal necessidade de superar a interpretação oriunda da tradição quando a razão
crítica demonstra sua arbitrariedade decorre da necessidade do que Gadamer designa
como consciência histórico-hermenêutica, pois “Uma compreensão guiada por uma
consciência metodológica procurará não simplesmente realizar suas antecipações,
mas, antes, torná-las conscientes para poder controlá-las e ganhar assim uma
compreensão correta a partir das próprias coisas. É isso o que Heidegger quer dizer
quando exige que se ‘assegure’ o tema científico na elaboração de posição prévia,
visão prévia e concepção prévia, a partir das coisas, elas mesmas”, donde “A questão,
portanto, não está em assegurar-se frente à tradição que faz ouvir sua voz a partir do
texto, mas, ao contrário, trata-se de manter afastado de tudo que possa impedir
alguém de compreendê-la a partir da própria coisa em questão” (GADAMER, Hans-
Georg. Verdade e Método I. Traços Fundamentais de uma Hermenêutica Filosófica,
Tradução de Flávio Paulo Meurer. Nova revisão da tradução por Enio Paulo Giachini,
7ª Edição, Petrópolis: Editora Vozes e Bragança Paulista: Editora Universitária São
Francisco, 2005, p. 359). Nesse sentido, afirma Gadamer que “entre a tradição e a
razão não existe nenhuma oposição que seja assim tão incondicional. (...) a tradição
sempre é um momento da liberdade e da própria história. Também a tradição mais
autêntica e a tradição melhor estabelecida não se realizam naturalmente em virtude da
capacidade de inércia que permite ao que está aí persistir, mas necessita ser afirmada,
assumida e cultivada. A tradição é essencialmente conservação e como tal sempre
está atuante nas mudanças históricas. Mas a conservação é um ato da razão, e se
caracteriza por não atrair a atenção sobre si. Essa é a razão por que as inovações, os
planejamentos aparecem como as únicas ações e realizações da razão. (...) Em outras
palavras, o que importa é reconhecer o momento da tradição no comportamento
histórico e indagar pela sua produtividade hermenêutica” (idem, pp. 373-375).
5 HESSE, Konrad. A Força Normativa da Constituição, Tradução de Gilmar Ferreira
Mendes, 1a Edição, Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1991, pp. 22-23.
6 GADAMER, Op. Cit., p. 358).
7 STRECK, Lenio Luiz. Jurisdição Constitucional e Hermenêutica. Uma Nova Crítica do
Direito, 1ª Edição, Porto Alegre: Editora Livraria do Advogado, 2002, p. 214.
8 Streck, idem.
9 Expressão de Lenio Streck.
10 Apud WOLFSON, Evan. Why Marriage Matters..., pp. 93-94. Tradução livre. O autor
informa que a declaração constou do documento nominado Coparent or Second-
Parent Adoption by Same-Sex Parents (em tradução livre: Adoção coparental ou por
segundos-pais por pais do mesmo sexo). Anote-se, no que tange à tradução, que o
termo “parent” se refere tanto ao pai quanto à mãe, o que dificulta a tradução para o
português pela ausência de uma palavra unissex em nosso idioma (que não seja
“ascendente”, que não me pareceu adequada, pois o equivalente, em português, a
parent é “pai/mãe”, conforme a pessoa seja do sexo masculino ou feminino.
11 Cf. WOLFSON, Evan. Why Marriage Matters..., p. 93. Os nomes originais, na lingua
inglesa, são os seguintes: American Academy of Family Physicians, American
Psychiatric Association, American Psicoanalytic Association, Child Welfare League of
America, North American Council on Adoptable Children e National Education
Association.
12 Apud WOLFSON, Evan. Why Marriage Matters..., p. 92. Tradução livre. A referência
citada em nota de rodapé foi “Michael S. Wald. ‘Same-Sex Couples: Marriage, Families
and Children’ [Casais do Mesmo-Sexo: Casamento, Famílias e Crianças].
Capítulo 12

A POSIÇÃO DO SUPERIOR TRIBUNAL DE


JUSTIÇA

Deixa-se de manter a íntegra de tal capítulo nesta versão impressa para


que não se aumentasse consideravelmente o número de páginas do livro por
força das atualizações e, portanto, seu preço aumentasse. O que aqui consta
é o equivalente à síntese conclusiva da 1ª Edição, com as devidas
atualizações. A ideia é disponibilizar a íntegra das considerações aqui
sintetizadas em versão online – para maiores informações, remete-se o
leitor para o seguinte link:
http://pauloriv71.wordpress.com/2012/10/02/manual-da-homoafetividade-
segunda-edicao-capitulos-online/
Em seus primeiros julgados sobre o tema, o STJ enquadrou a união
homoafetiva como uma mera “sociedade de fato” e não como união estável,
muito embora não tenha se dignado a explicar qual seria a “diferença” entre
a união heteroafetiva e a união homoafetiva de sorte a “justificar” a
discriminação desta relativamente àquela consubstanciada na negativa do
regime jurídico da união estável a ela (homoafetiva). Tal postura começou a
mudar com julgado do ano de 2008, que reconheceu o cabimento da
analogia para reconhecimento da união estável homoafetiva, e a viragem da
jurisprudência do STJ ocorreu em definitivo no ano de 2011, com diversos
julgados que consolidaram esse entendimento.
Analisemos brevemente tais julgados.
Os posicionamentos do Superior Tribunal de Justiça no sentido de que
as uniões homoafetivas não estariam abrangidas no conceito de união
estável (e, consequentemente deveriam ter suas causas julgadas nas varas
cíveis)1 encontram-se equivocados, uma vez que se utilizaram do
argumento simplista de não estarem elas expressamente regulamentadas
para discriminá-las em relação às heteroafetivas. Ou seja, se ativeram à
letra fria da lei e ignoraram completamente os princípios da isonomia e da
dignidade da pessoa humana, bem como das técnicas hermenêuticas da
interpretação extensiva e da analogia – sequer se manifestaram sobre o
tema, não trazendo uma fundamentação válida ante a isonomia para
justificar a discriminação por eles perpetrada (negação do Direito de
Família aos casais homoafetivos). Sobre a interpretação extensiva e a
analogia, cabe lembrar que lições de Direito Civil Clássico justificam o
reconhecimento da união estável (e do casamento civil) a casais
homoafetivos, visto que o fato de a letra da lei citar um fato (união entre
homem e mulher) sem nada dispor sobre outro (união entre pessoas do
mesmo sexo) significa lacuna normativa colmatável por interpretação
extensiva ou analogia e não “proibição implícita”, razão pela qual a posição
de tais julgados do STJ negam vigência ao art. 4º da LINDB e ao art. 126
do CPC, que possibilitam a colmatação de lacunas por tais técnicas
hermenêuticas.
Por outro lado, pelo menos um desses julgados aparentemente partiu do
pressuposto de que a orientação homossexual dos pais influiria no
desenvolvimento da orientação sexual das crianças por eles criadas, o que é
absolutamente falso, pois a vida social demonstra que existem tanto filhos
heterossexuais como homossexuais criados por famílias heteroafetivas,
homoafetivas e monoparentais. Se a orientação sexual dos pais influísse na
dos filhos, casais heteroafetivos só gerariam pessoas heterossexuais, ao
passo que casais homoafetivos e famílias monoparentais só gerariam
homossexuais, pela ausência de uma pessoa de outro sexo na criação do
menor – o que não corresponde à verdade e inclusive é notório (tema que
será tratado detidamente no capítulo atinente à adoção por homossexuais e
casais homoafetivos). Por outro lado, não há nada de errado na orientação
sexual homoafetiva, razão pela qual ter aquele fundamento como decisivo
implica discriminação arbitrária e, consequentemente, inconstitucional,
além de casais homoafetivos serem tão aptos quanto casais heteroafetivos
para criar adequadamente crianças e adolescentes, como também será
amplamente demonstrado no capítulo 16, sobre adoção.
Assim, os princípios da isonomia, da dignidade da pessoa humana, da
promoção do bem-estar de todos, da liberdade de consciência e da laicidade
estatal exigem que seja aplicada a interpretação extensiva ou pelo menos a
analogia quando se analisam as uniões estáveis homo e heteroafetivas,
garantindo-se àquelas os mesmos direitos conferidos a estas.
Nota-se, em verdade, que o STJ acabou por negar vigência aos arts. 4.º
da LINDB e 126 do CPC quando não reconheceu a união estável
homoafetiva, em razão da identidade ou, no mínimo, da equivalência
existente entre as situações (união estável heteroafetiva e homoafetiva). Por
se tratar de situações idênticas ou, no mínimo, idênticas no essencial, sendo
nesse caso os únicos diferenciais a orientação sexual e o sexo dos casais,
são competentes as varas de família para o julgamento de causas
envolvendo uniões homoafetivas e, consequentemente, aplicável, ainda que
por analogia, o Direito das Famílias no que tange ao julgamento dessas
causas, haja vista ser o amor familiar o elemento essencial à configuração
da entidade familiar, afeto este existente tanto nas uniões entre
heterossexuais quanto naquelas entre homossexuais. Pouco importam as
convicções pessoais dos julgadores no que tange à aceitação ou não da
homossexualidade: a imposição de neutralidade ao Judiciário obriga os
magistrados a aplicarem o Direito ainda que com ele não concordem. Nesse
ponto, ao contrário do quanto defendido pelo Ministro Barros Monteiro no
julgamento do Recurso Especial 323.370/RS, a lei da união estável foi
omissa quanto à união homoafetiva: não a mencionou mas igualmente não a
proibiu, visto que inexistem “proibições implícitas” em Direito (art. 5.o, II,
da CF/1988). Assim, em casos como este, é obrigatória a utilização das
citadas técnicas hermenêuticas quando a situação omitida é idêntica ou, no
mínimo, fundamentalmente idêntica à situação expressamente
regulamentada, como é a união homoafetiva em relação à heteroafetiva.
Note-se, por outro lado, que foi no Direito Previdenciário que o STJ
começou a garantir ao companheiro homoafetivo o direito ao benefício
previdenciário por força da analogia, fazendo menção expressa à analogia e,
consequentemente, ao art. 4.o da LINDB e ao princípio da igualdade2.
Destaque-se, apenas, que realizar uma interpretação teleológica que leva em
conta o princípio da igualdade no que tange ao Direito Previdenciário, mas
não fazê-lo com relação ao Direito das Famílias (como feito pelo Ministro
Carlos Alberto Menezes Direito neste julgado) configura posição
contraditória e injustificável, afinal a situação é absolutamente a mesma no
Direito das Famílias: existe uma lacuna que deve ser suprida pela
interpretação extensiva ou pela analogia. Trata-se, não obstante, de um
considerável avanço (o reconhecimento da analogia nos casos
previdenciários).
Com o julgamento do REsp n.º 820.475/RJ, o STJ finalmente
reconheceu a ausência de proibição normativa ao reconhecimento da união
estável homoafetiva, afirmando assim a possibilidade jurídica de tal pleito e
a procedência do mesmo quando preenchidos os requisitos legais impostos
para a caracterização da união estável (união pública, contínua e duradoura,
com o intuito de constituir família), afirmando ser isto possível pela
ausência de proibição legal a tal exegese3, com o que o tribunal iniciou a
viragem de sua jurisprudência para reconhecer a união homoafetiva como
entidade familiar, ratificada pelos REsp n.º 1.026.981/RJ, 1.085.646/RS,
930.460/PR e 1.199.667/MT, que, com diversos outros fundamentos,
afirmaram ser a analogia mecanismo adequado para concretizar a igualdade
jurídica de sorte a alavancar a união homoafetiva à condição de união
estável, algo possível [também] porque o art. 4º da LINDB permite a busca
da equidade na Justiça, sem falar que “Os princípios da igualdade e da
dignidade humana, que têm como função principal a promoção da
autodeterminação e impõem tratamento igualitário entre as diferentes
estruturas de convívio sob o âmbito do direito de família, justificam o
reconhecimento das parcerias afetivas entre homossexuais como mais uma
das várias modalidades de entidade familiar” (REsp n.º 1.085.646/RS,
930.460/PR e 1.199.667/MT). Afinal, “O Direito não regula sentimentos,
mas define as relações com base neles geradas, o que não permite que a
própria norma, que veda a discriminação de qualquer ordem, seja revestida
de conteúdo discriminatório. O núcleo do sistema jurídico deve, portanto,
muito mais garantir liberdades do que impor limitações na esfera pessoal
dos seres humanos”, donde “Enquanto a lei civil permanecer inerte, as
novas estruturas de convívio que batem às portas dos Tribunais devem ter
sua tutela jurisdicional prestada com base nas leis existentes e nos
parâmetros humanitários que norteiam não só o direito constitucional, mas a
maioria dos ordenamentos jurídicos existentes no mundo. Especificamente
quanto ao tema em foco, é de ser atribuída normatividade idêntica à da
união estável ao relacionamento afetivo entre pessoas do mesmo sexo, com
os efeitos jurídicos daí derivados, evitando-se que, por conta do
preconceito, sejam suprimidos direitos fundamentais das pessoas
envolvidas”, razão pela qual “O manejo da analogia frente à lacuna da lei é
perfeitamente aceitável para alavancar, como entidade familiar, na mais
pura acepção da igualdade jurídica, as uniões de afeto entre pessoas do
mesmo sexo” desde que atendidos os mesmos requisitos legais exigidos
para o reconhecimento da união estável entre pessoas de sexos diversos,
donde “Demonstrada a convivência, entre duas pessoas do mesmo sexo,
pública, contínua e duradoura, estabelecida com o objetivo de constituição
de família, haverá, por consequência, o reconhecimento de tal união como
entidade familiar, com a respectiva atribuição dos efeitos jurídicos dela
advindos” (REsp n.º 1.026.981/RJ – grifo nosso).
Assim, como bem afirmado pelo REsp n.º 827.962/RS, a ausência de
proibição normativa torna juridicamente possível o pedido de
reconhecimento de união estável homoafetiva, por analogia, ante o caráter
jurídico-familiar da união homoafetiva, donde, consoante as lições de Luís
Roberto Barroso e Daniel Sarmento (citadas pelo Ministro Celso de Mello
no julgamento do STF da ADPF 132 e ADI 4277), “A regra do art. 226, §
3º da Constituição, que se refere ao reconhecimento da união estável entre
homem e mulher, representou a superação da distinção que se fazia
anteriormente entre o casamento e as relações de companheirismo. Trata-se
de norma inclusiva, de inspiração antidiscriminatória, que não deve ser
interpretada como norma excludente e discriminatória, voltada a impedir a
aplicação do regime da união estável às relações homoafetivas”. Assim,
como bem afirmado pelo REsp n.º 932.653/RS, “A regulamentação das
famílias homoafetivas [por intermédio da analogia] é medida que se impõe
no atual cenário social, não podendo o Poder Judiciário, nesse momento,
furtar-se a oferecer as proteções legais que tais relações demandam,
porquanto são geradoras de importantes efeitos afetivos e patrimoniais na
vida de muitos cidadãos”.
Nesse sentido, também o AgRg no REsp n.º 805.582/MG, no qual a
relatora, Ministra Maria Isabel Gallotti, afirmou que “a impossibilidade
jurídica do pedido configura-se quando há vedação no direito positivo a
que se instaure a relação processual em torno da pretensão do autor”, ao
passo que “No caso presente, a Lei 9.278/96 limitou-se a prever a
possibilidade de união estável entre homem e mulher, desde que observados
os requisitos nela estabelecidos, mas não proibiu que tal união se desse
entre pessoas do mesmo sexo, como poderia tê-lo feito, caso fosse essa a
vontade do legislador [o mesmo podendo ser afirmado quanto ao art. 1.723
do CC/02]. Ora, se a pretensão de ver declarada a união estável
homoafetiva não é vedada pelo ordenamento jurídico, deve ser afastada a
impossibilidade jurídica do pedido deduzido na petição inicial, devendo o
juiz, após regular processamento da causa, apreciar o mérito à luz do
ordenamento jurídico vigente” e que assina, “por fim, que a decisão
agravada encontra apoio em precedente específico desta 4ª Turma no REsp.
820.475, relator o Ministro Luís Felipe Salomão, DJe 6.10.2008”.
Agora uma nota sobre as manifestações de alguns votos do STJ nos
citados julgados pela aplicação do regime jurídico da união estável à união
homoafetiva que atenda os requisitos legais da publicidade, continuidade,
durabilidade e intuito de constituir família do art. 1.723 do CC/02:
afirmaram o cabimento da analogia no que tange ao regime patrimonial da
união estável à união homoafetiva, mas não na caracterização da mesma
como união estável por supostamente serem situações diferentes. Tal
raciocínio não merece prosperar, tanto pelo fato de ser a união homoafetiva
uma família conjugal, donde inclusa no âmbito de proteção de casamento
civil e de união estável, quanto por não terem atendido o ônus
argumentativo imposto pela isonomia no sentido de explicitarem em que a
união homoafetiva seria “diferente” da união heteroafetiva, já que ambas
formam famílias conjugais, na medida em que a mera homogeneidade de
sexos em um caso e diversidade de sexos em outro parece irrelevante já que
em ambos os casos temos uma família conjugal – se homoafetiva ou
heteroafetiva, isso é irrelevante, já que a família conjugal é formada pelo
amor romântico que vise a uma comunhão plena de vida e interesses, de
forma pública, contínua e duradoura (amor familiar), razão pela qual,
existente dito amor familiar, teremos uma família conjugal, sendo assim
idênticas a família conjugal homoafetiva e a família conjugal heteroafetiva
(ou, no mínimo, análogas – e, sendo análogas, enquadram-se no mesmo
conceito jurídico). Trata-se de questão secundária, praticamente uma
discussão terminológica, mas que me parece relevante do ponto de vista do
enquadramento de situações oriundas de lacunas normativas nos conceitos
jurídicos normatizados. Parece-me aqui ocorrer uma incompreensão sobre o
instituto da analogia: estender um regime jurídico por analogia pelo fato de
a letra da lei/Constituição citar um fato e nada dispor sobre outro não
significa que este fato não citado pelo texto normativo não se enquadraria
no conceito jurídico aí normatizado. Ou seja, o fato de a lei e da
Constituição citarem a expressão “o homem e a mulher” na sua literalidade
normativa ao tratar da união estável e do casamento civil não significa que
só possa ser caracterizada como união estável e como casamento civil a
união entre um homem e uma mulher: o reconhecimento do cabimento de
interpretação extensiva ou analogia para a regulamentação judicial da união
homoafetiva significa que esta, por ser idêntica ou equivalente à união
heteroafetiva se inclui nos conceitos de união estável e de casamento civil.
Sobre a adoção conjunta por casais homoafetivos, em decisão que
confirmou decisão do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, há o
paradigmático REsp n.º 889.852/RS, no qual o relator, Ministro Luís Felipe
Salomão afirmou ser “Mister observar a imprescindibilidade da prevalência
dos interesses dos menores sobre quaisquer outros, até porque está em jogo
o próprio direito de filiação, do qual decorrem as mais diversas
consequências que refletem por toda a vida de qualquer indivíduo”, razão
pela qual “A matéria relativa à possibilidade de adoção de menores por
casais homossexuais vincula-se obrigatoriamente à necessidade de verificar
qual é a melhor solução a ser dada para a proteção dos direitos das crianças,
pois são questões indissociáveis entre si”, ao passo que “Os diversos e
respeitados estudos especializados sobre o tema, fundados em fortes bases
científicas (realizados na Universidade de Virgínia, na Universidade de
Valência, na Academia Americana de Pediatria), ‘não indicam qualquer
inconveniente em que crianças sejam adotadas por casais homossexuais,
mais importando a qualidade do vínculo e do afeto que permeia o meio
familiar em que serão inseridas e que as liga a seus cuidadores’”. Assim,
considerando a “Existência de consistente relatório social elaborado por
assistente social favorável ao pedido da requerente, ante a constatação da
estabilidade da família” e por ser “incontroverso que existem fortes
vínculos afetivos entre a recorrida e os menores – sendo a afetividade o
aspecto preponderante a ser sopesado numa situação como a que ora se
coloca em julgamento”, tem-se que, “Se os estudos científicos não
sinalizam qualquer prejuízo de qualquer natureza para as crianças, se elas
vêm sendo criadas com amor e se cabe ao Estado, ao mesmo tempo,
assegurar seus direitos, o deferimento da adoção é medida que se impõe”,
pois “O Judiciário não pode fechar os olhos para a realidade fenomênica.
Vale dizer, no plano da ‘realidade’, são ambas, a requerente e sua
companheira, responsáveis pela criação e educação dos dois infantes, de
modo que a elas, solidariamente, compete a responsabilidade”. Ademais,
afirmou-se, em reforço argumentativo, que “Não se pode olvidar que se
trata de situação fática consolidada, pois as crianças já chamam as duas
mulheres de mães e são cuidadas por ambas como filhos. Existe dupla
maternidade desde o nascimento das crianças, e não houve qualquer
prejuízo em suas criações”. Assim, “Com o deferimento da adoção, fica
preservado o direito de convívio dos filhos com a requerente no caso de
separação ou falecimento de sua companheira. Asseguram-se os direitos
relativos a alimentos e sucessão, viabilizando-se, ainda, a inclusão dos
adotandos em convênios de saúde da requerente e no ensino básico e
superior, por ela ser professora universitária”, destacando-se que “A
adoção, antes de mais nada, representa um ato de amor, desprendimento.
Quando efetivada com o objetivo de atender aos interesses do menor, é um
gesto de humanidade. Hipótese em que ainda se foi além, pretendendo-se a
adoção de dois menores, irmãos biológicos, quando, segundo dados do
Conselho Nacional de Justiça, que criou, em 29 de abril de 2008, o
Cadastro Nacional de Adoção, 86% das pessoas que desejavam adotar
limitavam sua intenção a apenas uma criança”, donde “Por qualquer ângulo
que se analise a questão, seja em relação à situação fática consolidada, seja
no tocante à expressa previsão legal de primazia à proteção integral das
crianças, chega-se à conclusão de que, no caso dos autos, há mais do que
reais vantagens para os adotandos, conforme preceitua o artigo 43 do ECA.
Na verdade, ocorrerá verdadeiro prejuízo aos menores caso não deferida a
medida”.
Sobre o casamento civil, há o também paradigmático REsp n.º
1.183.378/RS, que reconheceu a um casal de mulheres o direito ao
casamento civil.
Tive o privilégio histórico de poder participar deste julgamento, por
intermédio de sustentação oral4, na qual afirmei que a ausência de artigo de
lei/texto normativo proibitivo ao casamento civil homoafetivo caracteriza
possibilidade jurídica do pedido respectivo5 por força da lacuna normativa
que decorre desta ausência de proibição, lacuna esta passível de colmatação
por interpretação extensiva ou analogia6, decorrentes do artigo 4º da Lei de
Introdução às Normas do Direito Brasileiro e do artigo 126 do Código de
Processo Civil, o que deve ser feito porque o casamento civil visa
regulamentar a família conjugal, que se forma pelo amor familiar, ou seja,
pelo amor romântico que vise a uma comunhão plena de vida e interesses,
de forma pública, contínua e duradoura7, consoante evolução sociológica da
família conjugal8 e pela interpretação teleológica dos artigos 1.511 e 1.723
do Código Civil9, consoante, inclusive, reconhecido pelo STF – pois a
decisão do Supremo reconheceu a união homoafetiva como família
conjugal consoante o conceito ontológico de família10 para, com base nisto,
a ela estender o regime jurídico da união estável, por analogia, ante a
absoluta igualdade devida a ela relativamente à união estável
heteroafetiva11. Assim, destaquei da tribuna que caso não se considere
inconstitucional a teoria da inexistência do ato jurídico por sua flagrante
afronta ao disposto no art. 5º, inc. II, da CF/8812 e sua ilicitude por visar
criar hipóteses de proibições de casamentos civis fora das taxativas
hipóteses do artigo 1.521 do Código Civil, tem-se que concluir que a
“condição de existência” do casamento civil e da união estável é a família
conjugal, formada pelo amor familiar, não a diversidade de sexos, donde
juridicamente possível o pedido de casamento civil homoafetivo pela
ausência de proibição normativa ao mesmo e procedente ele no mérito, ante
a união homoafetiva formar uma família conjugal, que é o elemento
valorativamente protegido e, portanto, o suporte fático dos regimes
jurídicos do casamento civil e da união estável, ante a ausência de
motivação válida ante a isonomia que justifique a discriminação da família
conjugal homoafetiva relativamente à família conjugal heteroafetiva.
Ou seja, apresentei argumentos puramente civilistas que permitem o
reconhecimento da possibilidade jurídica do casamento civil homoafetivo, a
saber, as clássicas interpretação extensiva ou analogia, consagradas na
legislação infraconstitucional pelo art. 4º da LINDB e pelo art. 126 do
CPC! A despeito de minha vocação constitucionalista, realizei uma
sustentação oral destacando quase exclusivamente os argumentos civilistas
da interpretação extensiva e da analogia com base no art. 4º da LINDB e no
art. 126 do CPC, bem como no entendimento da possibilidade jurídica do
pedido oriundo da jurisprudência do STJ justamente por saber que há
Ministros que entendem que o STJ não poderia interpretar normas
constitucionais ao cumprir sua tarefa de intérprete máximo da legislação
infraconstitucional (que foi a linha adotada pelo Ministro Raul Araujo, o
qual, lamentavelmente, não se dignou a enfrentar meus argumentos em seu
voto vencido). O intuito foi justamente o de dar bases puramente civilistas e
infraconstitucionais para o reconhecimento da possibilidade jurídica do
casamento civil homoafetivo, a saber: regulamentação de um fato não
significa “proibição implícita” de outro não citado pela norma, mas lacuna
normativa que pode ser colmatada por interpretação extensiva ou analogia.
De qualquer forma, para minha surpresa (por conta da citada postura de
diversos integrantes do STJ), o relator, Ministro Luís Felipe Salomão,
proferiu um voto rico em fundamentação constitucional sobre o tema, a
favor do direito ao casamento civil a casais homoafetivos. Inicialmente,
cabe destacar a utilização da mesma argumentação relativa ao
reconhecimento da possibilidade jurídica da união estável homoafetiva
também para se reconhecer a possibilidade jurídica do casamento civil
homoafetivo: segundo o relator, “a interpretação conferida pelo acórdão
recorrido aos arts. 1.514, 1.521, 1.523, 1.535 e 1.565, todos do Código Civil
de 2002, observada a máxima vênia, não é a mais acertada. [pois] Os
mencionados dispositivos não vedam expressamente o casamento entre
pessoas do mesmo sexo, e não há como se enxergar uma vedação implícita
ao casamento homoafetivo sem afronta a caros princípios constitucionais,
como o da igualdade, o da não discriminação, o da dignidade da pessoa
humana e os do pluralismo e livre planejamento familiar”.
Para fundamentar tal conclusão (a meu ver, apenas reforça-la), o relator
se pautou em grande gama de argumentos, dos quais podemos destacar os
seguintes: afirmou Sua Excelência que, considerando a evolução do
tratamento dispensado pela legislação ao casamento civil, que tinha como
foco de proteção o casamento em si, abstraindo-se por completo as pessoas
integrantes do núcleo matrimonializado individualmente consideradas
(salvo a figura do marido), em detrimento de valores posteriormente
reconhecidos como os mais caros à pessoa humana, como dignidade e
igualdade, passou-se, com a Constituição de 1988, a consagrar uma
“revolução normativa, com reconhecimento expresso de outros arranjos
familiares, rompendo-se, assim, com uma tradição secular de se considerar
o casamento – civil ou religioso –, com exclusividade, o instrumento por
excelência vocacionado à formação de uma família”, inaugurando uma
nova fase do Direito das Famílias, mediante “adoção de um explícito
poliformismo familiar em que arranjos multifacetados são igualmente aptos
a constituir esse núcleo doméstico chamado ‘família’, recebendo todos eles
a ‘especial proteção do Estado’” (art. 226, caput, da CF/88), donde, com a
Constituição de 1988, a família foi vista com um novo olhar, mais
humanizado, cujo foco, que antes era o casamento, voltou-se para a
dignidade de seus membros.
Assim, afirmou o relator que “é bem de ver que, em 1988, não houve
uma recepção constitucional do conceito histórico de casamento, sempre
considerado como via única para a constituição de família e, por vezes, um
ambiente de subversão dos ora consagrados princípios da igualdade e da
dignidade da pessoa humana. Agora, a concepção constitucional do
casamento – diferentemente do que ocorria com os diplomas superados –,
deve ser necessariamente plural, porque plurais também são as famílias e,
ademais, não é ele, o casamento, o destinatário final da proteção do
Estado, mas apenas o intermediário de um propósito maior, que é a
proteção da pessoa humana em sua inalienável dignidade. A
fundamentação do casamento hoje não pode simplesmente emergir de seu
traço histórico, mas deve ser extraída de sua função constitucional
instrumentalizadora da dignidade da pessoa humana. Por isso não se pode
examinar o casamento de hoje como exatamente o mesmo de dois séculos
passados, cuja união entre Estado e Igreja engendrou um casamento civil
sacramental, de núcleo essencial fincado na procriação, na indissolubilidade
e na heterossexualidade”, donde “Com a transformação e evolução da
sociedade, necessariamente também se transformam as instituições sociais,
devendo, a reboque, transformar-se a análise jurídica desses fenômenos. O
direito é fato, norma e valor - qual clássica teoria tridimensional de Miguel
Reale -, razão pela qual a alteração substancial do fato deve
necessariamente conduzir a uma releitura do fenômeno jurídico, à luz dos
novos valores” (grifos nossos).
Dessa forma, afirmou o relator que considerando que o casamento civil
é o instituto jurídico que maior segurança confere às famílias [conjugais],
entendeu que a especial proteção que o Estado deve à família impede que
seja negado a qualquer dos diversos arranjos familiares – e isso
“independentemente de orientação sexual dos partícipes, uma vez que as
famílias constituídas por pares homoafetivos possuem os mesmos núcleos
axiológicos daquelas constituídas por casais heteroafetivos, quais sejam, a
dignidade das pessoas de seus membros e o afeto”13, pois entendimento em
sentido contrário violaria o princípio constitucional do livre planejamento
familiar (art. 226, §7º), visto que “o planejamento familiar se faz presente
tão logo haja a decisão de duas pessoas em se unir, com escopo de constituir
família, e desde esse momento a Constituição lhes franqueia ampla
liberdade de escolha pela forma em que se dará a união”.
Destacou, ainda, que no julgamento pelo STF da ADPF 132 e da ADI
4277, acolheu-se o “princípio geral de que, inexistindo vedação expressa na
lei ou na Constituição, descabe cogitar-se de impossibilidade jurídica do
pedido”, donde “o mesmo raciocínio utilizado, tanto pelo STJ quanto pelo
STF, para conceder aos pares homoafetivos os direitos decorrentes da
união estável, deve ser utilizado para lhes franquear a via do casamento
civil, mesmo porque é a própria Constituição Federal que determina a
facilitação da conversão da união estável em casamento (art. 226, § 3º)”, até
porque “é interessante notar que, se às uniões homoafetivas opunha-se o
óbice da literalidade do art. 226, §3º, CF/88, que faz expressa referência a
‘homem e mulher’, é bem de ver que não há a mesma alusão quando a
Carta trata do casamento civil (226, § 1º)” [“óbice” inexistente a meu ver,
pois superável pela interpretação extensiva ou analogia]. Os demais
ministros da maioria (vencido o Ministro Araujo), em síntese, entenderam
que, se o STF entendeu que a expressão “entre o homem e a mulher” não
impede o reconhecimento da união estável homoafetiva, referida expressão
do art. 1.514 do CC/02 também não impede o reconhecimento do
casamento civil homoafetivo [por interpretação extensiva ou analogia].
Como se vê, o STJ saiu de uma posição simplista que se limitava à
letra fria da lei para não reconhecer a união homoafetiva como união
estável pelo simples fato de sua literalidade não a citar para consolidar sua
jurisprudência no sentido do cabimento da analogia para se reconhecer a
união estável homoafetiva (ou, caso se prefira, à união homoafetiva o
regime jurídico da união estável, do que discordo, por entender que o uso da
analogia inclui a situação em questão no conceito jurídico em questão,
portanto, no conceito de união estável) e, ainda, possuir um julgado que
reconhece o direito à adoção conjunta um julgado que reconhece o direito
ao casamento civil a casais homoafetivos, por se reconhecer a união
homoafetiva como família conjugal da mesma forma que se reconhece
como tal a união heteroafetiva. É, sem dúvida, um grande avanço
jurisprudencial que reconhece a igualdade entre casais homoafetivos e
casais heteroafetivos.

1 Cf. STJ, REsp n.º 148.897/MG, 323.370/RS, 502.995/RN, 773.136/RJ e 648.763/RS.


Em uma breve análise crítica desses julgados, pode-se dizer que: (i) no REsp
148.897/MG, o STJ afirmou pela primeira vez a união homoafetiva como uma
“sociedade de fato” regida pelo Direito das Obrigações. Em que pese ter sido um
avanço, pois na época mesmo a aplicação da teoria das sociedades de fato às uniões
homoafetivas poderia ser questionada, os Ministros aduziram que entendiam que a
situação não era idêntica à da união estável constitucionalizada, mas não explicitaram
os motivos para tanto. Neste caso não houve polêmica, pois os pedidos da ação
originária requeriam apenas a aplicação do Direito Obrigacional, mas os Ministros
espontaneamente manifestaram-se nesse sentido, embora não tenham cumprido a
obrigação de apresentarem o motivo que justificaria essa diferença de tratamento
jurídico às uniões homoafetivas em relação às heteroafetivas, como determina a
isonomia (que exige que aquele que pretende um tratamento diferenciado justifica de
maneira lógico-racional a pertinência dessa diferenciação); (ii) no REsp 323.370/RS, o
Ministro Barros Monteiro afirmou que a lei e a Constituição seriam “claras” ao dispor a
união estável como a relação entre um homem e uma mulher e, portanto, não haveria
que se falar em lacuna na legislação. Ao que parece, foi uma forma de evitar enfrentar
a questão sob o enfoque da analogia. Contudo, o equívoco do Ministro foi gigantesco,
pois o fato de um texto normativo citar uma situação fática (no caso, a união entre o
homem e a mulher) não leva à conclusão de inexistência de lacuna – a lacuna existe
justamente porque não há nenhum texto normativo que trate da outra situação (união
homoafetiva, ou seja, entre pessoas do mesmo sexo), seja para regulamenta-la ou
para proibi-la. Para se acolher o raciocínio do Ministro ter-se-ia que se reconhecer a
inexistência de lacunas na legislação como um todo, negando-se a possibilidade de
uso da analogia – afinal, todo texto normativo cita uma situação fática, donde, pelo
raciocínio do Ministro, isso faria com que se extinguisse a possibilidade de existência
de lacunas na legislação, o que evidentemente não é o caso. A aplicação da analogia
em decisões judiciais comprova o descabimento da posição exarada neste acórdão;
(iii) no REsp 502.995/RN, o Ministro Jorge Scartezzini citou a lição de Rainer
Czajkowski, para quem a união homoafetiva não poderia formar uma entidade familiar
por não ter capacidade procriativa, assim como um artigo de Thiago Hauptmann Borelli
Thomaz. Sobre a capacidade procriativa, ela tanto não é requisito para a configuração
de uma família e, assim, para o casamento civil e à união estável que casais
heteroafetivos estéreis, que não a possuem, são reconhecidos como entidades
familiares e, portanto, a eles são reconhecidos os regimes jurídicos do casamento civil
e da união estável, donde percebe-se o equívoco do argumento. Mas o curioso deste
julgado encontra-se na citação do artigo de Thiago Hauptmann Borelli Thomaz, pois
este autor, apesar de reconhecer que, no plano fático, as uniões homoafetivas formam
famílias, pensa que no plano jurídico elas não o configurariam, embora ele não
apresente a justificação para tanto. Ora, se uma união amorosa forma uma família
conjugal no plano fático (como a união homoafetiva forma), então ela deve ser
protegida pelo Direito de Família e, portanto, ter a si reconhecido o direito ao
casamento civil e à união estável quando não incluída nos taxativos impedimentos
matrimoniais (constantes do artigo 1.521 do Código Civil), o que não é o caso das
uniões homoafetivas. Percebe-se, assim, o equívoco das premissas deste julgado; (iv)
no REsp 773.136/RJ, a Ministra Nancy Andrighi relatou o posicionamento do STJ no
REsp 148.897/MG e, posteriormente, afirmou que o acórdão do TJ/RJ que aplicou a
analogia para reconhecer a união estável à união homoafetiva daquele caso (tendo
invocado, para tanto, os princípios da isonomia e da dignidade da pessoa humana)
teria violado o art. 1o da Lei 9.278/1996 (que trata da união estável, mencionando a
expressão “o homem e a mulher”) ao conceder os efeitos jurídicos da união estável a
situação jurídica supostamente “dessemelhante” (sic), razão pela qual deu provimento
ao recurso para negar o regime jurídico da união estável à união homoafetiva.
Contudo, a Ministra não se dignou a dizer porque ela considera a união homoafetiva
uma situação jurídica supostamente “dessemelhante” à união heteroafetiva. Como
mencionado, a isonomia exige que aquele que pretenda um tratamento diferenciado
apresente uma fundamentação lógico-racional para justificar essa diferença de
tratamento, ônus este não cumprido pela Ministra. O simples fato de termos duas
pessoas do mesmo sexo em um caso e duas pessoas de sexos diversos em outro não
justifica que se neguem os direitos da união estável àquela primeira situação, ante a
ausência de motivação lógico-racional a isso justificar, donde cabível a interpretação
extensiva ou a analogia para suprir dita lacuna. Assim, considerando que a Ministra
não se dignou a explicitar uma motivação lógico-racional a justificar a discriminação
jurídica perpetrada por sua decisão (ante os direitos negados à união homoafetiva em
razão da negativa de aplicação do regime jurídico da união estável à hipótese), a
referida decisão demonstrou-se inconstitucional e, portanto, inválida; (v) no REsp
648.763/RS, muito embora tenha o relator trazido a fundamentação do Tribunal de 2o
grau no sentido de que “em face de lacuna normativa sobre o tema, dever-se-ia
dispensar à situação, por analogia, o mesmo tratamento dado à união estável, vale
dizer, a divisão igualitária do acervo adquirido durante a constância da sociedade,
presumindo-se tê-lo sido amealhado com o esforço comum das partes”, o Ministro
César Asfor Rocha se limitou a citar os precedentes supra enfrentados, sem enfrentar
o cerne da questão (cabimento ou não da analogia neste caso), o que não foi
enfrentado, ao menos adequadamente, nos precedentes anteriores (diz-se
“adequadamente” porque no REsp 773.136/RJ a Ministra Nancy Andrighi afastou a
analogia ao afirmar que as situações seriam “dessemelhantes” mas não demonstrou
em que elas seriam “dessemelhantes”, donde inadequada a fundamentação). Assim,
as mesmas críticas feitas àqueles arestos cabem a este, donde não se pode aceitar
também a sua conclusão quanto ao tema (note-se, apenas, que neste caso houve uma
divisão de 50% do patrimônio porque o companheiro homoafetivo provou ter
contribuído com 50% do patrimônio, o que foi suficiente à “teoria das sociedades de
fato”, efetivamente aplicada). Anote-se que fizemos tais considerações sobre estes
julgados (bem como sobre todos os do STJ até o empate em 2x2 no REsp
820.475/RJ, adiante explicitado no corpo do texto e na terceira nota de rodapé deste
capítulo) em VECCHIATTI, Paulo Roberto Iotti. Homoafetividade e família. Casamento
civil, união estável e adoção por casais homoafetivos à luz da isonomia e da dignidade
humana. Uma resposta a Rafael D’Ávila Barros Pereira. Jus Navigandi, Teresina, ano
12, n. 1824, 29 jun. 2008. Disponível em: <http://jus.com.br/revista/texto/11441>.
Acesso em: 2 out. 2012.
2 Com efeito: (i) no REsp 238.715/RS, o Ministro Humberto Gomes de Barros aduziu que
é grande a celeuma em torno da regulamentação da união homoafetiva, pois nada em
nosso ordenamento jurídico disciplina os direitos oriundos dessa relação tão
corriqueira e notória nos dias atuais, e que, para casos tais, o art. 4o da LINDB impõe
ao juiz exercer a analogia quando da lacuna da lei, donde, por ser a relação
homoafetiva análoga à união estável (embora dela diferente) em virtude do seu caráter
estável, duradouro e afetivo, é cabível a aplicação da analogia para estender o regime
jurídico da união estável às uniões homoafetivas. O Ministro Carlos Alberto Menezes
Direito ressalvou que seguia o relator apenas por se tratar de caso de dependência
econômica em planos de saúde, já que o Tribunal inferior desqualificou a aplicação do
art. 226, §3o da CF/88 – posição esta aparentemente contraditória, já que o Ministro
superou a letra fria da lei para aplicar a analogia no caso de dependência econômica
para planos de saúde, mas deixou claro que não o faria para o caso da união estável.
Penso que faltou ao Ministro explicitar o motivo dessa diferença de posturas (aplicação
da analogia em um caso, mas não aplicação dela em outro), que se afigura
amplamente contraditória por se tratarem de casos idênticos (superação de lacuna na
lei, que cita apenas a união heteroafetiva mas não a união homoafetiva, que são
idênticas ou, no mínimo, análogas, o que justifica o posicionamento do Ministro
relator). Já o Ministro Castro Filho afirmou que o caso era de verificar a afronta aos
princípios da isonomia e da dignidade da pessoa humana e, a seu ver, não poderia o
STJ fazê-lo, por ser a interpretação da Constituição supostamente excluída da
competência do STJ. Contudo, esse posicionamento (de parte da doutrina) é
equivocado, já que em nosso sistema misto de controle de constitucionalidade todo e
qualquer tribunal (donde, portanto, também o STJ) tem competência para analisar
incidentalmente (no caso concreto) a constitucionalidade das leis – como diversos
julgados do STJ já comprovaram (ao analisar a constitucionalidade de leis), donde é
este tribunal competente para tanto; (ii) no REsp 395.904/RS, que versou sobre caso
previdenciário, manifestou-se o Ministro Hélio Quaglia Barbosa no sentido de que não
merece prosperar a tese no sentido de suposta impossibilidade de concessão de
pensão por morte a companheiro homossexual em razão da ausência de previsão
legal, na medida em que a matéria versa exclusivamente sobre Direito Previdenciário e
não sobre Direito de Família, donde não é apenas o art. 226, §3o da CF/88 que deve
ser analisado, mas também o princípio da igualdade, que jamais pode estar dissociado
do princípio da justiça, em seu sentido mais puro. Ademais, apontou o Ministro que
não há igualdade jurídica no não-direito, donde, a negativa de direitos fundamentais,
entre eles o de sobrevivência, mediante percebimento de benefícios previdenciários a
pessoas que, se fossem de sexos diferentes, lograriam êxito em auferi-los, implica o
surgimento de um não direito, situação que fere a isonomia constitucional. Apontou,
ainda, que o teor do art. 226, §3o da CF/88 conceituou a união estável sem, contudo,
excluir a relação homoafetiva, assim como inexiste tal espécie de exclusão no campo
do Direito Previdenciário, que não se identifica com o Direito de Família. Assim,
reconheceu a existência de uma lacuna que deve ser preenchida mediante acesso a
outras fontes do Direito, nos termos do art. 4o da LINDB, incumbindo ao Judiciário,
através dos princípios hermenêuticos, preencher as lacunas existentes na lei,
adequando-as às necessidades sociais. Apontou que pretender, com esteio em regras
estratificadas, alijar parte da sociedade – inserida nas relações homoafetivas, da tutela
do Poder Judiciário, por falta de previsão legal expressa, constituirá ato discriminatório,
inaceitável à luz do princípio insculpido no art. 5o, caput, da Constituição Federal.
Afirmou que, apesar de o Direito não regular sentimentos, dispõe ele sobre os efeitos
que a conduta determinada por esse afeto pode representar como fonte de direitos e
deveres, criadores de relações jurídicas previstas nos diversos ramos do
ordenamento, algumas interessando no Direito de Família, como o matrimônio civil e,
hoje, a união estável, outras ficando a margem dele, lembrando que a própria mulher,
por séculos a fio, era tratada pelo sistema jurídico como relativamente incapaz. Dessa
forma, reconheceu como suficientemente preenchidas as exigências da Lei n.
8.213/91, comprovadas a qualidade de segurado do de cujus e a convivência afetiva e
duradoura entre o segurado e o autor, donde, por analogia, negou provimento ao
recurso. Em voto-vista, o Ministro Paulo Medina iniciou seu voto apontando que o
recorrente apontou violação ao conceito de companheiro(a) disposto pelo artigo 16,
§3o da Lei 8.213/91 que, por sua vez, se reporta ao artigo 226, §3o da Constituição
Federal. Ato contínuo, seguindo a lição de Luís Roberto Barroso, apontou que toda
interpretação é produto de sua época, donde entendeu que não se trata o conceito de
companheiro de um conceito jurídico hermético, que não possa se interpretar de
maneira extensiva para melhor atender a uma realidade que não foge aos olhos (a
realidade homoafetiva), apontando ainda para a necessidade das normas
infraconstitucionais serem interpretadas tendo em vista a Constituição Federal como
uma unidade, ao passo que não se pode negar que se está diante de uma tensão e
contradição com a negativa do reconhecimento da pensão por morte ao companheiro
homoafetivo. Mas aponta que, de um lado, a Lei 8.213/91 adotou como conceito de
entidade familiar o modelo da união estável entre homem e mulher, sem, entretanto
excluir expressamente a união homoafetiva e, de outro, que há uma realidade em que
o segurado contribuiu uma vida toda para a Previdência Social e tinha como seu
dependente um companheiro do mesmo sexo, constituindo assim, de acordo com as
provas carreadas aos autos, uma verdadeira entidade familiar. Assim, destacou que o
princípio da igualdade impõe igual tratamento, além de ressaltar que onde o legislador
não determinou uma exclusão expressa, não cabe ao intérprete do Direito fazê-la, sob
pena de se descumprir preceito fundamental da Constituição, que é a igualdade entre
homens e mulheres. Assim, concluiu que a Lei 8.213/91, deve ser interpretada
conforme a Constituição, empregando-se uma interpretação extensiva, onde há uma
verdadeira lacuna pelo legislador, razão pela qual também negou provimento ao
recurso do INSS [note-se, apenas, que nestes julgados, a LINDB – Lei de Introdução
às Normas do Direito Brasileiro foi citada como LICC – Lei de Introdução ao Código
Civil, pois este era o nome então atribuído a dita legislação). Anote-se que fizemos
considerações mais sintéticas sobre este julgado (bem como sobre todos os do STJ
até o empate em 2x2 no REsp 820.475/RJ, adiante explicitado no corpo do texto e na
próxima nota de rodapé) em VECCHIATTI, Paulo Roberto Iotti. Homoafetividade e
família. Casamento civil, união estável e adoção por casais homoafetivos à luz da
isonomia e da dignidade humana. Uma resposta a Rafael D’Ávila Barros Pereira. Jus
Navigandi, Teresina, ano 12, n. 1824, 29 jun. 2008. Disponível em:
<http://jus.com.br/revista/texto/11441>. Acesso em: 2 out. 2012.
3 No REsp 820.475/RJ prevaleceu a posição do Ministro Antônio de Pádua Ribeiro
(seguida pelos Ministros Massami Uyeda e Luís Felipe Salomão), no sentido de que os
precedentes do STJ que classificam a união homoafetiva como mera “sociedade de
fato” devem evoluir para alcançar novas possibilidades, tendo em vista que “Não há
norma no ordenamento jurídico que regule o direto na relação homossexual, mas não
é por isso que este caso ficará sem resposta”, tendo em vista que somente há
impossibilidade jurídica do pedido quando há texto normativo que isto afirme
expressamente. Assim, concluiu no sentido de que inexiste dita proibição no que tange
à união homoafetiva e, dado o caráter análogo desta em relação à união estável
constitucionalmente consagrada, aplicou a analogia para estender à união homoafetiva
em questão os benefícios da legislação da união estável. Até porque, como citado pelo
Ministro Massami Uyeda, os fatos da vida são dinâmicos e muitas vezes não previstos
em lei, afirmando ainda que quando a lei for omissa o juiz pode decidir por analogia a
regras já estabelecidas, donde reconheceu o cabimento da união estável homoafetiva,
por analogia. Descabida a afirmação dos votos vencidos (Ministros Fernando
Gonçalves e Aldir Passarinho Neto) no sentido de que a Constituição teria sido “bem
clara” ao tratar da união estável mencionando apenas a expressão “entre o homem e a
mulher” porque isto configura lacuna normativa (texto normativo dispor sobre um fato
sem nada falar sobre outro) passível de colmatação por interpretação extensiva ou
analogia, visto inexistir texto normativo que restrinja a união estável à união entre um
homem e uma mulher mediante um termo como “apenas/somente/unicamente” ou
equivalente, de sorte a ser possível e necessária a colmatação de tal lacuna normativa
mediante interpretação extensiva ou analogia, tanto por lições de Direito Civil Clássico
quanto, especialmente, por força da isonomia, que demanda tratamento igual a
situações idênticas ou equivalentes, dada a inexistência de motivação lógico-racional
que justifique entendimento em sentido contrário. Assim, como dito pelo Ministro Luís
Felipe Salomão, “Os dispositivos mencionados limitam-se a estabelecer a
possibilidade de união estável entre homem e mulher que preencham as condições
impostas pela lei, quais sejam, convivência pública, duradoura e contínua, sem
restringir eventual união entre dois homens ou duas mulheres”, donde ““Admite-se a
integração mediante o uso da analogia, a fim de alcançar casos não expressamente
contemplados, mas cuja essência coincida com outros tratados pelo legislador”.
4 Escrevi um relato de dez páginas com todos os detalhes da minha experiência no caso,
desde minha descoberta do mesmo (não era o advogado delas) até o teor da
sustentação oral e algumas repercussões:
http://pauloriv71.wordpress.com/2011/11/07/o-stj-e-o-casamento-civil-homoafetivo-
relato-n-%C2%BA-2/. Em síntese, soube por acaso do julgamento dois dias antes dele
por notícia do site do STJ, descobri o número do processo pela internet, contatei o
advogado delas, ele e elas me autorizaram a realizar a sustentação oral, muito
elogiada pelos ministros e por elas, e concedi algumas entrevistas após o primeiro e o
último dia do julgamento, sempre destacando o trabalho dos outros advogados do
casal e do Grupo SOMOS, do Rio Grande do Sul, organização não governamental de
defesa dos direitos da população LGBT que deu o suporte jurídico ao casal até o
referido julgamento do STJ. Aproveito, aqui, para homenagear o Dr. Gustavo
Bernardes, advogado e militante LGBT que tenho o prazer de conhecer que foi quem
elaborou a petição inicial, a apelação e o recurso especial em favor do casal e foi,
assim, quem possibilitou o conhecimento do caso pelo Superior Tribunal de Justiça. O
Dr. Gustavo também elaborou um relato de sua experiência neste caso, que pode ser
localizado no seguinte link: http://pauloriv71.wordpress.com/2011/11/07/o-stj-e-o-
casamento-civil-homoafetivo-relato-n-%C2%BA-1/
5 Consoante jurisprudência pacífica do STJ, que exige texto normativo expresso que
proíba determinado pedido para que ele seja considerado juridicamente impossível,
entendimento este expressamente aplicado pelo Tribunal para reconhecer a
possibilidade jurídica da união estável homoafetiva no REsp n.º 820.475/RJ e no REsp
n.º 827.962/RS (entre outros, que não o citaram).
6 Rememorando: interpretação extensiva caso se considere as situações idênticas, por
ambas formarem uma família conjugal, ou analogia caso se considere que a
identidade de sexos em um caso e a diversidade de sexos em outro configuraria uma
“diferença”, pois neste caso ter-se-á que concluir que ambas são idênticas no
essencial, que é o fato de formarem uma família conjugal, objeto valorativamente
protegido pelo casamento civil e pela união estável.
7 Cf. Capítulo 5, pp. 196-211 (“2.4.1. O Amor Familiar como o Elemento formador da
Família Contemporânea”).
8 Sobre o tema, vide a excelente lição de RIOS, Roger Raupp. A Homossexualidade no
Direito, Porto Alegre: Editora Livraria do Advogado, 2001, pp. 103-105, que explica a
superação da opressora família hierárquico-patriarcal [na qual o homem mandava
despoticamente na sociedade conjugal heteroafetiva], sua evolução para a família
fusional [que se forma e se mantém apenas se houver afeto romântico na relação
conjugal] e a chegada da família pós-moderna, do final do século XXI, na qual as
relações se pautam muito mais na solidariedade e no afeto do que na mera função
procriativa da família [família eudemonista, a que se forma e se mantém unicamente
se isto trouxer felicidade aos seus membros].
9 Afinal, o art. 1.511 aduz que o casamento civil estabelece a comunhão plena de vida
entre os cônjuges e o art. 1.723 afirma que a união estável é a união pública, contínua
e duradoura, com o intuito de constituir família, sendo que “constituir família” não
significa “ter filhos”, “querer ter filhos” nem “poder ter filhos”, mas manter a citada
comunhão plena de vida e interesses (capacidade procriativa não é requisito para
reconhecimento de uma união conjugal como entidade familiar ante a não proibição do
casamento civil e da união estável a casais heteroafetivos estéreis, que não possuem
capacidade procriativa – afinal, se ela fosse requisito do casamento civil e da união
estável, casais heteroafetivos estéreis não teriam a si reconhecidos tais regimes
jurídicos).
10 Cf. voto do Ministro Fux na ADPF 132 e na ADI 4277, pp. 11-14.
11 Cf. voto do Ministro Ayres Britto na ADPF 132 e na ADI 4277, pp. 46-47, ao afirmar
que aqui o reino é da “igualdade pura e simples” entre casais homoafetivos e casais
heteroafetivos, tanto em termos de casamento civil quanto da união estável, por
afirmar que em nenhum momento há interdição a que casais homoafetivos consagrem
sua união pelo casamento civil ou tenham-na reconhecida como união estável
(segundo o Ministro, “tanto numa quanto noutra modalidade de legítima constituição da
família, nenhuma referência é feita à interdição, ou à possibilidade,de protagonização
por pessoas do mesmo sexo”, o que, acrescente-se, caracteriza a lacuna normativa
passível de colmatação por interpretação extensiva ou analogia).
12 Afinal, ao atribuir ao ato taxado de “inexistente” a mesma pena do ato nulo, que é a
destruição de todos os efeitos eventualmente produzidos com eficácia ex tunc
(retroativa), a “teoria da inexistência” visa atribuir a ele a mesma pena do ato nulo, com
a enorme diferença segunda a qual a nulidade supõe condições de validade
expressamente erigidas pela legislação por enunciado normativo expresso ante a
regra segundo a qual não há nulidade sem texto, que tem seu fundamento teleológico
no art. 5º, inc. II, da CF/88, ao passo que as supostas “condições de existência”
decorrem do puro subjetivismo do intérprete e não de texto expresso de lei (v.g., o que
alguém considera como “essencial/da natureza” do casamento civil não é
necessariamente o que outro assim considera), o que afronta inclusive os princípios da
legalidade e da segurança jurídica, tratando-se de teoria que claramente visa burlar a
regra segundo a qual não há nulidade sem texto ao pretender atribuir ao ato taxado de
inexistente a mesma pena do ato nulo a despeito de inexistir enunciado normativo que
isto justifique.
13 Segundo o relator: “O que importa agora, expressa a Constituição Brasileira de 1988,
é que essas famílias multiformes recebam efetivamente a ‘especial proteção do
Estado’, e é tão somente em razão desse desígnio de especial proteção que a lei deve
facilitar a conversão da união estável em casamento, ciente o constituinte que, pelo
casamento, o Estado melhor protege esse núcleo doméstico chamado família. Com
efeito, se é verdade que o casamento civil é a forma pela qual o Estado melhor
protege a família, e sendo múltiplos os ‘arranjos’ familiares reconhecidos pela Carta
Magna, não há de ser negada essa via a nenhuma família que por ela optar,
independentemente de orientação sexual dos partícipes, uma vez que as famílias
constituídas por pares homoafetivos possuem os mesmos núcleos axiológicos
daquelas constituídas por casais heteroafetivos, quais sejam, a dignidade das pessoas
de seus membros e o afeto”.
Capítulo 13

A POSIÇÃO DO SUPREMO TRIBUNAL


FEDERAL

1. CONSIDERAÇÕES PRELIMINARES
Na primeira edição desta obra, afirmei que ainda não se podia falar da
existência de um posicionamento do Supremo Tribunal Federal acerca da
possibilidade jurídica do casamento civil, da união estável e da adoção
conjunta por casais homoafetivos pela ausência de manifestação por parte
do órgão pleno de nossa Suprema Corte – se isso continua verdadeiro sobre
casamento civil e sobre adoção conjunta, já não é mais relativamente à
união estável, na medida em que o histórico julgamento da ADPF 132 e da
ADI 4.277, em 05.05.2011, reconheceu a união homoafetiva como entidade
familiar merecedora de igualdade de direitos relativamente à união
heteroafetiva, aplicando-se interpretação conforme à Constituição ao art.
1.723 do CC/2002 para “excluir do dispositivo em causa qualquer
significado que impeça o reconhecimento da união contínua, pública e
duradoura entre pessoas do mesmo sexo como família”; e, como dito
dispositivo legal versa sobre a união estável, então referida interpretação
conforme efetivamente reconheceu a união homoafetiva como união
estável, por interpretação extensiva ou analogia à literalidade normativa.
Ora, se a união estável é o regime jurídico objeto de dito texto normativo e
se a união estável visa regulamentar a família conjugal, então o afastamento
de qualquer significado tendente a excluir o reconhecimento da união
contínua, pública e duradoura entre pessoas do mesmo sexo como família
[conjugal], então é correto concluir que o STF estendeu o regime jurídico
da união estável a casais homoafetivos que atendam os requisitos legais de
continuidade, publicidade, durabilidade e intuito de constituir família
(requisitos estes impostos por dito dispositivo legal para a caracterização da
união estável).
Sobre o casamento civil, temos a manifestação monocrática do
Ministro Ayres Britto no citado julgamento, ao passo que temos
manifestação monocrática do Ministro Marco Aurélio negando seguimento
a recurso extraordinário que impugnava decisão paranaense concessiva de
adoção a casal homoafetivo.
Analisemos, assim, os posicionamentos do STF acerca da
conjugalidade homoafetiva e da adoção por casais homoafetivos.

2. O RECURSO EXTRAORDINÁRIO 406.837/SP (RELATOR


MINISTRO EROS GRAU)
Ao apreciar o recurso extraordinário em comento, no qual a recorrente
alegou afronta ao princípio da igualdade em razão de não lhe ser deferido o
regime jurídico da união estável sob a equivocada fundamentação de que tal
regime só seria possível na relação de um homem e uma mulher, o Ministro
Eros Grau não conheceu do recurso por entender que não foi atendido o
requisito do prequestionamento da matéria. Não enfrentarei essa questão
puramente processual – o que enseja este tópico é a breve manifestação do
Ministro acerca do tema de mérito, pois, muito embora não tenha conhecido
do recurso, ele manifestou sua opinião acerca da matéria de fundo.
Nesse sentido, afirmou o Ministro-Relator1 que seria “insubsistente,
também, a pretensão de ver aplicada à hipótese destes autos – pagamento de
pensão estatutária em virtude de união homossexual – o disposto no artigo
226, § 3.º, da Constituição do Brasil”, pois “este preceito, embora
represente avanço na esfera do direito social, somente reconhece como
entidade familiar, para efeito de proteção do Estado, a união estável entre o
homem e a mulher, desde que entre esses não se verifique nenhum
impedimento legal à conversão dessa união em casamento”.
Como se vê, o Ministro não entrou no cerne da questão, a saber, a
apreciação da discriminação decorrente da negação do regime jurídico da
união estável sob o enfoque do princípio da igualdade. Em verdade, não o
fez deliberadamente, pois, por entender que não foi cumprido o requisito do
prequestionamento, afirmou em trecho imediatamente anterior ao
supratranscrito que, “por constituir-se questão de mérito, a controvérsia
pertinente à aplicação do princípio da isonomia não pode ser submetida à
apreciação desta Corte”2. Isso porque, inexistindo prequestionamento, o
Supremo não aprecia a alegação de mérito respectiva.
Não obstante, o Ministro Eros Grau deixou a entender que não
considera a união estável um regime jurídico aplicável às uniões
homoafetivas ante o argumento simplista de que a redação do dispositivo
constitucional se refere exclusivamente à relação entre o homem e a mulher.
Nesse sentido, conforme já demonstrado pormenorizadamente neste
trabalho, a fundamentação é equivocada, justamente por não analisar o
conteúdo jurídico do princípio da igualdade, que veda discriminações
arbitrárias e exige uma motivação lógico-racional que justifique a
discriminação permitida com base no critério discriminador erigido,
exigindo a aplicação da interpretação extensiva ou da analogia caso a
situação não citada seja idêntica ou fundamentalmente idêntica à citada –
como ocorre com a união homoafetiva em relação à heteroafetiva, de uma
forma ou de outra.
Por outro lado, a fundamentação é equivocada quando afirma que o art.
226, § 3º, da CF/1988 teria reconhecido somente a união estável entre o
homem e a mulher – este somente não está escrito, donde não há limites
semânticos no texto que impeçam o reconhecimento da exegese analógica
inclusiva da união homoafetiva no conceito jurídico-constitucional de união
estável3 – e, como não há limites semânticos no texto, considerando que os
princípios constitucionais condicionam a interpretação das regras
constitucionais por sua hierarquia axiológica sobre estas4, afigura-se
completamente descabida uma interpretação do § 3º do art. 226 da CF/1988
de forma discriminatória, por isto não se compatibilizar com os princípios
da igualdade (art. 5.º), da dignidade da pessoa humana (art. 1.º, III) e com a
vedação constitucional de preconceitos de qualquer natureza (art. 3.º, IV),
sucedâneo da isonomia expressamente positivado pela Carta Magna.
O que parece, em verdade, é que o Ministro adiantou a sua pré-
compreensão sobre o tema – uma pré-compreensão arbitrária, por
desprovida de uma fundamentação lógico-racional que a justifique.
A conclusão do Ministro é, ainda, contrária a uma tese geral dele
próprio, a saber, aquela segundo a qual jamais existiria contradição entre
princípios e regras em virtude de estas serem sempre concretizações
daqueles5. A contradição existe na medida em que interpretar a regra da
união estável de forma a excluir desse conceito a união estável homoafetiva
implica contradição entre a regra da união estável e o princípio da
isonomia, que não foi enfrentado pelo Ministro, donde aquela regra jamais
pode ser interpretada de forma a contrariar esse princípio6.
De qualquer forma, como o Ministro não se manifestou acerca do cerne
da questão (isonomia) e não apresentou, assim, os motivos que lhe fazem
considerar incabível a interpretação extensiva ou a analogia no caso
concreto, verifica-se que sua opinião manifestada naquele julgamento é
equivocada, visto que a união homoafetiva constitui uma família que
merece proteção jurídica por ser formada pelo amor romântico que visa a
comunhão plena de vida e interesses, de forma pública, contínua e
duradoura, da mesma forma que as uniões heteroafetivas, o que obriga a
utilização da interpretação extensiva ou então da analogia no caso em
questão.

3. A AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE 3.300/DF


(RELATOR MINISTRO CELSO DE MELLO) E A PETIÇÃO
1.984/RS (RELATOR MINISTRO MARCO AURÉLIO)
A Pet. n.º 1.984/RS, analisada pelo Ministro Marco Aurélio, então
Presidente do STF, referia-se a suspensão de segurança pleiteada pelo INSS
contra decisão proferida na ação civil pública n.º 2000.71.00.009347-0, que
havia deferido antecipação de tutela para obrigá-lo a reconhecer o(a)
companheiro(a) homoafetivo(a) como dependente de benefícios
previdenciários.
Após afirmar que o exame de pedidos de suspensão de segurança não
pode prescindir do exame do fundamento jurídico do pedido, o Ministro
Marco Aurélio assim se manifestou: “Constitui objetivo fundamental da
República Federativa do Brasil promover o bem de todos, sem preconceitos
de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação
(inciso IV do art. 3º da Carta Federal). Vale dizer, impossível é interpretar o
arcabouço normativo de maneira a chegar-se a enfoque que contrarie esse
princípio basilar, agasalhando-se preconceito constitucionalmente vedado.
O tema foi bem explorado na sentença (folhas 351 à 423), ressaltando o
Juízo a inviabilidade de adotar-se interpretação isolada em relação ao art.
226, § 3º, também do Diploma Maior, no que revela o reconhecimento da
união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar.
Considerou-se, mais, a impossibilidade de, à luz do art. 5º da Lei Máxima,
distinguir-se ante a opção sexual. Levou-se em conta o fato de o sistema da
Previdência Social ser contributivo, prevendo a Constituição o direito à
pensão por morte do segurado, homem ou mulher, não só ao cônjuge, como
também ao companheiro, sem distinção quanto ao sexo, e dependentes –
inciso V do artigo 201. Ora, diante desse quadro, não surge
excepcionalidade maior a direcionar à queima de etapas. A sentença, na
delicada análise efetuada, dispôs sobre a obrigação de o Instituto, dado o
regime geral de Previdência Social, ter o companheiro ou companheira
homossexual como dependente preferencial. Tudo recomenda que se
aguarde a tramitação do processo, atendendo-se às fases recursais próprias,
com o exame aprofundado da matéria. Sob o ângulo da tutela, em si, da
eficácia imediata da sentença, sopesaram-se valores, priorizando-se a
própria subsistência do beneficiário do direito reconhecido. É certo que
restou salientada a eficácia da sentença em todo o território nacional.
Todavia este é um tema que deve ser apreciado mediante os recursos
próprios, até mesmo em face da circunstância de a Justiça Federal atuar a
partir do envolvimento, na hipótese, da União. Assim, não parece
extravagante a óptica da inaplicabilidade da restrição criada inicialmente
pela Medida Provisória nº 1.570/97 e, posteriormente, pela Lei nº 9.497/97
à eficácia erga omnes, mormente tendo em conta a possibilidade de
enquadrar-se a espécie no Código de Defesa do Consumidor. 3. Indefiro a
suspensão pretendida”.
Ou seja, neste precedente o Ministro Marco Aurélio reconheceu a
plausibilidade do pedido de reconhecimento do direito de companheiros(as)
homoafetivos(as) como dependentes da seguridade social. Do contrário, não
teria feito referência à necessidade de se analisar os fundamentos jurídicos
do pedido no julgamento de suspensões de segurança. É o que demonstra
sua menção ao fato de a Constituição ter como objetivo fundamental o bem
de todos, sem preconceitos (art. 3º, inc. IV, da CF/1988) e que o arcabouço
normativo vigente (aí incluído o art. 226, § 3º, da CF/1988, citado pela
decisão) não poderia ser interpretado isoladamente, mas em consonância
com este princípio basilar contrários a preconceitos diversos. Logo, tenho
que este foi o primeiro posicionamento favorável ao reconhecimento dos
direitos de casais homoafetivos no âmbito do Supremo Tribunal Federal
(por ter sido proferido antes do voto do Ministro Celso de Mello na ADIn
n.º 3.300, de maior notoriedade, infraexplicitada), ainda que de forma
sumária, por ser um julgamento de suspensão de segurança (que não supõe
profunda análise do mérito da ação originária, mas apenas a análise da
plausibilidade jurídica dos pedidos).
Analisemos, agora, a ADIn 3.300/DF.
A Ação Direta de Inconstitucionalidade n.º 3.300, apresentada por
associações de defesa dos direitos dos homossexuais, impugnou o art. 1.º da
Lei 9.278/1996 no que tange à expressão “o homem e a mulher”,
requerendo a declaração da inconstitucionalidade parcial da mesma, por
afronta ao princípio da igualdade, para que fosse permitida a união estável
homoafetiva. Contudo, a ação acabou não sendo apreciada pelo Órgão
Pleno do Supremo Tribunal Federal. Isso porque o Relator Ministro Celso
de Mello acabou extinguindo o processo, sem resolução de mérito, por
entender que a Lei 9.278/1996 (que regulamentou a união estável) acabou
sendo derrogada pelo Código Civil de 2002, que igualmente tratou da união
estável em seus arts. 1.723 a 1.727, razão pela qual se impunha a extinção
do processo em razão de a Jurisprudência do Supremo não admitir Ação
Direta de Inconstitucionalidade em face de textos normativos revogados.
Essa questão da eventual derrogação das Leis de União Estável pelo
Novo Código Civil ainda divide a doutrina, pois há quem entenda que o
Código Civil, por ser lei geral, não poderia derrogar a referida lei, por se
tratar de legislação especial. Por outro lado, os adeptos da tese da
derrogação afirmam que o Diploma Civil, ao tratar especificamente do
tema, efetivamente revogou tacitamente aquela lei por ter elaborado
disposições especiais sobre o assunto.
Mas não cabe entrar nesse ponto do debate. Isso porque o interessante
dessa decisão monocrática do Ministro Celso de Mello encontra-se em suas
ponderações acerca do mérito da demanda – muito embora tenha extinguido
o processo, manifestou seu entendimento sobre a questão. Apontou
inicialmente que se trata de questão constitucional de alta relevância social
e jurídico-constitucional, referente à qualificação jurídica das uniões
homoafetivas como entidades familiares. Registrou, “quanto à tese
sustentada pelas entidades autoras, que o magistério da doutrina, apoiando-
se em valiosa hermenêutica construtiva, utilizando-se da analogia e
invocando princípios fundamentais (como os da dignidade da pessoa
humana, da liberdade, da autodeterminação, da igualdade, do pluralismo, da
intimidade, da não discriminação e da busca da felicidade), tem revelado
admirável percepção do alto significado de que se revestem tanto o
reconhecimento do direito personalíssimo à orientação sexual, de um lado,
quanto a proclamação da legitimidade ético-jurídica da união homoafetiva
como entidade familiar, de outro, em ordem a permitir que se extraiam, em
favor de parceiros homossexuais, relevantes consequências no plano do
Direito e na esfera das relações sociais”. Anotou que “essa visão do tema,
que tem a virtude de superar, neste início de terceiro milênio,
incompreensíveis resistências sociais e institucionais fundadas em fórmulas
preconceituosas inadmissíveis, vem sendo externada, como anteriormente
enfatizado, por eminentes autores, cuja análise de tão significativas
questões tem colocado em evidência, com absoluta correção, a necessidade
de se atribuir verdadeiro estatuto de cidadania às uniões estáveis
homoafetivas”. Citou as obras de Luis Edson Fachin, Luis Salem Varella e
Irene Innwilkl Salem Varella, Roger Raupp Rios, Ana Carla Harmatiuk
Matos, Viviane Girardi, Taísa Ribeiro Fernandes e José Carlos Teixeira
Giorgis, mas deu especial realce à “notável lição ministrada pela eminente
Desembargadora Maria Berenice Dias (União Homossexual: O
Preconceito & a Justiça, 2.ª ed., Porto Alegre: Livraria do Advogado
Editora, 2001, p. 71-83 e p. 85-99), destacando da obra da autora a lição
segundo a qual a família não se define exclusivamente em razão do vínculo
entre um homem e uma mulher ou da convivência dos ascendentes com seus
descendentes, pois também o convívio de pessoas do mesmo sexo ou de
sexos diferentes, ligadas por laços afetivos, sem conotação sexual, cabe ser
reconhecido como entidade familiar, além de não serem a prole ou a
capacidade procriativa essenciais para que a convivência de duas pessoas
mereça a proteção legal, descabendo deixar fora do conceito de família as
relações homoafetivas, donde, presentes os requisitos de vida em comum,
coabitação, mútua assistência, é de se concederem os mesmos direitos e se
imporem iguais obrigações a todos os vínculos de afeto que tenham
idênticas características. Destacando, ainda, o fato de que não se pode
fechar os olhos a essas novas realidades, não se podendo confundir
questões jurídicas com questões de caráter moral ou meramente religioso,
donde se deve reconhecer que formam as relações homoafetivas vínculos
em que há comprometimento amoroso e, portanto, a elas estender o regime
jurídico da união estável, por analogia. Cita o Ministro, ainda, julgados do
TJ/RS e do TRF da 4.a Região que aplicaram a analogia às uniões
homoafetivas: o primeiro por força dos princípios constitucionais da
dignidade da pessoa humana e da igualdade (TJ/RS, Apelação Cível
70005488812, Rel. Des. José Carlos Teixeira Giorgis, 7.ª Câmara Civil); e o
segundo pela constatação de que a exclusão dos benefícios previdenciários
em razão da orientação sexual, além de constituir prática discriminatória,
retira da proteção estatal pessoas que, por imperativo constitucional,
deveriam encontrar-se por ela abrangidas, discriminação esta que implica
dispensar tratamento indigno ao ser humano (Revista do TRF/4.ª Região,
vol. 57/309-348, 310, Rel. Des. Federal João Batista Pinto Silveira).
Como se pode ver, o Ministro Celso de Mello, muito embora se tenha
visto obrigado a extinguir o processo por uma questão insuperável de ordem
formal, posicionou-se no sentido da possibilidade jurídica da união estável
homoafetiva nos dias de hoje, por meio da analogia e dos princípios da
dignidade da pessoa humana, da liberdade, da autodeterminação, da
igualdade, do pluralismo, da intimidade, da não discriminação (todos estes
constitucionalmente consagrados) e da busca da felicidade (inerente ao da
dignidade humana). O fato de ter citado e prestigiado as lições de Maria
Berenice Dias, já citada por diversas vezes neste trabalho, assim como de
decisões jurisprudenciais do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, que
reconhece dita possibilidade jurídica, denota claramente que ele concorda
com as teses por estes esposadas.
Deve-se aplaudir o Ministro Celso de Mello por ter tido a coragem de
se manifestar favoravelmente ao tema da união estável homoafetiva mesmo
não estando obrigado a tanto, tendo em vista que extinguiu o processo sem
apreciação do mérito da Ação Direta de Inconstitucionalidade em comento.
Mas o importante foi ele ter apreciado diretamente a questão dos princípios
da isonomia e da dignidade da pessoa humana, assim como os da liberdade,
da autodeterminação, do pluralismo, da intimidade e da busca da felicidade.
Falo isso porque minha maior crítica às decisões jurisprudenciais que
negam a extensão da união estável aos casais homoafetivos é o fato de não
se manifestarem a respeito dos citados princípios, limitando-se a usar o
argumento simplista de que a letra fria da lei cita apenas o fato
heteroafetivo (união amorosa entre o homem e a mulher) – o que é
irrelevante, pois se a situação fática não citada pela norma possui o mesmo
valor protegido pela situação fática por ela citada/regulamentada, então é
obrigatória a aplicação da interpretação extensiva ou da analogia para
garantir o mesmo regime jurídico àquela situação não expressada (que, no
caso, é o fato homoafetivo, a saber, a união amorosa entre dois homens ou
duas mulheres), o que deixa a impressão de que ditos opositores do status
jurídico-familiar das uniões homoafetivas não enfrentam a questão sob o
enfoque da isonomia por não saberem como justificar de forma lógico-
racional a discriminação por eles pretendida, embora continuem
arbitrariamente a perpetrá-la...
Ou seja, por mais que venha a discordar de eventuais alegações no
sentido da suposta (e inexistente) pertinência da exclusão das uniões
homoafetivas do âmbito do Direito das Famílias, pelo menos respeitarei
aqueles justifiquem sua posição, no sentido de explicar o porquê de
pensarem assim. Afinal, dizer que a letra da lei não cita a situação
defendida não significa absolutamente nada, implicando um legalismo
positivista de há muito ultrapassado pela ciência jurídica, pois a
interpretação extensiva e a analogia existem justamente para garantir que
situações que não foram citadas/regulamentadas pelo texto normativo, mas
que sejam idênticas ou fundamentalmente idênticas às efetivamente
citadas/regulamentadas, tenham a si garantido o mesmo regime jurídico das
expressadas pela norma, em decorrência do princípio da igualdade
constitucionalmente consagrado.
Em outras palavras, negar um regime jurídico a determinadas pessoas
sob o fundamento da falta de menção expressa pela lei, sem justificar o
porquê da não extensão daquele Direito à situação omitida pela
interpretação extensiva ou pela analogia, implica negativa de vigência ao
quanto disposto nos arts. 4.º da LINDB e 126 do CPC, que afirmam que a
analogia e os princípios gerais do Direito devem ser utilizados no caso da
omissão legislativa como forma de integração das lacunas da lei, não se
eximindo o juiz de sentenciar e, consequentemente, analisar o mérito da
questão pelo simples fato de a lei não tê-la citado expressamente. Tal
postura arbitrária implica, ainda, afronta direta ao art. 5.o, II, da CF/1988,
pois deixa de aplicar uma lei sem justificar essa postura, ao passo que
aquele dispositivo constitucional, ao consagrar o princípio da legalidade,
determina que as leis sejam aplicadas7. Além, é claro, de dita negativa
ensejar inconstitucionalidade por afronta aos princípios da igualdade e da
dignidade da pessoa humana, da liberdade de consciência, da promoção do
bem-estar de todos, da laicidade estatal e da vedação de criação de
distinções de brasileiros entre si.
Perfeito tal entendimento, por se caracterizar como o único que pode
evitar a perpetração da inconstitucionalidade atinente à negação do direito à
união estável (e, pelos mesmos fundamentos, ao casamento civil) às uniões
homoafetivas (ou incompatibilidade com os demais valores
constitucionais). Aplaude-se, assim, a decisão do Ministro Celso de Mello,
pois certamente esta manifestação monocrática instigou os demais ministros
do STF a se debruçarem sobre o tema do status jurídico-familiar da união
homoafetiva, podendo ser caracterizada como primeiro passo da Suprema
Corte para o reconhecimento da união homoafetiva como entidade familiar
no julgamento, aproximadamente sete anos depois, da ADPF n.º 132 e da
ADI n.º 4.277, infra-analisado.

4. RECURSO ESPECIAL ELEITORAL 24.564 (RELATOR


MINISTRO GILMAR FERREIRA MENDES)
O Ministro Gilmar Ferreira Mendes teve a oportunidade de enfrentar
uma questão relativa à homoafetividade quando do julgamento de um
recurso especial eleitoral, em sua função de Ministro do Tribunal Superior
Eleitoral.
O caso versou sobre o registro de candidatura da companheira
homoafetiva de uma deputada de Viseu/PA à prefeitura daquela cidade, que
foi impugnado sob o fundamento de ela manter uma união estável com dita
deputada, argumentação esta que foi acolhida pelo juiz eleitoral respectivo
sob o fundamento de afronta ao art. 14, § 7.o, da CF/1988, que proíbe aos
cônjuges de Presidente da República, Governadores e Prefeitos
concorrerem nas eleições a qualquer cargo eletivo. Contra essa decisão foi
interposto recurso pela candidata, que foi acolhido pelo Tribunal Regional
Eleitoral, nos seguintes termos8:

Recurso eleitoral ordinário. Eleição majoritária. Registro de


candidato. Inelegibilidade. Impugnação. Parentesco por afinidade.
Procedência. Artigo 14, § 7.º, da Constituição Federal e art. 1.º, § 3.º,
da Lei 64/1990. Relação homoafetiva. Candidata e prefeita reeleita.
União estável. Omissão legislativa e constitucional. Impossibilidade de
dilação das vedações legais. Princípio da reserva legal. Princípio da
legalidade. Princípio da isonomia material. 1. Considera-se união
estável, para a proteção do Estado, aquela que decorre de união entre
homem e mulher como entidade familiar, a teor do que dispõe a Lei
Civil em vigor. 2. Inexistência de previsão constitucional e
infraconstitucional. A regra de inelegibilidade inserida no art. 14, § 7.o,
da Constituição Federal não atinge, nem mesmo de maneira reflexa, as
relações homoafetivas, por não se enquadrar no conceito de relação
estável, diante do silêncio eloquente contido no seu artigo 226, § 3.o. 3.
A omissão do ordenamento jurídico que regulamente as relações
homoafetivas e consequentemente as inelegibilidades decorrentes de
tais relações, não autoriza a aplicação por analogia das proibições
decorrentes dos limites advindos das relações de parentesco para o
exercício de mandato eletivo, previstas na Constituição Federal e na
Lei n. 64/1990. 4. Considerando o Princípio da Legalidade, não
incumbe ao intérprete ampliar o elenco de inelegibilidades, o que
conduziria a se imiscuir na vontade do legislador. De igual modo, há
de ser observado o Princípio da Isonomia Material, não podendo ser
restringidos direitos, sob pena de, a despeito da omissão legal, incorrer
em inadmissível e inconcebível discriminação (TER-PA, REO 993,
Relator Juiz Hind Ghassan Kayath, julgado em 04.09.2004).

Interposto Recurso Especial Eleitoral, o TSE, em 19.10.2004,


reconheceu a inelegibilidade da companheira de uma deputada de Belém do
Pará por esta não ter se licenciado seis meses antes da data do pleito,
através de analogia com o disposto no art. 14, § 7.o, da CF/1988, que proíbe
aos cônjuges de Presidente da República, Governadores e Prefeitos
concorrerem nas eleições a qualquer cargo efetivo, sob o fundamento de
que essa salutar vedação visa não perpetuar no poder um mesmo grupo
familiar e evitar a constituição de oligarquias que deem ensejo ao que se
chama de continuísmo, razão pela qual a jurisprudência passou a reconhecer
que não só o casamento, mas também o concubinato e a união estável,
impõem a mesma limitação, em face da presença de forte vínculo afetivo9.
Analisemos a ementa do referido julgado:

Registro de candidato. Candidata ao cargo de prefeito. Relação


estável homossexual com a prefeita reeleita do município.
Inelegibilidade. Art. 14, § 7.o, da Constituição Federal. Os sujeitos de
uma relação estável homossexual, à semelhança do que ocorre com os
de relação estável, de concubinato e de casamento, submetem-se à
regra de inelegibilidade prevista no art. 14, § 7.o, da Constituição
Federal. Recurso a que se dá provimento. (TSE – REsp Eleitoral
24.564, Relator Ministro Gilmar Ferreira Mendes, julgado em
01.10.2004 – sem destaque no original).

Essa decisão do TSE foi imediatamente comemorada pela doutrina que


defende a possibilidade jurídica da união estável homoafetiva sob o
fundamento de que, a partir do momento em que se reconhecem obrigações
jurídico-familiares às uniões homoafetivas oriundas de suas relações de
afeto, não há como deixar de se reconhecer que ditas uniões formam
entidades familiares sob o fundamento da inexistência de lei expressa que o
consagre, pois igualmente inexiste lei que preveja dita restrição de direito
que foi, não obstante, reconhecida10, em especial pela analogia perpetrada
por dito aresto contrariar princípio geral de Direito segundo o qual
restrições de direitos devem ser interpretadas restritivamente, e não
ampliativamente – e foi efetivamente ampliada a restrição constante do art.
14, § 7.o, da CF/1988, visto que ali não consta a inelegibilidade de
companheiros, sejam eles hétero ou homoafetivos.
Contudo, deve ficar claro que os Ministros que julgaram dito recurso
especial lamentavelmente não reconheceram o status jurídico-familiar das
uniões homoafetivas. Eles fizeram uma interpretação teleológica do art. 14,
§ 7.o, da CF/1988 no sentido de que o seu intuito “é mesmo evitar a
utilização da máquina administrativa ou evitar que seja utilizada em favor
do parente, evitar a formação de oligarquias, evitar o continuísmo, que não
presta obséquio à República”, donde entenderam que haveria uma “ofensa à
ratio legis se, numa atitude conservadora, não reconhecêssemos, no âmbito
do Direito Público Eleitoral, a existência dessa união homoafetiva nos
moldes de uma união estável” (palavras do então Ministro Carlos Velloso).
Nas palavras do Ministro Gilmar Ferreira Mendes:

Ao longo dos tempos, o TSE tem entendido que o concubinato,


assim como a união estável, enseja a inelegibilidade prevista no
referido dispositivo constitucional. (...) Em todas essas situações –
concubinato, união estável, casamento e parentesco – está presente,
pelo menos em tese, forte vínculo afetivo, capaz de unir pessoas em
torno de interesses políticos comuns. Por essa razão, sujeitam-se à
regra constitucional do art. 14, § 7.o, da Constituição Federal. Em que
pese o ordenamento jurídico brasileiro ainda não ter admitido a
comunhão de vidas entre pessoas do mesmo sexo como entidade
familiar, acredito que esse relacionamento tenha reflexo na esfera
eleitoral. (...) É um dado da vida real a existência de relações
homossexuais em que, assim como na união estável, no casamento ou
no concubinato, presume-se que haja fortes laços afetivos. Assim,
entendo que os sujeitos de uma relação estável homossexual
(denominação adotada pelo Código Civil alemão), à semelhança do
que ocorre com os sujeitos de união estável, de concubinato e de
casamento, submetem-se à regra de inelegibilidade prevista no art. 14,
§ 7.o, da Constituição Federal.

Duas questões devem ser colocadas, e que devem ser tidas como
inerentemente vinculadas: (i) concordo com essa interpretação teleológica
efetivada pelo TSE; (ii) dita interpretação teleológica deve ser realizada
quanto ao disposto no art. 226, § 3.o, da CF/1988 para, vislumbrando-se que
o elemento formador da família conjugal contemporânea é o amor
romântico que vise a uma comunhão plena de vida e interesses, de forma
pública, contínua e duradoura, estender o regime jurídico da união estável
às uniões homoafetivas por força da interpretação extensiva ou da analogia,
visto que estas são baseadas em dito amor, da mesma forma que as uniões
heteroafetivas. Analisem-se as duas colocações:
Como é basilar em hermenêutica jurídica, a interpretação teleológica
prevalece sobre a puramente literal. Muito embora o enunciado linguístico
constante do texto normativo seja (além do início) o limite da atividade
interpretativa, a partir do momento em que a interpretação de um
dispositivo aponta que sua ratio (finalidade) é uma, mas a sua literalidade
aponta em sentido diverso, a sua finalidade deve ser a respeitada, desde que
não afronte o significado das palavras constantes do enunciado normativo
em questão. Certamente os opositores da união estável homoafetiva
alegarão, com base justamente no que se acabou de expor, que não seria
possível interpretar o art. 226, § 3.o, da CF/1988 de forma a permitir a união
estável homoafetiva por força de este utilizar a expressão “o homem e a
mulher”. Contudo, esse raciocínio é equivocado, na medida em que não se
defende em nenhum momento neste trabalho que a união homoafetiva
estaria abarcada na expressão “o homem e a mulher”, mas que dito
dispositivo constitucional é omisso em relação à união homoafetiva (por
não regulá-la, mas também não proibi-la), donde cabível uma interpretação
extensiva ou uma analogia para estender o regime jurídico da união estável
às uniões homoafetivas por meio de interpretação teleológica de dito
dispositivo constitucional, que sem dúvida leva à conclusão de que sua
finalidade foi consagrar como famílias as uniões pautadas pelo amor
romântico que vise a uma comunhão plena de vida e interesses, de forma
pública, contínua e duradoura.
Isso significa que seria inegavelmente contraditório reconhecer que a
união homoafetiva deveria sofrer as mesmas restrições que sofrem as
uniões heteroafetivas (no âmbito eleitoral ou em qualquer outro), mas não
receber os benefícios garantidos a ditas uniões sob o fundamento de que
inexistiria lei a prevê-los. Ora, a restrição eleitoral imposta às uniões
homoafetivas no REsp 24.564 também não está expressa em lei e mesmo
assim foi reconhecida, por força de interpretação teleológica e,
posteriormente, pela analogia. Dessa forma, deve ser feito o mesmo
procedimento no que tange à união estável: reconhecer que sua ratio é
regulamentar entidades familiares, reconhecer que as uniões homoafetivas
possuem a mesma ratio da entidade familiar exemplificativamente citada no
art. 226, § 3.o, da CF/1988 e, em seguida, estender o regime jurídico da
união estável às uniões homoafetivas pela interpretação extensiva ou pela
analogia.
Ressalte-se que a única solução para aqueles que se apegam
unicamente a uma cega e acrítica literalidade normativa para defender que
inexistiria possibilidade de reconhecimento da união estável homoafetiva
pela mera ausência de previsão normativa expressa a reconhecê-la seria
adotar a fundamentação constante da decisão reformada pelo TSE e
igualmente não reconhecer a inelegibilidade de companheiros homoafetivos
igualmente pela ausência de disposição normativa expressa nesse sentido.
Em outras palavras: dizer que não se reconhece a união estável homoafetiva
pela ausência de lei ou dispositivo constitucional que a consagre, ao mesmo
tempo em que se impõe às uniões homoafetivas restrições que a
Constituição expressamente apôs apenas a casais heteroafetivos, implica
uma inacreditável aplicação de dois pesos e duas medidas a dois
julgamentos idênticos, julgamentos estes consistentes na análise de lacunas
da legislação (constitucional ou infraconstitucional), em postura claramente
arbitrária, por desprovida de uma fundamentação lógico-racional que a
justifique.
Por outro lado, e com todo o respeito que merece o Ministro Carlos
Velloso, afigura-se incoerente a colocação no sentido de que seria
conservador não reconhecer a existência da união homoafetiva no âmbito
do Direito Eleitoral para impor obrigações aos homossexuais ao mesmo
tempo em que não se reconhece o status jurídico-familiar das uniões
homoafetivas. Afinal, afronta a ratio legis a atitude conservadora de não
reconhecer, no âmbito do Direito das Famílias, a existência da união
homoafetiva nos moldes de uma união estável. Afigura-se, ainda,
incoerente considerara união homoafetiva como união estável apenas para
se lhe reconhecer obrigações (como as inelegibilidades), mas não
reconhecê-la como união estável para atribuir-lhe direitos oriundos do
status jurídico-familiar – ou seja, do Direito das Famílias.
Sobre a manifestação do Ministro Gilmar Mendes de que o
ordenamento jurídico brasileiro ainda não admite a comunhão de vidas
entre duas pessoas do mesmo sexo como entidade familiar, sempre defendi
que ela poderia significar ausência de reconhecimento expresso, ou seja,
que ele poderia ter intencionado dizer que a legislação brasileira ainda não
teria disciplinado (expressamente) o tema da união homoafetiva, sem que
isso significasse necessariamente que ele tivesse intencionado dizer que a
união homoafetiva não configuraria entidade familiar. Na verdade, este
julgado sempre foi ambíguo em termos de Direito das Famílias (e talvez
isso tenha sido proposital, já que o foco era Direito Eleitoral e não Direito
Familiar), pois a ementa afirma o regime das inelegibilidades para hipóteses
de casamento civil, união estável e concubinato, equiparando as situações
pelas fortes relações afetivas existentes no casal em qualquer destas
hipóteses para justificar as inelegibilidades em todas elas, a despeito da
omissão normativa, para evitar a formação de oligarquias. Contudo, em
termos de Direito das Famílias, o julgado não afirmou se considerava a
união homoafetiva como entidade familiar ou como equiparável à união
concubinária (antigo concubinato impuro, do atual art. 1.727 do CC/2002),
que não é uma entidade familiar.
Felizmente, o Ministro Gilmar Mendes reconheceu a união
homoafetiva como entidade familiar no julgamento da ADPF 132 e da ADI
4.277, afirmando, sobre a literalidade do art. 226, § 3.º, da CF/1988, que o
fato de a Constituição proteger a união estável entre homem e mulher não
significa uma negativa de proteção à união civil ou estável entre pessoas do
mesmo sexo, donde possível o manejo da analogia para reconhecer a união
homoafetiva como entidade familiar. O tema será desenvolvido adiante,
quando analisarmos esse paradigmático julgado.
Aponte-se, por fim, que minha refutação à suposta existência de um
“silêncio eloquente” no art. 226, § 3.o, da CF/1988 no que tange à união
homoafetiva consta no Anexo 1 desta obra, razão pela qual se reiteram aqui
as colocações ali expendidas.

5. RE 615.261/PR. ADOÇÃO POR CASAL HOMOAFETIVO


Juiz de Direito do Paraná deferiu pedido de adoção por casal
homoafetivo masculino, embora limitando a adoção a adolescentes do sexo
feminino a partir dos doze anos de idade. Apelaram os autores contra tal
restrição, tendo sido dado provimento ao recurso pelo Tribunal de Justiça
do Paraná para afastar essa restrição discriminatória. Contra essa decisão,
foi interposto recurso extraordinário pelo Ministério Público, ao
fundamento de que a união homoafetiva não se constituiria como união
estável.
Sobre o tema, o Ministro Marco Aurélio negou seguimento ao recurso,
sob o fundamento de que “Há flagrante descompasso entre o que foi
decidido pela Corte de origem e as razões do recurso interposto pelo
Ministério Público do Estado do Paraná”, pois “O Tribunal local limitou-se
a apreciar a questão relativa à idade e ao sexo das crianças a serem
adotadas”, ao passo que “No extraordinário, o recorrente aponta violado o
artigo 226 da Constituição Federal, alegando a impossibilidade de
configuração de união estável entre pessoas do mesmo sexo, questão não
debatida pela Corte de origem”, razão pela qual negou seguimento ao
recurso extraordinário.
Vejamos a ementa deste julgado:

Recurso Extraordinário 615.261


Origem: AC – 5.299.761 – Tribunal de Justiça Estadual
Decisão: Recurso Extraordinário – Razões – Descompasso com o
acórdão impugnado – Negativa de seguimento. 1. Contra a sentença
proferida pelo Juízo, houve a interposição de recurso somente pelos
autores. Pleitearam a reforma do decidido a fim de que fosse afastada a
limitação imposta quanto ao sexo e à idade das crianças a serem
adotadas. A apelação foi provida, declarando-se terem os recorrentes
direito a adotarem crianças de ambos os sexos e menores de 10 anos.
Eis o teor da emenda contida à folha 257: “... 2. Delimitar o sexo e a
idade da criança a ser adotada por casal homoafetivo é transformar a
sublime relação de filiação, sem vínculo biológicos, em ato de
caridade provido de obrigações sociais e totalmente desprovido de
amor e comprometimento”. 2. Há flagrante descompasso entre o que
foi decidido pela Corte de origem e as razões do recurso interposto
pelo Ministério Público do Estado do Paraná. O Tribunal local limitou-
se a apreciar a questão relativa à idade e ao sexo das crianças a serem
adotadas. No extraordinário, o recorrente aponta violado o art. 226 da
Constituição Federal, alegando a impossibilidade de configuração de
união estável entre pessoas do mesmo sexo, questão não debatida pela
Corte de origem. 3. Nego seguimento ao extraordinário. 4. Publiquem.
Brasília, 16 de agosto de 2010.
Ministro Marco Aurélio
Relator11

A presente decisão não entrou no mérito da possibilidade jurídica da


adoção por casais homoafetivos, tendo sido negado seguimento ao recurso
por questão meramente formal, a saber, a ausência de prequestionamento
acerca do fundamento jurídico invocado pelo recurso, pela ausência de
enfrentamento pelo Tribunal Paranaense do disposto no art. 226 da
CF/1988, consoante a ementa supratranscrita. De qualquer forma, o fato de
a ementa de uma decisão puramente formal como esta transcrever a posição
do Tribunal Paranaense no sentido de que “‘Delimitar o sexo e a idade da
criança a ser adotada por casal homoafetivo é transformar a sublime
relação de filiação, sem vínculo biológicos, em ato de caridade provido de
obrigações sociais e totalmente desprovido de amor e comprometimento’”
denota que o Ministro Marco Aurélio concorda com tal posição. Do
contrário, provavelmente não teria transcrito tal trecho, já que a não
refutação ou a ausência de ressalva denota concordância com este. De
qualquer forma, cabe aguardar uma posição expressa da Corte acerca do
tema.

6. ADPF 132 E ADI 4.277. O HISTÓRICO RECONHECIMENTO DO


STATUS JURÍDICO-FAMILIAR DA UNIÃO HOMOAFETIVA
Como visto anteriormente, as ações foram propostas objetivando a
extensão do regime jurídico da união estável a casais homoafetivos por
força dos princípios da igualdade, da dignidade da pessoa humana, da
liberdade e da segurança jurídica. Remeto o leitor ao capítulo 7 para análise
dos argumentos das ações.
O relator, Ministro Ayres Britto, destacou que o fato de o art. 3º, inc. IV,
da CF/1988 ter equiparado a discriminação por motivo de sexo à
discriminação por origem, raça, cor e idade significa que ele reconheceu
que, como estes outros, o sexo é algo que não depende da vontade da
pessoa, mas do puro acaso, e que, portanto, é injusto que uma pessoa seja
discriminada por seu sexo e, pelo mesmo motivo, por sua sexualidade, o
que é constitucionalmente inadmissível ante a ausência de permissão
constitucional a tal discriminação. Assim, vislumbrando um silêncio
intencional da Constituição relativamente à forma como as pessoas utilizam
sua sexualidade, afirmou que as relações homoafetivas12 são lícitas por
força do art. 5º, inc. II, da CF/1988 consagrar a máxima kelseniana segundo
a qual aquilo que não é proibido tem-se por permitido. Logo, reconhecendo
um direito de todos ao uso da própria sexualidade desde que não a use para
oprimir a sexualidade alheia (opressão que ocorre no estupro e na
pedofilia), afirmou que deve ser reconhecida igualdade pura e simples entre
as uniões homoafetivas relativamente às uniões heteroafetivas, o que só
será possível caso se reconheça que aquelas formam entidades familiares
da mesma forma que estas, entendendo “entidade familiar” como sinônimo
perfeito de “família”, compreendida como núcleo doméstico e como
“vocacionalmente amorosa, parental e protetora dos respectivos membros,
constituindo-se, no espaço ideal das mais duradouras, afetivas, solidárias ou
espiritualizadas relações humanas de índole privada”. Sobre o § 3º do art.
226 da CF/1988, afirmou que tal dispositivo visou estabelecer relações
jurídicas horizontais ou sem hierarquia entre homens e mulheres, em razão
de se saber que ainda hoje a mulher que se une em companheirismo com
um homem sem papel passado ainda é vítima de comentários desairosos de
sua honra objetiva como ranço do patriarcalismo entre nós, “nada tendo a
ver com a dicotomia da heteroafetividade e da homoafetividade”13,
oportunidade na qual faz a advertência para “que não se faça uso da letra
da Constituição para matar o seu espírito, no fluxo de uma postura
interpretativa que faz ressuscitar o mencionado caput do art. 175 da
Constituição de 1967/1969 (cuja afirmação de que “a família é constituída
pelo casamento...” gerou entendimento prevalecente de que ele protegia
“apenas” a família matrimonializada). Ou como diria Sérgio da Silva
Mendes, “que não se separe por um parágrafo (esse de nº 3) o que a vida
uniu pelo afeto”. Assim, julgou procedente a ação para atribuir “ao art.
1.723 do Código Civil interpretação conforme à Constituição para dele
excluir qualquer significado que impeça o reconhecimento da união
contínua, pública e duradoura entre pessoas do mesmo sexo como ‘entidade
familiar’, entendida esta como sinônimo perfeito de ‘família’.
Reconhecimento que é de ser feito segundo as mesmas regras e com as
mesmas consequências da união estável heteroafetiva” (parte dispositiva da
decisão do STF).
Excelente o voto do Ministro. Entendo, apenas, que não deveria se
preocupar em afirmar um que o silêncio constitucional seria “intencional”,
pois, data venia, intencional ou não, o silêncio normativo implica lacuna
passível de colmatação por interpretação extensiva ou analogia, o que
afirmo por entender inconstitucional a teoria do silêncio eloquente, que visa
atribuir a um silêncio supostamente intencional o mesmo caráter de uma
proibição explícita, o que contraria frontalmente o art. 5º, inc. II, da
CF/1988, que, ao afirmar que ninguém será obrigado a algo senão em
virtude de lei, exige texto normativo expresso ou, no mínimo, norma
jurídica implícita para se reconhecer que haveria a proibição em questão
(ressalva esta que reitero para os demais votos que também mencionaram,
embora rejeitando, neste caso, a teoria do silêncio eloquente). Feita esta
ressalva, o voto é paradigmático e preciso em seus demais fundamentos.
O Ministro Luiz Fux afirmou inicialmente o dever do Estado atuar
positivamente para garantir os direitos fundamentais dos cidadãos deles
necessitados para, em seguida, reconhecendo a homossexualidade como um
fato da vida que independe da vontade dos próprios homossexuais14,
afirmar que o conceito ontológico de família é formado pelo “amor
familiar, que estabelece relações de afeto, assistência e suporte recíprocos
entre os integrantes do grupo”, pela “comunhão, a existência de um projeto
coletivo, permanente e duradouro de vida em comum” e pela “identidade, a
certeza de seus integrantes quanto à existência de um vínculo
inquebrantável que os une e que os identifica uns perante os outros e cada
um deles perante a sociedade”, e concluir no sentido de que “Presentes
esses três requisitos, tem-se uma família, incidindo, com isso, a respectiva
proteção constitucional”. Assim, afirmando que a união homoafetiva se
enquadra neste conceito ontológico de família da mesma forma que a união
heteroafetiva, e por constatar a existência de lacuna normativa na
Constituição por força da não regulamentação aliada à não proibição da
união homoafetiva no Direito Brasileiro, reconheceu a união homoafetiva
como entidade familiar merecedora da proteção do regime jurídico da união
estável15, ante a inexistência de motivação válida ante a isonomia a
justificar tratamento diferenciado a ela relativamente àquele dispensado à
união heteroafetiva16, inclusive mediante o exercício da função
contramajoritária do Poder Judiciário na guarda dos direitos fundamentais
em face da ação da maioria ou, como neste caso, para impor a ação do
Poder Público na promoção desses direitos na medida em que, embora
canetas de magistrados não sejam capazes de acabar com o preconceito,
detêm o poder de determinar ao aparato estatal a atuação positiva na
garantia da igualdade material entre os indivíduos e no combate ostensivo
às discriminações odiosas. Rechaçou a anacrônica teoria da inexistência do
ato jurídico com base no célebre brocardo romano segundo o qual “ubi
societas, ibi ius”, ou seja, onde está a sociedade, está o Direito, no sentido
de que o Direito deve seguir a evolução social, estabelecendo normas para a
disciplina dos fenômenos já postos, em que “o ato de constituição da união
homoafetiva existe, ocorre e gera efeitos juridicamente relevantes, que,
portanto, merecem tratamento pelo direito”, no caso, tratamento jurídico
enquanto entidade familiar constitucionalmente protegida. Assim, por não
vislumbrar nada no art. 226, § 3º, da CF/1988 que impedisse a equiparação
das uniões estáveis homoafetivas às uniões estáveis heteroafetivas por sua
mera literalidade, por entender que se trata de norma de caráter nitidamente
emancipatório que não deve ser interpretada de forma restritiva17, votou
pela procedência das ações para reconhecer a possibilidade jurídica da
união estável homoafetiva.
Precisas as colocações do Ministro Fux na medida em que a definição
do conceito ontológico de família é fundamental para a análise do caso, pois
sendo a família conjugal o objeto valorativamente protegido pelos regimes
jurídicos da união estável e do casamento civil, a ausência de proibição
normativa à união estável homoafetiva e ao casamento civil homoafetivo
caracteriza lacuna normativa colmatável por interpretação extensiva ou
analogia, colmatação decorrente do enquadramento da união homoafetiva
no conceito ontológico de família, precisamente definido pelo Ministro – e
que é análogo ao amor familiar defendido nesta obra, que defino como
aquela que visa uma comunhão plena de vida e interesses, de forma pública,
contínua e duradoura. Logo, considerando que a união homoafetiva forma
uma família conjugal da mesma forma que a união heteroafetiva, tem-se por
cabível interpretação extensiva ou analogia para se reconhecer a união
estável homoafetiva (e o casamento civil homoafetivo). Excelente, ainda,
sua refutação da esdrúxula “teoria da inexistência do ato jurídico” (ato este
existente no mundo fático), teoria esta flagrantemente inconstitucional por
afronta ao art. 5º, inc. II, da CF/1988. Com efeito, ela se trata de uma
inacreditável invenção doutrinária que objetiva burlar a regra segundo a
qual não há nulidade sem texto (regra esta que tem seu fundamento
teleológico no art. 5º, inc. II, da CF/1988, no sentido de exigir norma
jurídica para se reconhecer uma proibição/restrição), pois visa atribuir ao
ato taxado de inexistente a mesma consequência atribuída ao ato nulo
(destruição dos efeitos produzidos com eficácia ex tunc – e expurgar do
mundo jurídico um ato com eficácia ex tunc equivale a dizer que dito ato é
proibido pelo Direito), com a enorme diferença de que as condições de
validade (cuja afronta gera nulidade) estão expressamente previstas pela lei,
ao passo que as supostas “condições de existência” (cuja afronta ensejaria a
inexistência jurídica de atos que existiram faticamente) não o são, ficando a
cargo do subjetivismo do intérprete a sua definição. A própria doutrina não
tem o menor pudor de reconhecer que dita teoria da inexistência surgiu na
época do Código Napoleônico como forma de se proibir o casamento civil
homoafetivo em um sistema legal que não o vedava e segundo o qual tudo
que não estava proibido tinha-se como permitido18. Logo, trata-se de teoria
inaceitável, sendo inacreditável que tenha sido aceita sem reservas pela
doutrina em geral, mesmo a teor daquele caráter fraudulento de sua
formulação, visto que foi criada para se burlar a regra segundo a qual não
há nulidade sem texto, de forma a se proibir o casamento civil homoafetivo.
Contudo, mesmo abstraindo desta discussão e aceitando-se a validade da
esdrúxula teoria da inexistência de atos que existiram no mundo fático, o
entendimento do amor familiar como o elemento formador da família
contemporânea afasta a colocação da diversidade de sexos como
“essencial” ao casamento civil e à união estável, pois, a partir do momento
em que se percebe que as uniões homoafetivas são famílias conjugais
pautadas pelo amor familiar e que casamento civil e união estável são
regimes jurídicos que visam proteger as famílias conjugais, percebe-se que
ele (amor familiar) é a condição essencial para o casamento civil e não a
diversidade de sexos.
A Ministra Cármen Lúcia afirmou que, sobre o art. 226, § 3.º, da
CF/1988, deve ser interpretado sistematicamente com os demais
dispositivos constitucionais, por não parecer razoável supor que qualquer
norma constitucional possa ser interpretada fora do contexto das palavras e
do espírito que se põe no sistema, donde o fato de o citado dispositivo
constitucional usar a expressão “entre o homem e a mulher” não pode
significar que a união homoafetiva seria constitucionalmente intolerável e
intolerada, por isto contrariar os pilares normativo-constitucionais do
princípio da dignidade da pessoa humana, que impõe a tolerância e a
convivência harmônica de todos, com “integral respeito às livres escolhas
das pessoas”19. A Ministra realçou o princípio da igualdade sob o
fundamento de que as pessoas têm o direito de ser tratadas igualmente no
que diz com a própria humanidade e o direito de serem respeitadas como
diferentes em tudo que configure a individualidade de cada um, donde
afirmou que “a escolha da vida em comum com quem quer que seja” é uma
“eleição” que concerne à própria condição humana, pois a afeição nutrida
por alguém é o que pode haver de mais humano e de mais íntimo de cada
um, razão pela qual aqueles que “fazem opção pela união homoafetiva” não
podem ser desigualados em sua cidadania, pois ninguém pode ser tido como
cidadão de segunda classe porque, como ser humano, não aquiesceu em
adotar modelo de vida coerente com o que a maioria tenha como certo,
válido ou legítimo, não podendo o preconceito diminuir a cidadania de
quem, por razões de afeto e “opções de vida” resolvesse adotar modo de
convivência estável com outrem que não o figurino tido como o comum.
Dessa forma, parece-lhe que a interpretação correta da norma constitucional
é a que conduz ao reconhecimento do direito à liberdade de que “cada ser
humano é titular para escolher o seu modo de vida”, aí incluída a vida
afetiva com o outro como uma instituição que tenha dignidade jurídica,
garantindo-se, assim, a sua integridade humana, razão pela qual, com base
no direito fundamental à intimidade (para proteger a eleição sentimental
feita pelas pessoas sem discriminações [arbitrárias]) e ao pluralismo social
(possibilidade de manifestação de todas as “opções livres dos indivíduos”,
que podem viver segundo suas tendências, vocações e opções sem
discriminações arbitrárias), afirmou que a “escolha da vida em comum de
duas pessoas do mesmo sexo” não pode ser tolhida, por força de
interpretação atribuída a uma norma legal, porque isso contrariaria os
princípios constitucionais que fundamentam o pluralismo político e social
na medida em que as “escolhas pessoais livres e legítimas”, segundo o
sistema jurídico vigente, são plurais na sociedade e, assim, terão de ser
entendidas como válidas. Dessa forma, julgou procedentes as ações para
reconhecer a família conjugal homoafetiva com os mesmos direitos e
deveres dos companheiros nas uniões estáveis heteroafetivas.
O voto da Ministra Cármen Lúcia é interessante porque, apesar de
partir de um erro conceitual por considerar a orientação sexual uma “opção”
embora ninguém escolha a sua própria orientação sexual20, aponta para algo
que deveria ser uma obviedade jurídica, a saber, que as opções/escolhas de
alguém não devem ser reprimidas ou menosprezadas pelo Direito quando
não tragam prejuízos a terceiros – e o fato de uma parte da população ser
homossexual e desejar manter relações conjugais homoafetivas não traz
prejuízo nenhum às pessoas heterossexuais e que desejam manter relações
conjugais heteroafetivas, uma vez ausente fundamentação lógico-racional
que justifique a discriminação negativa das uniões homoafetivas
relativamente às uniões heteroafetivas, donde inconstitucional por afronta
ao princípio da igualdade. Assim, precisa a afirmação da Ministra no
sentido de que a interpretação sistemática do art. 226, § 3.º, da CF/1988
com as demais normas constitucionais, como a atinente à isonomia,
demanda pelo reconhecimento de que a ausência de proibição normativa à
união estável homoafetiva implica o reconhecimento da possibilidade
jurídica desta, por interpretação extensiva ou analogia.
O Ministro Lewandowski afirmou entender não ser cabível o uso da
analogia para reconhecer a união homoafetiva como união estável por
entender que os constituintes de 1988 visaram limitar a união estável apenas
à união heteroafetiva (entre o homem e a mulher) e que ainda que o juiz
possa trabalhar para atualizar a norma ao zeitgeist [espírito do tempo]
contemporâneo, a interpretação não pode ultrapassar os “limites objetivos
do direito posto” e que “a interpretação jurídica não pode desbordar dos
lindes objetivamente delineados nos parâmetros normativos, porquanto,
como ensinavam os antigos, [porque] in claris cessat interpretatio” [na
clareza, cessa a interpretação], razão pela qual entendeu que a Constituição
reconhece a união estável “só” entre homem e a mulher [o que merece
críticas, pois este “só” não está escrito no dispositivo constitucional...].
Contudo, reconheceu a união homoafetiva como entidade familiar
autônoma, pelo caráter exemplificativo do rol de famílias listado pelos
parágrafos do art. 226 da CF/198821 (diante do fato de que este não repetiu
a redação do art. 175 da Constituição anterior, que afirmava que “a família é
constituída pelo casamento...”), afirmando-a como um novo gênero de
família, fora do rol do art. 226, oriundo de leitura sistemática do texto
constitucional para se dar concreção aos princípios da dignidade da pessoa
humana, igualdade, liberdade e não discriminação por orientação sexual.
Afirmou que “as uniões de pessoas do mesmo sexo que se projetam no
tempo e ostentam a marca da publicidade, na medida em que constituem
um dado da realidade fenomênica e, de resto, não são proibidas pelo
ordenamento jurídico, devem ser reconhecidas pelo Direito, pois, como já
diziam os jurisconsultos romanos, ex facto oritur jus”, donde entendeu
cabível o reconhecimento à união homoafetiva dos mesmos direitos
concedidos à união heteroafetiva por analogia22, “naquilo em que não seja
indispensável à diversidade de sexos”23, embora não tenha afirmado em
que casos a diversidade de sexos seria necessária.
O voto do Ministro Lewandowski merece críticas em sua exegese de
não cabimento de analogia para reconhecer a união homoafetiva como
“união estável”, na medida em que se pautou por um originalismo
interpretativo, entendido como método de interpretação que visa interpretar
determinado dispositivo constitucional com base na suposta intenção dos
“pais fundadores” da Constituição – no caso, dos Constituintes de 1988.
Primeiramente, por ignorar que esta forma de julgar impede qualquer uso
efetivo do cânone da mutação constitucional, pois se o dispositivo
constitucional tiver que ser interpretado sempre de acordo apenas com a
intenção de seus elaboradores, então será impossível concluir que a norma
imaginada por seu elaborador atingiria um fato distinto daquele por ele
imaginado, o que é profundamente anacrônico24. Por outro lado, ignora a
teoria objetiva da interpretação, segundo a qual “a lei é mais sábia que o
legislador”, o que significa que não importa o que o elaborador da lei quis
dizer, considera-se apenas o que ele disse, no sentido de que aquilo que se
interpreta é o texto concretamente aprovado e vigente e não a suposta
“intenção” daquele que a elaborou. Vale aqui a célebre frase de Geraldo
Ataliba25, segundo a qual a eventual intenção do legislador nada vale para a
interpretação jurídica, pois a Constituição é muito mais do que os
constituintes quiseram: ela é o que eles fizeram, pois, como diz Luís
Roberto Barroso26, “uma vez posta em vigor, a lei se despreende do
complexo de pensamentos e tendências que animaram seus autores”, donde
“O intérprete, ensinou Ferrara, deve buscar não aquilo que o legislador
quis, mas aquilo que na lei aparece objetivamente querido: a mens legis e
não a mens legislatoris”. Mesmo para fins de interpretação histórica, não é
a mens legislatoris fator relevante: o que importa ser investigado na
interpretação histórica é a occasio legis, isto é, a circunstancia histórica que
gerou o nascimento do texto normativo e que constitui sua finalidade
imediata27, atuando a occasio legis como forma de se localizar a ratio legis,
ou seja, a finalidade do texto normativo28. Ademais, a fala do Ministro no
sentido de que isso não significaria afirmar o juiz como mera boca que
pronuncia as palavras da lei, mas reconhecer os limites objetivos do direito
posto não merece acolhida, pois os limites objetivos da interpretação
jurídica estão apenas no texto da norma, não na suposta intenção de seus
elaboradores. É lição assente na doutrina constitucionalista que, a despeito
da norma ser fruto da interpretação do texto normativo, a interpretação deve
respeitar os limites semânticos do texto, não os supostos limites da intenção
dos elaboradores do texto normativo (aliás, até a menção ao anacrônico
brocardo in claris cessat interpretativo foi equivocada, pois este visava
impedir a interpretação de textos claros, não impedir a evolução da
interpretação normativa com base na intenção do legislador, que foi o que o
Ministro defendeu no caso). Em suma, são irrelevantes as concepções dos
legisladores que aprovaram os textos normativos quando respeitados os
conceitos regulamentados por estes, o que significa que, tendo o art. 226, §
3º, da CF/1988 visado reconhecer o conceito de família conjugal não
matrimonializada como união estável, o julgador deve investigar o que
constitui o conceito de família conjugal contemporâneo, não a concepção
que o legislador constituinte tinha de família conjugal, sob pena de
petrificarmos a interpretação da norma jurídica de forma a impedir qualquer
evolução em sua concepção.
Por outro lado, merece aplausos o Ministro por reconhecer a união
homoafetiva como entidade familiar autônoma a despeito de
(equivocadamente) não reconhecê-la como união estável. Foi precisa a lição
do Ministro no sentido do caráter meramente exemplificativo do rol de
famílias reconhecido pelos parágrafos do art. 226 da CF/1988, o que se dá
pelo fato de não ter dito dispositivo constitucional afirmado que eram
reconhecidas “apenas” aquelas entidades familiares, bem como pela
diferença de redações deste dispositivo com o correspondente art. 175 da
CF 1967/1969, que afirmava que era a família constituída pelo casamento
aquela reconhecida pelo Estado. Como o art. 226 da CF/1988 reconheceu
que a família merece especial proteção do Estado, então visou proteger
qualquer família, não uma determinada forma de família ou algumas
formas específicas, consoante a precisa lição de Paulo Lôbo29,
pertinentemente citada pelo Ministro em seu voto. Assim, ainda que se
entenda que a suposta intenção do Constituinte de 1988 teria sido a de
limitar a união estável apenas a casais heteroafetivos para, assim,
caracterizar-se uma “proibição implícita” ao reconhecimento da união
homoafetiva como união estável, a caracterização da união homoafetiva
como entidade familiar autônoma relativamente àquelas expressamente
previstas não resta abrangido por esta suposta “proibição implícita” (que
abarca somente a união estável e, assim, implica efetivamente a permissão
de uso da analogia para garantir a ela os mesmos direitos conferidos à união
estável heteroafetiva, visto ser o instituto jurídico mais próximo à união
homoafetiva já que ambas as hipóteses versam sobre uma família conjugal).
A Ministra Ellen Gracie iniciou sua fala30 ressaltando a proteção da
família pelo Direito Brasileiro e aduzindo que a família existe quando haja
durabilidade, não clandestinidade, continuidade e ausência de
impedimentos matrimoniais na relação. Afirmou que a evolução acerca da
compreensão sobre a homossexualidade se iniciou com o Código
Napoleônico, que a descriminalizou, mas que tal evolução ainda precisa
superar barreiras para que se alcance a igualdade plena entre homossexuais
e heterossexuais, o que o STF faz mediante o reconhecimento judicial das
uniões homoafetivas, como feito no Canadá e África do Sul por suas Cortes
Supremas. Citou as palavras do premiê espanhol Jose Luis Zapatero no
sentido de que não estamos tratando de pessoas distantes e desconhecidas,
mas que estamos alargando as oportunidades de felicidade para nossos
vizinhos, nossos colegas de trabalho, nossos amigos e nossa família, pois
uma sociedade decente é aquela que não humilha seus integrantes. Por fim,
afirmou que esta decisão do Supremo restitui aos homossexuais o respeito
que merecem, reconhece seus direitos, restaura a sua dignidade, afirma a
sua identidade e restaura a sua liberdade.
Inexplicavelmente, o voto da Ministra Ellen Gracie, que se aposentou
logo após o julgamento, não foi disponibilizado no inteiro teor do acórdão,
publicado após sua aposentadoria... Dito isso, cumpre aplaudir as palavras
da Ministra, bem como destacar que o conceito de família por ela citado
abarca as uniões homoafetivas (união pública, contínua e duradoura despida
de impedimentos matrimoniais), o que, aliado à lacuna normativa oriunda
da ausência de proibição a ela, demanda pelo seu reconhecimento enquanto
entidade familiar por interpretação extensiva ou analogia ou, ainda que
assim não se entendesse, como entidade familiar autônoma justamente por
se enquadrar no conceito ontológico de família protegido pela Constituição,
como bem demonstrado pelo voto do Min. Luiz Fux, pelo rol do art. 226 da
CF/1988 ser meramente exemplificativo, como destacado pelo voto do
Ministro Lewandowski.
O Ministro Gilmar Mendes proferiu um longo voto cuja essência se
consubstancia no seguinte: quando a omissão normativa gera
discriminações em temas de direitos fundamentais, cabe à jurisdição
constitucional atuar positivamente para garantir ao grupo discriminado o
gozo de tais direitos, estendendo o regime constitucional ou, na
impossibilidade semântica de tal extensão, mediante a garantia de tais
direitos por analogia ou interpretação extensiva31. Analisemos as razões
desenvolvidas para tanto.
Iniciou seu voto ressaltando que viu com alguma preocupação a
formulação do pedido de interpretação conforme porque, em princípio, o
texto legal parecia não fazer nada mais do que reproduzir a norma
constitucional que prevê a união estável entre homem e mulher, mas se
curva ao argumento trazido de que essa norma tem servido para
fundamentar decisões jurisprudenciais no sentido negativo à pretensão
formulada em juízo, ou seja, com o objetivo de se negar reconhecimento à
da união homoafetiva [o que não considera admissível]. Aplaude a atuação
positiva do STF no caso por ser um crítico ferrenho do argumento de que o
Tribunal não poderia fazer isso porque assim se comportaria como um
“legislador positivo” (argumento este que o Ministro Marco Aurélio
afirmou considerar uma visão míope da atuação da Suprema Corte), por
aqui ser inequívoco que o Tribunal está assumindo um papel de caráter
positivo, ainda que de caráter provisório (se o legislador eventualmente
atuar), destacando seu entendimento no sentido de que tal vedação à
atuação positiva do Tribunal deve ser relativizada diante de prestações que
envolvam a produção de norma ou de mecanismo de proteção, nos quais
deve haver uma resposta de caráter positivo, pois se o sistema falha de
alguma forma na composição dessa resposta e o Judiciário é chamado, de
alguma forma, a substituir o sistema político, é óbvio que a resposta só
poderá ser de caráter positivo.
Afirmou que nas sustentações orais formuladas se aventou o tema sob
o enfoque do reconhecimento do direito das minorias, oportunidade na qual
destacou seu entendimento esposado em votos anteriores sobre este ser o
ethos fundamental da jurisdição constitucional, sendo que no caso
específico o que se pede é um modelo mínimo de proteção institucional
como instrumento para evitar uma caracterização continuada de
discriminação32. A respeito da indagação sobre dever ou não da jurisdição
constitucional deixar o Congresso Nacional encaminhar o tema diante das
acusações de ativismo judicial/excesso de atuação jurisdicional, considera
que o quadro que se tem é de inércia, de não decisão (em que cabe ao
Tribunal atuar para garantir o direito fundamental em questão). Assim,
parece-lhe evidente que não estamos a falar apenas de uma falta de
disciplina que permita o desenvolvimento de uma política pública, mas sim
de direitos fundamentais básicos. Entende-se que a doutrina nacional não
tem se ocupado como deveria do direito que cada indivíduo tem de
autodesenvolvimento de sua personalidade, direito existente no nosso
sistema a partir do direito de liberdade, entendendo que o direito à
orientação sexual está contemplado nessa ideia de autodesenvolvimento, de
exercício de liberdade, sendo que a falta de um modelo institucional que
abrigue essa “opção” acaba militando/contribuindo para o quadro de
discriminação, donde a rigor a pretensão que se formula perante o Tribunal
tem base nos direitos fundamentais a partir da própria ideia do direito de
liberdade, de igualdade, apontando que aqueles que fazem essa “opção”, se
não encontrarem o modelo institucional adequado, acabarão sofrendo as
mais diversas formas de discriminação, uma vez que, nesse contexto, o
Estado tem um dever de proteção, correspectivo a esses direitos elencados.
Explicitou o que considerou como outra dificuldade a se vencer:
afirmou que a legitimação do STF enquanto Corte Constitucional decorre
da aplicação da Constituição enquanto norma e, para isso, não se pode ler
no texto constitucional o que se queira, razão pela qual, ante a literalidade
do art. 226, § 3º, da CF/1988, o Tribunal tem a obrigação de explicitar os
fundamentos que justificam uma leitura inclusiva da união entre pessoas do
mesmo sexo “diante de um texto tão claro”33 que declara a união estável
entre um homem e a mulher, texto este que inclusive faz com que alguns
vislumbrem um silêncio eloquente a vedar tal reconhecimento, o que não
considera como consequência inevitável pois também entende que há aqui
outros direitos fundamentais envolvidos, associados ao livre
desenvolvimento da personalidade, que justificam e justificariam a criação
de um modelo idêntico ou semelhante àquele da união estável para essas
relações existentes, com base nos princípios da igualdade, da liberdade e da
não discriminação, por estes demandarem um dever de proteção. Contudo,
considera que é preciso dizê-lo de forma clara para o Tribunal não passar a
impressão de que estaria a decidir com base em um voluntarismo, em uma
interpretação apelativa a denotar que o Tribunal estaria interpretando o
texto constitucional de certa forma por sua mera vontade, o que levaria à
sua deslegitimação34. Assim, diante da “clareza” do texto constitucional,
chegou até a especular sobre a existência de uma possível lacuna, pois se o
Tribunal reconhecer que há direitos a uma proteção que encontre todos os
seus correspectivos deveres de proteção e que há essa lacuna ou essa não
disciplina, impõe-se algum tipo de solução, em razão da importância desse
modelo de proteção institucional na vida social35. Não considera fáceis
todos os problemas que decorrem dessa “opção”, considerando muito difícil
para a Corte fazer todo o elenco de distinções que poderia ocorrer entre a
união estável entre homem e mulher e pessoas do mesmo sexo. Lembrou
que toda a construção jurisprudencial feita ao longo dos anos sempre foi
feita em questões tópicas [pontuais], de direitos da concubina, de
equiparações de situações funcionais etc., com a jurisprudência antecipando
de alguma forma as legislações, mas sempre de caráter tópico.
Entende que diante de um texto constitucional aberto, que evolui e
exige novas aplicações em situações de lacunas, se não puder o Tribunal
aplicar a norma tal como está posta, poderia fazê-lo numa perspectiva
estritamente analógica, aplicando-a naquilo que coubesse, naquilo que fosse
possível36. Esta foi a solução por ele encontrada para o presente caso, ante
sua afirmação no sentido de que o fato de a Constituição proteger a união
estável entre homem e mulher não significa uma negativa de proteção à
união civil ou estável entre pessoas do mesmo sexo37, razão pela qual, se
não fosse possível resolver a controvérsia aqui posta à luz da aplicação da
disposição citada (art. 226, § 3º), poderia o Tribunal sem dúvida
encaminhar a solução, como fez o Ministro Lewandowski, a partir da
aplicação da analogia. Assim, concluiu seu voto dizendo que, em linhas
gerais, está de acordo com o pronunciamento do relator quanto ao resultado,
embora com ressalvas acerca da fundamentação. Contudo, anotou que tem
certo temor de que a equiparação pura e simples das relações, tendo em
vista a complexidade do fenômeno social envolvido, pode preparar
surpresas das mais diversas; entende que um exercício de imaginação
institucional, embora estimulante, também desanima, pois quando se
começam a fazer equiparações e elucubrações com base em paradigmas,
percebe-se que regular o tema como poderia fazê-lo o legislador seria
exacerbar demais essa vocação da Corte de legisladora positiva, com sério
risco de o Tribunal descarrilhar mediante a produção de lacunas; ao passo
que considera que fazer a mera equiparação poderia fazer com que o
Tribunal estivesse a equiparar situações reveladoras de diversidades, como
apontado pelo Ministro Lewandowski. Desse modo, limita-se a reconhecer
a existência dessa união, por aplicação analógica ou, se não houver outra
possibilidade, por uma aplicação extensiva do texto constitucional, sem se
pronunciar sobre outros desdobramentos.
O voto do Ministro Gilmar Mendes é preciso quando afirma que a
jurisdição constitucional deve atuar para garantir o respeito aos direitos
fundamentais dos cidadãos quando a omissão do legislador enseja negativa
de fruição de tais direitos. Nesse sentido, em razão da ausência de
regulamentação acerca da família conjugal homoafetiva e do fato de isto ter
sido interpretado (equivocadamente) por muitos como forma de não
reconhecimento desta, cabe à Suprema Corte atuar para garantir a fruição
destes direitos, seja elaborando a norma faltante para garantia de tal direito
como forma de suprir a omissão inconstitucional do legislador (como feito
pelo Tribunal na regulamentação da greve do serviço público ante a
respectiva omissão inconstitucional – STF, MI n.º 670, 708 e 712), seja pela
colmatação da lacuna normativa por interpretação extensiva ou analogia,
por força do princípio da igualdade.
O Ministro Joaquim Barbosa afirmou que o fundamento da
controvérsia não está unicamente no art. 226, § 3º, da CF/1988, mas em
todos os dispositivos constitucionais que estabelecem a proteção dos
direitos fundamentais. Ressaltou que as uniões homoafetivas constituem
uma realidade social incontestável porque sempre existiram e sempre
existirão. Assim, quanto ao pedido de reconhecimento das relações
homoafetivas da mesma forma que se reconhecem as relações
heteroafetivas, considerando que a Constituição deseja extinguir ou ao
menos mitigar o preconceito mediante o estabelecimento da justiça social e
da igualdade entre os cidadãos em uma sociedade livre, justa e solidária
sem preconceitos de qualquer espécie, considerando que a Constituição não
proibiu o reconhecimento jurídico das uniões homoafetivas e que o rol de
direitos fundamentais não se limita àqueles expressamente reconhecidos,
havendo outros decorrentes dos princípios e tratados internacionais dos
quais o Brasil faça parte (art. 5º, § 2º, da CF/1988), entende que o
reconhecimento dos direitos das pessoas que mantêm relações homoafetivas
decorre do princípio da dignidade da pessoa humana, que garante o direito à
igual consideração, na medida em que o não reconhecimento dessas
relações simboliza que o Estado não atribui o mesmo respeito e valor à
afetividade dos homossexuais, o que viola o direito de reconhecimento
inerente à dignidade humana. Entendeu que o reconhecimento dos direitos
oriundos de uniões homoafetivas encontra fundamento em todos os
dispositivos constitucionais que estabelecem a proteção dos direitos
fundamentais, a saber, nos princípios da dignidade da pessoa humana, da
igualdade e da não discriminação, normas autoaplicáveis que incidem
diretamente sobre essas relações de natureza privada, irradiando sobre elas
toda força garantidora que emana do nosso sistema de proteção de direitos
fundamentais, razão pela qual também julgou as ações procedentes.
O Ministro Marco Aurélio iniciou seu voto aduzindo que a questão
apresentada é saber se a convivência pública com o intuito de constituir
família entre duas pessoas do mesmo sexo pode ser admitida como entidade
familiar pela Constituição diante da omissão legislativa e, em caso positivo,
se é cabível a aplicação a ela do regime previsto no art. 1.723 do CC/2002.
Entendeu que a solução do tema independe do legislador, pois decorre
diretamente dos direitos fundamentais, em especial do princípio da
dignidade da pessoa humana, que permitiu a reformulação do conceito de
família por meio da zona de certeza positiva sobre o conteúdo jurídico de
tal princípio, que veda instrumentalizações de determinadas pessoas ou
grupos em prol de um projeto de sociedade alheio38, superando-se assim o
modelo hierárquico-patriarcal de família conjugal, fundado na hierarquia do
pai e na proteção do patrimônio do mesmo, para se chegar ao modelo
consagrado pela Constituição Federal de 1988: de reconhecimento jurídico
de outras formas familiares.
Sobre o art. 226, § 3º, da CF/1988, afirmou que ele expressamente
impôs ao Estado o reconhecimento de efeitos jurídicos às uniões estáveis,
dando fim à ideia de que somente no casamento seria possível a instituição
de família, donde consagrado o Direito “das Famílias”, “isto é, das famílias
plurais, e não somente da família matrimonial, resultante do casamento.
Em detrimento do patrimônio, elegeram-se o amor, o carinho e a
afetividade entre os membros como elementos centrais de caracterização
da entidade familiar”, razão pela qual “Alterou-se a visão tradicional sobre
a família, que deixa de servir a fins meramente patrimoniais e passa a
existir para que os respectivos membros possam ter uma vida plena
comum”, deixando de se considerar o conceito de família enquanto
“instituição-fim em si mesmo” para nela identificar a qualidade de
instrumento a serviço da dignidade de cada um de seus membros, por força
do fenômeno da repersonalização do Direito Civil oriundo da sua
constitucionalização, que consagrou o direito de ser em detrimento do mero
direito de ter (no âmbito do Direito Civil em geral e, em especial, do
Direito das Famílias). Assim, afirmou que relegar as uniões homoafetivas à
disciplina da sociedade de fato é não reconhecer essa modificação
paradigmática no Direito Civil levada a cabo pela Constituição da
República ante a categoria da sociedade de fato refletir um intuito
patrimonial/empresarial e não afetivo ou emocional, além de ser
vislumbrada pelo Direito Comercial como uma sociedade irregular eivada
por vícios, donde esta categoria jurídica está em flagrante descompasso com
a essência da união homoafetiva, que revela o compartilhamento de vidas39
e não a obtenção de lucros por intermédio de atividade negocial. Nesse
sentido, reconhecendo a proteção jurídica conferida ao projeto de vida
como integrante do conteúdo existencial do princípio da dignidade da
pessoa humana e como um valor essencialmente existencial que visa a
realização integral da pessoa concretamente considerada mediante as
escolhas que lhe pareçam mais acertadas na busca por seu projeto de vida40,
afirmou que “Certamente, o projeto de vida daqueles que têm atração pelo
mesmo sexo resultaria prejudicado com a impossibilidade absoluta de
formar família”, donde “Exigir-lhes a mudança na orientação sexual para
que estejam aptos a alcançar tal situação jurídica demonstra menosprezo à
dignidade. Esbarra ainda no óbice constitucional ao preconceito em razão
da orientação sexual”. Já sobre a interpretação do § 3º do art. 226 da
CF/1988 no caso em julgamento, afirmou que considerando que o objetivo
da República Federativa do Brasil é a construção de uma sociedade sem
preconceitos, “Não é dado interpretar o arcabouço normativo de maneira a
chegar-se a enfoque que contrarie esse princípio basilar, agasalhando-se
preconceito constitucionalmente vedado”, pois isto “despreza a sistemática
integrativa presentes princípios maiores, a interpretação isolada do artigo
226, § 3º, também do Diploma Maior, no que revela o reconhecimento da
união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, até porque
o dispositivo não proíbe esse reconhecimento entre pessoas de gênero
igual”, razão pela qual o teor meramente literal do dispositivo “pode ser
contornado com o recurso a instrumento presente nas ferramentas
tradicionais de hermenêutica”. Assim, extraindo do princípio da dignidade
da pessoa humana a obrigação de reconhecimento estatal da união
homoafetiva, reconheceu que inexiste vedação constitucional à aplicação do
regime da união estável às uniões homoafetivas, não se podendo vislumbrar
silêncio eloquente em virtude da redação do § 3º do artigo 226” porque, ao
contrário, há “obrigação constitucional de não discriminação e de respeito
à dignidade humana, às diferenças, à liberdade de orientação sexual, o que
impõe o tratamento equânime entre homossexuais e heterossexuais”, donde
deve ser superada a mera literalidade do art. 1.723 do CC/2002 por ela não
retratar fielmente o propósito constitucional de reconhecer direitos a grupos
minoritários. Assim, concluiu que “Se o reconhecimento da entidade
familiar depende apenas da opção livre e responsável de constituição de
vida comum para promover a dignidade dos partícipes, regida pelo afeto
existente entre eles, então não parece haver dúvida de que a Constituição
Federal de 1988 permite seja a união homoafetiva admitida como tal”, por
ser essa a leitura normativa que faz dos valores constitucionais consagrados
nos arts. 1º, inc. III, 3º, incs. II e IV, e 5º, caput e inc. I, da CF/1988 ante a
ausência de prejuízo a quem quer que seja pelo reconhecimento estatal da
união homoafetiva41, razão pela qual julgou procedentes as ações para
declarar a aplicabilidade do regime jurídico da união estável às uniões entre
pessoas do mesmo sexo.
Os votos dos Ministros Marco Aurélio e Joaquim Barbosa comprovam
que a interpretação sistemático-teleológica da Constituição demonstra que a
ausência de vedação constitucional ao reconhecimento da união estável
homoafetiva demanda pelo reconhecimento do status jurídico-familiar
desta, ante a inadequação de se equipará-la a uma sociedade de fato por se
ter aqui um intuito familiar e não empresarial, bem como pelo princípio da
dignidade da pessoa humana demandar o reconhecimento da família
conjugal homoafetiva em razão deste princípio vedar o menosprezo dela
relativamente à família conjugal heteroafetiva, o que só é possível mediante
o reconhecimento da igual dignidade jurídica e social delas mediante a
extensão do regime jurídico da união estável (e do casamento civil) à união
conjugal entre pessoas do mesmo sexo, por interpretação extensiva ou
analogia.
O Ministro Celso de Mello iniciou seu voto ressaltando a pluralização
do debate constitucional permitida pela participação dos amici curiae42,
para, após relatar o histórico de legislações que reprimiam duramente os
chamados atos de sodomia com evidente hostilidade e gravíssimas punições
(inclusive com a morte, equiparando-os ao crime de lesa-majestade),
defender a existência de imperativo constitucional de reconhecimento da
união estável homoafetiva como entidade familiar em razão: (i) de ninguém
poder ser privado de seus direitos em razão de sua orientação sexual, a
significar que também os homossexuais têm o direito de receber igual
proteção das leis e do sistema político-jurídico instituído pela Constituição,
donde intolerável a punição, exclusão ou discriminação que desiguale as
pessoas em razão de sua orientação sexual, na medida em que o Estado não
pode formular prescrições normativas que provoquem, por seu conteúdo
discriminatório, a exclusão de grupos, minoritários ou não, que integram a
comunhão nacional; (ii) da incumbência da Suprema Corte de garantir tais
valores da liberdade, da igualdade, da tolerância, da autodeterminação, do
pluralismo, da intimidade e da não discriminação, que representam
fundamentos essenciais à configuração de uma sociedade verdadeiramente
democrática, donde cabe ao Tribunal por termo à injusta divisão em debate,
por pautada em preconceitos inaceitáveis que não mais resistem ao espírito
do tempo; (iii) de tal decisão tornar efetivo o princípio da igualdade, que
assegura respeito à liberdade pessoal e à autonomia individual, confere
primazia à dignidade da pessoa humana e que rompe paradigmas históricos
e culturais e remove obstáculos que, até agora, inviabilizavam a busca da
felicidade por parte de homossexuais vítimas de tratamento discriminatório,
afirmando ainda que o reconhecimento do direito à busca da felicidade,
enquanto ideia-força que emana do princípio da dignidade da pessoa
humana43, autoriza o rompimento dos obstáculos que impedem a pretendida
qualificação da união estável homoafetiva como entidade familiar.
Sobre o art. 226, § 3.º, da CF/1988, afirmou não vislumbrar neste texto
normativo uma lacuna voluntária ou consciente evidenciadora de um
“silêncio eloquente” relativamente às uniões entre pessoas do mesmo sexo,
o que faz com base nas lições de Daniel Sarmento e de Luís Roberto
Barroso: (a) Sarmento, invocando o princípio instrumental da unidade da
Constituição para defender que os princípios fundamentais da dignidade da
pessoa humana, do Estado Democrático de Direito, da construção de uma
sociedade livre, justa e solidária livre de preconceitos e discriminações
configuram vetores que apontam firmemente no sentido de que a
interpretação do art. 226, § 3º, deve buscar a inclusão e não a exclusão dos
estigmatizados, a emancipação dos grupos vulneráveis e não a perenização
do preconceito e da desigualdade, donde se tem que concluir que esse
dispositivo constitucional assegurou reconhecimento à união entre o
homem e a mulher sem que a ausência de referência à união entre duas
pessoas do mesmo sexo possa configurar silêncio eloquente em razão de a
mera omissão à alusão à união homoafetiva não significar necessariamente
que a Constituição não asseguraria o reconhecimento desta, em especial por
força do elemento teleológico de dito dispositivo, que foi incluído na
Constituição para garantir proteção jurídica às uniões não
matrimonializadas, de sorte a coroar um processo histórico de inclusão
social e superação do preconceito, visto que seria um contrassenso
interpretar este dispositivo constitucional, que visa a inclusão, como uma
cláusula de exclusão discriminatória de homossexuais; (b) Barroso,
apontando que essa alusão à diversidade de gênero não traduz vedação de
extensão de tal regime às relações homoafetivas, pois extrair tal
consequência deste preceito seria desvirtuar a natureza da norma, que é de
inclusão, por ter sido introduzida para superar a histórica discriminação
sobre relações heteroafetivas que não decorressem do casamento, donde em
tal norma inclusiva não se pode vislumbrar uma restrição preconceituosa de
um direito. Dessa forma, entendeu o Ministro que “a extensão, às uniões
homoafetivas, do mesmo regime jurídico aplicável à união estável entre
pessoas de gênero distinto justifica-se e legitima-se pela direta incidência,
dentre outros, dos princípios constitucionais da igualdade, da liberdade, da
dignidade, da segurança jurídica e do postulado constitucional implícito
que consagra o direito à busca da felicidade, os quais configuram, numa
estrita dimensão que privilegia o sentido de inclusão decorrente da própria
Constituição da República (art. 1º, III, e art. 3º, IV), fundamentos
autônomos e suficientes aptos a conferir suporte legitimador à qualificação
das conjugalidades entre pessoas do mesmo sexo como espécie do gênero
entidade familiar”. Chegou a tal conclusão, ainda, com base no
entendimento de que o reconhecimento das conjugalidades homoafetivas,
por repousarem a sua existência nos vínculos de solidariedade, de amor e de
projetos de vida em comum, implica o reconhecimento do dever do Estado
de lhes dispensar o mesmo tratamento atribuído às uniões estáveis
heteroafetivas, em razão de ser indiscutível que o novo paradigma no plano
das relações familiares é o afeto, que se tornou um dos fundamentos mais
significativos da família moderna, qualificando-se, para além de sua
dimensão ética, como valor jurídico impregnado de perfil constitucional.
Nesse momento, o Ministro Celso de Mello honrou-me com citação de
trecho deste livro, no qual defendi: que mudou o paradigma da família
contemporânea que, de uma entidade fechada e válida por si mesma, passou
a existir somente por força do amor entre os cônjuges/companheiros, em
razão de a sociedade ter dado mais relevância à felicidade e, assim, à
afetividade amorosa do que à mera formalidade do casamento civil ou
qualquer outra forma preconcebida de família; que o reconhecimento do
status jurídico-familiar da união estável alçou o afeto à condição de
princípio jurídico implícito à dignidade humana no que tange às relações
familiares (ante o art. 5º, § 2º, da CF/1988 permitir a perquirição de direitos
fundamentais implícitos), o que decorre do fato de ser o afeto romântico o
motivo que faz duas pessoas decidirem formar uma união estável – pois,
embora seja o amor familiar o elemento formador da família
contemporânea (ou seja, a afetividade conectada com a publicidade,
durabilidade e continuidade da união em uma comunhão plena de vida e
interesses), é o amor romântico que dá o passo inicial para a constituição de
uma união estável; que, considerando que a única diferença do casamento
civil para a união estável é o papel passado (a certidão de casamento), ou
seja, o casamento ser uma situação formalizada e a união estável uma
situação de fato, tal equiparação denota que foi atribuída significação
jurídica ao afeto conjugal existente na relação, de sorte a consagrá-lo como
princípio jurídico-constitucional; e que o afeto é um princípio constitucional
implícito à dignidade da pessoa humana no que tange às relações familiares
porque estas, para garantir o direito à felicidade e a uma vida digna
(inerentes à dignidade humana), precisam ser pautadas pelo afeto,
independentemente de quaisquer formalidades, como a do casamento
civil44.
Destacou o Ministro, ainda, a função contramajoritária da Suprema
Corte enquanto “órgão investido do poder e da responsabilidade
institucional de proteger as minorias contra eventuais excessos da maioria
ou, ainda, contra omissões que, imputáveis aos grupos majoritários,
tornem-se lesivas, em face da inércia do Estado, aos direitos daqueles que
sofrem os efeitos perversos do preconceito, da discriminação e da exclusão
jurídica”, ou seja, a função de proteger as minorias contra imposições
desarrazoadas ou indignas das maiorias, o que invocou em razão de a
resistência do Poder Legislativo em enquadrar a união estável homoafetiva
como entidade familiar culminar em um quadro de submissão deste grupo
minoritário à vontade hegemônica da maioria (por isto excluir, marginalizar
e diminuir o papel social dos indivíduos que mantêm relações
homoafetivas45), de sorte a comprometer o próprio coeficiente de
legitimidade democrática da instituição parlamentar, na medida em que o
regime democrático não tolera nem admite a opressão da minoria por
grupos majoritários, pois a despeito da importância do princípio majoritário,
em uma perspectiva de uma concepção material de democracia
constitucional, ele não pode ensejar a supressão, a frustração e a
aniquilação de direitos fundamentais, como o livre exercício da igualdade e
da liberdade, sob pena de descaracterização da própria essência que
qualifica o Estado Democrático de Direito. Daí a necessidade de assegurar-
se proteção às minorias e aos grupos vulneráveis como fundamento
imprescindível à plena legitimação material do Estado Democrático de
Direito46, pois, em uma democracia constitucional, “ninguém se sobrepõe,
nem mesmo os grupos majoritários, aos princípios superiores consagrados
pela Constituição da República”, de modo que “torna-se necessário
assegurar, às minorias, notadamente em sede jurisdicional, quando tal se
impuser, a plenitude de meios que lhes permitam exercer, de modo efetivo,
os direitos fundamentais que a todos, sem distinção, são assegurados”, por
ser uma das funções básicas do constitucionalismo a proteção dos direitos
das minorias diante do arbítrio ou do descaso das maiorias, donde,
concordando com a petição inicial, considera essencial a intervenção da
jurisdição constitucional para garantir aos homossexuais a possibilidade,
que decorre da Constituição, de verem reconhecidas oficialmente as suas
uniões afetivas, com todas as consequências jurídicas patrimoniais e
extrapatrimoniais disso decorrentes, por não haver qualquer interesse
legítimo que justifique o não reconhecimento da união entre pessoas do
mesmo sexo como entidade familiar. Sobre a colmatação de lacunas
normativas inconstitucionais, afirmou que “o Supremo Tribunal Federal, ao
suprir as omissões inconstitucionais dos órgãos estatais e ao adotar
medidas que objetivem restaurar a Constituição violada pela inércia dos
poderes do Estado, nada mais faz senão cumprir a sua missão
constitucional e demonstrar, com esse gesto, o respeito incondicional que
tem pela autoridade da Lei Fundamental da República”47. Por todos esses
fundamentos, julgou procedentes as ações “para, com efeito vinculante,
declarar a obrigatoriedade do reconhecimento, como entidade familiar, da
união entre pessoas do mesmo sexo, desde que atendidos os mesmos
requisitos exigidos para a constituição da união estável entre homem e
mulher, além de também reconhecer, com idêntica eficácia vinculante, que
os mesmos direitos e deveres dos companheiros nas uniões estáveis
estendem-se aos companheiros na união entre pessoas do mesmo sexo”.
O voto do Ministro Celso de Mello é paradigmático em todos os
sentidos, em especial na menção ao fato de que uma democracia
constitucional só existe realmente se os direitos fundamentais de todos
forem respeitados, inclusive os das minorias, mesmo contra a vontade da
maioria quando não haja uma fundamentação lógico-racional que justifique
a discriminação respectiva perante a isonomia, o que inexiste no presente
caso. Uma verdadeira aula sobre hermenêutica e sobre a função da Suprema
Corte em uma democracia constitucional.
O Ministro Peluso afirmou inicialmente que é possível o pedido de
interpretação conforme em razão da diversidade das redações entre os arts.
226, § 3.º, e 1.723 do CC/2002 para, em seguida, afirmar que estamos em
um caso típico de lacuna normativa passível de colmatação por analogia,
técnica hermenêutica apta a garantir os direitos de uma situação
normatizada a uma situação a ela equivalente, ressaltando que o caso não
seria, a seu ver, de hipóteses idênticas, mas de proteção da união
homoafetiva por equiparação à união heteroafetiva48. O fez por concluir
que as normas constitucionais, em particular a do art. 226, § 3º, não
excluem outras modalidades de entidade familiar não expressas no texto
constitucional, por não se tratar de um rol taxativo, donde, por força dos
princípios constitucionais da dignidade, da igualdade e da não
discriminação (“e outros”), deve-se admitir uma interpretação segundo a
qual, além das entidades familiares catalogadas na Constituição, podem ser
reconhecidas outras, como no caso, pois os elementos comuns de ordem
afetiva em sentido genérico e material unindo pessoas do mesmo sexo
guardam exatamente uma comunidade com certos elementos da união
estável entre o homem e a mulher, daí a admissibilidade da consideração da
união de duas pessoas do mesmo sexo de serem consideradas como
entidades familiares para efeitos constitucionais e legais. Em razão do
raciocínio analógico a ser empregado, indagou-se sobre quais normas
deveriam ser invocadas para colmatar a lacuna em questão, momento no
qual também defendeu a aplicação das normas do Direito das Famílias ao
caso, porque realmente estas uniões/relações, marcadas sobretudo por
afetividade, evidentemente não podem ser submetidas às normas que
regulam sociedades de ordem comercial, econômica etc.49 Ressalta,
contudo, que, a seu ver, nem todas as normas relativas à união estável entre
homem e mulher poderiam ser aplicadas à união homoafetiva, por não
considerar que se tratem de situações absolutamente idênticas, mas
equiparadas, sendo preciso respeitar o que cada instituição tem si tem de
particular, não apenas por sua natureza extrajurídica, mas pela sua própria
natureza normativa. Daí que, também julgando procedente a ação, reiterou a
afirmação do Ministro Gilmar Mendes no sentido de que estamos diante de
um campo hipotético em relação aos desdobramentos deste importante
julgamento da Suprema Corte Brasileira, os quais não podem ser
examinados exaustivamente por diversos motivos, primeiramente pelos
pedidos não o comportarem, e segundo por entender que sequer a
imaginação dos Ministros seria capaz de prever todas as consequências,
desdobramentos e situações advindas do pronunciamento da Corte,
inclusive por não termos um modelo institucional que o Tribunal pudesse
reconhecer e definir, de maneira clara, com a capacidade de responder a
todas as exigências de aplicação a hipóteses ainda não concebidas, donde
entende que da decisão da Corte falta um espaço no qual deve intervir o
Poder Legislativo, o qual, a partir deste julgamento, tem que se dispor a
regulamentar as situações em que a aplicação da decisão da Corte será
justificada também do ponto de vista constitucional, entendendo assim
haver como que uma convocação desta decisão da Corte para que o
Legislativo assuma essa tarefa, a qual parece que, até agora, não se sentiu
ainda muito propenso a exercer, de regulamentar esta equiparação, o que
aponta ser um ponto de vista estritamente pessoal50.
O voto do Ministro Peluso demonstra cabalmente que a decisão do STF
justifica-se mediante lições de Direito Civil Clássico, segundo as quais o
fato de o texto normativo regulamentar um fato (união estável
heteroafetiva) sem nada dispor sobre o outro, seja reconhecendo-o, seja
proibindo-o (união estável homoafetiva) caracteriza lacuna normativa
passível de colmatação por interpretação extensiva ou analogia (que desde
sempre implicaram uma ação positiva do Estado-juiz de garantir direitos
não previstos no texto da norma). Logo, é absurdo pensar que o Supremo
teria ultrapassado sua competência constitucional neste caso por ter
reconhecido um direito não previsto no texto da norma, pois isto é o que a
analogia faz desde tempos imemoriais! Portanto, a menos que se pretenda
declarar a inconstitucionalidade da colmatação de lacunas normativas por
analogia por isto supostamente afrontar a separação dos poderes, o que seria
absurdo por ser função da interpretação extensiva e da analogia suprir as
lacunas normativas, enquanto estas não são eliminadas mediante
regulamentação normativa coerente com as normas constitucionais, não se
pode dizer que a decisão do STF configuraria um ativismo judicial ou uma
usurpação da competência do Congresso Nacional, em especial por
interpretação extensiva e analogia serem concretizações do princípio da
igualdade, no sentido de garantir igual tratamento a situações iguais ou
fundamentalmente iguais, donde amparadas pelo direito fundamental à
igualdade.
Anote-se, sobre a observação dos Ministros Lewandowski, Gilmar
Mendes e Cezar Peluso de que o Congresso não está proibido de legislar
sobre o tema e que pode regulamentar as especificidades de cada uma das
uniões (o que é óbvio), que eles evidentemente restaram vencidos se com
isto quiseram dizer que a regulamentação do Congresso Nacional poderia
trazer restrições aos direitos das uniões estáveis homoafetivas relativamente
às heteroafetivas naquilo que eventualmente considerem “indispensável” a
diversidade de sexos – ao menos no que tange à questão do casamento civil
e da adoção conjunta, que devem ser reconhecidos às uniões homoafetivas
já que elas foram reconhecidas pelo STF enquanto famílias conjugais e ante
a ausência de prejuízos a crianças e adolescentes pelo mero fato de serem
criadas por um casal homoafetivo. É claro que, sendo a igualdade material o
regime do tratamento distinto das situações desiguais, poderia ser admitida
a regulamentação distinta no caso de se reconhecer que haveria alguma
diferença relevante entre a união estável homoafetiva relativamente à união
estável heteroafetiva, mas cabe lembrar que qualquer regulamentação
diferenciada terá que passar pelo crivo dos testes constitucionais da
isonomia, da razoabilidade e da proporcionalidade, a demandar pela
pertinência lógico-racional de tal diferenciação (isonomia e razoabilidade)
além de sua adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito
com algum fim constitucionalmente legítimo (proporcionalidade) o que
supõe nova análise de sua (in)constitucionalidade pelo Supremo Tribunal
Federal se vier a existir.
Como se vê, a decisão do Supremo Tribunal Federal no julgamento da
ADPF n.º 132 e da ADI n.º 4.277 foi pautada por uma interpretação
sistemático-teleológica da Constituição Federal que, na prática, aplicou ao
caso concreto uma lição de Direito Civil Clássico, segundo a qual o fato de
o texto normativo regulamentar um ato sem nada dispor sobre outro implica
lacuna normativa passível de colmatação por interpretação extensiva ou
analogia, e não de “proibição implícita” (mesmo porque a tese da
“proibição implícita” é inconstitucional por afronta ao art. 5º, inc. II, da
CF/1988, que exige texto normativo expresso ou, no mínimo, norma
jurídica implícita que proíba a situação em questão), tendo alguns ministros
entendido que a aplicação direta das normas constitucionais da igualdade,
da dignidade humana, da liberdade e da segurança jurídica demandam o
reconhecimento do status jurídico-familiar da união homoafetiva enquanto
família conjugal com igualdade de condições com a união estável
heteroafetiva (enquadrando-a, assim, no conceito constitucional de união
estável), outros entendendo que a referida lacuna normativa é passível de
colmatação por analogia por ser a união estável o regime jurídico mais
próximo da união estável homoafetiva. Tais entendimentos encontram-se
em coerência com a interpretação sistemático-teleológica da Constituição e
os cânones hermenêuticos de interpretação constitucional da unidade, da
máxima efetividade e da concordância prática das normas constitucionais.

7. RE 477.554 AGR/MG, RE 615.941/RJ E OUTRAS DECISÕES


MONOCRÁTICAS PÓS ADPF 132 E ADI 4.277
No julgamento do RE n.º 477.554 AgR/MG, o Ministro Celso de
Mello, relator, proferiu acórdão cuja ementa bem sintetiza o julgamento da
ADPF n.º 132 e da ADI n.º 4.277 por ser a elas posterior (embora,
curiosamente, tenha tido seu acórdão publicado antes da publicação do
acórdão daquelas ações51), razão pela qual pede-se venia para se transcrever
referida ementa:

Ementa: União civil entre pessoas do mesmo sexo. Alta


relevância social e jurídico-constitucional da questão pertinente às
uniões homoafetivas. Legitimidade constitucional do reconhecimento e
qualificação da união estável homoafetiva como entidade familiar:
posição consagrada na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal
(ADPF 132/RJ e ADI 4.277/DF). O afeto como valor jurídico
impregnado de natureza constitucional: a valorização desse novo
paradigma como núcleo conformador do conceito de família. O direito
à busca da felicidade, verdadeiro postulado constitucional implícito e
expressão de uma ideia-força que deriva do princípio da essencial
dignidade da pessoa humana. Alguns precedentes do Supremo
Tribunal Federal e da Suprema Corte Americana sobre o direito
fundamental à busca da felicidade. Princípios de Yogyakarta (2006):
direito de qualquer pessoa de constituir família, independentemente de
sua orientação sexual ou identidade de gênero. Direito do
companheiro, na união estável homoafetiva, à percepção do benefício
da pensão por morte de seu parceiro, desde que observados os
requisitos do art. 1.723 do Código Civil. O art. 226, § 3º, da Lei
Fundamental constitui típica norma de inclusão. A função
contramajoritária do Supremo Tribunal Federal no Estado
Democrático de Direito. A proteção das minorias analisada na
perspectiva de uma concepção material de democracia constitucional.
O dever constitucional do estado de impedir (e, até mesmo, de punir)
“qualquer discriminação atentatória dos direitos e liberdades
fundamentais” (CF, art. 5º, XLI). A força normativa dos princípios
constitucionais e o fortalecimento da jurisdição constitucional:
elementos que compõem o marco doutrinário que confere suporte
teórico ao neoconstitucionalismo – Recurso de agravo improvido.
Ninguém pode ser privado de seus direitos em razão de sua orientação
sexual.
– Ninguém, absolutamente ninguém, pode ser privado de direitos
nem sofrer quaisquer restrições de ordem jurídica por motivo de sua
orientação sexual. Os homossexuais, por tal razão, têm direito de
receber a igual proteção tanto das leis quanto do sistema político-
jurídico instituído pela Constituição da República, mostrando-se
arbitrário e inaceitável qualquer estatuto que puna, que exclua, que
discrimine, que fomente a intolerância, que estimule o desrespeito e
que desiguale as pessoas em razão de sua orientação sexual.
Reconhecimento e qualificação da união homoafetiva como
entidade familiar.
– O Supremo Tribunal Federal – apoiando-se em valiosa
hermenêutica construtiva e invocando princípios essenciais (como os
da dignidade da pessoa humana, da liberdade, da autodeterminação, da
igualdade, do pluralismo, da intimidade, da não discriminação e da
busca da felicidade) – reconhece assistir, a qualquer pessoa, o direito
fundamental à orientação sexual, havendo proclamado, por isso
mesmo, a plena legitimidade ético-jurídica da união homoafetiva
como entidade familiar, atribuindo-lhe, em consequência, verdadeiro
estatuto de cidadania, em ordem a permitir que se extraiam, em favor
de parceiros homossexuais, relevantes consequências no plano do
Direito, notadamente no campo previdenciário, e, também, na esfera
das relações sociais e familiares.
– A extensão, às uniões homoafetivas, do mesmo regime jurídico
aplicável à união estável entre pessoas de gênero distinto justifica-se e
legitima-se pela direta incidência, dentre outros, dos princípios
constitucionais da igualdade, da liberdade, da dignidade, da segurança
jurídica e do postulado constitucional implícito que consagra o direito
à busca da felicidade, os quais configuram, numa estrita dimensão que
privilegia o sentido de inclusão decorrente da própria Constituição da
República (art. 1º, III, e art. 3º, IV), fundamentos autônomos e
suficientes aptos a conferir suporte legitimador à qualificação das
conjugalidades entre pessoas do mesmo sexo como espécie do gênero
entidade familiar.
– Toda pessoa tem o direito fundamental de constituir família,
independentemente de sua orientação sexual ou de identidade de
gênero. A família resultante da união homoafetiva não pode sofrer
discriminação, cabendo-lhe os mesmos direitos, prerrogativas,
benefícios e obrigações que se mostrem acessíveis a parceiros de sexo
distinto que integrem uniões heteroafetivas.
A dimensão constitucional do afeto como um dos fundamentos da
família moderna. – O reconhecimento do afeto como valor jurídico
impregnado de natureza constitucional: um novo paradigma que
informa e inspira a formulação do próprio conceito de família.
Doutrina.
Dignidade da pessoa humana e busca da felicidade.
– O postulado da dignidade da pessoa humana, que representa –
considerada a centralidade desse princípio essencial (CF, art. 1º, III) –
significativo vetor interpretativo, verdadeiro valor-fonte que conforma
e inspira todo o ordenamento constitucional vigente em nosso País,
traduz, de modo expressivo, um dos fundamentos em que se assenta,
entre nós, a ordem republicana e democrática consagrada pelo sistema
de direito constitucional positivo. Doutrina.
– O princípio constitucional da busca da felicidade, que decorre,
por implicitude, do núcleo de que se irradia o postulado da dignidade
da pessoa humana, assume papel de extremo relevo no processo de
afirmação, gozo e expansão dos direitos fundamentais, qualificando-
se, em função de sua própria teleologia, como fator de neutralização de
práticas ou de omissões lesivas cuja ocorrência possa comprometer,
afetar ou, até mesmo, esterilizar direitos e franquias individuais.
– Assiste, por isso mesmo, a todos, sem qualquer exclusão, o
direito à busca da felicidade, verdadeiro postulado constitucional
implícito, que se qualifica como expressão de uma ideia-força que
deriva do princípio da essencial dignidade da pessoa humana.
Precedentes do Supremo Tribunal Federal e da Suprema Corte
americana. Positivação desse princípio no plano do direito comparado.
A função contramajoritária do Supremo Tribunal Federal e a
proteção das minorias.
– A proteção das minorias e dos grupos vulneráveis qualifica-se
como fundamento imprescindível à plena legitimação material do
Estado Democrático de Direito.
– Incumbe, por isso mesmo, ao Supremo Tribunal Federal, em
sua condição institucional de guarda da Constituição (o que lhe
confere “o monopólio da última palavra” em matéria de interpretação
constitucional), desempenhar função contramajoritária, em ordem a
dispensar efetiva proteção às minorias contra eventuais excessos (ou
omissões) da maioria, eis que ninguém se sobrepõe, nem mesmo os
grupos majoritários, à autoridade hierárquico-normativa e aos
princípios superiores consagrados na Lei Fundamental do Estado.
Precedentes. Doutrina. (grifos nossos)

O site www.direitohomoafetivo.com.br traz, ainda, outras duas


decisões no mesmo sentido, também relatadas pelo Ministro Celso de
Mello52: RE n.º 568.129, julgado em 01.07.2011, e RE 596.010, julgado em
01.08.2011, que reiteram os argumentos supratranscritos.
Vejamos, ainda, a ementa do RE 615.941/RJ, DJe de 01.12.2011,
relatado pelo Ministro Luiz Fux, que também traz valiosas considerações
sobre o tema:

Direito constitucional e civil. União homoafetiva.


Reconhecimento. Inclusão do companheiro como dependente para fins
de pensão por morte e assistência à saúde. Possibilidade. Recurso
extraordinário a que se nega seguimento.
1. A norma constante do art. 1.723 do Código Civil — CC (“É
reconhecida como entidade familiar a união estável entre o homem e a
mulher, configurada na convivência pública, contínua e duradoura e
estabelecida com o objetivo de constituição de família”) não obsta que
a união de pessoas do mesmo sexo possa ser reconhecida como
entidade familiar apta a merecer proteção estatal. Precedentes: ADI
4.277 e ADPF 132, ambas da Relatoria do Ministro Ayres Britto,
Tribunal Pleno, Sessão de 05.05.2011.
2. O homossexualismo é um traço da personalidade. O
homossexualismo não é uma crença, o homossexualismo não é uma
ideologia e muito menos uma opção de vida, na medida em que nós
sabemos da existência atual e pretérita de todas as formas de violência
simbólica e violência física contra os homossexuais. Mas, se a
homossexualidade é um traço da personalidade, isto significa dizer que
ela caracteriza a humanidade de uma determinada pessoa. A
homossexualidade não é crime. Então por que ser homossexual? E por
que o homossexual não pode constituir uma família? O homossexual,
em regra, não pode constituir uma família por força de duas questões
que são abominadas pela nossa Constituição: a intolerância e o
preconceito. A Constituição Federal brasileira, que é de uma beleza
plástica ímpar, destaca no seu preâmbulo, como ideário da nossa
nação, como promessa constitucional, que o Brasil, sob a inspiração de
Deus, se propôs a erigir uma sociedade plural, uma sociedade justa,
uma sociedade sem preconceitos, com extrema valorização da
dignidade da pessoa humana. E para enfeixar esse conjunto de
cláusulas pétreas, o artigo 5º dispõe que todos os homens são iguais
perante a lei, sem distinção de qualquer natureza e nada mais faz do
que especificar aquilo que consta em todas as declarações
fundamentais dos direitos do homem – na Declaração da ONU, no
nosso Pacto de São José da Costa Rica, na Declaração da África e de
Madagascar, na Declaração dos Povos Muçulmanos –, todos os
homens, seres humanos, são iguais perante a lei, sem distinção de
qualquer natureza. Volta-se, então, à pergunta: se é assim – e assim o é
–, por que os homossexuais não podem formar uma união homoafetiva
equiparável a uma família? E o que é uma família? O que é uma
família, no Brasil, quando nós sabemos que a Constituição Federal só
consagrou a união estável porque 50% das famílias brasileiras são
espontâneas? Nesses lares, nessas casas desse percentual do povo
brasileiro, nunca passou um juiz, nunca passou um padre, mas naquela
casa há amor, há unidade, há identidade, há propósito de edificação de
projetos de vida. Naquela casa, muito embora não tenha passado
nenhum padre e nenhum juiz, naquela casa há uma família. E o
conceito de família no mundo hodierno, diante de uma Constituição
pós-positivista, é um conceito de família que só tem validade
conquanto privilegie a dignidade das pessoas que a compõem. Assim
como, hodiernamente, só há propriedade conquanto ela cumpra sua
finalidade social, há família, conquanto ela cumpra sua finalidade
social; a família, conquanto ela conceda aos seus integrantes a máxima
proteção sob o ângulo da dignidade humana. Ora, se esse é o conceito,
se essa é a percepção hodierna, a união homoafetiva enquadra-se no
conceito de família. E qual é a pretensão? A pretensão é que se confira
juridicidade a essa união homoafetiva para que eles possam sair do
segredo, para que possam sair do sigilo, para que possam vencer o
ódio e a intolerância em nome da lei. E o que se pretende, mutatis
mutandis, é a equiparação à união estável, que exatamente foi
consagrada em razão dessa realidade das famílias espontâneas. E a
união homoafetiva é uma realidade social – o eminente Procurador-
Geral da República ontem trouxe, e também tivemos essa informação
de que há mais de sessenta mil uniões homoafetivas no Brasil –, de
sorte que, pelo menos sob esses ângulos ainda embrionários, nada se
justifica que não se possa equiparar a união homoafetiva à união
estável. Muito embora pudéssemos ficar apenas no ângulo
jusfilosófico, que já seria extremamente convincente, como é esse
enxerto de alguns princípios pétreos da Constituição Federal, a
realidade é que inúmeros princípios constitucionais, quase que a
Constituição como um todo, conspiram em favor dessa equalização da
união homoafetiva em relação à união estável. Eu citaria – como aqui
já o fez o Ministro Ayres – o princípio da isonomia, o princípio da
liberdade, o princípio da dignidade da pessoa humana, o princípio da
proteção que o Estado deve a essas minorias e inúmeros outros
princípios que aqui eu poderia enunciar. E como nós sabemos, hoje, a
análise de qualquer drama humano – que passa por essa ponte onde
trafegam todas as misérias e todas as aberrações, que é a ponte da
Justiça –, esses dramas humanos, hoje, eles não podem ser resolvidos
sem perpassarem pelo tecido normativo da Constituição Federal. Hoje,
temos os princípios instrumentais de interpretação da Constituição
Federal, e os próprios princípios materiais que informam o sistema
jurídico, como um todo, iluminam o sistema jurídico. E, sob essa ótica,
o Homem, o Ser Humano, hoje se encontra como centro de gravidade
de todo o ordenamento jurídico. Então, é absolutamente incompossível
solucionar essa questão sem passar por esses princípios
constitucionais, dentre tantos, e estes que guardam, talvez, um pouco
mais de afinidade com a questão aqui proposta.
3. Reconhecida a união estável entre pessoas do mesmo sexo, não
há que se falar em ausência de direito de perceber pensão por morte
de um dos companheiros.
(...)
É o relatório.
O recurso não merece prosperar. O Pleno do Supremo Tribunal
Federal, no julgamento da ADI 4.277 e da ADPF 132, ambas da
Relatoria do Ministro Ayres Britto, Sessão de 05.05.2011, decidiu que
“a norma constante do art. 1.723 do Código Civil – CC (‘É
reconhecida como entidade familiar a união estável entre o homem e a
mulher, configurada na convivência pública, contínua e duradoura e
estabelecida com o objetivo de constituição de família’) não obsta que
a união de pessoas do mesmo sexo possa ser reconhecida como
entidade familiar apta a merecer proteção estatal” (Informativo
625/STF). Ressaltou, ainda, que “no mérito, prevaleceu o voto
proferido pelo Min. Ayres Britto, relator, que dava interpretação
conforme a Constituição ao art. 1.723 do CC para dele excluir
qualquer significado que impeça o reconhecimento da união contínua,
pública e duradoura entre pessoas do mesmo sexo como entidade
familiar, entendida esta como sinônimo perfeito de família. Asseverou
que esse reconhecimento deveria ser feito segundo as mesmas regras e
com idênticas consequências da união estável heteroafetiva. De início,
enfatizou que a Constituição proibiria, de modo expresso, o
preconceito em razão do sexo ou da natural diferença entre a mulher e
o homem. Além disso, apontou que fatores acidentais ou fortuitos, a
exemplo da origem social, idade, cor da pele e outros, não se
caracterizariam como causas de merecimento ou de desmerecimento
intrínseco de quem quer que fosse” (Informativo 625/STF). Destacou
também que “no tocante ao tema do emprego da sexualidade humana,
haveria liberdade do mais largo espectro ante silêncio intencional da
Constituição. Apontou que essa total ausência de previsão normativo-
constitucional referente à fruição da preferência sexual, em primeiro
lugar, possibilitaria a incidência da regra de que ‘tudo aquilo que não
estiver juridicamente proibido, ou obrigado, está juridicamente
permitido’. Em segundo lugar, o emprego da sexualidade humana diria
respeito à intimidade e à vida privada, as quais seriam direito da
personalidade e, por último, dever-se-ia considerar a âncora normativa
do § 1º do art. 5º da CF. Destacou, outrossim, que essa liberdade para
dispor da própria sexualidade inserir-se-ia no rol dos direitos
fundamentais do indivíduo, sendo direta emanação do princípio da
dignidade da pessoa humana e até mesmo cláusula pétrea. Frisou que
esse direito de exploração dos potenciais da própria sexualidade seria
exercitável tanto no plano da intimidade (absenteísmo sexual e
onanismo) quanto da privacidade (intercurso sexual). Asseverou, de
outro lado, que o século XXI já se marcaria pela preponderância da
afetividade sobre a biologicidade” (Informativo 625/STF).
(...)
Ex positis, nego seguimento ao recurso extraordinário com
fundamento no disposto no artigo 21, § 1º, do RISTF. (grifos nossos)

Outras decisões monocráticas foram proferidas pelos Ministros do STF,


confirmando o entendimento do Tribunal na ADPF 132 e na ADI 4.277:
não fizemos uma pesquisa exaustiva destes, mas citem-se os seguintes: RE
552.802/RS, DJe 24.10.2011 (Rel. Min. Dias Toffoli); RE 643.229/RS, DJe
08.09.2011 (Rel. Min. Luix Fux); RE 590.989/PE, DJe 24.06.2011; RE
475.126/SC, DJe 31.05.2011; AI 843.707/RJ, DJe 01.06.2011 (relatora dos
três: Ministra Cármen Lúcia). O tema resta, assim, consolidado na
jurisprudência do STF.

8. SÍNTESE CONCLUSIVA DO CAPÍTULO


O posicionamento do Ministro Eros Grau encontra-se equivocado,
tendo em vista que se ateve ao argumento simplista de que a letra fria da
Constituição não abarcaria as uniões homoafetivas, tendo-se omitido quanto
à questão de mérito referente à afronta ao princípio da igualdade oriunda
desse posicionamento, o que seria solucionado pela aplicação da
interpretação extensiva ou da analogia ao caso concreto. Contudo, justiça
seja feita, o Ministro não se manifestou sobre essa questão de mérito por ter
entendido que não foi cumprido o requisito do prequestionamento por parte
da recorrente, donde não se encontra o Supremo obrigado a se posicionar
sobre questões de mérito nesses casos.
Por outro lado, o posicionamento do Ministro Celso de Mello (ADIn
3.300/DF) encontra-se em total consonância com o defendido neste
trabalho, pelo menos no que tange à questão da possibilidade jurídica da
união estável homoafetiva (não tendo sido a questão do casamento civil
ventilada na ação por ele julgada). Muito embora tenha extinguido o
processo por uma questão puramente formal, a saber, o fato de terem as
autoras utilizado-se de ação direta de inconstitucionalidade contra norma
legal revogada (sendo que o Supremo entende incabível a ação direta de
inconstitucionalidade nessa hipótese), o Ministro afirmou tratar-se de
questão constitucional relevante a discutida naquela ação, tendo inclusive
prestigiado a lição de Maria Berenice Dias e a jurisprudência do TJ/RS, que
igualmente defende dita possibilidade jurídica. Ou seja, entendeu o Ministro
Celso de Mello que as uniões homoafetivas merecem o mesmo tratamento
jurídico conferido às uniões heteroafetivas em virtude de ambas serem
idênticas no essencial, razão pela qual concordou com a concessão do
regime jurídico da união estável aos casais homoafetivos por meio da
analogia, o que se denota dos trechos doutrinários e jurisprudenciais por ele
citados.
Na mesma linha, o posicionamento do Ministro Marco Aurélio na Pet.
1.984/RS, que afirmou que a interpretação do art. 226, § 3.º, da CF/1988
não pode ser feita de forma isolada e em contrariedade ao basilar princípio
segundo o qual constitui objetivo fundamental da República Federativa do
Brasil a promoção do bem-estar de todos, sem preconceitos de quaisquer
espécies, donde entendo que nele reconheceu a plausibilidade do pedido de
reconhecimento do direito de companheiros(as) homoafetivos(as) como
dependentes da seguridade social, pois, do contrário, não teria feito
referência à necessidade de se analisar os fundamentos jurídicos do pedido
no julgamento de suspensões de segurança. É o que demonstra sua menção
ao fato de a Constituição ter como objetivo fundamental o bem de todos,
sem preconceitos (art. 3.º, inc. IV, da CF/1988) e que o arcabouço
normativo vigente (aí incluído o art. 226, § 3.º, da CF/1988, citado pela
decisão) não poderia ser interpretado isoladamente, mas em consonância
com este princípio basilar contrário a preconceitos diversos. Logo, tenho
que este foi o primeiro posicionamento favorável ao reconhecimento dos
direitos de casais homoafetivos no âmbito do Supremo Tribunal Federal
(por ter sido proferido antes do voto do Ministro Celso de Mello na ADIn
3.300, de maior notoriedade, infraexplicitada), ainda que de forma sumária,
por ser um julgamento de suspensão de segurança (que não supõe profunda
análise do mérito da ação originária, mas apenas a análise da plausibilidade
jurídica dos pedidos).
Por sua vez, o Ministro Gilmar Ferreira Mendes, no julgamento do
REsp 24.564/PA, apesar de ter dito que o ordenamento jurídico brasileiro
ainda não teria admitido a comunhão de vidas entre pessoas do mesmo sexo
como entidade familiar, não deixou claro se fez essa colocação no sentido
de ausência de texto normativo expresso ou de ausência de status jurídico-
familiar nas uniões homoafetivas (hipótese na qual caberia a ele ter
demonstrado o motivo justificador do discrímen, para se justificar perante a
isonomia). De qualquer forma, o reconhecimento de obrigações jurídico-
familiares às uniões homoafetivas (como a inelegibilidade reconhecida no
REsp 24.564/PA) deve necessariamente gerar o reconhecimento do caráter
familiar destas, sob pena de uma gritante contradição: a de se negar dito
reconhecimento pela ausência de lei expressa, mas, ao mesmo tempo,
reconhecer obrigações aos casais homoafetivos mesmo na ausência de lei
expressa que as preveja. Ou a interpretação teleológica é aplicada em todos
os casos ou não deve sê-lo em nenhum, sob pena de arbitrariedade em sua
utilização, o que é evidentemente inadmissível.
No histórico julgamento da ADPF 132 e da ADI 4.277, o Supremo
Tribunal Federal atribuiu interpretação conforme à Constituição ao art.
1.723 do CC/2002 “para dele excluir qualquer significado que impeça o
reconhecimento da união contínua, pública e duradoura entre pessoas do
mesmo sexo como ‘entidade familiar’, entendida esta como sinônimo
perfeito de ‘família’. Reconhecimento que é de ser feito segundo as mesmas
regras e com as mesmas consequências da união estável heteroafetiva”
(parte dispositiva da decisão do STF), algo coerente com a interpretação
sistemático-teleológica do art. 226, § 3º, da CF/1988 com os princípios da
igualdade, da dignidade da pessoa humana, da liberdade e da segurança
jurídica (invocados nas ações), consoante a fundamentação
supraexplicitada, na medida em que, como bem dito pelo Ministro Gilmar
Mendes em seu voto, o fato de a Constituição proteger a união estável
entre homem e mulher não significa uma negativa de proteção à união civil
ou estável entre pessoas do mesmo sexo, donde ausente qualquer óbice
constitucional ao reconhecimento da união estável homoafetiva, por
interpretação extensiva ou analogia.
Confira-se, a respeito, as ementas do RE 477.554 AgR/MG, DJe
26.08.2011 (Rel. Min. Celso de Mello), e do RE 615.941/RJ, DJe
01.12.2011 (Rel. Min. Luiz Fux), que bem sintetizam o histórico
julgamento da ADPF 132 e da ADI 4.277, que foram as que localizei até o
fechamento desta segunda edição.
Por fim, note-se o seguinte: consoante mencionado na introdução, a
decisão proferida na ADPF 132 e da ADI 4277 efetivamente reconheceu a
união homoafetiva como união estável quando atendidos os requisitos
legais da publicidade, durabilidade, continuidade e intuito de constituir
família, e não como mera “entidade familiar autônoma”, como pretendeu o
Ministro Lewandowski, que evidentemente ficou vencido neste ponto. Com
efeito, ao aplicar interpretação conforme à Constituição ao artigo 1.723 do
Código Civil, “para excluir do dispositivo em causa qualquer significado
que impeça o reconhecimento da união contínua, pública e duradoura entre
pessoas do mesmo sexo como família”, em “Reconhecimento que é de ser
feito segundo as mesmas regras e com as mesmas consequências da união
estável heteroafetiva”, considerando que tal dispositivo regulamenta a
união estável, é evidente que dita decisão reconheceu a família conjugal
homoafetiva como “união estável” quando atendidos os requisitos ali
fixados (“convivência pública, contínua e duradoura e estabelecida com
objetivo de constituição de família”)53 e não apenas como “entidade
familiar autônoma” distinta da união estável. Até porque, ao falar em
“união estável heteroafetiva”, evidentemente o STF também reconheceu a
existência da “união estável homoafetiva”, ao passo que “união contínua,
pública e duradoura” com intuito de constituir família é como o referido
dispositivo legal define a união estável. Essa é a correta interpretação da
referida decisão.

1 RE 406.837/SP, Relator Ministro Eros Grau, julgado em 23.02.2005, publicado em


31.03.2005.
2 Ibidem.
3 Consoante, inclusive, reconhecido (nestes termos) pelo Superior Tribunal de Justiça
nos já analisados REsp n.º 820.475/RJ e REsp n.º 827.962/RS – este último trazendo
a peremptória afirmação segundo a qual “É juridicamente possível pedido de
reconhecimento de união estável de casal homossexual, uma vez que não há, no
ordenamento jurídico brasileiro, vedação explícita ao ajuizamento de demanda com tal
propósito”, donde “Os arts. 4º e 5º da Lei de Introdução do Código Civil autorizam o
julgador a reconhecer a união estável entre pessoas de mesmo sexo”, em especial
porque “A extensão, aos relacionamentos homoafetivos, dos efeitos jurídicos do
regime de união estável aplicável aos casais heterossexuais traduz a corporificação
dos princípios constitucionais da igualdade e da dignidade da pessoa humana”; o
primeiro (anterior) demonstrando o acerto de tais assertivas mediante a óbvia
constatação de que “Os dispositivos legais limitam-se a estabelecer a possibilidade de
união estável entre homem e mulher, dês que preencham as condições impostas pela
lei, quais sejam, convivência pública, duradoura e contínua, sem, contudo, proibir a
união entre dois homens ou duas mulheres”, pois “Poderia o legislador, caso
desejasse,utilizar expressão restritiva, de modo a impedir que a união entre pessoas
de idêntico sexo ficasse definitivamente excluída da abrangência legal. Contudo, assim
não procedeu”, uma vez que “É possível, portanto, que o magistrado de primeiro grau
entenda existir lacuna legislativa, uma vez que a matéria, conquanto derive de
situação fática conhecida de todos, ainda não foi expressamente regulada”.
4 BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e Aplicação da Constituição. 6. ed., 3ª tiragem,
2006, São Paulo: Saraiva, pp. 202-203, que afirma o papel dos princípios
constitucionais como condicionantes da interpretação das demais normas
constitucionais, por conferirem unidade e coerência ao sistema, donde a eles deve se
voltar o intérprete para resolver tensões normativas concluindo que “deve-se
reconhecer a existência, no Texto Constitucional, de uma hierarquia axiológica,
resultado da ordenação dos valores constitucionais, a ser utilizadas sempre que se
constatarem tensões que envolvam duas regras entre si, uma regra e um princípio ou
dois princípios”.
5 GRAU, Eros Roberto. Ensaio sobre a interpretação e aplicação do direito, 4.a Edição,
São Paulo: Malheiros Editores, 2006, p. 53. Esta tese já foi citada neste trabalho, no
capítulo relativo à união estável.
6 Como dito também no capítulo relativo à união estável, caso se entenda pela existência
de contradição entre princípios e regras, a solução a ser adotada deve ser a da
prevalência dos princípios sobre as regras, tendo em vista serem aqueles
mandamentos nucleares do sistema que condicionam a interpretação destas.
7 Não se trata de afronta reflexa à Constituição. Afronta reflexa ocorreria se uma
interpretação dos citados artigos de lei afrontasse a Constituição; mas a não
interpretação de uma lei, que deve ser aplicada, implica afronta direta ao princípio da
legalidade.
8 As informações constantes deste parágrafo foram extraídas do relatório do REsp
24.564/PA.
9 Este parágrafo é uma paráfrase do constante em: DIAS, Maria Berenice. União
Homossexual: o Preconceito & a Justiça!, 3.a Edição, Porto Alegre: Editora Livraria do
Advogado, 2006, p. 145.
10 Nesse sentido, a lição de Maria Berenice Dias: “Agora que a Justiça decidiu que as
uniões homoafetivas repercutem na esfera eleitoral, a ponto de gerar a presunção de
que pode haver interesses políticos comuns, não há como deixar de reconhecer que
essas relações são entidades familiares. Assim, se foram impostas limitações ao
exercício de um direito, não há como continuar sustentando a falta de lei para negar
direitos outros. Se as pessoas que vivem uma relação homoafetiva contínua e
duradoura têm de se submeter às restrições impostas pela legislação eleitoral, elas
também devem se beneficiar de todas as regras dos mais diversos ramos jurídicos que
conferem direitos a pessoas que mantêm relação heterossexual contínua e duradoura.
Não se pode admitir que tais pessoas tenham somente os ônus e não usufruam os
bônus” (ibidem, p. 145-146 – sem grifos no original).
11 Cf. <http://www.stf.jus.br/portal/diarioJustica/verDiarioAtualProcesso.asp?
numDj=131&dataPublicacaoDj=19/07/2010&incidente=3890303&codCapitulo=1&num
Materia=139&codMateria=8>. Último acesso: 07 jan. 2012.
12 O Ministro Ayres Britto destacou que o vocábulo homoafetividade foi cunhado por
Maria Berenice Dias para se superar o estigma de preconceito das palavras
homossexualismo e homossexualidade, de sorte a se destacar o afeto destinado a
pessoa do mesmo sexo, vocábulo este que transcendeu a seara jurídica para ser
acolhido nos dicionários da língua portuguesa, como o Dicionário Aurélio, verbete que
diz utilizar “para dar conta, ora do enlace por amor, por afeto, por intenso carinho entre
pessoas do mesmo sexo, ora da união erótica ou por atração física entre esses
mesmos pares de seres humanos” em uma “União, aclare-se, com perdurabilidade o
bastante para a constituição de um novo núcleo doméstico, tão socialmente ostensivo
na sua existência quanto vocacionado para a expansão de suas fronteiras temporais”,
ou seja, um “vínculo de caráter privado, mas sem o viés do propósito empresarial,
econômico, ou, por qualquer forma, patrimonial, pois não se trata de uma mera
sociedade de fato ou interesseira parceria mercantil”, pois “Trata-se, isto sim, de uma
união essencialmente afetiva ou amorosa, a implicar um voluntário navegar
emparceirado por um rio sem margens fixas e sem outra embocadura que não seja a
confiante entrega de um coração aberto a outro”.
13 Entendeu o Ministro Ayres Britto que não há nada na Constituição atrele a
compreensão de família à conjugalidade heteroafetiva (a casais heteroafetivos) e que
é com base no citado entendimento sobre a família que deve ser interpretado o art.
226 e seus parágrafos, “interpretando por forma não reducionista o conceito de
família”, donde a coerência com os princípios constitucionais enseja “a proposição de
que a isonomia entre casais heteroafetivos e pares homoafetivos somente ganha
plenitude de sentido se desembocar no igual direito subjetivo à formação de uma
autonomizada família. Entendida esta, no âmbito das duas tipologias de sujeitos
jurídicos, como um núcleo doméstico independente de qualquer outro e constituído,
em regra, com as mesmas notas factuais da visibilidade, continuidade e durabilidade.
Pena de se consagrar uma liberdade homoafetiva pela metade ou condenada a
encontros tão ocasionais quanto clandestinos ou subterrâneos”. Assim, tanto sobre a
união estável quanto sobre o casamento civil, afirmou que “tanto numa quanto noutra
modalidade de legítima constituição da família, nenhuma referência é feita à interdição,
ou à possibilidade de protagonização por pessoas do mesmo sexo”, mesmo porque
“não se proíbe nada a ninguém senão em face de um direito ou de proteção de um
interesse de outrem” e que “não se pode alegar que os heteroafetivos perdem se os
homoafetivos ganham. E quanto à sociedade como um todo, sua estruturação é de se
dar, já o dissemos, com fincas na fraternidade, no pluralismo e na proibição do
preconceito, conforme os expressos dizeres do preâmbulo da nossa Constituição do
inciso IV do seu art. 3º” (grifos nossos).
14 O Ministro iniciou fixando algumas premissas fundamentais: (i) a homossexualidade é
um fato da vida, ante a existência de indivíduos que são homossexuais e, na
formulação e na realização de seus modos e projetos de vida, constituem relações
afetivas e de assistência recíproca, em convívio contínuo e duradouro – mas, por
questões de foro pessoal ou para evitar a discriminação, nem sempre público – com
pessoas do mesmo sexo, vivendo, pois, em orientação sexual diversa daquela em que
vive a maioria da população; (ii) a homossexualidade é uma orientação e não uma
opção, por já ser corrente na comunidade científica que a homossexualidade não
constitui doença, desvio ou distúrbio mental, mas uma característica da personalidade
do indivíduo, ressaltando não ser razoável imaginar que, mesmo no seio de uma
comunidade encharcada de preconceitos, as pessoas escolhessem voluntariamente
um modo de vida dissonante das expectativas morais da maioria, de sorte a
sujeitarem-se à discriminação, ao ódio e à violência; (ii.1) o indivíduo é homossexual
simplesmente porque o é, pois a única opção que o indivíduo faz é a publicidade ou o
segredo sobre esse traço de sua personalidade, ante ser predeterminada sua
orientação sexual (independentemente de sua origem, se genética, social, ambas ou
outras); (iii) a homossexualidade não é uma ideologia ou crença; (iv) os homossexuais
constituem entre si relações contínuas e duradouras de afeto e assistência mútua, com
o propósito de compartilhar meios e projetos de vida, o que simplesmente ocorre e
continuará ocorrendo, como prova o CENSO/2010, com a constatação de 60 mil
casais homoafetivos autodeclarados, sendo perfeitamente presumível que muitos
outros não tenham se autodeclarado enquanto tais [por força do medo de preconceito
social]; (v) não há qualquer inconstitucionalidade ou ilegalidade no estabelecimento de
uniões homoafetivas, ante a reserva legal para vedação de condutas dos indivíduos
constante do art. 5º, inc. II, da CF/1988, donde não existe, no direito brasileiro,
vedação às uniões homoafetivas.
15 Afirmou o Ministro Fux que do ponto de vista ontológico “nada distingue as uniões
estáveis heteroafetivas das uniões estáveis homoafetivas”, pois assim como
companheiros heteroafetivos, companheiros homoafetivos ligam-se e apoiam-se
emocional e financeiramente; vivem juntos as alegrias e dificuldades do dia a dia;
projetam um futuro comum, donde, sendo ontologicamente simétricas, devem ambas
ser reconhecidas como entidades familiares com mesma proteção estatal.
16 Destacou o Ministro que “uma união estável homoafetiva, por si só, não tem o condão
de lesar a ninguém, pelo que não se justifica qualquer restrição ou, como é ainda pior,
a limitação velada, disfarçada de indiferença”, o que afirmou para, com base na lição
de Maria Martin Sanchez, aduzir que a limitação da liberdade do indivíduo pelo não
reconhecimento ou pela omissão legal só teria justificação se se argumentasse que
dita limitação ou restrição da liberdade obedece à proteção de algum valor, princípio
ou bem constitucional, de modo que, efetuada uma ponderação de bens em jogo, seria
conveniente estabelecer essa limitação, entendendo não existir nada do gênero cuja
proteção necessite de tal restrição aos direitos dos casais homoafetivos.
17 Afirmou o Ministro Fux que “não se há de objetar que o art. 226, § 3º, constituiria
obstáculo à equiparação das uniões homoafetivas às uniões estáveis heterossexuais,
por força da previsão literal (‘entre homem e mulher’). Assiste razão aos proponentes
das ações em exame em seus comentários à redação do referido dispositivo
constitucional. A norma foi inserida no texto constitucional para tirar da sombra as
uniões estáveis e incluí-las no conceito de família. Seria perverso conferir a norma de
cunho indiscutivelmente emancipatório interpretação restritiva, a ponto de concluir que
nela existe impeditivo à legitimação jurídica das uniões homoafetivas, lógica que se há
de estender ao art. 1.723 do Código Civil”, donde urge renovar este espírito
emancipatório para estender a garantia institucional da família às uniões homoafetivas.
18 Não é nada menos o que expõe GONÇALVES (2007, p. 125), ao afirmar que a teoria
foi concebida para “contornar, em matéria de casamento, o princípio de que não há
nulidade sem texto”. No mesmo sentido: AZEVEDO (2007, pp. 157-158), que chamou
a declaração de inexistência jurídica de casamento no qual a mulher se recusou a
consumar o ato mediante conjunção carnal de “um caso de nulidade não prevista, a
repetir as hipóteses que deram origem à teoria da inexistência”. Na mesma linha,
DINIZ (2007, p. 52), que reconhece que “o conceito de casamento inexistente
apareceu na França, em razão do princípio de que não pode haver nulidade de
casamento sem expressa disposição legal, rejeitando assim as nulidades virtuais em
matéria matrimonial”, tese esta que, a nosso ver, afirma tais “nulidades virtuais” sob o
rótulo de “atos inexistentes”, algo inadmissível à luz do art. 5º, inc. II, da CF/1988, que
exige norma jurídica proibitiva para proibições jurídicas.
19 Afirmou a Ministra Cármen Lúcia que embora a referência expressa a homem e
mulher garanta a eles, às expressas, o reconhecimento da união estável como
entidade familiar, com os consectários jurídicos próprios, nisso não significa que se
não for um homem e uma mulher a união não possa vir a ser também fonte de iguais
direitos. Disse que, bem ao contrário, o que se extrai dos princípios constitucionais é
que todos, homens e mulheres, “qualquer que seja a escolha do seu modo de vida”,
têm os seus direitos fundamentais à liberdade, a serem tratados com igualdade em
sua humanidade, ao respeito e à intimidade devidamente garantidos, visto que para
ser digno há que ser livre e a liberdade perpassa a vida de uma pessoa em todos os
seus aspectos, aí incluído o da “liberdade de escolha sexual, sentimental e de
convivência com outrem”, ao passo que não seria pensável que se assegurasse
constitucionalmente a liberdade e, por regra contraditória, no mesmo texto, se tolhesse
essa mesma liberdade, impedindo-se o “exercício da livre escolha do modo de viver”,
pondo-se aquele que “decidisse exercer o seu direito a escolhas pessoais livres” como
alvo de preconceitos sociais e de discriminações, ou seja, à sombra do Direito.
Entende que, tendo a República posto entre seus objetivos fundamentais o bem-estar
de todos sem preconceitos, não pode ser tida como válida a inteligência de regra legal
se isto conduzir ao preconceito e à discriminação.
20 Apesar de difundida, a expressão “opção sexual” é pautada por um grave erro
conceitual, ante ninguém escolher ser homo, hétero ou bissexual, simplesmente se
descobrindo de uma forma ou de outra (ninguém “escolhe/decide” ter um desejo
erótico-afetivo por pessoas do mesmo sexo, de sexo diverso ou de ambos os sexos –
as pessoas simplesmente descobrem o desejo que lhes é inerente), bem como pela
impossibilidade de se mudar a própria orientação sexual, mas apenas de reprimi-la,
pois os desejos erótico-afetivos que a pessoa reprime continuam existindo dentro dela
(as difundidas “terapias de cura” da homossexualidade acabam simplesmente por
convencer a pessoa a reprimir seu desejo erótico-afetivo por pessoas do mesmo sexo
e incentivando-a a manter relacionamentos conjugais com pessoas do outro sexo, o
que não faz com que o desejo erótico-afetivo por pessoas do mesmo sexo
“desapareça”, mas apenas fique reprimido no seu íntimo).
21 O Ministro citou a lição de Suzana Borges Viegas de Lima, no sentido de que o rol de
entidades familiares do art. 226 é meramente exemplificativo, dada a natureza aberta
das normas constitucionais, donde afirmou a autora que é essencial que se considere
a evolução da família a partir dos seus aspectos civis e constitucionais a partir dos
fenômenos da publicização, repersonalização e constitucionalização do Direito das
Famílias, para, assim, poder-se promover a afirmação das relações homoafetivas
[enquanto entidades familiares]. Citou, ainda, a lição de Paulo Lôbo, segundo a qual a
o § 4º do art. 226 traz uma “cláusula geral de inclusão” por força do termo “também” ali
constante, pois “‘Também’ tem o significado de igualmente, da mesma forma,
outrossim de inclusão de fato sem exclusão de outros”, donde “Se dois forem os
sentidos possíveis (inclusão ou exclusão), deve ser prestigiado o que melhor responda
à realização da dignidade da pessoa humana, sem desconsideração das entidades
familiares reais não explicitadas no texto”, razão pela qual concluiu que os tipos
mencionados pelos parágrafos do art. 226 devem ser tidos como meramente
exemplificativos, devendo as demais entidades familiares serem consideradas como
implícitas no “conceito amplo e indeterminado de família indicado no caput”, passível
de concretização a partir da experiência da vida, dotada de ductibilidade e
adaptabilidade em um conceito de tipicidade aberta. Citou, ainda, a lição de Álvaro
Villaça, no sentido de que nada mais precisa dizer o Constituinte senão o que consta
do caput do art. 226, segundo o qual a família merece especial proteção do Estado,
“podendo o legislador constituinte ter deixado de discriminar as formas de constituição
da família. Sim porque ao legislador, ainda que constituinte, não cabe dizer ao povo
como deve ele constituir sua família. O importante é proteger todas as formas de
constituição familiar, sem dizer o que é melhor” (grifo nosso).
22 O Ministro citou a lição de Canotilho no sentido de que cabe a integração analógica
quando determinadas situações que devem se considerar reguladas pelo texto
constitucional não estão previstas e não possam ser cobertas pela interpretação,
mesmo extensiva, de preceitos constitucionais considerados em sua letra e sua ratio,
hipótese na qual a lacuna constitucional somente existe quando contrária ao plano
regulativo e a teleologia da ordenação constitucional.
23 No original: “Em suma, reconhecida a união homoafetiva como entidade familiar,
aplicam-se a ela as regras do instituto que lhe é mais próximo, qual seja, a união
estável heterossexual, mas apenas nos aspectos em que são assemelhados,
descartando-se aqueles que são próprios da relação entre pessoas de sexo distinto,
segundo a vetusta máxima ubi eadem ratio ibi idem jus [onde há a mesma razão,
aplica-se o mesmo Direito], que fundamenta o emprego da analogia no âmbito jurídico.
Isso posto, pelo meu voto, julgo procedente as presentes ações diretas de
inconstitucionalidade para que sejam aplicadas às uniões homoafetivas,
caracterizadas como entidades familiares, as prescrições legais relativas às uniões
estáveis heterossexuais, excluídas aquelas que exijam a diversidade de sexo para o
seu exercício, até que sobrevenham disposições normativas específicas que regulem
tais relações”.
24 Não teria sido possível, por exemplo, a evolução na compreensão da Suprema Corte
dos EUA sobre os direitos civis dos negros, saindo de sua postura segregacionista
para posteriormente considerá-los absolutamente iguais aos brancos com base no
mesmo dispositivo constitucional, elaborado em uma época em que negros eram
considerados pela sociedade estadunidense como “inferiores” aos brancos, donde
este originalismo interpretativo impediria dita evolução na compreensão da norma
constitucional da igualdade.
25 Cf. ATALIBA apud BARROSO, op. cit., p. 132, em nota de rodapé.
26 BARROSO, op. cit., p. 113.
27 A definição de occasio legis é de BARROSO, op. cit., p. 139.
28 Este trabalho não é o local adequado para se debaterem questões de pura
hermenêutica jurídica. Anote-se, apenas, que adoto a concepção que dá prevalência
ao critério teleológico sobre os demais – a meu ver, a occasio legis (critério histórico)
visa determinar a finalidade (critério teleológico) pretendida com o texto normativo, ao
passo que os signos linguísticos (critério gramatical) são formas de se expressar o
objetivo pretendido com o texto, interpretado sistematicamente com os demais (critério
sistemático), para assim obtermos um todo harmônico de normas em nosso
ordenamento jurídico.
29 LÔBO, op. cit., pp. 6, 58-60.
30 A Ministra Ellen Gracie não leu a íntegra de seu voto, mas apenas poucos trechos.
Fonte: <http://stf.jusbrasil.com.br/noticias/2674091/ministra-ellen-gracie-acompanha-
voto-do-relator-reconhecendo-a-uniao-homoafetiva>. Acesso em: 20 set. 2011.
31 Em síntese, afirmou o Ministro Gilmar Mendes que o art. 1.723 do CC/2002 tem sido
usado com objetivo de obstar o reconhecimento da união estável homoafetiva, donde
cabível o pedido de interpretação conforme à Constituição em razão de o não
reconhecimento não ser compatível com a Constituição. Afirmou que, se o sistema
político falha na garantia dos direitos fundamentais aos cidadãos, é óbvio que a
resposta do STF só poderá ser de caráter positivo, de sorte a garantir tais direitos.
Citou a importância da teoria semântica da norma jurídica, para que se apresente uma
fundamentação compatível com o texto constitucional, de sorte a não se passar a
impressão de que estaria o Tribunal a interpretar a Constituição conforme sua mera
vontade, o que deslegitimaria o STF. Citando o relator, disse que o fato de o texto
constitucional dizer que é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher não
significa proibir a união estável ou civil entre duas pessoas do mesmo sexo, razão pela
qual são procedentes as ações para se garantir à união homoafetiva o regime jurídico
da união estável, por ser aquele que lhe é mais próximo.
32 Proteção esta que deveria ser feita pelo Congresso Nacional, mas, considerando que
também foram destacadas da tribuna as dificuldades que ocorrem nesse processo
decisório em razão das íntimas controvérsias sociais sobre o tema, entende restar
clara a dificuldade do modelo representativo atuar sobre o tema, por conta do
preconceito que está presente em uma parcela significativa da sociedade acerca do
tema.
33 Momento no qual o Ministro Ayres Britto, em aparte, destacou que, no seu voto, foi
dada uma interpretação a esse texto para além de sua literalidade, para dele extrair a
ratio de proteção, inclusão e afirmação da mulher em contraposição ao homem no
estreito âmbito do núcleo doméstico, em contraposição constitucional ao nosso ranço
patriarcalista. Em seguida, o Ministro Luiz Fux afirmou que essa ação foi proposta para
se dar ao art. 1.723 do CC/2002 interpretação conforme à Constituição à luz dos
princípios constitucionais dos quais também emergem direitos e normas, de sorte que
os pedidos e as razões dos pedidos são mais amplos que o formato do art. 226, § 3º,
da CF/1988. O Ministro Marco Aurélio ressaltou a existência de princípios explícitos e
implícitos, lembrando fala do Ministro Joaquim Barbosa, no sentido de ser isto algo
bem lançado pelo rol das garantias constitucionais.
34 O Ministro Ayres Britto ressaltou que esse voluntarismo nem a Suprema Corte tem o
direito de exercer; o Ministro Marco Aurélio destacou que a atuação judicante é
sempre vinculada à Constituição e à legislação de regência.
35 O Ministro Gilmar Mendes lembrou aqui de toda a movimentação em torno da Emenda
do Divórcio, relativamente a pessoas que não podiam se casar em razão do óbice
constante do impedimento constitucional, saudada como uma emenda de libertação de
todas essas pessoas que aguardavam de alguma forma ansiosas a regularização
daquele estado de fato que estava há muito consolidado, donde se percebe a alta
relevância da proteção por um modelo institucional adequado.
36 Aqui o Ministro desenvolve sofisticado raciocínio com base nas obras de Zagrebelski e
Peter Häberle. Afirma que, segundo Zagrebelski (no seu Direito Dúctil), o imperativo
teórico da não contradição não deveria obstaculizar a jurisprudência de intentar
realizar positivamente a concordância prática das diversidades e inclusive das
contradições: não mediante a simples amputação de potencialidades constitucionais,
senão, principalmente, mediante prudentes soluções acumulativas, combinatórias ou
compensatórias que conduzam os princípios constitucionais a um desenvolvimento
conjunto. Assim, o preço a pagar pela integração do pluralismo em uma única unidade
estatal é o abandono da noção de um único princípio político dominante, de onde se
possam ser extraídas dedutivamente todas as execuções concretas sob a base do
princípio da exclusão do diferente (“ou dentro, ou fora”), por isto ser contraditório à lei
fundamental intrínseca do Direito Constitucional atual, que é principalmente a lógica de
múltiplas promessas ao futuro, de modo a se falar em uma maneira de pensar do
possível, adotada por Peter Häberle no chamado pensamento do possível, como algo
particularmente adequado ao Direito do nosso tempo, o que, para Zagrebelski,
representa para o pensamento o que a concordância prática representa para a razão,
considerando o Ministro que uma das importantes consequências da teoria de Häberle
é que uma teoria constitucional das alternativas seria uma teoria constitucional da
tolerância. Daí dizer Häberle que o pensamento do possível é o pensamento em
alternativas que deve estar aberto a terceiras ou quartas possibilidades, assim como
para o compromisso, pois pensamento do possível é pensamento indagativo, que abre
perspectivas a novas realidades, para que a realidade de hoje possa corrigir ou
adaptar a realidade de ontem, sem que se considere o novo como o melhor. Nessa
linha, anota que Häberle aduz que, para um Estado de Liberdade da res publica, se
afigura decisivo que a liberdade de alternativa seja reconhecida também por aqueles
que defendem determinadas alternativas. Destaca que o pensamento do possível tem
dupla relação com a realidade, uma de caráter negativo, que indaga sobre o também
possível, sobre alternativas à realidade, sobre aquilo que ainda não é real, e outro
sentido, segundo o qual possível é apenas aquilo que pode ser real no futuro, sendo a
perspectiva da realidade futura que permite separar o impossível do possível. O
Ministro destacou essa questão para resolver dois casos básicos. Primeiramente, o
caso (muito mais técnico) da indicação dos procuradores do trabalho para a função de
juízes dos Tribunais Regionais do Trabalho (TRTs): como houve multiplicação de
TRTs, em pouco tempo já não havia tantos procuradores com dez anos de carreira,
exigidos expressamente pela Constituição para referida indicação, donde o Conselho
do Ministério Público editou uma resolução “dizendo o óbvio”, no sentido de que, não
havendo procuradores com mais de dez anos, indicar-se-iam aqueles que já
estivessem efetivados, o que ensejou a propositura de Ação Direta de
Inconstitucionalidade (ADIn) contra esta resolução, tendo o STF, ao final, com base
nessas considerações, reconhecido que era notório que ali havia uma lacuna, por
faltar uma norma de caráter transitório que dissesse o que foi dito pela norma do MP,
pois, do contrário, as alternativas seriam dramáticas: ou não se nomeavam
procuradores e a ideia do quinto e do pluralismo dos tribunais não seria cumprida, ou a
indicação de um dos poucos que cumprissem tal requisito retiraria do(a) Presidente a
possibilidade de escolha facultada pelo texto constitucional, donde o Tribunal acabou
acolhendo a argumentação para julgar constitucional a norma, invocando esse
argumento que destacava o pensamento do possível e também a possibilidade de que
aqui houvesse uma possível lacuna constitucional que necessitava da revelação de
uma norma implícita de colmatação. Para tanto, citou uma passagem de Perelman,
que narra um caso segundo o qual entre a guerra de 1914-18, como a Bélgica estava
ocupada pelas tropas alemãs, o Rei exercitava sozinho o Poder Legislativo sob a
forma de decretos-leis pela impossibilidade de se reunirem as câmaras em
consequência da guerra, embora não houvesse permissivo constitucional para tanto,
donde, findo o conflito, se atacou a legalidade dos decretos-leis promulgados durante
a guerra por editados em contrariedade à Constituição. Sobre o tema, Perelman
reiterou os argumentos do procurador-geral belga, no sentido de justificar o acerto da
decisão da Corte a despeito de ser manifestamente contrária ao texto constitucional:
uma lei é sempre feita para um período ou regime determinado, adaptando-se às
circunstâncias que a motivaram e não podendo delas ir além, só se concebendo em
função de sua necessidade ou de sua utilidade, uma vez que uma boa lei não deve ser
intangível, pois vale a pena para o tempo que quis reger, pois uma lei, constitucional
ou ordinária, nunca estatui senão para períodos normais, para aqueles que ela pode
prever; donde havendo fatos que a sabedoria humana não pôde prever, situações em
que não pôde levar em consideração, torna-se inaplicável a norma, de sorte a ser
legítimo ao Tribunal se afastar (o menos possível) das prescrições legais para fazer
frente às brutais necessidades do momento mediante a oposição dos meios
provisórios à força invencível dos acontecimentos. Daí concluir Perelman que
interpretar ao pé da letra o art. 130 da Constituição Belga levaria à conclusão de que o
acórdão da Corte teria sido contra legem, mas limitando o alcance desse artigo a
situações normais e previsíveis, a Corte introduziu uma lacuna na Constituição para
situações extraordinárias causadas pela força dos acontecimentos, por força maior,
pela necessidade. O Ministro Gilmar Mendes citou, ainda, o RE n.º 147.776, no qual se
admitiu a possibilidade de que fosse considerada constitucional aquela disposição que
autorizava o MP a representar as vítimas pobres em processos de indenização ou
ressarcimento (art. 68 do CPP) (a despeito da nova disciplina constitucional, que
atribuía tal competência à Defensoria Pública) enquanto não estabelecida a Defensoria
Pública de forma geral, justamente por força desse pensamento do possível. Destacou
que, no âmbito eleitoral, foi aplicada essa mesma estrutura argumentativa em pedido
formulado por várias pessoas, nos casos de deficiência grave, para que houvesse
dispensa ou isenção de participação no processo eleitoral, casos nos quais familiares
reclamaram que os enfermos estavam tão doentes ou acometidos de limitações tão
graves que deveriam ficar isentas do processo eleitoral, compreensão esta que seria
impossível pela mera leitura do art. 14 da CF/1988, por dito dispositivo não facultar
sequer ao legislador essa flexibilização, mas novamente o Ministro suscitou essa
indagação para defender que, tendo o texto constitucional tornado o voto facultativo
para os maiores de 70 anos por presumir uma possível limitação ou incômodo ao
mesmo, parecia justificável na hipótese a possibilidade que vislumbrássemos aqui a
existência de uma lacuna, uma incompletude que justificaria mais esta exceção. Aqui
termina o relato do Ministro sobre o raciocínio de Zagrebeslski e Häberle. Pois bem:
embora não o tenha afirmado expressamente, ficou claro que o Ministro Gilmar
Mendes aplicou este pensamento das alternativas para reconhecer que o
reconhecimento do status jurídico-familiar da união homoafetiva é uma alternativa que
demanda reconhecimento por força da interpretação sistemática dos direitos
fundamentais, em especial dos princípios constitucionais da igualdade, da dignidade
humana, da liberdade e da segurança jurídica (invocados na petição inicial).
37 ADPF n.º 132 e da ADI n.º 4.277, voto do Ministro Gilmar Mendes, pp. 11 e 44, aqui
parafraseado. No original: “O fato de a Constituição proteger, como já destacado pelo
eminente Relator, a união estável entre homem e mulher não significa uma negativa de
proteção – nem poderia ser – à união civil, estável, entre pessoas do mesmo sexo”.
38 Segundo o Ministro Marco Aurélio, “A unidade de sentido do sistema de direitos
fundamentais encontra-se no princípio da dignidade humana, porque aqueles existem
exatamente em função da necessidade de garantir a dignidade do ser humano. (...) A
proibição de instrumentalização do ser humano compõe o núcleo do princípio, como
bem enfatizado pelo requerente. Ninguém pode ser funcionalizado, instrumentalizado,
com o objetivo de viabilizar o projeto de sociedade alheio, ainda mais quando fundado
em visão coletiva preconceituosa ou em leitura de textos religiosos. A funcionalização
é uma característica típica das sociedades totalitárias, nas quais o indivíduo serve à
coletividade e ao Estado, e não o contrário. As concepções organicistas das relações
entre indivíduo e sociedade, embora ainda possam ser encontradas aqui e acolá, são
francamente incompatíveis com a consagração da dignidade da pessoa humana”.
39 Sobre o tema, afirmou o Ministro Marco Aurélio que “A homoafetividade é um
fenômeno que se encontra fortemente visível na sociedade. Como salientado pelo
requerente, inexiste consenso quanto à causa da atração pelo mesmo sexo, se
genética ou se social, mas não se trata de mera escolha. A afetividade direcionada a
outrem de gênero igual compõe a individualidade da pessoa, de modo que se torna
impossível, sem destruir o ser, exigir o contrário. Insisto: se duas pessoas de igual
sexo se unem para a vida afetiva comum, o ato não pode ser lançado a categoria
jurídica imprópria. A tutela da situação patrimonial é insuficiente. Impõe-se a proteção
jurídica integral, qual seja, o reconhecimento do regime familiar. Caso contrário,
conforme alerta Daniel Sarmento, estar-se-á a transmitir a mensagem de que o afeto
entre elas é reprovável e não merece o respeito da sociedade, tampouco a tutela do
Estado, o que viola a dignidade dessas pessoas, que apenas buscam o amor, a
felicidade, a realização” (grifos nossos).
40 Citando, nesse sentido, decisões da Corte Interamericana de Direitos Humanos nos
casos Loayza Tamayo versus Peru e Cantoral Benavides versus Peru, além da lição
de Cançado Trindade com base no caso Gutiérrez Soler versus Colômbia,
oportunidade na qual afirmou que “não pode olvidar a dimensão existencial do
princípio da dignidade da pessoa humana, pois uma vida digna não se resume à
integridade física e à suficiência financeira. A dignidade da vida requer a possibilidade
de concretização de metas e projetos. Daí se falar em dano existencial quando o
Estado manieta o cidadão nesse aspecto. Vale dizer: ao Estado é vedado obstar que
os indivíduos busquem a própria felicidade, a não ser em caso de violação ao direito
de outrem, o que não ocorre na espécie”.
41 Sobre o tema, o Ministro Marco Aurélio citou a lição de Hart, que contestava a
invocação da moralidade coletiva feita por Devlin para justificar a criminalização da
homossexualidade, nos seguintes termos: “Apontou quatro razões para refutar a
posição de Devlin. Primeira: punir alguém é lhe causar mal, e, se a atitude do ofensor
não causou mal a ninguém, carece de sentido a punição. Em outras palavras, as
condutas particulares que não afetam direitos de terceiros devem ser reputadas dentro
da esfera da autonomia privada, livres de ingerência pública. Segunda razão: o livre
arbítrio também é um valor moral relevante. Terceira: a liberdade possibilita o
aprendizado decorrente da experimentação. Quarta: as leis que afetam a sexualidade
individual acarretam mal aos indivíduos a ela submetidos, com gravíssimas
consequências emocionais”.
42 Os quais, segundo o Ministro, trouxeram subsídios e suas próprias
contribuições/alternativas para a interpretação constitucional do caso concreto, o que
auxilia na legitimação democrática da atuação do Tribunal mediante a participação dos
grupos minoritários diretamente envolvidos e demais interessados por permitir ao
tribunal atuar na condição de mediador entre os segmentos sociais discordantes.
43 Sobre o direito à busca da felicidade, afirmou o Ministro Celso de Mello o seguinte:
“Reconheço que o direito à busca da felicidade – que se mostra gravemente
comprometido, quando o Congresso Nacional, influenciado por correntes majoritárias,
omite-se na formulação de medidas destinadas a assegurar, a grupos minoritários, a
fruição de direitos fundamentais – representa derivação do princípio da dignidade da
pessoa humana, qualificando-se como um dos mais significativos postulados
constitucionais implícitos cujas raízes mergulham, historicamente, na própria
Declaração de Independência dos Estados Unidos da América, de 4 de julho de 1776”,
donde, consoante lição de Stephanie Schwartz Driver, “Em uma ordem social racional,
de acordo com a teoria Iluminista, o governo existe para proteger o direito do homem
de ir em busca da sua mais alta aspiração, que é, essencialmente, a felicidade ou o
bem-estar”, razão pela qual “o postulado constitucional da busca da felicidade, que
decorre, por implicitude, do núcleo de que se irradia o princípio da dignidade da
pessoa humana, assume papel de extremo relevo no processo de afirmação, gozo e
expansão dos direitos fundamentais, qualificando-se, em função de sua própria
teleologia, como fator de neutralização de práticas ou de omissões lesivas cuja
ocorrência possa comprometer, afetar ou, até mesmo, esterilizar direitos e franquias
individuais”.
44 Cf. VECCHIATTI, 2008, pp. 220-221 – item 2.5.3 (também constante desta nova
edição).
45 O Ministro citou, nesse sentido, o seguinte trecho da petição inicial: “Ao não
reconhecer a união entre pessoas do mesmo sexo, o Estado compromete a
capacidade do homossexual de viver a plenitude da sua orientação sexual,
enclausurando as suas relações afetivas no ‘armário’. Esta negativa, como salientou
Luís Roberto Barroso, embaraça ‘o exercício da liberdade e o desenvolvimento da
personalidade de um número expressivo de pessoas, depreciando a qualidade dos
seus projetos de vida e dos seus afetos”.
46 O Ministro citou o seguinte trecho da obra de Geraldo Ataliba (entre outros): “Na
democracia, governa a maioria, mas – em virtude do postulado constitucional
fundamental da igualdade de todos os cidadãos – ao fazê-lo, não pode oprimir a
minoria” (cf. Judiciário e Minorias. Revista de Informação Legislativa, vol. 96/194), bem
como o seguinte trecho da obra de Pinto Ferreira: “O princípio democrático não é, pois,
a tirania do número, nem a ditadura da opinião pública, nem tampouco a opressão das
minorias, o que seria o mais rude dos despotismos. A maioria do povo pode decidir o
seu próprio destino, mas com o devido respeito aos direitos das minorias políticas,
acatando nas suas decisões os princípios invioláveis da liberdade e da igualdade, sob
pena de se aniquilar a própria democracia” (Princípios Gerais do Direito Constitucional
Moderno. 5. ed. item n. 8, São Paulo: RT, 1971. t. I/195-196).
47 Nesse sentido, afirmou o Ministro que “práticas de ativismo judicial, embora
moderadamente desempenhadas pela Corte Suprema em momentos excepcionais,
tornam-se uma necessidade institucional, quando os órgãos do Poder Público se
omitem ou retardam, excessivamente, o cumprimento de obrigações a que estão
sujeitos, ainda mais se se tiver presente que o Poder Judiciário, tratando-se de
comportamentos estatais ofensivos à Constituição, não pode se reduzir a uma posição
de pura passividade”, donde entende que o STF “não pode renunciar ao exercício
desse encargo, pois, se a Suprema Corte falhar no desempenho da gravíssima
atribuição que lhe foi outorgada, a integridade do sistema político, o amparo das
liberdades públicas (com a consequente proteção dos direitos das minorias), a
estabilidade do ordenamento normativo do Estado, a segurança das relações jurídicas
e a legitimidade das instituições da República restarão profundamente
comprometidas”.
48 Afirmou Ministro Peluso que, na disciplina dessa entidade familiar, cognoscível por
interpretação sistemática das normas constitucionais, não se pode deixar de
reconhecer – e este é o seu fundamento, pedindo venia para divergir do relator e dos
que o acompanharam nesse passo –, aqui há uma lacuna normativa, que precisa ser
preenchida, segundo as regras tradicionais, pela aplicação da analogia, diante
basicamente da similitude (não da igualdade) factual em relação a ambas as entidades
de que cogitamos (a união estável entre homem e mulher e entre pessoas do mesmo
sexo). Em suas palavras (após reconhecer o cabimento da técnica da interpretação
conforme para o caso): “Daí, não posso deixar de admitir a conclusão de que as
normas constitucionais e, em particular, a norma do artigo 226, § 3º, da Constituição
da República, não excluem outras modalidades de entidade familiar. Não se trata de
numerus clausus. De modo que permite dizer que, tomando em consideração outros
princípios da Constituição, como o princípio da dignidade, o princípio da igualdade, o
princípio específico da não discriminação e outros, é lícito conceber, na interpretação
de todas essas normas constitucionais, que, além daquelas explicitamente
catalogadas na Constituição, haja outras entidades que podem ser tidas
normativamente como familiares, tal como se dá no caso. Por quê? Porque vários
elementos de ordem afetiva, no sentido genérico, e de ordem material da união de
pessoas do mesmo sexo guardam relação de comunidade com certos elementos da
união estável entre homem e mulher. Esta a razão da admissibilidade da consideração
da união de duas pessoas do mesmo sexo – não mais que isso –, na hipótese de que
estamos cogitando, como entidades familiares para efeitos constitucionais e legais. E a
segunda consequência é que, na disciplina dessa entidade familiar recognoscível à
vista de uma interpretação sistemática das normas constitucionais, não se pode deixar
de reconhecer – e este é o meu fundamento, a cujo respeito eu peço venia para
divergir da posição do ilustre Relator e de outros que o acompanharam nesse passo –
que há uma lacuna normativa, a qual precisa ser preenchida. E se deve preenchê-la,
segundo as regras tradicionais, pela aplicação da analogia, diante, basicamente, da
similitude – não da igualdade –, da similitude factual entre ambas as entidades de que
cogitamos: a união estável entre o homem e a mulher e a união entre pessoas do
mesmo sexo. E essa similitude entre ambas situações é que me autoriza dizer que a
lacuna tem que ser preenchida por algumas normas. (...) De modo que, na solução da
questão posta, a meu ver e de todos os Ministros da Corte, só podem ser aplicadas as
normas correspondentes àquelas que, no Direito de Família, se aplicam à união
estável entre o homem e a mulher” (voto do Ministro Peluso, pp. 1-3).
49 Após destacar a fala do Ministro Marco Aurélio em prol da necessidade de aplicação
às relações homoafetivas das normas próprias do campo do Direito de Família, por
uma questão histórica, afirmou que, em conferência da Associação dos Advogados de
São Paulo (AASP) há mais de vinte anos, àquela altura em que não havia normas
diretas de regulamentação da união estável, foi um dos primeiros advogados da AASP
a sustentar, contra a então dominante jurisprudência do TJSP, que não podiam ser
aplicadas as soluções da jurisprudência para atender as exigências próprias do fato
histórico, a saber, normas de Direito não familiar (sociedades de fato, de ordem
econômica etc.), mas sim normas de Direito das Famílias, afirmando ter sido o
primeiro a aplicar no TJSP as normas de Direito de Família em caso de união estável.
Essa manifestação do Ministro Peluso constou na 1ª edição desta obra, no capítulo 11,
item 11. “Descabimento da desconsideração do amor existente na relação”, que
passamos a aqui transcrever: “União estável. A jurisprudência de hoje, sensível à
irredutibilidade jurídica dessa misteriosa experiência humana, que é o encontro
amoroso do homem com a mulher, o qual jamais poderia ter sido posto nos limites
contáveis e mesquinhos da tipologia das sociedades comerciais, já assentou que,
dentro do alcance da STF 380, cabe a hipótese da contribuição indireta, com igual
importância na mancomunhão. E não precisa seja esta entendida no significado
restrito de repercussão do trabalho doméstico, da direção educacional dos filhos, ou
de serviços materiais doutra natureza. Ao contrário. Porque, de regra, um homem e
uma mulher [leia-se, duas pessoas] não se atraem, entregam nem vinculam, sob firme
ou fugaz expectativa de estabilidade e perseverança, compelidos por cálculos
imediatos de proveitos econômicos, senão para satisfazer anseios de realização
pessoal, ditados por imperativos inconscientes e profundos, a cooperação decisiva é a
pessoa do outro. E é ela, enquanto presença, estímulo, amparo e refúgio, que, na
aventura da parceria, possibilita, ou facilita, todas as outras aquisições, inclusive de
ordem patrimonial. O jurídico, porque humano, consiste, pois, em que embora não
sendo mensurável como grandeza física, não deixe de se traduzir em valor econômico,
quando se cuide de partilhar os frutos de uma comunhão de vidas, não os resultados
financeiros de uma sociedade qualquer (Des. Cezar Peluzo – BolAASP 1765/396)”
(PELUSO apud JÚNIOR, Nelson Nery e NERY, Rosa Maria Andrade. Código Civil
Comentado e Legislação Extravagante, 3ª Edição, São Paulo: Editora Revista dos
Tribunais, 2005, p. 801)”. Vide meus comentários sobre o fato de que tais argumentos
se enquadram perfeitamente no caso da união homoafetiva no capítulo 15, item 2
“Concubinato: evolução histórica, conceito e espécies. STF, ADPF 132 e ADI 4277”.
50 O Ministro Gilmar Mendes argumentou ser importante destacar isso por entender que
um fundamento invocado por vezes pelo Legislativo para não agir era de que uma
eventual lei (que reconhecesse a união estável homoafetiva) poderia ser considerada
“de plano” inconstitucional, o que essa decisão do Supremo afasta e, ao revés,
reconhece esta regulação como um imperativo de concretização dos direitos
fundamentais a esta situação específica, o que é mais um convite e uma justificativa
para que eventuais dúvidas e situações peculiares dessas relações possam ser
eventualmente disciplinadas. O Ministro Ayres Britto ressaltou que a decisão do
Supremo não fecha os espaços de lei do Congresso Nacional – afirmou que é um abrir
de portas para a comunidade homoafetiva, mas não um fechar de portas ao Poder
Legislativo. Ao contrário, disse o Ministro Peluso, a decisão do Supremo convoca o
Congresso Nacional a colaborar com a decisão da Suprema Corte para superar todas
as situações que são, na verdade, situações dramáticas do ponto de vista social
resultantes de uma discriminação absolutamente injustificada. Assim, ficou plenamente
de acordo com a Corte na posição tomada, por unanimidade, proclamando o resultado
do julgamento para, no mérito, julgar procedentes as ações com efeito vinculante e
eficácia erga omnes, restando autorizados os ministros a julgarem monocraticamente
a mesma questão sob sua relatoria independentemente da redação do acórdão (pois a
publicação se deu no momento da sessão).
51 A ADPF 132 e a ADI 4.277 foram julgadas nos dias 04 e 05.05.2011 e tiveram seu
acórdão publicado no dia 14.10.2011, ao passo que o RE 477.554 AgR/MG foi julgado
no dia 16.08.2011 e teve seu acórdão publicado no dia 26.08.2011.
52 Cf. <http://www.direitohomoafetivo.com.br/JurisprudenciaList.php?
idJurisAssunto=27&idJurisSubAssunto=49>. Último acesso: 9 jan. 2012.
53 No mesmo sentido, cite-se, v.g., a lição de BRANDELLI, Leonardo. Nome Civil da
pessoa natural, 1ª Edição, São Paulo: Editora Saraiva, 2012, p. 190, segundo o qual
“Entendeu o Supremo Tribunal Federal, no julgamento da ação direta de
inconstitucionalidade n. 4277 e da argüição de descumprimento de preceito
fundamental n. 132, pela possibilidade jurídica da união estável homoafetiva diante da
impossibilidade constitucional de discriminação ou desigualação em razão do sexo, na
qual implicaria uma interpretação de que o art. 226 da Carta Maior somente permite a
união estável entre homem e mulher”.
Capítulo 14

CONTRATOS DE UNIÃO ESTÁVEL


(HOMOAFETIVA OU HETEROAFETIVA)

1. CONSIDERAÇÕES PRELIMINARES
Na primeira edição desta obra, classifiquei este capítulo como “solução
paliativa I”, afirmando que poderiam casais homoafetivos firmar contrato
de união estável com base no art. 424 do CC/02, que permite a elaboração
de contratos atípicos1 (que deixa evidente ser meramente exemplificativo o
rol de contratos constante do Código Civil), em razão do vazio legislativo
acerca da união homoafetiva. O fiz afirmando que era uma forma de
resguardar direitos da união homoafetiva até que esta fosse reconhecida
como entidade familiar e tivesse, assim, a si reconhecidos os direitos
garantidos pelo Direito das Famílias, de sorte a cessar a discriminação
jurídica atentatória aos princípios da isonomia e da dignidade da pessoa
humana a ela imposta. Justifiquei tal tese com base no art. 5.º, II, da CF/88,
que estabelece que ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer algo
senão em virtude de lei, donde afirmei ser permitido que duas pessoas do
mesmo sexo regulem sua vida conjunta por contrato atípico, ante a ausência
de proibição expressa nesse sentido, além de tal pacto ser útil por constituir
uma prova da união amorosa, pública, contínua e duradoura do casal, o que
tornará mais fácil a eventual prova em juízo de que ambos conviveram em
relacionamento afetivo e construíram conjuntamente o patrimônio existente
quando do término da união ou da morte de um deles, como verdadeira
família (conjugal).
Contudo, com a decisão do STF na ADPF 132 e na ADI 4277 e o
consequente reconhecimento da união homoafetiva como união estável ou,
como preferem outros, como entidade familiar com igualdade de direitos à
união estável heteroafetiva, torna-se inegável que um casal homoafetivo
pode firmar um contrato de união estável (que sequer precisa ser
qualificada de homoafetiva, da mesma forma que uma união estável
heteroafetiva não precisa ser assim qualificada no contrato respectivo), seja
por constituir uma união estável ou então por formar uma entidade familiar
autônoma com igualdade de direitos à união estável, o que significa que
podem firmar um contrato garantidor dos mesmos direitos da união estável
heteroafetiva. Não se trata mais de “solução paliativa”, mas de direito
subjetivo de casais homoafetivos terem sua união reconhecida como família
conjugal (entidade familiar), o que lhes concede o direito de firmarem um
contrato de união estável – logo, por um contrato típico de Direito das
Famílias.

2. CONTRATO DE UNIÃO ESTÁVEL HOMOAFETIVA


Na primeira edição desta obra, adverti que o contrato seria regido pelo
Direito das Obrigações (pelo princípio de que o contrato faz lei entre as
partes – pacta sunt servanda) e não pelo Direito das Famílias, por conta do
entendimento jurisprudencial ainda majoritário contrário à equiparação da
união (estável) homoafetiva à união estável heteroafetiva. Contudo, com a
decisão do STF na ADPF 132 e na ADI 4277, de efeito vinculante e
eficácia erga omnes, que lhe dá força de lei, não se pode mais negar a
aplicação do Direito das Famílias às uniões homoafetivas não
matrimonializadas que atendam os requisitos de publicidade, continuidade,
durabilidade e intuito de constituir família impostos pelo art. 1.723 do
CC/2002 para caracterização de uma união estável – logo, os contratos de
união estável firmados por casais homoafetivos devem ter a si atribuídos os
mesmos efeitos jurídicos atribuídos aos contratos de união estável firmados
por casais heteroafetivos.
Inicialmente, é imperioso destacar que não tem esse contrato de união
estável o condão de criar um novo estado civil entre os contraentes. Os
contraentes continuarão civilmente reconhecidos como “solteiros”, podendo
inclusive qualquer um deles convolar núpcias sem qualquer embaraço, caso
seja essa a sua vontade (fato este que, inegavelmente, ensejará a rescisão do
contrato de convivência pela outra parte, por justo motivo).
Note-se que esse contrato de união estável não se restringe às uniões
entre pessoas do mesmo sexo. As uniões estáveis heteroafetivas podem
perfeitamente ser reguladas por ele, tanto que o art. 5.º da Lei 9.278/1996
(que regulamenta o § 3.º do art. 226 da CF/1988), em sua parte final,
permite que os companheiros disciplinem a sua vida patrimonial mediante
“contrato escrito”2, assim como o faz o art. 1.725 do CC/20023, para
aqueles que entendem que as leis de união estável foram derrogadas pelo
Diploma Civilista.
Por outro lado, consequência lógica da decisão do STF na ADPF 132 e
na ADI 4277 é a extensão da presunção de condomínio no que concerne
tanto aos bens móveis quanto aos imóveis adquiridos a título oneroso na
constância da união estável (de clara inspiração no regime matrimonial da
comunhão parcial de bens) à união pública, contínua e duradoura, com o
intuito de constituir família formada por um casal formado por duas pessoas
do mesmo sexo. Ora, sendo a união homoafetiva uma união estável ou uma
entidade familiar com igualdade de direitos relativamente à união estável
heteroafetiva, isso significa que este direito também a ela foi reconhecido.
Assim, podem os contraentes estipular aquilo que lhes convier acerca
de como será a divisão dos bens de propriedade do casal quando do término
de sua união, assim como podem elaborar cláusulas que estabeleçam que,
terminada a convivência, o contraente que se encontre em dificuldades
financeiras possa pedir auxílio econômico ao outro, desde que isso não
importe em prejuízo da própria subsistência daquele obrigado a esse auxílio
econômico, e assim por diante.
É preciso, ainda, que se tome cuidado para que nenhuma das
disposições do mencionado contrato de união estável venha a contrariar
disposição expressa de lei ou mesmo o ordenamento jurídico em geral.
Tome-se como exemplo o caso da sucessão causa mortis de um dos
parceiros – o ordenamento jurídico prevê que o de cujus somente pode
dispor de 50% (cinquenta por cento) de seu patrimônio a outrem (seja ou
não herdeiro deste), sendo o restante resguardado aos herdeiros necessários
(legais). Assim, deve o contrato de união estável em questão prever que
somente a quota disponível do patrimônio do companheiro falecido será
transferida ao companheiro sobrevivente, sob pena de nulidade da cláusula
contratual, assim como ocorreria se um testamento viesse a prever a
transferência de parcela superior à disponível do patrimônio a outrem.

2.1 Justificativa do nomen juris. Cláusulas


As considerações aqui formuladas são inspiradas no Curso de Direito
Homoafetivo realizado na sede da AASP (Associação dos Advogados de
São Paulo), especificamente no dia 27.11.2007, na palestra ministrada por
Christiano Cassetari4.
Quanto à forma contratual, a legislação não exige escritura pública ao
contrato de união estável homoafetiva justamente por não prever a hipótese,
razão pela qual pode esse contrato ser feito por escritura particular.
Contudo, a escritura pública garante maior credibilidade ao conteúdo do
contrato, em razão da fé pública a ela inerente. Assim, recomenda-se
elaborar o contrato de união estável homoafetiva por escritura pública,
tanto para mitigar eventuais alegações de vícios quanto para comprovar o
termo inicial (ao menos da relação contratual), de forma auxiliar na
demonstração da durabilidade e, ainda, do caráter público da união.
Justifica-se nomear dito contrato de convivência como contrato de
união estável homoafetiva, pois, considerando a ausência de legislação que
regule a união homoafetiva, é interessante enquadrar a relação entre os
companheiros-contraentes no conceito jurídico de união estável, em
especial agora que o Supremo Tribunal Federal, em decisão com efeito
vinculante e eficácia erga omnes, consolidou o entendimento pela
possibilidade jurídica de casais homoafetivos formarem uma família
conjugal e, portanto, uma união estável homoafetiva – de forma que fique
claro que ambos tinham a plena intenção de se relacionarem como uma
entidade familiar pautada pelo regime jurídico da união estável5. O mesmo
motivo justifica o uso do termo companheiros (termo técnico-jurídico
destinado a designar as relações regidas pela união estável) em vez de
“parceiros”, que tem um tom de caráter nitidamente obrigacional (ou seja,
relativo ao Direito das Obrigações).
Nos “considerandos” do contrato, vale a pena citar: (i) os arts. 2.o e 5.o
da Lei Maria da Penha, que indiretamente reconhece o status jurídico-
familiar das uniões homoafetivas ao dizer que a violência doméstica será
reprimida independentemente de orientação sexual (pois a violência, para
ser doméstica, precisa ser cometida em seio familiar); (ii) a jurisprudência
que reconhece a possibilidade jurídica da união estável homoafetiva, por
analogia. Tais citações justificam-se para que fique claro que os
companheiros-contraentes se consideram uma entidade familiar regida pelas
regras da união estável constitucionalizada6 (principalmente, a decisão do
STF na ADPF 132 e na ADI 4.277).
A cláusula primeira deverá versar sobre o objeto contratual, donde
deve mencionar que se trata de um contrato que visa regular a união estável
dos companheiros-contraentes, aduzindo ainda que o regime jurídico da
união estável será aplicado analogicamente à referida relação contratual, tal
qual ocorre nos contratos firmados por casais heteroafetivos em união
estável.
Sugere-se, ainda: como item primeiro dessa cláusula, que se aponte a
data de início da relação; como item segundo, apontar o cumprimento dos
requisitos do art. 1.723 do CC/2002 à constituição de uma união estável
(caráter público, contínuo e duradouro, em comunhão plena de vida e
interesses)7. Nesse sentido, considerando que a união estável é um fato que
independe de decisão judicial, que apenas declara sua existência, deve-se
fazer o contrato após transcorrido um lapso temporal de convivência
homoafetiva – como inexiste um prazo fixado legalmente, sugere-se que se
aguarde, no mínimo, por seis meses para que se demonstre, ao menos, uma
intenção de continuidade e durabilidade da união.
A cláusula segunda deverá versar sobre as questões patrimoniais da
relação. Assim, deverá ser indicada a regra patrimonial vigente entre os
companheiros-contraentes, sem fazer menção a nenhum “regime de bens”,
por ser esta uma questão exclusiva do casamento civil8. Como inexiste
regime de bens na união estável, devem ser fixadas regras patrimoniais, que
podem, inclusive, ser idênticas àqueles constantes nos diversos regimes de
bens, embora o contrato não deva fazer referência a estes (não deva usar os
nomes dos regimes de bens).
A cláusula terceira deverá versar sobre a administração dos bens9.
Aqui não há como se fazer uma sugestão abstrata, pois será o interesse
específico dos contraentes-companheiros que definirá as regras aplicáveis.
Segue um exemplo: “Cada outorgante terá livre e completa administração
de seus bens, inclusive no que tange à movimentação de seus negócios
financeiros, pelos quais cada outorgante será exclusivamente responsável”.
De qualquer forma, as regras criadas podem ser excepcionadas, novamente
conforme o interesse específico dos companheiros-contraentes.
A cláusula quarta deverá versar sobre os direitos conjuntos dos
companheiros-contraentes, ou seja, os benefícios que ambos poderão
usufruir reciprocamente, tais como: (i) plano de saúde; (ii) plano de
assistência odontológica; (iii) plano de previdência privada complementar;
(iv) seguro de vida etc.10. Muito embora tais direitos já estejam sendo
reconhecidos judicialmente, dito reconhecimento demanda longas batalhas
judiciais, ao passo que não se está criando um contrato cujo objeto deva
demandar (necessariamente) apelos ao Judiciário, mas que visa tentar
garantir a implementação de direitos automaticamente, sem a necessidade
de intervenção do Estado-juiz.
A cláusula quinta deverá versar sobre a curatela dos companheiros-
contraentes, designando-se eles reciprocamente como curadores um do
outro, se necessário for, em caso de incapacidade temporária ou permanente
de um deles, de forma a gerir toda a vida cível deste após processo de
interdição movido para tal fim, afastando assim as pessoas descritas no art.
1.775 do CC/200211. Dessa forma, faz-se necessária a elaboração de
cláusula contratual (preferencialmente referendada por procuração) que
estabeleça dito direito assistencial de curatela, pelo qual o companheiro
homoafetivo fique expressamente nomeado como curador do outro, e,
ainda, tomar as decisões relativas à vida civil do outro.
A cláusula sexta deverá versar sobre eventual estado de doença ou
incapacidade dos companheiros-contraentes, designando-se eles
reciprocamente como procuradores do outro, se necessário for, para a
hipótese de doença grave ou terminal de um deles, ou ainda estado de
incapacidade psíquica definitiva ou temporária, devidamente atestado(a)
por profissional habilitado.
Infortúnios lamentavelmente acontecem, donde pode ocorrer que um
dos companheiros-contraentes venha a ficar internado com doença grave.
Nesse sentido, embora a decisão do STF na ADPF 132 e na ADI 4.277
tenha considerado a união homoafetiva como uma família conjugal com
igualdade de direitos à família conjugal heteroafetiva, donde hospitais não
terão mais nenhuma justificativa jurídica para não permitirem que o(a)
companheiro(a) homoafetivo(a) do internado fique ao lado deste, já que o
STF o(a) reconheceu como familiar daquele(a), a designação expressa evita
discussões jurídicas sobre o tema. Dessa forma, faz-se necessária a
elaboração de cláusula contratual (preferencialmente referendada por
procuração) pela qual o companheiro homoafetivo fique expressamente
nomeado como procurador do outro, inclusive para tomar as decisões
relativas ao tratamento a ser aplicado ao enfermo, em preferência aos
ascendentes, irmãos e quaisquer outros parentes biológicos deste. Em
parágrafo (único ou não) deverá ser explicitado que as decisões previstas
nesta cláusula também se aplicam para doação de órgãos e tecidos após a
morte encefálica devidamente atestada por junta médica que Cassetari
entende dever ser composta de, pelo menos, três profissionais capacitados,
em laudos individuais12.
Ainda que dita cláusula venha a ser descabidamente impugnada
judicialmente (o mesmo valendo para a de curatela), ela, no mínimo, pesará
sobre a decisão do juiz, na medida em que este verá que o enfermo
livremente escolheu seu companheiro homoafetivo para ser seu curador –
em ato de pleno exercício da autonomia privada concedida pelo
ordenamento jurídico aos particulares, o que vem, ainda, a demonstrar ao
juiz que os contraentes-companheiros se consideram uma entidade familiar
estável.
Aponte-se, por oportuno: (i) que a interdição ou a morte do mandante
extinguem o mandato (art. 682, II, do CC/200213); (ii) o mandato está
sujeito à forma prevista para o ato a ser praticado; (iii) o mandato somente
confere poderes para a administração, sendo a procuração o instrumento
deste (art. 657 do CC/200214). Poderes mais amplos (como para alienação,
hipoteca, transação etc.) dependem de menção expressa no instrumento
(poderes especiais)15.
A cláusula sétima deverá versar sobre a indesejada, mas eventual,
dissolução da união estável entre os companheiros-contraentes. Aqui
deverão ser estipuladas as condições que poderão ensejar o término da
união estável. Como exemplo, a seguinte cláusula poderia ser elaborada:
“Este contrato será extinto mediante manifestação de vontade: (i) de uma
das partes, independentemente de justo motivo; (ii) de ambas as partes.
Parágrafo único. A manifestação de vontade pela extinção de todos os
direitos e deveres estabelecidos neste instrumento deve ser feita por escrito
à outra parte, sem que exista, para isto, prazo de carência”16.
Muito embora a união estável seja uma relação fática que, portanto,
encerra-se automaticamente, sem necessidade de formalidades – o que faria
que o contrato perdesse seu objeto, o melhor é realizar a resilição contratual
para evitar a necessidade de decisão judicial a respeito. Note-se, ainda, que
o distrato deve ser feito pela mesma forma do contrato, nos termos do art.
472 do CC/200217.
Por fim, poderá ser elaborada cláusula oitava versando sobre foro de
eleição, nos termos do art. 111 do CPC18-19.
As cláusulas aqui sugeridas não constituem, evidentemente, matéria
exaustiva. Podem as partes acrescentar outras, sempre em conformidade
com o seu interesse.

3. SÍNTESE CONCLUSIVA DO CAPÍTULO


Com a decisão do STF na ADPF 132 e na ADI 4.277 e o consequente
reconhecimento da união homoafetiva como união estável ou, como
preferem outros, como entidade familiar com igualdade de direitos à união
estável heteroafetiva, torna-se inegável que um casal homoafetivo pode
firmar um contrato de união estável, seja por constituir uma união estável,
seja por formar uma entidade familiar autônoma com igualdade de direitos
à união estável, o que significa que podem firmar um contrato garantidor
dos mesmos direitos da união estável heteroafetiva. Não se trata mais de
“solução paliativa”, mas de direito subjetivo de casais homoafetivos terem
sua união reconhecida como família conjugal (entidade familiar), o que lhes
concede o direito de firmarem um contrato de união estável – logo, por um
contrato típico de Direito das Famílias.
Quanto ao conteúdo do contrato, sugere-se: (i) nominá-lo como
contrato de união estável, para deixar claro o caráter familiar da união; (ii)
mencionar os arts. 2.o e 5.o da Lei Maria da Penha e a jurisprudência que
reconhece a possibilidade jurídica da união estável homoafetiva, por
analogia, para que fique claro que os companheiros-contraentes se
consideram uma entidade familiar regida pelas regras da união estável
constitucionalizada; (iii) na cláusula primeira, apontar que o objeto
contratual é uma união estável, aplicando-se o regime jurídico desta
analogicamente aos companheiros-contraentes; (iv) na cláusula segunda,
indicar as regras patrimoniais da relação; (v) na cláusula terceira,
mencionar a forma da administração de bens definida pelo casal; (vi) na
cláusula quarta, apontar os direitos conjuntos dos companheiros-
contraentes; (vii) na cláusula quinta, mencionar as disposições relativas à
curatela; (viii) na cláusula sexta, apontar o caráter de procurador do
companheiros-contraentes no caso de um deles ficar enfermo, autorizando-o
a tomar decisões médico-hospitalares pertinentes (tratamento, doação de
órgãos etc.); (ix) na cláusula sétima, tratar da forma da eventual dissolução
da união e resilição contratual; (x) na cláusula oitava, eleger o foro
competente para dirimir eventuais controvérsias relativas ao contrato de
união estável em questão.

1 Contrato típico é aquele expressamente previsto e regulamentado pelo Código, ao


passo que atípico é aquele que, embora não previsto expressamente pela lei, é por ela
permitido e cujas disposições estão em consonância com os princípios gerais dos
contratos previstos naquele diploma legal. Assim, por força do art. 424 do CC/02, tem-
se que o rol de contratos trazido pelo Código Civil não é taxativo, podendo as partes,
respeitados os princípios gerais dos contratos (força vinculante do pacto – pacta sunt
servanda, relatividade das convenções, bilateralidade, probidade e boa-fé), criar
contratos não previstos naquele diploma legal.
2 “Art. 5.º Os bens móveis e imóveis adquiridos por um ou por ambos os conviventes na
constância da união estável e a título oneroso são considerados fruto do trabalho e da
colaboração comum, passando a pertencer a ambos, em condomínio e em partes
iguais, salvo estipulação em contrato escrito.”
3 “Art. 1.725. Na união estável, salvo contrato escrito entre os companheiros, aplica-se
às relações patrimoniais, no que couber, o regime da comunhão parcial de bens.”
4 O autor publicou artigo em obra coletiva, da qual também participei, explicitando suas
lições: CASSETARI, Cristiano. Aspectos notariais e registrais do contrato de
convivência homossexual. Diversidade Sexual e Direito Homoafetivo. São Paulo:
Editora Revista dos Tribunais, 2011, pp. 298-305. As cláusulas aqui sugeridas,
portanto, baseiam-se no citado curso e, consequentemente, no citado artigo. Para
maiores desenvolvimentos, vide também AGAPITO, Priscila de Castro Teixeira Pinto
Lopes. Formalização notarial das relações homoafetivas. In: DIAS, Maria Berenice
(org.). Diversidade Sexual e Direito Homoafetivo. São Paulo: RT, 2011, pp. 306-320,
cuja autora era uma das poucas tabeliãs que realizava contratos de união estável
homoafetiva no Brasil antes da decisão do STF na ADPF 132 e na ADI 4277, o que
merece aplausos pela postura de vanguarda que garantia direitos dos casais
homoafetivos que a procuraram para tanto mesmo antes de o STF ter pacificado a
possibilidade da lavratura de tal contrato por força da referida decisão.
5 Cf. CASSETARI, op. cit., p. 300.
6 Cf. CASSETARI, op. cit., p. 300.
7 Cf. CASSETARI, op. cit., p. 302.
8 Cf. CASSETARI, op. cit., pp. 302-303.
9 Cf. CASSETARI, op. cit., p. 303, para quem “É possível estipular que cada outorgante
terá a livre e completa administração e disposição de seus bens, inclusive no que
tange à movimentação de seus negócios financeiros, pelos quais cada outorgante será
exclusivamente responsabilizado”.
10 Cf. CASSETARI, op. cit., p. 303.
11 Cf. CASSETARI, op. cit., p. 303, para quem “Em decorrência da ausência de previsão
específica, entendemos ser possível a existência de uma curatela contratual. Algo
como a tutela testamentária prevista no art. 1.729 do CC, onde os pais deixam
testamento estabelecendo quem queriam ver como tutores de seus filhos em sua
ausência, para que tais pessoas ganhem a preferência na nomeação de acordo com o
art. 1.732, I, do referido Código. No caso da curatela contratual não vemos nenhum
óbice para que as partes estabeleçam quem querem ver como seus curadores em
caso de serem interditados, para afastar as pessoas descritas no art. 1.775 do CC,
que podem, inclusive, ser citadas no contrato”.
12 Cf. CASSETARI, op. cit., p. 303.
13 “Art. 682. Cessa o mandato: (...) II – pela morte ou interdição do mandante.”
14 “Art. 653. Opera-se o mandato quando alguém recebe de outrem poderes para, em
seu interesse, praticar atos ou administrar interesses. A procuração é o instrumento do
mandato.”
15 Cf. CASSETARI, op. cit., p. 304, que afirma que “Se houver previsão de cláusula
mandato, que outorgue poderes para ambas as partes agirem em nome do outro,
recomendamos que o contrato seja feito por escritura pública e não por instrumento
particular, já que de acordo com o art. 657 do CC a outorga do mandato está sujeita à
forma exigida por lei para o ato a ser praticado. O mesmo dispositivo determina que
não se admite mandato verbal quando o ato deva ser celebrado por escrito”.
16 Segundo CASSETARI, op. cit., p. 304: “Por se tratar de uma entidade familiar que
encontra no afeto o seu alicerce, deve ser inserido como cláusula que o referido
instrumento será extinto mediante manifestação da vontade: a) de uma das partes
(resilição unilateral – art. 473 do CC); b) de ambas as partes (resilição bilateral ou
distrato – art. 472 do CC)”.
17 “Art. 472. O distrato faz-se pela mesma forma exigida para o contrato.”
18 “Art. 111. A competência em razão da matéria e da hierarquia é inderrogável por
convenção das partes; mas estas podem modificar a competência em razão do valor e
do território, elegendo foro onde serão propostas as ações oriundas de direitos e
obrigações.”
19 Cf. CASSETARI, op. cit., pp. 304-305.
Capítulo 15

O CONCUBINATO E A TEORIA DAS


SOCIEDADES DE FATO. HISTÓRICO.
INADEQUAÇÃO À HIPÓTESE DE UNIÃO
ESTÁVEL HOMOAFETIVA. O
CONCUBINATO HOMOAFETIVO

“O atraso do Direito em relação aos fatos nos quais encontra a


matéria-prima que espiritualiza não é, contudo, um acontecimento
atual. Não é de hoje, com efeito, que vem se acentuando. Parece que
o ritmo acelerado com que se desenvolvem os fatos na base material
da sociedade tem concorrido, há um século, para aprofundar a
dissonância entre os fenômenos sociais. A ação e reação recíprocas
desses fatos quase nunca se produzem ao compasso de um
metrônomo. O processo histórico não flui num só ritmo. Na sua
trajetória, repontam coexistências incongruentes, já que os
fenômenos sociais rarissimamente marcham com a mesma
cadência.” – Orlando Gomes.1

1. CONSIDERAÇÕES PRELIMINARES. STF, ADPF 132 E ADI 4.277


Na primeira edição desta obra, afirmei que a teoria das sociedades de
fato constituiria solução paliativa para reger a união homoafetiva enquanto
não fosse reconhecida como entidade familiar pela jurisprudência em geral,
pois a teoria das sociedades de fato seria melhor do que nada, donde não
sendo a união homoafetiva reconhecida como família/entidade familiar e
consequentemente não sendo a ela aplicados os ditames do Direito das
Famílias, deveria ser aplicada dita teoria, que abaixo se passa a expor, até
que pelo menos se regulamentem as uniões entre pessoas do mesmo sexo.
Contudo, com a decisão do STF na ADPF 132 e na ADI 4.277, tal
reconhecimento jurídico-familiar da união homoafetiva foi efetivado, ante o
caráter vinculante e erga omnes de referida decisão, que lhe dá força de lei.
Assim, descabe invocar a teoria das sociedades de fato para o caso de união
pública, contínua, duradoura e com o intuito de constituir família formada
entre duas pessoas do mesmo sexo não impedidas de se casar pela
legislação, por tal configura entidade familiar (conjugal) reconhecida como
tal pela legislação no art. 1.723 do CC/2002, o qual o Supremo Tribunal
Federal interpretou como não proibitivo do reconhecimento da família
conjugal homoafetiva na citada decisão, aplicando-lhe interpretação
conforme à Constituição para dele afastar a validade de qualquer
interpretação em sentido contrário.

2. CONCUBINATO: EVOLUÇÃO HISTÓRICA, CONCEITO E


ESPÉCIES. STF, ADPF 132 E ADI 4.277
A teoria das sociedades de fato surgiu, no âmbito das relações
amorosas, visando a proteger os interesses da concubina, ou seja, a amante
do homem casado ou não proibido de se casar. Assim, antes de abordar o
mérito dessa questão, cumpre tecer um breve histórico acerca do
concubinato e de toda a árdua evolução doutrinário-jurisprudencial e
legislativa do tema ao longo do século XX, até a consagração da união
estável na Constituição Federal de 1988.
Quem se atém a estudar a evolução histórica do Direito das Famílias
percebe que este, como o próprio Direito em geral, mas especialmente ele,
sofreu influência muito grande das religiões judaico-cristãs no que tange ao
Ocidente. O estudo dos primórdios da legislação pátria revela muitas
semelhanças desta com a própria Lei Mosaica, exposta pelo Antigo
Testamento Bíblico, como, por exemplo, a supremacia do homem em
relação à mulher na sociedade conjugal.2 Dessa forma, mesmo quando
Estado e Igreja já não se confundiam mais, muitas das disposições do
Direito continuaram a ser baseadas nos ensinamentos religiosos, em
especial em matéria de família, provavelmente por manutenção acrítica de
tais preceitos, arraigados que estavam no seio social.
Assim, o legislador pátrio passou a entender, inicialmente, que o
casamento, dogma da Igreja Católica Apostólica Romana, seria a única
forma de constituição da família “legítima”, sendo que toda união de
pessoas fora dos ditames impostos pela lei como imprescindíveis à
constituição do matrimônio era considerada como família “ilegítima”, ou
seja, não merecedora de proteção por parte do ordenamento jurídico. Disso
resultou que qualquer união entre duas pessoas que não fosse ratificada pelo
casamento civil era tachada de concubinária. A união concubinária,
justamente por ser rechaçada pelo ordenamento jurídico, nunca foi
protegida pelas normas do Direito das Famílias, que somente se aplica ao
que se considera como família “legítima”, que pode ser definida como
aquela protegida pelo Direito. Sob a égide do Código Civil de 1916, a
“família legítima” era formada unicamente pelo casamento civil, o que
ocorreu até a promulgação da Constituição Federal de 1988, que tirou esse
privilégio da união matrimonializada.
Dessa forma, a jurisprudência passou a se desdobrar para evitar que a
mulher-concubina ficasse a ver navios quando do término da relação,
situação em que inexoravelmente ficava ela sem patrimônio algum, visto
que era ela o elo fraco da relação, uma vez que, na sociedade extremamente
machista da época, era-lhe negada a possibilidade de aventurar-se no
mercado de trabalho e de se sustentar de maneira digna e autônoma sem ser
malvista pela sociedade. Desse esforço jurisprudencial surgiu a teoria das
sociedades de fato, que foi uma analogia que se passou a fazer entre a
“sociedade concubinária” e a sociedade comercial irregular, teoria esta
consagrada pela Súmula 380 do Supremo Tribunal Federal3. Dessa forma,
essa analogia com a teoria das sociedades comerciais de fato possibilitou à
concubina que, uma vez comprovada judicialmente a sua efetiva
contribuição para a construção do patrimônio de seu companheiro (uma vez
que os bens ficavam quase sempre em nome do homem), teria ela direito à
participação na divisão do patrimônio construído pelo casal, na exata
proporção de sua contribuição. Ou seja, desconsiderava-se completamente a
relação afetiva do casal para tratá-los como sócios em uma sociedade
comercial não registrada na Junta Comercial, cujo término ocasionava
verdadeira apuração de haveres para saber como dividir de maneira justa o
patrimônio oriundo dessa relação.
Contudo, restava um grande problema: como a concubina quase
sempre ficava cuidando de sua casa e de seus filhos com o concubino, não
prestava ela, em regra, nenhum auxílio financeiro a este, que construía o
patrimônio somente com seu próprio esforço monetário. No casamento
civil, esse problema inexiste, uma vez que há uma presunção absoluta de
que o outro cônjuge efetivamente contribuiu para a construção patrimonial,
ainda que de forma puramente moral, confortando seu cônjuge e prestando-
lhe auxílio afetivo, sem o qual se pressupõe ele não teria tido forças para
construir seu patrimônio. Essa presunção absoluta permite que o regime de
bens escolhido pelo casal seja o fator determinante para a divisão dos bens.
Na união estável, salvo contrato escrito firmado pelo casal (que se
assemelha assim ao pacto antenupcial), dividem-se os bens adquiridos
onerosamente na constância da união estável. Já no concubinato, visto ser
completamente desconsiderada a relação amorosa do par, aquela presunção
inexiste, cabendo ao companheiro abandonado provar que contribuiu
monetariamente para a construção do patrimônio, o que nem sempre é
possível4.
O concubinato era classificado basicamente de duas formas: puro e
impuro, sendo que o impuro abrangia o adulterino e o incestuoso. O
concubinato impuro era aquele contraído por duas pessoas proibidas pelo
ordenamento jurídico de ratificar sua união pelo matrimônio, ao passo que o
concubinato puro era aquele contraído por duas pessoas não proibidas de se
casar, mas que, por motivos diversos, optavam por não contrair o casamento
civil. Apesar da relação oriunda do concubinato puro ter sido rechaçada
pelo ordenamento jurídico e pela sociedade em geral por preconceito, essas
relações sempre existiram e se proliferaram com o passar dos anos,
especialmente no século XX, pois, com a entrada da mulher no mercado de
trabalho, a base dos relacionamentos passou a ser mais o afeto do que a
mera formalidade do casamento civil.
Assim, como o Direito não pode se esquivar ao fato social, e
especialmente considerando toda a árdua evolução doutrinário-
jurisprudencial já exposta, consagrou-se o concubinato puro no que
conhecemos hoje por união estável, por meio do art. 226, § 3.º, da CF/1988
– ou seja, a união fática entre duas pessoas que não mantenham entre si a
sociedade conjugal passou a ter efetiva proteção do Estado, ainda que este
estimule e queira a conversão desta união em casamento civil, intenção esta
que se depreende do texto do citado dispositivo legal. Já o concubinato
impuro continuou rechaçado pelo ordenamento jurídico pátrio, razão pela
qual as relações amorosas entre duas pessoas proibidas de contrair
matrimônio continuaram a ser tachadas de uniões concubinárias e sujeitas
aos ditames da exposta teoria das sociedades de fato. A questão do
concubinato, puro ou impuro, foi simplesmente ignorada pelo CC/1916,
sendo que o diploma civilista de 2002 passou a contemplar ambas as
hipóteses: a união estável (antigo concubinato puro, inicialmente protegido
pelo art. 226, § 3.º, da CF/1988) nos arts. 1.723 a 1.726, e o concubinato
impuro em seu art. 1.727.
Sobre o descabimento da aplicação da teoria das sociedades de fato a
uniões homoafetivas que não se enquadrem nas hipóteses de impedimentos
matrimoniais, vale a citação do voto do Ministro Marco Aurélio5 no
julgamento da ADPF 132 e da ADI 4.277: “Relegar as uniões homoafetivas
à disciplina da sociedade de fato é não reconhecer essa modificação
paradigmática no Direito Civil levada a cabo pela Constituição da
República. A categoria da sociedade de fato reflete a realização de um
empreendimento conjunto, mas de nota patrimonial, e não afetiva ou
emocional. Sociedade de fato é sociedade irregular, regida pelo artigo 987 e
seguintes do Código Civil, de vocação empresarial. Sobre o tema, Carvalho
de Mendonça afirmava que as sociedades de fato são aquelas afetadas por
vícios que as inquinam de nulidade, e são fulminadas por isso com o
decreto de morte (Tratado de direito comercial brasileiro, 2001, p. 152 e
153). Para Rubens Requião, ‘convém esclarecer que essas entidades –
sociedades de fato e sociedades irregulares – não perdem a sua condição de
sociedades empresariais’ (Curso de direito comercial, 2010, p. 444). Tanto
assim que as dissoluções de sociedades de fato são geralmente submetidas à
competência dos juízos cíveis, e não dos juízos de família. Nada mais
descompassado com a essência da união homoafetiva, a revelar o propósito
de compartilhamento de vida, e não de obtenção de lucro ou de qualquer
outra atividade negocial. A homoafetividade é um fenômeno que se
encontra fortemente visível na sociedade. Como salientado pelo requerente,
inexiste consenso quanto à causa da atração pelo mesmo sexo, se genética
ou se social, mas não se trata de mera escolha. A afetividade direcionada a
outrem de gênero igual compõe a individualidade da pessoa, de modo que
se torna impossível, sem destruir o ser, exigir o contrário. Insisto: se duas
pessoas de igual sexo se unem para a vida afetiva comum, o ato não pode
ser lançado a categoria jurídica imprópria. A tutela da situação
patrimonial é insuficiente. Impõe-se a proteção jurídica integral, qual seja,
o reconhecimento do regime familiar. Caso contrário, conforme alerta
Daniel Sarmento (Casamento e União Estável entre Pessoas do Mesmo
Sexo: Perspectivas Constitucionais. Igualdade, Diferenças e Direitos
Humanos, 2008, p. 644), estar-se-á a transmitir a mensagem de que o afeto
entre elas é reprovável e não merece o respeito da sociedade, tampouco a
tutela do Estado, o que viola a dignidade humana dessas pessoas, que
apenas buscam o amor, a felicidade, a realização. Se as decisões judiciais
que permitiram o reconhecimento das sociedades de fato entre pessoas do
mesmo sexo representaram inegável avanço quando foram proferidas,
atualmente elas apenas reproduzem o preconceito e trazem à baila o
desprezo à dignidade da pessoa humana. Igualmente, os primeiros
pronunciamentos que reconheceram aos heterossexuais não casados direitos
sucessórios com fundamento na sociedade de fato foram celebrados como
inovações jurídicas. Nos dias de hoje, esses atos judiciais estariam em
franca incompatibilidade com a Constituição e mesmo com a moralidade
comum”.
No mesmo sentido, o voto do Ministro Peluso6: “O Ministro Marco
Aurélio fez largo apanhado da necessidade de aplicação, às relações
afetivas, das normas próprias do campo do Direito de Família. Não por
questão de vaidade, mas por registro histórico, eu fui um dos primeiros – há
mais de vinte anos, numa conferência pronunciada na Associação dos
Advogados de São Paulo e, depois, estampada na Revista dos Advogados,
da mesma Associação – a sustentar, contra a então jurisprudência
dominante no Tribunal de Justiça de São Paulo, àquela altura em que não
havia normas diretas de regulamentação da união estável, que não podiam
ser aplicadas as soluções que a jurisprudência, para atender as exigências
próprias do fato social, vinham invocando, sobretudo de normas de Direito
não familiar, como sociedade de fato, sociedades de ordem econômica etc.
E fui o primeiro a aplicar, no Tribunal de Justiça de São Paulo, em caso de
união estável, as normas de Direito de Família. Por quê? Porque realmente
essas uniões, ou essas associações, ou essas relações marcadas sobretudo
por afetividade, evidentemente não podem ser submetidas às normas que
regulam sociedades de ordem comercial ou de ordem econômica. De modo
que, na solução da questão posta, a meu ver e de todos os Ministros da
Corte, só podem ser aplicadas as normas correspondentes àquelas que, no
Direito de Família, se aplicam à união estável entre o homem e a mulher”.
Nesse sentido, vale transcrever a citada manifestação do então
Desembargador Cezar Peluso7 acerca da união estável (citação que constou,
inclusive, do amicus curiae que apresentei ao Tribunal em nome da
AIESSP – Associação de Incentivo à Educação e Saúde de São Paulo):

União estável. A jurisprudência de hoje, sensível à


irredutibilidade jurídica dessa misteriosa experiência humana, que é o
encontro amoroso do homem com a mulher, o qual jamais poderia ter
sido posto nos limites contáveis e mesquinhos da tipologia das
sociedades comerciais, já assentou que, dentro do alcance da STF 380,
cabe a hipótese da contribuição indireta, com igual importância na
mancomunhão. E não precisa seja esta entendida no significado
restrito de repercussão do trabalho doméstico, da direção educacional
dos filhos, ou de serviços materiais doutra natureza. Ao contrário.
Porque, de regra, um homem e uma mulher [leia-se, duas pessoas] não
se atraem, entregam nem vinculam, sob firme ou fugaz expectativa de
estabilidade e perseverança, compelidos por cálculos imediatos de
proveitos econômicos, senão para satisfazer anseios de realização
pessoal, ditados por imperativos inconscientes e profundos, a
cooperação decisiva é a pessoa do outro. E é ela, enquanto presença,
estímulo, amparo e refúgio, que, na aventura da parceria, possibilita,
ou facilita, todas as outras aquisições, inclusive de ordem patrimonial.
O jurídico, porque humano, consiste, pois, em que embora não sendo
mensurável como grandeza física, não deixe de se traduzir em valor
econômico, quando se cuide de partilhar os frutos de uma comunhão
de vidas, não os resultados financeiros de uma sociedade qualquer
(Des. Cezar Peluso – BolAASP 1765/396)

Na primeira edição desta obra8, afirmei que, muito embora o autor


tenha se referido exclusivamente à relação entre um homem e uma mulher,
suas ponderações aplicam-se inteiramente à questão das uniões
homoafetivas, o que, felizmente, impeliu seu autor a isto reconhecer, por
imperativo de coerência. Afinal, a substituição das expressões “o homem e
a mulher” por “duas pessoas” deixa claro que, por mais que o Ministro
Cezar Peluso não tenha se referido à união homoafetiva, suas palavras se
enquadram perfeitamente no caso destas. Até mesmo porque duas pessoas
do mesmo sexo não se unem em uma união homoafetiva visando o lucro ou
a mera construção patrimonial. Duas pessoas do mesmo sexo mantêm uma
relação amorosa porque visam obter, dessa união, a sua realização pessoal
por meio do amor, da convivência cotidiana, pretendendo dividir alegrias
nos momentos bons da vida, assim como amparo e refúgio nas adversidades
pelas quais todos passamos em dados momentos. Assim, a união
homoafetiva também não poderia nunca ter sido posta nos limites contáveis
e mesquinhos da tipologia das sociedades comerciais, na medida em que
duas pessoas do mesmo sexo não se atraem, entregam ou vinculam, sob
firme ou fugaz expectativa de estabilidade e perseverança compelidas por
cálculos imediatos de proveitos econômicos, senão para satisfazer anseios
de realização pessoal, ditados por imperativos inconscientes e profundos de
cooperação decisiva, estímulo, amparo e refúgio um para com o outro. Da
mesma forma que imperativos inconscientes de heterossexuais os fazem
unir-se amorosamente com uma pessoa de outro sexo, são os imperativos
inconscientes dos homossexuais que lhes fazem amar uma pessoa do
mesmo sexo. Afinal, seria muito mais fácil se o homossexual conseguisse
“se transformar” em heterossexual e manter uma relação amorosa com
alguém do sexo oposto – não sofreria discriminação nenhuma em razão de
sua relação e mesmo de sua orientação sexual, sendo que faria essa
“mudança” não por considerar sua homossexualidade “errada” (como não
é), mas simplesmente para fugir da discriminação homofóbica ainda
imposta pela sociedade em geral. Contudo, é impossível “trocar” de
orientação sexual. Uma pessoa simplesmente se descobre homo, hétero ou
bissexual, não havendo “opção” nesse sentido. A pessoa simplesmente sabe
que ama pessoas do mesmo sexo (homossexuais), pessoas de sexos diversos
(heterossexuais) ou então pessoas de ambos os sexos (bissexuais), o que
independe de sua vontade. Assim, percebe-se que a orientação sexual é uma
característica inerente da pessoa, que se une amorosamente a outra para
construir uma vida em comum, buscando a felicidade na relação a dois.
Nada mais. Por outro lado, se o amor da relação eventualmente acaba, aí
sim existe um interesse na justa divisão do patrimônio construído pelo
esforço comum, exatamente da mesma forma que ocorre na dissolução de
uniões heteroafetivas. Nestas, o homem e a mulher que se separam querem,
cada um, ficar com a parte do patrimônio comum que o Direito de Família
lhes garante, a saber: a divisão dos bens adquiridos na constância da união
amorosa, no caso da união estável, ou a divisão dos bens conforme o regime
de bens livremente escolhido pelo casal, no caso do casamento civil. Ou
seja, quando se forma uma união amorosa, os pares não estão nem um
pouco preocupados com o patrimônio que eventualmente irão construir, ou
ainda com o patrimônio um do outro, pois visam apenas uma comunhão
plena de vida e interesses, de forma pública, contínua e duradoura com o(a)
companheiro(a). Contudo, quando o amor de dita união termina, os pares
querem aquilo que é de seu direito, nos termos da legislação do Direito de
Família. Isso ocorre tanto com casais heteroafetivos como com casais
homoafetivos, sem nenhuma diferença nesse sentido. Nesse sentido, é
oportuna a colocação do Desembargador Luiz Felipe Brasil Santos9 a
respeito das uniões homoafetivas no sentido de que “a affectio que leva
estas duas pessoas a viverem juntas, a partilharem os momentos bons e
maus da vida é muito mais a affectio conjugalis do que a affectio societatis.
Elas não estão ali para obter resultados econômicos da relação, mas, sim,
para trocarem afeto, e esta troca de afeto, com o partilhamento de uma vida
em comum, é que forma uma entidade familiar. Pode-se dizer que não é
união estável, mas é uma entidade familiar à qual devem ser atribuídos
iguais direitos”. Dessa forma, a desconsideração do amor familiar existente
na união homoafetiva é uma postura absolutamente equivocada, tendo em
vista que ele não é desconsiderado quando se analisa a dissolução de uma
união estável heteroafetiva. Afinal, ambas as relações baseiam-se
exatamente na mesma premissa, qual seja a de formação de uma família, o
que independe da futura existência de filhos, razão pela qual merecem
exatamente o mesmo tratamento jurídico, sob pena de inconstitucionalidade
por afronta ao princípio da igualdade, dada a inexistência de motivação
lógico-racional que justifique a discriminação oriunda da negação do
Direito de Família aos casais homoafetivos.
Logo, percebe-se o flagrante descabimento da consideração da união
amorosa entre duas pessoas do mesmo sexo marcada pela publicidade,
continuidade, durabilidade e intuito de constituir família não inclusa nas
taxativas hipóteses de impedimentos matrimoniais que respeitem a
isonomia e a razoabilidade como mera “sociedade de fato” – além de
inconstitucionalidade por afronta ao princípio da pluralidade de entidades
familiares, implícito ao caput do art. 226 da CF/88.

2.1 Concubinato homoafetivo?


Dispõe o art. 1.727 do CC/2002 que: “As relações não eventuais entre
o homem e a mulher, impedidos de se casar, constituem concubinato”. Ante
esta redação, tem-se a mesma problemática já exposta no que tange ao
casamento civil e à união estável, qual seja: ou se entende que é cabível
uma interpretação extensiva ou uma analogia desse dispositivo, para
reconhecer o concubinato formado por pessoas do mesmo sexo, ou então se
parte do pressuposto de que foi criada uma “proibição implícita” a dita
relação, ante a expressão “o homem e a mulher”.
Com a decisão do STF na ADPF 132 e na ADI 4.277, de efeito
vinculante e eficácia erga omnes, que lhe dá força de lei, não se pode mais
negar a aplicação do Direito das Famílias às uniões homoafetivas não
matrimonializadas que atendam os requisitos de publicidade, continuidade,
durabilidade, intuito de constituir família e ausência de impedimentos
matrimoniais, impostos pelo art. 1.723 do CC/2002 para caracterização de
uma união estável – logo, só se pode falar em aplicação da teoria das
sociedades de fato para uniões homoafetivas que não atendam a tais
requisitos caracterizadores da união estável. Somente nesta hipótese pode-
se falar em concubinato homoafetivo ensejador da aplicação de tal teoria
(das sociedades de fato), ante ser inegável o cabimento de interpretação
extensiva ou analogia para reconhecer que o regime jurídico do art. 1.727
do CC/2002 é aplicável à união homoafetiva que não atenda os referidos
requisitos legais caracterizadores da união estável/entidade familiar
conjugal, ante termos aqui situações idênticas ou, no mínimo, análogas, na
medida em que, em ambos os casos, temos uma relação amorosa entre duas
pessoas que não se enquadram nos referidos requisitos legais
caracterizadores da união estável/entidade familiar conjugal.
Seria inócuo entender que o referido dispositivo legal não seria
aplicável às uniões homoafetivas, uma vez que o concubinato é considerado
historicamente uma figura jurídica análoga às sociedades comerciais de
fato, donde esse regime jurídico visa possibilitar a justa divisão do
patrimônio amealhado pelo casal em questão, sem que se reconheça que
constitui uma família “legítima”10 (ou seja, ignorando o amor familiar
existente na relação), o que pode ser aplicado a todas as pessoas
indiscriminadamente, sejam elas hétero ou homossexuais.
Ademais, não há fundamento lógico-racional que justifique a proibição
do uso da teoria das sociedades de fato para que se divida o patrimônio
oriundo de uniões homoafetivas que não atendam aos requisitos
caracterizadores da união estável (as que os atenderem terão direito ao
regime jurídico da união estável, ante a decisão do STF na ADPF 132 e na
ADI 4.277). Afinal, não pode o legislador pretender que um fato social não
receba nenhuma proteção do Direito mediante fundamentações arbitrárias,
mesmo porque, no caso aqui exposto, a não divisão do patrimônio na exata
proporção da contribuição de cada um dos consortes implica o
enriquecimento ilícito de um diante do outro, o que configuraria ato ilícito,
ante a ilegalidade do enriquecimento ilícito! Seria flagrantemente arbitrária
tal postura permissiva do enriquecimento ilícito apenas por se tratar de um
casal homoafetivo, donde inconstitucional por força do princípio da
isonomia, que veda diferenciações jurídicas arbitrárias. Afinal, conforme
exposto, a homossexualidade não constitui doença, desvio psicológico,
perversão nem nada do gênero, sendo tão somente uma das livres
manifestações da sexualidade humana, ao lado da heterossexualidade, do
que se depreende que não há motivo válido ante a isonomia que justifique a
discriminação aqui referida, qual seja a de negar qualquer efeito jurídico à
relação concubinária homoafetiva, enquanto se garantem efeitos jurídicos a
toda e qualquer união concubinária heteroafetiva. E, não havendo tal
motivação válida ante o preceito igualitário, é inconstitucional dita
discriminação em face do princípio da isonomia.
Ademais, com relação ao princípio da dignidade da pessoa humana,
também é ele aplicável para garantir igualdade de tratamento às uniões
entre pessoas do mesmo sexo que não atendam aos requisitos legais
caracterizadores da união estável (publicidade, continuidade, durabilidade,
intuito de constituir família e ausência de impedimentos matrimoniais),
relativamente ao concubinato heteroafetivo (que é equivalente ao
concubinato homoafetivo por se caracterizar nessa mesma circunstância
fática de não atendimento dos requisitos legais impostos pela legislação
para o reconhecimento da união não matrimonializada como entidade
familiar/união estável), uma vez que a isonomia é a única forma válida de
se relativizar a dignidade humana sem aderir a arbitrariedades de quem
elege a discriminação, e não há motivação válida ante o preceito isonômico
que justifique a relativização da dignidade de homossexuais em relação a
heterossexuais unicamente em razão de sua homossexualidade, na medida
em que tal menosprezo jurídico à união concubinária homoafetiva
relativamente à união concubinária heteroafetiva não é respaldado por uma
motivação lógico-racional que lhe sustente.

3. SÍNTESE CONCLUSIVA DO CAPÍTULO


Com a decisão do STF na ADPF 132 e na ADI 4.277, foi efetivado o
reconhecimento jurídico-familiar da união homoafetiva, ante o caráter
vinculante e erga omnes da referida decisão, que lhe dá força de lei. Assim,
descabe invocar a teoria das sociedades de fato para o caso de união
pública, contínua, duradoura e com o intuito de constituir família formada
entre duas pessoas do mesmo sexo não impedidas de se casar pela
legislação, por isso configura entidade familiar (conjugal) reconhecida
como tal pelo art. 1.723 do CC/2002, o qual o Supremo Tribunal Federal
interpretou como não proibitivo do reconhecimento da família conjugal
homoafetiva na citada decisão, aplicando interpretação conforme à
Constituição ao mesmo para dele afastar a validade de qualquer
interpretação em sentido contrário. Logo, só se pode falar em aplicação da
teoria das sociedades de fato para uniões homoafetivas que não atendam a
tais requisitos caracterizadores da união estável. Somente nesta hipótese
pode-se falar em concubinato homoafetivo ensejador da aplicação de tal
teoria (das sociedades de fato), ante ser inegável o cabimento de
interpretação extensiva ou analogia para reconhecer que o regime jurídico
do art. 1.727 do CC/2002 é aplicável à união homoafetiva que não atenda os
referidos requisitos legais caracterizadores da união estável/entidade
familiar conjugal, ante termos aqui situações idênticas ou, no mínimo,
análogas, na medida em que, em ambos os casos, temos uma relação
amorosa entre duas pessoas que não se enquadram nos referidos requisitos
legais caracterizadores da união estável/entidade familiar conjugal.
Nesse caso, há que se garantir à união concubinária homoafetiva a
mesma proteção jurídica conferida ao concubinato heteroafetivo, aplicando-
se a teoria das sociedades de fato para se resolver a questão da dissolução
de tais uniões homoafetivas, uma vez que o contrário implicaria o
enriquecimento ilícito de um dos ex-parceiros em relação ao outro. Afinal,
não há motivação lógico-racional que justifique a discriminação negativa
das uniões concubinárias homoafetivas em relação às uniões concubinárias
heteroafetivas, sendo arbitrário e, portanto, inconstitucional posicionamento
em sentido contrário por afronta aos princípios da isonomia e da dignidade
da pessoa humana, que vedam arbitrariedades no campo das diferenciações
jurídicas, o que ocorre com o menosprezo arbitrário de uma situação
relativamente a outra. Disso resulta que, comprovada em juízo a efetiva
contribuição do ex-parceiro à construção do patrimônio existente no
momento do término da união, tem ele o direito de receber a exata
porcentagem de sua contribuição, da mesma forma que ocorre na dissolução
judicial de uma sociedade comercial de fato e, igualmente, no término do
concubinato heteroafetivo.

1 GOMES, Orlando (“A revisão do direito civil”, 1955, p. 18) apud GIRARDI, Viviane.
Famílias Contemporâneas, Filiação e Afeto. A Possibilidade Jurídica da Adoção por
Homossexuais, 1.ª Edição, Porto Alegre: Editora Livraria do Advogado, 2005, p. 42.
2 Recomenda-se a leitura da obra de Rui Ribeiro Magalhães (Direito de Família no Novo
Código Civil Brasileiro, 2.ª Edição, São Paulo: Editora Juarez de Oliveira, 2003), na
qual o autor aponta para toda a evolução histórica do Direito das Famílias com o
passar dos séculos. Que fique registrado, contudo, que por motivos óbvios discordo do
mesmo quando aponta, como a doutrina em geral, que o casamento civil e a união
estável só poderiam ser contraídos por pessoas de sexos diversos mesmo nos dias
atuais, ante todo o exposto ao longo deste trabalho.
3 “Comprovada a existência de sociedade de fato entre os concubinos, é cabível sua
dissolução judicial, com a partilha do patrimônio adquirido pelo esforço comum.”
4 Cumpre ressaltar que, nesse caso (de ausência de provas da efetiva contribuição da
concubina para a construção do patrimônio do concubino), aplicava-se analogia com o
Direito do Trabalho, pagando-se à concubina uma indenização pelos “serviços
domésticos por ela prestados” ao homem.
5 Cf. voto do Ministro Marco Aurélio, pp. 10-11. Grifos nossos.
6 Cf. voto do Ministro Peluso, pp. 2-3.
7 PELUSO apud JÚNIOR, Nelson Nery e NERY, Rosa Maria Andrade. Código Civil
Comentado e Legislação Extravagante, 3ª Edição, São Paulo: Editora Revista dos
Tribunais, 2005, p. 801 – sem grifos e destaques nossos no original.
8 Cf. Capítulo 11, item “11. Descabimento da Desconsideração do Amor existente na
relação”.
9 In TJ/RS, Apelação Cível n.o 70013801592, 7a Câmara Cível, Relator Desembargador
Luiz Felipe Brasil Santos, julgada em 05/04/2006. Ainda que não se concorde aqui
com o não enquadramento da união homoafetiva no conceito de união estável
(posição esposada no julgado citado), o resultado prático é o mesmo: a concessão dos
mesmos direitos aos casais homoafetivos do que aqueles concedidos às uniões
estáveis heteroafetivas.
10 Apesar de essa terminologia (família “legítima” e “ilegítima”) não mais ser utilizada por
nossa legislação, esse foi claramente o intuito deste dispositivo legal, ou seja, vedar o
reconhecimento do Direito das Famílias às uniões concubinárias.
Capítulo 16

DA ADOÇÃO POR HOMOSSEXUAIS EM


CONJUNTO OU ISOLADAMENTE

“Quem trabalhou ou trabalha na Vara de Família ou em Infância e


Juventude sabe muito bem que a heterossexualidade dos pais não é
garantia de quase nada.” – Adauto Suannes1 (Desembargador
aposentado do Tribunal de Justiça do estado de São Paulo)

1. O DIREITO FUNDAMENTAL À PARENTALIDADE


Antes de ingressar no mérito propriamente dito da discussão atinente à
adoção por homossexuais, cumpre inicialmente tecer algumas colocações
sobre o direito fundamental à parentalidade.
Como é notório, a sociedade humana em geral considera a vida a dois
como a única forma de atingir a felicidade plena. Tanto isso é verdade que a
cultura humana foi construída ao longo dos milênios no sentido de
estimular a vida amorosa a dois que tenha, ainda, descendentes criados pelo
par, formando-se daí o modelo familiar culturalmente estimulado. Certa ou
errada, essa ideia permeia o inconsciente coletivo das pessoas em geral.
Ademais, mudou-se o paradigma da família contemporânea, de uma
que visava à filiação preponderantemente, para a criação de mais mão de
obra e de transmissão do patrimônio do homem para sua prole “de sangue”,
para uma que tem no amor a sua essência também com relação ao
tratamento dispensado aos filhos do casal2. Assim, verifica-se a construção
cultural de um arquétipo que coloca como situação ideal de vivência
humana a vida amorosa a dois que seja complementada pela existência de
filhos, sejam eles biológicos ou adotivos. Isso criou, com o passar dos
séculos, uma verdadeira consciência coletiva no sentido da
indispensabilidade desse modelo familiar para que se alcance a verdadeira
felicidade, no que se tornou uma ideia arraigada no pensamento das pessoas
que, consciente ou inconscientemente, buscam obter esse modelo para si no
intuito de serem felizes.
A força dessa consciência coletiva é evidente: cotidianamente somos
“bombardeados” pela mídia (televisiva em especial) – o que, no Brasil,
ocorre por meio das telenovelas consagradas em nosso horário nobre –, para
que alcancemos esse modelo. Em todas, sem exceção, temos a história de
duas pessoas que se apaixonam e, após superarem uma série de barreiras da
trama, terminam juntas e felizes. Ou seja: desde a infância somos
estimulados pela sociedade a, no futuro, buscarmos nossa alma gêmea,
casarmos e termos filhos, biológicos ou adotivos. Isso faz que as pessoas
em geral cresçam com essa ideia arraigada em suas mentes no sentido de
que só serão felizes se encontrarem seu par amoroso ideal e se tiverem
filhos, biológicos ou adotivos.
Esse pensamento já faz parte inerente da consciência das pessoas
adultas, que têm a absoluta certeza de que só serão felizes se conseguirem
se encaixar nesse modelo (ao menos de grande parte delas). Assim,
considerando que essas pessoas só atingirão a felicidade por meio do
exercício da parentalidade, então esta se configura como um direito
humano fundamental decorrente do princípio da dignidade da pessoa
humana. Ressalte-se, ainda, que esse direito fundamental é um direito de
personalidade de todas as pessoas (donde, obviamente, também das pessoas
homossexuais), que, como dito, só serão plenamente felizes se puderem ter
filhos ou adotar uma criança ou um adolescente. Afinal, se determinada
pessoa só puder atingir a felicidade pelo exercício da parentalidade, então
esta é uma faculdade que lhe deve ser garantida como sucedâneo da
dignidade humana constitucionalmente consagrada3, que garante a todos o
direito à felicidade.
Assim, negar o direito à parentalidade a determinado grupo de pessoas4
é uma verdadeira agressão psicológica a estas, pois essa negação
impossibilita que elas alcancem a felicidade plena, que inequivocamente
afronta os princípios da dignidade da pessoa humana (que garante o direito
à felicidade) e da igualdade (que proíbe discriminações arbitrárias como
essa). Percebe-se, portanto, a existência de um verdadeiro direito subjetivo
de homossexuais adotarem menores quando preencherem os requisitos
legais para tanto5.

2. DO DIREITO DOS MENORES A SEREM ADOTADOS


Outro aspecto que deve ser considerado quando se tem em mente a
adoção é o direito que toda criança e todo adolescente têm de ser adotados
quando não possuírem pais biológicos ou quando estes não forem aptos a
exercer essa função (como decorrência da perda do poder familiar, nas
hipóteses legalmente previstas), entendimento este decorrente do disposto
no art. 227 da CF/19886 e, especialmente, do art. 19 do Estatuto da Criança
e do Adolescente (ECA)7.
Como se vê, é dever do Estado garantir à criança e ao adolescente uma
criação condigna, que lhes garanta o desenvolvimento de todas as suas
aptidões, em um ambiente de amor, solidariedade, respeito, confiança e
todos os valores que configurem uma vida digna. É por isso que se diz que
o ordenamento jurídico-constitucional brasileiro concede o princípio da
integral proteção de crianças e adolescentes, justamente por visar
salvaguardá-los(as) de todo e qualquer mal em sua criação. Ora, se é dever
do Estado garantir a integral proteção de crianças e adolescentes, para que
tenham um desenvolvimento completo, então é seu dever garantir a eles(as)
que possam ser adotados(as) quando não dispuserem de nenhum familiar
consanguíneo vivo ou que não esteja apto a desenvolver tal função. Ou seja,
não sendo possível a manutenção da criança ou do adolescente em sua
família consanguínea (que constitui a preferência do legislador), é
imperiosa a sua colocação em um lar substituto, onde receba o amor, o
respeito e a solidariedade indispensável à criação de uma pessoa humana8.
Nesse sentido, é de se notar que a típica família heterossexual não é a
única forma possível de família e, como a realidade social comprovou ao
longo da História, muitas vezes a prole oriunda do ato sexual de um homem
com uma mulher não foi desejada/planejada, donde, também em muitos
casos, essa prole é abandonada pelos pais biológicos ou, ainda, estes se
mostram inaptos a criar seus descendentes. Esta última hipótese pode ser
exemplificada por aquelas pessoas heterossexuais que abusam de seus
filhos, seja sexualmente, seja pelo uso deles como mão de obra em vez de
lhes propiciar a devida educação e a devida afetividade.
Nesses casos de ausência de família biológica ou de inaptidão desta
para a criação da criança e/ou do adolescente, a garantia da adoção é
medida que se impõe para que se resguarde o melhor interesse do menor em
questão, visando garantir-lhe um ambiente propício ao pleno
desenvolvimento de suas aptidões, onde receba amor, respeito e
solidariedade e aprenda, inclusive, a importância desses valores. Assim,
mesmo que exista uma família biológica, se esta não se mostrar capaz de
garantir o pleno desenvolvimento do menor em questão, deverá ser este
colocado aos cuidados de alguém que o possa, visto que o elo materno-
paterno-filial não é um dado, e sim um construído, na medida em que o
amor fraterno que se sente pelos familiares só existe caso haja uma efetiva
contrapartida do outro familiar, em especial na relação materno-paterno-
filial, visto que o sentimento de filiação não é decorrente de um
determinismo biológico, emergindo, ao revés, de uma construção afetiva
permanente, oriunda da convivência, da responsabilidade dos pais e,
principalmente, da responsabilidade destes para com seus filhos9.
Assim, no que tange à escolha entre a colocação da criança e/ou do
adolescente em um lar onde terá todas as condições necessárias ao seu total
desenvolvimento e a sua manutenção sob a atual tutela estatal, é evidente
que a primeira constitui o melhor interesse da criança e/ou do adolescente
em questão. Afinal, é notório que o atual aparelhamento estatal é
extremamente precário no que tange à estrutura concedida a menores
abandonados por seus pais ou cujos pais tenham sido destituídos do poder
familiar. A verdade é que o Estado brasileiro atual não tem condições de
garantir o total desenvolvimento de crianças e adolescentes, a menos que
possibilite a uma pessoa ou a um casal que o adote e lhe possibilite a
criação adequada10.
Dessa forma, ao aduzir que “é dever da família, da comunidade, da
sociedade em geral e do Poder Público assegurar com absoluta prioridade a
efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde (...) e à convivência
familiar e comunitária”, o art. 4.o do ECA garante um direito subjetivo de
crianças e adolescentes institucionalizados(as) serem adotados quando
existam pessoas aptas a exercerem a parentalidade11. Assim, quando um
homossexual ou um casal homoafetivo se dispõe(m) a adotar uma criança
ou um adolescente, está(ão), na verdade, pleiteando a efetivação de dois
direitos fundamentais, quais sejam: o seu, de exercício da parentalidade
para que possa(m) ser feliz(es), e o do menor em questão, de ser criado de
uma forma digna, que lhe garanta o total desenvolvimento de suas aptidões
em um ambiente de amor, respeito e solidariedade.
Contudo, o que os opositores da adoção por homossexuais solteiros ou
por casais homoafetivos alegam é que a homossexualidade dos pais poderia
“prejudicar” o menor em questão, o que afrontaria o princípio da integral
proteção do menor. Mas as colocações nesse sentido são totalmente
equivocadas, pois partem de premissas falsas, como se demonstrará adiante.

3. A ADOÇÃO POR HOMOSSEXUAIS E A INEXISTÊNCIA DE


PREJUÍZOS AO MENOR POR SER CRIADO EM UM LAR
HOMOAFETIVO
A adoção por casais homoafetivos e por homossexuais solteiros é um
assunto que ainda causa muita polêmica, tendo em vista que os seus
opositores sustentam, sem nenhuma prova, baseando-se em puro
subjetivismo, que a homossexualidade dos pais adotivos poria em risco o
livre desenvolvimento da sexualidade do menor, que seria “influenciado”,
ainda que indiretamente, por seus pais adotivos a se “tornar”
homossexual12. Ou seja, o que se alega é que a criação de uma criança ou
de um adolescente por um casal homoafetivo traria “prejuízos” à sua
formação, uma vez que, ante a “ausência” da figura paterna ou materna
(dependendo do tipo de casal – se masculino ou feminino), a criança teria
“prejudicada” a sua formação, donde se conclui que os defensores dessa
tese entendem que tais menores teriam uma “tendência” a se tornarem
homossexuais diante da homossexualidade de seus pais. Contudo, essa tese
peca pela falta de uma série de elementos lógicos. Em primeiro lugar, fica
evidente que seus defensores continuam a atestar que a heterossexualidade
seria a única expressão “sadia” da sexualidade humana, e
consequentemente que a homossexualidade seria uma doença, um desvio
psicológico, uma perversão ou algo do gênero. Afinal, o fato de tanto se
preocuparem no fato de o menor vir a se tornar homossexual e não
heterossexual só vem a demonstrar que eles não aceitam a naturalidade da
homossexualidade, demonstrando todo o seu preconceito a respeito do
tema. Mas, conforme amplamente demonstrado, tal posicionamento é
tecnicamente equivocado, uma vez que a Organização Mundial da Saúde,
por meio de sua Classificação Internacional de Doenças 10, em sua revisão
de 1993 (CID 10/1993), consagrou a homossexualidade como uma das
livres manifestações da sexualidade humana, no que foi seguida em nosso
país pela Resolução 1/1999 do Conselho Federal de Psicologia e precedida
pela Associação Americana de Psiquiatria, que o declara desde a década de
1970. Assim, a primeira premissa de que parte esse entendimento contrário
à adoção por homossexuais cai por terra porque se baseia em dados
cientificamente equivocados e infundados.
Por outro lado, se realmente fosse indispensável à heterossexualidade
de um indivíduo que ele fosse criado por um casal heterossexual, então
como explicar: (a) a existência de homossexuais filhos de casais
heteroafetivos? Como explicar, partindo-se daquela teoria, que crianças
criadas por casais heteroafetivos venham a se tornar homossexuais, já que
foram criadas no ambiente considerado como o “adequado”? Afinal, os
homossexuais em geral foram criados por uma família heteroafetiva
tradicional; (b) a existência de filhos heterossexuais criados por famílias
monoparentais? Se realmente fosse indispensável ao desenvolvimento da
heterossexualidade do menor que ele fosse criado por um homem e uma
mulher, como explicar a heterossexualidade do menor criado por apenas um
indivíduo? Não estaria aí faltando também uma das “condições” necessárias
ao desenvolvimento do infante, qual seja a figura paterna/materna ausente?
Ora, se os defensores daquela pseudotese alegam que um casal homoafetivo
prejudicaria o menor pelo fato de não fornecer a figura do sexo oposto,
então, por uma questão de lógica, deveriam defender que esse suposto
prejuízo também ocorreria na criação de alguém apenas por um homem ou
uma mulher, ainda que heterossexual; (c) a existência de filhos
heterossexuais criados por casais homoafetivos? Novamente, se realmente
fosse indispensável ao desenvolvimento da heterossexualidade do menor
que ele fosse criado por um homem e uma mulher, como explicar a
heterossexualidade de um menor criado por um casal homoafetivo? Esse
fato comprova cabalmente o quão descabida é a teoria que aqui se refuta, na
medida em que, por suas premissas, seria impossível a existência de pessoas
heterossexuais criadas, desde crianças, por casais homoafetivos.
Resta claro o quão frágil é aquela teoria quando tenta justificar a
proibição da adoção por homossexuais e por casais homoafetivos. Primeiro
porque a homossexualidade é uma das livres manifestações da sexualidade
humana, sendo tão normal quanto a heterossexualidade, conforme o
posicionamento oficial da ciência médica mundial a respeito. Segundo
porque inúmeros são os casos de filhos homossexuais criados por casais
heteroafetivos e de filhos tanto homossexuais quanto heterossexuais criados
por pessoas solteiras e mesmo por casais homoafetivos, donde se percebe
claramente que a sexualidade daquele(s) que cria(m) o menor em nada
influencia no desenvolvimento sexual deste. Tão frágil é aquela teoria que
defendê-la é o mesmo que afirmar que uma criança criada por um casal cujo
pai é muito mais velho que a mãe teria uma tendência a se relacionar com
alguém com idade muito maior ou menor do que a sua, já que este é o
modelo com o qual convive diariamente. Como se vê, é uma alegação
ilógica, incoerente, absurda e que não possui provas que a embasem,
justificando-se, unicamente, no preconceito ou, no mínimo, na ignorância
ou subjetivismo daqueles que a esposam.
Assim, o que importa no que tange à decisão sobre o deferimento de
um pedido de adoção é a capacidade do(s) requerente(s) de propiciar à
criança e/ou ao adolescente um ambiente familiar onde lhe sejam
concedidos e ensinados os valores do amor, do respeito e da solidariedade,
conforme inúmeros estudos já comprovaram13. Isso porque diversas
pesquisas sociais já demonstraram que a orientação sexual daqueles que
criam o menor não tem a mínima influência no desenvolvimento da
sexualidade deste, donde não passam de ignorância ou de preconceito as
colocações que usualmente se fazem em sentido contrário, conforme
descreve o magistrado Roger Raupp Rios14, cujas conclusões aqui se
adotam:

De fato, nas disputas judiciais envolvendo a temática de nosso


estudo, tem-se alegado contra a possibilidade de adoção por
homossexuais argumentos de variada matiz, tais como (1) perigo
potencial de a criança sofrer violência sexual, (2) o risco de
influenciar-se a orientação sexual da criança pela do adotante (3) a
incapacidade de homossexuais serem bons pais e (4) a possível
dificuldade de inserção social da criança em virtude da orientação
sexual do adotante.
A respeito do perigo potencial que sofre a criança adotada em
face da violência sexual por parte do adotante, constatou-se, em
pesquisa social, que 95% destes casos provêm de heterossexuais, dado
que põe por terra qualquer dúvida acerca da seriedade da colocação
[a pesquisa referida é a “Hidden Victims: the sexual abuse of
children”, exposta no relatório da “ILGA – International Lesbian and
Gay Association”, relatório este denominado “World Legal Survey” –
que significa, em tradução livre: “Vítimas Escondidas: o abuso sexual
de crianças”, da “Associação Internacional de Lésbicas e Gays”, na
“Pesquisa Jurídica Mundial”].
Com relação à influência da orientação sexual do adotante na
definição da identidade sexual da criança, estudos têm mostrado que
filhos de pais homossexuais não têm probabilidade maior de se
tornarem homossexuais que os filhos de pais heterossexuais (...) [o
mesmo relatório aponta para diversos estudos, como “Children in
Lesbian and Single-Parents Households: Psychosexual and Psychiatric
Appraisal”, que, em tradução livre, significa “Crianças em Lares
Lésbicos e de Pais Solteiros: Avaliação Psicossexual e Psiquiátrica”].
Acerca da incapacidade de homossexuais exercerem com
habilidade e sucesso a paternidade, existem também vários estudos
comprovando o erro na suposição que gays e lésbicas seriam pais
inadequados ou seriam incapazes de bem desempenhar essas funções
[como o de Harris e Turner, “Gay and Lesbian Parents”, que significa
“Pais Gays e Lésbicas”].
(…)
Por fim, a ideia de que a orientação sexual do adotante acarretaria
dificuldades insuperáveis à criança quando de sua inserção foi referida
acima, quando se mencionaram os estudos de Kevin F. McNeill, que
demonstram inexistir diferenças significativas quanto à inserção na
comunidade e a orientação sexual dos pais [estudo “Lack of
Differences Between Gay/Lesbian and Heterosexual Parents: A
Review of Literature”; “A Ausência de Diferenças entre Pais
Gays/Lésbicas e Heterossexuais: Uma Retrospectiva da Literatura].
(...) Ideias desse tipo já foram utilizadas, por exemplo, para impedir
casamentos entre pessoas de raças diferentes, para justificar
segregação em escolas de brancos e negros, para impedir a criação e
a adoção de crianças de raça, cor ou etnia diversa da dos adotantes.
Práticas que, evidentemente, não se podem admitir numa sociedade
que não deseje o racismo e a exclusão social como princípios.

Nesse sentido, como bem dito pelo Ministro João Otávio de Noronha
em seu voto concordante no REsp 889.852/RS, que confirmou decisão
gaúcha concessiva de adoção a um casal homoafetivo: “precisamos parar
com essa falsidade, quiçá hipocrisia, de que elas podem fazer mal aos
meninos. As famílias de pais héteros têm nos dado seguidos exemplos de
maus-tratos às crianças. As periferias nos mostram pais maltratando e
estuprando as próprias filhas. Então, não se pode supor que o fato de as
adotantes serem duas mulheres ou que vivam uma relação homoafetiva
possa causar algum dano. Dano causa a manutenção do menor no abrigo ou
dano causará ao interesse das crianças a não adoção. A adoção melhora, e
muito, as condições de assistência médica e social; isso está positivado no
acórdão recorrido”.

3.1 A omissão legal e os princípios da isonomia e da proteção integral


do menor: adoção por homossexuais e por casais homoafetivos.
STJ, REsp 889.852/RS
Em posição simplista, os opositores da adoção por casais homoafetivos
afirmam que a lei não a permitiria, ante o teor literal do art. 1.618,
parágrafo único, do CC/200215. Isso porque, como o referido dispositivo
traz a expressão “cônjuges ou companheiros”, tem-se entendido que
somente as pessoas civilmente casadas ou que constituam união estável
poderiam adotar conjuntamente um menor e, como os dispositivos legais
que se referem ao casamento civil e à união estável utilizam a expressão “o
homem e a mulher”, os opositores da adoção por casais homoafetivos
afirmam que esta estaria vedada pelo não reconhecimento do casamento
civil homoafetivo ou mesmo da união estável homoafetiva. Ou seja,
novamente alega-se que a omissão legal impediria a adoção por casais
homoafetivos, visto que haveria uma suposta “proibição implícita”.
Sem entrar no mérito da possibilidade jurídica do casamento civil e da
união estável entre casais homoafetivos, que são juridicamente possíveis no
ordenamento jurídico brasileiro (remetendo-se o leitor, para tanto, aos
capítulos respectivos), o que já derruba essa tese, é de se notar (novamente)
que não existem “proibições implícitas”, ante o claro teor do art. 5.º, II, da
CF/1988, que aduz que ninguém será obrigado a fazer ou a deixar de fazer
algo senão em virtude de lei, donde, como a lei não proíbe a adoção por
casais homoafetivos, a omissão legal não pode ser vista como um óbice a
ela. Deve-se verificar qual é o valor protegido pela lei da adoção para
verificar se, no caso concreto, pode ela ser deferida a casais homoafetivos
pela interpretação extensiva ou pela analogia. Afinal, ainda que se entenda
que não seria possível o casamento civil e a união estável por casais
homoafetivos, é inegável que se encontram eles em uma situação idêntica
ou, no mínimo, análoga à dos casais heteroafetivos, por manterem uma
relação pautada no amor familiar, aquele caracterizado por uma comunhão
plena de vida e interesses, de forma pública, contínua e duradoura, sendo a
única diferença o sexo de um dos membros do casal.
Com efeito, a lei da adoção visa garantir que um menor que não possua
parentes aptos a criá-lo seja reintegrado à sociedade em uma família que
possa lhe propiciar a educação adequada e o amor necessário a todo ser
humano em desenvolvimento. Nesse sentido, a família juridicamente
protegida contemporânea é formada pelo amor que vise a uma comunhão
plena de vida e interesses, de forma pública, contínua e duradoura (que não
se enquadre entre os taxativos impedimentos matrimoniais do art. 1.521 do
Código Civil). Assim, é inequívoco que um casal homoafetivo pode criar
um menor de forma a lhe propiciar um ambiente de amor, respeito e
solidariedade, tendo as mesmas condições de um casal heteroafetivo para
tanto, não havendo nenhuma diferença nesse sentido, pois a orientação
sexual dos pais é irrelevante ao desenvolvimento da orientação sexual e da
personalidade do filho, sendo absolutamente irracional a eventual negação
ao direito de adoção por casais homoafetivos16.
Afinal, o princípio da isonomia veda discriminações arbitrárias, sem
qualquer correlação lógico-racional entre o critério de diferenciação erigido
e a discriminação pretendida, além de estar vedada também qualquer
diferenciação sem correlação concreta com os valores constitucionais. No
caso aqui discutido, a discriminação pretendida pelos opositores da adoção
por casais homoafetivos é a negação desse direito humano fundamental à
parentalidade, sendo o critério discriminador a orientação sexual do
adotante (porque, para eles, o casal heteroafetivo poderia adotar, ao passo
que o casal homoafetivo não poderia). Contudo, considerando que os
opositores à adoção por casais homoafetivos não trazem qualquer
motivação válida ante a isonomia (leia-se: prova cientificamente
comprovada) que justifique a proibição da adoção por casais formados por
pessoas do mesmo sexo, não há como justificá-la juridicamente, pois a
homossexualidade é tão normal quanto a heterossexualidade, conforme o
posicionamento da ciência médica mundial a respeito, além de não influir a
homoafetividade do casal que cria o menor no desenvolvimento da
sexualidade deste, assim como a heteroafetividade de um casal não influi na
sexualidade do menor por eles criado17, sendo ainda absolutamente
indiferente o menor vir a se descobrir homo, hétero ou bissexual,
configurando inequívoco preconceito aceitar como natural apenas a
heterossexualidade das pessoas.
Nesse mesmo sentido, abordando a inexistência de proibição legal à
adoção por homossexuais no Estatuto da Criança e do Adolescente (o que
igualmente ocorre no atual Código Civil), afirma José Luiz Mônaco da
Silva18, Promotor de Justiça do Estado de São Paulo:

O Estatuto da Criança e do Adolescente não contém dispositivo


legal tratando da adoção pleiteada por homossexuais. Por causa dessa
omissão, é possível que alguns estudiosos entendam inviável a adoção
por homossexuais. A nosso ver o homossexual tem o direito de adotar
um menor, salvo se não preencher os requisitos estabelecidos em lei.
Aliás, ‘se um homossexual não pudesse adotar uma criança ou um
adolescente, o princípio da igualdade perante a lei estaria abertamente
violado. E mais: apesar da omissão legal, o ECA não veda, implícita
ou explicitamente a adoção por homossexuais, o que importa, no
substancial, é a idoneidade moral do candidato e a sua capacitação
para assumir os encargos decorrentes de uma paternidade (ou
maternidade) adotiva’.

Contudo, o que os opositores da adoção por casais homoafetivos


alegam, nesse âmbito, é que o princípio da integral proteção do menor
prevalece sobre qualquer outro, no que supostamente restaria proibida dita
adoção19. Ou seja, alegam que a homossexualidade dos adotantes traria
prejuízos ao menor, pois não configuraria um ambiente familiar “propício”
e não traria, igualmente, reais vantagens ao menor, sendo justificada,
portanto, dita vedação. Todavia, essa tese resta absolutamente equivocada,
uma vez que, novamente, parte do pressuposto de que a homossexualidade
seria uma conduta reprovável, uma doença, desvio psicológico, perversão
ou algo do gênero, o que já foi rechaçado pela ciência médica mundial.
Ademais, diversas pesquisas já comprovaram que a criação de um
menor por um casal homoafetivo não lhe causa nenhum prejuízo oriundo da
orientação sexual do casal que o cria. Nesse sentido, cabe citar o estudo The
Lack of Differences Between Gay/Lesbian and Heterosexual Parents: A
Review of the Literature20, de Kevin F. McNeill, que faz um impressionante
apanhado de pesquisas nesse sentido21, donde fica evidente a completa
ausência de prejuízos a crianças e adolescentes pelo simples fato de serem
criados(as) por casais homoafetivos.
Por oportuno, em uma posição que acaba por compilar o resultado dos
estudos referidos, no sentido de que inexiste qualquer embasamento fático-
empírico-científico a apontar para algum prejuízo na criação de crianças e
adolescentes em lares formados por casais homoafetivos, a Associação
Americana de Psiquiatria afirmou, em 1995, que “não há um único estudo
que tenha constatado que as crianças de pais homossexuais e de lésbicas
teriam qualquer prejuízo significativo em relação às crianças de pais
heterossexuais. Realmente, as evidências sugerem que o ambiente
doméstico promovido por pais homossexuais e lésbicas é tão favorável
quanto os promovidos por pais heterossexuais para apoiar e habilitar o
crescimento ‘psicológico das crianças’. A maioria das crianças, em todos
os estudos, respondeu bem intelectualmente e ‘não demonstrou
comportamentos egodestrutivos prejudiciais à comunidade’. Os estudos
também revelam isso nos termos que dizem respeito às relações com os
pais, autoestima, habilidade de liderança, ego-confiança, flexibilidade
interpessoal, como também o bem-estar emocional das crianças que vivem
com pais homossexuais não demonstrava diferenças daqueles encontrados
com seus pais heterossexuais”22.
Ou seja, quando se sopesam os princípios em questão (isonomia,
dignidade humana e proteção integral da criança e do adolescente) com
relação ao caso concreto (adoção por casais homoafetivos), há que se ter
em mente o atual entendimento científico do tema para julgar a questão.
Dessa forma, como o atual estágio da ciência médica aponta para o fato de
ser a homossexualidade uma das livres manifestações da sexualidade
humana, assim como a heterossexualidade, assim como concluiu que não há
nenhum prejuízo a um menor pelo simples fato de ter sido criado por um
casal homoafetivo, não se pode utilizar a homossexualidade do casal como
justificativa hábil a obstar a adoção por casais homoafetivos, sendo que o
mesmo se pode dizer da adoção por homossexuais individualmente
considerados exatamente pelas mesmas razões, o que significa que a
negativa da adoção pela mera homossexualidade da pessoa ou
homoafetividade do casal configura discriminação arbitrária,
preconceituosa, que afronta a isonomia23.
Assim, absolutamente pertinentes as palavras do Ministro João Otávio
de Noronha em seu voto concordante no REsp 889.852/RS, que confirmou
decisão gaúcha concessiva de adoção a um casal homoafetivo: “é preciso
chamar a atenção para o seguinte: a lei não proíbe, ela garante o direito
tanto entre os homoafetivos, como entre os héteros. Apenas lhes assegura
um direito, não há vedação. Não há nenhum dispositivo que proíba, até
porque uma pessoa solteira pode adotar. Então, não estamos aqui violando
nenhuma disposição legal, mas construindo em um espaço, em um vácuo a
ser preenchido ante a ausência de norma, daí a força criadora da
jurisprudência. É exatamente nesse espaço que estamos atuando. Não
estamos violando nenhum dispositivo. O Código Civil garante: homem ou
mulher, casados podem. Mas não diz que é vedado em momento algum.
Então, é preciso entender normas de garantia e diferenciá-las de normas de
proibição. E não há nenhuma norma de proibição. Na minha visão, se
estamos falando sobre aquilo que é melhor para a criança, é esse
entendimento que deve prevalecer. Salvo entendimento contrário dos meus
Pares, mas penso que devemos olhar sempre o interesse do menor.
Portanto, sinto-me muito tranquilo para decidir aqui sem nenhuma
sensação de invasão do espaço legislativo. É muito importante deixar
positivado” (grifos nossos).

3.2 A omissão legal e os princípios da dignidade da pessoa humana e da


proteção integral do menor: a adoção por homossexuais e por
casais homoafetivos. STF, ADPF 132 e ADI 4.277
Na mesma linha exposta no item anterior, é inequívoco que a dignidade
humana das pessoas homoafetivas resta também afrontada pela proibição da
adoção. Isso porque o princípio da dignidade da pessoa humana garante a
todos o direito à felicidade, ao passo que as pessoas que querem adotar uma
criança e/ou um adolescente só poderão atingir esse sublime estado de
espírito se puderem exercer totalmente o seu direito fundamental à
parentalidade, o que supõe necessariamente o deferimento de seu pedido de
adoção (que só pode ser indeferido pelo descumprimento das exigências
legais, que serão constitucionais se pautadas pela lógica e pela
racionalidade). Pode-se dizer, ainda, que resta afrontada a dignidade do
menor que seria beneficiado por dita adoção, pois está sendo negado a ele o
direito de ser criado por uma família com plenas condições para tanto pelo
argumento preconceituoso e, portanto, equivocado de que sua criação seria
“prejudicada” se essa adoção fosse deferida.
Nesse sentido, é de se lembrar que a dignidade humana significa
proteção ao ser humano pela sua mera condição humana, só podendo ser ela
relativizada na existência de motivação lógico-racional que isso justifique,
o que inexiste no caso aqui discutido. In casu, a discriminação em debate
coloca os homossexuais em situação de menor dignidade em relação aos
heterossexuais e lhes tira o direito de alcançar a plena felicidade sem a
existência de uma motivação válida perante a isonomia que isso justifique.
Assim, é inconstitucional a relativização da dignidade de homossexuais
visando impedi-los de adotar menores, tendo em vista a inexistência de
motivação lógico-racional que isso justifique, assim como (e especialmente)
pela ausência de prejuízos aos menores por eles criados em virtude do fato
de serem criados por um casal homoafetivo.
Dessa forma, antes da decisão do STF na ADPF 132 e na ADI 4.277, já
se podia dizer que, ante a lacuna da legislação a respeito, é cabível uma
interpretação extensiva ou uma analogia para permitir que homossexuais
solteiros24 e casais homoafetivos25 adotem crianças e adolescentes, por
força dos princípios da isonomia e da dignidade da pessoa humana, e dada a
absoluta ausência de prejuízos ocasionados por essa adoção ao menor, que,
muito pelo contrário, passará a receber amor, solidariedade, respeito,
confiança e todos os valores que configuram uma vida digna, em
atendimento ao seu direito subjetivo a ser adotado.
Por outro lado, com a decisão do STF na ADPF 132 e na ADI 4.277,
que incluiu a união homoafetiva no conceito constitucional de união estável
ou, como preferem alguns, a reconheceu como entidade familiar com
igualdade de direitos com a união estável heteroafetiva, tem-se que: (i)
reconhecida a união homoafetiva como união estável quando atendidos os
requisitos legais do art. 1.723 do CC/02, não há mais lacuna normativa, pois
casais homoafetivos se enquadram no conceito técnico-jurídico de
companheiros, que designa a relação conjugal de união estável, bem como
no conceito técnico-jurídico de cônjuges no que tange àqueles que tiveram
seu pedido de habilitação em casamento civil ou de conversão de união
estável em casamento civil deferido; (ii) o entendimento alternativo de que
a união homoafetiva foi reconhecida não como união estável, mas como
entidade familiar autônoma com igualdade de direitos relativamente à união
estável heteroafetiva também gera, por consequência lógica, o
reconhecimento do direito de adoção por casais homoafetivos que atendam
aos requisitos legais da união estável, já que este é um direito legalmente
reconhecido a casais heteroafetivos em união estável.

3.3 Da afronta ao princípio da proteção integral ao menor decorrente


da proibição da adoção por casais homoafetivos
Ante o demonstrado até aqui, fica claro que o princípio da integral
proteção de crianças e adolescentes é igualmente afrontado pela negativa do
direito de adoção conjunta por pessoas homossexuais solteiras, pois tal
negativa não permite a eles serem criados por pessoas que se encontram
dispostas a lhes ofertar amor, respeito, solidariedade e a possibilitar, assim,
o pleno desenvolvimento de suas potencialidades quando nenhuma outra
pessoa se dispôs a tanto. Tal negativa, ao contrário, condena-o a uma
infância e/ou a uma adolescência infeliz, oriunda da absoluta incapacidade
do Estado de lhes garantir uma criação digna, como exige a Constituição.
No que tange aos casais homoafetivos, há igualmente uma afronta ao
princípio da integral proteção de crianças e adolescentes no indeferimento
de seu pedido de adoção conjunta26, na medida em que o deferimento da
adoção apenas a um dos companheiros homoafetivos pode vir a trazer uma
série de prejuízos à criança e/ou ao adolescente em questão27. Isso porque,
sendo deferida a adoção somente a um deles, somente este terá um vínculo
jurídico com o menor, e o seu companheiro homoafetivo não estará
obrigado a prestar auxílio financeiro ao adotado, assim como este
companheiro que não consta como pai adotivo poderá encontrar
dificuldades para conseguir manter um contato e uma convivência com a
criança ou o adolescente em questão na eventualidade do término de sua
relação amorosa com o pai adotivo28. Afinal, pode o ascendente adotivo se
opor judicialmente a tanto, alegando que seu ex-companheiro não teria
direito legal a tanto pelo fato de não constar como pai adotivo da criança
e/ou do adolescente em questão, recusando-se arbitrariamente a permitir as
visitas ao menor, como a prática forense na área de família, com constantes
disputas de guarda entre ex-casais heteroafetivos comprovam
cotidianamente.
Analisem-se os dois casos. No primeiro, a afronta ao melhor interesse
da criança e/ou do adolescente fica evidente, na medida em que seu pai
adotivo pode, após a separação, não ter condições financeiras de manter o
mesmo padrão de vida que o menor em questão tinha quando da união
homoafetiva por ele mantida com seu ex-companheiro. Assim, a criança
e/ou o adolescente em questão estará certamente prejudicado(a) nessa
situação, tendo em vista que, se constasse como filho(a) adotivo(a) do ex-
companheiro do pai, poderia dele pleitear alimentos para manter seu antigo
padrão de vida. Ademais, além da questão dos alimentos, no caso de
falecimento do ex-companheiro do pai adotivo, a criança ou o adolescente
em questão não terá direito à herança, em nova afronta a seu melhor
interesse. Outrossim, é de se mencionar que o simples deferimento da
guarda do menor em questão ao ex-companheiro homoafetivo do pai
adotivo em decorrência da morte deste é uma solução meramente paliativa,
que não atende ao melhor interesse da criança e/ou do adolescente em
questão, visto que não forma um vínculo jurídico permanente e indissolúvel
dele com aquele que detém a guarda29.
Já no segundo caso, o prejuízo do menor não é de caráter econômico,
mas psicológico. Afinal, a criança e/ou o adolescente em questão é
criado(a) tanto por seu pai adotivo quanto pelo companheiro deste, o que
acaba criando fortes laços de afeto com ambos. Assim, na ocorrência do
término da relação homoafetiva do pai adotivo, a criança e/ou o adolescente
em questão sofrerá muito caso lhe seja negado o direito de manter contato e
convivência com o ex-companheiro do pai adotivo, da mesma forma que
ocorre quando, na separação de um casal heteroafetivo, aquele que mantém
a guarda do menor nega ao ex-companheiro/cônjuge dito direito de contato
e convivência. Aqui o tema recai sobre a denominada filiação socioafetiva,
que é aquela decorrente da criação de uma criança ou de um adolescente
por uma pessoa que não é seu pai biológico ou adotivo, e na qual o menor
em questão acaba considerando dita pessoa como tal pelo fato de ter sido
criado por ela, como se filho(a) fosse. Afinal, o amor devido a um pai ou a
uma mãe não é decorrente de meros laços biológicos, mas de laços de
afetividade decorrentes da criação de dita criança ou de dito adolescente por
aquela pessoa.
Assim, caso aquele que conste como pai adotivo da criança ou do
adolescente em questão se recuse, por algum motivo injustificado, a
permitir que seu ex-companheiro mantenha contato com seu(s) filho(s)
adotivo(s), ter-se-á uma afronta ao princípio da integral proteção da criança
e/ou do adolescente em questão, tendo em vista que este prega pela garantia
do melhor interesse deste(a), que no caso é o de garantir o contato dele com
o ex-companheiro de seu pai adotivo, ante a inequívoca filiação
socioafetiva decorrente do período em que com aquele conviveu.
Deve-se ter em mente, ainda, que uma pessoa homossexual procura por
uma relação amorosa estável e plena da mesma forma que uma pessoa
heterossexual, donde, ainda que seja deferida a adoção a um homossexual
solteiro, que não esteja em uma relação homoafetiva no momento do pedido
até o deferimento do mesmo, é inequívoco que eventualmente dita pessoa
se relacionará com outra do mesmo sexo, mantendo com ela uma relação
amorosa pública, contínua e duradoura – afinal, não é pelo não
reconhecimento do direito a uma adoção conjunta que menores deixarão de
ser criados por casais homoafetivos30. O único prejudicado será o menor,
que não terá vínculo jurídico com ambos os seus pais, mas apenas com um
deles...
Por outro lado, cumpre deferir a adoção a casais homoafetivos pela
obviedade de que terão crianças e adolescentes uma vida muito melhor se
criados(as) por um casal disposto a lhes fornecer amor, respeito e
solidariedade, aprendendo, inclusive, a importância desses valores, do que
se criados em instituições públicas, que por melhor que sejam jamais
poderão fornecer um ambiente propício ao desenvolvimento da
individualidade da pessoa em crescimento31.
Assim, é imperioso o deferimento de eventual pedido de adoção
formulado pelo companheiro do pai adotivo em questão, após comprovada
a estabilidade da referida união, para garantir o melhor interesse da criança
ou do adolescente em questão, decorrente da filiação socioafetiva que
certamente decorrerá dessa situação.

3.3.1 Da inconstitucionalidade da utilização do preconceito alheio como


“justificativa” para a proibição da adoção por casais homoafetivos
Uma pseudojustificativa comumente utilizada pelos opositores da
adoção por casais homoafetivos é a de que o menor em questão sofreria
com as “brincadeiras” preconceituosas de seus colegas de escola em razão
de ser criado por duas pessoas do mesmo sexo em vez de sê-lo por duas
pessoas de sexos diversos. Alegam que não se poderia colocar o desejo do
casal homoafetivo em questão em sobreposição ao direito do menor de ter
uma criação sem o sofrimento oriundo desse tipo de preconceito. Contudo,
o fato de o menor poder vir a, eventualmente, sofrer discriminação por parte
de seus colegas no ambiente escolar (e qualquer outro) também não pode
ser considerado argumento válido para proibir a adoção por casais
homoafetivos. Isso porque, ao fazer isso, estará o operador do Direito
erigindo o preconceito alheio como critério válido de discriminação
jurídica, o que é inadmissível, a teor do art. 3.o, IV, da CF/1988, que veda
expressamente discriminações jurídicas pautadas pelo preconceito.
Ademais, o preconceito (juízo de valor irracional, arbitrário) não pode,
em hipótese alguma, ser utilizado como paradigma para restringir os
direitos de indivíduo nenhum, uma vez que é esse preconceito exatamente
que se combate por meio do princípio da isonomia32. A partir do momento
em que se exigem fundamentos lógicos e racionais para que uma
discriminação seja juridicamente válida (como o faz o preceito isonômico),
é inconcebível que se aceite o preconceito, que é juízo de valor
desarrazoado, como critério de discriminação.
Ou seja, tentar justificar uma inexistente vedação ao direito de adoção
por casais homoafetivos com a possível discriminação que dito menor
poderá sofrer na escola importa em uma inaceitável inversão de valores, no
sentido de que se estará punindo o casal homoafetivo (ao não lhe deferir o
direito à adoção) por causa do preconceito alheio, o que é absurdo e
inadmissível. Ora, a atitude errada e condenável é a das crianças e
adolescentes que agem com preconceito, não a do casal homoafetivo em
manter uma união pautada pelo amor familiar. Em situações como essas, a
escola deve proibir esse tipo de comentário preconceituoso e punir os
alunos que o façam, da mesma forma que pune aqueles que incitam brigas e
discórdias em geral no ambiente escolar. Os menores em questão devem ser
educados a respeitar as pessoas pelo que elas são, devendo ser advertidos e,
no caso de reincidência, punidos por suas condutas preconceituosas.
Se nem mesmo o juiz de Direito, que tem a obrigação de ser imparcial
e neutro na análise do litígio, reconhecer que o preconceito não pode, em
nenhuma hipótese, ser juridicamente aceito, então nunca a sociedade
superará seus preconceitos, uma vez que o Judiciário é o órgão que declara
aquilo que é lícito e aquilo que não é – e, no caso das leis, qual
interpretação é constitucional e qual não é.
Um exemplo a citar é o fato de que, até hoje, as pessoas não veem com
bons olhos as uniões estáveis. Por mais que se reconheça o status jurídico-
familiar das uniões amorosas não consagradas pelo casamento civil, sempre
é esse casal indagado sobre se não irá consagrar sua união pelo matrimônio,
o que só vem provar que, mesmo com a Constituição permitindo
expressamente a união estável, não deixou ela de ser considerada inferior ao
casamento civil pela comunidade em geral33, que acaba direta ou
indiretamente pressionando os companheiros a se casarem. Pois bem,
imagine o leitor se o constituinte de 1988 concordasse com tal afirmação –
nesse caso, a união estável não seria ainda hoje expressamente protegida e
seria considerada concubinato, ficando fora do Direito das Famílias.
Veja-se, ainda, o caso das uniões amorosas de brancos e negros. Até
meados do século XX, o preconceito contra negros era de uma magnitude
incomensurável, e casais ditos inter-raciais sofriam forte preconceito social
– nos EUA, configurava inclusive crime o chamado casamento inter-racial
em diversos estados, o que só foi superado com o precedente Loving v.
Virginia, da Suprema Corte daquele país. Será que o leitor que não aceita a
adoção por casais homoafetivos entende também que, no passado, a adoção
não deveria ser concedida a casais ditos inter-raciais em função das
“brincadeiras” que o adotado poderia sofrer em função do preconceito
contra seus pais? Em ambos os casos (adoção por casais homoafetivos e
inter-raciais), é evidente que o preconceito alheio não pode justificar a
proibição da adoção, na medida em que o preconceito é justamente o que se
visa combater por meio da isonomia.
Tais observações demonstram que o Direito, por meio do Legislativo e
do Judiciário, tendo a isonomia e a dignidade da pessoa humana como
bases, deve acompanhar o fato social independentemente do que pensa ou
deixa de pensar parte da sociedade a respeito do tema (ainda que seja
majoritária esta parte), donde fica evidente que o preconceito social contra a
homossexualidade não pode ser usado como justificativa para proibir a
adoção por casais homoafetivos. Nesse sentido, se o Legislativo não se
digna a elaborar e/ou aprovar uma lei que permita expressamente a adoção
por pessoas do mesmo sexo, cumprindo assim com sua obrigação de
elaborar uma legislação isonômica, então o Judiciário, por meio da
interpretação extensiva ou da analogia, que decorrem da isonomia, deve
fazê-lo, pois o menor não terá prejuízo algum em seu desenvolvimento pelo
fato de ser criado por um casal homoafetivo. Caso contrário, jamais
evoluirá o tratamento jurídico dispensado às pessoas.
Isso não importa em violação do princípio da separação de poderes,
tendo em vista que o próprio Poder Legislativo previu a analogia (assim
como a interpretação extensiva) como forma de integração do ordenamento
jurídico nos casos de omissão legal, por meio dos arts. 4.º da LINDB e 126
do CPC. Afinal, o texto normativo já existe, protegendo o valor em questão
(no caso, a adoção), sendo que foi citado apenas um dos fatos que se
enquadram neste valor quando, em verdade, outros fatos também se
enquadram na hipótese normativa já aprovada pelo Legislativo. Por outro
lado, se o próprio Poder Legislativo previu essa possibilidade de integração
jurídica, então não há que se falar em afronta ao princípio da separação dos
poderes. Trata-se, em suma, de integração do ordenamento, supressão de
lacunas pelas técnicas legalmente previstas, e não de “legislação positiva”
por parte do Judiciário.
Note-se, por oportuno, que a Corte Interamericana de Direitos
Humanos não permite a consideração do preconceito alheio para fins de
definição ou retirada da guarda ou custódia de crianças e adolescentes,
consoante decidido no paradigmático caso Atala Riffo y niñas vs. Chile,
segundo o qual “o argumento da possível discriminação social não era
adequado para cumprir com a finalidade declarada de proteger o interesse
superior das filhas”34, tendo em vista a proibição da discriminação por
orientação sexual implícita à Convenção Interamericana de Direitos
Humanos e a necessidade de provas concretas de prejuízos a crianças e
adolescentes decorrente da conduta concreta (e não presumida com base em
estereótipos) para que se possa retirar sua guarda ou custódia de alguém,
pois “A Corte considera que, para justificar uma diferença de tratamento e
a restrição de um direito não pode servir de sustentação jurídica a alegada
possibilidade de discriminação social, provada ou não, a que poderiam
enfrentar os menores de idade por condições da mãe ou do pai. Se é certo
que certas sociedades podem ser intolerantes a condições como a raça, o
sexo, a nacionalidade ou a orientação sexual de uma pessoa, os Estados não
podem utilizar isto como justificações para perpetuar tratamentos
discriminatórios. Os Estados estão internacionalmente obrigados a adotar as
medidas que forem necessárias ‘para fazer efetivos’ os direitos
estabelecidos na Convenção, como estipula o artigo 2o de dito instrumento
interamericano, razão pela qual devem propender, precisamente, a
enfrentar as manifestações intolerantes e discriminatórias, com o fim de
evitar a exclusão ou negação de uma determinada condição”35 – decisão
esta explicitada adiante neste capítulo, em tópico específico.

3.3.2 Da possibilidade jurídica do registro civil de um(a) menor como


filho(a) de um casal homoafetivo. STJ, REsp 889.852/RS (e TJRS, AC
70013801592)
Quanto à questão do registro civil do menor criado por um casal
homoafetivo, não há nada na legislação que impeça a duas pessoas do
mesmo sexo de constarem como pais ou mães de uma pessoa. Nesse
sentido, já decidiu o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul (Apelação
Cível 7001380159236), em conclusão com a qual se concorda
integralmente:

Por fim, de louvar a solução encontrada pelo em. magistrado


Marcos Danúbio Edon Franco, ao determinar na sentença que no
assento de nascimento das crianças conste que são filhas de L.R.M. e
Li.M.B.G., sem declinar a condição de pai ou mãe.

Concorda-se plenamente com a conclusão. Afinal, a parentalidade é um


conceito primordialmente socioafetivo, não necessariamente biológico.
Uma pessoa não exerce a função paterna ou materna pelo simples fato de
ser o(a) genitor(a) da criança ou adolescente em questão: a parentalidade
somente existirá de fato caso haja amor, carinho, compreensão,
solidariedade e respeito pelo menor, além da concessão de educação e da
imposição de limites a este, características necessárias a uma boa criação
que independem da orientação sexual da pessoa ou do fato de se tratar de
um casal homoafetivo ou heteroafetivo, já que ambos têm as mesmas
condições de criar adequadamente um menor. Anote-se, por oportuno, que
essa decisão foi confirmada pelo Superior Tribunal de Justiça, no ano de
2009 – REsp 889.852/RS, DJe de 10.08.2010 (já analisado no capítulo 12).

3.4 A Jurisprudência sobre o tema


Ante todas as considerações supraexpostas, a Jurisprudência tem-se
posicionado favoravelmente à adoção por homossexuais e, inclusive, por
casais homoafetivos. Tem-se reconhecido que a mera homossexualidade da
pessoa não impede a adoção, sendo que é determinante, tão somente, que os
relatórios psicológicos e sociais demonstrem que o homossexual ou o casal
homoafetivo em questão tenha(m) condições de criar o menor37.
Merece destaque a posição do magistrado carioca Siro Darlan, que
também entende que são os relatórios social e psicológico que devem ter
influência na definição da existência ou não de condições de adoção por
parte do casal pretendente38. Afirmando garantir a Constituição a isonomia,
aponta corretamente que resta vedada qualquer forma de preconceito ou
discriminação arbitrária, donde não se justifica a manutenção de uma
criança ou adolescente em abrigo estatal – que notoriamente não tem
condições de garantir o seu pleno desenvolvimento – pela mera
homossexualidade ou conjugalidade homoafetiva do(s) adotante(s). Aponta
o magistrado que é inadmissível não deferir a adoção quando os laudos
social e psicológico não tragam motivos relevantes a isto justificar, em
especial quando a alternativa seja a permanência do menor em uma
instituição, na qual não terá uma nova chance de ter uma família, para
sucessivas transferências para outros estabelecimentos de segregação e
tratamento coletivo, sem qualquer chance de desenvolvimento de sua
individualidade e sua cidadania, até que por força da evasão forçada ou
espontânea venha a transformar-se em mais um habitante das ruas e
logradouros públicos com grandes chances de residir nas Escolas de
Formação de “marginais” em que se transformaram os atuais “Presídios de
menores” e, quem sabe, atingir ao posto máximo com ingresso no Sistema
Penitenciário...39
Ou seja, também neste caso concreto, os relatórios social e psicológico
demonstraram que o melhor interesse do menor em questão consistia na sua
adoção pelo pleiteante homossexual, uma vez que os critérios a serem
considerados independem da orientação sexual do pleiteante à adoção, que
em nada influenciará na criação do menor. Mas o ponto fundamental da
referida sentença foi a genialidade das colocações do magistrado, Dr. Siro
Darlan, que demonstrou cabalmente que as insurgências dos fiscais que se
opuseram ao deferimento do pedido de adoção basearam-se apenas no
preconceito destes, consubstanciado na equivocada premissa de que a
homossexualidade do adotante, isoladamente considerada, poderia trazer
prejuízos ao menor em questão. Mas o “interessante” dessas alegações
contrárias à adoção por homossexuais e por casais homoafetivos é o fato de
que seus defensores não trazem provas que corroborem suas afirmações,
que são baseadas unicamente nos preconceitos, ou seja, em arbitrário
subjetivismo. Mas, como bem ressaltado pelo magistrado, a partir do
momento em que o ordenamento jurídico brasileiro consagra o princípio da
igualdade, que veda discriminações arbitrárias e exige, assim, que aqueles
que defendem uma discriminação jurídica provem de forma lógica e
racional a sua pertinência, então o preconceito alheio não pode servir de
fundamento a justificar dita discriminação. Assim, foi absolutamente
correta a decisão que deferiu o pedido de adoção formulado.
Dessa sentença, o Ministério Público recorreu, basicamente reiterando
suas alegações pelo que se depreende do acórdão respectivo, que negou
provimento a tal apelo, sob o fundamento de que a homossexualidade do
adotante, orientação sexual constitucionalmente garantida, não pode servir
de empecilho à adoção de crianças e adolescentes, se não demonstrada ou
provada qualquer manifestação ofensiva ao decoro e capaz de deformar o
caráter do adotado40 – como inexistiu no caso concreto. Como se percebe,
os desembargadores que analisaram a apelação do Ministério Público em
questão mantiveram o posicionamento esposado na sentença impugnada,
como não poderia deixar de ser. Ora, será mesmo que o Ministério Público
em questão entende que seria o melhor interesse do menor em questão que
fosse arrancado do lar que ele tanto ama, da criação de uma pessoa que
igualmente o ama como filho, da escola de bom nível no qual foi
matriculado para ser colocado em sucessivos abrigos de menores sem a
menor estrutura para lhe garantir o completo desenvolvimento de suas
aptidões?
Fica evidente da análise deste caso que o Ministério Público agiu
baseado unicamente em seu preconceito, consubstanciado na equivocada
premissa de que a homossexualidade seria prejudicial ao desenvolvimento
da criança e/ou do adolescente que com ela tenha contato. Afinal, não
trouxe nenhuma prova que corroborasse suas alegações em nenhuma das
instâncias, donde a arbitrariedade, ou seja, o subjetivismo de suas
alegações, que não têm o condão de justificar discriminações jurídicas em
decorrência do princípio da igualdade constitucionalmente consagrado,
como bem demonstrado pelo magistrado de Primeira Instância em sua
sentença e reiterado pelos desembargadores de Segundo Grau (pois, como
se diz na esfera contenciosa, alegar sem provar é o mesmo que não alegar).
Analise-se outro aresto:

Adoção. Elegibilidade admitida, diante da idoneidade do adotante


e reais vantagens para o adotando. Absurda discriminação, por
questão de sexualidade do requerente, afrontando sagrados princípios
constitucionais e de direitos humanos e da criança. Apelo improvido,
confirmada a sentença positivada na Vara da Infância e Juventude
(TJ/RJ, Apelação Cível 14.979/1998, 17.ª Câmara Cível, Relator
Desembargador Severiano Aragão. Julgamento realizado em
21.01.1999)41.

Com relação a esse acórdão, que se mantém na mesma linha dos


anteriores, é interessante verificar o teor do parecer do Ministério Público
no sentido do deferimento da habilitação do homem homossexual em
questão à adoção, parecer este discordante da posição das procuradorias de
Primeira Instância, que recorreram da sentença; referido parecer, favorável
à adoção, afirmou que deixar um menor desde o nascimento entregue à
solidão dos orfanatos, sem ninguém para estancar-lhe o pranto na hora da
dor ou do medo, entregá-lo ao desprezo público ao completar a maioridade,
até que venha a necessitar cometer crimes para sobreviver e,
consequentemente, venha a aumentar a população carcerária é uma postura
flagrantemente descabida e afrontosa do melhor interesse do menor em
questão, donde se deve permitir que a caridade social determine a justiça a
ser aplicada ao caso42.
Vale citar, ainda, acórdão paradigmático do Tribunal de Justiça do Rio
Grande do Sul a respeito do tema:

Apelação cível. Adoção. Casal formado por duas pessoas de


mesmo sexo. Possibilidade.
Reconhecida como entidade familiar, merecedora da proteção
estatal, a união formada por pessoas do mesmo sexo, com
características de duração, publicidade, continuidade e intenção de
constituir família, decorrência inafastável é a possibilidade de que seus
componentes possam adotar. Os estudos especializados não apontam
qualquer inconveniente em que crianças sejam adotadas por casais
homossexuais, mais importando a qualidade do vínculo e do afeto que
permeia o meio familiar em que serão inseridas e que as liga aos seus
cuidadores. É hora de abandonar de vez preconceitos e atitudes
hipócritas desprovidas de base científica, adotando-se uma postura de
firme defesa da absoluta prioridade que constitucionalmente é
assegurada aos direitos das crianças e dos adolescentes (art. 227 da
Constituição Federal). Caso em que o laudo especializado comprova o
saudável vínculo existente entre as crianças e as adotantes. Negaram
provimento. Unânime (TJ/RS, Apelação Cível 70013801592, 7.a
Câmara Cível, Relator Desembargador Luís Felipe Brasil Santos,
julgada em 05.04.2006 – sem destaque no original).

Anote-se, por oportuno, que essa decisão foi confirmada pelo Superior
Tribunal de Justiça, no ano de 2009 – REsp 889.852/RS, DJe de 10.08.2010
(já analisado no capítulo 12).
Assim, verifica-se que não há óbices ao melhor interesse do menor na
sua criação por um casal homoafetivo – tal criação, ao contrário, garante às
crianças e aos adolescentes que se encontram aos cuidados do Estado
Brasileiro o seu pleno desenvolvimento, por meio de sua criação em um
ambiente de amor, respeito e solidariedade, da mesma forma que seriam se
o fossem por um casal heteroafetivo, sem nenhuma diferença nesse sentido.

3.5 A posição da Corte Interamericana de Direitos Humanos. Caso


Atala Riffo y niñas vs. Chile
No paradigmático caso Atala Riffo y niñas vs. Chile, foi proferida pela
Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) decisão em 24 de
fevereiro de 2012 na qual se afirmou que embora seja um legítimo interesse
estatal promover o princípio do interesse superior da criança, a mera
referência ao mesmo sem provas de prejuízos a crianças e adolescentes
decorrentes da conduta concreta da pessoa em questão por conta de sua
orientação sexual não pode ser uma base válida para se negar a guarda ou
tutela a homossexuais, por conta do princípio da não discriminação por
orientação sexual implícito à Convenção Interamericana de Direitos
Humanos. Analisemos os argumentos da referida decisão.
Segundo a CIDH, “o objetivo geral de proteger o princípio do interesse
superior da criança é, em si mesmo, um fim legítimo e é, ademais,
imperioso (...) [para] propiciar o desenvolvimento dela”, contudo, “a Corte
constata que a determinação do interesse superior da criança, em casos de
cuidado e custódia de menores de idade deve ser buscado a partir da
avaliação dos comportamentos parentais específicos e seu impacto negativo
no bem-estar e no desenvolvimento da criança segundo o caso [concreto],
os danos ou riscos reais e provados, e não especulativos ou imaginários.
Portanto, não podem ser admissíveis as especulações, presunções,
estereótipos ou considerações generalizadas sobre características pessoais
dos pais ou preferências culturais a sobre certos conceitos tradicionais da
família”, razão pela qual “a Corte Interamericana observa que embora o
‘interesse superior da criança’ seja, em abstrato, um fim legítimo, a mera
referência ao mesmo sem provar, concretamente, os riscos ou danos que
poderiam decorrer da orientação sexual da mãe para as filhas não pode
servir de medida idônea para a restrição de um direito protegido como o de
poder exercer todos os direitos humanos sem discriminação alguma pela
orientação sexual da pessoa”, pois “O interesse superior da criança não
pode ser utilizado para amparar a discriminação contra a mãe ou o pai
pela orientação sexual de qualquer deles. Desse modo, o julgador não pode
tomar em consideração esta condição social como elemento para decidir
sobre a guarda ou custódia”43.
Assim, entende a Corte que “Uma determinação a partir de presunções
infundadas e estereotipadas sobre a capacidade e idoneidade parental de
poder garantir e promover o bem-estar e desenvolvimento da criança não é
adequada para garantir o fim legítimo de proteger o interesse superior da
criança. A Corte considera que não são admissíveis as considerações
baseadas em estereótipos sobre a orientação sexual, a saber, pré-concepções
sobre os atributos, as condutas ou características das pessoas homossexuais
ou o impacto que estes presumivelmente possam ter sobre as filhas e os
filhos” (item 111), pois “A Corte considera que, para justificar uma
diferença de tratamento e a restrição de um direito não pode servir de
sustentação jurídica a alegada possibilidade de discriminação social,
provada ou não, a que poderiam enfrentar os menores de idade por
condições da mãe ou do pai. Se é certo que certas sociedades podem ser
intolerantes a condições como a raça, o sexo, a nacionalidade ou a
orientação sexual de uma pessoa, os Estados não podem utilizar isto como
justificações para perpetuar tratamentos discriminatórios. Os Estados estão
internacionalmente obrigados a adotar as medidas que forem necessárias
‘para fazer efetivos’ os direitos estabelecidos na Convenção, como estipula
o artigo 2o de dito instrumento interamericano, razão pela qual devem
propender, precisamente, a enfrentar as manifestações intolerantes e
discriminatórias, com o fim de evitar a exclusão ou negação de uma
determinada condição”44, na medida em que [e isso é fundamental],
embora se argumente que “o princípio do interesse superior da criança
possa se ver afetado pelo risco de uma rejeição da sociedade, a Corte
considera que um possível estigma social decorrente da orientação sexual
da mãe ou do pai não pode ser considerado um ‘dano’ válido para os efeitos
da determinação do interesse superior da criança”, pois “Se os juízes que
analisam casos como o presente constatam a existência de discriminação
social, é totalmente inadmissível legitimar essa discriminação com o
argumento de proteger o interesse superior do menor de idade. No presente
caso, o Tribunal ressalta que, ademais, a senhora Atala não teria porque
sofrer as consequências de que em sua comunidade presumivelmente as
filhas poderiam ter sido discriminadas devido à sua orientação sexual”,
razão pela qual “a Corte conclui que o argumento da possível discriminação
social não era adequado para cumprir com a finalidade declarada de
proteger o interesse superior das filhas”45.
Segundo a Corte, “Relativamente à proibição de discriminação por
orientação sexual, a eventual restrição de um direito exige uma
fundamentação rigorosa e de muito peso46, invertendo-se, ademais, o ônus
da prova, o que significa que cabe à autoridade demonstrar que a sua
decisão não teria um propósito nem um efeito discriminatório47. Isso é
especialmente relevante em um caso como o presente, tendo em conta que a
determinação de um dano deve sustentar-se em evidência técnica e em
ditames de peritos e investigadores para fins de estabelecer conclusões que
não resultem em decisões discriminatórias”, donde “é o Estado que tem o
ônus da prova para mostrar que a decisão judicial debatida se baseou na
existência de um dano concreto, específico e real ao desenvolvimento das
meninas. Para isso é necessário que nas decisões judiciais sobre estes temas
se definam de maneira específica e concreta os elementos de conexão e
causalidade entre a conduta da mãe ou pai e o suposto impacto no
desenvolvimento do filho. Do contrário, corre-se o risco de fundamentar a
decisão em um estereótipo (supra, itens 109 e 111) vinculado
exclusivamente à pré-concepção, descabida, de que os filhos criados por
pares homossexuais necessariamente teriam dificuldades para definir seus
papéis de gênero ou sexuais”48.
Assim, “A Corte Interamericana considera necessário realçar que o
alcance do direito à não discriminação por orientação sexual não se limita à
condição de ser homossexual em si mesma, pois inclui sua a expressão e as
consequências necessárias para o projeto de vida das pessoas
[homossexuais]. Sobre o tema, no Caso Laskey, Jaggard y Brown Vs. Reino
Unido, o Tribunal Europeu de Direitos Humanos estabeleceu que tanto a
orientação sexual quanto o seu exercício constituem aspectos relevantes da
vida privada49. A respeito do tema, o perito Wintemute afirmou que ‘a
jurisprudência do Tribunal Europeu deixa claro que a orientação sexual
também inclui a conduta. Isso significa que a proteção contra a
discriminação baseada na orientação sexual não se relaciona unicamente
com um tratamento menos favorável pela pessoa ser lésbica ou gay.
Também abarca a discriminação porque um indivíduo atua segundo sua
orientação sexual ao optar participar de atividades sexuais consentidas em
âmbito privado ou decidir iniciar uma relação de parceria de longo prazo
com uma pessoa do mesmo sexo’50”. Com efeito, para a CIDH, “O âmbito
de proteção do direito à vida privada tem sido interpretado em termos
amplos pelos tribunais internacionais de direitos humanos ao assinalarem
que ele vai além do direito à privacidade. Segundo o Tribunal Europeu, o
direito à vida privada abarca a identidade física e social, o desenvolvimento
pessoal e a autonomia pessoal de uma pessoa, assim como seu direito de
estabelecer e desenvolver relações com outras pessoas e seu entorno social,
incluindo o direito de estabelecer e manter relações com pessoas do mesmo
sexo51. Ademais, o direito de manter relações pessoais com outros
indivíduos, no marco do direito à vida privada, se estende à esfera pública e
profissional52”, donde “a orientação sexual de uma pessoa também se
encontra ligada ao conceito de liberdade e a possibilidade de todo ser
humano de se auto-determinar e escolher livremente as opções e
circunstâncias que dão sentido à sua existência, conforme suas próprias
opções e convicções53. Portanto, “A vida afetiva com o cônjuge ou
companheiro(a) permanente, aonde se encontram, logicamente, as relações
sexuais, é um dos aspectos principais do âmbito ou círculo da
intimidade”54. Afinal, segundo a Suprema Corte de Justiça do México, “A
orientação sexual de uma pessoa, como parte de sua identidade pessoal, (é)
um elemento relevante no projeto de vida que se tem e que, como qualquer
pessoa, inclui o desejo de ter uma vida em comum com outra pessoal do
mesmo ou de distinto sexo55”56.
Assim, a CIDH “considera que dentro da proibição de discriminação
por orientação sexual se deve incluir, como direitos protegidos, as condutas
no exercício da homossexualidade. Ademais, se a orientação sexual é um
componente essencial da identidade da pessoa57, não era razoável exigir da
senhora Atala que postergasse seu projeto de vida e de família. Não se pode
considerar como reprovável juridicamente, em nenhuma circunstância, o
fato de a senhora Atala ter tomado a decisão de refazer sua vida. Ademais,
não se encontra provado nenhum dano que haja prejudicado as três filhas.
(...) De outra parte, diversas sentenças de tribunais internacionais58
permitem concluir que em decisões judiciais relativas à custódia de
menores de idade, a consideração da conduta parental só é admissível
quando existam provas específicas que demonstram concretamente o
impacto direto negativo da conduta parental no bem-estar e
desenvolvimento do filho ou da filha. Isto relativamente à necessidade de
aplicar um escrutínio maior quando a decisão judicial se relaciona com o
direito à igualdade de grupos populacionais tradicionalmente discriminados
como é o caso dos homossexuais (supra párr. 92 y 124)”59.
Ressaltou a Corte, ainda, que “os peritos Uprimny e Jernow citaram e
aportaram uma série de informes científicos, considerados como
representativos e autorizados nas ciências sociais, para concluir que a
convivência de menores de idade com pais homossexuais não afeta, por si,
seu desenvolvimento emocional ou psicológico. Ditos estudos concordam
no sentido de que: i) as atitudes de mães ou pais homossexuais são
equivalentes às das mães ou pais heterossexuais; ii) o desenvolvimento
psicológico e o bem-estar emocional dos filhos ou filhas criados por pais
gays ou mães lésbicas são comparáveis aos das filhas ou filhos criados por
pais heterossexuais; iii) a orientação sexual é irrelevante para a formação de
vínculos afetivos dos filhos ou filhas com seus pais; iv) a orientação sexual
da mãe ou pai não afeta o desenvolvimento dos filhos em matéria de gênero
relativamente à sua compreensão de si mesmos como homens ou mulheres,
seu comportamento quanto a papéis de gênero e/ou sua orientação sexual; e
v) os filhos e as filhas de pais homossexuais não são mais afetados pelo
estigma social que outros filhos60. Consequentemente, a perita Jernow
mencionou várias decisões de tribunais nacionais que se referiram a
investigações científicas como prova documental para afirmar que o
interesse superior da criança não é vulnerado pela homossexualidade dos
pais61”. Nesse sentido, “A Corte ressalta que a ‘Associação Americana de
Psicologia’, mencionada pela perita Jernow, classificou os estudos
existentes sobre a matéria como ‘impressionantemente consistentes em seu
fracasso em identificar algum déficit no desenvolvimento das crianças
criadas em um lar gay ou lésbico. (...) as capacidades de pessoas gays ou
lésbicas como pais e o resultado positivo para seus filhos não são áreas
onde os investigadores científicos mais autorizados dissentem’62.
Consequentemente, a perita concluiu que: ‘quando a especulação sobre um
futuro dano potencial para o desenvolvimento da criança é refutado de
maneira sólida por toda a investigação científica existente, dita especulação
não pode estabelecer as bases probatórias para a determinação da
custódia”63.
Por todos esses fundamentos, o Chile foi condenado pela CIDH pela
discriminação que perpetrou contra a Sra. Atalla, consubstanciada na
retirada da guarda de suas filhas por conta de sua mera orientação sexual
(homoafetiva). Como se vê, trata-se de julgado paradigmático que veda que
a mera orientação sexual da pessoa seja usada como critério para justificar a
perda de guarda ou custódia de crianças e adolescentes de homossexuais, o
qual exige, ao contrário, que sejam apresentadas provas de que a conduta
concreta da pessoa homossexual em questão seria prejudicial à criança e do
adolescente, e que não aceitou estereótipos ou preconceitos sociais sobre a
homossexualidade para tanto. A meu ver, a mesma argumentação pode ser
utilizada para se impedir a retirada de guarda de bissexuais, travestis e
transexuais por conta unicamente da orientação sexual dos primeiros ou da
identidade de gênero dos últimos.

4. INEXISTÊNCIA DE VANTAGEM DE UM CASAL


HETEROAFETIVO EM RELAÇÃO A UM CASAL
HOMOAFETIVO EM RAZÃO DA MERA DIVERSIDADE DE
SEXOS DO PRIMEIRO
Outro tema relevante é o atinente a uma hipotética questão, atinente à
existência de um casal homoafetivo e de um casal heteroafetivo
interessados na adoção do mesmo menor, casais estes que se encontrem
com condições análogas para criação do menor. Neste caso, dado o enorme
preconceito ainda existente em face da homossexualidade e da
homoafetividade, é de se indagar se, nesta hipótese, um casal heteroafetivo
sempre teria uma “vantagem” em relação a um casal homoafetivo, no caso
de um “empate” nas condições para criação do menor (financeira, moral
etc.) pela mera diversidade de sexos do mesmo. Contudo, inexiste essa
pseudovantagem para fins de adoção, configurando puro preconceito
entendimento em sentido contrário.
Com efeito, a homoafetividade do casal não traz nenhum prejuízo ao
menor, sendo a homogeneidade ou diversidade de sexos do casal questão
irrelevante em sua criação. Da mesma forma, o preconceito que o menor
possa vir a sofrer de terceiros não pode ser utilizado como paradigma para a
decisão, na medida em que o preconceito alheio jamais poderá ser critério
juridicamente válido para diferenciações. Nesta hipótese, deve-se verificar a
capacidade do casal homoafetivo em lidar com a situação, amparando o
menor adotado, explicando-lhe que se trata de preconceito alheio e, enfim,
dando-lhe todo o suporte necessário para enfrentar a situação e com ela
evoluir – da mesma forma que se o menor sofresse preconceito por diversas
outras questões, como sua cor de pele, religião, condição financeira etc.
Afinal, é fato que crianças e adolescentes podem ser extremamente
maldosos com aqueles mais tímidos/inibidos pelas mais variadas questões –
a homoafetividade dos pais seria apenas mais uma delas, sem nenhuma
diferença nesse sentido. A homogeneidade ou diversidade de sexos do casal
são questões que devem ser tidas como irrelevantes, não podendo ser
utilizadas como paradigmas válidos de diferenciação jurídica neste ponto.
Assim, a mera homogeneidade ou diversidade de sexos do casal jamais
poderá ser utilizada como fundamento para se dar preferência à adoção por
um casal heteroafetivo, configurando preconceito entendimento em sentido
contrário.

5. SÍNTESE CONCLUSIVA DO CAPÍTULO


O livre exercício da parentalidade é um direito humano fundamental
decorrente do princípio da dignidade da pessoa humana, tendo em vista que
as pessoas que pleiteiam a adoção só serão plenamente felizes se lhes for
permitido esse direito. Por outro lado, também é direito fundamental dos
menores que não possuem familiares aptos a criá-los o de serem criados por
pessoas que lhes deem amor, respeito e solidariedade, também em virtude
da dignidade humana.
Por outro lado, a criação de um menor por um homossexual solteiro ou
casal homoafetivo não lhe trará nenhum prejuízo, tendo em vista que a
orientação sexual daquele(s) que cria(m) o menor em nada influi na
orientação sexual do mesmo, não passando de preconceito a colocação em
sentido contrário, ante a ausência de prova científica que corrobore com
este argumento, mesmo porque a homossexualidade é tão normal quanto a
heterossexualidade, conforme o posicionamento da ciência médica mundial
a respeito do tema. Diversos estudos sociais e psicológicos já comprovaram
tais colocações.
Dessa forma, não há que se falar em conflito entre o princípio da
integral proteção de crianças e adolescentes e o direito de homossexuais de
poderem adotar, uma vez que não há prejuízo nenhum à criança ou ao
adolescente por ser criado(a) por duas pessoas do mesmo sexo. Ao
contrário, afronta dito princípio o não reconhecimento do direito à adoção
conjunta por homoafetivos, tendo em vista que se estará negando ao menor
a criação em um ambiente de amor, respeito e solidariedade.
Ademais, considerando que a realidade fática demonstra que muitas
crianças e adolescentes são criados(as) por casais homoafetivos (pois o não
reconhecimento do direito destes à adoção conjunta não impede que eles
criem menores no mundo fático), sendo eles oficialmente tidos
juridicamente como filhos de apenas um dos membros do casal, estão essas
crianças e adolescentes em situação desprotegida em relação àqueles que
constam como filhos de ambos os companheiros, uma vez que não terão o
companheiro de seu pai biológico/adotivo (ou a companheira de sua mãe
biológica/adotiva, conforme o caso) obrigação legal nenhuma em criá-lo, o
que por óbvio afronta o melhor interesse do menor.
Outrossim, o fato de parte da sociedade não ver com bons olhos a
criação de menores por casais homoafetivos não pode servir de fundamento
para a proibição da adoção por estes, pois se estará justificando uma
discriminação jurídica com base em um preconceito social, em uma
inversão de valores inaceitável em um Estado que se considere
Democrático e Social de Direito como o nosso. A uma porque o art. 3.o, IV,
da CF/1988 proíbe a discriminação jurídica preconceituosa. A outra porque,
se parte da sociedade age com preconceito, então é ela que deve ser punida,
e não as pessoas que são alvo dessa discriminação arbitrária, que não pode
ser aceita, em hipótese alguma, como critério de diferenciação válido visto
ser esse preconceito, justamente, o que se visa combater por meio da
isonomia, direito humano fundamental e norma constitucional de eficácia
plena que é. Em outras palavras, fundamentar uma diferenciação jurídica no
preconceito alheio é completamente inaceitável, tendo em vista que tal
entendimento viola flagrantemente o princípio da igualdade, que justamente
veda a utilização do preconceito como critério válido de discriminação.
É de se notar, ainda, que não se deve ter nenhuma preferência por
casais heteroafetivos na escolha da família a colocar o adotando, na medida
em que a homogeneidade ou diversidade de sexos do casal não traz nenhum
prejuízo ao menor, sendo a homoafetividade ou heteroafetividade, portanto,
questão irrelevante em sua criação. Da mesma forma, o preconceito que o
menor possa vir a sofrer de terceiros não pode ser utilizado como
paradigma para a decisão, na medida em que o preconceito alheio jamais
poderá ser critério juridicamente válido para diferenciações. Nessa hipótese,
deve-se verificar a capacidade do casal homoafetivo em lidar com a
situação, amparando o menor adotado, explicando-lhe que se trata de
preconceito alheio e, enfim, dando-lhe todo suporte necessário para
enfrentar a situação e com ela evoluir – da mesma forma se o menor
sofresse preconceito por diversas outras questões, como cor de pele,
religião, condição financeira etc. Afinal, é fato que crianças e adolescentes
podem ser extremamente maldosos com aqueles mais tímidos/inibidos pelas
mais variadas questões – a homoafetividade dos pais seria apenas mais uma
delas, sem nenhuma diferença nesse sentido. A homoafetividade e a
heteroafetividade são questão que devem ser tidas como irrelevantes, não
podendo ser utilizadas como paradigmas válidos de diferenciação jurídica
neste ponto.
Por fim, com a decisão do STF na ADPF 132 e na ADI 4.277, que
incluiu a união homoafetiva no conceito constitucional de união estável ou,
como preferem alguns, a reconheceu como entidade familiar com igualdade
de direitos com a união estável heteroafetiva, tem-se que: (i) reconhecida a
união homoafetiva como união estável quando atendidos os requisitos
legais do art. 1.723 do CC/02, não há mais lacuna normativa, pois casais
homoafetivos se enquadram no conceito técnico-jurídico de companheiros,
que designa a relação conjugal de união estável, bem como no conceito
técnico-jurídico de cônjuges no que tange àqueles que tiveram seu pedido
de habilitação em casamento civil ou de conversão de união estável em
casamento civil deferido; (ii) o entendimento alternativo de que a união
homoafetiva foi reconhecida não como união estável, mas como entidade
familiar autônoma com igualdade de direitos relativamente à união estável
heteroafetiva também gera, por consequência lógica, o reconhecimento do
direito de adoção por casais homoafetivos que atendam aos requisitos legais
da união estável, já que este é um direito legalmente reconhecido a casais
heteroafetivos em união estável.

1 SUANNES (As uniões homossexuais e a Lei 9.278/1996, p. 30) apud DIAS, Maria
Berenice. União Homossexual – o Preconceito & a Justiça, 3.ª Edição, Porto Alegre:
Editora Livraria do Advogado, 2006, p. 116.
2 “Ou seja, a família como unidade política e econômica na qual os filhos cumpriam
papéis predeterminados sob a autoridade paterna servindo à economia familiar como
mão de obra alterou-se para a família atual formada por um grupo de companheirismo
e um lugar de acolhimento e afeto” (FACHIN, Luiz Edson (Elementos críticos do direito
de família..., p. 305-306) apud GIRARDI, Viviane. Famílias Contemporâneas, Filiação
e Afeto: A Possibilidade Jurídica da Adoção por Homossexuais, 1.ª Edição, Porto
Alegre: Editora Livraria do Advogado, 2005, p. 100).
3 Nesse sentido, afirma Viviane Girardi (Famílias Contemporâneas, Filiação e Afeto: A
Possibilidade Jurídica da Adoção por Homossexuais, 1.a Edição, Porto Alegre: Editora
Livraria do Advogado, 2005, p. 92 e 93) que “da interpretação sistemática dos §§ 4.o e
7.o com o caput do art. 226 da Constituição da República Federativa do Brasil,
entende-se ser possível a defesa da existência de um direito de personalidade ligado à
noção de um interesse juridicamente tutelado à paternidade que tem raiz de direito
subjetivo essencial, porque atrelado ao conceito particular de felicidade, compreendido
e derivado do princípio maior da dignidade da pessoa humana”; pois, “uma vez que o
projeto de felicidade de uma pessoa envolva o desejo de tornar-se pai ou mãe
mediante a adoção de uma criança, essa faculdade não pode ser negada somente por
conta da orientação sexual exercida pelo pretenso adotante, na medida em que o
direito à descendência, porque inato ao ser humano, é também tutelado pelo direito
sob o manto de direitos subjetivos essenciais à realização da sua personalidade”.
4 Como alguns fazem com relação aos homossexuais.
5 “Nessa perspectiva de considerar os direitos de família como direitos subjetivos típicos
e por a filiação proporcionar o enriquecimento da personalidade humana é que se
defende o direito subjetivo de os homossexuais realizarem-se como pais, tendo a
possibilidade da adoção de crianças ou adolescentes respeitado os requisitos
instituídos pelo Estatuto da Criança e do Adolescente, Lei 8.069/1990, devendo ser
afastada de qualquer conotação valorativa a orientação sexual do pretendente à
adoção. Pois se é verdade que a paternidade representa o cumprimento de deveres
para com o filho, é verdade que ao cumpri-los não só são satisfeitos os interesses do
filho, mas também o dos pais” (GIRARDI, Viviane. Famílias Contemporâneas, Filiação
e Afeto: A Possibilidade Jurídica da Adoção por Homossexuais, 1.a Edição, Porto
Alegre: Editora Livraria do Advogado, 2005, p. 96).
6 “Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao
adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à
educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à
liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda
forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão. (...)
§ 6.º Os filhos, havidos ou não da relação do casamento, ou por adoção, terão os
mesmos direitos e qualificações, proibidas quaisquer designações discriminatórias
relativas à filiação.”
7 “Art. 19. Toda criança ou adolescente tem direito a ser criado e educado no seio da sua
família e, excepcionalmente, em família substituta, assegurada a convivência familiar e
comunitária, em ambiente livre da presença de pessoas dependentes de substâncias
entorpecentes”. Não há absolutamente nada que proíba a adoção por homossexuais e
casais homoafetivos, como se percebe pela interpretação do ECA como um todo, em
especial pelos arts. 3.o, 4.o, 6.o, 7.o, 15, 16, I a VII, e 17 do mesmo, que não trazem
absolutamente nada que impeça a adoção por homossexuais e casais homoafetivos.
8 Trazendo motivos que justificam essa preferência legislativa pela família consanguínea,
quando apta a exercer a função, afirma a psicanalista e psicóloga forense Fernanda
Otoni de Barros: “[Em uma família consanguínea típica e ideal,] Na verdade, bem
antes de nascermos já fomos imaginados. Já nos compraram roupinhas, já nos
arrumaram um lugar para dormir e um nome. A relação entre os genitores está
organizada pelo simbólico. As circunstâncias que marcam o encontro deste pai e desta
mãe, a história própria deles, formam uma rede que antecede a concepção. (...) A
criança vai debater para poder se encontrar com essa história que a precede, mas
que, no entanto, é sua. Ideal, também, é que a criança permaneça ao longo de seu
desenvolvimento no lar com seus pais, pois ‘O entorno desta criança vai formar sua
base de referências para o alguém que vai ser na vida. Essa base referencial é o
alicerce de seu sistema de valores, de seu olhar para o mundo, de sua racionalidade,
de seu futuro proceder com os demais’” (BARROS, Fernanda Otoni de (Um pai digno
de ser amado, in II Congresso Brasileiro de Direito de Família. Anais, p. 235) apud
GIRARDI, Viviane. Famílias Contemporâneas, Filiação e Afeto: A Possibilidade
Jurídica da Adoção por Homossexuais, 1.ª Edição, Porto Alegre: Editora Livraria do
Advogado, 2005, p. 105).
9 Essas ponderações são inspiradas nas lições de Viviane Girardi, Paulo Luiz Netto Lôbo
e Fernanda Otoni de Barros. Assim, por uma questão de honestidade intelectual,
seguem as lições originais: “Basicamente, a partir do momento em que a família passa
a ser constituída pelo núcleo pais e filhos é que a energia familiar se direciona para a
criança e suas necessidades essenciais, bem como para a educação com a carreira e
o futuro dos filhos. A proximidade leva à afetividade, o que só faz confirmar a tese
jurídica contemporânea da supremacia da paternidade socioafetiva, sobre a
meramente biológica quando se trata da formação do elo paterno-materno-filial, pois a
paternidade/maternidade e, consequentemente, a filiação, ‘não é um dado, e sim um
construído’, na medida em que é estruturada e engrandecida pelos cuidados e trocas
ministrados na intimidade dos contatos do cotidiano e não por uma determinação
puramente genética [Viviane Girardi]. Impõe-se a distinção entre origem biológica e
paternidade/maternidade. Em outros termos, a filiação não é um determinismo
biológico, ainda que seja da natureza humana o impulso à procriação. Na maioria dos
casos, a filiação deriva da relação biológica; todavia, ela emerge da construção cultural
e afetiva permanente, que se faz na convivência e na responsabilidade. (...) O afeto
não é fruto da biologia. Os laços de afeto e de solidariedade derivam da convivência e
não do sangue [Paulo Luiz Netto Lôbo]. Nossa experiência ordinária basta para nos
mostrar que a biologia não dá uma resposta suficiente. O pai não é aquele que apenas
deu uma célula germinal de 70 milésimos de milímetros e a mãe não é nem um ventre
nem a Virgem Santíssima. A biologia pode responder sobre a maternidade e a
paternidade como a relação dos animais, mas para o homem, que é um ser de
linguagem, a história é bem outra e bem mais complexa. [Fernanda Otoni de Barros]
(ibidem, p. 106-107 – sem grifos no original).
10 No sentido da absoluta incapacidade dos orfanatos estatais de garantirem o pleno
desenvolvimento da criança e do adolescente, são esclarecedoras as palavras de
Maria Teresa Maldonado e do psicólogo junguiano Adolf Genbül-Craig: “(...) bebês
criados em orfanatos em geral recebem estimulação deficiente em termos de contato
humano; muitas pessoas cuidam dos nenês de modo impessoal, não falam nem
brincam com eles e os alimentam mecanicamente. A imensa maioria dos bebês
criados nessas condições cresce com problemas emocionais graves em geral
caracterizados por uma recusa ao contato com pessoas, completa apatia e
incapacidade de formar vínculos afetivos. Tratar o bebê com amor, e carinho,
aconchegá-lo, sorrir para ele, brincar e oferecer-lhe brinquedos apropriados é
essencial para um desenvolvimento saudável” [MALDONADO, Maria Tereza (Como
cuidar de bebês e crianças pequenas, 3.ª Edição, 1996, p. 64), apud GIRARDI, op. cit.,
p. 108]. “O relacionamento envolve sempre algo de criativo. Ao empregar a palavra
‘criativo’, quero dizer o seguinte: a psique humana está sempre cheia de novas
possibilidades. Ela se cria sempre, por assim dizer, e é permanentemente recriada. O
potencial psíquico de um indivíduo é obviamente limitado, mas altamente diversificado
e multifacetado. Não é nada criativo ou propício ao relacionamento encontrar alguém e
vê-lo como uma foto instantânea ou uma imagem fixa. Encontrar uma pessoa de modo
criativo significa tecer fantasias em redor dela e circundar seu potencial. Surgem,
então, várias imagens sobre a pessoa e o relacionamento potencial. Em geral, essas
fantasias criativas estão bem longe da assim-chamada realidade; são tão irreais, ou
tão verdadeiras, como contos de fada e mitos. (...) Mesmo se não expressas, as
fantasias também influenciam a outra pessoa, despertando nela suas potencialidades.
(...) as fantasias criativas que descrevi se relacionam à natureza da outra pessoa e
representam, de forma simbólico-mitológica, seu potencial de vida. (...) Certas
fantasias dos pais talvez sirvam de exemplo. Frequentemente os pais se permitem,
consciente ou semiconscientemente, fantasiar o futuro de seus filhos (...). Muitas
vezes, porém, essas fantasias derivam de uma visão basicamente correta,
representando uma figuração criativa de um potencial latente. (...) Estas fantasias
criativas, ou circum-ambulação imaginativa do parceiro, são da maior importância em
qualquer relacionamento humano. (...) Todo mundo tem necessidade de fantasiar
sobre si mesmo, de circundar e despertar seu próprio potencial de forma mitológica ou
como num conto de fada. Uma das tragédias da vida de crianças de orfanato é que
ninguém tece tais fantasias em torno delas, de modo que quase nunca seu potencial é
despertado. Essas crianças poderão tornar-se adultos bem comportados, mas
psiquicamente só estão vivas pela metade” [GENBÜL-GRAIG, Adolf (O abuso do
poder na psicoterapia – e na medicina, serviço social, sacerdócio e magistério. Trad.
Roberto Gambini, 1978, p. 54-56) apud GIRARDI, op. cit., p. 108-109].
11 Em comentário ao referido dispositivo legal, afirma Viviane Girardi que: “Essa
prescrição deriva, em grande parte, da concepção internacional que se tem sobre as
necessidades fundamentais para o bom e pleno desenvolvimento da criança e do
adolescente. Ou seja, busca-se assegurar como um direito os cuidados e
necessidades inatas ao crescimento físico e socioafetivo de uma criança, que é o
direito de nascer numa família, nela ocupar o espaço de filho e nela ser mantido em
harmoniosa convivência com seus pais até a idade de sua independência moral e
material” (ibidem, p. 106).
12 Essa pseudotese, que não possui nenhum embasamento científico-probatório que a
sustente, pode ser ilustrada pelo que disse Claudio Pérsio Carvalho Leite, em palestra
proferida perante a Comissão Especial sobre a União Civil Livre na Câmara dos
Deputados, em 20.08.1996: “(...) Deve-se salientar que, nesses exemplos, a presença
do pai e da mãe são presenças inquestionáveis, em todos os estágios do crescimento
psicobiológico dos filhos, o que se traduz em linha direta para a inquestionabilidade da
importância das presenças do homem e da mulher, bem definidos na constituição
individual de seus filhos. Em um casal homossexual, sempre estará faltando um dos
dois elementos. No casal homossexual masculino, além da flagrante ausência da mãe-
mulher, faltará, também, a imagem bem definida do homem-pai, começando pelo fato
de aqueles dois companheiros que falam em parceria são dois iguais. Faltando a
mulher, faltará com ela a referência que remeterá a criança a distinguir as diferenças
da figura masculina. Além do que a criança estará sendo criada por duas pessoas que
não desejam, no sentido erótico, sexual e amoroso, a mulher. Já no casal
homossexual feminino, é flagrante a falta do pai ou do homem e também da mulher;
da mulher-mulher, bem definida. Em ambos os quadros tem-se o que se chamaria
didaticamente de uma orfandade dupla de supostos pais ou mães vivos. (...)” (LEITE
apud BRANDÃO, Débora Vanessa Caús. Parcerias Homossexuais: Aspectos
Jurídicos, 1.ª Edição, São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002, p. 94, em nota
de rodapé).
13 Nesse sentido, são esclarecedoras as observações de Lídia Natália Dobrianskyj
Weber, ao citar estudos psicológicos sobre o tema: “Ricketts & Achternberg (1989)
realizaram um estudo com vários casos individuais de adoções por homens e
mulheres homossexuais e afirmaram que a saúde mental e a felicidade individual
estão na dinâmica de determinada família e não na maneira como a família é definida.
Eles afirmaram, portanto, que não importa se a família conta com um pai e uma mãe
ou somente com um deles; o mais importante é como essa família vive. McIntyre
(1994) faz uma análise de pais e mães homossexuais e os sistemas legais de
custódia. Este autor afirma que a pesquisa sobre crianças serem criadas por pais
homossexuais documenta que pais do mesmo sexo são tão afetivos quanto casais
tradicionais. Patterson (1997) escreveu um artigo sobre relações de pais e mães
homossexuais e analisou as evidências da influência na identidade sexual,
desenvolvimento pessoal e relacionamento social em crianças adotadas. A autora
examinou o ajustamento de crianças de 4 a 9 anos de idade criadas por mães
homossexuais (mães biológicas e adotivas) e os resultados mostram que tanto os
níveis de ajustamento maternal quanto a autoestima, desenvolvimento social e pessoal
das crianças são compatíveis com crianças criadas por um casal tradicional. Samuels
(1990) destaca que, mais importante que a orientação sexual dos pais adotivos, o
aspecto principal é a habilidade dos pais em proporcionar para a criança um ambiente
carinhoso, educativo e estável” (WEBER, Lídia Natália Dobrianskyj. Pais e filhos por
adoção no Brasil: características, expectativas e sentimentos..., p. 80-81) apud
GIRARDI, Viviane. Famílias Contemporâneas, Filiação e Afeto: A Possibilidade
Jurídica da Adoção por Homossexuais, 1.ª Edição, Porto Alegre: Editora Livraria do
Advogado, 2005, p. 82 – sem grifos no original).
14 A Homossexualidade no Direito, 1.ª Edição, Porto Alegre: Editora Livraria do
Advogado, 2001, p. 141 a 143. Este livro é fonte inclusive dos estudos citados, que
foram transcritos de notas de rodapé do original (sem grifos e destaques no original).
15 “Art. 1.618. Só a pessoa maior de 18 (dezoito) anos pode adotar. Parágrafo único. A
adoção por ambos os cônjuges ou companheiros poderá ser formalizada, desde que
um deles tenha completado 18 (dezoito) anos de idade, comprovada a estabilidade da
família.”
16 “O peso dos reais benefícios ao adotando não se encontra na sexualidade dos
conviventes candidatos, mas no desejo verdadeiro de se dedicarem, com amor, à
maternidade/paternidade. (...) Fundamental, pois, é que as pessoas em
desenvolvimento sejam educadas por pais/mães, de fato, preparados(as) e
motivados(as) para a paternidade/maternidade. (...) As condições que os futuros pais
oferecerão, para o melhor desenvolvimento dos menores, é que deverão pesar na
decisão” (JÚNIOR, Enézio de Deus Silva. A Possibilidade Jurídica da Adoção por
Casais Homossexuais, 2.a Edição, 2.a Tiragem, Curitiba: Editora Juruá, 2007, p. 124,
127 e 137).
17 Nesse sentido, a posição de Viviane Girardi: “A questão do exercício de faculdade à
paternidade por homossexuais, salvo raras exceções, é quase sempre posta de forma
maniqueísta, na base do tudo ou nada: ou é homossexual ou é pai, pois esses atores
não podem [para os que assim colocam] coexistir numa mesma pessoa. Revela-se
dessa forma o discriminem em relação à orientação sexual, já que todos os demais
atributos do pai ou da mãe normalmente são totalmente desconsiderados, fixando-se a
(des)qualificação da paternidade única e exclusivamente na orientação sexual,
dispensando-se todo o potencial humano e os demais atributos afetivos que esta
pessoa – pai ou mãe – poderia dar a uma criança, daí o traço e a presença do
preconceito e do estigma maior da homossexualidade” (GIRARDI, Viviane. Famílias
Contemporâneas, Filiação e Afeto: A Possibilidade Jurídica da Adoção por
Homossexuais, 1.ª Edição, Porto Alegre: Editora Livraria do Advogado, 2005, p. 89 –
sem grifo no original).
18 Ibidem, p. 89 (sem grifos e destaques no original).
19 Costumam citar, por exemplo, o art. 29 do ECA, que afirma que “não se deferirá
colocação em família substituta a pessoa que revele, por qualquer modo,
incompatibilidade com a natureza da medida ou não ofereça ambiente familiar
adequado”, e mesmo o art. 43, que determina que a adoção deverá trazer reais
vantagens ao adotando, em um posicionamento inegavelmente preconceituoso, ante a
ausência de provas e mesmo de lógica e racionalidade da argumentação no sentido
de que a criação de uma criança ou um adolescente por um casal homoafetivo lhe
traria prejuízos.
20 Em tradução simples: “A Ausência de Diferenças entre Pais Gays/Lésbicas e
Heterossexuais: Uma Retrospectiva da Literatura”. O estudo foi localizado, em inglês,
na internet, e está disponível em: http://www.ibiblio.org/gaylaw/issue6/Mcneill.htm.
Acesso em: 30 abr. 2008.
21 A saber (seguindo a ordem ali apresentada): (i) sobre casais homoafetivos formados
por lésbicas: Strong & Schinfeld – 1984, Harris & Turner – 1986, Shavelson, Biaggio,
Cross, & Lehman – 1980, Pagelow – 1980, Kweskin & Cook – 1982, Green, Mandel,
Hotvedt, Gray, & Smith – 1986, Peters & Cantrell – 1991, Patterson – 1995a, McNeill,
Rienzi, & Kposowa – 1998; (ii) sobre casais homoafetivos formados por gays: Miller –
1979, Mallen – 1983, Skeen & Robinson – 1984, Bigner & Jacobsen – 1989a, Bigner &
Jacobsen – 1989b, Bigner & Jacobsen – 1992, Crosbie-Burnett & Helmbrect – 1993,
Bailey, Bobrow, Wolfe, & Mikach – 1995; (iii) sobre desenvolvimento de crianças de
pais homossexuais e heterossexuais: Weeks, Derdeyn, & Langman – 1975, Miller –
1979, Kirkpatrick, Smith, & Roy – 1981, Hoeffer – 1981, Miller, Jacobsen, & Bigner –
1982, Golombok, Spencer, & Rutter – 1983, Harris & Turner – 1986, Pennington –
1987, Bozett – 1988, Huggins – 1989, Bailey, Bobrow, Wolfe, & Mikach – 1995, Flaks,
Ficher, Masterpasqua, & Joseph – 1995, Patterson – 1995c, Tasker & Golombok –
1995, Patterson & Mason, Chan, Raboy, & Patterson. Todos eles concluíram pela
ausência de diferenças nas pessoas criadas por casais homoafetivos em relação
àquelas criadas por casais heteroafetivos por conta unicamente do fato de terem sido
criadas por um casal homoafetivo.
22 Cf. GIRARDI, Viviane. Familias Contemporáneas, Filiação e Afeto: A Possibilidade
Jurídica da Adoção por Homossexuais, 1.a Edição, Porto Alegre: Editora Livraria do
Advogado, 2005, p. 143 (sem grifos no original).
23 Nesse sentido, tem-se como clara e correta a exposição de Roger Raupp Rios: “O
debate, nesse passo, põe em questão, claramente, as pré-compreensões vigentes
acerca da homossexualidade enquanto fenômeno da vida humana concreta. Pisamos,
portanto, no terreno dos conceitos e preconceitos que influem na solução da aludida
colisão de princípios. Nesta tarefa, o intérprete deve utilizar-se do atual estágio do
desenvolvimento científico a respeito da homossexualidade, investigando se suas
conclusões dão guarida à ideia de que a homossexualidade seria um dado que, em si
mesmo, justificaria a opinião negativa sobre a adoção. (...) Exposto o estágio atual do
debate científico a respeito da homossexualidade, não há como justificar vedação, em
princípio, da adoção de crianças por homossexuais. Isto porque, enquanto modalidade
de orientação sexual, não se reveste de caracteres de doença, morbidez, desvio ou
anormalidade em si mesma, não autorizando, portanto, a sustentação de uma ’regra
geral’ impeditiva da adoção. Neste momento, gize-se que a ausência de
fundamentação racional não pode ser substituída, numa sociedade democrática e
plural, pelo subjetivismo de quem quer que seja, juiz, assistente social, médico ou
psicólogo, dentre outros. Isto seria destruir a democracia, anular as diferenças
individuais e instituir o arbítrio de uns (mesmo que eventualmente majoritários) em
face dos demais. Ao contrário, o princípio da igualdade exige que homossexuais e
heterossexuais tenham avaliadas, objetivamente, as condições que oferecem para
propiciar o melhor desenvolvimento possível para a personalidade da criança; para
tanto, como visto, não se pode considerar, por si só nem isoladamente, a orientação
sexual do adotante. Conclui-se, portanto, que a proibição de adoção fundada
exclusivamente na homossexualidade revela ausência de fundamentação racional
suficiente para a imposição de um critério discriminatório, proceder que afronta,
gravemente, o princípio constitucional da igualdade” (RIOS, Roger Raupp. A
Homossexualidade no Direito, 1.ª Edição, Porto Alegre: Editora Livraria do Advogado,
2001, p. 133, 139-140 – sem grifos no original).
24 “No estágio atual das normas jurídicas que disciplinam o instituto da adoção no Brasil,
tem-se a possibilidade de ser conferida a adoção de uma criança ou adolescente a
um(a) adotante solteiro que seja homossexual na medida em que o sistema legal não
determina, expressamente, que a opção sexual do(s) adotante seja um requisito para
a adoção” (GIRARDI, Viviane. Famílias Contemporâneas, Filiação e Afeto: A
Possibilidade Jurídica da Adoção por Homossexuais, 1.a Edição, Porto Alegre: Editora
Livraria do Advogado, 2005, p. 130). Aponte-se, apenas, a impropriedade técnica de
se referir à orientação sexual como “opção”, o que é um equívoco (que, todavia, não
altera o acerto da conclusão quanto à possibilidade jurídica da adoção por
homossexuais).
25 “Quanto à possibilidade de adoção conjunta por um casal homossexual, entende-se
ser esta possível aos olhos da lei, mediante a utilização de mecanismos jurídicos de
interpretação somados ao contexto legal que estabelece a pluralidade das formas de
organização familiar. (...) Os diplomas legais representados pela Constituição Federal
de 1988, o Código Civil e o Estatuto da Criança e do Adolescente, tidos estes como
fontes formais do direito, considerados sob o enfoque de uma interpretação integrada
que lança mão das técnicas de interpretação teleológica lógico-sistematizada,
somados ao entendimento expresso pelos precedentes jurisprudenciais, estes também
considerados fontes formadoras do direito, ainda que o sejam de forma subsidiária,
configuram-se como um instrumento normativo apto a possibilitar a concessão legal
das adoções de crianças e adolescentes também aos pares homossexuais”,
reconhecidos como entidades familiares na medida em que “se, para o direito, a
família é instrumento de realização da pessoa humana por considerar que toda e
qualquer pessoa necessidade de relações de cunho afetivo para se desenvolver e
viver seu projeto próprio de felicidade e, porque para outras áreas do conhecimento, a
família não se estabelece somente pelas formas convencionais de união, parece ficar
evidente a possibilidade de reconhecimento do status jurídico e de família às demais
formas de organização familiar, entre as quais a união entre pessoas do mesmo sexo”,
pois “as demais características das entidades familiares, além da presença da
afetividade, são a estabilidade e a ostensibilidade da união, igualmente encontradas
nas uniões homossexuais” (GIRARDI, Viviane. Famílias Contemporâneas, Filiação e
Afeto: A Possibilidade Jurídica da Adoção por Homossexuais, 1.a Edição, Porto Alegre:
Editora Livraria do Advogado, 2005, p. 130, 133 e 138).
26 “Entende-se que a não concessão da adoção conjunta aos homossexuais pode,
muitas vezes, interferir nos melhores interesses da criança, pois a realidade social
aponta para formação de um vínculo entre o adotando e o parceiro do adotante. Mas
tais situações reais não encontram proteção jurídica que assegure a manutenção ou
reflexos jurídicos oriundos desse vínculo afetivo formado pelo companheiro do
adotante, em que pese a constatação na maioria dos casos, analisados de vínculos
emocionais fortes estabelecidos entre a criança e companheiro(a) do pai ou mãe
adotante. Vínculos afetivos estes que possuem a mesma natureza dos vínculos
emocionais das relações entre pais e filhos heterossexuais” (GIRARDI, Viviane.
Famílias Contemporâneas, Filiação e Afeto: A Possibilidade Jurídica da Adoção por
Homossexuais, 1.a Edição, Porto Alegre: Editora Livraria do Advogado, 2005, p. 148).
No mesmo sentido, Enézio de Deus Silva Júnior (A Possibilidade Jurídica da Adoção
por Casais Homossexuais, 2.a Edição, 2.a Tiragem, Curitiba: Editora Juruá, 2007, p.
130): “Ante o poder-dever de despachar ou sentenciar, mesmo não havendo lei federal
que regule a convivência homoessencial no Brasil, os juízes têm se utilizado da
analogia, como forma de integração desta lacuna, partindo de uma interpretação
teleológica”.
27 Utilizarei apenas o gênero masculino para me referir ao ascendente adotivo do menor
em questão e seu ex-companheiro. Mas é evidente que o quanto dito nesta parte
equivale da mesma forma para casais homoafetivos formados por mulheres.
28 Isso porque o deferimento da adoção apenas a um membro do casal “retiraria da
criança, também, o direito de vir pleitear alimentos do consorte de seu pai ou mãe no
caso de necessitar deles, na hipótese de ser o companheiro do(a) adotante o
mantenedor econômico da família, ou de algumas despesas específicas da
criança/adolescente, como, por exemplo, os custos com educação. No que diz respeito
à ruptura ou dissolução da união existente entre o(a) adotante e seu companheiro(a),
poderia este último vir a reivindicar o direito de contato e convivência com a criança,
entretanto, num primeiro momento, esbarraria na ausência completa de base legal e
vínculo familiar a permitir-lhe que um juízo ou tribunal assegurasse tal direito”
(GIRARDI, Viviane. Famílias Contemporâneas, Filiação e Afeto: A Possibilidade
Jurídica da Adoção por Homossexuais, 1.a Edição, Porto Alegre: Editora Livraria do
Advogado, 2005, p. 149).
29 “(...) a guarda judicial e a tutela, apesar de serem institutos jurídicos que visem a
tutelar o bem-estar da criança, além de não estabelecerem vínculos jurídicos
permanentes e indissolúveis entre o guardião/tutor e a criança, deixam de abrigar
alguns direitos próprios do estatuto da filiação, como são os recíprocos direitos de
sucessão e de alimentos. No que diz respeito à ruptura ou dissolução da união
existente entre o(a) adotante e seu companheiro(a), poderia este último vir a
reivindicar o direito de contato e convivência com a criança, entretanto, num primeiro
momento, esbarraria na ausência completa de base legal e vínculo familiar a permitir-
lhe que um juízo ou tribunal assegurasse tal direito” (GIRARDI, Viviane. Famílias
Contemporâneas, Filiação e Afeto: A Possibilidade Jurídica da Adoção por
Homossexuais, 1.a Edição, Porto Alegre: Editora Livraria do Advogado, 2005, p. 149).
30 “A sociedade brasileira atual, assim como a maioria das demais, também é integrada
por famílias biparentais homoafetivas, que educam crianças e adolescentes de modo
informal ou à margem da aparente legalidade. Isso porque, apesar de o ordenamento
pátrio não vedar o pedido de adoção formulado, conjuntamente, por dois
homossexuais, os preconceitos, a limitação em não se considerar – mesmo
analogicamente – a união homoessencial como estável, assim como interpretações
literais de expressões normativas, que não distinguem quanto à orientação sexual
(‘cônjuges’ e ‘concubinos’, por exemplo) têm gerado o indeferimento do referido
pedido, impulsionando, via de consequência, o casal a decidir que somente um dos
companheiros adotará formalmente. (...) Neste particular, a hipocrisia ou incoerência
maior reside em que, sendo educado amorosamente pelos parceiros(as)
socioafetivos(as), o menor considerará ambos como seus pais/mães, sendo só um
desses o(a) considerado(a) como tal. Destarte, além de serem preconceituosos e
inúteis os argumentos de que adoção pelo casal homossexual é prejudicial ao menor –
em respectivo, por não se sustentarem cientificamente, nem impedirem que o par
eduque socialmente e em conjunto –, tais discursos subtraem da criança e do
adolescente adotado ‘a possibilidade de usufruir direitos que, de fato, possui –
limitação que afronta a própria finalidade protetiva (...) decantada na Carta
Constitucional e perseguida pela lei especial’ [DIAS, p. 114]” (JÚNIOR, Enézio de Deus
Silva. A Possibilidade Jurídica de Adoção por Casais Homossexuais, 2.a Edição, 2.a
Tiragem, Curitiba: Editora Juruá, 2007, p. 122-123).
31 “Entre um lar material e afetivamente bem estruturado e a realidade excludente de um
país concentrador de renda e de graves desrespeitos aos direitos humanos (como
ainda é o Brasil), aponta o bom-senso para a relevância de inserir um menor em um
seio familiar (independente de para que sexo se dirige a afetividade dos adotantes) –
em detrimento de deixá-lo despersonalizado (sem referencial afetivo de
maternidade/paternidade) em uma instituição de amparo à criança e ao adolescente.
(...) Tal inserção, entretanto, se for dificultada por óbices preconceituosos, priva os
menores abandonados do seu direito constitucional à convivência familiar (CF, art.
227, caput), expondo-os mais à negligência, violência, discriminação, exploração,
crueldade e opressão sociais, das quais devem estar a salvo. Sendo ‘dever da família,
da sociedade e do Estado assegurar à criança, com absoluta prioridade, o direito à
vida, à saúde, à alimentação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao
respeito, à liberdade’ e, se a colocação em uma família biparental homoafetiva estável
pode proporcionar a concretização de tais direitos, no processo de desenvolvimento do
adotando, o indeferimento do pedido de adoção, sob esta interpretação constitucional,
constitui infração a um dos direitos fundamentais da criança e do adolescente
assegurados no ordenamento positivo. Na realidade, os riscos de insucesso na
dinâmica familiar, com dois pais ou duas mães socioafetivas, são os mesmos com
relação ao casal de sexos diversos, pois o desequilíbrio emocional e quaisquer
defeitos de caráter, que possam comprometer o bem-estar do menor, independem da
orientação afetiva dos genitores (...). Assim, o deferimento da adoção a duas pessoas
que se amam e que, juntas, desejam se dedicar à educação de um menor vem-lhe
[afrontar] ao menor interesse” (JÚNIOR, Enézio de Deus Silva. A Possibilidade
Jurídica da Adoção por Casais Homossexuais, 2.a Edição, 2.a Tiragem, Curitiba:
Editora Juruá, 2007, p. 125-126 – sem grifo no original).
32 Com fundamentos diversos, é a mesma conclusão de Enézio de Deus Silva Júnior (A
Possibilidade Jurídica da Adoção por Casais Homossexuais, 2.a Edição, 2.a Tiragem,
Curitiba: Editora Juruá, 2007, p. 125-126), para quem “(...) a própria experiência dos
pais homossexuais, que educam crianças, demonstra a dosagem de amor e o diálogo
franco sobre a afetividade como os elementos preponderantes, para o enfrentamento
de incidentes discriminatórios (tão presentes nas suas próprias histórias de vida).
Neste sentido, ‘os especialistas aconselham que, vivendo ou não ao lado dos filhos,
pais e mães falem abertamente de sua orientação sexual – sem entrar em minúcias, é
claro, assim como os heterossexuais (...). Quanto mais cedo a criança souber, mais
fácil será para ela assimilar a notícia e encarar as manifestações preconceituosas”
(BUCHALLA, 2001, p. 68). Não inserir um menor abandonado em uma família
homoafetiva é injustificável, sob o insustentável argumento da discriminação que pode
sofrer na sociedade, porque, apesar de essa ainda se mostrar um tanto intolerante
para com a homossexualidade, tudo dependerá da maneira como os pais educarão os
seus filhos. Além da importância de acompanhamento psicológico, caso seja
necessário, é importante a reflexão comparativa de que, mesmo sem compreensão em
casa – na maioria dos casos, por conta dos preconceitos – e em dificuldades no
âmbito da discriminação externa, filhos homossexuais de famílias convencionais nem
por isso deixam de se inserir socialmente ou abrem mão da convivência familiar. É
evidente que o peso da discriminação é bem maior nesta circunstância, mas o preparo
emocional, em todas essas possibilidades de conformação sociofamiliar, é que conta
para uma vida digna, que se impõe com respeito na sociedade, mesmo atrasada por
prejulgamentos” (sem grifos no original).
33 E pelo próprio Direito, que lhe concede menos direitos do que aqueles concedidos aos
cônjuges.
34 Item 122 da decisão. Tradução livre.
35 Item 119 da decisão. Tradução livre. Grifos nossos.
36 TJ/RS, Apelação Cível 70013801592, 7.a Câmara Cível, Relator Desembargador Luís
Felipe Brasil Santos, julgada em 05.04.2006 – sem destaque no original.
37 Ementa: Adoção – Pedido efetuado por pessoa [homossexual] solteira com a
concordância da mãe natural – Possibilidade – Hipótese onde os relatórios social e
psicológico comprovam condições morais e materiais da requerente – Circunstância
[homossexualidade] que, por si só, não impede a adoção que, no caso presente,
constitui medida que atende aos superiores interesses da criança, que já se encontra
sob os cuidados da adotante há mais de 3 (três) anos – Recurso não provido. (Tribunal
de Justiça do Estado de São Paulo, Apelação Cível n. 51.111-0/5-00, Câmara
Especial, Relator Desembargador Oetterer Guedes com a participação dos Des.
Djalma Lofrano e Yussef Cahali, votação unânime. Julgamento realizado em
11/11/1999) (...) Não procede o inconformismo externado pelo digno Promotor de
Justiça, que, a despeito das conclusões favoráveis dos relatórios social e psicológico,
pede o indeferimento do pedido de adoção formulado somente em virtude da
homossexualidade da requerente. (...) Conforme bem ressaltou a lúcida Procuradora
de Justiça oficiante, referindo-se à instrução do feito, as pessoas ouvidas discorreram
sobre a relação entre a menina e a apelada e entre esta e sua companheira em
extensos depoimentos, dos quais depreende-se que: a relação entre a menina e a
requerente é de mãe e filha, com o reconhecimento desses papéis (inclusive uma das
testemunhas é psicóloga), a requerente tem conduta ilibada, tem seu próprio trabalho
e casa e é bem vista pela comunidade onde reside e trabalha (...). Conclui,
corretamente, que a opção sexual [sic] da requerente, que no caso presente não
interfere na educação a ser ministrada à criança, não pode servir para, isoladamente,
afastar a possibilidade da adoção. Entendimento diverso poderá ser considerado
discriminatório” (GIRARDI, Viviane. Famílias Contemporâneas, Filiação e Afeto: A
Possibilidade Jurídica da Adoção por Homossexuais, 1.ª Edição, Porto Alegre: Editora
Livraria do Advogado, 2005, p. 82 – sem grifos no original).
38 Acrescento, apenas, que é evidente, por outro lado, que, se os laudos em questão
forem pautados em subjetivismos e/ou preconceitos dos técnicos em questão, deverá
o magistrado deixar de aplicá-los, pautando-se pela compreensão da ciência médica
mundial a respeito.
39 Parafraseei e interpretei alguns trechos da sentença do magistrado, tendo, contudo
(s.m.j.), sido fiel a suas ideias. Para que não restem dúvidas a respeito, seguem os
trechos fundamentais de sua sentença: “Sentença: Processo n. 97/1/03710-8 (Juiz Dr.
Siro Darlan; 1.ª Vara da Infância e da Juventude do Rio de Janeiro, em 20/01/1998).
(...) O pedido inicial deve ser acolhido porque o Suplicante demonstrou reunir
condições para o pleno exercício do encargo pleiteado, atestado esse fato pela
emissão da Declaração de Idoneidade para Adoção que se encontra às fls. 34 com o
parecer favorável do Ministério Público contra o qual não se insurgiu no prazo legal
devido, fundando-se em motivos legítimos, de acordo com o Estudo Social (fls. 15/16 e
49/52) e Parecer Psicológico (fls. 39/41), e apresenta reais vantagens para o
Adotando, que vivia há 12 anos em estado de abandono familiar em instituição coletiva
e hoje tem a possibilidade de conviver em ambiente familiar (chama o Requerente de
‘pai’), estuda em colégio de conceituado nível de ensino religioso, o Colégio S. M. e
frequenta um psicanalista para que melhor possa se adequar à nova realidade de
poder exercitar o direito do convício familiar que a Constituição Federal assegura no
art. 227. A Constituição da República assegura igualdade de todos perante a lei, sem
distinção de qualquer natureza, [donde] não admite o texto constitucional qualquer tipo
de preconceito ou discriminação na decisão judicial quando afirma que ‘ninguém será
privado de direitos por motivo de crença religiosa ou de convicção filosófica ou
política’, estando previsto ainda que ‘a lei punirá qualquer discriminação atentatória
dos direitos e liberdades fundamentais’.Ora, não alegam os Fiscais qualquer norma
impeditiva para o acolhimento do pleito inicial, ao contrário manifestaram-se
favoravelmente ao deferimento da Habilitação para Adoção cujo certificado instrui o
pedido e a manifestação contida às fls. 55/57 parece referir-se a pedido diverso do
contido na peça exordial, eis que afirma que ‘o ordenamento jurídico brasileiro não
prevê o casamento de pessoas do mesmo sexo’, o que data venia não é matéria a ser
decidida por esse juízo, além de estar em franca contradição com os fatos e laudos da
equipe interprofissional ao afirmar que ‘não acredita que trará reais vantagens para o
adotado’. Afirmam os expertos que ‘M. demonstra estar feliz com sua inserção num
contexto familiar. Os vínculos formados com o Sr. J. são de confiança e parecem estar
permitindo o desenvolvimento pleno do menino’ (Parecer psicológico, fls. 41) e, ‘o
menino exibia boa aparência, expressando-se com naturalidade, parecendo-nos estar
recebendo os cuidados necessários ao seu desenvolvimento (Estudo Social, fls. 51) e,
ainda, o próprio adolescente afirma às fls. 44: ‘que agora tem um pai de nome J..., que
está gostando de morar com seu novo pai, que além de estudar brinca muito, que seu
novo pai é professor de ciências, que quando seu pai está trabalhando fica com a
empregada, que deseja ser adotado’. Qual será então o conceito de ‘reais vantagens’
dos Ilustres Fiscais? Deve ser muito diferente do que afirmam a Equipe
Interprofissional e o próprio interessado, o adolescente, que prefere ver acolhido o
pedido que permanecer em uma instituição sem qualquer nova chance de ter uma
família, abandonado até que aos doze anos sofrerá nova rejeição já que não poderá
mais permanecer no Educandário R.M.D., onde se encontra desde que nasceu, e será
transferido para outro estabelecimento de segregação e tratamento coletivo, sem
qualquer chance de desenvolver sua individualidade e sua cidadania, até que por força
da evasão forçada ou espontânea poderá transformar-se em mais um habitante das
ruas e logradouros públicos com grandes chances de residir nas Escolas de Formação
de ‘marginais’ em que se transformaram os atuais ‘Presídios de menores’ e, quem
sabe, atingir ao posto máximo com ingresso no Sistema Penitenciário? Será esse o
critério de ‘reais vantagens’? A lei não acolhe razões que tem por fundamento o
preconceito e a discriminação, portanto o que a lei não proíbe não pode o intérprete
inovar. Isto posto. Julgo Procedente o pedido inicial para deferir, com fundamento no
art. 39 da Lei 8.069/90 ao Requerente a adoção do adolescente, acima qualificado, e
passará a chamar-se M. C. P. M., filho de J. L. P. M., sendo avós paternos S. M. M. e
D. P. R. (sem grifos e destaques no original).
40 Seguem os trechos principais do acórdão: “Ementa: Adoção cumulada com destituição
do pátrio poder. Alegação de ser homossexual o adotante. Deferimento do pedido.
Recurso do Ministério Público. 1. Havendo os pareceres de apoio (psicológico e de
estudos sociais) considerado que o adotado, agora com dez anos sente orgulho de ter
um pai e uma família, já que abandonado pelos genitores com um ano de idade,
atende a adoção aos objetivos preconizados pelo Estatuto da Criança e do
Adolescente (ECA) e desejados por toda a sociedade. 2. Sendo o adotante professor
de ciências de colégios religiosos, cujos padrões de conduta são rigidamente
observados, e inexistindo óbice outro, também é a adoção, a ele entregue, fator de
formação moral, cultural e espiritual do adotado. 3. A afirmação de homossexualidade
do adotante, preferência individual constitucionalmente garantida, não pode servir de
empecilho à adoção do menor, se não demonstrada ou provada qualquer
manifestação ofensiva ao decoro e capaz de deformar o caráter do adotado, por
mestre e cuja atuação é também entregue a formação moral e cultural de muitos
outros jovens. Apelo improvido (TJ/RJ, Apelação Cível 1998.001.14332, 9.ª Câmara
Cível, Relator Desembargador Jorge de Miranda Magalhães. Julgamento realizado em
23.03.1999 – sem grifos no original). Trecho do inteiro teor: “Como se vê do Relatório,
insurge-se o Ministério Público contra a sentença que deferiu ao apelado a adoção de
menor, com dez anos de idade, alegando-se que a entidade familiar,
constitucionalmente garantida, não enseja a adoção, e que o fato de o adotado passar
a conviver com dois homens homossexuais poder prejudicar-lhe a formação de caráter
e personalidade. O Ministério Público, neste Tribunal em seu bem lançado parecer de
fls. 82, afirmou: ‘ao nosso sentir, e do ponto de vista jurídico, entendemos que é
permissível tudo aquilo que a lei não veda... O problema do menor abandonado é dos
mais angustiantes da sociedade moderna... Desse estado, quase sempre caótico de
coisas, resulta a imensa falange de menores que passam a infância e adolescência
em instituições desprovidas de meios.’ Mas também se preocupa com as dúvidas
sobre a influência, mesmo involuntária do adotante sobre o menor em relação ao seu
comportamento afetivo. O quadro é, realmente, eivado de dúvidas e problemas, mas
entendemos que a sentença está correta.Como afirma seu ilustre prolator, o talentoso
Juiz Siro Darlan, a fls. 59: ‘Afirmam os expertos que ‘M. demonstra estar feliz com sua
inserção num contexto familiar. Os vínculos formados com o Sr. J. são de confiança e
parecem estar permitindo o desenvolvimento pleno do menino’ (Parecer psicológico,
fls. 41) e, ‘o menino exibia boa aparência, expressando-se com naturalidade,
parecendo-nos estar recebendo os cuidados necessários ao seu desenvolvimento
(Estudo Social, fls. 51)...’Percebe-se que sua experiência de anos à frente do juizado,
e a observação pessoal do caso ditou sua decisão, que nos parece ponderável. Será
preferível, a nosso juízo, correr o risco da dúvida, a deixar o adotado em uma
instituição de abandonados, já agora afastado e arrancado de uma adoção que tanto
orgulho e alegria lhe causam, o que, sem duvida, passará a ser razão de revolta, para
ele? Rompê-la para depois encaminhá-lo a uma escola de delinquência, como
acontecerá aos seus doze anos, no Educandário R.D., é muito mais indigno e
aterrorizante do que confiar na competência dos técnicos que emitiram os pareceres
favoráveis e manter a decisão que o entregou a uma adoção ‘cujas desconfianças e
suspeitas parecem não haver considerado a realidade e as circunstâncias do fato,
além de, d.v., fundadas em preconceitos que a lei veda’. Tais são as razões pelas
quais se mantém a bem a elaborada decisão” (sem grifo e destaques no original).
41 DIAS, Maria Berenice. União Homossexual – o Preconceito & a Justiça, 2.ª Edição,
Porto Alegre: Editora Livraria do Advogado, 2001, p. 275.
42 Novamente, parafraseei e interpretei o trecho em questão, cujo teor literal é o
seguinte: “Deixar uma criança desde o nascimento entregue à solidão dos orfanatos,
sem ninguém para estancar-lhe o pranto na hora da dor ou do medo, entregá-lo ao
desprezo público ao completar 18 anos, até que ela ceda ao clima da tentação e
acabe aumentando a população carcerária. Pouca coisa é necessária para transformar
inteiramente uma vida. Há tantas pessoas que ainda são más, porque até agora não
foram suficientemente amadas. Não se pode abafar o clamor de milhares de crianças
pedindo um lar. Melhor seria que não existissem crianças abandonadas, mas se
existem e podemos diminuir o sofrimento de algumas, devemos permitir que a
caridade social determine a justiça a ser aplicada ao caso” (ibidem, p. 275).
43 Itens 108 a 110 da decisão. Tradução livre. Grifo nosso.
44 Item 119 da decisão. Grifos nossos. Tradução livre.
45 Itens 121 e 122 da decisão. Tradução livre.
46 TEDH, caso Karner vs. Austria (n.º 40016/98). Nota do original.
47 TEDH, caso E.B. vs Francia (n.º 43546/02). Nota do original.
48 Itens 124 e 125 da decisão. Tradução livre.
49 “Cfr. T.E.D.H., Caso Laskey, Jaggard y Brown Vs. Reino Unido, (No. 21627/93;
21826/93; 21974/93), Sentença de 19 de fevereiro de 1997, par. 36 (“Não pode haver
dúvida de que a orientação sexual e a atividade [respectiva] concernem a um aspecto
íntimo da vida privada”). Ver também o Caso Dudgeon Vs. Reino Unido, (No. 7525/76),
Sentença de 22 de outubro de 1981, par. 52, e o Caso A.D.T. Vs. Reino Unido, (No.
35765/97), Sentença de 31 de Julho de 2000. Final, 31 de outubro de 2000, par. 23 (“a
Corte relembra que a mera existência de legislação proibindo a conduta de homens
homossexuais no âmbito privado pode afetar direta e continuamente a vida privada
das pessoas”)”. Nota do original (traduções livres).
50 “Cfr. Declaração escrita entregue pelo perito Robert Wintemute em 16 de setembro de
2011 (expediente de fundo, tomo XI, folha 5360). Assim mesmo, assinalou a Suprema
Corte do Canadá no Caso Egan v. Canadá que “[a] orientação sexual é mais do que
simplesmente um ‘status’ que um indivíduo possui: ela é demonstrada por meio da
conduta de um indivíduo na eleição de seu(ua) parceiro(a). Justamente pela Carta
[Canadense de Direitos e Liberdades] proteger as crenças religiosas e a prática
religiosa como aspectos da liberdade de religião, assim também deveria reconhecer-se
que a orientação sexual abarca aspectos de ‘status’ e ‘conduta’ e que ambos deveriam
receber proteção’ Egan v. Canada, [1995] 2 SCR, 513, 518 (expediente de fundo, tomo
XI, folha 5360)”. Nota do original (traduções livres).
51 “Cfr. T.E.D.H., Caso Pretty Vs. Reino Unido (No. 2346/02), Sentença de 29 de abril de
2002. Final, 29 de julho de 2002, par. 61 (‘o conceito de ‘vida privada’ é amplo e
insuscetível de definição exaustiva. Ele cobre a integridade física e psicológica de uma
pessoa. […] Ele pode algumas vezes abarcar aspectos de uma identidade física e
social do indivíduo. […] Elementos tais como, por exemplo, identidade de gênero,
nome, orientação sexual e vida sexual caem dentro da esfera pessoal protegida pelo
Artigo 8o. […] O Artigo 8o também protégé um direito ao desenvolvimento pessoal, e o
direito a estabelecer e desenvolver relacionamentos com outros seres humanos e o
mundo externo. […]. Embora nenhum caso prévio tenha estabelecido como tal
qualquer direito à autodeterminação como contido no Artigo 8o da Convenção, a Corte
considera que a noção de autonomia pessoal é um princípio importante subjacente à
interpretação de suas garantias’); Caso Schalk y Kopf Vs. Austria, (No. 30141/04),
Sentença de 24 de junho de 2010, 22 de novembro de 2010, par. 90 (‘Não se disputa
(...) que o relacionamento um casal do mesmo sexo como os requerentes se
enquadram na noção de (...) vida privada (...) do Artigo 8o’); Caso Dudgeon, supra nota
156, parr. 41 (‘a manutenção em vigência da legislação impugnada constitui uma
contínua interferência no direito do requerente ao respeito à sua vida privada (que
inclui a vida sexual dele) dentro do significado do Art. 8, par. 1o’); Caso Burghartz Vs.
Suiza, (No. 16213/90), Sentença de 22 de fevereiro de 1994, parr. 24, e Caso Laskey,
Jaggard y Brown, supra nota 156, parr. 36”. Nota do original (traduções livres).
52 “Cfr. T.E.D.H., Caso Peck Vs. Reino Unido, (No. 44647/98), Sentença de 28 de janeiro
de 2003. Final, 28 de abril de 2003, par. 57 (‘[O direito à] Vida privada é ampl[o] e não
é suscetível de definição exaustiva. A Corte já decidiu que elementos tais como
identidade de gênero, nome, orientação sexual e vida sexual são elementos
importantes da esfera pessoal protegida pelo Artigo 8o. Aquele Artigo também protege
um direito à identidade e ao desenvolvimento pessoal, o direito à estabelecer e
desenvolver relacionamentos com outros seres humanos e com o mundo externo e
pode incluir atividades de natureza profissional ou negocial. Há, portanto, uma zona de
interação de uma pessoa que outros, mesmo em um contexto público, que podem se
incluir no escopo [do direito à] vida privada’), citando T.E.D.H., Caso P.G. y J.H. Vs.
Reino Unido (No. 44787/98), Sentença de 25 de setembro de 2001. Final 25 de
dezembro de 2001, par. 56. Cfr. T.E.D.H., Caso Niemietz Vs. Alemania, (No.
13710/88), Sentença de 16 de dezembro de 1992, par. 29 (‘A Corte não considera
possível ou necessário tentar elaborar uma definição exaustiva da noção de ‘vida
privada’. Contudo, seria também muito restritivo limitar a noção a um ‘círculo interior’
[inner circle] no qual o indivíduo possa viver sua própria vida pessoal como ele
escolher e excluir dali totalmente o mundo externo não incluído nesse círculo. O
respeito à vida privada deve também abranger em certo grau o direito a estabelecer e
desenvolver relacionamentos com outros seres humanos. Ademais, não parece haver
razão de princípio para que esse entendimento da noção de ‘vida privada’ deveria
excluir atividades de natureza profissional ou negocial porque é, afinal, no curso de
suas vidas profissionais que a maioria das pessoas têm uma significativa, senão a
maior, oportunidade de desenvolverem relacionamentos com o mundo externo’). Nota
do original (traduções livres).
53 “Mutatis mutandi, Caso Chaparro Álvarez y Lapo Íñiguez. Vs. Ecuador. Excepciones
Preliminares, Fondo, Reparaciones y Costas. Sentença de 21 de novembro de 2007.
Série C No. 170, par. 52” (nota do original).
54 “Corte Constitucional da Colômbia, Sentença T-499 de 2003. A Corte Constitucional
definiu o direito ao livre desenvolvimento da personalidade, consagrado no artigo 16
da Constituição Política da Colômbia, como o direito das pessoas a ‘optar por seu
plano de vida e desenvolver sua personalidade conforme seus interesses, desejos e
convicções, sempre e quando não afetem direitos de terceiros, nem vulnerem a ordem
constitucional’ (Corte Constitucional, Sentencia C-309 de 1997), y ‘a capacidade das
pessoas para definir, de forma autônoma, as opções vitais que irão guiar o curso de
sua existência’ (Corte Constitucional, Sentença SU-642 de 1998)”. Nota do original
(traduções livres).
55 “Suprema Corte de Justiça da Nação do México, Ação de inconstitucionalidade A.I.
2/2010, 16 de agosto de 2010, pars. 263 e 264”. Nota do original (tradução livre).
56 Itens 133 e 134 da decisão. Tradução livre.
57 “Cfr. T.E.D.H., Caso Clift, supra nota 101, párr. 57 (‘a Corte considerou constituir
‘outros status’ características as quais, assim como nos casos dos exemplos
específicos listados no Artigo, se pode dizer serem pessoais no sentido que elas são
inatas ou inerentes. Portanto em Salgueiro da Silva Mouta, […] ela considerou que a
orientação sexual era ‘indubitavelmente coberta pelo Artigo 14’)”. Nota do original
(tradução livre).
58 “Cfr. T.E.D.H., Caso M. y C. Vs. Rumania, (No. 29032/04), Sentença de 27 de
setembro de 2011. Final, 27 de dezembro de 2011, par. 147, e Caso Palau-Martinez,
supra nota 125, aonde o Tribunal Europeu estabeleceu que uma decisão judicial sobre
a entrega da custódia de menores de idade a uma instituição estatal não deve levar
em conta em abstrato os possíveis efeitos de uma determinada condição dos pais
sobre o bem-estar do menos de idade quando dita condição se encontra protegida
contra tratamentos discriminatórios”. Nota do original (tradução livre).
59 Item 127 da decisão. Tradução livre. Grifo nosso.
60 “Cfr. declaração entregue pelo perito Rodrigo Uprimny na audiência pública realizada
em 23 de agosto de 2011, fazendo referência a: Associação Americana de Psicologia,
Policy Statement on Sexual Orientation, Parents, & Children, Adotada pela APA
Council of Representatives em 287 de Julho de 2004. (‘Não existem provas científicas
de que a efetividade parental esteja relacionada com a orientação sexual dos
progenitores: as mães e os pais homossexuais são tão propensos como as mães e os
pais heterossexuais a proporcionar um entorno são e propício para seus filhos [e...] a
ciência tem demonstrado que a adaptação, o desenvolvimento e o bem-estar
psicológico das crianças não estão relacionados com a orientação sexual dos
progenitores, e que os filhos de pais homossexuais têm as mesmas probabilidades de
desenvolver-se que os de pais heterossexuais’. Disponível em:
http://www.apa.org/about/governance/council/policy/parenting.aspx (última visita em 19
de fevereiro de 2012). Da mesma forma, ver a declaração escrita entregue pela perita
Allison Jernow em 16 de setembro de 2011, mencionando os seguintes estudos: R.
McNair, D. Dempsey, S. Wise, A. Perlesz, Lesbian Parenting: Issues Strengths and
Challenges [Parentalidade Lésbica: Temas que Fortalecem e Desafios], em: Family
Matters Vol. 63, 2002, Pág. 40; A. Brewaeys, I. Ponjaert, E.V. Van Hall, S. Golombok,
Donor insemination: child development and family functioning in lesbian mother
families [Inseminação artificial: desenvolvimento e funcionamento familiar em famílias
de mães lésbicas], em: Human Reproduction Vol. 12, 1997, Pág. 1349 y 1350; Fiona
Tasker, Susan Golombok, Adults Raised as Children in Lesbian Families [Adultos
Criados como Crianças em Famílias Lésbicas], American Journal Orthopsychiatry Vol.
65, 1995, Pág. 203; K. Vanfraussen, I. Ponjaert-Kristofferson, A. Breways, Familiy
Functioning in Lesbian Families Created by Donor Insemination [Funcionamento
Familiar em Famílias Lésbicas criadas por Inseminação Artificial], em: American
Journal of Orthopsychiatry Vol. 73, 2003, Pág. 78; Marina Rupp, The living conditions
of children in same-sex civil partnerships [As condições vivas de crianças em parcerias
civis do mesmo sexo], Ministerio Federal de Justiça da Alemanha, 2009, Pág. 27;
Henry M.W. Bos, Frank van Balen, Dymphna C. van den Boom, Experience of
parenthood, couple relationship, social support, and child-rearing goals in planned
lesbian mother families [Experiência de parentalidade, relacionamento conjugal, apoio
social e objetivos na criação de crianças em famílias de mães lésbicas], em: Journal of
Child Psychology and Psychiatry Vol. 45, 2004, Pág. 755; Rafael Portugal Fernandez,
Alberto Arauxo Vilar, Aportaciones desde la salud mental a la teoría de la adopción en
parejas homosexuales [Aportes desde a saúde mental à teoria da adoção por pares
homossexuais], em: Avances en salud mental relacional Vol. 3, 2004. Neste estudo se
indica que ‘tampouco se encontram diferenças significativas entre homossexuais e
heterossexuais relativamente à qualidade com que exercem sua função como pais’ e
que ‘a investigação realizada até o momento assinala de maneira unânime que não há
diferenças significativas entre os filhos criados por homossexuais e os filhos criados
por heterossexuais em termos de identidade sexual, tipificação sexual, orientação
sexual, relações sexuais com companheiros e adultos, relações de amizade,
popularidade’; Stéphane Nadaud, «Quelques repères pour comprendre la question
homoparentale» [Alguns aportes para compreender a questão homoparental], em: M.
Gross, Homoparentalités, état des lieux, Ed. érès «La vie de l’enfant», Toulouse, 2005,
y Fiona Tasker, Susan Golombok, Adults Raised as Children in Lesbian Families, en:
American Journal Orthopsychiatry Vol. 65, 1995, Pág. 203. Cfr. declaração escrita
entregue pela perita Allison Jernow de 16 de setembro de 2011 (expediente de fundo,
tomo XI, folhas 5079 e 5080)”. Nota do original (traduções livres).
61 “Cfr. declaração escrita entregue pela perita Allison Jernow em 16 de setembro de
2011, mencionando os casos Re K and B and Six Other Applications, Suprema Corte
de Ontario, 24 de maio de 1995, par. 89; Boots v. Sharrow, Suprema Corte de Justiça
de Ontario, 2004 Can LII 5031, 7 de janeiro de 2004; Bubis v. Jones, Suprema Corte
de Ontario, 2000 Can LII 22571, 10 de abril de 2000, Superior Tribunal de Justiça
(Brasil), Ministério Público do Estado de Rio Grande do Sul v. LMGB, 27 de abril de
2010, e Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul (Brasil), Adopción de VLN, No.
1605872, 3 de julho de 2006. Cfr. declaração escrita entregue pela perita Allison
Jernow de 16 de setembro de 2011 (expediente de fundo, tomo XI, folhas 5082 e
5083)”. Nota do original (tradução livre).
62 “Cfr. Declaração escrita entregue pela perita Allison Jernow em 16 de setembro de
2011 na qual se cita: Relatório de Amici Curiae apresentado pela Associação
Americana de Psicologia, Associação de Psicologia do Arkansas, Associação de
Assistentes Sociais e Associação Nacional de Assistentes Sociais, Capítulo do
Arkansas, em Department of Human Services v. Matthew Howard, Suprema Corte de
Arkansas (Dezembro de 2005), nas páginas 10-11 (‘A Associação Americana de
Psicologia descreveu os estudos como ‘impressionantemente consistentes em sua
falha em identificar quaisquer déficits no desenvolvimento de crianças criadas em lares
lésbicos ou gays (...) as habilidades de pessoas gays e lésbicas como pais e o
resultado positivo para seus filhos não são áreas nas quais pesquisadores científicos
de credibilidade discordam’. Cfr. declaração escrita entregue pela perita Allison Jernow
em 16 de setembro de 2011 (expediente de fundo, tomo XI, folha 5081)”. Nota do
original (tradução livre).
63 Item 128 da decisão. Tradução livre.
Capítulo 17

DO DIREITO COMPARADO

“O direito é invadido pelos fatos, pela realidade das ruas, que o


obriga a reformular-se, reconhecendo a existência de espaços por
ele não abrangidos, ainda que buscando garantir sua própria
sobrevivência e preservar os parâmetros em que se encontra
organizado, tentando evitar uma fratura entre as duas esferas
(direito posto e direito vivido)”. – Carmem Lúcia Silveira Ramos.1

1. CONSIDERAÇÕES PRELIMINARES
A questão dos direitos dos casais homoafetivos é assunto corrente em
todas as partes do mundo. Não se trata de questão tratada exclusivamente
em determinado grupo de países, mas de tema recorrente em pelo menos
todos os países que tornaram a política independente da religião.
Nesta parte do trabalho será exposto o tratamento dado às uniões
homoafetivas ao redor do mundo, sendo dada ênfase àqueles países que
efetivamente reconheceram expressamente direitos a ditos casais. Dessa
forma, adotando-se a classificação elaborada por Maria Berenice Dias,
podem ser classificados os países do mundo com relação ao tratamento que
conferem aos casais homossexuais, quais sejam:

1) os de extrema repressão;
2) os de modelo intermediário; e
3) os de modelo expandido.
1.1 Países de extrema repressão às uniões homoafetivas
No primeiro bloco encontram-se os países que não admitem em sua
legislação que duas pessoas do mesmo sexo mantenham entre si um
relacionamento amoroso, conferindo punições criminais, inclusive a de
morte, àqueles que desobedecem este mandamento legal.
Encontram-se neste bloco os países islâmicos (embora não apenas
eles), que têm uma estrutura teocrática de governo – ou seja, em que a
política é dirigida pela religião. Nos países teocráticos e mesmo nos
confessionais (em que a política é influenciada pela religião), usualmente
ocorre violenta repressão aos homossexuais, uma vez que a interpretação
que normalmente os líderes religiosos dão a seus livros sagrados é a de que
Deus seria contrário à união amorosa entre pessoas do mesmo sexo. Em tais
países, conforme citado, a homossexualidade é até mesmo criminalizada,
não havendo ainda espaço para o reconhecimento dos direitos de seus
cidadãos homossexuais no presente momento, o que só ocorrerá quando a
sabedoria divina que tanto dizem seguir iluminar o pensamento daqueles
povos para que comecem a respeitar a diversidade humana, quando
finalmente deixarão de considerar o amor por pessoas do mesmo sexo como
um ato ilícito.
Aliás, tais países seguramente são os principais responsáveis pela
elaboração dos Princípios de Yogyakarta, que visam combater a
discriminação por orientação sexual e identidade de gênero, no sentido de
que os países do mundo deixem de perpetrar tais discriminações mediante a
garantia da série de direitos ali especificados2, que nada mais são do que
aplicações dos diretos humanos fundamentais às pessoas
independentemente de sua orientação sexual ou identidade de gênero.
Deve-se ressaltar que o simples fato de se ter tido a necessidade de enunciar
os direitos (nominados como princípios) constantes de dita declaração
demonstra o quanto homossexuais, bissexuais e transexuais são
desrespeitados mundo afora, razão pela qual não se afigura desnecessária tal
declaração – ao contrário, veio em muito boa hora, para apontar ao mundo
que este deve respeitar as pessoas independentemente de suas orientações
sexuais ou identidades de gênero; ou seja, que deve respeitar todas as
orientações sexuais e identidades de gênero.
1.2 Do bloco intermediário
Nos países do bloco intermediário há a descriminalização da união
homoafetiva, todavia inexiste da mesma forma uma regulamentação a
respeito, pairando um vazio legislativo a respeito do tema. Em outras
palavras, a união amorosa entre duas pessoas do mesmo sexo não é mais
punida pelo ordenamento jurídico desses países, sendo em muitos deles
consagrado o princípio da não discriminação, sem, entretanto, haver
disposições expressas acerca das uniões homossexuais.
Assim, nesses países (entre eles o Brasil3) o assunto permanece em
discussão nas Casas Legislativas para que sejam elaboradas leis específicas
disciplinando os efeitos jurídicos a serem conferidos às uniões
homoafetivas. Essa situação, que deixa os casais homoafetivos em situação
de desamparo jurídico, acaba sendo decidida pelo Poder Judiciário desses
Estados, que terminam por reconhecer alguns efeitos jurídicos a partir de
regras de hermenêutica, tais como a interpretação extensiva e a analogia,
como decorrência da isonomia e a dignidade humana.
No caso brasileiro, a concessão de direitos pelo Judiciário se justifica
em razão de o art. 4.º da LINDB estabelecer que, “quando a lei for omissa,
o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os costumes e os princípios
gerais de direito”, além do análogo art. 126 do CPC. Assim, deparando-se o
juiz brasileiro com a demanda de um casal homoafetivo que pleiteia por
seus direitos não expressamente reconhecidos pelo ordenamento jurídico,
não pode ele indeferir a petição inicial sob o argumento de que inexiste
legislação pátria a respeito. Deve ele, a partir da analogia, dos costumes e
dos princípios gerais do Direito, decidir a questão, daí já terem sido
conferidos alguns direitos às uniões homoafetivas brasileiras.
Não se pode deixar de reconhecer que os efeitos jurídicos obtidos até o
presente momento por nosso ordenamento jurídico se assemelham em
muito àqueles outrora reconhecidos ao então denominado concubinato
puro, que era a definição que se dava à atual união estável
constitucionalmente consagrada pelo art. 226, § 3.º, da CF/1988. Isso
porque, como o casamento civil era para o CC/1916 a única forma de
formar a família “legítima”, a união não eventual entre duas pessoas não
impedidas de se casar configurava concubinato, não sendo a elas
reconhecidos os efeitos jurídico-familiares do Direito de Família, tal como
parte dominante da doutrina e da jurisprudência fazem atualmente com a
união homoafetiva.
Um caso a ser destacado é a decisão da Suprema Corte do Havaí a
respeito de uma ação promovida por três casais homossexuais que
processaram o Estado por ter-lhes negado a licença para o casamento.
Decidiu a Suprema Corte Havaiana (em 1993) que a negativa da licença aos
casais homoafetivos configura discriminação arbitrária, que afronta o
princípio da isonomia (denominado naquele país de equal protection
doctrine, que, em tradução livre, significa “doutrina da igual proteção”, o
que equivale ao nosso preceito isonômico), tendo em vista a inexistência de
motivação racional que a justificasse4. Dita decisão acabou por obrigar o
Tribunal inferior, que havia negado provimento ao recurso, a proferir nova
decisão em que foi concedida a licença de casamento para os casais autores.
Essa decisão estadual é um marco jurídico na defesa dos direitos de
casais homoafetivos5, pois reconhece que a discriminação destes
unicamente devido à orientação sexual do par afronta o princípio da
igualdade, visto inexistir fundamento lógico-racional que a justifique ante o
critério desigualador erigido (qual seja a orientação sexual do par). É
verdade que, não muito tempo depois, em 1996, foi promulgada uma lei
federal pelo então Presidente Bill Clinton, conhecida por Act of Defense of
Marriage (“Ato de Defesa do Casamento”), em que se declarou que para a
Federação Estadunidense o casamento civil seria o ato realizado somente
entre o homem e a mulher, não sendo os Estados-Membros que não
admitem o casamento civil homoafetivo obrigados a reconhecer aqueles
celebrados por outros Estados. Tal posicionamento foi reiterado
ostensivamente pelo Presidente George W. Bush, reeleito em 2004, que
declarou em cadeia nacional que (para ele) o casamento (civil) somente
poderia ser realizado por pessoas de sexos diversos e que pretendia aprovar
uma emenda constitucional que deixe isso expresso (ele efetivamente tentou
no ano de 2006, mas não conseguiu os votos necessários do Senado
Estadunidense para conseguir aprovar dita emenda constitucional). Na
verdade George W. Bush fez sua campanha apoiada nos setores mais
conservadores da sociedade estadunidense, o que acabou surtindo efeito
devido ao fato de ter conseguido sua reeleição. No caso específico das
uniões homoafetivas, sua campanha obteve o resultado esperado: em todos
os Estados que realizaram votação no sentido de quererem ou não suas
populações a legalização da união homoafetiva, a resposta foi a mesma:
não.
Em que pese o viés político sofrido pela militância homossexual
estadunidense nesse sentido, há em verdade dois pontos positivos que
merecem ser destacados: primeiramente, destaca-se que a Constituição dos
Estados Unidos não restringe o casamento civil apenas às uniões
heterossexuais, estando esse assunto em aberto naquele diploma
constitucional – tanto o é que dito presidente demonstrou interesse na
aprovação de emenda constitucional para que isso ocorresse. Em segundo
lugar, esse posicionamento foi tomado pelo Poder Legislativo, que elaborou
a citada lei, e pelo Presidente da República, membro do Poder Executivo,
que sancionou a lei, e não pelo Poder Judiciário. Em outras palavras, tratou-
se de decisão puramente política, que não considerou o ordenamento
jurídico daquele país para ser tomada. O que se quer dizer é que pode
perfeitamente a Suprema Corte Estadunidense, da mesma forma que fez a
havaiana, declarar a inconstitucionalidade da discriminação das uniões
homoafetivas em relação às heteroafetivas decorrente desse “Ato de Defesa
do Casamento”, por afronta ao preceito isonômico, assim como de eventual
emenda constitucional aprovada pelo Poder Constituinte Derivado (ao
menos no sistema brasileiro isso é possível).
Pode-se dizer, portanto, que nos países de modelo intermediário
dependem os casais homoafetivos de decisão do Poder Judiciário para que
tenham seus direitos resguardados, até que sejam reconhecidos
expressamente seus direitos pelo Poder Legislativo desses Estados. Isso não
quer dizer que seja impossível juridicamente o casamento civil entre duas
pessoas do mesmo sexo nesses países, mas apenas que o Poder Judiciário
destes deve isto declarar quando provocado pelos interessados, uma vez que
a interpretação corrente que se dá ao matrimônio civil nesses Estados é a de
que ele só poderia ser realizado por heterossexuais, o que configura afronta
aos princípios da igualdade, da dignidade da pessoa humana, da promoção
do bem-estar de todos, da pluralidade, da laicidade e da liberdade de
consciência, por tudo o que já se expôs neste trabalho. Aponte-se, ainda,
que foi por meio de ações judiciais que chegaram a suas Supremas Cortes
que a África do Sul, o Canadá e o Estado de Massachusetts/EUA
conseguiram a aprovação do casamento civil homoafetivo. Isso porque,
após a declaração da inconstitucionalidade da proibição deste, os Tribunais
impuseram aos Legislativos a elaboração das leis respectivas, que foram
aprovadas, permitindo-o expressamente.
Cabe, ainda, transcrever o longo relato apresentado na Representação
visando à impetração de Arguição de Descumprimento de Preceito
Fundamental para o reconhecimento da união estável homoafetiva6, por
altamente elucidativo da posição do Direito Comparado a respeito do tema
das uniões homoafetivas:

No Canadá, a jurisprudência da Suprema Corte reconheceu, no


julgamento do caso M. v. H.7, que a norma que permitia a concessão de
alimentos a parceiros em uniões estáveis entre pessoas de sexo oposto,
mas não estendia a possibilidade a companheiros do mesmo sexo, era
inconstitucional, por violar o direito à igualdade.
Invocado este precedente, várias Cortes estaduais proferiram
decisões declarando que a definição de casamento existente na
common law canadense, que circunscrevia a instituição às relações
entre homem e mulher, violaria também o princípio da igualdade, por
discriminar injustificadamente os homossexuais.
O mais conhecido e importante destes precedentes foi o caso
Halpern v. Attorney General of Canadá8, julgado em 2003 pela Corte
de Apelações de Ontário. Neste julgamento, depois de reconhecer a
importância do casamento para os cônjuges, não apenas pelos
benefícios que envolve, mas por representar “uma expressão de
reconhecimento público da sociedade das expressões de amor e
compromisso entre indivíduos, conferindo a elas respeito e
legitimidade”, o Tribunal canadense afirmou que a exclusão das
uniões homossexuais do âmbito da instituição representaria
discriminação motivada por orientação sexual, constitucionalmente
vedada.
Provocado por esta e outras decisões judiciais, o Parlamento
aprovou, em 2003, nova legislação estendendo o casamento às pessoas
do mesmo sexo em todo o país. Mas antes que a lei entrasse em vigor,
ele consultou a Suprema Corte, solicitando que esta se manifestasse
sobre a constitucionalidade da medida (a jurisdição constitucional
canadense contempla esta hipótese de consulta prévia).
A resposta da Corte, proferida em Reference re Same-Sex
Marriage9 foi afirmativa. Segundo o tribunal, o projeto de lei em
questão não apenas não violava a Constituição, como antes derivava
diretamente do direito à igualdade na Carta Canadense de Direitos e
Liberdades, que integra o bloco de constitucionalidade daquele país.
Já na Hungria, a instituição de união entre pessoas do mesmo
sexo decorreu de uma decisão do seu Tribunal Constitucional. A Corte
Húngara – certamente o mais respeitado tribunal constitucional da
Europa Oriental – rejeitou, em 1995, a alegação de que haveria
violação aos princípios da igualdade e dignidade humana na não
extensão do casamento aos casais homossexuais. Todavia, em relação
à união estável, ela afirmou que “uma união de vida duradoura entre
duas pessoas encerra valores que devem ser legalmente reconhecidos
com base na igual dignidade das pessoas afetadas, sendo irrelevante o
sexo dos companheiros”10.
Com base neste entendimento, a Corte Constitucional da Hungria
reconheceu a inconstitucionalidade da não extensão da união estável
aos casais formados por pessoas do mesmo sexo11. Na sua decisão, ela
estabeleceu algumas possibilidades através das quais o legislador
poderia alterar as normas vigentes, de modo a torná-las compatíveis
com a Constituição, o que veio a fazer em 1996.
Também em Israel, o Poder Judiciário desempenhou um papel
essencial no reconhecimento da união entre pessoas do mesmo sexo,
que é hoje aceita pela common law do país. A decisão seminal na
matéria foi o caso El-Al Israel Airlines v. Danilowitz12, julgado em
1994, no qual a Suprema Corte decidiu que constituía discriminação
vedada a prática de uma companhia aérea, que concedia determinados
benefícios aos parceiros do sexo oposto dos seus funcionários, mas não
a estendia aos companheiros do mesmo sexo.
Na decisão, redigida pelo Presidente da Corte Aharon Barak, foi
formulada e respondida a questão essencial da controvérsia sobre as
uniões homossexuais: “A parceria entre pessoas do mesmo sexo difere
em termos de parceria, fraternidade e administração da cédula social
em relação à parceria entre pessoas de sexo diferente?”. A resposta do
Chief Justice foi taxativa: “A diferença estabelecida entre as parcerias
de pessoas de sexo diferente e pessoas do mesmo sexo é uma explícita
e descarada discriminação”.
Nos Estados Unidos, por sua vez, os avanços que ocorreram nesta
matéria deram-se sobretudo no plano do constitucionalismo estadual.
Até porque, até o julgamento do caso Lawrence v. Texas13, em 2003, a
Suprema Corte entendia que nem mesmo a criminalização das práticas
homossexuais violava a Constituição14.
A primeira decisão importante foi a proferida pela Suprema Corte
do Estado do Havaí, no ano de 1996, em Nina Baehr and Genora
Dancel et al. v. John C. Lewin15. Neste julgamento, a partir da
constatação de que o direito ao casamento é um direito fundamental,
considerou-se que a sua não extensão aos homossexuais que
pretendessem casar-se com pessoas do mesmo sexo importava em
violação ao princípio da igualdade, tal como plasmado pela
Constituição Estadual.
Não obstante, tal decisão provocou uma forte reação contrária,
que levou a aprovação de uma emenda à Constituição do Havaí, em
1998, que permitiu expressamente ao legislador que excluísse, do
âmbito do casamento, as uniões entre pessoas do mesmo sexo. O
legislador de fato extinguiu o casamento entre pessoas do mesmo sexo,
mas adotou solução compromissária, instituindo a figura dos
‘beneficiários recíprocos’ (reciprocal beneficiaries), que confere uma
série de direitos e obrigações para os parceiros do mesmo sexo.
Também no Alaska, a Suprema Corte estadual reconheceu a
inconstitucionalidade da não extensão do direito ao casamento aos
casais formados por pessoas do mesmo sexo16. Contudo, a conquista
não durou muito tempo, pois a população daquele Estado aprovou, em
plebiscito, emenda à Constituição que definiu o casamento como união
entre homem e mulher, visando a reverter aquele precedente.
Já no Estado de Vermont, a Suprema Corte Estadual decidiu em
1999 o caso Baker x. State17, reconhecendo a ocorrência de
discriminação atentatória contra a Constituição Estadual na negação do
direito ao casamento aos casais homossexuais. Nas palavras da Corte,
“a Constituição de Vermont determina que toda a miríade de direitos,
privilégios e benefícios que decorrem do casamento civil devem ser
colocados à disposição de todos os cidadãos, sem qualquer
discriminação baseada na orientação sexual”.
Na citada decisão, o Tribunal abriu duas alternativas para o
legislador corrigir a inconstitucionalidade, dizendo que ele poderia
estender o casamento às pessoas do mesmo sexo, ou criar algum novo
instituto, que conferisse aos parceiros os mesmos benefícios e
responsabilidades inerentes ao casamento. Esta segunda alternativa foi
preferida pelo legislativo estadual, que aprovou no ano de 2000 uma
nova lei, instituindo a figura da união civil para pessoas do mesmo
sexo18.
Em Massachusetts, por sua vez, a Suprema Corte Estadual
decidiu em 2003, no caso Goodridge v. Department of Public Health19,
que a não extensão do casamento às pessoas do mesmo sexo violaria
as cláusulas da igualdade e do devido processo legal da Constituição
daquele Estado. Isto porque, considerou que, em razão da importância
do casamento, ele deveria ser considerado uma liberdade fundamental,
e que as razões invocadas pelo Estado para não estendê-lo aos
homossexuais não seriam suficientes para justificar a discriminação
albergada pela legislação estadual. Os efeitos da decisão foram
suspensos por 180 dias, para dar tempo ao legislador para adequar a lei
a esta nova orientação.
Durante este prazo, o Senado de Massachusetts formulou uma
consulta à Suprema Corte do Estado, indagando se seria possível
cumprir a decisão criando a união civil para os homossexuais, que lhes
atribuísse direitos e responsabilidades equivalentes aos envolvidos no
casamento. A resposta da Suprema Corte, formulada em In re Opinion
of the Justices to the Senate20, foi negativa. Nas suas palavras:
“A proibição absoluta do uso da palavra ‘casamento’ pelos
‘cônjuges’ do mesmo sexo é mais do que semântica. A diferença entre
as expressões ‘casamento civil’ e ‘união civil’ não é inócua: trata-se
de uma escolha linguística que reflete a atribuição aos casais do
mesmo sexo, predominantemente homossexuais, um status de segunda
classe... A Constituição de Massachusetts, como explicado no caso
Goodrige, não permite esta odiosa discriminação, não importa quão
bem intencionada seja”.
E a decisão mais recente nos Estados Unidos reconhecendo o
direito equivalente ao casamento para casais formados por pessoas do
mesmo sexo foi proferida pela Suprema Corte do Estado de New
Jersey em outubro de 2006, no caso Mark Davis and Dennis Winston
et al. v. Gewsndolyn L. Harris et. Al.
Nesta decisão, fundamentando-se na cláusula da igualdade na
Constituição estadual, a Corte de New Jersey afirmou que “negar a
casais comprometidos formados por pessoas do mesmo sexo os
benefícios financeiros e sociais e os privilégios concedidos aos casais
heterossexuais casados não guarda qualquer relação substancial com
algum objetivo governamental legítimo”. Em razão disso, ela decidiu
que os casais de pessoas do mesmo sexo devem ter exatamente os
mesmos direitos e benefícios que os casais heterossexuais casados,
mas ressalvou que o nome a ser atribuído a esta parceria – se
casamento ou não – poderia ser decidido pelo legislador, no âmbito do
processo democrático.
Finalmente, cabe examinar o caso da África do Sul, cuja
Constituição expressamente proíbe as discriminações fundadas em
orientação sexual no seu art. 9.3. Vale destacar que a Corte
Constitucional daquele país tem-se notabilizado pelo seu ativismo em
matéria de defesa dos direitos dos homossexuais, tendo proferido uma
série de decisões históricas nesta matéria, como o Home Affairs21, em
que equiparou, para os fins da lei de imigração, os estrangeiros casados
com sul-africanos aos que matem com eles relações homoafetivas; o
Satchwell22, em que determinou a extensão aos parceiros do mesmo
sexo das pensões concedidas aos cônjuges heterossexuais; o Du Toit23,
em que reconheceu o direito de casais homossexuais de realizarem
adoções conjuntas, e o J.24, em que equiparou à situação legal do
marido, a parceira homossexual de mulher que fora inseminada
artificialmente.
A Corte enfrentou a questão do casamento entre pessoas do
mesmo sexo no caso Minister os Home Affairs and Another v. Marie
Adrianana Fourie and Another25, quando decidiu que tanto a common
law sul africana, como a legislação em vigor no país, violavam a
Constituição, por não abrigarem esta possibilidade. Na sua alentada
decisão, o Tribunal afirmou:
“A exclusão dos casais do mesmo sexo dos benefícios e
responsabilidades do casamento, portanto, não é uma pequena e
tangencial inconveniência resultante de uns poucos resquícios do
prejuízo social, destinado a evaporar como o orvalho da manhã. Ela
representa a afirmação dura, ainda que oblíqua, feita pela lei, de que
os casais do mesmo sexo são outsiders, e que a necessidade de
afirmação e proteção das suas relações é de alguma forma menor do
que a dos casais heterossexuais. Ela significa que a sua capacidade
para a amor, compromisso e aceitação da responsabilidade é por
definição menos merecedora de consideração do que a dos casais
heterossexuais.
... Pode ser, como sugere a literatura, que muitos dos casais do
mesmo sexo fossem abjurar a imitação ou a sua subordinação às
normas heterossexuais... Porém, o que está em jogo não é a decisão a
ser tomada, mas a escolha disponível. Se os casais heterossexuais têm
a opção de decidir se vão casar ou não, então também os casais do
mesmo sexo devem ter esta escolha... Daí por que, considerando a
centralidade atribuída ao casamento e as suas consequências na nossa
cultura, negar aos casais do mesmo sexo a escolha a este respeito é
negar o seu direito à autodefinição da maneira mais profunda”.
Portanto, verifica-se no Direito Comparado não só uma forte
tendência ao reconhecimento da união entre pessoas do mesmo sexo,
como também, em alguns casos, o protagonismo do Poder Judiciário
nesta seara, diante do preconceito ainda presente nas instâncias de
representação popular.

Como se vê, a jurisprudência extraída do Direito Comparado realmente


demonstra a forte tendência mundial ao reconhecimento dos direitos dos
casais homoafetivos, inclusive no que tange ao casamento civil em diversos
casos. Cabe-me, apenas, reiterar meu entendimento de que o casamento
civil já é uma união civil, donde não há que se criar outra exclusivamente
para homossexuais, pois se isso resolve o problema da isonomia caso sejam
concedidos os mesmos direitos aos casais homoafetivos do que os
concedidos pelo casamento civil aos casais heteroafetivos, ainda causa o
estigma de que as uniões homoafetivas não seriam tão dignas quanto as
heteroafetivas, pois, do contrário, seriam elas incluídas no casamento civil e
não em uma outra união civil qualquer. Esta última hipótese implicaria a
política do separados mais iguais, que tanto assolou a convivência de
negros e brancos ao redor do mundo, dado o seu caráter altamente
atentatório da dignidade daqueles que foram separados dos outros, ainda
que em pé de igualdade (pois, como dito, se não houvesse problemas de
dignidade não teria ocorrido a separação).
Por outro lado, ao menos no ordenamento jurídico brasileiro, é
absolutamente irrelevante que a postura totalitária de grupos majoritários
venha a conseguir aprovar leis ou emendas constitucionais que vedem
expressamente o casamento civil, a união estável e a adoção por casais
homoafetivos, pois ditas leis/emendas constitucionais serão flagrantemente
inconstitucionais por afronta aos princípios igualdade, da dignidade da
pessoa humana, da promoção do bem-estar de todos, da pluralidade, da
laicidade e da liberdade de consciência. Assim, se aprovadas, tais
leis/emendas deverão ser declaradas inconstitucionais, por afronta às citadas
cláusulas pétreas de nossa Constituição.
Anote-se, por oportuno, que entendo que o Brasil continua como país
do “modelo intermediário” porque, apesar de a histórica decisão do STF na
ADPF 132 e na ADI 4277 ter “força de lei”, fato é que a lei propriamente
dita ainda não reconhece a união homoafetiva como entidade familiar,
sendo, em tese, possível que, no futuro, uma composição mais conservadora
do STF decida de forma distinta e, assim, acabe com o histórico avanço da
referida decisão. Assim, até que a lei brasileira consagre o status jurídico-
familiar da união homoafetiva, o Brasil deve continuar sendo classificado
como país de “modelo intermediário”, consoante o citado critério de Maria
Berenice Dias.

1.3 Países de modelo expandido


Nesse terceiro bloco de países, além de não ser a homossexualidade
considerada um ato ilícito, são tomadas ações afirmativas pelos órgãos
legislativos dos mesmos, no sentido de serem expressamente
regulamentadas as uniões homoafetivas nesses Estados.
Nesse bloco aparecem os países nórdicos, inspirados pela Dinamarca,
que foi o primeiro país a legalizar a união entre pessoas do mesmo sexo por
meio da Lei 372, de 1989, que instituiu a Parceria Registrada naquele país,
que reconhece, com algumas exceções, os mesmos direitos conferidos pelo
casamento26. Na Noruega, foi promulgada a Lei 40, de 1993, que
igualmente instituiu a parceria civil registrada para casais homossexuais.
Essa lei garantiu às uniões homoafetivas a aplicação da mesma legislação
que regulamenta o casamento civil e sua dissolução, exceto quanto à
adoção, que é expressamente vedada. A grande diferença (e maior avanço)
desta lei para com a dinamarquesa é o fato de a lei norueguesa determinar
que os parceiros devem compartilhar da “autoridade parental”, equivalente
ao nosso atual poder familiar.
Diversos outros países seguiram a mesma tendência, merecendo
destaque as posições francesa, holandesa, belga, canadense e espanhola. Na
França, mediante alteração do Código Civil, foi instituído em 1999 o Pacto
Civil de Solidariedade, por meio da Lei 99-944, que possibilita a dois
adultos plenamente capazes organizar contratualmente a sua vida em
comum. Vale ressaltar que o PACS, como é conhecido, não se restringe às
uniões homoafetivas, podendo ser firmado por casais heteroafetivos,
constituindo verdadeira forma alternativa de união, tirando do casamento
civil o monopólio para consagração da união civil entre duas pessoas. É
curioso notar que, numericamente, são casais heteroafetivos que mais têm
aderido ao PACS desde sua instituição (mesmo porque heterossexuais
constituem a maior parcela da população)27.
Como se pode ver, o PACS é um contrato de convivência, no qual as
partes estabelecem a forma como será organizada sua vida patrimonial a
partir de sua celebração, devendo os celebrantes unicamente atentar para os
impedimentos e formalidades previstas na Lei 99-944, de 1999.
Além disso, merece destaque a posição holandesa. A Holanda é um
dos países mais avançados na questão dos direitos relativos às uniões
homoafetivas, visto que possibilita a estas, além do contrato de parceria
civil registrada (desde 1998), a consagração por meio do casamento civil,
haja vista que o Código Civil holandês permite expressamente os
casamentos civils homoafetivos desde o ano de 200128. Após o caso
holandês, a Bélgica, o Canadá e a Espanha, nessa ordem, igualmente
aprovaram leis permitindo expressamente o casamento civil homoafetivo,
deixando assim os pares homoafetivos em igualdade de condições com os
pares heteroafetivos – Espanha e Canadá após o Judiciário desses países ter
declarado inconstitucional a proibição do casamento civil homoafetivo.
O caso espanhol ganhou grande destaque na mídia internacional por se
tratar do primeiro país de origem latina a fazê-lo, tendo em vista que a
Igreja Católica Apostólica Romana ainda exerce uma exacerbada influência
em ditos países. O clero católico fez tudo o que pôde para evitar a
aprovação da lei, sem, contudo, obter êxito. E o fez não fundado em razões
jurídicas, mas apenas em seus dogmas religiosos contrários à união
homoafetiva29.
A vitória da militância homossexual na Espanha, assim, é um marco
histórico, pois demonstra que a sociedade humana está deixando de aceitar
dogmas arbitrários, irracionais para fundamentar discriminações jurídicas, o
que é um grande avanço. Não se está aqui querendo desmerecer religião
nenhuma, mas considerando que as instituições religiosas em geral, em
regra, sequer se dignam a justificar racionalmente suas posições, por se
acharem detentoras da “palavra de Deus”; assim, suas colocações nesse
sentido não devem ser acatadas pelo Direito.
A fé não supõe comprovação. Contudo, as discriminações jurídicas
devem, obrigatoriamente, ser pautadas pela demonstração da pertinência
lógico-racional de sua necessidade, sob pena de sua absoluta
inconstitucionalidade, pelo menos no caso brasileiro, que veda a
arbitrariedade por meio do princípio da isonomia, direito humano
fundamental e norma constitucional de eficácia plena que é.
Cite-se, por fim, o caso do estado de Massachusetts/EUA, cuja
Suprema Corte declarou a inconstitucionalidade da proibição do casamento
civil homoafetivo, que, desde então, passou a ser permitido naquele país.
Recentemente, o mesmo ocorreu no estado da Califórnia/EUA, embora o
totalitarismo de determinados grupos tenha conseguido assinaturas
suficientes para que seja efetuada uma votação plebiscitária para decidir se
o casamento civil deverá se restringir apenas a casais heteroafetivos.

2. SÍNTESE CONCLUSIVA DO CAPÍTULO


Os países que ainda se deixam influenciar política e juridicamente
pelas religiões ainda hoje proíbem as uniões homoafetivas, inclusive
criminalizando-as. Já naqueles países onde a homoafetividade não é
proibida, mas, igualmente, não é regulamentada, a ação judicial acaba
sendo a única forma de os homossexuais conseguirem o resguardo dos
direitos oriundos de suas uniões amorosas, com base nos princípios da
igualdade, da dignidade da pessoa humana e da interpretação extensiva ou
analogia.
Por fim, nos países ditos civilizados começa a haver uma
regulamentação da união entre duas pessoas do mesmo sexo, que caminham
cada vez mais para a igualação dos direitos desses casais para com os
heterossexuais, como consequência lógica dos princípios da igualdade e da
dignidade da pessoa humana consagrados nos respectivos ordenamentos
jurídicos, princípios estes também presentes no Direito brasileiro.
A partir do momento em que se consagra a ideia do Estado Laico, que
não deve ser influenciado pelas religiões, e de que a homossexualidade,
perante a ciência, não constitui doença, desvio psicológico, perversão nem
nada do gênero, então não há motivo a não ser o preconceito para justificar
o tratamento discriminatório às uniões homoafetivas, razão pela qual
merecem estas exatamente os mesmos direitos conferidos às heteroafetivas
– nem mais, nem menos.

1 RAMOS (Família sem casamento...), apud GIRARDI, Viviane. Famílias


Contemporâneas, Filiação e Afeto: A Possibilidade Jurídica da Adoção por
Homossexuais, 1.ª Edição, Porto Alegre: Editora Livraria do Advogado, 2005, p. 61,
em nota de rodapé.
2 Segue o rol, evidentemente exemplificativo, de direitos a serem reconhecidos aos
cidadãos independentemente de orientação sexual e identidade de gênero, tal qual
reconhecidos pelos Princípios de Yogyakarta: (i) Direito ao Gozo Universal dos Direitos
Humanos; (ii) Direito à Igualdade e à Não Discriminação; (iii) Direito ao
Reconhecimento Perante a Lei; (iv) Direito à Vida; (v) Direito à Segurança Pessoal; (vi)
Direito à Privacidade; (vii) Direito a não Sofrer Privação Arbitrária da Liberdade; (viii)
Direito a um Julgamento Justo; (ix) Direito a Tratamento Humano durante a Detenção;
(x) Direito a não Sofrer Tortura e Tratamento ou Castigo Cruel, Desumano e
Degradante; (xi) Direito à Proteção contra Todas as Formas de Exploração, Venda ou
Tráfico de Seres Humanos; (xii) Direito ao Trabalho; (xiii) Direito à Seguridade Social e
outras Medidas de Proteção Social; (xiv) Direito a um Padrão de Vida Adequado; (xv)
Direito a uma Habitação Adequada; (xvi) Direito à Educação; (xvii) Direito ao Padrão
mais Alto Alcançável de Saúde; (xviii) Proteção contra Abusos Médicos; (xix) Direito à
Liberdade de Opinião e Expressão; (xx) Direito à Liberdade de Reunião e Associação
Pacíficas; (xxi) Direito à Liberdade de Pensamento, Consciência e Religião; (xxii)
Direito à Liberdade de Ir e Vir; (xxiii) Direito de Buscar Asilo; (xxiv) Direito de Constituir
uma Família; (xxv) Direito de Participar da Vida Pública; (xxvi) Direito de Participar da
Vida Cultural; (xxvii) Direito de Promover os Direitos Humanos; (xxviii) Direito a
Recursos Jurídicos e Medidas Corretivas Eficazes; (xxix) Responsabilização
(Accountability). Ditos Princípios de Yogyakarta foram facilmente localizados no google
por este autor. De qualquer forma, segue um endereço eletrônico que dá acesso a um
arquivo (sob a forma de “.pdf”) contendo-os, que está disponível em:
www.sxpolitics.org/mambo452/index.php?
option=com_docman&task=doc_download&gid=34. Acesso em: 7 jul. 2008).
3 Vide, nesse sentido, o art. 3.º, IV, da CF/1988, segundo o qual: “Art. 3.º Constituem
objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: (...) IV – promover o bem-
estar de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras
formas de discriminação” (sem grifo no original), no que está por certo incluída a
proibição de discriminação pela orientação sexual da pessoa.
4 Na lição de Roger Raupp Rios: “Neste precedente, o tribunal havaiano apreciou a
constitucionalidade da legislação estadual que estabelecia como condição para o
casamento a diversidade de sexos dos contraentes. Conforme a fundamentação
desenvolvida, a referida legislação estadual contrariou a garantia da igual proteção
prevista no artigo I, seção 5, da Constituição do Estado do Hawaii, segundo o qual ‘no
person shall be denied the equal protection of the laws, nor be denied, the enjoyment
of the person’s civil rights or be discriminated against in the exercise thereof because
of race, religion, sex or ancestry’ [tradução livre: ‘nenhuma pessoa terá negada a igual
proteção das leis, nem negada a fruição de direitos civis ou ser discriminada contra o
seu exercício em virtude de raça, religião, sexo ou descendência’]. Isso porque a
impossibilidade de casamento entre homossexuais, privando-os de todos os direitos e
benefícios reservados aos que podem se casar, configura discriminação por motivo de
sexo, vedada pelo texto constitucional. No entender do tribunal, para a aceitação desta
restrição, que atinge um ‘direito essencial para adequada busca da felicidade’, direito
este de caráter fundamental na ordem jurídica norte-americana, seriam necessários
fortíssimos motivos racionais justificadores da medida, configurando uma hipótese de
controle de constitucionalidade da legislação discriminatória. Esta solução judicial
provocou forte reação na sociedade norte-americana, ensejando a promulgação de
legislação federal conhecida como ‘a lei de defesa do casamento’. Este diploma
legislativo, além de definir casamento no âmbito federal como a união de um homem e
uma mulher, faculta aos demais Estados Federados norte-americanos não reconhecer
os casamentos entre pessoas do mesmo sexo celebrados no Hawaii. Após a decisão
judicial, inclusive, houve a promulgação de emenda à Constituição do Estado do
Hawaii atribuindo ao Poder Legislativo a competência para restringir às uniões
heterossexuais a possibilidade de casamento” (RIOS, Roger Raupp. A
Homossexualidade no Direito, 1.ª Edição, Porto Alegre: Editora Livraria do Advogado,
2001, p. 119-21 – sem grifos no original). Para melhor compreensão da decisão,
cumpre tecer algumas considerações acerca do princípio da igualdade no
ordenamento jurídico dos Estados Unidos. Inicialmente, em razão da controvérsia e da
polêmica acerca de decisões políticas dos governantes estadunidenses, passou a
Suprema Corte daquele país a exigir que haja um motivo racional que justifique a
medida tomada e o objetivo pretendido. Nesse caso, há forte presunção de
constitucionalidade em favor do ato praticado, bastando que aquele que o realizou
prove a racionalidade do mesmo em relação ao objetivo pretendido. É o conhecido
rational relationship test (“teste de relação racional”), que equivale ao aspecto material
da isonomia constitucional brasileira. Todavia, outros dois critérios existem na
aplicação da igualdade estadunidense. Nesse sentido, criou a Suprema Corte daquele
país uma forte presunção de inconstitucionalidade para discriminações efetuadas
contra determinados grupos, historicamente estigmatizados pela sociedade
estadunidense em razão de características de sua identidade, não sendo estes grupos
devidamente representados no Parlamento daquele país (como os negros). Assim, a
simples racionalidade do rational relationship test passou a não ser suficiente nesse
caso: além dessa correlação racional, deve o Estado demonstrar que ela
(discriminação) é imprescindível ao alcance de um compelling state interest (“objetivo
primordial do Estado”), tarefa esta extremamente árdua. É o controle de
constitucionalidade conhecido por stricty scrutny (“critério de exame estritamente
rigoroso”), originando as suspect classifications (“classificações suspeitas”). Por fim, a
Suprema Corte Estadunidense entendeu que outras espécies de discriminações (como
as sexuais) precisavam de um controle de constitucionalidade mais rigoroso que o
rational relationship test, todavia não tão rigoroso quanto o strict scrutiny, no qual o
Estado deve provar a racionalidade da discriminação, e que esta visa à consecução de
um importante objetivo estatal (important state interest), dando assim origem às semi
suspect classifications (“classificações semissuspeitas”). Este último critério de
aplicação da isonomia estadunidense é o denominado intermediate scrutiny (“critério
de exame intermediário”). Para um melhor entendimento do tema, remete-se o leitor a:
RIOS, Roger Raupp, O Princípio da Igualdade e a Discriminação por Orientação
Sexual: a Homossexualidade no Direito brasileiro e Norte-Americano, Porto Alegre:
Editora Revista dos Tribunais, 2002, p. 64-91.
5 Em que pese o preconceito de o Legislativo local ter ocasionado uma emenda à
Constituição Havaiana que proibiu expressamente o casamento civil homoafetivo – a
decisão foi proferida em face de uma lacuna normativa, assim como a existente no
ordenamento jurídico-constitucional brasileiro. Ademais, ao menos no sistema
constitucional brasileiro, a emenda constitucional é passível de ser declarada
inconstitucional por afronta às cláusulas pétreas da isonomia e da dignidade da
pessoa humana, além dos princípios da promoção do bem-estar de todos, da
pluralidade, da laicidade e da liberdade de consciência.
6 Dita representação foi assinada pelos Procuradores Regionais da República Daniel
Sarmento, Luiza Cristina Frischeisen, Paulo Gilberto Cogo Leivas, pelo Procurador
Regional dos Direitos do Cidadão Sérgio Gardenghi Suiama, pelos Procuradores da
República Renato de Freitas Souza Machado e Caroline Maciel da Costa, por Antônio
Luiz Martins dos Reis (da ABGLT), por Nelson Matias Pereira (pela Associação da
Parada do Orgulho GLBT/SP), pelo advogado Paulo Tavares Mariante (pelo Identidade
– Grupo de Ação pela Cidadania Homossexual) e por Edmilson Alves de Medeiros (do
grupo Cidadania, Orgulho, Respeito, Solidariedade e Amor – Corsa). Foi claramente
esta representação que inspirou a Procuradoria-Geral da República a propor a ADPF
178, convertida em ADIn 4.277, julgada em conjunto com a ADPF 132 nos dias 04 e
05.05.2011, que reconheceram a união homoafetiva como união estável
constitucionalmente protegida ou, como preferem alguns, como entidade familiar com
igualdade de direitos relativamente à união estável heteroafetiva.
7 (1996) 142 D.L.R 4th 1,6 (nota do original).
8 (2003) O.J. 2268. Também foram proferidas decisões no mesmo sentido pelas Cortes
de Apelação das províncias de Quebec e Colúmbia (nota do original).
9 (2004) 3 S.C.R. 698 (nota do original).
10 Decisão 14/1995. Os trechos mais importantes da decisão estão reproduzidos em
inglês em Paul Gewirtz. Global Constitutionalism: Nationhood, Same-Sex Marriage. op.
cit., p. 62-66 (nota do original).
11 Aponto meu entendimento, já esposado ao longo deste trabalho, de que esse
raciocínio também é válido no que tange ao casamento civil, que é um direito e não um
dogma religioso.
12 High Court of Justice 721/94, 48 Piskey-Din 749. Uma versão em inglês da decisão
está disponível em: www.tau.ac.il/law/aeyalgross/legal_material.htm (nota do original).
13 539 U.S. 558, 123 S Ct. 2472 (2003). Uma versão em português deste
importantíssimo julgado foi publicada em Revista Brasileira de Direito Constitucional n.
3, p. 601-628, jan.-jun. 2004 (nota do original).
14 Esta odiosa orientação fora adotada em 1986 pela Suprema Corte no julgamento do
caso Bowers v. Hardwick (478 U.S. 186 (1986)) – nota do original.
15 Haw. 530. As partes mais relevantes da decisão estão reproduzidas em Willian
Eskridge Jr & Nan Hunter. Sexuality, Gender and the Law. op. cit., p. 807-812 (nota do
original).
16 Caso Brauer v. Bureau of Vital Statistics, julgado em fevereiro de 1997 (nota do
original).
17 744 A.2d 865 (Vt 1999) – nota do original.
18 Os processos judicial e político foram extensamente examinados por: Willian. N.
Eskridge Jt., em Equality Practice: Civil Unions and the Future of Gay Rights. op. cit.,
p. 43-82 (nota do original).
19 440 Mass. 309 (2003). Os trechos mais relevantes da decisão estão reproduzidos em
Andrew Sullivan. Same-Sex Marriage Pro & Com: A Reader. New York: Vintage Books,
2004, p. 112-118 (nota do original). Aponto, apenas, que diversos trechos de dita
decisão foram transcritos e traduzidos ao longo deste trabalho.
20 430 Mass 1205 (nota do original).
21 National Coalition for Gay and Lesbian Equality and Others v. Ministry of Home Affairs
and Others. 2000 (2) SA 1 (CC) – nota do original. Aponto, apenas, que diversos
trechos de dita decisão foram transcritos e traduzidos ao longo deste trabalho.
22 Satchell v. Presidente of the Republic of South Africa and Another. 2002 (6) SA 1 (CC)
– nota do original.
23 Du Toit and Another v. Minister of Welfare and Population Development and Others.
2003 (2) SA 198 (CC) – nota do original.
24 J. and Another v. Director General of Department of Home Affairs and Others. 2003 (5)
SA 621 (CC) – nota do original.
25 Caso CCT 60/04, julgado em 1.o de dezembro de 2005 (nota do original).
26 “No que diz respeito à dissolução da parceria, será aplicada, na Dinamarca, a Lei de
Formação e Dissolução de Casamento, juntamente com a Lei de Herança, o Código
Penal e a Lei de Tributos Hereditários, que foram emendados com a introdução da Lei
373, concluindo-se, portanto, que a união registrada surtirá efeitos em todas as
legislações mencionadas, sendo uma das principais mudanças a vedação de convolar
novas núpcias enquanto perdurar casamento ou parceria anterior. Caso esse
dispositivo seja desobedecido, o Código Penal prevê prisão de até três anos. Outra
significante alteração se refere à questão patrimonial, e proíbe que a pessoa que tenha
sido casada ou parceira faça novo contrato, antes da divisão ou do início dela, perante
a Corte, da propriedade conjunta. Todavia, isso não se aplica se os contratantes se
unirem sob o regime da absoluta separação de bens ou, ainda, quando for concedida
uma isenção de divisão, em casos especiais, pelo Ministro da Justiça. De modo
semelhante, a Lei de Herança, exigindo a partilha dos bens comuns antes que se
contraia novo contrato de casamento ou registro de parceria” (FERNANDES, Taísa
Ribeiro. Uniões homossexuais: efeitos jurídicos, 1.ª Edição, São Paulo: Editora
Método, 2004, p. 123-124).
27 Para melhor conhecimento dos trâmites desse contrato, pede-se venia para
transcrever as lições de Maria Berenice Dias e de Débora Vanessa Caús Brandão,
assim citadas por Taísa Ribeiro Fernandes: “Trata-se de declaração conjunta em
cartório, cujo registro marca o início de sua vigência. É livre a deliberação de caráter
patrimonial e, em caso de omissão, presumem-se comuns os bens adquiridos durante
sua vigência. O contrato é oponível a terceiros, gerando obrigações solidárias. O
acordo, que pode ser alterado consensualmente a qualquer tempo, cria a obrigação de
auxílio mútuo, a ser livremente regulada entre as partes. É vedada sua estipulação
entre ascendentes e descendentes, bem como entre afins em linha reta e colaterais
até o 3.º grau inclusive. Tampouco pode ser firmado por pessoas casadas ou por quem
esteja vinculado por outro pacto. A dissolução consensual é feita por declaração
conjunta ao cartório do registro ou unilateralmente, mediante comunicação ao outro e
ao cartório, passando a vigorar após o decurso do prazo de três meses. O casamento
de um dos parceiros põe fim ao ajuste, bastando haver a comunicação acompanhada
da certidão do casamento. Ocorrida a morte de um, o sobrevivente ou qualquer
interessado pode comunicar o fato ao cartório. Não havendo consenso sobre a
liquidação dos direitos e obrigações, cabe a dissolução judicial, independente da
reparação de danos eventualmente sofridos [lição de Maria Berenice Dias]. (...)
Conforme o art. 515-3 do Código Civil francês, o PACS deve ser apresentado por
escrito em duas vias, mencionando, expressamente, que as cláusulas ali contidas
reger-se-ão pela Lei 944, de 15.11.1999. Além da qualificação das partes, é mister a
descrição da forma com a qual cada celebrante contribuirá para a vida em comum
(divisão das despesas do aluguel, por exemplo); sobrevindo ruptura do Pacto, a forma
de divisão dos bens também já estará prevista. O procedimento para que o PACS
passe a produzir efeitos jurídicos almejados é bastante simples. As partes deverão
comparecer ao cartório do tribunal de instância da localidade onde tenham fixado a
residência comum e apresentar todos os documentos pertinentes à prova da idade,
residência, nacionalidade, inexistência de impedimento matrimonial etc. Note-se que a
competência é fixada pelo critério territorial. Sendo uma das partes de nacionalidade
estrangeira, o PACS será celebrado no consulado ou embaixada correspondente.
Após a homologação pelo tribunal de instância, as partes deverão registrar o PACS no
cartório do tribunal de instância do local de nascimento de cada uma das partes (se
uma delas for estrangeira, o PACS deverá ser levado a registro no tribunal de grande
instância de Paris” [lição de Débora Vanessa Caús Brandão] (DIAS e BRANDÃO apud
FERNANDES, Taísa Ribeiro. Uniões homossexuais: efeitos jurídicos, 1.ª Edição, São
Paulo: Editora Método, 2004, p. 126-127).
28 “Conforme noticia Taísa Ribeiro Fernandes: “Em 2001, entrou em vigor a Lei 26.672,
que, alterando alguns artigos do Código Civil holandês, permitiu o casamento
homossexual. Casamento passou a ser possível tanto por pessoas de sexos diferentes
quanto por pessoas do mesmo sexo, podendo, inclusive, converter-se casamento em
parceria registrada e vice-versa. A conversão põe fim ao casamento e inicia a parceria
quando a mesma é registrada” (ibidem, p. 128-129). Ademais, a Holanda é pioneira na
permissibilidade da adoção por duas pessoas do mesmo sexo, em que pese somente
poderem ser adotadas as crianças holandesas, conforme a lição da mesma autora:
“(...) Quando feita por duas pessoas, a adoção só é deferida se forem casadas ou
viverem em parceria por três anos, pelo menos, e a criança deve estar em companhia
do casal por um ano, no mínimo. A adoção deve atender aos interessados da criança,
quando não for conveniente que ela permaneça com seus pais biológicos” (ibidem, p.
129).
29 Aponte-se a seguinte matéria para ilustrar o que se acabou de expor: “Foi um dia
depois do Dia Mundial do Orgulho Gay, mas foi a conquista que mais marcou os GLS
no mundo católico e de ascendência latina, como é o caso do Brasil. A Espanha
aprovou ontem [29.06.2005] o casamento homossexual, com mudanças no Código
Civil do país que derruba por vez a vantagem dos heterossexuais, que podem escolher
entre casar ou não. Agora os homossexuais também podem se casar quando, como e
se quiserem. Pela primeira vez na História um país que, além de ser católico, teve uma
relação tão próxima da Igreja Católica na época dos Grandes Descobrimentos,
consegue separar o Estado da religião. Num país em que na época da chamada Santa
Inquisição, em que a Igreja Católica tinha a hegemonia política mundial, os judeus
eram expulsos do país, e os ‘sodomitas’ eram queimados vivos, com justificativa nos
autos da fé, isso é uma conquista revolucionária. Vitória ainda mais importante se
pensarmos que durante toda a ditadura franquista, era encerrada há menos de 30
anos, havia uma enorme repressão aos homossexuais. Foi uma evolução muito
grande. A nova lei, proposta pelo partido do Presidente Zapatero, foi finalmente
aprovada ontem, 29/6, por 187 votos a favor e 147 votos contra e é mais simples do
que se imagina. Ela se resume a uma pequena modificação no texto do artigo 44 do
Código Civil espanhol: onde se lia: ‘O homem e a mulher têm direito a contraírem
matrimônio conforme as disposições deste Código’, agora passa a vigorar com o
seguinte adendo: ‘O matrimônio terá os mesmos requisitos e efeitos quando ambos os
contraentes forem do mesmo sexo ou de sexos diferentes’. Uma frase que faz toda a
diferença na vida de milhares de casais espanhóis que não tinham seus direitos
garantidos. Foi ajustada, ainda, a linguagem referente aos cônjuges em outros 16
artigos e as mudanças também possibilitaram tanto a adoção conjunta de filhos do
casal homossexual como a coadoção de um dos componentes do casal do filho
existente do outro componente. (...) Em primeiro lugar, a iniciativa da lei que institui a
igualdade do casamento foi do próprio presidente Zapatero, que foi muito além da
retórica fácil e populista. Ele realmente se empenhou em discutir a lei, rechaçar a
influência da Igreja Católica neste assunto, marcando a diferenciação entre Estado e
Igreja e em nenhum momento aceitou retroceder um milímetro. Outro ponto importante
é quanto ao papel dos grupos ativistas espanhóis, notadamente os baseados em
Barcelona, como o ArciGay, e Madri. Menos preocupados com paradas gays e mais
preocupados com protestos na hora certa, os grupos se uniram para rechaçar um
protesto de grupos conservadores contra o casamento homossexual, dias antes do
início da votação final. Um momento crucial, pois a lei já havia sido aprovada na
Câmara baixa, mas foi rejeitada pelo Senado. Voltando à Câmara, a lei teria o voto
final. O contraprotesto veio na hora certa, coroando uma bem orquestrada iniciativa de
grupos ativistas maduros e conscientes” (disponível
em: http://glsplanet.terra.com.br/especial/espanha.shtml. Acesso em: 27 dez. 2005, às
23h39).
CONCLUSÃO

Não será feita uma conclusão sintetizando todos os pontos abordados,


capítulo por capítulo, tendo em vista que cada um possui, ao seu final, uma
síntese conclusiva, na qual o leitor poderá vislumbrar o entendimento
sintético deste autor a respeito dos temas tratados. Limitar-me-ei a expor as
conclusões fundamentais para a correta compreensão do tema.
O intuito do presente trabalho é demonstrar que as uniões homoafetivas
só não receberão o mesmo tratamento jurídico conferido às uniões
heteroafetivas por preconceito, ou seja, por um juízo de valor desarrazoado,
irracional, que não possui uma fundamentação lógico-racional que o
justifique quando levado em conta o critério diferenciador erigido, que é a
homogeneidade ou diversidade de sexos do casal (e, portanto, a orientação
sexual da pessoa). Restou claro que a forte pregação homofóbica perpetrada
pela Igreja Católica por mais de mil anos, após a Antiguidade Clássica,
institucionalizou a homofobia na mentalidade social e nos ordenamentos
jurídicos ocidentais. De acordo com igreja, a homoafetividade seria um
“pecado” e, mais tarde, essa ideia foi substituída pela de que constituiria
uma “doença”, mesmo sem provas disso – ou seja, considerando que as
pessoas, habitualmente, já condenavam a homossexualidade, com a
laicização do pensamento humano, simplesmente se trocou o termo
“pecado” por “doença”, mesmo sem provas de que o amor por pessoas do
mesmo sexo configuraria uma patologia – provas essas que, aliás, nunca
existiram.
Não obstante dito equívoco por parte de nossos antepassados, a partir
do momento em que a ciência médica mundial atestou a naturalidade da
homossexualidade, no sentido de não ser ela uma doença, desvio
psicológico, perversão nem nada do gênero, desapareceu o fundamento
laico utilizado para a discriminação das uniões homoafetivas em relação às
heteroafetivas, donde não mais há qualquer motivo justificador da
segregação das uniões homoafetivas em relação às heteroafetivas –
fundamento este que, ressalte-se, nunca deveria ter sido aceito, uma vez que
homossexuais só se relacionam com pessoas do mesmo sexo. Rebate-se
também, a incoerente patologização da homossexualidade, que nunca
poderia ter sido usada como justificativa válida para o não reconhecimento
do direito dos casais homoafetivos de se casarem civilmente, pois a
dignidade humana destes demanda pela igual proteção de seus
relacionamentos amorosos, independentemente de como sejam
considerados pela ciência.
Ademais, o princípio do Estado Laico veda que fundamentações
religiosas sejam utilizadas para determinar os rumos políticos e jurídicos da
nação, donde explicações religiosas não atendem o aspecto material da
isonomia e, consequentemente, não ensejam uma discriminação
juridicamente válida, que será apenas aquela oriunda de uma
fundamentação lógico-racional.
Dessa forma, considerando que as uniões homoafetivas são tão dignas
e tão normais quanto as heteroafetivas, merecem elas o mesmo tratamento
jurídico historicamente conferido a estas, pois não há motivação lógico-
racional que justifique entendimento contrário.
No que tange à atual legislação constitucional e infraconstitucional,
referente ao casamento civil e à união estável, a utilização da expressão “o
homem e a mulher” não implica “proibição implícita” à extensão de ditos
regimes jurídicos às uniões homoafetivas, tendo em vista que não há
“proibições implícitas” em Direito, em virtude do disposto no art. 5.o, II, da
CF/88, que determina que somente disposição normativa expressa ou norma
jurídica implícita decorrente da interpretação de texto(s) normativo(s) pode
restringir direitos. Assim, considerando que toda norma legal ou
constitucional não protege fatos isoladamente analisados, mas valores a eles
inerentes, considerando que o valor protegido pelas leis do casamento civil
e da união estável é o amor familiar, ou seja, o amor romântico que vise a
uma comunhão plena de vida e interesses, de forma pública, contínua e
duradoura, amor este que é o elemento formador da família conjugal
contemporânea formada, e considerando que as uniões homoafetivas
possuem esse mesmo amor familiar existente nas uniões heteroafetivas,
deve ser reconhecida a possibilidade jurídica do casamento civil
homoafetivo e da união estável homoafetiva por meio da interpretação
extensiva ou da analogia, que são técnicas expressamente previstas pela lei
(art. 4.o da LINDB e art. 126 do CPC), decorrentes da isonomia, que visam
estender às situações não citadas (expressamente) pelo texto normativo a
mesma proteção jurídica conferida expressamente por este a outras, em
virtude destas últimas possuírem o mesmo valor que ensejou a sua
elaboração, donde não há motivo razoável que justifique a concessão de
menos direitos a umas em relação a outras.
Nesse sentido, a extensão do casamento civil e da união estável às
uniões homoafetivas não implica afronta ao princípio da Separação dos
Poderes, tendo em vista que a interpretação extensiva e a analogia não são
formas de “legislação positiva”, mas técnicas de interpretação que visam
integrar as lacunas do ordenamento jurídico sob o fundamento de serem
idênticas ou idênticas no essencial àquelas situações expressamente
regulamentadas – o que é uma decorrência da isonomia, além de serem
técnicas hermenêuticas expressamente permitidas pelo próprio Legislativo –
nos arts. 4.o da LINDB e 126 do CPC. Ou seja, não há tal “legislação
positiva” porque, ao utilizar a interpretação extensiva ou a analogia para tal
fim, estará o intérprete, ao contrário, interpretando o ordenamento jurídico
da forma correta, aplicando tal interpretação ao disposto no artigo 1.514 do
CC/2002 (quanto ao casamento civil) e ao art. 226, § 3.º, da CF/88 (quanto
à união estável), o que, repita-se, é expressamente permitido pela lei.
Afinal, a partir do momento em que a lei expressa permite a utilização da
interpretação extensiva e da analogia (o que nem seria necessário, por
serem elas concretizações da isonomia), isso significa que o Legislativo
expressamente deferiu ao Judiciário o dever-poder de garantir à situação
não citada pelo texto normativo o regime jurídico deste, como consequência
do princípio constitucional da igualdade. Assim, não há usurpação da
competência do Congresso Nacional, nem afronta ao princípio da
Separação dos Poderes nessa hipótese – pois se estará, ao contrário,
garantindo que a legislação, já aprovada, seja aplicada da forma correta,
como pretendido pelo legislador, levando-se em conta o objeto de proteção
visado por este quando da elaboração o texto normativo.
Da mesma forma, a dignidade da pessoa humana demanda que seja
conferido o direito ao casamento civil às uniões homoafetivas, não a uma
“união civil”, ou seja lá qual outro nome se pretenda conferir às uniões
amorosas entre pessoas do mesmo sexo. Afinal, é inegável o arquétipo
cultural existente em torno do casamento, uma vez que somos
cotidianamente estimulados a nos casar para atingir a felicidade, donde os
casais homoafetivos que desejem se casar têm sua dignidade afrontada pelo
não-reconhecimento desse seu direito, pois uma união civil seria
inegavelmente vista como menos digna do que um casamento civil.
Parafraseando a Suprema Corte de Ontário/CAN, relegar as uniões
homoafetivas a uma “união civil” distinta do casamento civil implicaria na
difusão da sinistra mensagem de que elas não seriam dignas deste, o que
implica menosprezo delas relativamente às uniões heteroafetivas (às quais
se estaria “reservando” o casamento civil), algo absolutamente incompatível
com o princípio da dignidade da pessoa humana, que garante a mesma
dignidade a todos pelo simples fato de serem pessoas humanas e que só
admite relativização se houver uma fundamentação lógico-racional que o
justifique (aspecto material da isonomia), o que inexiste no presente caso.
Ainda que houvesse igualdade de direitos entre uma tal “união civil” e o
casamento civil, uma tal postura implicaria na institucionalização da teoria
do separados mas iguais, que tanto assolou a convivência entre brancos e
negros nos EUA (que pode ser explicada pela frase “direitos iguais em
locais diferentes” ou, no caso, mediante regimes jurídicos distintos), algo
absolutamente nefasto que não pode ser referendado.
Com relação à adoção, primeiramente, todos têm o direito fundamental
à parentalidade (em virtude do arquétipo social segundo o qual só seremos
felizes se tivermos filhos, biológicos ou adotivos), além do direito
fundamental de crianças e adolescentes que não estejam com seus pais
biológicos serem adotados (para que possam ter uma criação em um
ambiente de amor, respeito e solidariedade, em especial pela precariedade
do atual aparelhamento estatal para tal fim), ambos estes direitos oriundos
do princípio da dignidade da pessoa humana, que garante a todos o direito à
(busca da) felicidade.
Ademais, não há prejuízos a crianças e adolescentes pela sua criação
por um casal homoafetivo, que tem a mesma capacidade de fornecer um lar
com amor, respeito e solidariedade que um casal heteroafetivo, além do fato
de que a orientação sexual dos pais não influencia na orientação sexual dos
filhos (fato este que sequer deveria ser levado em conta, dada a naturalidade
da homossexualidade, ao lado da heterossexualidade e da bissexualidade) e
de que os menores criados em lares homoafetivos não são diferentes
daqueles em lares heteroafetivos apenas pela homogeneidade de sexos e
orientação sexual de seus pais.
Outrossim, o preconceito alheio jamais poderá ser um critério válido de
discriminação, donde o fato de crianças e adolescentes criadas(os) por
casais homoafetivos eventualmente serem alvo de preconceito em suas
escolas não justifica o indeferimento de uma adoção a tais casais – afinal, a
Constituição veda a utilização do preconceito como paradigma jurídico (art.
3º, IV), sendo que, por outro lado, o princípio da isonomia veda
discriminações arbitrárias, sendo arbitrário dito indeferimento se baseado
no preconceito alheio, mesmo porque a isonomia visa evitar o preconceito
jurídico.
Dessa forma, restam explicitadas as bases jurídicas para o
reconhecimento da possibilidade do casamento civil, da união estável e da
adoção por casais homoafetivos, como enunciado no título desta obra.
Espero que o debate jurídico acerca desses temas – ainda relativamente
incipiente em nosso País quando da primeira edição desta obra – continue a
crescer e seja sempre pautado pela lógica e pela racionalidade, como exige
a isonomia, e não por subjetivismos.
Em suma, considerando especialmente que o atual entendimento
médico-psicológico demonstra que a homossexualidade e a bissexualidade
são características não patológicas – portanto naturais – e tão normais
quanto a heterossexualidade, não pode o ordenamento jurídico continuar
ignorando as uniões homoafetivas em virtude de sua normalidade social, do
princípio da dignidade da pessoa humana e do princípio da igualdade.
Assim, deve ser reconhecido o status jurídico-familiar das uniões
homoafetivas e a elas devem também ser conferidos os mesmos direitos
concedidos às uniões heteroafetivas, uma vez que são situações idênticas
ou, no mínimo, idênticas no essencial, visto que ambas formam uma família
conjugal, que é formada pelo amor familiar, ou seja, pelo amor romântico
este que visa a uma comunhão plena de vida e interesses, de forma pública,
contínua e duradoura, que é o elemento formador da família conjugal
contemporânea.
Meu posicionamento é muito simples: de um ponto de vista meramente
filosófico, ante a inexistência de motivação lógico-racional que justifique a
concessão de menos direitos aos casais homoafetivos em relação aos casais
heteroafetivos, é extremamente injusta a referida discriminação. De um
ponto de vista estritamente jurídico, é ela inconstitucional por afrontar os
princípios da igualdade, da dignidade da pessoa humana, da liberdade de
consciência, da laicidade e da promoção do bem-estar de todos, que
evidentemente garantem a proteção e a promoção do bem-estar (também)
dos homossexuais e dos casais homoafetivos.
Enquanto o Legislativo não se dignar a cumprir o seu papel de garantir
expressamente os direitos dos casais homoafetivos (como das minorias e
grupos vulneráveis em geral), cumpre ao Judiciário, em sua independência,
neutralidade e função contramajoritária de garantia dos direitos
fundamentais e direitos subjetivos em geral (mesmo contra a vontade da
maioria), aplicar uma interpretação extensiva ou uma analogia – previstas
pelo próprio órgão legislativo para a supressão das lacunas jurídicas (como
a que envolve as uniões homoafetivas), pois essas técnicas interpretativas
decorrem da isonomia e visam conferir o mesmo tratamento jurídico a
situações idênticas ou, no mínimo, idênticas no essencial, como é o caso das
uniões homoafetivas em relação às heteroafetivas.
Não se pode deixar de citar nesta conclusão o histórico julgamento da
ADPF 132 e da ADI 4.277, o Supremo Tribunal Federal atribuiu
interpretação conforme à Constituição ao art. 1.723 do CC/02 “para dele
excluir qualquer significado que impeça o reconhecimento da união
contínua, pública e duradoura entre pessoas do mesmo sexo como ‘entidade
familiar’, entendida esta como sinônimo perfeito de ‘família’.
Reconhecimento que é de ser feito segundo as mesmas regras e com as
mesmas consequências da união estável heteroafetiva” (parte dispositiva da
decisão do STF), o que significa o reconhecimento da união homoafetiva
como união estável quando atendidos os requisitos fixados no citado
dispositivo para tanto (“convivência pública, contínua e duradoura e
estabelecida com objetivo de constituição de família”), algo coerente com a
interpretação sistemático-teleológica do art. 226, §3º, da CF/88 com os
princípios da igualdade, da dignidade da pessoa humana, da liberdade e da
segurança jurídica (invocados nas ações), consoante a fundamentação
explicitada no capítulo 13, na medida em que, como bem dito pelo Ministro
Gilmar Mendes em seu voto, o fato da Constituição proteger a união
estável entre homem e mulher não significa uma negativa de proteção à
união civil ou estável entre pessoas do mesmo sexo, donde ausente qualquer
óbice constitucional ao reconhecimento da união estável homoafetiva, por
interpretação extensiva ou analogia.
Como disse em artigo publicado logo após a decisão, a cidadania
venceu importante batalha contra o totalitarismo daqueles que não aceitam
que o outro seja feliz de acordo com seu próprio modo de ser1 (no caso,
mediante a conjugalidade homoafetiva). Merecem muitos elogios os
Ministros do STF pelos corajosos votos que, superando a letra fria da
Constituição, realizaram a interpretação sistemático-teleológica que
compatibilizou a norma constitucional relativa à união estável com aquelas
atinentes à isonomia, à dignidade da pessoa humana, à liberdade e à
segurança jurídica. Certamente não era a exegese mais fácil de ser adotada
pelo Tribunal. Mais fácil teria sido um apego à mera literalidade normativa
para ver uma proibição/restrição que não existe. Mais fácil teria sido a
adoção deste legalismo cego avalorativo, de apego à mera literalidade
normativa para reconhecer como juridicamente possível apenas aquilo que
está escrito, mesmo sendo isto incompatível com a hermenêutica jurídica
contemporânea. Mas não foi esta a postura do STF, que em julgado
corajoso, fez aquilo que o doutrinador britânico Neil MacCormick diz ser a
função do juiz: o juiz deve buscar a justiça, mas uma justiça de acordo com
a lei2 [ou melhor, de acordo com o Direito, outra acepção da palavra inglesa
law], o que é correto no sentido de que a concepção de justiça do intérprete
não pode afrontar os textos normativos vigentes na legislação – e foi isso
que fez nossa Suprema Corte neste caso. Fez justiça dentro daquilo que
permitem as normas constitucionais em uma adequada interpretação
sistemático-teleológica, o que é algo que sempre merece aplausos.
Por fim, vale destacar que o objetivo do presente trabalho não é agredir
a parcela da sociedade que ainda não aceita a naturalidade da
homoafetividade, pois não se ignora que a sociedade terá que se acostumar
à ideia de novos modelos de família e de relações afetivas, o que é tarefa
para o tempo. O que se contesta é o porquê do preconceito jurídico e,
consequentemente, da negação de direitos supostamente garantidos a todo
cidadão, porém veementemente negados por muitos aos cidadãos
homossexuais. Tais direitos devem ser garantidos a todos, tanto por parte do
Poder Judiciário, que deve ser imparcial e neutro3 na análise das demandas
jurídicas para garantir tais direitos no exercício de sua função
contramajoritária, quanto por parte do Poder Legislativo, que deve
representar toda a população, e não simplesmente parte dela.

1 VECCHIATTI, Paulo Roberto Iotti.O STF e a união estável homoafetiva. Resposta aos
críticos, primeiras impressões, agradecimentos e a consagração da homoafetividade
no Direito das Famílias. Jus Navigandi, Teresina, ano 16, n. 2870, 11 maio 2011.
Disponível em: <http://jus.com.br/revista/texto/19086>. Acesso em: 8 jan. 2012.
2 Citação feita de memória e por anotações pessoais, em obra na qual o autor afirma que
da mesma forma que isso não significa que os juízes devam decidir casos
exclusivamente de um modo justificável por simples dedução a partir de normas
jurídicas de caráter compulsório, isso também não pode significar que eles sejam
deixados à vontade para seguir suas próprias intuições do senso comum e da utilidade
da justiça, livres de todas as limitações. Assim, afirma que a área de alcance de sua
liberdade, poder e dever de buscar soluções justificáveis em termos
consequencialistas acerca do caso genérico é limitada pela exigência de que
demonstrem algum fundamento jurídico para o que fazem. Continua no sentido de que
os ‘princípios gerais’ que fornecem essa orientação necessária, por um lado, mas
limitação por outro, expressam as razões subjacentes às normas específicas
existentes. Pois bem: entendo essa lição compatível com a hermenêutica jurídica
contemporânea, que afirma que a norma é fruto da interpretação do texto normativo,
com a exigência de respeito aos limites semânticos do texto – os quais, como vimos
ao longo desta obra (e, em especial, no capítulo 13), foram respeitados pelo STF na
citada decisão.
3 Vale destacar que, ao se falar em “neutralidade”, evidentemente não se quer dizer que
o intérprete não tenha ideologias próprias, mas que, entre a sua ideologia e a ideologia
esposada pelo ordenamento jurídico em seus textos normativos interpretados de
maneira sistemático-teleológica, deve o intérprete aplicar o ordenamento jurídico,
mesmo que isso não se coadune com suas ideologias particulares. Assim, sendo
nosso ordenamento jurídico-constitucional eminentemente inclusivo/antidiscriminatório,
não pode o Judiciário aplicar uma interpretação
segregacionista/preconceituosa/discriminatória, como a que nega o status jurídico-
familiar às uniões homoafetivas e, portanto, a que nega o acesso de casais
homoafetivos aos regimes jurídicos do casamento civil, da união estável e da adoção
conjunta.
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