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DO PAPEL SOCIAL À INDIVIDUAÇÃO: AS SOCIOLOGIAS DO

INDIVÍDUO E SUAS IMPLICAÇÕES PARA A PESQUISA


EDUCACIONAL

PINTO, Lucas de Matos Sardinha – UFMG


lucas.sardinha@yahoo.com.br

Eixo Temático: Políticas Públicas, Avaliação e Gestão da Educação


Agência Financiadora: não contou com financiamento

Resumo

Desde o grande impacto advindo das teorias do capital cultural, caras a Pierre Bourdieu, a
sociologia da educação tem sido fortemente influenciada por suas assertivas. Não obstante,
fenômenos relacionados ao processo de globalização cultural e econômica têm empreendido
grandes desafios para as pesquisas sociológicas na medida em que as exceções tornam-se cada
vez mais freqüente: cada vez mais pesquisas têm demonstrado diversos mecanismos que
favorecem indivíduos provenientes de meios populares no sucesso escolar. Tais pesquisas têm
se apoiado nas sociologias do indivíduo. A referida vertente teórica têm criado diversos
conceitos e argumentações que impactam diretamente na pesquisa educacional. Diante desse
cenário, o objetivo do trabalho consiste em apresentar algumas ideias de três importantes
autores da sociologia do indivíduo, quais sejam, François Dubet, Bernard Lahire e Danilo
Martuccelli e, em seguida, ponderar acerca da contribuição de cada uma das perspectivas para
a pesquisa na área da sociologia da educação. Tal pesquisa se justifica tendo em vista o
grande crescimento das pesquisas baseadas epistemologicamente na perspectiva do indivíduo,
mas que não necessariamente dialogam com as diversas perspectivas existentes entre o
compêndio de autores vinculados à sociologia do indivíduo. Foram feitas leituras de algumas
obras importantes dos referidos autores e a sistematização de alguns dos conceitos que podem
ajudar de forma profícua na pesquisa educacional. Como conclusão, percebe-se que as teorias
do indivíduo ajudam profundamente para a compreensão das peculiaridades locais e alguns
dos conceitos cunhados, tal como o de prueba, de Danilo Martuccelli, afiguram-se enquanto
profícuo mecanismo de análise para a perspectiva em questão.

Palavras-chave: Capital Cultural. Pesquisa Educacional. Sociologia do Indivíduo.

Introdução

Após a desmistificação, empreendida principalmente a partir da teoria do capital


cultural elaborada por Pierre Bourdieu, da ideia de que a instituição escolar era o espaço
especial para a diminuição das desigualdades sociais, as pesquisas da área de sociologia da
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educação tomaram uma direção praticamente comum. O principal objetivo das pesquisas
passou a ser a demonstração de como os resultados escolares simplesmente reproduziam a
estrutura social previamente estabelecida. Porém, com o passar dos anos, devido a diversas
transformações sociais advindas do processo de globalização, as teorias bourdieusianas
passaram a ser questionadas tendo em vista o crescente surgimento de exceções à regra: era
cada vez mais comum verificar que indivíduos desprovidos de capital cultural se saiam bem
nas escolas.
Diante do cenário de crise do modelo clássico da sociologia surgem as discussões da
sociologia do indivíduo, transformando radicalmente o olhar do pesquisador. O ponto de
partida epistemológico sai da noção de socialização e entra na ideia da experiência individual.
Tal transformação do olhar produz mudanças nas pesquisas na área da sociologia da
educação. Sendo assim, o objetivo do presente trabalho é apresentar algumas das vertentes
teóricas vinculadas à chamada sociologia do indivíduo e apontar a implicação de cada uma
delas para as pesquisas educacionais.
Para tanto, foi realizada uma pequena introdução das ideias de Pierre Bourdieu e, em
seguida, apresentou-se alguns dos pressupostos da crise de suas teorias, assim como daquelas
vinculadas à sociologia clássica. Posteriormente foram apresentadas algumas ideias de três
importantes autores que trabalham a partir da perspectiva do indivíduo, quais sejam, François
Dubet, Bernard Lahire e Danilo Martuccelli.
Destaca-se como conclusão que tal movimento possibilita a compreensão das
realidades educacionais específicas de forma mais detalhada, favorecendo a apreensão dos
processos de produção de desigualdades escolares em um mundo no qual o discurso e o papel
do indivíduo ganha maiores proporções frente à ideia genérica de socialização. Argumenta-se
que o conceito de prueba, de Danilo Martuccelli é um fecundo operador analítico para
compreender os fenômenos sociais a partir da perspectiva do indivíduo na medida em que está
para a sociologia do indivíduo assim como o conceito de habitus está para as teorias
bourdieusianas.

Desenvolvimento

A partir da década de 50 grandes pesquisas passaram a abordar questões relacionadas


à educação em diversos países da Europa. Tais pesquisas, posteriormente enquadradas em
uma perspectiva empirista, demonstraram a existência de uma correlação entre a origem
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social e os resultados escolares. Nesse sentido, sendo a escola um local “igual” para todos, o
olhar se volta para as famílias e os estudantes a partir de uma perspectiva meritocrática, ou
seja, buscava-se compreender quais eram os elementos concernentes aos indivíduos das
classes baixas que os prejudicava em relação ao desempenho escolar.
Diversos trabalhos, porém, principalmente a partir de meados da década de 60, na
França, surgiram através de diálogo crítico direto com as teorias meritocráticas norte-
americanas. Pierre Bourdieu é sem dúvida um dos maiores críticos da perspectiva
meritocrática (assim como autores marxistas, como Mézáros, por exemplo). Ademais, a
proposta aqui elaborada focará em parte as argumentações bourdieusianas, conhecidas
popularmente, no tocante da sociologia da educação, como “teoria do capital cultural”.
Tal nome se dá devido aos argumentos cunhados por Bourdieu, radicalmente opostos à
teoria meritocrática norte-americana. Na perspectiva do referido autor, a escola, ao contrário
de ser um espaço neutro e que permite ao indivíduo, a partir de seu esforço, a possibilidade de
ascensão social, teria responsabilidade direta no “fracasso” de seus estudantes. Isso porque
sua organização, estruturalmente falando, ao contrário de valorizar o aprendizado dos
conteúdos escolares propriamente ditos (o mérito de cada educando em apropriar-se de tais
conteúdos), aprecia outras características dos estudantes, socialmente constituídas e anteriores
à escola, a saber, o chamado “capital cultural” (BOURDIEU in NOGUEIRA & CATANI,
2008, p.39). Nesse sentido, a escola não é um espaço igual a todos, não é um campo de
disputa neutro, incapaz de produzir interferências nos jogadores. Ao contrário, ela possui
papel ativo e direto na produção de diferenças do desempenho educacional dos estudantes.
Dentro dessa perspectiva, o conceito de “arbitrário cultural” é central na discussão
(NOGUEIRA & NOGUEIRA, 2006). Através de uma perspectiva antropológica da cultura,
na qual não há hierarquização entre as culturas, Bourdieu demonstra como a escola, ao
“eleger” pontos específicos da cultura geral de uma nação (geralmente provenientes das
classes dominantes), exclui aquelas pessoas que, em seus meios de socialização não dispõem
facilmente desses critérios escolhidos e encontrados nos locais de socialização dos indivíduos
das classes dominantes, ou seja, são desprovidas de capital cultural.
O conceito de capital cultural diz respeito a uma quantidade de informações adquiridas
pelos indivíduos, de forma indireta, durante toda sua trajetória de vida, completamente
relacionada com as estruturas objetivas que envolvem o indivíduo, ou seja, possui certa
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disposição comum de acordo com a classe social do indivíduo. Atrelado ao conceito de


capital cultural existe a noção de habitus, sendo este o

produto da incorporação da necessidade objetiva, o habitus, necessidade tornada


virtude, produz estratégias que, embora não sejam produto de uma aspiração
consciente de fins explicitamente colocados a partir de um conhecimento adequado
das condições objetivas, nem de uma determinação mecânica das causas, mostram-
se objetivamente ajustadas à situação. (BOURDIEU, 1990, p 23).

Através disso, o indivíduo detém inconscientemente um domínio prático das


regularidades do mundo, o que permite a ele antecipar os resultados do futuro. Essa
capacidade estatística inconsciente do indivíduo permite a ele “calcular” suas possibilidades
de êxito escolar, por exemplo, antes mesmo de ele passar por todas as etapas da escola.
Devido a isso e através de uma questão de probabilidade, podemos afirmar que cada classe
possui um habitus específico com relação à educação, diretamente relacionado ao capital
cultural. Quanto maior o capital cultural, maior a probabilidade de sucesso escolar,
favorecendo a criação de um habitus de valorização da escola e, logicamente, maior o
investimento direcionado para a educação por parte de uns e não de outros.
Durante muitos anos a agenda de pesquisa da sociologia da educação foi pautada sob
forte influência das teorias boudieusianas. No Brasil não foi diferente. Diversas pesquisas
demonstraram como o capital cultural, medido através da escolaridade da mãe dos estudantes,
possui influência forte influência para a explicação dos resultados escolares dos indivíduos.
Algumas pesquisas tratam, direta ou indiretamente, a temática até aqui exposta. Como
exemplo, estudos têm demonstrado (NOGUEIRA, 2004) como mesmo estudantes
provenientes de famílias com alto capital econômico passam por percalços durante sua
trajetória escolar, tendo em vista a maior força do capital cultural na explicação da relação dos
indivíduos com a escola. Além da referida pesquisa, outro estudo (BARBOSA, 2009), este
realizado através de métodos quantitativos de análise de dados de uma pesquisa, buscou
compreender as variáveis que explicam a relação entre desigualdades sociais e o desempenho
dos estudantes no Brasil. A análise dos dados apontou que o capital econômico possui
relevância explicativa inferior perante outras variáveis como a escolaridade da mãe e sexo,
por exemplo, sendo a escolaridade da mão uma proxy do capital cultural.
Porém, paralelas ao crescimento das pesquisas baseadas nas referências
bourdieusianas surgiram diversas críticas ao arcabouço teórico do referido autor. Como
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explicar as constantes exceções de estudantes provenientes de famílias com baixíssimo capital


cultural, mas que obtinham ótimos resultados escolares a parti das teorias de Bourdieu? Para
além disso, como continuar pesquisando a partir de uma perspectiva na qual o indivíduo é
considerado um ator social responsável por interpretar um papel previamente estabelecido e
desprovido de uma capacidade crítica? Fenômenos inerentes à pós modernidade, conforme
nomenclatura utilizada por diversos autores, tais como o processo de Globalização,
impuseram conflitos críticos às teorias clássicas da sociologia.
É exatamente a partir desse cenário, de crítica às teorias clássicas da sociologia
baseadas nas noções de socialização e de papel social, que as teorias do indivíduo ganham
força no campo da sociologia da educação. Para discutir tal perspectiva serão levadas em
consideração as argumentações de três autores, quis sejam, François Dubet, Bernard Lahire e
Danilo Martuccelli.

Sociologias do indivíduo

Independente das diferenças existentes entre as elaborações teóricas dos três


importantes autores para o campo da sociologia do indivíduo, alguns pressupostos iniciais,
referentes à crise da “sociologia clássica”1, são compartilhados por eles. Nesse sentido, antes
de iniciarmos a explanação de alguns pontos das teorias de cada um dos autores, fazem-se
necessárias algumas considerações referentes aos pressupostos epistemológicos que sustentam
a pesquisa sociológica a partir dos indivíduos. Ressalta-se, no entanto, que a intenção não é
exaurir a temática, pois diversos outros autores e teorias vinculam-se à chamada sociologia do
indivíduo, sendo a escolha aqui realizada totalmente idiossincrática.
Conforme dito anteriormente, as concepções vinculadas à sociologia clássica tinham a
ideia de sociedade enquanto uma concepção praticamente reificada. As explicações para as
ações dos indivíduos passavam fundamentalmente pela compreensão do contexto no qual eles
estavam inseridos, sendo que estes eram diretamente influenciados pelo meio de imersão. A
posição social seria, então, o conceito chave para compreensão das atitudes dos indivíduos,
tendo em vista que de cada uma delas deriva-se um papel a ser seguido. Quando se conhece a
posição social de um ator, supõem-se ser possível inferir o que ele faz. Tal leitura é feita tanto
em teorias de cunho marxista, onde os indivíduos são lidos influenciados pelo sistema

1
O termo Sociologia Clássica está sendo utilizado na concepção de Danilo Martuccelli presente no livro Cambio
de rumbo. La sociedad a escala Del individuo.
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produtivo vigente, quanto por uma perspectiva funcionalista, na qual o indivíduo é senão a
incorporação do social, assim como a partir da sociologia compreensiva, tendo em vista que
existem tipologias de ação relacionadas a épocas ou grupos diferentes.
Paulatinamente as pesquisas sociológicas influenciadas pelas concepções da sociologia
clássica passaram a se deparar com exceções cada vez mais rotineiras. Categorias que antes
eram extremamente fecundas para a explicação de certos comportamentos como, por
exemplo, religião, profissão, e classe social perderam força ao longo do tempo. Em um
mundo globalizado, no qual os processos de “importação” cultural são constantes, o indivíduo
se vê imerso por uma série de possibilidades antes improváveis ou mesmo impossíveis. A
difusão dos meios de comunicação tem tornado acessível informações antes restritas a grupos
muito específicos. Em suma, as clivagens culturais passam a ser regras da experiência dos
indivíduos, o que gera sérios problemas para interpretações baseadas nas teorias clássicas da
sociologia. Como pensar o processo de socialização de indivíduos que perpassam por
experiências culturais radicalmente distintas?
Nesse cenário, o lugar do indivíduo, antes visto como o resultado de um processo de
socialização, é reconsiderado, saindo da margem para o centro das análises. Sendo assim, do
ponto de vista epistemológico, para compreender certos fenômenos sociais é necessário partir
da ótica dos indivíduos, pois são eles que, munidos de uma capacidade de escolha
relativamente autônoma, significam os fenômenos sociais. É cada vez mais difícil analisar os
fenômenos sociais a partir de uma concepção prévia das funções de cada instituição. Por mais
que as escolas sejam um local privilegiado para a difusão do conhecimento elaborado pela
sociedade para a juventude, os indivíduos se apropriam desse conhecimento das mais distintas
maneiras, fazendo com que essa “função” se diversifique.
Enfim, tendo como base comum as ponderações até aqui apresentadas, diversas foram
as teorias elaboradas tendo os indivíduos como o ponto de partida epistemológico. Sendo
assim, para compreender o impacto de tais teorias para a agenda de pesquisas na área de
sociologia da educação, faz-se necessária a apresentação de algumas ideias dos três autores
que, de certa forma, são referência nas pesquisas baseadas nos indivíduos. Comecemos, então,
por algumas considerações de François Dubet.
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François Dubet e a Sociologia da Experiência

A teoria sociológica apresenta-se atualmente enquanto um campo totalmente disperso


(DUBET, 1994). Tal constatação é o ponto de partida das argumentações de Dubet em seu
livro Sociologia da Experiência. Circunscrita por tantos paradigmas, objetos e métodos
diferentes a chamada sociologia “clássica” tem se estilhaçado com o passar dos anos. Em tal
concepção sociológica, o ator individual é definido pela interiorização do social (Id. P. 12) e
a ideia de sociedade é considerada como um conjunto objetivo de valores, normas e funções
norteadoras dos indivíduos. Os manuais de sociologia, conforme descreve Dubet, geralmente
se referem a essa tradição sociológica através das noções de papel, de valor, de instituição, de
socialização, dentre outras noções que designam o processo de internalização das condutas
socialmente desejáveis empreendido pelos indivíduos. Em seguida, outros paradigmas
ganham força a partir de diferentes teorias da ação, seja considerando o indivíduo como um
Homo economicus, ou como agente de um habitus, ou até mesmo variando entre as diferentes
perspectivas (Id. p. 13). Várias dicotomias foram criadas a partir dessas disputas, quais sejam
micro/macro, individualismo/holismo, objetivismo/subjetivismo.
A despeito dos conflitos entre diferentes correntes, é inegável que a concepção de
agente presente na sociologia clássica, segundo definição de Dubet, tem perdido força ao
longo do tempo, uma vez que na chamada pós-modernidade a ideia de distância do ator em
relação ao sistema tem ganhado força.
É no interior desses Debates que Dubet cria a noção de sociologia da experiência, com
o objetivo de elaborar uma teoria de médio alcance. Tal noção designa as condutas
individuais e coletivas dominadas pela heterogeneidade dos seus princípios constitutivos, e
pela atividade dos indivíduos que deve construir o sentido das suas práticas no próprio seio
desta heterogeneidade (Id. p. 15).
Para Dubet a noção de experiência possui três características essenciais que serão
resumidas a seguir. A primeira delas é a heterogeneidade dos princípios culturais e sociais
que organizam as condutas (Id. p. 15). Nesse sentido, o ator não é visto como alguém com
uma única lógica de conduta, mas ao contrário, é tido como alguém que possui a capacidade
de adotar vários pontos de vista ao mesmo tempo. A segunda característica diz respeito à
distância subjetiva que os indivíduos mantêm em relação ao sistema (Id. p. 16). As ações não
são meros efeitos da socialização inerente a determinado campo de conduta. Os indivíduos
conservam uma reserva de distância crítica das “normas”. Por fim, a terceira característica é
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de que a construção da experiência coletiva substitui a noção de alienação no centro da


análise sociológica (Id. p. 17), na medida em que foge de utopias compartilhadas por classes
sociais ou por um povo a partir do declínio da clássica ideia de sociedade. Os movimentos
sociais passam a ser mais localizados, desmembrados, e os indivíduos estão privados de
deterem o domínio da experiência social total.
Além disso, para Dubet, a experiência social se da no entrecruzamento de três sistemas
distintos: comunidade, mercado e sistema cultural, sendo que cada um dos sistemas é fundado
por uma lógica de ação própria, sendo, respectivamente, a lógica da integração, estratégia e
subjetivação. Sucintamente falando, na lógica da integração o ator é definido pelos seus
vínculos na comunidade. Já na estratégica, o ator é definido por seus interesses no mercado.
Por fim, na lógica da subjetivação o ator é um sujeito crítico frente a uma sistemática de
produção/dominação, de alienação. A experiência social é, pois, o resultado da combinação
mais ou menos aleatória das várias lógicas de ação empreendida pelos indivíduos em um
determinado processo. Sendo assim, não é simplesmente uma forma de sentir os
acontecimentos, em um sentido estético, mas também a maneira como o indivíduo constrói o
mundo a partir da experimentação dos diversos sistemas e de suas respectivas lógicas.
As argumentações de François Dubet acima dispostas justificam a concepção de que,
apesar de recentes pesquisas na área da sociologia da educação terem apontado o impacto de
diversas variáveis na produção de desigualdades escolares, sendo essas muitas vezes ligadas à
origem social dos indivíduos, é importante levar em consideração a forma como os
indivíduos, ao longo de sua trajetória de vida, experenciam a escola e constroem (ou não)
sentidos diversos a esse fenômeno praticamente universal. Não é mais possível pensar o
processo de escolarização a partir da concepção do papel de aluno. As distintas lógicas de
ação se entrecruzam durante a experiência escola. O indivíduo, dentro da escola, é ao mesmo
tempo jovem (lógica da integração) e candidato ao vestibular (lógica estratégica).

Bernard Lahire e a Cultura dos Indivíduos

Dos três autores selecionados para a discussão do indivíduo, Bernard Lahire é aquele
que mais explicitamente dialoga, criticamente, com as clássicas teorias bourdieusianas
relacionadas aos usos sociais da cultura, dito de uma forma genérica. Ou, mais
especificamente, dos mecanismos de apropriação do capital cultural por parte dos indivíduos.
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Seu objetivo, todavia, não é o de desconstruir as argumentações de Bourdieu. Em seu livro


Cultura do Indivíduo, Lahire argumenta que:
esta obra não tem como objetivo negar as constatações de desigualdades sociais em
face da cultura legítima e apagar o quadro da realidade cultural pintado por quarenta anos de
trabalhos sobre os usos sociais da cultura. Ela visa propor um outro quadro igualmente
fundamentado empiricamente, um quadro que seria inimaginável sem o trabalho realizado
pelas pinturas do passado, mas que não revela as mesmas formas. Esse novo quadro, que
compõe de maneira diferente a mesma realidade, tornou-se possível graças a uma mudança de
escala de observação: ele oferece a imagem do mundo social que pode ser produzida por um
olhar que começa por examinar as diferenças internas de cada indivíduo (variações intra-
individuais) antes de mudar o ângulo de visão e de enfocar as diferenças entre classes sociais
(as variações interclasses) (LAHIRE, 2006, p.17).
Ou seja, a fronteira entre legitimidade ou ilegitimidade cultural não limita classes ou
grupos sociais genericamente estabelecidos, mas sim partilha diferenças práticas e
preferências culturais no interior dos indivíduos, independente da classe social pertencente.
Para o autor, dependendo da perspectiva com que o estudioso elabora sua pesquisa, ela cria
impedimentos para enxergar determinados fenômenos. Como exemplo, Lahire critica a
elaboração de perfis estatísticos, uma vez que estes, em busca das regularidades, acabam
limitando a possibilidade de compreender as diversas variações que existem entre as práticas
individuais. Por outro lado, a elaboração de perfis individuais faz com que salte aos olhos as
dissonâncias intra-individuais compartilhadas em todas as classes. Ricos, pobres,
trabalhadores liberais, funcionários públicos, operários. Todos os indivíduos de cada uma das
classes tendem mais a práticas diversas, incongruentes e divergentes do que a uma conduta
homogênea entre as classes. Daí a proposição do autor de empreender a análise da cultura em
uma escala individual, buscando as dissonâncias individuais, e não as grandes regularidades
estatísticas. Para tanto, não basta a realização de grandes surveys, mas é necessário uma
abordagem mais qualitativa, realizada através de longas entrevistas com diversos sujeitos.
As teses defendidas por Lahire, relacionadas à forma como os indivíduos se apropriam
da cultura, colidem com as concepções clássicas relacionadas à teoria do capital cultural
bourdieusiana. Para o segundo autor, o indivíduo se apropria de um determinado capital
cultural de forma praticamente passiva, a partir da posição social de origem desse indivíduo
(NOGUEIRA & NOGUEIRA, 2007) e, além disso, não é qualquer cultura concebida como o
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“verdadeiro” capital cultural, mas apenas aquelas práticas ligadas à cultura “legítima”. Lahire,
ao demonstrar que os indivíduos empreendem recorrentemente práticas completamente
distantes daquelas comuns em seu local de origem, problematiza fortemente a concepção
bourdieusiana de apropriação da cultura. Nesse sentido, é possível aproximar Lahire e Dubet,
na medida em que ambos destacam a grande heterogeneidade existente nas práticas dos
indivíduos na contemporaneidade.
Sendo assim, Lahire contribui diretamente para os estudos da sociologia da educação
que buscam compreender as razões do improvável, ou seja, os motivos pelos quais jovens
provenientes de classes desprovidas de catital cultural, nos termos bourdieusianos, conseguem
ter sucesso na trajetória escolar. Isso porque, conforme visto, para além da posição social do
indivíduo, para compreender a relação de cada pessoa com o sistema educacional é necessário
analisar as configurações sociais (as redes de relações) dos indivíduos e de outras estratégias
que podem por eles ser utilizadas, ao nível das biografias, e que estão além das características
objetivas, como situação funcional, renda e escolaridade dos pais.

Martuccelli e a Mudança de Rumo da Sociologia

Que indivíduos fabricam nossas sociedades? Essa é uma clássica pergunta da


sociologia, desde sua consolidação enquanto disciplina autônoma. Apesar de pouco inovador,
esse é o questionamento central das argumentações de Martuccelli presentes em seu livro
“Cambio de rumbo. La sociedad a escala del individuo”. O interesse nas ideias do autor,
todavia, não está na pergunta por ele realizada, mas sim nas tentativas de respostas. Segundo
o autor cada vez mais os indivíduos não se consideram membros de um mesmo grupo e, dessa
forma, velhas categorias explicativas, como as profissões, por exemplo, têm perdido espaço
nas análises sociológicas.
Conforme dito na parte referente aos pressupostos epistemológicos das teorias do
indivíduo, se antes as religiões e também o ofício pautavam boa parte das condutas dos
indivíduos, atualmente tais questões cumprem espaço completamente diferente. A
globalização, ao mesmo tempo em que uniformiza experiências em escala mundial, impõe um
conflito no cerne da relação entre o global e o local. Alguns fenômenos sociais “globais”,
como as escolas, as religiões ou as profissões, por exemplo, sofrem um processo de
difratação (MARTUCCELLI, 2007, p.115), ou seja, são apropriados de diferentes maneiras,
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nos diversos locais, pelos distintos indivíduos. E, segundo o autor, as pesquisas sociológicas
têm negligenciado tais fenômenos.
Sendo assim, não basta operacionalizar velhas categorias como profissão, gênero, raça
e religião para compreender a relação dos (as) estudantes com a escola em toda sua
complexidade. A difratação dos fenômenos impõe aos sociólogos a necessidade de
empreender suas análises a partir do nível dos indivíduos, uma vez que, a despeito de suas
posições objetivas na sociedade, os sujeitos são capazes de se apropriar e produzir
experiências individualizadas dos fenômenos sociais. E assim como Dubet, Martuccelli
considera que há diversas dimensões inerentes à ação dos indivíduos ao perpassarem por um
fenômeno, sendo as dimensões: do suporte, dos papéis, do respeito, da identidade e da
subjetividade. Em sua obra “Gramática do Indivíduo” o referido autor explana
especificamente sobre os significados e implicações de cada uma das dimensões. Porém, não
cabe, no presente artigo, elucidar cada uma delas, pois será o conceito analítico de prueba o
alvo do presente artigo, sendo que este será descrito em seguida.
Tendo como pressuposto as teorias de Martuccelli, o foco da análise deve partir, então,
da compreensão do processo de individuação dos sujeitos a partir de suas experiências no
mundo, ou seja, a partir das diversas pruebas por eles enfrentadas, pois “la individuación
define um tipo de sociedad y la define por el conjunto estandarizado e históricamente
variable de pruebas a los que somete a los indivíduos” (MARTUCCELLI, 2006). O que
seriam, então, as pruebas?
Segundo o autor, a noção de prueba possui quatro facetas. A primeira delas é que estas
se caracterizam enquanto uma situação difícil e dolorosa na qual os indivíduos são
confrontados, o que produz, fatalmente, distintas percepções dos processos vivenciados.
Sendo assim, o sujeito “percebe” quando está submetido a uma prueba. A segunda
característica do conceito em questão é que esse supõe a existência de particularidades dos
sujeitos. Os atores, ao confrontarem uma prueba, são capazes de produzir diferentes respostas
a elas. Os indivíduos possuem capacidade de resiliência, ou seja, capacidade de resistir a
situações, por vezes, traumáticas. A terceira noção das pruebas supõe a existência de um
caráter seletivo delas advindo. Ao serem defrontados pelas pruebas os indivíduos podem
obter sucesso ou falhar e o resultado do processo em questão produz diferentes
conseqüências. A quarta e última faceta aponta para a existência de certo conjunto estrutural
de desafios. Cada sociedade, em cada momento histórico, apresenta determinada
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racionalização das vivências. Nesse sentido, cada sociedade possui um conjunto de pruebas
mais ou menos pré-determinadas.
O conceito de prueba se configura enquanto um excelente operador analítico para
pesquisas que possuem o indivíduo como centro da análise, mas que buscam compreendê-lo
não apenas a partir da leitura de sua biografia (ou seja, mais próxima das teorias de Bernard
Lahire), e sim as relações do indivíduo e o espaço em uma dimensão distinta da ideia de
socialização e internalização de normas e valores.
Para finalizar, argumenta-se que tal conceito está para a sociologia do indivíduo assim
como o conceito de habitus está para a teoria bourdieusiana, sendo assim, o primeiro seria
uma espécie de subjetivação do segundo. Enquanto o habitus é a disposição criada a partir da
primeira socialização, internalizada inconscientemente pelo indivíduo, cara a um determinado
grupo social, as pruebas são alguns dos momentos chaves que perpassam a vida de
praticamente todos os indivíduos em um dado momento e espaço e que atuam, a partir da
subjetividade dos indivíduos, no processo de individuação dos sujeitos dependendo dos
resultados obtidos no enfrentamento de cada uma das pruebas.

Conclusão

Cada dia mais as pesquisas educacionais têm adotado a perspectiva da sociologia do


indivíduo. Porém, conforme visto, cada um dos autores vinculados à referida vertente
elaborou diferentes arcabouços teóricos, sendo que cada um deles possui implicações
diferentes para as pesquisas. Foram apontadas algumas diferenças a partir das análises de
parte das idéias de François Dubet, Bernard Lahire e Danilo Martuccelli.
Conclui-se que, em alguma medida, as argumentações de François Dubet deram o
embasamento epistemológico para a sociologia do indivíduo contemporânea (apoiado em
diversos autores, tais como Georg Simel e Alan Touraine) a partir da noção de experiência
social enquanto elemento substitutivo da noção de ação social, uma vez que esta estava muito
ligada à ideia de papel social cara à sociologia clássica.
Por sua vez, Bernard Lahire, além de produzir excelentes críticas ao modelo
bourdieusiano, principalmente em relação à concepção de apropriação do capital cultural,
transformou o olhar dos modelos de pesquisa ao elaborar estudos buscando compreender os
perfis individuais a partir das dissonâncias culturais intra-individuais, ao contrário de buscar
as grandes regularidades estatísticas existentes entre posição social e práticas culturais. Com
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esse modelo de pesquisa a explicação das “exceções” não mais fica de fora das teorias, mas,
ao contrário, ressignificam toda a lógica da relação dos indivíduos com seu meio de origem. É
necessário compreender as configurações sociais de cada indivíduo.
Por fim, argumenta-se que Martuccelli se apropria das discussões epistemológicas de
Dubet e expande ainda mais a pesquisa a partir do indivíduo, sendo capaz de cunhar conceitos
analíticos mais abrangentes para uma pesquisa que busque mais do que explicações da
trajetória de indivíduos isolados. Acredita-se que, nas disputas epistemológicas a respeito da
maneira pela qual deve-se compreender a relação dos indivíduos com o processo de
escolarização, o conceito de prueba assume um importante papel analítico, na medida em que
ele possui um papel homólogo, para a sociologia do indivíduo, ao conceito de habitus, dentro
da teoria do capital cultura, de Bourdieu.

REFERÊNCIAS

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sociologia da escola brasileira. Belo Horizonte: Argvmentvm, 2009.

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elementos para uma teoria do sistema de ensino. 2. ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1982.

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7067

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