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Os Primeiros Radicais

David Bentley Hart

Teologo da igreja ortodoxa.

Foi em 1983 que escutei o distinto historiador da igreja ortodoxa grega Aristeides
Papadakis, da Universidade de Maryland, fazendo com serenidade uma nota, em um
seminário do periodo da tarde, sobre os primeiros cristãos serem “comunistas”. Claro,
naqueles dias, a Guerra Fria ainda tinha sua sombra gélida sobre o panorama cultural,
de modo que uma consternação entre os estudantes se sentia em toda sala fazendo
com que Papadakis – que sempre escolhia suas palavras com precisão severa – se
sentisse obrigado a explicar que ele dizia isto no senso técnico mais básico: os cristãos
viviam juntos em uma vida comunitária e voluntáriamente usufruiam uma completa
comunidade de posses (nada do que caracterizou o “comunismo” do bloco do Leste).
O múrmurio diminuiu, mas não a inquietação que nos provocou. Não que alguem
devesse se sentir surprendido. Se o comunismo cristão da era apostólica é um segredo,
é o segredo mais sabido de todos. Se a palavra em si parece um pouco difícil,
poderiamos substituir por uma mais vaga e mais palatável, como comunialismo ou
comunitariedade, porém os fatos permanecem claros. O livro de Atos nos conta que
em Jerusálem os primeiros convertidos ao anuncio da ressureição de Cristo, como
expressão natural da nova fé, ocupavam um mesmo lugar vendendo todos bens
imóveis, repartindo as riquezes com “toda pessoa necessitada”, e usando os bens
necessários comunalmente, e não tendo pretensões de propriedade privadas para si
próprios. Nisto, além do mais, eles estavam simplesmente obedecendo o modelo que
Jesus ele próprio tinha estabelecido “qualquer de vós que não renuncia tudo o que
possuiu não pode ser meu discípulo” (Lucas 14:33). Não era apenas ao jovem rico que
buscava salvação mas para todos os que queriam segui-lo, Jesus estabeleceu o
mandamento de vender todas as posses privadas e doar aos necessitados (Lucas
12:33).

Isto foi sempre algo escandalizador para os Cristãos das eras posteriores, pelo menos
para aqueles que sequer se importavam notar este tema. E hoje, no Estados Unidos da
América, com sua piedade bizarra que toma como bens morais instrisecos a livre
iniciatíva e a propriedade privada, é quase inimaginável que alguém adotaria tamanha
atitude de sedição da inviolável santidade da propriedade privada. Portanto, ao longo
dos séculos, a cultura cristã grandemente ignorou a provocação social da organização
social da primeira igreja ou então canalizou seus restos teimosos em pequenas
comuniades especiais (como os monastérios e conventos). Mesmo quando esta
provocação era percebida, foi tipicamente tratada como algo acidental à mensagem
do Evangelho (como foi considerado pela tradição posterior) – no máximo como uma
breve acomodação com as circunstâncias históricas particulares , uma prudente
organização de recursos contra um mundo hostil por um período curto de tempo, mas
nada essencial à fé, e certamente não como uma filosofia. Isto é, na melhor avaliação,
apenas uma parcialidade, mas nenhuma de trivial. Obiviamente a igreja primitiva não
era um movimento político no sentido moderno, desde que esta mesma idéia não fazia
sentido naquela época. Não havia ideologias politicas no mundo antigo, nenhum
programa abstrato para a reconstrução da sociedade. Certamente que ninguém da
primeira igreja estava defendendo uma política de Estado de arrecadação de riquezas
e resdristruição. Mas se não era uma política, a Igreja era um tipo de polis, e o tipo de
vida que ela assumiu não era apenas uma concensão pragmática à necessidade ou
uma estratégia de sobrevivência mas antes a encarnação de seus ideias espirituais
mais profundos. E este comunismo não era tão transitório como ideal como os cristãos
tardios imaginaram. Tampouco era apenas um acidente na fé.

II

O radicalismo da igreja antiga, se é o conceito certo, me impressionou repetidas vezes


nos ultimos anos enquanto eu trabalhava na minha própria tradução do Novo
Testamento para a Editora da Universidade de Yale. Quando meu editor iniciamente
me propos o projeto, inocentemente eu pensei que seria um trabalho facil. Não que eu
pensava que o texto é simples. Mas porque ao longo dos anos muitas vezes eu
“corrigia” o que eu considerava defeitos e erros de várias passagens, seja para os meus
alunos ou para mim mesmo. Pensei que minha grande familiaridade com o grego do
original me preparava para passa-lo para o inglês quase sem nenhum esforço. Ainda
mais, eu tinha por muito tempo me sentido irritado com o que parece ser o fracasso
dos tradutores em passar aos leitores uma versão que ao invès de esconder as
ambiguidades do texto e seus mistérios, deixa-as em aberto para se vê-las. Assim a
proposta do editor de fazer uma “tradução literalmente subversiva” foi irrestível. Logo
percebi que embora eu soubesse um bocado sobre o texto, eu ainda tinha que
aprender mais a fundo muitas coisas. Eu estava bem consciente que muito da
linguagem convencional da tradução da escritura tem o efeito indesejável de reduzir
palavras complexas, difíceis, e conceitos apenas vagamente para termos mais
simplistas e enganosos. (eternidade, inferno, justificação, apenas para dar alguns
exemplos). Entretanto eu não tinha entendido corretamente como se faz violência
com essas convensões terminológicas das traduções que embobrecem o texto ou
embaçam as dimensões cruciais do seu mundo conceitual.

Os livros do Novo Testamento, eu percebi, constituem um surpreendente e muitas


vezes impenetrável problema histórico – não apenas porque eles veem do mundo
remoto da antiguidade tardia (um mundo que eu conheço muito bem, as vezes melhor
que o mundo atual), mas porque eles muitas vezes o texto não faz sentido nem
naquele contexto. Assim de novo eles não fazem muito sentido nem em relação a
história do cristianismo tardio. Eu me econtrei em grandes apuros na dúvida, por
exemplo, em como entender muitas construções sobre coisas que pertencem aquilo
que (koinon),”comum”. Bem particularmente, me encontrei pensando sobre
a distinção frequente que o te to faz com emfase em α (koinōnia), uma palavra
costumeiramente traduzida, de forma bem cafona, como “irmandade” ou
“partilhamento” ou (um pouco melhor) “comunhão”. Mas, no antigo conte to, o que
elas de fato implicam? Eu comecei a pensar que, ao contrário, elas se referem a um
conjunto de práticas precisas dentro da igreja antiga e suas comunidades, uma
organização social especial que era considerada integrante da nova vida em Cristo – o
que é dizer, as práticas claramente descritas em Atos e mencionadas nas epístolas do
Novo Testamento. Como então devemos ler a exortação na carta aos Hebreus para
não neglegenciar koinōnia? Quais são precisamente as virtudes e costumes que isto
implica? Ou o que significa que a primeira carta a Timóteo pede aos crentes para que
perseverem em tornar-se (koinōnikoi)— literalmente “comunal” ou
“comunialistas”? Certamente não apenas a recomendação pessoal de generosidade.
Como melhor podemos entender, depois de tudo, as igrejas locais do mundo Romano
na era apostolica eram muitas vezes algo como tentativas de pequenas comunas. E,
quando possível, aqueles com mais recursos enviavam ajuda para aqueles com pouco.
Esta teia delicada de comunas constituiam um tipo de contra-império dentro do
Império Romano, um contra-império fundado na caridade ao invés de na força – ou
melhor, um Reino não deste mundo mas presente dentro do mundo não obstante
como um tipo de história contraria e secreta, construída em volta de um
entendimento radicalmente diferente de sociedade e propriedade.

Direto ao ponto, que o Novo Testamento condena a propriedade privada é impossível


de apagar e está marcado com clareza: Lucas 6:24-25 por fato (“Mais ai de vós ricos,
porque tende a vossa consolação”), ou Mateus 6:19-20 (Não ajunteis tesouros para vós
mesmos na terra”), ou Thiago 2:5-7 e (mais estrondoso de todos) Thiago 5:1-6 (Agora
vós, ricos, chorai e dai gritos por causa das mis rias que virão sobre vós”). O apóstolo
aulo consistentemente luta contra α (pleonektia), “o desejo de consumir e
se apossar”, enquanto as cartas pastorais denunciam α ς (aischrokerdēs), “o
desejo sódido de lucro”. E, equanto haverá sempre o clero e os teológos prontos para
nos assegura que o Novo Testamento não condena a riqueza mas apenas seu abuso,
nem um uníca frase do texto (a não ser que submetida a uma leitura forçada e
absurda) confirma essa pregação.
III

Era muito mais fácil, sem dúvida – essa não estar nem aí para propriedades privadas –
para aquelas primeiras gerações de cristãos. Eles tendiam a se ver a si mesmos como
transitórios impermanentes pessoas dentro de um mundo que rapidamente
desaparece, como refugiados passando sem peso por uma história que não é a sua. A
sua conecxão com a sociedade como um todo era tenue, na melhor das hipóteses, e
sempre permeada por uma ironia apocaliptica. Mas enquanto a grande empolgação e
grande expetativas do Evangelho passaram e começaram a se assentar hábitos da vida
cotidiana nesse mundo depressivamente durável, as práticas distintas da igreja antiga
deram lugar ao práticas cotidianas da ordem estabelecida. Mesmo neste período, a
transição não foi de repente nem brusca como as vezes imaginamos. Perto do final do
primeiro século, um manual de vida cristã conhecido como Didaquê instruia os crentes
a compartilharem todas as suas coisas em comum e a pensar em nada como
propriedade privada. Os primeiros cristãos da cidade síria de Edessa disponham de
seus pertences em comum. Bem no segundo século, o pagão e sátiro Luciano de
Samosata (ca. 125-ca. 181 d.C) pode relatar que os cristãos viam a propriedade com
desconfiança e possuiam tudo o que tinham em comum. O apologista cristão Justino o
Martír (100-165 d.C) disse que ser cristão era buscar não mais as riquezas mas ao
contrário fazer um fundo comum de todas as posses, para redistribuir para os
necessitados. Até Clemente de Alexandria (150-215 d.C), que foi o primeiro teologo
significativo a assegurar que a nova classe de proprietários cristãos poderiam reter
suas propriedades desde que mantivessem sua pobreza de espírito, fez isto meio não
querendo fazer. Ele ainda chamava a propriedade privada o fruto da iniquidade e
insistia que idealmente todos os bens deviam ser de uso comum. Tertuliano (155-240
d.C) observava que os cristãos achavam uma comunhão de bens fácil porque eles já
viviam compartilhando em comunhão uma alma e um coração.

Mesmo no tardio século quarto, Básilio o Grande (330-379 d.C) podia com certeza
asseverar que não havia direito a propriedade privada, que ninguem deveria ter mais o
que o que é necessário, e que o rico dividisse o que propriamente já pertencia a todos
igualitariamente e que só o rico se dizia dono porque ele chegou primeiro. Para Básilio,
a propriedade privada era roubo – pão roubado do faminto, roupa roubada do
desnudo, dinheiro roubado do despossuído. Qualquer um, ele dizia, que possuisse
mais que o seu vizinho tinha falhado no dever e no amor cristão. E ele insistia que uma
sociedade cristã tinha que criar um fundo público comum de onde se pudesse tirar as
provisões dos destituídos. Seu irmão, Gregório de Nyssa (335-395 d.C) concordava.
Ambrósio de Milão (340-397 d.C) refutava que um homem rico pudesse dar alguma
doação para os pobres; o rico poderia no máximo remendar o que já pertencia a eles.
E sentimentos não menos irreverentes eram ouvidos por Santo Agostinho (354-430
d.C) e Cirílo de Alexandria (376-444 d.C). E aí havia também João Crisóstomo (347-407
d. C) com alguns pronuciamentos sobre riqueza e pobreza que fazem Bakunim e Marx
soarem como tímidos conservadores. De acordo com ele, a causa responsável pela
pobreza era a dispersão dos bens em bancos privados, o que produz tanto
parcimonialismo e prodigialismo. Os ricos são ladrões, mesmo se sua propriedade lhes
chega legalmente, pelas empresas ou por heranças, pois tudo pertence a todos como
parte de um estatuto comum humano. Aqueles que guardam um pouco mais do que a
necessidade obliga dessa propriedade comum para eles próprios são bandidos e
apostatas do Evangelho. Aqueles que pensam de si próprios que trabalham
honestamente quando adquirem dinheiro, empreendem negócios, e guardam nos
bancos os seus pertencem são na verdade vagabundos corruptos, que não querem o
verdadeiro trabalho da caridade ao próximo. Tudo o que possuíos na verdade
pertence a todos, e nenhum cristão nunca deveria usar as palavras seu e meu. E ele
falava muito disto nos seus sermões enquanto era arcebispo de Constantinopla.

Que esta linguagem ainda pudesse ser ouvida no coração da Cristandade, não
obstante, indica que ela perdera muito de sua força. Poderia ser tolerada até certo
ponto, mas apenas como uma hiperbole prórpia apenas a uma gramática religiosa
particular – um idioma, isto é, não como um imperativo modo de vida. O cristianismo
estava deixando de ser um anúncio apocaliptico de algo nunca acontecido e estava
começando a ser apenas o sistema estabelecido de devoção de uma cultura,
oferecendo a todos as consolações e garantias que se exigem das intituiçoes religiosas.
Enquanto passaram-se as gerações, a provocação inicial da igreja antiga iria subsitir
subtilmente em comunidades monásticas isoladas e ocasionalmente surgir em
movimentos efêmeros de “purismo” – a espiritualidade franciscana, os sem-posses da
Rússia, o Movimento Católico Operário – mas em geral, a adesão ao cristianismo se
tornou apenas uma religião, um suporte para a vida neste mundo, e não uma maneira
radicalmente diferente de se viver. Isto era inevitável, sem dúvida. As condições
materiais se alteram com o tempo, mas existem certas constâncias. Nenhuma
sociedade como um todo vai se fundamentar a si própria na rejeição do principal
mecanismo da sociedade: a propriedade. E todas as grandes religiões alcançaram
sucesso histórico ao gradualmente moderar as exigências mais extremas dos crentes. E
assim é díficil concluir simplesmente qual a moral da história do radicalismo da igreja
antiga. Mas, a todo aquele a que o Novo Testamento não apenas um arquivo do
passado, mas também é um desafio ao presente é díficil não concluir que a distância
separando o cristianismo da era apóstólica com a muito mais confortável adesão
religiosa ao cristianismo tardio - e ao cristianismo do mundo desenvolvido hoje – é
mais do que uma distância de tempo e circunstância.

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